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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO NILSON BORGES DA ROCHA JÚNIOR METALINGUAGEM E PROCESSO CRIATIVO: PRODUÇÃO E COAUTORIA DA (O) ESPECTADORA/ESPECTADOR DA OBRA ARTÍSTICA SALVADOR 2018

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA · 2018. 9. 5. · Ramos, Cahê Roberto, Jamile de Jesus e Vânia Cristh. 51 Figura 11 – Comentário de Luiz Carlos Nogueira 53 Figura 12 – Foto

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE TEATRO

CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

NILSON BORGES DA ROCHA JÚNIOR

METALINGUAGEM E PROCESSO CRIATIVO:

PRODUÇÃO E COAUTORIA DA (O) ESPECTADORA/ESPECTADOR DA OBRA

ARTÍSTICA

SALVADOR

2018

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NILSON BORGES DA ROCHA JÚNIOR

METALINGUAGEM E PROCESSO CRIATIVO:

PRODUÇÃO E COAUTORIA DA (O) ESPECTADORA/ESPECTADOR DA OBRA

ARTÍSTICA

Trabalho de conclusão de curso de graduação em Licenciatura

em Artes Cênicas, Escola de Teatro, Universidade Federal da

Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de

Licenciado em Teatro.

Orientadora: Profa. Dra. Ana Flávia Andrade Hamad.

SALVADOR

2018

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NILSON BORGES DA ROCHA JÚNIOR

METALINGUAGEM E PROCESSO CRIATIVO:

PRODUÇÃO E COAUTORIA DA (O) ESPECTADORA/ESPECTADOR DA OBRA

ARTÍSTICA

Trabalho de Conclusão de curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de

Licenciado em Teatro, Escola de Teatro, da Universidade Federal da Bahia.

Aprovado em 31 de julho de 2018

Ana Flávia Andrade Hamad – Orientadora _________________________________________

Doutora em Teatro pela Universidade Federal da Bahia,

Salvador, Bahia, Brasil

Universidade Federal da Bahia

Antonia Pereira Bezerra _______________________________________________________

Doutora em Lettres Modernes pela Université de Toulouse II, Le Mirail

Paris, França

Universidade Federal da Bahia

Paula Alice Baptista Borges____________________________________________________

Doutora em Teatro pela Universidade Federal da Bahia,

Salvador, Bahia, Brasil

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

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À minha bisa (em memória), mãe, vó, tia/madrinha e irmã. As mulheres

mais importantes da minha história.

A toda a humanidade.

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I hope you dont mind that I put down in words.

How wonderful life is, now you´re in the word.

Elton John e Bernie Taupin (1970).

AGRADECIMENTOS, GRATIDÃO

À Deusa e Deus, à pai Oxóssi, à mãe Oxum, à pai Xangô, à mãe Yansã, à pai Oxálá, à mãe

yemanjá. Salve madrinha padilha, pomba gira, Tamanquinha de Prata. Salve padrinho Zé

Pilintra, Tranca Rua, Mavambo, Lasquin Banda. Axé Cosme e Damião, Crispim e Crispiniana,

e Doú. Axé Cabocla Iracema, Cabocla Jurema, Caboclo Pedra Preta, Caboclo Sete Chaves,

Caboclo Tupiaçú, Caboclo Tupinambá. Axé Preta Velha, Preto Velho. Axé Ossaim, Euá,

Omolú, Orinoco e Obaluê;

À mainha, vó, tia/madrinha, irmã Iara Miranda e irmã Paula Lice;

À orientação da mais que querida e linda Vica Hamad;

À essa banca mais que linda: Antônia Pereira e Paula Lice;

A Cahê Roberto, Cajaíba, Célida Salume, Cia Baiana de Patifaria, Daddi Limah, Fábio Viana,

Gil Santana, ao Grupo Dimenti, ao Grupo Vila Vox, Hebe Alves, Harildo Deda, Jamile de Jesus,

Leonardo Teles, Lelo Filho, Luiz Marfuz, Marcelo Souza Brito, Márcio Meirelles, Maria

Eugênia Millet, Marina Ramos, Ramon Reverendo, Riomar Lopes, Vânia Cristh, ao Teatro Vila

Velha, ao Teatro ISBA e as (os) amigas (os) que encontrei lá.

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ROCHA JÚNIOR, Nilson Borges da. Metalinguagem e processo criativo: produção e

coautoria da (o) espectadora/espectador da obra artística. 67f. il. 2018. Trabalho de Conclusão

de Curso (Licenciatura em Teatro) – Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia,

Salvador, 2018.

RESUMO

Essa pesquisa visa investigar o potencial da metalinguagem num processo educacional em artes

cênicas realizado com discentes do curso de Licenciatura em Teatro da UFBA, questionando

opressões linguísticas da nossa sociedade brasileira. Para tanto, eu faço um estudo da linguagem

a partir dos conceitos de Augusto Boal, Guacira Lopes Louro e Michail Bakhtin, discutindo o

seu poder em fixar e manter estruturas desiguais, e revelando-a também enquanto um

instrumento precioso, que não se limita apenas a veicular a história, mas que também faz

história. Em seguida, parto para a investigação da linguagem, especificamente, teatral a partir

de duas perspectivas: (a) a da disponibilização dos seus meios de produção; e (b) a da efetivação

da participação da (o) espectadora/espectador enquanto coautora/coautor da obra artística.

Analiso também a escolha e a aplicabilidade na oficina da adaptação desse plano de

disponibilização, partindo da ideia de que o corpo é o primeiro meio de produção teatral. Faço

também reflexões sobre processo criativo, dialogando o conceito de Cecília Salles com o

processo educacional realizado. E, por fim, analiso a obra artística (a mostra didática) resultado

e parte desse processo, investigando o potencial da metalinguagem, através de conceitos de

Catarina SantAnna e Lionel Abel, e da sua aplicabilidade nos elementos da cena contemporânea

com a proposta da radicalização crítica ao Teatro Épico moderno, fundamentando com Flávio

Desgranges.

Palavras-chave: Teatro/educação. Processo criativo. Metalinguagem. Metateatro.

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ROCHA JÚNIOR, Nilson Borges da. Metalinguagem and creative process: production and

co-authorship of the spectator of the artistic work – School of Theater, Federal University of

Bahia, Salvador, 2018.

ABSTRACT

This research aims to investigate the potential of metalanguage in an educational process in

performing arts conducted with students of the UFBA Theater Degree course, questioning the

linguistic oppressions of our Brazilian society. To do so, I study the language from the concepts

of Augusto Boal, Guacira Lopes Louro and Michail Bakhtin, discussing her power to fix and

maintain unequal structures, and revealing her as a precious instrument, which is not only

limited to tell history, but that also makes history. Then, I start to investigate language,

specifically, theatrical from two perspectives: (a) the availability of its means of production;

and (b) the realization of the participation of the spectator as coauthor of the artistic work. I also

analyze the choice and applicability in the workshop of adapting this rendering plan, starting

from the idea that the body is the first means of theatrical production. I also make reflections

on the creative process, dialoguing the concept of Cecilia Salles with the educational process

carried out. Finally, I analyze the artistic work (the didactic sample) and part of this process,

investigating the potential of metalanguage, through the concepts of Catarina SantAnna and

Lionel Abel, and their applicability in contemporary scene elements with the proposal of the

critical radicalization to the Modern Epic Theater, basing with Flávio Desgranges.

Keywords: Theater/education. Creative process. Metalanguage. Metatheatre.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadro 1 – Paralelos bakhtinianos 16

Figura 1 – Ato comunicacional, Comunicação é tudo 19

Quadro 2 – Pensamentos/ linguagens 21

Figura 2 –

Turma alongando durante a oficina. Da esquerda para a direita,

começando pela discente de camiseta amarela: Daddi Limah,

Jamile de Jesus, Cahê roberto, Marina Ramos e Vânia Cristh

31

Quadro 3 – Plano adaptado para a oficina 33

Figura 3 – Jamile fazendo seu caminho no chão, durante o jogo traçando o

espaço, foto de Nilson Rocha

36

Figura 4 – Caminho de Vânia durante o jogo traçando o espaço 37

Figuras 5 e 6 – Adesivos Dilma Rousseff 40

Figura 7 – O figurino 44

Figura 8 – Marina e Vânia 44

Figura 9 – Jamile, Daddi e Cahê 44

Figura 10 –

Foto registrada durante a apresentação. Da esquerda para a direita

começando pela discente de óculos e braços cruzados: Marina

Ramos, Cahê Roberto, Jamile de Jesus e Vânia Cristh.

51

Figura 11 – Comentário de Luiz Carlos Nogueira 53

Figura 12 – Foto tirada durante a apresentação. Vânia Cristh ao fundo e

sentada no banco, Marina Ramos.

59

Figuras 13 e 14 – Da esquerda para a direita (Figura 8: Marina e Vânia. Figura 9:

Jamile, Daddi e Cahê)

60

Figura 15 – Meta lingua gem 61

Figura 16 –

Foto tirada durante a apresentação da peça.

Da esquerda para a direita: Daddi Limah, Cahê Roberto, Marina

Ramos, Jamile de Jesus e Vânia Cristh.

62

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1 TEATRO E LINGUAGEM 15

1.1 LINGUAGEM 15

1.1.1

Linguagem e língua 15

1.1.2 Linguagem e identidade 21

1.2 TEATRO 24

1.2.1 O Teatro e a produção da obra artística 24

1.2.2 O Teatro e a coautoria da (o) espectadora/espectador da obra artística 26

2 TEATRO E PROCESSO CRIATIVO 29

2.1 UMA EXPERIÊNCIA CRIATIVA TEATRAL 29

2.1.1 O método 31

2.1.2 Etapa 2 33

2.1.3 Etapas 3 e 4 37

2.1.3.1 Os ensaios: o texto e a construção das personagens 38

3 TEATRO E METALINGUAGEM 45

3.1 A PEDAGOGIA CONTEMPORÂNEA DA (O)

ESPECTADORA/ESPECTADOR 45

3.2 A METALINGUAGEM E SEU METATEATRO 47

3.2.1 O recurso da apresentação da realidade como já teatralizada 49

3.2.1.1 A votação do impeachment de Dilma Rousseff 49

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3.2.1.2 A misoginia à Dilma Rousseff 51

3.2.1.3 O preconceito linguístico 51

3.2.2 O recurso da intertextualidade 53

3.2.3 O recurso da obra auto referente 54

4 CONCLUSÕES 61

REFERÊNCIAS 64

APÊNDICE A 66

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INTRODUÇÃO

A apresentação de uma produção escrita no final de um curso universitário faz parte

do ritual acadêmico através do qual o aluno precisa demonstrar a capacidade de

articular discursos teóricos com pesquisas no campo empírico e/ou bibliográfico e, no

entremeio dos mesmos, colocar-se como sujeito que pesquisa, observa o mundo e, a

partir dele, constrói conclusões particulares. Ou seja, é um gênero textual marcado

pela intertextualidade e interdiscursividade explícitas, tratando-se do

dimensionamento de dados objetos com base em textos alheios em diálogo com o

próprio, buscando a construção, ao mesmo tempo, de um corpo que seja coerente

(RIBEIRO, 2013, p. 148).

Antes de tudo é preciso apresentar-me enquanto sujeito nascido numa família com 1

mãe, 9 tias, 2 avós e 1 bisavó; brasileiro; soteropolitano; nordestino; gay; artista, ator;

ervoafetivo1; professor e estudante de teatro; e afrodescendente. Já na infância, eu sentia-me

atraído sexualmente pelo mesmo gênero que o meu e, por isso, carregava uma sensação de

tranquilidade com relação a esta atração. Seguia meu coração apesar de não me relacionar

sexualmente com ninguém, mas desejando. Penso na sexualidade como uma produção e

expressão saudável/afetiva de conhecimento. Durante minha adolescência, sofri bullying

escolar por apresentar comportamentos femininos. Várias foram as vezes em que fui motivos

de violência psicológica e física. Então, aquela tranquilidade comigo mesmo foi cedendo

terreno para a insegurança. Há pouco tempo e durante a terapia, descobri que para atravessar

estas longas fases de discriminação, eu inconscientemente fui sufocando minha expressividade

feminina. Namorei duas melhores amigas de infância a fim de compreender os amores

envolvidos e fui confirmando a legitimidade da minha homossexualidade. Até hoje, tento me

rever, buscando o autoconhecimento, através da minha história, da yoga, da respiração, da

maconha, da linguagem.

De 1997 a 2018. São mais de duas décadas fazendo teatro. Desses 21 anos de teatro, 12

foram vivenciados como ator de comédias nos espetáculos-repertórios da Cia. Baiana de

Patifaria2. A Bofetada foi o primeiro espetáculo teatral que assisti e que me marcou aos 13 anos

(1993), no extinto Teatro Maria Bethânia. O improviso, a interpretação de papéis femininos por

1Atualmente, o termo “maconheiro” carrega culturalmente um significado pejorativo que denigre a imagem das

pessoas que se beneficiam pelo uso regular (seja recreativo, seja medicinal) da maconha. Sendo assim, esse termo

“ervoafetivo” foi criado a fim de re-significar, socialmente, incluindo e não mais marginalizando as (os) usuárias

(os) da erva.

2Companhia de teatro fundada em 1987, com a peça "Abafabanca" que ficou quase um ano em cartaz. Já em 1988, a

segunda montagem do grupo - A Bofetada - tornou-se um sucesso não apenas em Salvador, tendo percorrido em

vinte anos mais de quarenta cidades brasileiras. Entre 1994-98, encenaram, sob direção de Wolf Maia, a

peça Noviças Rebeldes, traduzida do original Nunsense (de Dan Goggin) e, além de fazer turnê nacional, a Cia fez

temporada no circuito off Broadway, em Nova York.

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atores, a participação da plateia, o estilo besteirol3 e o metateatro foram fatores decisivos para

eu sair do teatro com a certeza de que não só queria ser ator como também queria fazer parte

daquela festa que era o espetáculo teatral. 10 anos depois, estava eu estreando a comemoração

dos 15 anos de A Bofetada, no Teatro ACBEU. Era visível o foco de Lelo Filho4 em querer

discutir não só a linguagem teatral, mas também revelar a realidade soteropolitana e brasileira

por detrás das aparências sociais, levando esta peça a já ter sido definida como Teatro Revista5,

por exemplo, pelo ator Marcos Caruso6. A discussão sobre o teatro dentro da peça, revela com

humor e sátira um pouco do seu próprio universo. Por exemplo, no primeiro esquete O

Calcanhar de Aquiles, uma atriz em decadência resolve interpretar sessenta personagens numa

tragédia grega para alavancar sua carreira e tem como convidadas em sua plateia, Vânia Leão,

renomada crítica de teatro, e sua namorada, Dirce Mendonça. Outro exemplo é o segundo

esquete O Ponto e a Atriz, no qual é revelado como antigamente as grandes divas do teatro se

apresentavam com a ajuda não de um ponto eletrônico, mas de um ponto humano que se

escondia da plateia, ficando entre o palco e o público, a fim de dar o texto de forma que só a

atriz ouvisse. O metateatro, a divisão dramática em esquetes, a comédia e a quebra da quarta

parede, por exemplo, serviam como efeitos de distanciamento7 a fim de o público presente não

só se divertir com as piadas, mas também ter consciência crítica sobre a linguagem do teatro e

da realidade. Há desde críticas sobre a educação, através das personagens/professoras Fanta

Maria e Pandora Luzia, a críticas sobre a violência contra mulheres, através da personagem

Helena. Numa curta temporada pelo interior da Bahia, por exemplo, a produção local recebeu

um telefonema de um prefeito vigente na época, pedindo que se conversasse com o elenco a

fim de que o mesmo “pegasse leve” com as críticas à prefeitura.

3Movimento teatral que ganhou força na década de 80. Desprovido de preconceitos, incorporou diversas

referências da cultura brasileira para montar uma caricatura do comportamento cotidiano. O humor anárquico, e o

rompimento com o engajamento e a cultura dita erudita formam seus pilares.

4Único integrante que está desde o surgimento da Cia e que hoje é o representante legal da mesma, dirigindo,

atuando, escrevendo e produzindo.

5Gênero teatral de gosto marcadamente popular que caracteriza-se pela sátira social e política, e que geralmente

constitui-se em esquetes.

6É autor, diretor e ator brasileiro. Autor de telenovelas, peças teatrais e roteiros para cinema. Diretor de teatro e

televisão.

7Esses efeitos são produzidos através de mecanismos e procedimentos do Teatro Épico de Bertold Brecht que

visam distanciar a (o) espectadora/espectador da história que está sendo apresentada, chamando-a (o) à consciência

da linguagem, do gesto social, a fim de que o indivíduo possa questionar, criticar, significar e criar junto com as

(os) artistas.

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A peça mais recente deste repertório, Siricotico – uma comédia do balacobaco, foi

escrita por Lelo Filho e Vinícius de Moraes8 com o intuito de ir mais a fundo nesta discussão

metateatral. A peça narra as aventuras e desventuras de uma cia de teatro que tenta se manter

funcionando numa sociedade do século XVI. Qualquer semelhança entre essa companhia e a

própria Cia Baiana de Patifaria não é mera coincidência. Os autores queriam justamente

compartilhar com a plateia as suas dificuldades em se fazer teatro em Salvador. No Brasil.

Inspirada na característica dramatúrgica da peça O Mistério de Irma Vap9, por conter muitas

personagens a serem interpretadas (os) apenas por dois atores (os quais interpretam papeis de

ambos os sexos), Siricotico também contava, em sua dramaturgia, com quinze personagens a

serem interpretadas (os) apenas por quatro atores. Durante a temporada, foram realizados

sorteios a fim de convidar algumas poucas pessoas a sentarem nas coxias do Teatro ISBA10 e

assistirem dos bastidores, a troca das personagens enquanto a apresentação acontecia. Além

desses dois espetáculos da cia, ainda atuei nos musicais A vaca lelé e Noviças Rebeldes (ambos

versões de 2016), tendo eu ingressado na Cia, através do espetáculo Capitães da Areia, dirigido

por Fernanda Paquelet11 e Lelo Filho.

Em 2012, com meu ingresso no curso de Licenciatura em Teatro pela UFBA, conheci o

artista Augusto Boal12, através do seu livro Teatro do oprimido e outras poéticas políticas, o

qual escolhi ler, a fim de apresentar um seminário para a disciplina História do Teatro, devido

ao seu caráter de contextualização do Teatro no Brasil. Através dessa leitura, fui apresentado

ao conceito do teatro enquanto uma linguagem capaz de constatar, comunicar e transformar a

realidade, e, por isso, uma linguagem que deve ter seus meios de produção disponibilizados e

que também deve ser acessibilizada ao povo a fim de que ele produza culturalmente e

artisticamente. Mas como disponibilizar os meios de produção teatrais? Como tornar sua

8Dramaturgo e diretor formado pela Escola de Teatro da UFBA. Atualmente, escreve com mais outras (os)

autoras/autores os episódio do programa de humor Treme Treme, pro canal fechado MultiShow.

