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Universidade Federal da Bahia – UFBAFaculdade de Comunicação
Discursividade e narratividade em fotografias
Nathália Meira de Carvalho
Projeto Experimental para conclusão do curso de Comunicação com habilitação em Produção em Comunicação e Cultura
Semestre letivo: 2001.2
Orientador: José Benjamim Picado
RESUMO:
Este é um trabalho de caráter conceitual, que busca identificar como acontece a
construção de sentido na percepção de fotografias e sua relação com outras formas de
comunicação. Para isso, recorre a dois referenciais teóricos: a semiologia estruturalista
dos anos 60, que tem como principais expoentes Barthes e Eco; e as tentativas de
conceituação da fotografia dos anos 80, que se não chegam a constituir uma teoria, ao
menos têm em comum uma influência da semiótica, especialmente a obra de Peirce.
Diante das insuficiência destas abordagens, buscou-se complementos em teorias da arte,
estética e psicologia da percepção. Partindo de algumas considerações a respeito de um
objeto artístico – a exposição fotográfica Música Urbana, de Aristides Alves –
identificamos a possibilidade de uma expressão discursiva inerente às fotografias, sem
dependência a textos e outras estratégias explicitamente enunciativas.
2
ÍNDICE
1. Introdução ...............................................................................................................03
2. A imagem como discurso Fenômenos visuais segundo a teoria estruturalista ...................................................07
3. Percepção e interpretação de fotografias .............................................................19
3.1 A importância (relativa) das classificações ....................................263.2 A atividade do espectador ...............................................................30
4. Música Urbana e narrativa fotográfica ................................................................32
4.1 Comentários sobre a exposição .......................................................324.2 Narração e visualidade ....................................................................354.3 A instância realizadora ....................................................................43
5. Considerações finais ...............................................................................................45
6. Bibliografia ..............................................................................................................50
7. AnexosFotografias de Música Urbana .................................................................................53
3
1. INTRODUÇÃO
Em torno da cena estão depositados os signos e as formas sucessivas da
representação; mas a dupla relação da representação com o modelo e com o
soberano, com o autor e com aquele a quem ela é dada em oferenda, essa
relação é necessariamente interrompida. Ela jamais pode estar toda presente,
ainda quando numa representação que se desse a si própria em espetáculo. Na
profundidade que atravessa a tela, que a escava ficticiamente e a projeta para a
frente dela própria, não é possível que a pura felicidade da imagem ofereça
alguma vez, em plena luz, o mestre que representa e o soberano representado.
Michel Foucault
No primeiro capítulo de As palavras e as coisas, Foucault analisa o quadro de
Velásquez Las Meninas como um jogo de olhares. O pintor do quadro, assim como os
outros personagens, olha um ponto além da tela, no qual se situa o espectador, que por
sua vez os olha. E vê que o pintor tem virado para si uma tela, sobre a qual deposita o
pincel, dando a entender que ali se forma uma pintura, escondida do olhar do
espectador.
Se o pintor nos olha, entendemos que a pintura retrata a nós mesmos,
espectadores. Mas um espelho no fundo do quadro revela duas silhuetas, identificados
historicamente como o rei e a rainha da Espanha. São eles os verdadeiros modelos do
pintor, são eles os espectadores da cena, para eles toda a cena se arma, confundindo o
espaço representado e sua própria natureza representativa. No meio dos olhares
implícitos, o espectador real – o único que realmente olha, o motivo e o fim de qualquer
representação – é invisível.
Esta dinâmica do quadro ilustra, para Foucault, a formação dos códigos culturais
e científicos, a tentativa do homem de objetificar o mundo para compreendê-lo.
Podemos tomá-lo também como ilustração da comunicação contemporânea, na qual a
representação através de instrumentos técnicos materializa um olhar ambíguo, voltado
para uma realidade fora de quadro. Interagindo constantemente com diversos tipos de
imagens, o espectador, no entanto, raramente é visto: os estudos sobre imagens
midiáticas (no sentido literal, do objeto que é visto) voltam-se ora para a mensagem, o
conteúdo literal ou simbólico que elas veiculam; ora para o próprio meio, enquanto
4
elemento condicionante dos conteúdos; ou ainda para o contexto social em que ela se
insere.
A dinâmica interna da percepção, que possibilita a atribuição de sentido às
imagens, raramente é considerada relevante entre as ciências da comunicação,
restringindo-se à psicologia ou às teorias artísticas. Buscamos neste trabalho a
valorização deste campo, relativizando a importância dos mecanismos exteriores à
interpretação destas imagens, ainda que reconheçamos seu papel em outros fenômenos
próprios à comunicação. Para isso tomamos como referencial teórico principal a
semiótica, procurando compreender tudo o que, percebido visualmente, pode ser
considerado signo – ou seja, o que pode ser interpretado. O termo “signo” aqui (como
“imagem”) não designa objetos materiais, mas algo que é visto, no mesmo sentido que
um texto só existe enquanto é lido.
No contexto das teorias da comunicação, reflexões sobre obras de arte têm sido
comuns, servindo muitas vezes como referência em estudos acerca da produção e
recepção de mensagens midiáticas. Mas o que nos interessa não é o estatuto artístico
desta ou daquela forma de expressão, mas seu poder de dizer algo, de trazer à percepção
algo que não o próprio objeto. As fotografias, neste estudo, dialogam com quadros e
desenhos, além de espelhos, janelas e outras formas de observar (e fazer) mundos. O
objetivo é problematizar as imagens fotográficas enquanto representações do mundo
visível, questionando a especificidade da percepção e interpretação das imagens
fotográficas e sua relação com um campo perceptivo mais amplo.
Entre os teóricos que se preocuparam com a comunicação não-verbal, grande
parte das discussões gira em torno da classificação do signo fotográfico enquanto ícone
ou índice, ou ainda da existência de um código na percepção das imagens. O fenômeno
da fotografia surge então como um objeto extremamente propício à observação, uma
vez que reúne um processo técnico relativamente simples de produção e uma gama
bastante variada de usos, que vão do mais científico ao mais sentimental, passando
pelos usos midiáticos e artísticos. Sem nos determos exclusivamente em nenhum,
consideramos como prioritários à teorização aqui exposta os usos que buscam provocar
uma circulação de sentidos, que abrange os realizados em diferentes media, tais como
revistas, jornais, livros, web sites, exposições, outdoors, etc.
Na primeira parte, é explorada a problemática da significação das imagens como
um fenômeno eminentemente lingüístico, presente nos escritos da semiologia
estruturalista, inicialmente em Barthes (1961, 1964 e 1980) e posteriormente retomada
5
por Eco (1968 e 1975). Como interlocutores, selecionamos dois autores
contemporâneos que recuperam a inspiração lingüística da semiologia, com um viés
crítico em relação aos antecessores: Verón (1994) e Sonesson (2000). A questão central,
nesta parte, é a existência de um código visual do qual depende a função sígnica da
fotografia, extensivo a outras imagens analógicas; ou se, pelo contrário, a analogia
“pura” implica em uma ausência de codificação.
Deste debate nasce uma tendência que procura, a partir de uma das
classificações dos signos elaborada por Charles S. Peirce, estabelecer uma teoria
específica da fotografia enquanto meio. Apesar do embasamento semiológico, estas
obras percorrem questões que muitas vezes não dizem respeito à significação, ainda que
ajudem (mesmo que por negação) a compreender a gama de problemas envolvidos ao
falarmos de fotografia. Na segunda parte do trabalho, são revistas algumas das
contribuições desta linha, nas obras de Dubois (1983), Machado (1984) e Schaeffer
(1987). Nossa crítica central é a consideração do processo formativo das imagens como
determinante da recepção, presente de modos diversos nestes autores – assim como em
outras análises de formas expressivas da comunicação. Como contraponto, propomos
uma abordagem que realmente considere o espectador como elemento central, a partir
da atividade sua perceptiva – para isso são incorporados à discussão sobre a fotografia
alguns tópicos levantados por Gombrich e Arnheim, teóricos da arte e da psicologia da
percepção.
Em seguida, é realizada uma tentativa de aplicar esta abordagem a um produto
concreto: a exposição fotográfica Música Urbana, realizada pelo foto-jornalista
Aristides Alves. São dez fotos em preto e branco, sem inscrições textuais, que mostram
um cotidiano da cidade de modo pouco usual (ver cópias em anexo). Identificamos
como caráter unitário da exposição uma narratividade inerente às imagens, como se
contidos em cada foto houvessem pequenos relatos ficcionais. Neste exercício de
análise, buscamos explorar os aspectos significativos das fotos, a partir de uma
perspectiva pessoal.
O conceito de narrativa visual, aplicado à fotografia, é de certa forma uma
síntese dos conceitos tratados anteriormente: reúne a atividade do espectador em um
meio tradicionalmente marcado pela objetividade técnica e um poder de enunciação das
imagens independente de caracteres verbais ou da sequencialidade. Por isso procuramos
também expô-lo mais detalhadamente neste capítulo, a partir de uma aproximação com
a narrativa poética e o conceito de mimesis em Aristóteles. Em favor desta analogia,
6
mostramos alguns exemplos de que, mesmo sem ser objeto de uma teorização
sistemática, este conceito tem aparecido com alguma freqüência em análises e
teorizações recentes sobre a fotografia. Encerramos com um comentário sobre o papel
da instância de realização da fotográfica na dinâmica comunicacional, deixada
propositadamente em segundo plano ao longo do trabalho.
A esse respeito, consideramos que a produção artística atual encontra-se diante
de um dilema: se por um lado os meios técnicos de produção de imagens multiplicam-se
e aperfeiçoam-se, por outro os artistas procuram se distanciar da representação
figurativa, buscando, mesmo em meios inicialmente destinados a um registro frio e
objetivo da realidade – como a fotografia ou o cinema – o máximo de expressividade e
subjetividade. No entanto, como espectadores, não podemos deixar de lado os processos
de reconhecimento que entram em jogo ao experimentarmos estas obras. Interpretar
imagens, relacioná-las a determinados referentes do mundo real ou imaginário, inseri-
las numa ordem, num esquema, parecem atos quase inevitáveis; compreender estes atos
não exclui absolutamente a dimensão estética e fruitiva das obras.
Tendo em vista a multiplicidade de intervenções relacionando a produção visual
ao conhecimento do mundo, esta será uma pesquisa temática, buscando sistematizar as
contribuições de campos diversos em torno de uma questão: o potencial comunicativo
específico da imagem fotográfica. Buscou-se, desta forma, preparar um arcabouço
teórico que possibilite futuramente análises mais aprofundadas de produtos imagéticos
enquanto elementos centrais nos meios de comunicação atuais, assim como testar esta
metodologia de pesquisa, sujeitando-a a questionamentos e possíveis reelaborações.
A base bibliográfica deste estudo é originária da pesquisa Gramáticas da
Semelhança: o problema do Iconismo na Semiótica e na Filosofia da Linguagem
(PIBIC 2000/2001), quando foram levantados boa parte dos conceitos formulados aqui
acerca da atividade perceptiva. O interesse pessoal pela fotografia enquanto técnica,
somado às reflexões epistemológicas incentivadas pela pesquisa, levaram-nos a buscar a
natureza desta forma de expressão no âmbito do espectador comum. Esperamos assim
contribuir para uma maior compreensão das maneiras pelas quais, desvendando a
realidade através da visão fotográfica, construímos culturalmente esta realidade.
7
2. A IMAGEM COMO DISCURSO
Os fenômenos visuais segundo a teoria estruturalista
Que sejam mensagem a comunicação lingüística, um texto em Morse ou uma
placa de trânsito, e se refiram a códigos convencionais, isso não se discute: mas
são as comunicações aparentemente naturais, imotivadas, analógicas e
espontâneas, como o retrato da Mona Lisa ou a imagem de Franchi e Ingrassia,
e – mais ainda – os fatos de cultura cujo fim primeiro não parece ser a
comunicação, tais como uma casa, um garfo ou um sistema de relações sociais,
que hoje desafiam a pesquisa semiológica.
Umberto Eco
As imagens figurativas estão sempre presentes no nosso cotidiano, assumindo funções
muito diferentes – fruição estética, educativa, afetiva, decorativa etc. Alguns teóricos
que analisaram expressões artísticas e da comunicação, especialmente os ligados à
teoria semiótica, procuram explicar como o sentido é construído neste meio,
comparando sua organização a modelos verbais. Em outros campos, como a história da
arte e a psicologia da percepção, a imagem também é muitas vezes caracterizada como
signo, o que nos permite ampliar as interrogações da semiologia tendo em vista os
processos interpretativos que acontecem nos meios de comunicação atuais.
Neste capítulo será feito um breve apanhado das tentativas de teorização do ato
de perceber e interpretar imagens ligadas à semiologia estruturalista, especialmente os
escritos de Roland Barthes e Umberto Eco. Sendo esta a abordagem mais incorporada à
área de comunicação, buscaremos as principais contribuições destes teóricos para uma
possível teoria semiológica das imagens, assim como as lacunas e equívocos causados,
sobretudo, pela influência lingüística, que associa a significação das imagens a uma
estrutura verbal, subjugando-a a uma relação de ilustração ou complementaridade do
texto. Por outro lado, devemos reconhecer a impossibilidade de uma pura plasticidade,
uma vez que a percepção de imagens enquanto tais é praticamente indissociável (ao
menos em termos de consciência) de um nível mínimo de esquematismo, do contrário
não poderíamos sequer falar em formas, linhas, cores, tamanhos. Apesar dos esforços
teóricos no sentido de pesquisar e construir modelos para compreender este processo, o
debate sobre o modo como se organizam as imagens na percepção continua em aberto.
8
Desde que a semiologia começou a se firmar enquanto disciplina, principalmente
na França dos anos 60, a significação visual apresenta-se como um desafio. Entre a
linguagem verbal, de cuja análise a lingüística e a teoria literária ocupam-se
satisfatoriamente, e a linguagem artística, também amplamente estudada pelas teorias da
arte e da estética, a comunicação visual parece sempre sujeita aos discursos midiáticos,
aos usos e contextos sociais em que se insere. Ao mesmo tempo mais instantânea,
eficiente e amplamente compreensível; e por outro lado mais ambígua, escorregadia,
escapando de definições e conceitos. A fotografia, neste sentido, escapa até mesmo da
finalidade artística e do estilo individual, utilizados para definir o sentido de quadros e
desenhos.
