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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA BRUNO SILVA DOS SANTOS ARTE, MELANCOLIA E SOFRIMENTO: A CONTEMPLAÇÃO DO BELO COMO ATENUANTE DA DOR NA FILOSOFIA DE SCHOPENHAUER. Salvador 2016

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    BRUNO SILVA DOS SANTOS

    ARTE, MELANCOLIA E SOFRIMENTO: A CONTEMPLAÇÃO DO BELO

    COMO ATENUANTE DA DOR NA FILOSOFIA DE SCHOPENHAUER.

    Salvador

    2016

  • BRUNO SILVA DOS SANTOS

    ARTE, MELANCOLIA E SOFRIMENTO:

    A CONTEMPLAÇÃO DO BELO COMO ATENUANTE DA DOR NA FILOSOFIA DE

    SCHOPENHAUER

    Monografia apresentada ao curso de

    graduação em filosofia, da Faculdade de

    Filosofia e Ciências Humanas da

    Universidade Federal da Bahia, como

    requisito parcial para obtenção do grau de

    bacharel em filosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Jarlee Oliveira Silva

    Salviano

    Salvador

    2016

  • AGRADECIMENTOS:

    Agradeço a minha mãe Maria Miranda da Silva com todo amor e gratidão que as

    palavras apenas tentam explicar.

    Ao meu orientador Jarlee Oliveira Silva Salviano pelas dicas, incentivo e

    acompanhamento nesse caminhar investigativo.

    Ao Programa de Educação Tutorial de Filosofia da UFBA (PET Filosofia UFBA), ao

    qual estive vinculado por dois anos como bolsista, pelo apoio à minha pesquisa e o

    comprometimento com a busca pela melhoria do curso e da universidade.

    A Fundação de amparo ao pesquisador da Bahia (FAPESB) que financia parte da

    minha pesquisa em Schopenhauer.

  • “Deter o monopólio do sofrimento é viver

    suspenso sobre um abismo. E todo

    sofrimento verdadeiro é um abismo.”

    (Emil Cioran)

  • RESUMO

    Nos livros I e II de O Mundo como Vontade e como representação Schopenhauer

    apresenta sua visão pessimista de mundo, segundo a qual desde a sua essência, os

    indivíduos desse mundo estão condenados a não encontrar uma felicidade

    duradoura ou bem estar. A visão da realidade que nos aparece é aquela do combate

    incessante dos indivíduos pela razão de que estão todos submersos na busca

    desenfreada pela satisfação, mesmo que inconscientemente. Até porque isso

    apenas reflete a essência última desse mundo que é a Vontade, sempre em busca

    de satisfação. A partir desse cenário caótico e voluptuoso, nos livros III e IV, são

    apresentadas escapatórias a esse mundo. No quarto livro uma fuga completa,

    totalmente eficaz e duradoura via ascetismo; já no livro III uma escapatória será

    enunciada pela contemplação da beleza, mas que é entretanto fugaz, momentânea.

    São de considerações acerca desta fuga da dor através da contemplação da beleza

    e qual seu alcance que iremos tratar aqui, através de análises do sentimento do

    sublime e do belo, e da figura do gênio, apontando sua melancolia característica.

    Palavras-chave: pessimismo, estética, sofrimento, melancolia, genialidade

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO......................................................................................................................................7

    1 O MUNDOCOMO VONTADADE E COMO REPRESENTAÇÃO..............................................9

    2 UM PESSIMISMO METAFÍSICO: A AUTO-DISCÓRDIA DA VONTADE...............................14

    3 METAFÍSICA DO BELO:ATENUANTE DO SOFRIMENTO E VISÃO IDEAL DO MUNDO..19

    4 A ALEGRIA ESTÉTICA, O SUBLIME E O TRÁGICO, E A MELANCOLIA DO GÊNIO.........28

    5. CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................................46

    REFERÊNCIAS...................................................................................................................................47

  • 7

    INTRODUÇÃO

    A Metafísica do belo schopenhaueriana possui no seu interior uma dualidade

    peculiar e importante que é a de que ao mesmo tempo em que define a arte e a

    contemplação do belo como um modo de conhecimento, levando a contemplação

    artística para um âmbito objetivo, apresenta também, por outro lado, a contemplação

    como um atenuante do sofrimento e da dor implacáveis que cotidianamente

    atormentam os indivíduos, apontando assim o lado subjetivo da sua estética. A

    pesquisa que se apresenta aqui busca perceber quais são exatamente os limites

    desse atenuante da dor através da contemplação estética e ver de que modo ele se

    dá nessa relação entre o lado objetivo e lado subjetivo. Ao analisar, entre outras

    coisas, as noções de sublime e do trágico e da figura do gênio, tentaremos encontrar

    elementos que podem até mesmo contrapor, em certo sentido, uma visão de

    libertação total do sofrimento através da contemplação artística.

    Será preciso para isso investigar de que modo conhecer a própria condição

    trágica e essencialmente sofredora da humanidade e do mundo não impede e, além

    disso, possibilita ao mesmo tempo a diminuição do sofrimento cotidiano na

    metafísica do belo schopenhaueriana. Para o esclarecimento de tal questão, será

    imprescindível uma análise da figura do gênio na arte, sendo este a figura principal

    na contemplação estética, assim como das várias formulações que Schopenhauer

    lança mão durante sua obra para descrever e definir o sofrimento, diferenciando, em

    certo momento, da melancolia que seria um estado exclusivo do gênio. Além de

    tecer análises acerca de que tipo de conhecimento do essencial seria este

    alcançado através da contemplação do belo e de como ele se relaciona com o

    atenuante da dor nesta mesma contemplação, tendo sempre em vista a finalidade

    de demonstrar como todos esses elementos se articulam.

    Para tal intenção foram abordados textos das principais obras de

    Schopenhauer, destacando-se a sua obra principal O Mundo como vontade e como

    representação e, em especial para o tema da estética, o livro 3 da obra supracitada,

    além de suas preleções a Metafísica do Belo e o tomo II de O Mundo como vontade

    e como representação.

  • 8

    Para buscar um maior alcance também em questões que se relacionam à sua

    estética que foram trabalhadas neste texto, tornou-se importante uma análise sobre

    o sofrimento no livro 2 de O Mundo como vontade e como representação, no qual

    ele apresenta a noção de Vontade como coisa-em-si do mundo e como explicação

    última do sofrimento; e do livro 4, no qual Schopenhauer apresenta sua ética e tece

    considerações também acerca da dor e do sofrimento humano. Como não podia ser

    diferente, foi utilizada uma seleção dos textos dos principais comentadores que

    versavam sobre a teoria schopenhaueriana, em especial a estética, que se

    configuram aqui como relevante referencial teórico desta monografia.

  • 9

    1 O MUNDO COMO VONTADE1 E COMO REPRESENTAÇÃO.

    1.1 As duas faces do mundo

    O principal e definitivo livro que expõe na completude o pensamento

    schopenhaueriano, O mundo como vontade e como representação “publicado em

    1818, com data de 1819” (BARBOZA, 2005 p. 7), já traz expresso no seu título uma

    dupla significação do mundo que é fundamental para a compreensão da filosofia do

    autor: A duplicidade do conhecimento do mundo como Vontade e como

    Representação. Em termos de influências que perpassam o pensamento de

    Schopenhauer e a própria história da filosofia, pode-se dizer, com ressalvas e pondo

    em suspenso peculiaridades importantes, que essa duplicidade fundamental é

    herdada da distinção kantiana entre Coisa-em-si e fenômeno e da platônica entre

    mundo das Ideias e mundo sensível. Sendo, na filosofia schopenhaueriana, o

    conhecimento do mundo como Vontade como um conhecimento, mesmo que

    indiretamente, daquilo que há de essencial, o em-si das coisas, do que é, em última

    instância, o que há de mais real no mundo. Já o conhecimento do mundo como

    representação é o conhecimento das aparências, do fenômeno, do mundo como se

    apresenta na realidade empírica.

    No conhecimento do mundo enquanto representação, temos sempre a

    representação que surge da correlação sujeito-objeto. Correlação esta em que não

    há uma preponderância de um ou outro lado, a representação surge da correlação

    mútua entre eles.

    É na visão do mundo fenomênico e aparente que está baseado todo o

    conhecimento do senso comum e o científico: estão sempre regidos pelo princípio

    de razão, que é o conjunto básico das noções de tempo, espaço e causalidade,

    tendo como fórmula que “nada é sem uma razão pela qual é, que a tudo

    explica”(SCHOPENHAUER apud BARBOZA, 2001, p.9). No conhecimento regido

    pelo principio de razão nos questionamos sobre o porquê (causalidade), o onde

    1A utilização do termo Vontade com maiúscula será constante em todo o texto denotando a

    distinção entre a Vontade como essência metafísica e a vontade (com v minúsculo) empírica

    nos indivíduos. Segue-se aqui um padrão nas traduções e comentários schopenhauerianos.

  • 10

    (espaço), o quando (tempo), ficando sempre no conhecimento das relações entre as

    coisas, sem chegarmos até a essência mesma dessas coisas. É sempre um

    conhecimento meramente de relações entre os fenômenos, nunca de algo além dos

    fenômenos, sem aproximação da essência, nunca da coisa em si mesma.

    Por outro lado, há o mundo enquanto Vontade, o outro lado do mundo, cujo

    conhecimento nos coloca mais próximo do que é essencial, da essência mais íntima

    de cada uma das representações. Todo esse mundo material que conhecemos como

    representação fenomênica nada mais é do que a expressão, em diversos graus,

    dessa mesma Vontade essencial. Dessa atividade constante da Vontade que se

    observa em cada força e movimento na natureza. Natureza esta que é a objetidade

    dessa vontade, ou seja, é essa Vontade tornada objeto. A Vontade, essa força cega,

    esse ímpeto que é a essência do mundo, sempre nos aparece então como atividade

    no mundo onde as representações empíricas – o mundo aparente – são a sua

    manifestação, a sua expressão.

