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Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 336, setembro-dezembro/2007 773 Por uma etnografia feminista das or uma etnografia feminista das or uma etnografia feminista das or uma etnografia feminista das or uma etnografia feminista das migrações internacionais: dos migrações internacionais: dos migrações internacionais: dos migrações internacionais: dos migrações internacionais: dos estudos de aculturação para os estudos de aculturação para os estudos de aculturação para os estudos de aculturação para os estudos de aculturação para os estudos de gênero estudos de gênero estudos de gênero estudos de gênero estudos de gênero Resumo: esumo: esumo: esumo: esumo: Este artigo se propõe a fazer um balanço de uma das primeiras pesquisas etnográficas realizadas no Brasil sobre imigração, fundamentada na teoria da aculturação, com o intuito de verificar qual a contribuição desse tipo de pesquisa para o crescimento de uma etnografia feminista, que tem gênero como categoria central de seus trabalhos. Referimo-nos ao livro Italianos no mundo rural paulista, de João Baptista Borges Pereira. Através da análise dessa obra, discutiremos a viabilidade teórico-metodológica do emprego da categoria “gênero”, buscando contribuir para o enriquecimento da etnografia feminista nos estudos migratórios internacionais. Palavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: etnografia feminista; gênero; aculturação; migrações internacionais. Copyright 2007 by Revista Estudos Feministas. Ethel V. Kosminsky Universidade Estadual Paulista, campus de Marília Introdução Introdução Introdução Introdução Introdução Mais de 30 anos separam o livro pioneiro de Emilio Willems, A aculturação dos alemães no Brasil, publicado pela primeira vez em 1946 1 , da obra Italianos no mundo rural paulista, de autoria de João Baptista Borges Pereira. 2 Ambas as pesquisas têm como fundamento a teoria da aculturação, ambas são pesquisas qualitativas e etnográ- ficas. No entanto, como veremos ao longo deste artigo cada uma mantém a sua especificidade. 3 Pretendemos aqui, através da análise do último trabalho, verificar a contribuição desse tipo de pesquisa para os estudos de gênero na área das migrações interna- cionais e, ao mesmo tempo, colaborar para a construção de uma etnografia feminista dos estudos migratórios internacionais. 4 3 Este artigo faz parte da pesquisa “Mapeamento e análise das rela- ções de gênero em fluxos migra- tórios internacionais para o Brasil (séculos XIX e XX) e do Brasil (século XX)” (CNPq). 4 Nossos agradecimentos aos/às pareceristas pelos seus comentá- rios e sugestões. 1 WILLEMS, 1980. 2 BORGES PEREIRA, 1974.

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RRRRResumo:esumo:esumo:esumo:esumo: Este artigo se propõe a fazer um balanço de uma das primeiras pesquisas etnográficasrealizadas no Brasil sobre imigração, fundamentada na teoria da aculturação, com o intuito deverificar qual a contribuição desse tipo de pesquisa para o crescimento de uma etnografiafeminista, que tem gênero como categoria central de seus trabalhos. Referimo-nos ao livroItalianos no mundo rural paulista, de João Baptista Borges Pereira. Através da análise dessaobra, discutiremos a viabilidade teórico-metodológica do emprego da categoria “gênero”,buscando contribuir para o enriquecimento da etnografia feminista nos estudos migratóriosinternacionais.PPPPPalavras-chave:alavras-chave:alavras-chave:alavras-chave:alavras-chave: etnografia feminista; gênero; aculturação; migrações internacionais.

Copyright â 2007 by RevistaEstudos Feministas.

Ethel V. KosminskyUniversidade Estadual Paulista, campus de Marília

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoMais de 30 anos separam o livro pioneiro de Emilio

Willems, A aculturação dos alemães no Brasil, publicadopela primeira vez em 19461, da obra Italianos no mundorural paulista, de autoria de João Baptista Borges Pereira.2

Ambas as pesquisas têm como fundamento a teoria daaculturação, ambas são pesquisas qualitativas e etnográ-ficas. No entanto, como veremos ao longo deste artigocada uma mantém a sua especificidade.3

Pretendemos aqui, através da análise do últimotrabalho, verificar a contribuição desse tipo de pesquisapara os estudos de gênero na área das migrações interna-cionais e, ao mesmo tempo, colaborar para a construçãode uma etnografia feminista dos estudos migratóriosinternacionais.4

3 Este artigo faz parte da pesquisa“Mapeamento e análise das rela-ções de gênero em fluxos migra-tórios internacionais para o Brasil(séculos XIX e XX) e do Brasil(século XX)” (CNPq).4 Nossos agradecimentos aos/àspareceristas pelos seus comentá-rios e sugestões.

1 WILLEMS, 1980.2 BORGES PEREIRA, 1974.

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A teoria da aculturação e a pesquisaA teoria da aculturação e a pesquisaA teoria da aculturação e a pesquisaA teoria da aculturação e a pesquisaA teoria da aculturação e a pesquisaetnográficaetnográficaetnográficaetnográficaetnográfica

A coleta dos dados empíricos para A aculturaçãodos alemães no Brasil foi realizada entre 1931 e 1935. Oautor pretendia retomar as pesquisas de campo, nadécada de 1940, mas diante do “clima político interno”,isso não foi possível.5 Pretendia também aprofundar asinvestigações históricas, mas devido à II Guerra Mundialnão pode recorrer aos arquivos europeus, restringindo-seàs coleções do Instituto Hans Staden, em São Paulo.6 A obrafoi finalmente publicada em 1946, no final da guerra. Aépoca histórica da confecção de uma pesquisa é,geralmente, elemento constitutivo desta, quaisquer quesejam os assuntos tratados e, mais ainda, quando se tratade temas que envolvam a aculturação e a assimilação deimigrantes em sociedades marcadas por exacerbadossentimentos nacionalistas, como naquele período.

Nos Estados Unidos, durante a chamada ProgressiveEra, entre o final de 1890 e a I Guerra Mundial, muitosamericanos viam a imigração como um problema. Emmuitas cidades, a maioria da população era constituídapor imigrantes ou por seus filhos, tão imenso foi o fluxoimigratório para esse país. Alguns americanos sentiam quea identidade cultural, religiosa e racial do seu país estavaameaçada. Os imigrantes eram em grande partetrabalhadores e, para a população nativa, relacionadoscom o sindicalismo e o radicalismo. Sendo muitos delespobres, eram associados com o crime e com o “desajusta-mento social”, especialmente, com a “desorganização” dafamília. Ao mesmo tempo, reformistas e intelectuaisprocuravam entender as rápidas mudanças da classetrabalhadora e o imigrante urbano e pobre. É nessecontexto que surgiu uma nova disciplina, a Sociologia, naUniversidade de Chicago. E a obra fundamental dasociologia daquela época foi The Polish Peasant in Europeand America, de autoria de William Thomas e FlorianZnaniecki, publicada em cinco volumes entre 1918 e 1920,e cuja influência é sentida até os dias de hoje.7

The Polish Peasant in Europe and America foi umdos primeiros trabalhos a estudar a cultura e a organizaçãosocial dos imigrantes. Não somente os autores apontarampara a contribuição potencial dos imigrantes para a culturaamericana, como também tentaram entender a própriacultura dos imigrantes. Thomas e Znaniecki fizeram uso deum novo método de investigação, the life study method,que poderemos traduzir como o método da história de vida.Essas histórias de vida foram obtidas através das narrativasdos imigrantes ou das suas próprias cartas. Além disso, essa

5 De 1937 a 1945, o Brasil viveusob a ditadura do Estado Novo,tendo, como aliado dos EstadosUnidos, entrado na guerra contrao Japão e a Alemanha. Duranteesse período de nacionalismoexacerbado, os imigrantes ale-mães, japoneses, italianos e seusdescendentes foram persegui-dos. Diferentemente dos EstadosUnidos, segundo Willems, essasituação não impulsionou os estu-dos de aculturação no Brasil e,sim, impediu completamentequalquer pesquisa de campo(WILLEMS, 1980, p. XI).6 WILLEMS, 1980, p. XIX.

7 Eli ZARETSKY, 1996, p. IX-X. Tradu-ção livre do texto.

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obra compreendeu a primeira abordagem da emigraçãoeuropéia, levando em consideração os dois contextos, aPolônia e os Estados Unidos.8

De acordo com Thomas e Znaniecki, se os polonesesnos Estados Unidos não fossem encarados do ponto devista dos interesses poloneses ou americanos e, sim, daperspectiva de uma investigação sociológica objetiva, oentão problema da assimilação individual teria sido umaquestão completamente sem importância. O processofundamental, para os autores, era a formação de uma novasociedade polonesa-americana a partir dos fragmentosda sociedade polonesa incluídos na sociedade americana.Essa sociedade polonesa-americana como um todo tendia,aos poucos, a passar do polonismo para o americanismo,como os seus membros demonstraram, principalmente, nasegunda geração que cada vez mais adquiria atitudesamericanas. Porém, essa “assimilação” não foi individual esim um fenômeno de grupo.9 O indivíduo não estava isoladono meio de um grupo culturalmente diferente; ele era partede um grupo homogêneo em contato com uma civilizaçãoque influenciava em vários graus todos os seus membros.O objetivo da investigação compreendeu, portanto, oestudo da criação de uma sociedade cujas estrutura eatitudes dos seus membros não eram nem polonesas nemamericanas, mas constituíam um produto novo, específico,cuja matéria-prima foi em parte derivada de tradiçõespolonesas e, em parte, das novas condições em que oimigrante vivia e dos valores sociais americanos como osimigrantes os viam e os interpretavam. Era essa sociedadepolonesa-americana, não a sociedade americana, queconstituiu o meio social no qual o imigrante se incorporouquando veio da Polonia e a cujos padrões e instituiçõesele precisou se adaptar.10

Thomas e Znaniecki influenciaram também aSociologia e a Antropologia brasileiras. Assim, ao discutir oconceito de aculturação, Willems11 partiu das colocaçõesdesses autores a respeito de atitudes e valores e a sociólogaMaria Isaura Pereira de Queiroz12 fez uso da história devida, ao mesmo tempo que divulgou esse procedimentode pesquisa na academia. Como estamos tratando deaculturação, nos restringiremos a esse conceito e ao seuuso por Willems e por Borges Pereira. Segundo Willems,

Thomas e Znaniecki reconheceram que, nacombinação de atitudes e valores (pela integraçãodestes na personalidade), as atitudes representam o“elemento subjetivo” e os valores a “contraparteobjetiva”13 da cultura. Na definição com que carac-terizamos o processo de assimilação, o conceito demudança cultural já está implicitamente contido, pois

