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Universidade Estadual do Ceará Francisca Maria Rodrigues Sena MULHERES EM MOVIMENTO: CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES DE GÊNERO NA MILITÂNCIA POLÍTICA DAS MULHERES Fortaleza – Ceará 2004

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Universidade Estadual do Ceará

Francisca Maria Rodrigues Sena

MULHERES EM MOVIMENTO:

CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES DE GÊNERO

NA MILITÂNCIA POLÍTICA DAS MULHERES

Fortaleza – Ceará

2004

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Francisca Maria Rodrigues Sena

MULHERES EM MOVIMENTO:

A CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES DE GÊNERO

NA MILITÂNCIA POLÍTICA DAS MULHERES

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Políticas Públicas. Área de Concentração: Gênero e Militância Política.

Orientadora: Maria Helena de Paula Frota

Fortaleza – Ceará

2004

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Universidade Estadual do Ceará

Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade

Título do Trabalho: Mulheres em Movimento: a construção de relações de gênero

na militância política das mulheres

Autora: Francisca Maria Rodrigues Sena

Defesa em: Conceito obtido:

Nota obtida:

Banca Examinadora

________________________________ Maria Helena de Paula Frota, Profª Drª

Orientadora

________________________________ Maria Dolores Mota Farias, Profª Drª ________________________________ Kelma Socorro Lopes de Matos, Profª Drª

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RESUMO

As relações de gênero, compreendidas como construção social que define a identidade sexuada de homens e mulheres, são permeadas de poder e historicamente materializam-se desigualmente, subordinando e excluindo a maior parte desses sujeitos: as mulheres. Presumindo que essa constituição perpassa a ação desses sujeitos nos espaços e esferas públicas e privadas, privilegiamos, investigar esta construção a partir das ações e concepções dos sujeitos socialmente subordinados, verificando na sua organização política como são percebidas e construídas as relações de gênero. Dispusemo-nos, também, a identificar na militância política das mulheres engajadas na Associação Mulheres em Movimento, organização que tem inserção na periferia da cidade de Fortaleza, se há uma reprodução ou uma ruptura com o modelo tradicional de militância política; além disso, buscamos elucidar a indagação dos limites da construção de relações igualitárias de gênero num grupo formado eminentemente por mulheres. No percurso para o alcance dos objetivos recorremos à hermenêutica feminista buscamos adotar um enfoque crítico de gênero ao logo da revisitação do marco teórico e da pesquisa de campo. A investigação foi desenvolvida com a mediação de três categorias fundantes – gênero, militância política e esfera pública. Na pesquisa, as mulheres apresentam, em suas falas, principalmente dois espaços de definição das relações de gênero: o espaço doméstico e a esfera pública, seja para reprodução ou ruptura das desigualdades. Percebem sua militância política no movimento de mulheres como caminho para a superação da violência doméstica, do machismo, da pobreza, do desemprego e na luta pelo reconhecimento da sua identidade de sujeito e de conquista de políticas públicas efetivas. No espaço doméstico, demonstram consciência da sua responsabilidade de desconstruir esta realidade desigual e gerar relações mais igualitárias. Na Associação definem como estratégia central a formação profissional das mulheres (massoterapia, saúde, geração de trabalho e renda, formação, alfabetização de jovens e adultos), na perspectiva de criação de valores e de vivências que fortaleçam o seu processo de libertação e empoderamento. O fazem quando na militância política reinventam a esfera pública ao trazerem experiências e reflexões antes segregadas no espaço doméstico, socialmente considerado apolítico, deixando revelar o seu caráter político. Desta forma, gestam uma forma

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particular de fazer política que não encontra referência na militância tradicional. Embora a Associação tenha priorizado trabalhar com mulheres, elas deixam revelar os limites e a necessidade de fazê-lo com os outros sujeitos da relação: os homens. Entre discursos e práticas tecem vivências e reflexões que tencionam uma ruptura com as bases da sociedade machista, patriarcal e androcêntrica, e, também, contraditoriamente as percebemos enredadas pelos limites desta realidade desigual.

Palavras chaves: mulheres, relações de gênero, militância política, esfera pública

ABSTRACT

Gender relations, consisting of social constructions which defines sexual identity of men and women, are permeated with power, and historically they materialize unequally, subordinating and excluding the majority of these individuals: the women. Presuming this structure is part of these individuals actions in public and private places and spheres, in our work we privileged investigating this construction from the actions and conceptions of the socially subordinated subjects, verifying in their political organization, the way gender relations are constructed and perceived. We also decided to identify in the political militancy of the women involved in the “Associação Mulheres em Movimento” (Women in Movement Association), an organization inserted in the outskirts of the city of Fortaleza, if there is a reproduction or a rupture with the traditional model of political militancy. Moreover, we try to clarify the question of the limits regarding the construction of egalitarian gender relations in a group formed eminently of women. In order to achieve our objectives, we used the feministic hermeneutics as resource and we adopted a critical approach of the concept of gender, while revisiting the theoretical landmark on the subject and while making the field researches. The investigation was developed with the mediation of three founding categories – gender, political militancy and the public sphere. In the research, the women presented, in their speeches, mainly two definition intervals of gender relations: the domestic space and the public sphere, whether to reproduce or to break off with inequalities. They understand their political militancy in their women movement as a means to surpass domestic violence, male chauvinism, poverty, unemployment and to help them in their fight for recognition of their subject identity and for the achievement of effective public policies. In the domestic space, they demonstrate consciousness of their responsibility in deconstructing this unequal reality and in generating more egalitarian relations. In their Association, they defined as a central strategy the professional training of women (massage therapy, healthiness, creation of employments and income, alphabetization of youngsters and adults), in the perspective of creating values and experiences which might strengthen their process of becoming increasingly more powerful and free. They do so when, in political militancy, they reinvent the public sphere by bringing experiences and reflections, which before were segregated to the domestic space, socially considered apolitical, and by revealing its political character. This way, they

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manage to make politics in a particular manner which doesn’t find any similarity the traditional militancy scope. Although the Association has working with women as a priority, they let reveal the limits and the need to also work with the other individuals of the relation: the men. Among speeches and practices, they weave experiences and reflections which tend to a rupture with the values of a chauvinistic, patriarchal and androcentric society. Contradictorily, we also find them entangled with the limits of this unequal reality. Key-words: women, gender relations, political militancy, public sphere

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................7

1. REPENSANDO AS RELAÇÕES DE GÊNERO..........................................19

1.1 Considerações preliminares.................................................................. 20

1.2 As abordagens de gênero..................................................................... 24

1.3 Gênero, pobreza e a desigualdade....................................................... 31

2. RECONSTRUINDO A CONCEPÇÃO DE ESFERA PÚBLICA

A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO................................. 37

2.1 A Pólis e a rígida cisão entre as esferas pública e privada................. 42

2.2 Das sociedades feudais à esfera pública burguesa............................. 49

2.3 A esfera pública na contemporaneidade.............................................. 57

3. MULHERES EM MOVIMENTO: RESISTÊNCIA E

ORGANIZAÇÃO POLÍTICA....................................................................... 65

3.1 A Associação Mulheres em Movimento: expressão política

na periferia de Fortaleza...................................................................... 70

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3.2 As vozes das mulheres em movimento................................................ 88

4. MILITÂNCIA POLÍTICA E ORGANIZAÇÃO DE MULHERES

4.1 Militância política: uma práxis assexuada?.......................................... 120

4.2 Militância política: identidade e autopercepção....................................131

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................157

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................167

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

• AMM – Associação Mulheres em Movimento

• CEBs – Comunidades Eclesiais de Base

• CNBB – Conferência Nacional dos Bispos no Brasil

• CPM – Centro Popular da Mulher

• MFPA – Movimento Feminino Pela Anistia

• MSUs – Movimentos Sociais Urbanos

• ONGs – Organizações Não Governamentais

• PT – Partido dos Trabalhadores

• PDT – Partido Democrático Trabalhista

• PMF – Prefeitura Municipal de Fortaleza

• UMC – União das Mulheres Cearenses

• CF – Campanha da Fraternidade

• ONU – Organização das Nações Unidas

• SM – Salário Mínimo

• UMP – União das Mulheres da Piedade

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Agradecimentos

♣ À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e

Tecnológico – Funcap e

♣ À Associação Mulheres em Movimento

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INTRODUÇÃO

Uma proposta de análise da militância política de mulheres e a sua

influência na construção de relações de gênero, a priori, correm o risco de

representar mais um trabalho impulsionado por um modismo em torno da temática

gênero. Mesmo correndo o risco deste julgamento fizemos este recorte

epistemológico, assumindo o desafio de realizar a pesquisa como caminho para

problematizarmos a realidade, ampliarmos nossas concepções de mundo,

questionando verdades, revendo conceitos e construirmos novas leituras do

mundo, contribuindo assim para o enriquecimento deste campo de estudo.

A construção do nosso objeto de estudo tem um vínculo profundo com

a trajetória da pesquisadora dentro e fora da academia, principalmente nos

campos profissional e na militância política. Cada um desses campos tem o seu

significado e valor próprio, porém destacamos neste momento a vida acadêmica

que vem permitindo uma releitura contínua da militância política e do exercício

profissional, contribuindo para o engendramento de uma nova prática. A militância

política e o exercício profissional permitiram uma vivência intensa, direta e

constante com grupos populares da zona urbana e do meio rural, a partir de

processos político-pedagógicos na perspectiva do engendramento e

fortalecimento de projetos societários solidários e sustentáveis. Nesse percurso,

um dos maiores aprendizados foi a importância de estarmos atentos/as às

diversas formas de desigualdades, entre elas as desigualdades de gênero.

Considerando a capacidade humana de criação e de autocriação da

história como produto da sua atividade prática (Marx), fomos reconstruindo nossas

concepções ao mesmo tempo em que nos reconstruíamos. Se nas primeiras

vivências desta trajetória encerrávamos o discurso e a ação numa perspectiva

estritamente sexista, neste contínuo diálogo estabelecido com a realidade a partir

da inter-relação das contradições, limitações, dúvidas e convicções, fomos

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superando alguns dos limites de nossas interpretações e ampliando a

compreensão política onde as desigualdades de gênero foram assumindo um

caráter relacional. Uma dessas releituras da realidade assume sua concretude a

partir da realização da pesquisa cuja análise encontra-se nesta dissertação de

mestrado.

Pressupondo que a definição do objeto de estudo longe de ser

concretizada como uma mera especulação intelectual é definida, a partir das

experiências vividas, ao longo do Mestrado, dentro e fora da academia, o projeto

foi sendo reconstruído. A disciplina cursada Gênero, Família e Geração nas

Políticas Públicas provocou a percepção de elementos dantes ignorados e a

formação de indagações e incertezas do que se tinha como verdadeiro. As

inquietações despertadas precisavam ser trabalhadas, aprofundadas e

desvendadas. Movida por este sentimento reafirmou-se a necessidade de dar

continuidade aos estudos sobre as organizações da sociedade civil, mas agora,

numa outra ótica: numa perspectiva de gênero. Esse aspecto, somado às

experiências profissionais que foram surgindo conduziu finalmente a certeza de

que a pesquisa investigaria a construção das relações de gênero na militância

política das mulheres.

Contrapondo-se ao modelo clássico de pesquisa “que preconiza a

utilização de procedimentos rigorosamente empíricos com vistas à obtenção de

um máximo de objetividade na pesquisa” (GIL, 1987, 46), achamos mais coerente

com a prática desenvolvida há anos com o meio popular pela adoção da pesquisa

participante. Isso supõe um engajamento efetivo em todas as atividades da

associação, valorizando as experiências ali processadas e a construção/troca de

saberes que revelam a riqueza e a dinâmica própria da organização de mulheres

na periferia de Fortaleza.

Preconizamos a necessidade de ruptura com o modelo de análise

armado a partir da dicotomia sujeito-objeto, e contrariamente evidenciamos “as

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potencialidades de se obter um novo conhecimento sólido a partir do

estabelecimento na pesquisa de uma relação mais proveitosa sujeito-sujeito, isto

é, uma completa interação e participação dos que sofrem a experiência da

pesquisa!”. (BORDA, 1983, 59).

A partir destes pressupostos definimos nosso objeto de estudo que é

investigar na militância política das mulheres em suas organizações específicas,

como se processa a construção de relações de gênero. Propusemo-nos a

identificar esta construção no próprio fazer político apreendido durante a coleta de

dados, principalmente a partir das falas dessas mulheres; buscamos ainda,

investigar no fazer político das mulheres se há uma reprodução ou uma ruptura

com o modelo tradicional de militância política; além disso, como estamos

pressupondo o conceito de gênero dentro de uma perspectiva relacional,

indagamos quais os limites da construção de relações igualitárias de gênero num

grupo formado eminentemente por mulheres.

Percurso Metodológico

Em princípio foram identificadas duas expressões dos movimentos

feministas - a União das Mulheres Cearenses e o Centro Popular da Mulher - e

uma expressão dos movimentos de mulheres - a Associação Mulheres em

Movimento. Após a identificação e do contato inicial com esses movimentos e de

leituras sobre o caráter de cada um deles reunimos elementos que

proporcionaram a definição daquele último como universo da nossa pesquisa.

Destacamos três elementos nesta identificação e definição da

Associação Mulheres em Movimento - AMM como o universo da nossa pesquisa:

1) o fato da organização ter se originado na periferia e de mobilizar

predominantemente, até hoje, mulheres das camadas populares de Fortaleza. É

importante esclarecer que esse fator em si não corresponde a algo positivo ou

negativo, mas revelou-se como uma particularidade significativa que justificasse

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nossa análise; 2) outro fator é a resistência presente na trajetória dessas

mulheres, onde o seu engajamento político representa uma estratégia coletiva de

superação das condições inerentes à vida das mulheres pobres; e 3) pelo fato da

Associação, nessa trajetória de 17 anos, nunca ter sido objeto de uma pesquisa

acadêmica. Espera-se que a realização da pesquisa possa contribuir para a

sistematização e o desvendamento de aspectos até então não apreendidos na

trajetória da associação.

Esses três fatores foram fundamentais para a escolha desta Associação

que arregimenta a luta de mulheres desde 1987, atuando na cidade de Fortaleza,

principalmente no bairro Conjunto Palmeiras e adjacências. A Associação

Mulheres em Movimento, formada por cerca de 200 associadas desenvolve um

trabalho significativo numa região da periferia da cidade de Fortaleza nas áreas de

saúde, geração de trabalho e renda, formação, alfabetização de jovens e adultos,

massoterapia, entre outras.

Nascida de um movimento de mulheres, a AMM acabou se

institucionalizando, passando a ser formalmente reconhecida no ano de 1997. Na

impossibilidade de fazer uma abordagem de toda trajetória da Associação de

Mulheres em Movimento no que se refere às relações de gênero, elegeu-se como

marco temporal o período compreendido entre 1997 e 2001.

Além dos aspectos já levantados justificamos a importância da

realização da presente investigação na escassez de estudos numa perspectiva de

gênero, uma vez que sua abordagem é recente. Somente a partir dos anos 90 é

que se institucionaliza, em vários domínios, a incorporação da categoria gênero

(BANDEIRA,2000,17), inclusive no campo acadêmico. Espera-se que esta

pesquisa possa contribuir na construção desse campo de pesquisa tão cheio de

incertezas e dúvidas, buscando elucidá-las, assim como, suscitar a emergência de

outras.

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É nesse processo que se funda a possibilidade de que os resultados da

pesquisa possam colaborar com o crescimento da associação e constituam-se

como instrumentos de uma releitura da prática dessas mulheres. Releitura esta

tão necessária na caminhada de qualquer organização política.

No processo de definição do caminho a ser percorrido na realização da

pesquisa nos propusemos a descortinar a realidade expressa pelo senso comum -

inerente a qualquer pesquisa científica – mas também a buscar a superação de

limites que nos são apontados dentro da própria academia, que não podemos

esquecer, é uma herdeira em potencial da ciência moderna, antropocêntrica,

androcêntrica e cartesiana.

Mesmo focalizando a atenção nesse espaço micro e localizado que é

uma determinada associação de mulheres, não se pretende fazer uma ruptura

com o espaço macro, com a conjuntura e a realidade da sociedade brasileira e

mundial, mas fazer uma constante articulação entre os aspectos inerentes a cada

um deles.

Após a fase inicial de definição do universo de pesquisa, passamos

para um momento de aproximação e inserção na AMM. A pesquisa de campo

permitiu uma apreensão viva e consistente, engendrando a base empírica para

que o objeto da pesquisa pudesse ser desvendado.

Com a pesquisa de campo nosso propósito foi coletar informações

objetivas, conhecendo os dados gerais da entidade. Passamos a conviver com a

dinâmica da Associação Mulheres em Movimento buscando, através de algumas

mulheres e da pesquisa documental, consultar documentos da AMM, essenciais

para uma melhor compreensão da sua natureza e atuação (Ata de fundação,

Estatuto, Regimento Interno, relatórios, planos de ação...). Esses documentos nos

permitiram conhecer a gestação da entidade, sua filosofia, organização, seus

sujeitos, o trabalho desenvolvido. Logo no início foram muitas conversas

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principalmente com duas pessoas: a Bete, por ser uma das fundadoras desse

movimento e a Aparecida, que na época estava encarregada de manter a sede da

Associação aberta, atender as pessoas, organizar o material e o espaço da

Associação. Lamentamos não termos conseguido entrevistar esta última. Foi

bastante esclarecedor o diálogo estabelecido com elas para compreender nosso

universo de pesquisa.

Na pesquisa bibliográfica buscamos reunir elementos e informações

sobre a temática, dialogando com as/os autoras/es numa perspectiva de

reinterpretar a realidade, além de buscarmos fundamentação teórica para nossa

pesquisa. A partir desse diálogo definimos utilizar além da pesquisa bibliográfica

as seguintes técnicas de pesquisa: observação e entrevista.

Com a observação buscamos captar a dinâmica da AMM nas diversas

atividades desenvolvidas e no seu cotidiano, registrando tudo, a partir da

linguagem (do dito e do não dito), dos gestos, das emoções, dos conflitos, dos

símbolos, das contradições, das relações de poder.

Nessa aproximação com a identidade fomos redefinindo nossa amostra

de pesquisa. Como iríamos investigar a construção de relações de gênero na

militância política da Associação achamos mais significativo entrevistarmos as

mulheres que participavam efetivamente da entidade, acompanhando os

momentos importantes, contribuindo com processos de reflexão, diálogo e tomada

de decisões, ou seja, imprimindo sua subjetividade nessa trajetória política.

Identificamos um grupo de cerca de 20 mulheres com esse perfil. Nossa meta era

atingir todas elas, mas de fato conseguimos dialogar com 14 mulheres.

Poderíamos ter trabalhado também com alguns homens que esporadicamente

participam do trabalho desenvolvido pela Associação, mas essa participação se

mostrou tão irrelevante que seguimos o caminho de trabalhar só com as mulheres.

O fator irrelevante não é pelo número, mas pelo baixo nível de engajamento dos

homens.

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Definida a nossa amostra, passamos para outra etapa: as entrevistas

estruturadas. A fase inicial da entrevista constou de um roteiro que nos permitiu

fazer a identificação das entrevistadas, traçando assim, um perfil da própria

Associação. Das 14 mulheres entrevistadas, treze são associadas e apenas uma

participa da associação sem ter vinculo formal. Predominantemente as

entrevistadas são mulheres maduras, a maioria com mais de 40 anos de idade.

Apenas 4 mulheres têm menos de 40 anos, sendo a mais jovem de 27 e a mais

idosa de 64 anos; quanto à escolaridade 5 das entrevistadas concluíram ou estão

em fase de conclusão do Ensino Fundamental II, 6 delas possuem o ensino

médio, concluído ou em conclusão e 3 tem formação acadêmica, sendo um

teóloga e duas pedagogas. Elas residem em 6 bairros/comunidades diferentes: 1

no Dendê, 1 em Messejana, 2 no São Cristóvão, 2 no Parque Manueiro, 3 no

Conjunto Palmeiras e 5 no Santa Filomena. Com exceção do Dendê, comunidade

localizada no Bairro Edson Queiroz, as demais estão situadas na região da

Grande Messejana. Do total 50% das mulheres entrevistadas fazem parte da

Coordenação da AMM ou do Conselho Fiscal e a outra metade não exerce cargos

na Associação. Onze das entrevistadas afirmaram participar de outros grupos ou

movimento e somente três participam apenas da Associação. Dentre os grupos e

movimentos citados estão cooperativa, pastoral, conselho comunitário, associação

de moradores, movimento dos conjuntos habitacionais, grupo de idosos. As

mulheres entrevistadas exercem diversas profissões sendo: 1 secretária escolar, 1

castanheira, 1 pedagoga, 1 auxiliar de enfermagem, 1 auxiliar de cozinha, 1

auxiliar de escritório, 1 assessora jurídica comunitária, 2 professoras, 2 donas de

casa, 4 costureiras e 6 massoterapeutas. O número total de profissionais

ultrapassa a quantidade de entrevistadas, pois algumas delas exercem mais de

uma profissão. Quanto ao engajamento na Associação, 4 delas engajaram-se na

AMM há menos de 3 anos, 3 mulheres há 4 anos, 1 há 6 anos, 2 há 7 anos, 1 há 8

anos e 3 mulheres estão na AMM há mais de 10 anos.

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O segundo momento objetivava coletar informações mais subjetivas.

Embora não tenha havido uma rígida divisão na sistematização do roteiro da

entrevista buscamos monta-la a partir de 3 eixos: o primeiro refere-se às relações

de gênero, o segundo, sobre a AMM e o terceiro sobre a organização e militância

política de mulheres. No conjunto buscamos apreender a opinião e a impressão de

cada entrevistada em relação à política, a sua militância, a compreensão da

categoria e das relações de gênero, as conquistas alcançadas pela AMM, as

mudanças provocadas na vida...

As falas das mulheres, com toda sua riqueza, constituíram-se em

elementos fundamentais da pesquisa, que à luz do nosso referencial teórico,

contribuíram para o desvendamento do nosso objeto de estudo. Dentro desse

referencial definimos três categorias centrais: gênero, militância política e esfera

pública. É sobre elas que faremos algumas considerações a partir de agora.

A Definição das categorias de Análise

As três categorias centrais definidas para a nossa pesquisa - gênero,

militância política e esfera pública - enquanto configuração do concreto pensado

(Kosik), nos permitiram fazer as mediações necessárias entre este e os dados

coletados para a construção de uma nova leitura da realidade pesquisada.

A partir da pesquisa bibliográfica e de campo, fomos definindo nossas

categorias de análise de forma que pudessem dar conta do movimento e

desvendamento do real. Esse exercício demandou tempo, leitura e mediações que

implicaram em redefinições da nossa base conceitual. Com a revisão bibliográfica

e a qualificação do projeto de pesquisa finalmente consolidamos o referencial

teórico e conceitual, definindo as três categorias apontadas acima.

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No decorrer da dissertação aprofundaremos cada uma das categorias

apresentadas, mas, a título de introdução, faremos considerações sobre elas de

forma a tornar mais claro e preciso o significado das abordagens feitas.

Gênero constitui-se uma categoria que desde o principio foi definida

como fundamental para a realização desta pesquisa. Afinal, como investigar a

construção de relações de gênero sem a profundidade e a clareza exigida para

desvendar a realidade tão complexa e heterogênea? Principalmente quando se

trata de uma categoria recente que se encontra em plena construção; que se

constitui enquanto termo polissêmico comportando uma diversidade de enfoques;

que é alvo de críticas e controvérsias por parte de abordagens androcêntricas,

supostamente assexuadas ou mesmo universalistas.

Reconhecendo que gênero não é capaz de substituir categorias

clássicas na interpretação da realidade, destacamos a inadequação de tomá-la

isoladamente sob pena de termos uma leitura distorcida e superficial do objeto

investigado. Queremos adotá-la dentro de um processo de mediação com outras

categorias enriquecendo o estudo. Registramos o reconhecimento da importância

de se adotar a categoria classe social nesta pesquisa embora as condições

concretas em que ela foi desenvolvida impossibilitou a sua abordagem. Estamos

certas de que esse fator alterou em parte nosso propósito sem, no entanto,

invalidá-lo.

Como optamos por investigar as relações de gênero no fazer político

das mulheres pensamos em abordar a participação ou a militância política. Após

as considerações da banca de qualificação e do diálogo estabelecido com

alguns/mas autores/as decidimos por esta última compreendendo que ela

pressupõe fundamentalmente a participação. O mesmo não ocorre

obrigatoriamente com a sua inversão. Militância para nós se insere numa

abrangência maior onde é inconcebível estar militando sem participar. Definimos

trabalhar com esta categoria que atualmente não se encontra em evidência.

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Apesar do desuso, ela tem um significado fundamental para esta pesquisa uma

vez que objetiva investigar a construção de relações de gênero em um dos

espaços privilegiados da sua expressão que é um movimento de mulheres.

Certamente ela foi relegada ao desuso por ser vulgarmente apreendida em seu

significado clássico que já não consegue dar conta da realidade contemporânea.

Queremos retomá-la conservando aquilo que ela tem de essencial e buscando

agregar novos elementos e significados que possam evidenciar a sua capacidade

de interpretar, agora, o real.

Queremos ainda com a categoria militância política, a partir de uma

perspectiva de gênero, reconstruir seu significado quase sempre tomado de forma

universal, buscando considerar as especificidades da sua manifestação quando

vivenciada por mulheres. Sem querer negar aquilo que há de centralidade na

militância queremos explorar outras possibilidades desviando-se de verdades

únicas e absolutas.

Encerrando a tríade do nosso arcabouço teórico utilizamos também a

categoria esfera pública pelo seu potencial interpretativo das experiências

humanas em torno do bem comum. Ressaltamos aqui a necessidade de retomada

e reconstrução desta categoria na contemporaneidade por mostrar-se relevante

numa sociedade complexa e fragmentada onde as vivências coletivas têm perdido

o seu valor e as iniciativas individuais têm sido evidenciadas. Na impossibilidade

de tomá-la isoladamente, buscamos na sua reconstrução conceitual considerar

também a esfera privada, revendo a suposta cisão atribuída entre elas. No

decorrer da nossa abordagem, além disso, nos propusemos a buscar desconstruir

o tão comum equívoco de tomar espaço público como esfera pública.

Além desta parte introdutória que traz uma abordagem genérica da

delimitação do nosso objeto de estudo, das categorias adotadas, da metodologia

utilizada e das questões norteadoras da pesquisa, a dissertação é composta por

quatro unidades de estudo, seguida das considerações finais.

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No primeiro capítulo, tomando como ponto de partida uma reflexão sobre o

caráter sexuado que permeia as relações sociais, buscamos explorar o arcabouço

conceitual da categoria gênero. Ultrapassando o marco conceitual, também

analisamos o caráter sexuado da pobreza que afeta desigualmente homens e

mulheres. Isso significa falar da distribuição desigual da desigualdade social.

Ainda neste capítulo sinalizamos a articulação e mobilização das mulheres no

esforço de reverter este quadro de desigualdades a partir de sua inscrição na

esfera pública.

No segundo capítulo, a partir de uma perspectiva de gênero, nos

propusemos a fazer uma revisão conceitual do que denominamos de esfera

pública. Para isso recorremos às acepções de público e de privado em contextos

históricos distintos, iniciando na antiguidade a contemporaneidade.

No terceiro capítulo traçamos um breve histórico da organização das

mulheres na segunda metade do século XX no Brasil, identificando os elementos

que contribuíram na emergência da Associação Mulheres em Movimento e em

seguida, explorando sua razão de ser e a sua dinâmica enquanto organização

política.

No quarto capítulo, revisitamos o campo da militância política,

revendo seu conceito universal e analisando a sua capacidade de corresponder

uniformemente a ação de homens e mulheres na luta pelo bem comum. Assim

como no capítulo anterior, nossa análise está pautada além da bibliografia, nas

falas das entrevistadas.

Por fim, apresentamos as considerações finais originadas neste

estudo no esforço de objetivar as conclusões das reflexões sobre o nosso objeto

de estudo.

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Longe de esgotar o assunto queremos somar nossa voz a esse rico

debate, preenchendo arestas e quem sabe, abrindo outras, no desvendamento da

realidade, e em particular, na construção das relações de gênero na militância

política de mulheres.

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1. Repensando as Relações de Gênero

Um breve olhar sobre a realidade brasileira, e em particular da

cearense, já nos permite identificar que nos últimos anos vêm se intensificando o

debate e a reflexão sobre as relações de gênero estabelecidas em nossa

sociedade. Percebemos essa tendência na difusão das abordagens de gênero

dentro da academia, dos movimentos sociais, das organizações não

governamentais, dos setores progressistas da Igreja, dos partidos políticos, do

poder público... Neste contexto nos deparamos com uma diversidade de

abordagens que nem sempre conseguem atingir o cerne da questão, que se

limitam muitas vezes a contemplar a realidade das mulheres, sem, no entanto

considerar o aspecto relacional do gênero.

As abordagens de gênero além de proporcionarem uma nova

perspectiva de significar e compreender as relações sociais tem sido fértil em criar

estratégias que permitam transformá-las em experiências igualitárias entre

homens e mulheres e entre estes/as entre si.

Vários estudos de gênero, assim como seus críticos, ressaltam que

esta categoria isoladamente não é capaz de garantir por si só a interpretação

coerente da realidade, sendo necessária a sua mediação1 com outras categorias

como classe social e etnia/raça, permitindo uma leitura mais rica e complexa do

real. Embora nossa pesquisa não esteja fundamentada nestas últimas, buscamos

abordar gênero enquanto categoria de análise, articulada com outras categorias já

explicitadas na introdução.

1 A concepção de mediação aqui utilizada está pautada na teoria marxista onde esta categoria possui um significado historicamente concreto: “as mediações são as

expressões históricas das relações que o homem edificou com a natureza e conseqüentemente das relações sociais daí decorrentes, nas várias formações sócio-

humanas que a história registrou”. PONTES, Reinaldo Nobre. Mediação e serviço social: um estudo preliminar sobre a categoria teórica e sua apropriação pelo

serviço social.São Paulo: Cortez, 2002.

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Antes de entrarmos diretamente na abordagem das relações de gênero,

pontuaremos brevemente algumas considerações sobre a realidade e sobre o

processo de conhecimento, numa perspectiva de evidenciar os princípios de

totalidade e de particularidade tão essenciais para a pesquisa em questão.

1.1 Considerações preliminares

Compreender a realidade a partir da consciência de que tudo o que

existe – pessoas, culturas, animais, objetos, natureza, relações sociais, política,

saúde, História – estão permanentemente em inter-relação, formando um só

universo é uma das formas de interpretação da realidade. Se em alguns estudos

essa perspectiva é desconsiderada ou tomada como uma questão secundária,

aqui, queremos trazê-la presente, considerando a como ponto de partida para

nossa análise.

Buscamos sistematizar esta consideração tomando como marco

referencial a concepção de dialética, cujos pressupostos básicos2 compreendem a

realidade na sua dimensão de totalidade e de particularidade. Desconsiderar esse

princípio pode contribuir para obnubilar e distorcer a realidade. O fato de não

termos consciência ou mesmo de discordarmos dessa concepção,

essencialmente, não elimina este princípio intrínseco à realidade, e

metodologicamente, não desqualifica a sua capacidade de dar conta da sua

interpretação, seja ela natural ou cultural.

Tomamos esse debate inicialmente, pois parece haver uma relação

direta entre a negação do princípio da universalidade ou da totalidade e a

conjugação de esquemas dicotômicos e hierárquicos que dividem rigidamente a

realidade entre pares binários: bem/mal, vida/morte, sujeito/objeto, santo/ profano,

corpo/alma, feminino/masculino, esquerda/direita... Mas, será possível apreender

2 Dentro de uma perspectiva dialética, essas leis básicas revelam objetivamente a dinâmica da realidade: 1. Lei da ação recíproca e da conexão universal, onde tudo

está interligado, não existindo nada isolado; 2. Lei da transformação e do desenvolvimento incessante, onde tudo se transforma; 3. Lei das mudanças quantitativas e

qualitativas e 4. Lei dos contrários, princípio de que a realidade é contraditória.

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e interpretar coerentemente a realidade a partir de paradigmas tão estanques e

objetivos?

Na nossa compreensão não existe possibilidade concreta de garantir

uma interpretação coerente da realidade a partir de paradigmas dicotômicos. Essa

perspectiva certamente nos permitirá uma leitura distorcida e positivista da

realidade. Negando esta ótica dicotômica destacamos aqui a adoção de um

percurso analítico que permita nos aproximarmos de uma apreensão da realidade

considerando a sua complexidade, heterogeneidade e contradição.

Defendemos, então, o princípio da totalidade dialética para

apreendermos a realidade e, em particular, para investigarmos a relação entre a

militância política de mulheres em suas entidades específicas e a construção de

relações de gênero. Diante do nosso aporte teórico, assumimos o desafio de

questionar os paradigmas tradicionais, a partir do que Jacques Derrida denomina

de “desconstrução”, permitindo colocar em xeque as concepções de mundo que

se apresentam como rígidas e supostamente imutáveis. Desconstruir aqui não

significa destruir, mas “desmontar, para analisar e entender o real significado do

significante, as entrelinhas e elementos subjacentes ao discurso que, quase

sempre, têm a voz do contador da história” (Boje & Dennehy, 1993; Foucault,

1998). (apud, LENGLER)

E, quem são esses contadores da história? No caso da experiência

brasileira, a partir de um breve olhar, é possível identificar quais são os contadores

da nossa história. Predominantemente eles são homens, brancos, heterossexuais,

adultos, ocidentais, cristãos e oriundos das elites. As perspectivas da realidade

produzidas por esses autores ideologicamente vão assumindo a condição da

verdade, norteando padrões do ser, do pensar, do sentir e do agir, conferindo o

status do que é bom e do que é correto na realidade. As experiências e

conhecimentos diferentes das perspectivas hegemônicas inscrevem-se dentro da

anormalidade e da incoerência, negando as diversas possibilidades de ser, de

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estar da realidade e, sobretudo, negando o potencial criativo e plural de homens e

mulheres.

A assimilação e reprodução de que esses contadores são os únicos

fazedores da história significam negar a existência e expressão da grande maioria

dos sujeitos históricos e negar a diversidade inerente às suas condições de vidas,

sejam elas culturais, sociais, sexuais, étnicas, territoriais, econômicas, religiosas,

geracionais... Se historicamente foi construída uma compreensão vanguardista de

que apenas alguns são sujeitos e que os demais são meros atores sociais no

sentido aqui de interpretar um papel já definido por terceiros, não podemos afirmar

da mesma forma que esses denominados atores não construam a realidade e não

tenham as suas próprias concepções de mundo. Dentro dessa lógica, não existe

espaço para a aceitação da diversidade. A diversidade longe de representar uma

experiência rica e positiva é considerada uma ameaça aquilo que foi denominado

padrão, estabelecendo uma relação hierárquica onde o que é diferente, ocupa um

lugar inferior, passando a ser objeto de opressão e discriminação social. Em

suma: na vivência humana e social existe o padrão que é hegemônico e existem

as outras possibilidades que são secundárias em relação ao primeiro.

Nesse percurso de investigação da realidade, onde nos recusamos a

tomá-la a partir da sua expressão imediata, caminhamos em direção ao

desvendamento de sua essência, assumindo como desafio: percorrer o rumo

contrário da verdade hegemônica, considerando a expressão do potencial criativo

da humanidade e da pluralidade dos sujeitos, deixando a ressonância da história

“silenciada” se revelar, apreendendo e considerando também aquilo que foi

omitido pelos contadores de história.

Em relação ao campo da produção do conhecimento é importante

considerarmos que não se trata de uma atividade neutra, mesmo que se refira à

ciência com todo o seu rigor metodológico. Isso significa dizer que ela pode

contribuir tanto para transformar a realidade como também para reproduzir a

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sociedade vigente. Uma das contribuições da concepção de gênero foi a

identificação das formas sexuadas da cultura, permitindo por exemplo, identificar

nas Ciências Humanas o caráter sexista e androcêntrico3 em que ela tem se

constituído.

Ademais convém destacar, no caso da ciência, a importância do

reconhecimento das limitações das/dos pesquisadoras/es, do referencial teórico,

das metodologias utilizadas... Nossa intenção aqui não é desconsiderar as

grandes contribuições da ciência, mas reconhecer os seus limites nesta

enriquecedora e desafiante tarefa de desvendar a realidade.

No caso das Ciências Sociais, considerando o grau de complexidade e

heterogeneidade da realidade nas sociedades contemporâneas, é mister

evidenciar o conjunto de categorias antes não contempladas pelas meta-teorias

como é o caso de gênero. O desafio epistemológico é contemplar aspectos da

realidade que até então eram ignorados ou secundarizados. Nesta direção, Maria

Luiza Heilborn afirma que:

“As grandes meta-teorias, que almejam explicações mais gerais acerca do mundo, são inadequadas e incapazes de dar conta da variabilidade e da instabilidade das definições, estampadas no sentido precário da identidade num mundo multifacetado e veloz”. (1998, 43)

A produção do conhecimento muitas vezes se propõe a sacramentar

verdades supostamente universais sem contemplar as variáveis de diferença e

desigualdade dos diversos sujeitos4 históricos sejam estas de gênero, etnia, classe

social, regionalidade, orientação sexual... Buscamos trilhar um percurso onde na

impossibilidade de dar conta de todas essas variáveis, uma delas pudesse ser

considerada mais profundamente. Definimos investigar nosso objeto de estudo a

partir de um enfoque crítico de gênero.

3 Para Alicia H. Puleo o viés de gênero pode ocorrer de duas formas: “como sexismo ou ideologia da inferioridade de um dos sexos, historicamente o feminino, e

como androcentrismo ou ponto de vista parcial masculino que faz do homem e sua experiência a medida de todas as coisas” (2001:18) – tradução da pesquisadora.

4 Michel Foucault concebe o sujeito a partir de duas noções: a daquele que se sujeita, numa idéia de dominação e, ainda, o sujeito de uma ação, aquele que realiza

uma ação. No nosso caso estamos nos referindo a segunda compreensão.

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Mas o que compreendemos por enfoque crítico de gênero? Por que

adotá-lo? Qual o diferencial da sua abordagem em relação aquelas que não se

inserem nesta perspectiva? Que perspectiva de gênero adotar? O contato com as

obras de Alicia Puleo, Filosofía, Genero y Pensamiento Crítico, e de Joan Scott,

Gênero: uma categoria útil para análise histórica, contribuiu sobremaneira para a

mediação dos diversos elementos e categorias que nos permitiram responder a

essas questões.

1.2 As Abordagens de Gênero

A proposta da abordagem de gênero surge configurando-se como um

novo paradigma capaz de desnaturalizar a histórica subordinação das mulheres

na sociedade. A experiência do movimento feminista na década de 60 revelou

uma forte rejeição a esta forma de interpretar a realidade fundada no

determinismo biológico, a partir da noção de sexo ou de diferença sexual.,

passando a utilizar a palavra gênero, “como uma maneira de se referir à

organização social da relação entre sexo”. (SCOTT, 1990, 5)

A adoção da categoria gênero surge num contexto de construção da

crítica de que os estudos sobre as mulheres estavam voltados para as próprias

mulheres sem considerar o aspecto relacional entre estas e o sexo oposto. Ora a

crítica radical do feminismo reclamava uma transformação na sociedade, mas,

essa estratégia de atuação exclusivamente com as mulheres parecia não ser

garantia desta transformação. As reflexões geradas pela consciência destes

limites impulsionaram o movimento a revisar e repensar a tão denunciada

dominação de um sexo sobre o outro, trazendo a idéia do aspecto relacional. Foi

baseada nessas questões que as feministas estadunidenses passaram a utilizar o

termo gênero, do inglês gender. Movidas por estas inquietações algumas

feministas estadunidenses passaram a utilizar, no meio acadêmico (segunda

metade do Séc. XX), a categoria gênero para desmistificar e para reinterpretar as

relações sociais.

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Um dos caminhos apontados para esta desnaturalização foi a

identificação das causas e origens da subordinação de mulheres. O fosso entre a

intenção e a expressão do que se buscava acabou por não revelar de fato a

compreensão das suas origens e razões nem muito menos a desconstruir suas

explicações naturais. Isso provocou a redefinição de novos caminhos e estudos

que foram perfilando a própria evolução do termo.