9Peça teatral escrita em dois atos por Charles Ludlam. Aqui no Brasil, tornou-se conhecida como "teatro besteirol,

sendo uma sátira de vários gêneros teatrais e cinematográficos, incluindo melodramas vitorianos, farsa e o

filme Rebecca (1940) de Alfred Hitchcock. O nome Irma Vap é um anagrama para "vampira".

10O Instituto Social da Bahia (ISBA) é um renomado instituto de educação sediado no bairro de Ondina,

em Salvador, Brasil. O Teatro fica situado no subsolo do prédio.

11Diretora, professora/estudante de teatro, produtora, atriz e iluminadora. Foi a convite dela que eu fui fazer o teste

para a peça Capitães da Areia.

12(1931-2009) Foi diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta brasileiro, uma das grandes figuras do teatro

contemporâneo internacional. Fundador do Teatro da (o) Oprimido (a), que alia o teatro à ação social. Suas técnicas

e práticas difundiram-se pelo mundo, de maneira notável nas três últimas décadas do século XX, sendo largamente

empregadas não só por aquelas/aqueles que entendem o teatro como instrumento de emancipação política mas

também nas áreas de educação, saúde mental e no sistema prisional.

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linguagem acessível? Para Boal (2005), o corpo é o primeiro meio de produção teatral e, para

Catarina Santanna (1997), a metalinguagem seria a linguagem que fala da própria linguagem,

isto é, quando o discurso centra-se no código. Sendo assim, pensando no diálogo entre palco e

plateia, crio as seguintes estratégias: (a) para o processo criativo realizado com discentes da

UFBA, eu parto do sistema teatral do Teatro da (o) Oprimida (o) que visa “[...] conhecer o

próprio corpo, para poder depois torná-lo expressivo” (BOAL, 2005, p. 188), através de

exercícios e jogos teatrais; e (b) para o acesso linguístico da (o) espectadora/espectador, no

momento da mostra, eu recorro ao metateatro (a linguagem que fala da linguagem teatral),

dialogando com o conceito de metalinguagem de Catarina Santanna (1997) e com os

procedimentos e mecanismos propostos por Bertold Brecht13 a partir do seu

redimensionamento14 crítico defendido por Desgranges (2010, 2017).

Essa investigação nasce primeiramente do prazer que sinto em decodificar a linguagem

teatral a fim de, apropriando-me dela, ter consciência das minhas reais opções de sua articulação

para falar sobre a vida e para possibilitar o seu acesso para a (o) espectadora/espectador. Para

Desgranges, a concepção e transformação da história – pessoal e coletiva – é um embate que se

efetiva nos terrenos da construção/desconstrução da linguagem. “Assim, apropriar-se da

linguagem é apropriar-se da história, conquistando autonomia para compreendê-la e modificá-

la ao seu modo. Compreender o passado, situar-se no presente e sentir-se capaz de projetar-se

no futuro” (DESGRANGES, 2017, p. 24). A linguagem, desse modo, revela-se instrumento

precioso, não se limitando apenas a veicular a história, mas também fazendo história.

Em seguida, essa investigação nasce da urgência em se discutir o poder que qualquer

linguagem tem de fixar e manter estruturas desiguais. Por isso, a opção em seguir as ideias de

Augusto Boal e Bertold Brecht, tendo em vista que eles propõem, através da linguagem, romper

com as desigualdades, lutando por humanidade e pretendendo fazer um teatro que faça refletir

e não iludir.

13(1898-1956) Foi um destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Seus trabalhos artísticos e

teóricos (o seu teatro épico) influenciaram profundamente o teatro contemporâneo. Sua praxis é uma síntese dos

experimentos teatrais de Piscator e Meyerhold, do conceito de estranhamento do formalista russo Viktor Chklovski

e do teatro chinês. Seu trabalho como artista concentrou-se na crítica ao desenvolvimento das relações humanas

no sistema capitalista.

14Durante a escrita dessa monografia, fui compreendendo que, na verdade, eu não estava aplicando procedimentos

do Teatro Épico moderno, mas sim sua radicalização. Ao tentar compreender o que poderia ser esse

redimensionamento, peguei como referência a mostra didática “Meta Lingua Gem” e percebi que em alguns

momentos, essa radicalização épica moderna já acontecia como passo a explicar melhor no capítulo 3, dessa

monografia.

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Sendo assim, o propósito desta monografia é o de investigar o potencial da

metalinguagem num processo educacional em artes cênicas, questionando opressões

linguísticas da nossa sociedade brasileira. Na seção 1 – Teatro e Linguagem –, eu faço um

estudo da linguagem a partir dos conceitos de Augusto Boal, Guacira Lopes Louro15 e Michail

Bakhtin16. Em seguida, debruço-me sobre a linguagem especificamente teatral, partindo de

conceitos que discutam-na pela perspectiva: (a) da disponibilização dos seus meios de

produção; e (b) da efetivação da (o) espectadora/espectador como cocriadora/criador da obra

artística.

Na seção 2 – Teatro e processo criativo - analiso a escolha e a aplicabilidade na oficina

da adaptação do plano geral da conversão da (o) espectadora/espectador em atriz/ator, do

Teatro da (o) Oprimida (o), partindo da ideia de que o corpo, por ser o primeiro meio de

produção teatral a ser disponibilizado, deve tornar-se consciente para, em seguida, tornar-se

expressivo. Faço também reflexões sobre processo criativo, dialogando o conceito de Cecília

Salles17 com o processo realizado.

No seção 3 – Teatro e metalinguagem – analiso a obra artística (a mostra didática),

investigando o potencial da metalinguagem, através de conceitos de Catarina SantAnna e Lionel

Abel, e da sua aplicabilidade nos elementos da cena contemporânea, fundamentando com

Flávio Desgranges18.

Na conclusão, falo sobre aonde cheguei na pesquisa, o que a prática me fez perceber

associando ao estudo teórico, o que deu e não deu certo, e apresento algumas perspectivas

futuras.

15Doutora em Educação, professora titular aposentada da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul e pesquisadora do CNPq. Coordena o GEERGE (Grupo de Estudos de Educação e Relações de

Gênero) desde 1990 e tem publicado vários artigos nessa perspectiva. É autora do livro Prendas e antiprendas -

uma escola de mulheres (Porto Alegre, Editora da Universidade, 1987.

16(1895- 1975) Filósofo e pensador russo, teórico da cultura europeia e das artes.

17Doutora em Lingüística Aplicada e Estudos de Línguas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde

atualmente ministra aulas do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica.

18Professor da graduação e da pós-graduação do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Santa Catarina

(UDESC) desde 2015. É também autor dos livros: "A Pedagogia do Espectador", "Pedagogia do Teatro: provocação e

dialogismo", "A Inversão da Olhadela: alterações no ato do espectador teatral", "O Ato do Espectador: perspectivas artísticas e

pedagógicas (org.)" e "Teatro e Vida Pública: o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo ".

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15

1 TEATRO E LINGUAGEM

Para investigar a metalinguagem enquanto procedimento para o acesso linguístico, eu

começo buscando compreender o que é a linguagem. Sendo assim, recorro ao conceito de

Bakhtin (2006) que toma como objeto de investigação, a língua, contrapondo com o conceito

de Boal (2005) de que “todos os idiomas são linguagem, mas nem todas as linguagens são

idiomáticas!”19 (BOAL, 2005, p. 180). Aqui, apresento a linguagem a partir da interação social

(verbal e/ou não-verbal), constituída de tema, significação e valor ideológico, sendo capaz de

constatar, comunicar e transformar a realidade. Para fechar este ciclo da linguagem, apresento

o conceito de Guacira Louro (2003), através do recorte da linguagem enquanto uma ação que

“não apenas expressa relações, poderes, lugares”, mas que também “os institui [...] produz e

pretende fixar diferenças” (LOURO, 2003, p. 65, grifo meu). Em seguida, neste mesmo

capítulo, após investigar esse possível conceito articulado sobre a linguagem, eu específico

minha investigação, na linguagem teatral, a partir de duas perspectivas: (a) a da disponibilização

dos seus meios de produção; e (b) a da efetivação da participação da (o) espectadora/espectador.

1.1 LINGUAGEM

1.1.1 Linguagem e língua

O mergulho na corrente viva da linguagem acende também a vontade de lançar um

olhar interpretativo para a vida, exercitando a capacidade de compreendê-la de

maneira própria. Podemos conceber, assim, que a tomada de consciência se efetiva

como leitura de mundo. Apropriar-se da linguagem é ganhar condições para essa

leitura (DESGRANGES, 2017, p. 23).

Ao conceituar a linguagem, Michail Bakhtin (2006) toma como objeto de investigação

a língua, pois que, para ele, a linguagem é mais difícil de ser sistematizada uma vez que ela

varia de pessoa para pessoa enquanto que a língua é mais fácil de ser convencionada a partir de

certas leis, mesmo que essas leis variem e mudem de época em época. Para ele, “a palavra está

presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” (BAKHTIN,

2006, p. 36). Ou seja, mesmo que uma interação social seja do tipo não-verbal – como as leis

de trânsito ou a LIBRAS, por exemplo – ela se apoiará na palavra, na língua.

19Eu recorro ao conceito de linguagem de Bakhtin (2006), mas concordando com Boal (2005), nessa citação.

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16

Tendo definido a língua enquanto objeto, Bakhtin (2006) encontra-se diante de duas

categorias opostas: o subjetivismo individualista e o objetivismo abstrato. Mais do que

identificar quais das duas orientações é a mais correta, ele traça paralelos a fim de encontrar o

seu próprio entendimento sobre o tema.

Quadro 1 – Paralelos bakhtinianos

Subjetivismo idealista Objetivismo abstrato Michail Bakhtin

A língua tem origem no interior

do indivíduo, partindo do

interior para o exterior do

sujeito.

A língua tem origem no próprio

sistema linguístico, partindo do

exterior para o interior do

sujeito, sem levar em

consideração esses mesmos

sujeitos.

A língua tem origem na

interação verbal (nas relações

entre os sujeitos), negando,

desse modo, que sua origem se

dê ou no interior do indivíduo ou

no sistema linguístico.

O fator social não interfere na

fala e o modo como o sujeito se

expressa está relacionado com a

sua capacidade de pensar.

O fator social interfere na fala e

o modo como o sujeito se

expressa está relacionado com o

sistema linguístico pronto que o

indivíduo recebe passivamente,

da sua comunidade, no qual ele

não pode interferir

conscientemente.

O fator social interfere na fala e

o modo como o sujeito se

expressa está relacionado com a

sua capacidade de pensar e de

intervir no sistema linguístico.

A fala individual (o monólogo)

serve como objeto de estudo da

língua.

A fala (nem o monólogo nem o

diálogo) não serve como objeto

de estudo da língua por se

constituir de elementos

assistemáticos e ilimitados.

A fala social (o diálogo) serve

como objeto de estudo da língua,

pois uma palavra só pode ser

compreendida quando

considerada seu contexto real de

uso.

A língua é uma criação

ininterrupta cuja evolução se dá

de modo autônomo e ilimitado.

A língua é um sistema imóvel e

acabado.

A língua como sistema estável

de formas normativamente

idênticas é apenas uma abstração

científica que só pode servir a

certos fins didáticos. Essa

abstração não dá conta de

maneira adequada da realidade

concreta da língua.

A criação da língua é uma

criação significativa, análoga à

criação artística.

A criação da língua nada têm a

ver com valores ideológicos

(artísticos, cognitivos ou outros).

Não se encontra, na base dos

fatos linguísticos, nenhum motor

ideológico. Entre a palavra e seu

sentido não existe vínculo

natural e compreensível para a

consciência, nem vínculo

artístico.

A criação da língua não coincide

com a criação artística nem com

qualquer outra forma de criação

ideológica específica. Mas, ao

mesmo tempo, a criação da

língua não pode ser

compreendida

independentemente dos

conteúdos e valores ideológicos

que a ela se ligam.

Fonte: adaptado de Baktin (2006).

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No quadro 1, para Bakhtin (2006), a língua deve ser estudada a partir da enunciação (na

fala social ou diálogo). Sendo assim, o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato deixam

de abordar aspectos importantes da linguagem. Ao darem ênfase ou só ao individual ou somente

ao estrutural, negligenciaram a interação verbal, segundo Bakhtin (2006). Desta maneira, para

se observar este fenômeno da linguagem, é preciso que os sujeitos – emissora/emissor e

receptora/receptor – estejam situados numa situação social imediata de terreno bem definido,

pertencendo a uma mesma comunidade linguística20, a uma sociedade claramente organizada.

Ou seja, esta unicidade do meio social e a do contexto social imediato são pré-requisitos para

que a atividade mental possa ser vinculada à língua, à fala, para, então, constituir-se em

linguagem.

Ainda segundo Bakhtin (2006), todo enunciado é sempre considerado do ponto de vista

de uma/um falante em relação necessária com a (o) ouvinte. Assim, temos três elementos que

constituem a enunciação: o tema, a significação e o valor apreciativo. A enunciação e seu tema

são individuais e não reiteráveis. O tema é “a expressão de uma situação histórica concreta que

deu origem à enunciação. Apenas o tema significa de maneira determinada.

A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não

está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor

produzido através do material de um determinado complexo sonoro. É como uma

faísca elétrica que só se produz quando há contato dos dois polos opostos. Aqueles

que ignoram o tema (que só é acessível a um ato de compreensão ativa e responsiva)

e que, procurando definir o sentido de uma palavra, atingem o seu valor inferior,

sempre estável e idêntico a si mesmo, é como se quisessem acender uma lâmpada

depois de terem cortado a corrente. Só a corrente da comunicação verbal fornece à

palavra a luz da sua significação. (BAKHTIN, 2006, p. 135).

Para Bakhtin (2006), a significação não quer dizer nada em si mesma, ela é apenas um

potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto. Assim, a

significação estará para além da palavra dicionarizada, ou seja, uma mesma palavra pode ter

significados diferentes em situações temáticas diferentes. Ainda para Bakhtin (2006), as

palavras e orações, enquanto um sistema da língua, são desprovidas de entonação expressiva,

pois, nesse caso, estamos diante de palavras e orações isoladas. No entanto, elas adquirem

sentido concreto quando se integram a uma determinada realidade concreta, em condições reais

de comunicação.

20Uma mesma comunidade linguística é aquela na qual suas/seus integrantes falam a mesma língua, o mesmo

idioma.

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“Toda palavra usada na fala real possui não apenas tema e significação no sentido

objetivo, de conteúdo, desses termos, mas também um acento de valor ou apreciativo”

(BAKHTIN, 2006, p. 135). Apresentando sempre uma dimensão avaliativa e expressando um

posicionamento social, não existe enunciado não ideológico para Bakhtin, não sendo palavras

o que comunicamos ou compreendemos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más,

importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. Para ele, toda (o) falante termina seu

enunciado para passar a palavra à (ao) outra (o) ou dar lugar a sua reação-resposta, que é um

ato de valoração sobre o enunciado. Essa noção de valoração é de base ideológica, o que nos

leva à necessidade de compreensão do conceito de ideologia e sua relação com a linguagem.

Para Bakhtin (2006), por ideologia, entende-se a totalidade das reflexões e

interpretações da realidade social e natural que acontecem no cérebro do ser humano,

materializada por meio de palavras, desenhos, diagramas ou outras formas simbólicas21. Ela é

compreendida como a expressão de uma tomada de posição determinada, que carrega uma

significação social e, mais precisamente, uma significação de classe, não podendo ser, portanto,

reduzida às particularidades da consciência e do psiquismo, tendo sempre dois lados.

A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima

das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de

valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente [...] Nas condições habituais

da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à

descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre

um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente

dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje

em dia. (BAKHTIN, 2006, p. 46).

Um exemplo desse apagamento/ocultamento da plurivalência do signo ideológico, a fim

de se observar essa imposição monovalente, pode ser visto no que se refere à concepção da

língua, pelos grupos hegemônicos, enquanto uma estrutura ideologicamente

unificante/homogênea, que busca apagar a concepção ideológica da língua enquanto também

uma estrutura variável/heterogênea.

21Concordando com Boal (2005), eu acredito que a ideologia também pode ser materializada de outras formas que

não só as simbólicas. As sensíveis, por exemplo, que explico melhor mais adiante.

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Figura 1 – Ato comunicacional, Comunicação é tudo

Fonte: ATO..., 2016

Guacira Louro (2003) defende que a linguagem demarca e institui desigualdades, por

exemplo, através de associações e analogias feitas entre determinadas qualidades, atributos ou

comportamentos. Tomemos como exemplo, a Figura 1. É importante ressaltar que as sociedades

indígenas produzem suas próprias línguas e não necessariamente precisam ou devem ser

bilíngues. A língua portuguesa é estranha a essa sociedade assim como as próprias línguas

indígenas nos são. Segundo a imagem, aquelas/aqueles que não utilizam o pronome “eu” de

maneira “correta” se não são burras (os) é porque são índias (os). Aqui, os bons atributos assim

como as boas qualidades parecem estar associadas ao “falar corretamente” a língua portuguesa

das gramáticas. Sendo assim, uma relação de opressão linguística está sendo construída

socialmente na medida em que a escrita ou a oralidade são utilizadas enquanto dominação de

quem sabe seguir as regras gramaticais sobre quem não as sabe.

Nesse campo, a ação específica das escolas contribuirá para uma tentativa de impor

as características uniformes e uniformizantes das culturas dominantes, em detrimento

da heterogeneidade das culturas populares, fator que acaba por contribuir para a

desvalorização (quando não negação), por um lado, da experiência no campo da

aprendizagem e, por outro, das culturas populares que sempre tiveram na primeira a

base de seus processos de construção do saber e de relações (GRIGNON, 2003). Ora,

as culturas dominantes se tornam eminentes arautos da escrita e de todos os benefícios

para a modernização que esta supostamente constrói e a escola também (RIBEIRO,

2014, p. 86).

Essa discussão em torno da língua “correta” tem como público-alvo pessoas que não

puderam estudar na “idade certa”, ou seja, pessoas que na sua grande maioria, pertencem às

camadas mais pobres da população. Para Freire (1998), uma das formas de trazer de volta a

escolarização formal dessa parcela da população deveria consistir em valorizar a sua cultura, o

que, evidentemente, inclui a discussão da legitimidade e gramaticalidade dos falares populares,

constitutivos de sua identidade. Porém, essa variação e heterogeneidade de fenômenos

intrínsecos à existência de uma língua passam a ser concebidas e valoradas como erros. A

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plurivalência do signo, no caso, da variação social, é apagada em favor da língua única, por um

processo de naturalização desse apagamento.

Essa imposição de uma ideologia única a respeito da língua também pode ser encontrada

quando Bakhtin afirma que toda linguagem é língua. Se para ele, linguagem é língua e vice-

versa, para Augusto Boal, “é importante compreender que todos os idiomas são linguagem, mas

nem todas as linguagens são idiomáticas! Existem muitas linguagens além de todas as línguas

faladas e escritas”22 (BOAL, 2005, p. 180). Mas eles também concordam, por exemplo, quando

afirmam que a interação social (carregada de tema, significação e ideologia) é o aspecto central

para a compreensão da linguagem, constatando, comunicando e transformando a realidade.

