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Universidade Estadual do Oeste do Paraná Campus de Toledo _________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
MAIARA ALINE BAGETI
VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA MOTIVADA POR MÉTODO
EDUCACIONAL/DISCIPLINAR NO MUNICIPIO DE TOLEDO – PARANÁ.
_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
TOLEDO
2012
1
MAIARA ALINE BAGETI
VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA MOTIVADA POR MÉTODO
EDUCACIONAL/DISCIPLINAR NO MUNICIPIO DE TOLEDO – PARANÁ.
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
curso de Serviço Social, Centro de Ciências
Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, como requisito parcial à obtenção
do grau do Bacharel em Serviço Social.
Orientadora: Profa. Esp. Ane Barbara Voidelo
TOLEDO – PR
2012
2
MAIARA ALINE BAGETI
VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA MOTIVADA POR MÉTODO
EDUCACIONAL/DISCIPLINAR NO MUNICIPIO DE TOLEDO – PARANÁ.
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
curso de Serviço Social, Centro de Ciências
Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, como requisito parcial à obtenção
do grau de Bacharel em Serviço Social.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Orientadora: Profa. Esp. Ane Barbara Voidelo
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
___________________________________________________
Profa. Ms. Ester Taube Toretta
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
___________________________________________________
Profa. Dra. Zelimar Soares Bidarra
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Toledo, 28 de novembro de 2012
3
Aos meus pais Cléo e Ivonir, minha irmã
Daiana e meu namorado Leodacir, por serem
minhas bases de sustentação. Pelo amor,
carinho e dedicação despendidos. Amo vocês!
Também as crianças e aos adolescentes
vitimas da violência física doméstica motivada
por método educacional/disciplinar.
4
AGRADECIMENTOS
Obrigada Deus pela dádiva da vida, pelas possibilidades e pelas conquistas alcançadas
nesse percurso. Pelas pessoas maravilhosas que colocou na minha vida! Por ser o principio de
força e fé da nossa família!
Aos meus pais Cléo Francisco Bageti e Ivonir de Oliveira Bageti, por serem meus
pilares, minhas bases de sustentação. Obrigada por todo o amor despendido, pelos sacrifícios
que foram necessários para minha formação, por todos os momentos em que deixaram de lado
seus desejos, vontades ou até necessidades para saciarem os meus e as minhas! Obrigada por
cada palavra de apoio, pelo cuidado e atenção que mesmo por telefone me confortaram nos
meus momentos de crise (que não foram poucos)! Obrigada por tudo! Amo muito vocês!
A minha irmã Daiana Andressa Bageti, pelo amor, carinho e dedicação despendida em
todos os momentos, pelos desabafos, pelas risadas, pelas fofocas, pelas noites de sono que
passamos para conversar e matar a saudade, pela parceria na vida! Minha pequena eu amo
muito você! Ao meu cunhadinho e amigo Rafa que sempre me apoiou e me ajudou no que
necessitei, obrigada!
Ao amor mais apaixonante do mundo, pelo carinho, amor, atenção e cuidados
despendidos. Por estar ao meu lado em todos os momentos, principalmente na cansativa e
prazerosa construção desse trabalho. Obrigada por entender quando precisei me ausentar para
construir o TCC, estar por perto quando precisei do seu abraço, dar a sua opinião e ajudar a
construir a minha, por ditar os textos das citações e repetindo quando eu não escutava, por ir a
biblioteca comigo e me ajudar a procurar os livros, pela amizade, pelo companheirismo, pelo
apoio! Júnior eu amo muito você! Junto ao meu amor, quero agradecer aos seus pais pela
paciência, compreensão e apoio! Obrigada Leo e Iza!
A minha amiga-irmã Flávia, obrigada pelo apoio, carinho, pela dedicação. Por
comprar minha comida quando tive preguiça de ir ao mercado, pelos risos, choros, pelas
festas, pelas brigas, até mesmo pelas crises que foram muitas e que fortaleceram nossos laços.
Obrigada pela parceria, amo você!
As minhas amorinhas: Rafa, Cami, Jé, Ade, Val e Cacau, por todos os momentos
maravilhosos da universidade. Pelas risadas, pelas fofocas, pelos momentos “coleta para o
Butantã” (venenosas). Amo vocês e vou sentir saudades de incomodar, riscar, descabelar,
cantar, mas também por me escutarem e estarem ao meu lado nos perdidos e nas vitórias
dessa trajetória universitária!
5
Aos meus tios: Ivo, Loreci e Nair, pelo apoio, por se preocuparem comigo em todos os
momentos, principalmente nesse percurso que se encerra. Obrigada, amo vocês! Aos meus
avós Ema e Pedro (in memoriam), Venilda e Vidolino, pelo apoio, pela preocupação e atenção
despendidos a mim! Obrigada, amo muito vocês!
A professora Doutora Zelimar Soares Bidarra, pela trajetória de pesquisa e por todo
conhecimento proporcionado. Pelos puxões de orelha, pelos conselhos e pela contribuição na
minha formação! A cobrinha agradece! A querida Carminha pelo carinho e pela ajuda
prestada em todos os momentos que se fizeram necessários! Obrigada, você é um amor!
Ao Conselho Tutelar do município de Toledo – Paraná, obrigada pelo espaço cedido,
pela atenção propiciada para que as minhas Pesquisas de Iniciação Cientifica se realizassem,
pelas conversas, pelos conselhos. Obrigada!
A docente Diuslene pela oportunidade de bolsa na Seipas, pelos puxões de orelha,
pelas conversas, pela atenção e por contribuir para a minha formação! Obrigada! A professora
Marli pela continuidade de bolsa e pelos conselhos. Obrigada por contribuir com a minha
formação!
A minha orientadora e supervisora querida, obrigada pela dedicação, paciência e por
entender até o que eu não conseguia expressar e me orientar de modo a esclarecer as duvidas e
fazer o processo fluir! Obrigada Ane! Vou sentir saudades!
As queridas Elisangela e Maria Rita, pelo aprendizado proporcionado no Estágio em
Serviço Social na empresa Prati-Donaduzzi, pelos ótimos momentos! Obrigada, foi ótima a
contribuição para a minha formação! A equipe: Adeliany, Leoni, Elisiane, Dulce e Thiago.
Vou sentir saudades...
Obrigada a todos que de uma forma ou de outra contribuíram com o meu percurso
formativo, além disso, que propiciaram que esse percurso chegasse até aqui. Obrigada a todas
as minhas colegas e os meus colegas, aos docentes, amigos, familiares! Sucesso a todos!
6
“O cinto zunia com uma força danada sobre o meu corpo. Parecia que o cinto tinha mil
dedos e que me acertavam em qualquer parte do corpo. Eu fui caindo, me encolhendo no
cantinho da parede. Estava certo que ele ia me matar mesmo. Ainda pude ouvir a voz de
Glória que entrava para me salvar. Glória, a única russa como eu. Glória que ninguém
tocava. Ela segurou a mão de Papai e segurou o golpe.
– Papai. Papai. Por amor de Deus, me bata, mas não bata mais nessa criança.
Ele jogou o cinto sobre a mesa e passou as mãos sobre o rosto. Chorava por ele e por mim.
– Eu perdi a cabeça. Pensei que ele estava caçoando de mim. Fazendo pouco caso.
– Quando Glória me apanhou do chão, eu desmaiei.
Quando eu me apercebi das coisas, ardia em febre. Mamãe e Glória estavam à minha
cabeceira e me diziam coisas carinhosas. Na sala havia movimento de muita gente. Até
Dindinha tinha sido chamada. Eu doía todo a cada movimento. Depois eu soube que queriam
chamar o médico, mas não ficaria bem.
Glória me trouxe um caldo que fizera e tentou me dar algumas colheradas. Mal podia
respirar, quanto mais engolir. Ficava numa sonolência danada e quando acordava a dor ia
diminuindo. Mas Mamãe e Glória continuavam me velando. Mamãe passou a noite comigo e
só bem de madrugada se levantou para preparar-se. Precisava ir trabalhar. Quando ela veio
se despedir de mim eu me agarrei ao seu pescoço.
– Não vai ser nada, meu filho. Amanhã você ficará bom...
– Mamãe...
Falei baixinho, talvez a maior acusação da vida.
– Mamãe, eu não deveria ter nascido. Deveria ter sido como meu balão...
Ela alisou tristemente a minha cabeça.
– Todo mundo deve ter nascido como nasceu. Você também. Só que as vezes você, Zezé. É
levado demais...”
O Meu Pé de Laranja Lima.
(José Mauro de Vasconcelos, 1996, p.141-142).
7
BAGETI, Maiara Aline. Violência física doméstica motivada por método
educacional/disciplinar no Município de Toledo - Paraná. Trabalho de Conclusão de
Curso (Bacharelado em Serviço Social). Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Universidade
do Oeste do Paraná – Campus – Toledo, 2012.
RESUMO
O presente trabalho buscou investigar junto à documentação coletada em Registros de
Atendimento do Conselho Tutelar de Toledo – Paraná, a ocorrência da violência física e
analisar a partir das informações possibilitadas por esses documentos, como essa forma de
violência se dá como método educacional. A violência física é de fácil identificação devido às
características dessa tipificação sendo: hematomas, queimaduras, cortes entre outros. A
pesquisa proposta tem como tema: A Violência Física atuada como método de disciplinar
Crianças e Adolescentes no município de Toledo – Paraná, e como problema a seguinte
questão: Que fatores ocasionam a Violência Física relacionada aos métodos educacionais?
Um dos fatores que levam à violência física é de acordo com Cunha (2003, p.37) “a crença
dos pais de que a punição corporal dos filhos é um método educativo e uma forma de
demonstrar amor, zelo e cuidado”. Quando numa situação conflituosa entre crianças,
adolescentes e seus respectivos responsáveis, em muitos casos os segundos usam da violência
física para que os primeiros possam ser contidos, educados ou disciplinados. O agressor,
quando faz uso da violência física doméstica motivada por método educacional/disciplinar,
busca justificar o seu ato devido à motivação, ou seja, como o caso se deu para educar ou
disciplinar crianças e adolescentes; logo a prática é justificada e aceita como normal. O
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) tem como intuito elucidar os fatores que levam à
prática da violência física no ambiente doméstico e como essa prática interfere nas relações
familiares e no desenvolvimento de crianças e adolescentes. A pesquisa realizada perpassou
um total de 31 (trinta e um) casos, acometidos nos anos de 2009 e 2010. Buscou-se a partir da
leitura dos casos elucidar a violência física doméstica cometida como forma de
educar/disciplinar crianças e adolescentes, demonstrando que apesar da prática ser antiga,
ainda se faz presente na realidade e atinge crianças e adolescentes, violando o direito desses
sujeitos.
Palavras-chave: Crianças e Adolescentes; Violência Física Doméstica; Método Educacional.
8
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Motivo da Violência Física Doméstica (Dados Gerais).................................... 45
Gráfico 2 – Motivo da Violência Física Doméstica (2009)................................................. 46
Gráfico 3 – Motivo da Violência Física Doméstica (2010)................................................. 47
Gráfico 4 – Sexo da Vítima (Dados Gerais)........................................................................ 49
Gráfico 5 – Sexo da Vítima (2009)...................................................................................... 49
Gráfico 6 – Sexo da Vítima (2010)...................................................................................... 50
Gráfico 7 – Escolaridade da Vítima (Dados Gerais)............................................................ 51
Gráfico 8 – Escolaridade da Vítima (2009)......................................................................... 52
Gráfico 9 – Escolaridade da Vítima (2010)......................................................................... 52
Gráfico 10 – Idade da Vítima (Dados Gerais)...................................................................... 54
Gráfico 11 – Idade da Vítima (2009)................................................................................... 54
Gráfico 12 – Idade da Vítima (2010)................................................................................... 55
Gráfico 13 – Sexo do Agressor (Dados Gerais)................................................................... 57
Gráfico 14 – Sexo do Agressor (2009)................................................................................ 58
Gráfico 15 – Sexo do Agressor (2010)................................................................................ 58
Gráfico 16 – Relação Vítima e Agressor (Dados Gerais).................................................... 60
Gráfico 17 – Relação Vítima e Agressor (2009).................................................................. 60
Gráfico 18 – Relação Vítima e Agressor (2010).................................................................. 61
9
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Motivo da Violência Física Doméstica.............................................................. 45
Tabela 2 – Sexo da Vítima................................................................................................... 48
Tabela 3 – Escolaridade da Vítima...................................................................................... 50
Tabela 4 – Idade da Vítima................................................................................................. 53
Tabela 5 – Sexo do Agressor............................................................................................... 55
Tabela 6 – Relação Vítima e Agressor................................................................................. 59
10
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................................ 07
LISTA DE GRÁFICOS..................................................................................................... 08
LISTA DE TABELAS........................................................................................................ 09
INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 11
1 INFÂNCIA E VIOLÊNCIA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA........................ 13
1.1 INFÂNCIA E VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE BRASILEIRA................................... 17
1.2 A VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA QUE ACOMETE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES...............................................................................................................
22
2 EDUCAR E DISCIPLINAR POR MEIO DA VIOLÊNCIA FÍSICA........................ 29
2.1 DESMISTIFICANDO O GRUPO FAMILIAR: O PAPEL DA FAMÍLIA.................. 32
2.2 A NATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA FÍSICA JUSTIFICADA COMO
DISCIPLINAR.....................................................................................................................
36
2.3 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A PROTEÇÃO
INTEGRAL..........................................................................................................................
40
3 A VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA COMO MÉTODO EDUCACIONAL NO
MUNICÍPIO DE TOLEDO – PARANÁ..........................................................................
43
3.1 A MOTIVAÇÃO PARA O ATO DA VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA............... 44
3.2 PERFIL DA VÍTIMA.................................................................................................... 47
3.2.1 Quanto ao Sexo da Vítima........................................................................................ 47
3.2.2 Quanto à Escolaridade da Vítima............................................................................ 50
3.2.3 Quanto à Idade da Vítima........................................................................................ 52
3.3 ASPECTO DO AGRESSOR E SUA RELAÇÃO COM A VÍTIMA............................ 55
3.3.1 Quanto ao Sexo do Agressor.................................................................................... 55
3.3.2 Quanto à Relação Vítima e Agressor...................................................................... 58
3.4 MÉTODO EDUCACIONAL/DISCIPLINAR CONTRA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES...............................................................................................................
61
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 64
REFERÊNCIAS................................................................................................................. 67
APÊNDICE A..................................................................................................................... 71
ANEXO A........................................................................................................................... 72
11
INTRODUÇÃO
A instituição família tida pela sociedade como aquela que garante às crianças e aos
adolescentes proteção, atenção, carinho e cuidados para seu desenvolvimento pessoal e social
nem sempre corresponde a esta expectativa. É nesse ambiente familiar que a violência
intrafamiliar se manifesta e atinge de inúmeras formas, crianças e adolescentes, sendo elas:
violência física, negligência, abandono, violência sexual e violência psicológica. Para o
presente trabalho o foco está na tipificação violência física, que tem por tema: A Violência
Física atuada como método de disciplinar Crianças e Adolescentes no município de Toledo –
Paraná.
A saber, a violência física é uma das formas de violência doméstica e atinge crianças e
adolescentes de forma naturalizada, sem que seja considerada violência, devido aos traços
culturais e históricos. Em muitas situações, a violência física é justificada por motivo
educacional/ disciplinar, dessa forma a educação passa a ser de punição e mantém uma
relação de poder dos adultos sobre crianças e adolescentes e, de medo entre os familiares.
Perde-se nesse processo a proximidade proporcionada pelos cuidados e a relação passa a ser
de hostilidade.
No entanto, a denúncia desses casos nem sempre ocorre, devido à naturalização, ao
não estranhamento dessa prática, aceita como normal. Além de não acontecer a denúncia, o
ambiente familiar está acima de suspeitas devido às características dadas pela sociedade a este
espaço, é encoberto pelo sigilo, pelo silêncio que calam essas vítimas indefesas e também
demais familiares que passam a agir como co-autores das violações. O sigilo, típico desta
instituição, impossibilita que esses casos cheguem aos órgãos responsáveis, os quais podem
dar os devidos encaminhamentos aos casos de violência física.
Sobretudo, a violência intrafamiliar caracteriza-se pela violência que ocorre dentro do
grupo familiar, em que os responsáveis, nem sempre os pais, submetem seus filhos ou
crianças e adolescentes, sob sua responsabilidade, a diferentes formas de mando, agressões,
abuso e xingamentos. O abuso de poder faz com que o adulto tenha na criança e no
adolescente um objeto para a satisfação de suas vontades.
