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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE GRADUAÇÃO EM DIREITO CARLA RAMOS DOS SANTOS A DESCONSTRUÇÃO DO INFANTICÍDIO INDÍGENAUM ESTUDO SOBRE AS TEORIAS DE (IR)RESPONSABILIZAÇÃO PENAL APLICADAS AOS INTERDITOS DE VIDA Salvador 2018

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA RAMOS DOS... · CARLA RAMOS DOS SANTOS A DESCONSTRUÇÃO DO “INFANTICÍDIO INDÍGENA” UM ESTUDO SOBRE AS TEORIAS DE (IR)RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

CARLA RAMOS DOS SANTOS

A DESCONSTRUÇÃO DO “INFANTICÍDIO INDÍGENA”

UM ESTUDO SOBRE AS TEORIAS DE (IR)RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

APLICADAS AOS INTERDITOS DE VIDA

Salvador

2018

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CARLA RAMOS DOS SANTOS

A DESCONSTRUÇÃO DO “INFANTICÍDIO INDÍGENA”:UM

ESTUDO SOBRE AS TEORIAS DE (IR)RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

APLICADAS AOS INTERDITOS DE VIDA

Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado à Banca Examinadora da

Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), como

requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Doutor Fábio Roque Silva De Araújo

Salvador

2018

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CARLA RAMOS DOS SANTOS

A DESCONSTRUÇÃO DO “INFANTICÍDIO INDÍGENA”

UM ESTUDO SOBRE AS TEORIAS DE (IR)RESPONSABILIZAÇÃO

PENAL APLICADAS AOS INTERDITOS DE VIDA

A presente monografia foi aprovada como requisito parcial para obtenção do

grau de Bacharel em direito no curso de Direito da Universidade Federal da

Bahia.

Salvador, 06 de março de 2018.

Banca Examinadora

Dr. Fábio Roque Silva de Araújo –

Orientador:....................................................................................................................

Doutor em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia.

Prof. Dr. Sebastian Borges de Albuquerque Mello...................................................

Doutor em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia.

Prof.ª Dr.ª Taís Bandeira O. Passos............................................................................

Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida, sabedoria e força.

À minha mãe, pelas palavras de incentivo, orações e por acreditar em meu potencial.

À minha família, por estar sempre torcendo para eu realizar meus sonhos.

A Beatriz, por ser meu “pontinho de luz e de alegria” em dias difíceis.

Aos meus colegas de trabalho Shirley, Itamar e Ubiraci por cederem seus horários

mais favoráveis, diminuindo o meu cansaço e permitindo que eu escrevesse essa

monografia.

A todos colegas e amigos que me apoiaram durante o período que passei nessa

faculdade.

Ao meu orientador Dr. Fábio Roque pelos conselhos, bom humor e paciência.

A todos que me ajudaram explícita ou implicitamente, por acreditar que eu possa dar

“saltos mais altos”.

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RESUMO

O objeto de estudo desta monografia é a prática de homicídio infantil indígena

entre os povos tradicionais da Região Amazônica sob o enfoque do Direito Penal.

Também conhecido como infanticídio indígena, o homicídio infantil ameríndio poderá

ser tratado aqui como interditos de vida, partindo de uma perspectiva antropológica

que guiará o entendimento da cosmovisão desses povos nos permitindo compreender

o conceito de pessoalidade aborígene. Esta não coincide com o conceito de

humanidade biológica compartilhada entre os ocidentais. Por conta disso, essa

pesquisa concluiu pela não configuração do tipo homicídio nos termos do Código

Penal brasileiro, ocorrendo o erro de tipo motivado pela cultura, que exclui a tipicidade

da conduta e impede a responsabilização penal do agente. Serão analisadas as

teorias de não responsabilização penal, o aspecto subjetivo do tipo homicídio e sua

incompatibilidade com os interditos de vida, as legislações vigentes a respeito do

tema, como também o Projeto de Lei 1057/2007 que visa criminalizar a prática de

interditos de vida.

Palavras Chaves: Infanticídio indígena. Homicídio infantil. Comunidades indígenas.

Erro de tipo. Não responsabilização penal.

ABSTRACT

The object of study of this monograph is the practice of indigenous infantile homicide

among the traditional people of the Amazonian Area under the focus of the Penal Right.

Also known as indigenous infanticide, the homicide infantile Amerindian could be

treated here as life injunctions, starting from an anthropological perspective that it will

guide the understanding of the cosmovision of these people allowing us to understand

the concept of aboriginal personality. This doesn't coincide with biological humanity's

concept shared among the Westerner. Due to that, this research ended for the non

configuration of the type homicide in the terms of the Brazilian Penal code, occurring

the type of error motivated by the culture, that excludes the typical of the conduct and

it prevents the agent's criminal liability. Will be analyzed theories of no criminal liability,

the subjective aspect of the crime of homicide. The effective legislations will be

analyzed regarding the theme, as well as the project of law 1057/2007 that seeks

criminalizes the practice of life injunctions.

Key words: Indigenous infanticide. Infantile homicide. Indigenous communities. Type

of Error. No criminal liability.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CDHM - Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados

CIMI – Conselho Indigenista Missionário

FUNAI – fundação Nacional do Índio

FUNASA – Fundação Nacional de Saúde

JOCUM - Jovens com uma Missão

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONU – Organização das Nações Unidas

PEC – Projeto de Emenda à Constituição

PL- Projeto de Lei

PT- Partido dos Trabalhadores

PV- Partido Verde

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................8

CAPÍTULO I- A INCONSTÂNCIA DA PESSOALIDADE INDÍGENA..........................11

1. O perspectivismo.............................................................................................11

2. A formação da pessoalidade e do parentesco................................................15

3. A pessoalidade gradual...................................................................................16

4. Motivações para a prática de interditos de vida..............................................18

5. Sobre a morte..................................................................................................19

CAPÍTULO II- DA AUSÊNCIA DE VIDA À AUSÊNCIA DE DOLO.............................22

1. Distinção entre infanticídio e os interditos de vida...........................................22

2. Os interditos sob à luz do homicídio................................................................23

3. Breves considerações sobre o tipo subjetivo..................................................26

CAPÍTULO III- ANÁLISE DA (IR)RESPONSABILIZAÇÃO PENAL............................32

1. A inimputabilidade ou a imputabilidade diminuída...........................................32

2. Exclusão da antijuridicidade pelo estado de necessidade putativo.................38

3. Exclusão da antijuridicidade por exercício regular do direito...........................39

4. O erro de compreensão culturalmente condicionado......................................40

5. Sugestões do direito comparado – O erro sobre o objeto...............................43

6. A proposta defendida - O erro de tipo.............................................................46

CAPÍTULO IV- A ANÁLISE LEGISLATIVA................................................................51

1. A Convenção 169 da OIT................................................................................51

2. O Projeto de Lei 1057/2007.............................................................................53

3. A proposta de alteração do art.231 da Constituição (PEC 303/08).................60

4. As audiências públicas....................................................................................62

4.1. Manifestações indígenas......................................................................63

4.2. O posicionamento de Rita Segato........................................................64

CONCLUSÃO.............................................................................................................68

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................72

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INTRODUÇÃO

Atualmente, o Brasil possui cerca de 220 sociedades ameríndias e o número

aproximado de 800.000 indígenas, o que equivale a 0,5% da população brasileira.

Apesar de ocorrerem em número reduzido, ainda existem comunidades tradicionais,

isoladas e semi-isoladas, que mantêm práticas ancestrais denominadas pela

antropologia de interditos de vida, mais conhecidos no senso comum como

“infanticídio indígena”.

As práticas de interditos de vida e de negação de pessoalidade a recém-nascidos

não podem ser descritas como homogêneas. Isso não somente por se manifestarem

através de atos distintos, mas, principalmente, devido à variedade de comunidades

indígenas com base linguística, cosmovisões e culturas distintas. Sua ocorrência é

considerada rara nos dias atuais, e quando ainda subsistente, é realizada por variadas

motivações.

No presente estudo, será feita uma análise de atos elencados pela PL 1057/2007

como “infanticídio indígena” partindo de uma perspectiva ameríndia tentando

encontrar dentro dessas diversas culturas as explicações que indivíduos pertencentes

a esses povos apresentam para manutenção dessa tradição.

A utilização da expressão “interditos de vida” nos permite conceituar tais práticas

sem lançar precocemente elementos conceituais trazidos pelo tipo penal “infanticídio”

ou “homicídio” agregado ao distintivo “indígena”. Este exercício possibilitará o

entendimento da negação da pessoalidade ameríndia para chegarmos a configuração

dos tipos infanticídio ou homicídio e a suas possíveis projeções sobre essas condutas

de maneira mais abrangente que o modelo jurídico penal pátrio.

Para o presente estudo, não serão consideradas as classificações tradicionais

que denominam tais povos como “sociedades de estrutura social complexa” ou

“sociedades de estrutura social fluida”. No primeiro momento, a ênfase principal será

observar distintos aspectos que determinam o conceito de pessoa e pertencimento ao

grupo, a partir de relatos e estudos realizados sobre alguns povos ameríndios.

Será trabalhado o conceito de vida, quais as noções de pessoalidade e de

humanidade disseminados por esses grupos para alcançarmos o significado de morte,

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não pertencimento e negação da pessoalidade. A partir daí, serão feitos possíveis

afastamentos e aproximações do que é tipificado como infanticídio.

Parte desses aspectos serão apresentados no capítulo 1, trazendo

esclarecimentos sobre a cosmovisão indígena, mostrando a relação de vida desses

indivíduos com o restante de sua realidade. Essa exposição é importante para

entendermos qual a posição ocupada por aqueles indivíduos que sofrem os interditos

de vida e como essa concepção de pessoa destoa da prevalecente nas sociedades

ocidentais.

No capítulo 2, será feita a abordagem do crime infanticídio trazido pelo Código

Penal brasileiro, o comparando com o que se chama hoje de “infanticídio indígena”,

tentando desconstruir os equívocos disseminados entre a maior parte da população,

principalmente pela grande mídia. Será provado que o tipo penal tratado nada mais é

que o tipo homicídio. Num segundo momento, será analisado elemento subjetivo

deste.

Uma das questões que mais despertam debate na abordagem penal do tema é

saber se as práticas de homicídio infantil indígena ensejam a responsabilização dos

seus agentes. Tal questão suscitou a redação do Projeto de Lei 1057 em 2007, na

tentativa de, não somente de coibir formas de violência e morte contra crianças

indígenas, mas também criminalizar a conduta de quem cometia, presenciava, ou

tinha conhecimento do risco do homicídio e não agia para impedir sua concretização.

Tais discussões proporcionaram a efervescência de um debate há muito tempo

esquecido pela doutrina. Se tornou necessário rever as teorias e conceitos de

responsabilização tradicionalmente utilizados na análise das infrações e dos crimes

praticados por indígenas. A inimputabilidade penal trazida pela interpretação

doutrinária, a partir da exegese do Código Penal, além de preconceituosa, mostra-se

incoerente com a realidade dessas comunidades e desses indivíduos que só podem

ser considerados inimputáveis pelas mesmas razões que o restante da sociedade

nacional.

No capítulo 3, serão abordadas as principais teorias de irresponsabilização penal

do indígena em casos de homicídio infantil. Nesta monografia, a proposta a ser

destacada é a de erro de tipo motivado pela cultura, devido à não correspondência

entre o conceito de pessoa trazido pelo Código Penal e aquele existente na

cosmovisão das comunidades ameríndias.

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Para finalizar esta pesquisa, o capítulo 4 trará uma análise da legislação vigente

sobre o direito à manutenção das tradições e do modo de vida indígena, em contraste

com o debate do PL 1057/2007. Este tenta limitar essas práticas aos preceitos das

legislações internacionais, em seus aspectos que visam preservar a vida como um

direito universal superior ao direito à cultura. Serão também apresentados relatos com

o posicionamento de alguns indígenas a respeito da intervenção estatal e da

criminalização que o PL 1057 proporciona.

Após essa exposição, espera-se que “pré-conceitos” a respeito do homicídio

infantil indígena sejam dirimidos, esclarecendo, primeiro, não ser um infanticídio.

Depois, não ser uma hipótese de crueldade, pois não há dolo, porque, no

entendimento desses indivíduos, não se trata de uma pessoa. Objetiva-se demonstrar

que, se não está matando uma pessoa, também não pode ser um homicídio. O erro

de tipo exclui a tipicidade. Com isso, não se pode lançar as garras de uma política

criminal sobre um ato que não é uma violação normativa aqui, no nosso ordenamento

jurídico, e nem na normatividade indígena.

Para fazermos essa pesquisa, a metodologia utilizada foi inicialmente a leitura

de vasta bibliografia antropológica. Esta permitiu enxergar a realidade indígena senão

como eles a interpretam, ao menos da forma que a etnologia acredita que ela está

sendo dada. O segundo passo foi a revisão bibliográfica no campo jurídico que,

juntamente com a leitura da legislação corrente, proporcionou a observação de

contradições e a possibilidade de apresentação de soluções que, embora incipientes,

podem reforçar a indicação dos melhores caminhos para apaziguar o debate.

Sigamos, então, com a exposição do tema e com a desconstrução do

“infanticídio indígena”.

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CAPÍTULO I. A INCONSTÂNCIA DA PESSOALIDADE INDÍGENA

A cosmologia ameríndia nos desafia não somente por apresentar diferenças

notáveis de percepção da realidade, mas porque nos induz a mudar de perspectiva

quando começamos a lançar novos olhares a partir de novos sujeitos que, até então,

têm posição de aparente passividade em nossa realidade.

Para o nosso entendimento dos interditos de vida, será necessário compreender

a “relatividade perspectiva” indígena (Gray 1996) que é a “concepção comum a muitos

povos do continente sul-americano, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes

espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem

segundo pontos de vista distintos”. (Castro. 2006, p.347).

Apesar dessa concepção evocar a concepção ocidental de relativismo e

universalismo, o perspectivismo ameríndio se coloca de maneira ortogonal a essa

concepção. A oposição tradicional entre Natureza e Cultura não pode ser utilizada

como instrumento de compreensão das dimensões e dos elementos ontológicos

internos das cosmologias não-ocidentais sem sofrer uma crítica antropológica.

Viveiros de Castro ao propor o abandono de conceitos e predicados associados

aos rótulos de Natureza e Cultura (como universal e particular, objetivo e subjetivo,

corpo e espírito, animalidade e humanidade), cria o conceito de multinaturalismo que

evidencia a contraposição entre o pensamento ameríndio e as cosmologias

“multiculturalistas” modernas basiladas na concepção de unicidade de natureza e

multiplicidade de culturas. O multinaturalismo, ao contrário, demonstra que a

percepção ameríndia supõe “uma unicidade de espírito e uma diversidade de corpos.

A cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal; a natureza ou objeto, a forma

do particular”. (Castro.2006:349).

Ao recombinar predicados associados a Natureza e Cultura, percebe-se que o

pensamento indígena não é construído com o mesmo conteúdo e nem possui

elementos análogos ao ocidental. A explicação dada a tais elementos não são

construções ontológicas, mas posições relacionais, em suma, pontos de vista.

1. O perspectivismo

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Ao estudar as cosmologias de alguns grupos ameríndios, Santos-Granero

identifica nos contos mitológicos que, nos primórdios, todos os seres eram pessoas

humanas que viviam em conjunto e submetidos às mesmas regras sociais. Essas

pessoas se transformaram em animais, plantas e objetos que existem hoje. Esses

outrora humanos, ainda possuem uma alma humana, sendo considerados também

pessoas. Ou seja, todos os seres vivos, no entendimento ameríndio, têm uma

ancestralidade humana. Mas a pessoalidade é atributo daqueles que possuem ‘alma”

e “vitalidade”1.

As narrativas míticas são povoadas de seres que assumem a posição de sujeito.

Ao supor a resposta que um índio daria ao ser perguntado o que é um mito, Lévi-

Strauss define que “é uma história do tempo em que homens e os animais ainda não

se distinguiam”2. Essa descrição de realidade traçada nos mitos não corresponde

necessariamente a sua reprodução na realidade vivida, mas nos dá uma orientação

de como seres humanos e não humanos, como animais, espíritos, objetos e eventos

naturais são descritos rotineiramente como sujeitos no pensamento indígena.

Na cosmologia sul-americana é comum a descrição de que os animais

predadores3 e os espíritos veem os humanos como presa ou espíritos, vendo a si

mesmos como humanos, veem-nos como não humanos. Isso ocorre porque é

disseminada entre essas várias cosmologias que “a condição original comum aos

humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade”. Os mitos indígenas

estão sempre demonstrando como os animais perderam sua humanidade. Por outro

lado, “os humanos são aqueles que se mantiveram iguais a si mesmos” ao longo do

tempo. Os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais” como ocorre na

mitologia evolucionista ocidental. (Castro. 2016, p.355)

Apesar da ancestralidade comum entre humanos, plantas, animais e alguns

fenômenos naturais, que possuem alma, somente os humanos são pessoas

completas já que sua aparência corresponde plenamente à sua essência. A forma

1Santos-Granero, Fernando. Hakani e a campanha contra o infanticídio indígena: Percepções

contrastantes de humanidade e pessoa na Amazônia brasileira. Revista Maná 17. 2011. Pág.134. 2 Lévi-Strauss, Claude & Didier Eribon. “De près et de lion. Paris: Odile Jacob. Ed. Bras.: De perto de longe-entrevista com Claude Lévi-Strauss”. São Paulo: Cosac Naify,2005, p. 193. 3 O perspectivismo não se aplica a extensão de todos animais e outros seres. Ele se aplica a espécies de animais predadores, como jaguar, sucuri, onças, urubus, bem como sobre as presas dos humanos, por isso a predação e a competição decorrente dela é um ambiente propício ao perspectivismo. Já a perspectividade e a incorporação de elementos “humanos” por não-humanos está relacionado com a situação e não com a característica de determinada espécie, sendo que em alguns relatos indígenas, seres não humanos assumem características mais humanas que as pessoas. Para isso ver Viveiros de Castro.2006 p.353.

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externa de cada espécie é um envoltório, como uma “roupa”, que esconde a

humanidade interna comum a todos esses seres. Entretanto, somente os humanos

possuem na aparência o reflexo de sua essência humana interna.

Se o ponto de partida é a humanidade comum a todos os seres, a certeza do

espírito, há uma constante dúvida sobre a diversidade do corpo. Viveiros de Castro

ao analisar as narrativas do contato entre grupos europeus e indígenas, durante o

período colonial, percebe que os europeus sempre tentaram provar se as populações

indígenas eram dotadas ou não de alma (“os índios são homens ou animais?”). Por

outro lado, uma certeza que essas populações sempre tiveram é que os europeus

possuíam tal alma. A dúvida sempre residiu em saber qual seria a consubstanciação

do envoltório (“os europeus são homens ou espíritos?”). Ou seja, eles queriam saber

se aquelas almas tinham corpos e se estes possuíam as mesmas afecções que os

seus.

Viveiros de Castro resume a situação, ao dizer que “em suma: o etnocentrismo

europeu consiste em negar que outros corpos tenham a mesma alma; o ameríndio,

em duvidar que outras almas tenham o mesmo corpo”. (Viveiros de Castro. 2006, p.

381.)