A evolução da categoria gênero tem se materializado num processo

contínuo de reconstrução das suas fundamentações que, apesar das

controvérsias sobre a sua validade, tem agregado mudanças quantitativas e

qualitativas no seu arcabouço conceitual e metodológico, caminhando rumo a sua

consolidação. Uma dessas mudanças, qualificada aqui também como avanço, é a

evolução do gênero enquanto categoria analítica. Segundo Joan Scott não se

tratava apenas de reconhecer a participação das mulheres na história, mas de

recontar a própria história.

A diversidade conceitual de gênero torna difícil a escolha por uma ou

outra perspectiva desta categoria em construção. Mary Hawkesworth elenca

algumas dessas concepções:

“As primeiras investigadoras feministas empregaram o termo gênero para repudiar o determinismo biológico, demonstrando a gama de variação em construções culturais da feminilidade e da masculinidade. Em trabalhos mais recentes, outras e outros empregam o gênero para analisar a organização social das relações entre homens e mulheres (Rubin, 1975; Barret, 1980; Macknnon, 1987); para investigar a reificação das diferenças humanas (Hawkesworth, 1990; Shanley e Pateman, 1991); para conceitualizar a semiótica do corpo, o sexo e a sexualidade (De Lauretis, 1984; Silverman, 1988); para explicar a distribuição de cargas e benefícios na sociedade (Walby, 1986; Connel, 1987); para ilustrar as microtécnicas do poder ((De Lauretis, 1987; Sawiki, 1991); para iluminar a estrutura da psique (Chodorow, 1978); e para explicar a identidade e as aspirações individuais (Epperson, 1988; Butler, 1990)”. (apud, FARIA, SILVEIRA, NOBRE, 2002, 181)

Esta diversidade cultural nos revela a impossibilidade de falarmos de

uma única abordagem de gênero, sendo mais adequado considerar as diversas

perspectivas de gênero. Algumas abordagens mesmo se pretendendo de gênero

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acabam por focalizar sua análise nas mulheres sem considerar a dimensão

relacional desta categoria. Outras abordagens de gênero estão pautadas em

parâmetros de diferenças sexuais, que definem um padrão para conceituar o

masculino e o feminino. Queremos refutar qualquer perspectiva que justifique a

padronização do ser homem e do ser mulher, bem como de qualquer modelo

normativo de relação que envolva estes sujeitos, e adotar uma perspectiva que

considere e apreenda a diversidade das expressões humanas, sem atribuir isto ou

aquilo a homens e mulheres especificamente. Desconsiderar este princípio da

diversidade nos conduz a fundamentação de que toda realidade desviante do

padrão seja permeada por relações desiguais.

Diante dessa diversidade conceitual dialogaremos agora com as

perspectivas de gênero da historiadora estadunidense, Joan Scott, e da espanhola

Alicia Puleo. Abordaremos as concepções destas duas pensadoras de forma a

superarmos a imprecisão do termo ao mesmo tempo em que vamos definindo a

perspectiva de gênero adotada nesta pesquisa.

A adoção do pensamento de Scott neste trabalho justifica-se pelo fato

da autora ter sido a primeira estudiosa a teorizar gênero, e também pela influência

da sua teoria no desenvolvimento dos estudos de gênero no mundo e

particularmente, no Brasil. Para Scott o gênero “é um elemento constitutivo de

relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o

gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder”. (1990, 14).

Como uma construção social, o gênero possibilita uma ruptura nas concepções

pautadas no determinismo biológico que estabelece papéis rígidos para homens e

mulheres.

A concepção de gênero inaugura no debate da questão masculina e

feminina a noção de relações sociais e de historicidade. De acordo com Scott

“o gênero torna-se, antes, uma maneira de indicar ‘construções sociais’ – a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens

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exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado”. (1990, 7)

O pensamento de Scott propõe-se alternativo às duas abordagens de

gênero comumente utilizadas pelas/os historiadoras/es: uma essencialmente

descritiva e outra de ordem causal. Na sua concepção embora esses estudos

considerassem a participação da mulher nos diversos momentos históricos não

foram capazes de se constituírem em novas análises, uma vez que estavam

pautadas em princípios e explicações universais. Identificando os limites do

alcance dessas abordagens a autora propõe um terceiro caminho: gênero

enquanto categoria de análise5.

A partir deste enfoque - gênero como categoria de análise histórica –

Scott propõe uma abordagem capaz de desconstruir a lógica binária e

desnaturalizar as “verdades estabelecidas” referentes a relações sociais e a

história. Para ela, o gênero é constituído de quatro elementos que se articulam

entre si: os símbolos: que surgem e são culturalmente cristalizados, sendo quase

sempre contraditórios. Podemos citar a imagem da Virgem Maria, símbolo da

pureza, embora tenha gerado e dado à luz a um filho; os conceitos normativos:

que fundamentam e dão evidência às significações simbólicas, através das

doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas, embasando os

sistemas binários, entre eles, o feminino/masculino; as instituições e organizações

sociais: são os espaços, grupos e instâncias, como o sistema educacional, o

mercado de trabalho, a Igreja, a família, entre outros, que são fundados nos

símbolos e conceitos normativos, sendo responsáveis pela sua difusão; a

identidade subjetiva: que é a construção individual de aceitação e reprodução do

que é estabelecido como verdadeiro.

5 Nesta mesma direção Sílvia Camurça ao fazer uma releitura da historiadora Joan Scott reconhece essas abordagens, revelando que os estudos que sinalizam

gênero enquanto categoria descritiva vem sendo utilizada freqüentemente e, enquanto categoria de análise, ainda é pouco desenvolvida. Sílvia Camurça é socióloga,

educadora e ativista da SOS Corpo, ONG que desde 1993 traduz e publica o texto “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”, de Joan Scott. Essa iniciativa

contribuiu para que no Brasil em diversos espaços (movimentos sociais, ONGs, Academia...) houvesse um aprofundamento do tema. O pensamento de Camurça

revela-se importante para nós por tratar-se de uma análise substancial traçada a partir da leitura de uma mulher conhecedora da realidade brasileira.

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Segundo Scott, estes quatro elementos estão intrinsecamente

imbricados e presentes na nossa realidade, mesmo que não tenhamos

consciência da sua existência. Essa divisão é meramente didática e a autora

utiliza deste recurso apenas como forma de demonstrar os fundamentos da

categoria gênero. A sistematização desses quatro elementos tem se constituído

como eixo central deste texto de Scott. No entanto, Sílvia Camurça chama a

atenção para a última parte do texto onde Scott aplica gênero como categoria de

análise para abordar política e poder, quase sempre tomado como questão

secundária na obra da autora.

Assim como na concepção de Scott, Alicia Puleo caminha na mesma

linha de pensamento ao abordar gênero dentro de uma perspectiva de construção

cultural, rompendo radicalmente com as concepções pautadas em justificativas

biológicas na definição do comportamento e das diferenças entre homens e

mulheres. A dimensão cultural explorada por ambas autoras considera o caráter

relacional que envolve as relações de gênero, tornando injustificadas as análises

que tomam homens e mulheres isoladamente sem a percepção das relações

sociais sexuadas em que estas/es estão imbricadas/os.

“Gênero é a construção cultural que toda sociedade elabora sobre o sexo anatômico e que vai determinar, ao menos em alguma medida, e segundo a época e cultura de que se trata, o destino da pessoa, seus principais roles, seu status e até sua identidade em tanto identidade sexuada”. (2001, 29)

Esta concepção de gênero é contrária ao conceito de diferença sexual

que é pautada em fundamentações biológicas, desconsiderando as relações de

poder entre os sexos. De acordo com o conceito de diferença sexual a

consideração da mulher e do feminino precedem a relação com o sexo oposto e o

caminho para a libertação da mulher reside dentro dela e entre elas,

desconsiderando ou secundarizando a dimensão cultural e relacional proposta na

categoria gênero.

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Em sua obra, Puleo identifica no campo do conhecimento duas formas

de abordagem de gênero: como enfoque descritivo e como enfoque crítico de

gênero, também denominado por ela de hermenêutica feminista. Na visão da

autora o enfoque descritivo de gênero limita-se a fazer a constatação da existência

de formas sexuadas da cultura. O enfoque crítico extrapola os limites desta

descrição. De acordo com Puleo, adotar um enfoque crítico de gênero não

significa apenas falar de mulheres ou denunciar os mecanismos e a opressão a

elas impostas, ou ainda, de trazer a memória dos pensadores que consciente ou

inconscientemente fizeram um corte sexista ou androcêntrico em suas obras.

Perceber as formas sexuadas da cultura é condição precípua, mas o desafio não

se encerra nesta percepção. Para Puleo:

“Entre outros elementos de análise implica uma teoria da construção social das identidades sexuadas e, insisto novamente, uma teoria das relações de poder entre os sexos e uma vontade ética e política de denúncia das deformações conceituais de um discurso hegemônico baseado na exclusão e inferiorização da metade da espécie humana”. (2002, 19)

À luz deste conceito de gênero os estudos não se encerram apenas

falando de mulheres, mas contemplam a inter-relação dialética entre os sexos com

uma atenção às relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres e entre

estas/es entre si.

Com essa distinção foi possível avançar em relação à compreensão do

termo e à nossa investigação. Anteriormente nossa compreensão da abordagem

de gênero estava restrita ao seu enfoque descritivo. As leituras e aprofundamento

do tema nos permitiram perceber que seguindo este percurso não chegaríamos à

essência daquilo que nos propusemos investigar. Incorreríamos em cortes

epistemológicos que certamente comprometeriam a nossa análise.

Simultaneamente fomos percebendo gênero como categoria de análise e

compreendendo a sua importância diante da interpretação do real.

Mesmo considerando a complexidade da adoção deste enfoque

definimos enveredar por este caminho. Atribuímos esta complexidade pelo fato de

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ser pouco desenvolvido lançando para nós um maior desafio no desvendamento

do nosso objeto de estudo. Se iremos garantir a efetivação daquilo que nos

propusemos investigar, somente ao final da pesquisa, poderemos fazer este

julgamento. Prosseguiremos agora com o relato do acúmulo dos estudos e

reflexões por nós experimentados.

Adotar esta perspectiva vai muito além da nossa intenção em fazê-la,

exigindo uma permanente revisão das nossas verdades e do diálogo estabelecido

entre nosso objeto de estudo e a bibliografia que se insere neste campo, pois na

maioria das vezes estão fundamentadas em concepções de mundo hegemônicas -

que não consideram gênero – nos confundindo e mascarando a realidade.

Explicitado nossa referência conceitual do termo gênero, pelo menos

dentro deste nosso universo, registramos aqui que o enfoque de gênero longe de

representar uma unanimidade, carrega em si uma série de críticas e controvérsias.

Para aquelas/es que consideram gênero uma questão infundada ou secundária,

certamente parte do princípio de que a Ciência, a História, as relações sociais são

assexuadas e neutras. Essa suposta neutralidade só pode ser compreendida

dentro de uma adoção epistemológica “acrítica”. Em princípio, pode parecer

indevido falar nestes termos de epistemologia, uma vez que, em tese, a criticidade

é imprescindível a ela, mas o que de fato tem ocorrido é que diversos ramos do

conhecimento não são capazes de perceber as formas sexuadas da cultura. O

enfoque crítico de gênero ou hermenêutica feminista não se propõe apenas a criar

elementos novos para agregar ao conhecimento já produzido, mas identificar

naquilo que já existe.

A superação da compreensão da neutralidade é indispensável no

desnudamento dos discursos construídos que justificam ou são indiferentes às

desigualdades de gênero que acabam distorcendo a realidade e corroborando

para a efetivação de práticas misóginas, sexistas ou androcêntricas.

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Considerando os pressupostos metodológico e teórico de gênero,

identificados essencialmente na obra de Puleo e de Scott, nosso esforço é de,

plagiando Derrida, desvelar o “significado do significante” das desigualdades entre

homens e mulheres e estas/es entre si, e a partir daí, investigar como as mulheres

têm contribuído para o engendramento de relações igualitárias de gênero.

Mesmo não tendo percorrido um caminho que nos permitissem um

maior aprofundamento entre as categorias gênero e classes sociais, buscamos

desenvolver nossas reflexões considerando as determinações das condições

concretas da realidade, uma vez que representam um elemento fundamental na

definição das relações entre homens e mulheres. A partir de agora pontuaremos e

faremos a mediação dos aspectos da realidade brasileira de forma a fundamentar

a apreensão e o desvendamento do nosso objeto de estudo.

1.3 Gênero, Pobreza e a Questão da Desigualdade

Tomando como referência a realidade brasileira, a suposta idéia de que

o crescimento econômico obrigatoriamente nos conduziria à redução da pobreza,

vem sendo desconstruída pelo menos nos últimos trinta anos. Isso é fruto da

própria experiência histórica que contraria este ideário mecanicista.

Essa realidade não é exclusiva do Brasil, mas atinge toda a América

Latina, onde

“houve um relativo crescimento das economias desde os anos 80, superando-se a recessão dos 70. Porém, isso não teve nenhum impacto na redução da pobreza. Muito pelo contrário, as próprias estatísticas do Banco mundial mostram que, na região, o número de pobres aumentou em cerca de três milhões, somente na primeira metade dos anos 90. Muito desses pobres são mulheres”. (FRANCH, BATISTA e CAMURÇA, 2001, 34)

A dissonância entre aquilo que se presumia e a experiência real coloca

em xeque a concepção do vínculo entre crescimento econômico e redução da

pobreza.

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No debate atual, a compreensão de que o Brasil não é um país pobre e

sim um país desigual tornou-se lugar comum. Talvez a afirmação mais adequada

seja: o Brasil não é um país pobre, mas tornou-se um país desigual trazendo,

assim, a idéia de fenômeno socialmente construído, numa relação antagônica

entre pobres6 e ricos, entre iguais e desiguais.

A compreensão de que o Brasil não é um país pobre, e sim um país

injusto, destaca a necessidade de se articular pobreza com desigualdade social

onde

“o que está em jogo é associar a questão de superação da pobreza a medidas de caráter redistributivo, sejam elas de transferência direta de renda, sejam elas de transferência indireta, através de políticas sociais efetivamente redistribuitvas, e não meramente compensatórias das desigualdades sociais”. (COHN, 1998, 101).

O debate sobre a pobreza exige obrigatoriamente a sua associação

com a questão das desigualdades econômico-sociais sob pena de não atingirmos

o cerne deste fenômeno histórico, seja em nossas análises, seja nas nossas

intervenções na realidade para combatê-la. Considerando o caráter de

historicidade da pobreza e da desigualdade evidenciaremos aqui aspectos

fundamentais da formação da sociedade brasileira.

A sociedade brasileira ao longo de sua história constituiu solidamente

aquilo que O´Donnell denomina de hiato social, referindo-se às desigualdades

sociais e ao grande fosso entre as classes, tanto em relação às condições

subjetivas quanto às condições concretas de vida. Esse hiato nos remete a marca

dos quase 400 anos de escravidão que, mesmo após mais de um século de

abolição, ainda permeia decisivamente as relações sociais do nosso país.

6 A pobreza não é compreendida aqui exclusivamente pela renda familiar baixa ou ausente, definida pelos indicadores econômicos, mas a sua incapacidade de ter

acesso aos bens e serviços sociais fundamentais. É portanto, uma questão diretamente imbricada com a questão do desenvolvimento. Para Cristóvão Buarque ser

pobre não é só principalmente ganhar pouco; o conceito de pobreza precisa ser desmonetarizado e realizado de forma real, menos econômico e mais ético, menos

contínuo e mais contínuo; é não ter: garantia de alimentação; acesso à educação; atendimento de saúde; condições de moradia com higiene; disponibilidade de

transporte urbano eficiente; proteção de justiça e segurança. (1999:39)

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Baseada no binômio mando/subserviência e na lealdade, a relação

clientelista compromete a autonomia política dos diversos atores envolvidos e

acaba reforçando e legitimando o quadro de desigualdades sociais. Nesse

patamar as relações passam a ser estabelecidas através do poder pessoal

acabando por substituir os modelos institucionais de mediações políticas.

Consideramos que esta cultura constitui obstáculo poderoso para a legitimação

política pelo consentimento social, princípio básico de democracia. (2000, 109)

Diante dessas considerações, como podemos tratar a questão da

democracia num país marcado por essa herança política patrimonialista e

clientelista e com um quadro grave de injustiça social, marcada pelo crescente

agravamento das condições de vida das camadas populares, onde cerca de

40.000.000 de brasileiros estão numa condição de excluídos?

A justiça social atualmente enfrenta alguns obstáculos e

constrangimentos de ordem: econômica, devido ao modelo de ajuste estrutural e

de estabilização econômica; política, onde as forças políticas que dão suporte ao

governo são movidas por interesses particularistas em detrimento da vontade

coletiva; social, devido à magnitude dos problemas sociais em decorrência das

dimensões geográficas e populacionais do país.

Esta compreensão é essencialmente importante para refletirmos a

situação de homens e de mulheres em relação à pobreza e às desigualdades

sociais. Compreender o corte de gênero presente na pobreza e nas desigualdades

sociais representa uma tentativa de contrapor-se ao caráter universalista que as

compreende de forma assexuada. Se a distribuição de riqueza e de poder é feita

de forma desigual gerando pobres e ricos, os indicadores revelam que a pobreza

manifesta-se desigualmente para homens e mulheres.

Segundo os dados da Organização das Nações Unidas - ONU as

mulheres executam 2/3 do trabalho realizado pela humanidade, recebem 1/3 dos

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salários e são proprietárias de 1% dos bens imóveis. Dos quase 1,3 bilhão de

miseráveis do mundo, 70% são mulheres. (FARIA; NOBRE, 1997, 15)

No caso do Brasil, enquanto que a renda média dos homens é de 4,6

SM a das mulheres é de 2,6 SM. Como partimos do princípio de que a pobreza

não é uma questão apenas monetária ou econômica, apresentaremos outros

dados. Associado a esse dado econômico. As mulheres quase sempre

desempenham funções consideradas mais simples e secundárias, dando a idéia

de que a sua participação no mercado de trabalho é para suplementar a ação dos

homens. Esta participação no mundo do trabalho se dá a partir do

desenvolvimento de atividades denominadas tipicamente como femininas,

representando uma extensão do trabalho desenvolvido no lar, como professoras,

empregadas domésticas, babás... Essas atividades, consideradas secundárias

deixam as mulheres distantes dos cargos e esferas subalternas, privando-as dos

centros de decisões. Isso pode ser ilustrado neste exemplo: “80% das bancárias

encontram-se em cargos subalternos. Um dos motivos é que os cargos de chefia

exigem jornadas mais extensas e maior dedicação ao trabalho”. (FARIA; NOBRE)

Suas condições de trabalho são precarizadas uma vez que elas estão inseridas no

mercado informal e subemprego, ou seja, de forma que possam continuar dando

conta do trabalho doméstico. Um conjunto de condições que, além de não garantir

os direitos das trabalhadoras dão margem para justificar uma remuneração inferior

ao dos homens.

Essas situações concretas, conseqüências de uma organização

androcêntrica da nossa sociedade, contribuem para que a desigualdade social e a

pobreza, que traz em si a exclusão e a desumanização, assumam uma face ainda

mais perversa para as mulheres. Sabemos que a luta dos movimentos populares

de um modo geral é pra combater a desigualdade, mas os movimentos feministas

e de mulheres denunciam de forma mais veemente a situação das mulheres, uma

vez que elas são as mais afetadas. Trazem assim a noção de que a justiça social

não pode prescindir da igualdade de gênero.

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As possíveis e efetivas iniciativas para a superação desse caótico

quadro social remetem-nos para a consideração dos direitos humanos, buscando

valorizar e contemplar a realidade na sua diversidade e de corrigir as

desigualdades. Os princípios de respeito à diversidade e combate às

desigualdades reclamam adoção de políticas públicas, sejam elas de iniciativa

governamental ou da sociedade civil, capazes de atender de forma justa e

eqüitativa homens e mulheres desse país.

As políticas públicas são definidas a partir de concepções diferenciadas

e a adoção de uma ou outra perspectiva pode garantir uma maior ou menor

capacidade de atingir os seus objetivos. Queremos destacar aqui duas tendências

no debate atual: aquele armado numa concepção universalista que defende

direitos iguais para todas as pessoas. Nesta perspectiva, as condições materiais

da realidade em parte são levadas em consideração, pois as políticas públicas

serão pensadas para atenderem as necessidades das pessoas de forma

generalizada.

Outra perspectiva é aquela que mesmo baseada na universalidade e

não no universalismo, consideram as condições materiais de vida, em relação à

sua diversidade e às desigualdades sociais. Essa perspectiva considera que as

pessoas embora tenham necessidades comuns - como alimentação, moradia e

educação – também têm necessidades específicas7. Muitas outras iniciativas

propostas, algumas já institucionalizadas, buscam suprir as necessidades

humanas sem desconsiderar suas características específicas, sejam elas naturais

ou culturais, bem como as condições históricas que essas pessoas estão

submetidas. Dentro deste horizonte são concebidas as denominadas políticas

afirmativas. Sua intenção não é favorecer privilégios a alguns segmentos, mas sim

criar oportunidades para que sejam corrigidas as desigualdades construídas ao

7 É o caso das sociedades indígenas que conquistaram, em 1999, um Sistema de Saúde próprio, estruturado a partir de suas necessidades.

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longo da história da nossa sociedade, como é o caso da situação das pessoas

negras e das mulheres, entre outras.

Compreendemos que na definição das políticas públicas é fundamental

a participação da sociedade civil organizada na medida em que denuncia as

condições de vida, apresenta proposições, executa e exerce o controle social

daquilo que é bem comum. A experiência mostra que organizações de caráter

genérico, mesmo que sua atuação esteja voltada para segmentos pontuais, como

as camadas populares, acabam por negligenciar a devida atenção às demandas

específicas. Reconhecendo o princípio da universalidade, mas considerando

também a formação da sociedade brasileira extremamente desigual e

discriminatória reconhecemos a importância do trabalho político desses grupos. O

propósito aqui não é negar o princípio da universalidade diante da diversidade,

como se uma perspectiva anulasse a outra, mas de complementar ambas

concepções.

Diante dessa percepção podemos identificar o trabalho já consolidado

de inúmeras organização políticas, a partir dessas demandas específicas –

pessoas homossexuais, afrodescendentes, portadoras de necessidades especiais,

indígenas, idosas, mulheres. Muitos questionamentos são lançados a esses tipos

de organizações sob o argumento e caminharem na contra-mão da

universalidade, sob a alegação de promover ainda mais o segregacionismo que

tanto combatem.

Deixando esta polêmica à parte optamos por enveredar um caminho

onde possamos compreender a atuação das organizações políticas formada por

mulheres na partilha e gestão do bem comum, ou seja, na gestação e na

dinamização da esfera pública. Foi com este propósito que dedicamos o próximo

capítulo sobre a concepção e da experiência da esfera pública em conjunturas

específicas e em particular na contemporaneidade, de forma que nos subsidiem

nossa análise em torno do nosso objeto de estudo.

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2. Reconstruindo a concepção de Esfera Pública

a partir de uma perspectiva de gênero

No desenvolvimento da nossa análise definimos trabalhar a noção de

esfera pública devido seu estreito vínculo com o nosso objeto de estudo.

Justificamos esta escolha pelo fato de estarmos analisando a construção de

relações de gênero na militância política de mulheres. Isso implica dizer que

estamos falando de democracia, de processos democráticos que diretamente se

processam e desembocam na esfera pública.

Tomando como referência o sentido literal do termo democracia “poder

do povo”, nos deparamos com pelo menos duas questões que inviabilizam uma

compreensão mais clara do termo. Em primeiro lugar, um conceito meramente

literal revela-se insuficiente para explicar de fato o que é a democracia; em

segundo lugar, porque mesmo que o sentido literal fosse capaz de conceituá-la

realmente, seria incompatível com a contemporaneidade. Na concepção de

Bobbio a democracia enquanto “poder do povo” corresponde à realidade dos

antigos, sendo atualmente mais coerente falar em “poder dos representantes do

povo”, pois no seu uso descritivo, os antigos a compreendiam como democracia

direta, enquanto que os modernos a apreendem como democracia representativa.

A democracia direta ao longo da história foi apresentando limitações

quanto ao seu exercício diante do crescente grau de complexificação das

sociedades, tornando-se incapaz de conseguir dar conta da realidade do mundo

moderno. Seguindo esta linha de pensamento, Avritzer assinala que o conceito

republicano de democracia predominante até o início do Séc. XX, não conseguia

dar conta dos modelos de sociedades contemporâneas, no que se refere a

conjugação da participação X aumento da complexidade administrativa, e

também, da participação pública X representatividade. Baseada nestas

contradições e sob a influência do pensamento de Schumpeter, foi se constituindo

uma teoria restrita da democracia, denominada elitismo democrático, que ganhou

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terreno ao longo do Séc. XX, reservando o republicanismo ao isolamento teórico.

Fundamentando-se em dois aspectos centrais: a restrição da soberania das

massas à mera escolha dos governantes e a transferência da racionalidade das

elites para o sistema político como um todo, esse paradigma mostrou-se

hegemônico por todo o Séc. XX. Porém, vem sendo questionado nas últimas

décadas, principalmente em decorrência das mudanças ocorridas no quadro

político, como as novas formas de mobilização das massas, reforçando e

consolidando a democracia. Isso marca um avanço, pois anteriormente, em outros

contextos políticos, as mobilizações representavam uma ameaça a democracia.

O conjunto dessas mudanças associado ao fato do elitismo democrático

limitar por demasiado a participação popular na tomada de decisões políticas foi

proporcionando a emergência de uma terceira posição no debate democrático

atual. Essa nova concepção que vislumbra a ampliação da democracia urge como

proposta de superação dos modelos elitista e republicanista.

De acordo com Avritzer, a partir do conceito de esfera pública definido

por Habermas podemos avançar rumo a essa ampliação da democracia.

Habermas sinaliza uma distinção entre Estado e esfera pública, onde esta última

constitui-se como um espaço diferenciado daquele onde:

“os indivíduos interagem uns com os outros, debatem as decisões tomadas pela autoridade política, debatem o conteúdo moral das diferentes relações existentes ao nível da sociedade e apresentam demandas em relação ao Estado.”(1999:32)

Esse processo representa a expressão da publicidade nos diversos

processos políticos, redefinindo não só a relação da sociedade com o Estado e

governo, como também, reestruturando os princípios e a dinâmica da organização

e mobilização da sociedade civil. Ao longo deste trabalho estaremos evidenciando

a segunda implicação em razão da nossa pesquisa contemplar fundamentalmente

a organização de mulheres numa esfera que embora pública não coincide com as

instância estatais.

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Revisando a história da humanidade, contada e supostamente feita

pelos homens, identificamos que o espaço privado foi reservado às mulheres

como local privilegiado de sua ocupação e ação. Esta estreita relação entre as

mulheres e o espaço privado foi assumindo historicamente um cariz de

“naturalidade”, cristalizando-se de forma tal que mesmo depois de rupturas dos

limites deste espaço esta concepção permanece viva e forte.

Compreendemos que ao se deslocarem do espaço meramente privado,

que é percebido como espaço de excelência das mulheres, e se deslocarem para

o espaço público - sinalizado pela sua crescente inserção no mercado de trabalho,

pela sua participação na Literatura, na Ciência, nas artes, pelo seu engajamento

na vida política - trazem para ele um conjunto de elementos diferentes:

significados, emoções, concepções de mundo, relações sociais, racionalidade. As

complexas relações estabelecidas no espaço denominado como de todos/as

gestaram um campo fértil para que as mulheres se organizassem politicamente,

materializando uma sociabilidade que produz novas configurações da esfera

pública, assim como reorienta a efetivação e limites dos marcos democráticos.

Vale destacar que a construção de esferas públicas não se constitui

mecanicamente na medida em que as mulheres passam a ocupar os espaços

públicos. Isso significa dizer que o deslocamento das mulheres para o espaço

público não representa necessariamente em ruptura das suas condições de vida e

das relações estabelecidas no espaço privado. Essa ruptura se efetiva mediante a

capacidade de interação de homens e mulheres a partir interesses comuns

possibilitando a criação e recriação da esfera pública. Considerando que deslocar

significa mudar de lugar, neste caso aqui também não quer dizer que as mulheres

vêm ocupando o espaço público e “abandonando” o espaço privado. Elas vêm

transitando em ambos espaços, redefinindo limites e concepções do que é público

e do que é privado. Indagamos se esse processo de redefinição está contribuindo

para romper com a rígida dicotomia entre o que é público e o que é privado, entre

o que é inerente aos homens e às mulheres.

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Considerando que a noção de espaço público e privado não é uma

definição natural, mas socialmente construída, identificamos que histórica e

culturalmente esse último tem se configurado como espaço de negação da

questão política, ao passo que o primeiro é intrinsecamente relacionado a esta.

Esta construção binária promove uma suposta ruptura entre esses pares

atribuindo uma independência em relação ao outro que de fato não existe. Sendo

assim, o espaço público configura-se como instância privilegiada do exercício de

poder que permeia a tomada das grandes decisões; o espaço privado é

relacionado aos aspectos da não política, percebido como o espaço das pequenas

decisões referentes ao cotidiano. O mais emblemático aqui é a não percepção de

que o espaço do cotidiano também é permeado por relações de micro-poderes

(Foucault) que estão em permanente interação com o macro poder. A não

compreensão desta relação dialética é que promove ilusoriamente a dissociação

entre o que é público e o que é privado, numa linha de pensamento que justifica a

ausência ou pouca expressividade das mulheres no que foi denominado como

espaço público e conseqüentemente na esfera pública, mantendo as mulheres

distantes das grandes decisões e da definição dos rumos da sociedade do seu

tempo.

Mas, se além de ser socialmente construído, público e privado são

termos polissêmicos, qual a compreensão de esfera pública adotada aqui? Qual a

fronteira entre a esfera pública e a esfera privada?

A esfera pública e a esfera privada longe de se constituírem fenômenos

naturais, são realidades históricas que representam significados diversos de

acordo com as condições concretas das conjunturas onde elas foram erigidas.

Mesmo com esse determinante, existe um elemento central à noção do que é

público e do que é privado que transcende os diversos momentos históricos. Para

Jovchelovitch em todos os tempos, a noção de público esteve relacionada ao que

é visível, comum, aberto, ao que podia ser distribuído com todos/as e a noção de

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privado relacionado ao que é oculto, particular, secreto, ao que fica reservado.

Essa distinção, na Grécia antiga correspondia simultaneamente à vida política e a

vida familiar, onde havia uma clara divisão entre ambas.

Jovchelovitch afirma que durante todos os tempos as definições de

público e privado sempre foram estabelecidas um em relação ao outro, sinalizando

que embora distintos, público e privado são partes de uma mesma unidade, sendo

um equívoco dissociá-las. O principio dialético da relação entre o público e o

privado, porém, não eliminou a construção de uma perspectiva binária onde o

público apresenta-se supostamente como autônoma e independente do privado.

Para a autora, a vida pública longe de ser uma estrutura externa que influencia a

vida privada é um dos seus elementos constitutivos. A visão dicotômica que

separa o público do privado é a mesma que separa simultaneamente o político do

não-político.

Na perspectiva de buscarmos as origens e as bases para a

fundamentação do atual debate sobre a noção de esfera pública e privada

tomaremos como referência o marco referencial apontado por Habermas. O autor

aponta dois momentos históricos cruciais no processo de construção das

categorias público e privado: a pólis grega e as transformações ocorridas na

Europa no período do Séc. XVII até a metade do Séc. XIX. Abordaremos, então, a

noção de público e privado na transição das sociedades feudais para as

sociedades burguesas, como forma de garantir uma melhor compreensão do

termo. Longe de fazer uma exaustiva trajetória dos significados dos termos público

e privado, abordaremos a sua configuração nestes 2 contextos distintos, antes de

falarmos da esfera pública na contemporaneidade. A experiência européia está

sendo aqui retomada pela sua influência na realidade brasileira que

fundamentalmente será também considerada.

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2.1 A pólis grega e a rígida cisão entre as esferas pública e privada

Na pólis grega o conceito de público está diretamente relacionado com

a política. A concepção do termo política, remonta a Grécia antiga. De acordo com

Hannah Arendt o conceito de política tem origem concomitante com o de coisa

pública na pólis grega, estando relacionada diretamente à democracia. A pólis

grega representava o palco para as reflexões e as ações de interesses públicos,

configurando-se como instância privilegiada do exercício de poder, uma vez que

ali eram tomadas as grandes decisões. Seria um equívoco tratarmos a pólis de

forma generalizada, sem questionarmos as bases do exercício do poder ali

exercido, que assumia um caráter de privilégio ao considerar como seus sujeitos

apenas os homens livres. O caráter excludente da pólis grega que afeta

diretamente as mulheres, os escravos e os estrangeiros foi conceitualmente

justificado por alguns pensadores da época, como é o caso de Aristóteles8.

Revisando a obra de Aristóteles identificamos que foi a partir dos

princípios da natureza que ele buscou justificar a condição de uma suposta

superioridade dos homens livres e a inferioridade das/dos demais. A vida familiar

correspondia ao locus onde se processavam as necessidades biológicas dos

seres humanos.

Nesse contexto o privado ocupava um lugar secundário diante da vida

pública. Mesmo assim, a participação livre e plena dos cidadãos na pólis derivava

da sua inserção na vida familiar que representava um lugar reconhecido como

único e particular de cada cidadão no mundo. A vida familiar correspondia ao

locus onde se processavam as necessidades biológicas dos seres humanos. Esse

agrupamento humano fundado nas necessidades biológicas é comum a outros

seres. Já a vida política representava o reino da liberdade, o espaço para a

negociação e o consenso. Esse espaço vai além do ciclo de vida natural.

8 Aristóteles (384-322 a.C.), foi o primeiro a abordar de forma sistemática o tema política em sua obra também intitulada Política. Grande estudioso das ciências

naturais, influenciado pelo pai que era médico, Aristóteles encontrou na natureza a fundamentação para explicar a organização da sociedade.

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Na estrutura familiar grega o autor identificava e defendia uma posição

de destaque do homem livre sobre os servos, a mulher e os menores, ficando

estes/as subordinados/as aos desejos, aos interesses e às decisões tomadas pelo

senhor, marido e pai. Embora sob justificativas distintas a mulher e os menores,

mesmo não sendo escravos/as, também deviam obediência ao homem livre,

porque não eram ou não estavam plenamente capazes do exercício da vida

política.

A autoridade do homem livre materializava-se diferentemente sobre

cada um/uma deles/as, como pode ser observado na afirmativa abaixo:

“O homem livre manda no escravo de modo diverso daquele do marido na mulher, do pai no filho. Os elementos da alma estão em cada um desses seres, porem em graus diversos. O Escravo é inteiramente destituído da faculdade de querer, a mulher possui-a, porém fraca, a do filho não é completa”. (p. 33)

Em relação à incapacidade das mulheres Aristóteles vai buscar a

fundamentação na comparação dos seres humanos com os animais. Para ele os

animais são machos e fêmeas. É mais perfeito o macho, e dirige. É-o menos a

fêmea, e obedece. Essa lei é aplicável naturalmente a todos os homens. (p.18).

A respeito dos escravos ele preconizava que eles são destinados, por

natureza, à escravidão, pois para eles, não há nada mais simples do que

obedecer. Assim é o escravo por instinto. (p.18). Segundo Aristóteles uma das

evidências desta afirmativa é o fato dos corpos dos escravos serem diferentes dos

corpos dos homens livres. Eles são suficientemente fortes e dotados de força

física para realizar as atividades que lhes eram naturalmente reservadas.

E quanto aos menores, era usado o argumento de que naturalmente “o

ser mais idoso é mais perfeito deve ter autoridade sobre o ser incompleto e mais

jovem”. (p. 31) Um dia, quando atingisse a maioridade, esse jovem do sexo

masculino, descendente de um homem livre, poderia exercer plenamente a sua

cidadania. Quanto aos escravos e às mulheres nem esse projeto de uma

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cidadania no futuro existia. Todas essas explicações estavam pautadas em

explicações biológicas que justificavam a reprodução do status quo vigente.

Esta organização da vida familiar, ou ainda, da vida privada, refletia

diretamente naquilo que Aristóteles definiu como sendo a forma mais elevada de

organização: o Estado, uma vez que este era formado pelo conjunto de famílias. A

condição de superioridade do Estado grego diante das outras organizações era

expresso na própria constituição da pólis que era formada apenas pelos homens

considerados superiores – os cidadãos, pois “existem, na espécie humana, seres

tão inferiores a outros quanto o corpo é em relação à alma, ou a besta ao homem”.

(p. 18) Esses seres então seriam naturalmente incapazes de exercerem a

cidadania.

Observamos na teoria aristotélica que apenas uma minoria podia

exercer a cidadania e a democracia, ficando excluídas/os destas exatamente

aqueles/as que estavam subordinados/as ao homem livre na família, revelando

paradoxalmente um reflexo entre a vida política e a vida familiar e ao mesmo

tempo expressando uma rígida cisão entre elas.

Indagamos se o pensamento de Aristóteles representa um exemplo de

misoginia. Mesmo negando o status de cidadania às mulheres e atribuindo

incapacidade a estas, María Luisa Femenías, uma estudiosa do pensamento

aristotélico, não identifica no pensador uma postura misógina. Isto pode ser

comprovado pela atitude de Aristóteles que se pronunciou

Contra os raptos da violência doméstica masculina e cujo modelo organicista que destina um lugar e uma função às mulheres e prescreve uma política paternalista com respeito aos seres que sua inferioridade faz mais vulneráveis. (apud Puleo, 2001, 64)

Se a misoginia não é identificada na obra de Aristóteles a mesma não

podemos dizer do caráter sexista e androcêntrico explicitamente revelado. As

idéias de Aristóteles não podem ser compreendidas isoladamente, mas

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representam o pensamento hegemônico da época, que reservava às mulheres

uma condição de exclusão total no caso da pólis, e uma exclusão parcial na

família, uma vez que ficavam subordinada ao poder do pai, marido ou senhor.

Essa era a condição hegemônica das mulheres, embora houvesse

quem discordasse dessa total submissão da mulher. Sócrates por exemplo,

mesmo com sua visão androcêntrica não excluía as mulheres dos seus

ensinamentos. Crítico da democracia ateniense dialogava e levava seus

ensinamentos também, aquelas/es que estavam privadas/os da cidadania,

independente do sexo e da sua classe ou posição social.

Também em Platão, na sua obra A República, encontramos indícios de

ruptura ao modelo hegemônico da pólis grega, quando no capítulo que trata da

Solução Política ele preconiza que “não haverá barreira sexual de qualquer

espécie nessa comunidade; muito menos na educação – a menina terá as

mesmas oportunidades intelectuais que o menino, a mesma chance de alçar-se às

mais elevadas posições no Estado”. Isso pode ser identificado ainda, na resposta

que deu ao ser questionado sobre tal pensamento:

“a divisão do trabalho deve ser por aptidão e capacidade, não por sexo; se uma mulher se mostra capaz de exercer a administração política, que ela governe; se um homem se mostrar capaz de lavar pratos, que exerça a função para a qual a Providência o destinou”. (apud DURANT, 1996, 58).

Aristóteles considerava inconcebível a república de Platão condenando

a defesa que o pensador fazia para que as mulheres se tornassem mais iguais

aos homens.

Não queremos apontar Sócrates e Platão como grandes defensores da

causa das mulheres ou das igualdades entre os sexos. Até mesmo porque

identificamos em outros trechos ou obras destes pensadores, afirmações que

justificam a condição de desigualdade entre homens e mulheres da época.

Trazemos essa memória com o intuito de revelar outras concepções de mundo

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dentro da Grécia antiga que não a hegemônica. Certamente outras vozes

dissonantes ao pensamento dominante se diluíram no tempo devido à falta de

registro e devido a forte estrutura da pólis, que garantia a reprodução do

pensamento e práticas dominantes. Vozes e práticas de mulheres, de escravos,

de menores e de estrangeiros e de outras/os tantas/os silenciadas ao longo da

história.

O quadro de exclusão apresentado acima se mostra incongruente com

os próprios princípios democráticos da época. Na democracia antiga a eleição não

era um recurso usual, pois o fato de eleger alguém para executar alguma atividade

contrariava o princípio de igualdade inerente à democracia. Ao invés da eleição

era utilizado o sorteio, não importando quem seria o escolhido, pois a questão

central era que todos eram considerados iguais e tinham a mesma capacidade de

decidir sobre o bem comum. De acordo com Renato Janine Ribeiro:

“a explicação é simples. A eleição cria distinções. Se escolho, pelo voto, quem vai ocupar um cargo permanente – ou exercer um encargo temporário -, minha escolha se pauta pela qualidade. Procuro eleger quem acho melhor. Mas o lugar do melhor é na aristocracia! A democracia é um regime de iguais. Portanto, todos podem exercer qualquer função” (2001, 10)

Como justificar então o tratamento desigual entre os homens livres e os

demais sujeitos? Isso não seria fazer distinções? Isso não seria classificar e

escolher os melhores, os mais aptos, os mais completos. A incongruência estava

em defender a igualdade para todos, mesmo que este todo representasse apenas

um pequeno segmento da sociedade. Se fosse possível mensurar o grau de

coerência, seria menos incoerente se ocorresse o contrário, onde a maioria

representasse esse todo.

