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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS ANTÔNIO CAVALCANTE DA COSTA NETO O LAZER COMO DIREITO FUNDAMENTAL: problemas de justificação e garantia JOÃO PESSOA PB 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS

ANTÔNIO CAVALCANTE DA COSTA NETO

O LAZER COMO DIREITO FUNDAMENTAL: problemas de justificação e garantia

JOÃO PESSOA – PB 2010

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ANTÔNIO CAVALCANTE DA COSTA NETO

O LAZER COMO DIREITO FUNDAMENTAL: problemas de justificação e garantia

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (PPGCJ) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direitos Humanos. Orientador: Prof. Dr. Cláudio Pedrosa Nunes.

JOÃO PESSOA – PB 2010

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C837l Costa Neto, Antônio Cavalcante da .

O lazer como direito fundamental : problemas de justificação e garantia / Antonio Cavalcante da Costa Neto. - - João Pessoa : [s.n.], 2010.

163 f.

Orientador: Cláudio Pedrosa Nunes. Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCJ.

1.Direitos humanos. 2.Lazer. 3.Cidadania..

UFPB/BC CDU: 342.7(043)

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ANTÔNIO CAVALCANTE DA COSTA NETO

O LAZER COMO DIREITO FUNDAMENTAL: problemas de justificação e garantia

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (PPGCJ) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direitos Humanos. Orientador: Prof. Dr. Cláudio Pedrosa Nunes.

Apresentada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA:

______________________________________ Professor Dr. Cláudio Pedrosa Nunes

Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Orientador

___________________________________ Professora Dra. Áurea Baroni Cecato

Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Membro

_______________________________________

Professor Dr. Zéu Palmeira Sobrinho Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Membro (Examinador externo).

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À minha mãe, Neusa, no céu.

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AGRADECIMENTOS

Porque nele ―vivemos, nos movemos e existimos‖ (At 17, 28), a Deus há

de ser sempre o primeiro agradecimento.

Aos meus pais, João Epifanio e Maria Neusa (in memoriam), pela

comunicação da vida e pelas lições de vida.

À minha esposa, Gerley Maranhão, meu porto seguro; aos meus filhos

Talitha Giovanna, João Pedro e Maria Luiza, pedaços de mim, sem serem eu

mesmo, algo que só o amor ousa compreender. A vocês, devo muito do que sou

e ainda pretendo ser.

À UFPB, que me permitiu o privilégio de voltar a ser seu aluno, para me

conceder a honraria de Mestre.

Aos professores do PPGCJ, pelos ensinamentos; aos funcionários, pelo

acolhimento; aos colegas do Mestrado, pela partilha das experiências, do tempo,

da amizade.

Ao professor Dr. Cláudio Pedrosa Nunes, mais que um orientador com

profunda formação científica, um amigo e incentivador na caminhada acadêmica.

Aos professores Doutores Arnaldo José Duarte do Amaral e Maria Áurea

Baroni Cecato, pelas enriquecedoras sugestões, no exame de qualificação.

Ao professores Doutores Zéu Palmeira Sobrinho e Maria Áurea Baroni

Cecato, pela disponibilidade de integrar a banca examinadora, motivo de alegria

e honra.

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O amor da verdade busca o santo ócio, a necessidade do amor acolhe o trabalho justo.

(Santo Agostinho).

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RESUMO Este trabalho analisa o tema do direito fundamental ao lazer. Partindo da

abordagem histórica no Brasil e no mundo, da sua delimitação conceitual e da

relação com outras esferas da organização social, o lazer é estudado no âmbito

dos direitos humanos e da cidadania, com o objetivo de identificar os principais

problemas relacionados à sua justificação e garantia. O estudo procura

demonstrar que a problemática da justificação se relaciona à falta de clareza na

compreensão do conceito de lazer, por vezes associado à ideia negativa de

ociosidade, característica da ideologia de exaltação do trabalho, bem como da

tendência de alienação do lazer, na denominada sociedade de consumo. A

discussão sobre a problemática da garantia, por sua vez, considera as

concepções de mínimo existencial e reserva do possível, e examina as

dificuldades para realização de políticas públicas de lazer, especialmente para as

minorias sociais. De modo particular, são estudados os obstáculos econômicos,

sociais e culturais para a garantia do direito ao lazer das mulheres. A dissertação

enfatiza, ainda, a importância da educação para o lazer, como parte da educação

para os direitos humanos, no sentido de criação de uma ética do tempo livre,

levando em conta que a simples inclusão do lazer entre os direitos fundamentais

previstos no texto constitucional não é condição suficiente para efetivação e

universalização desse direito.

Palavras-chave: lazer, direitos humanos, cidadania.

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ABSTRACT

This work examines the theme of the fundamental right to leisure. Starting

from the historical perspective in Brazil and worldwide, its conceptual definition

and relation to other spheres of social organization, leisure is studied in the

context of human rights and citizenship, in order to identify the main problems

related to its justification and assurance. The study seeks to demonstrate that the

question of justification is related to the lack of clarity in understanding the

concept of leisure, sometimes associated with the negative idea of idleness,

characteristic of the ideology of exaltation of work, as well as the trend of

alienation of leisure, in the so-called consumer society. The discussion on the

issue of security, in turn, takes into account the concepts of ―existential minimum‖

and ―reservation of possibility‖, and examines the difficulties in implementation of

public policies for leisure, especially for social minorities. In particular, we have

studied the economic obstacles, social and cultural dimensions to guarantee

women's right to leisure. The dissertation also emphasizes the importance of

education for leisure as part of education for human rights in order to create an

ethic of free time, taking into account that the mere inclusion of leisure among the

fundamental rights provided in the Constitution does not a sufficient condition for

effectiveness and universality of this right.

Keywords: leisure, human rights, citizenship.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

2Ts – Segunda Carta aos Tessalonicenses

CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna

CLT – Consolidação das Leis do Trabalho

DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos

DESCA – Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente

FAE – Fundação de Assistência ao Estudante

FUNRURAL – Fundo de Assistência Rural

Gl – Carta aos Gálatas

GS – Gaudium et Spes

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INPS – Instituto Nacional de Previdência Social

ICCPR – Internacional Covenant on Civil and Political Rigths (Pacto Internacional

de Direitos Civis e Políticos).

IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

IVPM – Índice do Vocabulário de Português Medieval

Lc – Evangelho de Lucas

LCVFL – Lei de Conciliação da Vida Familiar e Laboral (Espanha)

LEP – Lei de Execução Penal

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONU – Organização das Nações Unidas

PIDESC – Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PPGCJ – Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas

Pr – Livro dos Provérbios

RN – Rio Grande do Norte

SAT – Seguro de Acidentes de Trabalho

Sl – Salmos

SEDH – Secretaria Especial dos Direitos Humanos

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TST – Tribunal Superior do Trabalho

TRT – Tribunal Regional do Trabalho

UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais

UFPB – Universidade Federal da Paraíba

UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

UNB – Universidade de Brasília

UNESCO – United Nation Educational, Scientific and Cultural Organization

(Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1: EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO LAZER .......................................18

1.1 Tempo livre e tempo ocupado: do homo ludens à skhole grega...................18

1.2 Do otium romano à dualidade carnaval-quaresma do mundo medieval.......20

1.3 Da invenção do lazer na modernidade à sua complexidade no mundo

contemporâneo...............................................................................................24

1.4 O lazer no Brasil...........................................................................................28

1.4.1 A cultura de floresta tropical e a colonização portuguesa........................ 28

1.4.2 O ―tempo livre‖ dos escravos: entre Zumbi e Pai João.............................31

1.4.3 A herança lúdica das matrizes étnicas do povo brasileiro........................34

1.4.4 Industrialização, urbanismo e lazer no Brasil contemporâneo................. 35

CAPÍTULO 2: A PROBLEMÁTICA DA DELIMITAÇÃO CONCEITUAL DO

LAZER E DAS RELAÇÕES DESTE COM OUTRAS ESFERAS DA

ORGANIZAÇÃO SOCIAL................................................................................. 40

2.1 A problemática da delimitação conceitual do lazer.......................................41

2.1.1 Lazer: etimologia e aspectos semânticos.................................................42

2.1.2 A contribuição de Dumazedier: definição e funções do lazer................... 43

2.1.3 O problema da delimitação conceitual ante a complexidade do lazer..... 45

2.2 As múltiplas relações do lazer..................................................................... 48

2.2.1 Lazer e economia: a globalização do mercolazer.....................................49

2.2.2 Lazer, política e corporeidade...................................................................51

2.2.3 Trabalho e lazer: entre a bênção e a maldição........................................ 54

2.3 Os lazeres na contemporaneidade.............................................................. 58

CAPÍTULO 3: LAZER, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA.......................... 61

3.1 O lazer e a doutrina dos direitos humanos...................................................61

3.1.1 Dignidade e dignidade humana............................................................... 62

3.1.2 Dignidade humana como condição fundadora da dimensão ética...........64

3.1.3 O princípio da dignidade humana e a evolução dos direitos humanos.... 66

3.1.4 O lazer como bem cultural fundamental ..................................................70

3.1.5 Lazer e reinvenção dos direitos humanos................................................76

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3.2 Lazer e cidadania........................................................................................ 81

3.2.1 A história da cidadania no mundo: dialética de inclusão e exclusão........82

3.2.2 A cidadania no Brasil: avanços e retrocessos......................................... 89

3.2.3 Lazer e cidadania: caminhos e descaminhos da lazerania...................... 95

CAPÍTULO 4: O LAZER COMO DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL E A