Se todos os seres são dotados de espírito e humanidade e o que os diferencia é

a perda de elementos que o definem como pessoas, qualquer sujeito humano

“completo” com corpo e espírito de pessoa pode a qualquer momento deixar de ser

pessoa. Por isso, como prática comum dentre alguns povos, quando há nascimento,

busca-se no indivíduo evidências de sua consubstancialidade enquanto ser humano.

É necessário observar as regras de organização sociais e se diferenciar de

determinadas práticas animais para manter uma humanidade completa e não se

tornar também um animal.

Nas palavras de Viveiros de Castro:

A metamorfose ameríndia, não é um processo tranquilo, e muito menos uma meta. Se o solipsismo é o fantasma que ameaça perenemente nossa cosmologia – traduzindo o medo de não nos reconhecermos em nossos semelhantes, por eles na verdade não o serem, dada a singularidade potencialmente absoluta dos espíritos –, a possibilidade da metamorfose exprime o temor oposto, o de não poder se diferenciar o humano do animal, e, sobretudo, o temor de ver a sua alma que insiste sob corpo animal que se

come. (Castro. 2006, p.391).

Existe um conto Xikrin que narra a existência de um menino que era filho da onça

e ele havia sido guiado por ela até aquela aldeia. “Chegou lá um dia. Contou o que

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tinha acontecido com ele e disse que lá tinha fogo. Foram todos lá. Pegaram um jatobá

grande queimando e carregaram nas costas, todos juntos. E a onça ficou sem fogo

até agora. Ela come cru e nós come cozido”. (Vidal 1977: 232)4.

A utilização do fogo e de uma alimentação com ingredientes cozidos é um fator

de diferenciação enquanto humanidade. Essa ênfase está presente em mitos de

diferentes povos. Os Timbira (Jê) e os Krahó acreditam que a onça é a dona original

do fogo. Há diversos mitos que narram histórias da perda do fogo. Entre os Morubo é

contada que o homem ao perder o fogo se torna uma onça. (Holanda. 2008, p 23-24).

Há uma série de restrições alimentares que em alguns momentos proíbem o consumo

de certos animais que possuem uma humanidade muito próxima a nossa. A

desobediência a tais regras pode trazer prejuízos para o grupo e doenças para quem

desobedece, podendo tal mal atingir gestantes e seus futuros filhos.

A ideia de metamorfose está relacionada a ideia de “roupa” como envoltório de

um espírito de humanidade que é comum e está presente em todos os seres e, ao

mesmo tempo, ao conceito de perspectivismo que considera todos esses seres

sujeitos que possuem uma perspectiva, um ponto de vista, a respeito da realidade e

constrói a sua própria realidade.

Descola descreve que no pensamento indígena, “o referencial comum a todos

os seres da natureza não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto

condição5”. Essa noção de humanidade afastada do biologismo, nos leva a indagar

por que alguns seres, a partir de uma perspectiva indígena, nunca chegarão a se

tornar pessoas. Por que existe negação à vida a alguns seres, se todos ao redor são

considerados humanos?

A compreensão dos interditos de vida praticados por alguns grupos indígenas

perpassa pela noção não somente de humanidade compartilhada por essas

comunidades, mas também pelo conceito de pessoalidade. A cosmovisão indígena

nos mostra que humanidade e pessoalidade são condições distintas. Que existe um

potencial em se tornar humano, mas que nem sempre isso será desenvolvido.

4Apud Holanda, Marianna Assunção. 5 Apud CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia.2002, p. 356.

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2. A formação da pessoalidade e do parentesco.

Entre os ameríndios não existe a causalidade entre nascimento, parentesco por

consanguinidade e participação no grupo social. Diferente do pensamento biomédico

ocidental, uma criança recém-nascida não é vista como uma humana porque a

procriação não estabelece necessariamente laços de parentesco. A formação desses

laços se dá num processo de troca e de relações contínuas. Por isso, ao se referir a

tais comunidade, usa-se a expressão de formação da pessoalidade. O recém-nascido

não nasce pessoa, igual aos seus progenitores, como algo dado. Mas torna-se

pessoa, como alguém construído.

Decorrente do perspectivismo indígena surge o entendimento que “a

humanidade não é garantida pelo fato de nascer de mãe humana” (...) Existe a crença

de que “mulheres podem ser fecundadas por animais, espíritos e outra pessoas não

humanas” garantindo os interesses de suas espécies ganhando vantagem em relação

aos competidores na busca da força vital. (Granero.2009. p.135). Dentre os povos Piro

há a crença que o feto pode ser jabuti, peixe, ou algum animal que não conheçam.

Isso no sentido literal e não metafórico.

Tais noções diferem de um grupo para outro. O ponto de encontro dentre várias

percepções é que existem características imprescindíveis para um ser se tornar uma

pessoa e fora dessas características a humanidade não se forma. Umas dessas

características é a adequação ao meio de vida da comunidade, o “saber ser social”, a

obediência às prescrições do grupo. Isso pode tornar o novo ser um humano ou pode

determinar a perda da humanidade de algumas pessoas.

O estabelecimento dos limites e fronteiras do que pertence ao grupo é o que

estabelece a relação com a alteridade. Quando em narrativas mitológicas e na

cosmovisão ameríndia seres não-humanos, animais, plantas e objetos são descritos

gente, está sendo afirmado que eles são pessoas. Eles possuem alma e capacidade

de perspectivas, pontos de vista. São sujeitos apesar de serem os “outros”. Algo que

não ocorre com os seres que sofrem interditos de vida. Estes não são significados

dentro dessa cosmovisão.

Daí surge a necessidade de enquadrá-los em uma terceira categoria que não

seria “nós” nem os “outros”. Alguns antropólogos propõe a expressão “entes” para

designar os indivíduos que estão fora do plano das relações que os colocam como

afirmativos do social existente:

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Eles estão fora de tudo que elabora o regime ontológico transformacional,

estão fora do simbólico e do prático, não existem como conceito ou imagem,

não participam do movimento que faz humanos e não humanos. É justamente

isso que lhes confere essa particularidade de entes: diferente de tudo que se

relaciona eles nunca vão poder se modificar, viver ou morrer. (HOLANDA,

2008, p.25).

O fato de não pertencerem faz dos entes um dos ativos de reafirmação dos laços

de parentesco. A sua não significação ainda causa muito desconforto em tais grupos

o que muitas vezes relega a prática de interdito ao silêncio.

A negação de pessoalidade decorre da ideia de que a vida, por não ser uma

concessão, deve ser desejada e construída pelos parentes. Ela não se inicia com o

nascimento de um indivíduo, mas ela continua quando um novo ser surge. Nas

palavras de Holanda:

O status de pessoa é um atributo dado pelo “nós”, pela relação entre pai-mãe-bebê e entre estes e seu povo. Já a condição humana se dá pela relação com os demais seres que compõem a cosmologia e, portanto, demanda a existência dos Outros. A criação dos relacionamentos, dos laços sociais, toda a reprodução social depende desta incorporação dos neonatos. Os entes aparecem aqui pela impossibilidade de participarem dessa elaboração de pessoalidade conferida pelo “nós” bem como da “humanidade” afirmada pela

existência dos outros. (Holanda. 2008, p.26).

3. A pessoalidade gradual

De uma maneira geral, o feto nasce com agencialidade porque possui uma alma.

Ele é ambíguo, porque age, mas não é. Talvez não passe pelo processo de

transformação que o torne um ser humano. Cada comunidade define qual o processo

de transformação que torna cada ser uma pessoa.

Entre os Piaroa essa capacidade humana somente é alcançada com a

convivência harmoniosa com o grupo e com o cosmo. A conquista dessa harmonia é

feita diariamente e ela afasta a possibilidade de deslizes, dos interditos e do que

poderia retirar a humanidade. A criança que nasce só iniciará nessa empreitada

quando receber um nome se fazendo, então, um ser humano completo, pois já

demonstrou habilidades como andar, falar e alimentar-se com autonomia.

Levy- Strauss em seus estudos sobre “A estrutura dos mitos” identifica a relação

existente entre a nominação de recém-nascidos com a relação de parentesco, ele

afirma que “os termos de parentesco são elementos de significação” (...) da mesma

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forma que os fonemas “só adquirem esta significação sob a condição de se integrarem

em sistemas. (1955, p.49)”6.

Os estudos etnográficos demonstram que não há nominação para os entes.

Nenhum termo é dado e, normalmente eles estão relegados ao silêncio. Na maioria

das vezes, eles não somente se diferenciam dos neonatos com potencial de inserção

social, mas também dos “outros” seres que integram o sistema relacional incluindo os

não-humanos e, até mesmo, dos mortos. Poucos grupos os tratam como “os outros”,

ou pertencente a cosmologia relacional.

Para os Bororo e os Yudjá, a vida só é elaborada com a aquisição da “vergonha-

respeito” que significa observar os preceitos do grupo social e em caso de

descumprimento, haver um grande constrangimento público por desrespeito à

dinâmica social estabelecida por relações com o sagrado. Eles acreditam que devem

estar fora da humanidade todos aqueles que não sabem observar as regras.

Para alguns povos os entes se colocam no mundo mostrando que não sabem

pertencer. Por desconhecerem as regras quebram com o que deve ser, e por isso são

impossibilitados de desfrutarem do social. A infração às regras deve ser coibida, pois

agir dessa forma é demonstrar-se inimigo ou animal que deve ser amortizado.

Apesar de cada grupo estabelecer quais critérios são necessários para formar-

se uma pessoa, o primeiro passo comum a maioria desses grupos para entrar no

mundo dos seres é o engajamento na vida social. Há uma rede de trocas inicias de

substâncias com a criança (sangue, leite, suor) que não representam as relações

existentes, mas que produzem estas relações. O corpo não é um organismo completo,

mas precisa ser constantemente fabricado por essa teia de relações parentais e afins.

Há uma constante busca de assemelhamento corporal do recém-nascido com a

parentela e uma busca de diferenciação com os não-humanos. Por outro lado, a

observação de prescrições sociais que proíbem incesto7 e, em alguns grupos, não

permitem relações que geram filhos ilegítimos ou, contrariamente determinam que a

mulher deve manter relações com parceiros diversos para que a formação do feto seja

6 Apud CASTRO, Eduardo Viveiros de Castro, 2006. 7 A proibição ao incesto está presente em diversas culturas indígenas, sendo recorrente tais fatos em

narrativas mitológicas tendo como consequência ao praticante a retirada da pessoalidade e das relações sociais.

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18

completa, deve ser sempre observada sob o risco de prejuízo à criança em formação

tanto no aspecto físico como na sua consequente não inserção ao grupo.

4. Motivações para a prática dos interditos de vida

A inobservância de preceitos e a quebra de tabus por parte de um dos pais

podem causar o nascimento de crianças que não possuem potencial para atingir a

humanidade. Alguns povos da Amazônia, como os Mehinaku consideram que a altura

excessiva de algumas crianças decorre da promiscuidade da mãe, pois o crescimento

de algumas crianças é devido ao acúmulo de sêmen de um ou mais parceiros no

ventre da mãe.

Existe a crença de que as mulheres podem ser fecundadas por seres não

humanos, dentre eles animais e espíritos. Nem sempre as mulheres grávidas e suas

famílias percebem isto. Em muitas sociedades ameríndias, o nascimento de gêmeos

é um indício de fecundação não humana. O antropólogo Kenneth M. Kensinger, sendo

ele um gêmeo, relata sua experiência em campo com os Kaxinawá do leste do Peru:

Gêmeos, dizem eles, são produzidos quando um espírito engravida uma mulher. São, portanto, chamados yushin bake, “criança-espírito”, e são destruídas ao nascer. Quando elas finalmente entenderam que eu estava dizendo que eu era gêmeo, eles imediatamente se afastaram e me evitaram por muitos dias, até que um líder decidiu que eu não podia ser uma criança-espírito porque eu era muito burro e incompetente na floresta. O filho de um

espírito jamais poderia ser assim8.

O povo Desana afirma que gêmeos nascem quando os pais misturam comidas

masculinas com femininas, cuja a combinação é considerada tabu por aquela

comunidade. Esse comportamento é associado ao adultério ou a endogamia

incestuosa. Em outros povos ameríndios, além dessas crenças apresentadas,

também há o entendimento de que gêmeos podem ser resultado de quebra de tabus

ou de ataques de seres espirituais.

Apesar da ocorrência de diversas narrativas míticas com a presença de gêmeos,

no cotidiano, o nascimento de gêmeos é concebido como uma ameaça à humanidade

e à vida social, por isso não é permitido que vivam.

Os Kaxinawá acreditam que as mulheres podem ser fecundadas por espíritos ao

serem visitadas por eles em sonhos, quando caminham à margem de algum rio ou na

floresta. Os frutos dessa união são propensos a deformidades ou anomalias

8 SANTOS-GRANERO, Fernando. Hakani e a campanha contra o infanticídio indígena: Percepções contrastantes de humanidade e pessoa na Amazônia brasileira. Revista Maná 17. 2011. Pág. 137.

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decorrentes da mutabilidade e excessos que esses espíritos estão associados. A má

formação física é interpretada como indício de que o novo ser se trata de uma criança-

espírito.9

Crianças “bastardas” ou frutos de relações adulterinas podem ser vítimas de

interditos por não serem consideradas pessoas. Isso não ocorre por sua filiação não

humana, mas por falta de inserção e de relações sociais essenciais a formação desse

novo membro do grupo social. A pessoalidade social e o nascimento cultural precisam

da participação de toda rede de parentesco e afins para serem atingidos plenamente.

5. Sobre a morte

Não somente a origem da vida, a manutenção dos seus ciclos e das relações

sociais é festejadas na cosmologia ameríndia. A morte possui papel proeminente na

sua manutenção, porque vivos, deuses e mortos coexistem e constroem uma

realidade ampla.

Menget afirma que tanto o “nascimento, o crescimento, a gravidez, a doença, o

homicídio e a morte natural formam uma série que dá lugar a ritos da mesma

natureza”. Ou seja, toda essa cadeia forma ciclos que estão presentes na cosmologia

indígena e a morte é parte essencial para manutenção dessas outras fases. (MENGET

1979:248).

Holanda ao retratar o modo como os Bororo concebem a morte, destaca que é

ela a ausência de “peguru”, do respeito-vergonha que preestabelece o bom convívio

entre os vivos. Por não saberem mais agir de acordo com as regras sociais, eles

devem ser “desconsubstancializados” através de rituais para poder adentrar o mundo

(ou aldeia) dos mortos com uma nova substancialidade ficando fora do mundo dos

vivos.

Para os Timbira,

a alma dos mortos vive algum tempo em aldeia própria com uma vida social pobre e menos aprazível que deste mundo; cada alma a seu tempo, também morre e se transforma em animal de caça, não consumido pelos vivos, pois é reconhecido pela falta de gordura e do mal odor; este animal morre e se transforma num inseto, que também vem a morrer, virando um toco de pau. Este, quando o cerrado pega fogo, desaparece. (Mellati 2003).

(HOLANDA.2008, p.73-74).

9 Ibidem.

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Nos interditos de vida não são observados ritos que acompanham momentos

importantes dos ciclos da vida, muito menos aqueles relacionados a morte. O que

demonstra que os entes estão “foracluídos” da cosmologia indígena. Eles não são

considerados mortos porque a morte é uma transformação, iminência constante da

possibilidade de metamorfose. Ela traz consigo a dualidade da ruptura com a vida

social e, ao mesmo tempo, a continuidade dos processos de produção pelos quais

devem passar todo aquele que viveu.

Os mortos estão incluídos na categoria de “outros” dentro desta cosmologia, e,

sendo alteridade, reafirmam a dinâmica social. Para ser “um morto é preciso antes ter

desfrutado da plenitude de uma vida social”. (...) Morrer é retirar-se plenamente do

social. Chegamos ao ponto: estamos falando de sistemas em que para morrer é

necessário, antes, pertencer. Isso indica que, no intuito de pensar a negação do status

de pessoas a alguns entes não estamos falando de morte, nem de crime, nem de

movimento. (HOLANDA.2008, p.p.40,44)

Tal identificação a partir do pensamento ameríndio demonstra que os conceitos

de infanticídio ou homicídio não se coadunam com a prática dos interditos de vida em

seus elementos constitutivos mais basilares que é a retirada de uma vida humana.

Entretanto, é ingênuo imaginar que dentro dessa lógica, atos contra a vida de crianças

e, até mesmo, contra a vida de “entes”, não possam ser interpretados como um

homicídio.

Em um trabalho de campo realizado pela etnóloga Emilenne Ireland, ela

presencia um “incidente” no qual o padrasto de uma criança ilegítima de 4 anos

aproveitando um momento a sós, tê-la sufocado. Apesar da comoção entre o grupo,

o autor do ato não foi punido por existir o conflito de dois preceitos sociais:

“I) A ilegitimidade de uma criança sem pai que não deveria ter sido

consubstancializada-neste caso, a mãe havia agido mal em tê-la inserido na rede de

relações sociais; II) Havia o consenso de que nenhuma pessoa pode retirar a vida de

outra pessoa”.

Uma informante que pertencia à aldeia relatou que ficou

muito triste quando a criança foi morta. Este não é o nosso costume. Nós não matamos crianças que estão suficientemente crescidas para andar sozinhas e deter o conhecimento de nossa linguagem. Mas o que podemos fazer? Esta criança não tinha pai. Ela não deveria ter nascido. Se isso fosse evitado, de acordo com o nosso costume, nada disso teria ocorrido. (Ireland 1993:24). (HOLANDA. 2008:25).

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Tal relato nos leva a perceber a clareza dentre esses povos que, em algum

momento, esse “ente consubstancializado” passa a possuir feições de pessoalidade

e, a partir desse momento, o ato de pôr fim a uma vida é considerado uma infração

aos próprios preceitos do grupo. A caracterização de um tipo penal ou o afastamento

da imputação de acordo com o nosso sistema jurídico serão discutidos nos próximos

capítulos.

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CAPÍTULO II: DA AUSÊNCIA DE VIDA À AUSÊNCIA DE DOLO

1. Distinção entre infanticídio e os interditos de vida

A prática de interditos de vida realizada por alguns povos ameríndios é chamada

no senso comum de “infanticídio indígena”. Tal expressão nos leva a acreditar,

inicialmente, que exista uma relação entre essa prática e o infanticídio tipificado no

Código Penal.

Esse estabelece em seu art. 123:

Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após:

Pena - detenção, de dois a seis anos.

É notável pela leitura do artigo que o Código Penal exige como agente do delito

de infanticídio uma mãe sob a influência do puerpério. Somente a mãe pode ser sujeito

ativo do crime, tratando-se, portanto, de crime próprio, não podendo ser cometido por

qualquer pessoa10.

O Código adota o critério fisiológico da influência do estado puerperal para

considerar o crime infanticídio. Logo, o estado puerperal é um elemento normativo

essencial do tipo delitivo e, sem ele, será configurado o delito de homicídio.

Dessa forma, nos ensina Bitencourt:

O indigitado estado puerperal pode apresentar quatro hipóteses, a saber: a) o puerpério não produz nenhuma alteração na mulher; b) acarreta-lhe perturbações psicossomáticas que são a causa da violência contra o próprio filho; c) provoca-lhe doença mental; d) produz-lhe perturbação da saúde mental diminuindo-lhe a capacidade de entendimento e determinação. Na primeira hipótese, haverá homicídio; na segunda, infanticídio; na terceira, a parturiente é isenta de pena em razão de sua inimputabilidade (art.26, caput, do CP); na quarta, terá uma redução de pena em razão de sua semi-imputabilidade11.