Mesmo com esse quadro de exclusão (mulheres, escravos, menores e

estrangeiros), a organização política da pólis grega é considerada um avanço no

que se refere ao compartilhamento do poder, ao contrário do que ocorria, por

exemplo, na Pérsia e no Egito onde a atividade política era exercida

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eminentemente dentro dos palácios em que o governante “comandava

autocraticamente o coletivo em direção a certos objetivos: as guerras, as

edificações públicas, a pacificação interna” (MAAR, 1994, 30). De fato é um

avanço, pois o poder passou a ser mais compartilhado, mais distribuído, porém, é

emblemático quando indagamos com quem este poder foi distribuído. Ele atingiu

uma minoria, nada heterogênea, que foram os homens livres. Esse avanço,

porém, não veio sinalizar mudanças significativas na vida da maioria da

população.

Percebemos que a experiência vai sendo construída sobre o discurso

de romper os limites autocráticos e em nome de uma maior distribuição de poder.

É importante destacar que quem construía diretamente as bases para essa

ruptura eram os próprios homens livres. Foram eles que reinventaram essa nova

organização política e social, por isso não é de se estranhar que este avanço não

contemplasse os interesses da maioria da população.

Geralmente quando os livros registram que a experiência da pólis grega

está diretamente relacionada com a democracia (do grego demos = povo e kratos

= poder), isto é, com o poder do povo, pelo fato de inaugurar um novo tempo,

levando o poder para a ágora – centro da praça pública – onde terá como

protagonista o cidadão, fala de um modo generalizado em relação ao povo, como

se tratasse de homens e mulheres. Se o exercício da cidadania era exercido

apenas pelos homens seria mais coerente falar de poder dos homens.

As assembléias da pólis aglomeravam milhares de cidadãos pelo

menos 40 vezes por ano para a tomada de decisões, revelando que ali era um

espaço permeado de poder. De acordo com Ribeiro, nestas assembléias os

cidadãos tratavam e decidiam sobre a guerra, a paz, sobre assuntos políticos, mas

também dedicavam parte significativa do tempo e das atenções à religião e às

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festas9. Com esse tipo de organização social as mulheres ficavam à mercê do

exercício do macro poder, da tomada das grandes decisões, que definiam a

estrutura e rumos da sociedade da época.

Mesmo reconhecendo que o universo e a dinâmica da pólis grega são

essencialmente distintos dos modelos contemporâneos de sociedade, queremos

chamar a atenção para o caráter sexista e androcêntrico daquela experiência.

Esse destaque é importante, pois ao longo dos séculos a pólis se tornou uma

referência para os diversos estudos no campo da política e também porque ainda

insiste em inspirar nossos ideais democráticos. Isso em si não representa um

aspecto negativo, mas esta experiência, reconhecida pelo seu caráter

democrático, não pode ser apreendida de forma absoluta. É preciso reconhecer

que tanto o seu desenvolvimento como muitas das interpretações e análises feitas

desta experiência não reconhecem o corte de gênero nela presente e passam a

negligenciar uma questão que longe de ser secundária, determina também, a

efetividade de uma sociedade democrática.

A partir dos estudos realizados e das considerações feitas acima

podemos constatar não só a rígida cisão entre o público e o privado na

antigüidade, como se ambas existissem independentes uma da outra, mas

também uma dicotomia entre os sujeitos que ocupavam eminentemente cada um

desses espaços: de um lado homens e de outro mulheres. Essa dicotomia entre

esses pares traz consigo a idéia de que um dos pares encontra-se em lugar

central, neste caso o espaço público, a esfera pública e com ela os homens livres

e suas decisões referentes ao bem comum e num outro pólo, secundário em

relação ao primeiro, o espaço e a esfera privada, ocupada por todas/os, inclusive

pelos homens que assim como na esfera pública eram os responsáveis pelas

grandes decisões.

9 Nas sociedades contemporâneas pode parecer indevido dentro do campo da política reunir milhares de pessoas para discutirem e decidirem sobre as festas. Pode

parecer inadequado também quando estamos nos referindo de uma experiência que quase sempre é apreendida enfaticamente pela sua seriedade: a pólis. Ao

contrário desta seriedade, o autor nos chama atenção para o fato de que a política era provavelmente mais divertida, até porque era bem próxima da vida cotidiana.

(RIBEIRO, 2001: 9).

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2.2 Das sociedades feudais à esfera pública burguesa

Diferentemente da experiência da Grécia Antiga onde a pólis

representava a esfera pública, as sociedades feudais da Idade Média não

possuíam uma esfera pública própria e diversa da esfera privada. Ambas esferas

se confundiam, dificultando assim identificar os limites entre uma e outra. Baseada

na teoria habermasiana, Jovchelovitch constata que nestas sociedades

“Todas as relações de dominação estão centradas na casa do senhor – tudo que existia, incluindo a organização do trabalho social, era determinado desde a casa do senhor (...) Não havia uma noção de poder público; o poder para governar estava ligado a atributos pessoais que derivavam da propriedade da terra ou da linhagem aristocrática”. (2000, 53).

Em suma, podemos afirmar que o público estava relacionado

diretamente com a pessoa que governava.

Nos primórdios das sociedades feudais a terra configurava-se como a

única riqueza favorecendo assim que os seus proprietários exercessem um

domínio na sociedade. O clero10 e os nobres por serem os maiores proprietários de

terras constituíam-se nas duas classes governantes, embora não houvesse um

governo forte na Idade Média capaz de se encarregar de tudo. (HUBERMAN,

1986, 8-9). Para o autor, ambas classes exerciam domínios diferentes, onde a

Igreja prestava ajuda espiritual e os nobres a proteção militar. Sabemos que a

bibliografia oficial, ou seja, sem um enfoque de gênero, registraria aqui a palavra

nobreza ao invés de nobres, como assim o fizemos. Reportamos-nos assim desta

forma por considerar que durante a Idade Média o poder político era exercido por

segmentos constituídos eminentemente por homens: os senhores feudais e o

Sacro Império Romano. Embora não houvesse estados nacionais centralizados,

este último mantinha sob sua tutela os senhores feudais como forma de garantir

que as diversas cidades-estados seguissem uma só orientação: a da Igreja

Católica.

10 De acordo com Huberman, a Igreja foi a maior proprietária de terras no período feudal. (1986:13)

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Se a pólis representava uma esfera privilegiada e específica para o

exercício do poder, no feudalismo ele era exercido dentro das propriedades dos

nobres e da Igreja. O público e privado passavam a dividir o mesmo espaço. Isso

não significou, porém, que o poder fosse distribuído entre todos os sujeitos que

ocupavam esses espaços. O poder hegemônico continuava a ser exercido por

uma elite formada pelos proprietários de terra, ou seja, continuava no domínio dos

homens.

A unidade doméstica era ao mesmo tempo espaço da vida privada e da

vida pública, incluindo aí a política e a economia. Neste modelo de sociedade

patriarcal, a mulher continuou ocupando uma posição subordinada como se fosse

uma propriedade em princípio do pai e posteriormente do marido. Preparadas para

o matrimônio, a maternidade e os cuidados do lar, desde os primeiros anos de

vida, as mulheres deviam obediência aos homens, seus maridos, pais e senhores.

Nesse contexto qual a situação das relações de gênero? A mudança

ocorrida entre os limites do público e do privado não foi traduzida em uma

redefinição da condição das mulheres e da relação destas com os homens. Temos

mais uma experiência onde a esfera pública hegemônica alija as mulheres e as

camadas pobres dos processos decisórios.

Com o crescente processo de industrialização e urbanização e com a

divisão sexual do trabalho, que ocorria dentro e fora da unidade doméstica, foi

sendo construída uma suposta divisão entre as esferas produtiva e reprodutiva.

A essa fragmentação correspondeu uma divisão sexual do trabalho mais rígida do que a que predominava anteriormente. À mulher coube principalmente a realização das tarefas relativas à reprodução da força de trabalho na esfera privada do lar e sem remuneração, enquanto ao homem coube o trabalho produtivo extra-lar pelo qual passou a receber alguma forma de remuneração. (BRUSCHINI, 1990, 46)

A reprodução da vida foi sendo historicamente subordinada à esfera da

produção de bens e serviços onde a ideologia se encarregou do resto,

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transformando essa rígida divisão sexual do trabalho em uma divisão ‘natural’,

própria à biologia de cada sexo. (BRUSCHINI, 1990, 46)

Segundo esta perspectiva, a esfera da reprodução de vida contempla

as dimensões biológica, social e de força de trabalho e a esfera da produção

corresponde aquela de bens e serviços destinados ao consumo humano. Pautada

no patriarcado e afastada de uma perspectiva dialética, a esfera da produção

apresenta-se como supostamente autônoma, independente, ocupando um lugar

de centralidade na nossa sociedade. Nesta lógica, a mulher acaba ocupando

fundamentalmente a espaço privado, ou seja, o espaço periférico assumindo

também uma postura periférica, subordinada e secundária. A compreensão de que

existe uma separação rígida e estanque entre público e privado é simplista,

traduzindo um mascaramento da realidade, a negação do seu caráter contraditório

e da complexa inter-relação entre seus sujeitos e elementos da sociedade.

De fato, a maioria das experiências de vida das mulheres até o final do

século XIX, limitava-se ao espaço privado, não permitindo a visibilidade e a

valorização de sua realidade. É como se elas não existissem ou fossem

destituídas da capacidade de protagonizar as suas próprias vidas e a história.

Como diria Ávila, os homens tinham história, as mulheres tinham destino. (ÁVILA,

2000, 9).

Mas essa relação direta e mecânica entre o público, esfera produtiva e

o político de um lado e o privado, a esfera da reprodução e o não político do outro,

não é plausível. Caso fosse poderíamos questionar se o mero deslocamento da

mulher para o espaço público e para a esfera de produção alteraria a sua

condição de desfavorecimento em relação aos homens. Baseando-se nas

experiências históricas de larga inserção da mulher na esfera produtiva e da

própria conquista do espaço público identificamos que o mero deslocamento não é

capaz de garantir a construção de um modelo de relação pautado na igualdade

entre homens e mulheres.

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Para Heleieth Saffioti ambas esferas estão dialeticamente imbricadas,

onde a produção e reprodução constituem duas faces de um mesmo sistema

produtivo, pois nenhum modo de produção pode prescindir, seja da produção dos

meios de subsistência, seja da reprodução dos seres humanos. (apud

BRUSCHINI, 1990, 51). Nesta perspectiva, é inviável desconsiderar que a

dimensão política esteja entranhada também na esfera privada.

Essas transformações ocorridas no modo de produção exigiram uma

nova organização política, provocando uma unificação dos diversos estados

nacionais, dando origem ao Estado Moderno11. Convém salientar que a

constituição de um Estado unificado não representou um artefato subjetivista

resultante apenas da expressão da vontade política de cidadãos/ãs, mas foi

erigido a partir da existência e da articulação das condições concretas que

possibilitaram a sua efetivação.

Desde o século XV estas condições podiam ser identificadas. A partir

daí abriam-se os caminhos para que séculos mais tarde o capitalismo se

consolidasse. A terra paulatinamente deixava de ser a única fonte de riqueza

diante do surgimento e da circulação do dinheiro, indicando o declínio do sistema

de trocas e a intensificação do comércio. O comércio crescia provocando uma

série de mudanças nas relações políticas, sociais, econômicas, culturais,

religiosas12.

11 Nesta perspectiva, Maquiavel propunha a construção de uma nova ordem política, livre e laica, que fosse capaz de desvincular os interesses da Igreja dos

interesses do Estado, de forma que a política deixasse de se pautar nos valores supremos e se fundamentasse nas necessidades reais da nação. Essa proposição

acabava por reduzir substancialmente a influência da Igreja no comando político.

12 Dentro desta conjuntura, situamos a emersão do Renascimento - movimento científico e artístico, surgido na Itália no final do Século XIV que se expandiu por toda

a Europa, caracterizado pelo humanismo. O Renascimento e o Humanismo estão imbricados de uma forma que ambos representam as faces de uma só unidade,

sinalizando a transição entre o pensamento medieval e o pensamento moderno. Esse movimento num processo de construção/desconstrução desenvolveu uma

nova concepção de ser humano e de mundo passando a: negar o teocentrismo e a defender o antropocentrismo, constituindo a base para o humanismo; explicar o

mundo através da razão, deixando a fé em segundo plano, dando origem ao racionalismo e à ciência experimental; valorizar o desenvolvimento do individualismo

burguês e do nacionalismo, em detrimento do coletivismo cristão, que vai fundametar a formação dos Estados modernos. Na perspectiva de contrapor-se a

mentalidade e a realidade medieval inspiradas no pensamento cristão, o Renascimento vai retomar criticamente o pensamento greco-romano da Antigüidade com

vistas a superá-lo.

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Dentro deste processo formava-se uma nova classe: a burguesia. A

posse do capital por parte da burguesia ainda não era suficiente para garantir

também o seu poder político. Vejamos o que nos diz Huberman a este respeito:

“a burguesia desejava que seu poder político correspondesse ao poder econômico que já tinha. Era dona de propriedades – queria agora privilégios. Queria ter certeza de que sua propriedade estaria livre das restrições aborrecidas a que estivera sujeita na decadente sociedade feudal. Queria ter certeza de que os empréstimos feitos ao governo seriam pagos. Para isso, tinha de conquistar não somente uma voz, mas a voz no governo. Sua oportunidade chegou – e ela soube aproveitá-la”. (1986, 149-150)

A burguesia foi capaz de aproveitar as condições históricas da época e

a correlação de forças estabelecidas com as autoridades feudais combatendo e

apresentando uma alternativa para o feudalismo e impondo um novo projeto,

contribuindo efetivamente para a transformação da base daquela sociedade em

vigor.

Essas transformações ocorridas na Europa entre os séculos XVII e XIX

foram determinantes no engendramento de uma nova configuração do público e

do privado, redefinindo uma nova relação entre eles e dando origem à esfera

pública burguesa.

O surgimento e a consolidação da esfera pública burguesa foi

proporcionada a partir articulação de vários fatores conjunturais e estruturais: a

propagação da impressão, a valorização do indivíduo, os processos de

alfabetização em massa, o acesso aos livros, a crescente troca de informações, a

valorização da opinião pública, o desenvolvimento dos meios de comunicação de

massa, a difusão do sistema de trocas de mercadorias, a consolidação do

capitalismo...

A esfera pública burguesa nasce associada à distinção entre Estado e

sociedade, fragmentando o vínculo estreito entre ambos e alterando as suas

relações. O Estado, em constituição, configurava-se como aparato legal para o

exercício do poder, reunindo aquilo definido como público. Paulatinamente os

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senhores feudais vão deixando de exercer diretamente o que começava a se

configurar como poder público. Baseado nesse pressuposto tudo o que se situava

fora da esfera estatal passou a ser considerado de ordem privada.

Nesse novo reordenamento político a administração e o orçamento do

Estado desvincula-se da esfera privada ganhando o status de autonomia em

relação a esta.

“As autoridades feudais (Igreja, os príncipes e a nobreza) se dividem em elementos públicos e privados. O poder da nobreza passa para órgãos da autoridade pública, parlamento e instituições legais. Os grupos sociais que se desenvolveram em relação aos ofícios e ao comércio passam a existir como uma esfera da sociedade burguesa que se destaca do estado como uma área genuína de autonomia privada. O público, então, passa a ser o estado. O estado havia se desenvolvido como uma entidade que possuía existência objetiva em relação à pessoa que governava. O público era a ‘autoridade pública´”. (JOVCHELOVITCH, 2000, 54)

Essa mudança na correlação de forças e na reestruturação do exercício

do poder representava o forjamento de uma nova esfera pública que fosse capaz

de responder as transformações ocorridas na estrutura social.

A suposta dicotomia entre público e privado existente na Grécia antiga

e desmontada na Idade Média volta a se erigir na modernidade, agora com uma

nova configuração. Se os limites do público encerravam-se no espaço estatal e se

a sociedade assumia um status de privacidade, qual seria então o canal de

interseção entre Estado e sociedade? Na experiência grega esse canal de

interseção era exercido de forma individualizada e descentralizada pelos homens

livres, sem que houvesse uma articulação própria e unificada entre eles. Com o

advento das sociedades modernas esse canal de interseção foi se constituindo a

partir de uma referência coletiva portadora de princípios e de uma dinâmica

própria, reconfigurando a noção do público/privado e dando origem ao que na

contemporaneidade denominamos como esfera pública.

A dinâmica desta esfera pública, formada na diversidade humana -

onde os sujeitos portadores de várias concepções de mundo e de formas de

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interagir com a realidade, caracteriza-se pelo uso da racionalidade e do diálogo. A

partir da utilização e articulação desses dois elementos, os sujeitos vão rompendo

as barreiras de sua privacidade e inaugurando outras vivências com referência

coletiva.

Dentro do campo denominado como da privacidade vai ocorrendo “o

advento de uma sociedade civil de cidadãos privados que se confrontam com o

poder público”. (JOVCHELOVITCH, 2000, 55). A sociedade civil nasce

representando a coalizão de sujeitos privados na perspectiva de constituir uma

esfera pública que se configure como palco de definição do bem comum.

Diferencia-se, assim tanto do Estado quanto da sociedade, ao mesmo tempo em

que busca intermediar a relação entre um e outra.

Para Jovchelovitch, um dos princípios essenciais da esfera pública

burguesa é o fato dela introduzir “uma nova concepção de participação política e

da relação entre estado e sociedade” (2000, 56) na definição das questões

relacionadas aos interesses públicos. O que significa isso senão a própria vivência

que insiste em efetivar a promessa de uma sociedade democrática?

Competia à sociedade civil em formação, através de canais

institucionais, expressar os interesses e necessidades da sociedade e, além disso,

buscar submeter à ação dos governos à opinião pública. De forma genérica os

princípios da esfera pública burguesa apontam para uma experiência onde todas

as pessoas possam ter acesso e participar.

Entretanto, cabe-nos indagar sobre a efetividade dessa construção do

bem comum e da vivência democrática. De que bem comum estamos falando?

Daquilo que refere se a sociedade em geral ou dos sujeitos ativos na esfera

pública? Quais os sujeitos inseridos nesta esfera? Qual o potencial dessa esfera

para garantir a democracia não apenas como princípio, mas, sobretudo como

processo e como fim?

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Mesmo que esta versão da esfera pública tenha ocorrido de modo mais

consolidado na realidade européia retomamos-a aqui pelo fato de ter exercido

uma influência expressiva na realidade brasileira, mesmo que tardiamente. O

sistema político brasileiro foi constituído a partir do emprego distorcido das

experiências de outros países, principalmente da Europa. As experiências

oriundas além-mar foram adaptadas numa sociedade marcada por um grande

abismo entre massas e elites e por uma forte cultura patrimonialista e clientelista.

Falar em Estado patrimonialista significa falar de uma sociedade com

um baixo grau de representatividade dos diversos setores sociais. O Estado

antecipa-se às demandas da sociedade e por isso mesmo se estabelece enquanto

instituição que não reflete as demandas institucionais por direitos. Ele também

dispõe de uma forte burocracia administrativa, porém com ausência de relações

contratuais que possam garantir a institucionalidade da relação Estado e

sociedade, passando esta a ser substituída por relações clientelísticas.

Outro aspecto determinante é o fato do Brasil, em relação a outros

países, ter demorado a acabar com o regime escravocrata, cujas influências

foram emblemáticas. Para Joaquim Nabuco (2000), a escravidão e o modo como

ela se instituiu foram definindo e dando forma à sociedade, à economia, à cultura,

à política, ao Estado brasileiro. O Brasil não seria o mesmo sem a natureza e o

modelo de escravidão vivida. Não houve na história do país uma instituição tão

forte como a escravidão que penetrou e marcou indelevelmente a sua estrutura

sócio-econômico-cultural brasileira.

Distintamente da realidade européia, a experiência brasileira de esfera

pública também foi construída dentro deste quadro de exclusão que assolou

principalmente as pessoas afrodescendentes, as mulheres e as/os pobres. Esses

aspectos determinaram e vem determinando as configurações da esfera pública

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na realidade brasileira, tão carente de significados e de práticas que possam

fortalecê-la.

As provocações acima se justificam na perspectiva de identificarmos na

prática quais os limites da ideação da esfera pública. Uma revisão da História nos

mostra que esta configuração da esfera pública, favorecendo preponderantemente

os segmentos burgueses, gerou um sem número de exclusões, entre elas os de

classe, raça e gênero.

O conjunto de reflexões deste capítulo, não pretende qualificar de forma

dicotômica positiva ou negativamente a esfera pública burguesa, mas identificar os

seus limites e possibilidades de construção democrática gestada na ação de

mulheres e homens. Analisar o seu caráter excludente é fundamental não numa

perspectiva de descartá-la, mas de compreendê-la além da sua idealização e sim

a partir da sua materialidade. O princípio gerador deste artifício da modernidade é

por demais necessário na contemporaneidade, onde na atual fase do capitalismo

temos consolidado um quadro onde as dimensões coletivas têm perdido validade

e significados, desafiando consideravelmente a reconfiguração da esfera pública.

Reconhecendo a repercussão e a influência da esfera pública

burguesa, faremos agora uma breve caracterização e problematização desta na

contemporaneidade, de forma a identificarmos nesta experiência a organização de

mulheres, em particular o trabalho desenvolvido pela Associação Mulheres em

Movimento.

2.3 A esfera pública na contemporaneidade

As determinações estruturais e conjunturais da sociedade brasileira vai

contraditoriamente revelando seus próprios limites e indícios de esgotamento ao

gerar uma convivência pautada na exclusão de pessoas. Se por um lado as

camadas excluídas ameaçam as que não estão excluídas, nestes mesmos

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segmentos encontramos sinais de uma outra lógica que reclama a necessidade de

evidenciação do bem comum. Sem abandonarmos o referencial do projeto de

construção do bem comum da esfera pública burguesa, mas agregando a ele os

aspectos estruturais e conjunturais da realidade, que determinam

fundamentalmente a esfera pública, buscaremos identificar seus limites e

possibilidades na materialização deste projeto.

Destacamos um conjunto de características típicas da sociedade

brasileira na contemporaneidade, que interferem decisivamente na constituição da

esfera pública: a concentração da população em áreas urbanas, a capilaridade e

velocidade dos meios de comunicação, o avanço tecnológico, o crescimento do

setor de serviços... O estilo de vida adotado nas áreas urbanas e especialmente

nas grandes metrópoles é marcado pela quebra dos laços da sociabilidade e pelo

fortalecimento de iniciativas e experiências individualizadas, pondo em xeque a

construção democrática e o exercício da cidadania enquanto projeto que ganha

concretude na coletividade. É importante destacar a existência e a difusão, nos

diversos espaços e canais, de uma cultura que insiste em associar o modelo de

vida urbano como sinal de avanço e modernidade. Essa dicotomia rural/urbano

privilegia o segundo elemento do binômio, atribuindo pré-noções negativas ao

primeiro.

Os aspectos ora apontados reestruturam a realidade não apenas física

e geograficamente, mas, sobretudo nas suas relações sociais. Podemos citar

como exemplo a internet e alguns serviços telefônicos que proporcionam uma

maior possibilidade de contatos indiretamente, particularizados, mais rápidos,

fragilizados, redefinindo as formas de sociabilidade humana. Neste contexto, as

vivências coletivas vêm sendo destituídas de sentido e importância. Porque se

agrupar, se as pessoas acreditam que o seu desenvolvimento e sua presença no

mundo não prescinde da presença e da interação com as outras e que suas

necessidades podem ser satisfeitas pelas facilidades num mundo repleto de

produtos e serviços cada vez mais especializados e personalizados?

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Estamos diante de uma questão recorrente nesta reflexão que é o limite

e o vínculo entre a noção de público e de privado. A trajetória traçada registra a

incidência de momentos de cisão e de fusão entre público e privado. Na realidade

contemporânea brasileira essa noção é herdeira da formação da nossa sociedade

que revela uma distorção das concepções de público e privado, onde o que

deveria ser público vem sendo “naturalmente” privatizado, ou seja, utilizado para

fins particulares. Isso vem favorecendo as elites e contribuindo na reprodução do

quadro de desigualdades que assola o país.

Diante desse quadro identificamos na relação público e privado os

seguintes aspectos: uma incisiva relação entre público e aparato estatal; aquilo

que é público vem sendo desqualificado e destituído de importância; o público vem

sendo apropriado de forma privada, satisfazendo não o bem comum, mas

privilegiando os interesses de uma minoria; o privado mostra-se como o campo da

liberdade. Percebemos, então, um quadro de opacidade nos limites entre público e

privado, que ora se revela numa rígida cisão entre um e outro e ora funde-se não

numa perspectiva de romper com a dicotomia, mas numa perspectiva de

privatização do público. Estas são questões centrais a determinarem

essencialmente a constituição da esfera pública na atualidade, a partir da ação

dos sujeitos, homens e mulheres. No caso desta pesquisa nosso olhar estará

voltado para ação de um dos sujeitos: as mulheres. Considerando-as enquanto

sujeitos coletivos que na construção da esfera pública participam da construção

das relações de gênero refletiremos sobre o princípio de igualdade que permeia a

esfera pública e que está intrinsecamente relacionado ao nosso objeto de estudo.

A utilização da categoria igualdade divide feministas e estudiosas. De

acordo com Puleo, o segmento denominado de feminismo da igualdade, defende

os princípios de liberdade, igualdade e autonomia, enfatizando o que há de

comum entre homens e mulheres e buscam justificar as diferenças entre esses

sujeitos como fruto da construção social das identidades de gênero. Esse

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segmento reivindica a igualdade como fundamental na garantia de oportunidade

para ambos os sexos. Contrariamente, o feminismo da diferença, recorre a

utilização do princípio da diferença sexual, refutam o princípio da igualdade, pois

busca-la significa negar a própria identidade das mulheres, afirmando ainda que a

igualdade de oportunidade, de poder e de recurso não interfere positivamente na

vida das mulheres. Ao contrário disso, propõe uma ação mais direta com as

próprias mulheres, uma recuperação do mundo simbólico feminino, a partir da

relação mãe e filha e das mulheres jovens com as adultas.

Na nossa acepção, o princípio de igualdade trazido pelo feminismo da

igualdade é revela-se mais coerente para interpretar a realidade. Mediante esta

opção refletiremos agora sobre a sua concepção.

Tomemos, inicialmente, o conceito de igualdade. A Declaração

Universal dos Direitos Humanos13 preconiza que Todos os seres humanos nascem

livres e iguais... De acordo com esta concepção a igualdade é um princípio nato

que se materializa a partir do nascimento de cada pessoa. Esta concepção reúne

um significado vago, impreciso e ideal, exigindo um maior aprofundamento das

razões que possam ou não lhe justificar. Na perspectiva de precisar melhor este

conceito vamos discutir aqui duas questões.

A primeira delas é que falar de igualdade numa perspectiva dialética

exige, sobretudo uma mediação com a sua negação que é a desigualdade, onde

uma refere-se à outra dentro da unidade formada entre esses pares opostos.

Quando falamos de desigualdade sempre temos como referência uma situação de

igualdade que nos dá a possibilidade de qualificá-la desta forma. Dentro desta

intermediação podemos perceber que a relação entre as duas situações opostas e

aparentemente autônomas traz em seu cerne o princípio da outra, seja ela a

igualdade ou da desigualdade. Ilustrando melhor, quando constatamos que no

Brasil a média do salário das mulheres é equivalente a 48% da média do salário

13 Artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, publicado em 1948.

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dos homens14, essa relação só é possível porque tenho um parâmetro que me

permite mensurar os dados de uma realidade, que como neste exemplo sinaliza

um quadro de desigualdade entre homens e mulheres. Materializa-se assim a

dimensão relacional dos contrários, compreendemos que as pessoas são iguais

em relação a alguns/mas, mas também são desiguais em relação a outros/as.

Além da natureza contraditória, a partir do que foi definido como igual

ou desigual, destacamos uma segunda questão que é o caráter de relatividade.

Vamos buscar esta fundamentação na teoria de Norberto Bobbio ao afirmar que:

“O conceito de igualdade é relativo, não é absoluto. É relativo ao menos a três variáveis que precisam ser consideradas toda vez que se introduz o discurso sobre a maior ou menor desejabilidade, e/ou sobre a maior ou menor realizabilidade, da idéia de igualdade: os sujeitos entre os quais se trata de repartir os bens e os ônus; b) os bens e os ônus a serem repartidos; c) o critério com base no qual fazer a repartição”. ( 2001, 112)

As variáveis apresentadas no conceito acima têm em comum o

princípio da repartição, abrindo o questionamento para: com quem repartir, o que

repartir e o como repartir. Diante destes princípios é que podemos situar melhor a

experiência da pólis grega, assim como, compará-la com outras experiências com

um menor ou um maior grau de democracia. Neste caso a repartição não se

referia a todas as pessoas, mas apenas a minoria; o que era repartido era o poder

e como era repartido, somente com os cidadãos, os homens livres. Este era o

critério. A fundamentação de Bobbio mostra-se contrária ao universalismo que se

encerra em si mesmo sem levar em conta as experiências históricas, mas busca a

construção de princípios que embora utópicos, tenha uma perspectiva de

concretude a partir das diversas experiências de mulheres e homens.

Ilustrando esse caráter de relatividade da igualdade o autor assim

descreve:

14 De acordo com os números da mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -

IBGE (2001),

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“Com respeito aos sujeitos, o sufrágio universal masculino e feminino é mais igualitário do que o sufrágio universal apenas masculino; o sufrágio universal masculino é mais igualitário do que o sufrágio masculino limitado aos possuidores ou aos não-analfabetos. Com respeito aos bens, a democracia social que estende a todos os cidadãos, além do direito de liberdade, também os direitos sociais, é mais igualitária do que a democracia liberal. Com respeito ao critério, a máxima “a cada um segundo suas necessidades” é, como já se disse, mais igualitária do que a máxima “a cada um segundo sua posição”, que caracteriza o Estado de estamentos ao qual se contrapôs o estado liberal”. (2001, 115)

Dentro desse debate sobre a igualdade/desigualdade Bobbio identifica

duas tendências: a igualitária e a inigualitária. A primeira parte do princípio que a

maior parte das desigualdades são sociais, e por isso elimináveis; a segunda parte

da convicção de que as desigualdades são naturais, e, portanto inelimináveis.

Para exemplificar uma experiência igualitária cita o movimento feminista:

“O movimento feminista foi um movimento igualitário. A força do movimento dependeu do fato de que um de seus temas preferidos sempre foi, independentemente da veracidade fatual, o reconhecimento de que as desigualdades entre homem e mulher, embora tendo raízes na natureza, são o produto de costumes, leis, imposições do mais forte sobre o mais fraco, e são socialmente modificáveis”. (2001, 121)

Nessa Discussão Bobbio traz a noção de desigualdade natural e

desigualdade social. Nossa compreensão é de que ambas existem, mas insistimos

em dar enfoque naquelas de ordem social como perspectiva de reconhecer nela

um campo privilegiado de intervenção humana que pode criar e recriar a

realidade.

Tomando como referência o modelo de igualdade clássica que se

apresenta como projeto de um sujeito universal, identificamos a sua incapacidade

de contemplar a sua efetividade numa sociedade historicamente desigual,

confirmando a premissa de Celso Lafer ao considerar que a “asserção de que a

igualdade é algo inerente à condição humana é mais do que uma abstração

destituída de realidade”.

O nascimento de cada pessoa ocorre dentro de uma sociedade que é o

fruto de uma construção histórica. Considerando que histórica e culturalmente esta

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sociedade materializou formas de significativas de desigualdades econômicas,

sociais, culturais, de gênero... Por isso contrariando o que prevê a Declaração

Universal dos Direitos Humanos consideramos um equívoco afirmar que todas ou

todos nascem iguais. Situamos neste quadro de desigualdades as relações de

gênero, onde as mulheres historicamente têm experimentado uma condição

desfavorável em relação aos homens. Essas desigualdades na relação entre

homens e mulheres, não é tão simples e não se encerram por aqui, pois as

condições de desigualdade também se materializam entre os homens em si e

entre as mulheres. Uma criança do sexo feminino que nasce como filha de um

casal morador de rua é extremamente desigual ao de uma criança, também do

sexo feminino, gerada por um casal de grandes empresários. Desigualdade esta

que é percebida de forma natural, mecânica e imutável, muitas vezes justificada

como uma questão de sorte ou não, ou dentro de uma lógica meritocrática, onde

as/os melhores ocupam um lugar privilegiado na sociedade.

A abordagem da igualdade nos remete ainda à concepção de diferença

onde a primeira pode ser materializada ou negada a partir da acepção que se faz

desta última. A fundamentação a partir de esquemas dicotômicos e sua

associação com a negação das diferenças acabam por nortear concepções de

mundo e práticas geradoras e reprodutoras das diversas desigualdades: sociais,

culturais, econômicas, políticas. Desigualdades estas expressas nos indicadores

sociais e também no conteúdo dos livros didáticos, adágios populares, preceitos

religiosos, propagandas, letras de músicas.... Para Ávila,

“a pluralidade de sujeitos políticos instituída pela ação dos movimentos sociais contemporâneos revela que a construção da igualdade passa, justamente, pela desestruturação da ordem social que hierarquiza as diferenças, transformando-as em desigualdades. Daí que considero que a relação igualdade/diferença deve ser entendida não em termos antagônicos mas como um dilema a ser enfrentado como parte do processo dialético da transformação social”. (ÁVILA, 2000, 7)

Dentro desta perspectiva buscamos utilizar os princípios de igualdade e

de diferença não como opostos, mas de forma complementar. Boaventura dos

Santos sinaliza que simultaneamente queremos ser iguais e diferentes,

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defendendo uma cidadania planetária que respeite as diferentes culturas

(mulçumana, hindu, indígena, africana...), recusando o falso universalismo que

destrói todas as diferenças ao impor a cultura branca, masculina e ocidental como

padrão universal. Por isso defende que “temos direitos a ser iguais quando a

diferença não nos inferioriza e direito de ser diferentes quando a igualdade não

descaracteriza”. Quando nos reportamos à diversidade de sujeitos a fazendo não

construindo dois possíveis blocos: o de mulheres e os de homens, mas

consideramos a pluralidade entre e destes entre si.

Buscaremos analisar a constituição da esfera pública a partir da

organização das mulheres considerando a presença dos princípios da igualdade e

da diferença, identificando a partir dela a construção das relações de gênero.

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3. Mulheres em Movimento: resistência e organização política

Ao longo dos séculos XIX e XX, a experiência dos movimentos

feministas no mundo, e em particular no Brasil, se inscreve numa perspectiva

contraditória ao provocar uma ruptura no modelo de pensamento que é pautado

em princípios biológicos para justificar as desigualdades entre homens e

mulheres. Esses movimentos além de expressarem a forte resistência das

mulheres também representam com radicalidade uma crítica à razão patriarcal em

que foram fundadas as sociedades ocidentais. De acordo com Lourdes Bandeira

“o feminismo constitui-se no movimento social que mais profundamente interferiu

no pensamento social e político ocidental, da forma como este se estruturava

desde o século XVI”. (2000, 15).

Para Bandeira a expressão do movimento feminista

“foi o portador de vozes dissonantes da matriz hegemônica que recobriu e predominou desde o mundo grego até a modernidade, ao resgatar a condição de exclusão e de inferioridade da mulher, não apenas como categoria estatística e sócio-econômica, mas da condição de sujeito sócio-histórico e cidadão”. (2000, 17)

Foi nessa resistência que as mulheres se organizaram politicamente

dando origem aos movimentos de mulheres e aos movimentos feministas. Eles

foram e vem sendo ao longo da nossa história palco de lutas, conquistas,

avanços, recuos, resistências... interferindo diretamente na criação e na

reconstrução da esfera pública.

Convém estabelecer aqui a distinção entre movimento de mulheres e

movimento feminista. Adotaremos aqui a concepção utilizada por Souza-Lobo. A

autora define como movimentos de mulheres aqueles que reclamam

prioritariamente a questão da relação entre reivindicações e necessidades

correspondentes à esfera da reprodução, a saber, aquelas especificamente

“femininas” (...) onde as reivindicações se confundem com o desejo de mudar a

vida, de mudar as relações na família. Por movimento feminista a autora identifica

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na abordagem teórica três tendências analíticas. Aqueles formados no exílio por

mulheres ligadas às organizações de esquerda; os grupos de autoconsciência

formados durante os anos de repressão, agrupando, sobretudo intelectuais que

exerciam distintas profissões; e grupos formados por militantes, simpatizantes ou

egressas das organizações de esquerda no Brasil, próximos do que na França é

caracterizado como tendência “luta de classes”. (SOUZA-LOBO, apud Esmeraldo)

Destacamos aqui a importância vital de ambos movimentos para a

ruptura do modelo patriarcal de sociedade e para a construção de uma sociedade

mais igualitária, não só do ponto de vista de gênero, mas também em relação à

raça, classe social, dentre outros, afinal essas dimensões estão essencialmente

imbricadas.

Voltando nosso olhar para o século XX buscaremos compreender os

fatores que contribuíram para o ressurgimento e forjamento dos movimentos de

mulheres e dos movimentos feministas. Podemos nomear o século XX,

principalmente na sua 2ª metade, como um palco fértil de mudanças no quadro

político brasileiro com novas formas de mobilização das massas, reforçando e

consolidando – e não ameaçando como ocorrera em outros contextos políticos – a

democracia (Avritzer). Além disso, como palco de transformações significativas da

condição da mulher na sociedade brasileira. O conjunto dessas conquistas só

pode ser compreendido a partir da sua dimensão histórica. Em sintonia com esta

realidade maior, centraremos nossa abordagem muito mais no cenário cearense.

A conjuntura de emergência dos movimentos feministas e dos

movimentos de mulheres nas décadas de 1960/70 coincide com a expressão dos

movimentos sociais, porém a sua história não se confunde com as destes, pois

ambos têm suas especificidades.

Os movimentos sociais que se constituíram no final da década de 1970

fazem sua inscrição no cenário nacional denunciando e desmontando o regime

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militar instaurado em 1964 e construindo as bases para a redemocratização do

país. Depois de um longo período de repressão e de negação da existência e

participação dos sujeitos políticos por parte do Estado brasileiro, a sociedade civil

vai paulatinamente retomando seu peso político e vivenciando um grande

aprendizado quanto à organização popular e reivindicação de seus direitos.

Para Gohn, os movimentos sociais nos anos 1970

“vão surgindo do “lugar” de exclusão dos indivíduos dos direitos e da construção de experiências de cidadania. Os movimentos sociais surgem do “não lugar” da política, e articulam-se através de sua inserção nas malhas finas do Poder, reelaborando seu próprio saber e atuando em espaços capilares, ali onde o poder exerce-se de forma mais material e, por isto mesmo, mais eficaz e desmobilizadora de energias políticas”. (1994, 22)

Os espaços de moradia resguardavam esse potencial de capilaridade

passando a canalizar a construção de novas relações de poder, principalmente

das classes ou camadas populares. Considerando os espaços de moradia dessas

a partir da confluência de alguns elementos como as condições concretas de vida,

a percepção crítica da realidade e a evidenciação da vontade coletiva os

Movimentos Sociais Urbanos - MSUs vão constituindo de forma singular a luta

para alcançar objetivos pontuais, como também vão delineando historicamente o

perfil político do bairro ou da cidade onde estão situados.

Observemos que as demandas e temáticas introduzidas na esfera

pública pelos MSUs têm um caráter distinto daquelas articuladas por exemplo

pelos partidos políticos e sindicatos, que empunhavam bandeiras mais gerais

como a liberdade democrática, a anistia e a constituinte soberana.

Os MSUs têm como característica específica o fato de sua dinâmica

efetivar-se na esfera da reprodução e não na estrutura produtiva (Ribeiro). A idéia

aqui não é de tomar isoladamente as esferas da produção e da reprodução, mas

apenas de reconhecer as particularidades de cada uma. Sendo assim, os MSUs

passam a lutar fundamentalmente pela conquista de melhores condições de vida a

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partir da conquista de serviços e equipamentos como: água, luz, posto de saúde,

transporte, creche, etc.