De acordo com Gregório (2007, p.19), “quando está-se diante da ameaça ou mesmo a
degeneração do exercício da autoridade, muitas vezes, costuma-se recorrer ao uso da força
para imputar ao outro obediência a uma regra ou norma. A este tipo de recurso de poder dá-se
o nome de violência.”. Nesse sentindo, quando as situações não seguem o percurso proposto
12
pelo adulto, quando estes se veem frustrados diante da não obediência de crianças e
adolescentes, passam a usar de força física para conter esses sujeitos de direito.
A violência pode ocorrer tanto entre sujeitos de grupos diferentes, quanto dentro de
um mesmo grupo. Crianças e adolescentes são vitimizadas, tanto por pessoas fora do âmbito
familiar, quanto na relação interna a este ambiente. Devido ao grau de desenvolvimento, esses
indivíduos tornam-se vítimas fáceis, justo porque não dispõem de estrutura biopsicossocial
formada que possibilite o alto cuidado ou ainda possam se defender dos agressores.
A violação sofrida por crianças e adolescentes no espaço familiar implica na perda de
direitos, bem porque crianças e adolescentes deixam de ser tratados como sujeitos e passam a
ser tratados como instrumentos de satisfação de vontades de seus respectivos responsáveis.
Nessa relação, os direitos ficam suprimidos ou ainda excluídos da vida de inúmeras crianças e
adolescentes, retirando desses indivíduos direitos como a convivência familiar e comunitária.
No que diz respeito à defesa de direitos das crianças e adolescentes, há dois grandes
instrumentos - a Constituição Federal (1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente/ ECA
(1990). O ECA estabelece parâmetros e recursos para que se garanta às crianças e aos
adolescentes os seus direitos. “Estabelece, como diretriz básica e única, a doutrinação de
proteção integral.” (ANDRADE, 2000, p.18).
Além destas premissas, a pesquisa buscou fazer valer o princípio fundamental 02 do
Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais (CFESS, 1993, p.17), que dispõe sobre a
“defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo”. Nessa
perspectiva, defender o direito de crianças e adolescentes se faz indissociável da profissão do
Serviço Social, que junto a esses sujeitos busca defender os seus direitos enquanto sujeitos em
peculiar condição de desenvolvimento, assim como se faz dever da família, da sociedade e do
Estado zelar pelos direitos de crianças e adolescentes, também se faz na profissão.
A violência que acomete crianças e adolescentes submete-os às mais distintas
situações de desrespeito que os desvalorizam na condição de cidadãos que devem receber
proteção integral de toda a sociedade. A proteção integral possibilita aos mesmos o
desenvolvimento de suas capacidades biopsicossociais. Proteger crianças e adolescentes e
orientá-los em seu desenvolvimento possibilita que os mesmos desenvolvam-se, tenham
autonomia e vivam dignamente como pessoas íntegras e respeitadas.
13
1 INFÂNCIA E VIOLÊNCIA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
A violência1 praticada contra crianças e adolescentes perpassa toda a história e se
apresenta de forma diferente em cada momento. Até porque, a própria condição de sujeitos
em situação peculiar de desenvolvimento, é recente; nem sempre esses indivíduos foram
reconhecidos com tal perspectiva e nem mesmo como sujeitos que deveriam ter cuidados
apropriados, zelo e atenção diante de seu grau de desenvolvimento. Quando se busca a origem
do significado de infância, observa-se que este sujeito é colocado em um segundo plano,
como aponta Silva, Souza (2009, p.22 grifo dos autores) “A palavra infância é composta pelo
prefixo de negação in, e pelo radical fante, particípio passado do verbo latino fari,
significando falar, dizer. Então, infância em sua origem significa aquele que não fala, que não
tem palavra, não tem voz.”. Nesse sentido, a palavra infância remete a sujeitos que não se
expressam, não têm voz e assim também não têm vez para se manifestarem. Sujeitos que são
colocados aquém de seus desejos, vontades e necessidades.
Essa condição de não ter fala, não ter palavra e nem voz, não é uma característica
recente e perpassa a trajetória de crianças e adolescentes, antes mesmo, de serem considerados
como tais.
Na Idade Média, no início dos tempos modernos e por muito tempo ainda
nas classes populares, as crianças misturavam-se com os adultos assim que
eram capazes de dispensar a ajuda das mães ou das amas poucos anos –
depois de um desmame tardio – ou seja, aproximadamente aos 7 anos de
idade. A partir desse momento ingressavam imediatamente na grande
comunidade dos homens, participando com seus amigos jovens ou velhos
dos trabalhos e dos jogos de todos os dias [...] (ARIÈS apud GUERRA,
2001, p.50).
Eram então adultos de porte menor2, que realizavam atividades laborativas
3 como
homens feitos, ou seja, sujeitos em idade adulta, com características de adultos. Esse ponto
pode ser percebido quando nos traz Ariès (1981, p.50-51),
1De acordo com Guerra (1985, p.15) “[...] a violência também pode ser empregada para designar aquele
fenômeno em que uma pessoa impõe o seu poder a outra através de meios persuasivos, abatendo a resistência
que a ela se opõem.”. 2 As crianças eram consideradas adultos pequenos, não era considerada essa fase da vida, assim a característica
que diferenciava os adultos do supostos adultos era apenas o tamanho. 3 Como eram considerados adultos, crianças e adolescentes desenvolviam atividades laborativas, ou seja,
trabalhavam, assim como os demais adultos.
14
Uma miniatura otoniana do século XI nos dá uma idéia impressionante da
deformação que o artista impunha então aos corpos das crianças, num
sentido que nos parece muito distante de nosso sentimento e de nossa visão.
O tema é a cena do Evangelho em que Jesus pede que se deixe vir a ele as
criancinhas, sendo o texto latino claro: parvuli. Ora, o miniaturista agrupou
em torno de Jesus oito verdadeiros homens, sem nenhuma das características
da infância: eles foram simplesmente reproduzidos numa escala menor.
Apenas seu tamanho os distingue dos adultos.
Observa-se que, nesse período, não se considerava a criança como sujeito, essa fase da
vida era desconsiderada. Conforme Guerra (2001, p.50), “Se ela viesse a falecer – o que não
era raro – outra criança a substituiria.”. Como as crianças não eram consideradas sujeitos em
desenvolvimento que necessitavam de cuidados diferenciados e não havia a perspectiva de
proteção e afeto entre esses e seus respectivos pais ou responsáveis, a morte desses pequenos
adultos não causava estranhamento, uma vez que como os demais adultos tinham funções e
sofriam com as adversidades da vida (doenças e desgastes causados pelo trabalho). Mesmo
com tal condição de descaso com as crianças da Idade Média, período que corresponde do
século V ao século XV, tem-se que,
A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua
evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos
séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se
particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e
durante o século XVII. (ARIÈS apud SOUZA; SILVA, 2009, p.47).
O processo de descoberta desta fase da vida inicia-se em meio a uma organização
social4 que não tem perspectivas de proteção
5 desses sujeitos e nem mesmo consciência da
condição peculiar de desenvolvimento que os integra. A tomada de consciência em relação à
criança ocorre paulatinamente, sendo que a condição de inserção de crianças à vida social e à
familiar viria a mudar no século XVII, quando “A criança deixou de ser misturada aos adultos
e de aprender a vida por meio de contatos com eles. Inicia-se o processo de escolarização
[...]” (ARIÈS apud GUERRA, 2001, p. 51). Passa a existir uma preocupação, a criança é vista
não mais como um pequeno adulto, mas como um sujeito em formação para uma vida adulta,
4 A organização social refere-se à sociedade, ao espaço de interesse social.
5 A proteção se dá por meio da garantia de direitos que possibilitam condições para o desenvolvimento de
crianças e adolescentes. “Os direitos da criança são constantemente apregoados. Assim é que, a 26.09.1923, na V
Sessão da Liga das Nações, por meio da Declaração de Genebra, faz-se o primeiro reconhecimento internacional
destes direitos. Eles também foram incluídos tacitamente, em 1948, quando a Assembléia Geral das Nações
Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Entretanto, foi somente a 20.11.1959, que esta
mesma Assembléia Geral formalizou uma Declaração específica dos Direitos da Criança.” (GUERRA, 2001,
p.91-92).
15
numa perspectiva de futuro e não de presente como ocorria na Idade Média. A criança que
antes era vista como um pequeno adulto, que desempenhava funções e recebia conhecimento
a partir do que lhe transmitiam os adultos na vida cotidiana, passa a ser vista sob a perspectiva
futura a partir da educação. Neste contexto, passa também a haver um investimento nesses
sujeitos para que viessem a desempenhar funções, ter um ofício num futuro adulto, separando
assim crianças e adolescentes do mundo adulto e despendendo a esses cuidados diferenciados.
Ainda referente aos séculos XVI e XVII, “A família não tinha as funções afetiva e
socializadora, mas era constituída visando apenas a transmissão da vida, a conservação dos
bens, a prática de um ofício, a ajuda mútua e a proteção da honra e da vida em caso de crise.”
(BRUSCHINI, 2005, p.51). A partir de Bruschini, observa-se que a família, nesse período,
não dispunha de caráter afetivo, mas de uma perspectiva mecânica, orientada à organização da
vida social, para as necessidades do cotidiano e não para a afetividade e a socialização.
Contudo, atentando-se para a escolaridade que iria mudar a condição de crianças, tem-se que,
Tanto a família como a escola arrancaram a criança da sociedade adulta. As
atenções da família, da Igreja e dos moralistas e administradores arrebataram
a liberdade que a criança desfrutara até então entre os adultos. Fizeram-na
conhecer a vara (...) em uma palavra os castigos reservados geralmente a
convictos provenientes dos mais baixos estratos da sociedade. (ARIÈS apud
GUERRA, 2001, p.51).
A educação de crianças e adolescentes, por meio da escolarização, surge como um
meio de preparar esses sujeitos para um futuro adulto foi transmitida pelas escolas junto à
família e à sociedade e realizava-se de forma restrita, ou seja, retiraram crianças e
adolescentes do convívio com os adultos e puseram-nas em espaços voltados à educação.
Observa--se que com a educação, vieram métodos disciplinadores6 por meio de uso de
força, de instrumentos de coerção7 como citada a vara
8. Dessa forma, percebe-se que o uso de
castigos9 para com crianças e adolescentes, teve início junto à condição de educar, de formar e
de disciplinar.
Todavia, a violência é usada na educação como forma de manter o controle, de conter
e disciplinar, contudo, essa prática não é exclusiva a essa perspectiva, ela também é usada
influenciada pela cultura, pelos costumes e pelas tradições.
6 Disciplinar relaciona-se a punir, castigar, ensinar, orientar por distintos meios algo considerado correto.
7 Forma de impor medo, reprimir atitudes ou situações.
8 Vara é um instrumento utilizado para coerção de crianças e adolescentes, é um instrumento natural, é um galho
fino que advém de árvores, são retiradas as folhas e a haste restante corresponde ao instrumento. 9 O castigo corresponde aos meios de repreender crianças e adolescentes, privando-os de algo ou ainda usando
de força física para contê-los.
16
Na Rússia do século XIX, as taxas de mortalidade situavam-se em torno de
50%, índice elevado que alguns autores creditaram aos excessos da
autoridade paterna. A severidade paterna, no entanto, deriva da tradição
russa, que organizava a família em torno da escassez afetiva do pai.
Esperava-se que o pai fosse hostil e restritivo, às vezes mesmo violento para
com os filhos; o castigo corporal para punir e educar era prática recorrente e
comum. Os altos índices de mortalidade deviam-se ainda a certas crenças
populares: até a segunda metade do século XIX, a tradição recomendava que
os recém nascidos fossem banhados em água fria e colocados sobre a neve,
procedimento tido como um teste básico de sobrevivência pelo qual os pais
avaliavam a adaptação da criança aos rigores do inverno tão comuns no
território russo. (GONÇALVES, 2003, p. 101).
Nesse caso, além de ser uma sociedade de caráter patriarcalista10
, ainda mantinha
culturas de teste, o que além da violência cometida pelos pais também vitimavam crianças
dessa época. O que se mostra interessante nesse período, era a imagem que se tinha e o que se
esperava do patriarca, que este fosse rígido e hostil. Com isso demonstrava também que a
violência praticada por esses pais era aceita, por ser desses sujeitos o que se esperava, além de
estarem inseridos em uma cultura permissiva de tal prática.
A preocupação com a violência se traduz ainda, ao longo da história, pela
presença de inúmeros dispositivos legais que visam o controle dos excessos
punitivos, indicando que o aval da cultura para certas <<violências>>
permaneciam sob vigilância e controle de mecanismos externos à família. A
tradição egípcia não punia o infanticídio, mas os pais que matassem uma
criança tinham por dever ninar seu corpo morto durante 72 horas; acreditava-
se com isso desencorajar a repetição do ato. Nas Ilhas Britânicas, a
comunidade aceitava o filicídio sob a condição de que ele fosse praticado
nas primeiras vinte e quatro horas de vida da criança; um filho que
sobrevivesse ao primeiro dia de vida passava a ser alvo da proteção de toda a
comunidade, e como tal não poderia ser morto. (GONÇALVES, 2003,
p.104).
Constata-se que a cultura tem grande influência na vida e na relação familiar. Nesse
sentido, a comunidade passava a intervir apenas quando não estava de acordo com a cultura,
ou seja, quando a família excedia aos limites permitidos pela cultura, a sociedade intervinha a
favor das crianças, antes disso os pais tinham autonomia para decidir sobre a vida dos filhos.
“Nas normas que vigoram na Antiguidade, fica implícita a associação entre o poder de punir e
o consentimento a certas formas de violência, admissíveis quando reguladas.”
(GONÇALVES, 2003, p. 106). A violência não era tratada como crime, mas como integrante
10
“No modelo de família patriarcal, o pai é o chefe da família e provedor das necessidades materiais de seus
membros, com poder autoritário. A ele todos deviam obediência, muitas vezes usava de violência na educação
dos filhos para impor sua vontade. À mulher cabiam a educação dos filhos e as atividades domésticas. Esse
modelo predominou no Brasil até por volta da década de 60 do século XX.”. (RIBEIRO; MARTINS, 2008, p.51)
17
de inúmeras culturas, assim muitas negligências e atrocidades foram cometidas baseadas em
culturas e costumes de inúmeros grupos de distintas sociedades e épocas. Com a aceitação da
violência como algo normal e que a ocorrência ou não ficava sob critérios da família acarretou
numa condição futura de aceitação dessa violência, o que compromete a defesa desses sujeitos
violados, vez que os traços de naturalização11
que acometiam outras épocas estão presentes na
organização social atual.
1.1 INFÂNCIA E VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE BRASILEIRA
No que se refere ao Brasil, o uso de castigos não eram cultuados pelos índios que aqui
habitavam, passaram a ser usados depois da vinda dos portugueses para o país. De acordo
com Chaves (apud GUERRA, 2001, p.76), “‘[...] os diferentes relatos dos padres e em
diferentes capitanias comprovam que os índios não se utilizavam de castigos físicos para o
disciplinamento dos filhos’.”. Nesse sentido, padre Cardim faz referência sobre a educação de
crianças indígenas:
Nenhum gênero de castigo tem para os filhos; nem ha pai nem mãi que em
toda a vida castigue nem toque em filho, tanto os trazem nos olhos. Em
pequenos são obedientissimos a seus pais e mãis, e todos muito amáveis e
aprazíveis; têm muitos jogos a seu modo, que fazem com muito mais festa e
alegria que os meninos portuguezes. (apud GUERRA, 2001, p.76-77).
Observa-se que o uso de meios coercitivos como força física e castigos, surgiram a
partir da inserção da cultura portuguesa no país. Dessa forma,
O castigo físico em crianças não era nenhuma novidade no cotidiano
colonial. Introduzido, no século XVI, pelos padres jesuítas, para horror dos
indígenas que desconheciam o ato de bater em crianças, a correção era vista
como uma forma de amor. O ‘muito mimo’ devia ser repudiado. Fazia mal
aos filhos. [...]. O amor de pai devia inspirar-se naquele divino no qual Deus
ensinava que amar ‘é castigar e dar trabalhos nesta vida’. Vícios e pecados,
mesmo cometidos por pequeninos, deviam ser combatidos com ‘açoites e
castigos’. (PRIORE, 2004, p. 96-97)
11
A naturalização está associada ao não estranhamento da situação, ou seja, no caso da violência física como
método educacional, quando não há um estranhamento desta prática também não há denúncias da ocorrência
desse ato, devido ser considerado normal pela sociedade ou pelo grupo no qual se dá a violência.