O autor continua sua explicação e sustenta ser

indispensável uma relação de causalidade entre o estado puerperal e a ação

delituosa praticada; esta tem de ser consequência da influência daquele que

nem sempre produz perturbações psíquicas na mulher. Como destacava

10 O Código Penal da Guiné-Bissau tipifica como infanticídio além da conduta descrita no Código Penal Brasileiro os interditos de vida praticados pela mãe, pai ou os avós durante o primeiro mês de vida do filho ou do neto “por este ter nascido com manifesta deficiência física ou doença, ou compreensivelmente influenciados pelos usos e costumes que vigorarem no grupo étnico a que pertençam. Ver em “Problemas do Direito Penal numa sociedade multicultural: o chamado infanticídio ritual na Guiné-Bissau”. Augusto Dias Silva. 11 Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direto Penal. P.152.

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Frederico Marques, ‘durante ou depois do parto, pouco importa, sempre é

necessário que a morte resulte da influência do estado puerperal’. Não teria

sentido, caso contrário, manter o privilégio, e o infanticídio representaria uma

inversão odiosa da ordem natural dos valores protegidos pela ordem

jurídica12.

A prática dos interditos de vida não ocorre devido a uma alteração psíquica ou

desequilíbrio das funções maternas ocasionados pelo estado puerperal. Os interditos

estão circunscritos a outra cosmovisão da realidade, a conceitos distintos de

pessoalidade e de pertencimento social.

O elemento normativo temporal, é menos representativo para evidenciar uma

distinção, mas pode também ser elucidado. A expressão legal informa ser outro

delimitador do infanticídio a retirada da vida “durante ou logo após” o parto do ser

nascente ou nascido. Apesar da restrição ao texto de lei, a doutrina tem aceitado a

extensão do estado puerperal por alguns meses após o parto. Os interditos de vida

também não se restringem aos momentos iniciais de existência do ente, podendo

ocorrer alguns meses ou até mesmo anos após o nascimento biológico.

Miranda Santos observa que

o Código Penal protege a vida humana em formação em três momentos distintos, diferenciando o feto, o ser nascente e o recém-nascido: por meio dos tipos penais que incriminam o aborto (art. 124 a 127) protege-se a vida humana intrauterina; com os tipos do homicídio (art. 121) protege-se a vida humana extrauterina; e com o infanticídio (art. 123) protege a vida durante o parto ou logo após (ser nascente e recém-nascido)13.

Atualmente não existe mais a distinção entre vida biológica e extrauterina, não

havendo exigência de vida autônoma, mas somente a biológica.

Dada a não consunção dos interditos de vida ao tipo infanticídio, aparentemente, resta

nos enquadrá-lo como homicídio.

2. Os interditos sob à luz do homicídio

A tipificação do crime de homicídio no Código Penal determina:

12 Ibidem.p152. 13 SANTOS, Bartira Macedo de Miranda. A proteção jurídica à vida do nascituro e uma velha lacuna legal. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br. Acessado no dia21/12/2017.

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Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

O homicídio é a eliminação da vida de alguém provocada por outrem. O

enunciado do art.121 é o mais conciso do Código Penal Brasileiro. Essa objetividade

possibilita maior amplitude, pois não estabelece nenhuma limitação à conduta que

ocasionalmente restringiria a tipificação.

O bem jurídico tutelado no crime de homicídio é a vida humana. A importância

do bem jurídico vida é evidente, ao ponto do legislador não se limitar a protegê-lo e,

por conta disso, criou graus diversos (simples, privilegiado e qualificado), como

também figuras autônomas como o infanticídio, induzimento, instigação ou auxílio ao

suicídio e aborto que são extensões dessa figura central.

Na perspectiva do Direito, a vida começa com o início do parto. Miranda Santos

afirma que a ciência ainda não conseguiu determinar o início da vida humana e da

passagem da animalidade à humanidade. Ficando tal distinção a cargo das Ciências

Biológicas, resta ao Direito estabelecer o momento da personalidade jurídica da

pessoa e não o início da vida.

A autora destaca que a:

expressão “alguém” pode ser tomada em dois sentidos. Em sentido vulgar, equivale a ser humano tanto o nascido com vida quanto o por nascer, independentemente da idade de gestação. Em sentido técnico-jurídico quer dizer a pessoa (que significa o ser humano nascido com vida). A expressão “alguém” contida no art. 121 (matar alguém) significa qualquer pessoa. Em

outras palavras, qualquer ser humano nascido com vida14.

A expressão “alguém” visa abranger o universo de seres humanos que dispõe

de vida. O sujeito passivo pode ser qualquer ser humano nascido de mulher com vida.

Essa afirmação induz ao questionamento de quando começa a vida.

A resposta a essa pergunta, apesar de parecer simples, ainda carece de

resposta precisa, pois muitas vezes, ela se baseia na concepção, ou na perspectiva

cultural de cada grupo social. No caso das populações ameríndias, o surgimento da

vida não se resume a um único fato, mas é uma continuidade, importando muito mais

a formação da pessoa do que o evento do nascimento biológico.

Segundo Feitosa,

(...)a exigência do duplo nascimento está diretamente relacionada com a existência de práticas de interditos de vida. Estas traduzem o não nascimento

14 Ibidem .

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cultural e sua consequência imediata, o não tornar-se humano. Na origem das mesmas reside a impossibilidade da parturiente e do grupo social ao qual ela pertence assegurarem os bens naturais necessários à manutenção da vida, e os bens culturais imprescindíveis ao processo de humanização que segundo, Lévi-Strauss (1982) não se produz por meio de uma humanidade abstrata, mas a partir de realidades culturais concretas e específicas15.

Miranda Santos destaca que, no direito, os conceitos de ser humano e de pessoa

humana não se confundem. O feto é um ser humano, mas ainda não se tornou uma

pessoa. “O ser humano só é considerado uma pessoa no instante em que nasce com

vida. A personalidade (jurídica) é a qualidade de pessoa (do ponto de vista jurídico)”16.

O Direito Civil somente outorga a personalidade jurídica ao ser humano nascido com

vida. Por outro lado, o Direito Penal estabelece tipos penais específicos para tutelar

cada fase da vida humana.

A ideia trazida com “matar alguém” se traduz em matar outro ser humano que

não o agente. Logo, o homicídio exige a existência de dois sujeitos: o que mata e o

que morre. O sujeito passivo do homicídio é o homem, na acepção de humanidade

ampla, podendo ser um homem ou uma mulher. Clóvis Bevilácqua afirma que homem

é “todo ser nascido de mulher”17.

Essa concepção de humanidade, nem sempre é encontrada na cosmovisão de

comunidades isoladas ameríndias. Para estas, não existe causalidade entre nascer

de mãe humana e ser consequentemente um humano. Nos primeiros meses de vida

há constante observação da humanidade do indivíduo nascido. De acordo com

Santos-Granero:

A averiguação da natureza humana de um recém-nascido por seus pais, parentes ou amigos não transforma automaticamente, contudo, a criança em uma pessoa completamente humana. Mesmo reconhecidos como humanos, a natureza dos recém-nascidos ainda é considerada indiferenciada e

mutável.18

Partindo do pressuposto de que o indivíduo não nasce pessoa, mas é tornado

pessoa ao ser inserido numa construção social, percebemos que uma das condições

elementares para averiguação da tipicidade da conduta que é matar “alguém” deve

15 FEITOSA. Saulo Ferreira. Pluralismo moral e direito à vida: apontamentos bioéticos sobre a prática do infanticídio em comunidades indígenas no Brasil. Dissertação de Mestrado. UNB. 2010. 16 Ibidem. 17 Apud, SANTOS, Bartira Macedo de Miranda. A proteção jurídica à vida do nascituro e uma velha lacuna legal. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/. Acessado no dia21/12/2017. 18 SANTOS-GRANERO, Fernando. Hakani e a campanha contra o infanticídio indígena: Percepções contrastantes de humanidade e pessoa na Amazônia brasileira. Revista Maná 17. 2011. Pág. 137.

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ser relativizada ou mesmo ressignificada para categorizar as mortes de recém-

nascidos ocorridas dentro dessas comunidades.

3. Breves considerações sobre o tipo subjetivo

Para classificar um dado comportamento como típico, é necessário sondar a

vontade e a consciência do agente para chegarmos a sua intenção. No caso do

homicídio, o animus agendi é o dolo.

Há unanimidade doutrinária sobre a existência de diferentes classes de dolo

possíveis. Na análise tripartida19 podemos encontrar: O dolo direto de primeiro grau,

no qual o autor persegue a realização do resultado. Nesta classe do dolo é

preponderante o elemento volitivo, pois o sujeito quer o resultado produzido ou que

tentou realizar.

O dolo direto de segundo grau que exige do autor uma representação do

resultado como uma consequência inevitável de sua conduta. Nesta categoria de dolo

não existe uma “vontade dirigida ao resultado”. O dolo eventual que entra como uma

terceira categoria de crime doloso, apesar de intensa discussão sobre o seu conceito

e sobre a determinação de quais elementos devem ser utilizados para caracterizar

alguns fatos como dolosos20.

19 Bitencourt leciona que “o objeto do dolo direto é o fim proposto, mas também os meios escolhidos e os efeitos colaterais representados como necessários à realização do fim pretendido. Assim, o dolo direto compõe-se de três aspectos: a) a representação do resultado, os meios necessários e das consequências secundárias; b) o querer o resultado, bem como os meios escolhidos para a sua consecução, c) o anuir na realização das consequências previstas como certas, necessárias ou possíveis, decorrentes do uso dos meios escolhidos para atingir o fim proposto ou da forma de utilização dos meios. Em relação ao fim proposto e aos meios escolhido, o dolo direto é classificado como de primeiro grau, e, em relação aos efeitos colaterais, representados como necessários, é classificado como de segundo grau. Como sustenta Juarez Cirino dos Santos, ‘o fim proposto e os meios escolhidos (porque necessários ou adequados à realização da finalidade) são abrangidos, imediatamente, pela vontade consciente do agente: essa imediação os situa como objetos do dolo”. Em BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 2. Dos Crimes contra a pessoa, p. 55-56. Juarez Cirino dos Santos ao distinguir as três espécies de dolo as subdivide em: “a) intenção, também denominada dolus directus de 1º grau; b) o propósito direto, também denominado dolus directus de 2º grau; c) o propósito condicionado, ou dolus eventuais. Em linhas gerais, a intenção designa o que o autor pretende realizar; o propósito direto abrange as consequências típicas previstas como certas ou necessárias; o propósito condicionado – ou dolo eventual- indica aceitação das ou conformação com consequências típicas previstas como possíveis”. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2ª ed. Curitiba; Lumen Juris, 2007. P. 135. 20 CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. “El limite entre dolo e imprudência” in Comentários a la Jurisprudencia Penal del Tribunal Supremo. Barcelona: José Maria Bosch Editor, 1992. Apud BUSATO, Paulo César. Dolo e Significado. Revista de Estudos Criminais. Nº31. outubro/dezembro de 2008.

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Apesar da existência dessa concepção tripartida, o Código Penal brasileiro

adotou uma posição bipartida do dolo, o apresentando como direto e eventual, sendo

seguido por boa parte da doutrina. O artigo 18, inciso I do Código aponta:

Art. 18 - Diz-se o crime:

Crime doloso

I - Doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo

O estabelecimento do elemento subjetivo do tipo como dolo direto ou dolo

eventual se origina nas divergências doutrinárias que levaram ao surgimento de

algumas teorias. Dentre as existentes, Bitencourt analisa as seguintes:

a) A Teoria da vontade

Também conhecida como uma teoria clássica, a teoria da vontade defende que

o dolo é a vontade dirigida a um resultado. Carrara afirmava que o dolo “consiste na

intenção mais ou menos perfeita de praticar um ato que se conhece contrário à lei”21.

A vontade que se analisa no dolo não é de violar a lei, mas de executar a ação visando

o resultado.

Em posicionamento a respeito da importância da vontade para configuração do

dolo, Hassemer22 chega a afirmar que o dolo

reside sem dúvida no lado interno do pensar e do querer (da vontade e da

realização) e não no lado externo da ação e a causação: a atividade de

evitação. Ou seja, uma teoria do dolo esquematicamente objetivada só pode

ser exata quando o indicador externo representa completamente aquilo que

se deva refletir(...)23.

Na hipótese de dolo eventual, o autor da ação assume o risco de produzir um

resultado representado como possível, ou seja, ele consente na produção daquele

resultado, havendo de sua parte um consentimento.

21 Apud, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. página 315. 16. Ed. São Paulo Saraiva,2011. 22 Hassemer renuncia a ideia de dissociação entre o elemento cognitivo e volitivo para configuração do dolo. Da mesma forma que Engish, reconhece que o dolo se encontra no aspecto interno do agente e aceita que a assunção de conceitos abstratos para descrever o dolo, seja como decisão a favor da lesão de bens jurídicos, seja como uma conduta contra bens jurídicos, ou como negação legítima realizada pelo agente. Essa discussão pode ser encontrada em “Dolo e significado” de Paulo César Busato. 23 Apud BUSATO, Paulo César. Dolo e significado. Revista de Estudos Criminais. 31. outubro/dezembro de 2008.

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b) Teoria da representação

Segundo essa teoria, para a existência do dolo basta que o agente tenha a

representação do resultado como certo ou provável ou tenha uma representação

subjetiva deste.

Atualmente essa teoria não angaria muito crédito. Von Liszt e Frank, seus

principais defensores, acabaram reconhecendo que somente a representação de

resultado não era bastante para configurar o dolo, sendo necessária a existência de

uma relação psíquica entre o agente o resultado, que só pode ser identificada na

expressão da vontade.

c) Teoria do consentimento

Esta teoria também reconhece a importância da vontade mesmo que não dirigida

para o resultado possível ou provável, assume o risco de produzi-lo. Tal

consentimento é sinônimo de querer.

As divergências entre a teoria da vontade e do consentimento foram atenuadas

ao conciliarem a noção de dolo como representação e vontade ao mesmo tempo.

Pois, vontade e consciência estão vinculadas, sendo a previsão sem vontade

inexpressivo ao Direito Penal e a vontade sem previsão algo impossível de existência.

Chegou-se à conclusão de que os dois elementos estruturam o dolo: o primeiro

é o conhecimento do fato que constitui o ato tipificado, sendo por isso chamado de

elemento cognitivo; o segundo é a vontade de realizar tal ato, também conhecido

como elemento volitivo. Existe um vínculo de dependência entre esses dois

elementos, pois o conhecimento é o pressuposto da vontade de agir.

Comparando as teorias apresentadas e o preceito legal do art. 18 do Código

Penal, nota-se que este adotou as duas teorias: a teoria da vontade, que abrange a

teoria da representação, para o dolo direto, e, ao mesmo tempo, a teoria do

consentimento que complementa a teoria da vontade no quesito de dolo eventual.

O estudo do dolo quando abordado como direto não levanta muitas discussões

normalmente envolvendo casos que demandam provas simples para comprovação do

fato. De maneira simplificada, no dolo direto, o autor representou facilmente o

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resultado e dirigiu seus atos objetivando produzi-lo, tanto o elemento cognitivo como

o volitivo se completam plenamente24.

Como observa Cuello,

los problemas del dolo, que son además los de la imbricación entre su aspecto substantivo y procesal, comienzan, podemos decir, utilizando el caso de la intencionalidad o dolo directo sólo como referente, cuando uno u otro de los aspectos del concepto tradicional de dolo, el elemento intelectivo o el volitivo, no se dan completos. A partir de este momento, además, comienza la relevancia especial de la prueba del dolo de cara a perfilar um concepto de dolo practicable; (...) Podemos, y debemos, además, apuntar ya, después lo veremos con más detenimiento, por qué: No exactamente porque no podemos ‘ver’ qué quiso el autor, sino porque el concepto (psicológico) de querer es muy ambíguo y desde luego hay que “prepararlo” para una imputación (en nuestro caso penal)25.

Se há possibilidade de falha ao utilizar o conceito psicológico para aferição do

dolo, uma das soluções apontadas por parte da doutrina é recorrer ao contexto para

inferir a intencionalidade do agente.

?Cuando podemos decir que se há querido causar una lesión tan grave, por peligrosa, como para fundamentar em ella la imputación del resultado acaecido a título de dolo (...)? Uma primeira respuesta e esta árdua pregunta, como sólo Jakobs, com la osadía que le caracteriza, se há atrevido a admitir, remite al contexto. El contexto, ciertamente, puede ser esclarecedor(...)26.

Paulo César Busato afirma que para entender o dolo é necessário fazer

referências a elementos externos, por isso, há estreita relação com a teoria da prova.

O dolo se resume àquilo que pode-se demonstrar. É preciso demostrar objetivamente

a intenção subjetiva do agente. Em suas palavras:

Não resta, pois, nenhuma dúvida de que a identificação do dolo não pode vir da descrição de um processo psicológico, mas somente da identificação do que Hassemer27 qualifica de ‘indicadores externos’. O dolo definitivamente não “é” um fato, mas uma atribuição de uma decisão contrária ao bem jurídico, na qual se expressam conhecimento e vontade (p.16).

24 Essa definição de dolo direto pode se evidenciar controvertida se considerarmos que o dolo direto não pode ser facilmente definível pela expressão “querer o resultado”, pois existem situações em que o agente não quer o resultado atingido, ou mesmo lamenta a sua ocorrência. O mesmo ocorre com o “assumir o risco de produzir o resultado” no dolo eventual. 25 CUELLO CONTRERAS, Joaquín. Aspectos substantivos y procesales del dolo. Revista Peruana de Ciências Penales. Número 16. Página 141. Disponível em: www.ibccrim.com.br. Acessado em 03 de dezembro de 2017. 26 Ibidem, página 148. 27 “Em resumo, Hassemer entende que o dolo é uma decisão a favor do injusto; mas entende também que o dolo é uma instância interna não observável, com o que sua atribuição se reduz à investigação de elementos externos que possam servir de indicadores e justificar sua atribuição. Por isso, estes indicadores só podem ser procurados na mesma ratio do dolo, que se explica em três sucessivos níveis: situação perigosa, a representação do perigo e a decisão a favor da ação perigosa. Em BUSATO, Paulo César. Dolo e significado. Revista de Estudos Criminais. 31. outubro/dezembro de 2008, p. 15.

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30

Se o dolo não existe enquanto um dado constatável, ontologicamente, mas é

resultado de uma avaliação - e valoração - dos fatos, para que se faça uma atribuição

do dolo aos interditos de vida, precisamos recorrer a cosmovisão que enseja tais

atitudes e, somente então, concluir se é devida ou não a imputabilidade penal28.

Lançando um olhar do Direito estatal estabelecido sobre a prática dos interditos,

existe uma lesão ao bem jurídico vida daqueles que sofrem o ato, podendo tal prática

ser considerada um homicídio. Entretanto, ao verificar os aspectos culturais aos quais

está inserido quem atua, percebemos que os elementos basilares do dolo de

homicídio não estão presentes nestas práticas.