PROBLEMÁTICA DE SUA JUSTIFICAÇÃO E GARANTIA............................. 99

4.1 O lazer e os direitos sociais fundamentais .................................................. 99

4.1.1 Direitos fundamentais: problemática terminológica e conceitual ...........100

4.1.2 O problema da classificação dos direitos fundamentais em gerações ou

dimensões...............................................................................................104

4.1.3 O problema do regime dos direitos econômicos, sociais e culturais .....106

4.1.4 O lazer entre os direitos sociais fundamentais ......................................109

4.2 Problemas de justificação do lazer como direito fundamental ...................111

4.2.1 O direito ao lazer e ideologia do trabalho...............................................112

4.2.2 O problema da alienação do lazer na sociedade de consumo ..............116

4.3 Problemas de garantia do direito ao lazer..................................................122

4.3.1 Mínimo existencial, reserva do possível e direito ao lazer .....................122

4.3.2 Dificuldade de integração e valorização do lazer nas políticas públicas127

4.3.3 Pobreza, exclusão e direito ao lazer das minorias sociais .................... 129

4.3.4 Por um tempo todo seu: o problema da garantia do direito ao lazer para

mulheres................................................................................................ 134

4.4 O problema da educação para o lazer no âmbito da educação para os

direitos humanos............................................................................................... 138

CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................145

REFERÊNCIAS.................................................................................................153

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INTRODUÇÃO

A Constituição Federal brasileira inclui o lazer entre os direitos sociais. No

artigo 6º, o lazer aparece ao lado dos direitos à educação, saúde, trabalho, moradia,

segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, além da

assistência aos desamparados. Já no artigo 7º, IV, quando dispõe sobre o salário

mínimo, a Carta Magna insere o lazer entre as necessidades vitais básicas do

trabalhador e de sua família, juntamente com moradia, alimentação, educação,

saúde, vestuário, higiene, transporte e previdência social. E no art. 217, § 3º, a Lei

Maior prescreve que o Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção

social. Portanto, de acordo com esses dispositivos da Constituição Federal, a

impressão que se tem é a de que na República Federativa do Brasil, que se constitui

em Estado Democrático de Direito, e que tem como um dos fundamentos a

dignidade da pessoa humana1, nem só de pão devem viver homem e mulher.

Essa concepção do lazer como um dos componentes da dignidade humana

não é privilégio do nosso direito interno. Este reflete o tratamento dado à matéria

pelo direito internacional. O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais (PIDESC), firmado pela Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de

1966, prevê, em seu artigo 7º, que descanso e lazer são direitos que toda pessoa

deve ter, para que possa efetivamente gozar de condições de trabalho justas e

favoráveis. O PIDESC, é bom que se diga, juntamente com o Pacto Internacional de

Direitos Civis e Políticos, também conhecido como ICCPR (sigla em inglês de

Internacional Covenant on Civil and Political Rigths), foi adotado com a finalidade de

conferir obrigatoriedade ao que já havia sido pactuado na Declaração Universal dos

Direitos Humanos (DUDH). Esta, no art. 22, proclama que toda pessoa, como

membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a

satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao

esforço nacional e à cooperação internacional, em harmonia com a organização e os

recursos de cada país.

Percebe-se, porém, quando se entra na discussão sobre a eficácia jurídica do

princípio da dignidade humana, que ao lazer não tem sido dado o mesmo valor dos

outros direitos sociais indicados no artigo sexto da Constituição Federal. Como se

1 Art. 1º, III, da Constituição Federal.

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não bastasse, se por um lado a ONU tem feito constar em seus pactos a garantia

dos direitos sociais, em sintonia com a ideia de que os direitos humanos são

indivisíveis, por outro, tem constatado o agravamento das desigualdades,

decorrentes da globalização econômica. Tal fato pode ser verificado no relatório

sobre o desenvolvimento humano de 1999, elaborado pelo Programa das Nações

Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), do qual se conclui que a integração

econômica mundial, em vez de favorecer a ampliação do exercício dos direitos

sociais, tem contribuído para o aumento da exclusão socioeconômica. Esta, por sua

vez, representa um obstáculo real ao princípio da indivisibilidade dos direitos

humanos.

Nesse contexto, presencia-se uma tendência de relativização da importância

dos direitos sociais. Embora estes sejam considerados relevantes nas Constituições

de diversos Estados e em Declarações internacionais de direitos, a sua garantia

muitas vezes é vista como empecilho ao desenvolvimento econômico, num cenário

internacional marcado pela forte competitividade dos mercados. Por essa razão, não

é de estranhar que direitos sociais básicos como educação, saúde e previdência

social terminem se tornando mercadoria, ―objeto de contratos privados de compra e

venda ─ em um mercado marcadamente desigual, no qual grande parcela

populacional não dispõe de poder de consumo.‖ (PIOVESAN, 2004, p. 67-68).

Se educação, saúde e previdência têm sido transformados em mercadoria, e

sua garantia é vista como entrave ao desenvolvimento econômico, o que dizer

então, do direito ao lazer? Como se pode defender a garantia desse direito, diante

de um cenário socioeconômico que não lhe é favorável? Diante dessa realidade,

deve-se minimizar a importância desse direito, ainda que tal postura contrarie o

princípio da indivisibilidade dos direitos humanos? E como fica a eficácia jurídica do

dispositivo constitucional que eleva o lazer ao status de direito social? Teríamos que

relegá-lo a mais um caso de insinceridade normativa ou ilusão constitucional?

Como se vê, a discussão sobre o direito ao lazer suscita controvérsias e

impõe desafios. A estes podemos acrescentar ainda os problemas do custo dos

direitos sociais e da ―reserva do possível.‖ O primeiro diz respeito a análise

econômica dos gastos — ou investimentos, dependendo do ponto de vista —

destinados a concretização dos direitos sociais. Garantir à população os direitos

sociais tem um custo, pois como se costuma dizer, direito, assim como dinheiro, não

brota em árvore. O segundo, por sua vez, chama a atenção para a escassez dos

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recursos disponíveis ante a prodigalidade das necessidades individuais básicas.

Estas precisam ser satisfeitas, para que a pessoa viva com dignidade de ser

humano. Todavia, quanto mais as sociedades se tornam complexas, mais

necessidades passam a ser básicas, mais anseios tornam-se direitos, o que

aumenta o problema relacionado ao efetivo atendimento dessa demanda.

Este trabalho pretende discutir as questões acima levantadas, o que se torna

necessário para a proposição de saídas para os desafios apontados. Seu objetivo

principal é investigar os problemas inerentes à teoria jurídica do lazer como direito

fundamental, bem como as dificuldades para a efetividade desse direito. O problema

central, por sua vez, pode ser resumido na seguinte pergunta: quais as principais

dificuldades para a justificação (fundamentação teórica) e garantia (aplicação

prática) do direito ao lazer como direito fundamental?

Justificação e garantia são temas que suscitam outras questões a elas

relacionadas. Justificação tem a ver com a compreensão e a conceituação do lazer.

É a partir de uma clara compreensão e de uma adequada conceituação do lazer que

se poderá fundamentá-lo como direito básico de cidadania ou relegá-lo ao limbo do

supérfluo jurídico. Já a garantia envolve questões, por assim dizer, mais pragmáticas

da pesquisa, compreendendo não somente o aspecto jurídico, mas também o

econômico, ambos ligados à análise da existência, necessidade e possibilidade de

políticas públicas de lazer em nosso país, e da responsabilidade da União, Estados

e Municípios, bem como da sociedade civil, na implementação dessas políticas.

Todas essas questões são indício da importância do tema. Este também é

relevante para quem busca compreender a dinâmica e as tensões de uma ordem

mundial marcada pelos anseios de globalização econômica e de universalização dos

direitos humanos (entre os quais está o lazer), mas que tem revelado incapacidade

histórica de conciliar esses dois grandes desideratos. Some-se a isso, como

justificativa para a investigação do lazer como direito social na perspectiva dos

direitos humanos, o fato de não existirem muitos estudos sobre o tema no âmbito da

pesquisa jurídica, tanto quanto em áreas como Sociologia, Educação Física e

Turismo. E mesmo nessas áreas, percebe-se a predominância de abordagens sobre

o lazer apenas como contraponto ao trabalho produtivo. Lazer, nessa perspectiva,

tende a ser visto como repouso necessário para o trabalhador repor suas energias,

exploradas de forma racionalizada na esfera produtiva, o que representa uma

concepção reducionista da matéria.

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Para evitar este e outros reducionismos, é importante que a metodologia seja

adequada aos objetivos do trabalho. É nesse propósito que o método de abordagem

escolhido para a elaboração da pesquisa é o dialético, ―que destaca o inter-

relacionamento entre os opostos, é representado pelo esquema: tese – antítese –

síntese‖ (COUTINHO; SORTO, 2007, p. 342), esquema este que procura

representar a realidade como movimento gerado pela tensão dos contrários.