18
A punição física aplicada contra crianças é de longa data e foi inicialmente cultuada
com a vinda dos portugueses para o Brasil. “Os jesuítas constituíam os principais agentes
educacionais até meados do século XVIII, quando foram expulsos pelo Marquês de Pombal,
em 1759.” (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p.23). Já no decorrer do século XVIII, a educação de
crianças passa por outra perspectiva e tem como executores dessa tarefa além dos pais,
médicos e educadores. “Mais do que lutar pela sua sobrevivência, tarefa que educadores e
médicos compartilhavam com os pais, procurava-se adestrar a criança, preparando-a para
assumir responsabilidades.” (PRIORE, 2004, p.104). Demonstra-se nesse momento que,
apesar de crianças serem reconhecidas como tal, ainda não se fala em proteção desses sujeitos
e sim, em moldá-las, ou seja, torná-las um futuro adulto. Apesar do reconhecimento, a
condição peculiar de desenvolvimento das crianças não é considerada e nem há preocupação
em que seja vivida essa fase de desenvolvimento, sendo vista apenas como uma fase
intermediária para uma fase em que o sujeito dá conta da própria existência, saciando suas
necessidades.
O século XIX foi marcado pela institucionalização de crianças e adolescentes,
chamados de menores.
A ampla categoria jurídica dos menores de idade (provenientes das classes
pauperizadas) assume, a partir da segunda metade do século XIX, um caráter
eminentemente social e político. Os menores passam a ser alvo específico da
intervenção formadora/ reformadora do Estado e de outros setores da
sociedade, como as instituições religiosas e filantrópicas. (RIZZINI;
RIZZINI, 2004, p. 22).
Observa-se que esses meninos e meninas, que circulavam pelas ruas, causavam receio
à sociedade que buscava educar e doutriná-los, ajustando-os à perspectiva esperada. A
pobreza era vista com um problema a ser resolvido, assim trabalhavam as crianças advindas
dessa classe pauperizada, com objetivo de reformar ou formar esses sujeitos. “Na segunda
metade do século XIX, surge em várias capitais brasileiras a preocupação com a educação dos
pequenos vagabundos e indigentes que circulavam pelas ruas.” (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p.
68). A educação que a sociedade queria transmitir aos “pequenos vagabundos” se dava por
meio da institucionalização desses, como forma de ajustar os que causavam medo e receio à
sociedade, ou seja, instituíam crianças e adolescentes como forma de proteger a sociedade
desses que perambulavam pelas ruas e não detinham educação. Para esses meninos e meninas,
advindos das ruas, usava-se a nomenclatura menor.
19
As instituições estatais, criadas após a instauração do regime republicano,
tiveram papel decisivo na construção jurídica e social da categoria menor.
No princípio, coube ao setor jurídico a sua identificação e análise, dividindo-
a em subcategorias que dessem conta da complexidade do universo a ser
assistido/controlado. Consolidado este processo, as áreas da assistência e dos
saberes científicos foram convocadas a contribuir na definição teórica e
metodológica de novos termos, visando a abarcar as variáveis surgidas com
a crescente complexidade dos problemas sociais enfrentados pela sociedade
brasileira. A cada categoria, se propôs uma modalidade de atendimento,
induzindo à especialização das instituições. As ações passaram a se dividir
em terapêuticas e preventivas, de acordo com as categorias de menor para as
quais eram destinadas. (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p. 68 grifo das autoras).
Diante da condição de pobreza, exclusão e marginalização de crianças e adolescentes
de rua, percebe-se a mudança da nomenclatura quando trata desse grupo. Essa categoria
menor menospreza esses sujeitos e os coloca numa situação de subalternidade e de
inferioridade. A partir disso, tem-se que além de serem discriminados, eram divididos em
categorias distintas. Dessa forma, buscavam um controle mais preciso sobre o suposto
problema para a sociedade, os meninos pauperizados. “As meninas órfãs e desvalidas dos
séculos XVIII e XIX podiam contar com a proteção dos recolhimentos femininos, criados por
religiosos.” (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p.25). A institucionalização de meninas não se
diferenciava apenas da institucionalização dos meninos, mas havia distinção entre as meninas
nos recolhimentos de órfãs.
Logo, a violência que assola crianças e adolescentes não é uma prática que ocorre
apenas no ambiente doméstico. Nessa época, os direitos desses sujeitos ficavam
comprometidos com a institucionalização que buscava reformá-los, ficando esquecida a
condição de sujeitos dos mesmos, pois além de colocá-los numa condição de menosprezo e de
marginalização, retiravam-nos do convívio familiar e comunitário, quebrando em muitos
casos os vínculos de afetividade. Além da institucionalização de crianças e adolescentes,
meninos e meninas, bastante presente na época, havia também no século XIX certo interesse
pela infância,
O interesse pela infância, nitidamente mais aguçado e de natureza diversa
daquela observada nos séculos anteriores, deve ser entendido como reflexo
dos contornos das novas idéias. A criança deixa de ocupar uma posição
secundária e mesmo desimportante na família e na sociedade e passa a ser
percebida como valioso patrimônio de uma nação; como ‘chave para o
futuro’, um ser em formação – ‘ductil e moldavel’ – que tanto pode ser
transformado em ‘homem de bem’ (elemento útil para o progresso da nação)
ou num ‘degenerado’ (um vicioso inútil a pesar nos cofres públicos).
(RIZZINI, 2008, p.24)
20
Nessa visão de futuro, de criança em formação e de perspectiva futura, que motivou
tamanha institucionalização de crianças e adolescentes, houve o interesse do país em formar
pessoas, cidadãos e indivíduos úteis à sociedade, que não causassem problemas. Para que isso
ocorresse, buscavam formar e reformar de acordo com os interesses da sociedade. Rizzini
(2008, p.24 grifo da autora), pontua “Sob esta ótica, zelar pela criança corresponde a um gesto
de humanidade descolado da religião; uma ação que transcende o âmbito das relações
privadas da família e da caridade para significar a garantia da ordem ou da ‘paz social’.”. Fica
claro a partir de então, que era buscada a ordem social e viam que isso seria possível a partir
da educação das crianças por serem elas seres em formação, sujeitos que poderiam ser
distintos dos adultos que não se queria para a sociedade. Nessa época, acreditava-se que o
problema da sociedade deveria ser resolvido em sua base, nessas condições estavam crianças
e adolescentes. Nessa perspectiva de educar, a violência é usada e muitas vezes justificada. A
criança e o adolescente são os sujeitos mais propícios para esse processo devido ao seu grau
de desenvolvimento, além de que esses sujeitos ficam sob os cuidados de um adulto, o qual
busca impor suas vontades e seus interesses, como se crianças e adolescentes fossem
propriedades a serviço de seus mandos e desmandos. Nesse sentido, quando os adultos se
veem frustrados devido a um problema pessoal ou à desobediência de crianças e adolescentes,
usam da punição física como forma de educar e corrigir o erro cometido. Ainda nessa
perspectiva de futuro, tem-se que,
Por um lado, a criança simbolizava a esperança – o futuro da nação. Caso
fosse devidamente educada ou, se necessário, retirada de seu meio (tido
como enfermiço) e reeducada, ela se tornaria útil à sociedade. A medicina
higienista com suas ramificações de cunho psicológico e pedagógico atuará
no âmbito doméstico, mostrando-se eficaz na tarefa de educar as famílias a
exercerem vigilância sobre seus filhos. Aqueles que não pudessem ser
criados por suas famílias, tidas como incapazes ou indignas, seriam de
responsabilidade do Estado. (RIZZINI, 2008, p. 25).
As crianças apenas significariam o futuro da nação quando bem orientadas, bem
educadas, assim por meio da educação tornar-se-iam úteis à sociedade. Assim também
acontece no espaço doméstico, quando crianças e adolescentes, submetem-se aos mais
distintos mandos e desmandos, não há porque puni-las; no entanto, não havendo “cooperação”
desses sujeitos com os seus respectivos responsáveis, a situação muda de figura, o que se
busca então, é corrigir para que não torne acontecer o erro. Assim usa-se da violência física
como forma de conter, educar e disciplinar. Observa-se na fala da autora, a influência dos
21
médicos higienistas12
neste período, a ponto de agirem como agentes que buscavam capacitar
os pais para que estes pudessem formar adequadamente seus filhos, de modo a não causarem
problemas à sociedade. Os pais que não se adequavam aos padrões, ou seja, que eram
indignos ou negligentes na educação dos filhos, estes eram passados à responsabilidade do
Estado. O ambiente doméstico via-se invadido pela sociedade por meio dos médicos
higienistas, perdendo a autonomia mantida pelo grupo familiar, assim o percurso natural desse
grupo ficava comprometido.
Por outro lado, a criança representava uma ameaça nunca antes descrita com
tanta clareza. Põe-se em dúvida a sua inocência. Descobrem-se na alma
infantil elementos de crueldade e perversão. Ela passa a ser representada
como deliqüente e deve ser afastada do caminho que conduz à criminalidade,
das ‘escolas do crime’, dos ambientes viciosos, sobretudo as ruas e as casas
de detenção. (RIZZINI, 2008, p.25-26).
Outro lado da situação apresenta-se nesse ponto trazido pela autora, ou seja, as
crianças não eram apenas vistas como futuros da nação, nestas condições estavam apenas as
bem educadas13
, eram também vistas como ameaça, no momento em que são vistas como
delinquentes, como sujeitos imperfeitos que precisavam ser reformados, adequados para uma
boa conduta. Educar crianças e adolescentes, quando não se adéquam aos pressupostos
impostos, não é exclusivo ao espaço doméstico, a sociedade tem seu caráter educativo e busca
reformas para acertar esses sujeitos.
Ainda referente ao século XIX, Mauad (2004, p.140), pontua que “Os termos criança,
adolescente e menino, já aparecem em dicionários da década de 1830. Menina surge primeiro
como tratamento carinhoso e, só mais tarde, também como designativo de ‘creança ou pessoa
do sexo feminino que está no período da meninice’.”. Nesse momento, amplia-se o
conhecimento sobre os primeiros períodos da vida e já se vê uma divisão quando se fala em
criança e adolescente, designando duas fases. Atenta-se nessa época para o significado de
criança, de acordo com Mauad (2004, p.140),
Criança, neste momento, é a cria da mulher, da mesma forma que os animais
e plantas também possuem as suas crianças. Tal significado provém da
associação da criança ao ato de criação, onde criar significa amamentar, ou,
como as plantas não amamentam, alimentar com sua própria seiva. Somente
com a utilização generalizada do termo pelo senso comum, já nas primeiras
décadas do século XIX, que os dicionários assumiram o uso reservado da
palavra ‘criança’ para a espécie humana.
12
Higienista: “especialista em higiene (‘medicina’); sanitarista”. (HOUAISS; VILLAR, 2001, p.1532) 13
Que receberam boa educação, boas instruções, crianças que foram bem criadas.
22
Infere-se a partir do que nos trouxe a autora, que o termo criança não tinha outra
pretensão senão falar da fase inicial da vida, tanto que era usada para animais e plantas da
mesma forma que era usada para seres humanos. No que se refere à adolescência, Mauad
(2004, p.140), aponta que essa fase “[...] demarcava-se pelo período entre 14 e 25 anos, tendo
como sinônimos mais utilizados mocidade ou juventude”. É a partir desse período então que
se fala dessas fases, definindo-as é que elas podem ser visualizadas diante da sociedade.
Em relação à condição de crianças no contexto de sociedade, segundo Guerra (2001,
p.94)
A criança, em nossas sociedades, está constantemente submetida aos adultos.
Sejam eles pais ou mestres, têm a tarefa de alimentá-la, vesti-la, propiciar-
lhe educação, mediar suas relações com a sociedade. A criança é socialmente
dependente do adulto, e sua inferioridade física e a necessidade na qual ela
se encontra de viver num mundo inteiramente concebido pelo adulto e para o
mesmo obrigaram-na a se submeter a ele, o que não exclui, evidentemente,
as explosões de cólera e de revolta.
A propósito, demonstra-se a dependência que a criança tem do adulto para dar conta
de suas necessidades, essa condição faz com que em mais um momento o adulto tenha
domínio sobre esse sujeito e imponha suas vontades, seus desejos, assim o adulto submete a
criança a seus mandos e desconta nesse sujeito, frustrações e descontentamentos presentes em
seu dia-a-dia.
Contudo, a violência atuada contra crianças e adolescentes, teve início com a vinda
dos portugueses para o país, e, sua razão de ser devia-se ao método educacional, ou seja, a
violência era e é usada como forma de modelar o indivíduo, de disciplinar, de educar, de
impor limites, como forma de afeto como colocado em outro momento com Priore. Assim,
essa prática não é algo novo, mas o que chama atenção é a permanência de tal violência e a
intensidade de como é exercida.
1.2 A VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA QUE ACOMETE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
Inicia-se esta análise por conceituar o que seria a violência em si e segue-se pela
violência doméstica, passando pela modalidade que interessa nesse processo de construção
que é a violência física. “A devida compreensão da violência não pode prescindir do seu
reconhecimento como uma prática incomodamente presente em nosso cotidiano, nos mais
23
diversos espaços sociais.” (SILVA; SILVA, 2005, p.16). A violência é um fenômeno que
perpassoa toda ordem social e pode atingir distintos seres humanos, uma vez que, não se
limita a um grupo de sujeitos sendo um fenômeno de amplo alcance. Dessa forma, a “Sua
compreensão exige antes de tudo, o reconhecimento de que se trata de um fenômeno mundial,
histórico e multideterminado [...]”. (CAMARNADO JUNIOR, 2007, p.12). Entender esse
fenômeno consiste em avaliar além de o que nos é apresentado num primeiro momento como
a violência em si, o ato de agressão podendo ser ele verbal ou físico14
, mas em compreender
de que forma se dá essa violência, como ela se encontra na sociedade, como ela passou a ser
usada e fazer parte da cultura da sociedade. Dessa forma, tem-se que “[...] não existe uma
violência, mas uma multiplicidade de manifestações de atos violentos, cujas significações
devem ser analisadas a partir das normas, das condições e dos contextos sociais, variando de
um período histórico a outro.” (WAISELFISZ apud PERES, 2009, p.115). Ou seja, a
violência configura-se em cada momento de uma forma, diante dos fatores que determinam
essa prática, determinantes que perpassam as relações sociais e que influenciam na ação.
Trata-se de um fenômeno tão complexo quanto incômodo e preocupante, que
vem minando o tecido social e infiltrando-se em todos os setores da vida
contemporânea. É um fenômeno diante do qual não há qualquer
possibilidade de neutralidade, ainda que solução não possa ser reduzida a
uma questão de mera aceitação ou rejeição. Afinal, não há como ignorá-la
nem como fugir dela, a violência se faz presente a qualquer hora e em toda
parte [...] (MOTTA, 2003, p.11).
A dificuldade para conceituar o fenômeno violência está no fato de ter que explorar
vários aspectos e, seu significado pode ser múltiplo diante das várias formas que pode
acontecer e atuar junto aos indivíduos. Mesmo com tal dificuldade e avaliando esses aspectos,
Michaud (apud CAMARNADO JUNIOR, 2007, p. 14), pontua que “[...] há violência quando,
numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça
ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua
integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações
simbólicas e culturais.”. A prática da violência está relacionada ao ato em que o mais forte
impõe suas vontades ao mais fraco por meio de coerção, da força e da agressão. Além disso, a
violência também pode estar relacionada à condição de ameaça que o mais forte impõe sobre
o mais fraco. Nesse sentido, Velho (apud GONÇALVES, 2003, p. 222-223 grifo do autor)
14
Pode ocorrer por meio do insulto, da fala ou ainda por meio da agressão acometida contra o corpo, contra a
estrutura física.
24
traz que a violência “[...] não se limita ao uso da força física, mas à possibilidade ou ameaça
de usá-la constitui dimensão fundamental de sua natureza”.
A violência caracteriza-se por depreciação e desvalorização15
dos indivíduos em
condição de violência, por ser “[...] uma ação que envolve a perda da autonomia, de modo que
pessoas são privadas de manifestar sua vontade, submetendo-as à vontade e ao desejo de
outros.” (FERRARI, 2002, p. 82). Diante do ato de violência, o sujeito não manifesta a sua
vontade, seu desejo, sua necessidade, ao ser violentado ele se submete de forma involuntária,
aos desejos, mandos e vontade de outro indivíduo.
Inúmeros são os fatores apontados como desencadeantes, facilitadores e
perpetuadores para a violência contra a criança e o adolescente. Há, no
entanto, um fator comum a todas as situações, que é ‘o abuso do poder do
mais forte - o adulto - contra o mais fraco - a criança’. (ABRAPIA apud
MURILHO; LAZZAROTTO; BRAZ, 2006, p.39).