Uma das elementares do dolo é a consciência da ação que está sendo

executada naquele exato momento, ou seja, é necessária uma consciência atual29 e

efetiva da ação, que neste caso é a materialização do núcleo do tipo “matar”. No

momento da interdição à vida, o elemento cognitivo que represente a retirada de uma

vida não está presente30.

Como elucidado anteriormente, o “ente” que sofre o interdito não é considerado

uma vida para aqueles que praticam o ato, pois nestas sociedades o nascimento

cultural tem preponderância sobre o nascimento biológico, sendo aquele o fator

definidor da aquisição da vida e da pessoalidade.

O “ente” é considerado uma vida potencial, mas que ainda não foi formada. Por

conta disso, não é possível atribuir ao ato de interdito a consciência da prática de

“matar alguém”. Partindo do pressuposto de só existir vontade se houver cognição,

podemos concluir que o elemento volitivo não se configura. Logo, na prática dos

interditos de vida não existe vontade de subtrair a vida. Existe a tentativa de impedir

que aquele novo ser se torne uma vida.

28 Tal posicionamento pode ser encontrado entre aqueles que defendem o dolo como uma atribuição normativa. Ibidem, p. 16. 29 Segundo Zaffaroni, o dolo não exige um conhecimento atual, mas pode ser integrado com alguns conhecimentos atualizáveis: “existem alguns conteúdos de consciência que não podem ser separados de outros em que ‘se pensa’, o que significa que quando focalizamos a consciência sobre alguns objetos há um compensar em outros, que não podem ser separados dos anteriores, sem qualquer necessidade de que expressamente pensemos nos segundos”. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral -Volume I. 2012, p.435. 30 O objeto do conhecimento deve ser delimitado quanto à natureza desse objeto. Ou seja, “a) os elementos descritivos do tipo legal (homem, coisa) , como realidades concretas perceptíveis pelos sentidos, devem ser apreendidos na forma de sua existência natural; os elementos normativos do tipo legal(coisa alheia, documento), com conceitos jurídicos empregados pelo legislador devem ser apreendidos conforme seu significado comum, segundo a valoração paralela ao nível do leigo – a célebre fórmula de MEZGER -, e não no sentido de definição jurídica respectiva, porque, então, somente juristas seriam capazes de dolo”. Juarez Cirino dos Santos. Direito Penal Parte Geral. p.134.

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31

Nas palavras de Cuello Contreras:

“Con el de dolo no describimos qué quiso el autor a quien se lo adscribimos, sino que le imputamos una voluntad de lo que causó conociendo ciertas circunstancias intimamente relacionadas com lo ocurrido , salvo que aduzca otras circunstancias concurrentes en el caso que permitan adscribir el

resultado a voluntad distinta31.

Somente é possível chegar a esse entendimento inserindo a ação ao contexto

cultural em que ela é praticada. As circunstâncias do ocorrido para avaliar o que, no

nosso entendimento, seria a retirada de uma vida, devem ser somadas às

concorrentes advindas da perspectiva do agente do crime tipificado. Não se pode

ignorar a relação de estranhamento e inadequação com seres que não se inserem

com sua cosmovisão de pessoalidade no momento da valoração do dolo.

Entretanto, a análise do elemento subjetivo do tipo não é suficiente no

oferecimento de respostas à apreciação da responsabilidade criminal em casos de

interditos de vida. Devido justamente à relatividade perspectiva indígena, concepção

segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas,

humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos,

precisamos analisar a imputação penal através dos componentes objetivos do

conceito de crime.

31CUELLO CONTRERAS, Joaquín. Aspectos substantivos y procesales del dolo. P. 145.

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CAPÍTULO III. ANÁLISE DA (IR)RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

A questão de maior interesse para os penalistas é saber analisar a

responsabilidade penal daqueles que praticam os interditos de vida, ou seja, saber se

o indígena responde ou não pelas condutas contrárias às normas penais e de qual

maneira. Neste capítulo, nossa análise recairá sobre as propostas de enfrentamento

da questão nos casos de homicídio de crianças em comunidades tradicionais.

1. A inimputabilidade ou a imputabilidade diminuída

Alguns sistemas jurídicos defendem a impunidade de indígenas praticantes de

fatos considerados ilícitos devido a sua incapacidade de culpa. Outros apresentam

como solução uma imputabilidade diminuída com a possibilidade de atenuação das

eventuais penas imputadas32.

Ao possuírem cosmovisões distintas dos ocidentais, com suas respectivas

concepções morais e sociais atreladas, os povos ameríndios trariam consigo uma

incompreensão destas percepções, até passarem por um processo educativo. Para

os defensores desta tese, a situação dos silvícolas se equipararia a dos menores de

idade: “O indígena está numa situação geral de imaturidade que deverá ser tida em

conta na apreciação da sua imputabilidade”33.

Fazendo uma análise sob o viés do Direito Comparado, é observado em alguns

códigos de países da América do Sul a solução de inimputabilidade para fatos

criminalmente ilícitos praticados pelos índios e a aplicação de medidas de segurança.

O Código Penal boliviano em seu art. 17 prescreve que são “inimputáveis (...)

nº5: O índio selvagem que não tiver tido nenhum contato com a civilização”. O artigo

seguinte determina a atenuação da pena com possível aplicação de medida de

segurança se a capacidade de querer ou agir do agente estiver diminuída podendo o

juiz proceder da mesma forma “quando o agente for indígena cuja capacidade derive

da sua inadaptação ao meio cultural boliviano e da sua falta de instrução34.

O Código Penal colombiano diz em seu artigo 96:

32 SILVA DIAS, Augusto. Problemas do Direito Penal numa sociedade multicultural: o chamado infanticídio ritual na Guiné-Bissau 33 SILVA CUNHA, in Jornal do Fôro, ano 11 (1947). Apud Augusto Silva Dias. 34 Apud SILVA DIAS, Augusto. Problemas do Direito Penal numa sociedade multicultural: o chamado infanticídio ritual na Guiné-Bissau.

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Aos inimputáveis que não padeçam de enfermidade mental, ser-lhes à

imposta medida de internamento em estabelecimento público ou particular,

aprovado oficialmente, que possa ministrar educação ou instrumento

industrial, artesanal ou agrícola; (...) quando se tratar de indígena inimputável

por imaturidade psicológica, a medida consistirá na reintegração no meio

ambiente natural.

No direito brasileiro, devido à permanência do Estatuto do Índio, encontramos

conceitos etnocêntricos criados no período colonial. A Lei nº 6.001/73 foi elaborada

durante a ditadura militar e sua fundamentação teórica, jurídica e política é um modelo

integracionista e tutelar. O artigo 1º do Estatuto do Índio estabelece a finalidade de

sua criação ao dizer que: “Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas

e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-

los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”. Ou seja, buscava-se a

diminuição da população indígena no país através da adoção de uma política

assimilacionista declarada e incorporada com status de lei.

Segundo Rodrigues, a condição de indígena é tratada como transitória, pois,

inspirado em teorias antropológicas evolucionistas, acreditava-se que o contato com

a cultura “civilizada” os transformariam em cidadãos civilizados que desfrutariam dos

mesmos direitos e deveres que os demais nacionais, não sendo mais necessária uma

legislação específica para eles. O artigo 4º os subdivide em três categorias:

Os índios são considerados:

I- Isolados- Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos de comunhão nacional;

II- Em vias de integração – Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento;

III- Integrados – Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições características da sua cultura.

Através dessa classificação, busca-se determinar as consequências jurídicas -

os direitos protetivos ou as regras do sistema punitivo - a serem adotadas. Somente

aos índios considerados isolados ou em vias de integração é assegurado o regime

tutelar35, no âmbito cível, e um tratamento penal diferenciado como o estabelecido no

art.56 do Estatuto:

No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.

35 Ver artigos 7º ao 11º do Estatuto do Índio.

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Parágrafo único: As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.

Apesar da previsão a respeito do regime a ser aplicado em caso de cumprimento

de pena, ainda não foi legislado nada a respeito da responsabilidade penal do

indígena. Nem o Código Penal atual, nem os anteriores tratam do tema. Encontra-se

uma breve referência na Consolidação das Leis Penais de 1932 que equiparava os

“índios nômades, arranchados ou aldeados e os que tenham menos de cinco anos de

estabelecimento em povoação indígena” aos menores, para fins de responsabilidade

penal36.

Carlos Frederico Marés de Souza Filho afirma que a “falta de tratamento

específico da responsabilidade penal do indígena” foi uma decisão proposta pela

Comissão que elaborou o Código Penal de 1940. Ao colocar no artigo 22 possuir

isenção de pena o “agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental

incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz

de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse

entendimento”, o legislador entendeu estar incluído na categoria dos que possuíam

“desenvolvimento mental incompleto ou retardado” os “surdos-mudos” e “os silvícolas

inadaptados”, sendo desnecessário fazer alusão à parte da responsabilidade penal

dos silvícolas.(2009, p. 109-111)37.

Sobre a discussão do tema, o penalista Nelson Hungria se manifestou dizendo

que “a Comissão Revisora entendeu que sob tal rubrica entrariam, por interpretação

extensiva, os silvícolas, evitando-se que uma expressa alusão a estes fizesse supor

falsamente, no estrangeiro, que ainda somos um país infestado de gentio”. Em 1948,

na obra “Comentários ao Código Penal” escrito juntamente com Heleno Cláudio

Fragoso, o autor defendia que o critério biopsicológico de inimputabilidade deveria ser

utilizado para afastar a responsabilidade penal do indígena, pois ele entendia que

“entre os deficientes mentais é de se incluir também o homo sylvester, inteiramente

36RODRIGUES, Priscilla Cardoso Rodrigues; Maria Priscila Soares Berro. A autodeterminação como mecanismo de realização dos direitos culturais: uma análise da responsabilidade penal do indígena à luz do Direito Brasileiro. In LEISTER, Margareth Anne; MORAES, Fausto Santos; SILVA, Juvêncio Borges (coord.). Direitos fundamentais e democracia I. Florianópolis: CONPEDI, 2014. P 36-65. 37 Ibidem.

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desprovido das aquisições éticas do civilizado homo medius que a lei declara

responsável” (1978, p. 336 -337)38.

Adotando esta linha de raciocínio, Aníbal Bruno faz uma abordagem que

hierarquiza as culturas em “civilizadas” e “selvagens” equiparando os ameríndios a

categoria de surdos-mudos, por entender que não há neles nada de patológico, mas

a condição em que estes estão submetidos os deixa isolados dos valores do “mundo

civilizado” o que provoca uma “uma incapacidade de entendimento e orientação

volitiva na qualidade e grau exigidos pela lei penal”39 .

Outros nomes da doutrina contemporânea também defendem esse critério.

Cezar Roberto Bitencourt afirma que os silvícolas:

em virtude de sua peculiar condição pessoal, podem sofrer os mesmos efeitos psicológicos que são produzidos pelo desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Nessa hipótese, a psicopatologia forense determinará, em cada caso concreto, se a alteração na percepção sensorial da realidade provocada pela surdo-mudez, e se a falta de adaptação social dos silvícolas conduz à incapacidade referida pela lei. [...] é necessário averiguar se os silvícolas passaram pelo processo de aculturação. (grifos do autor) (2012, p. 538)40.

Do mesmo modo, Fernando Capez defende a imaturidade mental do indígena:

Desenvolvimento mental incompleto: é o desenvolvimento que ainda não se

concluiu, devido à recente idade cronológica do agente ou à sua falta de

convivência em sociedade, ocasionando imaturidade mental e emocional. No

entanto, com a evolução da idade ou o incremento das relações sociais, a

tendência é a de ser atingida a plena potencialidade. É o caso dos menores

de 18 anos (CP, art. 27) e dos indígenas inadaptados à sociedade, os quais

têm condições de chegar ao pleno desenvolvimento com o acúmulo das

experiências hauridas no cotidiano41. (grifos do autor) (2011, p. 334)

É notável nas colocações desses autores a presença de preconceito e

etnocentrismo da doutrina brasileira em relação aos povos indígenas ecoando o que

ocorre na percepção de grande parte da sociedade.

Observando o posicionamento da jurisprudência, suas decisões ainda continuam

permeadas de noções que retratam os indígenas como “aculturados”, “integrados” ou

38 Ibidem. 39Direito Penal. Parte Geral, tomo II, 3ªed., ed. Forense, Rio de Janeiro, 1967, p137 e ss. 40 Apud: 40RODRIGUES, Priscilla Cardoso Rodrigues; Maria Priscila Soares Berro. A autodeterminação como mecanismo de realização dos direitos culturais: uma análise da responsabilidade penal do indígena à luz do Direito Brasileiro. In LEISTER, Margareth Anne; MORAES, Fausto Santos; SILVA, Juvêncio Borges (coord.). Direitos fundamentais e democracia I. Florianópolis: CONPEDI, 2014. P 36-65. 41 Ibidem.

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“civilizados”, mantendo posicionamento que trata o silvícola como inimputável devido

ao seu “desenvolvimento mental incompleto ou retardado”.

É muito comum em decisões cujo réu é um indígena, que o Superior Tribunal de

Justiça alegue estarem presentes elementos externos no comportamento do agente

que demonstrem “integração” à cultura nacional e que, consequentemente, afastem a

sua inimputabilidade. Tal qual aparece na decisão proferida pela 5ª Turma em sede

de Habeas Corpus que afirma: “havendo prova inequívoca de ser o índio

completamente integrado na civilização, sendo eleitor, habilitado para dirigir veículo,

operador em instituição financeira, pode o juiz prescindir do laudo antropológico para

aferir a imputabilidade penal” (STJ. HC nº 9.403/PA. 5ª T. Rel. Min. José Arnaldo da

Fonseca. j. 16.09.1999. DJ 18.10.1999).

Em sede de Agravo Regimental em Recurso Especial, uma decisão mais recente

do STJ afasta a atenuante do art.56, parágrafo único da Lei 6001/73 afirmando a

impossibilidade de sua aplicação porque este “somente se destina à proteção do

silvícola não integrado a comunhão nacional, ou seja, esse dispositivo não pode ser

aplicado em favor do indígena já adaptado à sociedade brasileira” (STJ. AgRg no

Recurso Especial nº1.361948-PE - 2013/014632-7).

O posicionamento integracionista da legislação indígena também ecoa em

decisões de Tribunais Regionais Federais quando afirmam que “os indígenas são

considerados integrados quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos

no pleno exercício dos direitos civis, ainda que preservem usos, costumes e tradições

características da sua cultura” (TRF4. Ap. Crim. nº 2006.71.15.000645-2/RS. 8ª T.

Rel. Des. Luiz Fernando Wowk Penteado. j. 08.09.2010. DJF 01.10.2010).

Também encontramos exemplos como este em decisões dos Tribunais de

Justiça, como aconteceu no Paraná em que a fundamentação diz ser o “índio

integrado à comunhão nacional, haja vista que conviveu com família branca, estudou

até o ensino médio, fala e escreve a língua portuguesa, além de possuir cédula de

identidade e título de eleitor” (TJPR. Ap. Crim. nº 630.700-6. 4ª Câm. Crim. Rel. Des.

Ronald J. Moro. Julgado em 12.07.2010). Em decisão proferida no Maranhão, foi dito

que “(...) no que se refere ao argumento trazido no art.56, parágrafo único, da Lei nº

6001/73, respectivamente a atenuante inominada e o regime de semiliberdade, estes

não cabem prosperar, pois somente devem ser aplicados para a efetiva proteção do

silvícola, entendido como o índio que não se integrou à comunhão nacional –

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(Apelação Criminal. Tráfico ilícito de entorpecentes. Artigo 12, caput, da Lei nº

6.368/76. Desclassificação para o art.16 da citada lei. Impossibilidade. Aplicação da

atenuante inominada e regime de semiliberdade (Artigo 56, caput e parágrafo único

da Lei nº 6.001 /73).

Tal posicionamento colide com a atual interpretação advinda com a Constituição

Federal de 1988. Esta abandonou o tratamento da cultura indígena como atrasada,

inferior a ser superada através de políticas de assimilação, reconhecendo que o

contato desses povos com a sociedade brasileira não significaria a perda automática

das características distintivas desses grupos que constroem sua identidade.

Como ressalta Priscilla Rodrigues:

a compreensão dos direitos dos povos indígenas por parte do operador do Direito num Estado multicultural exige-lhe a compreensão da identidade indígena. Ser indígena não é uma condição transitória, como propunham os integracionistas. Um índio não deixa de ser índio pelo simples fato de usar roupa, falar a língua portuguesa ou saber dirigir veículo. Ser índio significa pertencimento a uma cultura com características diversas da comunhão nacional; significa se reconhecer como indígena e ser da mesma maneira reconhecido por sua comunidade. (...).

Apesar de não ter sido expressamente revogado e ainda ser a única legislação especial a dispor sobre os direitos dos povos indígenas, o Estatuto do Índio deve ser interpretado de forma sistemática e constitucional, por ter sido elaborado sob a égide de uma política indigenista assimilacionista, a fim de que sejam recepcionados apenas os dispositivos compatíveis com os novos valores propostos pela Constituição de 1988 e pela Convenção nº 169 da OIT.

Como já demonstrado acima, a não observância dos novos princípios trazidos

pela Constituição Federal de 1988 e a análise da inimputabilidade pelos parâmetros

tradicionais do Estatuto do Índio são atitudes inadequadas para aferir a

responsabilidade penal do indígena. Com isso, a apreciação da culpabilidade também

fica comprometida, pois esta pressupõe a existência de um fato ilícito que, na hipótese

dos interditos de vida, não está demonstrada.

Zaffaroni analisando tal posicionamento doutrinário afirma que

De maneira alguma se pode sustentar que o silvícola, ou aquele que

comparte de regras de qualquer outro grupo cultural diferenciado, seja um

inimputável, ou uma pessoa com imputabilidade diminuída, como se sustenta

com frequência. Trata-se de pessoas que podem ser, ou não, inimputáveis,

mas pelas mesmas razões que nós podemos ser, e não por pertencerem a

um grupo culturalmente diferenciado. Nada tem de diferente do discurso de

justificação, que produziu frequentíssimas destruições de grupos culturais

originários e de perseguição religiosa, falando em delírios coletivos frente a

atos e cerimônias que jamais compreenderam, e de relações culturais

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diferenciadas como simples e primitivas, quando a antropologia comparada

mostra, hoje, sua enorme complexidade42.

2. Exclusão da antijuridicidade pelo estado de necessidade putativo

A delimitação do estado de necessidade e a conduta de salvaguarda necessária

é feita através de ponderação de bens. De acordo com Juarez Cirino dos Santos, a

natureza jurídica do estado de necessidade é definida por duas teorias: a) a teoria

diferenciadora que disciplina o estado de necessidade segundo um sistema duplo,

como exculpação e como justificação; b) a teoria unitária que disciplina o estado de

necessidade segundo um sistema único, ou como justificação ou, como exculpação.

O Código Penal brasileiro consagra o estado de necessidade somente como

excludente de antijuridicidade, ou seja, sem distinções entre a) estado de necessidade

justificante, nos casos de conflito de bens jurídicos de distinto valor; e b) estado de

necessidade exculpante, nos casos de conflito de bens jurídicos de igual valor. Ou

seja, ao adotar o sistema unitário, independe a superioridade ou equivalência do bem

jurídico protegido em relação ao bem jurídico sacrificado, o estado de necessidade é

definido exclusivamente como justificação. Isso é evidenciado no art. 23, inciso I do

Código Penal o qual afirma ser o estado de necessidade causa de exclusão de

ilicitude.