8 Eli ZARETSKY, 1996, p. X.

9 Itálico e aspas dos autores.

10 THOMAS e ZNANIECKI, 1918-1920, v. 5, p. x-xiii, 27-93 passim,apud ZARETSKY, 1996, p. 107-108.

13 THOMAS e ZNANIECKI, 1918-1920, v. I, p. 44, apud WILLEMS,1980, p. 20.

11 WILLEMS, 1980.

12 PEREIRA DE QUEIROZ, 1983.

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a substituição de atitudes-valores denota que certoselementos da cultura originária perdem o significadoespecífico, deixando de ser valores. [...] Quem seassimila perde e adquire cultura, mas o processo deperda e aquisição é sócio-psíquico [...]. É possível, noentanto, analisar esta forma de mudança social ecultural, adotando um ângulo de vista diferente.Concebendo uma cultura como sistema de valores, istoé, como sistema de padrões de comportamento, idéiase conhecimentos que adquiriram significadosespecíficos para um grupo humano, as mudanças queesse sistema sofrer poderão ser observadas e descritassem que se recorra, necessariamente, à análise dosprocessos sócio-psíquicos chamados assimilação. [...]Embora se saiba que transformações [...] sãocondicionadas a processos sócio-psíquicos, é possívelabstrair-se destes por razões metodológicas e estudar,isoladamente, os aspectos meramente culturais.Chegamos assim ao conceito de aculturação quecompreenderia “os fenômenos resultantes do contatodireto e contínuo entre grupos de indivíduosrepresentantes de culturas diversas, e as subseqüentesmudanças nas configurações culturais de um ou deambos os grupos”.14 Com relação a esta conceituaçãobastante ampla, a assimilação parece ser um conceitosubordinativo, pois os mesmos autores a consideram“uma fase da aculturação”.15 Uma vez que todatransmissão de dados culturais através de contatossociais diretos e contínuos afeta as atitudes daspersonalidades atingidas, está claro que aculturaçãoe assimilação são conceitos coordenativos, correlativose completivos. Ambos são aspectos do mesmo pro-cesso: a assimilação é o seu aspecto “subjetivo” porqueenvolve a personalidade, a aculturação lhe representao aspecto “objetivo” porque afeta os valores culturais.Ambas são comparáveis ao anverso e reverso damesma medalha. À vista disso parece necessáriorestringir o conceito de aculturação às mudanças nasconfigurações culturais de dois ou mais grupos queestabelecerem contatos diretos e contínuos.16

De acordo com Sarah J. Mahler e Patricia R. Pessar,17

The Polish Peasant in Europe and America tambémcontribuiu para a pesquisa etnográfica, que passou entãoa ocupar um lugar importante dentro dos estudosimigratórios, iniciados de forma sistemática na Universidadede Chicago. Essa obra ganhou importância mundial nãosomente por tratar da temática da imigração em ummomento crucial da sociedade norte-americana, mastambém pela pesquisa etnográfica realizada.

Em primeiro lugar a etnografia compreende a obser-vação participante e a coleta de entrevistas em profundida-de, ao longo de meses e até mesmo de anos de trabalho

16 WILLEMS, 1980, p. 20-21. Aspase grifos do autor.17 MAHLER e PESSAR, 2006.

14 Robert REDFIELD, Ralph LINTONe Melville HERSKOVITS, 1936, p.366-370, apud WILLEMS, 1980, p.21.15 REDFIELD, LINTON e HERSKOVITS,1936, p. 366, apud WILLEMS,1980, p. 21.

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de campo, por um único etnógrafo ou por uma pequenaequipe chefiada por um etnógrafo. Embora, segundoMahler e Pessar, essa abordagem intensiva limite o númerode pessoas investigadas, ela tem a virtude de capturar emprofundidade as experiências vividas, as crenças e asidentidades dos sujeitos da pesquisa. A etnografia, dessaforma, enfatiza a abordagem holística e contextual que éútil para o entendimento de conceitos complexos e depráticas tais como as relações entre homens e mulheres.18

A escolha do livro de João Baptista Borges Pereira,professor de Antropologia da Universidade de São Paulo,19

deve-se ao fato de que o autor “segue nas trilhas abertaspor Roger Bastide, Emilio Willems e Egon Schaden”, ou seja,ele busca “consolidar e expandir segundo moldesconsagrados a herança que recebemos de outrasgerações”20. Essa herança seria a pesquisa empírica,construída a partir da observação sistemática, e não aconstrução de um certo conhecimento advindo daelaboração de “modelos e esquemas abstratos, derivadosde postulados apriorísticos”, nos quais o fato empírico éreduzido a uma simples ilustração.21

Certamente isso não significa que a teoria apareçaespontaneamente dos dados de campo. A teoria precisaser adequada aos dados e a sua escolha está relacionadaaos valores e interesses do pesquisador. A partir da trocaentre a análise dos dados de campo e a teoria existente éque poderemos então reconstruir, repensar a teoria.22 Assim,logo no capitulo I de Italianos no mundo rural paulista,Borges Pereira esclarece o objetivo do trabalho: a análisedo “processo de integração de um grupo étnico adventício,dentro da sub-expressão da realidade brasileira”.23 A opçãometodológica24 por processo em detrimento de estudo decomunidade é justificada pela não-representatividade daunidade escolhida para estudo e pela falta de interesseem proceder à “análise exaustiva de todas as manifesta-ções da vida comunitária”. A escolha da categoria “grupoétnico” em substituição à expressão “grupo italiano” deve-se ao objetivo da pesquisa: “conhecer os fenômenosdesencadeados pelo contato de dois grupos etnicamentediferentes”, e não a caracterização “dos elementos culturaisdo grupo adventício”.25

O trabalho tem como suporte a teoria da acultu-ração e a sua fonte bibliográfica principal compreende asobras dos antropólogos norte-americanos Robert Redfield,Ralph Linton e Melville Herskovits, principalmente o artigoelaborado em conjunto, “A Memorandum for the Study ofAcculturation”,26 cujo conceito de aculturação consta tam-bém da obra de Willems.27 Rebatendo as críticas de autoresbrasileiros de então, que apontavam para “o caráter

18 MAHLER e PESSAR, 2006, p. 30.

19 Anteriormente à USP, BorgesPereira foi durante três anos pro-fessor da Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras de PresidentePrudente, atual UNESP-PresidentePrudente. Ele informa que esseperíodo foi muito útil para o de-senvolvimento da pesquisa, poislhe possibilitou um prolongadocontato com a região (BORGESPEREIRA, 1974, p.10).20 Ruy COELHO, 1974, p. XVII.21 COELHO, 1974, p. XVI.

23 BORGES PEREIRA, 1974, p. 1.24 É a metodologia que vai propor-cionar a ligação entre a técnicae a teoria. Ela trabalha com cami-nhos de utilização da técnicapara o avanço da teoria. Se atécnica trata dos instrumentos edas estratégias para a coleta dedados, então a metodologia sepreocupa com o relacionamentorecíproco entre os dados e ateoria (BURAWOY, 1991, p. 271).25 BORGES PEREIRA, 1974, p. 1-2.

22 Michael BURAWOY, 1991, p. 10-11.

26 REDFIELD, LINTON e HERSKOVITS,1936, p. 149-152, apud BORGESPEREIRA, 1974, p. 6, nota 9. Apesarde termos tido acesso aos textosoriginais em inglês, citados porBorges Pereira, preferimos conser-var a sua tradução.27 WILLEMS, 1980.

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excessivamente culturalista”, e apoiando-se na obra deEgon Schaden, antropólogo brasileiro, Borges Pereira escla-rece: “ainda que partindo do universo cultural, [o antro-pólogo] necessariamente não perde de vista, nem o arca-bouço social, nem o substrato humano correspondentes”.28

Buscando operacionalizar a mudança aculturativa,Borges Pereira orienta a investigação de acordo com adinâmica proposta pelos antropólogos norte-americanosHomer Barnett, Leonard Broom, Bernard Siegel, Evon Vogt eJames Watson: “como adaptação seletiva de sistemas devalores; como processos de integração e diferenciação;como geração de seqüências de desenvolvimento; comoresultantes de atuação de determinantes ligadas a papéise a fatores de personalidade”.29 Conceitos adicionaispodem ser utilizados, dependendo dos diversos processosrelacionados à aculturação: difusão, processos ligados àtransmissão cultural; criatividade cultural, pois “a acultu-ração, particularmente quando não é forçada, é essencial-mente criadora”; desintegração e reintegração cultural;adaptação reativa. “Num segundo momento de reflexão,outra linha conceptual busca apreender os resultados doprocesso aculturativo, em termos de ajustamento progres-sivo (fusão e assimilação) à nova realidade e de pluralismoestabilizado”.30

Italianos no mundo rural paulista e a colônia e a colônia e a colônia e a colônia e a colôniade Pde Pde Pde Pde Pedrinhasedrinhasedrinhasedrinhasedrinhas

A pesquisa foi efetuada em Pedrinhas, “núcleo colo-nial formado por imigrantes italianos de pós-guerra, situadona Alta Sorocabana, à margem paulista do RioParanapanema, a 550 quilômetros da Cidade de São Paulo,a partir de 1963”.31 No capítulo II, “A formação de um grupomigrante”, o autor descreve a Itália como um país deemigração, focalizando o período que precedeu o fluxopara Pedrinhas. Naquela época, logo após a II GuerraMundial, emergia a chamada Guerra Fria – de um lado ospaíses liderados pelos Estados Unidos e, do outro, aqueleschefiados pela URSS. Essa competição entre as duaspotências e seus aliados levou à adoção, pelos EstadosUnidos, de um grande plano de assistência técnico-financeira “para a reconstrução e reerguimento das áreasafetadas” pela guerra:

Em termos emigratórios, a ajuda americana significoufinanciamento, que veio propiciar a elaboração eexecução de planos, tendo como objetivo aredistribuição, para diferentes partes do mundoocidental, daquele resíduo populacional à busca dereintegração sócio-econômica. Com esta medida,

28 SCHADEN, 1969, apud BORGESPEREIRA, 1974, p. 6-7.

29 BARNETT, BROOM, SIEGEL, VOGTe WATSON, 1954.

30 BORGES PEREIRA, 1974, p. 8-9.

31 BORGES PEREIRA, 1974, p. 1.Não encontramos informaçõesno livro sobre a data do términoda pesquisa, entendida aquicomo coleta do material. O anode 1963 compreende o ano doseu início. As tabelas apresenta-das no final da obra, cap. XVII,Anexos, apresentam dados de1952 e 1966. Possivelmente, olevantamento deve ter sidoconcluído em 1966.