Nesse contexto, as mulheres lá estavam fazendo história se fazendo

reconhecer enquanto sujeitos individuais e coletivos, rebelando-se pelos direitos à

cidadania, a uma identidade social e política. (ESMERALDO, 1998, 55). A

presença significativa das mulheres contribuiu para que fosse introduzida na

agenda política, novas demandas, avançando na noção de direitos, e gerando

novas práticas, numa perspectiva de ampliar e de redefinir a esfera pública.

Dentro dessa intervenção e interação nos diversos espaços políticos:

sindicatos, partidos, associações de moradores... as mulheres vão percebendo a

resistência e a incapacidades desses sujeitos coletivos defenderem as bandeiras

das mulheres, justificando assim, a necessidade de gestar organizações

específicas de mulheres com o intuito de “libertar a mulher na sua especificidade

de opressão e exploração”. (ESMERALDO, 1998, 50)

Desta forma, a organização de mulheres no Ceará15 foi sendo gestada a

partir de uma conjuntura propícia onde a preocupação com a condição desigual

das mulheres em relação aos homens vão forçando espaços e canais políticos,

supostamente assexuados e universais, e introduzindo temas até então

considerados exclusivos da vida privada, do domínio das mulheres.

Elencamos pontualmente algumas experiências originadas nas décadas

de 1970/80 que dentro de uma conjuntura de luta pela democracia no país,

sinalizam a organização de mulheres: instituição do Ano Internacional da Mulher

(1975); criação do Conselho Cearense dos Direitos da Mulher (1980); realização

do 1º Encontro da Mulher Cearense (1980); realização do 2º Encontro da Mulher

15 A primeira expressão da organização de mulheres no Estado do Ceará, de acordo com os registros de Esmeraldo, ocorreu a partir da criação do Movimento

Feminino Pela Anistia – MFPA, em 1976. Este movimento, composto basicamente por mulheres perseguidas pela ditadura militar em decorrência de seu

engajamento e atuação nos partidos de esquerda, fortaleceu e deu visibilidade a luta que ocorria em princípio clandestinamente de combate ao regime militar,

influenciando sobremaneira os movimentos populares e sindicais.

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Cearense (1982); realização do 1º Congresso da Mulher Cearense (1982);

instalação da 1ª Delegacia da Mulher no Ceará, em Fortaleza (1985). Essas

experiências são criadas a partir da organização, articulação e mobilização de

mulheres, e na medida em que passam a ocupar o espaço público, propiciam o

forjamento e ampliação da esfera pública.

Nesse contexto, de um lado o movimento feminista levantava bandeiras

como o “discurso da igualdade, nele denunciado as relações de dominação na

família, as oportunidades desiguais e a exploração no mercado de trabalho, a

divisão sexual do trabalho, as diferenças salariais”, e de outro, as mulheres dos

movimentos, das associações de bairro e dos grupos de mães

“eram portadoras de reivindicações voltadas principalmente para o atendimento de suas funções reprodutivas. Estas mulheres motivavam-se basicamente por lutas de cunho imediatista, relacionadas ao seu cotidiano doméstico, familiar, ligadas às necessidades de saúde, educação e habitação”. (ESMERALDO, 1998, 55).

Ao analisarmos este diferencial de interesses, ou como falamos antes,

de estratégia para alcançá-los, compreendemos que tal divergência longe de se

opor são complementares. Traduz interpretações diferenciadas de uma mesma

realidade, determinada substancialmente pelas suas analistas: as militantes do

movimento feministas e as mulheres empobrecidas, também militantes.

Na perspectiva de descortinar o objeto de estudo em questão, propõe-

se o mergulhamento no cotidiano de uma dessas organizações de forma a permitir

a apreensão dos interstícios desse processo político.

A experiência do movimento feminista na década de 60 revelou uma

forte rejeição às interpretações da realidade, fundadas no determinismo biológico,

a partir da noção de sexo ou de diferença sexual. Sendo assim, deu-se início a

utilização da categoria gênero para a interpretação e a explicação das relações

socialmente construídas entre homens e mulheres.

Fazendo um paralelo (mesmo que grosseiramente) das lutas das

mulheres na atualidade com aquelas vividas até a década de 1960, observamos

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uma mudança substancial de abordagem e intervenção. As experiências dos

movimentos feministas e dos movimentos de mulheres contribuíram para a

emergência e difusão da categoria gênero, determinando significativamente o

conjunto dessas mudanças. De acordo com Mireya Suárez

No contexto das relações de gênero o sujeito masculino tende a fazer parte constitutiva e definitiva da categoria gênero. Daí decorrem vários deslocamentos de sentidos, de linguagens e de enunciações. Passa-se a falar mais de relações, de desigualdades, de diversidades, de diferenças, de heterogeneidades entre os gêneros do que propriamente de direitos das mulheres. (apud BANDEIRA, 2000, 37)

A compreensão desse contexto é essencial para que possamos

compreender a constituição e organização da Associação Mulheres em

Movimento.

3.1 A Associação Mulheres em Movimento - Uma expressão política na

periferia de Fortaleza16

A Associação Mulheres em Movimento – AMM tem uma trajetória de 17

anos de trabalho. Desde 1987, ou Grupo Mulheres em Movimento, assim

denominado até a sua institucionalização em 08 de março de 1997, vem

organizando e mobilizando mulheres que habitam principalmente o bairro

Conjunto Palmeiras e adjacências.

De acordo com o seu Estatuto que define a sua personalidade jurídica,

suas finalidades e sua organização a Associação Mulheres em Movimento é uma

entidade civil sem fins lucrativos, com personalidade jurídica de direito privado,

cujas finalidades são:

“I – Organizar as mulheres associadas, com vista à defesa de seus direitos e trabalhando a sua profissionalização; II – reivindicar, junto aos poderes públicos, a elaboração, formação e alfabetização das associadas e o atendimento a outras reivindicações inerentes aos direitos da Mulher; III – promover atividades com o objetivo de proporcionar às suas associadas conhecimento e práticas na sua área da saúde, educação,

16 O conteúdo deste capítulo foi construído a partir de conversas com as integrantes da AMM, associadas ou não, de relatórios de encontros de reuniões (1997-

2002), de cartilhas produzidas pela Associação e pela fala das entrevistadas.

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habitação, urbanismo, segurança pública, lazer e outros aspectos da vida através de cursos, palestras, atividades artísticas culturais, esportivas, recreativas e políticas; IV – promover a integração das associadas e seus grupos através de mecanismos de comunicação, oficinas, encontros e outros; V – promover a integração com entidades e instituições congênitas para a defesa de seus objetivos; VI – desenvolver e fortalecer junto às associadas os princípios da amizade, união e solidariedade humana; VII – desenvolver um trabalho de alfabetização de mulheres e homens, utilizando de preferência o método Paulo Freire”.

Das oito finalidades citadas percebemos que apenas a primeira

constitui-se objetivo da AMM enquanto que os demais itens correspondem a

estratégias para alcança-las. Nos indagamos se a multiplicidades de finalidades

explicitadas no Estatuto da entidade significa uma falta de clareza ou de

objetividade onde se quer chegar.

Embora não esteja registrada no Estatuto o Projeto Político da

entidade, várias associadas e participantes afirmar que é "promover a libertação

da mulher". Percebemos na explicitação deste Projeto uma imprecisão do tipo de

libertação a ser conquistada, uma vez que não foram apontados elementos que

nos permitissem qualifica-la.

De acordo com registros da Associação e com os relatos das

fundadoras, o movimento “surgiu com o propósito de organizar as mulheres na

luta por seus direitos e conquista de sua cidadania, e promover o resgate de sua

dignidade e ampliação dos espaços de participação das mulheres na sociedade17”.

A partir dos dados coletados foi possível identificar pelo menos três

elementos centrais que propiciaram a emergência do Mulheres em Movimento na

periferia da cidade de Fortaleza: 1) a conjuntura política do país; 2) a percepção

crítica da violência contra a mulher por parte de suas fundadoras; e 3) a realização

da Campanha da Fraternidade – CF, da Conferência Nacional dos Bispos do

Brasil - CNBB, do ano de 1987.

17 Este objetivo está explicitado em um dos projetos elaborados pela Associação em parceria com a Cooperativa Interdisciplinar de Capacitação e Assessoria Ltda –

Casa Lilás: “Mulheres em movimento: na construção de um novo tempo”.

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A organização do movimento nasceu a partir da ação de sujeitos que só

podem ser compreendidos dentro de uma conjuntura. Mas que conjuntura política

era aquela? No país, a conjuntura da década de 1980, marcada pelo forte

combate à ditadura militar, pela abertura do processo político e instalação da

denominada Nova República gerou um campo fértil para a mobilização em torno

da construção de uma sociedade mais democrática e justa.

Na periferia de Fortaleza os grandes sujeitos desse processo foram os

Movimentos Sociais Urbanos – MSUs, apoiados pelos partidos políticos e pela

Igreja Católica18. Se na segunda metade daquela década houve um processo de

institucionalização dos MSUs, que passaram a estabelecer uma relação mais

estreita com o Estado, este momento também propiciou a emergência de novas

forças sociais que instauraram “uma nova racionalidade social: a de que o povo,

os cidadãos, os moradores, as pessoas ou qualquer outra noção ou categoria que

se empregue, têm o direito de participar das questões que lhes dizem

respeito”.(GOHN, 1994, 98). Dentro desses movimentos, homens e mulheres

lutavam por moradia, saneamento, trabalho e renda, saúde, ainda sem uma

atenção às relações de gênero.

A relevância do caldo conjuntural da década de 1980 para o início da

organização daquelas mulheres é uma consideração nossa não sendo identificada

em momento algum na fala das nossas entrevistadas ao relatarem o início do

movimento. Esse silêncio diante do contexto político maior e o destaque para as

expressões do cotidiano nesse histórico da associação vem confirmar aquilo que

Souza-Lobo denominou de movimentos de mulheres. Diferentemente dos

movimentos feministas que possuem um projeto político mais amplo de

transformações da sociedade, inclusive o desmonte dos sistemas patriarcais. Isso

não significa dizer que estes não possam contribuir na desestabilização dos

18 A presença da Igreja foi mais intensa durante a década de 1970, mas mesmo com uma menor expressão ela continuava a apoiar os MSUs na cidade de

Fortaleza.

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modelos e das relações sociais marcadas predominantemente pela desigualdade

seja ela de gênero, classe, etnia, geração...

Falemos agora do segundo elemento. A percepção crítica dos casos

freqüentes de violência doméstica ocorridos com as mulheres do Conjunto

Palmeiras foi determinante na organização específica daquelas mulheres. Os dois

depoimentos abaixo expressam isso claramente:

“...essa associação das mulheres em movimento foi criada em 1987... foi criado um movimento de mulheres por causa da violência que existia era muito grande, maior do que ainda existe hoje aqui.” “O movimento de mulheres, inicialmente, começou a partir de que muitas mulheres sofreram violência, hoje muitas mulheres ainda sofrem violência, mais assim violências extremas de apanhar do marido, por exemplo... o motivo maior foi a indignação com os constantes casos de violência doméstica e sexual ocorridos com as mulheres no bairro Conjunto Palmeiras”

A segunda fala pertence a uma das suas fundadoras, até hoje atuante

na AMM. Observemos neste depoimento que o que gerou a organização das

mulheres não foram em si os casos de violência, mas a forma como as mulheres

passaram a percebê-la. Algumas dessas mulheres passavam a estabelecer uma

nova relação consigo mesmo, com o corpo machucado, com o seu agressor.

Movidas pela intolerância, as mulheres passaram a buscar e a imprimir na esfera

pública a partilha e o enfrentamento daquela realidade comum. Diante dos casos

de violência que chegavam até aquele movimento, ainda em formação, as

mulheres adotaram estratégias de ação voltadas para a denúncia e para o apoio

das mulheres violentadas.

Negando a dominação e a violência como manifestação que se

expressa apenas do ponto de vista de quem é dominado/a ou violentado/a,

destacamos o seu caráter relacional como forma de apreendermos os aspectos

contraditórios da realidade. Optamos por esta perspectiva por reconhecermos em

cada uma das pessoas vitimizadas um sujeito potencial capaz de interagir com o

outro sujeito (dominador) numa perspectiva de alterar a correlação de forças

existente. Uma alteração que não signifique uma mera inversão de poder, mas

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que redefina substancialmente os princípios norteadores dessa relação que ora se

expressa de forma desigual.

Percebemos aqui que a situação particular de cada uma das mulheres

violentadas dentro do espaço que se configurou como privado – a família –

impulsionou-as a romperem com os seus limites, passando a atribuir um caráter

político para as questões ali enfrentadas bem como construindo alternativas para

o enfrentamento do problema, ou seja, passando a criar, independente da

consciência que tinham disso, as bases para a ampliação e reconstrução da

esfera pública, neste caso pensando no bem comum, especialmente no que afeta

diretamente a vida das mulheres.

Aquelas que assumiram inicialmente a liderança do Mulheres em

Movimento traziam uma dupla intencionalidade: a de buscar apoio para si própria

e a de prestar apoio a outras mulheres, representando “ao mesmo tempo uma luta

pela individualidade e uma construção de identidade coletiva”. (ROSSI-DORIA,

apud Camurça,2001, 138), como podemos observar no depoimento abaixo que

uma das entrevistadas faz sobre uma das fundadoras do movimento.

“quem fundou a associação foi a ..., por causa da violência, da violência dela, sofria e fundou pra ter o apoio das mulheres e pra apoiar aquelas mulheres que sofrem na sociedade, no trabalho, em casa, às vezes financeiramente, na família quando perde a mãe que o pai mata...”

O que podemos observar é que no processo de auto-consciência de

sua condição humana as mulheres vão percebendo as outras mulheres como

semelhantes, ampliando assim as possibilidades de organização, da noção do

bem comum, a partir de ideais e práticas solidárias. Percebemos no cotidiano da

AMM, na vivência e falas das mulheres sinais evidentes de práticas solidárias,

estas já bastante experimentadas por elas na vida doméstica com as mulheres e

os homens da família e da vizinhança, se expandindo a partir daí para uma

dimensão mais ampla dentro da comunidade e da cidade.

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Falemos agora do terceiro elemento que contribuiu para a geração da

AMM: a Campanha da Fraternidade de 1987. Naquele ano a CF, que é realizada

desde 1964, teve como tema A Fraternidade e o Menor, e como lema, Quem

acolhe o menor, a mim acolhe19. Segundo as fundadoras do movimento de

mulheres, ao final de cada Campanha da Fraternidade a comunidade costuma

desenvolver o denominado “gesto concreto”, ou seja, desenvolver uma ação

concreta em relação ao tema abordado. Destarte, naquele ano, foi proposta a

formação de um grupo de mulheres.

A temática da campanha não estava diretamente relacionada com a

questão da mulher ou com as relações de gênero. Ela estava relacionada com o

menor, ou seja, com aquele que se encontra numa situação desfavorecida, de

opressão. Neste caso as mulheres engajadas na fundação da AMM, vítimas de

violência identificavam-se com esse menor, reconhecendo-se enquanto sexo que

socialmente vem desenvolvendo uma experiência de vida secundária,

subordinada. Nesse contexto, essas mulheres passaram a denunciar suas

condições de vida enquanto pessoas do sexo feminino.

Em relação à influência da CF/87 na organização das mulheres no

Conjunto Palmeiras, convém fazermos algumas considerações que estão

dialeticamente imbricadas entre si. A CF/87 é o marco simbólico propulsor da

organização dessas mulheres, contudo está inserido num contexto mais amplo e

anterior que é a presença efetiva da Igreja Católica na periferia da cidade,

principalmente através das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. Sendo assim,

a influência da Campanha da Fraternidade só foi efetiva porque a igreja Católica já

ocupava uma centralidade na periferia de Fortaleza, orientando a vida de

mulheres e homens, seja na dimensão individual ou comunitária.

19 Os temas da Campanha da Fraternidade, inicialmente, contemplaram mais a vida interna da Igreja. A consciência sempre maior da realidade sócio-econômico-

política, marcada pela injustiça, pela exclusão e por índices sempre mais altos de miséria, fez escolher como temas da Campanha aspectos bem determinados desta

realidade em que a Fraternidade está ferida e cujo restabelecimento é compromisso urgente de fé. A partir do início dos encontros nacionais sobre CF, em 1971, a

escolha de seus temas vem tendo sempre mais ampla participação dos 16 regionais da CNBB que recolhem sugestões das Dioceses e estas das paróquias e

comunidades.(CNBB – Temas da CF no seu contexto histórico).

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A ampla base construída pela Igreja Católica nos bairros justificava-se

no seu expressivo apoio desde outras conjunturas, como por exemplo, no período

da ditadura militar. Não estamos falando genericamente da Igreja católica, mas

dos segmentos formados por religiosos/as e leigos/as adeptos/as da nascente

Igreja libertária, denominada Teologia da Libertação20. Para Irlys Barrreira (1992),

reconhecer a Igreja como força social, implica compreender a sua prática não só

como geradora de uma diretriz política, mas também como articuladora de idéias e

valores na constituição de uma nova concepção de mundo.

Diante do exposto, consideramos que essa influência não se restringe a

fomentar o nascimento desses movimentos, mas interfere diretamente na

efetividade deles, definindo a formação de valores de homens e mulheres, a

metodologia de organização e mobilização do trabalho comunitário, a formação de

lideranças... Isso significa dizer que até hoje, após 17 anos da sua criação ainda é

forte a influência da Igreja. Embora não exista nenhum vínculo formal da AMM

com a Igreja Católica é evidente a sua presença podendo ser identificada nos

registros - como relatórios e cartilhas - e nas atividades realizadas pela

Associação – como festas, reuniões e assembléias. Dentro dos subsídios e

durante as atividades é comum a utilização de orações, cantos, celebrações e

simbologias utilizadas na Igreja Católica.

A influência da Igreja é ambígua e contraditória. Por um lado ela

favoreceu amplo apoio para que o movimento nascesse e ampliasse a sua

atuação. Apoio este traduzido na cessão de espaço para realizar os encontros, na

contribuição financeira para aquisição da atual sede da entidade, na abertura de

espaço para a AMM na rádio comunitária Santos Dias, que funciona sob a direção

da Igreja. Esses são apenas alguns exemplos da sua influência. Porém

indagamos até que ponto este apoio limita o trabalho da AMM.

20 O princípio básico da Teologia da Libertação é “através de sua opção preferencial pelos pobres e engajamento nas lutas contra as variadas formas de opressão,

desencadear um processo histórico de libertação dos povos latino-americanos”. SHERER-WARREN, Ilse. Rede de Movimentos Sociais. São Paulo: Loyola, 1993.

p.33.

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85

Longe de uma suposta neutralidade, essa inter-relação do movimento

com a Igreja insere-se numa compreensão de mundo e de vida pautada em

princípios bíblicos e na própria estrutura da Igreja definindo sobremaneira como a

AMM se organiza e as bandeiras por ela levantadas. A rígida e sexista hierarquia

da Igreja Católica, que atribui aos homens privilégios e o exercício da autoridade

acaba por reproduzir e fortalecer um modelo de sociedade onde as relações de

gênero são substancialmente desiguais. Sendo assim compreendemos que essa

influência da Igreja ao mesmo tempo em que propiciou a sua existência e

organização, também veio limitar o campo de atuação da AMM.

Mesmo não sendo objeto da presente pesquisa percebemos que as

mulheres tratam em suas reuniões e estudos de “assuntos proibidos” dentro da

igreja como aborto, contracepção e homossexualidade. Durante as entrevistas

nenhuma delas se reportou ás duas primeiras temáticas e apenas uma se

reportou à questão da homossexualidade ao expressar a sua noção sobre gênero.

Na pesquisa de campo percebemos que a associação tem uma grande

referência na Bíblia, embora exercitem uma certa crítica a alguns dos seus

trechos. No material pesquisado encontramos registro de Estudo Bíblico na Ótica

da Mulher. Nesses estudos elas refletem sobre a condição da mulher na bíblia, ora

confirmando, ora criticando, ora questionando, como pode ser observado abaixo:

“Alguns textos falam da igualdade entre mulheres e homens (p.ex. Gl 3,28). Muitos textos, porém falam da submissão das mulheres em relação aos homens (p.ex. Cl 3,18-19) e, assim, a religião é usada para justificar a submissão e opressão de mulheres e o poder dos homens. Mas será que nós podemos aceitar a submissão e opressão de mulheres como vontade de Deus?”

Em um dos relatórios as mulheres diante da constatação de

incoerências da Bíblia com o projeto de Deus fazem a seguinte recomendação:

Para ler a Bíblia numa visão que busca igualdade entre mulheres e homens (como também entre pobres e ricos e entre as pessoas de todas as raças!), é importante fazermos uma leitura de suspeita. Isso significa não se contentar com aquilo que os textos bíblicos dizem, mas fazer perguntas que vão além. Algumas dessas perguntas: - História das mulheres: como ela é contada? Aparecem experiências feitas por mulheres? Como aparecem? - Ausência de mulheres: Por que estão

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ausentes? – Silêncio de mulheres: Por que estão em silêncio? Quem as silenciou? – Que situação real pode estar por trás da narração? Que posição é que o texto toma nessa situação?

Essa crítica e esses questionamentos, porém não chegam a significar

uma ruptura com a doutrina nela trazida. Percebemos que as mulheres buscam

conjugar a religiosidade com sua atuação política com a religiosidade, mesmo que

em alguns momentos questionem os limites da religião e da Bíblia quando esta

justifica as desigualdades entre homens e mulheres.

Passemos para a difusão e consolidação do seu trabalho da AMM. Em

principio, as reuniões eram localizadas no próprio bairro do Conjunto Palmeiras e

consistiam em identificar os casos de violência contra as mulheres, acolher as

vítimas, proporcionar a troca de experiências a partir dos depoimentos das

mulheres vitimadas e a busca de alternativas para o enfrentamento daquele

fenômeno social.

Embora a preocupação com a violência contra a mulher tenha ocupado

um lugar de destaque no início da organização, nunca o movimento atuou

diretamente na questão. De acordo com as associadas havia sim uma

preocupação em fazer denúncias na delegacia de polícia, em retirar as vítimas de

casa e em enfrentar estrategicamente o conflito gerado no lar com seus

companheiros devido a própria participação das mulheres no movimento.

Nessa conflitante e proativa experiência de buscar caminhos para o

enfrentamento dos problemas vividos pelas mulheres na comunidade, que não era

só a violência, mas o desemprego, as condições precárias de moradia, a falta de

organização política, a fome, entre outros, elas foram construindo alternativas que

pudessem promover as mulheres enquanto cidadãs e sujeitos da dinâmica social.

O caminho escolhido para o enfrentamento desse quadro de

desigualdade das mulheres foi a formação profissional nas áreas de massoterapia,

alfabetização de jovens e adultos, farmácia viva, corte e costura, panificação, etc.

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A partir desta formação profissionalizante as mulheres da AMM acreditam estarem

contribuindo para o processo de emancipação das mulheres, empoderando-as

para estabelecer uma relação mais igualitárias com os homens.

Nos primeiros 10 anos de existência, o Movimento se expandiu

ultrapassando os limites do Conjunto Palmeiras, passando a conquistar novos

espaços e a aglutinar novas mulheres com o objetivo de fortalecer a luta e atingir

um maior número de mulheres. Aos poucos, mulheres de outras comunidades

passaram a militar naquele movimento. Além do Conjunto Palmeiras elas

habitavam e habitam os bairros adjacentes.

Os registros das associadas da AMM revelam que elas moram

predominantemente na periferia de Fortaleza. Esta não é uma informação

secundária. Mais do que uma localização espacial, esta especificação indica uma

população que partilha de condições precárias de vida em relação às diversas

políticas públicas. Isso significa dizer que as mulheres da periferia são diferentes,

e fundamentalmente desiguais em relação às mulheres da classe média e alta,

organizadas ou não. Desigualdade revelada na concentração de riqueza nas mãos

de pouca e uma ampla distribuição da pobreza para a maioria da população,

atingindo homens e mulheres, mas em maior numero, estas últimas.

O conjunto de mulheres da Associação Mulheres em Movimento é

predominante das camadas mais empobrecidas da população de Fortaleza. Essas

mulheres juntamente com suas famílias residem em bairros periféricos da cidade

enfrentando cotidianamente problemas decorrentes do crescimento desordenado

e desmesurado da capital, principalmente em decorrência dos fluxos migratórios

impulsionados pelas secas e ausência de uma cultura de convivência com o semi-

árido; a ausência ou precariedade de políticas públicas para os bairros periféricos:

transporte, lazer, habitação, segurança, saúde, trabalho, saneamento básico,

educação; a falta de uma política urbana associada à incipiente experiência de

planejar o espaço urbano é outro fator decisivo.

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Para José Borzacchiello da Silva o “crescimento da população de

Fortaleza tem sido sempre superior ao crescimento da população do Estado”

(2002, 220). A diferença desse crescimento pode ser conferido nos seguintes

dados: nos anos 1970 a população do Ceará cresceu 34,5%, enquanto que no

mesmo período o crescimento da população fortalezense foi de 66,6%; Nos anos

80, a população cearense cresceu 19,7% e a de Fortaleza 62,5%; e no ano de

1996, o crescimento da população do Ceará foi de 6,96% , enquanto que a de

Fortaleza foi de 11,55%. 4.491.59021

Esse crescimento demográfico interfere diretamente no processo de

ocupação do espaço urbano, redefinindo desde a paisagem urbana às relações

sociais, marcadamente desiguais. Considerando a periferia da cidade, quase

sempre ocupada pelas camadas empobrecidas da população podemos identificar

a presença de conjuntos habitacionais, de casas construídas em regime de

mutirão e de favelas. Essa reconstrução do espaço urbano vem afetando milhares

de famílias e em particular a vida das mulheres que na ausência de políticas

públicas passam a construir alternativas individuais ou coletivas para satisfação de

suas necessidades.

Nesses espaços de moradia de um modo geral as pessoas participam

da vida na comunidade como forma de garantir a produção e a reprodução da vida

humana. Voltando nosso olhar paras as mulheres da periferia da cidade vamos

identificar algumas que mantém uma relação diferenciada com a experiência de

vida e a partir da crítica, da reflexão e da ação, passando a dar um novo

significado para sua existência numa perspectiva de se constituir enquanto sujeito.

Observemos aqui que nem todas as mulheres são qualificadas de sujeitos, pois

para sê-lo exige mais do que movimento e ação, mas, sobretudo “demanda a

atividade de representação e elaboração de sentidos e significados”. Sujeito aqui

21

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compreendido como “não apenas o que age, mas também aquele que elabora

sobre o seu estado e sua ação” (GOUVEIA, apud CAMURÇA, 2001, 136).

Identificando neste conceito a autonomia como condição sine qua non

Camurça preconiza:

“Essa concepção de sujeito é operacionalmente útil para compreender, com clareza, a impossibilidade e a inadequação de adotar o conceito de sujeito para referir todas as mulheres. As mulheres que estão fora do movimento de mulheres não formularam um projeto próprio que seja expressão de sua autonomia frente à realidade social genérica e não possuem uma identidade coletiva, de movimento de mulheres ou de movimento feminista”.

Concordamos com a primeira parte desta premissa que fala da

impossibilidade de qualificar todas as mulheres como sujeito. Isso não implica em

dizer que somente algumas mulheres são capazes de se constituírem enquanto

sujeitos. Porém, somos levadas a contestar a segunda parte da afirmação uma

vez que a organização de mulheres é mais um dos canais para a construção deste

sujeito. Mesmo reconhecendo a diferença essencial entre o movimento feminista

ou movimento de mulheres compreendemos que não podemos lhe atribuir

exclusivamente a tarefa de contribuir na formação de mulheres enquanto sujeitos.

Queremos reconhecer aqui a importância de outros espaços tanto públicos como,

por exemplo, a associação de moradores, o grupo de jovens, as Comunidades

Eclesiais de Base, o grupo cultural, como nos espaços privado, a exemplo do

espaço doméstico, na construção de sujeitos políticos conscientes de sua

condição no mundo e da sua responsabilidade na sociedade.

Ao longo da trajetória da AMM podemos identificar uma dimensão

educativa em todo trabalho desenvolvido que tem propiciado um processo político-

pedagógico marcado eminentemente pela troca de saberes entre as associadas,

as mulheres da comunidade e as integrantes de entidades parceiras, que

influenciam nas reflexões e na dinâmica da associação.

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No material analisado identificamos diversas temáticas que são alvo de

reflexão das mulheres: violência, saúde, direitos da mulher, política, sexualidade,

educação, trabalho, cidadania, auto-estima, afetividade, relações humanas. Entre

essas temáticas podemos localizar algumas que convencionalmente não são

consideradas políticas, como auto-estima, sexualidade e afetividade e assuntos de

cunho doméstico, recuperando seu caráter político. As mulheres trazem para a

esfera pública assuntos que histórica e culturalmente se situaram no cotidiano da

esfera e do espaço privado.

Diante desta constatação, uma indagação foi sendo construída: Qual o

significado do fato das mulheres trazerem para a esfera pública assuntos

culturalmente considerados de ordem privada, apolítica e feminina? Isso indica

que as mulheres têm tomado a esfera pública como mera extensão da vida

privada ou isso representa uma quebra na rígida cisão entre o público e privado

que foi construída a partir da modernidade?

No final dos anos 90, mais precisamente em 1997, as mulheres

resolveram institucionalizar o movimento, dando origem, no dia 08/03 daquele

ano, a Associação Mulheres em Movimento. De acordo com a declaração das

militantes o motivo maior da institucionalização foi a necessidade de ter acesso a

alguns canais de financiamento de projetos, que garantissem a obtenção de

recursos financeiros. Para elas, inicialmente isso não favoreceu a entrada dos

recursos, mas posteriormente a entidade pode firmar algumas parcerias

importantes para a garantia dos trabalhos realizados.

Atualmente a AMM possui cerca de 200 associadas - que são pessoas

do sexo feminino, maiores de 16 anos, regularmente inscrita na entidade) -

distribuídas em três categorias, também explícitas no Estatuto: as sócias

fundadoras – aquelas que participaram da formação da Associação; as sócias

contribuintes – juntamente com as fundadoras contribuem mensalmente para

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garantir o trabalho da Associação; e as sócias beneméritas – prestam serviços

relevantes à entidade.

As associadas têm a responsabilidade de contribuírem mensalmente

com uma taxa cuja importância é aprovada em Assembléia Geral. Atualmente esta

taxa é de R$ 1,00, sendo registrados muitos casos de inadimplência. Além das

sócias, outras mulheres que não tem vínculo formal com a entidade e alguns

homens, estes em menor quantidade, também participam da Associação. Aos

homens não é permitido o direito tornarem-se sócios daquela entidade.

Atualmente as participantes são oriundas predominantemente dos seguintes

bairros: Parque Santa Filomena, Parque Manueira, João Paulo II, Jangurussu,

Dendê, Conjunto Palmeiras, jabuti, Palmeiras II e São Cristóvão. Todas as

comunidades, com exceção do Dendê estão situadas nas adjacências do

Conjunto Palmeiras.

A estrutura organizacional da AMM é composta pela Assembléia Geral,

Diretoria e Conselho Fiscal. Cada uma dessas instâncias possui competências

específicas. Em relação à Assembléia Geral ela pode ser de duas naturezas: 1)

ordinária – ocorre uma vez por ano cuja finalidade é apreciar o relatório anual da

Diretoria e discutir e homologar as contas e o balanço aprovado pelo Conselho

Fiscal; e 2) extraordinária – convocada de acordo com a necessidade da

Associação sem tempo ou periodicidade definida.

Antes de 1997 o grupo possuía uma coordenação sem uma

composição e um tempo de mandado definido. A partir da sua institucionalização a

diretoria passou a exercer um mandato de dois anos e ter uma estrutura própria.

Segundo relato das mulheres, a institucionalização da entidade vem permitindo

uma maior formação e renovação das lideranças. Em fevereiro de 2003 foi eleita

em Assembléia a 4ª diretoria da Associação. Esta Diretoria é composta por

Coordenadora, vice-coordenadora, 1ª e 2ª secretárias e 1ª e 2ª tesoureiras. A

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diretoria deve se reunir pelo menos uma vez por mês, mas nem sempre isso tem

sido possível.

O Conselho Fiscal é composto por três membros titulares e três

suplentes. O Conselho Fiscal também é definido em Assembléia Geral e seu

mandado coincide com o mandato da Diretoria. O Conselho deve reunir-se

ordinariamente uma vez por mês.

A AMM realiza encontros com as mulheres e alguns homens todo

primeiro domingo de cada mês, à tarde. Durante anos, as reuniões e demais

atividades do movimento foram realizadas principalmente na conhecida palhoça,

ao lado da Igreja Católica, no Conjunto Palmeiras. Mas em 2002, a AMM

conquistou sua sede própria no bairro Messejana, com o apoio da Igreja, em

particular do Pe. Chico Mozart, que segundo as militantes, ao longo dessa

caminhada tem contribuído significativamente com a organização das mulheres.

Antes da aquisição da sede, em meados de 2002, esses encontros

ocorriam na palhoça da Igreja do Conjunto Palmeiras. Durante o ano de 2003 foi

adotada a sistemática de realizar encontros itinerantes pelas comunidades onde a

associação desenvolve o seu trabalho, mas agora eles estão acontecendo na

própria sede. Segundo as entrevistadas é uma forma de valorizar e de dinamizar o

espaço. Estes encontros mensais contam com a predominante participação de

mulheres, mas também de alguns homens, quase sempre companheiros das

militantes. De um modo geral os encontros constam de momentos de acolhida,

apresentação dos/das participantes, informes, debates, tomada de decisões,

encaminhamentos, reflexões, brincadeiras, vivências corporais e lanche.

Além desses encontros gerais realizados mensalmente, em cada

comunidade as mulheres realizam encontros sistemáticos, na maioria das vezes

semanais. Esses encontros constam de informes, estudos, vivências corporais e

ainda a partilha e encaminhamentos relacionados aos assuntos específicos

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ligados a cada grupo: farmácia viva, massoterapia, corte e costura, panificação,

alfabetização de adultos, reciclagem de papel...

Esses grupos foram organizados nas comunidades a partir de

momentos de formação profissionalizante. Com os cursos profissionalizantes,

como é o caso da Massoterapia e corte e costura, com duração de três meses

cada, as mulheres passam não só a desenvolver esse trabalho na comunidade,

como também passam a ministrá-lo para outras pessoas da comunidade. Os

cursos são realizados para as pessoas da comunidade mediante a contribuição

individual de R$ 5,00.

Em relação a massoterapia, a AMM ministra cursos para o público em

geral por um valor superior ao que é cobrado nas comunidades. Na sede da

Associação também existe uma estrutura apropriada para fazer atendimento à

comunidade de massagem terapêutica22.

Na visão das entrevistadas, um dos grandes desafios da associação

tem sido enfrentar o problema do analfabetismo de homens e mulheres na área

onde atuam. Observando o Estatuto da Entidade podemos identificar dois

caminhos para a superação desta dívida social: exigindo do poder público a

alfabetização de jovens e adultos e desenvolvendo um programa de alfabetização

nas comunidades. Em relação a este segundo caminho existe um trabalho de

formação com as educadoras, de construção/adoção de uma proposta

metodológica e da elaboração de material didático. Segundo elas, estes três

aspectos têm como princípio a realização de um processo pedagógico

contextualizado que respeite e valorize a realidade das/dos educandas/os.

Olhando para a dinâmica da AMM identificamos um cuidado especial

com a realização de vivências que propiciem a integração do grupo. Isso pode ser

identificado dentro das diversas atividades realizadas, a partir da forma como se 22 A sessão de massagem terapêutica que dura cerca de 50 minutos custa RS 10,00, sendo procuradas por homens e mulheres com problemas de coluna,

estresse, insônia, dores em geral, etc.

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cumprimentam, nas dinâmicas grupais, na valorização das falas e da participação

de cada uma, de acordo com seu potencial. Ao ler um relatório de uma das suas

atividades não é de se estranhar quando encontramos a seguinte descrição:

“Terminamos com os informes, saboreando a deliciosa torta de abacaxi feita pela

D. Eunice”. (04/06/2000), ou ainda, “Finalizamos com uma pequena celebração

em homenagem aos aniversariantes do mês de setembro”. (14/09/97). Essa

integração também pode ser identificada na promoção de atividades

especificamente com este objetivo, como confraternizações, passeios, bingos,

gincanas.

Essa percepção nos fez voltar à atenção novamente para a experiência

da pólis grega na afirmação de Ribeiro de que a política era provavelmente mais

divertida, até porque era bem próxima da vida cotidiana (2001, 12). Para ele essa

forma de fazer política não condiz com a modernidade onde existe uma tendência

dominante de acentuar a sua seriedade. Nossa breve presença na AMM

percebemos a existência não só da dimensão da seriedade, mas também a da

descontração, alegria e prazer. Essa é uma das formas não dominantes de

organização política inserida dentro de uma sociedade complexa, heterogênea e

que aparentemente não dispõe de espaço para experiências deste tipo.

Outro aspecto peculiar identificado é o trabalho corporal desenvolvido

no grupo estando presente em todas as atividades realizadas. Como na

associação existe um grupo de massoterapeutas com freqüência, nas reuniões e

encontros, elas fazem espontaneamente massagens uma nas outras como forma

de aliviar o cansaço ou algum incômodo físico e mental, contribuindo para o bem-

estar das mulheres. Às vezes essas vivências são dirigidas no início ou final das

atividades. Nestes momentos são praticadas vivências de automassagem,

alongamento, relaxamento... De acordo com o relato das mulheres, isso permite

que estas mulheres se toquem, reconhecendo e percebendo o seu corpo,

ampliando assim a consciência que tem de si e do mundo. A partir dessa vivência

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pode proporcionar às companheiras e a si mesma momentos de bem-estar e

satisfação.

Na busca de encontrar significados para esta experiência

reconhecemos que na prática elas experimentam a autoconsciência da integração

entre corpo e mente, negando a suposta cisão entre esses dois elementos e

buscando uma atuação mais integrada.

A presença da temática política é uma constante dentro da Associação

Mulheres em Movimento, fato que pode ser conferido em várias cartilhas, no

planejamento, nos relatórios dos encontros da entidade e nos discursos das

mulheres. Indicamos abaixo o conceito de política atribuído em uma das cartilhas

utilizadas na alfabetização de jovens e adultos na tentativa de apreender o seu

significado, estabelecendo um diálogo com as abordagens iniciais deste trabalho.

Observemos o que nos diz o trecho de uma das cartilhas:

“Tudo o que se faz é política. A política do nosso país vai mal, vivemos em um país rico, mas mal administrado, onde uns tem demais e outros vivem na miséria. A política é o meio que o povo possui para se organizar e buscar soluções para seus problemas. Porém, muitos confundem a política com a politicagem. Política não é só eleger candidatos para ocupar cargos, e sim, a política é tudo aquilo que é feito em prol das pessoas e do bem comum”. (Cartilha Nunca é tarde para aprender a ler, 1988, 8)

Percebemos que a abordagem acima traz alguns elementos que

merecem destaque: a primeira situação apontada nesta concepção é a intrínseca

relação da política com a base material da nossa sociedade marcadamente

desigual. Fala da injusta distribuição de riqueza no país, embora na justificativa

limite-se a uma questão de má administração.

Outro elemento relevante é de que existe uma compreensão de que a

política é uma unidade que compreende duas dimensões: uma conceitual e uma

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prática. A conceitual aproxima-se de uma visão positiva, utópica, que assume o

caráter norteador das práticas de homens e mulheres. E uma dimensão prática

que só poder ser assim qualificada se relacionada à utópica. Os sinais dessa

dimensão prática estão expressa na afirmação de que a política do nosso país vai

mal e de que a política não pode ser compreendida como politicagem.

A concepção acima citada traz a idéia de que tudo o que se faz é

política, permitindo aqui uma compreensão da política não enquanto uma questão

específica e fechada, mas uma questão ampla que perpassa todas as dimensões

da vida humana.

O outro elemento observado é a noção de bem comum na concepção

de política, rompendo qualquer perspectiva de privatização da res publica. Ao

dizerem que política é tudo aquilo feito em prol das pessoas e do bem comum aqui

não foi indicado uma esfera e um espaço próprio para se fazer política. Como

forma de ampliarmos a interpretação dos significados apreendidos no momento

inicial da pesquisa definimos que o ponto de partida da nossa entrevista seria a

concepção de política das mulheres.