Buscando traçar as discussões da época, Eliséo Véron1 identifica como problema
comum destes textos uma contradição entre a intenção de abarcar todas as imagens
numa teoria unificada, expressa principalmente nos títulos, e o que é efetivamente
realizado, em geral uma análise ou caracterização de estilos e meios bastante
específicos. A suposta universalidade da teoria lingüística teria sido, segundo Véron,
“transferida abusivamente a objetos inseparáveis de suas práticas sociais” (p.48). Esta
metodologia revela-se por fim frutífera, ainda que não da forma imaginada pelos
teóricos, uma vez que é a partir das “mensagens” que se atinge uma compreensão dos
“códigos”, os modos de funcionamento que regem os processos de produção e
circulação dos discursos sociais.
Os estudos mais frutíferos, para Véron, são justamente aqueles que resistem à
“deriva estruturalista” e tomam como objeto “os fenômenos significantes que resultam
de práticas sociais institucionalizadas”, destacando as contribuições de Christian Metz
para a evolução de uma teoria do cinema. Uma contribuição importante de Metz teria
sido denunciar a busca estéril pelas “unidades mínimas” de significação, decorrente da
aplicação da noção de código para substituir a de língua.
Esta crítica remete especialmente ao artigo A Mensagem Fotográfica (1961), no
qual Barthes busca levantar as dificuldades de uma análise estrutural da fotografia de
imprensa. O autor inicialmente reconhece que as fotos que fazem parte da mídia
impressa são mensagens em si mesmas, com uma estrutura muito diferente da
linguagem dos textos. O conteúdo desta mensagem é a cena retratada, a “realidade
literal”, da qual a imagem é um analogon perfeito. Não há uma divisão da realidade em
unidades mínimas para a construção da imagem, como no caso das linguagens
1 De l’image semiologique aux discursivités, 1994.
9
codificadas. Barthes conclui então que a fotografia é uma “mensagem sem código”, ou
uma mensagem contínua, diferente de outras representações visuais analógicas
(desenhos, pinturas, cinema, teatro) que “têm como mensagem suplementar o que
chamamos de estilo, um certo tratamento da imagem que remete a uma cultura
específica”. Ele diferencia estas instâncias de significado como mensagem denotativa e
conotativa, sendo a fotografia a única estrutura de informação puramente denotativa, daí
sua objetividade.
Ao mesmo tempo, a mensagem fotográfica não é apenas percebida mas também
lida, relacionada a “um estoque tradicional de signos”. Este seria, para Barthes, o
“paradoxo fotográfico”: a coexistência de duas mensagens, uma sem código (o análogo)
e outra com código (a arte, a retórica) – não um paradoxo entre conotação e denotação,
que ocorre em todas as formas de comunicação, mas uma conotação que ocorre com
base em uma mensagem que não pode ter código, por ser analógica e contínua. Barthes
parte então para uma enumeração dos procedimentos conotativos, ou seja, como uma
foto pode ser produzida de modo a adquirir um “segundo sentido”, uma codificação.
Estes procedimentos não se confundem com unidades de significação, pois segundo o
autor, não fazem parte da estrutura fotográfica. São eles: efeitos de montagem, pose,
objetos (quando arranjados artificialmente), fotogenia, esteticismo e sintaxe (fotos
postas em seqüência).
Sem nos prolongarmos nos efeitos de cada um, chegamos ao principal
mecanismo de conotação da mensagem fotográfica: os textos escritos que a
acompanham, incluindo aí legendas, artigos e títulos. Barthes coloca o texto na posição
de “parasita” da imagem, designado para agilizar seu significado, ao mesmo tempo em
que sofre a ação denotativa/objetiva da foto. Ao contrário da fase inicial (o autor não
precisa quando), no jornalismo a imagem não mais ilustra o texto, é o texto que “carrega
a imagem com cultura, moral, imaginação”; se antes havia uma redução do texto à
imagem, atualmente há uma amplificação deste, que resulta em uma “naturalização da
cultura” (p.26).
Assim, o código da conotação aplicado às fotografias não é, segundo Barthes,
nem natural nem artificial, mas histórico (cultural), sendo que o sentido é definido pela
prática social. Encontrar este código seria “isolar, inventariar e estruturar todos os
elementos ‘históricos’ da fotografia, todas as partes da superfície fotográfica que
derivam sua descontinuidade de um certo conhecimento da parte do leitor, ou, se
preferir, da situação cultural do leitor” (p.28).
10
O argumento de Barthes continua, com algumas modificações, em A Retórica da
Imagem (1964). Tomando desta vez como objeto uma imagem publicitária (e mantendo
o título genérico, como critica Véron) o autor procura demonstrar que a imagem
fotográfica é submetida a uma codificação quando utilizada numa estratégia de
comunicação, uma vez que “em publicidade a significação da imagem é, certamente,
intencional”. No anúncio da massa Panzani, estão dispostos legumes frescos saindo de
uma sacola de compras, ao lado de produtos desta marca. Barthes divide este sistema de
significação em três partes: a mensagem lingüística (que inclui tanto a legenda como o
nome da massa, visível nas embalagens), a mensagem icônica codificada (frescor,
abundância, culinária caseira, a italianidade conotada pelas cores dos legumes, a
estética de natureza morta) e a mensagem icônica não-codificada (os objetos
literalmente retratados).
Tanto na parte verbal como na pictórica, o autor identifica mecanismos de
denotação e de conotação, sendo que na imagem há um nível de leitura para o qual não
é necessário um código (como a língua), mas apenas “o saber que está ligado à nossa
percepção”. Esta seria a mensagem literal/denotada, oposta à mensagem simbólica/
conotada, para a qual se exige um saber cultural. As duas mensagens estão
profundamente imbricadas na percepção no anúncio: o espectador recebe as duas
simultaneamente, a primeira servindo como suporte para a segunda. A estratégia
enunciativa da publicidade busca justamente esta indiferenciação, ou seja, a construção
de sentido através do objeto denotado, mascarando as estratégias de enunciação do
anúncio.
Ainda que utilizando livremente os termos lingüísticos2, e com uma certa
incoerência interna no uso destes termos, o artigo, assinala Sonesson (em Barthes: La
Rhétorique de l`Image), marca uma mudança profunda na semiótica visual. É a primeira
tentativa de empregar um modelo de análise simples, que permite encaixar os elementos
recorrentes da significação pictórica, e terminou por influenciar quase todas as análises
posteriores – seja reaplicando os termos utilizados por Barthes, seja buscando dissociar-
se ao máximo deste modelo.
Apesar de Barthes se referir a Hjelmslev, deve ficar claro que estes conteúdos, com exceção do
lingüístico (...), e ‘publicidade’ que Barthes curiosamente rejeita, não podem ser conotações no
sentido semiótico: ao invés disso, pairam entre conotação estilística e implicação. Como Floch
(1978) observa, Barthes identifica a oposição entre denotativo e conotativo com três outras:
2 O autor chega mesmo a propor uma ampliação da noção de língua, inclusive, do ponto de vista semântico: “a língua é a ‘abstração totalizante’ das mensagens emitidas e recebidas” (nota 14).
11
codificado vs. não-codificado, perceptual vs. cultural, literal vs. simbólico. No entanto isto não é
verdade: ele de fato toma a conotação lingüística como menos codificada que sua denotação,
enquanto o inverso é suposto no caso da figura. (Sonnesson)
Em seguida, Barthes procura articular as mensagens lingüística e icônica,
chegando a duas relações: fixação e relais. A fixação é a função mais comum da escrita,
comumente encontrada no jornalismo e na publicidade. O texto teria o papel de guiar o
leitor através da “cadeia flutuante de significados” presentes na imagem, direcionando-o
para um sentido escolhido previamente; este direcionamento ocorre tanto no nível
denominativo, elegendo um objeto a ser identificado como foco, como ao nível da
mensagem simbólica, enquanto “uma espécie de barreira que impede a proliferação dos
sentidos conotados, seja em direção a regiões demasiadamente individuais (isto é, limita
o poder de projeção da imagem), seja em direção aos valores disfóricos”. Já na função
de relais, mais rara na imagem fixa (encontrada geralmente em charges e histórias em
quadrinhos), texto e imagem colocam-se numa relação de complementaridade, como
“fragmentos de um sintagma mais geral”; a unidade da mensagem acontece no nível da
história, da anedota, da diegese.
Barthes destaca ainda que a composição da imagem deve ser vista como um
complexo significativo no qual a fotografia exerce uma função de naturalização,
“inocentando” o artifício semântico da conotação. Devido à sua natureza analógica e
objetiva, na fotografia “a relação entre os significados e significantes não é de
‘transformação’, mas de ‘registro’, e a ausência de código reforça, evidentemente, o
mito do ‘natural’ fotográfico: a cena está aqui, captada mecanicamente, mas não
humanamente”. Assim, mesmo numa mensagem marcadamente simbólica como o
anúncio Panzani, permanece uma relação de naturalidade com os objetos, como se a
cena se produzisse espontaneamente: (...) uma pseudoverdade substitui sub-repticiamente a simples validade dos sistemas abertamente
semânticos; a ausência de código desintelectualiza a mensagem, porque parece fundamentar in
natura os signos da cultura. É, sem dúvida, um importante paradoxo histórico: quanto mais a
técnica desenvolve a difusão das informações (especialmente das imagens), mais fornece meios
de mascarar o sentido construído sob a aparência do sentido original. (p.37)
Novamente a fotografia é tratada como uma “mensagem sem código” e
praticamente todo o discurso se volta para a carga simbólica transmitida pelos objetos
em cena. Os elementos visuais são analisados por Barthes não tanto como signos, mas
como referentes – objetos que significam algo externo à mensagem visual. Este
12
tratamento parte do pressuposto de que a imagem não é capaz de carregar informação
em si, ou que suas informações são tão ambíguas que é necessária uma mensagem
verbal para “fixar” seu significado – de qualquer modo, em Barthes (ao menos neste
início) a significação pictórica é fundamentalmente dependente da textual. Sonesson
argumenta ainda que “figuras certamente oferecem muito menos informação lingüística
que mensagens escritas, como no caso do anúncio da Panzani; mas podemos dizer que a
figura transmite melhor outro tipo de informação, que se assemelha mais ao tipo
presente no mundo perceptual.” 3
A lógica da referenciação será mais desenvolvida posteriormente por Barthes,
em A Câmara Clara, tendo como conceito central o que ele chama de noema da
fotografia: a certeza que algo “esteve lá” (cela a été, ou “isso foi” na tradução
brasileira). Este conceito nasce de uma revisão desempenhada por Barthes das suas
próprias fotos familiares, pouco depois que sua mãe falece – daí o tom pouco científico
e um tanto melodramático que prevalece no texto. Apesar de dar início a uma
abordagem semiótica da fotografia excessivamente centrada na ligação material entre
imagem e objeto (assunto do próximo capítulo), este texto oferece elementos
interessantes para se pensar numa propriedade assertiva das fotos completamente
independente de textos escritos.
Em Mitologias (1970), Barthes comenta uma exposição de “fotos-choque” cujo
problema era não conseguirem chocar, justamente por ir além da função puramente
denotativa/demonstrativa da fotografia, dando margem a que se veja nela uma intenção
do realizador: “o fotógrafo substitui-se-nos larga e excessivamente na formação de seu
tema: quase sempre elabora de forma exagerada o horror que nos propõe, acrescentando
ao fato, através de contrastes ou aproximações, a linguagem tradicional do horror”
(p.67). Comparando este tratamento com pinturas trágicas, nas quais o gesto exagerado
nos remete ao espetáculo e não imediatamente ao significado, o autor critica nestas fotos
uma “perfeição” que não produz qualquer efeito, pois “reduzida ao estado de pura
linguagem, a fotografia não nos desorganiza”. Desta forma, apresenta-nos “o escândalo
do horror, não o horror propriamente dito” (p.69).
Ao mesmo tempo, estas fotos (e todos os outros fenômenos mencionados na
obra) são unidos por um caráter mítico. Ao conceituar o Mito atual, Barthes coloca
imagens e textos num mesmo patamar analítico, definindo-o de início como uma fala,
um sistema de comunicação, uma mensagem, um modo de significação, uma forma –
3 Barthes: La rhétorique de l’image – The Internet Semiotics Encyclopaedia.
13
não se define pelo objeto da mensagem, mas “pela maneira como a profere”. Esta
maneira pode ser através da escrita ou de representações: “o discurso escrito, assim
como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade,
tudo isto pode servir de suporte à fala mítica”. Mais adiante o autor diferencia os tipos
de discurso ao dizer que a imagem é “mais imperativa” que a escrita, “impõe a
significação de uma só vez, sem analisá-la, sem dispersá-la”; sendo que “a imagem
transforma-se numa escrita, a partir do momento em que é significativa: como a escrita,
ela exige uma léxis”. Por fim, conclui que o semiólogo deve tratar a escrita e a imagem
do mesmo modo: como signos, explicitando que “uma fotografia será, por nós,
considerada exatamente como um artigo de jornal” [grifo nosso].
Esta discursividade visual, ligada não tanto à realização mas à circulação social a
que a foto é sujeita, é buscada também por Véron, que utiliza o termo matéria
significante para se referir ao conjunto de textos, fotos e elementos gráficos. Partindo
dos insights de Barthes em A Câmara Clara, Véron mostra que as fotos midiáticas
raramente devem seu sentido a uma relação indexical com o referente, enquanto algo
que “esteve lá” em um passado recente, ou mais genericamente a uma lógica do “tempo
que passa”. Neste sentido elas se diferenciam radicalmente dos álbuns de família, objeto
prioritário do estudo de Barthes – cuja abordagem, ele ressalta, não tem nada de
fenomenológica, procura apenas dar sentido a um ‘conhecimento comum’ que temos da
gênese técnica da imagem.
No panorama da semiologia visual traçado por Véron, a história da fotografia
desempenha uma função fundamental nas investigações sobre a significação da cultura,
ao demonstrar a gênese de uma discursividade estreitamente ligada ao que ele chama de
“publicidade do privado”. Esta discursividade teria como origem os recursos utilizados
em retratos pintados, nos quais a pose do modelo lhe confere um caráter de eternidade,
sendo que no caso da fotografia o que é encenado é a vida privada de certas pessoas. Neste caso, os efeitos técnicos da fotografia afetam a própria estratégia enunciativa, além das
condições de recepção: o que é valorizado não é, como no caso do retrato, a dignidade
‘atemporalizada’ da notabilidade, mas sim, poderíamos dizer, a naturalidade de uma vida que,
estando marcada pelo olhar do público, não é de nenhum modo uma vida. (p.54)
Mais do que “isso foi”, as imagens procuram mostrar o “isso é”, o caráter de
permanência de certas situações e personagens sociais, uma atualidade que não passa –
ou seja, a temporalidade que Véron identifica como “o coração da técnica” fotográfica
pode ser trabalhada de diversas formas, possibilitando uma ligação entre os espaços
14
mentais do público e do privado. O autor identifica como uma intuição capital de A
Câmara Clara a relação íntima entre a fotografia e a estruturação do individualismo
moderno, revelada na obstinação de Barthes por construir um discurso puramente
subjetivo, privilegiando o que ele chama de punctum (algo que “parte da cena, como
uma flecha, e vem me perfurar”) em detrimento do studium (a convenção cultural, um
“contrato firmado entre criadores e consumidores”).