Segundo Augusto Boal, a partir do nascimento, a (o) bebê vai conhecendo o mundo,

registrando sensações “[...] pelo prazer e pela dor... ainda que seja o prazer da dor, ou a dor do

prazer: todas provocam, ou são, prazer e dor” (BOAL, 2009, p. 58), que deverá estruturar e

fixar algumas dessas sensações repetidas, as quais servirão de paradigma para estruturar as

próximas que virão. Essas mesmas sensações receberão e produzirão emoções específicas em

momentos precisos, constituindo-se em memória, que, em sua interação e conversão em atos,

são pensamentos sem palavras – Pensamento Sensível. Ainda segundo Boal, com o

desenvolvimento das suas faculdades motoras, a (o) bebê aprende que, além de

conhecer/perceber o mundo, ela/ele também pode associar-se a ele – sente o cheiro de leite e

busca o seio - e transformá-lo – “brincando com peças de madeira, a criança organiza esculturas

como, mais tarde, com palavras, organizará ideias e falas” (BOAL, 2009, p. 61).

Para Boal (2009), o indivíduo, por ser de natureza social, não é constituído de nenhum

conhecimento a priori e, desde o ventre da sua mãe, já recebe informações através dos seus

sentidos. Em outras palavras, a cultura habita o sistema nervoso de cada uma/um de nós. Para

ele, esta atividade subjetiva do indivíduo é constituída pelos pensamentos sensível e simbólico,

sendo ambos formas do indivíduo se relacionar com o mundo e, portanto, linguagens, que,

quando unidas, percebem de forma mais completa a realidade.

22Em seu livro ‘A Estética do Oprimido”, o Pensamento Sensível é uma forma de pensamento não-verbal,

particular e pessoal enquanto objeto de sensibilidade e geral enquanto objeto de entendimento. Para que haja

entendimento, o Pensamento Sensível se apoiará nas palavras (o Pensamento Simbólico) que o expandirão ou o

delimitarão, mas ainda assim apoiado em palavras será Pensamento Sensível, pois esse entendimento dar-se-á ou

pela forma como serão pronunciadas as palavras ou pela sintaxe das palavras escritas. Ou seja, as formas de

manifestação da língua são de natureza sensível e “afirmo que o ato de pensar com palavras tem início nas

sensações e, sem elas, não existiria, embora delas se desprenda e se autonomize até à sua mais total abstração”

(BOAL, 2009, p. 27).

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21

Nas linguagens simbólicas, os significantes estão dissociados dos significados; nas

sinaléticas, significantes e significados são inseparáveis. Se uma pessoa diz “Eu te

amo”, essa frase se refere ao amor, mas não é amor. Se apenas olhar a pessoa amada,

seu olhar é amor, mesmo que não o diga. (BOAL, 2009, p. 69).

Quadro 2 - Pensamentos/ linguagens

Estética (Sinalética) Simbólica

Percepção imediata das sensações Lenta compreensão dos símbolos devido à

necessidade de decodificação

Sinal23 Símbolo

Cognitiva (é o conhecimento em si) Informativa (transporta o conhecimento)

Música, teatro, pintura, etc. As línguas, LIBRAS, gestos convencionados, etc.

Fonte: idealizada pelo autor

Segundo Boal (2009), o Pensamento Sensível ou as linguagens estéticas são

responsáveis pelas nossas ações que, transformando as pessoas envolvidas, traduzir-se-ão em

palavras ou não, Pensamento Simbólico ou linguagens simbólicas.

1.1.2 Linguagem e identidade

Para Guacira Louro (2003), “[...] a função expressiva não pode ser separada da atividade

mental sem que se altere a própria natureza desta” (BAKHTIN, 2006, p. 50-51). Sendo assim,

os sujeitos são, ao mesmo tempo, homens ou mulheres ou andróginos24, de determinada etnia,

classe, sexualidade, nacionalidade, e que “essas múltiplas identidades não podem, no entanto,

ser percebidas como se fossem camadas que se sobrepõem umas às outras” (LOURO, 2003, p.

51). Mas sim identidades produzidas nas e pelas relações de poder, que interagindo entre si, em

movimento criador, estão em constante construção, não sendo dadas, portanto, como

finalizadas, num determinado momento.

É indispensável que reconheçamos que a escola não apenas reproduz ou reflete essas

identidades que circulam na sociedade, mas que ela própria as produz, buscando imprimir sua

"marca distintiva" sobre os sujeitos, através de múltiplos e discretos mecanismos. Para Louro

(2003), através de símbolos, códigos, espaços e arranjos arquitetônicos, a escola impõe o que

23Estímulo sensorial (som, imagem, etc.) convencionado entre pessoas e de conclusão imediata, que carrega um

significado preciso, limitado: isto quer dizer aquilo! É uma advertência. Já o símbolo, também convencionado,

não tem limites (linguagem simbólica).

24Inclusão minha.

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cada indivíduo pode ou não fazer, separa as meninas dos meninos, escolhe quem é melhor ou

pior e aponta modelos de comportamento, por exemplo. Desde o modo de sentar e andar até as

formas de colocar cadernos e canetas, os pés e as mãos, os indivíduos vão tendo seus corpos e

suas mentes escolarizadas (os) e distinguidas (os) de maneira a definir os papéis que cada

menino e menina, branca (o) e negra (o) ocupará também na sociedade.

Acho que a escola é o ambiente onde a gente tem que tá mais atento, sabe? Tipo, eu,

durante muito tempo, na minha vida, eu achei que a minha pele era feia, que o meu

cabelo crespo era feio e que eu não devia ir pro mundo, sabe? Tipo, eu entrava na

escola, na primeira semana, da escola, eu queria sentar lá no fundo. Queria ser

invisível, queria que ninguém me visse. Porque aquele ambiente era agressivo pra

mim. Toda hora ia aparecer uma piadinha com meu cabelo. Ali é o momento, onde

uma criança preta, ela tipo tem um primeiro baque de tipo assim, ela é marcada como

diferente! (Emicida)25.

Biologicamente, a natureza é diferente, é diversa. As espécies constituem-se em

particularidades e cada ser de uma determinada espécie também. Ou seja, assim como há uma

rica distinção entre as espécies, há também entre seres da mesma espécie. Quando Jair

Bolsonaro26, numa entrevista à Luciana Gimenez27, afirma que a mulher precisa ganhar menos

profissionalmente do que o homem porque ela e ele são diferentes, ele está significando, nesta

situação, que ser diferente é ser desigual, consagrando, assim, a ideia de que o feminino é um

desvio construído a partir do masculino. Mesmo que biologicamente a mulher e o homem sejam

diferentes, quem nomeia a desigualdade não é a biologia (que nomeia, sim, a diversidade), mas

o ser humano constituído por uma cultura historicamente machista.

Essa nomeação desigual certamente também pode ser observada em relação a outras

distinções sociais. Ainda segundo Guacira Louro (2003), e, em seu livro Gênero, sexualidade

e educação – uma perspectiva pós-estruturalista, a autora revela como a adjetivação no título

de um livro de história da 5a. série - "Selvagens e civilizados: Na época dos descobrimentos" -

privilegia as(os) “portuguesas/portugueses civilizadas (os)” em detrimento das (os) “índias (os)

selvagens” (2003) assim como visa justificar a própria colonização e a violência com as quais

essas/esses índias (os) foram convencidas (os) da superioridade portuguesa.

Saber quem define a diferença, quem é considerada a (o) diferente e o que significa ser

diferente é importante quando Guacira Louro (2003) afirma que não há motivos para se lutar

25 Trecho de entrevista de Emicida, intelectual brasileiro, artista performer de rap, retirado de uma entrevista

socializada no youTube.com, mas infelizmente retirado do ar. 26Militar da reserva e político brasileiro.

27Apresentadora do programa de TV Superpop, apresentado pela Rede TV!. Esse trecho da entrevista pode ser

acessado em https://www.youtube.com/watch?v=lZZisKgrtWY.

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por igualdades entre sujeitos idênticos. O conceito de igualdade supõe as diferenças, inclusive,

entre os homens e entre as mulheres por serem heterossexuais, bissexuais, homossexuais,

negras (os), brancas (os), etc. Assim, reivindicar seria pela igualdade entre sujeitos

equivalentes. Os indivíduos são diferentes, mas não desiguais.

Para Guacira Louro (2003), precisamos estar atentas (os), sobretudo, para nossa

linguagem, procurando perceber o sexismo, o racismo e o etnocentrismo que ela

frequentemente carrega e institui. A conformidade com as tradicionais regras linguísticas pode

impedir que observemos, por exemplo, que a palavra “homem” serve tanto para designar o

masculino quanto o feminino. Ela conceitua toda a humanidade. Assim, a sua “natural” prática

cotidiana esconde o ocultamento do gênero feminino, por exemplo. Como uma mulher sentir-

se-á inclusa nessa palavra? Através do ocultamento que a palavra “homem” encerra sobre a

mulher, abrem-se perspectivas de foco ao que não é dito como forma de se evitar identificações.

Provavelmente nada é mais exemplar disso do que o ocultamento ou a negação dos/as

homossexuais — e da homossexualidade — pela escola. Ao não se falar a respeito

deles e delas, talvez se pretenda "eliminá-los/as", ou, pelo menos, se pretenda evitar

que os alunos e as alunas "normais" os/as conheçam e possam desejá-los/as. Aqui o

silenciamento — a ausência da fala —aparece como uma espécie de garantia da

"norma". A ignorância (chamada, por alguns, de inocência) é vista como a

mantenedora dos valores ou dos comportamentos "bons" e confiáveis. A negação

dos/as homossexuais no espaço legitimado da sala de aula acaba por confiná-los às

"gozações" e aos "insultos" dos recreios e dos jogos, fazendo com que, deste modo,

jovens gays e lésbicas só possam se reconhecer como desviantes, indesejados ou

ridículos (LOURO, 2003, p. 67-68).

Se a escola fabrica indivíduos a partir de um valor hegemônico (heteronormativo-

patriarcal-branco-cristão) é porque alguém, com esses mesmos valores, pensou-a assim. Para

poder cumprir com seu papel doutrinário, é preciso que haja professoras/professores também

muito disciplinadas (os) a fim de servirem como modelos de comportamento e poderem corrigir

os comportamentos desviantes.

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1.2 TEATRO

Tendo apresentado e articulado os conceitos de linguagem, começo, agora, a falar

especificamente sobre a linguagem teatral, a partir de conceitos que discutam-na: (a) pela

perspectiva da disponibilização dos seus meios de produção, e (b) pela perspectiva da efetivação

da (o) espectadora/espectador como cocriadora/criador da obra artística. Para falar do teatro,

pela perspectiva da disponibilização, eu recorro ao conceito de Augusto Boal (2005) acerca do

corpo ser o primeiro meio de produção teatral a ser disponibilizado. Para tanto, apresento o

plano geral da conversão do (a) espectador (a) em ator/atriz, para no capítulo 2, apresentar

esse plano adaptado e aplicado enquanto método do processo criativo28. Para falar do teatro,

pela perspectiva da efetivação da participação da (o) espectadora/espectador, eu recorro aos

conceitos de Flávio Desgranges (2017), Augusto Boal (2005), Lionel Abel29 (1968) e Gerd

Bornheim30 (1992) sobre o Teatro Épico brechtiano.

1.2.1 O Teatro e a produção artística

Para Boal (2005), a realidade só é possível de ser conhecida, comunicada e transformada

através das linguagens. Assim, quanto mais linguagens o indivíduo dominar, mais potente será

suas capacidades em conhecer, comunicar e transformar a realidade. Mas como dominar uma

linguagem? Como dominar, mais especificamente, a linguagem teatral?

Qual seria a velha maneira de se utilizar a fotografia num plano de alfabetização? Sem

dúvida, seria fotografar coisa [...]. Quem tiraria as fotos? Os alfabetizadores [...]. Mas

quando se trata de entregar ao povo os meios de produção, deve-se entregar, neste

caso, a máquina fotográfica [...]. Entregava-se uma máquina às pessoas do grupo que

se estava alfabetizando, ensinava-se a utilizá-la, e se faziam propostas: “[...] nós

vamos perguntar coisas na língua castelhana, que é uma linguagem. E vocês vão nos

responder em fotografia, que também é uma linguagem” (BOAL, 2005, p. 183).

Ora, se os meios de produção da fotografia estão constituídos pela máquina fotográfica,

os meios de produção teatrais estarão constituídos pelo próprio ser humano. Então, para

dominar esses meios de produção teatral, deve-se: a) Conhecer o próprio corpo; b) Tornar esse

28O processo criativo realizado com discentes do Curso de licenciatura em teatro da UFBA, para a escrita desta

monografia.

29(1910-2001) Dramaturgo, ensaísta e crítico de teatro judeu-americano. Mais conhecido por cunhar o

termo metateatro em seu livro de mesmo título.

30(1929-2002) Foi um filósofo, professor e crítico de teatro brasileiro.

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25

corpo mais expressivo e c) Praticar formas teatrais que ajudem o indivíduo a liberar-se de sua

condição de espectadora/espectador, assumindo a de atriz/ ator. Ainda segundo Boal (2005),

esse plano geral da conversão da (o) espectador/espectador em atriz/ator foi sistematizado,

em seu livro “Teatro do oprimido e outras poéticas políticas”, em quatro etapas:

ETAPA I (conhecimento do corpo): Sequência de exercícios em que se começa a conhecer o

próprio corpo, suas limitações e suas possibilidades, suas deformações sociais e suas

possibilidades de recuperação.

ETAPA II (tornar o corpo expressivo): Sequência de jogos em que cada pessoa começa a se

expressar unicamente através do corpo, abandonando outras formas de expressão mais usuais e

cotidianas como a palavra, por exemplo.

ETAPA III (teatro como linguagem): As duas etapas anteriores são preparatórias, focando na

pesquisa da (o) participante com seu próprio corpo, enquanto esta terceira foca no tema a ser

discutido, promovendo o passo da (o) espectadora/espectador à ação dramática. Trata-se de

estimular a (o) espectadora/espectador a se dispor a intervir na ação dramática, deixando de ser

objeto (testemunha) e passando a ser sujeito (protagonista). Há três caminhos propostos por

Boal que trabalham graus diferentes e progressivos de participação direta da (o)

espectadora/espectador no espetáculo teatral, que são: dramaturgia simultânea, Teatro-

Imagem31 e Teatro-Fórum32.

Primeiro Grau (dramaturgia simultânea): as (os) espectadoras/espectadores “escrevem”,

simultaneamente com as (os) atrizes/atores que representam.

Segundo Grau (Teatro-Imagem): as (os) espectadoras/espectadores intervêm diretamente,

“falando” através de imagens feitas com os corpos das (os) demais atrizes/atores ou

participantes.

Terceiro Grau (Teatro-Fórum): os (as) espectadores/espectadoras são convidadas (os) a entrar

em cena. Intervindo diretamente na ação dramática, substituem as (os) atrizes/atores e

representam atuando, revelando estratégias e soluções inventadas por elas/eles mesmas (os), e

ensaiando, assim, ações sociais concretas e continuadas com o objetivo maior de intervenção

na realidade.

ETAPA IV (teatro como discurso): Todas as formas teatrais apresentadas nas etapas anteriores

são experiências inacabadas. Mas nada do que já foi discutido impede que um público popular

31Aqui, a palavra é dispensada (sem seu detrimento) para que se desenvolvam outras formas de percepção.

32Surgiu de uma sessão de dramaturgia simultânea. Uma espectadora, não conseguindo fazer com que a atriz

entendesse o que ela queria sugerir, ficou tão indignada que Boal pediu que ela subisse ao palco e assim surgiu o

fórum.

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também pratique formas acabadas. Algumas dessas formas são: teatro-jornal33, teatro-

invisível34, teatro-fotonovela, quebra de repressão, teatro-mito, teatro-julgamento e rituais e

máscaras.

É válido ressaltar que esse plano geral da conversão da (o) espectador/espectador em

atriz/ator foi adaptado e aplicado enquanto método do processo criativo, analisado no capítulo

2.

1.2.2 O Teatro e a coautoria da (o) espectadora/espectador da obra artística

Afastei-me da janela, sentei-me em um dos bancos próximos e me ative à reação das

pessoas, à relação que estabeleciam com a paisagem que surgia pela vidraça, enquanto

pensava na faculdade da arte de nos sensibilizar, em como a contemplação daquela

sequência de quadros havia provavelmente estimulado os visitantes a lançar um olhar

estetizado para o mundo lá fora, em como a relação com as obras propiciava, ainda

que por instantes, que os contempladores fruíssem a existência como uma experiência

artística (DESGRANGES, 2017, p. 27).

Em seu livro Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo, Desgranges (2017)

também analisa o pensamento bakhtiniano a respeito da relação da (o) espectadora/espectador

com a obra artística, a partir de uma compreensão pedagógica35. Segundo Desgranges (2017),

esse pensamento pedagógico define o ato estético da seguinte forma: num primeiro momento,

a (o) espectadora/espectador capta a obra pela perspectiva da (o) autora/autor. Em seguida,

provocada (o) a distanciar-se36 da obra, essa/esse espectadora/espectador recorre à sua própria

experiência pessoal, e confrontando aspectos da sua história de vida com a narrativa teatral,

“choca os ovos da experiência” (DESGRANGES, 2017, p. 24), fazendo deles nascer o

pensamento crítico. Assim, essa/esse espectadora/espectador elabora reflexivamente

conhecimentos tanto sobre o próprio fazer artístico-teatral, quanto acerca de aspectos relevantes

da vida social e da sua própria trajetória enquanto indivíduo.

33Aqui, doze técnicas de transformação de textos jornalísticos em cenas teatrais servem para revelar a

imparcialidade intencional dos meios de comunicação: o jornalismo reflete as ideologias das (os) suas/seus

proprietárias (os).

34Acontece em lugares onde sua trama poderia acontecer ou já aconteceu, mas de forma não revelada, ou seja, o

público de transeuntes não sabe que ali está acontecendo uma encenação teatral. Mas essas/esses transeuntes

podem intervir juntamente com as (os) atrizes/atores a qualquer momento e buscando soluções para os problemas

ali discutidos.

35Essa compreensão pedagógica foi adotada na apresentação da mostra didática, através da aplicação de

procedimentos e mecanismos que efetivassem o diálogo entre plateia e palco, que passo a explicar melhor, no

capítulo 3.

36Efeitos de distanciamento como a metalinguagem e a interrupção da ação dramática, por exemplo, aplicados na

mostra.

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Na linguagem teatral, uma narrativa é apresentada, através dos vários elementos de

significação: o texto, os gestuais, os figurinos, etc. Um mergulho, nesta linguagem, provoca a

(o) espectadora/espectador a perceber, decodificar e interpretar, singularmente, esses mesmos

variados signos. Sendo assim, para que a (o) espectadora/espectador possa participar

efetivamente na cocriação de uma obra de arte teatral, segundo Desgranges (2010; 2017), é

preciso que essa (o) espectadora/espectador esteja familiarizada (o) com essa linguagem. Desta

forma, a efetivação da sua participação, ainda para Desgranges (2010; 2017), não se dá somente

através do acesso físico37, mas também do linguístico38, tendo sido adotado por mim, nesta

pesquisa, o recurso da metalinguagem39 (mais especificamente, o metateatro) como

possibilidade de acessar linguisticamente essa/esse espectadora/espectador.