De sobremaneira, a violência se manifesta mais facilmente no uso da força do mais
forte sobre o mais fraco, dessa forma, o indivíduo em situação de violência, encontra-se em
desvantagem no que se refere à força e dessa forma é submetido à força do mais forte.
Observa-se que, a violência ocorre no caso de crianças e adolescentes, num campo desigual,
em que esses sujeitos são acometidos pela fragilidade que lhes é integrante do processo de
desenvolvimento.
Entretanto, a violência que atinge crianças e adolescentes pode se manifestar em
distintos espaços podendo ser eles privados ou públicos. Para o presente trabalho, será tratada
a violência no âmbito privado, do grupo familiar, ou seja, violência doméstica prática contra
crianças e adolescentes, sendo:
Todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra
crianças e adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou
psicológico à vitima – implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever
de proteção do adulto e, de outro, uma ‘coisificação’ da infância, isto é, uma
negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como
sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.
(AZEVEDO;GUERRA apud SILVA;SILVA, 2005, p.164).
A violência doméstica ocorre no espaço em que deveria imperar a proteção, os
cuidados e o zelo, local onde crianças e adolescentes deveriam sentir-se livres e receber
15
Não dar valor, menosprezar.
25
atenção, cuidados, carinho, em que o elo entre pais e filhos possibilita a esses sujeitos de
direitos, condições para desenvolvimento de suas habilidades de forma digna.
Como violência intersubjetiva, a violência doméstica consiste também:
a) numa transgressão do poder disciplinador do adulto, convertendo a
diferença de idade, adulto-criança/adolescente, numa desigualdade de poder
intergeracional;
b) numa negação do valor liberdade: ela exige que a criança ou
adolescente sejam cúmplices do adulto, num pacto de silêncio;
c) num processo de vitimização como forma de aprisionar a vontade e o
desejo da criança ou adolescente, de submetê-la ao poder do adulto a fim de
coagi-la a satisfazer os interesses, as expectativas e as paixões deste.
(GUERRA, 2001, p.31-32).
Neste contexto, o fenômeno se manifesta de diferentes formas de maus-tratos tais
como: violência sexual, abandono, negligência, violência psicológica e violência física. A
violência sexual “[...] é toda ação na qual uma pessoa, em situação de poder, obriga outra à
realização de práticas sexuais contra a vontade, por meio de força física, de influência
psicológica (intimidação, aliciamento, sedução) ou do uso de armas ou drogas.” (BARKER;
RIZZINI, 2003, p. 66). Essa violência consiste numa prática perversa e invasiva que impede a
preservação da intimidade de crianças e adolescentes e, traz consequências que perpassam o
desenvolvimento pessoal dos indivíduos vitimizados. Ainda sobre essa prática tem-se que,
A Violência Sexual se configura como todo ato ou jogo sexual, relação
hetero ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança ou
adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança ou
adolescente ou utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre sua
pessoa ou de outra pessoa. (AZEVEDO; GUERRA apud GUERRA, 2001,
p.33).
“O abandono se caracteriza pela ausência de responsável pela criança ou adolescente
na educação e demais.” (BRASIL apud GREGÓRIO, 2007, p. 27). A negligência se
caracteriza pelo “Ato de omissão do responsável em prover as necessidades básicas para o
desenvolvimento da criança ou adolescente.” (ABRAPIA apud BARKER; RIZZINI, 2003,
p.63).
A violência psicológica é “[...] definida como a atitude do adulto em depreciar e
inferiorizar de modo constante a criança ou o adolescente, causando-lhe sofrimento psíquico e
interferindo negativamente no processo de construção da sua identidade [...]” (MALTA, 2002,
p. 47). Devido aos danos psicológicos que estão agregados em todos os atos de violência,
pode-se dizer que em todas as formas de violência intrafamiliar ocorre violência psicológica.
26
Já a violência física, foco do presente trabalho, caracteriza-se segundo Malta (2002,
p.21), “[...] como qualquer dano físico provocado pelo familiar adulto contra a criança ou o
adolescente, podendo as consequências de tais danos variarem de lesões leves até a morte.”.
Com o que traz Malta, observa-se que essa tipificação16
pode ter consequências distintas,
devido aos diferentes graus de intensidade. Dessa forma, nem sempre é considerada uma
violência, apenas quando chega a ocasionar consequências mais graves, que causam
estranhamento aos sujeitos e os levam a uma possível denúncia. Considera-se ainda que,
A literatura é muito controvertida em termos de quais atos podem ser
considerados violentos: desde a simples palmada no bumbum até agressões
com armas brancas e de fogo, com instrumentos (pau, barra de ferro, taco de
bilhar, etc.) e imposição de queimaduras, socos, pontapés, etc. Cada
pesquisador tem incluído em seu estudo os métodos que considera violentos
no processo educacional pais-filhos, embora haja ponderações no sentido de
que a violência deve se relacionar a qualquer ato disciplinar que atinja o
corpo de uma criança ou de um adolescente. (GUERRA; SANTORO
JÚNIOR; AZEVEDO, s.d, s.p).
Mesmo diante de inúmeras características da violência física, a autora pontua o que se
faz importante, que a violência deve se relacionar ao ato de disciplinar. Assim, essa
tipificação de violência doméstica, se caracteriza por inúmeras formas de violência, podendo
ter consequências leves e gravíssimas. Em relação à ocorrência da violência física no âmbito
familiar, tem-se que,
Nas famílias nas quais existe violência física as relações do agressor com os
filhos vítimas se caracteriza por ser uma relação sujeito-objeto: os filhos
devem satisfazer as necessidades dos pais, pesa sobre eles uma expectativa
de desempenho superior às suas capacidades, são vistos como pessoas
criadoras de problemas. Por outro lado, pode haver uma idealização da
criança ou adolescente: os pais imaginam uma criança/adolescente que não
corresponde ao seu filho, e tudo pode representar um motivo para sua
rejeição, seja o seu aspecto físico, o seu caráter, o sexo etc. Além disso,
podem ser percebidos conflitos familiares significativos, seja entre os pais,
seja destes com outros elementos da família (avós, tios, etc.). Um outro
aspecto interessante que surge na dinâmica entre pais e filhos, reside no fato
de que as vítimas da violência física devem aprender que são “responsáveis”
por estes quadros de violência, ou seja, as causas do problema são
individuais, devem ser hipostasiadas como culpa e jamais remetidas a
questões mais amplas que se interliguem a problemas familiares, sociais etc.
O resultado deste tipo de prática: seres humanos que de antemão buscam o
erro em si mesmos (GUERRA, 2001, p.43 grifo da autora).
16
Tipificação associa-se à forma de violência, ou seja, a violência física uma das formas de ocorrência, um dos
tipos da violência atuada contra crianças e adolescentes.
27
A partir disso, observa-se que a motivação à prática de tal violência, pode ser advinda
de inúmeras situações, desde conflitos familiares, de frustrações, de idealizações de filhos, as
quais colocam crianças e adolescentes como culpados; assim, são responsáveis pelos atos de
agressão, com isso além de serem vítimas de agressões distintas, estes ainda se colocam como
aqueles que causaram a violência, os culpados ou os errados.
Essa forma de violência acomete crianças e adolescentes e tem fácil identificação
diante de seus sinais que correspondem a hematomas, cortes, queimaduras e marcas advindas
de agressão. Porém, apesar de ser identificada com mais facilidade, ainda se encontra
dificuldade de identificação dessa e das outras formas de violência. Essa dificuldade se dá,
justo porque a família é colocada acima de todas as suspeitas quando se relaciona ao
fenômeno violência e dessa forma ocorre a naturalização dessa prática. Segundo Gregório
(2007, p.21), “A violência torna-se naturalizada quando culturalmente entendida como
constitutiva de uma relação, tal como aquela entre pais e filhos. Nesta relação, a violência
costuma estar silenciada, dada a pouca visibilidade de espaço em que ocorre, o espaço privado
[...]”.
Devido ao vínculo que se mantém entre vítimas, agressores e co-agressores da
violência doméstica, impossibilita-se que a ocorrência chegue às autoridades, de forma que
esses casos sejam abafados no seio da família. Dessa forma, a prática da violência doméstica e
dentre as tipificações a violência física, é efetuada e aceita como normal, sendo usada como
método educacional, sinal de “amor” e de “atenção” dos pais para com os filhos.
Nessas condições, atribuída ao poder imposto do mais forte sobre o mais fraco,
crianças e adolescentes são submetidos a inúmeras atrocidades17
, sem que seja dada devida
atenção a este acontecimento. Com isso, crianças e adolescentes ficam jogados à própria
sorte, sem atenção apropriada, sem em muitos casos ter a quem recorrer devido à fragilidade18
que integra esses sujeitos.
Para que essa situação possa mudar, segundo Cunha (2003, p.18),
[...] é fundamental desfazer o mito da perfeição familiar e buscar
desenvolver mecanismos que ajudem na administração dos conflitos
domésticos. A família é sagrada, mas cheia de defeitos e falhas. Não
podemos encobri-la com o manto da impunidade. A privacidade da família
17
Atrocidade relaciona-se à crueldade, situação cruel em que crianças e adolescentes ficam em desvantagem em
relação ao agressor, que age de forma cruel. 18
“qualidade de frágil”. Frágil: “falto de vigor físico; franzino; sem solidez”. (HOUAISS; VILLAR, 2001,
p.1384).
28
deve terminar sempre que existir ameaça à integridade física e emocional de
seus membros.
Em outras palavras, a família deve ser vista como uma instituição advinda de uma
organização social, tendo pontos positivos e negativos. Como uma instituição que se integrou
a partir de uma necessidade e, que esse grupo teve que aprender a manter vínculos entre seus
integrantes. Como pontuado, no que trazem os autores sobre a história da infância, a família
nem sempre teve papel socializador e afetivo; essas características não se fazem inatas em
uma família, se dão a partir de uma construção de vínculos de afetividade, assim umas podem
desenvolver esse caráter e outras não. Neste sentido, prover a família como algo padronizado,
igual, faz-nos cair no erro da generalização.
“Por trás da violência esconde-se um modelo de educação tradicional que tem por fim
quebrar a vontade da criança, sufocar o que nela existe de vivo para transformá-la num ser
dócil, obediente” (GUERRA; SANTORO JÚNIOR; AZEVEDO, s/d, s/p).
29
2 EDUCAR E DISCIPLINAR POR MEIO DA VIOLÊNCIA FÍSICA
A violência consiste num fenômeno amplo e atinge toda a sociedade, caracteriza-se
por distintos atos agressivos que podem atingir tanto a integridade física quanto a psicológica
e não faz distinção de gênero, cor, religião ou idade. Acomete toda a sociedade de distintas
formas, podendo ser violência estrutural que ocorre na sociedade junto às instituições e
demais espaços da sociedade civil, entre gêneros, grupos, no espaço familiar. Sendo último o
que nos interessa nesse trabalho, a violência que ocorre nesse espaço distorce as relações
mantidas internamente, uma vez que os sujeitos mais vulneráveis e que necessitam de apoio
se veem desamparados à mercê de distintas violações; nesse grupo vulnerável, encontram-se
crianças e adolescentes, que devido ao seu grau de desenvolvimento estão em situação
desigual em relação ao agressor.
A violência manifesta-se [...] pela imposição do adulto sobre a criança e/ou
adolescente, em situações nas quais, a vítima da violência é sempre o
indivíduo que reagiu de alguma forma contrariando a vontade do adulto.
Para que seja corrigido, de maneira que não repita a ação, esse indivíduo
precisa ser punido pela imposição da autoridade “superior”. (RIBEIRO;
MARTINS, 2008, p.75-76).
Nesse sentido, fica explícita a subordinação que crianças e adolescentes desempenham
em relação aos adultos, os últimos, quando contrariados agem de modo coercitivo para
controlarem os que estão sob seu domínio, como julgam ser sua relação com crianças e
adolescentes, uma relação de superioridade, na qual estes últimos devem obediência e respeito
aos mandos e desmandos dos adultos. Quando se tem a desobediência desses sujeitos, os
responsáveis usam de meios para que a desobediência ou a má-criação não torne a se repetir.
A violência cometida pelos responsáveis contra crianças e adolescentes no ambiente
doméstico é o fenômeno que nos interessa no presente trabalho. Diante de tal, importa nesse
momento de construção, perpassar o ambiente familiar, sendo que é neste espaço que se dá a
ocorrência da violência física como método educacional. É na família que o indivíduo tem
suas primeiras experiências e referências - vista por muitos como instituição primária.
A família é, pois, a instituição que proporciona a socialização primária,
inicial, da criança. Nela se dá a aprendizagem dos primeiros padrões de
comportamento, percepções da realidade e hábitos de pensamento que são
característicos do meio social mais amplo e de outros que são típicos da
classe social a que pertence a família e, ainda, aqueles que são específicos da
própria família. (CAMPOS, 1985, p.18).
30
A transmissão da aprendizagem perpassa ainda pela cultura e pelos costumes que
acometem a família da qual faz parte a criança e o adolescente. A família, como é
apresentada, nem sempre correspondeu à essa estrutura e nem mesmo à lógica de proteção
que se tem hoje.
A concepção de família no Brasil, nasceu no século XIX, no período da
Revolução Industrial na Europa. Nessa época, diante das transformações dos
setores de produção a família diminuiu sua convivência com a comunidade
(vizinhos, amigos, amos, criados e outros), para fechar-se na unidade pai,
mãe e filhos, compondo um unidade econômica. (DIAS apud RIBEIRO;
MARTINS, 2008, p. 51).
Na sociedade tradicional, tinha-se uma produção voltada essencialmente aos setores
primários – tais como terra. Nessa organização, as famílias tinham uma lógica organizacional
voltada à cooperação de todos para gerar renda a partir do setor em que todos estavam
inseridos. No Brasil, por exemplo,
[...] a família detinha em suas mãos, como conseqüência de seu papel
econômico, o poder político, seja de forma direta ou indireta, ao mesmo
tempo que se tornava evidente seu papel de controle social e na atribuição de
status. Funções educativas no mais amplo sentido da palavra, desde o
processo de socialização da criança até a transmissão do ensino formal
sistematizado, faziam parte integrante de suas obrigações. (CAMPOS, 1985,
p.3-4 grifo do autor).
A família era responsável pela educação de forma ampla, uma vez que cabia à ela a
educação socializadora e ainda a educação curricular, tinha um papel que dava conta da
dimensão política, além da econômica e ainda uma certa atribuição no que se refere ao
controle social. “Transformações, entretanto, têm lugar na idade contemporânea, primeiro nos
países europeus e nos EUA, e depois em muitos outros por difusão do processo de
modernização ocorrida nesses países.” (CAMPOS, 1985, p.4). Essas transformações foram
significativas, alterando além da característica da instituição família, também o número que
passou a integrá-la.
A família, durante esse processo de modernização geral da sociedade,
apresentou mudanças muito importantes, tendo em vista o desenvolvimento
da sociedade como um todo e dos indivíduos enquanto personalidades
únicas, em particular. A diminuição de seu tamanho, passando de extensa a
conjugal ou nuclear, é decorrência da perda de sua função econômica na
sociedade, à medida que um ou mais de seus membros começam a deixar a
31
casa paterna para buscar emprego no mercado de trabalho. (CAMPOS, 1985,
p. 5).
Essa nova organização está atrelada às novas tendências e à nova configuração da
sociedade, em que a família perde o caráter econômico, no qual o grupo familiar deixa de ser
responsável por dar conta das necessidades econômicas que a integravam. Assim, “[...] a
família, enquanto grupo, não desempenha mais na sociedade industrializada funções
econômicas e políticas.” (CAMPOS, 1985, p.7). Os filhos, que até então estavam vinculados
aos pais motivados por este elo econômico, deixam o ambiente familiar em busca de objetivos
individuais. Diminuir o número de integrantes do grupo familiar, porém, não vem significar
que a tarefa dos pais tornou-se mais fácil. De acordo com Campos (1985, p.7), “[...] se a
família se reduziu em tamanho, nem por isso a tarefa paterna se tornou mais fácil, dada a
complexidade da sociedade atual, para a qual ela tem que preparar os filhos provenientes da
união conjugal.”. Assim como a família, a sociedade também passou por modificações, o que
altera as responsabilidades dos pais para com os filhos, para que os primeiros possam dar
conta das necessidades emocionais, materiais e sociais dos filhos gerados na relação conjugal.