Esta escolha simboliza, para Véron, a impossibilidade de uma “ciência da
imagem”, almejada pela semiologia francesa, ao mesmo tempo em que coloca em cena
a “pluralidade de modos de apropriação dos discursos”, ou o distanciamento entre a
produção e o reconhecimento. “A subjetividade do punctum”, defende o autor, “toma
forma a partir da matéria do studium, a construção da singularidade do indivíduo só
pode ser compreendida como uma estratégia de negociação permanente entre os
‘contratos’ propostos na oferta cultural. Depois que nasceu, o suporte fotográfico
‘trabalha’ este cruzamento, esta convergência-divergência entre o individual e o social”
(p.56), um cruzamento que acontece na circulação midiática.
Assim, deslocando o tema da discursividade das imagens para os meios de
comunicação (considerados enquanto estratégias enunciativas), Véron realiza uma
pesquisa sobre “fotografia e discursividades midiáticas” partindo de uma classificação
das fotos publicadas no jornal do dia. Uma minoria tem o caráter de reportagem, que ele
denomina foto testimonial: 6 de 34 imagens, sendo as restantes “de identificação”
(apenas mostram alguém mencionado no texto, sem esclarecer as circunstâncias de
tomada), fotos de arquivo, mapas ou desenhos. Mesmo as imagens que mostram fatos
muitas vezes não têm qualquer relação factual entre o momento de tomada e o momento
narrado nos artigos.
Diante da necessidade de uma análise do sentido inserida num “contexto de
reflexão atento aos movimentos da evolução sociocultural”, Véron declara que “é hora
de passar da semiologia à semiótica”, ou seja, ir além de uma disciplina ou uma técnica
de análise de objetos, em direção a “uma teoria global da sociedade e da cultura,
localizada na produção de sentido” (p.61), que teria como referência a obra de Peirce.
As propriedades semiológicas do discurso, nesta perspectiva, não teriam nenhuma
importância em si mesmas, pois são produtos estabilizados da “semiose sociocultural”.
Sem nos envolvermos demasiadamente na discussão sobre qual seria a missão da
semiótica, esta posição nos interessa na medida em que coloca a fotografia como uma
15
forma de discurso em si mesma – ainda que, na análise de jornais e revistas, o autor
busque constantemente a ancoragem do texto para explicitar o sentido das fotos.
A segunda figura mais influente no início da semiótica pictórica foi sem dúvida Umberto Eco,
que definiu duas das questões básicas deste domínio, e cuja resolução destas questões mal foi
contestada até recentemente. Provavelmente por que apenas signos convencionais, segundo
Saussure, eram do interesse da semiótica, Eco se arriscou a mostrar que figuras são tão
convencionais quanto signos lingüísticos. Perseguindo ainda mais a analogia com signos
lingüísticos, Eco sugeriu que figuras poderiam ser analisadas em termos de signos elementares
que, por sua vez, poderiam ser dissolvidos em traços sem sentido em si mesmos. Apesar de o
próprio Eco reconsiderar esta idéia ao longo dos anos, uma ou outra versão da sua concepção
continua a ser aceita por muitos especialistas. 4
Uma visão semelhante é defendida por Umberto Eco em A Estrutura Ausente
(1968): a abordagem semiótica deve ser unificada para abranger qualquer tipo de
significação. Nesta obra, o autor interroga “o que é e que sentido pode ter uma pesquisa
semiológica, isto é, uma pesquisa que considere todos os fenômenos da cultura como
fatos de comunicação, para os quais as mensagens isoladas se organizam e se tornam
compreensíveis com referência a códigos”.
Uma das primeiras tentativas de cercar o fenômeno da visualidade neste campo,
Eco centra sua argumentação na insuficiência do modelo lingüístico (herdado de
Saussure) para compreensão das mensagens visuais, buscando diferenciá-las das
verbais; ao mesmo tempo, busca na estrutura da linguagem semelhanças que nos
permitam analisar imagens enquanto signos, utilizando também as noções de código e
mensagem. O código é definido como “uma estrutura elaborada sob forma de modelo e
postulada como regra subjacente a uma série de mensagens concretas e individuais que
a ela se adequam e só em relação a ela se tornam comunicativas. Todo código pode ser
comparado com outros códigos mediante a elaboração de um código comum, mais
esquelético e abrangente.” (p.39-40)
A significação das imagens, para Eco, funciona necessariamente com base em
códigos visuais, relações convencionais aprendidas previamente pelo intérprete, a partir
das quais se estruturam os elementos significantes. Aplicando aos fenômenos visuais a
classificação de Peirce dos signos em relação ao objeto, Eco assume sem maiores
preâmbulos o estatuto sígnico (enquanto parte de uma linguagem codificada) dos
símbolos e índices, porém no caso dos ícones esta definição é mais problemática. São
4 SONESSON, Göran. “Pictorial semiotics” – The Internet Semiotics Encyclopaedia.
16
ícones, para Peirce, “aqueles signos que têm certa nativa semelhança com o objeto a
que se reportam”, incluindo aí os diagramas, que “reproduzem a forma das relações
reais a que se referem”. A dificuldade é identificar quais seriam estas propriedades ou
aspectos que remetem ao objeto representado – e Eco os busca analisando um anúncio
impresso de cerveja: Na página não há cerveja, não há vidro, não há película úmida e gelada. Mas na realidade,
quando vejo o copo de cerveja (velha questão psicológica já solucionada pela História da
Filosofia), percebo cerveja, vidro e gelo, mas não os “sinto”: sinto, isso sim, alguns estímulos
visuais, cores, relações espaciais, incidências de luz, etc. (ainda que já coordenados num
determinado campo perceptivo), e os coordeno (numa complexa operação transativa) até gerar-se
uma estrutura percebida que, baseada em experiências adquiridas, provoca uma série de
sinestesias e me permite pensar em “cerveja gelada num copo”. (p.101)
Uma operação semelhante acontece com o desenho, porém os dados da
experiência são selecionados e estruturados com base em técnicas apreendidas e códigos
bem definidos. Já no caso da foto publicitária “a relação código-mensagem não diz
respeito à natureza do signo icônico, e sim à própria dinâmica da percepção que, no
limite, pode ser vista como um fato de comunicação, como um processo que só se gera
quando, com base em aprendizagem, conferiu significado a determinados estímulos e
não a outros”. O autor conclui que os signos icônicos reproduzem algumas condições da
percepção comum, portanto seu significado é o mesmo da experiência real denotada
pelo signo.
Tal problema, diz Eco, foge à alçada de uma Semiologia das comunicações
visuais. O que lhe concerne é “saber como é que nos pode parecer igual às coisas um
signo gráfico ou fotográfico sem nenhum elemento material em comum com essas
coisas” (p.103), quais são e como ocorrem as relações envolvidas numa comunicação,
por suportes estranhos, de formas relacionais iguais. A rejeição inicial de Eco aos
ícones se torna, então, uma preocupação com a iconicidade num sentido bastante
semelhante ao delineado por Peirce. Se não há um código estruturado que rege as
escolhas perceptivas, estas escolhas nem por isso se baseiam em propriedades
absolutamente naturais ou intuitivas; assim, a produção e recepção de obras que
exploram a percepção de analogias e semelhanças podem ser considerados fenômenos
semiósicos.
O autor explora este fenômeno, esclarecendo que os aspectos pertinentes da
percepção do objeto a serem reproduzidos graficamente devem ser selecionadas
segundo “códigos de reconhecimento”; e o signo icônico depende desta seleção para ser
17
recognoscível: “existe, portanto, um código icônico que estabelece a equivalência entre
um determinado signo gráfico e um traço pertinente do código de
reconhecimento”(p.105). Uma vez considerados os esquemas gráficos como
dependentes das propriedades relacionais dos esquemas mentais, o princípio
convencional se aplica também aos signos fotográficos, pois “o fato de que uma
diferença de tom reproduz uma diferença de absorção de luz por parte de uma superfície
opaca, ainda uma vez depende de uma convenção” (107). Eco utiliza alguns exemplos
levantados por Gombrich em Arte e Ilusão, como o quadro de Constable que teria sido
“inspirado por uma poética de representação científica da realidade” e hoje nos parece
de um realismo fotográfico, mas na época foi encarado como “um arbítrio bizarro”. Isto
se explica, segundo Eco, por que se formou em nós um “sistema de expectativas
codificado”, o qual nos leva a entender uma dada solução técnica como representação
fiel da experiência natural.
A diferença principal deste código icônico para o código lingüístico é a
impossibilidade de distinguirmos elementos “discretos e catalogáveis de uma vez por
todas”, já que os traços pertinentes têm sentidos variáveis de acordo com os contextos e
estilos empregados. Eco ressalta que, ainda que haja significação em imagens
analógicas, ela acontece com base em códigos fracos, pouco definidos e mutáveis,
enquanto a língua seria um código forte. Sua crítica, enfim, é contra o reconhecimento
da motivação, iconicidade ou analogicidade como solução para descrever os fenômenos
visuais, baseando-se mais no senso comum que em categorias científicas analisáveis.
Assumida a validade da significação visual, Eco elabora uma complexa
classificação de códigos e tipos, buscando abarcar todos os tipos de comunicação visual,
que não seria pertinente apresentar aqui. O autor elabora uma nova crítica do iconismo
no Tratado Geral de Semiótica (1975), enfatizando novamente a convencionalidade das
relações não-verbais, sendo que nesta teoria “pode-se admitir que os signos ditos
icônicos são CULTURALMENTE CODIFICADOS sem necessariamente implicar que são
ARBITRARIAMENTE CORRELATOS ao seu conteúdo e que a sua expressão seja analisável
de modo DISCRETO” (p.170).
O problema é que a noção de iconismo, em Eco, é genérica ao extremo e chega a
transcender o campo da semiótica, mesmo se considerada como uma teoria que abarca
todos os tipos de sentido. A impressão que se tem é que os signos figurativos produzem
sentido apesar de sua iconicidade, e não através dela. Vide sua definição de código
icônico como “sistema que faz corresponder a um sistema de veículos gráficos unidades
18
perceptivas e culturais codificadas, ou unidades pertinentes de um sistema semântico
que depende de uma codificação anterior da experiência perceptiva” (p.183).
Este conflito leva Eco a questionar não só a noção de ícone, como também a de
“signo”, ao menos quando identificada com uma unidade ou uma correlação fixa.
Assim, “o que se individuou no curso desta longa crítica do iconismo não são mais tipos
de signos, mas MODOS DE PRODUZIR FUNÇÕES SÍGNICAS. O projeto de uma tipologia dos
signos sempre foi equivocado e por isso tem levado a tantas incongruências.” (p.190)
Apesar do reconhecimento deste equívoco – e não apenas por Eco – as teorias de
inspiração semiótica continuariam a tratar o problema da significação em termos
tipológicos, como veremos a seguir no debate sobre a natureza da fotografia.
19
3. PERCEPÇÃO E INTERPRETAÇÃO DE FOTOGRAFIAS
Se quisermos compreender o que constitui a originalidade da imagem fotográfica,
devemos obrigatoriamente ver o processo bem mais do que o produto e isso num
sentido extensivo: devemos encarregar-nos não apenas, no nível mais elementar,
das modalidades técnicas de constituição da imagem (a impressão luminosa), mas
igualmente, por uma extensão progressiva, do conjunto dos dados que definem, em
todos os níveis, a relação desta com sua situação referencial, tanto no momento da
produção (relação com o referente e com o sujeito-operador: o gesto do olhar sobre
o objeto: o momento da ‘tomada’) quanto no da recepção (relação com o sujeito-
espectador: o gesto do olhar sobre o signo: o momento da retomada – da surpresa
ou do equívoco).
Philippe Dubois
Perceber fotografias implica estar inserido em um jogo de sentidos, no qual interagem
não apenas um sujeito e um objeto, mas um sistema de regras culturais e subjetivas.
Estas relações não se definem no momento da produção, como é geralmente destacado
por teóricos preocupados com a “natureza” ou “essência” da fotografia, mas
fundamentalmente na recepção. Tendo como base as obras de Schaeffer (1987), Dubois
(1983) e Machado (1984), tentaremos neste capítulo identificar o que dizem estes
teóricos sobre a percepção e interpretação de fotografias, criticando a “abordagem do
dispositivo”, em defesa de uma teorização centrada na atividade do espectador.
A busca de uma teoria específica da fotografia tem levado a uma valorização
excessiva dos aspectos técnicos e materiais, reduzindo a significação a mero efeito do
ato de produção, sendo o produto (a imagem) um mediador desta relação.
Defenderemos aqui a centralidade do ato de percepção enquanto organizador dos
estímulos recebidos do mundo material e principal responsável pelos significados que
uma imagem pode adquirir. No caso da fotografia, a percepção de seus caracteres
propriamente fotográficos se deve mais a conhecimentos prévios do espectador, tais
como relações de analogia e proporção, que a procedimentos de captação e outras
propriedades do meio.
Índice, ícone ou símbolo? A tradicional classificação de Charles S. Peirce dos
signos em relação ao objeto tem rendido polêmicas sobre qual seria a “essência” da
fotografia, sua característica distintiva em relação a outras formas significantes. Estas
classificações geralmente partem de uma análise que toma o próprio meio enquanto
20
produtor de sentidos, desempenhando um papel de regulador do jogo no qual se
envolvem as instâncias de emissão e recepção da “mensagem”. Sem entrar no mérito
desta discussão na obra de Peirce, apresentaremos aqui os argumentos desenvolvidos
com base, principalmente, na diferenciação entre índice e ícone, assim como possíveis
articulações e desdobramentos.