Ainda segundo Desgranges (2017), essa democratização dos elementos da linguagem

teatral, a fim de efetivar a coautoria da (o) espectadora/espectador no jogo linguístico, ressalta

a necessidade e a importância da arte enquanto uma proposição educativa que objetiva formar

indivíduos capazes de olhar, observar, distanciar-se, posicionar-se, criticar e criar. Para ele, a

capacidade de contar a própria história, de falar sobre a própria vida, está diretamente

relacionada com a capacidade de articulação da linguagem. E, para tanto, a cena teatral precisa

ser: “[...] apresentada como fato assumidamente artístico, revendo e negando a tendência

ilusionista [...] que se preocupava em camuflar os mecanismos e instrumentos de produção da

teatralidade, pois tinha o intuito de fazer do palco uma ilusão da própria vida” (DESGRANGES,

2017, p. 34).

As pesquisas acerca do papel da (o) espectadora/espectador teatral têm em Bertold

Brecht uma figura-chave. A partir de Brecht, compreendemos que “a relação do espectador com

a obra não é somente a de alguém que está lá para entender algo que o artista tem para dizer”,

mas sim, “alguém que está lá para elaborar uma interpretação da obra de arte, para uma atuação

que solicita sua participação criativa” (DESGRANGES, 2017, p. 37). Assim, os significados

de uma obra são alteráveis e inesgotáveis, pois trata-se menos de entendimento e mais de

construção de significados, os quais são formulados pela espectadora/espectador, desafiando e

estimulando a sua imaginação e a sua atitude produtiva, no diálogo com a obra.

37Esse acesso dá-se através de apoios e estímulos à frequentação do indivíduo em espetáculos.

38Esse acesso dá-se através de procedimentos e mecanismos que chamando a consciência da (o)

espectadora/espectador para a linguagem teatral, estimulam a sua aptidão para a leitura de obras teatrais.

39Para Catarina Santanna (1997), a metalinguagem seria a linguagem que fala da própria linguagem, isto é, quando

o discurso centra-se no código. No capítulo 3, explico melhor sobre como a metalinguagem acessibiliza

linguisticamente nesta pesquisa, especificamente.

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Ainda segundo Desgranges (2017), Brecht estruturou o seu Teatro Épico visando que a

(o) espectadora/espectador fruiria melhor uma obra teatral à medida que conhecesse melhor

essa linguagem. Para tanto, focava no acesso linguístico desta/deste espectadora/espectador,

que, familiarizada (o) “com os elementos da linguagem cênica, se encontraria em condições de

efetivar uma leitura própria e apurada do discurso teatral” (DESGRANGES, 2017, p. 41). A

fim de posicionar essa/esse espectadora/espectador enquanto sujeito histórico e diante de

acontecimentos alteráveis, que pudessem ser pensados de outra maneira, Brecht recorria ao

recurso da metalinguagem (mais especificamente, o metateatro). “Por certo a ideia de Brecht

de chamar o espectador para fora de seu envolvimento seria contraditória se ele estivesse

querendo escrever tragédia [...] mas não é contraditória, já que o que ele realmente escreveu foi

metateatro” (ABEL, 1968, p. 142).

O que Brecht quer dizer é que a participação do público, por intensa que seja, não

deve jamais prejudicar a frieza do olhar. Assim como para o juiz do jogo, todo

espectador de esportes sabe com quem está a vantagem e prende-se atento a qualquer

tipo de transgressão das regras do jogo. (BORNHEIM, 1992, p.74).

Para Boal (2005), Brecht defendia a emoção, colocando a ênfase na compreensão, e

sendo favorável à emoção que nasce do conhecimento, e contra a que nasce da ignorância.

Sendo assim, essa consciência da representação revelaria as contradições das forças sociais,

tornando-as visíveis, e, através do conhecimento sobre esse desequilíbrio social, a plateia seria

estimulada a agir.

Finalizando essa parte de conceitos sobre linguagem e teatro, passo, nos capítulos

seguintes, a analisar o processo criativo realizado para a escrita desta monografia. No capítulo

2, investigo a aplicabilidade do método adaptado de Boal (2005) para a disponibilização do

corpo e seus conceitos de vontade e contra vontade, na construção das personagens. Já, no

capítulo 3, analiso a aplicabilidade da metalinguagem (metateatro, na cena contemporânea), a

fim de efetivar a coautoria da (o) espectadora/espectador épica da obra teatral, através do acesso

linguístico.

2 TEATRO E PROCESSO CRIATIVO

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Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que

seja o campo de atividade, trata-se, nesse novo, de novas coerências que se

estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e

compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de

compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar

(OSTROWER, 2001, p. 9).

Para Cecília Salles (1998), arte não é só o produto considerado “acabado” pela (o)

artista. Analisar criticamente o processo criativo que levou à mostra contribui também para a

disponibilização dos seus meios de produção e para uma nova perspectiva estética sobre a obra

produzida, pondo em questão o conceito de obra acabada, finalizada, definitiva. Esse ato

criador, essa construção da obra, dá-se através de uma investigação do mundo, que, por sua vez,

dá-se através da percepção. Assim, para Salles (1998), a percepção é uma forma de

conhecimento, de exploração do mundo, de apreensão de informações que, sendo processadas,

vão ganhando novas formas de organização. É por meio de todos os sentidos40 que a percepção

age, envolvendo recorte, enquadramento e angulação singulares, nesta apreensão dos

fenômenos. Por exemplo, a manifestação do arco-íris não depende só do sol e da terra, mas

também do indivíduo, pois o arco-íris acompanha-o quando este se movimenta. Assim, cada

pessoa vê um arco-íris diferente.

2.1 UMA EXPERIÊNCIA CRIATIVA TEATRAL

Durante a graduação no curso de Licenciatura, na Escola de Teatro da UFBA, estive

envolvido na investigação de processos educacionais em teatro, participando do PIBID41, do

PIBIC e da realização dos estágios obrigatórios. No PIBID, estive, por dois anos, atuando em

três escolas públicas, em turmas do ensino fundamental I e II, do ensino médio, do ensino médio

técnico em teatro e no projeto de dança/teatro BlackDance.

No PIBIC, participei, por três anos e meio, do Grupo CÉLULA42, coordenado pela

professora doutora Célida Salume. O grupo focava em processos criativos educacionais a partir

de materialidades43 que ampliassem a formação do profissional do ensino de teatro. Aqui,

desenvolvi três planos de trabalho intitulados: a) As contribuições de Boal: os jogos e a estética

40Não se deve limitar o olhar poético somente à experiência visual.

41Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência.

42Centro Lúdico Laboratorial de Processos Criativos.

43Materialidade para Fayga Ostrower (1997) é todo o universo material (a pedra, por exemplo) e imaterial (a

cultura, por exemplo) “que está sendo formado e transformado pelo homem", intencionalmente, durante um

processo criativo.

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do (a) oprimido (a) (2014/2015), b) A comicidade no processo de criação teatral (2015/2016)

e c) Brecht e o Metateatro no processo criativo da contação de histórias (2017/2018).

Já os três estágios obrigatórios são referentes às disciplinas de Prática de Estágio em

Pedagogia do Teatro I, II e III. O primeiro foi voltado para o ensino fundamental, o segundo

para o ensino médio e o terceiro era livre. Nessa pesquisa, o meu objeto de investigação é o

processo desenvolvido no estágio III.

Figura 2 – Turma alongando durante a oficina. Da esquerda para a direita, começando pela discente de

camiseta amarela: Daddi Limah, Jamile de Jesus, Cahê roberto, Marina Ramos e Vânia Cristh

Foto: Nilson Rocha

Como todos os meus experimentos haviam acontecido em escolas públicas, optei por

realizar uma oficina teatral com estudantes do curso de Licenciatura em Teatro da UFBA, nesse

último estágio, a fim de multiplicar a disponibilização dos meios de produção teatral. Ora, se

eu disponibilizo esses meios numa turma de escola pública com trinta e cinco discentes, para

quantas (os) discentes cada participante desta oficina disponibilizará nas escolas públicas?

Como a procura foi pequena (somente quatro estudantes se inscreveram na oficina), eu acolhi

mais um integrante que não cursava faculdade nenhuma ainda, e é ator profissional. Assim,

participaram quatro estudantes44 desse curso e um ator profissional: Jamile de Jesus, Daddi

Limah, Marina Ramos, Vânia Cristh e Cahê Roberto. Essa oficina contou com dez encontros

44Estudantes de diferentes semestres, incluindo Vânia que estava por começar ainda o 1o. semestre.

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de três horas, umaobra artística (mostra) de vinte minutos de duração e um bate-papo no final.

Os encontros aconteceram na Escola de Teatro da UFBA45, durante o mês de abril de 2016.

2.1.1 O método

A opção por determinadas técnicas feita por um ator teatral, por exemplo, tem estreita

relação com o tipo de teatro com o qual ele está comprometido. Esse "tipo de teatro"

seria, portanto, uma ilustração de um possível aspecto que envolve a ética do projeto

poético de um ator. O artista compromete-se com esse projeto (SALLES, 1998, p. 39).

O plano geral da conversão da (o) espectadora/espectador em atriz/ator é um sistema

que, convenientemente, começa “pelo próprio corpo das pessoas interessadas em participar da

experiência”, evitando-se, assim, “certas técnicas teatrais dogmaticamente ensinadas ou

impostas” (BOAL, 2005, p. 190). Para a metodologia da oficina, eu adaptei esse plano,

objetivando a construção de um processo educacional que também visasse a criação de uma

mostra didática como resultado. Sendo assim, esse plano adaptado46 foca na disponibilização

do corpo enquanto primeiro meio de produção teatral: consciência e expressividade.

Segundo Boal (2005), a fim de tornar conscientes as estruturas musculares das (os)

participantes, os exercícios têm por finalidade desmontar47 essas mesmas estruturas,

verificando-as e analisando-as. Em contrapartida, os jogos visam tratar da expressividade dos

corpos como emissores e receptores de mensagens. Descartando a presença de uma/um

professora (o) autoritária (o), que detém o saber, este método propõe uma dinâmica educacional

em que o grupo faz do jogo um procedimento prazeroso de aprendizagem, o qual estrutura-se

na resolução de problemas de atuação. Levada a explorar diversos aspectos da encenação, a

turma trabalha os vários elementos da linguagem teatral, que vão sendo selecionados de cada

vez, tais como: “a percepção espacial e cenográfica (ONDE), aqueles que se referem à

construção de personagens (QUEM), e o desenvolvimento da ação dramática (O QUE)”

(DESGRANGES, 2017, p. 111).

45Tivemos também um encontro no Passeio Público (por falta de pauta na Escola de Teatro) e outro, na minha casa

(a fim de ver o filme Pânico 4).

46Esse plano adaptado foi desenvolvido durante dez encontros de três horas, sendo sete encontros de oficina e três

de ensaios.

47Para Boal, essa desmontagem deve acontecer não para que as estruturas musculares sumam, mas para que se

tornem conscientes. A verificação e a análise das possibilidades e deformações corporais devem objetivar que o

participante sinta “a “alienação muscular” imposta pelo trabalho sobre o seu corpo” (BOAL, 2005, p. 190). Assim,

se uma pessoa é capaz de “desmontar” suas próprias estruturas, será também capaz de “montar” novas a fim de

dar a personagens corpos diferentes do seu.

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Quadro 3 – Plano adaptado para a oficina48

ETAPA 1 ETAPA 2 ETAPA 3 ETAPA 4

Conhecimento do

corpo.

Tornar o corpo

expressivo.

Teatro como

linguagem na

perspectiva da

metalinguagem.

Teatro como discurso.

Fonte: Idealizado pelo autor

CRONOGRAMA INICIAL

ETAPA 1 – conhecendo o corpo.

ENCONTRO 1 - Jogos de apresentação, de confiança, integração, união, espaciais e para

conhecer o corpo; cenas improvisadas (O QUÊ/ONDE/QUEM) e avaliação.

ENCONTRO 2 - Jogos de apresentação, de confiança, integração, união, espaciais e para

conhecer o corpo; cenas improvisadas (O QUÊ/ONDE/QUEM) e avaliação.

ETAPA 2 – tornar o corpo expressivo.

ENCONTRO 3 – Jogos de apresentação; aquecimento; jogos de confiança, integração, união,

espaciais e para tornar o corpo expressivo; cenas improvisadas (O QUÊ/ONDE/QUEM) e

avaliação.

ETAPA 3 – teatro como linguagem na perspectiva da metalinguagem.

ENCONTRO 4 – Aquecimento; Teatro Imagem; Teatro fórum; cenas improvisadas (O

QUÊ/ONDE/QUEM) e avaliação.

ENCONTRO 5 – Conceitos sobre linguagem; cenas improvisadas (O QUÊ/ONDE/QUEM) e

avaliação.

ENCONTRO 6 – Metalinguagem; filme Pânico 1; jogo para a imaginação; cenas improvisadas

(O QUÊ/ONDE/QUEM) e avaliação.

ENCONTRO 7 – Metalinguagem; jogos de Aquecimento; cenas de Pirandello e Fernando

Lira; discussão; cenas improvisadas (O QUÊ/ONDE/QUEM) e avaliação.

ETAPA 4 – teatro como discurso.

ENCONTRO 8 – Ensaio.

ENCONTRO 9 – Ensaio.

ENCONTRO 10 – Ensaio.

A adaptação do plano ocorre em dois momentos:

48Tabela adaptada por mim do livro “Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas”.

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33

a. Para mim, foi importante acrescentar esse na perspectiva da metalinguagem, na etapa 3.

O teatro não seria experimentado aqui somente enquanto uma linguagem, mas também

enquanto uma linguagem potencialmente capaz de falar sobre si mesma e sobre outras;

b. Outra mudança aconteceu na etapa 4. Aqui, o Teatro como discurso não está voltado para

as técnicas do plano original. Lendo como Boal descreve essa etapa, “um público popular

possa igualmente praticar formas mais “acabadas” de teatro” (BOAL, 2005, p. 216),

percebo que já há uma ideia de “acabamento” em caráter de apresentação que não se

encaixa muito com a minha proposta de ensaio. Mas se eu penso a partir do tema, Teatro

como discurso, essa etapa acaba acolhendo também a minha proposta, pois o ensaio para

mim já é um discurso.

Portanto, para se fazer um discurso por meio da linguagem teatral tem que se prezar pela

liberdade. “Só se pode agir livremente sacrificando constantemente outras possibilidades de

liberdade; a liberdade constitui-se tanto das escolhas que se deixa de fazer ou que não se pode

fazer, quanto das escolhas que efetivamente acontecem” (SALLES, 1998, p. 64). Aproveitando,

este discurso sobre “sacrifício de escolhas”, ressalto que muitas observações foram feitas

durante a escrita do relatório final do estágio 3. Porém, não podendo me debruçar sobre tudo,

escolhi os momentos que mais me chamaram a atenção.

2.1.2 Etapa 2

E isto terá sido feito através da comunicação exclusivamente corporal, sem a

utilização de palavras, nem sequer ruídos óbvios [...] ainda que se cometam todos os

erros imagináveis, o exercício será igualmente bom se os participantes tentarem se

expressar fisicamente, sem o recurso da palavra. Deste modo, e sem que se dêem

conta, estarão já “fazendo teatro” (BOAL, 2005, p. 196).

No cronograma inicial (apresentado anteriormente), eu havia selecionado apenas um

encontro para a etapa 2 – tornar o corpo expressivo. Porém, durante este encontro, percebi que

durante o jogo personagens em trânsito49, houve bastante dificuldade não só da turma como

minha também em orientar. Por exemplo, Jamile começava com a ação de assistir televisão.

Então, ela fazia a personagem assistindo televisão e depois ia para a ação transitória. Assim,

pedi a ela que não mostrasse onde ela estava para depois fazer a ação transitória. A cena já se

passava nessa ação. Não havia situação nem antes e nem depois. Assim, quando ela repetiu a

cena, a sua ação transitória começava com ela desligando a TV. Para potencializar a

49Uma/um discente entra em cena e realiza certas ações para mostrar de onde vem, o que faz e para onde vai. As

(os) outras (os) devem descobrir o máximo que puderem apenas através das ações físicas.

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explicação, cito o exemplo com Vânia. Ela fez uma bêbada que vinha do bar e ia para o

banheiro. Para tanto, sua ação transitória era: bebendo um copo de cerveja enquanto andava

como se estivesse apertada para ir ao banheiro. Ela não precisou iniciar a cena sentada numa

mesa de bar ou terminá-la fazendo xixi, dentro de um banheiro. Justamente, essa ação

transitória já nos passou essas informações.

No jogo das atividades complementares50, quando Vânia propôs que estava pescando de

dentro de uma canoa, Jamile fez que era um balde e Marina, alguém que observava a pescaria.

Para Jamile, eu pedi que ela se colocasse em cena como alguém que pudesse realizar uma

atividade. Achei que Marina fosse uma pessoa, quando ela nos revelou que era um cachorro.

Então, pedi a ela que expressasse alguma especificidade canina, uma vez que ela naturalmente

tinha um corpo humano. Ela confessou que havia ficado na dúvida se fazia uma criança ou um

cachorro, e eu observei que era importante que as imagens estivessem bem definidas dentro

delas para que elas expressassem com mais propriedade, ou seja, ela nos expressou justamente

essa dúvida sentida por ela: entre fazer uma criança ou um cachorro. Na avaliação que fizemos

no final da aula, Vânia ressaltou que a ordem dos jogos ajudou-a a tornar seu corpo mais

expressivo do que quando iniciara a aula. Acrescentou que se o jogo da mímica51 tivesse

acontecido por último, ela teria tido menos dificuldades em fazer as mímicas. Como sentimos

que a etapa 2 se configurou de uma forma mais difícil que a primeira, achei que fosse necessário

promover outro encontro ainda sobre essa etapa para aprofundarmos mais na questão da

expressividade.

O plano extra

Aqui, chamo a atenção para um jogo específico que utilizamos, pela primeira vez, na

etapa 1: o jogo traçando o espaço52. O objetivo deste jogo, na descrição do livro, era de

50Uma/um discente inicia um movimento qualquer e as (os) outras (os) procuram descobrir qual é essa atividade,

para então entrar em cena e realizar atividades complementares. Exemplo: um chofer de taxi complementado pelo

passageiro; um padre rezando missa complementado por um coroinha e pelos fiéis, etc.

51Divide-se a turma em duas equipes. A primeira propõe a uma/um das (os) participantes da outra equipe, em

segredo, o título de um filme ou outra sugestão. A pessoa dessa segunda equipe tem que fazer, para a sua equipe,

a mímica para que elas/eles descubram. Cada participante tem dois minutos para fazer a mímica.