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esperava-se aliviar os focos de tensão e de eventuaisconflitos decorrentes dessas condições anormais. Emsuma, os fatores gerados pela Segunda Guerra Mundialestimularam e enriqueceram o clássico mecanismo deexpulsão de excedentes populacionais.32

Entre 1949 e 1950, o Economic CooperationAdministration (ECA), “pelo seu programa de assistênciatécnica ao exterior, consignou a importância de 1.300.000dólares para auxiliar a iniciativa italiana ligada ao fomentoda emigração agrícola”.33 Órgãos do governo italianodelegaram ao Instituto Nazionale di Credito per il LavoroItaliano all’Estero (ICLE) a criação de um programa para autilização dessa quantia. Esse programa contou com oapoio do Instituto Agronomico per A.I. (Instituto Agronômicopara a África Italiana). O fracasso da África Italiana, daépoca de Mussolini, renovou o interesse pela América doSul, que datava do período da chamada migração emmassa (1880-1930, aproximadamente). A primeira missãode reconhecimento chegou ao Brasil em 1949, e asegunda, em 1950, incluiu, além do Brasil, outros países daAmérica do Sul. Após levantamentos realizados no estadode São Paulo, decidiu-se pela instalação de uma colôniana região da Alta Sorocabana. A escolha

recaiu sobre uma gleba de terras – Pedrinhas – de 3.565ha., localizada na bacia do Rio Paranapanema, nadireção sudoeste do planalto paulista. Desbravada naaltura de 1922, esta área, constituída em 1950 de cator-ze propriedades, entre fazendas e sítios, [...] [situava-se] a apenas 50 quilômetros da cidade de Assis.34

A compra de terras e a execução do plano decolonização foram realizadas pela Companhia Brasileirade Colonização e Imigração Italiana,

empresa constituída no Rio de Janeiro, como sociedadeanônima, em 28 de setembro de 1950, com o fim de‘promover a imigração e colonização italiana no Brasil’.[...] esta instituição surgia como produto também daSegunda Guerra Mundial, compondo assim o elencode órgãos encarregados de revitalização da emigraçãoitaliana de pós-guerra. [...] Surge, assim, a CompanhiaBrasileira de Colonização e Imigração Italiana, comcapital formado pelos bens italianos liberados35 e pelasubscrição do governo italiano, auxiliado pelo governoamericano.36

A ocupação da gleba, compreendendo os trabalhosde demarcação dos lotes e as atividades de construção,levou três anos. Em 1963, data do início da pesquisa e 10anos depois da chegada das famílias, Borges Pereira en-controu o seguinte quadro:

32 BORGES PEREIRA, 1974, p. 16.

33 BORGES PEREIRA, 1974, p. 17.

34 BORGES PEREIRA, 1974, p. 19.

35 Os bens dos imigrantes italianostinham sido congelados peloBrasil durante a Guerra.36 BORGES PEREIRA, 1974, p. 19-20.

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[...] uma área rural dividida em 180 lotes, variando de20 a 25 ha., a qual circunda totalmente a área urbana,com uma faixa de intermeio – suburbana – onde selocalizam o cemitério e os campos de aviação e defutebol. Na parte urbana, com ruas e avenidas que secruzam em traçados precisos, localiza-se a igreja, ohospital de emergência, os escritórios administrativosdo núcleo, o clube, a hospedaria, o banco, as escolaspré-primária, primária e secundária. Completando estapaisagem urbana, e atendendo ao desenvolvimentodo núcleo, há, ao lado de casas residenciais, umcomércio varejista, que aos poucos se diversifica, e umaindústria icipiente de transformação – máquinas debeneficiar arroz, moinhos de trigo e de fubá, laticínio,etc. É neste cenário rural-urbano que se distribui apopulação envolvida no processo de aculturação, queestá sendo objeto desta análise.37

Para completar o quadro da colônia, o autor destacaa sua localização próxima da cidade de Assis, um centrourbano dotado de recursos – escolas e faculdade,assistência médico-hospitalar, etc. –, o que “garantiu deantemão à Companhia Colonizadora redução do capitalinvestido no núcleo”. Esse fato levou a comunidade a entrarforçosamente em contato com a sociedade inclusiva,tornando-a uma comunidade “aberta” e criando assimcondições que “atuam favoravelmente no processo deaculturação daquele grupo étnico”.38

Além da proximidade de Assis, a escolha dalocalização do núcleo foi também motivada pela facilidadede obtenção de mão-de-obra: os trabalhadorestemporários, migrantes dos estados setentrionais, de “certasáreas matogrossenses, fronteiriças com o Paraguai, o queexplica a presença esporádica de paraguaios, e até deíndios Terena”. Esses trabalhadores são aproveitados pelosimigrantes italianos para a colheita do algodão.39

Borges Pereira observou que, durante a pesquisa,todos os italianos com os quais entrou em contato admitiama existência de duas Itálias, a Setentrional e a Meridional,não como conceitos geográficos e, sim, como definiçõespreconceituosas, que se manifestavam em atitudesdepreciativas dos indivíduos originários do Norte contra osdo Sul. Ele explica as diferenças sócio-econômicas entreas regiões e as dúvidas quanto à adoção dos critérios deseleção dos imigrantes:

[...] condições estruturais adversas, agravadasultimamente pelo acentuado contraste socioeconômicoentre o sul-rural e o norte-industrial, têm transformadoas regiões meridionais italianas em áreas dedesemprego e de sub-emprego crônico, peculiaridadesestas que as condições do pós-guerra tornaram mais

37 BORGES PEREIRA, 1974, p. 20.Grifos nossos.

38 BORGES PEREIRA, 1974, p. 24.

39 BORGES PEREIRA, 1974, p. 24-25.

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flagrantes. Nada mais aconselhável, portanto, que atransferência da população fosse feita, de preferência,dessa parte do país, como deixam transpirar osdepoimentos que focalizam a fase embrionária dogrupo. As informações são contraditórias, quando sepretende saber se na escolha dos colonos foi dadaprioridade a tais critérios selecionadores e se eles foram,de início, adotados e posteriormente abandonados. Umfato, porém, é certo: do total de 143 famílias, 59 vieramde 7 regiões do Norte; 43 vieram de 2 regiões do Centro[...]; as restantes 41 famílias vieram de 6 regiões do Sul.40

Essa imigração compreendeu, segundo dados dosarquivos paroquiais e dos registros da CompanhiaColonizadora, nos 14 anos abrangidos pela pesquisa,41 oestabelecimento na área rural de Pedrinhas de 236 gruposfamiliares,42 aqui entendidos como o equivalente ao termofamiglia colonica, designação empregada pelaCompanhia Colonizadora, nem sempre sinônimo de“família extensa”, embora tenham sido encontradosnumerosos casos de famiglie coloniche reunindo “váriasfamílias nucleares, como decorrência do casamento deseus membros masculinos”. Para a referida Companhia, a“famiglia colonica é aquela cujo capo-famiglia é oresponsável pelo compromisso assumido com a empresa”.43

Borges Pereira informa que, do total dos 236 gruposfamiliares, cerca de

127 (53%) permaneciam até esta data, no núcleo,enquanto 109 (47%) deixaram, nesse mesmo período,a colônia. Na estimativa dessas mesmas fontes, 14 a18 grupos familiares teriam trocado Pedrinhas por outraparte do Brasil, ao passo que os restantes 90 a 95 gruposfamiliares (80 a 85%) retornaram à Itália. [...] Atualmente,há na zona rural ocupando 169 lotes, ao lado de oitofamílias brasileiras e duas nipônicas, 127 gruposfamiliares italianos que, somados às 51 famílias donúcleo urbano,44 alcançam o total de 178 unidades.Esses 178 grupos são compostos de 1.185 pessoas (962na área rural e 223 na área urbana). Do total de 1.145pessoas, cuja pirâmide etária vai de 0 a 97 anos, 622indivíduos pertencem ao sexo feminino e 523, aomasculino.45

De início, informa o autor, a parte urbana do núcleocontinha algumas casas residenciais, comerciais edestinadas ao serviço público e a igreja. Todavia,

Este cenário urbano foi sendo aos poucos alterado [...].Após se consolidar como proprietário rural, o italianobem sucedido economicamente está investindo seucapital em construções urbanas. Além de usar isto comoexpediente de posições mais marcantes na estruturagrupal, o investidor, é claro, procura abrir alternativas

40 BORGES PEREIRA, 1974, p. 27.De acordo com o historiadoramericano Herbert KLEIN, 1989, amaioria dos italianos que entra-ram no Brasil era procedente doNorte.41 O período que abrange apesquisa compreende os anos de1952 a 1966, possivelmente.Segundo o autor, a pesquisa teveinício em 1963. Em 1953, a colô-nia dispunha de 41 famílias, e asdemais famílias chegaram aospoucos, inclusive durante apesquisa (BORGES PEREIRA, 1974,p. 4).42 “A fundação da colônia foimarcada com grande festa quese realizou em 21 de setembro de1952, quando se deu o lança-mento da pedra fundamental daIgreja Matriz [...]. Assim nasceu ese implantou a Colônia de Pedri-nhas, que, em 13 de novembrode 1952, recebeu o maior grupode imigrante italiano compostode 28 famílias. [Dados atuais:]População: 2.861 (Censo 2000):homens:1.444; mulheres: 1.417.Emprego: agricultura: 37,4%;serviços: 31,4%; indústrias: 7,4%;autônomos: 11%. Economia –Essencialmente agrícola, é sus-tentada basicamente pela cultu-ra de soja e milho, além de umpequeno rebanho leiteiro. O tu-rismo [baseado na exploração deaspectos recriados da culturaitaliano-católica] é uma impor-tante atividade econômica queganha força no município”(Disponível em: http://www.pedrinhaspaulista.sp.gov.br/omunicipio/aspectosgerais.htm.Acesso em 2 dez. 2007).43 BORGES PEREIRA, 1974, p. 28.Os destaques em itálico são doautor.44 Além das 51 famílias deitalianos na área urbana, o autorencontrou 34 famílias de brasi-leiros. “As famílias urbanas [eram]consideradas oficialmente ‘inde-pendentes’” (BORGES PEREIRA,1974, p. 176, Quadro 2).45 BORGES PEREIRA, 1974, p. 28.

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de rendimento. [...] [A segunda alteração no cenáriourbano] está ligada à fixação de população brasileirano núcleo. Como não há casas disponíveis para alugar,alguns brasileiros, que se fixam no núcleo, se vêem nacontingência de construir as suas casas.46

Uma das riquezas da teoria da aculturação resideno estudo diacrônico e sincrônico da mudançasociocultural de um ou mais grupos sociais, portadores dediferentes culturas, vivendo em contato prolongado. Assim,o estudo diacrônico retrata os aspectos culturais do gruposocial antes da emigração, enquanto o estudo sincrônicopermite a observação das mudanças socioculturais queestejam ocorrendo, a incorporação de novas atitudes oude novos hábitos e valores, bem como a contribuição dogrupo estudado para a sociedade receptora. O estudodiacrônico supõe uma pesquisa bibliográfica detalhadanas áreas de história, sociologia e antropologia e, também,o levantamento de documentos em arquivos de modo apossibilitar o conhecimento do estilo de vida dos grupossociais antes do processo migratório e, ainda, a aquisiçãode informações sobre o processo migratório. O estudosincrônico implica pesquisa etnográfica, precedida e/ouacompanhada de levantamento bibliográfico, de grupossociais em situações semelhantes para posteriorescomparações.