Definindo-se como um pesquisador pós-estruturalista, Philippe Dubois (1983)
delineia um histórico dos discursos acerca da fotografia com base nesta tríade no seu
primeiro capítulo, Da verossimilhança ao índice. Esta história passa pela conceituação
da fotografia como “espelho do real” (o discurso da mímese, ou do ícone), em seguida
como “transformação do real” (o discurso do código e da desconstrução, identificado
com o regime simbólico) e por fim como “traço do real” (o discurso do índice e da
referência), estando o autor inserido nesta última tendência. O primeiro momento seria
marcado por um deslumbramento com a nova técnica: via-se apenas a eficácia
representativa da fotografia, seja para atacá-la ou para defendê-la. No segundo, buscava-
se desconstruir esta noção primária, apontando, do ponto de vista técnico ou ideológico,
os elementos convencionais e codificados da foto. Por fim, um momento de retorno ao
realismo, não do ponto de vista “ingênuo” da imitação, mas buscando as causas e
conseqüências da vinculação material com o objeto fotografado.
A escolha de Dubois por este terceiro discurso se baseia num princípio
constitutivo que estaria presente tanto no ato de produção como na percepção, e cuja
ausência exclui a possibilidade de existência foto: a impressão luminosa sobre uma
superfície sensível. Admitindo que mesmo no processo de produção fotográfica entram
gestos culturais, dependentes de escolhas humanas, o autor procura destacar as
conseqüências teóricas da exposição, o instante único de pura indicialidade, no qual “a
foto pode ser considerada como um puro ato-traço”, pois “o homem não intervém e não
pode intervir sob a pena de mudar o caráter fundamental da fotografia” (p.51).
Dubois convoca em defesa do seu argumento o próprio Peirce, que utiliza o caso
da fotografia instantânea como exemplo de “signos por conexão física [índice]” e assim,
ultrapassando o “obstáculo epistemológico que é a questão da mímese”, abre caminho
para “uma verdadeira análise da condição da imagem fotográfica”. O autor cita a
caracterização de Peirce para a relação que os signos indiciais mantêm com seu objeto
referencial segundo um princípio quádruplo, de conexão física, de singularidade, de
designação e de atestação. E deduz que “Por essas qualidades da imagem indicial, o
que se destaca é finalmente a dimensão pragmática da fotografia (por oposição à
21
semântica): está na lógica dessas concepções considerar que as fotografias propriamente
ditas quase não têm significado nelas mesmas: seu sentido lhes é exterior, é
essencialmente determinado por sua relação efetiva com seu objeto e com sua situação
de enunciação (...).”
Em suma, para Dubois a foto “é em primeiro lugar índice. Só depois ela pode
tornar-se parecida (ícone) e adquirir sentido (símbolo)”. Ao colocar a dinâmica de
significação como uma ordem cronológica, o autor parece confundir as instâncias de
produção e recepção, impondo a esta os mecanismos daquela. O que o espectador
percebe primeiro numa foto (se tentarmos também analisar cronologicamente) não tem
qualquer relação com o que foi produzido primeiro – ao contrário, se buscamos sua
origem, esta busca será necessariamente através dos aspectos visíveis, ou icônicos (no
sentido usado por Eco) que lhe são próprios. Invertendo o argumento de Dubois,
diríamos que a foto deve ser percebida enquanto aparência (ou semelhança) para então
poder se referir a um contexto externo, seja ele material ou cultural.
No capítulo seguinte, o autor detalha o conceito de ato fotográfico e explora as
conseqüências da escolha pelo paradigma indicial. Sua proposta é “atingir ‘a fotografia’
no sentido de um dispositivo teórico, o fotográfico, se quisermos, mas numa apreensão
mais ampla do que quando se fala do ‘poético’ com relação à poesia. Aqui vai se tratar
de conceber esse ‘fotográfico’ como uma categoria que não é tanto estética, semiótica
ou histórica quando de imediato e fundamentalmente epistêmica, uma verdadeira
categoria de pensamento, absolutamente singular e que introduz a uma relação
específica com os signos, o tempo, o espaço, o real, o sujeito, o ser e o fazer.” (p.59-60)
Esta categoria tem como fundamento justamente a indicialidade, a conexão causal como
fundamento da imagem, a partir do conceito de “gênese automática” elaborado por
André Bazin (1945) e aplicado à tipologia de Peirce.
Esta categoria, parcamente definida por Dubois, é retomada por Etienne Samain
ao organizar uma coletânea de ensaios sobre a fotografia (O fotográfico, 1998). Samain
identifica “o fotográfico” como parte de uma “visualidade originária e constitutiva do
ser humano”, que antecede a escrita e a oralidade, primeiramente na forma do que
costumamos chamar de “imagem mental”, até se materializar na fotografia. O autor
defende então que “o fotográfico representa nossa visualidade primeira que, quase que
submersa, durante séculos, nas águas da oralidade e da escrita, remontou, muito
recentemente, à superfície, dando-nos a ver o mundo através de uma mediação técnica
suplementar: o próprio dispositivo fotográfico e o signo visual singular que ele
22
proporciona”(p.13). Os artigos selecionados, no entanto, tratam muito pouco do aspecto
semiótico, privilegiando as abordagens antropológicas, históricas e tecnológicas.
Já Jean-Marie Schaeffer (1987) especifica para a fotografia uma posição
intermediária entre os signos peirceanos, que ele chama de ícone indicial. Suas
referências são também ligadas à semiologia, especialmente Barthes, Dubois e Henri
Vanlier5. Apesar de concordar com a tese da natureza indicial da fotografia, o autor
critica os teóricos que “defendem seu caráter indicial e não representativo”, por
considerar excessiva a importância atribuída ao fotograma (resultado da impressão
direta de um objeto sobre o papel fotográfico). Schaeffer sustenta que uma análise da
imagem fotográfica canônica não pode dispensar considerações sobre o dispositivo
ótico e suas decorrências, como a perspectiva e a focalização: “para que seja utilizada
pelo homem como informação visual sobre objetos ou estados de fato intramundanos,
deve ser ordenada em analogia com o princípio que a organiza na visão fisiológica”.
Assim, ainda que considerando o mecanismo como elemento central na análise do
sentido em fotografias, o autor introduz a necessidade da organização visual para sua
produção.
Para Schaeffer, portanto, a indicialidade e a iconicidade estão intimamente
ligadas quando se fala em fotografia, ainda que os dois conceitos não se misturem.
Enquanto a indicialidade é uma condição de existência material, a iconicidade é uma
condição da existência perceptual das imagens produzidas. Sua intenção é “estudar
como essa especificidade físico-química é levada em conta (ou não) quanto à imagem
como signo analógico” (p.26) – ainda que esta especificidade tome boa parte do livro.
Um ponto interessante em Schaeffer é a existência de conhecimentos prévios
como um aspecto que define pragmaticamente a percepção da fotografia: “além de
conhecimento do mundo, é necessário ainda ter o conhecimento do arché: uma
fotografia funciona como uma imagem indicial, contanto que se saiba que se trata de
uma fotografia e o que esse fato implica.” (p.38). A impressão, definida como o registro
de traços visíveis, constitui o arché da imagem fotográfica, seu elemento único e
essencial.
O autor diferencia este conhecimento de um código, utilizando como exemplos
alguns experimentos antropológicos que buscam provar a codificação de fotografias e
filmes, mostrando as reações confusas de indivíduos “selvagens” diante das imagens
apresentadas. Os relatos destes experimentos, segundo Schaeffer provam justamente o
5 Filosofia da Fotografia (1981)
23
contrário do que defendem seus autores: se há algum reconhecimento de objetos da
realidade sensível, este é um sinal de que existe um grau de percepção analógico
(icônico) independente do conhecimento lingüístico. Seria arriscado, porém, assumir
este conhecimento como algo natural, uma vez que não é analisada a existência de
imagens pictóricas ou qualquer outro tipo de representação nestas tribos.
Ao levantar a necessidade de um conhecimento prévio, o autor – ainda que
demasiadamente preocupado com características físico-químicas, tais como o fluxo
fotônico (a passagem da luz pelo dispositivo) – abre uma brecha para pensarmos em
uma recepção especificamente fotográfica. Esta percepção – que nos remete à visão
própria das fotografias, defendida por Wollheim6 – seria caracterizada pelo
remetimento a formas analógicas e impregnantes reais. Trata-se, segundo Schaeffer, de
“um conhecimento prático difuso”, que relaciona certos gestos específicos a resultados
específicos, resultado de uma participação (ainda que longínqua) no funcionamento da
câmera fotográfica. O arché, ressalta ele, não é inferido mas pressuposto.
Apresentadas as características fundamentais e constitutivas da imagem
fotográfica, o terceiro capítulo (A imagem normatizada) é dedicado às suas funções
comunicacionais, precedidas de algumas observações sobre as “constelações do
conhecimento lateral”, que influenciam os atos de recepção individuais no sentido de
torná-los cada vez mais redundantes. Esta ressalva visa apenas reforçar a
impossibilidade de uma padronização da recepção na forma de um código. Já as regras
normativas são de ordem contextual, motivadas pelas estratégias comunicacionais a que
imagem se submete. A classificação de Schaeffer compreende oito tipos de estratégia: o
traço, o protocolo de experiência, a descrição, o testemunho, a recordação, a
rememoração, a apresentação e a mostração. A função mais comum, ao menos no
jornalismo, é a de testemunho, que implica “o agenciamento de uma imagem e de uma
mensagem para-icônica, que é, pelo menos em parte, narrativo” (p.125). O arché serve
como “garantia empírica” de uma “identificação referencial específica” – é o que
garante à imagem o poder de tornar-se “falante”, ou seja, inserir-se na rede semiótica
adequada à sua completude. No entanto, para Schaeffer isto não se deve ao signo
fotográfico em si, mas “ao fato de que a ‘realidade’ impressa já é uma ‘imagem interior’
institucionalizada”.... se transpusermos essa estabilidade hermenêutica para o nível da gênese fotográfica, logo, se a
considerarmos como norma criadora, condenamos a imagem a funções puramente repetitivas,
pois, para poder ser a manifestação de uma intenção hermenêutica precisa, a imagem deve ser
6 Ver-em, ver-como e a representação pictórica – A arte e seus objetos, 1994.
24
legível e, para ser legível, ela não deve fazer nada mais do que reproduzir os significados visuais
estereotipados que sejam reconhecíveis. Talvez um dia nos espantemos com a nossa obsessão
pelo sentido, que nos leva a desprezar todo ato (e todo resultado do ato) que não possa se
converter em mais-valia semântica e, mais amplamente, comunicacional. (p.137)
Outro ponto importante para Schaeffer é o estatuto artístico da fotografia,
caracterizada neste sentido como uma imagem precária. A questão da arte diferencia-se
das estratégias comunicacionais, pois designa um estado pragmático no qual a imagem
vale como tal, pelo seu estatuto fotográfico. Esta precariedade não é equivalente a um
estatuto não canônico, é uma propriedade intrínseca à arte fotográfica – deve-se à
“ausência de congruência entre uma prática específica e a instituição desses paradigmas
estéticos”, como comprova a diversidade das coleções fotográficas de museu (p.142).
As características de ordenamento da visão através do dispositivo ótico são as
mais valorizadas por Arlindo Machado em A ilusão especular (1984), ao criticar os
discursos que tratam a fotografia como “espelho do mundo”, atribuindo-lhe um poder
revelatório. Para Machado a fotografia é essencialmente um signo construído segundo
certos códigos, elaborados por uma classe dominante e firmado sócio-culturalmente
como a forma mais realista, mais correta, de representação do real. Colocando-se
duramente contra o realismo fotográfico, associado principalmente a Barthes, o autor se
baseia nas concepções marxistas de distinção entre a aparência do mundo e a realidade: A realidade não é essa coisa que nos é dada pronta e destinada, impressa de forma imutável nos
objetos do mundo: é uma verdade que advém e como tal precisa ser intuída, analisada e
produzida. Nós seríamos incapazes de registrar uma realidade se não pudéssemos ao mesmo
tempo criá-la, destruí-la, deformá-la, modificá-la: a ação humana é ativa e por isso as nossas
representações tomam a forma ao mesmo tempo de um reflexo e refração. A fotografia, portanto,
não pode ser o registro puro e simples de uma imanência do objeto: como produto humano, ela
cria também com esses dados luminosos uma realidade que não existe fora dela, nem antes dela,
mas precisamente nela. (p.40)
O signo fotográfico, segundo Machado, tem na afirmação de uma suposta
objetividade sua maior força, tendo como aspecto fundador a perspectiva geométrica – o
aspecto simbólico, convencional, é tão importante na fotografia quanto na pintura,
sendo que na fotografia a convencionalidade está presente já no mecanismo gerador da
imagem e, portanto, indissociável do resultado. As fotos “canônicas” buscam sempre
ocultar a presença do sujeito que as realiza, apresentando-se como objetivas enquanto
mostram, inevitavelmente, um ponto de vista arbitrário. As iniciativas consideradas pelo
25
autor como louváveis, no plano da realização, são justamente as que buscam
“denunciar” a codificação da fotografia, ressaltando-lhe as distorções e contrastes.
O autor destaca alguns elementos da fotografia que atestariam seu caráter
cultural e motivado, como os recortes espacial e temporal, o ângulo de tomada e a
profundidade de campo. Estes aspectos, ressalta Machado, poderiam ser utilizados
positivamente, como forma de expandir os limites da percepção, fazendo aflorar uma
dimensão invisível ou inconsciente da experiência óptica. Mas o uso nos meios de
comunicação visam em geral o clichê, a repetição de modelos herdados da pintura
figurativa, enquanto as imagens inusitadas e perturbadoras (muitas das quais resultam
do acaso) são rejeitadas. Outro elemento, já citado por Barthes como procedimento de
codificação da mensagem fotográfica, é a pose: “para reprimir o inconsciente que pulsa
no obturador da câmera, nós nos petrificamos diante dele, como uma estátua grega ou
renascentista, e forjamos no bronze de nosso próprio corpo a imagem ideal que supomos
ser ou que queremos ser” (p.51) Schaeffer argumenta, a este respeito, que a pose é uma
convenção do comportamento humano, e a fotografia não faz mais que mostrá-lo.
Além de destacar o princípio da camera obscura como decorrente da perspectiva
renascentista – portanto, de uma visão artística e cultural específica – Machado critica o
próprio esforço dos renascentistas de buscar uma representação ilusionista do espaço
com base em leis matemáticas, formuladas pela geometria euclideana. Em especial, o
princípio de analogia deste sistema com a visão fisiológica, que lhe garantiria ser o mais
objetivo, científico e fiel à percepção humana (ou ao menos à visão monocular). Esta
suposta cientificidade esconde uma motivação ideológica: “ela visa instituir a visão
plena de um espaço homogêneo e infinito elaborado por um olho/sujeito, tal como na
filosofia idealista a plenitude e a homogeneidade do Ser é dada por um sujeito
transcendental”(p.73).