3.2 A voz das mulheres em movimento

A voz das mulheres entrevistadas na nossa pesquisa se constituíram

em elemento central da nossa análise. Passemos então para as concepções

apresentadas pelas mulheres através de suas falas e da nossa análise na

perspectiva de elucidar o nosso objeto de estudo.

Abordando inicialmente a questão conceitual de gênero perguntarmos a

nossas entrevistadas qual a sua compreensão que elas têm sobre esta categoria,

e logo em seguida, indagamos como elas percebem as relações de gênero na

sociedade. Segue abaixo suas concepções das entrevistadas, seguidas da nossa

análise.

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“Mas que tipo de gênero você tá falando? Tem o gênero da, como é que diz? Da língua portuguesa. O gênero que você fala é a diferença entre homem e mulher? O que eu me lembro é a diferença entre homem e mulher”. (depoimento e) “Masculino e feminino, eu entendo assim”. (depoimento c)

Demonstrando incerteza em sua resposta, em princípio a primeira

entrevistada fez a relação com a Língua Portuguesa, apresentando logo em

seguida uma referência pontual e objetiva do termo que é a diferença entre

homem e mulher. A segunda falou de masculino e feminino. Embora as

entrevistadas tenham fornecido poucos elementos para fundamentar suas

concepções, quando passaram a falar sobre como percebem as relações de

gênero na sociedade nos proporcionaram mais elementos para nossa análise.

Vejamos o que nos diz a primeira:

“O que eu percebo é que o homem nunca tá preparado pra aceitar uma mulher, uma como é que se diz? Assim, por exemplo: na câmara ele nunca aceita uma mulher como deputada como vereadora. Elas tão ali, mas não é por vontade deles. Tem a diferença de gênero entre a mulher e o homem, o homem tá mais agressivo, eu acho que ele hoje é mais agressivo, ele é [...] dependendo do nível social, porque tem certos homem que acham que a mulher tem que viver pra lavar, passar e cozinhar e cuidar dos filhos. E os tempos que tão passando e eles não freqüentam a igreja, não tem um nível social que ele possa se integrar e muitos nem querem, acham que aquilo lá é besteira, eu não vou participar disso, pra que? Eu não sou nem besta... aí fica dizendo coisas, eu acho que seria isso”. (depoimento e)

Nas relações de gênero a entrevistada percebe que os homens nunca

estão preparados para aceitarem que as mulheres ocupem e se manifestem em

alguns espaços que socialmente têm se constituído por excelência para a vivência

política e para o exercício do macro poder. Ela citou o caso de dois tipos de

parlamentares que ocupam o legislativo, instância privilegiada da tomada de

decisões políticas de um município, estado ou país. Sua fala traz um princípio

fundamental que é do fato da inserção das mulheres nestas instâncias não estar

atrelada ao consentimento de homens, fortalecendo a idéia de conquista de

espaços.

Outro aspecto percebido pela entrevistada é o de que atualmente os

homens têm manifestado um comportamento mais agressivo, relacionando isso

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tanto ao nível social, embora não tenha explicitado melhor como se estabelece

esta relação. Na primeira justificativa a sua fala nos remete a idéia de que a

agressividade masculina se manifesta de acordo com a classe social. O que os

estudos sobre a violência contra a mulher nos mostra é que as determinações

culturais, montadas numa lógica androcêntrica, são um dos seus maiores fatores.

Outra justificativa dada por ela é o comportamento das mulheres quando tomam

atitudes que não coincidem com os papéis socialmente pré-definidos e

naturalizados para elas, quase sempre situados na esfera doméstica. Para

concluir sua percepção ela ao justificar a agressividade masculina fala do

desinteresse dos homens de freqüentarem a Igreja. Essa afirmativa reflete o

estreito vínculo da associação com a religião, principalmente a Católica.

Esse depoimento faz uma comparação entre homens e mulheres, sobre

o papel por eles e elas exercido destacando o que há de diferente entre esses

sujeitos. O final de sua fala onde relaciona o comportamento ou o papel exercido

pelos homens com o seu engajamento na igreja, sugerindo que a sua inserção

nesta organização é definidora de um comportamento mais igulalitário entre

mulheres e homens.

A expressão de como a segunda entrevistada percebe as relações de

gênero na atualidade também forneceu mais elementos para ampliarmos a

compreensão da sua visão de mundo em relação às questões de gênero:

“Na questão da mulher, ainda existe uma pequena discriminação, que a mulher ainda, apesar de todos os avanços que ela teve, ainda acontece os preconceitos. Preconceito com o gênero feminino, a questão do homem, o homem ainda, agora visa a mulher como objeto, ultimamente. Questão de preconceito, desvalorização mesmo, que a mulher agora [...] não sendo valorizada por ela ser e sim por ela ter, tem que tá magra, pelo um padrão que exigiram que a mulher tem que ser. Assim da própria da sociedade masculina e também da mídia. Aí por isso que apesar dela ter ganhado muito espaço, ela ficou muito sobrecarregada, por que o homem, do gênero masculino, não ta avançando junto com a mulher. Ele ainda, tem muito a avançar e por isso que aumentou, eu acho, a violência. Por que a mulher ta se expandindo e o homem não aceita essa expansão”. (depoimento c)

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Neste caso, a entrevistada começa centrando o foco na situação da

mulher sinalizando que mesmo com os avanços alcançados por elas, a sua

situação ainda é desfavorável devido o preconceito e discriminação que estas

enfrentam. Ao longo de sua fala a entrevistada utiliza o termo gênero masculino e

gênero feminino para designar homens e mulheres com o mesmo significado da

palavra sexo dando margem à compreensão de que gênero possui uma dimensão

relacional, que prescinde da existência do sexo oposto e, na concepção aqui

adotada, de pessoas do mesmo sexo, para que ela se efetive.

Mesmo com essa confusão conceitual, na sua justificativa, quando

passa a falar da relação entre homens e mulheres identificamos aspectos

significativos que são reveladores das relações de gênero na nossa sociedade. A

reflexão apresentada pela entrevistada nos provoca a dedicarmos mais atenção

em análise reducionistas que não contemplam os aspectos contraditórios que

envolvem a condição da mulher nos diversos grupos e organizações sociais. É

comum nos depararmos com concepções que reconhecem avanços na trajetória

das mulheres sem que haja uma mediação outros aspectos relacionados a estes

avanços que implicam em desvantagens pra esses sujeitos. Nem sempre as

conquistas alcançadas podem ser traduzidas em privilégios para homens e

mulheres. Podemos ilustrar com o fato das mulheres começarem a romper com os

limites domésticos e passarem a ocupar outros espaços (profissionais, políticos,

culturais, religiosos), sem que suas responsabilidades no lar deixem de existir.

Essa “expansão” , como bem descreveu nossa entrevistada, não tem

contribuído preponderantemente para redefinir os denominados “papéis” de

homens e mulheres sem gestar uma dinâmica capaz de desconstruir as relações

desiguais de gênero. Sem essa desconstrução que possa gerar outros princípios

das relações sociais como o respeito à diversidade, a igualdade e a democracia,

as mulheres têm assumido cada vez mais responsabilidades sociais ficando

sobrecarregadas. Além dessa sobrecarga a relação entre mulheres e homens

pode se tornar ou acirrar os conflitos já existentes em decorrência destes últimos

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não aceitarem uma postura das mulheres diferenciada daquilo que se

convencionou como inerente ao sexo feminino, passando a violentá-las física e/ou

emocionalmente23. Passemos adiante.

“Gênero é aquela pessoa que quando há grande reunião do grupão, que é sempre no fim do ano então, vem os pais e vem os filhos e a gente procura engajar eles com a gente [...] se sente bem toda vida que vai pro grupão, a gente procura de toda forma [...] tentando engajar os filhos pra saber o que é uma reunião de mulheres”. (depoimento g)

Na concepção da entrevistada gênero compreende o engajamento de

de pessoas que não fazem parte da Associação, como filhos/as e

companheiros/as, vem participar de momentos de confraternização da entidade,

principalmente no final do ano. Destoando das diversas concepções formuladas a

partir dos estudos realizados, a entrevistada revela ter uma compreensão

equivocada do termo que não possui fundamentação alguma com o conceito

adotado nesta pesquisa. Optamos por explicitar aqui concepções como esta, pois

deixá-la de fora seria mascarar a realidade. Verifiquemos a percepção que ela traz

da realidade no que se refere às relações de gênero, como forma de buscarmos

mais significados na argumentação anterior.

“Tão triste porque o pai não quer compreender o filho e a cabeça do filho é diferente, e ele não se molda ao filho porque, porque hoje nós temos que se moldar ao filho e não o filho a você. Antigamente a gente tinha que se moldar ao pai tinha que obedecer ele em todos os sentidos e hoje é diferente nós temos que se moldar ao filho pra saber o que é que ele tá fazendo e trazer ele pra você aos poucos, ou seja, desde que ele nasceu. Se ele for rebelde, se ela for rebelde, a mãe abre a mão e o pai e dá só comida, roupa lavada, estudo. Do mesmo jeito se ele trai ela, mas se suportam dentro de casa. Morte, pancadaria, muita pancadaria entre homem e mulher, a rua toda sabe o que houve dentro de madrugada, sai correndo porque não tem diálogo, não tem amor, perdeu-se o amor, perdeu-se o respeito de um pelo outro, perdeu-se a felicidade que existia e os desempregos interferem muito porque é um pai de família, e como é que ele vai dar de comer pra filha. Exatamente e já vem lá de atrás, de um pai problemático e uma mãe, e via a vida acontecer toda aqui e quis descontar na própria esposa devido a bebida”. (depoimento e)

Diante da percepção apontada acima podemos concluir que relações

de gênero e de geração são tomadas aqui como questões coincidentes. Mesmo

que ocorra uma interface entre uma e outra, cada uma delas não pode ser

substituída e tomada como a outra.Tanto na primeira quanto na segunda

23 Para um maior aprofundamento da violência não-física contra a mulher, indicamos a seguinte obra: MILLER, Mary Susan. Feridas Invisíveis: abuso não-físico

contra as mulheres. São Paulo: Summus, 1999.

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justificativa foram citados o comportamento e o relacionamento entre as mães, os

pais e os/as filhos/as, mas, além disso, fala também da relação entre homens e

mulheres dentro da vida conjugal. Como a vida familiar se estabelece a partir da

relação de homens e mulheres, tomamos o depoimento da entrevistada para

identificar na sua fala a concepção trazida de gênero.

O que a fala da entrevistada revela é um caráter político na dinâmica

doméstica, permeada por relações de poder, que neste caso se traduzem em

relações conflituosas diante da desestabilização do status quo dos sujeitos

envolvidos.

Na maioria das sociedades, desde as mais primitivas até a

contemporaneidade registra-se que coube e cabe às mulheres, geralmente mães,

o cuidado com as crianças e com os/as filhos/as, contudo quando chega na hora

de tomar as grandes decisões esta competência é dos homens, sejam eles pais,

avós, padrastos, tios. Cotejando a realidade de hoje e da antiguidade a

entrevistada fala da inversão valores e responsabilidades dentro da família. Se

antes competia ao pai “moldar” os/as filhas, hoje são estes/as últimas que moldam

o pai.

“Gênero é o conhecimento que a gente tem por homens e mulheres. A questão, a questão do gênero, muitas vezes nós fomos criadas, pelo menos eu não sabia o que era menstruação, quando se tornava mulher não sabia como, nem porquê, nem por onde era, não tinha nada dessa formação, e a questão do gênero, que eu acho, que é muito importante é reconhecer o corpo da gente, antigamente a gente não tinha essa formação do conhecer, hoje tem formação de gênero que a gente conhece o corpo, existe uma mudança, de criança a chegar a ser mulher e como também do homem, menino até chegar se tornar homem perfeito. É um conhecimento e, além disso, têm as doenças sexuais, transmissíveis, é uma forma também da gente conhecer e como se defender, que teve um certo período, um certo tempo atrás que ninguém conhecia, não sabia como se relacionar com isso aí, não sabia como se defender, hoje está tudo muito claro”. (depoimento h) “Gênero é... gênero pra mim é a questão de sexualidade, tem o gênero masculino, gênero feminino. Então, essa guerra de gênero é quando não tem esse, esse entrosamento, esse caminhar junto. Sendo diferentes, mas com os mesmos objetivos, mesmas idéias. Gênero pra mim é isso”. (depoimento f)

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Se no depoimento anterior houve uma coincidência entre gênero e

geração, aqui também o primeiro é coincide com sexo. A concepção apresentada

pela primeira entrevistada fala de ser homem e de ser mulher no campo do sexo e

da sexualidade a partir de uma comparação entre a realidade atual e antigamente.

Segundo ela, atualmente homens e mulheres têm mais oportunidade de conhecer

melhor o seu corpo desde criança até atingir a maturidade, ou seja, quando a

menina torna-se mulher e o menino, um homem perfeito, convivendo melhor com

a sua sexualidade. O conhecimento sinalizado pela entrevistada tem sido

propiciado exatamente através da realização de atividades de formação em

gênero.

Na segunda fala, da mesma forma gênero é confundido com

sexualidade e sexo, onde homens e mulheres são definidos aqui como sendo

pessoas do gênero masculino e gênero feminino de forma isoladamente sem

contemplar o que há de essencial na perspectiva de gênero que é a sua dimensão

relacional. Tomá-lo isoladamente seria falar de sexo. Ela fala ainda de guerra de

gênero assim como vulgarmente se fala em guerra de sexo, referindo-se às

situações em que homens e mulheres não conseguem caminhar juntos em busca

dos mesmos objetivos.

Estas compreensões foram construídas a pautadas em justificativas

biológicas a partir das alterações nos corpos das pessoas, sejam do sexo feminino

ou masculino. Essa visão de mundo é emblemática por negar o gênero enquanto

construção social. Esse princípio é essencial na fundamentação da armação de

possibilidades de efetivação de outro modelo de relações de gênero.

Quando a primeira entrevistada nos dá seu relato sobre como percebe

as relações de gênero na sociedade essa visão é fortalecida como pode ser

conferida abaixo:

“Está muito bem informada, hoje tá tudo muito bem informado. Tanto tem os meios de comunicação que informa, como os colégios, mas apesar dessa formação toda, a gente ver que nossos jovens parecem que não estão nem aí pra essa formação, o que tem de crianças grávidas, pelo

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menos do nosso bairro [...] uma meninazinha de 13, 14 anos grávida quer dizer isso não era pra acontecer, num mundo onde as pessoas estão bem informadas [...] Por quê? Porque não se previne. Não é porque é falta de informação, acho que é falta de consciência, não, não sei como, acho assim uma falta de amor a si próprio”. (depoimento h)

Com este depoimento fica evidente que a perspectiva de gênero é

apreendida de forma equivocada, sendo confundido com sexo, daí ela falar em

educação sexual, sexualidade e saúde reprodutiva. Foi destacada incisivamente a

situação da gravidez indesejada entre as adolescentes. Vejamos que só o sexo

feminino foi responsabilizado por não prevenir a gravidez. Esse assunto poderia

ter despertado para a entrevistada falar da dimensão relacional do gênero, uma

vez que pelos caminhos naturais é necessário haver um homem e uma mulher

para que a criança seja concebida.

Porém, implicitamente a entrevistada fala da dimensão social quando

indica um maior fluxo de informações, em relação às gerações passadas,

possibilitando alterações no comportamento das mulheres e na sua relação com o

próprio corpo. Gênero aqui também é compreendido recurso pedagógico

proporcionador de conhecimento na formação de homens e mulheres. Esse

enfoque não faz qualquer referência às relações sociais estabelecidas entre

homens e mulheres, entre mulheres e mulheres e entre homens e homens.

Vejamos o depoimento da segunda entrevistada:

“É essa questão que eu acho que ainda não está, na nossa sociedade, não está... bom, assim não está do jeito que é pra ser. Questão dos gêneros que é com mais igualdade, com mais é... com mais amor, com mais... essa questão eu acho que existe muita luta, muita guerra de gêneros. Assim é o machismo defende sua ideologia de que a mulher deve ser sempre submissa ao homem. No feminismo já quer também, já quer guerrear contra o machismo, já tem a visão bem mais radicalizada de que a mulher não deve ficar por baixo, não deve é se ajoelhar, não deve ser saco de pancadas. Então, eu acho que a gente precisa haver um pouco mais de entrosamento, de diálogo pra, pras coisas melhorarem”. (depoimento f)

Falando de uma situação idealizada, que é onde a sociedade deve

chegar, uma sociedade com mais igualdade e amor, a entrevistada percebe que a

atual realidade não está como deveria ser. Assim como uma outra entrevistada já

relatou, esta também fala da guerra de gêneros, referindo-se aos conflitos de sexo

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entre homens e mulheres. Ao falar de guerra de gêneros ela se remete a uma

memória ao feminismo distorcida do feminismo, considerando-o como pólo oposto

do machismo. Para ela, ambos são construções polares e antagônicas, sendo que

o machismo tem por princípio a submissão das mulheres aos homens e o

feminismo se contrapõe a este, rejeitando a condição subordinada atribuída às

mulheres. Quando ela se reportou ao feminismo o qualificou como radical, o

mesmo não sendo definido para o machismo. Ao nosso ver essa qualificação para

o feminismo não ocorre despropositadamente. Buscamos descortinar os

significados ali presentes levantamos algumas hipóteses. Primeiro é o fato dos

movimentos feministas constituírem-se como uma proposta concreta articulada e

sistematizada politicamente, a partir de um dado período histórico que se

contrapõe a um modelo de sociedade pautada no patriarcalismo e em justificativas

biológicas, que desestabilizou essencialmente as bases do patriarcado. Pela fala

da entrevistada este dado não é considerado conscientemente, mas pode ter

influência sobre a representação que esta faz do feminismo; outra hipótese é o o

fato da entrevistada ser tolerante com as diversas expressões do machismo

também radicais.

“Gênero é o ser humano. Não tenho muito assim a falar a respeito não, mas sei que o gênero é a parte do sexo mulher e homem”. (depoimento i)

A entrevistada utilizou dois sinônimos para se referir ao gênero: ser

humano e sexo, sem dar maiores explicações. Passemos para o que ela tem a

dizer sobre as relações de gênero de forma a possibilitar nossa análise.

“...existe ainda muita necessidade de mudança. Porque a gente ainda vê violência contra a mulher muito grande, prostituição. Tudo isso ainda é assim porque o homem, é porque ele é homem, ele pode fazer o que quiser nada mancha o nome dele [...] Tudo só cai pra cima do mais frágil, que é a mulher. Então, acho que a mulher ela precisa abrir muito os olhos por que ela ainda tá perdendo muito nessa questão, por conta da violência, da discriminação. Talvez também pela falta de conhecimento também, a falta de educação em família mesmo. A gente vê que a discriminação ainda existe na própria família, assim na questão de quando nasce uma criança, a menina tem por obrigação, somente assim boneca e o menino somente carrinho. então, vem daí, você tem que ter uma cor estabelecida porque é homem não pode usar... Então eu acho que já vem do berço essa questão. Começa por aí você vai levando de uma tal maneira que quando a pessoa cresce ainda não encontra seu espaço porque foi barrado desde criança”. (depoimento i)

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A entrevistada fala da necessidade de mudança justificando haver um

quadro social onde os homens possuem privilégios e as mulheres desvantagens e

alertando estas a ficarem atentas a esta situação. Ela também se refere a mulher

como sendo o sexo frágil. Tomando esta afirmação no contexto geral do seu

depoimento não percebemos que a entrevistada considere concretamente essa

fragilidade como sinal de incapacidade, mas ela revela através desta palavra à

condição subordinada construída socialmente ao longo dos séculos.

Buscando fundamentar o seu argumento ela nos fala da influência da

educação e da convivência familiar na construção deste quadro. Não obstante a

entrevistada utilize a denominação “vem do berço” para definir a origem da

discriminação contra a mulher, percebemos que ela não compreende esse

fenômeno como uma condição inata, mas como construção social que pode ser

modificada.

Passemos agora para a concepção de gênero trazida por uma das

fundadoras do Grupo Mulheres em Movimento.

“Gênero eu aprendi não é, claro que assim eu também não tinha muita clareza. Então, a partir dos encontros de gênero o porquê que, por exemplo, mulheres são machistas, porque tem mulheres com cabeça de homem, mulheres que aceitam e mulheres que acham que é para ser assim mesmo, mulher é para servir, é para ser mais fácil. Gênero para mim é exatamente você saber distinguir o papel da mulher e o papel do homem porque somos diferentes realmente, a mulher e o homem, mas ao mesmo tempo busca igualdade. Busca essa igualdade de direitos, de valores, de conhecimentos, de poder. Então, gênero ajuda você entender esse aspecto, por exemplo: homem e mulher, o ser mulher e o ser homem com suas diferenças mais ao mesmo tempo buscando essa igualdade de direitos”. (depoimento j)

Segundo a entrevistada foi a partir dos encontros formativos de gênero

que ela passou a ter uma maior clareza do significado do termo. Passou também a

compreender melhor a condição de subordinação social das mulheres e como elas

assimilaram as perspectivas androcêntricas e sexistas. Desta forma, dar enfoque

à própria mulher como sujeito na desconstrução ou no fortalecimento das relações

desiguais de gênero.

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Na sua concepção gênero é o elemento que permite fazer a distinção

de papéis masculinos e femininos ao falar de papéis definidos a entrevistada se

aproxima muito mais da categoria diferença sexual do que de gênero, onde

existem papéis, características e comportamentos específicos para homens e

mulheres. Essa perspectiva limita a diversidade de possibilidade de possibilidade

de ser homem ou ser mulher, afinal não existe um modelo único capaz, ou apenas

dois modelo, um para homens e outro para mulheres para expressar a pluralidade

dos sujeitos.

Outra questão apresentada pela entrevistada perpassa o debate sobre

diferença e igualdade. Contraditoriamente ao que foi explicitado na fala anterior,

as concepções da entrevistada vai ao encontro daquela adotada nesta pesquisa já

explicitada anteriormente no capítulo 2. Ela revela compreender e valorizar as

diferenças entre homens e mulheres sem desconsiderar uma perspectiva de

universalidade de direitos e de oportunidades como o poder e o conhecimento.

“Como é difícil, como a sociedade ainda é machista como na sociedade ainda não tem esse olhar de igual. Um olhar assim que é possível tanto o homem quanto a mulher de caminharem juntos. Para nossa sociedade há uma discriminação da mulher, há um preconceito e há também uma preferência aos homens, muitas vezes as mulheres por engravidarem, pelo próprio corpo, no ambiente de trabalho. Na sociedade falta se trabalhar essa questão de gênero para que haja mais igualdade. Infelizmente até nos movimentos, nos grupos, nas organizações a gente ainda percebe visões de homens que não entendem ainda o que as mulheres estão querendo, o quê que a mulher pode também falar, contribuir, estar no poder, no poder público, enfim, em outros espaços igualmente ao homem. Infelizmente ainda na nossa sociedade há muito preconceito, ainda há muito desconhecimento, acho que falta conhecimento também sobre essa questão de gênero”. (depoimento j)

A entrevistada denuncia as condições de desigualdade que permeiam

as relações sociais, dentro da lógica androcêntrica, onde os homens ocupam um

lugar privilegiado. O que os homens são ou fazem é naturalizadamente aceito e

valorizado, enquanto que as mulheres são alvo de discriminação e preconceito.

Ela também mostra um aspecto contraditório presente nas

organizações e movimentos sociais que embora abracem causa e levantem

bandeiras pautadas na igualdade, muitas vezes acabam por reproduzir relações

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desiguais de gênero. Na sua concepção há necessidade de se trabalhar a questão

de gênero numa perspectiva de construir relações mais igualitárias.

A percepção de realidade construída permite que ela contemple a

possibilidade de uma relação mais igualitária entre homens e mulheres. Diante

disso, destaca a necessidade de se trabalhar as relações de gênero como

caminho para a superação desse quadro de desigualdades.

“Gênero é assim, a gente, por exemplo, o homem e a mulher como a gente nasce somos as mesmas... Somos o homem e mulher. Ai a partir do crescimento que começa a desenvolver o gênero [...] Aí, às vezes, a gente coloca na cabeça da criança que homem não pode brincar com o que é de mulher e mulher não pode com o que é de homem, então, dali começa a se desenvolver. Muitas vezes a mulher é vista pelo lado masculino e o homem é visto pelo lado feminino, então, isso é uma decorrência a partir da família que a gente faz acontecer esse tipo de problema”. (depoimento m)

Esta concepção de gênero foi apresentada enquanto construção social

do masculino e do feminino trazendo a consciência da clássica condição apontada

por Simone de Beauvoir: não se nasce mulher, torna-se mulher24. O mesmo pode

se dizer dos homens. Ela nos fala da definição do comportamento de homens e de

mulheres a partir de modelos prévios dentro da convivência familiar e em

particular nas brincadeiras das crianças. Além disso, representa mais uma fala

onde aparece a noção de dois gêneros para referir-se ao masculino e ao feminino.

Vejamos como ela percebe as relações de gênero na atualidade.

“Sobre o homem e a mulher também a gente percebe que o homem tá sempre com a maior autoridade, tá sempre querendo ser mais do que a mulher, tá sempre querendo mandar em tudo, tá sempre dizendo o que é... Afinal, que é o rei da casa. Então, eles dizem que as mulheres acham não ter direito de nada. Mas por que? Porque eles não conhecem os movimentos. Então, ela aceita tudo aquilo e fica assim.” (depoimento m)

Mais uma das entrevistadas confirmam que as desigualdades

percebidas nas relações entre homens e mulheres. Desigualdades de poder onde

os primeiros assumem uma maior autoridade, querendo mandar em tudo,

querendo ser o rei da situação, querendo submeter as mulheres aos seus desejos

e interesses. A entrevistada atribui esse modelo de relação devido ao fato dos

24 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo. 1949.

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homens não conhecerem os movimentos de mulheres e também devido o estado

de passividade destas diante das imposições dos homens.

Em relação ao primeiro fator determinante, nos questionamos se o fato

do homens conhecerem os movimentos de mulheres representa uma garantia na

construção de relações mais igualitárias. Consideramos que o mero conhecimento

da organização de mulheres seja insuficiente para gerar uma transformação na

estrutura das relações de gênero.

Quanto à segunda justificativa, consideramos de fundamental

importância na reversão deste quadro de desigualdades, uma vez que significa a

ação direta de um dos sujeitos historicamente subordinados, neste caso as

mulheres, na relação com os sujeitos historicamente privilegiados, os homens.

Outro aspecto que merece atenção é o fato da entrevistada justificar a

homossexualidade como renuncia da masculinidade e da feminilidade,

evidenciando que sua visão está referenciada por um modelo de masculino e

feminino padrão.

“Bem, o gênero ele é a forma como o homem e a mulher eles vivem em sua sociedade, sendo que é uma forma que é uma maneira de viver em que não há diferença, pra um ou para o outro, ou seja, o homem ele tem os mesmos direitos, mesmos deveres que a mulher, ou seja, na família, nas suas contribuições gerais na sociedade, na educação dos filhos, nas tarefas domesticas e tudo mais. Então, esse é o que a gente conhece como gênero. É a forma de viver partilhando as atividades, as iniciativas no seio da família e na sociedade num modo geral sem fazer diferença”. (depoimento n)

O que merece destaque nesta fala é a idealização da concepção de

gênero como se o termo em si significasse igualdade, em que mulheres e homens

estabeleçam relações harmônicas. A entrevistada não percebe gênero como

sendo uma dimensão da vida humana que pode tomar concretude numa

perspectiva igualitária ou não. Essa visão reduz a possibilidade de expressão das

relações de gênero e nega a base da nossa sociedade marcadamente desigual.

Podemos observar que a entrevistada fala de diferença com o mesmo

significado de igualdade. Perceber o contrapondo da igualdade como diferença

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abre precedentes para que a luta pela igualdade seja associada a negação da

diversidade humana, das diferenças.

“Elas são muito distorcidas. O que a gente percebe é que, assim na maioria o homem e a mulher eles não dividem essas tarefas, não lidam de uma forma assim, um respeito aos direitos do outro ou cumprindo seus deveres como de gênero. Assim, vamos dizer, o homem ele trabalha lá fora e a mulher também, se ela trabalhar lá fora, ambos voltam pra casa, a mulher ela chega ela tem mil e uma coisa pra fazer e o marido na maioria das vezes ele fica esperando o momento do jantar, toma um banho, fica sentado esperando o momento do jantar, vai ler um jornal ou assistir televisão, enquanto isso a mulher ela tá ali na maior loucura tentando dar conta daquilo que ela não fez porque estava trabalhando fora. Quando não deveria acontecer isso... a própria estrutura da sociedade criou isso e dentro dessa realidade está a criação, a educação inicial dos filhos. Essa educação inicial é que deve ser mudada, deve ser trabalhada já essa educação de gênero, essa questão da criança crescer, a menina tem uma obrigação diferente do menino, a menina deve ficar presa em casa, porque tem que cumprir as tarefas de casa, o menino é mais livre pra brincar lá fora, pra sair. E por aí vai, a questão do compromisso da educação dentro da infância da criança, quando ela cresce ela já tá vindo distorcida, ela já vem fazendo essa diferença no gênero, então, não deveria ser feito assim”. (depoimento n)

Se no campo conceitual a categoria gênero foi idealizada a

entrevistadas identificou claramente, com uma riqueza de elementos como ocorre

no cotidiano a manifestação e a reprodução das desigualdades de gênero. Utilizou

principalmente a divisão sexual do trabalho no espaço doméstico para ilustrar

essas desigualdades.

Ela é mais uma entrevistada que reconhece a importância da dimensão

educativa na formação de mulheres e homens desde a infância que proporcione

experiências baseada na eqüidade e igualdade de oportunidades para crianças de

ambos os sexos, como uma prática capaz contribuir na alteração do modelo

hegemônico das relações de gênero.

“Bom, na minha opinião gênero hoje, eu vou resumir assim numa frase. É o novo homem e a nova mulher que hoje constitui a nova sociedade. [...] Os homens hoje, claro que ainda existe muita cultura do machismo, ainda é muito presente e não é uma coisa que vai, a sociedade vai acabar de uma hora pra outra, isso é a longo prazo porque isso já vem a muito tempo, há muitos e muitos séculos, o machismo, aliás acho que desde o começo do mundo que existe o machismo, a cultura do machismo assim também como a cultura de que a mulher tem que ser a dona de casa, submissa também desde os primeiros cristãos, mas o homem hoje... Muitos já conseguem ver a mulher, de uma outra forma, como uma

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companheira, amiga, isso não é generalização não, há algumas exceções, mas já é um sinal, é um bom sinal”. (depoimento l)

Mesmo sem falar da dimensão relacional do gênero, a entrevistada

evidencia que o comportamento de homens e mulheres longe de ser definido

biologicamente é construção social. Ela revela perceber as desigualdades de

gênero enquanto realidade estrutural, incapaz de ser desconstruída

automaticamente. A herança cultural é decisiva, mas nem por isso imutável, o que

permite com que ela perceba sinais de mudanças rumo a relação mais igualitárias

de gênero.

“as relações de gênero na nossa sociedade, assim, apesar das mudanças, dos avanços... ela ainda acontece de uma forma embrionária ... pequenos sinais, pequenas lembranças, de transformação que são ainda pequenas, mas é um sonho que tem dentro da gente que a gente não pode deixar morrer, é que realmente as transformações aconteçam, mas com relação as essas transformações assim de gênero na nossa sociedade, acho ainda temos uma caminhada ainda muito longa [...] eu acho que tem que partir pela questão de educação. O que se precisa mudar nas relações. Acho que com trabalho, com trabalho na própria igreja, os trabalhos pastorais ainda precisam mudar, ainda precisa trabalhar muito mesmo a questão da conscientização desse novo homem, dessa nova mulher e como eu disse, acho que tem que partir pela educação [...] hoje a relação assim, a compreensão realmente do homem, da mulher como sujeitos da sociedade, como sujeitos da historia, como pessoas que devem andar juntos, de mãos dadas pra construir essa nova sociedade, pois tem que trabalhar realmente essa questão da, essa cultura do machismo é uma coisa que tem que ser trabalhada, tem que começar a mudar por isso ai, pela cultura do machismo, também a questão daqui, de que quando eu falo na cultura do machismo eu acho que ai já aborda uma serie da coisas, uma serie de transformações, de mudanças que tem que acontecer por que através do machismo é que vem muitas outras questões que se a gente for levantar realmente, que fazem muitas vezes o homem se achar que é superior a mulher, o menino é superior a menina [...] Muitas vezes na hora de brincar, das criança brincarem a mãe diz assim, a mãe fala que menino não pega na boneca, que menino não pega em boneca, ai já começa daí por isso que eu tava querendo, colocando a questão da educação, a educação na família, na escola também precisa mudar algum valores agora, é claro que esses valores tem que ser visto com muito cuidado, com muita humildade e fazer com a criança desde cedo ela aprenda, ela aprenda que meninos e meninas são diferentes fisicamente, mas como pessoas, como um ser humano dentro da sociedade, eles são pessoas que devem caminhar juntos, tem suas diferenças de pensar é claro, a maneira de pensar da criança é completamente diferente, se você tiver com um grupo de crianças e se você fizer uma pergunta, você vai ter ‘n’ respostas, mas fazer com que eles entendam que menino não é superior a menina e que menino vai deixar de ser menino porque ele pegou na boneca ou porque a menina vai deixar de ser menina saudável muitas vezes porque. Ela pegou num carrinho de um menino. Então essa questão assim eu acho que isso é uma vida de conscientização, da

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conscientização a partir da criança mesmo, na família, na escola e em qualquer grupo que ela venha pertencer”. (depoimento l)

A entrevistada demonstra perceber com clareza a construção social das

relações de gênero dentro das instituições e organizações sociais, conforme

preconizou Scott ao falar dos quatro elementos constitutivos da categoria gênero.

Podemos observar que os espaços apresentados pela entrevistada como

reprodutores das desigualdades de gênero são os mesmos que ela apresenta

como canais de superação dessas desigualdades. Na sua descrição a

entrevistada traz a noção de desconstrução na perspectiva adotada por Derrida

embora a mesma não utilize esta palavra pra assim definir a formação de novos

valores que apontem para uma sociedade mais igualitária do ponto de vista de

gênero.

Para nós revelou-se importante a lúcida compreensão expressa pela

entrevistada de processualidade tanto da montagem dos sistemas androcêntricos,

como das conquistas feitas ao longo do caminho a ser trilhado.

Com esta fala encerramos a abordagem de mais um eixo das

entrevistas e passamos para outro sobre o trabalho desenvolvido da AMM.

Indagamos para as mulheres como a Associação tem contribuído na construção

de relações igualitárias de gênero, e em seguida sobre as mudanças concretas

percebidas na vida das mulheres após seu engajamento na Associação. As

entrevistadas assim se manifestaram:

“É trazendo ela, a mulher, pra associação e trabalhando ela, ou seja, a personalidade dela, a auto-estima dela, que é pra poder passar pra dentro de casa e saiba educar seus filhos. E a gente dar aquela assistência, aquela palestra, com um psicólogo, ouvindo umas semanas, por exemplo, uma semana, duas semanas, trabalhando aquela criatura que é pra ela poder aprender a lutar com o marido e o filho”. (depoimento g)

Através desta fala fica identificamos uma estratégia de ação da

associação, enquanto um grupo específico de mulheres, é trabalhar diretamente

com este sujeito, fortalecendo e potencializando sua subjetividade para que possa

“lutar”, ou seja, construir uma relação diferenciada em casa, com o marido e os

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filhos. Como forma de compreendermos melhor a visão dessa entrevistada,

fizemos a seguinte indagação: Já que é de responsabilidade da mulher lutar com o

marido e o filho, até que ponto eles concordam ou resistem diante da sua nova

postura? Prontamente a entrevistada respondeu:

“Ah, concorda, porque a gente às vezes vai na casa conversar com eles e trazer eles na associação, pras palestras, pras conversas, forma assim um grupão e engaja toda a família... com jeitinho vai se buscar. Tem tido resultado”. (depoimento g)

Pelas duas falas podemos constatar que quando falamos em

construção de relações de gênero o horizonte de atuação da AMM é a família das

mulheres nela engajadas. Essa construção pressupõe fundamentalmente a

capacidade e intencionalidade das mulheres de desencadearem uma

desconstrução no atual modelo de relações dentro do espaço doméstico e

também garantir a participação pontual de suas famílias em momentos formativos

e de integração da Associação. Segundo a entrevistada esta estratégia vem

alcançando resultados.

“É acontece é, segundo elas retornam pra gente o que aconteceu, elas falam de mudança [...] porque há conscientização porque nós sabemos que existe um problema seríssimo é essa questão de gênero, às vezes as mulheres vão fazer prevenção, aí vem aquele medicamento, porque às vezes tá com uma pequena inflamação que dá o homem e a mulher e isso a gente vê que muitos e muitos cantos não tem aceito, e através de uma conscientização a gente tá conhecendo muitos casos que são aceitos que fica feliz porque vai tomar aquilo ali e tem o respeito, tem a abstinência que é, a questão da abstinência naqueles dias [...] quando a mulher está usando aquela pomada, aquele problema de inflamação que esse caso é muito constrangedor, num sabe entre o homem e a mulher que não aceita, mas através de conversa, de palestra, tá sendo aceito”. (depoimento h)

Embora em outros momentos da nossa conversa a entrevistada tenha

falado das relações de gênero de uma forma ampla, quando chegou o momento

de pontuar as mudanças percebidas nesta área ela restringiu a sua abordagem a

questões relacionadas sobre sexo, sexualidade e saúde da mulher. Sempre nesse

foco, ela observa mudanças em relação a resistência dos homens de se tratarem

em decorrência de alguma doença identificada nos exames ginecológicos.

Segundo a fala da entrevistada, os processos educativos desenvolvidos pela

associação como, por exemplo, as palestras, tem contribuído para uma maior

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conscientização em torno do tema e em decorrência disso uma aceitação do que

precisa ser feito.

“Sempre em reunião nós conversa muito e sempre hoje em dia a gente já tá chamando os companheiros, os maridos, os namorados. Trabalha oficinas. A gente chama, a gente convida quando a gente sempre faz reunião, sempre que faz uma oficina, bota os homens pra, pra ver o que é, como é. Ir vendo e convivendo pra se igualar por iguais, na luta, um curso, uma coisa, é a gente convida o homem pra participar”. (depoimento a)

Mais uma vez os homens da família ou que tem um vínculo estreito com

as mulheres engajadas na Associação são citados nesse processo de construção

de novas relações de gênero. Compreendendo que esses homens são inseridos

no movimento através dessas mulheres, nos reportamos à experiência trazida por

Goldemberg sendo aqui numa situação inversa. Neste caso os homens se

engajam não por uma necessidade própria, mas a partir da influência e

convencimento das suas companheiras. Além desse condicionante, outro aspecto

justifica que a participação destes ocorra de forma inexpressiva: o fato dos

homens não poderem se associar. Se a AMM configura-se como um espaço

eminentemente de mulheres, como os homens podem identificar-se com a

construção do projeto desenvolvido por aquela entidade? A partir da provocação

feita pela nossa entrevista as mulheres passam a reclamar a necessidade de um

maior engajamento dos homens para que de fato possam construir novas relações

de gênero, sem considerarem que a natureza e a própria razão pelas quais elas

se organizam não favorecem esta construção. Diante da fala da entrevistada

queremos fazer um questionamento: qual o alcance das conversas e das

vivências proporcionadas nas atividades da Associação na desconstrução do atual

modelo de relações de gênero tão denunciado por elas e a construção de um

modelo mais igualitário?