O artigo 24 do Código Penal define:

Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

Cezar Roberto Bitencourt elenca sete requisitos que devem estar presentes para

que se configure o estado de necessidade. São eles: a existência de um perigo atual

e inevitável; que o direito (bem jurídico) seja próprio ou alheio, podendo ser estado de

necessidade próprio ou de terceiros; a situação de perigo atual ou iminente não pode

ter sido provocada intencionalmente por aquele que empreende a ação de

salvaguarda; que haja inevitabilidade do perigo por outro meio, ou seja, que seja feita

a lesão necessária para salvaguardar o bem ameaçado; que não era possível exigir-

se o sacrifício dos bem naquelas circunstâncias, sendo utilizado o princípio da

proporcionalidade e razoabilidade na ponderação dos bens; haver o elemento

42 Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral -Volume I. 2012, p.555.

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subjetivo que é a finalidade de salvar o bem do perigo; e, por último, não haver dever

legal de enfrentar o perigo como ocorre em algumas profissões43.

De acordo com Portella, todos esses requisitos estão presentes no

comportamento do agente pertencentes às comunidades que praticam homicídio de

neonatos. Segundo a autora,

A “pessoa não humana”, uma vez que representa fonte de perigo para a

organização social indígena, precisa ser sacrificada em prol dos interesses

do grupo social. Para que a comunidade indígena possa ser preservada é

preciso, portanto, abater seu inimigo que ali se encontra para competir

diretamente com sua espécie. O estado de necessidade putativo é manifesto

na medida em que “pessoas não humanas” põem em risco toda a ordem

social, política e cultural da comunidade indígena, sendo necessário

exterminá-las para salvar-se de perigo atual que não provocou por sua

vontade44.

3. Exclusão da antijuridicidade por exercício regular do Direito

De acordo com Paul Amry, em alguns países da América Latina o pluralismo

jurídico é evidenciado com o reconhecimento da jurisdição construída pelos próprios

indígenas, como ocorre com a Constituição Colombiana, existindo normas legais

similares em países como na Bolívia, Peru, México, Equador, Venezuela e Paraguai.

Como consequência, o direito nacional desses países não pode interferir na

jurisdição indígena, possibilitando grande autonomia, pois há o entendimento de que

“as condutas que ocorrem dentro desse espaço são, em princípio, permitidas e não

podem, portanto, ser consideradas contrárias ao ordenamento jurídico”45.

Nesse contexto, quando ocorre um fato no interior dessas comunidades, mesmo

sendo considerado ilícito pelo ordenamento nacional, diante da jurisdição indígena,

essa conduta pode ser considerada um exercício regular do direito.

Segundo Portella,

43 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal- Parte Geral- Volume 1.23ª edição revista, ampliada e atualizada – São Paulo: Saraiva, 2017. 44 PORTELLA, Alessandra Matos. Soluções propostas pelo Direito Penal para o problema do homicídio infantil indígena na região Amazônica. Tese de Doutorado defendida na Universidade Federal da Bahia. 2016. 45 AMRY, Paul, 2006, p.96. Apud: PORTELLA, Alessandra Matos. Soluções propostas pelo Direito Penal para o problema do homicídio infantil indígena na região Amazônica. Tese de Doutorado defendida na Universidade Federal da Bahia. 2016.

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poder-se-ia cogitar o exercício regular de um direito exercido pelo índio que mata uma “pessoa não humana”, haja vista sua ação ser impelida por motivos de crenças e tradições, sendo nesta perspectiva um direito subjetivo do índio que assim age no interior de sua organização social. É uma faculdade assegurada pelo seu sistema de regras46.

No ordenamento brasileiro, o art. 23, inciso III do Código Penal inclui o exercício

regular do direito como uma das hipóteses de excludente de ilicitude ao dizer:

Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato:

I- Em estado de necessidade; II- Em legítima defesa; III- Em estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito.

O homicídio infantil mesmo tipificado pelo Direito Penal como crime, não é

considerado reprovável para alguns povos indígenas, sendo, ao contrário, um

comportamento socialmente exigido, como ocorre nas comunidades Yanomami ou

Suruwahá.

O exercício regular do direito pode ser definido como “o desempenho de uma

atividade ou a prática de uma conduta autorizada por lei, que torna lícito um fato

típico.” (NUCCI,2012, p.261)47.

Observa-se que no próprio conceito é necessário que a conduta seja autorizada

por lei. Diferente desses países latino-americanos, o Brasil não adota o pluralismo

jurídico, mas segue uma linha monista em sua Constituição. Isso torna a hipótese de

excludente de ilicitude por exercício regular do direito inaplicável.

4. O erro de compreensão culturalmente condicionado

Como já demonstrado anteriormente, a responsabilidade penal do indígena não

pode ser avaliada pelo critério da inimputabilidade. A doutrina latino-americana criou

a proposta de exclusão da culpabilidade devido ao erro de proibição, podendo ter em

consequência dela a isenção ou diminuição da aplicação da pena aos indígenas que

praticam o homicídio infantil de acordo com sua cultura.

Ao apreciar o conceito de erro, Zaffaroni verifica que este ao recair sobre o

reconhecimento da antijuridicidade, torna-se um erro de proibição, subdividindo-se em

erro direto (quando recai sobre a norma proibitiva) ou indireto (quando recai sobre a

46 Ibidem. P.131. 47 Ibidem, p. 131.

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permissão de conduta). Entretanto, pode haver hipóteses em que, mesmo o sujeito

conhecendo a falta de permissão ou conhecendo uma determinada proibição, não

seja possível exigir-lhe que entenda a regra conhecida.

Um bom exemplo a ser citado é a hipótese de um indígena pertencente a uma

comunidade que possui regras próprias de sepultamento e inumações. Ele pode

incorrer numa tipicidade contravencional se colocado diante das práticas de nossa

sociedade. Apesar dos problemas e do estranhamento que nos possa causar, é difícil

exigir-lhe que abandone suas tradições para acolher as nossas regras, reprovando

lhe por assim não agir.

O autor define como erro de compreensão aquele que afeta a compreensão da

antijuridicidade sem atingir o conhecimento dela. O sujeito toma conhecimento da

norma, mas não a interioriza.

Como a vigência do direito não pode ficar ao arbítrio da consciência individual, o

sujeito que age com consciência dissidente, ou seja, que “assume sua conduta como

resultado de esquema geral de valores distintos do nosso, tem ao menos, em algo,

reduzida sua capacidade de entender a ilicitude”. Essa consciência sempre fornecerá

um menor grau de reprovação, mas, por si só, não eliminaria a culpabilidade, nem

reduziria o juízo de periculosidade para determinação da pena.

Calderón critica severamente Zaffaroni por incluir a consciência dissidente na

classificação de erro de proibição, em suas palavras:

la disidencia se presenta cuando no se está de acuerdo con una situación

específica, sin embargo el desacuerdo no es por error, sino precisamente

porque se conocen el contenido y los alcances de la norma penal pero no se

comparten, es decir, hay una rebelión contra la misma, con la característica

de que no está fundada en un error. Desde el momento en que sí se conocen

los alcances de una prohibición, no se comparten y además se obra distinto

porque chocan con la creencia de una cultura, religión u otro, entonces el

error en el conocimiento ya no existiría, sino que lo que se constituye es una

franca y conciente oposición al planteamiento normativo. (2011, p. 209)48

Ou seja, para o autor, quando há consciência do conteúdo e abrangência da

incidência da norma, não se está diante de um erro, sendo, portanto, a consciência

dissidente um descumprimento e desrespeito a um mandamento legal.

48 Apud RODRIGUES, Priscilla Cardoso Rodrigues; Maria Priscila Soares Berro. A autodeterminação como mecanismo de realização dos direitos culturais: uma análise da responsabilidade penal do indígena à luz do Direito Brasileiro. In LEISTER, Margareth Anne; MORAES, Fausto Santos; SILVA, Juvêncio Borges (coord). Direitos fundamentais e democracia I. Florianópolis: CONPEDI, 2014. P 36-65.

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Entretanto, Zaffaroni insiste que nos casos de consciência dissidente nos quais

apareçam erro invencível, não haverá culpabilidade. Isso ocorre com os erros de

compreensão culturalmente condicionados, isto é, quando o indivíduo tiver “sido

educado numa cultura diferente da nossa, e desde criança tenha internalizado as

regras de conduta desta cultura”.

Apesar da consciência dissidente não ser causa de inculpabilidade, em regra

geral, o erro de compreensão culturalmente condicionado é entendido como um erro

de proibição invencível e, consequentemente, eliminará a culpabilidade da conduta.

São graus de exigibilidade de compreensão que se traduzem em graus de

reprovabilidade a serem avaliados no caso concreto.

Em outras palavras, o erro de compreensão culturalmente condicionado resulta

na exclusão da culpabilidade. Se a compreensão da conduta é condicionada à cultura,

o indígena não pode ser considerado culpado pelo delito.

O condicionamento cultural pode criar outras possibilidades de erro que não seja

o erro de proibição. O erro de proibição culturalmente condicionado pode constituir

uma justificação putativa e não um erro de compreensão49. A justificação putativa é

uma causa de ausência de culpabilidade motivada no erro, que impede a

compreensão da antijuridicidade da conduta.

Devido a uma concepção errônea da causalidade, pode-se acreditar numa

relação de causa e efeito mágica em que sortilégios teriam poder de levar alguém a

morte, isto em algumas comunidades africanas dá ensejo a mortes cruéis para

esconjurar “bruxos”. Temos aqui um caso de defesa putativa baseado num erro sobre

a causalidade. Os erros sobre a causalidade podem gerar diversas hipóteses de erro

de tipo.

O autor questiona se em todos esses casos de erros invencíveis, a ausência de

tipicidade ou de culpabilidade levariam a liberação da responsabilidade penal. No caso

dos indígenas, mesmo reconhecendo que existam delitos perfeitamente

compreensíveis por eles, existem outros cuja a ilicitude eles não podem entender. A

solução apresentada seria o respeito a tais culturas em seu próprio meio, e a adoção

49 “Assim, os membros da cultura Ahuca, no oriente equatoriano, têm convicção de que o homem branco sempre os matará quando os ver, de modo que devem adiantar-se a esta ação, o que é encarado como um ato de defesa”. Ibdem. P. 554.

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de uma postura não intervencionista evitando pretensões com viés etnocentristas

camufladas, por vezes, em discursos humanitários.

Apesar de disseminada há algum tempo, a tese de erro sobre a ilicitude do fato

aplicada a questão indígena ainda é pouco utilizada pelos julgadores dos Tribunais

brasileiros. Existe uma decisão do TRF da 5ª Região em que o argumento de erro de

compreensão culturalmente condicionado foi utilizado como fundamento, ao dizer que:

A consciência da ilicitude é um elemento da culpabilidade que, se inexistente,

isenta de pena nos termos do art.21 do CP. A condição indígena do acusado

e, especialmente, por ter agido com a orientação e amparo de servidores da

FUNAI, órgão que deveria tutelar seus interesses, deve ser reconhecido o

erro evitável quanto à ilicitude do fato, para, nos termos do art. 21, segunda

parte e parágrafo único, do CP, reduzir a pena em 1/6. (TRF5. Ap. Crim.

(ACR) nº 8187/PE (2009.83.00.017110-7). 3ª T. Rel. Des. Marcelo Navarro.

j. 04.04.2013.)

O mais comum é que o conceito de erro de compreensão culturalmente

condicionado do indígena não seja aceito pelos Tribunais, pois estes decidem

respaldados em argumentos do Estatuto do Índio e avaliam o indígena como

“integrado”, tendo condições para entender a antijuridicidade do fato:

O apelante é índio totalmente integrado na sociedade civilizada, o que dispensa maiores esclarecimentos para afastar a tese de ocorrência de erro de proibição, sustentada pela defesa.” (TRF3. Ap. Crim. nº 2002.60.00.001129-7/MS. 5ª T. Crim. Relª. Desª. Ramza Tartuce. j. 13.02.2012. DE 13.03.2012); “Não prospera a tese defensiva quanto ao erro de proibição quando o indígena apresenta razoável grau de instrução, conhece o vernáculo, já manteve relação de emprego, possuindo discernimento suficiente sobre os atos que praticou”. (TJMS. Ap. Crim. nº 2009.001001-5/0000-00. 1ª T. Crim. Rel. Des. João Carlos Brandes Garcia. j. 08.4.2009);

Essas situações de desatualização tecno-humanista ou de opção político-

dogmática demonstram uma relação não muito harmoniosa com as correntes do

Direito Penal que buscam a mudança de paradigma na avaliação das questões

indígenas. O preconceito étnico ainda fundamenta preponderantemente as decisões

dos Tribunais brasileiros.

5. Sugestões do direito comparado: O erro sobre o objeto

O Código Penal da Guiné-Bissau tipifica como infanticídio, além da conduta

descrita no Código Penal Brasileiro, os interditos de vida praticados pela mãe, pai ou

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os avós durante o primeiro mês de vida do filho ou do neto “por este ter nascido com

manifesta deficiência física ou doença, ou compreensivelmente influenciados pelos

usos e costumes que vigorarem no grupo étnico a que pertençam”.

Em estudos sobre o infanticídio ritual na Guiné-Bissau, Silva Dias, no âmbito do

Centro de Estudos da Faculdade de Direito de Bissau, realizou uma investigação

sobre a prática de infanticídio ritual nas etnias Mancanha, Manjaco e Pepel. Utilizou a

metodologia de recolhimento e análise de relatos feitos por “garandis”, anciões cujo

comportamento é considerado exemplar pela sua comunidade e que ao acumularem

vasta experiência, são símbolos culturais daquela forma de vida.

Após discussões sobre os dados recolhidos, partindo dos aspectos comuns

desses depoimentos, o autor chegou a algumas conclusões que são passíveis de

inspiração e aproveitamento nos estudos das comunidades tradicionais indígenas da

América do Sul.

As três etnias estudadas pertenciam à mesma matriz cultural, possuíam o

mesmo dialeto e compartilhavam uma religião animista que marca a cosmovisão

coletiva, influenciando os rituais e as práticas tradicionais de seus membros.

Da observação dos relatos pode ser constatado que, nessas comunidades

étnicas, quando ocorre o nascimento de algum indivíduo com deformação física

marcante “a exemplo de cabeça desproporcional, amolecimento ósseo, olhar

oscilante, etc.”, ou com o comportamento estranho, “emitindo sons estranhos,

desaparecendo durante à noite, ou apenas com um mês de vida sendo encontrado

pela mãe debaixo da cama procurando ovos”, os familiares da mãe podem duvidar

que se trate verdadeiramente de uma pessoa50.

De maneira similar ao que ocorre entre algumas comunidades indígenas no

Brasil, existe o compartilhamento entre essas etnias da crença de que não basta

apenas descender de um ser humano para adquirir o estatuto de pessoa. Um ser com

características humanas pode se tratar de um mau espírito, denominado “ucó” que se

apoderou da mãe e que, caso não seja afastado, poderá causar-lhe a morte ou

continuar a afetá-la em futuras gerações51.

50 SILVA DIAS, Augusto. Problemas do Direito Penal numa sociedade multicultural: o chamado infanticídio ritual na Guiné-Bissau. 51 Existem estudos de outras etnias do continente africano as quais acreditam que a permanência dos maus espíritos representa um perigo para toda comunidade e para as mulheres do grupo, criando nelas um estado de possessão. Ver António Carrera. Infanticídio Ritual em África.

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O “ucó” teria poder de prejudicar a mãe e não a comunidade, por isso, cabe a

família da linhagem materna se encarregar de resolver o problema, muitas vezes

contra a vontade da mãe, que pode ser pressionada a participar ou não opor

resistência ao ritual. A proeminência da linhagem materna ocorre, devido a presença

de duplo conceito de família entre essas etnias estudadas.

O primeiro, é um conceito social segundo o qual a identificação das pessoas é

feita pela família do pai, sendo importante para determinação da linha sucessória

paterna. O segundo, é o conceito de “geraçon” estabelecido na linhagem materna e

tem papel fundamental em todas “tabancas” para definir os laços de consanguinidade

e para determinar questões relativas à vida e à morte.

Para confirmação ou afastamento da suspeita, é consultado o espírito ancião da

família, representado por uma estátua que fica no interior da residência. Se dele não

for obtida a resposta, procuram um curandeiro dotado de poderes mágicos para

apresentá-la. Se após todas essas diligências não se chegar a nenhuma conclusão,

ou se a resposta for afirmativa que se trata de um espírito mau, as mulheres

pertencentes à linhagem materna fazem o último teste que também serve para afastar

definitivamente o “ucó”. Conforme o autor:

As mulheres dirigem-se para um rio ou a beira-mar e aí, à beira de água, quando a maré está em refluxo, colocam o ser de estatuto duvidoso e um recipiente com ovos e farinha cozinhada, devendo recuar depois para um lugar escondido onde ficam a observar o desfecho dos acontecimentos. Esse desfecho pode ser de um dois: ou o ser come os ovos e a farinha e avança para a água desaparecendo nela e então trata-se de um “ucó”. (...) ou o ser permanece inerte no local e os familiares escondidos devem então recolhê-lo. Trata-se de uma pessoa que volta para a sua comunidade e é nela aceito como membro de pleno direito.

Esse procedimento não pode ser interpretado como uma eugenia social, pois

uma vez convencidos de que se trata de uma pessoa, os membros da família acolhem

a criança e dispensam-lhe os cuidados devidos ao que a deformação e a deficiência

requerem.

Para o autor, o tipo subjetivo do homicídio não se encontra realizado, pois as

mulheres da família da mãe que buscam afastar o mau espírito, não querem causar

morte de uma pessoa, nem visam hostilizar outrem, mas “somente afastar um ser que

de humano só guarda a aparência”. A partir do momento em que essas pessoas estão

convencidas de que se trata de um ser humano, e não de um mau espírito, acolhem

a criança.

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Para os que praticam o ritual de afastamento do “ucó” há uma representação de

um ente sobrenatural e não de um ser humano.

Do ponto de vista da dogmática jurídico-penal, trata-se aqui de espécie de

erro sobre o objeto, ou recorrendo à técnica dogmática de inversão, ao

oposto de uma figura destituída de qualquer interesse prático: de uma

tentativa irreal ou supersticiosa por irrealidade do objeto, que seria o caso de

alguém que quer matar uma pessoa, e, por deficiente identificação, ‘mata’ um

espírito, fantasma ou demónio.

Segundo Silva Dias, essa hipótese de erro sobre o objeto possui características

específicas, pois não se baseia em alguma deficiência na identificação ou em algum

problema sensorial do agente. Nos casos em análise, o erro ocorre por haver um

problema de apreciação, ao atribuir-se a alguém o significado de “ucó”.

Citando Arthur Kaufmann, o autor ressalta que

do carácter ambivalente de todos os elementos típicos, “pessoa” seja aqui um elemento normativo do tipo de homicídio, pois é o aspecto valorativo do elemento típico em questão que no caso concreto sobressai. Para formação do dolo é decisivo, além do conhecimento do fáctico, o conhecimento das significações sociais dos elementos do fato típico praticado. Este não é um fato bruto, que possa conhecer-se numa objectividade descontextualizada, mas um fenómeno social portador de um determinado sentido, sentido esse que vive nas representações próprias da forma de vida a que o agente pertence e com base nas quais ele conhece e age na vida cotidiana. (...) o aspecto valorativo do elemento típico “pessoa”, torna-se necessário, para a determinação da existência de dolo, efectuar a chamada valoração paralela na esfera do leigo.