Ainda que aparentemente contrário à tese de Dubois e Schaeffer, a argumentação
de Machado em prol da codificação da imagem fotográfica reforça a essência do que
chamamos previamente de “argumento do dispositivo”: a perspectiva aqui é uma
decorrência técnica, originada no aparelho, não uma ferramenta que nos possibilite
alguma compreensão de seus modos simbólicos de funcionamento. O espectador é
invariavelmente vítima do poder formador da câmera, independente de quaisquer
intenções “progressistas” do fotógrafo ou mesmo do conteúdo da imagem.
Uma das conseqüências da construção em perspectiva é o que Machado chama
de transferência de subjetividade, “a suspensão provisória do nosso próprio olhar para
26
colocá-lo à mercê de um outro que dirige o nosso” (p.95). Com isso o espectador da
imagem, ao entrar no espaço simbólico da representação, se coloca como observador da
cena – daí a sensação de que os modelos nos olham. Esta substituição do olhar
individual do espectador por um olhar “coisificado”, o da câmera, seria um mecanismo
de alienação próprio da fotografia. O autor parece desconsiderar que este mecanismo
antecede a Renascência e pode ser encontrado, por exemplo, no teatro.
A importância (relativa) das classificações
Permeando toda esta compulsão classificatória dos semioticistas, podemos
encontrar algumas chaves para compreender melhor o poder da fotografia – o que nos
torna, como espectadores, tão ligados a ela. O que nos parece mais relevante não é se “a
fotografia” é um índice, um ícone ou um símbolo, mas a possibilidade de objetos
resultantes deste processo, em condições diversas, funcionarem em esquemas de
significação das mais variadas formas. Ao invés de buscar um rótulo fixo para toda uma
classe de figuras, uma investigação das formas de significação deveria questionar o que
faz uma imagem significar, seja enquanto marca de uma presença física, enquanto
semelhança a um objeto real ou enquanto representação visual de um conceito.
Mas talvez haja neste debate uma questão ainda mais fundamental: por que uma
foto significa? O que a faz servir como referência de um objeto, uma situação ou uma
idéia? Seria devido a propriedades impressas na imagem pelo seu modo de produção, ou
ao sujeito que capta estas propriedades no que elas têm de visível? Como nota
Gombrich em Mirror and map, as questões “mais simples”, as que tratam de atos
fundamentais do ser humano, dificilmente são perguntadas; ao invés isso o tratamento
dado à percepção de fotografias é geralmente em termos do “outro” (a criança, o
selvagem). Estas reações estariam, para o autor, ligadas às informações sobre um objeto
que uma representação oferece ao espectador – sejam elas da ordem figurativa, como
um espelho ou uma foto, ou de uma ordem relacional, como mapas e diagramas.
Nas duas ordens operam mecanismos de identificação que poderíamos chamar
de icônicos, lembrando o conceito de Eco: a iconicidade seria a reprodução de certas
condições da percepção em meios distintos. Deslocando a questão das propriedades do
objeto para propriedades relacionais percebidas, podemos pensar a significação de
fotografias sem nos atermos a códigos e convenções da cultura, partindo de
conhecimentos esquemáticos muito simples, ainda que difíceis de serem catalogados.
27
A função icônica é a mais facilmente percebida pelo espectador médio, não-
especialista, e apesar disso (ou justamente por isso) a mais rejeitada pelos teóricos.
Baseia-se numa relação de semelhança entre características visíveis, tais como formas,
cores, tons e proporções, permitindo uma analogia entre a imagem e seu referente. Tal
relação nos parece óbvia que se torna difícil não cair num discurso tautológico: a foto é
semelhante por que a vemos assim, e o fato de vermos assim a faz semelhante. Uma das
saídas possíveis é buscar a raiz da semelhança na poética da imagem: a foto é
semelhante ao objeto por que resulta da impressão dos raios luminosos emitidos pelo
mesmo, se reconhecemos suas formas é por que os raios foram corretamente
apreendidos pelo mecanismo.
Raymond Bellour7 coloca o momento histórico de apropriação das técnicas
fotográficas como o ápice de uma busca pela analogia presente não apenas na história
da arte, mas em toda a nossa cultura perceptiva. Qualquer impressão de analogia,
segundo o autor, só pode ser natural por ser construída, tendo como fundamento a
fisiologia da visão. O que marca este momento é que a impressão de analogia nunca
havia sido objeto de uma construção tão deliberada, destacando em outras formas
visuais uma identidade entre a obra e o mundo visual – ou seja, a própria percepção
passa a ser uma fonte da arte, seja confirmando a visão científica ou reivindicando a
autonomia da expressão artística. A arte teria então uma nova função, à qual se prestam
os mecanismos técnicos: fazer uma síntese do mundo. O que denominamos “realidade” do mundo refere-se, assim, igualmente às imagens que se
multiplicam. Elas parecem emanar daí, visto que tomamos então como referência um mundo
natural e divino que se acredita estar sendo visto diretamente. Mas é o olho que assegura o elo
entre o mundo e suas imagens, visto que é ele que os percebe. Ele confirma assim sua distinção,
desde que elas daí se depreendam de forma suficiente e se mostrem bastante cativantes para que
a questão de sua natureza se coloque (ou se encontre em termos novos). (p.217)
O argumento de Bellour visa o recente advento das imagens de síntese,
resultante de um movimento de “dupla hélice” que compreende duas modalidades que
ameaçam e retrabalham a analogia: a primeira diz respeito à analogia fotográfica, “a
forma pela qual o mundo, os objetos e os corpos parecem aí definidos (sempre por uma
parte, e mais ou menos) por referência à visão natural, um certo estado fixado da visão
natural, que implica semelhança e reconhecimento” (p.221); a segunda modalidade diz
respeito à reprodução do movimento. A problemática colocada pela fotografia, para
7 A dupla hélice – Imagem Máquina, 1993.
28
Bellour, é a condensação do movimento, que constitui a “deposição do real” nas
imagens.
Uma outra forma de tratar este real é através da função indicial, que diz respeito
a uma conexão física, causal, do significante com um referente externo. O signo
fotográfico atua como uma marca, um traço, uma amostra da presença de outra coisa; é
também um indicador, uma pista, aponta para algo além do visível. Os defensores desta
visão remetem ao último texto de Barthes, A câmara clara (1980). Como diz Barthes,
ao mesmo tempo em que demonstra, designa algo (isso é isso, é tal!), a foto não diz
nada, “ela aponta com o dedo um certo vis-à-vis e não pode sair dessa pura linguagem
dêictica”. Tal foto não se distingue de seu referente, estão colados um ao outro como
“dualidades que podemos conceber, mas não perceber”. Para Barthes não vemos a foto
em si (isto é, o código), apenas o que ela representa.
De forma menos apaixonada, Dubois também defende que a foto precisa antes
de tudo ser índice, para depois ser semelhante ou ter sentido; a indicialidade seria a
única coisa realmente essencial à fotografia. O autor chega mesmo a identificar uma
“tendência indiciária” cada vez mais forte na arte moderna, ligada à própria gênese da
atividade pictórica – num capítulo curiosamente chamado Histórias de sombra e
mitologias de espelhos. Curioso por que, em primeiro lugar, sombras e espelhos são
formas visuais indiscutivelmente ligadas à presença física de um modelo, porém de
valor sígnico duvidoso, uma vez que não se constituem como marcas – sua presença é
sempre concomitante e indissociável ao referente. Segundo (e mais grave), por que aí se
observa uma inversão do mecanismo evolutivo que a história da arte firmou para as
representações: seguindo o argumento de Dubois, diríamos que a percepção decorre das
invenções técnicas e não que as técnicas foram utilizadas para satisfazer uma demanda
da percepção.
O conhecimento como princípio da percepção também norteia a argumentação
de Sonesson no que se refere ao signo fotográfico, no entanto defendendo sua natureza
icônica: “só podemos explicar a importância do motivo quando realizamos que um
traço, no sentido mais central do termo, contém aspectos não apenas indiciais como
icônicos, e se começamos admitindo que a fotografia é um tipo de signo pictórico, e que
todos estes signos são primordialmente fundados na ilusão de similaridade”8. Ou seja, a
indexicalidade para Sonesson é uma questão secundária, da qual não dependemos para
capturar o sentido da imagem.
8 Photography – The Internet Encyclopaedia of Semiotics.
29
Outra forma de significação da fotografia seria o que podemos chamar de função
simbólica, a correspondência com idéias e conceitos firmada segundo certas regras ou
convenções. Como qualquer produto da cultura, a fotografia passou por uma
canonização, que veio a gerar uma tipologia variável de acordo com o uso a que se
destinam. Há fotos documentais, jornalísticas, publicitárias, científicas, artísticas,
familiares e até – dizem alguns – digitais. Cada estilo adota certos códigos, certas regras
criadas e convencionalizadas socialmente. Um exemplo clássico dessa visão é a análise
de Barthes para o anúncio da Panzani – mas o que existe de realmente fotográfico na
relação entre as cores dos legumes e a noção de italianidade transmitida pela foto? Até
que ponto este exemplo ilustra a existência de uma codificação visual?
Para alguns autores, a utilização da perspectiva ortogonal, criada na Renascença
a partir do mecanismo de camera obscura, já seria uma prova da convencionalidade da
fotografia e da sua ligação com uma visão artística e ideológica particular. Este é o
ponto central da argumentação de Arlindo Machado em A ilusão especular, no qual ele
busca combater os que vêem na fotografia um “espelho do mundo” (tomando como
adversários alguns defensores da teoria do índice) mostrando o que há de construído e
codificado na produção fotográfica. Sua consolidação como principal método de
representação da atualidade, do qual derivam o cinema e o vídeo, obedeceria a uma
estratégia de imposição da visão (tanto pictórica como social) particular e instantânea.
A perspectiva é um tema inesgotável para a teoria da arte. Uma das maiores
referências no assunto, Erwin Panofsky no seu célebre A perspectiva como forma
simbólica sustenta que “muitas das características psicofisiológicas da percepção estão
fora da representação: há primeiramente o fato de que a imagem visual não é a mesma
que se projeta fisicamente no fundo da retina; por outro lado, a percepção se realiza num
campo que resulta do movimento constante dos olhos; finalmente, a superfície da retina,
na qual encontramos o modelo da representação, é côncava, ao passo que o quadro é
plano.” Parece-nos perfeitamente plausível aceitar a perspectiva como um dos muitos
modos de representação possíveis, não a mais verdadeira nem a mais fiel à percepção
direta. Mas, por algum motivo, este modo tornou-se o padrão de similaridade para
qualquer tipo de representação, do qual a fotografia pode ser vista como mera
conseqüência.
Ao pensar a convencionalidade das imagens fotográficas, estes autores parecem
desconsiderar a pregnância deste padrão e sua importância na percepção das pessoas
(inclusive a deles mesmos). Por mais que saibamos sobre os métodos de construção
30
geométrica, suas causas e implicações, nossa reação diante das obras é invariavelmente
a de deixarmo-nos seduzir e iludir, entrarmos naquele ambiente. Com ou sem
consciência, buscamos algum grau de “realidade” nas representações, na mesma medida
em que a criamos. Considerar o mecanismo originário como definidor do processo
perceptivo equivale a colocar o espectador como mero receptor passivo, à mercê do que
a obra lhe diz, restringindo radicalmente a capacidade criativa da percepção humana.
A atividade do espectador
No que se refere ao uso social da fotografia, a natureza indicial é talvez a mais
justificada, seja pela validação de argumentos jurídicos, pela sua exigência em
documentos de identificação, de certa forma até pelas fotos de viagem (eu estive lá, eu
fiz isso). Como nota Véron, podemos dizer que a foto é “o que resta” de um objeto ou
uma cena, mas “este ‘resta’ vai se historicizar e se socializar progressivamente, sob a
forma de uma multiplicidade de operações destinadas a gerar as articulações entre
espaços privados e espaços públicos, em um momento crucial da construção do
indivíduo da modernidade”.
Acontece que o noema de Barthes, como nos lembra Véron, é um feito técnico,
cujo sentido se esgota nas fotos particulares. Quanto se trata de fotos midiáticas –
qualquer que seja seu suporte – a circulação pública das mensagens introduz novos
sentidos à sua percepção, sem contudo descaracterizá-las como fotografias. Mesmo no
caso dos álbuns de família, entram em jogo questões que nada têm de fotográficas.
A questão fundamental, em se tratando de uma pesquisa sobre significação, é
como ela acontece para o espectador, ainda que inserido numa dinâmica cultural. Seria a
interpretação de uma fotografia como índice dependente apenas a conhecimentos do
método de produção da imagem? A similaridade dos aspectos visuais e plásticos da
imagem com outros aspectos visíveis na percepção comum, ou mesmo em outros tipos
de representação, não formaria uma parte considerável dos conhecimentos necessários a
este reconhecimento? E no momento de apreensão da imagem como parte de uma obra,
tenha ela um caráter predominante artístico ou informativo, seria o aspecto indicial da
foto necessariamente significativo?
Se o caráter indicial das representações não age isoladamente na fotografia,
tampouco é exclusivo desta. No caso das obras dos mestres da pintura, seu valor
artístico se deve à perpetuação dos traços impressos pelo artista como uma marca única,
31
que Walter Benjamin denomina de aura.9 Ameaçada pela reprodutibilidade técnica da
obra de arte, as fotografias (em sua utilização caseira) parecem manter uma espécie de
aura moderna, resistente à banalização do sentido das obras feitas para circulação
midiática, como um culto quase religioso que a humanidade dedica a estas obras. Em fotografia, o valor de exibição começa a deslocar o valor de culto ao longo de toda a linha.
Mas o valor de culto não dá passagem sem resistência. Ele se abriga em uma última trincheira: a
fisionomia humana. Não é acidente que o retrato tenha sido o ponto focal do início da fotografia.
O culto da lembrança de pessoas queridas, ausentes ou mortas, oferece uma recusa final do valor
de culto na figura. Pela última vez a aura emana das primeiras fotografias na expressão fugaz da
face humana. É isto que constitui sua melancolia e incomparável beleza. Mas à medida que o
homem se distancia da imagem fotográfica, o valor de exibição pela primeira vez mostra sua
superioridade em relação ao valor ritual.
Uma teoria da comunicação visual deveria então considerar as funções que uma
fotografia (ou qualquer outra representação) pode adquirir, tendo como referencial a
visão do espectador comum e sua capacidade não apenas de captar o que foi indicado na
obra pelo autor (que poderíamos chamar de dimensão poética), como de recriar a
própria obra a partir de suas propriedades expressivas.