Ora, um dos grandes problemas enfrentados porBorges Pereira compreendeu a falta de publicaçõesitalianas, na área de ciências sociais, dentro da perspectivacientífica adotada. Dessa forma, o universo cultural deorigem do imigrante foi reconstruído “através daconjugação dos depoimentos dos informantes com osdados colhidos diretamente na Itália e com as rarasindicações bibliográficas”. Em relação à produçãobibliográfica nacional, a ausência “de literaturaespecializada testemunha a falta de estudos daquelaárea”.47 Possivelmente, o autor se refere ao pequeno númerode trabalhos existentes sobre a imigração italiana e aoperíodo de tempo que abarca o século XIX e o início doséculo XX.48 Uma outra questão apontada diz respeito aofato de constituir Pedrinhas um núcleo recente de imigrantes.Se, de um lado, essa situação permite apreender a vidado grupo in fluxu, a aculturação no seu início, por outrolado, ela dificulta a sua apreensão, pois “os fenômenosainda não ganharam suficiente consistência paraoferecerem-se objetivamente à observação”.49

A nosso ver, no entanto, comparações com gruposde italianos de fluxos imigratórios anteriores ou, até mesmo,com imigrantes de outras nacionalidades teriam enrique-cido o trabalho, independentemente do pequeno número

46 BORGES PEREIRA, 1974, p. 70-71.

47 BORGES PEREIRA, 1974, p. 9.

48 BORGES PEREIRA, 1974, p. 4.

49 BORGES PEREIRA, 1974, p. 5.

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de pesquisas publicadas e do fato de estas dizerem respeitoà imigração para a zona rural. A comparação com um oumais grupos, quer da mesma origem étnica ou não, teriapermitido destacar as semelhanças e diferenças entre ogrupo focalizado e os demais, evidenciando os aspectosque são característicos dos sujeitos da pesquisa. É o casoda pesquisa de Willems, A aculturação dos alemães noBrasil, que compreende um amplo estudo de aculturaçãoabrangendo mais de um século, além de abarcar umaampla região geográfica, os estados do Sul e do Sudestedo país. Ao longo dos capítulos dessa vasta obra, nosdefrontamos com comparações entre diversas regiõesalemães, das quais os imigrantes procederam; comcomparações do processo de aculturação nas váriaslocalidades brasileiras onde se estabeleceram, rurais eurbanas; e, ainda, com o confronto dos imigrantes alemãescom os imigrantes italianos e com a população luso-brasileira.

A coleta de dados primários para a pesquisaItalianos no mundo rural paulista compreendeu

as histórias de vida, as entrevistas, a participação emtodos os acontecimentos importantes da vida grupal,e, sempre que possível, a busca de convivência íntimacom as famílias e os indivíduos. A população estudantilcontribuiu com informações, através de técnicas maisformais: além de cartas endereçadas a parentes econhecidos da Itália, narrando as suas experiências noBrasil, os ginasianos foram convidados a fazercomposições sobre o grupo italiano em Pedrinhas, sobreos brasileiros, sobre o Brasil, sobre o núcleo e sobre aItália. Pretendeu-se com isto examinar as reações dascamadas mais jovens perante a situação aculturativa.50

Não constam dados do número de indivíduos e defamílias entrevistados.

A época histórica em que se moveu essa pesquisae que também a constitui está presente nas relaçõespolíticas internacionais que levaram à criação da colônia,a que nos já referimos, e na liberação dos bens dosimigrantes italianos que tinham sido congelados durante aGuerra e que vieram a compor o capital da CompanhiaBrasileira de Colonização e Imigração Italiana. Necessáriose faz falar, ainda, do período pós-1964, quando se instalouo regime militar que dominou o país até 1985 e com elenova onda de nacionalismo exacerbado:

Em 1969, os argumentos dos adeptos da naturalizaçãoforam enriquecidos com nova política do GovernoFederal, que limitava a compra de terras porestrangeiros, criando empecilhos aos “planosexpansionistas” de grande número de colonos que

50 BORGES PEREIRA, 1974, p. 10-11.

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pretendiam ampliar suas áres de terra (Decreto-lei no.494, de 10/3/1969). Para enfrentar esta nova situação,o grupo adotou uma fórmula conciliatória: cada famílianaturalizava um dos membros, em nome do qual seriamfeitas as aquisições de terra. A família que não possuíamembro do sexo masculino, sem alternativa decontornar a lei, sujeitava-se a naturalizar o capo. Comoresultante desta nova e imprevista pressão político-econômica da frente nacional, até o final de 1969,foram registrados 68 casos de naturalização, entreindivíduos de 18 a 55 anos, sendo que 70% deste totalestava na faixa etária compreendida entre os 21 e 40anos; 6 famiglie coloniche, mais radicais, naturalizaramtodos os seus membros adultos.51

Uma possível leitura das relações de gêneroUma possível leitura das relações de gêneroUma possível leitura das relações de gêneroUma possível leitura das relações de gêneroUma possível leitura das relações de gêneroO que podemos apreender sobre as relações de

gênero na obra Italianos no mundo rural paulista, baseadana teoria da aculturação, considerando que analisaremosa obra dentro da perspectiva de estudos de gênero, maisde 30 anos após a sua confecção? Qual seria a sua contri-buição para o fortalecimento de uma etnografia feminista?Em primeiro lugar, a teoria da aculturação compreendeuma abordagem abrangente “do processo – incluindoevidentemente seus mecanismos condicionantes e suasmúltiplas e variadas resultantes – que envolve um grupo deimigrantes”.52 Portanto, não se trata de um estudo pontual,dada a sua riqueza de dados históricos e de informaçõesdetalhadas e análises que apresenta. Em segundo lugar,trata-se de uma pesquisa qualitativa, etnográfica e comotal é rica em trabalho de campo, compreendendo o estudode grupos sociais no seu próprio tempo e espaço, nas suasvidas diárias.53

A operacionalização da pesquisa, contudo, conduzà fragmentação da análise, levando o autor a tecerconsiderações sobre o ato de emigrar, o que aponta paraa importância do estímulo econômico. Importante para esteartigo é assinalar que ele reconhece que esse estímulo

atinge de maneira diversa e com diversa intensidadeos diferentes membros da família migrante. Em umacultura como a italiana, onde a exaltação do homemse contrapõe à relativa inferioridade da mulher, é ochefe da família (capo-famiglia) quem dá o destino dogrupo. Esta afirmação, por ser simplista, é parcialmenteverdadeira. Como veremos mais adiante, sob a capadesta ideologia masculina sobra margem substancialpara que os demais membros da familia – esposa efilhos – possam interferir, cada qual a sua maneira, nadeterminação dos destinos do próprio grupo. Astécnicas de inter ferência desses membros nas

51 BORGES PEREIRA, 1974, p. 124,nota 12.

53 BURAWOY, 1991, p. 2.

52 BORGES PEREIRA, 1974, p. 1.

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resoluções do chefe nem sempre são claras e explícitas,mas raramente deixam de ser eficientes.54

Prosseguindo com a leitura, nos defrontamos com areação dos imigrantes diferenciada por sexo em relaçãoao pó vermelho, intrínseco à terra roxa:

A primeira é a reação negativa, por parte da mulheritaliana, que alterou completamente seu esquema detrabalhos domésticos, ligado a padrões e hábitoshigiênicos com o corpo e com a roupa dos membrosda família. [...] Em Pedrinhas, a terra roxa, legítima ounão, expele um pó que impregna tudo, enfeia apaisagem, encarde a pele, suja a roupa recém-trocadaou exposta ao sol para secar, escurece a casa e seusmóveis, transforma as crianças lavadas pela manhãem criaturas muito sujas no final do dia. Esta poeiraavermelhada trouxe novas preocupações à mulheritaliana, obrigando a alterar os seus hábitos de trabalho.[...] Na segunda reação, positiva, é que se depreendea manifestação cultural do pó. Esta, diferente danegativa, parte não das mulheres, mas do homem, ede uma maneira que a coloca como peça de umaideologia grupal que vai ganhando corpo em Pedrinhas[...]. Por ora, o que interessa destacar é que o mesmopó avermelhado, que tanto afeta a vida da mulher,que a leva a repudiar o Brasil só por causa disto, é vistopelo homem como ‘algo bom e abençoado’ poistestemunha que ele possui pedaço de terra roxa e quetem à sua disposição o que há de melhor para sustentarseus anseios de homo oeconomicus, cujo ponto departida se localiza em suas atividades agrícolas e cujoêxito depende da qualidade do solo.55

Uma leitura etnográfica feminista e atual56 desseúltimo parágrafo possivelmente levaria a uma outraexplicação: o impacto da imigração ao incidir sobre afamília estaria repercutindo de modo mais intenso sobre amulher, como esposa, como mãe, como dona-de-casa. Oautor reconhece esse fato mais adiante, no entanto, oporquê e o como homens e mulheres vivenciam a migraçãode forma diferente ainda não faziam parte daspreocupações dos pesquisadores da época.57

Anteriormente à utlização de “gênero” comocategoria analítica, os estudos migratórios, nos EstadosUnidos, na década de 1980, começaram por evidenciar apresença da mulher no processo migratório, criticando aspesquisas anteriores que focalizavam como sujeito somenteo masculino. Entre esses autores, gostaríamos de destacarElizabeth Ewen e Sidney Weinberg.58 No Brasil, na décadaseguinte, a mulher aparece como protagonista entre ospoucos estudos sobre mulheres imigrantes, entre os quais

54 BORGES PEREIRA, 1974, p. 32.

55 BORGES PEREIRA, 1974, p. 45-47.56 MAHLER e PESSAR, 2006.

57 PESSAR, 1999, p. 53.

58 EWEN, 1985, e WEINBERG, 1988.

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destacamos os da autoria de Célia Sakurai e de KátiaLerner.59 Em ambos os países as obras foram escritas pormulheres.

Na década de 1990, os temas “família” e “gênero”foram incorporados aos estudos migratórios produzidos nosEstados Unidos. Steven Gold60 elenca três motivos para essamudança. Em primeiro lugar, o aumento do número demulheres imigrantes. Assim, um dos aspectos que definema “nova imigração” para esse país é o seu grande contin-gente feminino. Em segundo lugar, a crescente influênciado feminismo acadêmico, que coloca a experiência damulher no centro da produção do conhecimento.Finalmente, a presença de um grande número de mulheresimigrantes tem acarretado implicações políticas relevantes,no sentido de reivindicações por melhores moradias e pormais extensivos serviços de assistência social, tornando-aso centro da pesquisa.

No Brasil, a influência do feminismo na academia,apesar dos trabalhos pioneiros de Helleieth Saffiotti e deEva Blay,61 aparece mais tarde com a criação de núcleosde pesquisas e de estudos de gênero, na década de 1980.A produção bibliográfica sobre “gênero” como categoriaanalítica nos estudos migratórios nos Estados Unidos datada década de 1990 e no Brasil da década de 2000. Nosúltimos anos, no Brasil, foram publicados alguns artigos quetrabalham com a perspectiva de gênero entre emigrantesbrasileiros nos Estados Unidos.62 No primeiro, a autora busca“a contribuição que a perspectiva de gênero pode trazerà análise das redes sociais na migração”,63 e no segundo“o foco da pesquisa é a relação entre o processo deaculturação (mudanças culturais) e as relações de gêneroentre marido e esposa no novo país”.64 Há, ainda, o artigode Ethel Kosminsky, uma pesquisa comparativa que “discuteas relações de gênero vividas por mulheres imigrantesjudias, procedentes da Europa Oriental, que se fixaram emSão Paulo e em Nova York, e por suas filhas, nascidas nessascidades”.65 É interessante também apontar a presença deautores do sexo masculino entre os pesquisadores da áreade gênero e migrações nos Estados Unidos.