A tensão dos contrários (que não implica colisão nem destruição destes, mas

inter-relação e dinamismo) pode ser detectada, por exemplo, nas distintas

concepções do lazer, que serão analisadas posteriormente. Mas, desde já, é

possível dizer que a existência de diversas concepções indica que o lazer é objeto

multifacetado e, por vezes, ambíguo. Por essa razão, o caminho mais adequado

para sua abordagem parece não ser outro senão o dialético, partindo-se do

pressuposto que o confronto das opiniões contrárias permite a ascensão a um

conhecimento mais próximo da verdade sobre o objeto da discussão.2

Como métodos de procedimento serão utilizados o histórico, o comparativo, o

funcionalista e o estruturalista: o histórico, na investigação do itinerário do lazer

como dado sociológico, desde o passado até os dias atuais, na tentativa de

compreender como ele chegou até nós como um direito social; o comparativo, no

cotejo entre as diversas concepções do lazer, bem como no confronto de textos

normativos sobre o lazer com os obstáculos para sua concretização; o funcionalista,

a fim de tornar mais claras quais as funções manifestas e latentes do lazer, de

acordo com a ideologia dominante; e o estruturalista, necessário para se estudar o

lazer no âmbito das estruturas sociais, procurando identificar suas relações com o

modo de produção de vida social, e, de modo particular, com o trabalho e a ideologia

do trabalho.

As técnicas de pesquisa empregadas serão a documental e a bibliográfica: a

documental, consistente na exegese dos dispositivos da Constituição Federal e da

2 Leo Strauss, a esse respeito, fala da ascensão ao conhecimento verdadeiro por meio da dialética,

tida por ele como o debate amigável: ―o debate amigável que conduz à verdade torna-se possível ou necessário pelo facto de as opiniões acerca do que as coisas são, serem contraditórias. Ao se reconhecer as contradições, é-se forçado a ir além das opiniões rumo a uma concepção coerente da natureza das coisas em questão. Essa concepção coerente torna visível a verdade relativa das opiniões contraditórias; a concepção coerente acaba por ser revelar como a concepção englobante ou total. Assim, as opiniões são vistas como fragmentos da verdade, fragmentos manchados da verdade pura. Por outras palavras, as opiniões acabam por ser solicitadas pela verdade auto-subsistente, e a ascensão à verdade acaba por ser orientada pela verdade auto-subsistente que cada homem nunca deixa de pressentir.‖ (2009, p. 109).

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legislação infraconstitucional a respeito do lazer; a bibliográfica, que se constituirá

numa conversação amigável e dialética com o pensamento de diversos estudiosos

da matéria.

No tocante a esta última, há que se considerar os aspectos da polifonia e

intertextualidade, presentes nos textos em geral, mas que ganham realce na

produção textual das ciências humanas. Estas, como ensina Mikhail Bakhtin (2003),

são ciências do ser humano em sua especificidade, que necessariamente se

exprime a si mesmo e produz texto, ainda que potencial. Por isso, ao se recorrer a

cada autor através de seus textos, não se deve tomá-lo como simples objeto, e sim

como sujeito, alguém que fala, e por isso mantém um diálogo com o leitor-

pesquisador. Por sua vez, o dado obtido nessa interação há de ser visto como um

dado dialogado, aquele que é ―discutido, curtido, construído em consórcio. Discutível

por definição e por isso científico.‖ (DEMO, 1995, p. 244).

Nesse contexto, a verdade alcançada será fruto da crítica dialógica, não

devendo ficar refém do dogmatismo, tampouco do relativismo absoluto. Pois se este

torna inútil o diálogo genuíno, aquele o torna praticamente impossível, como bem

observa Bakhtin (2003), em citação feita por Tzvetan Todorov, no prefácio do livro

Estética da criação verbal, de autoria do primeiro.

A estrutura do trabalho constará de quatro capítulos, relacionados aos

objetivos específicos da pesquisa, que são, respectivamente, traçar um esboço

histórico do papel social do lazer; analisar as diversas concepções de lazer, bem

como as relações entre este e outras esferas da vida social; situar o lazer no

contexto dos direitos humanos e da construção da cidadania e identificar as

principais dificuldades para a garantia do lazer como direito social.

No primeiro capítulo será examinada a evolução histórica do lazer no mundo

e, de modo particular, em nosso país. O lazer surgiu na modernidade ou já existia

nas primeiras civilizações? Havia diferença entre o lazer das camadas sociais mais

abastadas e o das populações mais pobres nos diferentes períodos históricos? E no

Brasil, o lazer já era vivido desde os tempos da colonização ou só surgiu com o

nosso industrialismo tardio? A abordagem de questões como estas, numa

perspectiva histórica, é importante para a compreensão do fenômeno social do lazer,

tanto no passado quanto no presente.

O segundo capítulo será dedicado à delimitação conceitual do lazer e as

relações deste com outras esferas da organização social. O lazer é um fenômeno

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complexo, relacionado a muitas outras atividades, e por vezes confundido com

inatividade ou acídia. Sua delimitação conceitual, portanto, é fundamental para

desfazer preconceitos e confusões relacionados à noção que se tem do lazer. Além

disso, a análise das múltiplas relações do lazer com outros elementos da

organização social, como a economia, a política e o trabalho, possibilitará uma

percepção mais clara da importância e da complexidade do lazer no contexto da

sociedade.

No terceiro capítulo será tratado o tema do lazer no âmbito dos direitos

humanos e da construção histórica da cidadania. O lazer é mesmo um bem cultural

fundamental para a dignidade humana e, por conseguinte, para a teoria dos direitos

humanos? De que modo o lazer pode contribuir para a construção da cidadania? A

reflexão sobre tais questões configura-se como um passo importante para se chegar

à discussão central do trabalho, que será objeto do quarto capítulo.

No quarto capítulo serão discutidos problemas relativos à justificação e

garantia do lazer como direito fundamental. Também será reservado um espaço para

a análise do direito ao lazer das minorias sociais e das mulheres, em razão das

especificidades dos problemas e desafios relacionados a esses dois grupos, bem

como para a temática da educação para o lazer, intrinsecamente relacionada aos

problemas de justificação e garantia desse direito.

Após esses capítulos, serão feitas algumas considerações finais. Estas,

mesmo não tendo a pretensão de colocar um ponto final nas questões suscitadas ─

o que não seria adequado ao tratamento de um tema complexo por meio da crítica

dialógica ─, procurarão trazer proposições para os desafios relacionados ao objeto

da pesquisa.

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CAPÍTULO 1: EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO LAZER

Não existe consenso a respeito das origens do lazer. Há quem defenda a

ideia de que ele já existia desde os primórdios, associando-o de maneira particular

ao modo de vida dos antigos filósofos gregos. Outros o enxergam como fenômeno

surgido com o advento da modernidade, período em que teria sido inventado não

apenas o lazer, mas também o trabalho, nas formas sob as quais os conhecemos

hoje.

Essa divergência decorre basicamente da compreensão que se tem de lazer

e ócio, relacionados ao tempo livre, em oposição ao tempo ocupado, vinculado

principalmente ao trabalho produtivo. E como a divisão entre tempo de trabalho e

tempo de lazer só se tornou mais nítida com a implantação do modo de produção

fabril, muitos estudiosos entendem que as atividades de recreação e entretenimento

existentes antes do industrialismo não podem ser consideradas lazer, discussão

que, entre outras, será abordada neste primeiro capítulo, dedicado à evolução

histórica do lazer. A abordagem compreenderá a trajetória das atividades lúdicas

tanto na perspectiva da história universal, quanto da história do Brasil, ambas

marcadas por conflitos políticos, sociais e culturais, que caracterizam a dialética

história do lazer.

1.1 Tempo livre e tempo ocupado: do homo ludens à skhole grega

O tempo, de acordo com a hipótese de Norbert Elias (1998), não é um dado

objetivo do mundo criado, como o imaginava Newton; também não representa uma

síntese a priori, como o considerava Kant. Tempo é, antes de tudo, instrumento

desenvolvido socialmente para regular períodos de duração dos processos. Por

meio dele orientam-se as mais variadas tarefas desenvolvidas nas diversas

sociedades. E quanto mais estas se tornam complexas, mais aumenta o sentimento

do tempo como força coercitiva, bem como o abismo entre tempo livre e tempo

ocupado.

Nas primeiras comunidades humanas, o ritmo das atividades seguia

basicamente o das pulsões biológicas e os ciclos da natureza. Para nossos

ancestrais, que utilizavam ―a noção de ‗sono‘ quando hoje falaríamos de ‗noite‘, a de

‗lua‘ quando falaríamos de ‗mês‘ e a de ‗ceifa‘ ou ‗colheita‘ quando falaríamos de

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‗ano‖ (ELIAS, 1998, p. 35), não havia uma rígida separação entre trabalho e lazer. O

ser humano, nessas comunidades, era antes de tudo o homo ludens.3 Tornava-se

corredor, saltador ou lutador no próprio jogo da vida, especialmente no combate aos

inimigos naturais. O trabalho também fazia parte desse jogo, pois, como lembra

Huizinga (2000), até atividades como caça, pesca e coleta de alimentos, destinadas

ao atendimento de necessidades vitais, revestiam-se de forma lúdica nas

sociedades primitivas.

Tomando-se como parâmetro o contexto dessas sociedades, não é fácil

estabelecer uma nítida separação entre tempo ocupado e tempo livre. No entanto, é

possível dizer que, de modo geral, a ideia de tempo ocupado vinculava-se à fração

da vida despendida com a produção de bens necessários à subsistência do

indivíduo e do grupo social, ou seja, em atividades consideradas trabalho em sentido

amplo. Tempo livre, por outro lado, era o oposto ao tempo de trabalho,

representando uma libertação deste, ideia expressa pelo termo grego skhole,

utilizado para designar o modo de vida dos filósofos antigos.