Um dos exemplos que poderiam ser aproveitados nas teorizações da área é a
análise que Gombrich faz dos afrescos, murais dispostos nas paredes dos monumentos
medievais que, apesar da distância histórica, têm finalidades muito semelhantes às
exercidas atualmente pelas fotografias nos meios de comunicação.10 O argumento
central de Gombrich neste artigo é que, na história da produção imagética, “a forma
segue a função” (no original, form follows function), ou “o fim determina os meios”.
Este princípio rege não apenas a história da arte, como toda a produção visual que
conhecemos – e corre o risco de ser ignorado pelo pesquisador preocupado apenas com
os meios.
9 A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, 1935. 10 Paintings on walls: means and ends in the history of fresco painting - The uses of images, 1999.
32
4. MÚSICA URBANA E NARRATIVA FOTOGRÁFICA
A fotografia também inventa seus restos ou pedaços de cidades no pormenor dos
enquadramentos de ângulos diversos, invisíveis longe da objetiva. ...Ela repete
mecanicamente o que jamais poderá repetir-se existencialmente (Barthes). Opõe ao
seu referente outro cenário, outra cidade, indiferente ao que entendemos como real.
Almandrade
4.1 Comentários sobre a exposição
Na exposição Música Urbana, realizada por Aristides Alves em 2001, vemos
claramente expresso o potencial das fotografias de criar narrativas visuais, independente
de legendas e outros textos complementares. Como presenças textuais, os haicais de
Carlos Verçosa servem como uma sugestão paralela de olhar poético, sem explicar ou
ilustrar as imagens. Ainda assim, uma rápida leitura dos poemas pode nos indicar
também uma chave de “leitura” das fotos: na maior parte dos versos prevalecem os
verbos, sugerindo quase sempre ações, mais que imagens: “o sol mergulha”, “o tempo
voa”, “cresço e apareço” etc.
Da mesma forma, ao observar as fotos é difícil fugir da sensação de movimento,
como se cada uma se transformasse em uma breve cena. Os meninos que pulam do píer
ao pôr do sol (foto 06), por exemplo, parecem instantes sucessivos de um mesmo
mergulho cíclico, interminável, assim como a sombra da bicicleta ficaria para sempre
dando voltas ao redor da roda pintada no chão (foto 09). O tempo “congelado” da
fotografia se renova, permitindo a reconstrução imaginária de cenas que existiram ou
não, mas nunca se repetem. Ao isolar uma certa configuração visual do seu fluxo
originário, o fotógrafo tem o poder de manipular seu sentido, de modo que ela passa a
remeter a outros fluxos imaginários.
Esta manipulação é utilizada de forma muito sutil por Aristides Alves, deixando
as imagens abertas à imaginação do espectador. As relações que criamos entre os
elementos oferecidos pelas fotos podem ser regidas por leis diversas. Numa delas, os
pássaros do mosaico parecem revoar ao redor dos pedestres na rua, como se espantados
pelo carrinho do vendedor (foto 05). Ou seja, constrói-se uma relação de causalidade,
que seria impossível numa interpretação da foto apenas como impressão do mundo
material.
33
Observamos que, enquanto produção pictórica e re-criação perceptiva, a ação
que estas imagens nos trazem não é propriedade exclusiva de objetos vivos: qualquer
coisa pode agir como personagem. Tal qual os pombos em revoada, a Virgem do asfalto
ganha vida ao ser capturada olhando os pés descalços e flores de papel ao seu lado (foto
04); a silhueta de uma placa vira uma bela moça tomando sol na sacada do prédio (foto
02); a estátua do santo empina uma pipa que, num olhar mais atento, sai das mãos de
um menino (foto 10). Ou o contrário: pessoas reais confundem-se com pinturas, no caso
do homem de terno preto e chapéu, combinando com a figura grafitada na parede (foto
01). E ainda, numa composição mais abstrata, o preto invade o quadro com sua
enxurrada de traços, empurrando o pintor para um canto (foto 03).
Criando uma interação impossível entre objetos animados e inanimados,
Aristides desafia a concepção de fotografia como puro “realismo”, ou impressão do real.
O sentido, aqui, não depende tanto da presença de um objeto em frente à lente (o isso-
foi de Barthes, a foto que não se distingue de seu referente, colados um ao outro como
“dualidades que podemos conceber, mas não perceber”) quanto do que construímos a
partir dos elementos gráficos imprimidos na foto.
O real se ficcionaliza perante o olhar do espectador. As referências geográficas e
históricas não deixam de existir (podemos reconhecer os pássaros de Bel Borba e o
orelhão de Curitiba), ficam apenas em segundo plano, como o cenário daquela narrativa.
Os objetos, por sua vez, tornam-se personagens, um sentido mais experimentado nos
filmes – se há uma faca na cena, por exemplo, o espectador já espera um ato violento.
Como diz Benjamin, “focando nos detalhes escondidos de objetos familiares,
explorando o lugar-comum sob o direcionamento engenhoso da câmera, o filme, por um
lado, expande nossa compreensão das necessidades que regem nossas vidas; por outro
lado, ele consegue nos assegurar de um imenso e inexplorado campo de ação”.11
Como contraponto ao realismo fotográfico, a “codificação” das imagens ou sua
organização mediante um código convencional (tal como textos) aparece
freqüentemente nos escritos específicos sobre este meio. Também esta visão nos parece
pouco apropriada, ao tentarmos encaixar estas imagens como simulacros, “figuras
autônomas que significam as coisas mais que as produzem”, como define Machado
(1984). Ainda que exista uma composição, uma intenção artística, os elementos
sobrepostos nas imagens estão necessariamente ancorados numa realidade perceptível,
oferecidos a um olhar que os organize de modo significativo.
11 A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, seção XIII.
34
Se por um lado, como diz Machado, “todo esforço de elaboração de uma ilusão
de verossimilhança é um trabalho de censura ideológica”, por outro a crítica ideológica
nos fornece poucas ferramentas para lidar com a iconicidade da fotografia, ou o
reconhecimento de determinadas semelhanças visuais. Recolocando as críticas do autor
à “ilusão especular” de outro modo, diríamos que o papel do fotógrafo não seria tanto
construir uma representação a partir de símbolos e convenções pré-determinadas e
definidas pelo próprio uso do aparelho, mas sim captar uma organização existente e
oferecê-la a um espectador igualmente atento, que possa reanimar a imagem imóvel,
interpretando-a.
Do ponto de vista da composição, a repetição de elementos é um aspecto que
contribui para a impressão de unidade, elemento essencial à narrativa. Os dois homens
de chapéu reforçam mutuamente a força visual de suas presenças, destacando-se sobre o
cenário de uma rua comum (foto 01). Se um deles se diferencia por ser, já em estado
natural, uma representação, há um gato ao seu lado que reforça seu estatuto de realidade
“irreal”. A imagem mistura um estilo de cartoon (principalmente pela inscrição “puf!”
atrás do gato) com cinema mudo (pela referência implícita a Carlitos). O punctum desta
foto, para mim12, é o tênis do senhor que anda.
O discurso verbal também se faz presente em uma parede pintada com a
inscrição poética “prazer/da pura percepção/os sentidos/sejam a crítica/da razão” (foto
07). Como no caso do “puf!”, as palavras não têm uma função puramente textual, mas
também pictórica – são também personagens da representação, interagindo com outros
elementos em cena, como os pássados voando no canto superior da tela.
No caso do “banho de sol” na sacada (foto 02), é a repetição de linhas verticais
das casas, convergindo em direção à figura feminina, que lhe confere força, assim como
o contraste da silhueta contra o céu limpo. Este céu, expandindo para cima, dá a
sensação de liberdade, equilibrando com a concentração de elementos arquitetônicos,
“pesados”, na parte inferior. A desproporção da figura no primeiro plano em relação à
igreja é outro elemento que acentua o caráter pictórico, “desrealizado”, desta imagem,
obtido pelo enquadramento que exclui a presença da rua.
A linearidade também acentua o sentido da estátua com a pipa (foto 10), ao
percebermos os elementos em jogo dispostos numa diagonal. Já o formato tomado pelo
mergulho dos meninos no píer (foto 06) é reforçado pela repetição da circularidade no
sol que aparece ao fundo. Os outros meninos, brincando nas dunas (foto 08), fogem dos
12 Considerando a individualidade deste conceito em Barthes, é inevitável o uso de primeira pessoa.
35
padrões geométricos, configurando-se como num mural – figuras soltas, unidas pela
presença no mesmo quadro.
Outro aspecto interessante nas fotos de Música Urbana é a dificuldade de
classificá-las segundo os atuais padrões da produção fotográfica: não são fotografias
jornalísticas no sentido estrito, pois não se relacionam a fatos específicos, mostram
cenas cotidianas e anônimas; tampouco entrariam no rol das belas-artes, já que não
exploram a fundo os aspectos plásticos permitidos pelo meio, não buscam uma
expressividade puramente formal. São fotos simples, sem grandes malabarismos
técnicos. Não chocam, não denunciam, não nos chamam diretamente, mas também não
deixam de surpreender. Seu mérito está no inusitado das cenas e dos elementos que as
compõem, ou melhor, no simples ato de organizar objetos do mundo de um modo tal
que eles passam a atuar em situações que só existem no papel.
O que seria colocar objetos em cena, senão um ato teatral? Analogias entre a
fotografia e o teatro foram traçadas por Barthes – que considera ambos rituais de
Morte13 – e por Alberto Manguel, no seu recente Lendo Imagens: Uma imagem, pintada, esculpida, fotografada, construída e emoldurada é também um palco, um
local para representação. O que o artista põe naquele palco e o que o espectador vê nele como
representação confere à imagem um teor dramático, como que capaz de prolongar sua existência
por meio de uma história cujo começo foi perdido pelo espectador e cujo final o artista não tem
como conhecer. (p.291)
Nesta obra, Manguel parte do princípio de que todas as imagens nos dizem algo
de alguma forma, e reclama ao espectador comum o poder de um tipo especial de leitor
– aquele que não apenas compreende um texto, mas que o cria a partir de elementos
muito simples. Este princípio vale também para narrativas verbais, nas quais o leitor
realiza um trabalho inverso ao do leitor de imagens, ou seja, cria uma ambiência visual
a partir da descrição. Imagem e narrativa, segundo o autor, são aspectos fundadores de
toda experiência humana e se confundem constantemente.
4.2 Narração e visualidade
Uma forma de ligar conceitualmente estes dois aspectos da percepção seria a
partir do conceito de mimesis: geralmente traduzido como semelhança, representação ou
imitação, a mímese, no sentido compreendido na Poética de Aristóteles, é a imitação de
13 A Câmara Clara – ver seções 5, 13, 30, 38.
36
uma ação humana – não a reprodução “ponto a ponto”, mas uma produção de efeitos
semelhantes aos provocados pela cena real. Esta seria a base da narrativa poética:
provocar emoções, induzir o espectador da ação a se comover, mover-se junto com o
personagem. Aqui entra o mecanismo de empatia: fazer com que o espectador se
identifique com a ação representada e sinta-se, de alguma forma, parte dela.
A possibilidade de narrativas visuais poderia ser explicada pelos efeitos
produzidos visualmente por certas imagens, de alguma forma semelhantes aos
encontrados na percepção com movimento. Ressaltamos que Aristóteles não trata da
representação de figuras, apesar de utilizar a produção iconográfica como analogia para
os efeitos obtidos pelo poeta dramático (Gomes, 1997). As duas formas artísticas se
aproximam na medida em que delas resultam espécies de simulação, ou ficção.
A noção de narrativa visual não é nova na história da arte, ainda que não tenha
sido sistematizada como uma teoria. Na pintura, a narratividade é vista apenas como
uma ocorrência histórica em momentos específicos, como o Romantismo. Este conceito
é mais explorado nas análises de ilustrações e figurações seqüenciais, como as imagens
de episódios bíblicos, ou mais recentemente nas histórias em quadrinhos e instruções
pictóricas. No que diz respeito à produção visual marcada pelo registro, a ênfase no
potencial narrativo recai sobre o cinema e o vídeo, meios já marcados pela
seqüencialidade e pela representação do movimento.
Em Arte e Ilusão, Gombrich situa a inserção da narratividade na produção
pictórica, antes dedicada a representações atemporais com funções míticas, no que ele
chama de “Revolução Grega”. Não por acaso, esta revolução pictórica coincide com o
desenvolvimento da arte poética, já que “...quando os escultores e pintores clássicos
descobriram o caráter da narrativa grega, iniciaram uma reação em cadeia que
transformou os métodos de representação do corpo humano – e, na verdade, muito mais
que isso.” Por motivos que até hoje desconhecemos, a forma mítica, que se manifestava
tanto na poesia (narrativa) como na produção pictórica deu lugar à forma ficcional,
ainda que a intenção fosse de registro.
Esta transformação cultural provocou a reação de Platão contra os “imitadores”,
os artistas que buscam espelhar coisas do mundo ao invés de criar, como na chamada
arte conceitual. Mas, segundo Gombrich, “as trapaças do pintor são usadas por ele
apenas como ilustração de uma questão mais decisiva: o banimento de Homero da
República ideal.” O autor identifica como caráter da narrativa grega a partir de Homero
a preocupação não só com o “o quê”, mas também com o “como” dos acontecimentos
37
mitológicos. Ainda que haja vívidos relatos anteriores, há uma diferença fundamental na
maneira como são apresentados os acidentes de Tróia: O poeta é, aqui, testemunha ocular. Se lhe perguntarem como pode saber exatamente o que de
fato aconteceu, ele invocará ainda a autoridade da Musa. Foi ela quem lhe contou aquilo tudo,
quem possibilitou a sua visão interior alcançar para além do abismo do tempo. Não sabemos se
os pintores e escultores invocaram sanção semelhante quando se aventuraram pela primeira vez
no reino da narrativa mitológica propriamente dita. Mas uma coisa teria necessariamente de
acontecer: numa ilustração narrativa, qualquer distinção entre o ‘como’ e o ‘o quê’ é impossível
de manter. (p.114)
Ao falar do poeta grego como “testemunha ocular”, Gombrich nos indica a
importância – ainda pouco explorada – da fotografia na construção das narrativas
contemporâneas que surgem a cada minuto nos meios de comunicação. Seja no
jornalismo, na publicidade ou em exposições, as fotografias disputam a nossa atenção e
procuram nos seduzir não apenas pelas formas e cores, mas evocando uma realidade
além da que é exibida pela imagem.