Na pesquisa de Borges Pereira, os depoimentos dosimigrantes, no início do processo de adaptação, mostramque homens e mulheres reagiram de modo diverso emrelação às adversidades:

Tais impactos incidiam mais sobre o universo de vidada mulher, principalmente da dona de casa. Tambémo comportamento de um e de outro perante tal situaçãoera discrepante. [...] Nas biografias das mulheres areferência ao choro é uma constante, algumaschoravam dia e noite, durante semanas e semanas,

59 SAKURAI, 1993, e LERNER, 1996.

60 GOLD, 1995.

61 SAFFIOTTI, 1969, e BLAY, 1981.

62 Gláucia ASSIS, 2003, e SylviaDEBIAGGI, 2003.63 ASSIS, 2003, p. 206.

64 DEBIAGGI, 2003, p. 176.

65 KOSMINSKY, 2004, p. 279.

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chegando inclusive a participar de choros coletivos,isto é, de grupos de mulheres que se reuniam paralamentar as dificuldades e chorar em conjunto. Entreas mulheres da Itália do sul, envolvidas numa tradiçãocultural onde todos os fatores da vida são encaradosde maneira dramática, ou ritualisticamente dramática,essas reações emocionais se transformavam emdemonstrações de dramaticidade ritualizada, da qualparticipam vizinhos e membros femininos do grupofamilial.66

Os dados referentes às reações dos homens diantedas dificuldades iniciais permitem perceber que, ante oseu papel de chefes da família, as suas atitudes denotaramdisciplina e preocupação em

garantir o equilíbrio do grupo. Não podia, portanto, [ohomem] dar públicas demonstrações de desespero.Além do mais, o apelo ao choro e às lágrimas não écomportamento sancionado pelos padrões culturaispara enfrentar situações desse tipo. Dentro de umacultura de orientação acentuadamente masculina, anossa corriqueira expressão – ‘homem não chora’ –ganha conotações acentuadas. Impedido de participardesses recursos catárticos privativos do mundo feminino,e sobrecarregado pelos problemas que lhe chegavamatravés das reações das mulheres, era de se esperarque o homem apresentasse, como nos afirmou um dosmédicos do núcleo, estados patológicos psicos-somáticos.67

Essas diferenças entre o comportamento dosimigrantes do sexo masculino e o do sexo feminino sãosimplesmente assinaladas como pertencentes a uma“cultura masculina”. Não havia, na década de 1960, apreocupação em evidenciar que homens e mulheresexperienciam o processo migratório de maneira diferentee como esse contraste afeta o processo de estabelecimentode um grupo imigrante. Uma perspectiva de gênero exigeum estudo aprofundado das instituições e ideologias queos imigrantes criam e encontram na sociedade receptoraa fim de determinar como o patriarcalismo organiza a vidafamiliar, o trabalho, as associações comunitárias, a loco-moção das pessoas tanto na cidade como na zona rural.Esse approach também incentiva a investigação sobre asdiversas formas nas quais a migração ao mesmo temporeforça e desafia o patriarcalismo nos seus múltiplosaspectos.68 Assim, é dentro das relações familiares,baseadas no poder autoritário do homem, o chefe dafamília, que podemos entender as diferentes atitudes dosimigrantes italianos, homens e mulheres, na colônia dePedrinhas, componente da sociedade brasileira, na qual

66 BORGES PEREIRA, 1974, p. 56.

67 BORGES PEREIRA, 1974, p. 56.

68 PESSAR, 1999, p. 53.

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“homem não chora”. Mais adiante, veremos se é possíveluma leitura de Italianos no mundo rural paulista que mostrese a imigração reforçou ou não o patriarcalismo,componente da carga cultural dos imigrantes italianos.

Observa Borges Pereira que, à medida que osimigrantes vão se tornando bem-sucedidos, as casascomeçam a ser remodeladas e eletrodomésticos sãoincorporados ao seu dia-a-dia, tais como geladeira, fogãoa gás, rádio, vitrola, televisão, etc. A aquisição desses bensconstitui para as mulheres um ponto de apoio na sua recusaem voltar à Itália, contrapondo-se àqueles maridos queassim o desejam, “com medo de vender tais bens e nãomais conseguir adquiri-los”. O consumo de eletrodomésticosé analisado pelo autor do ponto de vista da competiçãoentre as famílias imigrantes para a aquisição por statussuperiores. No Brasil, a divulgação desses bens ocorreusimultaneamente ao aumento do poder aquisitivo dositalianos.69

Maria Catarina C. Zanini formula uma diferenteexplicação acerca do consumo dos eletrodomésticos,levando em consideração a perspectiva de gênero, napesquisa etnográfica entre descendentes de imigrantesitalianos, de 1997 a 2001, retomada em 2006, nas áreasrural e urbana da região central do Rio Grande do Sul:

No trabalho doméstico [...], o uso de eletrodomésticostem permitido a essas mulheres melhor coordenaremseu tempo e poderem incluir atividades de lazer no seudia-a-dia, tais como assistir novelas, fazer crochê,participar dos terços, visitar parentes, jogar cartas etc,as quais antes eram atividades menos rotineiras.Os eletrodomésticos, contudo, não ingressaram nomundo doméstico sem antes serem “estudados”. Muitasdas famílias no meio rural com as quais convivi, apesarde possuírem fogão a gás, optavam por utilizar o fogãoà lenha, especialmente nos dias frios, pois elepropiciava uma maior sensação de conforto e deagregação familiar. Além disso, a comida nelepreparada “tinha outro sabor”. A televisão foi umeletrodoméstico que encontrei em todas as casas, detodas as camadas sociais, rurais e urbanas. Geladeirase freezers, igualmente. Compreendo que foi na cozinhadessas mulheres descendentes que muitastransformações culturais foram ressemantizadas na terrahospedeira. Foram elas também que, ao mantertemperos e sabores, souberam repassar, de geração ageração, determinado estilo de vida que remete àascendência italiana.70

Ainda em relação ao uso desses novos elementos,Borges Pereira destaca a importância dos meios decomunicação, especialmente do rádio e da televisão, na

69 BORGES PEREIRA, 1974, p. 68-69.

70 ZANINI, 2006, p. 5.

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vida diária dos colonos. A seu ver, esses instrumentos seconstituem em agentes da incorporação dos imigrantesaos padrões urbanos brasileiros e, ao mesmo tempo, noseu distanciamento

de certo estilo de vida identificado ao mundo ruralbrasileiro, e que no encontro entre populações italianae brasileira daquela área é simbolizado por aquelesbrasileiros pobres, nordestinos ou não, que nãoconseguem exibir as mesmas expressões de civilizaçãoe de “modernidade”. Ao mesmo tempo em que estedistanciamento lhe vai fornecendo elementos paracompor uma imagem negativa do brasileiro rural – quepara alguns italianos é o estereótipo do brasileiro emgeral – afasta-o, como conseqüência, de tudo aquiloque culturalmente define aquele segmentopopulacional.71

No plano do trabalho, na agricultura, as referênciasdo autor se dirigem unicamente aos homens, permitindosupor que o trabalho da mulher na agricultura não fossenecessário,72 pois, ao comparar com a emigração de antesda guerra, “quase sempre custeada pelo próprio emigran-te”, Borges Pereira chama a atenção para as “facilidadesde financiamento oferecidas ao emigrante, que transfor-mava o ato de emigrar em algo relativamente fácil”.73 Alémdisso, inúmeros trabalhadores nacionais (nordestinos) foramadmitidos, quer como população fixa, quer como popula-ção flutuante na época da colheita do algodão, liberando“os membros masculinos do grupo para outras tarefas” forado núcleo colonial. Dessa forma, a mão-de-obra familiarfazia-se cada vez menos necessária para os trabalhosagrícolas.74 O que as mulheres italianas faziam do seu tempode não-trabalho na agricultura? Não encontramos resposta.

Maria Catarina Zanini observou que as mulheresdescendentes de italianos, entre 70 e 85 anos de idade,na época da pesquisa, afirmaram que “trabalhavam comos homens em pé de igualdade na roça, chegavam emcasa e tinham a rotina doméstica a cumprir: cozinhar,costurar, rezar, cuidar das crianças, dos animais, da horta75

etc”. E que

as novas teconologias têm modificado as relações degênero e patrocinado mudanças nos espaçosdomésticos e de produção. Por exemplo com amecanização da lavoura, o trabalho da mulher passoua ser menos exigido durante todo o processo produtivono campo, o que tem possibilitado que cuidem maisde suas casas e que as filhas mulheres estudem.76

No entanto, Borges Pereira encontrou um caso quepode representar o início da alteração de padrões culturais

71 BORGES PEREIRA, 1974, p. 69.

72 Mais adiante veremos que nãofoi bem assim.

73 BORGES PEREIRA, 1974, p. 31.

74 No final do século XIX e iníciodo século XX, as famílias deimigrantes italianos chegaram aSão Paulo para trabalhar comocolonos das fazendas: homens emulheres se dirigiram para oplantio dos pés de café e para acolheita. Também mulheres ecrianças se ocuparam dasplantações de subsistência,cultivadas entre as fileiras doscafezais. As mulheres aindatrabalharam como criadas ecostureiras nas fazendas e, alémdisso, tinham a obrigação decuidar da sua própria família edas atividades domésticasnecessárias à sua manutenção(Zuleica ALVIM, 1986).75 ZANINI, 2006, p. 3.76 ZANINI, 2006, p. 5.

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originários: “uma família do meio rural, proveniente da ItáliaMeridional que se estabeleceu com casa comercial nonúcleo e para espanto de uns e escândalo de outros,permitiu que as mulheres da família se transformassem embalconistas”.77

Nas suas considerações sobre as famílias dosimigrantes italianos em Pedrinhas, o autor explicita que setrata de uma

organização grupal que se orienta pelo modelo defamília extensa, reunindo famílias nucleares, que seoriginaram do mesmo tronco. [...] esta instituição tendea se enquadrar, dentro do tipo de família patriarcal,com fortes tendências para o patrilocalismo e para aendogamia. Em Pedrinhas surgiram condiçõesfavoráveis para que esse ideal organizatório se realizasseno plano concreto. Em primeiro lugar, a predominânciade metas econômicas sobre os demais alvos doimigrante o levou a reforçar a família como unidadede produção e de consumo [...]. Em segundo lugar, aadoção da tecnologia moderna aliada à práticaracional de agricultura, ao aumentar a produtividadeda terra, e com esta, a rentabilidade econômica,anulou, de certa maneira, a incompatibilidade de umtipo de família estruturada dentro do padrão de familiaextensa. Pode-se notar aqui a presença do planocolonizador posto em prática pela empresacolonizadora, influenciando a preservação de umaesfera associativa de excepcional importância para ogrupo migrante, ou então, o que parece mais acertado,garantindo a concretização de padrão altamentevalorizado pela tradição italiana.78

Ao analisar o grupo familial do imigrante, BorgesPereira considera que a idade e, principalmente, o sexodeterminam a posição e o papel dos indivíduos dentro dogrupo: “os princípios estruturais e organizatórios baseadosnessas duas categorias biológicas manifestam-se comoexpressões do padrão patriarcalista da família italiana”. Aorganização patriarcal da família italiana exprime-se na

subordinação dos mais novos aos mais velhos e dasmulheres aos homens. A chefia da casa pertence aoesposo, que ocupa o vértice da pirâmide grupal. Logoapós, como seu substituto eventual, dentro de umahierarquia baseada em padrões ideais, vem o filho maisvelho. [...] Em Pedrinhas, alguns casos mostram que nemsempre o princípio da primogenitura é posto em prática;às vezes o filho mais novo, ou mesmo a mãe, assume aresponsabilidade pelos destinos do grupo.79