A palavra skhole tem sido muitas vezes traduzida como ócio ou lazer. No

entanto, não é certo confundir o sentido daquele termo com a moderna concepção

de lazer. A skhole da antiguidade não consistia num fenômeno de consumo,

tampouco num tempo de folga conseguido como fruto do trabalho. Em vez disso,

skhole era ―abstenção consciente de qualquer atividade ligada à mera subsistência,

tanto da atividade de consumir como da atividade de trabalhar.‖ (HARENDT, 1999: p.

144). Por isso, quando os filósofos faziam uso da palavra skhole para designar sua

atividade, não estavam se referindo a um modo de vida indolente, e sim

contemplativo, o único que, no entender deles, possibilitava o pleno

desenvolvimento pessoal, tanto cultural quanto espiritual.4 Não se tratava de lazer

3 Expressão consagrada por Johan Huizinga (2000), em livro que a utiliza como título, no qual o autor

procura demonstrar que o jogo é tão importante quanto o raciocínio e o fabrico de objetos, que caracterizariam, respectivamente, o homo sapiens e o homo faber, pois a própria cultura tem um caráter lúdico, razões pelas quais o termo homo ludens mereceria lugar em nossa nomenclatura.

4 O modo de vida contemplativo, e a visão aristotélica do ócio é revisitada por Sebastian de Grazia

(1994), na obra Of time, work and leisure. Para aquele autor, o modo de vida contemplativo, de busca da sabedoria, que caracterizava o ideal filosófico grego, pode nos ajudar a fundar uma nova ética, em que o lazer não precisa ser visto como um mal social, e sim como oportunidade para livrar o indivíduo moderno da ―mediocridade social e da expressão vulgar que o ameaçam‖ (DUMAZEDIER, 1994, p. 187), pois segundo de Grazia, o homem do lazer, de acordo com Aristóteles e Platão, era o homem que devotava o melhor de si mesmo ao estado, e que acreditava que o cultivo da mente e do espírito, tão importante para o estado, era a mais luminosa de todas as atividades, a única em que cada homem era revelado e relacionado aos deuses, e no exercício da qual ele celebrava os deuses.‖ (1994, p. 349, tradução nossa). No texto original: ―A man of leisure, according to Aristotle and Plato,

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como descanso ou divertimento, mas de um ócio diferenciado, que abria ao filósofo

o caminho para as virtudes e, consequentemente, para a felicidade.5

Mas nem todos, obviamente, tinham condição de usufruir do ócio dos

filósofos. Para que estes pudessem viver a vida contemplativa, era preciso que o

fardo do labor fosse colocado nos ombros de outras pessoas, consideradas

socialmente inferiores, a exemplo das mulheres e escravos. Estes, na visão de

Aristóteles (1999), eram propriedade instrumental animada, imprescindível aos seus

senhores, haja vista que era impossível aos instrumentos inanimados executar por si

próprios a vontade e o pensamento de seus donos. Desse modo, qualquer relação

que se estabeleça entre lazer e skhole deve ser feita levando em conta as

peculiaridades desta última, como privilégio de um grupo social específico.

1.2 Do otium romano à dualidade carnaval-quaresma do mundo medieval

Diferente do que houve na Grécia, Roma não superestimou a concepção não

utilitária da fruição do tempo livre. Na visão romana, a skhole como ideal de vida

contemplativa cedeu espaço para o otium, como tempo destinado ao descanso e à

diversão, necessários para se recuperar as energias despendidas no trabalho.

Nessa perspectiva, o conceito de otium ―não se rivalizava com o de nec-otium

(origem de nossa palavra negócio), mas se ajustava a um sentido de inter-relação,

complementação e dependência.‖ (MELO, 2003, p. 4). O trabalho, portanto, deixou

de ter uma conotação negativa como no mundo helênico, passando a ser visto como

um fim, e o ócio, como um meio, a ser desfrutado no tempo que sobra à pessoa,

após ter se dedicado aos negócios de toda ordem, de modo especial aos negócios

públicos.

Nesse sentido é o pensamento eclético de Cícero. Este, na obra Da

República, defende que não somos gerados e educados pela pátria sem esperança

was a man who devoted the best of himself to the state, and who believed that cultivating the mind, so important for the state, was the brightest of all activities, the single one in which man was revealed as related to the gods, and in the exercise of which he celebrated the gods.‖ 5 Jean Lauand, prefaciando o livro de horas vagas, de Paulo Ferreira da Cunha, também chama a

atenção para a impropriedade de se traduzir skhole por lazer. Para Lauand, o que caracteriza a skhole é o modo de olhar do filósofo, voltado para a contemplação do mundo, e que na poesia de Ferreira da Cunha aparece como o olhar capaz de se ―espreguiçar pelos longes até o mar.‖ E invocando os ensinamentos de Aristóteles, Lauand acrescenta que a skhole caracteriza-se pela atitude interior, ―da alma dotada daquela alegre disponibilidade receptiva (não por acaso de skholé derivou a palavra ‗escola‘) ao mistério do ser.‖ (LAUAND, apud CUNHA, P. F., 2005, p. 8).

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de que esta receba a devida recompensa por isso. Portanto, não devemos imaginar

que aquilo que recebemos da pátria tem por principal finalidade nosso bem-estar,

comodidade e ócio. Longe disso, deve servir para ―aproveitar, em sua própria

utilidade, as mais numerosas e melhores faculdades das nossas almas, do nosso

engenho, deixando somente o que a ela possa sobrar para nosso uso privado.‖

(1985, p. 288).

Era nessa sobra de tempo para uso privado que alguns privilegiados podiam

se dedicar a um ―ócio fecundo‖. Esta expressão é utilizada por Cícero (1985) para se

referir ao tempo dedicado por homens de alma elevada, na escrita de dissertações

sobre a vida, e que nos deixaram um importante legado de lições sobre as virtudes.

É de se supor, porém, que esses homens eram apenas uns poucos privilegiados

não somente de alma, mas de posição social e econômica, pois a ideia de tempo

ocioso para as camadas inferiores geralmente não era relacionada a tempo de

fecundidade, e sim de perigosa desocupação. Para elas foi desenvolvida em Roma

uma espécie de lazer de massas, como parte integrante da política do ―pão e circo.‖

O ―pão e circo‖ (panem et circensis) consistia na distribuição de víveres

(especialmente trigo) bem como de dinheiro à população carente, além de promoção

de divertimentos públicos, sendo a luta de gladiadores um dos mais populares. Essa

política, intensificada no governo de Otávio Augusto (30 – 14 a.C.), contribuía para a

diminuição das chances de revoltas entre a população, pois objetivava, em última

análise, ―desviar a atenção das massas populares das suas verdadeiras

necessidades ─ terra e trabalho.‖ (AQUINO, 1980, p. 245).

A manipulação política do divertimento das massas se fazia sentir não apenas

nas lutas de gladiadores, mas nas diversas festividades patrocinadas pelos

governantes romanos. Por meio dos espetáculos festivos, os soberanos tinham em

mente conquistar o apoio popular. Mais que isso, passavam ao povo a imagem de

que eram generosos, pois satisfaziam as necessidades e o gosto das camadas

populares.

Na Idade Média também havia diferença quanto ao uso do tempo livre,

dependendo da situação das pessoas. Os nobres participavam de torneios, caçadas

e banquetes. Como observa Leo Huberman (1978), a impressão que se tem da

nobreza medieval mostrada em alguns livros, é que cavaleiros e damas passavam o

tempo todo a entreter-se em torneios e fartando-se de comida e bebida, sem que

houvesse indícios sobre como e por quem eram produzidos os bens econômicos

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que permitiam aquela vida suntuosa. Em tais livros geralmente não se mostra, com a

mesma riqueza de detalhes, como era o dia-a-dia das camadas sociais inferiores,

cujo trabalho possibilitava o ócio dos estratos superiores, caso da nobreza e do

clero. Para elas, o tempo livre certamente não podia ser preenchido com torneios e

banquetes. Aliás, para os que estavam na base da pirâmide social, sequer havia

nítida distinção entre tempo de trabalho e de não-trabalho, uma vez que, para as

camadas populares:

Ou se trabalhava seguindo os desígnios e desejos dos nobres (caso dos servos), ou se seguia o tempo da natureza (caso dos que trabalhavam no plantio) ou se desfrutava de certa flexibilidade (caso dos artesãos e pequenos comerciantes, estratos numericamente menores). (MELO; ALVES JÚNIOR, 2003, p. 5).

Como se não bastasse, havia o controle de eventos populares por parte da

Igreja Católica. Esta, como se sabe, exerceu grande influência sobre as instituições

medievais. Teve papel importante na economia, sendo responsável pela

disseminação de ideias e princípios nessa área, a exemplo da condenação à usura e

defesa do justo preço. Na educação, organizou as universidades, fundou escolas,

exercendo o controle do ensino. No âmbito jurídico, os preceitos canônicos

balizavam o direito de família e sucessão, entre outros. Na esfera política, formulou

teorias sobre a legitimidade do poder, tendo função primordial na investidura de reis

e imperadores. Por tudo isso, não era por acaso que nos muitos feriados existentes

na Idade Média, em geral ligados ao calendário religioso, houvesse o controle das

festas populares por parte da Igreja, que fazia parte dos poderes hegemônicos da

época. Estes faziam de tudo para que as festas se revestissem de índole cultual e

fossem comemoradas em cerimônias marcadas por uma atmosfera reverenciosa, o

que se adequava à visão hierárquica da sociedade, predominante no mundo

medieval. Nesse contexto, ―as festas oficiais consagravam a desigualdade, a

imutabilidade e a durabilidade das hierarquias, das normas e dos tabus religiosos,

políticos e morais.‖ (GOMES, 2004, p. 135).