52Este jogo foi retirado do livro Manual de criatividade com a finalidade de mesclar jogos teatrais de diversas (os)

autoras/autores. O jogo começa com a distribuição de papel e lápis para cada discente. Em seguida, pede-se que

experimentem riscar o papel de diversas formas: com traços retos, curvos, quebrados, com pontos etc. (guardar os

desenhos para depois). Dando continuidade, deve-se distribuir giz e indicar que risquem o chão com caminhos até

a (o) docente dar um sinal. Dado o sinal, cada discente deve andar em cima do seu caminho. A outro sinal, deve

mudar de caminho: cada uma/um passa para o caminho da (o) outra (o). Vários sinais são dados para que as (os)

discentes andem sobre vários tipos de caminhos. Em seguida, pede-se que cada discente crie um movimento e um

som, caminhando. Trocam-se os caminhos com o movimento e o som respectivos. Para finalizar, divide-se a turma

em duplas. Cada dupla escolhe um caminho e vai para ele, sendo que cada integrante da dupla fica numa ponta do

caminho. A um sinal dado, cada integrante da primeira dupla sai das suas pontas fazendo o movimento e o som

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conhecer o corpo. Porém, percebi que este também é um ótimo jogo para trabalhar a expressão

corporal (sem o uso da palavra) das (os) participantes. Desta forma, eu criei o jogo traçando o

espaço a53 e o jogo traçando o espaço b. O primeiro jogo criado serviu como estímulo,

sensibilização e preparação para o segundo.

Figura 3 – Jamile fazendo seu caminho no chão, durante o jogo traçando o espaço, foto de Nilson

Rocha

Foto: Autor da foto

Durante o jogo traçando o espaço a, foi bastante interessante perceber como as (os)

participantes interagiam com o espaço e entre si. Em seguida, realizei o jogo traçando o espaço

b54. Retornar à sala de aula foi outro momento bastante positivo e interessante de observação e

criação conjunta. Os caminhos desenhados no chão estavam mais criativos e com uma

assinatura pessoal. Vânia, por exemplo, chegou a fazer um coração com o tracejo do caminho.

Achei interessante essa propriedade e entrega delas.

até encontrar sua dupla no meio do caminho. Trocam entre si de movimento e som e continuam o restante do

caminho.

53As (os) participantes fizeram um percurso da sala (no 2º. andar) até o jardim da Escola de Teatro. Ida e volta.

Durante o percurso, pedi que elas/ele se expressassem somente através de movimentos (sem sons e aproveitando

para se alongar e aquecer) e nos planos alto, médio e baixo, a partir de suas relações com as texturas, formas

geométricas, temperaturas e, inclusive, com as pessoas encontradas.

54Este jogo tem a mesma estrutura do jogo traçando o espaço. Porém, apresenta algumas modificações que

descrevo no decorrer do parágrafo.

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Figura 4 – Caminho de Vânia durante o jogo traçando o espaço

Foto: Nilson Rocha

Como desdobramento do jogo traçando o espaço, propus que, além do movimento

criado, elas também se deixassem estimular durante os caminhos a expressarem duas emoções.

Ainda enquanto desdobramento, propus que elas escolhessem uma profissão tendo como

estímulo o caminho. Primeiro, elas percorreram esses caminhos (todas ao mesmo tempo),

tentando entender que profissão aqueles caminhos estimulavam. Depois de pesquisarem

bastante, os caminhos percorridos foram estimulando formas de caminhar que ajudaram na

escolha dessas profissões. Assim, cada participante escolheu sua profissão. Em seguida, era

importante que essas profissões fossem apresentadas individualmente com cada participante

andando sobre os caminhos enquanto o restante tentava adivinhar qual profissão era aquela:

bailarina (Jamile), equilibrista (Vânia), nadadora (Marina) e agricultora (Daddih). Cahê não

apareceu nesse dia.

Como ainda havia tempo para o término do encontro, refizemos o jogo da mímica por

Vânia ter dito, na aula anterior, que, se esse jogo tivesse aparecido, não no início da aula, mas

no final da mesma, ela teria conseguido jogar com mais facilidade. Então, como o intuito desse

plano extra também era o de pesquisar novos resultados para jogos aplicados no plano anterior,

repeti esse jogo. Definitivamente, pude perceber não só em Vânia, mas em todas as discentes,

uma segurança e propriedade maiores sobre seus próprios corpos. Mais importante do que

acertar era interessante observar a jogadora encontrando caminhos corporais estratégicos para

poder expressar aquilo que não podia ser dito (o nome do filme). Não menos importante também

eram as tentativas ditas da plateia, pois ao passo que alguém fazia a mímica e a plateia tentava

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acertar ia se formando um diálogo que ajudava a jogadora a perceber como sua expressão

corporal estava sendo recebida pela plateia.

Como estávamos tornando os corpos expressivos, as cenas improvisadas foram criadas

e apresentadas também sem o uso da palavra - cenas mudas. As cenas ganharam em

expressividade. Foi possível perceber como os momentos de emoção estavam mais bem

desenhados e distintos, trazendo uma não linearidade para a cena. Até um barulho que existia

na história da cena muda era possível ser “ouvido” pela expressão da atriz ouvindo, em termos

inclusive da altura do som (grave e agudo). Foi notável o crescimento expressivo dos corpos

das discentes. Mais impressionante ainda foi perceber que essa potencialidade expressiva

produziu uma confiança cênica nelas.

2.1.3 Etapas 3 e 4

Como a etapa 2 ganhou mais um encontro, a etapa 3 precisou perder um encontro (os

dois encontros reservados à metalinguagem foram reunidos num só). Desta forma, o

cronograma inicial também sofreu algumas alterações.

ENCONTRO 5 – Metalinguagem; filme Pânico 1; cenas de Pirandello e Fernando Lira; cenas

improvisadas (O QUÊ/ONDE/QUEM) e avaliação.

Para o encontro sobre linguagem, apresentei o conceito de Guacira Louro (2003) acerca

da linguagem que diz:

Dentre os múltiplos espaços e as muitas instâncias onde se pode observar a instituição

das distinções e das desigualdades, a linguagem é, seguramente, o campo mais eficaz

e persistente — tanto porque ela atravessa e constitui a maioria de nossas práticas,

como porque ela nos parece, quase sempre, muito "natural". Seguindo regras definidas

por gramáticas e dicionários, sem questionar o uso que fazemos de expressões

consagradas, supomos que ela é, apenas, um eficiente veículo de comunicação. No

entanto, a linguagem não apenas expressa relações, poderes, lugares, ela os institui;

ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças (LOURO, 2003, p. 65).

Aqui, o objetivo era fazer com que essas/esses estudantes tivessem uma

relação/interesse, na linguagem, a fim de deflagrarem onde nela está aquilo que oprime. Para

exemplificar o conceito apresentado acima e introduzir uma discussão sobre opressão

linguística, eu também distribui imagens retiradas da internet como a da figura 11.

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2.1.3.1 Os ensaios: o texto e a construção das personagens

Para Cecília Salles (1998), a (o) artista não inicia nenhuma obra com uma compreensão

infalível de seus propósitos. Se assim o fosse, não haveria espaço para desenvolvimento,

crescimento e vida. Partindo inicialmente de uma ideia vaga, o ato criador é uma ação poética,

que se realiza enquanto um movimento com tendência, no qual o desejo da (o) artista pede uma

recompensa material (a obra). Essa tendência indica a direção, o rumo no qual a (o) artista quer

chegar. É esse movimento dialético entre rumo e vagueza que move o ato criador.

Esse processo de dar forma a sonhos (ideias vagas) realiza-se por intermédio da

sensibilidade. Assim, a (o) artista mantém-se, ao longo do percurso, ligada (o) de forma sensível

ao mundo a seu redor. “O estado de criação mantém a sensibilidade suspensa, à espera e à

procura de sensações que, na medida em que ativam sensivelmente o artista, são criadoras”

(SALLES, 1998, p. 54). Em seu livro Gesto Inacabado, Cecília Salles define essas sensações

como imagens geradoras, ou seja, imagens sensíveis que contém uma excitação, um poder

criativo que afeta profundamente a (o) artista. Essas imagens de naturezas múltiplas (uma

inscrição no muro, imagens de infância, um grito, conceitos científicos, sonhos, um ritmo,

experiências da vida cotidiana, etc.), propiciam futuras obras, como, também, podem ser

determinantes de novos rumos ou soluções de obras em andamento.

Durante o processo criativo da montagem da mostra didática, algumas imagens

geradoras apareceram ao longo do caminho. O processo se deu num momento político, no qual

a presidenta Dilma Rousseff55 estava sofrendo um ilegítimo impeachment ou golpe disfarçado.

A fim de manipular a população, o jornalismo da TV Globo induziu o povo a acreditar que o

preço da gasolina estava alto demais e que o responsável era o governo da presidenta. Logo,

algumas imagens começaram a circular adesivadas em automóveis por todo o Brasil.

55Economista e política brasileira, é filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT) e foi a 36.ª presidente do Brasil,

tendo exercido o cargo de 2011 até seu afastamento por um processo de ilegítimo de impeachment em 2016.

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Figuras 5 e 6 – Adesivos Dilma Rousseff

Fonte: Google imagens

Essa imagem carrega em si uma sensação de ofensa muito grande. Eu precisava fazer alguma

coisa em relação a isso, eu precisava falar sobre isso. “O indivíduo talvez discorde de certas

aspirações formuladas pelo contexto cultural; mesmo assim, é deste contexto que ele partirá

para a crítica” (OSTROWER, 2001, p. 101).

O texto Em respeito aos trabalhadores que usam o vermelho da luta e a bandeira do Brasil, do

campo e da cidade que estão nas ruas, venho com muito sacrifício e convicção dizer:

a luta apenas começou! Em respeito à democracia, à constituição. Não houve crime.

Presidente Dilma é honesta! Não há crime, portanto, é golpe! E eu voto não contra o

golpe” (FEGHALI, 2016) 56

Desde a oficina57, eu já pensava em como efetivar a participação da (o)

espectadora/espectador enquanto coautora/coautor da obra, e não seria por meio das ideias de

Boal. Sendo assim, para a construção do texto da mostra, eu recorri aos procedimentos e

mecanismos do Teatro Épico brechtiano que visam gerar os efeitos de distanciamento a fim de

posicionar criticamente essa/esse espectadora/espectador. Segundo Desgranges (2017), um

procedimento não-ilusionista desse Teatro Épico brechtiano, a fim de efetivar o diálogo ativo

entre plateia e palco, é o de tirar o texto da posição hegemônica. Assim, livre da necessidade de

servir a essa lógica ilusionista a que o palco estava submetido, a construção da cena, não mais

necessariamente é comandada pela lógica do texto escrito, pois os elementos de linguagem

passam, assim, a assumir igual importância, na construção do discurso teatral, propondo, por

56 (Fala da deputada Jandira Feghali na votação do impeachment. Ao fundo, vaias das (os) deputadas (os) a favor.

Essa fala foi retirada do vídeo do youtube, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=C237W743aIA).

57É válido ressaltar que nenhuma das cenas improvisadas na oficina foram utilizadas na mostra.

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sua vez, uma revolução tanto na construção cênica quanto na função e na relação do teatro com

a sociedade.

Essas modificações deslocam o centro de gravidade do palco para a plateia [...] O

espectador desempenha um papel fundamental no evento, já que cabe a ele

decodificar, relacionar e interpretar um conjunto cada vez mais complexo de signos

propostos em um espetáculo teatral (DESGRANGES, 2017, p. 36).

A fim de efetivar essa coautoria da (o) espectadora/espectador, na mostra, recorri ao

recurso da intertextualidade. Desta forma, a mostra apresentou fragmentos de textos, a fim de

interromper a ação dramática, fazendo com que a (o) espectadora/espectador se distanciasse da

obra e, recorrendo a sua experiência de vida pessoal, pensasse criticamente, agindo

esteticamente.

A forma épica de teatro tem um caráter fragmentário [...]. Cada cena tem importância

própria [...] como se fossem várias peças dentro de uma peça. Esta estrutura

fragmentária das cenas resulta em uma ação dramática constantemente interrompida,

desvinculando dela o espectador e evitando apresentar a história de forma

determinista, de maneira que o que aconteceu antes não determinaria,

necessariamente, o que aconteceria depois, mostrando um mundo passível de

modificação e afirmando a possibilidade do homem de surpreender, de mudar o curso

dos acontecimentos históricos (DESGRANGES, 2017, p. 47).

A evolução dramática linear em direção a um desfecho é quebrada. Desta forma, a (o)

espectadora/espectador épica (o) passa de um fragmento ao outro, mantendo-se distante

criticamente dos fatos cênicos, analisando seus aspectos e construindo a sua significação. O

texto da mostra foi construído tendo esse pensamento como eixo norteador e, para tanto, contou

com fragmentos narrativos, tais como:

a) Prólogo (áudio da deputada Jandira Feghali58 e a letra da música Prece Cósmica, do

grupo Secos e Molhados);

b) Cena 1 (Primeira parte da peça O Palco de Fernando Lira Ximenes);

c) Cena 2 (Cena retirada da peça Seis personagens em busca de um autor, de Pirandelo);

d) Cena 3 (Esta noite se representa de improviso, de Pirandelo);

e) Cena 4 (áudio do deputado Jean Willys59 com as (os) artistas fazendo imagens sobre a

ditadura);

58Médica e política brasileira filiada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Construiu sua carreira política pelo

estado do Rio de Janeiro, sendo deputada federal deste mesmo estado, atualmente.

59Jornalista, professor universitário e político brasileiro, eleito pela primeira vez em 2010 para um mandato de

deputado federal pelo Partido Socialismo e Liberdade do Rio de Janeiro.

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f) Cena 5 (última parte da peça O Palco de Fernando Lira Ximenes);

g) Cena 6 (Citação de um texto retirado do livro de Guacira Lopes Louro, Gênero,

sexualidade e educação – uma perspectiva pós-estruturalista sobre linguagem);

h) Cena 7 (frases que contêm opressão linguística).

i) Epílogo (refrão da música Um beijo, da Mc Xuxú e projeção da interpretação do cantor

Lineker e do tecladista Chicão da música Geni e o Zepelim, de Chico Buarque).

Bom, em primeiro lugar, eu quero dizer que eu tô constrangido de participar dessa

farsa, dessa eleição indireta, conduzida por um ladrão, urdida por um traidor,

conspirador e apoiada por torturadores, covardes, analfabetos políticos e vendidos,

esta farsa sexista. Em nome dos direitos da população LGBT, do povo negro

exterminado nas periferias, dos trabalhadores da cultura, dos sem-teto, dos sem-terra,

eu voto não ao golpe. E durmam com essa: CANALHAS! (JEAN WYLLYS, 2016)60

Esses fragmentos reúnem textos teatrais e não teatrais, de diversos (as) autores/autoras,

épocas e lugares, e, os critérios para as suas escolhas foram: (a) textos61 metalinguísticos que

apresentassem a linguagem enquanto uma ação que pretende fixar desigualdades; (b) textos62

metateatrais e (c)63 textos que tratassem da representatividade LGBT, apresentando a

linguagem enquanto uma ação teatral de emancipação e inclusão do segmento oprimido da

população.

A construção das personagens

O conceito fundamental, para o ator, não é o ser do personagem, mas o querer. Não

se deve perguntar quem é, mas o que quer. [...] Mas a vontade escolhida pelo ator não

pode ser arbitrária; antes, será necessariamente a concreção de uma ideia, a tradução,

em termos volitivos – eu quero! – dessa ideia ou tese. A vontade não é a ideia, é a

concreção da ideia (BOAL, 1998, p. 74).

Para essa construção das personagens, primeiramente, passamos, na oficina, pelo plano

adaptado do Teatro da (o) Oprimida (o) a fim de que as (os) discentes conhecessem seus corpos,

para, em seguida, torná-los expressivos. Em seguida, nos ensaios, passamos para os conceitos

de vontade e contra vontade propostos por Augusto Boal, pelo exercício troca de papéis e pela

60 (Fala do deputado Jean Willys na votação do impeachment. Ao fundo, vaias dos (as) deputados (as) a favor.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BkgXS8iKnWY).

61O texto da citação do livro de Guacira Louro (2003).

62Os textos de Pirandelo, Fernando Lira e do refrão da música Prece Cósmica.

63O texto do áudio do deputado Jean W., do refrão da música da Mc Xuxú, Um beijo, e o texto da música de Chico

Buarque, Geni e o Zepelim, projetado no epílogo da mostra.

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construção dos figurinos. Passo a relatar, agora, apenas o processo de construção para as cenas

1 e 5 (Daddi e Cahê que interpretaram as personagens Ator 2 e Ator 1, respectivamente).

Primeiramente, começamos com uma leitura das cenas. Em seguida, pedi para que

relessem-nas, buscando saber quais eram as vontades de suas personagens, o que as moviam.

Comecei perguntando a Daddi e a Cahê, quais as vontades de suas personagens: a da

personagem de Daddi era entender o que estava acontecendo e a da de Cahê era assistir à peça.

Então, pedi que ele e ela fizessem uma leitura do texto, ressaltando ainda mais essas vontades.

Em seguida, perguntei a Daddi quais estratégias que ela iria usar para concretizar essa ideia da

sua personagem. Ela respondeu: ficar perguntando à personagem de Cahê. A partir dessa

estratégia de Daddi com a personagem de Cahê que tinha por vontade assistir à peça, eu propus

um conflito, um incômodo entre as duas personagens. Então, ela e ele fizeram uma nova leitura

a partir desse conflito. É importante ressaltar que, apesar de eu ter levado como base teórica

algumas/alguns autoras/autores, foi a forma como ela e ele respondiam que me estimulavam e

me orientavam no passo a ser dado em seguida.

A personagem de Cahê

A partir da vontade da personagem de Cahê, comecei a propor a ele que brincasse mais

com o texto a fim de não o tornar linear: que ele escolhesse em quais momentos, ele (a partir

da vontade em assistir à peça) incomodar-se-ia com as perguntas da personagem de Daddi e em

quais outros momentos, ele deixar-se-ia levar pela contra vontade64 (não querer assistir à peça

pelo prazer em explicar o que estava acontecendo à personagem de Daddi). “[...] o conflito

interno de vontade e contra vontade cria a dinâmica, cria a teatralidade da interpretação, e o

ator nunca estará igual a si mesmo, porque estará em permanente movimento [...]” (BOAL,

2009, p. 79).

A personagem de Daddi.

A partir do texto e das respostas de Daddi, eu a orientei (pensando justamente esse

histórico da personagem do antes da história da peça) a ler sua personagem como se ela tivesse

sido chamada pela primeira vez para ir ao teatro e, chegando lá, ela não encontrasse a (o) amiga

(o) que a convidou e, sentindo-se perdida e só, ela começaria a “incomodar” a personagem de

64Segundo Augusto Boal (1998), a contravontade corresponde à vontade. Por exemplo, para Julieta, sua vontade

seria amar Romeu enquanto que sua contravontade seria odiar Romeu.

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Cahê. Também orientei-a em outro sentido: que a personagem poderia não querer incomodar

Cahê, mas a atriz Daddi poderia brincar com esse incômodo.

A troca de papeis.

Em seguida, pedi para que a dupla fizesse leituras trocando de personagem e que era

muito importante que ela e ele fossem inteira e inteiro porque o objetivo do exercício era que

Daddi conhecesse mais a sua personagem a partir de um novo olhar, de uma nova perspectiva

dada por Cahê e vice-versa.