Como bem notou Borges Pereira, o estabelecimentodos italianos em Pedrinhas e, possivelmente, em outrasregiões do Brasil contribuiu para a persististência dos antigos

77 BORGES PEREIRA, 1974, p. 93.

78 BORGES PEREIRA, 1974, p. 129-130.

79 BORGES PEREIRA, 1974, p. 132-133.

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padrões familiares trazidos na sua carga cultural. SegundoAntonio Candido, a imigração pode ter provocado orecrudescimento desses padrões:

Não somente porque os imigrantes adotam traços semi-patriarcais através do contato cultural, mas porque emmuitos casos eles próprios são portadores de traçossemelhantes. Este é, por exemplo, o caso dos italianosdo sul da península, com as suas tendências fortementeparternalísticas, e, acima de tudo, com os sírios, aindaimersos em uma organização semi-patriarcal que elesdefendem tenazmente através da segregação e docasamento consagüíneo.80

Outras vezes, como diz Pessar, a imigração podelevar ao desafio do patriarcalismo, especialmente, se asmulheres são provenientes de cidades e países mais adian-tados.81 Assim, na nossa pesquisa sobre mulheres imigrantesjudias, procedentes da Europa Oriental, que se estabe-leceram na cidade de São Paulo, entre os anos de 1911 e1948, e cujas filhas foram entrevistadas nessa cidade, entreo final de 1997 e o início de 1998, nos deparamos com ahistória da mãe de Helena, originária de Riky, perto deVarsóvia, onde ela tinha um pequeno bazar em que vendialinhas e agulhas.82 Na década de 1930, depois do seucasamento, ela e o marido tinham um bazar no Bom Retiro,bairro de São Paulo, na época ocupado, em boa parte,por imigrantes judeus. Em seguida, eles abriram umapequena fábrica de roupas para crianças e

ela [a mãe] trabalhava muito, ela saía de mala e vinhacom o mostruário de bonde, para ir nos bairros daPenha, da Lapa, como vendedora das roupas dafábrica, para vender para as lojas. Agora o termo érepresentante. [...] Minha mãe era então assim umazorra, de pegar bonde com mala, ela conta que umavez perguntaram para ela:– Seu marido está doente?– Não, por quê?– Porque a senhora está trabalhando.– Precisa meu marido estar morrendo para eu trabalhar?[Helena ri] Você imagina a mentalidade da época, queseu marido está morrendo ou doente para a mulhertrabalhar!83

O emprego das variáveis “sexo” e “idade” na obrade Borges Pereira, entendidas como variáveis biológicas,pertencem a um período datado da história das ciênciassociais, no sentido de que essas colocações têm a ver coma própria formação desse ramo do conhecimento, quesurgiu muito próximo das ciências naturais. Assim, somentenas últimas décadas é que, através dos estudos de gêneroe da sociologia da infância e da juventude, as ciências

80 CANDIDO, 1951, p. 306-307.Tradução nossa.

81 PESSAR, 1999.

82 KOSMINSKY, 2004.

83 KOSMINSKY, 2004, p. 313.

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sociais puderam demonstrar como as categorias “gênero”,“infância” e “juventude” são social e historicamenteconstruídas.

Se fosse se ater às aparências, a mulher parece quenão teria vez, segundo o pesquisador. No entanto, apósdistinguir a mulher proveniente do sul e aquela origináriado norte da Itália, em diferentes situações observadas,Borges Pereira afirma que a mulher do norte, em situaçõespúblicas,

é pouco resguardada de contatos com indivíduos deoutro sexo. Vendo-a em situações públicas, não se tema impressão de que ela esteja sob o controle do marido.Traja-se mais dentro da “moda”, e a passagem dasituação de solteira para a de casada não altera nesteponto o seu comportamento. As mudanças sãodeterminadas, em tais aspectos exteriores, apenas pelaidade que distingue a anciã da jovem mulher casada.Dentro de casa, a situação se altera; desaparece amulher relativamente comunicativa e surge a mulhersilenciosa. Hospeda o visitante com polidez, porém comcerta frieza. Seu marido é o seu porta-voz, ao atendero visitante e ao responder às perguntas que lhe sãoformuladas, mesmo as de caráter doméstico.Raramente ela participa do assunto, embora esteja nomesmo recinto da reunião. Em geral, ela fica distantedos interlocutores, a um canto da sala, silenciosa, masouvindo toda a conversação. A confiar, porém, nosinformantes masculinos, todo esse alheamento é apenasaparente e superficial, ditado por padrões de etiqueta,que de forma alguma a colocam à margem dosassuntos mais importantes da família. Para usar aexpressão de um informante, a “hora da mulher falar éno travesseiro”. À noite, a sós com o marido, ela dá asua opinião, e desta forma dirige os rumos dosacontecimentos. À luz do dia – para usar umacomparação cômoda – o chefe transmite, como sendodele, a opinião expedida pela esposa, que o grupoaceita como tendo partido do capo. Os filhos jáconhecem a influência de bastidores da mulhersubreptícia, por isso toda a técnica de aproximaçãodo pai começa pela aproximação da mãe, sem,porém, colocar em dúvida a autoridade paterna.84

Sobre a mulher do sul relata o pesquisador que,

quando sai à rua, está sempre sob a vigilância ostensivado marido, exibindo ar de tristeza, que a roupa pretaacentua. Quando o esposo está a seu lado, elademonstra muita vivacidade, conversa comdesenvoltura com os homens que lhe dirigem a palavra,toma a iniciativa das compras; quando longe domarido, ela fica cabisbaixa e silenciosa, evitandoinclusive o olhar de outros homens. Esta mulher passa

84 BORGES PEREIRA, 1974, p. 134.

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por extraordinária metamorfose quando substitui a ruapelo lar. Nos domínios domésticos, nada resta da mulhersubmissa e inibida. Em seu lugar, surge a “rainha dacasa” – para usar a expressão predileta com a qual ositalianos costumam designar a mulher em seuimperialismo doméstico. Exuberante nos gestos e nofalar, quase sempre risonha, nega em tudo aquelatristeza pública. Vai porém, rapidamente, de um temaalegre para um assunto triste, e acompanhando atransição do tema, todo o seu semblante e seus gestose sua voz se alteram, compondo a máscara de umarepresentação cênica. Loquaz, desinibida e desenvoltaem casa quer na ausência ou na presença do marido,hospitaleira sem formalismo, ela toma sempre ainiciativa da conversa, colocando marido e filhos emsegundo plano. Estes, quando falam, estão semprereticentes, à espera da aprovação da “rainha”, que sefaz entender pelo simples olhar.Diferentemente da mulher do norte, a mudança dostatus de solteira para o de casada altera-lhe inclusivea aparência. Antes do casamento é uma jovemextremamente vaidosa e adereçada, ostentando tipofísico que chega a ser atraente para os nossos padrõesde beleza. Depois de casada, desleixa-se e fica feia,não apenas como resultante de mudanças nos padrõesde vestir, mas também como produto de intencionalenfeamento físico. Tem-se a impressão de que ela faztudo para se enfear. É como se o seu status de mulhercasada a obrigasse a isso, como a cumprir um ritual, afim de não atrair olhares cobiçosos masculinos. Ela deverenunciar à vida para viver apenas para o seu esposoe para os seus filhos. Tal fidelidade é preservadainclusive após a morte do marido. Independentementeda idade, ela permanece viúva perpétua, sem pensarem contrair novo matrimônio, e quando morre ésepultada com os trajes de luto que ela usou desde ofalecimento do companheiro.85

As diferenças de atitudes entre as mulheres do nortee as dos sul, observadas pelo pesquisador, podem serexplicadas pelas diferenças já assinaladas entre o Norte eo Sul da Itália, sendo as relações familiares nesta últimaregião, ainda na época da imigração para Pedrinhas, maistradicionais do que na primeira.

Borges Pereira compara o comportamento da mulherbrasileira e da mulher italiana, em relação aos homens,partindo do exame da etiqueta das relações entre os sexosfora do lar:

talvez se possa dizer que o cerimonial adotado pelacultura italiana expresse, nesse plano, maior simetriaentre os homens e mulheres do que a observada nacultura brasileira. Na verdade, é preciso reconhecerque colocar o comportamento da mulher brasileira em

85 BORGES PEREIRA, 1974, p. 134-135.

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termos comparativos com o da mulher italiana, e destacomparação chegar à conclusão enunciada acima,é violentar os fatos. Talvez o que se possa dizer é quehá quase incoerência quanto à relativa igualdade dossexos entre brasileiros e todo o requinte de ritualismoque preside as relações entre homens e mulheres noplano formal; enquanto, de outro lado, há quasecontraste entre a supremacia masculina na tradiçãoitaliana e a etiqueta de tratamento formal dispensadapela italiana ao homem. Assim, quando a mulheritaliana enfrenta situação em que lhe é permitido falarcom estranhos, ela fala, discute e interpela de igualpara igual, sem rodeios. A mulher brasileira, desde aroceira até a professora – para se falar simbolicamenteem termos de rural e urbano – em tais situações, coloca-se sempre em posição de assimetria, fala sempre deforma reticente, sobretudo quando o assunto tem umcerto toque de “tabu”. Jovem senhora, casada comitaliano urbano e culto, confessou ao investigador quegrande dificuldade de ajustamento representado pelocasamento interétnico foi aceitar com naturalidade adiscussão, em sua presença e na presença deestranhos, de assuntos que em sua família original seriamabordados por metáforas e subterfúgios, como é o caso,por exemplo, de temas ligados a questões sexuais.86

A arguta percepção do etnógrafo se faz presentenessa análise que lhe permite discernir as diferenças decomportamento da mulher em casa e na rua e tambémdos rituais de comportamento entre os sexos. Pertinentetambém é a observação sobre a diversidade de comporta-mento das mulheres italianas e das brasileiras em contatocom desconhecidos: enquanto a primeira enfrenta, asegunda se mantém reticente. Mesmo em sociedadesbaseadas no poder autoritário do chefe da família, as regrasde etiqueta entre os sexos apresentam uma grandevariedade. Entretanto, a afirmação do autor a respeito da“relativa igualdade dos sexos entre brasileiros e todo orequinte de ritualismo que preside as relações entre homense mulheres no plano formal” dificilmente pode ser entedida.Podemos apenas assinalar que as regras de etiqueta entreos brasileiros são outras.

Vejamos as observações de Emilio Willems a respeitodas relações entre os sexos na vila de Cunha,87 estado deSão Paulo, em pesquisa realizada, em meados da décadade 1940, com a finalidade de verificar as mudançasculturais que estavam ali ocorrendo com a passagem datradicional economia de subsistência para a economiacomercial:

Na comunidade urbana são raríssimos os casos depessoas que vivem juntas sem o vínculo do casamento.

86 BORGES PEREIRA, 1974, p. 136.

87 Baseando-se em dados docenso de 1943, Willems afirmaque o município de Cunha con-tava com aproximadamente 27mil pessoas, das quais 1.485moravam na cidade de Itaipava.Tratava-se, portanto, de um muni-cípio predominantemente rural(WILLEMS, 1961, p. 27-28).