    O mundo como Vontade e o mundo como representação não podem ser

    vistos como dois mundos diferentes ou separados. São, na verdade, apenas dois

    lados de um mesmo mundo, as duas faces desse mundo. Como afirma Muriel Maia

    (1991, p.33) “Trata-se, pois, de um mundo sem transcendência, em que superfície e

    profundidade nada mais são do que as faces opostas de uma mesma moeda”. O

    Mundo como representação empírica, onde encontramos a racionalidade e a

    causalidade é o lado cognoscível comum trazido pelo entendimento, isto é, o mundo

    tal como conhecemos empiricamente. Por outro lado, o Mundo como Vontade, essa

    força insaciável, incondicionada e misteriosa que, como veremos mais à frente, tem

    como característica principal a busca contínua por satisfação, que se reflete e se

    repete na sua manifestação que é o mundo empiricamente conhecido. Essa busca

    infindável por satisfação se mostrará também nos indivíduos tendo como resultado

    uma carência contínua, logo dor e sofrimento.

    1.2 Metafísica imanente: O corpo como a chave para a decifração do enigma

    do mundo.

    É importante ressaltar que para Schopenhauer, não se trata de admitir

    qualquer noção de causa e efeito entre essa duplicidade ou de colocar o mundo

    como Vontade como substrato ontológico em separado, como podendo ser

  • 11

    conhecido como algo diferente da representação, com qualquer noção de

    transcendência. Pelo contrário, visando salvar a metafísica sem voltar a um estágio

    pré-crítico e fugir de um idealismo extremado, Schopenhauer lança mão de uma

    metafísica que pretende ser imanente, ou seja, uma metafísica que irá buscar

    através da experiência dos objetos do mundo (em especial no próprio corpo em

    ação do sujeito que conhece) uma intuição especial que possibilite um

    conhecimento, mesmo que indireto, da essência de todas as coisas, um

    conhecimento daquilo que há de mais essencial na natureza, da Coisa-em-si

    kantiana, que vai para além do fenômeno, mas que, entretanto, só pode ser

    conhecida através do próprio fenômeno, em uma intuição do próprio mundo, através

    da experiência empírica do próprio corpo. Sobre esse aspecto importante Cacciola

    (2003, p.11) afirma:

    A metafísica deixa de ser o conhecimento do supra-sensível, como no dogmatismo pré-kantiano, e torna-se um tipo de conhecimento que tem sua fonte na experiência interna, justo onde ela se cruza com a externa: no corpo em ação

    Um conhecimento interno e intuitivo do corpo será a chave para a metafísica

    imanente. É através dele que será possível ter um conhecimento do que está aquém

    do fenômeno individual, e que, por isso, perpassa todos eles. É o conhecimento da

    Vontade até onde se pode chegar até ela. Pelo caminho de um argumento analógico

    de uma condição dupla do corpo é que a metafísica do pensador alemão encontra

    sua porta de entrada.

    É através do entendimento, que tem como função conhecer a causalidade,

    que toda a realidade empírica nos aparece. O modo como obtemos a intuição do

    mundo efetivo é como a ação de fazer-efeito, a ação da causalidade da matéria de

    outros corpos, afeta o nosso corpo, o corpo do sujeito que conhece. Sendo assim,

    nesse sentido, o corpo é o ponto de partida do conhecimento, pois toda a intuição

    externa só ocorre no fazer-efeito de outros corpos afetando o nosso. O corpo,

    enquanto objeto entre tantos outros objetos no mundo é também representação,

    submetido a todas as leis exteriores da causalidade, tempo, espaço etc, e também

    no momento em que nosso olho o vê, a mão o toca etc. Mas há também no corpo

    humano uma espécie de condição especial que resulta no duplo conhecimento, a

    saber, o indivíduo além de um corpo, de uma representação, é também aquele que

  • 12

    conhece. A noção de corpo como objeto imediato se dá exatamente pela razão de

    que não há entre o corpo como objeto a ser conhecido e o sujeito que conhece

    mediação nenhuma. Enquanto os outros objetos que nos afetam estão sempre

    mediados pela causalidade que é fornecida pelo entendimento, temos nas

    ocorrências internas do nosso próprio corpo um conhecimento intuitivo mais próximo

    da Vontade, imediato, dessas próprias ocorrências, como os sentimentos.

    Se o corpo fosse somente mais um entre outros objetos, a força sem

    explicação que emerge em toda natureza só poderia ser denominada assim, apenas

    uma força. Força esta que, por mais que tente a ciência, nunca chega a uma

    significação mais profunda dela, e que também, diz Schopenhauer, todos os

    filósofos até ele, sempre buscaram essa significação por fora, e que por isso só

    chegaram a nomes e imagens, não percebendo que por fora, pelo estudo exclusivo

    das representações, não poderiam chegar nunca a essa intuição da essência. A

    expressão “por fora” possui aqui um papel importante porque é exatamente na

    concepção de uma intuição interna do corpo no indivíduo que se chegará a uma

    intuição da essência última de todo o mundo.

    Entretanto, a intuição pela qual se chega através do corpo àquilo que se

    encontra aquém do fenômeno isto é, da Vontade, não é aqui uma intuição da

    Vontade separada, ou seja, da coisa-em-si nela e por ela mesma. Não é o

    conhecimento da essência totalmente distanciada de suas manifestações, mas sim

    um conhecimento do próprio corpo, e através dele uma intuição do que seria essa

    essência, mas manifesta nos seus fenômenos, não em separado.

    O conhecimento que tenho da minha vontade, embora imediato, não se separa do conhecimento do meu corpo. Conheço minha vontade não no todo, como unidade, não perfeitamente como essência, mas só em seus atos isolados, portanto no tempo, que é a forma do fenômeno do meu corpo e de qualquer outro objeto. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 159)

    Podemos, entretanto, objetar nesse momento que Schopenhauer, ao intuir

    internamente o corpo de modo imediato, chegou a uma intuição somente da

    essência de seu próprio corpo, ou, sendo um pouco mais generoso, do corpo

    humano, nada garantindo, até então, a intuição da essência própria da natureza e da

    existência, que é a sua real e nada modesta intenção. Para isso, o filósofo se utiliza

    de um argumento analógico que parte de uma espécie de redução ao absurdo.

  • 13

    Schopenhauer afirma que o indivíduo, nesta condição de conhecer o próprio corpo

    internamente, pode seguir com isso de dois modos: Um deles é o de que seu corpo

    é mais um objeto entre outros na natureza e que a distinção que há nesta condição

    é somente em relação ao conhecimento. Ou seja, o corpo do sujeito só se difere dos

    outros não em sua existência, mas somente que o corpo, sendo do indivíduo, pode

    ser conhecido duplamente como dito anteriormente. A outra opção é de que o

    indivíduo reconhece seu corpo como totalmente diferente da natureza, sendo um

    único e totalmente distinto exemplar que pode ser conhecido. Que só este seu corpo

    seria então, vontade e representação, sendo os outros objetos apenas

    representação. Seguindo-se então dessa segunda opção o absurdo de pensarmos

    que o único objeto existente realmente, ou seja, que está além da representação, é

    o seu próprio corpo.

    Após assumir como absurdo o que seria a admissão da segunda opção em

    vista do conhecimento do corpo, o filósofo vai então admitir a primeira, a saber, de a

    diferença ser apenas do modo duplo do conhecimento. Essa analogia agora será

    expandida e observada como norteador para o conhecimento mais próximo do

    íntimo da essência do mundo. É a partir de então que ele passa a se utilizar da

    dualidade tão fundamental de sua filosofia, a saber, de um mundo enquanto

    Vontade, como essência, e do mundo enquanto representação, como a realidade

    fenomênica aparente.

  • 14

    2 UM PESSIMISMO METAFÍSICO : A AUTO-DISCÓRDIA DA VONTADE

    2.1 A Unidade da Vontade, Ideias platônicas e a pluralidade da representação.

    A concepção de Vontade na filosofia schopenhaueriana é desvinculada de

    uma noção de direcionamento histórico ou teleológico com uma finalidade racional

    para o mundo. Esse ímpeto do qual todo o mundo é objetidade não possui um

    aspecto ordenador ou planejado, no qual poderíamos tentar descobrir um sentido ou

    causa final para a existência. Na realidade, a marca última da Vontade é somente a

    sua busca incessante pela satisfação, essa satisfação se objetiva na força contínua

    na natureza em se reproduzir e na busca pela preservação, em suma, toda essa

    Vontade nada mais é do que vontade-de-vida2. A vontade-de-vida que impulsiona

    toda a natureza.

    Porém, apesar do todo seu aspecto caótico, a Vontade é totalmente UNA e

    está inteira e completa em cada objeto do mundo. A explicação para isso decorre do

    fato de Schopenhauer atribuir as noções de pluralidade e causalidade não à

    essência, mas aos objetos que chegam através do nosso entendimento. Ou seja,

    somente as representações é que são diversas e causais, nos aparecendo através

    do princípio de razão de tal modo assim para o nosso conhecimento. As noções de

    causalidade e pluralidade se encontram no modo como conhecemos a

    representação pelo princípio de razão e não na própria essência dessas coisas.

    Como todas essas noções se aplicam somente ao fenômeno, a Vontade é, apesar

    de UNA, totalmente sem fundamento ou causalidade anterior a si.

    Vemos então até aqui que há uma unidade na Vontade e pluralidade na

    representação. Entretanto, há uma determinada gradação na objetivação da

    Vontade na natureza, e é o que explica a diversidade das suas forças no reino

    inorgânico e a constante diversidade das espécies, para além da pluralidade do

    nosso conhecimento através do princípio de razão. São as Ideias platônicas, que em

    Schopenhauer carregam o mesmo significado platônico no que diz respeito à

    relação de modelo e cópia com as espécies e os indivíduos respectivamente:

    2 Também traduzido por Vontade de viver.

  • 15

    Os diferentes graus de objetivação da Vontade expressos em inumeráveis indivíduos e que existem como protótipos inalcançáveis, ou formas externas das coisas, que nunca aparecem no tempo e no espaço, médium do indivíduo, mas existem fixamente, não submetidos a mudança alguma, são e nunca vindo-a-ser, enquanto as coisas nascem e perecem, sempre vêm-a-ser e nunca são; os GRAUS DE OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, […] não são outra coisa senão as IDÉIAS DE PLATÃO. (SCHOPENHAUER, 2005 , p.191)

    Essas Ideias não se confundem com a própria Vontade, mas são uma

    OBJETIDADE IMEDIATA (pelo fato de não ser mediada pelo princípio de razão dos

    indivíduos), e por não ser “deturpada” por esse conhecimento das causalidades ela

    é então, além de IMEDIATA, uma objetidade ADEQUADA da Vontade essencial.