Figura 7 – O figurino

Foto: Cahê Roberto

Os figurinos foram escolhidos a partir das propostas de reciclagem e de disponibilização

dos meios de produção teatral para as (os) discentes. Era importante que as (os) participantes

também fizessem parte dessa criação. No segundo dia de ensaio, levei três camisas e outros

elementos que fariam parte da mostra. Assim, pedi que cada uma e Cahê partissem das

referências das camisas apresentadas (estampas que significavam algo) e que, em casa,

escolhessem de duas a três camisas que dialogassem com o sentido da peça que estávamos

construindo e que conceituassem suas personagens.

Figura 8 – Marina e Vânia. Figura 9 – Jamile, Daddi e Cahê.

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Foto: Ingrid Lago

Dando continuidade na investigação desse processo criativo, passo, no capítulo

seguinte, a analisar a mostra didática, investigando a metalinguagem a partir de: (a) seu

potencial enquanto efeito de distanciamento (não ilusionismo) e acesso linguístico teatral à (ao)

espectadora/espectador, a fim de efetivar a sua participação no diálogo teatral; e (b) a sua

aplicabilidade nos elementos da cena contemporânea: dramaturgia, cenário, iluminação,

sonoplastia, figurino e projeção.

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3 TEATRO E METALINGUAGEM

Para analisar o potencial da metalinguagem na mostra65 didática, eu parto de alguns

registros: o relatório final, o vídeo da mostra, o texto e fotos. O relatório foi produzido para a

disciplina Prática de Estágio em Pedagogia do Teatro III, do Curso de Licenciatura em Teatro,

da UFBA, e sob a supervisão do Prof. Paulo Henrique Alcântara. O vídeo da mostra foi filmado

por minha vó, pelo celular dela, e pode ser acessado em

https://www.youtube.com/watch?v=B5HqKAi9jo8&t=903s. As fotos foram registradas por

Ingrid Lago que, inclusive, tinha liberdade para caminhar não só pela plateia, mas também pelo

palco a fim de que estes instantes de fotografia se exibissem para a plateia enquanto

metalinguagem.

3.1 A PEDAGOGIA CONTEMPORÂNEA DA (O) ESPECTADORA/ESPECTADOR

Uma obra de arte nos arrasta para seu mundo; no entanto, é uma revelação sobre a

realidade que nos rodeia. Os universos ficcionais não pertencem à realidade externa à

obra; no entanto, oferecem seu mais autêntico testemunho (SALLES, 1998, p. 139).

Para Desgranges (2017), o teatro visa rever-se continuamente a fim de manter um

diálogo frutífero com a sociedade. Sendo assim, é preciso perceber as transformações na

sociedade a fim de manter esse diálogo atualizado. Ainda para Desgranges (2017), a

contemporaneidade ou pós-modernismo trouxe mudanças significativas em nossas sociedades

tais como: a expansão dos meios de comunicação de massa que nos deixam expostas (os) a um

turbilhão de informações66 que se renovam a cada instante; o impasse das reformas coletivas,

voltando-se para o individual, para experiências e transformações pessoais; e a complexidade

atingida pelo capitalismo mundial, por exemplo. Estas profundas alterações agem de tal modo

que a sensibilidade humana já não é mais a mesma e, portanto, não pode mais ser estimulada

ou atingida pelos mesmos procedimentos e mecanismos do Teatro Épico moderno.

65A obra artística, a mostra didática Meta Lingua Gem, foi apresentada no Teatro Martim Gonçalves (Escola de

Teatro, Salvador) como resultado final de disciplina, tendo vinte minutos de duração.

66Para Desgranges (2017), a arte teatral dialoga, atualmente, com um indivíduo sedado por uma overdose de

informação. Não havendo espaço e tempo para a reflexão, a notícia desaparece com a mesma velocidade que entra

na rede, nessa superdosagem informativa. Em lugar de uma passividade alienada, uma apatia bem informada.

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Assim, segundo Desgranges (2017), o teatro contemporâneo encontra-se seguindo em

duas direções: por um lado, o redimensionamento67 crítico das propostas épicas modernistas

autorais feitas à (ao) receptora/receptor; e, por outro, o lançar-se ao novo mundo da fama, do

comercialismo e do sensacionalismo. É importante ressaltar que, como disse no capítulo

anterior, foi pensando na participação da plateia, através do seu distanciamento, que recorri aos

procedimentos e mecanismos do Teatro Épico moderno. Porém, durante a escrita dessa

monografia, fui compreendendo68 que, na verdade, eu não estava aplicando procedimentos do

Teatro Épico moderno, mas sim sua radicalização. Sendo assim, assumo que essa pesquisa

segue pela direção estética do redimensionamento crítico do Teatro Épico moderno.

Para Desgranges (2017), se no Teatro Épico moderno, o espetáculo é composto de

fragmentos que conectados darão forma a um todo, neste teatro contemporâneo, a (o)

espectadora/espectador é convidada (o), através do redimensionamento, a movimentar-se pelos

vários fragmentos de uma obra que, mesmo em suas relações, não se encaixam e não constituem

mais uma unidade, indo, dessa forma, contra às totalidades, uma vez que a relatividade ganha

a sociedade e as perspectivas pessoais estão multiplicadas. Desta forma, a (o) artista

contemporânea (o) está mais preocupada (o) com a provocação que faz do que com a

compreensão que a obra suscita na (o) espectadora/espectador. Ou seja, segundo Desgranges

(2017), artistas interessadas (os) na performance da própria atividade artística - sua capacidade

provocativa - e na capacidade performática da (o) espectadora/espectador – suas reações às

provocações teatrais – em construir essa obra e essa realidade pessoais.

A totalidade do fato artístico, portanto, inclui a criação do contemplador; na relação

entre os três elementos – autor, contemplador e obra -, reside o evento estético. O fato

artístico não está contido completamente no objeto, nem no psiquismo do criador,

nem no do receptor, mas na relação desses três aspectos (DESGRANGES, 2010, p.

122).

É através deste evento estético que a educação (a produção de conhecimento) acontece,

centrando-se na decodificação dos códigos existentes entre o indivíduo e a sociedade. Não

67Ou seja, esse tipo de teatro contemporâneo está revendo criticamente as propostas épicas, radicalizando-as. Esse

redimensionamento vai sendo mais explicado durante o decorrer deste capítulo, quando relaciono as propostas

épicas modernas à contemporaneidade.

68Pensando em como seria esse redimensionamento apresentado por Desgranges, fui chegando à conclusão de que

a proposta dessa pesquisa assemelha-se muito com essa ideia de radicalização do Teatro Épico moderno. O texto

da mostra é constituído de fragmentos que estão desconectados, não propondo uma leitura totalitária. A construção

das personagens a partir da vontade e da contra vontade, excluindo-se aspectos psicológicos é outro exemplo dessa

semelhança entre mostra e proposta contemporânea, pois que assim a (o) espectadora/espectador pode “conceber

propriamente os personagens – já que a encenação pode oferecer apenas arremedos indefinidos de personas”

(DESGRANGES, 2017, p. 146).

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somente como alguém que paga o ingresso ou aplaude os espetáculos, mas como a (o) outra (o)

imprescindível em um diálogo, que Desgranges (2010) acredita que talvez seja imprescindível

que as (os) artistas de teatro se perguntem: “Por que ir ao público hoje? Para fazer o quê? Dizer

o quê? Para quem? Qual a necessidade disso, afinal?” (DESGRANGES, 2010, p. 26).

3.2 A METALINGUAGEM E SEU METATEATRO

Seu foco estava centrado na ampliação do acesso linguístico deste espectador, que,

familiarizado com os elementos da linguagem cênica, se encontraria em condições de

efetivar uma leitura própria e apurada do discurso teatral. Colado a esse procedimento

que visava a democratização do teatro, havia o intuito de posicionar o espectador

enquanto sujeito da história, indivíduo que se colocasse diante de acontecimentos que

podem ser alterados, pensados de outra maneira, alguém que se sentisse estimulado a

questionar e participar do processo histórico (DESGRANGES, 2017, p. 41).

Para Desgranges (2010), um jogo só é jogado bem por quem sabe as regras. Sendo

assim, mais do que acessibilizar fisicamente, o momento artístico, através de apoios e estímulos

à frequência do indivíduo em espetáculos, é preciso também acessibilizar linguisticamente¸ e

através de procedimentos e mecanismos que chamando a consciência da (o)

espectadora/espectador para a linguagem teatral, estimulem a sua aptidão para a leitura de obras

teatrais e da realidade. Ainda para Desgranges (2017), esse acesso linguístico distancia a (o)

espectadora/espectador, possibilitando que ela/ele problematize a encenação, fazendo

perguntas à cena, tais como: Quais os temas abordados na obra? De que maneira a obra se

relaciona com a vida? Eu já vi algo parecido? Como eu faria? De que outras maneiras esta

mesma ideia poderia ser encenada? Sem espectadoras/espectadores interessadas (os) nesse

debate, o teatro perde conexão com a realidade que se propõe a refletir.

Brecht contrapunha-se ao ilusionismo do teatro dramático e defendia [...] um teatro

desmontado, que revelasse os mecanismos utilizados [...] retirando [...] tudo o que

pudesse esconder a construção e funcionamento dos objetos que compõem a cena,

contrariando a vontade, em voga no período, de convencer o espectador de que estaria

diante da própria vida, assumindo, pois, a teatralidade da encenação. O palco rasga as

cortinas porque quer revelar e questionar a si mesmo, quer pensar sua própria função

(DESGRANGES, 2017, p. 42).

Com finalidades pedagógica, crítica e ideológica em estimular a plateia a dotar-se de

uma consciência indispensável à mudança do status quo, a metalinguagem nesta mostra teatral,

além de quebrar com o ilusionismo, também promove o acesso linguístico69. Para Catarina

69Esse acesso linguístico dá-se através do desnudamento do palco, do devassar do fenômeno teatral, revelando-se

e assumindo-se enquanto uma representação e, portanto, negando o ilusionismo. Ainda nesse capítulo, descrevo e

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Santanna (1997), a metalinguagem seria a linguagem que fala da própria linguagem, isto é,

quando o discurso centra-se no código. Toda esta monografia é metalinguística, por exemplo,

pois que seu discurso centra-se no código linguístico. Um outro exemplo de acesso linguístico,

na mostra, é o texto lido por Marina Ramos, na mostra, como podemos perceber no texto, da

cena 6, da mostra:

Dentre os múltiplos espaços e as muitas instâncias onde se pode observar a instituição

das distinções e das desigualdades, a linguagem é, seguramente, o campo mais eficaz

e persistente — tanto porque ela atravessa e constitui a maioria de nossas práticas,

como porque ela nos parece, quase sempre, muito "natural". Seguindo regras definidas

por gramáticas e dicionários, sem questionar o uso que fazemos de expressões

consagradas, supomos que ela é, apenas, um eficiente veículo de comunicação. No

entanto, a linguagem não apenas expressa relações, poderes, lugares, ela os institui;

ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças (LOURO, 2003, p. 65).

A metalinguagem aplicada ao teatro, é metateatro, no qual, estão em jogo linguagens verbais

e não verbais, podendo o discurso teatral tanto significar “o conjunto organizado de mensagens

cujo produtor é o dramaturgo, quanto o conjunto de signos e estímulos (verbais e não-verbais)

que são produzidos pela representação, cujo produtor é plural (dramaturgo, encenador, atores,

etc.)” (SANTANNA, 1997, p. 21). Assim, a grosso modo, o metateatro seria uma decodificação

dos códigos70 verbais e não-verbais que constroem uma peça a fim de torná-los transparentes

para a (o) espectadora/espectador. Segundo Catarina Santanna (1997), essa decodificação se

efetivaria através de recursos variados, como, por exemplo, os recursos:

a) da apresentação da realidade como já teatralizada (o mundo como teatro);

b) da intertextualidade;

c) da obra auto referente.

analiso como a mostra didática em questão acessibilizou a linguagem teatral através de recursos metateatrais,

fundamentados em Catarina Santanna (1997).

70Esses códigos não seriam apenas teatrais, isto é, específicos do teatro, mas também culturais.

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3.2.1 O recurso da apresentação da realidade como já teatralizada

A cena começa, assim, a exercer uma função pedagógica. O petróleo, a inflação, as

lutas sociais, a família, a religião, a manteiga e o pão, o comércio de carnes devem ser

objetos de representação teatral. A intenção era trazer o pano de fundo social para a

cena, afirmando a dimensão histórica do acontecimento apresentado por meio dos

elementos narrativos que a golpeiam, interrompendo a corrente dramática e afirmando

a atitude crítica do espectador (DESGRANGES, 2010, p. 99).

Para Catarina Santanna (1997), o mundo é um teatro, no qual as sociedades humanas

são espetaculares formas de organização social. Ou seja, a realidade já é teatralizada, pois que

somos atrizes e atores atuando socialmente, representando papeis, segundo regras, convenções,

códigos, etc. Sendo assim, representar no teatro, fatos da vida já teatralizados, é um recurso

metateatral, uma vez que esses códigos culturais/teatrais são decodificados71 a fim de tornarem-

se históricos para a (o) espectadora/espectador. Para Brecht, a História não deve servir como

uma legitimação do status quo, isto é, como uma explicação do destino complexo do ser

humano, de modo a fazê-lo aceitar como inevitável o processo que inferioriza ou marginaliza a

maioria da humanidade. Mas, sim, como uma forma de retratar a realidade com uma

profundidade que leve à crítica social, fazendo com que o indivíduo tenha consciência de seu

passado, a fim de explicar o que acontece hoje. Ainda de acordo com Brecht, “estranhar

significa historicizar, representar processos e pessoas como históricos, portanto transitórios”.

(KOUDELA, 1992, p. 77). Desta maneira, este recurso serve para apresentar a realidade como

algo manipulável.

3.2.1.1 A votação do impeachment de Dilma Rousseff

Aqui, selecionei dois momentos da votação: o da deputada Jandira F. e a do deputado

Jean W. Estes mesmos instantes foram transformados em áudio. O áudio da deputada é que

abre a mostra. O público está sentado no escuro enquanto a deputada defende a democracia

brasileira. Já o áudio do deputado é colocado na metade da mostra, na cena 4. Enquanto o áudio

acontece, as atrizes e o ator estão sobre o palco giratório, em movimento, fazendo imagens da

ditadura.

71Para Brecht, esta decodificação propõe uma quebra da impressão de realidade ou do processo de identificação,

oferecendo à (ao) espectadora/espectador uma leitura distanciada da realidade, esclarecendo as relações dos seres

humanos com seus sentimentos e as relações entre indivíduo e sociedade.

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Figura 10 – Foto registrada durante a apresentação. Da esquerda para a direita começando pela discente

de óculos e braços cruzados: Marina Ramos, Cahê Roberto, Jamile de Jesus e Vânia Cristh

Foto: Ingrid Lago

Na sua fala, a deputada afirma que o impeachment é um golpe, pois não há crime,

decodificando, desta forma, o código da corrupção na linguagem política. O mesmo ocorre na

fala do deputado, ao chamar essa votação de farsa sexista, de “eleição indireta, conduzida por

um ladrão, urdida por um traidor, conspirador e apoiada por torturadores, covardes, analfabetos

políticos e vendidos” (JEAN WILLY, 2016).

Distanciar é, para Brecht, portanto, “historicizar”, representar as situações como

sendo históricas. Para isso, não é necessário que sejam levados à cena somente

acontecimentos do passado, o encenador épico pode proceder da mesma maneira com

processos e personagens contemporâneos, mostrando suas atitudes como estando

ligadas a uma época e, portanto, históricas (DESGRANGES, 2010, p. 100).

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3.2.1.2 A misoginia à Dilma Rousseff

Outra forma de recorrer a este recurso, foi representando, no palco, a misoginia72 sofrida por

Dilma. Através da projeção do vídeo de Lineker interpretando a música Geni e o Zepelim, de

Chico Buarque, busco refletir a presidenta Dilma Rousseff através da personagem Geni.

De tudo que é nego torto/ Do mangue e do cais do porto/ Ela já foi namorada/

O seu corpo é dos errantes/ Dos cegos, dos retirantes/ É de quem não tem mais nada/

Dá-se assim desde menina/ Na garagem, na cantina/ Atrás do tanque, no mato/

É a rainha dos detentos/ Das loucas, dos lazarentos/

Dos moleques do internato/E também vai amiúde/ com os velhinhos sem saúde/

E as viúvas sem porvir/ Ela é um poço de bondade/ E é por isso que a cidade/

Vive sempre a repetir/ Joga pedra na Geni/ Joga pedra na Geni/

Ela é feita pra apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá pra qualquer um/ Maldita Geni.

(CHICO BUARQUE, 1978, p. 161-162)

Aqui, Dilma/Geni seria essa mulher que se preocupa com o sistema público de saúde

(SUS), a não redução da menor idade penal, os programas sociais que incluem negras (os),

nordestinas (os), presidiárias (os), idosas (os)... É ela também a mesma apedrejada e cuspida

pela sociedade machista e patriarcal, como nas figuras 5 e 6.

3.2.1.3 O preconceito linguístico teatralizado

Outra forma de representar um fato social já teatralizado, foi apresentar opressões

linguísticas retiradas da internet (inclusive, de redes sociais como o facebook), na cena 6 da

mostra didática. Em seguida à leitura de Marina sobre a citação de Guacira Lopes Louro, cada

participante entrava com um papel de ofício, no qual estavam escritos exemplos desse uso

preconceituoso linguístico, como, por exemplo:

72Após o golpe de 2016 - com a saída de Dilma da presidência da república e a entrada ilegítima de Michel Temer

– a mídia brasileira lançou o modelo de mulher ideal que representava a ideologia das classes dominantes: uma

mulher branca, rica, cristã e dona de casa. Sua representante oficial foi Marcela Temer, esposa de Michel Temer,

que encerrava em si mesma o conceito demagogo de “bela, recatada e do lar”. De maneira bem misógina, o que

essa ideologia queria impor é que lugar de mulher não é na presidência da república, mas em casa.

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Figura 11 – Comentário de Luiz Carlos Nogueira

Fonte: Google Imagens

A compreensão do papel das conjunções que, ligando sentenças entre si, impregnam

a relação que estabelecem de certo sentido, o de causalidade, falo porque recuso o

silêncio, o de adversidade, tentaram dominá-lo mas não conseguiram, o de finalidade,

Pedro lutou para que ficasse clara a sua posição, o de integração, Pedro sabia que ela

voltaria, não é suficiente para explicar o uso da adversativa mas na relação entre a

sentença Madalena é negra e Madalena é competente e decente. A conjunção mas aí,

implica um juízo falso, ideológico: sendo negra, espera-se que Madalena nem seja

competente nem decente. (FREIRE,1998, p. 53-54).

A citação acima, retirada do livro Pedagogia da autonomia: saberes necessários à

prática educativa, decodifica (metalinguagem) o código das conjunções da nossa língua a fim

de explicar porque frases como esta são preconceituosas e, por isso, opressões linguísticas.

As meninas e Cahê foram entrando um/uma de cada vez. Entrava, lia e rasgava o papel.