A relação entre imagem e narração é freqüentemente utilizada por artistas como
inspiração criativa. Para dar início à sua oficina de roteiro14, o escritor Gabriel García
Márquez conta como uma história sua nasceu de uma foto do enterro de Hiroíto,
encontrada ao acaso numa revista: Está chovendo. Ao fundo, fora de foco, aparecem os guardas com suas capas brancas, e mais ao
fundo ainda, a multidão com guarda-chuvas, jornais e pedaços de pano na cabeça; e no centro da
foto, totalmente vestida de negro, com um véu negro e um guarda-chuva negro, aparece a
imperatriz, num segundo plano, solitária e muito magra. Vi essa foto maravilhosa e a primeira
coisa que me veio ao coração foi que ali havia uma história. Uma história que, claro, não é a da
morte do imperador, a que a fotografia está contando, mas outra: uma história de meia hora.
Fiquei com essa idéia na cabeça, e ela continuou lá, dando voltas. Já eliminei o fundo, me desfiz
completamente dos guardas vestidos de branco, das pessoas... Por um momento, fiquei
unicamente com a imagem da imperatriz debaixo da chuva, mas logo descartei também. E então,
a única coisa que me ficou foi o guarda-chuva. Estou absolutamente convencido de que existe
um história nesse guarda-chuva. (p.15)
É interessante notar a clara distinção de García Márquez entre a história que ele
cria (ou gostaria de criar) a partir da foto e a história que a foto realmente conta,
referente ao contexto de onde foi tirada. De alguma maneira, ambas estão contidas
naquela imagem e o espectador comum poderia alternar entre modos de percepção para
ver uma ou outra. Não procuramos aqui realizar exercícios de imaginação ou de
14 Como contar um conto, 1997.
38
habilidade literária, mas simplesmente constatar algo que é percebido quase que
intuitivamente: que as fotos (ao menos algumas delas) “dizem” mais do que “mostram”,
seja na forma de um testemunho, uma reportagem, uma ficção ou uma poesia.
Retomando os “procedimentos conotativos” da fotografia citados por Barthes em
A mensagem fotográfica, Schaeffer discorda ora do caráter de conotação que resulta
destes procedimentos, ora do seu estatuto propriamente fotográfico. No caso da sintaxe,
que Barthes considera como o significado que resulta da disposição de fotos numa
seqüência, o autor identifica duas situações distintas, a narração fotográfica e o
autotelismo icônico: A narração fotográfica, mesmo quando puramente visual (não é o caso da fotonovela), remete o
receptor não a códigos conotativos, mas a uma lógica de situações e encadeamentos narrativos.
Quanto contemplo uma seqüência fotográfica, minha tarefa não é decifrar as conotações das
imagens: tento reconstruir o desenrolar de um acontecimento ou de uma ação, cujas imagens me
apresentam certos momentos precisos. O autotelismo icônico é induzido, sobretudo, por séries de
imagens irredutíveis à unidade de uma seqüência ou um tema (p.86)
Esta função é mais explorada no testemunho jornalístico, quando são
privilegiadas imagens com forte tensão situacional, que o autor chama de clímax do
acontecimento. A preferência por tais imagens se explica pela tensão psicológica que
elas criam, pois uma vez que espectador busca sempre a unidade da ação, o fragmento
que a imagem lhe mostra tende a ser complementado mentalmente: “é a própria
coerência do campo de tipo perceptivo que exige esse prolongamento temporal para
frente e para trás, portanto, sua inserção na globalidade dos acontecimentos. Em outras
palavras, aspiramos à transformação da imagem em narrativa, capaz de satisfazer a
tensão psicológica por ela gerada” (p.128). Schaeffer ressalta que toda imagem pode
tornar-se “falante”, funcionar como testemunho, desde que haja um conhecimento
lateral adequado.
Uma das negociações possíveis entre estas áreas é sugerida por Quintana, ao
defender que a fotografia nos cartazes de cinema é estruturada como uma narrativa,
pois o cartaz representa um acontecimento situado no espaço e no tempo, “o encontro
entre o artista gráfico/espectador e o dispositivo da imagem temporalizada.” Quintana
ressalta que a realidade para o artista gráfico é sempre mediada simbolicamente,
representada e interpretada: “os instantes figurados nos cartazes de cinema são produto
de um ato seletivo, (...) são suscetíveis de reconstrução no momento de ser instaurados,
com a ressalva, evidentemente, de cingir-se aos fatos. O valor individual do artista
39
gráfico, como o do poeta antigo, consiste, assim, na mediação - lugar de produtividade
aberta - e não na invenção, do ponto de vista da significância.” 15
Outro tipo de produto que vem sendo analisado por teóricos da comunicação é a
foto-novela ou foto-romance. Segundo Tacca, a fotografia oscila entre dois modos de
existência, o de mensagem objetiva e convencionalizada culturalmente, ou o modo de
mensagem polissêmica, ambígua, refratora da realidade – este é o que permite uma
abordagem estética, no outro “a estética fotográfica é imposta ao real como mímeses,
padrão imagético ou o ‘espelho do mundo’”. A seqüência fotográfica elaborada como uma sintaxe, ou como fotomontagem, é uma das formas
de existência do código fotográfico de tornar-se conotativo (Barthes: 1978). Conjuntamente com
opções de enquadramento, ângulo de tomada, foco, lentes, sensibilidade do filme, diagramação,
fotomontagem etc., as narrativas fotográficas podem assumir características aparentes de ficção,
com apelo à subjetividade artística, ou de realidade, com apelo à objetividade científica. 16
A propriedade discursiva das fotografias se aplica também a outros tipos de figuras:
pinturas, gravuras e desenhos de diversos estilos podem ser encaradas como enunciados,
não só pelo seu “assunto”, como pelo modo de representá-lo. Podemos verificar a
expressão desta propriedade em praticamente todos os discursos sobre a arte e a
iconografia em geral, nos quais as obras visuais são espelhos do mundo, expressão de
uma subjetividade, traços culturais de um povo, de uma época, modelos de aprendizado
e até mesmo uma forma de linguagem.
Explorando as relações entre imagens e textos na arte e nos meios de
comunicação, W.J.T. Mitchell procura elaborar uma teoria sobre o que ele denomina
imagentexto, forma dialética que combina expressão verbal e visual, podendo se
expressar em meios diversos como a literatura, as artes plásticas, as mídias audiovisuais
e eletrônicas. Em linhas gerais, o autor defende a impossibilidade teórica de expressões
puramente visuais ou puramente verbais, pois ambas são formas inerentes à percepção.
Uma das ocorrências mais expressivas de imagentextos seria o ensaio
fotográfico, ou foto-ensaio, caracterizado como um conjunto de fotografias
acompanhadas ou complementadas de textos escritos, sendo que há uma independência
de sentido entre ambos (as fotos não são ilustrações, nem os textos são meramente
explicativos). Mitchell identifica nestas fotos uma construção “ensaística”, no sentido de
expressar uma visão pessoal sobre determinado tema e também no sentido de uma
tentativa, sempre incompleta, de apreensão da realidade. São analisados quatro casos –
15 QUINTANA, Hanz Gutierrez. A fotografia como ilustração de cartazes (2000)16 TACCA, Fernando de. O Prazer da (dupla) Cumplicidade Voyeur (2000).
40
entre eles, curiosamente, a Camera Lucida de Barthes – geralmente ligados a temas
políticos, a “figuras de poder”, como definidos no capítulo seguinte. Em todos as fotos
são situadas numa posição de igualdade em relação ao texto, sendo ambos “discursos”
acerca de uma situação que, a depender do caso, podem colaborar entre si,
complementar-se ou até mesmo divergir. Desta tensão constante resulta o sentido do
ensaio.
Já a historiadora e fotógrafa Lucy Soutter deixa de lado as formas seqüenciais,
declaradamente ficcionais, e enxerga a fotografia narrativa como uma tendência artística
recente, ainda que presente de alguma forma em toda a trajetória do meio. Analisando a
exposição nova-iorquina Another Girl, Another Planet, ela vê a narrativa como traço de
união entre as fotos: “as imagens apresentam sugestivos momentos congelados,
parecidos com fotogramas de filmes que não existem, ou com fotografias documentais
separadas das suas fontes no mundo real e despidas de uma típica intenção documental”. 17
Tomando emprestada a terminologia da teoria literária, Soutter defende que, se
uma narrativa é definida como a extensão de um verbo, então a fotografia é sempre e
nunca uma forma narrativa. Sempre, por conter uma gravação permanente do ato de
fotografar e de muitas ações que aconteceram no momento da exposição; nunca por que
ela permanece para sempre estática, portanto só pode estender um verbo se arranjada em
seqüência ou acompanhada por texto suplementar. Isto explica por que a narrativa
fotográfica é tão frágil e escorregadia: “capturada num estado de permanente suspense
frente a eventos que acabaram de acontecer ou que estão para acontecer, as fotografias
contêm sementes essenciais de narrativas que nunca são fruídas exceto na imaginação.”
Uma das formas mais comuns de indicar uma narrativa, segundo a autora, é tomar
emprestado um estilo vindo de artes notoriamente narrativas, como cinema, teatro ou
pintura histórica.
Nas fotos de Aristides Alves, vemos que esta tendência está bem próxima de
nós, que não é preciso recorrer a pinturas épicas ou “conceituais” para evocar narrativas.
Mas ao contrário de Another Girl, Another Planet, sua Música Urbana não foi
encenada: são “momentos sugestivos” da vida cotidiana de cidades brasileiras, imagens
de um documentário inexistente que, “despido de sua condição documental”, utiliza
elementos reais num jogo imaginário. Como atores em cena, os objetos retratados
adquirem uma significância diferente da que costuma ser apreendida na visão cotidiana,
já que a mudança do contexto perceptivo possibilita também uma mudança de função. 17 Dial "P" for Panties: Narrative Photography in the 1990s - Afterimage Jan, 2000.
41
Supomos que a narrativa visual em fotografias se funda sobre dois mecanismos:
o primeiro seria o reconhecimento da semelhança, associando certos elementos gráficos
com recortes da realidade; o segundo seria a percepção da imagem enquanto figura,
criação humana, diferente da percepção direta. Aparentemente contraditórios, estes
mecanismos estão presentes na observação de todos os tipos de obras visuais
figurativas, inclusive as fotografias. Para que eles aconteçam, são necessários certos
conhecimentos prévios, tanto de ordem cultural (repertório) como da ordem interna da
percepção.
Dubois coloca o ato fotográfico como um corte no tempo e no espaço. Segundo
o autor a representação em fotografia não é construída intencionalmente, como na
pintura, ela se constitui num golpe, numa jogada. Qualquer ato, tanto o de tomada
quanto o de olhar para a imagem, é uma tentativa de “fazer uma jogada” ou dar um
golpe, como numa partida de xadrez: “Eis o jogo. Não se coloca a questão da Verdade
ou do Sentido – pelo menos no absoluto. A única questão é a da pertinência ou da
eficácia contigente: fracassa-se ou obtém-se sucesso enquanto golpe (jogada). Nesse
sentido, a fotografia é uma partida sempre em andamento, onde cada um dos parceiros
(o fotógrafo, o observador, o referente) vem arriscar-se tentando fazer a jogada certa”
(p.162). Certos códigos atuam como regras deste jogo, podem ser aceitos ou não pelos
jogadores.
O golpe do corte é um deles. Para fazer parte da jogada, o corte deve ser
realizado tanto pelo fotógrafo como pelo espectador, que entende aquela configuração
particular como um instante, um fragmento da realidade. Esta realidade será correta na
medida em que for acordada, produzindo um efeito coerente com a realidade
experimentada de outras formas e que, portanto, suporta um certo grau de variabilidade.
Dubois descreve este efeito como performatividade: “O tempo todo refeita, a foto, em
seu princípio, é da ordem do performativo – na acepção lingüística do termo (quando
dizer é fazer), bem como em seu significado artístico (a performance).”
A atribuição de características dinâmicas a representações estáticas é um dos
temas explorados por Rudolf Arnheim em Arte e Percepção Visual. Mas diferente de
outros teóricos da arte ligados à psicologia da percepção, Arnheim defende que a
dinâmica não é construída pela consciência humana, mas percebida nas obras visuais
tanto quanto formas e cores, a partir de um direcionamento da tensão, elemento
constituinte de qualquer objeto. A tensão dirigida é uma propriedade tão genuína dos objetos visuais como o tamanho, a forma e
a cor. O sistema nervoso do observador cria, ao mesmo tempo que produz a sensação de
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tamanho, forma e cor a partir do ‘input’ de estímulo. Não há nada de arbitrário ou proposital
nestes componentes dinâmicos das coisas percebidas, embora possam ser ambíguos. São
estritamente determinados pela natureza do padrão visual, mesmo no âmbito de suas
ambigüidades. (p.415)
A representação desta tensão não depende de um movimento efetivo do modelo,
mas do modo como ela é construída no quadro. Mesmo uma fotografia de corrida pode
parecer incomodamente estática a depender do ângulo de tomada, enquanto uma árvore
pode transmitir dinamicidade apenas pela inclinação dos seus galhos. Inclinação e
formas curvas são alguns dos elementos gráficos que podem ser utilizados para obter
este efeito. Diz ainda Arnheim: “numa obra bem sucedida de fotografia, pintura ou
escultura, o artista sintetiza a ação representada como um todo, de um modo que traduz
a seqüência temporal numa pose atemporal.”
O mesmo autor, no artigo Fotografia – o que é, cita como característica única do
meio a instantaneidade, a capacidade de fixar o movimento no próprio ato. O
instantâneo é mostrado como um fragmento, “uma amostra extirpada de uma ação cuja
integridade reside além do reino da foto”. A tensão visual, neste caso, não é apenas um
recurso expressivo mas a própria incompletude da ação, retirada do contexto do tempo.
Uma conseqüência estética deste fato é a busca, nas fotografias, por uma expressão
(especialmente a humana) mais natural, mais próxima à experiência cotidiana,
contraposta à artificialidade da pintura. Outra conseqüência é uma mudança na atitude
do espectador: Como é diferente a atitude com que vemos uma fotografia mostrando, digamos, o balcão de uma
lanchonete! “Onde foi tirada esta foto?” queremos saber. A palavra ‘caliente’, que descobrimos
no cardápio no fundo da foto indica um elemento espanhol, muito embora o policial de estômago
avantajado na porta, os cachorros quentes e as laranjadas garantam-nos que estamos nos Estados
Unidos. Com a curiosidade deliciada do turista, exploramos a cena. A luva perto da cesta de
papéis deve ter sido perdida por um freguês: não foi posta ali pelo artista como um toque de
composição. Estamos de férias do artifício. (p. 7)
Mesmo este quadro traçado por Arnheim para demonstrar a naturalidade da
fotografia tem algo de teatral: o autor descreve a foto como uma cena, uma
configuração coerente disposta à sua observação. A atitude do espectador envolve,
também neste caso, uma inserção no modo representacional da visão, distanciando-se
da realidade diretamente percebida.