Através da sugestão de análise do elemento típico “pessoa”, no estudo do

infanticídio ritual da Guiné Bissau, foi desenvolvido este estudo sobre a atipicidade da

conduta dos interditos de vida entre as comunidades indígenas sul-americanas, como

será demonstrado no próximo item.

6. A proposta defendida: O erro de tipo

O erro de compreensão culturalmente condicionado pode nos trazer à luz

diversas soluções para questão da não responsabilização do indivíduo submetido à

diversa concepção cultural, do qual não se pode exigir uma interiorização da proibição,

por ela ser estranha à sua realidade. A utilização de tal conceito prescinde a

comprovação da censurabilidade do erro e permite maior grau de tolerância na

resolução de conflitos entre sistemas étnico-culturais diferentes.

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Por outro lado, é possível encontrar soluções para não responsabilização penal

desses agentes antes de ser apurado o grau de reprovabilidade da conduta. Como na

hipótese apresentada por Silva Dias, é possível na primeira etapa de análise da

formação do tipo penal demonstrar que as ações de interditos de vida não configuram

homicídio infantil com a análise dos componentes objetivos formadores deste com os

possíveis erros que o agente pode incorrer.

Quando o sujeito se depara com um gêmeo e acredita se tratar de uma criança

espírito, mais do que afirmar a crença de uma humanidade incompleta e da falta de

pessoalidade da vítima, é possível perceber que a ausência do entendimento de que

se trata de uma pessoa na hipótese de ocorrência de um homicídio, elimina o dolo

devido ao falso conhecimento.

Do mesmo modo, a mulher que pratica homicídio contra seu filho portador de

alguma deformidade física, acreditando ser ele fruto de uma fecundação com espírito

e estando consequentemente com potencial de mutabilidade iminente, não está em

sua concepção matando uma pessoa, mas tentando impedir que a manutenção

daquela vida não se torne um risco para sua família e para sua vida.

Não se está retratando aqui hipóteses utilitaristas, em que tais práticas são

interpretadas como controle de natalidade dentro da comunidade por se atingir o limite

máximo que esta consegue comportar de crianças ou de membros. Nem mesmo será

cabível interpretar como ato de eugenia, pois em muitos casos os quais os pais veem

potencial de humanidade na criança, ela é acolhida ao grupo.

Hollanda descreve um relato de Sydney Possuelo, em que sertanista dedicado

aos índios isolados diz:

Certa vez quando era diretor do Parque Indígena do Xingu, vi uma índia grávida se aproximar do posto da FUNAI. Ela estava em trabalho de parto e precisava de ajuda. Mas o filho não tinha pai e, portanto, seria enterrado vivo, como rezava a tradição. (HOLLANDA. 2009, p. 42)

A autora conta que Possuelo pediu para cuidar da criança desde que a mãe

amamentasse o bebê. Em troca ele lhe daria redes e uma espingarda. A mãe

amamentou a criança por alguns meses e depois foi embora. Alguns dias depois

retornou e pediu a criança de volta, levando-a para sua comunidade.

Relatos etnográficos sugerem que quando o interdito de vida não se efetua a criança começa a ser ressignificada e inicia-se a sua inserção no plano doméstico. Uma socialização que encontra como determinante principal a amamentação e, portanto, o início de sua consusbstancialização. Ela começou a tornar-se humana e, por isso, suas mães reivindicam seus

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parentes. As portas do social se abrem e a partir daí torna-se difícil uma extrusão. (HOLLANDA. 2009, p.41).

Juarez Cirino dos Santos afirma que “o conhecimento das circunstâncias de fato

formadoras do tipo objetivo implica representação da possibilidade de realização

concreta do tipo legal; o erro sobre as circunstâncias de fato do tipo objetivo”, exclui a

representação dessa possibilidade e, por isso, configura o erro de tipo.

Na maioria dos casos de interditos praticados por comunidades isoladas ou

semi-isoladas, a conduta final da mãe não visa retirar a vida de um bebê recém-

nascido, mas impedir que um ser híbrido sem potencial de pessoalidade e sequer de

humanidade se torne uma vida, pois esse ser não se encaixa em nenhuma forma de

humanidade, nem mesmo no conceito amplo trazido pela perspectividade relativa.

Nos casos de comunidades que possuem maior contato com a nossa cultura o

conceito de erro de compreensão culturalmente condicionado é mais adequado para

justificar tais condutas. Apesar de compreender que se trata de uma vida humana com

as mesmas dimensões que são dadas por nossa cultura, é de se concordar com

Zaffaroni não ser possível em muitos casos, ou ao menos compreensível, a exigência

de interiorização de nossa cultura. Um elemento que reitera tal conceito é a

manutenção dessa prática ancestral em algumas comunidades, apesar do maior

contato com valores externos.

De acordo com Santos, o erro de tipo ocorre devido a um defeito na formação

intelectual do dolo, que recai sobre elementos objetivos do tipo legal podendo ser

presentes ou futuros. Existe a possibilidade de o erro de tipo recair sobre a ação, sobre

o resultado, sobre certas características do autor e as vezes, sobre alguns fenômenos

subjetivos da vítima.

Na prática de homicídio de neonatos indígenas, não é coerente afirmar que o

erro de tipo recaia sobre a ação, pelo simples fato de que da perspectiva do agente a

vida ainda não é plena, por não ter ainda ocorrido o nascimento cultural da vítima.

Essa argumentação não se sustenta porque os meios necessários para impedir o

acesso à vida são pleonasticamente os mesmos utilizados para retirá-la, dentro da

própria cosmovisão ameríndia.

Pode ser ousado arriscar a possibilidade de engano sobre o resultado, pois,

como já demonstrado, para esses agentes há uma grande diferença entre retirar uma

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vida (resultando em morte) e impedir que um indivíduo adentre as relações sociais do

grupo ao qual pertença, até alcançar a humanidade plena.

Esse estudo sobre o erro de tipo reside sim nas características do autor que,

inscrito em uma cosmovisão distinta, não representa a realidade tal qual descrita no

tipo legal, não compreendendo a realização do núcleo “matar” (não existindo para ele

vida), nem representando o complemento “alguém” que se insere no âmbito do

outrem, (pois os entes sequer estariam inseridos no conceito de “outro”).

Se há um defeito na formação do dolo e, por extensão, do tipo subjetivo, pode-

se dizer que “desaparece a finalidade típica, ou seja, a vontade de realizar o tipo

objetivo”. Como retratado anteriormente, se o dolo é o querer realizar o tipo objetivo,

“quando não se sabe o que se está realizando um tipo objetivo, este querer não pode

existir e, portanto, não há dolo: este é o erro de tipo52”.

A primeira parte do art. 20 do Código Penal, diz que o erro sobre o elemento

constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime

culposo se previsto em lei.

Não havendo dolo, estar-se diante de uma conduta atípica. Esses casos

relatados nos interditos de vida são casos em que há tipicidade objetiva, mas não

existe a subjetiva, porque não existe o dolo. Uma formação incompleta ou ausente

exclui o dolo, mas é preciso distinguir, pois se o erro é inevitável exclui o dolo e a

culpa, se for evitável exclui apenas o dolo, porém admite a punição por culpa.

No caso dos interditos a neonatos, se a prática resultar de um agente totalmente

inserido em outra cosmovisão, não será possível exigir-lhe um conhecimento diferente

daquele que o impulsiona a chegar a tal conduta. O que não significa a defesa de uma

cultura hermeticamente fechada, mas é provável que o erro aqui é do tipo essencial

inevitável não sendo possível a responsabilização penal nem por dolo e nem

imprudência.

Dos parâmetros que possibilitam a análise da situação por erro de tipo ou erro

de proibição é importante distinguir que enquanto o erro de tipo afeta o dolo, o erro de

proibição (ao qual o erro de compreensão é uma especificação para agentes de

culturas distintas) afetará a compreensão da antijuridicidade. No erro de tipo,

52 Zaffaroni, Eugenio Raúl e José Henrique Pierangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral.8ªed. Editora Revista dos Tribunais, p. 442.

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enquanto o agente “não sabe o que faz”, no de proibição de proibição o sujeito sabe

o que faz, mas “crê que não é contrário à ordem jurídica”. Enquanto o erro de tipo

elimina a tipicidade dolosa, o de proibição exclui a culpabilidade53.

É importante observar no caso concreto se é hipótese de aplicação do conceito

de erro de compreensão culturalmente condicionado ou erro de tipo. Enquanto o

primeiro conceito parte da referência do silvícola em relação a nossa cultura e como

ele se comporta diante dela, o erro de tipo observa como o indígena age diante de

sua própria cultura para depois chegar a nossa.

De acordo com Paul Amry, “a teoria do delito demanda uma análise primeiro da

interpretação do tipo, pois se não existe conduta típica, não é necessário averiguar

sua justificação”. Ou seja, “se o índio incorre em erro de tipo culturalmente

condicionado é irrelevante sondar se ele ao matar uma ‘pessoa não humana’ incorre

em exercício regular do direito, se encontra em estado de necessidade putativo ou

mesmo se se encontra em erro de proibição inevitável ou culturalmente

condicionado”54.

Apesar de concordar com a afirmativa, é de se observar que a análise a partir da

escolha de uma excludente de tipicidade ou de culpabilidade será dado pelo caso

concreto. É necessário tanto para os argumentos trazidos pela defesa, como para a

fundamentação da decisão judicial que esses estejam respaldados a partir do estudo

dos relatórios antropológicos, sendo o argumento do erro de tipo motivado pela cultura

(culturalmente condicionado) cabível na maioria das hipóteses, mas não em todas.

53 Ibidem, p. 443. 54PORTELLA, Alessandra Matos. Soluções propostas pelo Direito Penal para o problema do homicídio infantil indígena na região Amazônica. Tese de Doutorado defendida na Universidade Federal da Bahia. 2016.

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Capítulo IV. A ANÁLISE LEGISLATIVA

1. A convenção 169 da OIT

Assinada em 1989, a Convenção 169 da OIT trata dos Povos Indígenas e

“Tribais”, sendo promulgada em nosso ordenamento no ano de 2004, através do

Decreto 5.051. Apesar de aparentemente ser mais um diploma normativo do Direito

Internacional do Trabalho, versa sobre direitos de comunidades tradicionais em geral,

contribuindo para proteção da dignidade humana sendo um instrumento jurídico

internacional que rechaça a concepção paternalista e etnocêntrica da integração das

populações ameríndias. Dentre as previsões trazidas, destaca-se, para nossa

abordagem, os seguintes artigos:

Artigo 2º

1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver,

com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e

sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o

respeito pela sua integridade.

2. Essa ação deverá incluir medidas:

a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de

igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos

demais membros da população;

b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais,

econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade

social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições;

c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as

diferenças sócio - econômicas que possam existir entre os membros

indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira

compatível com suas aspirações e formas de vida.

Artigo 3º

1. Os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos

humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos nem discriminação. As

disposições desta Convenção serão aplicadas sem discriminação aos

homens e mulheres desses povos.

2. Não deverá ser empregada nenhuma forma de força ou de coerção

que viole os direitos humanos e as liberdades fundamentais dos povos

interessados, inclusive os direitos contidos na presente Convenção.

Artigo 5º

Ao se aplicar as disposições da presente Convenção:

a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas

sociais, culturais religiosos e espirituais próprios dos povos

mencionados e dever-se-á levar na devida consideração a natureza dos

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problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como

individualmente;

b) deverá ser respeitada a integridade dos valores, práticas e

instituições desses povos;

(...)

Artigo 6º

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos

deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos

apropriados e, particularmente, através de suas instituições

representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou

administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados

possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros

setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em

instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza

responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;

c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições

e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos

necessários para esse fim.

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser

efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o

objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das

medidas propostas.

(...)

Artigo 7º

1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas,

próprias prioridades no que diz respeito ao processo de

desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças,

instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou

utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio

desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos

deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e

programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los

diretamente.

Artigo 8º

1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão

ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito

consuetudinário.

2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e

instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os

direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com

os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for

necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se

solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação deste princípio.

3. A aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo não deverá impedir que

os membros desses povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os

cidadãos do país e assumam as obrigações correspondentes.

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53

Nos artigos 6 e 7 é dito que a Convenção visa promover a maior participação

possível das comunidades tradicionais na condução e decisão dos seus destinos, por

isso, qualquer iniciativa política de seu interesse deve ter ampla participação dessas

comunidades tradicionais que determinarão quais serão suas prioridades e formas de

participação55.

No artigo 8 é dito que essas comunidades poderão “conservar seus costumes e

instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos

fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos

internacionalmente reconhecidos”. Essa colocação dá ensejo à aplicação de medidas

e sanções penais a algumas práticas tradicionais.

A parte final do art.8º fala da possibilidade do estabelecimento de procedimentos

especiais, se for necessário, para a solução de conflitos. Porém, não existe

necessidade de regulação desse dispositivo porque a Constituição Federal de 1988

em seu art.5º, §1º diz que as leis referentes aos direitos humanos são autoaplicáveis.

Em 2005, a divulgação em meios de comunicação da retirada de crianças de

algumas aldeias para a obtenção de tratamento médico, fez a discussão em torno dos

interditos de vida alcançar maior destaque e promover repúdio por parte de amplas

camadas sociais, após a divulgação, feita por grupos missionários vinculados à ONG

ATINI - Voz pela Vida, de informações a respeito de morte de crianças indígenas

executadas por seus pais.

O debate entre as organizações indigenistas e a influência de grupos

missionários fizeram tais discussões se infiltrarem na esfera pública, ganhando

especificamente no âmbito político, sua materialização através de propostas

legislativas que desencadearam o Projeto de Lei nº 1057/2007.

2. O Projeto de Lei nº 1057/2007

Em 2007, foi apresentado esse Projeto na Câmara dos Deputados com o objetivo

de coibir o “infanticídio” praticado por alguns povos indígenas, como os Suruwahá, os

Yanomami e os Tapirapés.

55 Parte dos comentários à legislação internacional foram inspirados na obra “Direito Internacional Público e Privado” de Paulo Henrique Gonçalves Portela.

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Também conhecido como lei Muwaji56, o projeto versa sobre o combate de

práticas tradicionais nocivas e a proteção de direitos fundamentais de crianças

indígenas, além de tentar promover a educação em direitos humanos. Ele foi aprovado

pela Câmara dos Deputados em agosto de 2015. Atualmente, está em tramitação no

Senado Federal, portando o número 129/2015. Se aprovado em sua integralidade irá

para sanção presidencial57.

A redação originária do Projeto trazia em seu art. 2º:

Para fins desta lei consideram-se nocivas as práticas tradicionais que atentem contra a vida e a integridade físico-psíquica, tais como:

I- homicídios de recém-nascidos, em caso de falta de um dos genitores; II- homicídios de recém-nascidos em caso de gestação múltipla; III- homicídios de recém-nascidos quando esses são portadores de deficiências físicas e/ou mental. IV- homicídios de recém-nascidos quando há preferência de gênero V- Homicídios de recém-nascidos quando há breve espaço de tempo entre uma gestação anterior e o nascimento em questão VI- Homicídios de recém-nascidos em caso de exceder o número de filhos considerado apropriado para o grupo VII- Homicídios de recém-nascidos, quando estes possuíres algum sinal ou marca de nascença que os diferencie dos demais; VIII- Homicídios de recém-nascidos, quando estes são considerados portadores de má-sorte para a família ou para o grupo; IX- Homicídios de recém-nascidos, em casos de crença que a criança é desnutrida é fruto de maldição, ou por qualquer outra crença que leve ao óbito intencional por desnutrição; X- Abuso sexual em quaisquer situações ou justificativas. XI- Maus-tratos quando se verificam problemas de desenvolvimento físico e/ou psíquico na criança; XII- Todas as agressões à integridade física e psíquica de crianças e seus genitores em razão de quaisquer manifestações culturais e tradicionais, culposa ou dolosamente, que configurem violações aos direitos humanos reconhecidos pela legislação nacional e internacional.

A ideia de “práticas consideradas nocivas” vem do pressuposto de que em todas

as sociedades existem práticas que podem ser benéficas ou prejudiciais aos mais

vulneráveis do grupo (como mulheres, crianças e idosos). Mas, de acordo com

Claudia Napoli:

Esta é a expressão da ONU, que se refere ao conjunto de práticas cujos elementos comuns são a natureza prejudicial e a sua justificativa a qual estaria baseada no respeito à tradição. (...) Por um lado são as Nações Unidas que tem liderança na luta contra as práticas tradicionais nocivas e

56 O nome do projeto é uma alusão a uma mãe que, segundo relatos, haveria salvado sua filha Iganani portadora de paralisia cerebral do ato do homicídio infantil. 57 BARRETO, Maíra De Paula. O Infanticídio no Brasil, sob a perspectiva do controle de Convencionalidade. Enfoque dos Direitos Humanos. P.170.

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estão constantemente incentivando os governos para que se movam nessa direção58. (tradução nossa).

Foram criados nove Comitês em função dos tratados de direitos humanos. Ao

interpretarem as convenções as quais estão vinculados, eles emitiram um parecer, a

recomendação geral nº31, na qual definiram as práticas tradicionais nocivas como:

Las prácticas nocivas son prácticas y formas de conducta persistentes que se fundamentan em la discriminación por razón de sexo, género y edad, entre otras cosas, además de formas múltiples o interrelacionadas de discriminación que a menudo conllevan violência y causan sufrimentos o daños físicos o psíquicos. El daño que semejantes prácticas ocasionan a las víctimas sobrepasa las consecuencias físicas y mentales imediatas y a menudo tiene el propósito o el efecto de menoscabar el reconocimiento, disfrute o ejercicio de los derechos humanos y las libertades fundamentales de las mujeres y los niños. Asimismo, tales prácticas repercuten negativamente em su dignidade, su integridade y desarrollo a nível físico, psicosocial y moral, su participación, su salud, su educación y su situación económica y social. Por consiguiente, las prácticas se reflejan en el trabajo

de ambos Comités59.

Os critérios para a aferição de uma prática nociva foram elencados por esses

comitês e são os seguintes:

a) Constituyen uma negación dela dignidad o integridad de la persona y uma violación de los derechos humanos y libertades fundamentales consagrados em las dos Convenciones;

b) Representan uma discriminación contra las mujeres o los niños y son nocivas em la medida em que conportan consecuencias negativas para sus destinatários como personas o como grupos, incluídos daños físicos, psicológicos, económicos y sociales o violencia y limitaciones a su capacidad para participar plenamente en la sociedade y desarrollar todo su potencial;

c) Son prácticas tradicionales, emergentes o reemergentes estabelecidas o mantenidas por unas normas sociales que perpetúan el predomínio del sexo masculino y la desigualdad de mujeres y niños, por razón de sexo, género, edad y otros factores inter-relacionados;

d) A las mujeres y los niños se los imponen familiares, miembros de la comunidad o lo sociedad em general, com independencia de que la víctima preste, o pueda prestar, su consentimiento pleno, libre e informado60.