Aí, entrava a segunda pessoa, lia e também rasgava seu papel. E assim, sucessivamente. As

frases73 escritas foram:

Jamile Cruz: (lendo) “Tia Eron, você é negra, porém bonita e inteligente.” (frase

retirada do twitter pessoal do atual presidente ilegítimo Michel Temer).

(Jamile rasga o papel).

Cahê Roberto: (lendo) “Parabéns!!! Assisti o programa hoje com o maridão que a Neide

(nossa criada) gravou!”. (frase retirada do twitter pessoal da esposa do

atual presidente ilegítimo).(Cahê rasga o papel).

Daddih Lima: (lendo) “Escrava substituirá presidente em nota de vinte dólares.”

(dizendo) “Ela não foi escrava. Ela foi escravizada”. (a frase lida foi

tirada de um jornal daqui mesmo do Brasil). (Daddih rasga o papel).

73As palavras sublinhadas são as enfatizadas pelas atrizes e ator.

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Vânia Christ: (lendo) “Pé-de-moleque é chamado de demônio e denominado pela cor

da pele na frase: - Querem ver que o demônio do negrinho tornou a cair?”

(citação de Guacira Lopes Louro). (Vânia rasga o papel).

Rasgar esse papel branco e que continha uma frase escrita, que oprimia

linguisticamente, simbolizou justamente essa/esse branca (o) colonizadora (o) não só

europeia/europeu, mas a própria população branca brasileira racista que ainda hoje utiliza-se da

linguagem para fixar diferenças e relações de poder.

3.2.2 O recurso da intertextualidade

São várias as modalidades de inclusão de “textos estranhos” nas obras

metalinguísticas: as obras de outros autores ora comparecem: (a) com “aspas”, isto é,

devidamente delimitadas por um narrador que, ao enunciá-las, lhes comenta algum

modo a origem; (b) ou com “aspas” somente nas indicações cênicas [...] para o leitor,

mas que não chega obviamente ao espectador; (c) ou mesmo sem quaisquer aspas,

seja para leitores ou espectadores (SANTANNA, 1997, p. 304-305).

Este recurso trata da presença de textos teatrais e não teatrais, de diversos (as)

autores/autoras, épocas e lugares, que se realizam estruturalmente no corpo textual, operando

uma reiteração dos temas básicos em discussão. Assim, esse processo de intertextualidade

interna oferece por meio da metalinguagem tanto conhecimentos sobre teatro quanto literatura.

A dramaturgia da mostra foi costurada com textos de autores/autoras diferentes: textos teatrais

de Pirandelo e Fernando Lira; textos musicais do grupo Secos e Molhados, da Mc Xuxú e de

Chico Buarque, e o texto não teatral da Guacira Lopes Louro.

Para Catarina Santanna (1997), este recurso serve também para quebrar com a

linearidade dramatúrgica, propondo um novo modo de leitura tanto para a (o) leitora/leitor

quanto para a (o) espectadora/espectador. Para Desgranges (2017), esta percepção sucessiva

moderna é, assim, redimensionada, provocando uma percepção simultânea, em que várias cenas

e linguagens (os áudios da votação do impeachment, a projeção do vídeo de Lineker) se

sobrepõem, pois que se recontextualizam entre si, desafiando a (o) espectadora/espectador a

decodificar e interpretar um conjunto cada vez mais complexo de significações. A cena e as

linguagens não se constituem mais em função da apresentação de uma ação/evolução dramática

que, por sua vez, dava-se em função do psicológico da (s) personagem (s). O fio condutor deixa

de ser a história a ser apresentada para focar agora no jogo linguístico cênico, que pode

convidar a (o) espectadora (o) a: “criar histórias, formular análises críticas, definir aspectos

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psicológicos [...] ou conceber propriamente os personagens – já que a encenação pode oferecer

apenas arremedos indefinidos de personas” (DESGRANGES, 2017, p. 146), por exemplo.

3.2.3 O recurso da obra auto referente

Peças auto referenciais ou metalinguísticas são, segundo Catarina Santanna, “voltadas

para o próprio código teatral que é nelas explicitado, comentado, julgado” (SANTANNA, 1997,

p. 61). Esse recurso é utilizado para discutir o fenômeno da representação especificamente

teatral:

a) Apresentando reflexões sobre a atividade teatral;

b) E ou exibindo, na encenação, o trabalho oculto dos bastidores (concernente à (ao)

atriz/ator ou a outro elemento do espetáculo).

É o teatro que se afirma como teatro, daí o metateatro, que devassa o fenômeno teatral.

É a dramatização do ato de criar, concernente ao teatro. Passo, agora, a analisar a aplicabilidade

do metateatro no texto74 da mostra. No prólogo, a música Prece Cósmica fala sobre teatro: “[...]

Que do bolso de cada um dos 4, como num teatro, voem pombas. Pombas brancas... e

amanheça” (SECOS & MOLHADOS, 1973). Na encenação desse fragmento, eu optei por fazer

uma referência ao Teatro de Bonecas (os)75 e ao Teatro Infantil.

Em seguida, o fragmento da peça de Fernando Lira, “O Palco”. Essa peça foi escolhida

por discutir sobre o fenômeno teatral a partir da representação da perspectiva da plateia.

Segundo o texto de Fernando Lira, dois atores sentam na plateia, para assistir um espetáculo.

As cortinas se abrem e o palco não tem nem atrizes e nem atores. Ele, o palco, é o elemento

principal. Representando dois espectadores distintos (um que nunca foi ao teatro e outro que já

foi diversas vezes), dois atores analisam a função do teatro. Para a mostra, eu dividi essa peça

em dois fragmentos – cena 1 e cena 5 – e, ao invés de dois atores, eu optei por colocar uma

atriz e um ator, mas mantive no texto escrito a indicação de dois atores76. Na rubrica77 da peça,

o autor deixa implícito que é para o palco estar vazio enquanto os atores atuam sentados com a

plateia, como se fosse espectadores também. Eu optei em realizar as cenas no palco mesmo

74Apêndice.

75É o termo que designa, no teatro, à apresentação feita com fantoches, marionetes ou bonecos.

76Pensando nas (os) leitoras/leitores dessa monografia, eu resolvi manter na escrita Ator 1 e Ator 2 a fim de que

em comparação com a encenação, pensasse criticamente sobre essa complexa discussão acerca do gênero.

77Didascália ou rubrica são indicações cênicas para indicar como determinada ação, como determinada cena, como

determinado espaço ou como determinada fala devem ser feitos em uma peça de teatro.

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como se lá fosse a plateia e o público fosse o palco. Desta forma, a plateia assistia uma

representação de si mesma enquanto uma plateia ativa, questionadora da cena teatral. Na cena

1, as personagens/plateia são apresentadas:

“ATOR 1: (pausadamente) Você pode fazer silêncio para que eu possa assistir ao

espetáculo?” (trecho retirado da cena 1).

“ATOR 2: Droga... Alô! Não posso falar agora... Estou no teatro... Teatro... Estou no

teatro! Isto, teatro... acho que já começou... /ATOR 1: (toma o celular) No final da

peça eu devolvo!” (trecho retirado da cena 1).

Nesse último trecho, há uma brincadeira se referindo ao hábito de se desligar os aparelhos

celulares antes dos espetáculos. Ainda nesta cena, podemos perceber o procedimento da

dramatização do “ato de ser” (SANTANNA, 1997, p. 171) já teatralizado enquanto um recurso

metateatral. Esta autoconsciência ou, sua busca, refere-se às personagens que se dão conta das

reais condições de sua existência. O Palco é uma personagem autoconsciente de sua existência

e sua autoconsciência nos é apresentada, na verdade, pelas outras duas personagens:

“Ator 2: Fala baixo! O espetáculo já começou faz cinco minutos! /Ator 1: Já? (Olha

para o palco que é a plateia) E onde estão as atrizes e os atores? /Ator 2: Não tem

atrizes nem atores! [...] é só o palco, e nada mais!”.

“Ator 2: Por favor, você está tirando a concentração do palco [...] O palco não se

explica. Se sente! Assista-o, repetidas vezes, que você começará a senti-lo!”.

Na Cena 2, eu apresento um fragmento de outro autor teatral, Pirandelo. Essa cena foi

retirada da sua peça Seis personagens em busca de um autor e também foi escolhida pelo seu

discurso metateatral. Aqui, a discussão gira em torno dos papéis da (o) atriz/ator, da (o)

diretora/diretor, da (o) dramaturga (o) e da personagem num processo de construção da obra

teatral. Essa discussão sobre essas três primeiras funções pode ser encontrada no seguinte

trecho:

“MÃE: Bem, tornar verdadeiro o que não é, sem necessidade e por brincadeira... Não

é a senhora quem dá vida a seres imaginários? /DIRETORA: Mas eu lhe peço crer,

cara senhora, que uma profissão de atriz e ator é uma profissão nobilíssima e, se hoje

em dia, os novos dramaturgos nos dão para representar peças estúpidas e fantoches,

ao invés de seres humanos, saiba que nos orgulhamos de ter dado vida aqui, nesses

tablados, a obras imortais”.

É possível também perceber uma discussão sobre a hegemonia do texto teatral enquanto

elemento central de linguagem, no momento em que a personagem da diretora responsabiliza

as (os) “novos dramaturgos” por só produzirem “peças estúpidas” a serem, por sua vez,

representadas estupidamente. Já a discussão sobre a função da personagem pode ser encontrada

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noutro trecho desta mesma cena, apresentando a personagem enquanto um ser vivo e que, por

isso, não precisa nem de atriz nem de ator para viver sua história de personagem:

“MÃE: Mas é isso, minha senhora. Muito bem. É dar vida a seres vivos mais vivos

do que aqueles que respiram e vestem roupas. Somos da mesmíssima opinião”.

“MÃE: A lugar nenhum, minha senhora. Só te demonstrar que a vida nasce de muitos

modos, de muitas formas. Árvore ou seixo ... ou mulher. E que também se nasce

personagem. /DIRETORA: E a senhora como esses outros à sua volta nasceu

personagem? /MÃE: Perfeitamente, minha senhora. E vivos como nos vê”.

A Cena 3 foi retirada de outra peça de Pirandelo, Esta noite se representa de improviso.

Esse fragmento também fala do texto enquanto elemento central e da função da (o)

diretora/diretor:

“DIRETOR: A obra do escritor, ei-la aqui. (mostra o rolo de papel). O que faço com

ela? Tomo-a como matéria da minha criação cênica e dela me sirvo, como me sirvo

da competência das atrizes e atores escolhidas para representar os papéis de acordo

com a interpretação que terei feito deles; e dos cenógrafos, e dos cenotécnicos; e dos

iluminadores; todos de acordo com os ensinamentos, as sugestões, as indicações que

eu tiver dado”.

Esse fragmento fala de outras funções teatrais como “cenógrafos” (as), “cenotécnicos”

(as) e “iluminadores”/iluminadoras, assim como, dos elementos de linguagem (“cenário”,

“iluminação”) e da questão da pluralidade de significados que a obra provoca, comparando-a à

vida:

“DIRETORA: Em outro teatro, com outras atrizes e atores, outros cenários, com

outras disposições e outra iluminação, vocês devem admitir que a criação seria

certamente outra”.

“DIRETORA: Convido-os a considerar que uma obra de arte está fixada para sempre

em uma forma imutável. Parece a vocês que possa haver vida onde mais nada se

move?”

A Cena 5, como foi dito anteriormente, é outro fragmento também retirado da peça O

Palco, de Fernando Lira Ximenes. Neste fragmento, a cena discute sobre a função do teatro em

provocar sensações na plateia que estão para além do que as palavras são capazes de explicar,

como nos seguintes trechos retirados desta cena:

“ATOR 2: Você está entendendo alguma coisa? /ATOR 1: Não é para entender, é para

sentir!”.

“ATOR 1: Use a imaginação!”.

“ATOR 1: O palco não se explica. Se sente! Assista-o, repetidas vezes, que você

começará a senti-lo!”.

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Ainda nessa discussão sobre o caráter provocativo do teatro, esse fragmento também

fala sobre a pluralidade das construções de significados a partir de distintas perspectivas que

uma obra pode provocar na (o) espectadora/espectador conforme apresento no seguinte trecho

retirado dessa mesma cena: “ATOR 1: Claro que estou! Eu já assisti a esse espetáculo umas

dez vezes e cada vez sinto algo diferente. Cada vez que sento em outro lugar, tenho uma nova

sensação!”.

Para além da dramaturgia, o cenário, a sonoplastia, a iluminação e o figurino são

elementos teatrais que também foram utilizados por mim, na mostra, a fim de discutir o

fenômeno da representação teatral. Durante o ensaio geral no palco do Teatro Martim

Gonçalves (Escola de Teatro da UFBA), utilizamos o recurso do palco giratório. O palco do

TMG possui em seu centro um palco giratório conforme ilustração abaixo.

Figura 12 – O palco do TMG

Fonte: idealizado pelo autor.

Esse palco ao ser acionado para girar, produzia um barulho de engrenagem enferrujada

que me incomodou inicialmente. Porém, fui percebendo que esse som que denunciava a

engrenagem por trás do palco giratório, era um potente efeito metateatral, pois que através do

som, mostrava ao público que o palco girando não era uma ilusão, mas sim um elemento do

teatro. Este “acaso” acabou gerando descobertas bem-vindas à obra em construção. “Aceitar a

intervenção do imprevisto implica compreender que o artista poderia ter feito aquela obra de

modo diferente daquele que fez. Aceita-se que há concretizações alternativas - admite-se que

outras obras teriam sido possíveis” (SALLES, 1998, p. 34).

O cenário para a mostra foi pensado em função desse caráter metateatral de se discutir

sobre a atividade teatral. O cenário era o próprio palco do Teatro Martim Gonçalves. Quando

não era o próprio palco teatral, as atrizes Vânia e Daddi seguravam um tecido ao fundo a fim

de ambientar a cena (Figura 12). Desta forma, assumindo-se as duas atrizes segurando o

cenário, a atividade teatral era revelada. A iluminação era geral a fim de revelar os detalhes

deste palco: o palco giratório, a tela de projeção e as marcações de cena no chão. A própria

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iluminação também se apresentava metateatralmente (Figura 12). Três pequenas ribaltas foram

colocadas ao redor do palco giratório, exibindo-se suas fiações, ou seja, a plateia era a todo

tempo chamada à consciência de que estava num teatro e de como funcionava este teatro. Na

Figura 13, também podemos observar a referência ao texto. Nesta figura, Marina faz menção

às leituras dramáticas78, ao ler o trecho da peça de Pirandelo, Esta noite se representa de

improviso.

Figura 12 – Foto tirada durante a apresentação. Vânia Cristh ao fundo e sentada no banco, Marina Ramos

Foto: Ingrid Lago

Já o figurino, a discussão sobre o teatro se dá “como uma transcodificação visual do

conteúdo textual” (SANTANNA, 1997, p. 158). Em outras palavras, o figurino decodifica,

transformando um conteúdo textual em imagem.

78É uma leitura em voz alta de texto teatral para um público.

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Figuras13 e 14 –Da esquerda para a direita (Figura 8: Marina e Vânia. Figura 9: Jamile, Daddi e Cahê)

Foto: Ingrid Lago

Em todos os figurinos, pedi que as calças fossem neutras e num mesmo tom a fim de

ressaltar as camisas, chamando, dessa forma, a atenção da (o) espectadora/espectador para o

discurso imagético das personagens e da peça. Na figura 13, o figurino de Marina é uma camisa

que traz o número da lei que protege a comunidade LGBT. É ela quem lê a citação de Guacira

Louro (2003) sobre a linguagem enquanto ação fixadora de desigualdades. O figurino de Vânia

com a frase “Eu não sou obrigada” discute a natureza livre da arte. Ela representa a personagem

da diretora na cena 2. Na figura 14, o figurino de Jamile traz na camisa, a imagem de um rosto

barbudo a fim de discutir sobre gênero, pois que na peça de Pirandelo, esta personagem chama-

se Pai. E, no texto da mostra, eu optei por chamá-la de Mãe. Desta forma, esse “rosto barbudo”

discursa imageticamente sobre o fato de Jamile representar uma personagem que no texto de

Pirandelo é homem, mas que no texto da mostra é mulher. O figurino de Daddi é a camisa da

personagem de TV, Chapolin Colorado. Daddi representou nas cenas 1 e 5, o Ator 2, a

espectadora que ia assistir uma peça de teatro e toda hora fica conversando. Aqui, essa analogia

entre a personagem de Daddi e Chapolin deve-se pela comédia e pelo fato de Chapolin fazer

constantemente críticas sociais em relação à América Latina. O Figurino de Cahê traz símbolos,

formas geométricas (traços, círculos) que decodificam sua personagem enquanto alguém que

analisa e calcula. Ele representou a personagem das cenas 1 e 5, o Ator 1, que explicava o

fenômeno teatro, inclusive, como algo que não se entende.

Assim como o figurino, as fotos e o cartaz de divulgação da mostra também são

transcodificações visuais do conteúdo textual da obra. A linguagem fotográfica

transcodificando a linguagem teatral.

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Figura 15 – Meta lingua gem

Fonte:

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4 CONCLUSÕES

Figura 16 – foto tirada durante a apresentação da peça.

Da esquerda para a direita: Daddi Limah, Cahê Roberto, Marina Ramos, Jamile de Jesus e Vânia Cristh.

Foto: Ingrid Lago

A prática associada à teoria fez-me perceber, com maior clareza, o corpo a partir de três

observações: (a) enquanto primeiro vocábulo/meio de produção teatral; (b) o quanto ele é

alienado pelo condicionamento das rotinas; e (c) a sua importância e potencial enquanto

expressão não-verbal, ideológica, artística e significativa. Pude compreender melhor a relação

entre linguagem e realidade social, e um pouco mais sobre a teatralidade que habita no cotidiano

da vida. Esta pesquisa fez-me também perceber Boal, Brecht e a cena contemporânea a partir

de diversos aspectos. Com Boal, por exemplo, aprendi sobre o plano geral de conversão; os

exercícios e os jogos teatrais; a investigação do corpo enquanto primeiro meio de produção

teatral a ser disponibilizado; a defesa de que nem toda linguagem é língua; e que o ser humano

deve produzir e não apenas consumir esteticamente (artisticamente e culturalmente). Com

Brecht, aprendi mais sobre a importância da (o) espectadora/espectador; aprendi também que o

teatro deve distanciar os acontecimentos “naturais” a fim de serem criticados; que tudo tem um

porque; que o metateatro é fundamental para se repensar o teatro e sua função; e que o acesso

linguístico é uma ótima maneira de potencializar o diálogo entre palco, plateia e sociedade.

Outro grande ensinamento é que percepção muda e que, mudando, as formas de se provocar e

provocar a (o) espectadora/espectador contemporânea (o) também precisam mudar. Nesta

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pesquisa, essa característica performática de se provocar em sua própria performance teatral,

inovando o jogo, e de provocar na plateia a sua reação também performática, esteve presente.