Nada disso, porém, impedia que algumas manifestações culturais fugissem

do controle dos poderes hegemônicos. Ao lado das sisudas cerimônias oficiais,

havia festejos marcados pela sátira dos costumes, entre os quais se destacava o

carnaval. Este, mais do que simples espetáculo, era uma manifestação popular de

celebração do mundo às avessas. Os festejos carnavalescos funcionavam como

uma válvula de escape, por meio da qual, ao menos momentaneamente, a

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hierarquia era subvertida; o cerimonialismo clerical, profanado; o medo do castigo

eterno, esquecido. No carnaval, a exemplo de outros festejos populares, criava-se

um novo mundo, livre das pesadas imposições dos poderes hegemônicos:

Os festejos do carnaval, com todos os atos e ritos cômicos que a ele se ligam, ocupavam um lugar muito importante na vida do homem medieval. Além dos carnavais propriamente ditos, que eram acompanhados de atos e procissões complicadas que enchiam as praças e as ruas durante dias inteiros, celebravam-se também a ―festa dos tolos‖ (festa stultorum) e a ―festa do asno‖; existia também um ―riso pascal‖ (risus paschalis) muito especial e livre, consagrado pela tradição. Além disso, quase todas as festas religiosas possuíam um aspecto cômico popular e público, consagrado também pela tradição. Era o caso, por exemplo, das ―festas do templo‖, habitualmente acompanhadas de feiras com seu rico cortejo de festejos públicos (durante os quais se exibiam gigantes, anões, monstros e animais ―sábios‖). A representação dos mistérios e soties dava-se num ambiente de carnaval. O mesmo ocorria com as festas agrícolas, como a vindima, que se celebravam igualmente nas cidades. O riso acompanhava também as cerimônias e os ritos civis da vida cotidiana: assim, os bufões e os ―bobos‖ assistiam sempre às funções do cerimonial sério, parodiando seus atos (proclamação dos nomes dos vencedores dos torneios, cerimônias de entrega do direito de vassalagem, iniciação dos novos cavaleiros, etc). Nenhuma festa se realizava sem a intervenção dos elementos de uma organização cômica, como, por exemplo, a eleição de rainhas e reis ―para rir‖ para o período da festividade. Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas. Isso criava uma espécie de dualidade do mundo e cremos que, sem levá-la em consideração, não se poderia compreender nem a consciência cultural da Idade Média nem a civilização renascentista. Ignorar ou subestimar o riso popular na Idade Média deforma também o quadro evolutivo histórico da cultura européia dos séculos seguintes (BAKHTIN, 1987, p. 4-5).

Não se pode esquecer, porém, que essa dualidade do mundo era ao mesmo

tempo reflexo e fonte de tensões existentes na consciência cultural da Idade Média.

Se durante o carnaval criava-se um mundo de cabeça para baixo, as cinzas da

quaresma o recolocavam em seu devido lugar. Com isso, os poderes hegemônicos

não perdiam de todo o controle da situação. O controle e as tensões se faziam sentir

particularmente sobre o corpo do indivíduo, que se via dividido entre os excessos do

carnaval (muitos deles catalogados pela Igreja como pecados, a exemplo da gula e

luxúria), e as penitências que a ele deveriam ser infligidas na quaresma. O corpo,

então, passou a ser palco de um verdadeiro paradoxo. Por um lado, era visto como

cárcere da alma, podendo ser reprimido e supliciado sem maiores rebates de

consciência; por outro, como templo do Espírito Santo, devendo ser glorificado e

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santificado. Tanto uma visão quanto a outra fizeram com que a Idade Média se

tornasse um período propício à negação do corpo ou de renúncia a este:

As manifestações sociais mais ostensivas, assim como as exultações mais íntimas do corpo, são amplamente reprimidas. É na Idade Média que desaparecem sobretudo as termas,o esporte, assim como o teatro herdado dos gregos e romanos; e os próprios anfiteatros, cujo nome passará dos jogos de estádio às disputas do espírito teológico no seio das universidades. Mulher diabolizada; sexualidade controlada; trabalho manual depreciado; homossexualidade no princípio condenada, depois tolerada e enfim banida; riso e gesticulação reprovados; máscaras, maquiagem e travestimentos condenados; luxúria e gula associados. (LE GOFF; TRUON, 2006, p. 36-37).

1.3 Da invenção do lazer na modernidade à sua complexidade no mundo

contemporâneo

As tensões entre as visões de mundo das diferentes camadas sociais, o

exercício do poder sobre o corpo, bem como os efeitos negativos da renúncia a este

não se limitaram ao mundo medieval. Na modernidade, alguns desses fatores

recrudesceram, embora tenha havido mudança na composição dos poderes

hegemônicos, como também na forma de atuação destes sobre a vida dos estratos

sociais inferiores. Tudo isso, a exemplo do que ocorreu no mundo medieval, teve

influência sobre a forma de ocupação do tempo livre das pessoas. Existe inclusive

uma corrente de pensamento segundo a qual foi somente na modernidade, e

principalmente a partir do modelo de produção fabril, que a separação entre o tempo

do trabalho e do não-trabalho tornou-se artificial. Sendo assim, não somente o lazer,

mas também o trabalho, como os concebemos atualmente, seriam invenções dos

tempos modernos.

Na Idade Média, como já foi visto, não havia uma ruptura significativa entre o

tempo de trabalho e de não-trabalho. Tal realidade foi mudando, à medida que a

divisão social do tempo foi se adequando ao modelo de produção fabril, 6 processo

que fez com que o tempo ocupado, e consequentemente o tempo livre, passassem a

6 A distribuição dos tempos sociais, com a nítida distinção entre tempo de trabalho e sem trabalho,

não se deu de forma abrupta, mas gradativamente. No começo do século XIX, como informa Alain Corbain (2001), o tempo de trabalho ainda era descontínuo. O operário renano bebia, fumava e conversava enquanto fazia seu trabalho; o operário da construção civil em Paris bebia vez por outra um quartilho no horário do serviço e na França, de modo geral, cultivava-se o hábito de parar o trabalho às segundas, o ―Saint-Lundi‖. Além disso, no período da ―proto-industrialização‖, ―a importância do trabalho domiciliário torna difícil a distinção entre emprego, a vida familiar e as actividades domésticas‖ (CORBIN, 2001, p. 11), situação que vai se modificando, à medida que o trabalho à tarefa vai sendo substituído pelo trabalho realizado em função de um tempo determinado, e o ambiente doméstico vai deixando de ser local de trabalho.

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ser regidos pelo apito da fábrica:

Todos os dias, na atmosfera esfumaçada e triste do bairro operário, o apito da fábrica lançava aos ares o seu grito estridente. Então, criaturas toscas, com os músculos ainda fatigados, saíam rapidamente de pequenas casas pardacentas e corriam como baratas assustadas. À fria meia luz, iam pela rua estreita em direção aos altos muros da fábrica que os esperava implacável e cujos inúmeros olhos quadrados e amarelos iluminavam a calçada lamacenta.

(...) À tarde, ao sol poente, os seus raios vermelhos iluminavam as vidraças do casario; a oficina vomitava das suas entranhas de pedra todas as escórias humanas, e os operários enegrecidos pelo fumo, espalhavam-se novamente pelas ruas, deixando atrás de si exalações ásperas do óleo das máquinas. (...) A fábrica absorvera o dia, as máquinas tinham sugado aos músculos dos homens todas as forças de que precisavam. O dia fora riscado do conjunto da vida, sem deixar vestígios; o homem tinha dado mais um passo para o túmulo, sem disso se aperceber. (GORKI, s.d., p. 9).

Ainda que se tenha a descrição de Máximo Gorki na conta de hipérbole

literária, os relatos históricos não deixam dúvida de que a produção fabril, no início

da Revolução Industrial, realmente absorvia a maior parte do tempo de vida do

proletário.7 Tanto que a ideia que se tem de proletário, como nos chama a atenção

Amauri Mascaro Nascimento (2003), é não somente de um trabalhador com prole

numerosa, mas de um operário a quem não se dava oportunidade de

desenvolvimento intelectual, pois, entre outras coisas, tinha que cumprir jornada de

trabalho que variava entre quatorze e dezesseis horas.

Essa exigência de jornadas exorbitantes era parte da racionalidade

econômica do capitalismo industrial. As máquinas, que poderiam ter tornado mais

suave o trabalho humano, impunham ao operário uma carga de trabalho até mais

pesada que a dos servos e artesãos do período anterior ao industrialismo. Pois para

seus proprietários, elas significavam um capital de tamanha magnitude que jamais

podiam parar: ―tinham de trabalhar, trabalhar sempre. Além disso, o proprietário

inteligente sabia que arrancar tudo da máquina, o mais depressa possível, era

essencial porque, com as novas invenções, elas podiam tornar-se logo obsoletas.‖

(HUBERMAN, 1978, p. 189). Daí não ser estranho que os donos das máquinas

fizessem com que estas, no dizer de Gorki, sugassem aos músculos dos homens

7 No limiar da Revolução Industrial, a jornada de trabalho ia, na maioria dos casos, do nascer ao pôr-

do-sol, haja vista que até a invenção do lampião a gás por William Murdock, em 1792, o trabalho era realizado enquanto a luz solar o permitisse. Em Etrúria, na fábrica de Wedgewood, ―de 25 de março até 29 de setembro, a campainha tocava às 5:45 horas, iniciando-se o trabalho às 6 horas. No restante do ano, a campainha tocava 15 minutos antes do amanhecer. O mínimo diário era de 12 horas. Arkwright tinha fama de patrão liberal porque não exigia mais que 12 horas, quando a média era de 14 horas diárias‖. (NASCIMENTO, 2003, p. 19).