    Ora, as Ideias não podem ser conhecidas através do princípio de razão, ou

    seja, não podem ser conhecidas pelo modo comum do conhecimento empírico

    individual. Entretanto, as Ideias são objetos, pois já são a Vontade objetivada, já é

    com isso representação, diferentemente da Vontade. E como vimos anteriormente,

    todo objeto vai necessitar de um sujeito que o conheça, assim como para ser sujeito

    é necessário um objeto, pois a dualidade sujeito-objeto só existe reciprocamente. É

    aí então que entrará o sujeito puro do conhecimento através da metafísica do belo,

    que será um dos nossos pontos a serem investigados mais à frente quando

    tratarmos da metafísica do belo e seus aspectos.

    Para entendermos então como se dá a unidade e pluralidade na filosofia

    schopenhaueriana observa-se então esses três âmbitos:

    1)Vontade : não há pluralidade

    2)Ideias : onde não há individualidade, mas já é a representação para um

    sujeito, tendo em vista já ser objeto. É a representação independente do princípio de

    razão.

    3)Fenômenos : há a pluralidade plena pois conhecemos através do princípio

    de razão e de uma de suas figuras que é o princípio de individuação, através do qual

    todo os seres são conhecidos separadamente de modo individual.

    2.2 A guerra sem fim como característica do mundo: querer-viver e o

    sofrimento.

    Schopenhauer afirma que a unidade da Vontade pode ser percebida na

    harmonia da natureza como um todo, se a observarmos de uma ótica mais geral.

  • 16

    Toda a natureza é a objetidade da mesma Vontade, e através dos atos originários

    que são as Ideias – graus dessa Vontade –mostram como há certa harmonia entre

    eles, que é perceptível nas espécies, mas não nos indivíduos. Cacciola (1994, p. 88)

    afirma que “Estas [Ideias] estão em harmonia umas com as outras, mas tal harmonia

    não chega até os indivíduos da espécie e só existe para conservá-la,

    desconsiderando seus indivíduos.” Com isso, começamos a desenhar todo o

    pessimismo metafísico schopenhaueriano no momento que este aponta para uma

    conservação da natureza pela sua essência – A Vontade - somente no âmbito das

    espécies e da relação mais geral dessas espécies entre si. Como a única “intenção”

    da Vontade é a busca pela satisfação através da sua objetivação, pouco interessa a

    ela o bem estar ou sobrevivência dos indivíduos. A Vontade na natureza, podemos

    dizer, funciona apenas para a conservação das espécies e da natureza como um

    todo, pouco importando a ela os indivíduos.

    Nesta filosofia aponta-se para o fato de que o que nos é mais observável

    empírica e intuitivamente é uma auto-discórdia constante da Vontade com ela

    mesma, através da guerra perpétua dos indivíduos. Sendo todos esses objetos

    manifestações de uma mesma essência, o que ocorre com a violência e agressões

    tão constantes no mundo é o espetáculo no qual “a Vontade de vida crava

    continuamente os dentes na própria carne” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 211). Por

    um lado, podemos afirmar que na filosofia de Schopenhauer toda essa violência

    entre as representações de uma mesma essência, tão presente e observáveis no

    cotidiano, não passa da falta de clareza de consciência que advém do princípio de

    individuação através do qual cada sujeito na natureza vê a si mesmo como diferente

    do outro ao qual violenta e subjuga. Apenas em condições especiais, e

    exclusivamente no ser humano, em que a Vontade coloca um espelho diante de si3,

    é que conseguimos ver não mais o outro como o diferente, mas sim reconhecer, em

    última estância, a sua própria essência como sendo também a minha.

    Por outro lado, essa afirmação e busca impulsiva pela satisfação nos

    indivíduos não é nada mais também do que uma condição que tem as suas raízes e

    3Será explicado nos capítulos posteriores, principalmente em relação ao gênio, como isso

    ocorre.

  • 17

    explicações mais profundas no fato de todos os seres serem objetidade dessa

    essência ávida por satisfação. Como afirma Brum (1998, p.29) “Schopenhauer julga

    que a luta pela vida, presente nos graus de objetivação da vontade, demonstra o

    caráter sofredor da Vontade em si.” E que por isso expressam dessa própria

    essência uma desagradável marca que é a de estar sob o domínio de infindáveis

    desejos. Como já foi mencionado, essa Vontade que se objetiva no mundo é sempre

    vontade de vida, vontade de viver. Logo, percebemos aqui que há uma equiparação

    em Schopenhauer da Vontade, que é sempre vontade de vida, com o sofrimento,

    pois está sempre em busca de uma satisfação inalcançável, e caso se alcance uma

    satisfação um tanto mais duradoura cai no outro polo do sofrimento que é o tédio.

    Mostrando-nos assim um caminho sem saída do sofrimento enquanto estamos

    submetidos ao querer, estando sempre impulsionados, desde a essência mais

    íntima, nessa busca sem sentido e sem um fim realmente satisfatório.

    Com essa evidente falta de proporção entre o esforço e a recompensa, a vontade de viver, tomada objetivamente, aparece-nos a partir deste ponto de vista, como uma tolice, ou tomada subjetivamente, como uma ilusão pela qual todos os seres vivos atuam com o esforço máximo da sua força por algo que não tem valor. Mas a partir de uma consideração mais aprofundada vamos encontrar também aqui um ímpeto cego[blinder Drang] , um impulso [Trieb] totalmente sem fundamento[völlig grundloser] ou motivo [unmotivirter] (SCHOPENHAUER, 2014, p. 514)

    Como cotidianamente está nessa situação de impulso inconsciente, o

    indivíduo verá a todo o momento o outro como um meio, seja para sua subsistência

    e preservação (como alimentação, por exemplo) seja para alcançar a satisfação de

    um desejo, que é sempre ilusório, pois nenhuma satisfação é última, mas sim uma

    nova oportunidade a ser preenchida por novos desejos, e consequentemente, nova

    busca por satisfação, que enquanto ilusão de uma satisfação última, está fadada ao

    fracasso. Parece que sempre está em busca de algo a se alcançar, mas no fundo

    não é nada mais que um impulso interno com a ilusão em vista de uma satisfação.

    Um esforço contínuo que não parece ter uma recompensa proporcional.

    Se colocarmos as duas coisas juntas, o engenho inexprimível dos preparativos, a riqueza incalculável dos recursos, e, em contraposição, a inadequação do que é assim buscado e atingido, somos levados a concluir que a vida é um negócio cujo retorno é insuficiente para cobrir os custos (SCHOPENHAUER, 2014, p. 511)(grifos no original)

  • 18

    A visão schopenhuaeriana de um mundo que, em essência, nada mais é do

    que a manifestação de uma Vontade que é una, porém sem razão, sem teleologia

    racional ou direcionamento, em que é nela mesmo um conflito violento e insaciável,

    é uma das mais desoladoras e desencantadas visões pessimistas encontradas na

    filosofia. Visão esta que se encontra enraizada em uma teoria que afirma que esse

    impulso violento de discórdia e combate se encontra já no estado mais primitivo e

    simplório da existência. Como aponta Brum (1998, p.26) em Schopenhauer toda

    essa “imagem do combate, da guerra perpétua que sustenta a vida, é fundamental

    em sua visão pessimista da existência”.

    Desde a sua raiz mais profunda este mundo nada mais é do que um eterno

    conflito de forças insaciáveis que lutam por uma satisfação nunca plenamente

    alcançada. Seja no embate entre as representações no mundo empírico da natureza

    seja no embate desde as representações mais remotas na luta pela matéria, na luta

    pela efetividade. Ao observar essa luta perpétua entre as manifestações da Vontade,

    Schopenhauer afirma que como toda a natureza é expressão de uma mesma

    Vontade una, o que, entretanto, não impede de haver conflito, e mais, é também

    nesse âmbito metafísico que esse conflito também se explica. É o conflito interno da

    Vontade que se estende a todas as manifestações dessa mesma essência.

    Toda essa visão de uma Vontade caótica, porém una, da qual todo o mundo é

    a sua manifestação e consiste em todo esse sofrimento, é o aspecto do pessimismo

    schopenhaeuriano. Com a noção da contemplação do belo como um atenuante das

    dores do mundo tentaremos mostrar como isso se dá e até que ponto isso é

    realmente um bálsamo, tendo em vista que a visão das Ideias que aparece nesta

    contemplação é a visão mais próxima do caos essencial e violento do mundo.

  • 19

    3 METAFÍSICA DO BELO : ATENUANTE DO SOFRIMENTO E VISÃO IDEAL DO

    MUNDO.

    3.1 O Desinteresse como escapatória do sofrimento: Lado subjetivo da

    contemplação do belo

    Como vimos até aqui, Schopenhauer apresenta no segundo livro de sua obra

    principal uma metafísica da natureza bastante pessimista onde os indivíduos estão

    em constante querer por serem expressões de uma essência de mundo ávida por

    satisfação. Com isso, pelo querer-viver, que é marca essencial da Vontade e que é

    expresso continuamente nos indivíduos, temos uma fonte de explicação ao querer

    desenfreado que, por sua vez, é a explicação do sofrimento no mundo. Toda essa

    fundamentação metafísica do seu pessimismo tem sua continuidade também no

    terceiro livro, onde será apresentada sua metafísica do belo. Entretanto, no terceiro

    livro é apontada também uma saída momentânea de todo essa angustiante

    condição de carência e desejos constantes. Antes de apresentar esse seu atenuante

    da dor, Schopenhauer busca reafirmar a teoria de que, enquanto submetidos aos

    caóticos e incansáveis ditames da Vontade, não há via de escapatória do sofrimento.

    Todo querer nasce de uma necessidade, portanto de uma carência, logo de um sofrimento. A satisfação põe um fim ao sofrimento; todavia, contra cada desejo satisfeito permanecem pelo menos dez que não o são [...] Objeto algum alcançado pelo querer pode fornecer uma satisfação duradoura, sem fim, mas ela se assemelha sempre apenas a uma esmola atirada ao mendigo, que torna sua vida menos miserável hoje, para prolongar o sofrimento amanhã. (SCHOPENHAUER, 2005, p.266)

    A satisfação de um querer põe fim a um sofrimento, mas inumeráveis outros

    desejos entrarão em jogo logo em seguida tornando a voltar o sofrimento, nossos

    desejos são inúmeros, infindáveis e insaciáveis; sua satisfação é módica e efêmera.