Em seguida a entrevistada relatou que mudanças concretas ela

percebe na vida das mulheres da Associação no que se refere às relações de

gênero:

“É uma luta assim grande que a gente tem. Mas a gente entende que já tem mais conhecimento, tem mais uma luz. Tem muitas delas que já tão mais dedicadas, já tem mais assim uma “abrição” de mente, porque de

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primeiro, o que a mulher entendia que era só pra tá no fogão, cuidando da casa, cuidando dos filhos, e quando chegar o marido e tudo conversado! Se maltratasse e judiasse era tudo ali dentro de casa. Hoje em dia não, hoje em dia geralmente se o marido maltrata uma companheira, qualquer coisa, ela já tem a luz de acompanhar um meio de procurar, as delegacias das mulheres, que a gente também atende, mas qualquer coisa obviamente a gente procura também os meios, pra que haja, não nós, mas procure um meio de encaminhar as pessoas, onde elas devem procurar defesa, porque precisa defender. Como tem o serviço de cidadania da prefeitura, que foi uma luz muito grande, que lá tem assistente social, advogado, sempre a gente procura qualquer coisa que a gente não pode conversar, que não pode resolver a gente já encaminha elas pra procurar os meios, muito grandes. Principalmente mulheres que tem filho assim, que não é casada, que tem filho de outras pessoas, a procura pra elas se encaminhar pra pensão, adquirir pensão do alimento. É que toda criança, mesmo que não seja seu filho mesmo, tem direito a pensão, tem direito de estudo e a sociedade, principalmente”. (depoimento a)

A entrevistada nos fala de uma luta grande para ilustrar a grandeza dos

desafios a serem enfrentados. Segundo ela, essa luta tem sido provocadora de

mudanças na vida das mulheres onde estas estão mais conscientes dos seus

direitos, da sua condição humana e social vislumbrando outras possibilidades de

ser e de estar, o que faz com que passe a agir diferentemente. Elas já não

compreendem o lar e a sua manutenção com exclusividade na sua vida e começa

a romper o silêncio que tanto marcou e marca a unidade doméstica no que se

refere à violência principalmente contra as mulheres e as crianças. Romper com o

silêncio significa buscar apoio e de denunciar a violação dos seus direitos tendo

como referência o espaço público, seja ele estatal ou não. Em relação ao Estado a

procura tem se dado às delegacias especializadas de defesa da mulher e as

unidades de atendimento gerido pela Prefeitura Municipal de Fortaleza – PMF e

em relação à sociedade civil, o destaque foi dado à AMM.

Percebemos aqui a busca das mulheres por políticas públicas que

possam atendê-las e orientá-las quanto aos seus direitos, num exercício de

cidadanis. O que nos chama mais a atenção é o reconhecimento e utilização das

duas iniciativas públicas, sem privilegiar um ou outro.

Quebrar o silêncio buscando ajuda externa à família diante dos casos

de violência, significa romper com os limites do privado e caminhar rumo ao

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público. É uma atitude que para nós mostra-se importante no processo de

desestabilização das relações de gênero, principalmente em relação aos

companheiros das mulheres vitimizadas. Essa desestabilização não

obrigatoriamente caminha para a uma relação mais igualitária de gênero dentro da

família, mas certamente representa o elemento potencial desconstrutor de uma

realidade, tão necessária para dar origem a uma nova realidade. Essa construção

não é mecânica. Mas se constrói e se consolida na dinâmica cotidiana de espaços

como, por exemplo,no da Associação Mulheres em Movimento.

“A gente sempre procura [...] fazer assembléia, ligar não só de mulheres mas com os homens. A luta é de mulheres mas os homens são sempre convidados, porque é exatamente isso [...] a gente foi num seminário em Recife, foi muito questionada essa questão de que o homem, a questão do homem ter raiva que a mulher saia de casa. É porque como ele sempre tem que ter o reinado, ele tem medo de perder pra mulher, aí que ela tá aprendendo muita coisa quer passar a perna na gente. Então se convida o homem exatamente por isso, pra que ele entenda que a mulher aprender alguma coisa não é por que ela quer tomar o lugar dele, mas é porque ela precisa de conhecer e saber que ela também não é menos do que ele. Ela não quer ser maior do que ele, mas também não quer ser menor”. (depoimento i)

A primeira questão apresentada nesta fala é de que há uma

preocupação em chamar os homens para participarem das atividades da AMM,

pois segundo a entrevistada a luta é de mulheres, mas os homens são chamados

a participar também. Segundo a entrevistada a presença dos homens é importante

para que eles compreendam que o aprendizado vivenciado pelas mulheres não

representa uma ameaça ao reinado que sempre foi seu. Na sua concepção a

mulher está buscando uma condição de igualdade, pois embora não queira ser

maior do que ele, também não quer ser menor.

A presença do homem nas organizações das mulheres de fato é

fundamental para no processo de transformação das relações de gênero, porém a

simples presença ou participação dos homens não traz essa garantia. As

mudanças concretas ocorridas com as mulheres vão exigir de fato uma redefinição

na relação entre os homens e as mulheres e isso não é tão simples, daí os

homens se sentirem ameaçados. Nestas mudanças se as mulheres procuram

conquistar mais respeito, autonomia, partilha de tarefas culturalmente

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denominadas como femininas, poder de decisão... os homens têm que ir se

despojando da significativa herança cultural, revendo e abdicando da sua

condição privilegiada, compartilhando responsabilidades denominadas masculinas

e compartilhando aquelas rotuladas como tipicamente femininas. Isso de fato

representa uma ameaça por significar abrir mão de uma condição socialmente

consolidada e exige uma abertura para o novo na reconstrução das relações de

gênero. Essa experiência pode significar conflitos internos de cada um dos

sujeitos e também entre eles, mas que precisa ser vivenciado para que haja a

superação de relações desiguais, ou seja, é um momento de crise que traz no seu

cerne a possibilidade de uma relação de gênero numa perspectiva igualitária25.

Quanto a sua percepção sobre as relações de gênero na atualidade a

entrevistada assim analisou:

“Não seja muito bom não, mas pra algumas melhorou, pois os companheiros delas também participam, que é o caso da Gorete, da Lucia e outras. Outras ainda existem uma certa distância, por conta ainda dessa discriminação, que o homem não quer abrir mão do seu espaço machista, pra deixar essa mulher se organizar de uma forma. As mulheres ainda encontram muita dificuldade nessa questão de sair de casa pra uma reunião, porque o homem acha que ela vai sair com outro. Mas quando ele participa, que ele vê que não é nada daquilo, melhora muito por que ele apóia e ajuda. Existe a questão de ajudarem, eles ficam mais amáveis, tem homem que até, por exemplo, que até ajuda em casa. E ele vê que a obrigação não é só da mulher de fazer as coisas dentro de casa, mas ele também tem a obrigação. Agora ainda não é tanto como deveria ser, ainda tem muito que se lutar“. (depoimento i)

A entrevistada não generaliza as mudanças percebidas, observando

que para algumas mulheres as relações de gênero melhorou, mas para outras

aindanão. Ela reconhece na participação dos companheiros das mulheres um

sinal de que essas relações foram modificadas quando cita o exemplo dos

homens que participam. Quando não se consegue estabelecer um diálogo com

esses homens eles continuam desconfiados sobre as reais motivações que levam

as mulheres a romperem com os limites do lar e passarem a ocupar outros

espaços políticos. Esse quadro muda quando há uma aproximação dos homens

25 Essa concepção expressa o sentido trazido pela socióloga Maria da Glória Gohn quando utilizou o termo de origem oriental “wei-ji” que significa crise e

oportunidade simultaneamente.

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que a partir do diálogo estabelecido com a Associação reconhece a importância

da participação da mulher, passando a rever e modificar suas posturas quanto às

responsabilidades domésticas.

A fala da entrevistada traz um fato recorrente apresentado por outras

entrevistadas que é a resistência dos homens diante da organização política das

mulheres. Como a associação tem buscado trazer os homens para participarem,

ficamos a nos indagar se isso ocorre na tentativa de buscar o consentimento

desses homens para que as mulheres possam participar mais livremente.

A entrevistada traz um dado importante para nós que sinaliza uma

redefinição na divisão sexual do trabalho quando as responsabilidades

comumente assumidas pelas mulheres passam a ser realizadas pelos homens.

Esse fator é importante, pois proporciona aos homens a participação em

experiências quase sempre denominadas por eles de pouca importância.

Acreditamos que essa experiência permite aos homens e às mulheres

desmistificarem os rígidos papéis sexuais e atribuírem novos valores e

significados para as relações de gênero.

“Concretamente nós temos espaços onde a gente convida os homens a participar, que são encontros mensais [...] o homem precisa entender o que nós queremos, muitos homens que aderiram estão participando conjuntamente conosco. Concretamente também, sempre trabalhamos alfabetização de adultos, cursos, encontros, lazer, palestras. [...] Todas essas iniciativas é justamente para, concretamente para que a mulher possa realmente ser sujeito na história. Que ela possa participar, opinar, possa descobrir saídas, seu potencial. Então, essa associação, ela vem trabalhando há bastante tempo nessa iniciativa. Com as dificuldades diminuiu um pouco o campo da ação, mas sempre estivemos junto com as mulheres da periferia, do movimento, das comunidades, das mulheres empobrecidas, das mulheres negras que são discriminadas. Estamos sempre tentando mais, buscando essas mulheres. É muito difícil esse trabalho quando não se tem recursos, quando não se tem muito apoio, mas a associação ela tem feito esse trabalho sempre acompanhado com a formação, com a profissionalização, com a socialização dos grupos, com o lazer das mulheres, dando mais sentido às relações concretas da associação”. (depoimento j)

O que relevamos na fala desta entrevistada é a clareza com que ela

define a razão maior do trabalho desenvolvido pela Associação que é contribuir

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para que as mulheres sejam sujeitos da história. Ela fala das mulheres envolvidas

direta ou indiretamente com o trabalho da AMM, cartacterizando-as a partir das

suas condições concretas de vida. Diante desta caracterização não percebemos

uma intenção em se referir essas mulheres como vítimas, o que vem confirmar o

que ela falou anteriormente sobre os sujeitos. Considerar as mulheres enquanto

sujeitos significa para nós preservar os princípios de autonomia, participação

efetiva e interrrelação no processo de transformação de suas vidas nas diversas

dimensões.

Mais do que traçar o perfil das mulheres a entrevistada faz uma leitura

considerando a inserção destas mulheres numa determinada classe social, o que

demonstra sua percepção das desigualdades sociais e a estratégia da Associação

em priorizar em seu projeto político mulheres em situação de exclusão social.

Mesmo que a entrevistada já tivesse manifestado que os homens eram

convidados para estas atividades, como complemento à pergunta anterior,

indagamos se só as mulheres participavam destes momentos. Queríamos saber

se os homens respondiam positivamente a este convite, ou seja, se de fato eles

participavam.

“Não. Neste caso, é mais para as mulheres mesmo agora, é aberto aos homens, por exemplo, a alfabetização, é aberta aos homens [...] Há grupos só mesmo agregado por mulheres, como por exemplo, da terapia grupal”. (depoimento j)

Contrapondo-se ao que foi apresentado por outra entrevistada, ela não

percebe que a ação junto aos homens como prioritário e estratégico para o

trabalho da Associação, embora eles também sejam chamados a participar.

Como a Associação desenvolve um significativo trabalho junto às

comunidades de Alfabetização de adultos, sendo esta citada como espaço que

envolve homens e mulheres, perguntamos à mesma entrevistada como se dava a

abordagem de gênero nesse processo. Segundo ela

“No projeto de alfabetização de adultos a gente trabalha com a Pedagogia Paulo Freire. A gente oferece o curso de Pedagogia Paulo Freire para as educadoras que vão apoiar as turmas de alfabetização.

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Todas são mulheres (referindo-se às educadoras). A gente faz uma seleção de palavras-chave dentro do contexto de mulher, por exemplo, a própria palavra mulher. Dentro das palavras-chave, coloca os temas geradores, nas discussões em sala de aula, a gente busca esse campo, o que elas fazem, se elas são domésticas, na linha em que trabalha, para trabalhar dentro da alfabetização também a questão do gênero”. (depoimento j)

No esclarecimento da entrevistada ficou notório a proposta da

Pedagogia Paulo Freire muito mais do que a abordagem de gênero dentro do

processo de alfabetização. Ela fala que o universo das mulheres é considerado

enquanto palavra-chave e enquanto tema gerador. Não sabemos até que ponto as

reflexões se encerram na experiência das mulheres e até onde contemplam as

relações de gênero.

Indagamos, ainda, à entrevistada quais as mudanças concretas na vida

das mulheres quanto às relações de gênero ela percebe.

“É o que mais nos alegra é perceber que muitas mulheres que começaram a participar, elas realmente deram um passo a mais. Hoje tem mulheres que já são educadoras, tem mulheres massoterapeutas que fizeram o curso e de farmácia viva e que hoje fazem esse trabalho nas comunidades. Em várias comunidades a gente encontra este trabalho de massoterapia. [...] as mulheres sempre entenderam esse sentido de ajudarem outras mulheres, sempre convidando mulheres, sempre participando de associações, de eventos da associação. Então, mulheres que fizeram curso de corte-costura, por exemplo, que formaram um grupo de produção de confecções e que hoje estão trabalhando, e assim, a gente está vendo que vale a pena nesse sentido de juntar essas mulheres mais empobrecidas, fazendo um esforço muito grande, porque muitas vezes elas precisam só de um espaço, muitas vezes ela precisa só de alguém que escute, que ela mesmo vai se descobrindo. E as mulheres estão caminhando. A gente vê que elas estão aí nos espaços da igreja, dos movimentos, nas associações. Existem muitas mulheres que estão levando o barco, estão assim animando, que estão participando, acreditando, que não estão desanimando não”. (depoimento j)

A entrevistada percebe mudanças e apontar a formação profissional

das mulheres como propulsora das mudanças na vida das mulheres não somente

na dimensão individual, mas também na dimensão social e comunitária no

exercício da profissão desempenhada pelas mulheres. Trabalho este que passa a

ser desenvolvido na comunidade com caráter mais qualificado numa perspectiva

simultânea de garantir a reprodução da vida e das relações sociais e também

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dentro de uma produção de bens e produtos. Isso ocorre a partir de um vínculo

estreito entre estas duas necessidades humanas.

Ela fala que as mulheres compreendem o significado de ajudar outras

mulheres, ou seja, de estabelecer relações solidárias. Essa rede de solidariedade

construída ao longo dos séculos se estende não só às próprias mulheres, mas a

todas a pessoas que estão ao seu redor. Esta tendência histórica é fortalecida

ainda mais quando se trata de mulheres empobrecidas. A consciência crítica da

condição de exclusão social enfrentada pode levar as mulheres a assumirem

coletivamente iniciativas capazes de superar as dificuldades enfrentadas.

As iniciativas citadas pela entrevistada concentram-se na realidade

local vivida por essas mulheres, embora façam parte e esteja articulada com uma

realidade complexa maior. Tendo consciência disso ou não as mulheres estão

engajadas, também, em outras organizações que possuem uma maior

abrangência de atuação, indicadas ao longo de sua fala. Esse indicativo trazido

pela entrevistada confirma os dados coletados diretamente com cada uma das

mulheres. Das 14 entrevistadas, 11 estão engajadas em outras organizações

políticas na luta por uma vida melhor e na construção de novos valores e

experiências alternativas como é o caso da Igreja, de movimentos pela moradia,

cooperativas, conselhos. A entrevistada ainda qualifica este engajamento ao

apontar que as mulheres estão participando e liderando com entusiasmo os

processos desencadeados nesses espaços políticos.

Diante da consideração de que a Associação trabalha eminentemente

com mulheres, perguntamos à entrevistada se de fato é possível que o trabalho

desenvolvido contribua na alteração das relações de gênero, uma vez que é

inexpressivo o trabalho desenvolvido pela AMM com esses dois sujeitos: homens

e mulheres?

“Eu acredito que sim, porque a mulher quando ela começa a perceber seu potencial de poder trabalhar, de poder ensinar, de poder ter um relacionamento melhor na família, com o companheiro, saber educar seus filhos para que não sejam machistas no futuro, ela está vivenciando

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esta relação de gênero. É difícil, porque é um processo, é uma caminhada. Não é fácil, mas você vai vendo que a mulher ela vai... de repente ela não aceita determinadas músicas que a gente está escutando aí, ela não aceita determinados cartazes que estão explorando o corpo da mulher, ela cria uma consciência crítica. Muitas mulheres já deram esse passo de perceber um pouco determinadas situações: porque que prevalece a opinião do homem e não da mulher, perguntando assim, por só os homens e não as mulheres? Então assim, elas se colocam lá, já no sentido de que a mulher também pode falar, participar, criar, recriar. Então quando ela está exercendo uma pouco esse trabalho e ela vai e volta, ela está refletindo e acaba ficando, a gente percebe que ela está conseguindo vivenciar na sua vida essa questão de gênero”. (depoimento j)

Na concepção da entrevistada, mesmo que o trabalho da Associação

seja desenvolvido predominantemente com apenas um dos sujeitos isso permite

uma alteração nas relações de gênero. A vivência na AMM permite que as

mulheres desenvolvam seus potenciais e concomitantemente engendrando novas

concepções de si e do mundo caracterizada pela criticidade diante da suposta

naturalização das desigualdades de gênero, passando redefinir e reordenar as

relações estabelecidas na sociedade.

Percebemos que na maioria das falas as outras mulheres centraram

seus depoimentos a partir da experiência no espaço doméstico, diferentemente

desta que falou de maneira mais abrangente. O que pode ter definido o

depoimento centrado no espaço doméstico das outras mulheres se elas

predominantemente estão inseridas em outros espaços, seja no campo

profissional, na vida comunitária ou da militância política? Será que as mulheres

tem auto-consciência quanto o privilegiamento do espaço doméstico nas suas

falas? São questões que insistem em nos provocar.

“Bem, a associação desenvolve esse trabalho da conscientização, dos direitos da mulher e procura também trazer homens para os encontros de mulheres. Porque não adianta só conscientizar a mulher de que ela tem direito disso ou daquilo, mas os homens precisam ouvir também, precisam saber, estar dentro do, pra que a gente luta. Então, a associação cria essas condições de estarmos juntos, homens e mulheres. Embora na maioria das vezes pouquíssimos homens participam, mas, é aberto pra homens e mulheres, pra esse trabalho, com essa mentalidade de caminhar juntos”. (depoimento f)

Esta entrevistada, também destaca o trabalho da associação com as

mulheres numa perspectiva de conscientização dos seus direitos. Porém, destaca

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não ser suficiente para transformar as relações de gênero fazendo com que a

AMM procure sensibilizar e criar condições para que os homens compreendam e

participem desta luta. Reconhece que poucos homens participam, embora a

proposta da Associação é que ambos caminhem juntos. Como esta fala é

recorrente, merece atenção e reflexão. Percebemos que quando as mulheres

reclamam a falta ou pouca participação dos homens o faz numa perspectiva de

colocar sobre eles o descaso pelo engajamento na associação. É de se esperar

que numa sociedade marcadamente desigual no eu se refere às relações de

gênero haja uma certa resistência por parte de homens e até mesmo de mulheres

que irrefletidamente estabelecem relações na sociedade. A associação enquanto

uma organização e enquanto portadora deste projeto político precisa estar

avaliando e repensando sua prática como elemento desconstrutor das relações

tradicionais e como potencial criativo na construção da sua utopia.

Vejamos agora que mudanças concretas ela percebe na vida das

mulheres da AMM quanto às relações de gênero.

“Tem mudado muito a vida das mulheres engajadas. Muitas dão testemunho de que suas vidas melhoraram consideravelmente, porque antes a gente só vivia dentro de casa, para o lar, para a família. Depois de começar o movimento a gente começa a se sentir melhor, se sentir mais animada pra viver, procurar junto com os esposos trabalhar juntos cada qual pro seu lado. Porque tanto que as condições necessitam também dos dois trabalhando unidos sem a questão de desconfiança sabe? Sem é... com muita seriedade, com muita certeza do que querem os dois juntos, lado a lado mesmo. então mudou muito as mulheres engajadas. E tem até assim uma visão melhor de mundo mesmo, por que é... se instrui, se instrui mais, fica conhecendo mil e uma coisas assim dentro... se protege mais contra doenças é muito rico mesmo participar. Não é só mesmo profissionalmente, financeiramente mais sim é, tipo assim, espiritualmente de formação mesmo, de auto-estima, tem mais disponibilidade de viver, mais alegria de viver”. (depoimento f)

A ampliação da visão de mundo e das experiências das mulheres após

se engajarem na Associação, apontado por estas e outras entrevistadas,

configuram-se para nós como a materialização da liberdade na esfera pública.

Liberdade compreendida na capacidade dos sujeitos reafirmarem suas

identidades pessoais e coletivas e se expressarem explorando seus limites e

possibilidades.

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Pelo relato destas experiências torna-se difícil pensar somente na

dimensão coletiva que mobiliza as mulheres, pois elas rejeitam a impessoalidade

e se expressam a partir das suas próprias experiências de vida.

As mudanças percebidas pela entrevistadas situam-se muito mais no

campo familiar, principalmente na relação das mulheres com seus companheiros;

fala também de outros espaços que a mulher começou a conquistar, rompendo

com um modelo de vida centrada no lar; fala da inserção das mulheres no mundo

do trabalho, destacando inclusive um mudança na postura do homens de não

ficarem desconfiados com a atividade profissional das mulheres; outra mudança

percebida é em relação à formação e a ampliação dos conhecimentos das

mulheres, redefinindo suas práticas; e por último ela destaca aquela mudança que

certamente é o princípio das demais que é a compreensão subjetiva dessas

mulheres, ampliando sua auto-estima, sua alegria e vontade de viver.

“Concretamente, eu diria que há sim, com certeza entre gêneros há uma cumplicidade [...] A gente ver que tem além do apoio que muitas mulheres hoje recebem dos seus companheiros, até por contribuírem, até financeiramente como na questão do grupo das costureiras, as massoterapeutas, a farmácia viva, então até parece que eu tô falando assim sobre um ponto de vista de que a mulher só é valorizada pela questão financeira por ter que trazer alguma ajuda financeira pra casa, mas não é. É porque eu tô falando sobre o ponto de vista de que tanto a mulher se sentiu mais valorizada e útil como o homem também ele percebe. Ele começa a perceber a companheira, hoje ele começa a perceber também que a mulher, ela tá muito além daqueles rótulos que foram colocados pela sociedade na mulher: a pobrezinha, coitadinha, a que cuida da casa, a que cuida dos filhos. Então ele começa a perceber que ela, a mulher, tem um grande valor na sociedade e em casa“. (depoimento l)

A entrevistada aqui nos fala não só da principal estratégia da

Associação para contribuir na promoção das mulheres e na construção de

sujeitos, mas já sinaliza alguns resultados do trabalho realizado pela entidade. Vê

como resultado uma cumplicidade entre homens e mulheres e atribui isso ao fato

da AMM desenvolver a formação profissional com mulheres. Ao participarem de

um processo de formação profissional e passarem desenvolver um trabalho na

comunidade e na sociedade, as mulheres conquistam autonomia financeira e

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passam a interagir diferentemente na relação. Diferença esta caracterizada pela

auto-valorização da mulher e reconhecimento da sua “utilidade”, como assim se

referia a entrevistas, e o homem passa a desconstruir aquela imagem da mulher

ainda predominante na sociedade e a perceber a sua importância enquanto

sujeito em casa e na sociedade. Percebemos aqui uma situação muito clara onde

de fato há uma alteração nas relações de gênero não se limitando só à família,

mas também dentro da comunidade e da sociedade. Essa experiência no campo

das relações de gênero requer uma maior atenção de forma que haja um

acompanhamento da qualificação desta alteração. A transformação não é

automática e precisa ser trabalhado permanentemente sob pena de não caminhar

apenas para a inversão das relações de poder.

Segue abaixo as mudanças percebidas por esta entrevistada na vida

das mulheres da Associação quanto às relações de gênero:

“Bom, eu diria que muitas mudanças concretas ocorreram na vida das mulheres que fazem parte da associação. É uma pena que o grupo ainda não seja tão grande e as mulheres ainda não tenha assim um número muito grande, adeptas ao movimento [...] daquelas que eu tenho conhecimento, e que participam, a gente percebe até mesmo assim pela maneira de sorrir que as mudanças concretas elas não surgiram, não apareceram, não aconteceram, somente pela questão de às vezes até se profissionalizar, muitos não tinham uma profissão, aprenderam através da associação do movimento de mulheres, passaram por oficinas de auto-estima, oficinas de corte e costura, pra aprender a costurar, oficinas de pintura, cursos de massoterapia, cursos de cromoterapia certo? E eu acredito, eu vejo assim que a mulher ela também passou a ter uma compreensão maior no julgamento com relação ao homem, que muitas vezes a gente tem uma mania muito grande assim de querer, de criar, de fazer pré-julgamentos com preconceitos a respeito de uma pessoa. Muitas vezes é preciso você procurar saber as razoes, o porquê, e eu acho que muitas mulheres que fazem parte aprenderam a compreender melhor os companheiros. Por que que eles agem assim? Porque que eles agiram assim? O que eles passaram? O que eles sofreram? O que eles viveram? O que eles aprenderam na convivência com a família e eu acho que no momento em que homens e mulheres começam a se perceber assim como seres, como pessoas diferentes, como pessoas que são capazes de errar porque você tem que ser capaz de errar mesmo e aprender com esses erros, isso é o que é mais importante. Aprender com os erros que você cometeu, com os erros que o companheiro cometeu, então eu acho que há mais entre essas pessoas do que elas conseguiram colher de informação, de formação, de aprendizado concreto mesmo, na vida dessas pessoas, elas passaram a ter mais harmonia na família, no lar”. (depoimento l)

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A fala da entrevistada faz considerações que enriquecem nosso debate.

Ela enfatiza as mudanças ocorridas com aquelas mulheres que mais participam da

Associação, provocadas não só pela formação profissional proporcionada pela

Associação, mas pelo conjunto de experiências da entidade. O que apreendemos

da fala da entrevistada é de que as mudanças vão além do aprendizado técnico,

alcançando também a formação política e humana das mulheres. A primeira

mudança por ela apontada trata-se de uma questão bem subjetiva, relacionada a

sexualidade que é na maneira de sorrir das mulheres.

A outra mudança apontada é uma maior conhecimento das mulheres

sobre a realidade dos homens passando a compreender melhor o universo destes

sujeitos. O olhar crítico dessas mulheres ao desvendarem uma realidade já

conhecida na sua imediaticidade, passa a problematizá-la e refleti-la criticamente,

aprofundando sua compreensão e conhecimento sobre as relações de gênero. A

ampliação na compreensão da realidade ocorre não somente com o conhecimento

da realidade do sexo oposto, mas principia no processo de formação e auto-

conhecimento dessas mulheres.

Considerando que a interação e interrelação de homens e mulheres na

sociedade é um reflexo das concepções de mundo trazidas por estes sujeitos,

assim como o inverso é verdadeiro, podemos afirmar que esta alteração de

concepção construída cotidianamente no trabalho da Associação interfere

diretamente na prática das mulheres e homens atingidos direta ou indiretamente.

A sua auto-consciência e a consciência do outro tem proporcionado uma maior

comunicabilidade entre homens e mulheres, caracterizado por uma maior

harmonia dentro da família.

Essa experiência revela uma alteração significativa nas relações de

gênero, embora na fala da entrevistada, mais uma vez o campo de possibilidade

para trabalhar gênero fique restrito ao ambiente doméstico, às relações familiares.

Isso pode representar um bom começo, porém reclama da ampliação da sua

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abrangência, sob ameaça de não enfrentar as desigualdades de gênero tão

presente nos diversos campos socais: saúde, educação, moradia, lazer, trabalho...

Passemos para outra enrevistada.

“Fizemos um curso de capacitação pra isso, e dentro dessa capacitação a gente... tiveram alguns multiplicadores, e há encontros, e quando acontece os encontros sempre a gente tenta, assim na formação, sempre tenta, mesmo não tendo homem presente, mas tenta lidar com essa preocupação de falar da questão do gênero, da igualdade entre homem e mulher, tenta resgatar os valores da mulher, do homem, pra que os dois possam caminhar juntos sem fazer diferença e tentando construir melhor sua família. E dentro desses encontros a gente tá sempre tentando mostrar essa questão da igualdade, sempre tentando, falando, tendo um pouco de discurso sobre essa questão da igualdade”. (depoimento n)

No início de sua fala a entrevistada fez uma referência a um momento

de formação sobre gênero assessorado pela casa Lilás. Essa formação que foi

citada por outras mulheres entrevistadas representou um momento importante no

estudo e reflexão sobre a temática, permitindo que a partir dali elas pudessem

trabalhar de forma mais qualificada esta questão.

Segundo a fala da entrevistada, a construção de relações igualitárias de

gênero ocorre a partir de momentos formativos dentro dos encontros da

Associação com a presença ou não de homens. Nesses encontros são feitas

reflexões sobre a relação entre homens e mulheres e a questão da igualdade. Ao

contrário da reflexão que fizemos anteriormente sobre a igualdade e a diferença a

entrevistada utiliza esses termos como se um fosse oposto do outro. Neste caso a

diferença é compreendida como aspecto a ser combatido, pois segundo a fala

dela durante a entrevista, fortalece a desigualdade. O fato da entrevistada não

apreciar em sua fala o princípio da diferença, no sentido de valorização e respeito

à diversidade, enfocando a igualdade, para nós é revelador de que essa discussão

ainda é secundária. O acúmulo de reflexões e experiências dos movimentos

sociais e também do meio acadêmico tem caminhado na direção de se considerar

ambas categorias como forma de ampliar a apreensão da realidade.

“A gente percebe realmente que a classe que tem mais atuação dentro da associação, elas tão se sentindo hoje mais livres, assim, tão conseguindo, porque antes tinha aquela questão de dizer que o marido [...] é a historia de que o marido não deixava, tava acontecendo problemas em casa, que o marido ficava questionando sobre elas iam

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sair, e hoje a gente ouve pouco as mulheres falar sobre essa questão do marido tá interferindo na sua saída de casa. Às vezes, ele antes pensava que era, esse encontro de mulheres, era apenas pra falar é contra os maridos e elas tentam esclarecer, tentam mostrar com clareza que não é bem isso, mostrar o convívio, tentar apontar melhorias para um melhor relacionamento da família, com os filhos, com o marido e tal. Então, aos poucos elas tem conseguido, melhorar um pouco mais. A gente percebe mudanças, não muitas, mas num certo percentual, não sei dizer quanto, mas a gente percebe mudanças, aquelas que têm mais atuação a gente percebe mudança. E, também, na questão da militância. Pela militância a gente percebe, um exemplo disso é a Dona Betinha, Dona Betinha é uma senhora já bem idosa, mas a gente percebe que ela tem assim, é bem consciente mesmo porque é uma pessoa idosa, bem consciente sobre questão política, sobre aquilo que é melhor pra sociedade. E você deixando ela falar ela tem muitas colocações boas sobre opções políticas e muita coisa”. (depoimento n)

Nossa entrevistada percebe uma associação entre a participação

efetiva das mulheres e as mudanças provocadas nas suas vidas. Quanto maior a

participação, atuação e engajamento mais visíveis são estas mudanças. A maior

parte dos destaques feitos foram em relação ao relacionamento familiar,

principalmente das mulheres com o marido e em segundo lugar destas com as/os

filhas/os. Segundo a entrevistada dentro da dinâmica familiar as mulheres estão

se sentindo mais livres, pois estabelecendo uma nova relação com o marido e

filhos conquistaram espaço para participarem da AMM, afinal segundo ela, a

participação na associação significa uma possível melhoria para a convivência.

Outra mudança percebida pela entrevistada refere-se à militância onde

ela destaca a consciência política das mulheres construída a partir da vivência da

na associação. Essa consciência reflete uma clareza e compreensão daquilo que

é melhor para a comunidade e para a sociedade.

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4. Militância Política e Organização de Mulheres

4.1 Militância Política: uma práxis assexuada?

Identificar o lugar da militância parece não ser uma das tarefas mais

difíceis, pois o termo nos diversos contextos situa-se no campo da política.

Vejamos algumas implicações para abordagem da militância diante desta

percepção.

A concepção de que a política é um campo privilegiado de atuação dos

homens, está entranhada na nossa cultura habitando fortemente o imaginário de

homens e mulheres de segmentos diversos, tanto daqueles mais conservadores,

incluindo aqui os que se denominam apolíticos – no caso de alguns grupos

religiosos, - como também dos segmentos que se julgam revolucionários. Essa

tendência que compõe também as Ciências Sociais acaba por privilegiar e definir

a exploração de determinadas áreas e temáticas desconsiderando na maioria das

vezes dimensões como a questão de gênero. Baseada nesta realidade é que

Camurça sinaliza que “entre os campos disciplinares, é na política onde talvez

esteja menos desenvolvido o uso de gênero”, isso se compararmos às

abordagens de outras temáticas como saúde e sexualidade.

Nossa análise sobre a militância busca identificar as implicações deste

“pré-conceito” e as suas incongruências. Queremos com esta revisão, a partir de

um enfoque crítico de gênero, reunir elementos que fundamentem a nossa análise

mais específica sobre a militância política da Associação Mulheres em Movimento.

Dentro das Ciências Sociais a categoria política, assim como tantas

outras, possui um caráter polissêmico possuindo várias acepções que foram

constituídas a partir de vertentes e de momentos históricos distintos.

Considerando o caráter eminentemente histórico da evolução do termo

identificamos pelo menos dois elementos comuns à maioria delas: o seu vínculo

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estreito com o poder e o caráter sexista ou androcêntrico em que estas

perspectivas foram construídas.

Inserida no campo da política a militância envolve essencialmente

relações de poder estabelecidas por sujeitos históricos em torno de uma causa ou

bandeira.

A militância é permeada por um conjunto de elementos como as

relações de poder, as utopias, os conflitos, as práticas, os discursos, as

conquistas... sendo quase sempre pensada de um modo generalizado, como se

seus sujeitos fossem assexuados. Mas como pensar a militância de modo

generalizado se as mulheres levantam além das bandeiras gerais, também as

específicas, justificadas pelo histórico de sua condição subordinada na sociedade?

Será que a militância das mulheres se concretiza da mesma forma quando feita

por homens? Estas são questões que buscaremos responder a partir de agora.

O termo militância originado no primeiro quartel do século XX, com o

forjamento da Revolução Russa (1917), tinha um significado bem distinto daquele

ou daqueles que utilizamos na contemporaneidade. A sua concepção original

estava muito vinculada às idéias de revolução e de partido político, num contexto

em que ambos mostravam-se simultaneamente como estratégia e como sujeitos

fundamentais para a conquista de uma utopia.

Da Revolução Russa até os dias de hoje o termo militância foi sendo

redefinido a partir das diversas experiências históricas mundiais26 ou nacionais,

construindo novos significados e possibilidades de concretude.

26 Em relação ao plano mundial, Silva Filho, identifica profundas mudanças políticas nas últimas três décadas: mudanças na base produtiva com a revolução

científica e tecnológica; a intensa globalização da economia que modificou o conceito de Estado; a queda do Muro de Berlim; a explosão dos meios de comunicação

de massa, que provoca uma modificação nos padrões de sociabilidade; e as mudanças no mundo do trabalho que vem provocando a dispersão dos trabalhadores e

desfavorecendo a militância. O autor é militante político, professor da Universidade Federal da Bahia – UFBA e um dos autores do livro Lamarca – o capitão da

guerrilha.

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No caso do Brasil, a militância tem suas expressões ora com um maior

vínculo com as experiências de lutas internacionais, ora articulada mais

internamente, com as especificidades da realidade brasileira.

O caráter de historicidade intrínseco à militância, no entanto não elimina

a existência de alguns elementos centrais. Ao falar de centralidade estamos nos

referindo às dimensões que conseguimos identificar a partir das leituras feitas da

realidade, e que estão presentes na militância nas várias conjunturas ou

significados que ela possa ter. Pontuaremos a partir de agora as quatro

dimensões identificadas: prática; ideal; processual e subjetiva27. Não que ela se

efetive de forma tão sistemática ou ordenadamente. São dimensões que estão

intrinsecamente imbricadas à militância, que de acordo com os vieses políticos

assumem significados e formatos diferentes. Manifestamos a impertinência de

buscar tomá-las isolada e hierarquicamente. Fazemos uma distinção de cada

umas das dimensões identificadas apenas como procedimento didático.

A dimensão prática da militância provavelmente é aquela mais visível,

identificada diretamente a esta. Um breve olhar sobre os significados do termo

militância nos conduz ao encontro daquilo que expressa ação, luta, movimento,

engajamento. Esta dimensão pode ser identificada na concepção de Monclar

Valverne: “a militância é ação, ‘ação social’; ação social organizada visando

efeitos de poder. Ela quer, aliás, ser a radicalização política da ação: inteligência

da raiz política de toda ação e condição de seu pleno florescimento”.

Percebemos na concepção de Valverne que a ação ocupa um lugar de

destaque na militância. Ela é, pois a condição sine qua non para a efetivação da

militância política:

Para a militância, a ação não é, portanto, senão mecanismo; mas mecanismo criador e restaurador, instituinte da sociedade e da história e produtor de sentidos. Mas para isto a própria militância será uma máquina de produção de sentidos operando sobre as ações,

27 A utilização do termo subjetiva para qualificar esta dimensão da militância, se deu na dificuldade de encontrarmos outro termo mais pertinente.

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submetendo-as a regras que a constituam como processos especificamente ‘políticos’ – simultaneamente instrumento, percurso e horizonte do investimento revolucionário.

A ação dentro da militância, embora não se confunda exclusivamente

com esta utiliza como recurso fundamental o discurso. É através dele em que ao

mesmo tempo a militância denuncia e contesta o velho e anuncia e constrói um

novo projeto de sociedade. Nesse sentido, Valverne define que “os discursos e

ações militantes são constituídos sob o modo do negativo, mas procuram extrair

sua justificação da positividade monumental de sua ´nova ordem´”.

Compreendemos a dimensão ideal como “o motor”, como a “mola

propulsora” da militância, pois é ela quem justifica a ação. Nesta perspectiva

torna-se pouco plausível pensar a militância como uma atividade neutra ou

indefinida, como se não se constituísse na revelação de significados, sonhos,

desejos, utopias e interesses em torno desta, atribuídos pelos sujeitos envolvidos:

as/os militantes. Esta dimensão que tem como fonte os desejos e paixões

pessoais, são canalizados para a coletividade, numa perspectiva de concretização

do projeto. É o esforço de materializar, de dar concretude, de tornar realidade, os

sonhos e ideais de toda uma geração.

Em relação à dimensão processual destacamos o caráter de

dinamicidade e construção da militância. A militância não pode ser concebida

dentro do campo da linearidade, mas é forjada a partir de múltiplas inter-relações

cíclicas e contraditórias. É dentro deste processo, e não apenas nos ideais que

justificam a sua existência, que são agregados os valores e os princípios de

democracia, justiça social, igualdade, liberdade... Isso nos indica que além de um

projeto de futuro construído a partir das transformações sociais, a militância

representa as condições concretas em que esse projeto é construído.

Só nos resta abordar a dimensão subjetiva da militância. É sobre esta

dimensão que centraremos nossa análise. A razão que nos levou a optar por esta

dimensão é o fato de identificarmos nela uma certa capilaridade para

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respondermos ao questionamento inicial, afinal, os sujeitos da militância

compreendem os homens e as mulheres. O fato de envolver homens e mulheres,

numa sociedade marcada pelas desigualdades de gênero, justifica a recusa de

uma perspectiva que considere os sujeitos de forma generalizada. Como esta

dimensão se refere substancialmente aos sujeitos, encontramos aqui as vias para

verificar os limites deste pressuposto universalista.

Tanto na obra de Valverne como na de Silva Filho a concepção de

militante é definida generalizadamente. Para Valverne, “o militante é o sacerdote

da ação. É através dela que se liga ao mundo e será por ela que o próprio mundo

– isto, é, a ‘história’ – será conduzido ao seu verdadeiro reino”.

A constatação de que a linguagem utilizada não flexiona gênero é a

primeira coisa que destacamos, não pela sua estranheza, pois se tornou usual a

utilização das palavras no masculino para referir-se tanto aos homens como às

mulheres, mas neste caso, por traduzir a forte vinculação que a construção deste

termo teve com a revolução e os partidos políticos num momento da conjuntura

onde as mulheres tinham pouca ou insignificante representação política na esfera

pública, até os anos 1970. Embora em número menor, as mulheres estavam

presentes tanto nos partidos como nas experiências revolucionárias, mas as

relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres longe de serem

revolucionárias reproduziam o modelo de relações da mesma sociedade que era

contestada e combatida.

Observemos na definição de Valverne, ainda, o peso imprimido pela

palavra sacerdote. Embora pareça descabido conjugar revolução com religião28, a

utilização de um termo próprio deste campo, onde havia, e há, demasiadas

explicações naturais para justificar as desigualdades de gênero, ratifica a idéia de

que a militância é uma atividade própria dos homens.

28 Fundadas em outras razões o militante aqui tem aquele sentido atribuído por Silva Filho que correspondia a um ser que renegava a Deus, sendo praticamente um

tipo especial de religião partidária do socialismo científico.