O plano adaptado deu certo, o produto artístico deu certo, a escolha da orientação e da

banca deram certo, a escolha pelo curso de Licenciatura em Teatro deu certo, a escolha dos

recortes e o diálogo entre eles também deram certo. Inicialmente, eu visei falar sobre a

linguagem teatral a partir da influência do Teatro Grego e seu sistema “trágico” coercitivo no

nosso teatro ocidental. Durante a qualificação, percebi que eu não tinha argumentos para criticar

a suposta catarse gerada por esse sistema, apresentando, assim, uma perspectiva obsoleta, sem

contrapropostas de outras (os) teóricas (os) teatrais, criando uma dicotomia que demonizava a

tragédia grega. Sendo assim, substituí o argumento da catarse coercitiva da tragédia grega pelo

argumento da efetivação da participação da (o) espectadora/espectador enquanto

coautora/coautor da obra artística.

Enquanto escrevia esta monografia, também preparava-me e participava do processo

seletivo para o Programa de Pós-Graduação da UFBA assim como finalizava o PIBIC com

intervenções teatrais em 6 turmas dos sétimo, oitavo e nono ano da Escola Municipal Amélia

Rodrigues, localizada no bairro do Tororó, em Salvador, com a pesquisa Brecht e o metateatro

no processo de contação de histórias. Minhas perspectivas futuras são de dar continuidade a

essa pesquisa de processos educacionais em artes cênicas. Ingressando no mestrado buscarei

aprofundar-me mais na proposta da radicalização brechtiana na cena contemporânea; na

investigação do metateatro e da comédia enquanto efeitos de distanciamento; e na crítica ao

sistema “trágico” coercitivo com adolescentes do ensino público. A fim de potencializar essa

pesquisa do PIBIC79, multiplicando-a, é que esta experiência resultará na escrita de um artigo

científico e em sua apresentação no Congresso da UFBA, de 2018. Desta forma pretendo criar

um projeto, no qual eu mobilize a capacitação de 6 licenciadas (os) em teatro, pela UFBA, a

fim de que esta turma realize intervenções teatrais em escolas da rede pública, tendo como base

de desdobramento o artigo científico citado.

Para finalizar, chego a algumas conclusões: 1) a partir de Guacira Louro (2003), percebo

a importância e a necessidade em nos conscientizarmos criticamente sobre as práticas cotidianas

linguísticas que, em/por sua “naturalidade”, carregam ideologias de opressão; 2) a importância

e a necessidade em se repensar com frequência, a função do teatro, na sociedade; e 3) em como

79Nesta pesquisa, eu desenvolvo 6 intervenções teatrais (espetáculo de 20 minutos + oficina de 80 minutos) a partir

da cena contemporânea, das peças didáticas, da contação de histórias e da acessibilidade física e linguística.

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é fundamental desconstruir para construir novos procedimentos e mecanismos de efetivação da

participação da (o) espectadora/espectador na produção estética: artística e cultural.

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REFERÊNCIAS

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Acesso em: 10 mar. 2018.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia de linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara

Frateschi Vieira com a colaboração de Lucia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas

Cruz. 12. ed. São Paulo: HUCITEC, 2006.

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2005.

BOAL, Augusto. Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

BOLLE, Willi. A linguagem gestual no teatro de Brecht. Revista Língua e Literatura. São

Paulo, n. 5, USP, 1976. p. 393-410

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DESGRANGES, Flávio. A Pedagogia do Espectador. São Paulo: HUCITEC, 2010.

DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo. São Paulo:

HUCITEC, 2017.

FEGHALI, Jandira. Discurso de votação Impeachment. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=C237W743aIA>. Acesso em: 10 fev. 2018. Imagem

captada da TV Camara em 17 de abril de 2016.

JEAN WYLLYS. Discurso de votação Impeachment. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=BkgXS8iKnWY>. Acesso em: 10 fev. 2018. Imagem

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Rio de

Janeiro: Coleção Leitura, 1998.

JOHN, Elton; TAUPIN, Bernie. Your song. In: JOHN, Elton. Elton John. Londres: DJM

Records, 1970. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 1

KOUDELA, Ingrid D. Jogos Teatrais. São Paulo: Perspectiva, 1998.

KOUDELA, Ingrid D. Brecht: um processo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 2010.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.

3. ed. Petrópolis, RJ: Petrópolis, 2003.

MILET Maria Eugênia; DOURADO, Paulo. Manual da Criatividade. Salvador: EGBA, 1998.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 2001.

PIRANDELLO. Do Teatro no Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. J. Guinsburg

(organização).

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RIBEIRO, Kelly Cristine. Contação de histórias: seguindo o curso de suas águas. 198 f. il.

2014. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de

Educação, Salvador, 2014.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo:

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SANTANNA, Catarina. Metalinguagem e Teatro. Cuiabá: EdUFMT, 1997.

SECOS & MOLHADOS. Prece Cósmica. In: SECOS & MOLHADOS. Secos & Molhados.

São Paulo: Continental; [Warner Music Brasil (CD)] 1973. 1 disco sonoro. Lado B, faixa 10.

SPOLIN, Viola. Jogos Teatrias: O fichário de Viola Spolin. São Paulo: Perspectiva, 2012.

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APÊNDICE A – Texto da mostra didática “Meta Lingua Gem”

Prólogo.

(Áudio da deputada Jandira Feghali na votação do impeachment. Ao fundo, vaias das (os)

deputadas (os) a favor).

Em respeito aos trabalhadores que usam o vermelho da luta e a bandeira do Brasil, do campo e

da cidade que estão nas ruas, venho com muito sacrifício e convicção dizer: a luta apenas

começou! Em respeito à democracia, à constituição. Não houve crime. Presidente Dilma é

honesta! Não há crime, portanto, é golpe! E eu voto não contra o golpe.

(Cortinas fechadas. Teatro de bonecas (os). Texto da música Prece Cósmica, do grupo Secos

e Molhados).

Que os 4/como num teatro/conservem a mão/sem nenhum/gesto/que o vinho quente/do

coração/lhes suba à cabeça/espessa/que do bolso de/cada um dos/4/como num

teatro/voem/pombas/(pombas brancas/...e amanheça.

Cena 1.

(Primeira parte da peça O Palco de Fernando Lira Ximenes).

ATOR 2: Tá demorando, você não acha?

ATOR 1: SSSSHHH!

ATOR 2: Foi comigo?

ATOR 1: SSSSHHH! Dá pra fazer silêncio?

ATOR 2: Hein!?

ATOR 1: Você pode fazer silêncio para que eu possa assistir ao espetáculo?

ATOR 2: Entendi, quando começar eu me aquieto!

ATOR 1: SSSHHH! Já começou!

ATOR 2: O quê?

ATOR 1: Fala baixo! O espetáculo já começou, faz cinco minutos!

ATOR 2: Já? E onde estão as atrizes e os atores?

ATOR 1: Não tem atrizes e nem atores!

ATOR 2: Não tem atrizes e nem atores?

ATOR 1: SSSHHH! Não! É só o palco, e nada mais!

ATOR 2: Ah! Eu não estou entendendo nada, você está?

ATOR 1: Por favor, você está tirando a concentração do palco.

ATOR 2: Ah! Desculpe! Passei a noite em claro...

ATOR 1: SSSHHH!

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ATOR 2: Meu filho não me deixou dormir... Doente... Com febre... Muita tosse... Sem

parar! Droga... Alô. Não posso falar agora... Estou no teatro... Teatro... Estou no

teatro! Isto, teatro... Acho que já começou...

ATOR 1: (toma o celular) No final da peça eu devolvo!

Cena 2.

(fragmento retirado da peça Seis personagens em busca de um autor, de Pirandelo).

DIRETORA: A senhora e o senhor querem brincar brincar?

MÃE: Não. Mas o que é que a senhora está dizendo? Pelo contrário, nós trouxemos um

drama doloroso e poderemos ser a sua sorte.

DIRETORA: Façam-me o favor de ir embora que nós não temos tempo a perder com gente

louca.

MÃE: Oh, senhora... a senhora bem sabe que o mundo está cheio de infinitos absurdos,

os quais, descaradamente, nem sequer precisam parecer verosímeis porque já são

verdadeiros.

DIRETORA: Mas que diabos é que está dizendo?

MÃE: Eu digo que, realmente, é possível julgar-se loucura, esforçar-se para fazer o

contrário. Isto é, criar loucuras verosímeis para que pareçam verdadeiras. Mas

me permita fazê-la observar que se loucura for, ainda assim, é a única razão do

seu ofício.

DIRETORA: Ahhhh. Sim. Parece um ofício de loucos, o nosso.

MÃE: Bem, tornar verdadeiro o que não é, sem necessidade e por brincadeira... Não é

a senhora quem dá vida a seres imaginários?

DIRETORA: Mas eu lhe peço crer, cara senhora, que uma profissão de atriz e ator é uma

profissão nobilíssima e, se hoje em dia, os novos dramaturgos nos dão para

representar peças estúpidas e fantoches, ao invés de seres humanos, saiba que

nos orgulhamos de ter dado vida aqui, nesses tablados, a obras imortais.

MÃE: Mas é isso, minha senhora. Muito bem. É dar vida a seres vivos mais vivos do

que aqueles que respiram e vestem roupas. Somos da mesmíssima opinião.

DIRETORA: Mas como? Se primeiro a senhora disse que ...

MÃE: (interrompendo) Não, não. Desculpas. Realmente, eu disse para a senhora. É

porque a senhora disse que não tinha tempo a perder com loucos. Enquanto a

senhora sabe que nós precisamos da fantasia para dar vida a sua obra de criação.

DIRETORA: Está bem. Está bem. Agora, me diga uma coisa. Aonde é que você quer chegar

com isso?

MÃE: A lugar nenhum, minha senhora. Só te demonstrar que a vida nasce de muitos

modos, de muitas formas. Árvore ou seixo ... ou mulher. E que também se nasce

personagem.

DIRETORA: E a senhora como esses outros à sua volta nasceu personagem?

MÃE: Perfeitamente, minha senhora. E vivos como nos vê.

Cena 3.

(fragmento retirado da peça Esta noite se representa de improviso, de Pirandelo).

DIRETORA: A obra do escritor, ei-la aqui. (mostra o rolo de papel). O que faço com ela?

Tomo-a como matéria da minha criação cênica e dela me sirvo, como me sirvo

da competência das atrizes e atores escolhidas para representar os papéis de

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acordo com a interpretação que terei feito deles; e dos cenógrafos, e dos

cenotécnicos; e dos iluminadores; todos de acordo com os ensinamentos, as

sugestões, as indicações que eu tiver dado. Em outro teatro, com outras atrizes e

atores, outros cenários, com outras disposições e outra iluminação, vocês devem

admitir que a criação seria certamente outra. Para julgar o texto, seria necessário

conhecê-lo; e no teatro isto não é possível, mediante uma interpretação que, feita

por certas atrizes e certos atores, será uma, e feita por outras atrizes e outros

atores, será obrigatoriamente outra. A única forma seria se a obra pudesse

representar-se por si, não mais com as atrizes e os atores, mas com suas próprias

personagens, que, por prodígio, tomassem corpo e voz. Convido-os a considerar

que uma obra de arte está fixada para sempre em uma forma imutável. Parece a

vocês que possa haver vida onde mais nada se move?

Cena 4.

(áudio do deputado Jean Willys na votação do impeachment, com as (os) artistas fazendo

imagens sobre a ditadura).

Bom, em primeiro lugar, eu quero dizer que eu tô constrangido de participar dessa farsa, dessa

eleição indireta, conduzida por um ladrão, urdida por um traidor, conspirador e apoiada por

torturadores, covardes, analfabetos políticos e vendidos, esta farsa sexista. Em nome dos

direitos da população LGBT, do povo negro exterminado nas periferias, dos trabalhadores da

cultura, dos sem-teto, dos sem-terra, eu voto não ao golpe. E durmam com essa: CANALHAS!

Cena 5.

(última parte da peça O Palco, de Fernando Lira Ximenes).

ATOR 2: Psiu! Psiu!

ATOR 1: Que é?

ATOR 2: Você está entendendo alguma coisa?

ATOR 1: Não é pra entender, é pra sentir!

ATOR 2: Ah! Psiu! Psiu! Eu não estou sentindo nada!

ATOR 1: Pois fique, que, no final, você vai sentir tudo!

ATOR 2: Ah!

ATOR 1: O que foi agora? Você está atrapalhando o espetáculo!

ATOR 2: Você está sentindo alguma coisa?

ATOR 1: Claro que eu estou! Eu já assisti a este espetáculo umas dez vezes e cada vez

sinto algo diferente. Cada vez que sento em outro lugar, tenho uma nova

sensação!

ATOR 2: Então, você pode trocar de lugar comigo? É que eu não enxergo direito e eu sou

meio surdo! E dali, de onde estou, não dá para sentir nada!

ATOR 1: Tudo bem! Agora vê se presta atenção!

ATOR 2: Ah! Agora sim! Dá pra ver que não tem nada no palco!

ATOR 1: Use a imaginação!

ATOR 2: A imaginação

ATOR 1: É! Do que você está rindo?

ATOR 2: Ué? Do palco, ele é demais!

ATOR 1: Mas não é uma comédia!

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ATOR 2: Não?

ATOR 1: Não, é um drama! Um drama existencial muito sério.

ATOR 2: Por que estão fazendo isso com ele?

ATOR 1: Ele quem?

ATOR 2: O palco! Eles querem acabar com o palco!

ATOR 1: Ah! Então você agora está sentindo

ATOR 2: Muito!

ATOR 1: Uuh! Arrasou! Bravo! Bravo!

ATOR 2: Que é que deu nele, meu Deus?

ATOR 1: Lindo! Lindo! Arrasou!

ATOR 2: Ei, aonde você vai?

ATOR 1: Vou embora! O espetáculo acabou! Tome seu celular!

ATOR 2: Mas já? Tão rápido!

ATOR 1: O tempo não é importante, o que conta é a intensidade!

ATOR 2: Ah!... Ei, espere por mim! Eu queria que você me explicasse algumas coisas que

eu não consegui sentir.

ATOR 1: O palco não se explica. Se sente! Assista-o, repetidas vezes que você começará

a senti-lo!

ATOR 2: Ah! Ei, espere, eu tô sentindo!

Cena 6.

(citação do livro de Guacira Lopes Louro, Gênero, sexualidade e educação – uma perspectiva

pós-estruturalista sobre linguagem).

Dentre os múltiplos espaços e as muitas instâncias onde se pode observar a instituição das

distinções e das desigualdades, a linguagem é, seguramente, o campo mais eficaz e persistente

— tanto porque ela atravessa e constitui a maioria de nossas práticas, como porque ela nos

parece, quase sempre, muito "natural". Seguindo regras definidas por gramáticas e dicionários,

sem questionar o uso que fazemos de expressões consagradas, supomos que ela é, apenas, um

eficiente veículo de comunicação. No entanto, a linguagem não apenas expressa relações,

poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças

(LOURO, 2003, p. 65).

Cena 7.

(frases que contêm opressão linguística).

Jamile Cruz: (lendo) “Tia Eron, você é negra, porém bonita e inteligente.” (frase

retirada do twitter pessoal do atual presidente ilegítimo Michel Temer).

(Jamile rasga o papel).

Cahê Roberto: (lendo) “Parabéns!!! Assisti o programa hoje com o maridão que a Neide

(nossa criada) gravou!”. (frase retirada do twitter pessoal da esposa do

atual presidente ilegítimo).(Cahê rasga o papel).

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Daddih Lima: (lendo) “Escrava substituirá presidente em nota de vinte dólares.”

(dizendo) “Ela não foi escrava. Ela foi escravizada”. (a frase lida foi

tirada de um jornal daqui mesmo do Brasil). (Daddih rasga o papel).

Vânia Christ: (lendo) “Pé-de-moleque é chamado de demônio e denominado pela cor

da pele na frase: - Querem ver que o demônio do negrinho tornou a cair?”

(citação de Guacira Lopes Louro). (Vânia rasga o papel).

Epílogo.

(refrão da música Um beijo, da Mc Xuxú).

Um beijo pra quem é de longe/Um beijo pra quem é daqui/Um beijão para o meu bonde/Um b

eijo pras travestis/Um beijo/Um beijo/Um beijo pras travestis.

(projeção da interpretação do cantor Lineker e do tecladista Chicão da música Geni e o

Zepelim, de Chico Buarque).

De tudo que é nego torto/Do mangue e do cais do porto/Ela já foi namorada/O seu corpo é dos

errantes/Dos cegos, dos retirantes/É de quem não tem mais nada/Dá-se assim desde menina/Na

garagem, na cantina/Atrás do tanque, no mato/É a rainha dos detentos/Das loucas, dos

lazarentos/Dos moleques do internato/E também vai amiúde/Com os velhinhos sem saúde/E as

viúvas sem porvir/Ela é um poço de bondade/E é por isso que a cidade/Vive sempre a

repetir/Joga pedra na Geni!/Joga pedra na Geni!/Ela é feita pra apanhar!/Ela é boa de cuspir!/Ela

dá pra qualquer um!/Maldita Geni!/Um dia surgiu, brilhante/Entre as nuvens, flutuante/Um

enorme zepelim/Pairou sobre os edifícios/Abriu dois mil orifícios/Com dois mil canhões

assim/A cidade apavorada/Se quedou paralisada/Pronta pra virar geleia/Mas do zepelim

gigante/Desceu o seu comandante/Dizendo: "Mudei de ideia!"/Quando vi nesta cidade/Tanto

horror e iniquidade/Resolvi tudo explodir/Mas posso evitar o drama/Se aquela formosa

dama/Esta noite me servir/Essa dama era Geni!/Mas não pode ser Geni!/Ela é feita pra

apanhar/Ela é boa de cuspir/Ela dá pra qualquer um/Maldita Geni!/Mas de fato, logo ela/Tão

coitada e tão singela/Cativara o forasteiro/O guerreiro tão vistoso/Tão temido e poderoso/Era

dela, prisioneiro/Acontece que a donzela/(E isso era segredo dela)/Também tinha seus

caprichos/E ao deitar com homem tão nobre/Tão cheirando a brilho e a cobre/Preferia amar

com os bichos/Ao ouvir tal heresia/A cidade em romaria/Foi beijar a sua mão/O prefeito de

joelhos/O bispo de olhos vermelhos/E o banqueiro com um milhão/Vai com ele, vai, Geni!/Vai

com ele, vai, Geni!/Você pode nos salvar/Você vai nos redimir/Você dá pra qualquer

um/Bendita Geni!/Foram tantos os pedidos/Tão sinceros, tão sentidos/Que ela dominou seu

asco/Nessa noite lancinante/Entregou-se a tal amante/Como quem dá-se ao carrasco/Ele fez

tanta sujeira/Lambuzou-se a noite inteira/Até ficar saciado/E nem bem amanhecia/Partiu numa

nuvem fria/Com seu zepelim prateado/Num suspiro aliviado/Ela se virou de lado/E tentou até

sorrir/Mas logo raiou o dia/E a cidade em cantoria/Não deixou ela dormir/Joga pedra na

Geni!/Joga bosta na Geni!/Ela é feita pra apanhar!/Ela é boa de cuspir!/Ela dá pra qualquer

um!/Maldita Geni!/Joga pedra na Geni!/Joga bosta na Geni!/Ela é feita pra apanhar!/Ela é boa

de cuspir!/Ela dá pra qualquer um!/Maldita Geni!

FIM?