    E, caso haja uma satisfação um tanto mais duradoura, cairemos miseravelmente no

    tédio. O sofrimento se mostra então como intrínseco ao querer. Enquanto

    desejamos, estamos em contínuo sofrimento. Como bem explica Brum (1998, p.38)

    não há a chance no homem enquanto sujeito do querer “de repousar no instante.

    Sua alegria é apenas uma felicidade negativa, a alegria de se recusar à Vontade.

    Enquanto dominado pela vontade, ele conhece apenas o sofrimento ou o tédio.”

  • 20

    Percebe-se então que apenas com a suspensão desse incessante querer é

    que um alívio da tirania da Vontade pode ocorrer. Essa suspensão só acontece de

    um modo bem peculiar e excepcional do funcionamento do corpo, e como veremos

    mais à frente, com uma eliminação da relação com a subjetividade que esse próprio

    corpo representa. Cabe aqui então questionarmos: qual condição é possível para

    que essa escapatória do querer, e consequentemente do sofrer, possa ocorrer?

    Veremos que é uma espécie de contrariedade e insurreição contra uma

    funcionalidade natural do conhecimento regido pela Vontade que ocasionará essa

    emancipação do intelecto em relação a essa própria vontade.

    Como visto anteriormente, todo corpo nada mais é do que a expressão da

    Vontade nouménica, a expressão dessa atividade da Vontade. Todo corpo é a

    objetidade da Vontade no mundo. O intelecto, que tem o cérebro como sua

    materialidade, é desde sua gênese uma ferramenta de satisfação da vontade. O seu

    funcionamento é dirigido sempre para que ele ofereça motivos, através da intuição,

    que coloquem a vontade do indivíduo em constante movimento. Pela intuição dos

    objetos no mundo, regidos pelo principio de razão e a sua cadeia de causalidade, o

    intelecto apresenta esses objetos como motivos para a nossa vontade, como tendo

    relação em maior ou menor grau, seja de atração ou repulsão, com a vontade do

    indivíduo que intui esses objetos. É nesse campo que surgirá um conceito chave

    para que um tipo de intuição especial possa ser diferente de todas as outras que

    seguem sua função natural de fomentar o desejo: o conceito de desinteresse, que é

    a condição para a intuição estética.

    Para que o nosso conhecimento dos objetos deixe de ser um conhecimento

    subjetivo e interessado, ou seja, com relação à nossa vontade, é necessária uma

    modificação no próprio sujeito, o qual não mais estará sob o domínio do querer

    desenfreado, fruto de sua essência, mas sim estará agora com um conhecimento

    objetivo das coisas, tornando-o assim o sujeito puro do conhecimento. O resultado

    dessa modificação, enquanto abordamos apenas o lado subjetivo da contemplação,

    é um conhecimento estético das coisas em que elas não se apresentam mais como

    motivos para a nossa vontade. Não mais como objetos a atormentar e colocar o

    querer em constante atividade, em suma, o conhecimento estético é aquele que o

    sujeito não se relaciona de forma interessada com o objeto. Desse modo, como

    veremos com detalhes mais à frente quando tratarmos do lado objetivo da

  • 21

    contemplação é o conhecimento das Ideias, fora da cadeia de causalidades, que

    fará com que o objeto não mais afete e se relacione com a nossa vontade. O

    conhecimento estético é colocado como desinteressado, pois está exatamente fora

    do princípio de razão, logo fora da causalidade que pode afetar o nosso querer. Com

    isso, ocorre um esquecimento do indivíduo que é súbito e espontâneo ao contemplar

    intuitivamente um objeto, e nesse esquecimento de si também seus tormentos

    cotidianos são esquecidos.

    A natureza ao apresentar-se de um só golpe ao nosso olhar, quase sempre consegue nos arrancar, embora apenas por instantes, à subjetividade, à escravidão do querer, colocando-nos no estado de puro conhecimento. Com isso, quem é atormentado por paixões, ou necessidades e preocupações, torna-se, mediante um único e livre olhar na natureza, subitamente aliviado, sereno, reconfortado. (SCHOPENHAUER, 2005, p.268)

    É interessante observar que na metafísica do belo schopenhaueriana a

    contemplação do belo não é restrita ao fazer e apreciar artístico, como vemos na

    citação acima, que se inicia com a referência ao contemplar da natureza. O fazer

    artístico no filósofo será um modo de facilitar essa contemplação pela atividade do

    gênio. O que o filósofo tem em vista não é a uma construção estética, Schopenhauer

    (2003, p.24) alerta que “o que exporei aqui não é estética, mas metafísica do belo”

    (grifo no original), explicando mais à frente que a diferença entre as duas

    concepções é que:

    A estética ensina o caminho pelo qual o efeito do belo é atingido, dá regras às artes, segundo as quais elas devem criar o belo. A metafísica do belo, entretanto, investiga a essência íntima da beleza, tanto no que diz respeito ao sujeito que possui a sensação do belo quanto ao objeto que a ocasiona. (SCHOPENHAUER, 2003, p. 24) (grifo nosso)

    Como neste momento tratamos do conceito de desinteresse, e também como

    ele se articula como uma escapatória, mesmo que momentânea, do sofrimento na

    metafísica do belo do pensador alemão, creio ser pertinente e de bom grado para o

    trabalho filosófico apresentar objeções e contrapontos ao modo como a noção de

    desinteresse na contemplação do belo é abordada em Schopenhauer. Em

    contraposição ao ascetismo elogiado por Schopenhauer, onde este aponta uma

    solução definitiva em relação ao sofrimento, Nietzsche (1844-1900) apresenta um

    questionamento instigante sobre o desinteresse tão louvado por Schopenhauer não

  • 22

    somente no ascetismo da sua ética, mas também na metafísica do belo onde

    haveria uma negação momentânea da vontade.

    “E não se poderia, por fim, objetar a Schopenhauer mesmo que ele errou em se considerar kantiano neste ponto, que de modo algum compreendeu kantianamente a definição kantiana do belo – que também a ele lhe agrada o belo por “interesse”, inclusive pelo mais forte e mais pessoal interesse, o do torturado que se livra da tortura?” (NIETZSCHE, 2009, p. 88)(grifo nosso)

    A objeção Nietzscheana, endereçada nomeadamente a Schopenhauer,

    visando apontar um interesse inconfesso na contemplação do belo, ganha aqui

    também outra ilustração, dessa vez de um autor anterior a Schopenhauer, mas que,

    entretanto, é citado tanto por Nietzsche quanto por Schopenhauer em suas obras, e

    que pode nos ajudar a pensar e desconfiar do atributo de desinteressada da

    contemplação tal como Schopenhauer sustenta. Trata-se de uma máxima do

    moralista francês do século XVII chamado La Rochefoucauld. Na máxima 39 de seu

    clássico livro Reflexões ou sentenças e máximas morais (1664), La Rochefoucauld

    (2014, p.16) afirma que “O interesse fala todas as línguas e representa todos os

    papéis, até o do desinteressado”.

    Um possível caminho de resposta a essas suspeitas acima é a de que na

    contemplação, embora realmente ocorra de o sujeito torturado pelos desejos, ou

    seja, o ser individual empírico se livrar dessa tortura alterando a sua própria

    subjetividade e esquecendo assim sua individualidade e seus tormentos, neste

    sujeito, agora não mais submetido ao princípio de razão, mas sim em um nível de

    consciência de puro sujeito do conhecimento, sua consciência está totalmente

    preenchida pelo conhecimento objetivo das Ideias, não mais lhe cabendo qualquer

    relação com a vontade individual particular que antes possuía. Relação esta com a

    Vontade que caracteriza o conceito de interesse em Schopenhauer. Em outras

    palavras, o sujeito que contempla a arte, não é mais o empírico, mas sim o do puro

    conhecer em que o interesse de modo algum está em jogo, pois sua vontade

    individualizada já não mais está em jogo. Também em relação a uma possível

    intencionalidade ou arbitrariedade em querer contemplar para se livrar da dor,

    Schopenhauer (2014b, p.19) sentencia que “a mudança no sujeito necessário para

    isso, apenas por que consiste na eliminação de todo querer, não pode prosseguir a

  • 23

    partir da vontade e, portanto, não pode ser um ato arbitrário de vontade.”(grifo

    nosso).

    A mudança que ocorre no sujeito - de sujeito do querer para sujeito puro do

    conhecimento - é baseada em uma mudança no modo de ver e intuir os objetos no

    mundo. Como explicitado anteriormente, os objetos na contemplação não aparecem

    mais como motivos e não interessam mais o sujeito enquanto despertar de sua

    vontade. Como também já apontamos, em Schopenhauer a relação sujeito-objeto é

    mútua, portanto, cabe perguntarmos que tipo de objeto é esse, já que agora o

    sujeito, não mais vendo as coisas via principio de razão, tem a função do seu

    intelecto agora bastante diferente do que foi destinado originalmente. Qual é então o

    objeto do sujeito puro do conhecimento? Veremos a seguir que são as Ideias

    platônicas: representações do sujeito puro do conhecimento que são independentes

    do princípio de razão, livrando o sujeito de continuar sempre a querer, logo,

    entretanto momentaneamente, livrando-o do sofrimento.

    3.2 O conhecimento das Ideias: Lado objetivo da contemplação do belo.

    Se no segundo livro de O Mundo como vontade e como representação

    Schopenhauer apresenta sua teoria de um pessimismo metafísico em relação ao

    sofrimento, e que apesar de apresentar um atenuante momentâneo, desenvolve

    uma certa continuidade no livro terceiro dessa obra, o mesmo ocorre com a

    abordagem das Ideias platônicas. Se lá no segundo livro, como o próprio autor

    mostra, essas concepções são abordadas do ponto de vista da Vontade, já no

    terceiro livro são abordadas do ponto de vista da representação, seguindo um

    movimento que perpassa toda essa obra, indo sempre do mundo como

    representação (livros I e III) e intermediando com concepções do mundo como

    Vontade(livros II e IV). Essa distinção ajuda a compreender de que modo essas

    abordagens se diferenciam. Se no segundo livro, dentro da metafísica da natureza

    schopenhaueriana, a Ideia foi colocada como uma unidade mais próxima da

    Vontade, e intermediária em meio a essa unidade noumênica, que através da

    matéria, se apresenta na pluralidade dos fenômenos, a ideia agora será concebida

    no seu aspecto de objeto de conhecimento, no seu aspecto de representação.