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4.3 A instância realizadora
Até o momento, defendemos a prioridade do ato de percepção nas pesquisas
sobre a significação em fotografias. Consideramos a ordem da produção como
secundária neste momento, ainda que dela dependa a existência material da imagem.
Mas não poderíamos deixar de tecer algumas considerações sobre a instância de
realização da imagem fotográfica, na medida em que as escolhas do fotógrafo são,
também, influenciadas pelas dinâmicas perceptivas e culturais abordadas.
Barthes coloca esta relação como “operator/spectator”, modalidades diferentes
de lidar com o fenômeno da fotografia. Para o spectator, as fotos vêm de toda parte,
mas das que passam pelo “filtro da cultura”, poucas realmente o tocam ou surpreendem.
O operator é quem busca surpreender algo ou alguém, revelar o que estava oculto; esta
surpresa pode advir tanto de uma proeza fantástica do realizador como de achar um
arranjo natural. Ele busca, para Barthes, o princípio do desafio: desafiar as leis do
provável, do possível e até do interessante, já que certos assuntos nos surpreendem pela
banalidade.
É um lugar-comum nos manuais de fotografia a idéia de uma “visão
diferenciada”, voltada para os aspectos menos óbvios do mundo. As técnicas de
focalização, iluminação e enquadramento devem ser internalizadas pelo fotógrafo para
rapidamente esquecê-las, procurando “deixar-se levar” pelos objetos – seria quase que
uma poética do punctum. A intenção parece ser conferir um certo status ao trabalho,
considerado por muitos puramente técnico, ressaltando o caráter de expressividade.
O fotógrafo e professor Freeman Patterson18 defende que, para fotografar bem, é
preciso ver em vez de apenas olhar, como normalmente fazemos com objetos ao nosso
redor. Aprender a ver implica em enxergar os objetos além das funções habituais,
notando as formas, cores e tons dos objetos mais cotidianos – algo que poderíamos
chamar de visão artística. O autor sugere diversos exercícios de relaxamento e
concentração para que possamos nos desvencilhar do conhecimento cotidiano e voltar a
ver o mundo com o “olhar inocente” de uma criança. Ele defende que existem três tipos
de imagem visual: aquelas que obtemos da observação de objetos físicos, as que
imaginamos através de sonhos e idéias, e as que criamos na forma de desenhos, pinturas
e fotos. Um bom fotógrafo deve dominar os três processos (p.26). Para isso é necessário
se livrar de certos rótulos e conceitos que adquirimos com a educação tradicional
através da linguagem, pois eles limitam a percepção. Esta concepção nos remete ao
18 Photography and the art of seeing, 1989.
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“olho inocente” que Gombrich tanto questiona em Arte e Ilusão. Não seria esta
concepção artística um novo conhecimento (conceito) ao invés de um desnudamento da
mente?
A admissão de uma artisticidade da fotografia (ainda que como arte precária),
portanto de uma atividade formadora e não apenas reprodutiva, deve considerar a
atividade do fotógrafo também numa dimensão poética, no sentido de mobilizar certos
meios para obtenção de um efeito. Isto diferencia o fotógrafo “artista”, que produz
imagens utilizando conhecimentos técnicos específicos para uma certa finalidade, do
fotógrafo ocasional (uma atividade acessível a praticamente todos), que depende
largamente do acaso.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eu sou um individualista, e não posso acreditar que somos apenas fantoches, caindo
dos fios controlados por um mestre invisível, representando o espírito da época, ou,
talvez, o conflito de classes. De fato, eu tenho imaginado se teríamos que postular
este manipulador de fantoches como um Super Artista que cria o estilo ou os estilos
de uma época nos seus vários meios. Não poderia ser o contrário? Poderiam a arte
e os artistas ter ao menos contribuído para o que chamamos de espírito da época?
Ernest H. Gombrich
Reconhecendo os avanços e retrocessos das teorias semiológicas, procuramos introduzir
nesta discussão alguns autores habitualmente estranhos ao ensino de Comunicação, tais
como Ernest Gombrich, um dos maiores expoentes da História da Arte. Esta
aproximação não ocorre por acaso: a dimensão artística da experiência comunicacional
já vinha sendo teorizada em diversas áreas, especialmente o cinema. A própria cultura
contemporânea, como comprova Umberto Eco nos ensaios de A Obra Aberta, pode ser
vista em sua dimensão estética e examinada do ponto de vista das suas poéticas. 19
A maior contribuição de Gombrich para uma reflexão sobre a comunicação com
base em obras visuais seria, provavelmente, o princípio de cooperação entre o
espectador e a obra, explicitado na segunda parte de Arte e Ilusão. Se a ilusão artística é
um mito freqüentemente criticado, em análises de mídia o caráter ilusório das
representações baseadas no registro luminoso (tais como a fotografia e o vídeo) pode
tomar contornos catastróficos, levando a uma completa alienação das massas
populacionais ou mesmo a uma desrealização do mundo. Mas o que Gombrich chama
de ilusão (e vem sendo criticado também pelos seus pares) não é o engano e sim uma
imersão vivenciada pelo espectador das artes plásticas no assunto da obra, a sensação de
presença perante o objeto representado através das características visuais da
representação. Esta imersão não acontece por conseqüência direta do modo como é feita
a representação, é uma escolha do espectador a partir de elementos que estão presentes
na obra e que, de alguma forma, excitam a sua percepção, tanto no sentido denotativo (o
remetimento a uma realidade concreta) como no sentido simbólico (os valores
individuais e culturais).
19 Citado por Wilson Gomes em Estratégias de Produção de Encanto (Textos 35).
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Com alguma liberdade em relação ao autor, diríamos que o espectador
fotográfico e midiático vivencia algo semelhante. Se nas representações temos a
impressão de objetos reais, esta visão é inerente à dinâmica perceptiva e não à
materialidade das imagens. As técnicas de produção de imagens propiciam maiores ou
menores condições de ilusão, a depender do uso a que se destinam. Como defende
Gombrich em The uses of images, nas atividades artísticas “a forma segue a função”,
portanto é lógico supor que também as técnicas modernas respondem a demandas da
cultura (o espectador, no sentido histórico) e se reelaboram com os usos que esta cultura
faz delas. Sendo a comunicação composta por formas de elaboração do material
simbólico, sua apreensão não acontece por determinações naturais, mas decorrem de
regras e conhecimentos inerentes à percepção humana.
O argumento, recorrente nas teorias da comunicação, de que as técnicas atuariam
como formadoras da consciência perceptiva, é justamente o que procuramos invalidar
na segunda parte deste trabalho (Percepção e interpretação de fotografias). Analisando
alguns dos autores que tentaram formular uma teoria específica da fotografia a partir da
semiótica peircenana, identificamos como ponto comum o que denominamos de
“abordagem do dispositivo”, a tendência a analisar a significação a partir da gênese da
imagem. Com isso, deixa-se de lado considerações importantes sobre as relações entre o
objeto significante e o sujeito a quem ele se destina, ou melhor, a finalidade de todo o
processo produtivo/perceptivo.
Certamente há pontos a serem aproveitados nestes autores, apesar de
discordarmos da mecânica do argumento. Em Dubois, destacamos o conceito de
“imagem-ato”, que busca compreender a fotografia do ponto de vista fenomenológico,
englobando aspectos produtivos e perceptivos. Bastante útil é sua sistematização
histórica dos discursos acerca da fotografia, ainda que distorcendo ligeiramente as
categorias de significação, conferindo-lhe um caráter mais tipológico que propriamente
semiótico. Na teorização de Machado, a análise de funcionamento dos elementos
constitutivos da imagem – especialmente a “identificação subjetiva” – serviria
perfeitamente a um estudo dos mecanismos de identificação e projeção, não fosse o
constante policiamento ideológico que o leva a rejeitar quaisquer características de
realidade na imagem fotográfica. Já Schaeffer, relativizando a importância formadora
do dispositivo, insere o “conhecimento do arché” como essencial à percepção
fotográfica e as influências do “conhecimento lateral”.
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Declaradamente inspirados pela semiótica estruturalista, os autores explorados
nesta segunda parte pareciam também procurar uma alternativa à codificação das
imagens defendida por seus antecessores – problema tratado na primeira parte (A
imagem como discurso). Mas ao se desvencilharem das noções de código e mensagem
visuais – que restringiam as possibilidades de significação a convenções previamente
estabelecidas – em busca de uma pragmática fotográfica, os “pós-estruturalistas”
tomam como efeito constritor dos significados da imagem a sua própria produção,
considerando a recepção como uma espécie de poética às avessas.
Sobre a semiologia estruturalista, tratou-se aqui numa extensão bastante restrita,
tendo como fio condutor as idéias de Barthes sobre a fotografia, especialmente a
vinculação a um discurso verbal e a existência de um código de decifração das imagens,
temas elaborados também por Eco. No pensamento de alguns semioticistas
contemporâneos, como Sonesson e Véron, encontramos uma reelaboração desses
conceitos que nos ajuda a considerar sua pertinência, porém não mais como código e
sim como uma discursividade fundadora de toda experiência humana, inclusive a
experiência visual cotidiana.
Certamente não se pretendia aqui realizar uma análise extensiva do pensamento
destes teóricos, nem esgotar as contribuições para uma reflexão sobre o signo
fotográfico na contemporaneidade. Buscamos simplesmente situar esta problemática no
âmbito de uma das linhas fundamentais para a constituição do campo comunicacional, a
partir de um recorte das discussões travadas acerca deste objeto; ao tempo que
sugerimos alterações e acréscimos nos modelos de análise constituídos – não no sentido
de conformar um novo modelo, mas de questionar e buscar ferramentas que nos
permitam tratar o fenômeno fotográfico com maior complexidade e, assim, repensar as
categorias de significação tradicionais.
Nos meios de comunicação em geral predominam as linguagens jornalística
(com todos os seus sub-gêneros e variações) e publicitária, nas quais a fotografia
aparece geralmente como comprovação, inserida em uma estratégia enunciativa que
visa validar o que é dito nos textos, ou aumentar seu poder de persuasão. Mesmo sem
estar cercada por legendas e títulos (o que é raro), a foto estará inevitavelmente inserida
numa discursividade própria do veículo. Isto não equivale a dizer que as imagens não
tenham significados próprios. Buscando reforçar esta tese, utilizamos como objeto de
análise um conjunto de fotografias isolado destas estratégias, buscando seu sentido na
matéria plástica que as compõe.
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Para além da simplicidade formal de Música Urbana, podemos considerar a
fotografia como uma forma de olhar ligada a uma forma de agir – como diz Véron, o
suporte do individualismo moderno; ou, para Benjamin, a introdução a uma “ótica
inconsciente”. Sua força não se deve à ação de um dispositivo sobre objetos e
fenômenos, mas à materialização de uma visualidade ativa do ser humano, que nos
permite explorar o ambiente, tentar entendê-lo e controlá-lo. Uma visualidade que vem
sendo, ultimamente, expandida porém mal aproveitada. Reconstruindo o cotidiano da
cidade, as fotos de Aristides Alves nos lembram da potencialidade criativa do olhar, do
caráter lúdico da experiência perceptiva.
A noção de narrativa visual surge aqui como uma conseqüência da atividade da
percepção, associada ao potencial enunciativo das imagens. Como foi ressaltado por
Arnheim em relação à dinamicidade das representações, a narratividade não é projetada
nas fotografias por um capricho dos mecanismos cognitivos, mas sim percebida a partir
das suas propriedades plásticas, tal como relações de luminosidade e proporção. A
valorização desta dimensão narrativa (que varia de acordo com a obra) tem como
finalidade provocar a empatia, fazer com que o espectador se sinta inserido na realidade
mostrada. Poderíamos identificar esta função da fotografia na publicidade de produtos,
por exemplo, que tem a sedução como prioridade; ou nas fotos de reportagem, que
visam transmitir um testemunho.
Ainda que não possa ser considerado um mecanismo puramente fotográfico, a
dinamicidade da representação, considerada na forma de uma narrativa, poderia
fornecer uma chave de interpretação para muitos dos fenômenos visuais da
comunicação contemporânea. Aproveitaríamos para questionar a validade desta busca
essencialista, fundada na identificação entre sentido e suporte, ou seja, os fins seguindo
os meios. Não seria mais interessante pensar em mecanismos fotográficos na pintura?
Ou mecanismos pictográficos no cinema? Ou cinematográficos na literatura? E os
suportes digitais, seriam uma categoria à parte, ou são novas formas de materialização
de poéticas existentes? Quais seriam as demandas colocadas aos artistas atuais?
Algumas possibilidades de diálogo já foram sinalizadas, a exemplo do novo
prefácio de Gombrich para Arte e Ilusão: “nunca houve uma imagem que se parecesse
com a natureza; todas as imagens são baseadas em convenções, nem mais nem melhor
que a linguagem ou os personagens das nossas histórias. Todas as imagens são signos, e
a disciplina que deve investigá-las não é a psicologia da percepção – como eu acreditava
– mas semiótica, a ciência dos signos.” Assim, procuramos reconhecer a importância da
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semiótica para pensarmos a comunicação visual, reconhecendo também sua
insuficiência para tratar deste fenômeno em toda a sua complexidade.
Mesmo tendo em vista as contribuições mais recentes, podemos concluir que os
estudos teóricos sobre a fotografia encontram-se num estágio iniciante, apesar de todo o
seu desenvolvimento técnico visto no último século. Análises de fotografias enquanto
obras visuais – e não como comentário social, histórico ou antropológico – são
praticamente inexistentes, seja nos meios jornalísticos ou acadêmicos. Superada a
questão do realismo, ainda há muito a ser pesquisado para a constituição de um campo
autônomo, a exemplo do que vem acontecendo com o cinema.
Enfim, a questão fundamental, em se tratando de produção de sentido, não é e
nunca foi o processo físico, que muda com o tempo e os avanços tecnológicos. A
questão é como lidamos com o texto fotográfico, ou, de modo geral, como os indivíduos
e as sociedades se relacionam com as informações e sentidos, conhecendo, acreditando,
duvidando, trocando, construindo mundos materiais e simbólicos. As fotografias, como
outros tipos de representação visual presentes na cultura contemporânea, desempenham
um papel importante nesta construção. Certamente não caberá à comunicação ou à
semiótica abarcar todas estas interrogações, mas mantendo-as em mente talvez
possamos enriquecer estes estudos e intensificar o diálogo com áreas afins.
50
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