Relativo ao século XIX tem-se que,
As relações pais-filhos não escapam à preponderância do dever, e isto,
paralelamente, à descoberta da criança. Tal circunstância concebe a
educação a educação e a promoção da criança como tarefa primeira
imperativa da família, pelo menos nas classes burguesas e pequeno-
burguesas. Assim, o dever principal dos pais era zelar pela educação dos
filhos, assegurar a sua escolarização, preparar-lhes um futuro melhor,
contribuindo para que a educação retomasse um modelo disciplinar centrado
na autoridade parental e nos deveres filiais de obediência. (RIBEIRO;
MARTINS, 2008, p. 42).
Dessa forma, fica evidente que na educação de cunho escolar, os pais com o dever de
educar optam por meios disciplinadores, que possibilitem modelar19
os filhos de acordo com o
padrão esperado ou a ideologia buscada. Assim, o cunho educativo disciplinar vem de longa
data e atinge crianças e adolescentes de inúmeras famílias. A disciplina vem nesse momento
como uma característica pertinente na prática disciplinar de hoje, ou seja, vista como meio de
zelar pela educação, pela boa conduta, como forma de cuidar. Essa característica persiste, uma
vez que foi aculturada como meio natural de corrigir e educar os filhos, fazendo com que este
método disciplinador não esteja pautado em uma forma de violência.
19
Ajustar, dar forma, ou seja, levar a ser algo, formar algo ou alguém.
32
O ambiente familiar está envolto pela relação de pais e filhos e em alguns casos, outro
familiar, levando em conta a relação pais e filho e a importância que tem a família no
desenvolvimento dos indivíduos, tem-se que,
Se os pais são elementos essenciais no crescimento e na socialização da
criança, a família será fundamental para o futuro dos filhos e poderá atuar
tanto de forma positiva como negativa, isto é, a família é capaz de formar
indivíduos seguros, criativos, responsáveis e cônscios do papel a ser
desempenhado por eles na sociedade, ou, ao contrário, indivíduos
perturbados, carentes, seja física ou emocionalmente, passivos,
irresponsáveis quanto a assumir uma função na sociedade ou
impossibilitados de dar uma contribuição ao grupo do qual fazem parte, por
não terem podido desenvolver as potencialidades recebidas ao nascer.
(CAMPOS, 1985, p.7).
2.1 DESMISTIFICANDO O GRUPO FAMILIAR: O PAPEL DA FAMÍLIA
O grupo familiar pode ter significado distinto diante do que possibilita aos
dependentes dessa instituição, uma vez que ao ser responsável pelas primeiras experiências,
pelas primeiras referências que o sujeito criança vai ter acesso pode supostamente delinear a
trajetória do desenvolvimento desses indivíduos, levando-os a desenvolver suas
potencialidades ou não, formando distintos sujeitos na sociedade. É importante frisar, que na
formação possibilitada pela família, a criança e o adolescente não se desvinculam de forma
alguma da sociedade na qual estão inseridos. A relação que mantém os integrantes do grupo
familiar pode ser a mais variada possível, diante da diversidade dos grupos familiares que são
detentores de cultura, costumes, organização e outras características próprias. Assim, dessa
possibilidade variada de relação familiar, os resultados podem ser os mais distintos. Nesse
sentido, Scodelário
a diversidade de sentimentos presentes nas relações familiares pode
desenvolver experiências de realização ou fracasso. Quando cada membro
do grupo familiar tiver suas necessidades físicas, emocionais e intelectuais
satisfeitas e puder experimentar, conter e utilizar adequadamente seus
conteúdos – amor, raiva, medo, alegria, agressividade, sexualidade etc. – ,
normalmente disponíveis nas interações, pode ter como resultado uma
família mais integrada [...] porém, quando as relações se desorganizam, o
potencial destrutivo é enorme, ocorrendo nas pessoas uma falta de
contenção que ocasiona enorme prejuízo na circulação dos conteúdos
pertinentes ao grupo familiar. (apud RIBEIRO; MARTINS, 2008, p.54 grifo
do autor).
33
A partir do que foi supracitado tem-se que é na família que o sujeito vai se
desenvolver e, como esse desenvolvimento vai se dar no âmbito familiar poderá ter resultados
diversos, bem porque ao ter uma relação tranquila na qual possa resolver suas necessidades,
interagir, expressar suas vontades e se entender enquanto sujeito, o resultado possibilitado por
essa relação será distinto do resultado que será oportunizado por uma situação contrária. Pode,
neste contexto, a família corresponder a um caráter construtivo ou a um caráter destrutivo,
com sérias consequências.
Outro aspecto que se faz constitutivo do grupo familiar, está na questão do afeto, o
qual é visto na nova organização da família da forma que a antecedeu.
[...] estudos têm mostrado que os conceitos de amor, maternidade,
paternidade, como nós os entendemos hoje em dia, são uma criação moderna
e que nos tempos antigos as pessoas estavam menos interessadas nesse tipo
de emoção na família e, mais ainda, que a infância não era altamente
valorizada [...] (D’INCAO, 1989, p.59).
Observa-se nesse ponto, que a condição de proteção e de cuidados que remetemos à
família é algo recente, até mesmo por ser também recente a construção da categoria infância e
sua respectiva valorização. Os estudos que a autora cita são os estudos de história
demográfica, de história da família e Abordagem dos Sentimentos que também são estudos
históricos; sobre esses, a autora traz que “Embora esses estudos não apresentem ainda
evidências suficientes para sustentar completamente suas hipóteses, eles têm, sem dúvida
alguma, sugerido muitos caminhos frutíferos para a reflexão sobre a família e suas
mudanças.” (D’INCAO, 1989, p.59). O que sugere que apesar da consistência ou não do que
esses estudos trazem, são pontos que possibilitam questionamentos e reflexões em relação à
família e à mudança de sua constituição na sociedade. Além do mais, a autora em sua
colocação traz a família e suas mudanças, dessa forma nos remete a pensar que a concepção
de família que se tem não é a mesma que de outras épocas, não sendo imbuído a elas o caráter
protetivo que a sociedade remete hoje a essa instituição.
Essa não valorização do afeto ou até da infância, a não demonstração de carinho ou de
sentimentos é uma condição que perpetuou a sociedade por um longo tempo e era uma
perspectiva que acometia também o Brasil.
Durante o século XIX e a primeira metade do século XX, os gestos e as
expressões de amor foram considerados em camadas médias e altas como
questões íntimas, que não deviam ser testemunhadas, nem admitiam
divulgação. Silenciava-se o amor pessoal, ainda quando sentido e partilhado
34
e mesmo cantado como sentimento despersonalizado, em forma de poesia e
canções. A expressão livre dos sentimentos foi contida não só na expressão
do amor entre os sexos. A manifestação do amor às crianças também não era
habitual. Uma severidade beirando a crueldade era considerada a maneira
eficiente de educar os filhos. (LEITE; MASSAINI, 1989, p.74).
Com o que pontuaram as autoras, tem-se que nesse momento da história, optava-se por
não demonstrar os sentimentos, vez que acreditavam na severidade como o método mais
apropriado para a educação dos filhos. O que se mostra também nessa passagem da história
que a proximidade, que a demonstração de afeto não eram situações bem vistas pela sociedade
em geral, e que essa condição afetava também as crianças, ou seja, o afeto que se delega para
a família em relação às crianças e aos adolescentes se dá numa perspectiva recente, não sendo
a prática que intrínseca as famílias de outras épocas, assim como também não o é de todas as
famílias da atualidade. Ainda Leite, Massaini (1989, p.86), pontuam que
“Contemporaneamente, o amor e a família são considerados como um sentimento incorporado
a uma instituição social, tanto nas relações do casal formador, como nas relações entre
gerações.”. Dessa forma, a colocação da autora remete à característica que enquanto
sociedade dá-se à instituição família, espaço que propicie às crianças e aos adolescentes uma
condição de afetividade, na qual o mesmo se sinta protegido e essa relação amor e família
como uma condição inata, como se no interior de uma família o afeto ocorresse de forma
natural.
“A evidência histórica apóia a hipótese de que, na Europa, a família nuclear só emerge
como socializadora por excelência das crianças a partir do século XVIII, junto com a
popularização da educação escolar.” (FONSECA, 1989, p.96). Nesse sentindo, observa-se que
essa organização teve início nas primeiras práticas educativas ligadas às escolas,
demonstrando o caráter educativo que se impõe aos núcleos familiares. Neste momento
trazido pela autora, a educação por parte dos pais vinha de encontro à perspectiva de ensino
escolar e, não era de sua plena responsabilidade os cuidados com crianças e adolescentes; essa
função era dividida com a sociedade por meio da função educativa e formativa desempenhada
pela escola neste momento histórico.
[...] a família, ao longo do tempo, é caracterizada por propiciar condições,
afetivas, materiais e morais necessárias ao desenvolvimento da pessoa. Cada
grupo familiar possui uma cultura, com identidade e regras próprias, que
difere de outros, embora existam normas constitucionais que definam seus
direitos e obrigações para com seus componentes e a sociedade. (RIBEIRO;
MARTINS, 2008, p. 52)
35
“Os conceitos de amor materno, da domesticidade conjugal, são particularmente
adequados à intimidade da família nuclear “moderna”, isto é, à unidade doméstica onde
moram só o pai, mãe e filhos e onde certa divisão de trabalho dá disponibilidade à mãe para se
dedicar inteiramente aos filhos.” (FONSECA, 1989, p. 104). É nesse grupo que crianças e
adolescentes têm suas primeiras referências; é também nesse espaço que são transmitidos
ensinamentos e se dão os cuidados necessários para que esses indivíduos, em condição
peculiar, possam se desenvolver de forma saudável e digna. Isso é o que se espera do
ambiente familiar, mas nem sempre essa é a realidade de crianças e de adolescentes. “Diante
da multiplicidade de modelos familiares, a família conserva sua função de “útero social”, um
espaço privilegiado de convivência, acolhimento, afeto e educação, mas não deixa de
apresentar conflitos e desentendimentos nos relacionamentos entre seus componentes.”
(RIBEIRO; MARTINS, 2008, p.53).
“O conflito entre as duas gerações, de que se compõe atualmente a família nuclear,
pode ser muito intenso, pelo fato de não haver outros adultos a quem a criança possa recorrer
em caso de abuso da autoridade paterna.” (CAMPOS, 1985, p.9). Baseando-se na condição de
responsáveis, abusam de seu poder e submetem crianças e adolescentes aos mais distintos
mandos e desmandos, fazendo desses sujeitos em situação peculiar de desenvolvimento,
propriedades suas que devem servir às suas vontades.
A violência doméstica, pelo seu envolvimento, em grande parte dos casos,
com relações familiares e o espaço do domicílio, é caracterizada como uma
questão relativa estritamente à esfera da vida privada, encoberta pela
ideologia que apresenta a família como uma instituição natural, sagrada, na
qual se desenvolvem apenas relações de afeto, carinho, amor e proteção, a
ser preservada pela sociedade. (ROCHA, 2007, p.29)
“Por tratar-se de um tipo de violência que se reproduz em sua maioria, em espaço
privado, em geral praticada pelos pais e responsáveis diretos da criança, e dada a carga
cultural de aceitação desta violação, suas manifestações ainda são pouco registradas.”
(SILVA; SILVA, 2005, p.53). O fato de tal violência ocorrer no espaço doméstico, diante do
vínculo que mantém vítimas e agressores, compromete a realização de registros que
demonstrem as ocorrências, isso resulta que os números que se têm em relação à violência
física doméstica sejam parcelas da realidade que se faz oculta.
A concepção da esfera doméstica como totalmente privatizada reitera o
entendimento da violência doméstica como uma prática natural de resolução
de conflitos, segundo os modelos e papéis instituídos pelo patriarcado e
36
pelas relações contraditórias de gênero. Vista como uma forma pré-jurídica
de praticar a justiça, o agressor assume sua aplicação diante da transgressão
daqueles que estão sob seu domínio [...] (ROCHA, 2007, p. 34).
Como pontua a autora, a violência quando ocorre no ambiente familiar, tende a ser
naturalizada e vista ainda como forma de praticar justiça. Dessa forma, a aceitação de tal
violência permite que ela se alastre e atinja um número cada vez mais considerável de
crianças e adolescentes. A proximidade que acomete o grupo familiar possibilita a
naturalização de que se fala, uma vez que a questão do educar a partir da agressão está
inserida na sociedade, de modo que esta prática seja vista como normal e assim o agressor
aplique a violência sobre os que estão em seu domínio. Nessa condição, encontram-se
crianças e adolescentes. “No Brasil, a violência física é um dos tipos de abuso mais
freqüentemente identificado nos diversos serviços, e usualmente essa alta incidência é
associada ao modelo cultural que justifica a punição corporal como medida educativa.”
(DESLANDES apud GONÇALVES, 2003, p.159). Observa-se que a violência que perpassa o
ambiente familiar ainda é justificada como método educacional, principalmente a violência
física doméstica, foco do presente trabalho.
2.2 A NATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA FÍSICA JUSTIFICADA COMO
DISCIPLINAR
“A violência física caracteriza-se pelo uso da força ou atos praticados pelos pais ou
responsáveis, como o objetivo claro de ferir ou não, deixando ou não marcas evidentes. São
comuns murros, tapas, agressões como diversos objetos e queimaduras por objetos ou líquidos
quentes.” (RIBEIRO; MARTINS, 2008, p.80). Todavia, a violência física pode ser cometida
usando distintas formas podendo ir de tapas a queimaduras. Além da intensidade, a violência
pode ter consequências distintas e vir a resultar até mesmo no óbito da(s) vítima(s). Logo,
entende-se que a agressão não é compatível aos carinhos que deveriam ser disponibilizados
aos cuidados para com crianças e adolescentes.
A violência cometida no grupo familiar é justificada, na maioria dos casos, como
forma de disciplinar e de educar. Quando os pais ou responsáveis se percebem sem o poder
que acreditam ter sobre crianças e adolescentes, adotam a pedagogia educativa referente ao
bater, como forma de controlar e de limitar os feitos desses sobre seu domínio, os quais ficam
submetidos às inúmeras atrocidades diante de seu grau de desenvolvimento. Além de
37
violência física, tem-se também o abuso físico, o qual de acordo com a National Information
Clearinghouse se caracteriza,
[...] pela produção de injúria física como resultado de socar, bater, chutar,
morder, queimar, sacudir ou outras formas de ferir a criança. Os pais ou
responsáveis podem não ter tido a intenção de machucar a criança; na
verdade, o dano pode ser resultante de excessos disciplinares ou punição
física. (NIC apud GONÇALVES, 2003, p.157).
O abuso físico não difere em suas características da violência física, sendo que ambos
têm sua ação sobre a integridade física de crianças e adolescentes. Consiste uma prática de
covardia, ao considerar que a vítima se encontra em condição inferior a do agressor, no
sentido de integridade biopsicossocial. Assim, crianças e adolescentes constituem um grupo
relativamente vulnerável aos mais diversos tipos de mandos e desmandos, aos mais distintos
graus de intensidade das agressões, sendo que podem resultar dessas situações sequelas
irreparáveis que irão prejudicar o desenvolvimento desses sujeitos fragilizando-os e anulando
suas potencialidades.
“O modelo educativo antigo pregava que os pais deveriam disciplinar severamente
seus filhos. Tal postura era adotada ao pé da letra e não existia, na cabeça da maioria dos pais,
qualquer dúvida a cerca da legitimidade e eficácia desse “método pedagógico”.” (CUNHA,
2003, p. 61). Portanto, esse método advém de longa data e, mesmo depois de tanto tempo,
essa prática não é questionada por parte da sociedade, utilizam-se desse meio considerando a
melhor forma de educar seus filhos. Observa-se a citação “disciplinar severamente”, como se
a severidade garantisse a eficácia da modalidade disciplinar.
Durante todo o percurso da história da humanidade sempre se acreditou que
a punição física era um método legítimo e saudável para corrigir e ensinar
nossas crianças. Só recentemente essa verdade, tida como absoluta, tem sido
questionada. Romper com paradigmas tão fortemente consolidados não é
algo fácil, mas precisamos evoluir e desenvolver caminhos que possibilitem
aos pais educarem seus filhos através de uma pedagogia sem violência.
(CUNHA, 2003, p.64).
A naturalização e a aceitação do método como legítimo, de certa forma impossibilita
que essa prática seja questionável por todos os responsáveis que a usam como forma de
educar e dar limites aos que acreditam ser suas propriedades - crianças e adolescentes. O fato
de tal fenômeno já estar sendo questionado é plausível, diante da situação que foi pontuada na
citação “Romper com paradigmas tão fortemente consolidados não é algo fácil”. Concorda-se
que parte da dificuldade para que essa pedagogia violenta usada na educação dos filhos é
38
resultante de paradigmas aceitos pela sociedade e quebrar com essa perspectiva é tarefa
difícil, além de que acreditam os responsáveis terem livre arbítrio para agirem em relação às
crianças e aos adolescentes.