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Na abordagem de Silva Filho, ele identifica a concepção clássica de

militante e reconhecendo a historicidade do termo, não hesita em apontar os

limites para a sua adoção na atualidade. Em relação ao termo clássico, ele nos

fala do militante revolucionário, cuja representação foi inspirada basicamente ”em

Lênin e seu partido centralizado, extremamente disciplinado, unido em torno de

um programa e de algumas máximas simplificadas”. Lênin foi o inspirador de um

tipo de militante traduzindo uma

“espécie de homem de aço. Determinado, capaz de tudo suportar, de não se incomodar com o sofrimento de jogar todas as suas fichas no futuro, de se imolar em favor do porvir, de sufocar a individualidade - seus gostos, seus prazeres, seus amores, seu tempo livre, tudo - em nome de um coletivo construído teoricamente pelo partido. Que classifica como pequeno-burguês ou burguês tudo aquilo que não seja capaz de se dissolver no universo da coletividade”. (1996)

Para o autor este modelo de militante aproxima-se da sua extinção no

final do século XX, suspeitando não haver mais espaço para reclamar a existência

de homens de aço, de militantes portadores da crença de que de um lado, ao lado

de uma pequena minoria, fazem a história. Os novos militantes passam a

questionar suas lideranças e começam a desconfiar das suas convicções sobre o

futuro, pois “o que há à frente são alternativas e não um inevitável porto

paradisíaco a esperá-lo”. (1996)

Essas considerações de Silva Filho são pertinentes num mundo onde

as transformações ocorridas na sociedade nas duas últimas décadas trouxeram

consigo novas formas de sociabilidade e novas configurações da esfera pública

construídas capazes de corresponder às novas demandas e problemáticas de

uma sociedade cada vez mais complexa e multifacetada.

Podemos observar que cada uma dessas denominações refere-se

genericamente a militantes independentemente de se tratar de um homem ou de

uma mulher. Isso poderia ser interpretado aqui como uma mera determinação

secundária, mas incorreríamos num equivoco se desconsiderarmos exatamente

questões intrinsecamente vinculadas ao nosso objeto de estudo e a nossa

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proposta metodológica. Ao contrário trata-se de uma questão central considerando

que a militância pressupõe engajamento. E a medida desse engajamento é

determinada diferentemente para homens e mulheres.

Silva Filho ao identificar limites nos modelos apontados acima, não faz

qualquer referência em relação à igualdade de gênero, porém sinaliza e reclama a

emergência de um novo militante para a conjuntura atual. Por um lado ele nos fala

da incapacidade dos partidos políticos representarem as demandas sociais e por

outro a emergência de novas mobilizações, como os movimentos ecológicos e as

campanhas contra a fome, indicando que há ”o potencial de um novo tipo de

militante, submetido não à disciplina da organização clássica, mas a uma

específica idéia mobilizadora”. Queremos tomar esse sentido da necessidade do

‘novo’ como mais um princípio para reconstruirmos o significado da militância

dentro de uma perspectiva crítica de gênero.

Fazendo uma revisão da militância nos movimentos revolucionários na

experiência brasileira, podemos identificar uma longa lista de mulheres engajadas.

Fazem parte desta lista: Olga Benário, Maria Prestes, Clara Charf, Maria Augusta

Capistrano, Eneida, Iara Iavelberg29, todas estas conhecidas principalmente pela

militância de seus pais, irmãos ou companheiros ‘ilustres’. No caso do Ceará essa

identificação também é possível na militância de Bárbara de Alencar. Além destas,

tantas outras que permaneceram no anonimato, Julieta, Ivone, Maria, Angélica,

Vitória, Suzana, Margarida...

A presença dessas mulheres em importantes fatos da nossa História é

uma consideração fundamental para identificarmos ali os limites da concepção

original da militância. Se elas estavam presentes neste espaço privilegiado da

militância dos homens, como se dava à participação destas neste locus e como se

processavam as relações entre estas e os militantes?

29 O artigo de Miriam Goldenberg intitulado Mulheres & Militantes, tem como objeto de análise a militância de todas essas mulheres durante o período pré e pós-64.

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Em seu estudo Goldenberg percebe que as representações que são

feitas em torno da qualificação do militante sempre estão associadas ao modelo

de militância masculina: o domínio do discurso em grandes assembléias, a fala

dura, impessoal, métodos de disputa extremamente agressivos, a distância das

questões da vida familiar e doméstica. (1997, 354-5)

Se o sinônimo de boa militância reside nas características acima

significa dizer que os sujeitos da militância que fugir às estas regras serão

desqualificados. Isso é uma representação nem sempre tão clara de que as

mulheres exercem uma militância secundária e de mero apoio aos militantes.

Ao analisar a experiência das mulheres em experiências revolucionárias

observa que a militância desta assumem status secundário uma vez que as

experiências das revolucionárias eram adaptadas à vida doméstica. Isso fez com

que Goldenberg caracterizasse um quadro de ‘invisibilidade’ das mulheres nas

organizações políticas, sendo “escondidas” com o rótulo de ‘‘mulher de”,

“companheira de” ou “filha de”. Para a autora, conforme registra a história a:

“esquerda brasileira foi, e é até hoje, escrita em torno das trajetórias destes “grandes homens”. As mulheres aparecem como meras coadjuvantes. Aos homens cabem as decisões políticas (o mundo das idéias) e as ações práticas (o mundo público). Às mulheres, o suporte familiar e caseiro (o mundo doméstico) para que estes homens possam continuar realizando suas nobres atividades políticas”. (1997,352-353)

As desigualdades de gênero ocorridas no interior das organizações

políticas não eram alvo de contestação, de desconstrução, afinal a revolução

enquanto projeto de uma nova sociedade futuramente eliminaria as diversas

formas de opressão. E mais uma vez as mulheres participavam de uma luta na

crença de que a revolução desencadearia, a reboque, a transformação de

aspectos considerados secundários como a questão de gênero, por exemplo:

“O preconceito de gênero permanece inclusive na Rússia e na China comunistas na maioria de suas principais lideranças, que, até a chegada ao poder, colocavam na pauta das prioridades político-sociais a libertação feminina e, incoerentemente, após a revolução, relegaram as questões específicas das mulheres a um segundo plano, por

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considerarem que as revoluções sempre tinham tarefas mais urgentes e prioritárias”. (FARIA, 1997, 24).

Neste caso, as bandeiras e lutas defendidas pelas mulheres eram

consideradas secundárias e de ordem pequeno-burguesas, quando de fato elas

traziam temas para o campo político até então inconcebíveis dentro da esfera

pública. Percebemos, ainda, que a preocupação maior era com os resultados da

revolução. A revolução nesta dimensão compreendida aqui muito mais pelo seu

caráter teleológico do que pelo processo como um todo. Não importava como este

processo era desencadeado, é preciso atacar apenas o inimigo central – o

capitalismo, o regime militar, as classes sociais. A queda deste inimigo garantiria

supostamente a efetivação das demais bandeiras.

Da mesma forma como Silva Filho localizou, mesmo que

generalizadamente, dois tipos de militantes, Goldenberg, também, identifica na

sociedade brasileira dois modelos de mulheres militantes que estão em disputa no

interior da vida política: as antigas e as novas. A autora faz esta definição sem

referir-se a faixa etária ou com algum juízo de valor a respeito de suas militâncias.

Esta classificação está relacionada à discussão sobre papéis tradicionais e

modernos no interior da vida política. (1997, 357). Isso significa dizer que tanto em

contextos históricos passados como na atualidade, é possível a convivência com

os dois modelos de militantes.

Em relação às primeiras, representam a constituição de uma identidade

de militante muito mais a partir das experiências dos homens militantes que estão

ao seu redor – pai, marido, companheiro – do que propriamente em si,

renunciando seus desejos e aspirações pessoais, sua sexualidade.

Desempenham atividades percebidas como secundárias dentro das organizações

políticas, como se ali fosse uma extensão do seu próprio lar, enquanto que os

homens desenvolvem as ações de maior complexidade e que envolve grandes

decisões, estabelecendo assim uma relação desigual de poder dentro do

movimento.

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As novas militantes, ao contrário das antigas, não constroem sua

militância a partir do engajamento de seus pais ou companheiros, recusando ficar

à sombra destes. Elas compreendem que a vida pessoal não precisa ser

dissociada da vida política para o exercício da boa militância, e por isso não abrem

mão das suas aspirações pessoais na luta pela transformação social.

Além dos modelos percebidos por Goldenberg, durante a realização da

pesquisa passamos a perceber um outro tipo de militante, talvez enquadrada

como antiga ou numa posição intermediária entre esta e a nova. É o tipo de

militante que acaba assumindo uma postura socialmente construída como típica

dos homens: objetividade, agressividade, impessoalidade. Não desempenham um

papel secundário, mas também não chegam a se caracterizar como uma nova

militante.

Diante dos elementos apresentados e das mediações feitas, podemos

agora responder às indagações iniciais. Manifestamos o reconhecimento da

incapacidade de adotarmos uma concepção generalizada do termo militância,

numa sociedade marcadamente desigual, inclusive em relação à questão de

gênero. Trilhar o caminho da generalização implica em fortalecer estas

desigualdades e negligenciar as práticas políticas forjadas fora do modelo

androcêntrico. Significa reduzir o campo da política e limitar a participação dos

sujeitos nas esferas públicas e nas decisões daquilo que se refere ao bem

comum.

Em relação ao fazer político das mulheres e dos homens percebemos

que ocorre de forma diferenciada expressando as representações em torno

daquilo que se convencionou como masculino ou como feminino. Dentro de uma

sociedade predominantemente androcêntrica as diferenças existentes na prática

de homens e mulheres acabam transformando-se em desigualdades.

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O esforço de reconstrução do conceito de militância e de militante visa

romper com uma visão androcêntrica desta categoria e gerar um novo significado

que seja capaz de dar conta da análise da realidade, e em particular do nosso

objeto de estudo.

Se nos deixássemos levar pela concepção clássica do termo

provavelmente a Associação Mulheres em Movimento não poderia ser

compreendida como um espaço de militância, já que é formada exclusivamente

por mulheres que se organizam dentro de uma perspectiva transformadora,

porém, não revolucionária.

Também não poderia ser apreendida num novo modelo de militância

distante de uma perspectiva de gênero que se fundamente numa rígida divisão

entre esfera pública e privada; que tomasse como ponto de partida que a esfera

privada é o espaço da não-política e a pública como política.

Adotamos, então um conceito de militância que se aproxime daquele

usado por Goldenberg para definir as novas militantes. Militante que possa se

traduzir neste sujeito capaz de a partir da sua intervenção política capaz de

engendrar um novo significado para o interesse público, fundamentado numa

noção plural e descentrada, capaz de traduzir a diversidade e complexidade da

sociedade. (TELLES,1999, 163). Isso implica retomar lucidamente o debate sobre

o processo de desconstrução de verdades milenares que insistem em fazer uma

rígida divisão entre o indissociável. Que seja capaz de construir um novo modelo

de relações de poder e do modo de fazer política onde seus sujeitos, homens e

mulheres, possam igualmente enfrentar suas demandas e caminhar rumo a

construção efetiva de suas utopias. A utopia aqui considerada não como algo que

não pode ser realizado, pois “a utopia não é idealismo, é a dialetização dos atos

de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de

anunciar a estrutura humanizante”. (FREIRE, 1979, 27)

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Passemos agora para abordagem das concepções trazidas pelas

nossas entrevistadas quanto à sua condição ou não de militante, analisando seus

significados à luz das reflexões feitas até aqui sobre a militância política.

4.2 Militância política: identidade e auto-percepção

Como já vimos anteriormente, a militância fica destituída de sentido se

não houver um sujeito para justificá-la, seja em relação à sua origem, ao seu

exercício e ao desfrute das suas conquistas. Ao acompanharmos e apreciarmos a

análise feita por Goldemberg sobre a militância observamos que a mesma buscou

traçar um perfil específico de militante para as mulheres recusando o modelo

masculino de fazer militância, supostamente universal. Nega, portanto, o

universalismo explicativo para denominar uma ação política padrão dos homens e

das mulheres no exercício da militância.

Na incapacidade de avaliar o vasto leque de vivências de confirmação

ou de transformação da realidade, a partir da militância de mulheres delimitamos

nossa análise no que se refere à ação política de sujeitos na constituição das

relações de gênero.

Inicialmente buscamos apreender quais as concepções de política

trazidas por essas mulheres, para em seguida falarmos de militância. Ao

indagarmos essas mulheres sobre sua concepção de política obtivemos uma

diversidade de respostas, entre elas, identificamos também alguns aspectos

comuns.

“A compreensão que eu tenho de política é que, no meu ver, é totalmente errada. Porque a gente sempre pensa que a política é uma coisa boa e ela se torna ruim pra gente. Porque a gente, por exemplo, a gente vota num candidato achando que ele vai fazer mil maravilhas, e depois você se decepciona com ele, não é aquilo que você pensava que era”. (depoimento e) “A política atual é muito incompreensível. Não abrange nossas necessidades em parte nenhuma. Nem governo, nem os deputados, nem os vereadores. Nós estamos à mercê, de nada. Porque nada que você

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procura, não existe. É tudo mentira. A saúde, o emprego, o desemprego, a fome, muita criança na rua. Quer dizer, isso não tá certo“. (depoimento g)

Nas concepções destas entrevistadas a política é compreendida de

forma reducionista como correspondesse apenas a questão partidária o que leva a

falar sobre voto, candidato, promessa de campanha, governo e decepção. Mais do

que restrita ela também apresenta uma visão pejorativa de política construída a

partir das suas experiência de vida, onde certamente ela vivenciou situações

negativas, e agora faz uma referência generalizada da política. Compreendemos a

construção dessa concepção de mundo das classes populares, constituída

fundamentalmente pelo senso comum, onde a realidade é interpretada

superficialmente a partir das experiências vividas e não refletidas.

A entrevistada qualifica a política como ruim, assumindo uma postura

passiva, como se não fosse sujeito dela, e atribuindo a responsabilidade para o

governo, os deputados e os vereadores. À luz do conceito de democracia

trabalhado no capítulo 2 identificamos aqui um exemplo concreto dos limites da

democracia representativa, onde por um lado o/a suposto/a representante de fato

não exerce coerentemente o poder que lhe foi conferido, e por outro, quem está

sendo representado/a, nega a sua condição de sujeito, transferindo para terceiros

a sua responsabilidade de participação na gestão do bem comum.

Essa tendência confirma os dois pressupostos do elitismo democrático

que prevê a restrição da democracia à escolha dos/as governantes e a absorção

da racionalidade das elites ao sistema político. A percepção da influência do

elitismo democrático na nossa sociedade nos permite apreender com maior

clareza a incapacidade da democracia direta isoladamente se constituir como

caminho para a evidenciação daquilo do público. Olhando para a nossa realidade

municipal, estadual e federal e pensando nas mulheres e nas pessoas pobres, ou

seja, na maioria da população, o princípio de representatividade é ameaçado pois

ambos segmentos não estão suficientemente representados no sistema político

formal (três poderes).

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A concepção apresentada na segunda fala denuncia um aspecto

importante na atual política que é o fato dela não atender as necessidades

humanas. Para ilustrar esta situação a entrevistada cita alguma políticas públicas

que deveriam existir, mas não existem, fazendo com que ela afirme que é tudo

uma mentira. Isso certamente é o que a faz qualificá-la como incompreensível,

afinal como explicar algo que deveria atender às necessidades de homens e

mulheres e que existe, mas não atende.

“A política é... é um problema assim... é difícil de entender. Como é que é a compreensão que se tem de política, porque eu acho assim que a política seria uma coisa que a gente pudesse ter liberdade, que todo mundo quando, por exemplo, o prefeito, a câmara dos vereadores, se todos estivessem lá presentes, um grupo fora que não fosse eleito pelo povo, mas fosse eleitores, digamos assim, e que estivesse lá para ajudar no orçamento da cidade, ajudar na política. Se os políticos aceitassem que o povo estivesse lá para ajudar na municipalização ou no governo, qualquer tipo de coisa assim”. (depoimento h)

Se a entrevistada anterior falava do caráter incompreensível da política

atual, do mesmo modo, esta entrevistada inicialmente apresenta sua dificuldade

para entender e para explicar a política. Ela faz a relação da política com a

liberdade retomando o seu significado na antiguidade, fazendo-nos lembrar dos

cidadãos quando saíam para a ágora para definir os rumos da pólis grega. Ela vai

além e explica que liberdade é esta, falando da presença e da participação direta

da sociedade em espaços nos espaços de decisões políticas, sobre orçamento,

sobre a cidade, enfim, sobre o bem comum. Destaca então não só a participação

dos poderes executivo e legislativo, mas também da população, definindo uma

base ampla dos sujeitos da política. Ela percebe as resistências dos políticos

profissionais em conceberem a política desta forma, pautada na participação

popular.

Ao contrário das falas anteriores que abordaram a política

pejorativamente e que só explicitaram os seus limites, ela nos fala de

possibilidades, numa perspectiva de recuperar a essência da política. Convém

observar, entretanto que só foram destacados os espaços institucionalizados da

macro-política, sem que houvesse uma atenção para outros espaços cada vez

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mais relevantes numa sociedade onde a democracia representativa demonstra

sinais de esgotamento e onde as relações sociais caminham para uma

complexidade cada vez maior.

“Política para mim é tudo. É a questão social que envolve a vida de muita gente e eu considero assim, eu considero que nós deveríamos pensar bastante antes de eleger quem vai governar. Conhecer mais {...} porque é nossa vida que está em jogo”.

Percebemos na fala da entrevistada que ele percebe a capilaridade que

tem a política em perpassa as diversas dimensões da nossa vida e também da

sua ampla abrangência, representada quando ela sinaliza que envolve a vida de

muita gente. Chama a atenção para a cautela que devemos ter no momento de

escolher as pessoas que vão governar, pois se trata de uma atitude importante

que implicará nos rumos da sociedade. A entrevistada sinalizou uma visão mais

ampla em sua fala inicial e tratou da grande responsabilidade que escolher alguém

para governar o que é público, porém não fez outra referência sobre a participação

da sociedade civil, além do voto.

“Política faz parte da nossa vida. No meu entender, a gente não vive sem política, tudo que fazemos, nós dependemos da política, pra tudo. Tudo que a gente vive hoje é política”. (depoimento i) “Acho que política é uma coisa indispensável para o ser humano e tá no nosso dia a dia. A gente vive, a gente é um ser político, querendo ou não. Querendo ou não nós fazemos a política. Política em casa, política na escola... Não uma política concreta... compreensiva, que tem aí fora, mas a gente faz política quando a gente pensa no bem estar da nossa família e da nossa sociedade, que a gente busca”. (depoimento c)

O que as entrevistadas trazem de significativo é a não limitação da

política à questão partidária e institucional, trazendo uma visão mais ampla do que

as anteriores ao afirmarem que ela faz parte da nossa vida perpassando tudo

aquilo que vivenciamos e fazemos.

Neste caso, a entrevistada apreende a política na sua dimensão mais

ampla. Preconiza a sua indispensabilidade na vida humana, afirmando que faz

parte do nosso cotidiano. Traz uma compreensão essencial de que todas as

pessoas são seres políticos, independente da intencionalidade que tenham dessa

condição.

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Percebemos que ela não indica um locus privilegiado para o exercício

da política, apontando a casa e a escola como espaços denominados

supostamente como a-político, principalmente o primeiro. Ela faz uma breve

referência a “política concreta”, compreendida aqui como sendo aquela

desenvolvida pelos partidos políticos e pelo Estado, caracterizando-a como

política de fora. Sem dedicar-lhe muita atenção, preferiu enfatizar a razão maior de

se fazer política que é pensar e buscar o bem estar comum, para a família e para

a sociedade.

Ficamos a nos indagar mos se a entrevistada percebe algum vínculo

entre esta política denominada “de fora” e as suas demais expressões, onde conta

com a ação direta da maioria das/dos cidadãs/aos. Na buscar de obter respostas

para esta indagação, procuramos situar a sua percepção dentro da experiência

brasileira, onde inversamente o Estado surge antes da sociedade civil, gerando

um estranhamento da segunda em relação ao primeiro.

“Política é participação. Num sentido mais amplo é você se envolver em busca de vida digna para as pessoas, cidadania, direitos, colocar em comum os saberes, os conhecimentos, princípios”. (depoimento j) “Política pra mim é participação efetiva na comunidade. É a luta pra melhor viver seja na parte econômica, seja na parte de amizade, de auto-estima, de violência. Política é esses relacionamentos entre as pessoas que procuram viver bem”. (depoimento f)

Compreendendo a política no sentido lato do termo, as entrevistadas

apresentam um elemento ainda não contemplado diretamente nas outras falas: a

participação. Esta participação corresponde ao próprio envolvimento de cada ser

político nas experiências coletivas e na luta pela garantia de vida digna para as

pessoas. Ambas não fazem nenhuma referência ao conceito de política restrito

vulgarmente utilizado.

Na segunda fala foi acrescida à participação a palavra efetiva,

remetendo-nos a reflexão feita por Diaz Bordenave quando preconiza a

necessidade não só de fazer parte, mas de tomar parte e ter parte,

potencializando esta participação. Essa entrevistada define que a política se

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processa dentro das relações sociais com o objetivo maior de promover uma vida

melhor para a coletividade. Percebe que a política está imbricada nas mais

diversas áreas, desde questões mais amplas, como é o caso da economia, a

dimensões menores e mais particulares, como a auto-estima.

Percebemos também nas duas falas o esforço para recuperar a

essência do político, porém isso ocorre sem trazer a memória dos canais

institucionais. Insistimos nesta questão por entender que existe um vínculo

dialético entre o institucional e o não institucional que reúne e define aquilo que

determina aquilo que é público e o que é privado. Se o perdemos de vista

incorremos no erro de dicotomizar a realidade, fragmentando a leitura que

fazemos dela e conseqüentemente do modo como interagimos com ela.

”Antes de nós nascer nós já somos políticos. Porque quando nós fomos gerados, a gente já começava a propagar nosso nascimento. Então, já estamos fazendo uma política. Então, às vezes as pessoas dizem ai eu não gosto de política, mas tudo que nós fazemos na nossa vida envolve política. Se nós comprarmos envolve política, se nós fizemos algo que beneficie ao outro, nós estamos fazendo política. Agora é o seguinte, tem a política para o bem e a política [...] você sabe muito bem disso. Então, quando a gente está fazendo política pra resgatar os valores do outro, pra viver bem em comunidade, até mesmo pela nossa fé nós temos que fazer política. Agora tem aquele tipo de política que só massacra, só mata os valores do ser humano”. (depoimento m)

Para a entrevistada a essência da política é inata. Que a própria

geração e o nascimento é um fato político. Ela pondera que mesmo quando as

pessoas afirmam não gostar de política, mesmo assim, ela não deixa de fazer

parte das nossas vidas. Até pela fé, que é um campo onde muitos segmentos

religiosos insistem em dissociar fé e política, ela busca argumento para justificá-la.

Destacamos nesta fala a compreensão de que a política tanto pode ser

utilizada para o bem como para o mal. Enquanto de um modo geral as

entrevistadas ou focalizaram só os limites ou só as possibilidades da política ela

trouxe os dois lados. Porém essa dupla realidade é percebida por ela como duas

políticas distintas, onde uma é boa e a outra é má. Na nossa compreensão toma-

la desta forma significa dicotomizar e negar o seu princípio de contradição. Afinal

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não se trata de duas políticas, mas são duas dimensões que embora distintas

compõem uma só realidade.

A concepção habermasiana de poder traz presente esta idéia quando

nos fala das estratégias que podem se materializar como caminho para resgatar

os valores humanos e para proporcionar uma vida melhor para a comunidade e

também como mecanismo inverso, capaz de massacrar e destruir esses valores.

Com esta perspectiva podemos desconstruir a percepção idealizada ou pejorativa

da política.

“Olha pra mim a compreensão de política, ela parte assim, da nossa vivencia do dia a dia, vamos dizer assim, das necessidades básicas. A maneira de ser político não é o que a gente infelizmente, a gente não vive hoje muito não é isso, é assim muito fragmentada, é questão de você esta ligada pras necessidades básicas da população. Então, isso é que é política, uma política que ela se preocupa com o bem estar do cidadão, ou seja, saúde, educação, moradia, e tudo mais, lazer, aquilo que necessita o ser humano pra viver numa sociedade, pra ser um verdadeiro cidadão. Então, isso é que seria a verdadeira política. Mas o que nós percebemos é que a política ainda está muito fragmentada. O objetivo nosso é que faça com que pelo menos dentro do nosso movimento de mulheres haja essa conscientização, essa conscientização política de cidadão”. (depoimento n)

A concepção apresentada acima é bem abrangente e expressa a

clareza política da entrevistada. A entrevistada percebe criticamente as

manifestações da política na sociedade, sem perder de vista a sua perspectiva

conceitual. A compreende como exercício da verdadeira cidadania e diante do

quadro de fragmentação que ela se encontra destaca o trabalho da Associação na

perspectiva despertar a consciência das mulheres para que elas possam

potencializar sua condição de cidadã.

Retoma o significado essencial da política que é a atenção e a

governança daquilo que público de forma a garantir o bem comum, através de

políticas públicas que possam atender as necessidades humanas. Podemos

observar que a entrevistada fala maneira uniforme sem pontuar as também as

necessidades específicas. Reclamamos esta omissão principalmente por tratar-se

de uma entidade cuja ação está voltada para os direitos específicos das mulheres.

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Embora a associação arregimente predominantemente mulheres, a

entrevistada fala de conscientização dos cidadãos, não incorporando em sua

linguagem a flexão de gênero. Isso não ocorre somente com esta entrevistada,

mas as demais por diversas vezes se reportam a palavras masculinas para se

referir aos homens e às mulheres. Destacamos esse fator por considerarmos que

esta prática não ocorre aleatoriamente, mas traduz o conjunto de desigualdades

de gênero, expresso na estrutura e conjuntura da nossa sociedade.

A compreensão de política das mulheres da AMM nos permitiram ter

uma melhor compreensão sobre a identidade e a auto-percepção que fazem da

militância. Em primeiro lugar buscamos identificar a condição das mulheres diante

da militância política verificando se no seu engajamento na AMM elas se

percebem enquanto militantes ou não. Em seguida indagamos se elas percebiam

diferenças entre as mulheres militantes e as não militantes e para fechar este

bloco, se elas identificam diferenças entre um homem e uma mulher militante.

Optamos não em fazer uma classificação rígida das considerações feitas pelas

mulheres, mas buscar interpretá-las buscando apreender as riquezas e

particularidades daquelas falas mais significativas.

Passemos então aos relatos feitos em relação ao primeiro

questionamento. As mulheres se manifestaram, algumas revelando que sim e

outras que não são militantes como podemos verificar a partir de agora. Tomemos

inicialmente aquelas que não se identificaram ou não se reconhecem enquanto

militante política. Quatro das quatorze entrevistadas não se consideram militantes

políticas.

“Não, não me considero uma militante política. Sempre eu vou por ai, sempre na medida do possível vou ajudando, ajudando com aquela esperança, aquele caminho, mais eu sou aquele tipo de pessoa, eu sou pacata, não gosto de greve, apesar que eu sou funcionária e nosso salário faz quase 8 anos que nosso salário... nós não temos aumento, eu nunca gostei de greve, eu sou muito, gosto muito de paz, tranqüilidade sempre na esperança de resolver, [...]. Na política sempre vou na medida do possível, inclusive eu faço parte da eleição, eu trabalho na eleição, mas sempre na medida do possível”. (depoimento a)

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“Não senhora, porque não. Mas você sabe que assim mesmo até brigo né, pelo meu povo. Eu não me considero não porque eu não faço política, eu não trabalho em política, não me considero não”. (depoimento b) “Militante não. Eu sou um ser político porque eu procuro sempre viver assim de acordo com, buscando uma coisa melhor pra minha vida, pra vida da minha família e pra sociedade. E assim não uma forma complexa, mas procurando ter uma compreensão de quem eu vou votar, procurando melhorias, vendo o que é certo ou errado, sendo um pouco cidadã, mas nessa questão de cidadã mesmo ai eu me considero. Mas não militante de ficar dia e noite se envolvendo, tendo um partido, eu não sou partidária”. (depoimento c) “Dentro da palavra em si, profundamente, militante não. Porque eu não sou ligada a nenhum partido, mas eu procuro conhecer os movimentos políticos eu procuro estar atenta à qualidade, ver quem realmente merece meu voto e eu gosto muito de participar do movimento, estar sempre em busca do melhor, não só para mim, mas para a sociedade”. (depoimento d)

Ao justificar o fato de não se considerarem militantes políticas, as

entrevistadas demonstram que a sua compreensão de militância vai ao encontro

da concepção clássica do termo que está associado à revolução e ao partido

político. Elas não se identificam, pois, são contrárias às práticas que expressam

uma maior radicalidade como é o caso da greve. A primeira afirma não gostar de

greve porque é uma pessoa pacata, que gosta de paz e tranqüilidade, defendendo

esta postura mesmo diante de um quadro de defasagem salarial, decorrente de

oito anos sem aumento salarial. A segunda, inconscientemente, também faz essa

relação quando afirma que mesmo brigando pelo povo não é militante.

Os dois últimos depoimentos confirmam implicitamente também uma

concepção clássica do termo. A terceira entrevistada expressa isso no final da sua

fala quando diz que não é partidária e a quarta quando diz que não é ligada a

nenhum partido político. No terceiro depoimento foi utilizado pela entrevistada o

termo ser político para designar sua ação na sociedade, cuja efetivação ocorre,

como ela denominou, de uma forma não complexa. Ao afirmar isso a entrevistada

nos leva a compreender que a complexidade é típico do/da militante e não do ser

político. Ambas exercem sua ação política na perspectiva de buscar a melhoria

das condições de vida para si e para a coletividade, sem no entanto se

identificarem com militantes políticas.

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Passemos agora para a consideração das mulheres que se identificam

em parte ou totalmente com a condição de militante política.

“Num certo ponto me considero. Por que eu participo muito, não sabe? Quando têm reuniões na comunidade, eu tô sempre na reunião. Quando tem assim, eventos, eu também tô lá. Na reunião das missões também tô. Ai quer dizer, eu tô sempre na ativa. Só quando eu não posso mesmo, quando tem alguma coisa que me impede é que eu não participo”. (depoimento e) “Sim, me considero, porque estou ativa nos movimentos daqui da comunidade. Na Associação Mulheres em Movimento a gente luta por esses recursos, por melhores condições de vida”. (depoimento f)

Ao se considerar uma militante a primeira entrevistada justifica sua

condição pelo fato de participar da vida da comunidade. Essa declaração expressa

bem aquilo que Diaz Bordenave utilizou para denominar o termo participação que

é “fazer parte, tomar parte ou ter parte” (1994, 22). Observemos que num primeiro

momento ela indica que está presente nas diversas atividades da comunidade e

no final sua fala afirma que mais do que presente, ela está “sempre na ativa”.

Destacamos este trecho devido a distinção feita por Diaz Bordenave entre a

participação ativa e passiva, correspondente ao/à cidadão/ã engajado/a e o/a

cidadão/ã inerte. O autor prevê níveis diferenciados de participação, onde fazer

parte é menos intenso que tomar parte. Este último significa participar

efetivamente do processo de tomada de decisões tanto em espaços micro quanto

macro. Pelos relatos acima pudemos observar que a participação das

entrevistadas situa-se muito mais no espaço micro que é a comunidade.

“Me considero. Porque defendo todos aqueles que estão precisando de um apoio, de uma briga, se a pessoa quer entrar numa briga e não tem aquele apoio, eu não quero nem saber o que é, eu me junto defendendo aquela pessoa, ou seja, desde que esteja certo o que está fazendo”. (depoimento g)

Esse relato revela que a entrevistada assim como outras já citadas

fazem uma correspondência entre militância e uma ação política mais radical,

ofensiva. Devido a esse determinante, nos casos anteriores as mulheres não se

identificaram como militantes e neste caso ocorre exatamente o inverso. Expressa

bem isso quando fala de defender e brigar por quem necessita de apoio, desde

que seja uma causa justa. Neste caso, também a entrevistada demonstra “tomar

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parte” diante das situações experimentadas e o faz mediante uma condição

orientadora que é uma causa justa.

Silva Filho ao definir o modelo de militante que segundo ele começa a

entrar em extinção a partir do final do século XX, fala em homens de aço que se

percebem como os fazedores em nome de uma grande minoria. Percebemos,

neste caso, o desejo de uma pessoa fazer pela outra e não fazer com, gerando

dependência. Embora essa postura revele um certo altruísmo, ela nega também o

princípio da condição de sujeito e da autonomia.

“Sim, eu me considero, porque estou junto ao povo, estou ao lado do povo, a gente está sempre debatendo [...] a gente está sempre se organizando nesses grupos de mulheres, a gente está sempre tentando se organizar, conversar, fazer uma forma para a gente ter conscientização política”. (depoimento h)

A condição citada pela entrevistada de estar junto e ao lado do povo

não se refere a uma informação meramente espacial, mas faz parte de uma

consciência de classe e opção política. A partir de uma vivência coletiva as

mulheres vão buscando se organizar e estabelecer uma comunicação que

construa uma conscientização política. Embora não tenha sido citada neste trecho,

percebemos que a entrevistada fala de conscientização sempre fazendo a

articulação com as práticas políticas. Isso nos leva a concluir que o significado

desta conscientização não se restringe a uma suposta elaboração intelectual, mas

configura-se como construção que “não pode existir fora da ´práxis´, ou melhor,

sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente,

o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens” (FREIRE,

1979, 26).

Passemos agora para uma fala que se apresentou para nós como

emblemática, quando a indagamos a uma das entrevistadas se ela se considera

uma militante política:

“Me considero, sou delegada do PT". (depoimento i)

Notemos que a entrevistada utilizou o termo delegada embora quisesse

afirmar ser filiada ao Partido dos Trabalhadores. A entrevistada foi direta e

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contundente ao afirmar ser uma militante devido a um único fator: dela ser filiada a

um partido político. Registramos o fato da entrevistada neste momento não ter

feito nenhuma articulação com outras vivências da sua prática política.

Questionamos se essa omissão foi consciente o que pode revelar uma visão

estrita do termo.

A entrevistada abaixo embora considere também o partido político

como um espaço de atuação dos e das militantes não restringiu sua compreensão

a este.

Sim, me considero porque não vejo só o partido político, apesar de ser filiada num partido político, mas sou militante no sentido de mostrar realmente o sentido da política, pois, todos nós como pessoas humanas somos políticos. Então me considero uma militante política, neste sentido, de sempre estar vendo as questões confiáveis de conhecimento a vida para as pessoas {...} num sentido mais amplo que é o sentido de viver no mundo, de precisar ter casa, educação, as condições básicas que o ser humano precisa”. (depoimento j)

A entrevistada reconhece a condição política como inerente à cada

pessoa e à vida humana. Quando a entrevistada fala de vida, faz uma associação

com um significado religioso de definir vida plena, vida em abundância. Ao falar

sobre esta dimensão utópica da vida ela traz uma concepção ampliada referindo-

se ao corpo e ao espírito, negando as perspectivas que acabam por gerar uma

dicotomia entre esse par.

Outra entrevistada revelou ser uma militante não do ponto de vista

partidário, mas como pessoa, como ser humano.

Partidária não, eu na realidade, se tratando de política partidária eu me filiei a uns três a quatro anos, nem me lembro mais, no PDT, mas nunca participei, nunca comunguei da ideologia do partido. Então não posso me considerar uma militante partidária. Me considero militante como pessoa, como um ser humano que está na sociedade pra agir e interagir junto às organizações públicas, visando o bem estar comum da coletividade de todos. [...} Militante é aquele que realmente exerce um papel dentro da sociedade, não visando a política partidária, porque a política partidária no nosso pais, não assim só no nosso país, mas numa forma de visão assim mundial, elas visam mais interesses próprios, os políticos partidários eles visam mais interesses próprios. (depoimento l)

A entrevistada começou respondendo que tipo de militante ela não é,

no caso, uma militante partidária. Embora tenha estabelecido um vínculo

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institucional com um partido político afirma que de fato nunca ter vivenciado a

militância partidária. No decorrer da sua fala percebemos uma referência

pejorativa em relação à militância partidária generalizando o quanto ela configura-

se como objeto de conquista de interesses pessoais dos políticos. A sua

concepção de político partidário é semelhante ao de político profissional,

denominado pelo educador e psicanalista Rubem Alves. Para Alves a política por

profissão é diferente daquela por vocação, pois “na vocação a pessoa encontra

felicidade na própria ação” enquanto que “na profissão o prazer se encontra não

na ação. O prazer está no ganho que dela se deriva” (2002, 10). E a sua

concepção do verdadeiro militante vai ao encontro do que Alves denominou de

político por vocação. Militância partidária à parte, a entrevistada se percebe como

militante apresentando alguns elementos significativos nos remetendo as

dimensões por nós abordadas anteriormente: ela nos fala da dimensão subjetiva

da militância, ao se perceber como sujeito desta; da dimensão prática e

processual quando se refere à ação e interação simultaneamente; e da dimensão

ideal quando fala do que se pretende alcançar para o bem comum.

Continuando a mesma fala a entrevistada se empenhou em apontar

atributos imprescindíveis ao verdadeiro militante:

“o verdadeiro militante é aquele que pensa no povo, na coletividade, ele é ético, ele deve ser ético. O militante deve ser ético, deve ser autocritico, ter senso realmente, um senso de crítica apurado. Ele deve ser uma pessoa que questiona, não deve ser inconformado, de jeito nenhum. E não tem como ser, se dizer militante se você não reúne uma série de qualidades, que faz te dizer, que alguém te aponte como uma pessoa que realmente exerce um papel, vamos dizer assim, um papel de ajudar na construção de uma sociedade mais justa, mais igualitária pra todos”. (depoimento l)

A utilização dos termos ética e coletividade dentro da perspectiva de

construção da esfera pública pressupõe que a pessoa militante seja capaz de

romper com os limites da sua privacidade e passa a interagir também

politicamente, com outros sujeitos na gestão do bem comum. A entrevistada

traçou um conjunto de atributos para definir o/a verdadeiro/a militante, norteando a

prática destes/as na sua capacidade de contribuir para a transformação da

realidade, na construção das utopias coletivas.

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Evidenciamos também a importância da entrevistada perceber na ação

dos sujeitos militantes uma contribuição para o alcance de uma sociedade mais

justa e igualitária para todos/as. Isso refuta a concepção do militante vanguarda

que vai conquistar por si só as transformações almejadas. Se ele contribui com a

transformação significa que outros sujeitos são necessários para que ela de fato

ocorra, mesmo que eles não se identifiquem como militantes.

Anteriormente abordamos a concepção definida por Silva Filho que

aponta que o modelo clássico de militante é aquele que se origina dentro do

partido político, tem uma ação de cunho revolucionário e abdica da sua vida

pessoal para dedicar-se quase que exclusivamente à militância. Esse modelo de

militante, segundo o autor, começa a entrar em declínio a partir do final do século

XX, onde a realidade passa a exigir outro perfil para estes sujeitos sob pena de

não materializar seu propósito maior de transformação social.

Analisando as falas das entrevistadas podemos perceber que

genericamente para elas o conceito original do termo militante está decisivamente

presente em seu imaginário, norteando as respostas, seja para confirmar, seja

para negar a sua condição de militante política. Identificamos pelo menos três

aspectos nesse processo de construção do conceito de militante.

O primeiro aspecto a ser observado é de que a definição que as

mulheres fazem sobre a militância tem por base a sua própria experiência de vida.

Isso fica evidente, pois a maioria dos relatos refere-se a sua realidade imediata na

comunidade, no bairro e principalmente na família e dentro da Associação. Em

algumas delas percebemos um maior grau de reflexão da sua prática quando são

capazes de fazer articulações capazes de apreender a complexidade e as

contrações da realidade. Outras se posicionam diante da sua prática de forma

reativa, sem perceber os aspectos determinantes desta realidade, inclusive a sua

própria forma de interagir com ela.

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O segundo aspecto é de que existe um vínculo estreito entre a definição

da militância e o conceito de política trazido pelas mulheres. Quando elas tem uma

visão estrita do termo

E o terceiro aspecto compreende o fato das mulheres trazerem no seu

imaginário a referência do conceito clássico da militância, fazendo uma

correspondência entre militância e uma ação política revolucionária ou ligada a um

partido político. Algumas não se reconhecem como militantes, pois têm uma visão

estrita da militância; outras ultrapassam os limites deste conceito e se

autodenominam militantes. Ou seja, a concepção clássica do termo militância

orienta as construções trazidas tanto para confirmá-la como para ultrapassá-la, de

forma que ela possa interpretar a atual realidade política.