Há inclusão explícita da prática o infanticídio no rol de práticas nocivas:

Otras muchas prácticas tipificadas como nocivas están todas estrechamente relacionadas com papeles assignados a cada género creados por la sociedade y con sistemas de relaciones de poder patriarcales, y refuerzan dichos papeles y sistemas, y a veces reflejan percepciones negativas o creencias discriminatórias com respecto a determinados grupos desfavorecidos de mujeres y niños, como por ejemplo personas com discapacidad o albinas. Entre estas prácticas se incluyen, sin carácter

58 Apud, BARRETO, Maíra De Paula. O Infanticídio no Brasil, sob a perspectiva do controle de Convencionalidade.

Enfoque dos Direitos Humanos. P.58. 59 Ibidem página 64. 60 Ibidem, páginas 7-8. (p.65).

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restrictivo, el abandono de las niñas (vinculado al trato y la atención preferentes que se prestan a los niños varones), restricciones dietéticas extremas, incluso durante el embarazo (alimentación forzada, tabúes alimentarios), exámenes de virginidad y prácticas conexas, ataduras, arañazos, marcas com objetos candentes/provacación de marcas tribales, castigos corporal, lapidación, ritos iniciáticos violentos, prácticas relativas a la

viudez, acusaciones de brujería, infanticídio e incesto61.

Como é possível depreender da justificação do projeto, a sua proposta se

originou da pressão de grupos religiosos, principalmente dos missionários

pertencentes ao JOCUM (Jovens Com uma Missão) e da ONG ATINI – Voz Pela Vida,

sendo apresentada pelo Deputado Henrique Afonso, na época da propositura, era

pastor da Igreja Presbiteriana e pertencia ao PT, atualmente compõe a legenda do

PV.

Na sua origem, o Projeto de Lei visava criminalizar a conduta de omissão de

socorro daquele que, tendo conhecimento do risco de homicídio infantil, deixasse de

agir para evitar a sua concretização. Todos aqueles que trabalhassem ou vivessem

em áreas indígenas e, obtendo conhecimento dessa possibilidade, não agissem (seja

comunicando às autoridades competentes ou agindo para impedir o resultado)

responderiam por omissão de socorro.

Essa responsabilização penal vinha expressa nos artigos 3º ao 5º que diziam:

Art. 3º. Qualquer pessoa que tenha conhecimento de casos em que haja suspeita ou confirmação de gravidez considerada de risco (tais como os itens mencionados no artigo 2º), de crianças correndo risco de morte, seja por envenenamento, soterramento, desnutrição, maus-tratos ou qualquer outra forma, serão obrigatoriamente comunicados, preferencialmente por escrito, por outras formas (rádio, fax, telex, telégrafo, correio eletrônico, entre outras) ou pessoalmente, à FUNASA, à FUNAI, ao Conselho Tutelar da respectiva localidade ou, na falta deste, à autoridade judiciária e policial, sem prejuízo de outras providências legais.

Art. 4º É dever de todos que tenham conhecimento das situações de risco, em função de tradições nocivas, notificar imediatamente as autoridades acima mencionadas, sob pena de responsabilização por crime de omissão de socorro, em conformidade com a lei penal vigente, a qual estabelece, em caso de descumprimento:

Pena- detenção de 1(um) a 6 (seis) meses, ou multa.

Art. 5º: As autoridades descritas no art. 3º respondem, igualmente, por crime de omissão de socorro, quando não adotem, de maneira imediata, as medidas cabíveis.

Nos artigos 3º e 4º em análise, o sujeito ativo poderia ser qualquer pessoa,

sendo, portanto, hipótese de crime comum (delicta comunia). Trata-se também de

61 Ibidem, página 72..

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57

crime omissivo próprio, pois o sujeito deixaria de agir quando supostamente teria a

obrigação de realizar determinada conduta. A simples abstenção da ação configuraria

o crime, independente da concretização do resultado. O crime de omissão de socorro

já está tipificado no art. 135 do Código Penal tornando desnecessário prevê-lo em

outra lei.

A redação do texto contém outro objetivo subjacente. Demonstrar que a defesa

do relativismo cultural e a proposta de não intervenção em casos de interditos de vida,

por serem tipificados como omissão de socorro, podem trazer consequências penais

a todo aquele que o defende e se esquiva pessoalmente da ação para impedir o

resultado.

Por mais que a redação originária do projeto de lei não criminalize indígenas que

praticam os interditos62, não é possível deixar de considerar a criminalização de toda

a aldeia onde ocorre o homicídio infantil e das demais pessoas que possuem algum

grau de proximidade com essas comunidades tradicionais.

Na hipótese de presenciar ou tomar ciência de um episódio de interdito, a pessoa

em vez de testemunha do ocorrido é elevada ao grau de agente delituoso sob o

preceito de omissão de socorro. Essa responsabilização penal impossibilitaria a

realização de qualquer trabalho nessas comunidades, pois tanto os agentes do Estado

como etnólogos e antropólogos poderiam ser acusados pela omissão.

A prática do interdito de vida ainda ocorre entre algumas comunidades

tradicionais, mas não em proporções alarmantes como divulgadas pela imprensa, a

tal nível de justificar um projeto que criminalize pessoas não envolvidas com a prática.

Além disso, se fosse aprovada com tal redação, promoveria ação de vigilância sobre

essas comunidades.

O risco da ocorrência de um interdito é baixo se consideradas as comunidades

que ainda mantêm a prática, porém pode ser descrito como elevado se considerarmos

que os motivos que o enseja, são avaliados pela mãe, normalmente, logo após o parto.

Isto tornaria qualquer gravidez um forte indício de risco da ocorrência do homicídio,

forçando um exercício de observação constante a esses grupos.

62 De acordo com Saulo Feitosa, durante as audiências públicas, a presidente da JOCUM, Sra. Bráulia Ribeiro propôs que o “mesmo governo que legisla, criminaliza, sanciona os abusos feitos por nossa brasilidade, deveria legislar, criminalizar e sancionar os cometidos por essas culturas, porque eles não são menos gente do que nós. Comissão da Amazônia Integração Nacional e Desenvolvimento Regional. FEITOSA, Saulo, p.96.

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A proposta inicial trazida pela PL1057/2007 afronta o art.8º da Convenção

169/OIT, pois ao defender uma visão universalista da vida afronta a cultura, o direito

à crença e as tradições de comunidades tradicionais indígenas. Tal artigo afirma que

a aplicação do direito nacional aos povos tradicionais interessados deverá levar em

consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.

Citando Pontes, Portella afirma que o art. 231 afronta também a Constituição

Federativa do Brasil, na medida em que este artigo garantiu a permanência da cultura

indígena e, portanto, o direito do índio continuar a ser índio, sem nenhuma tendência

normativa de assimilação e aculturação. (PORTELLA, 2016, p.85).

Muitos questionamentos foram encaminhados à relatoria, com posicionamentos

que demonstravam as contradições decorrentes da criminalização por omissão, como

também, evidenciavam as noções preconceituosas que eram reiteradas à imagem dos

indígenas como povos cruéis. Eles propiciaram algumas reformulações do projeto

dando a ele um novo sentido.

O substitutivo à antiga proposta criminalizante foi apresentado pela relatora

Deputada Janete Rocha Pietá (PT-SP) na Comissão de Direitos Humanos e Minorias

da Câmara dos Deputados (CDHM). A nova redação adota um discurso mais brando,

com um teórico caráter pedagógico a ser acrescido ao Estatuto do Índio, não mais o

apresentando como uma lei autônoma, como ocorria no projeto de lei originariamente

apresentado.

Dentre os principais problemas presentes no texto e que motivaram sua

alteração, a relatora destaca a tentativa:

(...)de coibir práticas consideradas nocivas por meio da obrigatoriedade imposta a qualquer cidadão de notificar às autoridades responsáveis sempre que tiver conhecimento de situações de risco em função de tradições nocivas, sob pena de responsabilização de crime de omissão de socorro, em conformidade com a lei penal vigente.

(...)

No que tange à criminalização daqueles que tiverem conhecimento da ocorrência das práticas tradicionais (art. 3º a 5º do projeto), trata-se de equívoco, no nosso entender, pois o desenvolvimento de trabalhos junto a povos indígenas ficaria inviabilizado frente à obrigação legal de delação imposta a esses trabalhadores. Essa situação por si só inviabilizaria o diálogo previsto no art. 6º do projeto.

Da leitura da redação final do projeto de lei, depreende-se que ele abandonou o

objetivo de criminalizar a conduta de qualquer pessoa que presenciasse ou tivesse

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conhecimento da possibilidade de ocorrência do homicídio infantil. O texto inicial

sofreu algumas alterações para torná-lo mais aceitável, aumentando a probabilidade

de obter a sua aprovação, recebendo o seguinte enunciado:

Art.1º Acrescenta-se o art. 54-A à Lei no 6.001, de 19 de dezembro de 1973:

Art.54-A. Reafirma-se o respeito e o fomento às práticas tradicionais indígenas, sempre que as mesmas estejam em conformidade com os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e com os tratados e convenções internacionais sobre os direitos humanos de que a República Federativa do Brasil seja parte.

Parágrafo único. Cabe aos órgãos competentes a realização de campanhas pedagógicas permanentes nas tribos que, dentro de seus conhecimentos tradicionais, se utilizem das seguintes práticas:

I- Homicídio de recém-nascidos, independente de motivação; II- Homicídio de crianças; III- Atentado violento ao pudor ou estupro; IV- Maus tratos; V- Agressões à integridade física e psíquica de crianças e seus genitores, por meio de manifestações culturais e tradicionais que, culposa ou dolosamente, configurem violações aos direitos humanos reconhecidos pela legislação nacional e internacional.

Posteriormente, no ano de 2011, foi apresentado novo substitutivo pela relatora,

sendo este aprovado pela CDHM com o seguinte texto do art. 54-A:

Art.54-A. Reafirma-se o respeito e o fomento às práticas tradicionais indígenas, sempre que as mesmas estejam em conformidade com os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e com os tratados e convenções internacionais sobre os direitos humanos de que a República Federativa do Brasil seja parte.

Parágrafo único. Cabe aos órgãos responsáveis pela política indigenista oferecerem oportunidades adequadas aos povos indígenas de adquirir conhecimento sobre a sociedade em seu conjunto quando forem verificadas, mediante estudos antropológicos, as seguintes práticas:

I- Infanticídio II- Atentado violento ao pudor ou estupro; III- Maus-tratos; IV- Agressões à integridade física e psíquica de crianças e seus genitores. Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Da justificativa do seu voto enquanto relatora, a deputada afirma que:

Em função de tratar-se de questão polêmica entre os próprios povos indígenas, a cautela é aconselhada, como argumenta a FUNAI: “sob pena de expor os povos indígenas que mantêm essa prática a um julgamento prematuro por parte da sociedade não indígena, especialmente aqueles seguimentos que buscam pretextos para marginalizar cada vez mais esses povos”.

(...)entendemos que devem ser criados um Conselho Nacional Indígena e um Conselho Tutelar Indígena. Tais órgãos teriam as atribuições de tratar, respectivamente, da discussão de questões culturais próprias dos grupos indígenas, elaborando campanhas de conscientização destinadas a promover mudanças entre esses grupos, e a promoção de medidas voltadas para o bem-estar das crianças e adolescentes indígenas. Neste sentido,

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estaremos encaminhando a Indicação de criação desses órgãos através dos mecanismos adequados.

Scotti Rodrigues considera que esse substitutivo ao projeto de lei é mais correto

em termos de técnica legislativa, devido as alterações serem inseridas no Estatuto do

Índio o que, segundo ele, seria uma legislação específica mais relevante, apesar de

defasada. Por outro lado, também traz uma tentativa de inserir a discussão num

contexto mais amplo, desviando o foco político dado pela bancada evangélica,

buscando políticas públicas de conscientização. Para o autor, seria uma forma de, ao

mesmo tempo, dar atenção aos direitos individuais e respeitar o pluralismo histórico,

dando maior protagonismo aos indígenas.

3. A proposta de alteração do artigo 231 da Constituição (PEC 303/08)

Em 2008, o Deputado Pompeo de Mattos (PDT/RS) apresentou uma proposta

de emenda à Constituição (PEC 303) com o objetivo de alterar o art.231 da

Constituição Federal, para obter a seguinte redação:

Art. 231. São reconhecidos aos índios, respeitada a inviolabilidade do direito à vida nos termos do art. 5º desta Constituição, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

O novo enunciado visava estabelecer uma relação hierárquica entre o direito à

vida, tratado aqui como universal, e a proteção aos costumes e crenças indígenas.

Para justificação da proposta, o autor afirma que

Fazer respeitar o direito à vida humana entre os indígenas não constitui desrespeito ou afronta a sua cultura, mas, pelo contrário, configura respeito a sua particularidade cultural no âmbito da sociedade brasileira, a qual, por meio da carta Constitucional de 1988, considera inviolável o direito à vida a todos os brasileiros, inclusive os indígenas, e os estrangeiros.

(...)

Consideramos que a atual redação do caput do art. 231 da constituição Federal, por não reforçar a aplicabilidade do disposto no art. 5º relativamente à inviolabilidade do direto à vida, dá margem ao entendimento de que as práticas de homicídio em contexto étnico-cultural específico, tais como o infanticídio, são aceitas por nosso ordenamento constitucional, razão pela qual apresentamos a presente Proposta de Emenda à Constituição com vistas a sua alteração.

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Para Scotti Rodrigues, a proposta revela uma problemática leitura hierarquizante

entre os direitos fundamentais, ao desconsiderar a natureza sistemática da

Constituição e a relação reciprocamente constitutiva entre direitos fundamentais.

A PEC 303 foi submetida à apreciação da Comissão de Constituição, Justiça, e

de Cidadania, da Câmara dos Deputados, sendo relator o deputado Regis de Oliveira

(PSC/SP) que expôs um parecer pela sua inadmissibilidade.

O relator argumenta ser a proposta de emenda inconstitucional por violar

cláusula pétrea da Constituição, de acordo com o art. 60, par.4, IV, pois estaria

restringindo direitos e garantias individuais dos índios de acordo com o art. 231.

Bastaria a simples restrição “desses direitos, com a imposição aos índios de regras

de condutas estabelecidas em nosso ordenamento jurídico para que a emenda seja

considerada ilegal”. O relator também destacou que o poder constituinte originário

demonstrou a intenção de tutelar as tradições indígenas, impedindo o a interferência

em sua cultura.

Adotando o viés do relativismo cultural, após citar alguns estudos antropológicos

sobre o infanticídio, o relator conclui que “a prática do infanticídio faz parte da cultura

dos silvícolas brasileiros, por se tratar de uma norma de comportamento, relacionada

à sobrevivência do grupo, fundada nas suas crenças e tradições.63

O relator vai além das questões trazidas pela PEC 303 e chega a tratar do

sistema de punições criado pela própria comunidade indígena. Segundo o relator, os

índios devem desfrutar de total autonomia para criar sanções internas como forma de

punir os transgressores das tradições da comunidade, tudo isso decorrente da

interpretação do art.231 da Constituição. Essas punições podem estar revestidas de

caráter cruel, infamante, e, até mesmo, ser a condenação à morte. Extensivamente,

avalia o art. 57 do Estatuto do Índio como inconstitucional ao estabelecer limitações

quando diz:

Art. 57 – Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.

63RODRIGUES, Guilherme Scotti. Direitos fundamentais, eticidade reflexiva e multiculturalismo- uma contribuição para o debate sobre o infanticídio indígena no Brasil. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação da Universidade de Brasília. 2011. Anexo 4, página 149.

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Scotti apresenta posicionamento de discordância tanto em relação ao PEC

como também aos argumentos apresentados pelo relator para declará-la

inconstitucional. Para o autor, não é válido o argumento de que o art.231 seja uma

cláusula pétrea de forma a não comportar restrições, nem é viável a concepção de

uma jurisdição plenamente autônoma para os indígenas. Isto porque, de acordo com

uma “hermenêutica principiológica atenta à complexidade e a integridade do

ordenamento, todo o sistema de garantias da Constituição implica a existência de

restrições recíprocas que são, na verdade, constitutivas dos próprios direitos”64.

Dessa forma, o art. 231 guardaria relação de “complementariedade e

constituição recíproca de sentido não só com o direito à vida, mas com todos os

direitos fundamentais constitucionalmente previstos” como determina o art. 5º da

Constituição.

Portella, ao analisar a possibilidade de intervenção estatal trazida por essa

alteração no art. 231, reitera que mesmo não havendo a criminalização dessas

condutas, “continua existindo uma ingerência da ‘sociedade nacional’ na nação

indígena, contrariando o disposto no mais importante e recente diploma legal que

protege os direitos desses povos”.

A autora ressalta o que diz o art. 9º da Declaração das Nações Unidas sobre os

Direitos dos Povos indígenas:

Os povos e pessoas indígenas têm o direito de pertencerem a uma comunidade ou nação indígena, em conformidade com a tradição e costumes da comunidade ou nação em questão. Nenhum tipo de discriminação poderá resultar deste direito.

4. As audiências públicas

Para discussão do PL 1057/2007, a Câmara dos Deputados promoveu

audiências públicas com a participação de alguns representantes da FUNAI,

FUNASA, lideranças indígenas, antropólogos, pesquisadores e representantes da

JOCUM e da ONG ATINI.

Nessas participações, alguns posicionamentos se destacaram produzindo

elementos esclarecedores sobre a prática do homicídio infantil indígena em dias

atuais, demonstrando o ponto de vista desses atores, servindo para avaliar o projeto

64 Ibidem páginas 25 e 26.

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de lei e proporcionar as possíveis alterações sofridas por ele. Apesar das várias

discussões em torno do direito à vida, aqui foram agrupados alguns relatos que tentam

demonstrar a perspectiva indígena em relação ao tema.

4.1. As manifestações indígenas

Embora em número reduzido, após a repercussão negativa e preconceituosa do

debate, alguns representantes indígenas decidiram se pronunciar sobre as práticas

denominadas “infanticídio” presente em algumas comunidades. As falas foram

marcadas pela afirmação do crescente diálogo dentro dessas comunidades que levam

ao abandono de tais condutas, e pelo repúdio a qualquer forma de intervenção

violenta65.

Representante de quatro etnias do Pará, a indígena Valeria Payê, numa

audiência em 2007, ressalta o desuso dessa prática e o protagonismo das mulheres

no processo de mudança:

(...) Há 25 anos, ocorria com meu povo casos como os que aqui estamos chamando de infanticídio. Várias outras mulheres estão puxando este caso. O meu povo, os meus avós, as minhas tias puxaram essa discussão dentro da comunidade. Preocupa-me muito tratar isso como se todos os povos indígenas praticassem esse ato no dia-a-dia. Foi destacada aqui a experiência suruwahá. É um povo semi-isolado, assim como os ianomâmis. Quem convive lá dentro no dia-a-dia? Será que eles também não têm direito a essa diferença? Não têm direito de conduzir a situação, para não cairmos nesse processo de tentar igualar todo mundo e acabar com as diferenças a que temos direito(...) Há 30 anos, acontecia isso com meu povo. Não mais acontece, por força das nossas mulheres. Resolvemos internamente. Não houve necessidade de imposições externas para isso ser feito. Não foi preciso uma lei no Congresso nacional do Brasil para o povo Tiriyó, Katxuyana, Aparai e Wayana, até porque dizemos que a cultura não é parada (...) Os casos aqui citados como exemplo são vitórias. De nós, mulheres indígenas, dentro das aldeias. Quem, dos nossos parentes, vai tirar isso de nós, se você, como mãe segura, está defendendo? (...)a cultura é dinâmica. (...) ela não precisa dessa interferência brutal externa, porque acontece no processo do dia-a-dia.