  • 24

    Essas diferenças entre abordagens com enfoques distintos nos livros de

    Schopenhauer também pode ser apontada como um movimento de apresentar uma

    visão cruel e bastante árida da vida e do mundo e posteriormente apresentar

    possíveis saídas a esse mundo, com o atenuante da dor (na contemplação do belo)

    ou uma redenção completa (no ascetismo). Sobre esse movimento na obra

    schopenhaueriana, Brum (1998, p.32) conclui que “essa busca de redenção constitui

    o tema principal do livro III e IV do Mundo, onde Schopenhauer tenta encontrar

    'remédios' para o mal que descreveu minuciosamente como sendo a essência do

    mundo: A Vontade”

    Como já colocado anteriormente, a Ideia não pode ser apreendida do mesmo

    modo que o objeto do conhecimento comum. Ou seja, não pode estar sob o

    conhecimento regido pelo princípio de razão, como é o científico por exemplo. Está

    fora completamente do conhecimento do individuo enquanto sujeito fenomênico.

    Como é uma unidade da espécie, arquétipos em que os objetos da natureza são

    cópias, não podem ser conhecidas pela racionalidade que pluraliza todos esses

    objetos. Entretanto, como são definidas como sendo “os graus determinados de

    objetivação da Vontade“ (SCHOPENHAUER,2005,p.236)(grifo nosso), mesmo

    permanecendo fora do princípio de razão, elas são objetos, são representação para

    um sujeito, mesmo não sendo fenômeno. A ideia possui então uma peculiaridade:

    Ela é a Vontade que se tornou objeto, mas que ainda não entrou no tempo, espaço e

    causalidade. A Ideia é então uma OBJETIDADE IMEDIATA DA VONTADE, isso pelo

    fato de não estar mediada pelo princípio de razão que é próprio ao mundo empírico,

    ou seja, por não estar deturpada por esse princípio e por isso ser os arquétipos mais

    diretos da Vontade.

    Tendo em vista que a ideia é representação, como podemos ter acesso a ela?

    Ou, sendo mais específico, que tipo de sujeito pode ter acesso a ela? Schopenhauer

    vai responder que somente através da contemplação do belo, esse modo especial

    de conhecimento alheio ao conhecimento racional e empírico para termos uma

    intuição especial do ideal das coisas do mundo, aproximando da essência desse

    mundo.

    Qual modo de conhecimento considera unicamente o essencial propriamente dito do mundo, alheio e independente de toda relação, o conteúdo verdadeiro dos fenômenos, não submetido a mudança alguma e, por conseguinte, conhecido com igual verdade por todo tempo, numa palavra, as IDÉIAS, que são a objetidade imediata e adequada da coisa-em-

  • 25

    si, a Vontade? – Resposta: é a ARTE, a obra do gênio. Ela repete as idéias eternas apreendidas por pura contemplação, o essencial e permanente dos fenômenos do mundo, que, conforme o estofo em que é repetido, expõe-se como arte plástica, poesia ou música. Sua única origem é o conhecimento, seu único fim é a comunicação deste conhecimento (SCHOPENHAUER, 2005, p. 253)

    Conforme a citação, é pelo fazer artístico, pela contemplação estética, que as

    Ideias podem ser conhecidas. Mesmo que, como abordado anteriormente, também

    através da contemplação de objetos na natureza a contemplação do belo pode ser

    atingida, é através da arte que esse conhecimento é comunicado pelo gênio que

    apreende essas Ideias e expressa na obra de arte genial. Inclusive, a arte é definida

    por Schopenhauer (2005, p.254) como “O MODO DE CONSIDERAÇÃO DAS

    COISAS INDEPENDENTE DO PRINCÍPIO DE RAZÃO”. Aqui podemos notar que a

    arte na metafísica do belo do filósofo alemão está diretamente subordinada a uma

    teoria do conhecimento. Conhecimento este, estético, que é livre dos ditames da

    Vontade. Um conhecimento pelo qual o intelecto se rebela contra sua função inicial

    de servo dessa vontade.

    Por ser o conhecimento das Ideias (que estão fora da pluralidade fenomênica)

    esse conhecimento é daquilo que é universal, perene, imutável e atemporal, fora do

    espaço e tempo que são as formas dos objetos fenomênicos. Entretanto, a ideia

    conhecida via contemplação estética não se confunde com o conceito. Apesar de ser

    buscado o quê das coisas do mundo, não são nos conceitos, frutos da razão, que se

    encontrará a garantia da universalidade do belo. Sobre essa diferença em relação a

    outras estéticas, Cacciola (1999, p. 12) comenta que “de fato, é por outra via que

    Schopenhauer pretende garantir o caráter universal do belo. É através da mediação

    da Idéia, que ele define como não abstrata, que o sentimento do belo passa a ser

    supra-individual”.

    Como o sujeito que conhece a ideia não é mais o sujeito individualizado, mas

    sim o sujeito enquanto sujeito puro do conhecimento, o sentimento do belo é

    universal, pois a genialidade, que caracteriza mais fortemente o artista criador,

    também está no espectador e se diferencia nos indivíduos em maior ou menor grau.

    A individualidade do contemplador se perde na intuição do objeto, tornando-se

  • 26

    sujeito e objeto em um só, em uma espécie de reencontro metafísico da Vontade.

    Para tal é necessário então que a razão, e com elas as conceitos, estejam fora da

    consciência do indivíduo no momento da contemplação.

    Quando o pensamento abstrato, os conceitos da razão não mais ocupam a consciência, mas, em vez disso, todo o poder do espírito é devotado à intuição e nos afunda por completo nesta, a consciência inteira sendo preenchida pela calma contemplação do objeto (...) então é como se apenas o objeto ali existisse, e não se pode mais separar quem intui da intuição, mas ambos se tornaram unos, na medida em que toda a consciência é preenchida e assaltada por uma única imagem intuitiva. (SCHOPENHAUER, 2005, p.246).

    Essa concepção da ideia como tendo uma universalidade fora do empírico,

    fora do sujeito individual e alojada em um sujeito puro do conhecimento, pode nos

    levar a questionar se este seria um conhecimento transcendental dentro da

    metafísica imanente schopenhaueriana. Estaria Schopenhauer possibilitando um

    conhecimento da coisa-em-si kantiana, de algo nela e por ela mesma? Sobre esse

    aspecto Jair Barboza (2001, p.58) comenta que “esta aproximação efetuada por

    Schopenhauer entre os dois grandes filósofos do Ocidente obedece a um objetivo

    crucial para a sua metafísica do belo: tornar em definitivo a coisa-em-si kantiana

    cognoscível, via representação, e não apenas mediante o sentimento interno”.

    Entretanto, e o próprio Jair Barboza reconhece, não se trata do conhecimento do

    em-si nele mesmo, pois as Ideias ainda não são a própria Vontade, mas sim graus

    determinados e imediatos dessa Vontade essencial e já são também representação

    de um sujeito4.

    Esse estado de puro conhecimento é intuitivo e momentâneo, e com ele o

    atenuante do sofrimento também é passageiro. Na figura do gênio, entretanto, com

    4

    “Assim, se na primeira crítica Kant demonstrava in abstracto as condições, Schopenhauer, por seu

    turno, procura mostrar como é possível, para além do comedimento kantiano, sem ser transcendente,

    via intuição estética, via modo de conhecimento estético, de uma metafísica imanente, ter-se um

    conhecimento transcendental da coisa-em-si enquanto Idéia platônica. Entretanto, alertemos que a

    cognoscibilidade do Em-si não é total. Schopenhauer não se esquece do que estabelecera no

    segundo livro de O Mundo...: as Idéias são as objetidade as mais adequadas possíveis da Vontade

    como coisa-em-si, e, assim, não é o Em-si originalíssimo que se dá à intuição estético-transcendental

    , mas sua tradução fidelíssima. A Idéia, apesar de sua cristalinidade, imutabilidade e verdade superior

    face ao fenômeno, continua uma representação na consciência a guardar a forma a mais geral dos

    seus conteúdos, o ser-objeto para um sujeito; já a Vontade disto se isenta. Numa palavra : A Idéia é

    imagem, enquanto a Vontade é invisível. (BARBOZA, 2001 ,p.59) (grifo nosso)”

  • 27

    uma força do intelecto que supera a vontade, esse estado é mais permanente do

    que aquele do contemplador. Curiosamente, isso também refletirá em um sofrimento

    no gênio distinto dos sofrimentos comuns, dissipando em Schopenhauer uma

    metafísica do belo de cunho totalmente otimista. A articulação de todos esses

    cenários e personagens na contemplação do belo schopenhaueriana é o que a

    seguir descreveremos.

  • 28

    4 A ALEGRIA ESTÉTICA, O SUBLIME E O TRÁGICO, E A MELANCOLIA DO

    GÊNIO.

    4.1 A alegria estética: uma satisfação sem sofrimento.

    Apesar da distinção de características feita por Schopenhauer entre o lado

    objetivo (conhecimento da Ideia e não dos objetos enquanto motivos) e subjetivo

    (consciência de si como puro sujeito do conhecimento, livre de vontade) na

    contemplação estética esses dois componentes aparecem de modo totalmente

    intrínsecos, simultâneos e sempre aparecem unidos no modo de conhecimento do

    belo. Isso ocorre porque esses dois componentes que proporcionam o estado

    estético possuem como condição própria um estado de conhecer em que não se

    está mais a serviço do princípio de razão, não estando mais a serviço da vontade.

    Essa condição emancipatória, em que o intelecto se livra das correntes e

    direcionamentos da vontade, proporciona um interessante contraponto ao

    pessimismo schopenhaueriano apresentado nos dois primeiros livros da principal

    obra do filósofo alemão. É a concepção de uma alegria estética. E aparece em

    função da contemplação do belo. E, como será melhor detalhado mais à frente ao

    tratarmos do belo e do sublime, essa alegria estética vai depender mais de um lado

    ou de outro, objetivo ou subjetivo, a depender do objeto contemplado. No caso, de

    observar onde aparece o objeto contemplado na escala de uma hierarquia das

    objetos das artes que o filósofo irá apresentar.