A violência física familiar contra crianças e adolescentes não tem sido
adequadamente dimensionada (o mesmo ocorre com outros tipos de
violência), já que os dados obtidos, tanto em pesquisas como em serviços de
atendimento às vítimas, representam a parcela identificada do problema,
mantendo-se invisíveis as ocorrências que as famílias e as moradias
conseguem ocultar. (RIBEIRO et al, 2007, p. 278).
A violência física no espaço familiar não tem sido adequadamente dimensionada, de
acordo com a autora, chega-se à conclusão a partir disso que, o número relativo ao
acontecimento da violência física e às demais no espaço doméstico, demonstram que a prática
da denúncia não é aceita e nem realizada por todas as famílias que vivem com o sofrimento da
violação. Além do mais, as famílias na tentativa de perpetuarem a imagem e a sua posição
diante da sociedade, buscam encobrir os casos de violência e esses não chegam a ser
denunciados. Logo, não se contabiliza a realidade do fenômeno, o que se tem é uma
referência parcial da realidade que acomete a vida de crianças e adolescentes. Diante da
imagem que a sociedade constrói da família, numa situação de violação, essa opta por se
esquivar para manutenção da imagem e assim, não denuncia, justo porque a denúncia pode
desmoronar a imagem de equilíbrio, de espaço afetivo, de acordos, de amor e cuidados. O
zelo passa a dar lugar a uma constante violência acobertada por aqueles que deveriam
proteger crianças e adolescentes. Com isso, tem-se que crianças e adolescentes ficam à
margem da própria sorte, expostos a condições muitas vezes desumanas sem que possam se
defender diante de seu grau de desenvolvimento.
É importante frisar que, essa forma de violência não se atém apenas ao
disciplinamento aplicado aos filhos pelos pais ou responsáveis, mas que os atinge de forma
generalizada e por distintos motivos; nesse sentido, os fatos que motivam a violência podem
ser inúmeros, como apontados abaixo.
A crença dos pais de que a punição corporal dos filhos é um método
educativo e uma forma de demonstrar amor, zelo e cuidado;
Ver a criança e o adolescente como um objeto de sua propriedade e
não como sujeito de direitos;
A baixa resistência ao stress do agressor que projeta seu cansaço e
problemas pessoais nos filhos e demais dependentes. Exemplos de
problemas pessoais: desemprego, dívidas, desentendimento conjugal, etc;
O uso indevido de drogas;
39
Abuso de álcool;
Pais que quando crianças foram vítimas de violência doméstica e que
reproduzem nos filhos o mesmo quadro vitimizador.
Fanatismo religioso;
Problemas psicológicos e psiquiátricos. (CUNHA, 2003, p.37-39).
De acordo com Cunha, um dos motivos é o método educativo como forma de
demonstrar amor, zelo e cuidado. Observa-se a partir disso que, há uma distorção de
sentimentos, os quais naturalizam a violência e, sobretudo, legitimam também essa prática
como meio de zelar, de demonstrar afeto e interesse na condição de crianças e adolescentes.
Porém, acreditam pais ou responsáveis estarem submetendo os filhos a uma forma de cuidado.
Outra situação se dá no fato de os responsáveis não verem nas crianças e nos adolescentes
sujeitos de direito e, sim, objetos submissos aos seus mandos e desmandos. Nessa relação
hostil, os mais fortes mandam, enquanto os mais fracos devem obediência aos primeiros e
caso isso não ocorra usa-se da coerção para discipliná-los, na busca de a desobediência não
voltar a ocorrer. Outro fator está em os pais ou responsáveis descontarem seus problemas
pessoais em seus filhos, quando os primeiros não têm controle de suas frustrações ou
problemas. A violência também pode resultar de forma recíproca, ou seja, quando crianças e
adolescentes, os pais ou responsáveis foram violentados, o que os leva a praticarem o ato
violento junto aos seus filhos. Esses e outros fatores ocasionam a violência no espaço
doméstico; logo, o que ficou claro é que independente do motivo, crianças e adolescentes
estão na condição de vulnerabilidade que os faz vítimas fáceis de inúmeras agressões.
Enfatizando as motivações Ribeiro
As famílias que o usam o castigo físico apresentam também um outro
conjunto de características especificas ou sejam: consideram o castigo físico
como método de disciplinamento das gerações mais novas; as crianças e
adolescentes são submetidas aos desejos dos pais; estes têm projeto
idealizado sobre a criança e o adolescente, que quando não realizado
desencadeia rejeição; existem conflitos significativos ou crises de variadas
naturezas, inclusive financeiras; guardam segredo sobre esta prática, a fim de
se protegerem da desaprovação social. (et al, 2007, p.278),
Constata-se em mais um momento, a preocupação que as famílias têm em relação à
“desaprovação social” como colocam os autores. Nesse sentido, o que fica claro é que, diante
dessa situação, opta-se por ocultar as situações de violação, o que restringe a proteção, que
quando não possibilitada pela família, deve ser assumida pela sociedade e pelo Estado. Sem
saber da condição de violação, essas organizações não podem se mobilizar e adentrar o espaço
familiar para dar ou não solução à problemática.
40
2.3 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A PROTEÇÃO INTEGRAL
Conforme Art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do
Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação
dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária
(BRASIL, 2006).
A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente, o dever de zelar pela vida e as
condições para que isso aconteça, é dever não apenas da família, mas se estende à sociedade e
ao Estado. Assim, denunciar casos de violência no espaço familiar, não significa apenas o que
parece num primeiro momento, o simples fato de trazer à tona uma questão de violência,
significa muito mais; relaciona-se ao compromisso que enquanto sociedade ou Estado tem-se
com crianças e adolescentes, de forma a proporcionar os cuidados necessários. Por essa
perspectiva, presume-se que crianças e adolescentes devem receber os devidos cuidados, que
não ficam a cargo dessa ou daquela instituição, mas de toda a sociedade, de modo a propiciar
proteção integral.
Ainda referente ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº. 8069/1990,
Art. 3°,
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes
à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,
assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e
facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. (BRASIL, 2006).
Nesse sentido, crianças e adolescentes devem receber proteção integral a qual deve ser
garantida por lei ou por outros meios, de modo a propiciar o desenvolvimento desses sujeitos
em todos os âmbitos e de forma plena. Infelizmente, a garantia de proteção integral não é uma
realidade de todas as crianças e de todos os adolescentes, isso remete a um campo de violação
de direitos, que impossibilita um desenvolvimento saudável e digno. Nesse campo de
violação, estão presentes as formas de violência que acometem crianças e adolescentes no
ambiente familiar, dentre essas, a violência física.
41
A violência física e as demais, quando ocorrem no ambiente doméstico, além de serem
acobertadas pelo grupo familiar diante da sociedade, também são justificadas pelos autores da
agressão como forma de disciplinar e fazer com que o erro cometido por crianças e
adolescentes não venha a se repetir. Para visualizar melhor tal situação, Cunha aponta a
seguinte situação,
Z.O.C., de seis anos, foi torturada no Rio pelo seu padrasto, J.M.P., de
22 anos, que a queimou nas nádegas, coxas e pés, com um ferro de
passar roupa: Na delegacia de polícia, ele explicou que a garota mexeu no
despertador, fazendo com que perdesse a hora. Além de queimar a menina,
colocou sal sobre os ferimentos “para arder bastante”. A mãe de Z.O.C.
estava viajando e por isso ela buscou ajuda de uma vizinha que a levou ao
posto policial. A garota depois de medicada foi entregue a uma unidade da
Febem. (O ESTADO DE SÃO PAULO apud CUNHA, 2003, p.73 grifo do
autor).
O ato de crueldade cometido pelo padrasto foi baseado em motivo insustentável e
superficial, foi motivado por um atraso ocorrido devido à menina ter mexido no despertador.
Logo, o padrasto se vê no direito de fazer o que bem entender para punir a menina, não
satisfeito com as queimaduras põe sal sobre os ferimentos tornando o fato ainda mais cruel. A
intensidade do caso é admitida pelo agressor quando o mesmo pontua que colocou sal “para
arder bastante,” o que torna a situação ainda mais trágica. Não bastasse queimar com ferro de
passar roupa, sentiu-se no direito de piorar a situação e relata isso com naturalidade,
demonstrando dessa forma como a agressão contra a criança e o adolescente se justifica a
partir do método punitivo ou do disciplinamento.
Nesse sentido, observa-se que apesar da garantia de proteção integral colocada pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente e, ainda da condição de sujeito de direitos que esse
mesmo documento propõe, não são considerados esses sujeitos e, além disso, não são vistos
como tal e nem mesmo são respeitados dentro de suas condições de desenvolvimento. De
acordo com Ribeiro e Martins (2008, p.76), “A criança vítima da violência doméstica não é
tratada como sujeito pleno, e tanto sua ação quanto sua reação são restringidas pelo medo e
por ameaças. Só lhe resta permanecer calada frente ao poder disciplinador/repressor do
adulto.”.
Relativo à valorização da Criança em âmbito internacional, tem-se que “[...] foi muito
tardia. Legalmente, ela só se tornou um sujeito de direitos no século XX, em 1959, na
Assembléia Geral da ONU, na qual foi promulgada a Declaração dos Direitos da Criança.
(WEBER, VIEZZER, BRANDENBURG, 2004, p.228). A valorização tardia da criança pode
42
ter comprometido o processo de valorização que se seguiu a partir desse momento, diante do
fato de que a prática de violentar e ver em crianças e adolescentes objetos prontos a servir os
adultos vem de longa data. Mudar o que era até então normal não se constitui em tarefa fácil
e, a mesma dificuldade ainda é sentida nos dias de hoje, apesar de mais de 50 anos da
realização dessa Assembleia. A crença de que bater é a melhor forma de educar e de que
crianças e adolescentes têm o dever de servirem os adultos é pertinente e, os que lutam contra
essa coisificação de crianças e adolescentes, encontram-se diante de uma tarefa árdua tanto
para desmistificar a naturalização da prática de violência quanto para adentrar os espaços
familiares para intervenção quando necessário, diante do sigilo que perpetua essa instituição.
Em relação à condição de sujeito, Ribeiro e Martins (2008, p.56),
Foi a partir da Lei 8.069 de 13.07.1990, que a criança e o adolescente
passaram a ser considerados como cidadãos. Deixam de ser vistos como
“objetos” de guarda e passam a ser considerados como sujeitos de direitos e
deveres, sendo um grande avanço para essa faixa etária que, até então, foi
marginalizada pela sociedade. (RIBEIRO; MARTINS, 2008, p.56).
Apesar do que alegam Ribeiro e Martins, o que se percebe ao falar de violência contra
crianças e adolescentes, é que essa condição de objeto está intrínseca à relação desses com os
adultos, que ainda veem os primeiros como propriedades das quais fazem o que bem
entenderem e da forma que lhes convier. O que se observa em mais um momento, é a
perpetuação da relação fria e conflitante entre vítimas e agressores e, a condição subalterna
em que estão crianças e adolescentes nessa relação.
Entretanto, a questão de disciplinar está ligada não à questão do punir fisicamente para
controlar comportamentos não aceitos por adultos, liga-se à garantia de condições para que
crianças e adolescentes possam desenvolver-se de forma saudável e digna e, possa nesse
processo, também desenvolver seus potenciais, de modo a estarem preparados para a vida
adulta; sem, contudo, chegarem a essa fase da vida diante de um mundo turbulento advindo
da violência e sim de forma madura e tranquila, sem contratempos.
Disciplinar é ajudar uma criança a desenvolver seu autocontrole, estabelecer
limites, ensinar comportamentos adequados e corrigir os inadequados.
Disciplinar também envolve encorajar a criança, ajudá-la a desenvolver a sua
auto-estima e sua autonomia, ou seja, prepará-la para enfrentar o mundo sem
que precise emitir comportamentos simplesmente para evitar as punições e
aprender que a coerção é uma solução inaceitável para a resolução de
problemas. (WEBER, VIEZZER, BRANDENBURG, 2004, p.235).
43
3 A VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA COMO MÉTODO EDUCACIONAL NO
MUNICÍPIO DE TOLEDO – PARANÁ
A pesquisa realizada é de natureza qualitativa, classifica-se com pesquisa documental,
qual seja, “[...] um procedimento que se utiliza de métodos e técnicas para a apreensão,
compreensão e análise de documentos dos mais variados tipos.” (SÁ-SILVA, ALMEIDA,
GUINDANI, 2009, p.05). Por meio da pesquisa documental, buscou-se elencar dados que
possibilitassem traçar um perfil da vítima e analisar a relação entre a vítima e o agressor e
também o sexo do agressor. A pesquisa foi realizada a partir das informações contidas nos
documentos (Formulários de Coleta de Dados) utilizados nos Projetos de Iniciação Científica:
“Quantificar as Modalidades de Violência Doméstica Contra Crianças) e Adolescentes em
Registros de Atendimento do Conselho Tutelar de Toledo – Paraná” e “Tipificar as Formas de
Violência Intrafamiliar contra Crianças e Adolescentes em Registros de Atendimento do
Conselho Tutelar de Toledo – Paraná”, relativas aos períodos de 2009 a 2010 e 2010 e 2011.
Os dados foram coletados por meio do Formulário de Coleta de Dados (Apêndice A)
aprovado pelo Comitê de Ética conforme (Anexo A).
É a pesquisa que alimenta a atividade de ensino e a atualiza frente a
realidade do mundo. Portanto, embora seja uma prática teórica, a pesquisa
vincula pensamento e ação. Ou seja, nada pode ser intelectualmente um
problema, se não tem sido, em primeiro lugar, um problema da vida prática.
(MINAYO, 1994, p.18).
Nessa perspectiva, chamou atenção o fato de que apesar de antiga, a cultura de
disciplinar crianças e adolescentes por meio de punição física, a prática ainda se faz presente
na atualidade. Para análise dos dados utilizou-se de pesquisa qualitativa, a qual propicia
extrair a realidade escamoteada para apresentá-la em números.
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se
preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser
quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos,
aspirações, crenças, valores e atitudes, o que responde a um espaço mais
profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO, 1994, p. 21-22).
Os dados quantitativos se diferenciam dos dados qualitativos, sendo os dados
quantitativos mensuráveis, palpáveis e exatos e os qualitativos saem da aparência
representada em dados quantitativos para a essência. Assim é que, na presente pesquisa, usou-
44
se num primeiro momento de pesquisa quantitativa para elencar dados referentes ao sexo,
escolaridade e idade da vítima, além da relação vítima e agressor, sexo do agressor e o motivo
que o levou à violência física doméstica; e num segundo momento, para análise desses dados,
usou-se de pesquisa qualitativa para chegar à leitura mais próxima da realidade. Apesar de
diferentes, segundo Minayo (1994, p.22), “O conjunto de dados quantitativos e qualitativos,
porém, não se opõem. Ao contrário, sem complementam, pois a realidade abrangida por eles
interage dinamicamente, excluindo qualquer dicotomia.”.
Nesse sentindo, para expressar a realidade de inúmeras crianças e adolescentes
trabalhou-se de forma associada com o quantitativo e o qualitativo, que possibilitou uma
aproximação maior com os reais aspectos dessa relação conflituosa que é a violência física
doméstica. “Uma vez manipulados os dados e obtidos os resultados, o passo seguinte é a
análise e a interpretação destes.” (LAKATOS, MARCONI, 1999, p.36).
3.1 A MOTIVAÇÃO PARA O ATO DA VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA
O motivo da violência corresponde ao fato que levou a ocorrência do ato, para a
pesquisa utilizou-se de duas modalidades sendo como método educacional/disciplinar (foco
da presente pesquisa) e outros, sem definir os demais motivos, devido a não ser o foco do
trabalho. Assim, elencou-se à categoria outros como forma de elencar ao total de violência
física doméstica, o número que corresponde à violência física doméstica, motivada por
método educacional/disciplinar. A violência física “Ocorre quando alguém causa ou tenta
causar dano a alguém utilizando força física, algum tipo de arma ou instrumento que possa
causar lesões internas (hemorragias, fraturas etc), externas (cortes, hematomas, feridas etc.)
ou ambas.” (BARKER, RIZZINI, 2003, p. 66).