Jacimar Gouveia, pertencente a etnia Kambeba destacou a necessidade de um

incentivo institucional do diálogo dentro das comunidades que ainda adotam tais

práticas. Para ele, mesmo com o decréscimo do índice de infanticídio devido a busca

65Os relatos a seguir foram retirados da tese de Doutoramento de Scotti Rodrigues defendida em 2011. Ver: RODRIGUES. Guilherme Scotti. Direitos Fundamentais, eticidade reflexiva e multiculturalismo – uma contribuição para o debate sobre infanticídio indígena no Brasil. Tese de doutorado. Universidade de Brasília 2011.

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do aumento populacional, ainda existem relatos de alguns povos que mantêm tal

tradição, mas rebateu a caracterização dos interditos como prática cruel:

Também não gostaria que se visse isso como crueldade dos povos indígenas, como se fossem assassinos cruéis. (...) É com uma forma do timbó que eles matam e enterram quando consideram que a criança ainda não é gente. Gostaria que as pessoas que estão aqui não vissem isso como crueldade, porque somos politeístas, acreditamos em vários deuses. Se eles acham, naquela nação, naquele povo, que não existe alma, fazem isso com naturalidade, não sofrem.

Jacimar Gouveia questiona a atuação dos missionários da JOCUM, pois

segundo ele, ao salvar a vida de algumas crianças provocam a morte de outras

pessoas:

Foi aí (na década de 1980) que apareceu a JOCUM. Após esse contato, ficaram convivendo. A partir desse momento, no meu entendimento e no de várias mulheres, foi imposta uma religião, uma mudança de cultura que não teve resultado, porque em 1981 eram 123 suruwahás e hoje, em 2007, há cerca de 140. Fizeram até exorcismo sobre o timbó. Eles já plantam em suas casas justamente para essas questões. Na hora em que querem ir para outro mundo, eles vão, naturalmente. Não foi relatado aqui que, quando foi impedido o sacrifício dessas crianças, alguns pais e alguns avós morreram. Então, houve revolta na comunidade porque a criança não foi sacrificada. Uma criança viva deficiente resultou na morte de 2,3,4 pessoas. Como fica isso? O que vale mais: uma criança deficiente sobreviver enquanto 3 ou 4 vidas vão embora? Então, acho que essa questão deve ser discutida de forma ampla, participativa. O que cada povo realmente quer? Quer abolir? Quer inserir programas? (...) Uma criança deficiente foi salva, mas no lugar dela, faleceram os pais, o avô; eles se mataram porque não queriam... Eu acompanhei esse caso de perto, juntamente com a FUNASA, lá em Manaus, participei de reuniões, e vi que a criança foi salva, mas hoje ela nem pode voltar para comunidade, inclusive porque tenho certeza de que vai ser discriminada, porque aquele povo tem uma cultura muito forte ainda. Aí, os 2 se mataram, tomaram timbó; o avô também deu uma flechada depois e se matou. Então, salvaram uma criança, que hoje está fora de seu habitat, da sua cultura, e outras vidas se foram.

4.2. O posicionamento de Rita Segato

A antropóloga Rita Laura Segato da Universidade de Brasília foi convidada a

apresentar uma arguição a respeito do PL 1057/2007, no qual questionou a

legitimidade do Estado para lidar com questões indígenas e o papel do direito nacional

em face das práticas tradicionais. Fazendo ponderações a respeito dos argumentos

a serem a arrazoados contra a lei, a autora ao comentar sua exposição afirmou que:

Não poderia se centrar em uma análise das diversas razões cosmológicas, demográficas ou higiênico-práticas que pareciam reger a permanência da prática do infanticídio numa variedade de sociedades. Muito menos tentar invocar a profundidade da diferença das concepções de “pessoa”, “vida” e “morte” nas sociedades ameríndias. O paradigma relativista da antropologia

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(...) não impactou a consciência pública, incluída a dos parlamentares, como para permitir o debate nesses termos dentro do campo jurídico estatal. Isso me colocou diretamente ante a questão central de minha tarefa: com que argumentos nós, que defendemos a desconstrução de um Estado de raiz colonial, podemos dialogar com nossos representantes e advogar pelas autonomias, quando essas implicam práticas tão inaceitáveis como a eliminação de crianças?66

Ao citar Esther Sanches Botelho, discorre como a estratégia jurídica clássica a

necessidade de conhecer em profundidade a letra da lei para poder argumentar desde

o seu interior. Ou seja, da necessidade de falar a língua do Estado frente ao Estado.

Porém, não são os mínimos jurídicos67 que devem pautar o julgamento do que pelo

Ocidente é considerado uma infração ao “interesse superior da criança” estabelecido

pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e do Adolescente. Como

um princípio criado pelo Ocidente, não consegue ser concretizado em todas culturas.

Tal impedimento existe porque o “interesse superior” da criança tem sua origem

na concepção de criança como “sujeito individual de direito” e não reconhece as

sociedades coletivas como um “novo sujeito coletivo de direito”. Por isso, a aplicação

generalizada e autoritária desse princípio pode se mostrar inconstitucional e etnocida,

“ao eliminar valores indispensáveis à vida biológica e cultural de um povo”68.

Nesse caso, caberia ao STF ponderar os princípios e direitos em oposição: o

direito à vida do sujeito individual e o direito à vida do sujeito coletivo, assim como

também o direito à vida da mãe e o direito à vida do recém-nascido. Dessa

perspectiva, a autora segue dizendo:

Se a mãe não pode se fazer responsável por uma nova vida, assim como acontece no campo médico, deverá se dar prioridade à vida da mãe frente à do bebê, pois dela dependem os outros filhos. De igual forma, se a inclusão de uma criança em determinadas condições coloca em risco a sobrevivência da comunidade enquanto tal, é a comunidade quem terá prioridade, pois sua capacidade de continuar existindo depende de todos os membros da mesma.

Apesar da coerência dessas colocações, os principais pontos trazidos pela

autora durante a audiência pública foram:

1. A garantia do direito à vida já está presente na Constituição, no Código Penal

e diversos outros instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil, sendo

66 SEGATO, Rita Laura. Que cada povo teça os fios da sua história. Revista de Direito da Universidade de Brasília. Volume 01. Número 01 janeiro-junho de 2014, p, 70. 67 Ibidem. Os mínimos jurídicos são estratégias adotadas “pelo direito colombiano para enfrentar os dilemas do pluralismo jurídico e articular os direitos próprios ou lei interna dos povos indígenas com a legislação do Estado Nacional”, p. 77. 68 Ibidem.

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desnecessária uma nova lei para inflacionar o sistema legislativo e demonstrar

a ineficiência estatal em colocar as suas leis em prática.

O significado da expressão “direito à vida” deve ser elucidado, pois existem

dois tipos de direito à vida: um que se refere à proteção do sujeito individual de

direitos e o direito à vida dos sujeitos coletivos - o direito à proteção, à vida dos

povos em sua condição de povos. Deve ser dada maior atenção a esse último,

pois se encontra menos elaborado no discurso jurídico e nas políticas públicas.

Devemos então, buscar maior proteção legislativa e jurídica para promover seu

tecido social comunitário e coletivo. Para a autora, a prioridade é manter a

sobrevivência do povo, porque “um direito fundamental de toda pessoa é ter

povo, pertencer a uma coletividade”.

2. O PL 1057/2007 se enquadra numa linha de produção de um Estado punitivo

que restringe sua atuação a atos de força contra aqueles que deveria proteger.

Sua atuação baseia-se na ideia de combate à figura do inimigo. Neste caso, a

figura do inimigo é interpretada por cada povo indígena, na manutenção de

suas diferenças, “no direito de construir sua própria história, isto é, no direito

de deliberar internamente sobre o curso de sua tradição”69.

3. Diante da ineficácia das leis penais, ao não conseguir se fazer valer dentro de

uma realidade ocidental, como poderiam ser usadas para construir uma

realidade entre outros povos? Em seu discurso, a autora afirma que a única

utilidade desse PL é dar publicidade diante de todos daqueles que são os

detentores do poder de legislar e quais são os setores sociais que não têm seus

interesses pronunciados, pois não houve consulta aos indígenas sobre seu

interesse em participar do processo de elaboração legislativa.

4. Ela propõe o abandono da dicotomia relativismo versus universalismo e sugere

a adoção do conceito de pluralismo jurídico no qual seja permitido a cada povo

resolver “seus conflitos e elaborar seu dissenso interno por um caminho

próprio”. De acordo com esse princípio, a “ideia de cultura deve ser evitada e

substituída pela ideia de história em plural”.

Sob esse ângulo, o conceito de cultura deixa de ser tratado como patrimônio

cristalizado e a-histórico. Do mesmo modo que as histórias são plurais, os

costumes podem ser alterados, mas a partir de uma deliberação do próprio

69 Ibidem, p. 82.

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povo, prova disso é o abandono da prática de interditos de vida pela maioria

deles devido a um consenso interno.

Para a autora,

ao dizer que as sociedades mudam por vontade própria como resultado das dissidências internas de contato com os discursos epocais que circulam em seu entorno e as atravessam (...) estamos afirmando que o Estado não é a agência para prescrever e impor, mediante ameaça e coerção, desfechos para a trama da história dos outros povos que a Nação abriga. (...) A devolução da justiça própria nada mais é do que a devolução da história própria.

(...)

Nessa perspectiva histórica que proponho, o papel do Estado será, portanto, o de restituir aos povos os meios materiais e jurídicos para que recuperem sua capacidade usurpada de tecer os fios de sua própria história, e lhes garantir que a deliberação interna possa ocorrer em liberdade, em concordância com a figura jurídica das garantias de jurisdição ou foro étnico.

(...)

Afirmar a história ante a cultura é a única forma eficiente de garantir o progresso da justiça no interior dos povos pelo caminho da deliberação e constante produção de seus sistemas próprios de legalidade. Essa deliberação não é outra coisa que o motor da transformação, em curso próprio e em diálogo constante com outros povos.

Sendo esses os principais motivos elencados, é importante enfatizar que o PL

1057/2007 precisa ser rejeitado. Quanto ao papel do Estado, não é viável se retirar

subitamente, após tantos anos de intervenção sobre esses grupos, mas deve servir

apenas como intermediador para garantir as deliberações internas, restituindo, assim,

a justiça própria a esses povos e, consequentemente, a condução das rédeas de sua

história.

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5. CONCLUSÃO

O homicídio de crianças indígenas ainda desperta diversos debates por ser uma

conduta presente entre algumas comunidades tradicionais, isoladas e semi-isoladas,

que vivem na Região Amazônica. É possível encontrar os interditos em outros países

sul-americanos e em alguns países africanos.

Sendo denominado “infanticídio indígena”, tal expressão se tornou a mais

disseminada em diversos debates, atingindo o senso comum e, ao mesmo tempo,

criou conceitos pré-concebidos do que poderia ser a prática. Na tentativa de

compreender o seu verdadeiro significado, dentro da perspectiva ameríndia, foi

possível encontrar os primeiros elementos que comprovam está a noção de

infanticídio indígena equivocada.

Os motivos que levam a tais práticas ancestrais são diversos, variando de um

povo para outro, passando de geração em geração, sendo sedimentados como

elementos que marcam suas culturas. Tendo como ponto de encontro o conceito de

humanidade e de pessoalidade, em muito divergente do conceito ocidental, é possível

perceber que nessas cosmovisões minimiza-se a importância do aspecto biológico do

nascimento, privilegiando a construção cultural, até ser alcançada a plenitude da

pessoa humana, cuja natureza nunca deixa de ser mutável.

Nesse sentido, o que pode ser descrito como um homicídio para o direito penal

nacional, sob o viés da relatividade perspectiva pode ser interpretado como

necessário para a sobrevivência do grupo, sendo uma conduta exigida de seus

membros. Logo, nesse contexto, a retirada da vida de um infante, não é considerada

por eles um homicídio.

Como tais práticas fazem sentido inseridas nessa cosmovisão, a

responsabilização penal do indígena é uma ofensa à sua cultura e fere os princípios

básicos democráticos trazidos com a Constituição Federal de 1988 que prezam pelo

respeito a diversidade cultural e a manutenção dessas culturas.

Diante disso, não pode o Estado aplicar a legislação penal nacional às hipóteses

de interditos de vida e, muito menos, interferir na rotina dessas comunidades criando

leis que especificamente as criminalizam. Tais iniciativas, além de inconstitucionais,

afrontariam legislações internacionais as quais o Brasil é signatário, a exemplo da

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Convenção 169 da OIT e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos

Povos Indígenas.

Por esses motivos, o Projeto de Lei 1057/2007 não deve ser aprovado, pois

representa um retrocesso político-criminal incoerente com o multiculturalismo

nacional. Apesar de adotar teoricamente um caráter pedagógico em sua nova

redação, não está atento aos interesses dos que são seus supostos beneficiários,

tornando-se, assim, um meio de intervenção desrespeitosa às tradições culturais

desses povos. Esta interferência pode resultar consequências danosas de difícil

previsão ou controle, como surgimento de reações fundamentalistas de identidade

cultural, ou até mesmo o etnocídio de determinados povos.

Existem muitos argumentos de irresponsabilização penal a serem adotados nos

casos de homicídio infantil, sendo privilegiado nessa monografia o erro de tipo

motivado pela cultura, uma proposta ainda pouco trabalhada e divulgada pela doutrina

brasileira. A adoção desse conceito não significa o abandono da observância de

outros criados pela doutrina, a exemplo do erro de compreensão culturalmente

condicionado.

Parte da doutrina considera esse conceito criado por Zaffaroni preconceituoso,

pois ele utiliza a cultura ocidental (nacional) como referência para valorar a conduta

indígena como delituosa ou legal. Se o ponto de partida da análise for a própria cultura

em que o sujeito está inserido e foi educado, não poderá falar-se em erro nenhum,

pois sua atitude está conforme à sua cosmovisão.

O erro de tipo motivado pela cultura parte do conceito de pessoalidade indígena,

utilizando como referência a própria cultura ameríndia para avaliar a tipicidade da

conduta. Observando o conceito de humanidade construída, constata-se que o

elemento “alguém” que compõe o tipo penal do homicídio não está presente, pois os

indivíduos (entes) que sofrem os interditos são considerados pessoas não humanas,

ou seres que ainda não se tornaram humanos, por isso, não são passíveis de terem

a sua existência ceifada.

Logo, não é possível falar em dolo na conduta do agente, pois onde não existe

vida, não é possível encontrar um conhecimento ou uma vontade de retirá-la,

excluindo-se, assim, a tipicidade da conduta, não sendo correta a aplicação de

nenhuma penalidade a tais hipóteses.

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Mesmo utilizando o conceito de pessoa na perspectiva aborígene, para afirmar

a ocorrência de erro de tipo e a consequente ausência de tipicidade da conduta, o

relacionamos com os componentes que integram o tipo numa concepção de jurisdição

do direito penal nacional e no que ela determina ser crime. O conceito de injusto tem

por base uma cultura alheia àquele que pratica os interditos, logo, se a hipótese é de

preconceito, tocaríamos no mesmo equívoco de Zaffaroni em utilizar nossas

referências como se fossem as centrais para defender outra tese de

irresponsabilização.

No direito, é comum a criação de conceitos a serem aplicados como regras

gerais, como também é frequente a busca de soluções jurídicas a partir de conceitos

pré-estabelecidos. O problema do que é denominado como “homicídio infantil

indígena” é a sua abrangência e possibilidade de agregar uma diversidade de

condutas decorrentes de motivações distintas que oscilam de um povo indígena a

outro, podendo variar no interior de um mesmo grupo.

Não é adequado pensar na figura do “índio” como ser ideal tendente a manter

costumes, tradições e a considerar permanentemente aceitável a prática de interditos.

Abordar a temática jurídica indigenista desta forma é defender um conceito de cultura

cristalizado e a-histórico, que não encontra respaldo na realidade, pois toda cultura

muda como resultado indissociável do processo histórico de cada sociedade.

As teses de (ir)responsabilização devem ponderar a dualidade da conservação

e da mudança em seu aspecto teórico e na aplicação ao caso prático. Daí decorre a

validade de mais de um conceito. O erro de tipo motivado pela cultura se aplica a

maior parte de casos de interditos de vida, pela não consonância da pessoalidade

trazida pelo Código Penal com a ameríndia.

Entretanto, é essencial para a avaliação do caso concreto, a confecção de um

relatório antropológico que evidencie a manutenção entre determinado povo da

cosmologia em que a humanidade não se conclui com o nascimento biológico, mas

com o cultural, em que o ser humano é construído através das relações sociais.

Nos episódios em que o índice de homicídio infantil em determinadas localidades

ainda é notório, mesmo com o constante contato de diferentes culturas, há de se

averiguar se é hipótese de erro de tipo motivado pela cultura. O contato com a

população nacional não representa o abandono das tradições, mas poderá

transformar a noção de humanidade dessas pessoas.

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E, nos casos em que se conhece a noção de pessoalidade retratada pelo direito

penal e mantem-se a prática de interditos, é correto tratá-los como erro de tipo?

Nestes casos, é possível identificar tal costume como não interiorização da cultura

nacional e muito menos de suas normas. Essas respostas só o caso concreto dirá,

restando como ferramenta a pesquisa antropológica.

Não é com certeza que poderá ser proposto o abandono do conceito de erro de

proibição culturalmente condicionado para qualquer hipótese. Em um país cuja

história colonial e o perfil assimilacionista permanentemente buscou “integrar” os

indígenas à rotina e cultura do que se chamou “Nação”, a utilização desse conceito

significa menos preconceito, e muito mais uma constatação: de que os povos

indígenas foram e são obrigados a entrar em contato com uma cultura distinta da sua

cosmologia e são constantemente avaliados por nós de acordo com o nosso

entendimento de moralidade e justiça.

Se à priori é estabelecido que uma cultura “não é superior à outra, sendo a

indígena tão válida quanto a compartilhada pelo restante da sociedade nacional”70,

não podemos falar em nenhum erro de tipo. Toda conduta daquele que pratica os

interditos de vida, baseado em sua cosmovisão ameríndia, tem uma explicação lógica

dentro do seu contexto de vivência, em relação às normas construídas dentro da sua

comunidade.

Entretanto, sugerir essa abordagem requer que o pluralismo jurídico ganhe

vitalidade a tal dimensão de ser devolvida a essas comunidades a possibilidade de

pensar o seu direito e de criar um sistema de jurisdição em que a justiça possa ser

aplicada e ponderada de acordo com valores próprios.

Devolver essa autonomia não significa ser conivente ou apoiar o que se

denomina homicídio infantil indígena, mesmo porque os dados revelam que essa

conduta é cada vez menos comum entre as comunidades tradicionais. Isso demonstra

que esses povos têm condições de ditar as suas regras e conduzir sua história.

70 PORTELLA, Alessandra Matos. Soluções propostas pelo Direito Penal para o problema do homicídio infantil indígena na Região Amazônica. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016

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