    Como visto no capítulo anterior, o lado subjetivo da contemplação estética é a

    condição na qual a consciência do sujeito, não mais indivíduo submetido ao princípio

    de razão e com isso aos desejos e consequente infortúnios causados por estes, se

    vê agora como puro sujeito do conhecimento. Por outro lado, o componente objetivo

    é a condição em que este sujeito agora vê não mais os objetos, mas sim apreende

    as Ideias em sua imutabilidade e perenidade: as Ideias somente como puras

    representações sem mais os objetos a movimentar sua vontade. Por essas

    explicitações já percebemos o quão intrínsecos são esses componentes.

    Componentes estes que são, por sua vez, a condição para a alegria estética,

    também chamada por Schopenhauer de satisfação estética. Tendo em vista que o

    intuito central deste presente trabalho é analisar esse atenuante do sofrimento e da

    dor na filosofia de Schopenhauer através da metafísica do belo, cabe aqui

  • 29

    avaliarmos o que seria esta satisfação estética e qual o alcance dela. Intuito este

    que buscaremos atingir até o fim deste escrito.

    Para tal empreitada deste momento, a saber, descrever o que seria esta tal

    satisfação estética, trazer a definição em Schopenhauer de satisfação e sofrimento

    nos parece um bom modo de observar como, em um pensamento que até então

    uma satisfação duradora é negada firmemente por uma visão de desesperança na

    existência, possa ocorrer uma rota de escapatória, uma alegria e consolação até

    mesmo positiva através da contemplação da beleza. Vamos então a essas

    definições para ver o que nelas se difere e pode nos apresentar uma contraposição

    a essa alegria estética.

    Em determinado momento no quarto livro de O Mundo como vontade e como

    representação, antes de apresentar a redenção ascética, Schopenhauer reforça sua

    concepção de uma Vontade em busca constante de satisfação e o quanto isso não

    pode ter um fim absoluto, como um ponto de chegada da busca pela satisfação.

    Dentro desse cenário é que ele apresenta suas definições de satisfação e

    sofrimento.

    Nomeamos SOFRIMENTO a sua travação [da Vontade] por um obstáculo, posto entre ela e o seu fim passageiro; ao contrário, nomeamos SATISFAÇÃO, bem-estar, felicidade, o alcançamento do fim.(...).Vemo-los assim envoltos [os fenômenos da Vontade] em constante sofrimento, sem felicidade duradoura. Pois todo esforço nasce da carência, do descontentamento com o próprio estado e é, portanto, sofrimento pelo tempo em que não for satisfeito; nenhuma satisfação, todavia, é duradoura, mas antes sempre é um ponto de partida de um novo esforço, o qual, por sua vez, vemos travado em toda parte de diferentes maneiras, em toda parte lutando, e assim, portanto, sempre como sofrimento : não há nenhum fim último do esforço, portanto não há nenhuma medida e fim do sofrimento. (SCHOPENHAUER, 2005,p. 399)(grifo nosso)

    Como dito acima por Schopenhauer, a travação de um desejo, que no seu

    mais íntimo é fruto da Vontade essencial, significa o sofrimento. A insatisfação e a

    penúria enquanto desejo não realizado pelos obstáculos que aparecem. Já a

    satisfação é exatamente a realização desse desejo. Porém, como já foi indicado

    anteriormente, nenhuma satisfação é duradoura. E quando essa satisfação acontece

    por muito tempo impedindo o aparecimento de novos desejos, ou seja, de novos

    sofrimentos, se transforma em tédio. Um estado tão martirizante quanto o anterior de

    desejo, se transformando assim em um tipo de sofrimento. Vemos então que, mais

  • 30

    uma vez, Schopenhauer parece não apontar saída enquanto estamos na condição,

    ressalte-se, natural e orgânica, de subordinados aos ditames dos nossos desejos.

    Entretanto, e aqui abordaremos somente a rota de escapatória via

    contemplação do belo, há caminhos de redenção dentro do pensamento

    schopenhaueriano. E um desses caminhos se concebe pela eliminação, no caso

    estético momentaneamente, da fonte de toda dor e sofrimento: A vontade.

    Um primeiro aspecto que podemos apontar para entender a noção de alegria

    estética é a de que, ao contrário do conhecimento regido pelo princípio de razão que

    busca sempre da causa ao efeito, do fundamento à consequência, nunca

    encontrando um fim último, o conhecimento do belo encontra em toda parte o seu

    fim. Isso porque aquilo que é conhecido são as Ideias imutáveis, atemporais. Como

    são perenes, não podem ser vistas através do conhecimento que advêm

    naturalmente pelo intelecto que é o regido pelo princípio de razão, o conhecimento

    das causalidades. Neste último tipo de conhecimento, a Vontade está sempre

    regendo e dando objetos que afetam o nosso querer. Já no conhecimento estético, a

    Vontade perde sua força. O intelecto se liberta da corrente sem fim, da procura

    insaciável de mais e mais objetos em contínuo ciclo de sofrimento-satisfação-

    sofrimento.

    O Modo de consideração que segue o princípio de razão é o racional, único que vale e ajuda na vida prática e na ciência; já o modo que prescinde do conteúdo desse princípio é o genial, único que vale e ajuda na arte. (...) O primeiro é comparável às gotas inumeráveis de uma cascata que se movimentam violentamente e que, sempre mudando, não se detêm um único momento; o segundo a um calmo e sereno arco-irís que paira sobre esse tumulto. (SCHOPENHAUER, 2005, p.254)

    Nesse momento de contemplação, a vontade já não age no indivíduo. Este

    agora é puro sujeito do conhecimento, livre da vontade, pois o intelecto, que

    originariamente funciona como um fomentador constante em oferecer objetos a

    movimentar nosso querer, se liberta e contempla as Ideias mesmas. Sem princípio

    de razão, sem causalidade, sem movimento constante, a roda da dor e sofrimento é

    parada momentaneamente. Como afirma Barboza (2001, p.63) “Em vez de ser

    insatisfatória, a orientação estética apresenta-se plenamente reconfortante, porque

    encontra em toda parte seu fim; a vontade deixou de querer e o intelecto de inquirir.”

    Esse momento de contemplação, ao invés de ação e movimento do mundo,

    onde a vontade não mais atua momentaneamente no indivíduo, é comparado por

  • 31

    Schopenhauer ao modo como recorremos ao passado como uma fuga a um

    presente doloroso. Nesse modo, só lembramo-nos de imagens, lembrando apenas

    vagamente das situações, onde elas agora não mais nos fazem sofrer, pois o sujeito

    do querer já não está mais lá, recebendo essas sensações. Assim como na

    contemplação artística, o sujeito do querer está ausente. Sobre essa característica

    de beleza da imagem (não nos esquecemos de que a Ideia é representação, uma

    imagem da Vontade), Schopenhauer dispara enfaticamente uma decidida diferença

    entre a vida mesma e as imagens que podemos ter dela.

    Tudo é belo somente enquanto não nos diz respeito(aqui não o caso de paixão amorosa, mas de prazer estético). A vida nunca é bonita, apenas as imagens dela o são, ou seja, no espelho transfigurador da arte ou da poesia, especialmente na juventude, quando não a conhecemos ainda. (Schopenhauer , 2014b,p.29)

    Uma imagem interessante para compreender essa etapa estética é aquela

    oferecida por Brum (1998, p.86) na qual ele afirma que a alternativa estética

    schopenhaueriana a tanta dor e sofrimento “é a passagem do estado de ator ao de

    espectador(...)O mundo que era vivido, e de forma angustiosa, é agora contemplado,

    posto em parênteses .“

    Nesse momento “Resta apenas o mundo como representação; o mundo como

    Vontade desapareceu” (SCHOPENHAUER, 2005 ,p.270) isto devido ao fato de que

    o indivíduo não é mais sujeito do querer, logo a vontade tão incessante já não mais

    atua nele, e os objetos agora são vistos como Ideias, não como motivos que

    movimentam a vontade. Nesse sentido conseguimos compreender que o mundo

    como representação a que Schopenhauer se refere é um mundo de pura

    representação, em que súbita e momentaneamente a vontade não atua mais.

    Essa emancipação do conhecimento em relação à vontade é descrita muitas

    vezes por Schopenhauer como um elevar-se sobre todo o mundo caótico onde a

    Vontade impera de modo inesgotável. Essa elevação apontada pelo filósofo é aqui o

    nosso ponto de partida para a abordagem a seguir que será a do sublime. Em

    especial a sua relação com a tragédia, na qual toda essa concepção de uma

    libertação via contemplação da beleza começa a apresentar alguns contratempos e

    se mostra como um estágio em que o horror e o absurdo da existência não são

    totalmente ignorados. Apesar dessa visão mais direta do combate infindável dos

  • 32

    seres existentes, a contemplação artística ainda se mostrará como um paliativo para

    a dor inerente ao viver. Perceber como se dá esse aparente contraste, em que

    vemos o horror, principalmente no trágico, e ainda assim estamos livres do

    sofrimento é onde se estabelecerão os primeiros aspectos mais espinhosos da

    satisfação estética, que posteriormente terá continuidade na análise da melancolia

    do gênio.

    4.2 O Sublime, o trágico e a fragilidade humana: Um elevar-se sobre o mundo

    ameaçador.

    Na metafísica do belo os lados objetivo e subjetivo aparecem sempre de

    modo inseparáveis. São correlatos e explicam mutuamente o estado estético. Outra

    duplicidade que aparece na estética de Schopenhauer é a distinção do sentimento

    do belo e do sublime. A explicação do sentimento do sublime é localizada dentro da

    temática da estética do filósofo alemão, pelo próprio Schopenhauer, como uma

    coroação da explicação da condição subjetiva já que este sentimento do sublime

    surge exatamente de uma diferenciação, de um acréscimo, nessa mesma condição.