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todas as forças de que precisavam, pois na lógica capitalista, exacerbada com o

industrialismo, imperava a lei da seleção econômica dos mais aptos, bem como a

concepção irracional de que ―o homem existe em razão de seu negócio, ao invés de

se dar o contrário.‖ (WEBER, 1997, p. 46). As noções de trabalho e lazer também

sofreram influência dessa lógica.

Trabalho, na acepção predominante nos dias de hoje, não se confunde com

labor e com afazeres, termos que designam, respectivamente, tarefas em que o

próprio agente é o beneficiário, e atividades repetitivas, realizadas na esfera

reprodutiva. O trabalho, diferente dessas outras noções, caracteriza-se por ser uma

atividade desenvolvida na esfera pública, cuja utilidade é reconhecida pela

sociedade. Trata-se do trabalho remunerado, pelo qual a pessoa ocupa um lugar no

conjunto da sociedade, sendo-lhe conferida uma identidade social:

É pelo trabalho remunerado (mais particularmente, pelo trabalho assalariado) que pertencemos à esfera pública, adquirimos uma existência e uma identidade sociais (isto é, uma ―profissão‖), inserimo-nos em uma rede de relações e de intercâmbios, onde a outros somos equiparados e sobre os quais vemos conferidos certos direitos, em troca de certos deveres. O trabalho socialmente remunerado e determinado ─ mesmo para aqueles e aquelas que o procuram, para aqueles que a ele se preparam ou para aqueles a quem falta trabalho ─ é, de longe, o fator mais importante da socialização. Por isso, a sociedade industrial pode perceber a si mesma como uma ―sociedade de trabalhadores‖, distinta de todas as demais que a precederam. (GORZ, 2007, p. 21).

Nesse sentido é que se diz que o trabalho é invenção da modernidade. Pois

nas sociedades pré-modernas as atividades que poderíamos considerar trabalho, a

exemplo do labor e dos afazeres, eram fatores de exclusão e não de integração

social. As pessoas que as realizavam eram tidas como socialmente inferiores, pois

produziam e reproduziam as bases materiais indispensáveis à existência sob o jugo

da necessidade e não no reino da liberdade, a exemplo de mulheres e escravos no

mundo antigo. Naquele contexto social, o trabalho era indigno à condição de

cidadão, ―não porque fosse reservado às mulheres e aos escravos, mas, ao

contrário, era reservado às mulheres e aos escravos porque ‗trabalhar era sujeitar-

se à necessidade.‖ (Ibidem, p. 22).

Se o trabalho for considerado invenção da modernidade, o lazer também deve

ser. Pois se o advento do industrialismo fez com que se demarcasse artificialmente o

tempo de trabalho, consequentemente o tempo livre passou a depender da jornada

fixada pelos donos das indústrias. O lazer, por sua vez, passou a ser associado aos

momentos de descanso e recreação necessários à recomposição das forças dos

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trabalhadores, para serem novamente sugadas pelas máquinas. Essa concepção

utilitária do lazer associava-se ao processo de disciplinamento do operariado,

indispensável à racionalidade do industrialismo, que mecanizava não só o trabalho,

mas o próprio trabalhador, como ilustra muito bem o filme tempos modernos, de

Charles Chaplin.

No início do industrialismo, houve dificuldades para enquadrar os

trabalhadores nesse processo de mecanização de si mesmos. Apesar da

abundância de mão-de-obra, não foi fácil transformar camponeses em candidatos a

proletários, incutindo-lhes na mente a ideia de que deveriam se submeter

diariamente a jornadas de trabalho desumanas. A recusa à submissão era

interpretada como preguiça dos trabalhadores. Estes, de acordo com pensamento

corrente na época, jamais trabalhariam mais tempo que o necessário para cobrir

seus gastos semanais com alimentos e diversão. Dizia-se que se um operário

recebesse, por poucos dias de trabalho na semana, o suficiente para essas

despesas, certamente nos outros dias se entregaria à ociosidade e bebedeira. Por

isso, uma saída encontrada pelos patrões era pagar salários cada vez mais baixos,

como se estivessem fazendo um bem aos operários.

O processo de mecanização da vida do trabalhador também se estendia ao

monitoramento de suas atividades de lazer. Inspirada na concepção puritana de

exaltação do valor ético e religioso do trabalho, a burguesia industrial disseminou a

ideia de que a ociosidade era um perigo social, e que era preciso combater os

divertimentos nocivos: ―aparentemente, nocivos às camadas pobres (como

alcoolismo, algazarra, prostituição, jogos de azar). Mas, na realidade, muito mais

prejudiciais ao processo produtivo capitalista em desenvolvimento...‖ (GOMES,

2004, p. 135). Por isso, o controle de diversões como tabernas, feiras e jogos foi

amplamente adotado, inclusive com edição de leis que proibiam certas práticas,

como brigas de galo, ou procuravam dificultar o consumo de bebida alcoólica pelas

camadas populares.8

Na contemporaneidade, além da manipulação pelos poderes hegemônicos, o

8 Esse tipo de controle chegou até o mundo contemporâneo, com edição de leis que feriam a própria

lógica jurídica. É o caso da lei Vandervelde, de 29/08/1919. Em seu artigo 2º, que regulamentava o comércio de bebidas alcoólicas na Bélgica, havia autorização para os comerciantes venderem somente a partir de dois litros de bebidas alcoólicas, sendo-lhes proibido vender quantias menores: ―a finalidade desta lei, aparentemente paradoxal, foi impedir que os assalariados retirassem, a cada semana, uma parte do salário para a compra de bebidas alcoólicas, pois o custo de dois litros de álcool ultrapassava o salário semanal médio.‖ (PERELMAN, 2000, p. 77)

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lazer tem de enfrentar outros problemas, muitos deles relacionados às concepções

de trabalho e lazer surgidas na modernidade, e que ainda parecem ser

predominantes. Com o abismo criado entre tempo de trabalho e de lazer, o trabalho

muitas vezes é encarado como meio de vida e não como tempo de vida, e o lazer,

não raro é transformado em mercadoria, constituindo-se em fator de alienação. Ao

mesmo tempo, verifica-se a existência de dois movimentos em sentido inverso na

pirâmide social, com relação ao trabalho e o lazer. Este desce à base da pirâmide,

democratiza-se, deixa de ser privilégio para se tornar direito; o trabalho, ao contrário,

sobe ao topo da estrutura, generaliza-se como dever, embora também seja

considerado direito. Esses deslocamentos não se desenvolvem sem conflitos, nem

são dissociados de outros elementos que caracterizam a dinâmica da vida social.

Por tudo isso, o lazer contemporâneo apresenta-se como uma realidade

extremamente complexa, não devendo ser pensado como ―um fenômeno pacífico,

inocente, ingênuo ou dissociado de outros momentos da vida.‖ (MELO; ALVES

JÚNIOR, 2003, p. 10). Ao contrário, mesmo sendo uma instância específica da vida

social, ele deve ser compreendido nas suas múltiplas relações com as instâncias

política, econômica e cultural, haja vista que nele se processam e se refletem os

mesmos problemas e tensões que atingem a sociedade.

1.4 O lazer no Brasil

A trajetória do lazer no Brasil, como não poderia deixar de ser, também é

marcada pelos conflitos sociais que agitaram nossa história. Entre eles destacam-se,

num primeiro momento, o choque cultural entre índios e portugueses, bem como a

exploração da mão-de-obra dos negros por estes últimos. Posteriormente, merecem

registro as tensões ocorridas com a industrialização tardia em nosso país. Sendo

assim, a abordagem dessa trajetória deve levar em conta esses conflitos, devendo

também ser feita numa perspectiva sistêmica, em que o lazer não seja tomado como

ente isolado, mas na dinâmica de suas relações com a história política, econômica,

social e cultural do nosso país.

1.4.1 A cultura de floresta tropical e a colonização portuguesa

De maneira geral, a história do nosso país é contada somente a partir da

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Idade Moderna, quando passamos a constar dos compêndios da história universal.

Tanto que se costuma falar em descobrimento do Brasil, como parte do

empreendimento mercantilista europeu que patrocinou as grandes navegações. No

entanto, descobertas arqueológicas dão conta da existência de grupos humanos em

nosso território há pelo menos dez mil anos, o que torna sem sentido a ideia de

descobrimento. Embora não existam muitos dados sobre a organização social

desses grupos, é possível fazer conjecturas sobre como eles viviam, laboravam e se

divertiam, a partir da análise da cultura de povos que habitavam a América Latina no

período colonial.