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Outrora, porém, eram freqüentes, mesmo na classesuperior. Verificamos que, há 40 anos atrás, seis pessoasda “elite local” viviam amasiadas sem que “alguémligasse para esse fato”. Não sofre dúvida que o padrãoatual [dos anos 1940] é bem diverso, pois a reação daopinião pública traria conseqüências desagradáveisaos transgressores da norma social.Diferente é a situação da roça, onde os amasiamentossão freqüentes, sobretudo entre os agregados.[88]Relações sexuais pré-nupciais com “moças de família”são relativamente raras. Quando sucedem na classealta ou média, os pais procuram imediatamentelegalizar a união pelo casamento. Na roça predominaa crença de que “moça que perdeu a virgindade viramula-sem-cabeça depois da morte”. Esta sançãosobrenatural, associada à vigilância dos pais, age comopoderoso fator preventivo contra “abusos”, mas nãoimpede que, pelo menos entre os agregados, omatrimônio tome, freqüentemente, uma feição poucoestável [...].89

As tendências patriarcais da comunidade originaramum padrão de “recato”que limita a esfera de influênciada mulher casada ao lar. Quando o marido recebehóspedes, ela raramente aparece e nas refeições elaserve os convidados sem tomar lugar à mesa. Somenteem festas de certa importância, a dona da casa figuraà mesa, mas sempre em companhia de outrasmulheres. Percebe-se, no entanto, que esse padrão estásendo aos poucos modificado por mulheres da classesuperior vindas de fora. Mesmo quando o maridorecebe visitas masculinas, as senhoras aparecem, sãoapresentadas e participam da conversa, às vezes comgrande vivacidade, explicável pela “monotonia domeio”, como elas dizem, raramente interrompida peloaparecimento de forasteiros do mesmo nível social.Observamos que as mulheres da roça gozam de maiorautonomia do que as da cidade. Estas se vêemconfinadas, em geral, ao âmbito doméstico. Aquelas,no entanto, podem dedicar-se a atividades econômicasque lhes asseguram um grau de independênciarelativamente elevado. As mulheres de sitiantes efazendeiros criam aves e suínos, fazem farinha de milhono pilão e vendem o produto do seu trabalho. Dessamaneira, muitas conseguem acumular um pecúlio queo marido “respeita”.90

Podemos supor, confrontando as pesquisas dos doisautores, que “a relativa igualdade dos sexos entre osbrasileiros” e mais a utilização de eufemismos em assuntosrelacionados a sexo, apontadas por Borges Pereira,poderiam estar ligadas a diferenças de classe social.Considerando que, segundo este autor, os brasileiros com

88 Agregados, nesse caso, signi-fica uma relação de subordina-ção de patrão com agregado,sendo este o termo que substituigeralmente o do arrendatário.Este mora com a família na fazen-da, em casa de pau-a-pique.Paga o proprietário em espécie(milho e feijão), e é tal o grau dedependência que se transformageralmente em “camarada”,assumindo obrigações relativasàs lavouras do patrão (WILLEM,1961, p. 46).89 WILLEMS, 1961, p. 61.

90 WILLEMS, 1961, p. 63.

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os quais os italianos entram em contato são trabalhadorespobres, na sua grande maioria, essa relativa igualdadepoderia ocultar a existência de relações consensuais, quefavorecem a circulação de homens entre várias mulheres,ao longo dos anos,91 um sinal da desigualdade dasrelações de gênero – coincidindo, de um certo modo, comas colocações acima de Willems. Possivelmente, autilização de eufemismos em assuntos considerados “tabus”pode estar ligada às camadas médias – é o que sedepreende dos exemplos do texto.92

A disposição dos temas tratados na obra da BorgesPereira, isto é, a sua organização, denota a perspectivamasculina, como não poderia deixar de ser na época. Aparte referente ao trabalho executado pela mulherimigrante faz parte do capítulo V, que trata da vidaassociativa, dentro da dimensão da família, enquanto otrabalho do homem consta do capítulo IV, denominado “Apaisagem trabalhada”. Em relação às tarefas que a mulherexecuta, diz o autor:

Na divisão de trabalhos cabe à mulher atuar em doisníveis: dentro de casa, ela deve cuidar do que sepoderia chamar de suportes infra-estruturais da vidafamilial, enquanto unidade sócio-econômica. Assim,cuida das crianças e dos afazeres domésticos(cozinhando, lavando e cozendo). Fora de casa, ela éresponsável pela horta, pomar, criação miúda,fabricação de queijo e manteiga e pelo preparo derações para os porcos e para o gado leiteiro semi-estabulado. Em épocas de colheitas, quando a mão-de-obra é muito solicitada, ela também participadiretamente da faina agrícola, junto aos demaismembros masculinos da família e de eventuaisassalariados.93

Todas essas tarefas são desenvolvidas na família

dentro de princípios organizatórios que colocam nummesmo sistema de interações todas as mulheres dogrupo, sob a liderança da mais velha, que é, em geral,a esposa ou a viúva do capo. Assim como este orientatoda a atuação do grupo familial, a sua companheira,com a mesma autoridade, orienta a atuação dasmulheres do grupo. É ela que distribui as tarefas do dia,supervisiona o trabalho, anula com a sua autoridadeeventuais focos de atritos, que se podem manifestarnas relações competitivas entre as noras, os filhos e entreos netos, que são primos entre si. 94

Preocupadas com a preservação da organizaçãodas atividades, expressão de um estilo de vida identificadocom a família extensa, as mulheres italianas entrevistadasse manifestaram contrárias ao casamento misto e à quebra

91 Elza BERQUÓ, 1998.

92 Ver BORGES PEREIRA, 1974, p.136.

93 BORGES PEREIRA, 1974, p. 137.

94 BORGES PEREIRA, 1974, p. 137-138.

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dos padrões endogâmicos. Do mesmo modo, o capo“reluta em aceitar genro de fora, em especial genrobrasileiro”.95 Além das diferenças de costumes e de modode vida, há uma diferenciação social grande entre osimigrantes, proprietários rurais, e os brasileiros de Pedrinhas,trabalhadores rurais e pobres. Assim, os casamentosrealizados no Brasil seguem o padrão endogâmico, dentrodo grupo étnico e com parceiros da mesma localidade(paese). Por outro lado, o pesquisador observou atitudesde rebeldia por parte da “população jovem contra ospadrões de comportamento da geração mais velha”,considerando essas atitudes também como “uma reaçãodo mundo feminino contra o esquema que lhe é imposto,em última instância, pelo mundo masculino”:

uma jovem de 18 anos diz que “casar com brasileiro éfogo. Os meus pais não deixam, só no último caso,porque brasileiro das Pedrinhas é pobre. A gente temque namorar brasileiro de fora que é formado, que érico. Italiano, eu já disse para minha mãe, eu não quero,porque não dá liberdade e faz a mulher de escravada mãe dele”.96

Para Borges Pereira, o casamento em Pedrinhas, “apar de suas funções sócio-econômicas”, compreendetambém uma

forte imposição de ordem biológica. É a soluçãoadotada para atender aos reclamos do sexo. Dentrode uma cultura de acentuada orientação masculina,de exaltação da virgindade, é compreensível que omatrimônio seja para a mulher a única alternativasancionada para a satisfação de suas necessidadessexuais. Ao homem, porém, os padrões derespeitabilidade se mostram mais elásticos e, como tal,ele encontra alternativas culturais que sancionamrelações pré e extra-matrimoniais.97

No entanto, a situação é outra em relação ao jovemsolteiro de Pedrinhas,

sobretudo aquele que não tem grandes oportunidadesde deixar o núcleo, [que] encontra fortes empecilhospara usar tais alternativas culturais. A grande dificuldadeestá na obtenção da companheira que se preste a isto.Excluindo as italianas, nada acessíveis pelos motivos jáexpostos, sobram as mulheres do grupo nacional,constituído preponderantemente de nordestinosseminômades. Referindo-se a este fato, um rapazafirmou que “o jeito é casar logo, porque ‘não dá pé’viver assim”. E demonstrando em seu depoimento aadoção de expressões eufemísticas correntes nas zonasrurais e interiorana do Brasil, conclui que “a mulhernordestina às vezes ‘dá bola’ mas nas Pedrinha é difícil

95 BORGES PEREIRA, 1974, p. 138.

96 BORGES PEREIRA, 1974, p. 139.

97 BORGES PEREIRA, 1974, p. 140.

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‘barranquear’, pois todo o mundo já vê e fala e vaicontar para o Padre”. Como se observa por estadeclaração, o indivíduo está submetido, dentro dacolônia, a rigoroso controle comunitário, sobretudoreligioso. Ainda que disponha de condução, não é fácilao jovem tentar aventuras fora do núcleo, nem mesmono meretrício das cidades vizinhas, “pois o padre ficalogo sabendo e já vem em cima da gente”. A solução,portanto é o casamento.98

Algumas considerações relativas ao momento dapesquisa: os imigrantes italianos encontraram, na socieddebrasileira, valores semelhantes àqueles que faziam partedo seu próprio ethos, a manutenção da virgindade femininaantes do casamento e a organização familiar baseada nopoder autoritário do esposo e pai. Esse compartilhar devalores, aliado ao predomínio da religião católica entre ositalianos e os brasileiros, pode ter contribuído para a preser-vação dos padrões de comportamento dos imigrantes.99

Além disso, a influência do feminismo na academia aindanão se fizera sentir no início da década de 1970, nãoobstante já assinalarmos a publicação do livro de HeleiethSaffioti, em 1969. O fato de o autor da pesquisa pertencerao sexo masculino poderia também ser um indicativo defalta de sensibilidade em relação ao sexo feminino? Real-mente, quando observamos a produção de pesquisas naárea de gênero e migrações internacionais na década de2000, notamos uma presença maior de mulheres comoautoras paralelamente ao crescente número de trabalhosque abrangem essa temática. No entanto, a utilização dacategoria “gênero” não implica que o pesquisador sejanecessariamente do sexo feminino e, sim, que o seuemprego permita a correção desse viés.100

De modo semelhante à sociedade rural brasileirada época e, anteriormente, também no Brasil urbano, onamoro em Pedrinhas começava pelo olhar, seguido donoivado e do casamento. Além das diferenças dos padrõesde namoro entre os imigrantes provenientes do centro-sule aqueles originários do norte italiano, que gozavam deum pouco mais de liberdade podendo ir ao cinemadesacompanhados, o dote da noiva era combinado comantecedência em ambos os grupos. A diferença em relaçãoaos padrões brasileiros reside no fato de que “tudo o queconstitui o dote da noiva é devidamente contabilizado eserá descontado de sua herança quando surgir aoportunidade”. Quanto à idade dos cônjuges, o autoraponta para uma possível alteração de padrão quepoderia ser um resultado do processo de aculturação: ofato de os noivos serem da mesma idade ou de a noiva teridade inferior à do noivo – condizente com os padrões

98 BORGES PEREIRA, 1974, p. 141.

100 KOSMINSKY, 2004.

99 KOSMINSKY, 2004, p. 291.

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brasileiros –, enquanto, em algumas regiões da Itália, écostume “o homem casar com mulher mais velha, até 15anos, do que ele [...] senão ele fica velho e ela fica moça,e é um perigo”, segundo um entrevistado.101