O número que se obteve dessa violência, motivada por método educacional, não foi de
grande monta, sendo que no total de 31 (trinta e um) foram identificados 4 (quatro) casos, que
correspondem a 13% das ocorrências. Relativo ao ano de 2009, foram 8 (oito) casos; e
motivados por método educacional 3 (três); no ano de 2010, foi encontrado 1 (um) caso num
grupo de 23 (vinte e três) casos. Para que esses 4 (quatro) casos fossem elencados, usou-se da
leitura dos Formulários de Coleta de Dados supracitados, esse número advém de casos em que
a categoria disciplina pôde ser identificada na denúncia, ou seja, entre os demais casos, o
método educacional poderia ser a motivação que levou à violência física doméstica. Porém,
por não ter sido enfatizado no registro características de punição disciplinar, optou-se por não
45
registrar como método educacional/disciplinar, uma vez que a dedução de algo, não
possibilita um número real e, sim, uma possibilidade de ocorrência. O fato de não conter no
registro características do método educacional, pode estar relacionado à naturalização que se
faz dessa forma de violência, ou seja, quando a violência é usada pelos pais ou pelos
responsáveis para punir um ato errado, para disciplinar e para educar, busca-se justificá-la
como um ato de zelo. Por isso, não é denunciada e, muitas vezes, não é pontuada por não ser
vista como algo anormal, sendo que não causa mais estranhamento, logo, não vai levar a uma
denúncia se não chegar a casos mais extremos como o espancamento ou ainda a morte.
Tabela 1 – Motivo da Violência Física Doméstica
Motivo da Violência Física Doméstica Dados Gerais 2009 2010
Método Educacional/disciplinar 04 03 01
Outros 27 05 22
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
A violência física doméstica tem inúmeros motivos como apontados por Cunha no
segundo capítulo, sendo um dos motivos, o disciplinamento. Apesar de esse método ser uma
prática de longa data, ainda se faz presente na realidade de crianças e adolescentes e continua
a ser usado como forma de educar ou ainda, transmitir valores pelos responsáveis. Na
sequência, há gráficos com as porcentagens dos dados apresentados acima.
Gráfico 1 – Motivo da Violência Física Doméstica (Dados Gerais)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
46
Observa-se em dados gerais, o número reduzido de ocorrências da violência física
doméstica motivada por método educacional/disciplinar. No entanto, o que se observa diante
da teoria pautada é a persistência desse fenômeno na sociedade brasileira. Já para 2009, não se
percebe tanta diferença como pode se analisar na sequência, assim não ocorre no ano de 2010.
Explica-se a pouca diferença obtida em 2009, devido ao menor número de ocorrências nesse
ano, sendo apenas 8 (oito) casos; já no ano de 2010, a diferença é maior por ter um número
menor de ocorrência de violência física doméstica motivada por método disciplinar, além de
um número maior de ocorrência, sendo um total de 23 (vinte e três) casos. A prática da
violência física para disciplinar crianças e adolescentes é constante e faz parte da realidade de
inúmeros indivíduos. Todavia, a sua naturalização implica que esses casos não sejam
denunciados, podendo ser um dos motivos do baixo número de registro da ocorrência de
violência física doméstica, motivada por método educacional/disciplinar.
Gráfico 2 – Motivo da Violência Física Doméstica (2009)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
47
Gráfico 3 – Motivo da Violência Física Doméstica (2010)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
3.2 PERFIL DA VÍTIMA
O perfil da vítima será analisado a partir dos seguintes aspectos: sexo, escolaridade e
idade. Diante da experiência propiciada pelas Pesquisas de Iniciação Científica, elencou-se
essas categorias acreditando que possam proporcionar uma aproximação mais precisa com as
características de crianças e adolescentes, vítimas de violência física doméstica, também
motivada por método educacional/disciplinar.
3.2.1 Quanto ao Sexo da Vítima
Em relação ao sexo, tem-se um número mais elevado para o feminino, o qual não é tão
desigual em relação ao masculino, o que apresenta uma paridade no que diz respeito ao
gênero; ou seja, a violência física doméstica não faz distinção de gênero e atinge de maneira
igual meninos e meninas. A violência, portanto, é um fenômeno amplo que não escolhe quem
vai atingir e decorre de motivações distintas. No ano de 2009, há uma proporção maior para o
sexo feminino, sendo uma diferença considerável uma vez que apenas 1 (um) caso
compreende vítima do sexo masculino. Já para o ano de 2010, o que acontece em dados
gerais, ocorre inversamente, ou seja, há um número mais elevado para o sexo masculino,
porém, nos dados gerais, a diferença não é elevada, o que demonstra em mais um momento
48
que a violência física doméstica não consiste na distinção de gêneros. Logo, não é o sexo que
irá definir a vítima e, sim, as condições que envolvem a relação no ambiente familiar.
Tabela 2 – Sexo da Vítima
Sexo da Vítima Dados Gerais 2009 2010
Masculino 17 01 16
Feminino 21 08 13
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
Constata-se que tanto em 2009 quanto em 2010, o sexo mais atingido pela violência
física doméstica foi o feminino, podendo ser hipoteticamente por inúmeros motivos: por ser
considerado como sexo mais frágil; por não haver tanta denúncia quanto à violência que
ocorre com meninos, pela crença de sexo mais forte entre outros fatores, os quais, apesar de
explicar, não justificam a motivação para a prática da violência física doméstica. Quando se
fala em sexo frágil, observa-se que apesar de inúmeras conquistas alcançadas pelo gênero
feminino, ainda se tem a perspectiva de ser o sexo masculino o mais resistente e o provedor.
Cumprir o papel masculino de provedor não configura, de fato, um problema
para a mulher, acostumada a trabalhar, sobretudo quando tem precisão; para
ela, está em manter a dimensão do respeito, conferida pela presença
masculina. Quando as mulheres sustentam economicamente suas unidades
domésticas, podem continuar designando, em algum nível, um “chefe”
masculino. Isso significa que, mesmo nos casos em que a mulher assume o
papel de provedora, a identificação do homem com a autoridade moral, a que
confere respeitabilidade à família, não necessariamente se altera. (SARTI,
2003, p.67).
Apesar das mudanças em relação ao grupo familiar, as funções despendidas por seus
integrantes e a mudança no papel da mulher, que antes tinha a função de cuidar dos filhos e da
casa como atividades próprias do gênero, hoje, divide com o parceiro o trabalho, que
ultrapassa o ambiente doméstico, ainda assim o homem é visto como autoridade moral e a
mulher ainda mantém uma certa dependência do gênero oposto.
Na sequência, apresentam-se os gráficos com as porcentagens para melhor
visualização dos dados acima.
49
Gráfico 4 – Sexo da Vítima (Dados Gerais)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
Percebe-se que no ano de 2009, o número de vítimas do sexo feminino se destaca em
relação ao sexo masculino, com uma diferença considerável. O sexo feminino tem toda uma
trajetória de lutas e conquistas para o gênero, no entanto, também faz parte dessa trajetória a
submissão remetida aos homens, que as fizeram e ainda fazem em alguns casos, vulneráveis e
vítimas em potencial da violência do homem, ou do mais forte contra o mais fraco.
Gráfico 5 – Sexo da Vítima (2009)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
Entretanto, no ano de 2010, o sexo masculino foi o mais atingido pelo fenômeno
violência física doméstica. Essa diferença não é tão dispare, de sobremaneira é interessante
50
como de um ano para o outro, o sexo da vítima quase que se igualou. A propósito, a diferença
leva a crer que o grande destaque do sexo feminino para o ano de 2009, seja algo casual não
relativo à característica da violência, ou seja, não é característica da violência distinguir o
sexo e pode ocorrer tanto com meninas quanto com meninos.
Gráfico 6 – Sexo da Vítima (2010)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
3.2.2 Quanto à Escolaridade da Vítima
Tabela 3 – Escolaridade da Vítima
Escolaridade da Vítima Dados Gerais 2009 2010
5ª série 01 01 00
8ª série 02 01 01
Não consta 35 07 28
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
Com relação à escolaridade, pode-se dizer, num primeiro momento, que não se obteve
um número satisfatório, uma vez que o resultado revelou situação de escolaridade em apenas
3 (três) vítimas num total de 38 (trinta e oito). Contudo, isso leva a questionar o motivo de tal
categoria não ser elencada no registro de ocorrência. Uma hipótese para tal motivação, pode
ser que no momento do registro, outros aspectos estavam em pauta; outra explicação pode
residir no fato de que o caso tenha sido conturbado e o responsável pelo registro não se ateve
a essa categoria. No entanto, independente do motivo, o fator escolaridade, aliado à idade das
vítimas, apresentaria a situação das vítimas no âmbito escolar, ou seja, poderia ser analisado
51
se a idade é compatível com a série. Esta constatação, dependendo do seu resultado, abriria
campo para discutir as consequências da violência para além dos muros do ambiente
doméstico.
Nos três casos relacionados, conforme dados da pesquisa, tem-se as seguintes
situações: 15 anos na 8ª série, 16 anos na 8ª série e 11 anos na 5ª série. Observa-se nesses
dados, um pequeno atraso em relação à idade e à série dos casos em pauta, entretanto, esses
foram os dados que apareceram e os dados dos demais que ficaram ocultos na não
informação? Quantos pararam de estudar? Quais os motivos? Qual o prejuízo para o
desenvolvimento desses sujeitos?
Para melhor visualizar os dados apresentados, seguem gráficos com as porcentagens.
No gráfico que apresenta os dados gerais, cada série está de uma cor por serem de teores
diferentes, o mesmo ocorre para o ano de 2010; já para o gráfico que apresenta os dados de
2009, optou-se por colocar da mesma cor porcentagens de valor igual como forma de destacar
as maiores porcentagens.
Gráfico 7 – Escolaridade da Vítima (Dados Gerais)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
52
Gráfico 8 – Escolaridade da Vítima (2009)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
Gráfico 9 – Escolaridade da Vítima (2010)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
3.2.3 Quanto à Idade da Vítima
Em relação à idade das vítimas, há um total de 14 (quatorze) crianças e 27 (vinte e
sete) adolescentes, tendo destaque as idades 6 (seis) e 11 (onze) anos para a faixa etária
criança e quase todas as idades da adolescência, exceto 17 (dezessete) anos que não ficou tão
abaixo das demais idades - o que ocorre é que se optou por destacar as idades mais atingidas
pela prática da violência. Diante da quantidade de dados apresentados nessa categoria, optou-
53
se por colorir tanto os dados postos na tabela como agrupá-los por cor e dar destaque às
idades com maiores porcentagens nos gráficos. Observa-se nos dados que, a grande maioria
das vítimas correspondem a adolescentes, sendo que o número de vítimas adolescentes
compreende a quase o dobro de vítimas crianças. Contudo, não é possível afirmar que a
violência ocorre em sua maioria com adolescentes e que, crianças são menos atingidas por
essa prática, o que se pode afirmar é que para 2009 e 2010, diante da documentação
pesquisada, foram estes dados que resultaram.
A violência não distingue idade ou sexo como se vê e atinge da mesma forma, crianças
e adolescentes. Assim, uma das hipóteses para esse número tão elevado de adolescentes em
relação às crianças, pode ser o fato de na adolescência, os sinais da violência física doméstica
ficarem mais visíveis, devido a não ser mais a idade de tombos normais ou de machucados
resultados de brincadeiras. Além de que, a condição de maior maturidade possibilita a esses
sujeitos contar o drama vivido ou, em alguns casos, ainda denunciar a violação sofrida. Como
quem foi o denunciante não foi uma das propostas do formulário de coleta de dados, não se
pode afirmar que a própria vítima tenha sido o denunciante.
Tabela 4 – Idade da Vítima
Idade da Vítima Dados gerais 2009 2010
03 anos 02 01 01
04 anos 01 00 01
05 anos 01 00 01
06 anos 03 01 02
08 anos 02 00 02
10 anos 01 00 01
11 anos 04 01 03
12 anos 03 01 02
13 anos 06 01 05
14 anos 04 01 03
15 anos 03 01 02
16 anos 06 02 04
17 anos 02 00 02
Não consta 03 00 03
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
Na sequência, apresentam-se os dados em porcentagem, frisando que os dados em
destaque correspondem a cores diferentes, compreendendo dados com porcentagem igual e as
demais porcentagens encontram-se com cores neutras.
54
Gráfico 10 – Idade da Vítima (Dados Gerais)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
Gráfico 11 – Idade da Vítima (2009)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
55
De acordo com os dados gerais, assim como nos anos de 2009 e 2010, que a grande
porcentagem de vítimas são adolescentes, o que pode justificar tal fator é o maior
discernimento da realidade que esses têm em comparação às crianças, justo porque se
encontram num estágio um pouco mais elevado de maturidade, logo, discernem de forma
mais clara sobre o certo e o errado. Esse número pode estar relacionado também ao fato de
que sendo os adolescentes mais entendidos e mais opinantes, os conflitos com os pais ou
responsáveis fiquem mais acirrados.
Gráfico 12 – Idade da Vítima (2010)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
3.3 ASPECTO DO AGRESSOR E SUA RELAÇÃO COM A VÍTIMA
3.3.1 Quanto ao Sexo do Agressor
Tabela 5 – Sexo do Agressor
Sexo do Agressor Dados gerais 2009 2010
Masculino 16 02 14
Feminino 19 08 11
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
56
Em relação ao sexo do agressor, há o maior número de ocorrência com o sexo
feminino. Contudo, essa diferença não é tão significativa, sendo que no total atinge 3 (três)
casos, o que demonstra que quanto ao sexo da vítima, a violência não faz distinção de gênero.
Porém, é curioso o fato de que no ano de 2009, o sexo mais atingido pela violência e também
o sexo do agressor, eram do gênero feminino. Uma hipótese para ser o sexo feminino o maior
responsável pelas agressões cometidas contra crianças e adolescentes, pode estar ligado ao
fato de que apesar da independência que a mulher conquistou, ainda em muitos casos, as
mulheres são responsáveis pelo lar, além de suas atribuições no trabalho, tem como função
cuidar da casa e dos filhos, ao ser responsável pelo ambiente doméstico e estar mais próxima
dos filhos e esse ser um fator que propicie o maior contato e a ocorrência da violência por
parte de mulheres.
De acordo com Munhoz, baseada na pesquisa divulgada no Jornal Folha de São Paulo
(1998), a qual registra mudanças pela qual a família passou nos últimos tempos, em relação à
figura da mãe, tem-se que,
A mãe aparece como a figura da família; é o “faz-tudo” doméstico, sendo
responsável pela educação, pela disciplina e não dispensada como fonte de
afeto. No entanto, ainda é alvo de preconceitos, não pode “trair” e, embora
venha tendo sua importância ampliada com o correr da história, sendo
“gerente do cotidiano”, é sempre mais cobrada que o homem.
Repreende/impõe limites, mas também é em geral mais aberta para o
diálogo: a ela os filhos recorrem para tratar de assuntos os mais diversos.
Mas também é muitas vezes fonte de renda e expressão de autoridade.
(MUNHOZ, 2007, p.192).
No entanto, diante da pouca diferença quando analisado o número total de agressores
do sexo masculino e do sexo feminino, infere-se que a agressão pode ser imposta tanto por
homens quanto por mulheres, o que pode ocasionar a violência compreende um conjunto de
inúmeros aspectos de cunho social, emocional ou ainda biológicos que acometem os desejos,
as necessidades ou que respondam a impulsos possibilitados por distintas experiências.
Conforme Silva (apud Lavoratti, Costa, 2007, p.208),
Se a violência intrafamiliar é construída histórica, psicológica e socialmente,
é impossível apontar uma única causa. Temos de ter sempre em mente uma
visão mais abrangente. É preciso observar as características tanto pessoais
como circunstanciais dos membros familiares envolvidos, as condições
ambientais em que ocorre o fenômeno, as questões psicológicas de interação,
o contexto social e as implicações socioeconômicas.
57
Esses aspectos constituem fatores relevantes quando se trata de violência no espaço
familiar, uma vez que podem comprometer a relação de adultos com crianças e adolescentes,
resultando num ato de violência que pode atingir esses sujeitos de formas e graus distintos. A
violência é uma prática que perpassa toda a sociedade, não se faz exclusiva dos sujeitos
crianças e adolescentes. Porém, as vítimas desse fenômeno, devido à sua condição de
desenvolvimento, são bastante prejudicadas. Em muitos casos, associado à condição de
desenvolvimento vêm questões como credibilidade no que contam, ou ainda, condições de
defesa contra o agressor.
Gráfico 13 – Sexo do Agressor (Dados Gerais)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
A porcentagem maior para o sexo feminino, assim como nos dados gerais, também é
destaque no ano de 2009; já no ano de 2010, a porcentagem maior se encontra no sexo
masculino. Assim como no critério sexo da vítima é que, a violência não se dá numa questão
de gênero, é um fenômeno mais amplo que atinge e é cometido por ambos os sexos.