É na mediação destes três aspectos onde os sujeitos de forma

autoconsciente ou não dialogam com a realidade em que vivem. Quando essa

ação política se processa de forma refletida e autoconsciente possibilita que os

sujeitos revisem e tenham uma maior compreensão da sua militância.

Na perspectiva de compreendermos ainda mais o universo da militância

dessas mulheres indagamos se elas percebiam haver diferenças entre uma

mulher militante e outra não. Analisemos, pois o que há de significativo nestas

falas.

Apenas uma das entrevistadas considera não haver diferença entre

uma mulher militante e outra não. Para que tenhamos uma melhor compreensão

da postura desta entrevistada ela é a mesma que se manifestou não saber nada

sobre política, como também a não se perceber como militante.

“Não acho que não, cada qual vive como pode”. (depoimento b)

Com exceção da entrevistada acima, todas as outras revelaram

perceber diferenças entre as mulheres militantes e as não militantes. Seguem

abaixo as diferenças identificadas por elas.

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“Existe porque a militante tá sempre buscando alguma coisa pra fazer e ela nunca está cansada nem deprimida e a mulher não-militante ela está deprimida, só vive brigando, se incomodando com a vida alheia. Muito diferente, toda vida que você vier buscar um apoio em mim eu estou sempre disposta a lhe apoiar e se você for buscar apoio a outra mulher você não tem, eu sou diferente por isso, porque estou sempre a posto, pro que der e vier, entendeu? Tô sempre a posto, nunca digo não vou não, se você me chama eu vou, eu largo tudo e vou me embora”. (depoimento g)

O perfil de militante traçado nesta fala é semelhante aquele atribuído

aos homens dentro da visão clássica. Percebemos aqui um modelo de militante

“superpoderosa” disposta e capaz de enfrentar, sozinha, as adversidades da

realidade. Essa relação é feita de forma idealizada, ficando evidente ainda mais

quando a entrevistada traça as características da mulher não militante. Quando

ela fala do perfil da militante o faz de forma idealizada, mas quando se refere à

não militante podemos perceber uma certa caricaturização como se

genericamente isso ocorresse com as mulheres que não estão engajadas em

nenhuma organização política. Esta idealização na visão da entrevistada se

materializa na sua própria experiência. Em outras palavras, podemos perceber

que esta mulher considera-se o tipo de militante ideal.

“Existe porque a militante é aquela que participa e a não militante ela não se integra de nada, ela não sabe de nada, ela não sabe nem é bem dizer assim, o que acontece numa igreja, as atividades, acha que é só pra assistir missa e ir pra casa. Acho que a diferença é ela não participar, a diferença seria essa, dela não participar”. (depoimento e)

O elemento definidor da militância e a não militância, segundo a

entrevistada é a participação. Quando ela fala que as não militantes não sabem de

nada está referindo-se ao desconhecimento de informações sobre o que está

acontecendo na comunidade. Ela cita particularmente o caso da Igreja onde a

participação das não militantes limita-se a assistir a missa sem engajar-se em

outras atividades. A Igreja não foi citada aqui aleatoriamente, mas como

abordamos no capítulo anterior, pelo lugar de centralidade ocupada nos bairros da

periferia de Fortaleza e em particular pela sua influência na AMM, uma vez que ela

configura-se como espaço dinâmico de socialização nas comunidades a partir da

promoção de diversas atividades como cursos, campanhas solidárias, grupos de

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oração, formação política e evangélica, formação de grupos de jovens e casais,

festas...

A próxima entrevistada que também percebe diferença entre a mulher

militante e a não militante também fala de participação:

“Porque a mulher que não participa, que não é militante ela é alienada. Ela é tão alienada que acha que Deus criou as coisas assim mesmo, o homem cuidando, em cima da mulher. Ela tem que obedecer às ordens do homem, porque só o homem é imagem e semelhança de Deus, a mulher não. Então, ela não se valoriza como pessoa humana, ela se sente um objeto, como é que se diz? De serviço”. (depoimento i)

Além da participação como condicionante para identificar uma mulher

militante ou não, a entrevistada falou de alienação, referindo-se a falta de

criticidade essencial para a mulher possa perceber as desigualdades de gênero e

o caráter sexuado das relações sociais. Ao não perceberem a construção histórica

e cultural da subordinação das mulheres em relação aos homens, as mulheres

não militantes acabam se desvalorizando enquanto ser humano e enquanto

sujeito, reforçando o quadro das desigualdades de gênero.

“Existe. Na minha opinião existe. Porque quando a pessoa participa dos movimentos, das organizações feministas ela cria um novo horizonte na sua mente. Ela passa a ver o mundo de forma diferente, com mais igualdade, com mais respeito, com mais direitos. Enquanto a que não participa ela continua sendo escravizada, ela continua é com a mesma mentalidade dos antepassados, dos pais que vem repassando de geração em geração que mulher é pra obedecer, mulher é pra ficar em casa é, mulher não tem direito a isso ou aquilo, a um salário bom, digno. Então, isso tudo, quem está no movimento, quem está engajada, quem é militante percebe eles muito diferentes”. (depoimento f)

Para esta entrevistada a militância é o caminho para que as mulheres

tenham oportunidade de ampliarem suas concepções de mundo e tomem

consciência da sua condição de “direito a ter direitos” (Gohn). Segundo seu

depoimento, a falta de engajamento e de participação das não militantes as

deixam mais suscetíveis a aceitarem as naturalizações feitas em torno da suposta

condição subordinada das mulheres.

“Existe, porque a gente procura, a gente vê o problema da outra, a gente conversa, a gente assim até um pouco se desestressa. E eu acho que as outras pessoas estão só naquele mundinho e não vê que tem outros horizontes, a gente tinha outra visão, quando a gente ia a gente vinha com nossos problemas e deixava em casa mesmo e pronto. Estar em grupo, precisar daquele grupo, partilhar, e você via que quando você não

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participava daquele grupo você aumentava o problema e quando você participava você não tinha, não achava tão relevante quilo que você estava passando”. (depoimento c)

Nesta fala uma das diferenças percebidas é a identidade coletiva que

permite que as militantes percebam os outros sujeitos e a realidade por eles vivida

como semelhante a sua. Essa é uma condição fundamental para a constituição de

uma esfera pública, onde seus/suas integrantes partilham vivências e saberes e

tomam decisões referentes à coletividade. Essa experiência permite que as não

militantes rompam os limites do seu “mundinho” - o espaço doméstico -, ampliando

sua realidade. Esse relato apresenta duas realidades distintas vividas pelas

mesmas mulheres, trazendo presente a dimensão processual abordada no início

deste capítulo, ou seja, de que o exercício da militância é construído. Nesse

caminho percorrido a mulheres vão ampliando suas concepções de mundo e suas

práticas rumo ao alcance dos seus objetivos pessoais e coletivos, assim como

pressupõe Goldemberg.

A entrevistada abaixo afirma haver distinção, mas somente em relação

ao exercício da militância e não em relação à identidade da mulher em si.

“Existe, agora só na questão da militância, porque como mulher, como pessoa não existe diferença nenhuma. A mulher sempre é mulher [...] Existe a diferença de estar na militância. É que algumas mulheres têm a oportunidade, são despertadas e têm a oportunidade de realmente exercer um papel dentro da comunidade, na sociedade como alguém que fala pelo outro, como alguém, que vai lá, que questiona, que defende o outro, mas a mulher mesmo em si eu não acho que há diferença como pessoa, como ser humano não, apenas algumas têm, fizeram e têm a oportunidade de fazer, de exercer algum trabalho de ir pra rua, de estar numa associação, de estar no movimento, de estar na igreja, e falando, falando e protestando, denunciando também, que militante precisa ser um pessoa que denuncia. Essa é a única diferença. Acho que é uma questão de oportunidade, mas que todas tem o dom de falar, de poder, basta que haja uma oportunidade” (depoimento l)

A concepção trazida por este ser político, como ela assim se

denominou em momento anterior, compreende que todas as mulheres são

portadoras de potenciais que podem ser desenvolvidos ou não de acordo com as

oportunidades de vida. Essas oportunidades acontecem mediante o engajamento

desses sujeitos em espaços e práticas coletivas onde a partir de suas concepções

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as mulheres se posicionam politicamente, tendo uma maior compreensão da

realidade e uma maior clareza do seu papel na comunidade/sociedade.

Em relação a essa postura política, a entrevistada enfatiza a

capacidade de denúncia como condição intrínseca da militância, pois mais do que

anunciar o novo, a utopia, se faz necessário denunciar aquilo que contraria as

necessidades e interesses coletivos, numa perspectiva de desconstruir os

modelos vigentes de valores e relações sociais.

Um aspecto dessa fala nos faz questionar a efetividade daquilo que a

entrevistada preconiza. Ela atribui uma responsabilidade às militantes de falarem,

de questionarem e fazerem “pelo/a outro/a”. Fazemos aqui uma provocação de

como esta prática pode gerar um aspecto que é comum à fala das entrevistadas,

que é uma transformação social, sem a garantia da ação dos próprios sujeitos no

atendimento de seus interesses e necessidades. Qual a efetividade dessa

transformação se não prescinde da ação e voz direta de seus sujeitos?

“Há muita diferença, porque infelizmente a mulher que fica só dentro de casa, que não está participando seja em associação, seja em um grupo ela fica também muito limitada em um aspecto. Enquanto a mulher militante está mais engajada, está na luta, tem uma visão maior, ela está participando, ela está sempre buscando um caminho para as mulheres que vêm participar, então realmente há essa diferença”. (depoimento j)

A fala desta entrevistada nos remete à consideração de que as

mulheres não militantes ocupam um lugar central na sua vida que é o espaço

doméstico. O que ela revela em sua fala é a desconsideração de que o espaço

doméstico e privado foi socialmente definido como apolítico, preocupando-se com

as questões da vida cotidiana, consideradas de menor importância se comparada

com o espaço e com a esfera privada. Para ela, as militantes têm uma atuação

além do espaço doméstico, possuindo uma maior consciência da dimensão

política da vida. Sua luta ultrapassa as relações e os interesses pessoais e

familiares, que também são de ordem política. Apesar de demonstrar essa

percepção mais ampla a entrevistada nos fala de buscar caminhos para as

mulheres, dando ênfase apenas ao sujeito historicamente dominado,

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desconsiderando assim, as relações de gênero no processo de desconstrução das

desigualdades e da construção de um modelo de relações mais igualitárias.

Nas diversas caracterizações feitas das mulheres militantes e não

militantes, de um modo geral os depoimentos demonstraram simultaneamente a

noção de uma presença ativa ou passiva no mundo.

“Existe. Existe por que a mulher militante ela tem força, ela tem voz, ela fala quando vê que tem algo errado e a que não é ela sempre cala, ela apanha e fica calada, tudo que acontece com ela, ela tá sempre ficando calada, ela tá sempre sendo omissa, por que ela acha que não deve falar. [...] Ela não tem a liberdade de escolher uma roupa, liberdade de escolher uma coisa que ela quer, [...] então, tudo ela faz assim como que seja um cachorrinho. Então, ela se conforma. E nós militantes nós temos nossa voz e nossa vez, nós vamos em busca do que nós queremos”. (depoimento m) “Existe, com certeza. A mulher militante ela é mais conscientizada, é questionadora, e aquela que não é militante, ela está muito assim, ela é muito passiva, ela assim não questiona nada, aceita muita submissão em tudo e por aí vai. Tem muita diferença, ela não é uma mulher politizada, a militante é mais politizada”. (depoimento n)

Nessas falas a diferença central é de que as mulheres não militantes

são aquelas que não se reconhecem como sujeitos e por isso esperam as coisas

acontecer. As militantes reconhecendo-se enquanto sujeitos e sendo mais

politizadas fazem acontecer as mudanças através da sua ação política engajada

nos movimentos. Engajamento esse que pressupõe a existência de outros sujeitos

que a partir de identidades diversas são capazes de perceberem interesses

comuns e construírem uma nova identidade, agora coletiva.

Se recuperarmos o conceito de sujeito atribuído por Telles,

perceberemos que a militância perpassa necessariamente pela capacidade de

homens e mulheres se manifestarem enquanto sujeitos, na sua diversidade,

construindo novos significados para os interesses públicos.

Após terem sido provocadas a falar da condição da militância entre as

mulheres, convidamos as mesmas a expressar a percepção que elas tem sobre a

militância de homens e mulheres, destacando as diferenças entre uma e outra,

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caso elas existissem. Quando as mulheres falaram sobre a diferença entre as

mulheres militantes e não-militantes conseguiram se expressar com clareza e

objetividade, além de apresentarem justificativas mais consistentes do que neste

caso.

Algumas mulheres responderam não existir diferenças entre um homem

e uma mulher militante, mesmo que algumas delas quando foram dar suas

justificativas contraditoriamente acabaram por apontá-las. Outras mulheres

afirmaram que em parte, existem diferenças e há ainda aquelas que percebem

diferenças substanciais entre a militância de homens e de mulheres. Vejamos

abaixo, os argumentos utilizados para fundamentar estas três vertentes de

pensamento.

“Não, eu acho que nem tanto. Porque eu acho assim, que o militante que tá nos movimentos está buscando o mesmo objetivo. Engajado assim na luta, por um objetivo, por aquilo que ele tá querendo, uma coisa melhor e as mulheres é a mesma coisa eu acho, não existe muita diferença”. (depoimento a)

Apesar de afirmar não existir muita diferença destacou apenas o que há

de comum, deixando implícito o que em parte difere entre homens e mulheres

militantes. Segundo a entrevistada acima, o fato dos homens, assim como as

mulheres, estarem engajados, são portadores dos mesmos objetivos, interesses e

concepções. Ela não consegue perceber que além de questões comuns existem

as especificidades. Ao falar assim mistifica a militância como sendo o caminho

para um projeto político único e universal, como se existisse uma única utopia. Se

ambos têm objetivos comuns, então o que justifica uma organização só de

mulheres, assim como de outros segmentos? Como hegemonicamente as

relações de gênero na sociedade são marcadamente desiguais compreendemos

que na militância política essas desigualdades tanto podem ser desconstruídas,

como reproduzidas, seja numa organização constituída exclusivamente por

homens, ou por mulheres, ou ainda, por ambos. As relações de gênero são

socialmente construídas dentro da mesma dinâmica que serão reconstruídas, num

processo lento que envolve reflexões e vivências dentro e fora das organizações

políticas.

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“Não, acho que pelo contrário [...] eles vão caminhando juntos, eles aprendem muito também, eles aprendem até a conviver melhor com a mulher, até se as esposas levassem os homens seria até mais produtivo, porque eles tinham pensamentos mais iguais. Quando a gente vê que é só a mulher que tá e que participa e o homem fica em casa, a gente vê que não tem a sintonia, quando os dois participam, eles têm uma maior sintonia”. (depoimento c) “Eu acho assim que não exista muita. Quando ele é militante é companheiro que ele entende a companheira, que ele entende o lado militante da mulher, eu acho que nesse lado ai tem um pouco de igualdade, não pra todos os homens [...] mas tem muitas pessoas que ele é militante, a esposa é militante. Então, a gente vê, tem assim uma igualdade, um vai para um lado, outro vai pro outro, quando eles se juntam a noite não tem problema. Então, ali eles têm a união porque eles dois lutam pelos mesmos direitos. Porque a gente vê, tem muito homem que ele já tá lutando, eles falam muito pelos direitos das mulheres, a gente vê que tem, não são todos, mas muitos já fazem isso”. (depoimento m)

A primeira entrevistada afirmou não existir diferença entre um e outro e

a segunda uma pequena diferença. Quando foram fazer a fundamentação

acabaram por falar da relação entre um militante homem e uma militante mulher

quando são companheiros. Quando os dois são militantes caminham juntos e

convivem melhor na família. Quanto à militância, ela faz referência ao caso da

AMM, que se tivesse também à participação dos homens, seria mais produtiva,

pois segundo ela ambos teriam pensamentos iguais permitindo uma maior

sintonia. Mesmo admitindo não poder generalizar o seu argumento ela afirma

existir uma relação de gênero pautada na igualdade e na união na convivência

doméstica e um respeito e compreensão pela militância do outro. Quando a

entrevistada fala que cada um vai pra um lado interpretamos isso como uma

ilustração de autonomia destes sujeitos na sua interação com a esfera pública na

luta pelos mesmos direitos. Outro aspecto destacado em sua fala é que no

engajamento e atuação dos homens, alguns deles já conseguem defender os

direitos das mulheres. Ainda que pela sua fala eles consigam construir uma

relação de gênero diferenciada do modelo hegemônico, ela não aborda dentro da

militância de cada um deles a luta por relações igualitárias de gênero, limitando-se

a fala da luta pelos diretos das mulheres.

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Outras entrevistadas identificam diferenças entre militantes mulheres e

militantes homens, apontando aspectos comuns e outros diferenciados.

Apresentamos abaixo suas concepções:

“A diferença entre um homem militante e uma mulher militante talvez é a forma como ele se expressa, ela se expressa, se comunica e é lógico que a minha forma de pensar é totalmente diferente da de outra pessoa. Eu não vejo diferença como pessoa, como seres humanos, mas a maneira de pensar, de agir, a maneira de denunciar ou não, aí faz a diferença entre um homem e uma mulher é em vários aspectos. Nós somos seres iguais, mas a maneira de pensar, de interpretar sobre um determinado assunto pode ser completamente diferente da sua ou da dele, tudo vai depender da visão da minha ótica e da ótica dele. [...] Então a gente se diverge em questão de opiniões. Eu acho a diferença de um homem militante e a mulher militante é exatamente isso, a maneira da ótica, de que tem que ver as coisas de opinar”. (depoimento l)

Um aspecto importante presente na fala da entrevistada é o fato dela

evidenciar a diversidade dos sujeitos. Observamos que ela aponta diferenças

entre homens e mulheres militantes sem, no entanto, hierarquizar a prática de uns

e de outras. Se na maioria dos depoimentos esteve presente de forma mais

efetiva a questão da igualdade, esta entrevistada recupera a noção da existência

de diferenças, afinal como pensar o campo da política sem a existência da

diversidade. Sem compreensão da diversidade não haveria necessidade de

política e da constituição de esfera pública, assim como compreendê-la e não

aceitá-la, é abrir caminho para a uma leitura e para uma prática maniqueísta e

excludente.

A entrevistada reconhece que independentemente de sexo cada

pessoa é única e possui uma concepção de mundo diferenciada. Ela preconiza o

princípio da igualdade entre as pessoas e por isso não percebe diferença entre

homens e mulheres enquanto seres humanos. Mesmo assim, percebe uma

diferença entre a militância de um e de outro. Das diferenças identificadas ela

aponta a forma de se expressar, de pensar, de agir, de denunciar. Embora aponte

estas diferenças a entrevistada não consegue qualificar o que e como ocorre com

um e outro.

“Percebo, percebo porque a mulher é mais sensível, ela percebe muitas coisas, ela está mais envolvida com essa questão da família, do trabalho, das necessidades. Então, ela tem uma visão mais ampla. E o homem

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não, ele é muito limitado, ele vê as coisas muito assim de um lado racional, intelectual, enquanto que a mulher não, ela ver mais amplo, tem a visão mais ampla”. (depoimento j)

Esta entrevistada falou com muita convicção da diferenças que ela

percebe entre a militância de homens e mulheres, diferentemente da anterior,

qualificando como isso ocorre. Para ela as mulheres possuem maior sensibilidade

e uma visão mais ampla da realidade em relação aos homens. De acordo com a

sua fala a experiência de vida trazida pela mulher de viver envolvida com a família,

com o trabalho, com as necessidades lhe permitem uma visão mais completa da

realidade fundada não apenas na racionalidade, mas também com sua

sensibilidade.

“Bom, eu acho que existe essa diferença, mas eu acho que essa diferença muda de acordo com o comportamento de homem e de mulher em relação da diferença que há no sexo. É uma outra maneira de pensar do homem, as ações dele, a sua ideologia como homem masculino e a mulher também, por que eu acredito que o homem ele não é tão detalhista pra despertar pros detalhes, pra situação de estar na pele da mulher, no seio da sociedade, ele pode ser um militante, mas ele nunca, não tem uma sensibilização mais forte que a mulher que é militante, entendeu? A mulher militante, com certeza ela tem um grito maior em torno da realidade, da mulher em si mesmo [...] a mulher ela passa sensibilidade mais no seu discurso como militante, no discurso e na prática também”. (depoimento n)

Se as características percebidas pela entrevistada entre a militância de

homens e de mulheres existem, não ficou explícita, o caráter da construção social

dessas “identidades sexuadas” (Puleo).

Segundo a entrevistada existe diferença e ela é definida pelo

comportamento de homens e mulheres de acordo com o sexo. Percebemos que a

entrevistada traz no seu imaginário um modelo de padrão para o que se

convencionou como masculino e como feminino. Dentro desse padrão ela destaca

a sensibilidade das mulheres como elemento diferenciador da militância dos

homens. Para ela a sensibilidade feminina define uma maior percepção da

realidade e no exercício da sua militância (discurso e prática).

Quando problematizou sobre a generalidade do termo militante para

designar homens e mulheres Goldemberg foi buscar a experiência política

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brasileira pré e pós-64. Nesta pesquisa fomos buscar respostas para esta

indagação a partir da atuação de um movimento de mulheres na

contemporaneidade numa conjuntura substancialmente diversa. As diferenças

entre a militância de homens e de mulheres percebidas no estudo da autora eram

mais visíveis e delimitadas. Os espaços políticos daquele estudo eram formados

por sujeitos de ambos os sexos, embora a predominância fosse do masculino. Os

homens ocupavam o lugar central do poder enquanto que as mulheres

construíram uma identidade secundária em relação aos primeiros. O ingresso das

mulheres na vida política ocorria preponderantemente através do engajamento

dos homens que estabeleciam um vínculo estreito com estas (companheiro, pai,

irmão). A luta política se inscrevia a partir de lutas e bandeiras generalizadas, não

contemplando as especificidades de um dos sujeitos: as mulheres.

No caso da AMM, trata-se de uma entidade formada eminentemente

por mulheres, onde estas ocupam o lugar de centralidade nas decisões políticas.

Certamente não queremos dizer que todas as mulheres engajadas ocupem de

forma igual este lugar de centralidade. Entre elas podemos identificar algumas que

participam de forma periférica - afastada do centro das grandes decisões, -

exercendo atividades que embora secundárias também compõem a organização.

Um aspecto significativo é que essas mulheres que participam ativamente na

definição dos rumos políticos da entidade também exercem aquelas atividades

secundárias contrariando o que foi registrado no estudo de Goldemberg.

Antes e durante os encontros podemos conferir as mulheres exercendo

“o cuidado como modo-de-ser essencial” (Boff) seja com o ambiente, seja com as

pessoas. Antes dos encontros o cuidado pode ser observado na forma como

interagem com o ambiente (varrem, passam o pano, fazem café, providenciam

copos, ornamentam o espaço) e acolhem as pessoas que chegam (abraços,

sorrisos, palavras de boas vindas).

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O cuidado dispensado ao ambiente e às pessoas reflete a identidade e

postura assumida dentro do espaço doméstico pelas mulheres. O espaço da

associação propicia às mulheres a vivência e o desenvolvimento de outras

potencialidades e habilidades além das domésticas. Estas, porém, não são

abandonadas, revelando para nós não haver dissociação entre as atividades

cotidianas e as questões políticas de maior importância.

Quanto ao engajamento das mulheres no movimento ela não se deu

através de um homem. Neste caso a motivação maior reside na insatisfação

diante da relação estabelecida com os homens que lhes cercam, quase sempre

marcada pela violência e pela dominação.

Foi no conjunto dessas reflexões e desses depoimentos que buscamos

construir argumentos para elucidar o nosso objeto de estudo. É no próximo e

último momento que nos dedicaremos a esta desafiante tarefa.

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Considerações finais

No desenvolvimento das considerações finais, assim denominadas,

embora tenham um caráter provisório, retomaremos e reuniremos os elementos

trabalhados nas quatro unidades que compuseram este trabalho para que

possamos responder as provocações do nosso objeto de estudo.

No segundo capítulo apontamos a composição sexista da pólis grega

formada apenas por homens e aqui estamos diante de uma situação inversa onde

uma organização política, inscrita na esfera pública é formada apenas por

mulheres. Observemos que há uma diferença essencial onde a primeira

experiência é constituída como a esfera pública, enquanto realidade hegemônica

que em princípio nega e exclui sujeitos em potencial. No caso da organização de

mulheres, ela representa não a esfera pública, mas uma das expressões, e que se

consolida não numa perspectiva de negar outros sujeitos históricos, mas numa

perspectiva de incluir quem historicamente foi alijada desta esfera.

Essa inclusão caracterizada pelo deslocamento das mulheres para o

espaço público simboliza mais do que uma ruptura com a dimensão espacial, mas,

sobretudo sinaliza a possibilidade de construção de um sujeito coletivo.

Possibilidade, pois não é uma mera projeção da ocupação do denominado espaço

público, mas se constrói na medida em que passam a compartilhar com outras

companheiras as suas condições de vida, identificando o que há de semelhante

entre elas e a traçar objetivos e caminhos comuns que possam superar as

dificuldades enfrentadas. A relação familiar que antes era considerada privada e a-

política vai sendo apreendida dentro de uma dimensão pública e eminentemente

política, fazendo com que as mulheres passem a rejeitar o papel social a elas

atribuído. A tarefa de recuperar a essência da política não pode ocorrer de forma

descontextualizada numa perspectiva meramente ideal, mas consiste em retomar

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os seus princípios sem, no entanto, dissocia-los das condições concretas de sua

materialização.

A rejeição aos papéis pré-definidps para regular o comportamento de

homens e mulheres por parte destas últimas tem desestabilizado as relações de

gênero, principalmente dentro da família. Isso significa dizer que as relações de

poder e de geração também são afetadas acirrando os conflitos inerentes às

relações sociais. Esses momentos de tensão onde historicamente as mulheres

foram as principais afetadas diante de posturas sexistas dos homens começam a

ser reinventadas. Contraditoriamente, o acirramento das relações entre mulheres

e homens, tem desencadeado entre as mulheres um movimento de organização

política, ampliando e fortalecendo as relações entre elas. As mulheres engajadas

na associação resolvem quebrar as “regras do jogo” criadas pelos contadores da

história, rompendo com o silêncio, publicizando e evidenciando o caráter político

do espaço doméstico, buscando espaços público num exercício de cidadania e

buscam estratégias para os homens de sua família no processo de desconstrução

das desigualdades de gênero. Além destas iniciativas, o acirramento das relações

entre essas mulheres e os homens, tem desencadeado entre elas um movimento

de organização política, ampliando e fortalecendo as relações com outras

mulheres.

É importante que as mulheres possam ir além de ocupação de espaços

públicos, articulando os elementos e as relações necessárias para a reconstituição

da esfera pública, ampliando assim a possibilidade de desconstrução do modelo

predominante de relações de gênero e a construção de relações igualitárias. Essa

construção não é mecânica, pois a formação e as redefinições da esfera pública

podem fortalecer e reproduzir as desigualdades geradas no modelo hegemônico.

Diante do que foi apontado acima, constatamos a contribuição fundamental das

mulheres nesse movimento de ruptura e redefinição de limites do público e

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privado. Sem a ação delas esse processo seria impossível ou trilharia um caminho

muito lentamente.

Se historicamente o doméstico foi denominado como privilegiado das

mulheres, elas trouxeram ricas experiências desse espaço não confirmando essas

construções, mas dialeticamente rompendo com os seus limites e revelando o

estreito vínculo entre público e privado. Essa revelação, embora muitas vezes

inconsciente, contribui na desconstrução da rígida cisão entre público e privado e

na ampliação da democracia, assim como preconiza Habermas, no momento em

que se inscreve na esfera pública, tão carente de significados na

contemporaneidade.

Diante do privilegiamento do espaço do doméstico durante a entrevista

ficamos a nos indagar qual a razão da maioria delas desconsiderarem o relato de

experiências com outros homens, além dos da família, e de outros espaços.

Apenas duas entrevistadas se identificaram como “dona de casa”, as outras 12

desenvolvem trabalho também em outros espaços, além do doméstico.

Consideramos que além da consideração apresentação no parágrafo anterior,

essa tendência justifica-se no fato das relações de gênero no espaço doméstico

se materializarem de forma mais direta. Isso ocorre, pois as relações

estabelecidas no espaço privado foram socialmente consideradas a-politicas.

Sendo considerada desta forma, significa a inexpressiva ou precariedade de

contratos ou marcos que regulem estas relações. Pode parecer muito institucional

falar desta forma, mas a sua necessidade é justificada como forma de definir

limites para as violações dos direitos das pessoas, em particular, daqueles e

daquelas que têm exercido um menor poder na sociedade: crianças, mulheres,

idosas/os. Entre outras razões, alguns marcos legais têm sido elaborados e

instituídos nesta perspectiva: Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do

Idoso e alterações na legislação que prevê o afastamento domiciliar dos autores

de agressões contra a mulher. Num processo lento e num contexto onde a

conquista desses direitos não se consolida efetivamente, percebemos na

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sociedade um movimento de romper com a cultura de que o doméstico é intocável

quanto sua regulação, refutando o caminho que nos conduz a idéia de que tudo se

pode fazer.

Convém agora comentar sobre a estratégia adotada pela Associação

nessa reconstrução das relações de gênero. Percebemos a inquietação de

algumas mulheres devido ao inexpressivo engajamento dos homens, ou da falta

de participação em atividades pontuais da AMM. Diante desta inquietação

percebemos uma incompatibilidade entre os marcos institucionais da entidade e a

necessidade expressa por algumas mulheres. Em primeiro lugar trata-se de uma

Associação constituída exclusivamente por mulheres. Já falamos anteriormente

que os homens não podem se associar. Em segundo, decorrente desse primeiro

fator, porque a AMM tem uma estratégia voltada para trabalhar com mulheres. Na

nossa compreensão a superação desta inquietação passa pela natureza e pelos

objetivos da Associação. Não queremos fazer apologia à organização formada

exclusivamente por mulheres ou por homens e mulheres. Apenas ressaltamos a

necessidade de definir coletivamente estratégias clara de onde se quer chegar e

de como construir esta caminhada.

Apesar disso, indagamos sobre os limites e as possibilidades concretas

de uma organização formada preponderantemente por mulheres provocar uma

alteração nas relações de gênero, quando apenas um dos sujeitos está

participando diretamente do processo. As questões apresentadas nos próximo

parágrafos nos permitirão responder essa indagação.

Identificamos na nossa pesquisa que ara as mulheres da AMM a

reconstrução das relações de gênero passa essencialmente por duas questões

centrais: pela organização das mulheres e pelo processo educativo desenvolvido

no espaço doméstico, principalmente das crianças, este segundo, despertado a

partir do primeiro.

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A justificativa da primeira questão apresentada pode ser percebida na

ênfase feita por elas à rica experiência delas na Associação e na distinção que

elas fazem entre as mulheres militantes e as não-militantes. Os relatos apontam

que as vivências coletivas proporcionadas pela Associação, a partir da abordagem

de diversas temáticas têm permitido um rico aprendizado para elas. Aprendizado

que pode ser traduzido na sua descoberta enquanto sujeito, potencializando a sua

interação com o mundo. Nessa grande luta de reconstrução de suas vidas

acreditam modificar as relações de gênero. Percebemos que de um modo geral

descobrem a partir deste engajamento e passam a acreditar que são as grandes

responsáveis pelas transformações na realidade das relações de gênero. Vale

ressaltar que nossas entrevistadas foram identificadas baseada na sua

capacidade de um maior engajamento na Associação e isso certamente

influenciou que as falas revelassem um significado importante para essas

mulheres.

Quanto ao segundo aspecto, as mulheres indicam reconhecer o

potencial que tem a educação das crianças na reestruturação das relações de

gênero dentro de uma perspectiva mais igualitária. Genericamente elas se

percebem autoconscientes nessa tarefa e capazes de provocar a construção de

valores e vivências, porém, não temos elementos para verificar se no seu

cotidiano as mulheres têm conseguido dar concretude aquilo que ela já articulou

definiu como importante e estratégico na geração de uma cultura não

androcêntrica e sexista e construção de homens e de mulheres fora dos padrões

hegemônicos.

Um aspecto que não poríamos deixar de tecer uma consideração final

refere-se a influência da Igreja Católica no surgimento e no trabalho desenvolvido

pela Associação. A influência da Igreja é ambígua e contraditória. Por um lado ela

favoreceu amplo apoio para que o movimento nascesse e ampliasse a sua

atuação. Apoio este traduzido na cessão de espaço para realizar os encontros, na

contribuição financeira para aquisição da atual sede da entidade, na abertura de

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espaço para a AMM na rádio comunitária Santos Dias, que funciona sob a direção

da Igreja. Esses são apenas alguns exemplos da sua influência. Por outro lado,

percebemos uma marca forte da sua influência que na prática confunde o trabalho

desenvolvido pela AMM. Embora ela se configure como organização de iniciativa

privada da sociedade civil, ela se confunde com uma pastoral social ou outro

movimento da Igreja que se expressa nas diversas dimensões da Associação:

metodologia, subsídios, espaço físico, conteúdo político-pedagógico... Essa

influência está entranhada na organização das mulheres sem que pudéssemos

identificar na pesquisa de campo qualquer sinal da necessidade de ruptura.

Acreditamos que essa influência encerra por limitar a militância das mulheres, uma

vez que sua razão de existir não é de ordem religiosa, pelo menos nos seus

marcos legais. Como na prática isso ocorre, consideramos tratar-se de outra

inadequação entre o marco legal e a práxis da Associação.

Outra consideração essencial refere-se à estratégia da Associação de

trabalhar com a profissionalização das mulheres como principal caminho para a

sua “libertação. Não poderíamos deixar de registrar uma consideração sobre os

tipos de cursos proporcionados às mulheres pela Associação, pois correspondem

as áreas de atuação que culturalmente as mulheres tem assumido na nossa

sociedade. Será que estas iniciativas acabam por reforçar os papéis pré-definidos

para as mulheres dentro da divisão sexual do trabalho? Acreditamos ter um

caráter contraditório, pois ao mesmo tem em que tem provocado mudanças

significativas na vida das mulheres empobrecidas essa formação acabam por

reforçar a divisão sexual do trabalho.

O fato da Associação ter se institucionalizado há sete anos, significou

mudanças significativas na sua natureza e dinâmica, mas no seu cotidiano essas

mudanças são percebidas pontualmente quando se tem algum encaminhamento

formal a ser feito (mudança no estatuto, realização de assembléia, eleição da

diretoria...), mas genericamente percebemos uma articulação fora dos moldes

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formais, semelhante como era antes da sua institucionalização, como assim

relatou uma das mulheres entrevistadas.

Faremos agora algumas considerações sobre a questão da militância

política. A utilização da categoria militância em princípio pode ter ser revelado

inadequada para dar conta da realidade de uma associação de mulheres. Porém

insistimos em recuperar e revisar o significado termo. Nesse processo de

desvendamento e construção da categoria fizemos algumas descobertas para nós

importantes. Se nos deixarmos pautar pelo conceito clássico de militância

certamente ela se mostraria indevidamente utilizada, pois a prática da s mulheres

engajadas na AMM não se configura como uma prática revolucionária. Mas, a

partir da sua revisão pudemos identificar uma concepção de militância capaz de

qualificar a prática das mulheres da AMM e que se aproxima da realidade

investigada já abordada no capítulo 4. Diante das reflexões feitas e dos dados

coletados chegamos sistematizamos as considerações que faremos a partir de

agora.

A primeira indagação que fizemos foi se a militância tratava-se de uma

práxis assexuada, mas anterior a isso as entrevistadas se manifestaram quanto a

sua condição ou não de militantes. Das quatorze entrevistadas, quatro delas foram

contundentes em negar a sua condição de militantes políticas, enquanto que a

maioria se identificou com esta condição. O conjunto de justificativas esteve

pautado reafirmação ou negação da concepção clássica de militância. O conjunto

de suas falas define a militância política a partir de um engajamento e da

participação na Associação e outras entidades ou movimentos. O campo de

atuação e a razão desta militância estão relacionados diretamente com as

concepções de política trazidas por elas. Embora algumas das entrevistadas

concebam a política de uma forma restrita, considerando preponderantemente as

práticas e os espaços institucionalizados de poder, de partidos políticos e de

governo, a maioria das entrevistadas a percebem de uma forma ampla,

perpassando as várias dimensões da vida humana, inclusive nos espaços

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historicamente denominados como apolíticos. Algumas entrevistadas centraram

suas abordagens numa perspectiva ideal, outras do ponto de vista prático,

enfatizando-a pejorativamente. Percebemos haver uma dicotomia nessas

compreensões entre dois tipos de política: uma boa e outra má, sendo

inexpressiva a identificação da política enquanto espaço contraditório, palco de

relações de poder que se consolida tanto na confirmação quanto na negação de

processos democráticos.

Em relação a diferença entre as mulheres militantes e as não militantes,

todas as entrevistadas, com exceção de uma, afirmaram veementemente a

diferença entre umas e outras. Na descrição desta diferenças pudemos identificar

a construção de um quadro valorativo, onde às mulheres militantes foram

atribuídas de qualificações positivas, e em alguns momentos ideais, enquanto que

às não-militantes foram atribuídas de caracterizações negativas. Percebemos

haver uma mistificação em torno das mulheres consideradas militantes. Atribuímos

a razão desta mistificação ao fato das mulheres entrevistadas terem

experimentado um rico aprendizado após o seu engajamento na AMM e acaba

associando a situação das mulheres não engajadas a sua experiência de vida

antes da sua militância.

Quanto à indagação da militância como práxis assexuada, as mulheres

manifestaram-se divididas quanto a existência de diferenças entre a militância de

homens e mulheres. Embora nossa fundamentação inicial tenha sido construída

numa perspectiva de refutando a perspectiva de militante universal e perceber a

militância como práxis assexuada, a fala das entrevistadas não confirma essa

premissa uniformemente.

Compreendemos que a AMM tem se configurado como um desses

espaços coletivos que vem permitindo a construção de sujeitos coletivos. O fato

de ser formada por mulheres das camadas mais empobrecidas tem sido

determinante para o fazer político da associação que ocorre de forma

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diferenciada, particular, numa dinâmica própria de outros espaços tradicionais de

militância, como o sindicato e o partido político. Organizadas numa perspectiva de

transformação social e não de revolucionária – esta compreendida com práticas

radicais, ostensivas e que tem um projeto de transformação mais amplo – as

mulheres da Associação desenvolvem suas práticas políticas a partir de relações

solidárias sem que possamos perceber forte debate ideológico na sua dinâmica.

Essa vivência prática, embora não seja destituída de conflitos está pautada

sobremaneira em relações solidárias. Consideramos que esta característica se

justifica pelo fato da mulheres se identificarem umas com as outras enquanto

sujeito historicamente subordinado, minimizando os conflitos tão presentes nas

relações de poder.

É no conjunto dessa rede de ações e reflexões que consideramos que

as mulheres têm contribuído na construção das relações igualitárias de gênero.

Explicitamente a intenção de suas práticas é de romper com as desigualdades de

gênero, na prática as contradições se manifestam inviabilizando que essa ruptura

ocorra de forma mais efetiva. Temos clareza de que a atuação destas mulheres se

manifestam de forma localizada sem uma maior articulação com a realidade globa.

Acreditamos que as tramas solidárias estabelecidas por estas mulheres

constituem-se num emaranhado de significativos que gestam a partir de micro-

poderes e de micro-espaços a desconstrução das bases do modelo hegemônico

das relações de gênero e o fortalecimento de um projeto societário onde mulheres

e homens estabeleçam relações mais igualitárias. Consideramos que no

movimento de acertos e desacertos essas mulheres tem contribuído

significativamente para reinventar a esfera pública e resgatar seus significados

numa sociedade onde as marcas do neoliberalismo têm fragmentado o interesse

pelo que é público. Elas têm contribuído na provocação de ruptura dos limites

entre público e privado, recuperando o vínculo intrínseco entre eles. Herdeiras de

uma formação e de uma cultura androcêntricas elas tem resistido e buscado

superar seus limites, se afirmando enquanto sujeitos, dentro de uma realidade

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extremamente desigual. Enfim, elas são tecedoras de uma nova cultura que visa

fortalecer a formação de redes em torno do bem comum.

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