Com base em estudos de Pierre Chaunnu, Cardoso (1985) afirma que a

população da América Latina colonial formava zonas heterogêneas. A despeito da

heterogeneidade, apresentava traços que a distinguiam dos europeus. Em linhas

gerais, assim se caracterizava a organização social dos povos nativos: utilizavam-se

de utensílios de pedra, osso e madeira — o metal (onde era conhecido) prestava-se

para a confecção de armas e ornamentos; não empregavam o torno na fabricação

de cerâmica; não faziam o uso utilitário da roda, o que se explica pela ausência de

mamíferos de grande porte que pudessem ser domesticados, como atesta a carta de

Caminha; não havia a associação entre a pecuária e agricultura, sendo esta última

baseada no cultivo familiar; a organização comunitária normalmente fundava-se na

propriedade comum do solo.

Mesmo não tendo o nível técnico dos europeus, os aborígines dispunham de

considerável acervo de informações relacionadas à ecologia, zoologia, botânica,

anatomia, geologia, etc., o que era indispensável à sua sobrevivência. Em

determinadas áreas, tais informações sobrepujavam as dos colonizadores, a

exemplo do conhecimento da ação terapêutica das plantas medicinais pelos pajés:

―É provável que nas mãos de um curandeiro indígena estivesse mais segura a vida

de um doente, no Brasil dos primeiros tempos coloniais, do que nas de um médico

do reino estranho ao meio e à sua patologia.‖(FREYRE, 2003, p. 335).

Gilberto Freyre nos traz os principais traços da cultura das tribos do Nordeste,

muitos deles extensivos a todo o território brasileiro. A organização social dessas

tribos constituía a denominada cultura de floresta tropical:9

9 Esses traços culturais, segundo Gilberto Freyre (2003), foram resumidos por Thomas Whiffen e a

classificação como cultura de floresta tropical, também segundo Freyre, é de autoria de Wissler.

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...caça, pesca, cultura de mandioca, tabaco e coca, e em menor extensão de milho, inhame ou cará, jerimum, pimenta; os campos clareados a fogo (coivara) e cavados a pau e não a enxada; nenhum animal doméstico; toda vida animal aproveitada como alimento; uso do mel, havendo certa domesticação de abelha; a farinha ou o bolo de mandioca e a caça pequena conservada em caldo grosso, apimentado — os dois alimentos de resistência; a raiz de mandioca espremida depois de embrulhada em palha ou esteira; a coca mascada e as sementes de mimosa usadas como rapé; o tabaco usado apenas como bebida e só em certas cerimônias; o conhecimento e uso do curare e outros venenos; uso da flecha, lança, arco e remo; captura de peixe pelo processo de lançar veneno na água, mas também pelo anzol, armadilha, rede e fisga denteada; hábito de comer barro; canibalismo; sinais por meio de tambores; decorações fálicas; redes de fibra de palmeira; árvores derrubadas por meio de cunhas, grande pilões de pau para pisar coca, tabaco e milho; freqüente deslocamento de habitações e de lavouras; comunidades inteiras numa casa só, grande e quadrangular, coberta de palha, quatro caibros sustendo-a no interior, sem chaminé; o terreno em redor da casa limpo, mas esta escondida no meio do mato e só acessível por caminhos e veredas confusas; nenhuma indumentária, a não ser de casca de árvore para os homens; pentes para as mulheres feitos de pedaços de palmeira; colares de dentes humanos; ligaduras decorativas para o corpo, fusos atravessados no nariz, chocalho atado às pernas, pintura elaborada do corpo; espécie de conferência ou conclave em torno de uma bebida negra, de tabaco, antes de iniciar-se qualquer empresa importante, de guerra ou de paz; couvade; proibição às mulheres de se associarem às cerimônias mais sérias e de estarem presentes às de iniciação dos meninos na puberdade; os nomes de pessoa não pronunciados alto e os dos caracteres míticos apenas sussurrados; importância da feitiçaria; fraudes grosseiras de feitiçaria; as doenças sugadas pelo feiticeiro, cuja principal função seria, entretanto, tirar espíritos maus; duas grandes cerimônias para celebrar épocas de colheita ou de amadurecimento de frutas, a da mandioca e a do abacaxi; os meninos cruelmente espancados nas cerimônias da puberdade; prova das formigas mordedeiras; os ressentimentos ou mágoas do indivíduo por ele formalmente apresentados ao grupo; uma espécie de dança de ciranda; gaita, flauta, castanhola e maracá; cada um dos grupos acomodados numa só acomodação, exógamo; descendência por via paterna; monogamia; cada habitação com um chefe, sendo o conselho formado por todos os adultos do sexo masculino; contos com semelhança aos do folclore europeu; contos de animais fazendo lembrar os do lore africano; o Sol e a Lua, venerados; os mortos, sepultados. (FREYRE, 2003, p. 165-166).

Entre as atividades lúdicas, além das referidas por Gilberto Freyre, há relatos

de que os nativos gostavam de jogos, a exemplo dos praticados com bolas feitas de

borracha natural extraída de seivas de árvores (cautchu), lançadas e rebatidas com

a cabeça. Também apreciavam o canto, acompanhado de flautas de bambu e de

osso, chocalhos, guizos e tambores, e realizavam festas no centro das aldeias, em

que se consumiam bebidas fermentadas.

Com a chegada dos portugueses, a cultura de floresta tropical se viu

confrontada com a cultura europeia, numa luta desigual. Os colonizadores,

constituindo-se no poder hegemônico, procuraram fazer com que os nativos

passassem a viver sob o signo de uma nova ordem e uma nova lei. E qual foi a lei

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que resolveram impor aos índios?:

A lei que eles hão de dar é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do governador, fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se, pois tem muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos; fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem e com esses padres da Companhia para os doutrinar. (SERAFIM LEITE, 1558, apud RIBEIRO, 1998. p. 51).

Em outras palavras, a nova lei destinava-se a fazer o índio deixar de ser índio.

Cuidaram logo de tachar de vagabundo o nativo que resistisse ao extermínio

cultural. A disseminação do preconceito foi tão intensa que chegou aos nossos dias,

como se verifica em alguns livros didáticos de história do Brasil, nos quais os índios

são mostrados como incapazes de laborar nos engenhos de açúcar por serem

indolentes.10

Embora tachados de preguiçosos, os escravos índios formaram a maioria da

mão-de-obra durante todo o primeiro século de colonização, revelando disposição

para diversos tipos de ofícios. A documentação colonial, embora escassa, revela

talento e disposição dos índios para ―ofícios artesanais, como carpinteiros,

marceneiros, serralheiros, oleiros. Nas missões jesuíticas tiveram oportunidade de

se fazerem tipógrafos, artistas plásticos, músicos e escritores.‖ (RIBEIRO, 1998, p.

99).

1.4.2 O “tempo livre” dos escravos: entre Zumbi e Pai João

Os índios não foram os únicos a sofrer com o jugo da dominação portuguesa.

Os negros africanos sentiram não só na pele, mas em todo o corpo, a dureza do

regime de vida e labor imposto pelo empreendimento colonial lusitano. O trabalho

escravo em larga escala foi adotado como a mão-de-obra destinada a sustentar a

economia colonial. Curioso é que esse regime de trabalho era anacrônico para os

tempos modernos. Era de se esperar que o mundo civilizado não mais o aceitasse,

já que havia ultrapassado a servidão medieval.11 Todavia, as ideias de liberdade e de

10

Pesquisa nesse sentido foi realizada pelo antropólogo social Everardo P. Guimarães Rocha, que se

mostra indignado com tal preconceito: ―ora, como aplicar adjetivos tais como ‗indolente‘ e ‗preguiçoso‘ a alguém, um povo ou uma pessoa que se recuse a trabalhar como escravo, numa lavoura que nem sequer é a sua, para a riqueza de um colonizador que nem sequer é seu amigo: antes, muito pelo contrário, esta recusa é, no mínimo, sinal de saúde mental.‖(1996, p. 16).

11

Essa escravidão ―moderna‖, exumada depois que os franceses haviam feito sua revolução e procuravam espalhar pelo mundo os ecos da liberdade, igualdade e fraternidade, surge na civilização ocidental e, de modo particular em nosso país, no dizer de Caio Prado Júnior, como um corpo

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progresso, características dos tempos das luzes, não beneficiaram os negros

africanos, da mesma forma que não se aplicavam aos índios. Ao contrário,

―sexualidade, nudez, feiúra e indolência constituem temas-chave da descrição do

negro na literatura científica da época.‖ (NUNANGA, 1986, p. 8). Tal literatura, aliada

à concepção religiosa de propagar a fé cristã com a conversão dos negros,

contribuiu para legitimar a escravidão12 no Brasil.

Não se deve pensar, porém, que a escravidão foi fruto apenas de preconceito

ideológico ou da dureza do coração de escravocratras. A própria organização da

empresa colonial possibilitava a acomodação de coisas que pareciam inconciliáveis,

ou seja, o modo de produção capitalista e o trabalho escravo. Este foi adotado até o

momento em que interessou ao capitalismo mercantil, sendo depois combatido

quando não mais servia ao industrialismo. Para este tornou-se vantajosa a

substituição da mão-de-obra escrava pelos assalariados, potenciais consumidores

das mercadorias produzidas em larga escala pelas indústrias.