58
Gráfico 14 – Sexo do Agressor (2009)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
Gráfico 15 – Sexo do Agressor (2010)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
3.3.2 Quanto à Relação Vítima e Agressor
No que diz respeito à relação da vítima com o agressor, em dados gerais, destaca-se a
figura da mãe, do pai, seguidos da madrasta e do padrasto. Quando somados os dados
relativos ao pai e ao padrasto e à mãe e à madrasta, observa-se pouca diferença na quantidade
de casos que em esses atuaram como sujeitos violadores. O que fica claro também, diante dos
destaques da tabela, é o grau de parentesco dos agressores com as vítimas, sendo que os
sujeitos violadores correspondem aos supostos protetores, ou seja, daqueles que se esperam
59
cuidados, atenção e zelo. Contudo, o que se tem nessa perspectiva são agressões e direitos
distintos violados.
Segundo os dados, em alguns casos, a violência foi cometida por mais de um agressor
tendo apenas uma vítima. Em outros casos, a violência foi atuada por apenas um agressor
sobre mais de uma vítima, o que leva a analisar quão díspare é a relação de desigualdade entre
vítimas e agressor e, principalmente, a situação de submissão e vulnerabilidade das vítimas
que sofrem com essa situação de violência física doméstica.
Devido ao grande número de informações em relação a esse aspecto, optou-se por
colorir os dados em destaque, cores iguais porcentagens iguais e, por em cor neutra o restante
dos dados.
Tabela 6 – Relação Vítima e Agressor
Relação Vítima e Agressor Dados gerais 2009 2010
Mãe e filha (o) (as/os) 11 05 06
Pai e filha (o) (os) 09 00 08
Avó e neta 01 01 00
Avó e netos 01 00 00
Pais, irmã e filho 01 01 00
Mãe, padrasto e filhos 01 00 01
Madrasta e enteado 02 00 02
Padrasto e enteado 02 00 02
Pais e filho 01 01 01
Irmão e irmã 01 00 01
Pai, madrasta e filho 01 00 01
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
Para melhor visualização dos dados apresentados acima, seguem gráficos projetando
as porcentagens.
60
Gráfico 16 – Relação Vítima e Agressor (Dados Gerais)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
Gráfico 17 – Relação Vítima e Agressor (2009)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
61
A relação de proximidade entre as vítimas e os agressores destaca, assim como, nos
dados gerais nos anos de 2009 e 2010, os supostos protetores: pai, mãe, padrasto e madrasta;
neste contexto, observa-se que crianças e adolescentes são colocados em situação complicada,
uma vez que são esses sujeitos suas referências, tanto no aprendizado quanto para buscarem
ajuda nos momentos conflituosos.
Gráfico 18 – Relação Vítima e Agressor (2010)
Fonte: Dados obtidos na pesquisa documental.
3.4 MÉTODO EDUCACIONAL/DISCIPLINAR CONTRA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
“Na maioria das famílias agressoras, o modelo de educação mais constante parece ser
aquele que inclui a violência física contra a criança como um dos seus métodos.” (GUERRA,
1985, p.104). O método educacional/disciplinar corresponde à punição física usada como
forma de conter, dar limites e educar, usadas pelos responsáveis pais, avós, madrastas,
padrastos, entre outros sujeitos que detêm responsabilidade para com crianças e adolescentes.
Esse método constituiu-se como foco para a presente pesquisa, devido a ser um fenômeno
pertinente, ou seja, apesar de prática antiga ainda é utilizada e legitimada pelos responsáveis
que fazem uso desse meio. A maior dificuldade no enfrentamento da violência intrafamiliar “é
62
que as pessoas em geral, e as próprias crianças e adolescentes, consideram as agressões como
normais, tornando desta forma a violência como parte integrante do processo educacional
dentro da família.” (ABRAPIA apud MURILHO, LAZZAROTTO, BRAZ, 2006, p.33). Isso
resulta que em muitos casos da ocorrência de violência, no âmbito doméstico, não são
denunciadas, ou seja, por não haver um estranhamento do ato por ser naturalizada tal prática,
não são registradas muitas ocorrências desse fenômeno.
“A prática da violência física doméstica ainda vista como um direito dos pais, reveste-
se muitas vezes de um caráter absolutamente sigiloso a partir do momento em que conta com
uma aliança solidária entre os cônjuges: um aplica o castigo, o outro aceita ou se omite em
termos desta ação.” (GUERRA, 2001, p.151). Outro entrave para que a denúncia ocorra, está
no sigilo que compreende esse espaço, na cumplicidade que os membros da família mantêm
que faz com se protejam e não denunciem os casos de violência. “A literatura aponta, de
forma geral, que os atos agressores são negados em sua maioria e talvez o sejam para não se
desvendar o mito de proteção que a família deve dar à criança.” (GUERRA, 1985, 113).
No que se refere ao método educacional/disciplinar, foram constatados 4 (quatro)
casos, esses contemplam também 4 (quatro) vítimas, sendo todas do sexo feminino,
compreendem 11, 12, 14 e 14 anos – sendo, uma criança e 3 (três) adolescentes. Apenas a
escolaridade da criança consta, sendo referente à 5ª série. A relação vítima e agressor ficou
evidente, assim como nos dados gerais, a relação de proximidade com os envolvidos; sendo
que, em 2 (dois) casos, o agressor corresponde ao pai e nos outros dois à mãe, enfatizando em
mais um momento, a agressão atuada pelos supostos protetores. Nesse sentindo, observa-se a
importância de desmitificar o espaço doméstico, sobretudo, a sociedade quer proteger crianças
e adolescentes no âmbito doméstico. No entanto, compreende-se que a proteção não é nata à
organização das famílias e, assim crianças e adolescentes ficam expostas a formas de
violência.
Um dos meios para garantir a crianças e adolescentes proteção integral é o Estatuto da
Criança e do Adolescente, o qual coloca esses sujeitos como seres humanos, que devem
receber os cuidados necessários para que se desenvolvam de forma digna e, além disso, sejam
respeitados.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, que adota uma doutrina de
proteção integral, em coerência com a Constituição Federal e a Convenção
de 1989, não visualiza a criança e o adolescente como menores de idade, ou
como problemas sociais; os têm, sim, como seres humanos em peculiar
condição de desenvolvimento, sujeitos das relações sociais desde seu
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nascimento e que devem ser considerados não pela sua condição econômica
ou por seu agir social, mas, insista-se, pelo fato de que são pessoas e devem
receber trato estatal, social e familiar, trato este, apto a salva-los das
situações capazes de marginalizá-los. (MACHADO; MACHADO, 2009,
p.80)
O Estatuto da Criança e do Adolescente é um instrumento que coloca esses sujeitos
como seres humanos em peculiar condição de desenvolvimento e nessa perspectiva propõe a
proteção integral para que possam desenvolver suas capacidades. A proteção desses sujeitos
está delegada à família, à sociedade e ao Estado, mas a primeira instância que é a família nem
sempre cumpre esse papel.
Na verdade, a família que teria a “função de proteger os seus membros”,
talvez nunca tenha cumprido esta missão. Outrora, usando meios
disciplinares violentos, hoje menos coercitivos, mas também entremeados
com violência, ela nos mostra que sua face não é sagrada, mas extremamente
cruel. (GUERRA, 1985, p.56)
Assim, o ato de violência não irá propiciar educação, disciplina ou qualquer outra
perspectiva de auxílio ao desenvolvimento de crianças e adolescentes, possibilitará, sim, um
espaço de hostilidade em que o medo, a insegurança e outros aspectos advindos da violência
impossibilitem que o desenvolvimento desses sujeitos se dê de forma digna. A família deve
ser vista como realmente é como um grupo ligado primeiramente pelo vínculo consanguíneo e
que, pode desenvolver vínculos afetivos, bem porque a afetividade não pode ser imposta,
assim como é a consanguinidade. Nesse sentindo, deve-se ter clareza de que a proteção de
crianças e adolescentes depende da atenção e da responsabilidade da sociedade em geral e
que, o grupo familiar nem sempre irá propiciar às crianças e aos adolescentes a proteção que
lhe é incumbida.
64
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência a partir do momento que não é exclusiva de um ou de outro grupo, se
estende a todos os grupos, todas as classes e a todos os gêneros. Enfim, a violência não exclui
quem quer que seja. No ambiente familiar, consiste numa prática difícil de se visualizar
devido a ser um espaço onde os laços consanguíneos e de afetividade a perpetuam e por tal
razão é encoberta pelo silêncio que os membros do grupo familiar mantêm para proteger seus
integrantes. Contudo, essa proteção que perpassa as relações no espaço familiar, não é
integral, ou seja, quando em uma situação de não acordo ou de um atrito neste grupo, o
método de resolução desses problemas para muitas famílias, se dá por meio do uso da
violência. Essa pode ser atuada contra os mais diversos grupos, principalmente os mais
vulneráveis. Nessa condição de vulnerabilidade, encontram-se também crianças e
adolescentes, que devido ao seu grau de desenvolvimento tornam-se vítimas fáceis, pois não
detêm de uma estrutura biopsicossocial desenvolvida.
Todavia, a proteção que as crianças devem receber e sua condição de sujeitos são
situações recentes. Na idade média, crianças e adolescentes eram considerados miniaturas de
adultos, não sendo diferenciados dos adultos além do fator tamanho, desempenhavam funções
diante da sociedade. Assim que não dependiam de cuidados básicos, em torno dos 7 (sete)
anos e, como pontuado pelos autores, no caso de morte desse sujeito, logo viria a ser
substituído, demonstrando que nesse período não havia uma preocupação com essa fase da
vida e que não havia perspectiva distinta da vida adulta.
A situação viria a mudar apenas no século XVII, quando surge um processo de
escolarização. Nesta perspectiva, crianças e adolescentes eram separados da vida adulta e
foram trazidos para as famílias, que junto a meios de escolarização, desempenhavam a função
de educar e formar novos adultos. Apesar dessa mudança, a família não detinha de caráter
afetivo e socializador, desempenhava a função de transmitir a vida, a prática de um ofício,
ajuda mútua. Era uma relação mecânica mantida por um grupo para dar conta das
necessidades e da vida cotidiana.
A educação propiciada pela nova fase, a qual busca educar e formar crianças e
adolescentes em homens e mulheres de bem, fez estes sujeitos conhecerem os meios
coercitivos, ou seja, para educar usavam de métodos de violência como forma de conter, de
padronizar, de disciplinar e educar. No Brasil, a violência física como forma de disciplinar
crianças e adolescentes deu-se com a vinda dos portugueses para o país com a colonização.
65
Sabe-se que, os índios que habitavam o Brasil desconheciam essa prática e mantinham com
suas crianças e adolescentes uma relação harmoniosa pautada no respeito.
A inserção da punição física foi posta pelos jesuítas, que em seus ensinamentos
pontuavam a necessidade do uso da violência física como forma de educar, de ser respeitado e
de tornar melhores as crianças e os adolescentes. Sendo assim, a violência física que os pais
ou responsáveis delegam sobre os filhos, não se faz uma prática nova e sim de muito tempo.
Contudo, a violência quando ocorre no ambiente familiar, nem sempre é vista como
tal, ou seja, quando atuada pelos pais ou pelos responsáveis é legitimada como sendo
simplesmente uma forma de transmitir valores e de educar. Assim, quando essa prática
acontece, não ocorre um estranhamento por parte do grupo familiar a não ser quando esse
fenômeno chega a consequências mais graves, em que a criança ou o adolescente é
espancado, quando passa mal ou chega ao extremo que é a morte. Com o pretexto de educar,
muitos dos responsáveis usam de sua força e de sua função para se impor sobre crianças e
adolescentes e os submetem aos mais distintos mandos e desmandos, de modo a satisfazer as
suas vontades, os seus desejos e os seus anseios.
Percebe-se que o manto que encobre a família e suas relações impossibilita que esses
casos sejam levados às autoridades para a tomada de providências cabíveis. A família deve
perder a imagem de perfeição, não deve ser vista como um espaço em que tudo ocorre da
melhor forma, como sendo o melhor espaço e o mais propício para o desenvolvimento de
crianças e adolescentes. Não se tem a intenção de desmerecer o grupo familiar, o que está em
questão é o fato de analisar o grupo familiar como uma instituição, que como qualquer outra
tem seus problemas, desencontros, conflitos e que quando da ocorrência desses momentos, há
a necessidade de intervir para garantir às crianças e aos adolescentes a proteção que é dever
de toda a sociedade.
Para a análise da violência física doméstica, motivada por método
educacional/disciplinar, a pesquisa perpassou todos os casos de violência física doméstica e
elencou dados referentes à vítima e ao agressor, apresentando quem são as vítimas, quem são
os agressores, qual a relação mantida entre esses sujeitos no grupo familiar e o motivo da
violência física doméstica. Em relação à violência física doméstica, motivada por método
educacional/disciplinar, não foi encontrado um grande número, sendo que corresponde a
apenas 13% das ocorrências. Essa porcentagem corresponde a 4 (quatro) casos, os quais
fizeram 4 (quatro) vítimas, uma criança e três adolescentes. Observou-se no que diz respeito à
relação vítima e agressor que, assim como nos dados gerais da violência física doméstica,
motivada por método educacional, a relação mantida entre vítimas e agressores está ligada às
66
relações mais próximas, sendo pais, mães, madrastas e padrastos, os quais supostamente são
considerados protetores dos sujeitos que, nessa relação, encontram-se como vítimas de uma
prática desigual, que o adulto sendo mais forte, impõe sobre crianças e adolescentes que se
constituem como mais fracos devido ao grau de desenvolvimento que os compreende.
Referente ao sexo, tanto da vítima como do agressor observou-se que nos dois casos
tem-se um número mais elevado para o sexo feminino. Contudo, a diferença em relação ao
sexo masculino não é tão desigual, o que remete ao entendimento de que a violência física
doméstica não faz distinção de gêneros, nesse sentido, atinge meninos e meninas e pode ser
praticada tanto por homens quanto por mulheres.
A pesquisa resultou num total de 41 (quarenta e uma) vítimas, sendo 14 (quatorze)
crianças e 27 (vinte e sete) adolescentes e, no total de 35 (trinta e cinco) agressores para um
total de 31 (trinta e um) casos, observa-se que o número de vítimas e de agressores é superior
ao número de casos; ou seja, em alguns casos, a agressão fez mais de uma vítima e foi
também cometida por mais de um agressor, o que coloca crianças e adolescentes numa
situação preocupante de violação de seus direitos enquanto sujeitos em situação peculiar de
desenvolvimento.
Diante do exposto, decorre que a violência atua como um obstáculo para a efetivação
dos direitos de crianças e de adolescentes e coloca esses sujeitos em condições desumanas,
deixando de lado pontos fundamentais como o respeito, o cuidado, o carinho, o zelo, ou seja,
os cuidados fundamentais são substituídos pelos mais distintos meios de coerção e
impossibilitam o desenvolvimento saudável e digno desses sujeitos que necessitam de
proteção integral. A violência retira da relação de pais e filhos o afeto que propicia o elo
principal de confiança e cuidado, que os genitores ou responsáveis, devem despender para
com crianças e adolescentes. Observa-se também que, além da função colocada à família, o
dever de proteger esses sujeitos de direito estende-se à sociedade em geral. Não é uma
questão de julgar a família e, sim, dar suporte a esta que muitas vezes se vê sem subsídios,
sem condições ou até mesmo sem instruções de apoio para dar conta das demandas advindas
do espaço doméstico.
O que deve estar claro é que a família não pode ser vista como intocável, que diante da
violação de direito de crianças e adolescentes deve haver intervenção, que crianças e
adolescentes são compromissos de toda a sociedade e a eles devem voltar-se cuidados mais
diversos para que se desenvolvam e possam se tornar adultos estruturados e que tenham
autonomia para dar rumo às suas próprias vidas.
67
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71
APÊNDICE A
FORMULÁRIO DE COLETA DE DADOS
VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA MOTIVADA POR MÉTODO EDUCACIONAL
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ – UNIOESTE
CURSO: SERVIÇO SOCIAL – 4º ANO
PROFESSORA ORIENTADORA DE TCC: ANE BARBARA VOIDELO CARNIEL
ACADÊMICA: MAIARA ALINE BAGETI
OBJETIVO GERAL DA PESQUISA: Analisar as informações identificadas sobre violência
física doméstica contra crianças e adolescentes e verificar como essa forma de violência é
usada como método educacional por parte dos responsáveis pela educação.
DATA DA COLETA: ____/____/_____
ANO DA OCORRENCIA:
MOTIVO DA VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA
Método Educacional/disciplinar ( ) Outros ( )
ASPECTOS DA VÍTIMA
Sexo: Masculino ( ) Feminino ( ) Idade:
Relação Vítima e Agressor: Escolaridade:
ASPECTO DO AGRESSOR
Sexo: Masculino ( ) Feminino ( )