    É também esse acréscimo no lado subjetivo da contemplação, que define o

    sublime e apresentaremos a seguir, que explicará a diferença entre o sentimento do

    belo e do sublime. Somos tomados pelo sentimento do belo, diz Schopenhauer

    (2005, p. 273) no momento em que “esse vir ao encontro da natureza e a

    significação e distinção de suas formas mediante as quais nos falam as Idéias nela

    individualizadas for o que nos tira do conhecimento das meras relações que servem

    à vontade”. Tornando-nos assim o sujeito que pode contemplar essas Ideias: o

    sujeito puro do conhecimento. Já no sentimento do sublime temos o acréscimo de

    que o objeto contemplado existe com uma relação que ameaça a nossa Vontade

    humana de modo geral, o sujeito tendo então que se elevar do próprio medo que tal

    objeto causa, da própria ameaça que ele representa. Em uma relação em que o puro

    conhecimento, para ser mantido, precisa desviar-se, ou seja, elevar-se dessa

    relação ameaçadora.

    Se precisamente os objetos cujas figuras significativas nos convidam à sua pura contemplação tem uma relação hostil com a Vontade humana em geral, como exposta em sua objetidade, o corpo humano, e são-lhe contrários, ameaçando-o com toda a sua superpotência que elimina

  • 33

    qualquer resistência, ou reduzindo-o a nada com toda sua grandeza incomensurável; e se, apesar disso, o contemplador não dirige a sua atenção a essa relação hostil, impositiva contra sua vontade, mas embora a perceba e a reconheça, desvia-se dela com consciência, na medida em que se liberta violentamente da própria vontade e de suas relações, entregue agora tão somente ao conhecimento, e contempla calmamente como puro sujeito do conhecer destituído de Vontade exatamente aqueles objetos tão aterradores para a Vontade, apreendendo somente a sua Idéia alheia a qualquer relação, por conseguinte detendo-se de bom grado em sua contemplação, conseguintemente elevando-se sobre si mesmo, sua pessoa, seu querer, qualquer querer – então o que preenche é o sentimento do SUBLIME, ele se encontra no estado de elevação, justamente também nomeando-se SUBLIME o objeto que ocasiona esse estado.” (SCHOPENHAUER, 2005 , p.273 – 274 )(grifo nosso)

    A diferença característica do sentimento do belo para o do sublime é então a

    de que no belo a libertação do conhecimento do serviço da vontade se dá sem

    nenhuma resistência, sem qualquer influência da consciência para ter que elevar-se,

    pois no belo essa libertação, esse tornar-se sujeito puro do conhecimento, acontece

    de modo imperceptível e totalmente espontâneo e é ocasionada tão facilmente

    exatamente pela beleza de tal objeto contemplado. Já no sublime, pelo contrário,

    esse estado estético só é atingido após um desprendimento consciente da violência

    do objeto contemplado em relação à Vontade. Além de ser atingido com consciência,

    esse desprendimento também deve ser mantido com consciência. Esse

    desprendimento é o elevar-se para além do conhecimento vinculado à Vontade,

    apesar da consciência da violência e hostilidade do objeto a essa mesma Vontade.

    Mantendo assim uma relação com a Vontade. Entretanto, isso não pode ser

    entendido como uma relação de influência do interesse individual do sujeito, pois,

    como ressalta Schopenhauer, a relação é com a Vontade humana no geral, e não

    com do indivíduo enquanto vontade particular.

    Uma tal elevação tem de ser não apenas obtida com consciência, mas mantida com consciência, sendo, assim, acompanhada de uma contínua lembrança da Vontade, porém não de um querer particular, individual, como temor ou desejo, mas da Vontade humana em geral, tal qual esta se exprime em sua objetidade, o corpo humano.(SCHOPENHAUER, 2005, p. 274)

    Esse aspecto fundamental do sublime liga-se a uma duplicidade de

    consciência que atinge um grau superior: o individuo apesar de se reconhecer como

    um ínfimo objeto que todas aquelas forças (como as forças da natureza

    incrivelmente mais poderosas que este que a contempla) podem extermina-lo

  • 34

    rapidamente, pois somente com essa lembrança contínua mantém consciência e o

    elevar-se do sublime, se vê agora com a serenidade e imperturbável consciência de

    sujeito puro do conhecimento. Ou seja, a consciência de ser ele mesmo o

    sustentáculo de todo aquele mundo, como sendo condição do aparecimento daquele

    objeto que se mostra agora tão violento e desfavorável5.

    A diferença entre belo e sublime, é importante frisar, se caracteriza apenas

    por um acréscimo, o que separa os dois sentimentos será apenas uma distinção por

    graus. Haverá então apenas gradações de diferença entre um sentimento de belo e

    do sublime, sendo eles então unos, um mesmo modo de estado estético, apenas

    com esse acréscimo que apontará graus que, entretanto, fazem parte do mesmo

    estado estético que caracteriza a metafísica do belo. Ou seja, quanto mais um objeto

    tiver relação hostil com a Vontade, mais será considerado sublime do que belo.

    Depois de apresentar suas considerações mais abrangentes a respeito da

    contemplação estética, abordando o lado objetivo e subjetivo da contemplação,

    apresentando o sentimento do belo e do sublime e outros pontos mais gerais para a

    fundamentação da sua metafísica do belo, Schopenhauer nos apresenta seu estudo

    sobre o belo em relação a cada forma artística específica, passando agora para uma

    análise mais pormenorizada e hierarquizada das artes, entre elas a arquitetura,

    pintura, poesia, música e entre outras que terão seus objetos, e o que visam expor,

    descritos pelo filósofo.

    Ao iniciar as considerações das artes específicas, Schopenhauer afirma que

    essa alegria estética da fruição, baseada agora na hierarquia das artes que ele

    construirá, se localizará algumas vezes mais na apreensão da Ideia e outras mais na

    situação do sujeito enquanto puro sujeito do conhecimento, livre de sofrimento e da

    vontade. Como já dito, na fruição estética esses elementos sempre aparecem juntos,

    entretanto algum desses dois lados ganha preponderância na contemplação a

    depender do fato da Ideia a ser apreendida possuir um grau maior ou menor de

    5Aqui abordaremos apenas o sublime dinâmico, que tem essas características apresentadas, tendo

    em vista que será utilizado mais à frente a relação deste com a tragédia. O sublime matemático, que

    se relaciona ao infinito do universo em relação à pequenez indivíduo, será então aqui posto de lado

    por não apresentar relação importante ao objetivo do texto.

  • 35

    exposição da Vontade, o que também determina a posição que a arte que expõe

    essa ideia se encontrará na hierarquia das artes.

    Assim, tanto na consideração estética (na efetividade ou pelo médium da arte) da bela natureza nos reinos inorgânico e vegetal, quanto nas obras da bela arquitetura a fruição do puro conhecer destituído de vontade será preponderante, porque as Idéias aqui apreendidas são graus mais baixos de objetidade da Vontade, por conseguinte não são fenômenos de significado mais profundo e conteúdo mais sugestivo. Se, ao contrário, o objeto da consideração ou da exposição estética forem animais e homens, a fruição residirá mais na apreensão objetiva dessas Idéias, as quais são a manifestação mais clara da Vontade, pois expõem a grande variedade de figuras, a riqueza e o significado profundo desses fenômenos, logo, manifestam de maneira mais perfeita a essência, sobressalto, satisfação, ou em sua discórdia (exposições trágicas)(...).(SCHOPENHAUER, 2005 , p. 287)

    Como é apontado acima, a hierarquia das artes em Schopenhauer dependerá

    dos graus de objetidade das Ideias na natureza. Quanto mais a arte expor a Vontade

    em objetidade mais elevada (os animais e em especial o homem) mais alto será sua

    posição na hierarquia. Todas, com exceção da música como falaremos brevemente

    mais à frente, tem como função a exposição das Ideias, mas diferenciam-se entre si

    pelo grau de Vontade exposta, isto é, pela Ideia desse grau de Vontade. Quanto

    mais o gênero artístico conseguir expor a Vontade e seus desdobramentos, mais

    alto na hierarquia das artes estará.

    Sobre essa hierarquia das artes, completamente relacionada a uma hierarquia

    das Ideias na natureza, é interessante notar que até mesmo dentro dos gêneros

    artísticos há hierarquia relacionada sempre ao conhecimento da Ideia. Como

    Barboza (2001, p.101) explica bem ao dizer que “Pode inclusive haver hierarquia

    interna a uma arte: uma estátua de homem será superior a uma estátua de cachorro,

    posto que exibe uma superioridade, advinda da prévia hierarquia de Idéias,

    instituída quando dos atos originários da Vontade.” O que reforça a submissão que

    Schopenhauer impõe da arte em relação ao conhecimento ideal. No caso, porém, a

    um conhecimento totalmente diferente e autônomo que é o estético, o conhecimento

    das Ideias.

    Na base dessa hierarquia das artes está a arquitetura, por mostrar a luta de

    forças básicas da natureza, na exposição da luta entre coesão e gravidade. Em

    seguida aparecem outras artes como a bela hidráulica, bela jardinagem, estilos de

    pinturas, poesia e por fim a música como sendo o topo dessa pirâmide. Entretanto,

    vale indicar, a música não faz exatamente parte da hierarquia das artes, mas, como

  • 36

    diz Schopenhauer, paira sobre todas elas, pois não proporciona o conhecimento da

    Ideia, mas um conhecimento mais direto ainda da Vontade mesma. Desde o reino

    inorgânico, que é a base da hierarquia, passando pelo vegetal e chegando ao

    animal, onde a Vontade se objetiva e se mostra pelas Ideias de forma mais

    completa, sempre há a presença dos lados subjetivos e objetivos da contemplação

    estética. Porém, quanto mais se vai ao topo dessa hierarquia mais a alegria estética

    tem sua origem no conhecimento puro das Ideias e menos no esquecimento de si

    enquanto sujeito do querer. Ou seja, quanto maior o grau de objetidade da Vontade

    exposta em uma arte mais será predominante o aspecto do conhecimento, da visão

    dessa mesma Vontade através das Ideias.

    Um dos aspectos que mais impulsionam esta nossa presente investigação é

    exatamente uma questão que surge dessa conclusão e que também terá uma

    elucidação nessa temática: Como entender que a visão mais completa trazida pelas

    Ideias, e que nos possibilita um conhecimento ainda indireto, mas próximo da

    Vontade, sendo ela mesma puro caos, violência, e sem fundamento, seja um

    atenuante da dor e do sofrimento? Como essa visão mesma do horror essencial da

    vida e da existência pode se compatibilizar com a alegria estética? A análise da

    tragédia, sendo ela o topo da pirâmide das artes na hierarquia, nos mostrará como

    Schopenhauer apresenta essa concepção.