No item “Endogamia e patrilocalismo”, Borges Pereiraafirma que Móglie e buòi dei paesi tuôi102 exprime “opadrão endogâmico da tradição familial italiana, e queencontrou em Pedrinhas condições favoráveis desobrevivência”. Assim, segundo o autor,

a tendência endogâmica se exterioriza, dentro de umaordem prioritária em três níveis: no regional, no inter-regional e no nível nacional. No primeiro caso, apreferência de escolha recai sobre indivíduos do mesmopaese ou localidade, sobre indivíduos da mesmaprovíncia, de províncias vizinhas e, por fim, da mesmaregião. No segundo caso, a escolha recai sobreindivíduos de regiões vizinhas, sendo nítida a preferênciapor uniões entre pessoas do centro e do sul. Finalmente,no terceiro caso, a endogamia se revela em preferiruniões dentro do grupo italiano tomado como um todo,a casamentos inter-étnicos.103

Entre os casamentos inter-étnicos que ocorreramnesses 13 anos de convivência, constata-se que foramrealizados mais casamentos entre italianos e brasileiras doque entre brasileiros e italianas. Isso pode ser explicadopelos seguintes fatores:

Ao lado das pressões da Igreja, contrárias às uniõesinter-étnicas, sobretudo à união de italianas combrasileiros, há a destacar ainda mais duas ordens defatores: uma, de natureza sócio-econômica, diz respeitoao baixo status do brasileiro na estrutura sócio-econômica da comunidade; outra, de naturezapropriamente cultural, faz referência aos estereótiposnegativos, aos padrões de residência ligados aopatrilocalismo e às exigências presas à transmissão daherança e à preservação do patrimônio familiar.104

Esse trecho, possivelmente, mostra uma expectativado autor em relação à miscigenação. Segundo Willems,essa expectativa é um dos componentes da culturabrasileira:

Entre nós mede-se, muitas vezes, a “assimilabilidade”de um grupo étnico pelo grau de miscigenação. Quemnão casa com brasileiro é geralmente considerado“inassimilável”. Com efeito, pensar assim significa atrelaro carro adiante dos bois. A organização da família e ospadrões de sexualidade pertencem, com toda acerteza, às esferas íntimas de qualquer criatura humana.É improvável que a assimilação se possa iniciarjustamente por esta esfera à qual todas as sociedades

101 BORGES PEREIRA, 1974, p. 142.

102 Pode ser traduzido como“esposa e gado de sua aldeia”;além de essa expressão indicarque dá mais certo casar-se commulher da mesma localidade, eladenota um sentido de proprie-dade daquele que tem a posseda mulher e do gado – retrato deuma sociedade patriarcal.

103 BORGES PEREIRA, 1974, p. 143.

104 BORGES PEREIRA, 1974, p. 144.

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aplicam um sistema de controle destinado, a um tempo,a evitar desajustamentos internos e penetração externa.Todas as sociedade conhecidas cercam as questõesligadas à aproximação e associação dos sexos, aomatrimônio e à criação dos filhos, com cuidadosinúmeros e, não raro, extraordinariamente complicados.Contatos entre grupos culturalmente diferentes precisamser demorados e intímos para que se chegue a umacompreensão mútua das concepções atinentes aosexo, ao matrimônio e à família. E nem sempre acompreensão recíproca facilita a fusão. Ao contrário,as diferenças culturais verificadas podem distanciarmais ainda os grupos em contato, pois estes percebemque a miscigenação lhes desorganizaria o setor maisresguardado de sua cultura.105

“Gênero” como categoria central e a“Gênero” como categoria central e a“Gênero” como categoria central e a“Gênero” como categoria central e a“Gênero” como categoria central e aconstrução de uma etnografia feministaconstrução de uma etnografia feministaconstrução de uma etnografia feministaconstrução de uma etnografia feministaconstrução de uma etnografia feminista

Como etnografia feminista (grifo nosso) entendemosaqui o compartilhar de determinadas consideraçõesepistemológicas e de estratégias de pesquisa associadasàs tradições do conhecimento feminista e do trabalho decampo antropológico. Isso inclui a convicção de que asabordagens quantitativas, positivistas das ciências sociaisnão permitem contextualizar os dados coletados ou lidarcom a categoria “gênero” na pesquisa. A investigaçãoetnográfica feminista baseia-se não somente nasobservações de pesquisadores experientes, mas tambémnas perspectivas e nos entendimentos das ações dossujeitos e nas suas crenças.106

Segundo Burawoy, na pesquisa social de caráterinterdisciplinar, que congrega a sociologia, a antropologia,a ciência política, a história e a economia,107 a técnica daobservação participante ou a chamada arte da etnografia(grifo nosso) é a mais indicada. Ela se diferencia das demaistécnicas por possibilitar o estudo das pessoas no seu própriotempo e espaço, nas suas vidas diárias. A vantagem dessatécnica está em permitir a observação direta não apenasde como as pessoas atuam, mas também de como elasentendem e experimentam esses atos. Ela nos possibilitasobrepor o que as pessoas dizem com o que elas realmentefazem.108

Ao falar como etnógrafo, Burawoy expressa umapreocupação pertinente às ciências sociais: construir umainteração social entre o observador e o participante,baseada no diálogo e, ao mesmo tempo, preservar o quenós chamamos de objetividade relativa, isto é, o observadormantém-se de fora, não se confundindo com oparticipante, de modo a ser capaz de construir uma

105 WILLEMS, 1980, p. 322-323.

106 MAHLER e PESSAR, 2006, p. 30.107 Concordamos com a perspec-tiva da pesquisa interdisciplinarproposta por Alejandro Portes, evamos ainda mais longe acei-tando a idéia da unificação daciência social, formulada porImmanuel Wallerstein (cf. PORTES,2002). Acrescentamos a antropo-logia à colocação original deWallerstein de uma única ciênciasocial, sem barreiras, que congre-ga a sociologia, a ciência políti-ca, a história e a economia, porconcordamos com Maria IsauraPereira de Queiroz que, critican-do o afastamento da sociologiaem relação à antropologia, emSão Paulo, afirma que a especiali-zação conduz ao “empobreci-mento dos trabalhos resultantes”(PEREIRA DE QUEIROZ, 1992, p.403).108 Como o próprio Burawoy reco-nhece, essa técnica não se apli-ca à pesquisa com documentos,à pesquisa de survey, demográ-fica e experimental (cf. BURAWOY,1991, p. 2). As citações do autorforam traduzidas livremente.

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explicação científica que tenha validade. Desse modo, oobservador dialoga com o participante e, ao mesmotempo, com a comunidade acadêmica.

A perspectiva feminista do/a observador/atransparece na sua crescente sensibilidade em centralizar“gênero” como um elemento hierarquizador que estratificatodos os momentos do processo migratório para todosaqueles envolvidos, homens e mulheres, bem como os seusfilhos e filhas.

A teoria da aculturação utilizada por João BaptistaBorges Pereira na sua pesquisa sobre a imigração deitalianos para Pedrinhas, pela sua própria proposta e pelométodo etnográfico empregado, possibilita ao/à leitor/a oacesso a informações sobre o estilo de vida dos imigrantes,o seu trabalho, a família, as relações entre os sexos, oscontatos com brasileiros e assim por diante. Essa riquezade informações tende a contrastar com aquelas pesquisasatomizadas que focalizam um único aspecto, umdeterminado problema, tais como, por exemplo, estudossobre as remessas de dinheiro que os imigrantes mandampara os seus familiares ou estudos sobre uma determinadafestividade promovida por um grupo de imigrantes. Comisso, não queremos afirmar que somos inteiramentefavoráveis à teoria da aculturação109 e, sim, queremosassinalar a riqueza de informações advindas do empregodessa teoria aliada ao método etnográfico.

Conforme já comentamos, a obra Italianos nomundo rural paulista, pela própria disposição do conteúdoem itens e pelo tratamento dado à análise das informações,demonstra a perspectiva masculina do pesquisador.Todavia, a descrição das relações assimétricas entre ossexos e do poder autoritário do chefe da família permitecompor um quadro das relações familiares, das relaçõesde trabalho e dos rituais que conduzem ao casamento. Noentanto, “gênero” não pode ser confundido com a variáveldicotômica “sexo”; “gênero” contém significados evidentesem relações que não são estáticas e nem têm significadouniversal. “Gênero” é o significado que as pessoas dão àrealidade biológica de que existem dois sexos. É umainvenção humana que organiza o nosso comportamentoe pensamento, não como um conjunto de estruturasestáticas ou papéis, mas como um processo contínuo. Aspessoas fazem o “gênero” trabalhar (gender work), atravésde práticas e discursos; elas negociam relacionamentos einteresses em conflito. Conceitualizar “gênero” como umprocesso significa produzir uma perspectiva mais orientadapara a praxis, na qual as identidades de gênero, as relaçõese as ideologias são fluidas e não fixas.110

109 Entre as críticas à teoria daaculturação, podemos apontarpara a pouca atenção concedi-da às relações de poder entre osgrupos que estão em contato.

110 MAHLER e PESSAR, 2006, p. 29-31.

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“Gênero” é um fator fundamental que organiza avida social, e tem atuado desde o início da existênciahumana: um fato que não pode ser afirmado para a maioriadas outras forças sociais estratificadoras, tais como “classesocial” e “raça”. Contudo, “gênero” não pode ser visto eanalisado de forma isolada. Mais do que isso, “gênero” édinâmico e se articula com outros eixos de diferenciação(“classe social”, “raça”, “etnia”, “geração”, “orientaçãosexual”), levando-se em consideração que todas essasdiferenciações sociais compreendem estruturas de poder.111

Essas forças são construções sociais e, portanto, não sãonaturais, categorias inatas ou características. A pesquisaetnográfica feminista permite ver o gênero operando emdiferentes aspectos da migração.112

À guisa de conclusão: retomar a leitura da obraItalianos no mundo rural paulista com os olhos de hoje,dentro da perspectiva dos estudos de gênero, significaapontar a contribuição das pesquisas baseadas na teoriada aculturação e a sua permanência ao longo do tempo,no sentido de fonte de informações e de conhecimentopara os estudos migratórios atuais.

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112 MAHLER e PESSAR, 2006, p. 29.

111 Barrie THORNE, 1992.

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FFFFFeminist Ethnography on International Migration: Feminist Ethnography on International Migration: Feminist Ethnography on International Migration: Feminist Ethnography on International Migration: Feminist Ethnography on International Migration: From Acculturation Studies to Gender Studiesrom Acculturation Studies to Gender Studiesrom Acculturation Studies to Gender Studiesrom Acculturation Studies to Gender Studiesrom Acculturation Studies to Gender StudiesAbstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: This article intends to analyze the book Italianos no mundo rural paulista, by JoãoBaptista Borges Pereira (1974), one of the earliest Brazilian ethnographic international migrationresearches, based on the acculturation theory, in order to corroborate its contribution to thefeminist ethnography. We focus on the use of gender as a central category on the internationalmigration studies, thus empowering the Feminist Ethnography.Key WKey WKey WKey WKey Words:ords:ords:ords:ords: Feminist Ethnography; Gender; Acculturation; International Migration.