    A poesia, e dentro dela a tragédia, é localizada no topo da hierarquia por

    mostrar a Vontade em sua expressão mais visível de sua violência caótica e na

    ausência de um direcionamento racional e benevolente por trás de todas as coisas.

    Trazendo assim uma visão mais essencial e fiel do mundo e da existência como um

    todo, com uma significação de todo mais importante.

    O objetivo dessa suprema realização poética não é outro senão a exposição do lado terrível da vida, a saber, o inominado sofrimento, a miséria humana, o triunfo da maldade, o império cínico do acaso, a queda inevitável do justo e do inocente. E em tudo isso se encontra uma indicação significativa da índole do mundo e da existência. É o conflito da Vontade consigo mesma, que aqui, desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade, entra em cena de maneira aterrorizante. Ele se torna visível no sofrimento da humanidade, em parte produzido por acaso e erro, que se apresentam como senhores do mundo e personificados como destino e perfídia, os quais aparecem enquanto intencionalidade; em parte advindo da humanidade mesma, por meio dos entrecruzados esforços voluntários dos indivíduos e da maldade e perversão da maioria. Trata-se de uma única e mesma Vontade que em todos vive e aparece, cujos fenômenos, entretanto, combatem entre si e se entredevoram. “(SCHOPENHAUER, 2005 , p.333)

  • 37

    O poeta, de modo mais específico o trágico, seria então aquele que chegou a

    uma visão da ideia de humanidade, da ideia da Vontade em seus conflitos, e

    apresenta essa mesma ideia de volta para a apreciação da humanidade. É quando o

    artista se torna um espelho da Vontade para o próprio mundo que é a expressão

    dessa Vontade. E faz isso refletindo de forma mais acentuada e significativa os

    aspectos mais importantes e essenciais desse mesmo mundo, exterior a todas as

    relações que possam turvar essa apreensão. Sendo o poeta então esse espelho que

    reflete as ações e sentimentos dos seres humanos de um modo geral.

    Essa contemplação da tragédia nos mostrando uma existência sem sentido,

    absurda e extremamente poderosa na capacidade de nos aniquilar e nos causar

    sofrimento e que, apesar disso, nos proporciona uma alegria estética, liga-se

    diretamente a noção do sublime que apresentamos anteriormente e usamos dela

    para indicar uma possível resposta ao questionamento anteriormente apresentado.

    Assim como, ao contemplar fenômenos da natureza completamente hostis à nossa

    Vontade, ainda conseguimos nos elevar conscientemente sobre eles e manter um

    puro conhecimento sem dor, o mesmo ocorre na tragédia. É por isso também que,

    ligando-se ao sublime, o conhecimento vindo da tragédia é aquele em que o lado

    objetivo da contemplação se torna completamente preponderante. Ao apontar para

    os extremos da hierarquia das artes, a arquitetura por um lado, e o drama por outro,

    Schopenhauer (2005, p.291) confirma esta distinção ao dizer que “Nesse sentido, o

    oposto da arquitetura e o outro extremo na série das belas artes é o drama, o qual

    leva a conhecimento as Idéias mais significativas; consequentemente, na fruição

    estética do drama, o lado objetivo é por inteiro predominante.” A ligação direta com o

    sublime, apesar de não ter a relação diretamente apontada por Schopenhuar na sua

    obra principal, é apontada pelo filósofo alemão nos Suplementos a esta ao confirmar

    que “nosso prazer na tragédia [Trauespiel] não pertence ao sentimento do belo

    [Gefühl des Schönen], mas ao sublime [Gefühl des Erhabenen]. Sim, ele é, de fato, o

    mais alto grau deste sentimento.” (SCHOPENHAUER, 2014b, p.109). É do

    acréscimo característico do sublime que podemos ver toda a dor inerente ao mundo

    e mesmo assim fruir a alegria estética proporcionada por essa visão.

  • 38

    Essas últimas considerações aqui apresentadas já nos colocam em condição

    de perceber que, apesar de continuar fazendo parte de uma alegria estética

    libertadora dos tormentos da vida, alguns aspectos da contemplação artística

    schopenhaueriana apontam ainda para situações em que a dor e o sofrimento da

    existência não fogem da nossa vista, pois mesmos naqueles casos do lado subjetivo

    preponderante, de sujeito completamente livre do querer e do sofrimento, como o da

    arquitetura, ainda há a visão, mesmo que bem enfraquecida, da luta constante da

    Vontade consigo mesma. Além de sempre ressaltar-se o caráter passageiro da

    contemplação estética. No nosso próximo e último passo do presente texto tentarei

    mostrar como a caracterização do gênio, e a indicação de sua melancolia e

    inúmeras desvantagens e infortúnios, nos levara a compreender na filosofia do belo

    de Schopenhauer aspectos sombrios e dolorosos do gênio, sempre ressaltando

    também os seus aspectos de serenidade e bem-estar estético, mas sem deixar de

    propor suspeitas a uma interpretação que coloque toda a metafísica do belo como

    um paraíso completamente livre das dores do mundo.

    4.3 – A Figura do Gênio – A melancolia pela clareza de consciência.

    Todo o arcabouço teórico das considerações estéticas schopenhauerianas só

    pode ser compreendido de modo suficientemente completo com a elucidação da

    figura central que é o gênio. A figura genial é cercada de diversas características que

    proporcionam diferenças sutis, porém extremamente importantes para o debate da

    metafísica do belo. Vamos à abordagem de boa parte delas, sempre tendo em vista

    a consideração de uma melancolia característica e própria do gênio, em contraste

    com o sofrimento dos homens comuns, sem esquecer, entretanto, que essa

    diferença (gênio e homem comum) não chega a ser uma diferença propriamente

    dita, mas uma questão de no homem comum esse estado estético chega através de

    um entusiasmo que acontece via contemplação de uma obra artística genial, ou de

    uma profunda intuição da natureza que raramente acontece. Já no gênio, que

    também ocorre esse entusiasmo, é uma capacidade inata e até mesmo a sua

    atuação própria da produção genial.

  • 39

    Schopenhauer define a genialidade como uma condição, uma capacidade de

    direcionamento do espírito para que o intelecto funcione de uma forma para a qual

    ele não foi destinado originalmente, que é a forma subjetiva. Uma capacidade de ser

    objetivo, de ver as Ideias ao invés das relações nas considerações, será

    fundamental para uma capacidade genial.

    A essência do GÊNIO consiste justamente na capacidade preponderante para tal contemplação. Ora, visto que só o gênio é capaz de um esquecimento completo da própria pessoa e de suas relações, segue-se que a GENIALIDADE nada é senão a OBJETIVIDADE mais perfeita, ou seja, orientação objetiva do espírito, em oposição à subjetiva que vai de par com a própria pessoa, isto é, com a vontade. Por consequência, a genialidade é a capacidade de proceder de maneira puramente intuitiva, de perder-se na intuição e afastar por inteiro dos olhos do conhecimento que existe originariamente apenas a serviço da Vontade – ou seja, de seu interesse, querer e fins -, fazendo assim a personalidade ausentar-se completamente por um tempo, restando apenas o PURO SUJEITO QUE CONHECE - claro olho cósmico. (SCHOPENHAUER, 2005 ,p.254)

    É um excesso de conhecimento que definirá esse aparecimento da

    capacidade genial. Quando o intelecto tem tamanha força que consegue ultrapassar

    a função que lhe é normalmente destinada, a saber, de ser um servo preso aos

    serviços da vontade, é que podemos ter essa visão objetiva do gênio. Esse

    excedente que fará com que o intelecto liberte-se e se torne um puro sujeito de

    conhecimento, produzindo, através da visão das Ideias, obras de arte de caráter

    eterno. Até porque essas obras são frutos de um conhecimento no qual as relações

    de tempo e espaço já não são importantes, já não se está no âmbito do princípio de

    razão.

    Esse excedente proporcionará um conhecer puro, sem influências do querer

    particular. O gênio é aquele nomeado por Schopenhauer como o espelho claro do

    mundo. Pois ele mesmo ainda é Vontade, mas Vontade conhecendo a si mesma de

    um modo mais claro e nítido. É essa preponderância do conhecimento sobre a

    Vontade em uma permanência de tempo maior que o da simples contemplação que

    possibilita o conhecimento e a reprodução da Ideia na obra, que definirá o gênio na

    metafísica do belo schopenhaueriana. Dentro dessa condição de excesso da

    faculdade de conhecer, e como esse excesso ultrapassa em muito as necessidades

    mais simples de uma vida comum, o gênio apresenta diversas características

    peculiares e quase sempre nada favoráveis diretamente ligadas a essa condição

  • 40

    especial. Entre elas estão o desassossego e uma inquietude pelo fato de que esse

    excesso de conhecimento requer sempre mais objetos para contemplação na qual o

    presente nem sempre é suficiente, pois não preenche sua consciência a ponto de

    acalmá-lo. Daí surge também uma importante participação da fantasia na

    genialidade com a qual, através do presente empírico da realidade, consegue-se

    apreender o que há de mais permanente e essencial nela. Além disso, pelo fato de o

    conhecimento do gênio ser totalmente independente do princípio de razão, há uma

    falta de prudência e racionalidade característica a esse princípio, pois não se utiliza

    das noções de causalidade impossibilitando assim uma capacidade de se prevenir

    dos efeitos esperados a partir de determinadas causas. É o que caracterizará

    também a fronteira tênue que há entre a genialidade e a loucura. Em Schopenhauer

    a loucura se caracteriza por uma falha na capacidade de elencar corretamente,

    através do princípio de razão, eventos do passado ao presente. Isso porque a

    loucura tem uma ligação direta com um problema na memória. Nisso, loucos e

    gênios estão intimamente próximos pois não reconhecem precisamente bem as

    relações e concatenações entre passado e presente, advindos da causalidade do

    princípio de razão.

    Uma importante perspectiva precisa ser evidenciada aqui. Na metafísica do

    belo não existe o gênio como um ser totalmente distinto e que se mantém nesse

    modo de conhecimento genial o tempo inteiro, e por outro lado, totalmente diferente,

    o homem comum. Aqui a genialidade é entendida como uma quest