Mas até mesmo a Revolução Industrial se beneficiou do tráfico de escravos

africanos para as colônias europeias. A invenção da máquina a vapor, por exemplo,

foi possível graças ao capital acumulado no comércio triangular de manufaturas,

escravos e açúcar: ―James Watt foi subvencionado por mercadores que haviam feito

assim suas fortunas. Eric Williams afirma-o em sua documentada obra sobre o

tema.‖ (GALEANO, 1991, p. 93). Além disso, o tráfico enriqueceu empresas inglesas

e impulsionou a bolsa de Londres, símbolo da metrópole da época, sobre a qual o

escritor Samuel Jonhson dizia: ―quando alguém está cansado de Londres, é porque

está cansado da vida; pois Londres tem de tudo que a vida pode oferecer.‖

(JOHNSON apud GALBRAITH, 1986, p. 314).

Bem diferente da realidade dos afortunados de Londres, a vida não tinha

muito o que oferecer ao escravos negros trazidos ao Brasil:

Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça

apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro mercador

africano de escravos para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partia em comboios, pescoço atado

estranho, que vai de encontro aos padrões morais e materiais vigentes, sendo destituída, desse modo, ―de qualquer elemento construtivo, a não ser num aspecto restrito, puramente material, da realização de uma empresa de comércio: um negócio apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores.‖ (1994, p. 271).

12

A esse respeito, Silvia Hunold Lara comenta: ―deste modo se justificava a escravidão: enquanto proselitismo, movimento de conversão e catequese. Diríamos melhor, porém, que assim se justificava a escravização, não a escravidão. Uma vez cristão, por que continuaria o converso escravo?.‖ (1988, p. 42)

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a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar no dia seguinte até a exaustão. (RIBEIRO, 1998, p. 119).

Mesmo assim, em seu parco tempo de não-labor ou quando conseguiam fugir

para os quilombos, os negros cultivavam manifestações culturais trazidas da África,

como forma de resistência à dominação. Entre elas estavam atividades lúdicas,

como a capoeira, em que se tocavam instrumentos musicais, numa mistura de jogo,

dança e luta. Também não se pode esquecer dos cantos de trabalho, de feitiçaria e

acalanto, das danças de origem africana, que deram origem ao samba e ao lundu,

além de manifestações que apresentavam traços de teatro, dança e música, a

exemplo do congo e maracatu.

Além de representar uma das formas de reação ao cativeiro, a prática de

atividades lúdicas pelos negros também se constituiu num dos elementos do

complexo sistema escravista implantado no Brasil.13 Este nem se reduziu à

escravidão branda, caracterizada por um suposto paternalismo ─ ainda que violento

─ da dominação senhorial, nem à concepção extremada dos escravos sem a mínima

possibilidade de ação, mas apenas de reação ou fuga, totalmente aniquilados no

âmbito sociocultural. Na perspectiva dialética, é possível enxergar para os escravos

um espaço de negociação. O escravo que negocia apresenta-se, portanto, como

uma figura intermediária entre os dois extremos: ―de um lado, Zumbi de Palmares, a

ira sagrada, o treme-terra; de outro, Pai João, a submissão conformada.‖ (SILVA;

REIS, 2009, p. 13). E foi nesse meio-termo, se não de negociação explícita, ao

menos de tolerância tácita, que puderam se desenvolver muitas das atividades

13 Essa complexidade se faz sentir inclusive na relação entre senhores e escravos. No livro Economia

Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, publicado em 1705, o padre jesuíta Jorge Benci ―explicava aos senhores, com bases teológicas e filosóficas, as regras, normas e modelos que deviam seguir na relação com seus cativos. Para esse autor, a relação senhor-escravo era um complexo de obrigações recíprocas. O escravo devia sujeitar-se a trabalhar a seu senhor. O que os senhores deviam dar aos escravos resumia-se na seguinte fórmula: ‗panis, et disciplina, et opus servo‘, isto é, pão, disciplina e trabalho para o servo. Pão (sustento, vestuário, cuidado nas enfermidades e obrigações de ensinar a doutrina cristã) para que não sucumbissem; castigo, para que não errassem, e trabalho, para que merecessem o sustento e não se fizessem insolentes contra os próprios senhores e contra Deus.‖ (LARA, 1988, p. 45).

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lúdicas dos escravos, incorporadas posteriormente às manifestações culturais do

nosso povo.

1.4.3 A herança lúdica das matrizes étnicas do povo brasileiro

Embora se saiba que o povo brasileiro foi formado da miscigenação de várias

etnias, sendo essencialmente ―um povo mestiço na carne e no espírito‖ (RIBEIRO,

1998, p. 447), costuma-se identificar nos índios, brancos e negros as nossas

matrizes étnicas. Estas, numa história marcada por enfretamentos e conflitos, são

responsáveis por uma rica herança cultural, na qual está compreendido o elemento

lúdico, característica fundamental do que hoje entendemos por lazer.

Da tradição indígena herdamos o gosto pelas brincadeiras e jogos envolvendo

a figura e a imitação dos animais: ―o próprio jogo de azar, chamado do bicho, tão

popular no Brasil, encontra base para tamanha popularidade no resíduo animista e

totêmico de cultura ameríndia reforçada depois pela africana.‖ (FREYRE, 2003, p.

206). Outra contribuição para os esportes que atualmente apreciamos veio do jogo

que os índios praticavam com a bola feita de borracha natural, como referido

anteriormente.

O legado das atividades lúdicas dos negros também é significativo. Podemos

encontrá-lo em várias de nossas manifestações culturais. É o caso da tradição das

bonecas de pano, de origem africana, que se comunicou à nossa cultura, diferente

do que ocorreu com as bonecas de barro indígenas; das músicas, danças e jogos

oriundos da cultura dos negros, que se transformaram em importantes bens culturais

brasileiros, a exemplo do samba, maracatu e capoeira, entre outros.

O colonizador português, por sua vez, incorporou à nossa cultura o uso de

instrumentos musicais como o violão, a flauta e o piano; músicas como a modinha e

cantigas de roda; danças dramáticas como o reisado e a Nau Catarineta. Além disso,

destaca-se a contribuição da cultura portuguesa na integração de elementos lúdicos

às nossas festas religiosas, o que se deve às peculiaridades do catolicismo

construído em nosso país, de índole festiva e caracterizado pela religiosidade

popular.

O catolicismo praticado no Brasil revelava-se aberto a festas, com grandes

procissões e foguetório. Chegava-se a jogar peteca com a imagem de santos, tanta

era a intimidade que os devotos se permitiam no cristianismo luso-brasileiro. A festa

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dedicada a São João já era marcada por danças e fogueiras. Na de Santo Antônio,

era comum pendurar-se a imagem desse santo de cabeça para baixo, como

simpatia para se conseguir um casamento. Relatos dão conta até do costume de se

dançar e namorar dentro das Igrejas:

Dançou-se e namorou-se muito nas Igrejas coloniais do Brasil. Representavam-se comédias de amor. Em uma de suas pastorais, recomendava em 1726 aos padres de Pernambuco D. frei José Fialho, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, bispo de Olinda: ―não consintão que se fação comedias, colloquios, representações nem bailes dentro de alguma Egreja, capella, ou seus adros‖. Isto em princípios do século XVIII. De modo que talvez não exagere Le Gentil de la Barbinais ao descrever-nos as festas do Natal de 1717 que teria presenciado no convento de freiras de Santa Clara na Bahia. Cantavam e dançavam as freiras com tal algazarra que o viajante chegou a acreditar que estivessem possuídas de algum espírito zombeteiro. Depois do que representaram uma comédia de amor. (FREYRE, 2003, p. 327-328).

Aquele tipo de catolicismo, tolerante às manifestações lúdicas do povo,

contrastava com a visão predominante das igrejas nascidas com a Reforma

protestante. Estas tendiam à rigidez de costumes, com a condenação de atividades

lúdicas. Daí que, segundo Requixa, ―parece plausível admitirmos que a moral do

trabalho estivesse mais próxima do comportamento protestante que do

comportamento espiritual católico, pelo menos naquele instante histórico.‖ (1977, p.

20).

A relação entre o lúdico e o religioso permanece em nosso catolicismo,

embora sem os exageros do passado. Muitas festas religiosas caracterizam-se como

momentos de lazer. Este, porém, tornou-se mais complexo e multifacetado a partir

da urbanização do nosso país, processo intimamente ligado à nossa

industrialização. Como ocorreu em outros países, o industrialismo foi o grande

responsável pela manifesta ruptura entre tempo livre e tempo ocupado. E no

ambiente urbano-industrial a utilização do tempo livre ganhou novos contornos,

dando ensejo ao lazer na forma que o entendemos hoje.

1.4.4 Industrialização, urbanismo e lazer no Brasil contemporâneo

O processo de industrialização no Brasil foi tardio, se comparado ao de muitos

países da Europa. Enquanto a Inglaterra do século XVIII vivia a efervescência da

Revolução Industrial, que fez surgir o movimento operário e o sindicalismo, aqui o

capitalismo se valia do trabalho escravo, abolido somente no apagar das luzes do

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século XIX. A abolição, por sua vez, desacompanhada de qualquer medida para

integração sócio-econômica da mão-de-obra dos negros, não proporcionou aos ex-

escravos condições para se tornarem trabalhadores livres, seja na zona rural, seja

nas cidades. A condição de vida de alguns ficou ainda mais sofrida:

No Nordeste, a situação do ex-escravo não melhorou nada; pelo contrário, tendeu a piorar. Os latifúndios ocupavam toda a região, impossibilitando a formação de pequenas propriedades, mesmo em nível de subsistência. Além disso, a crise da lavoura açucareira e as inovações técnicas reduziram ainda mais a procura de mão-de-obra. Na região Sudeste, nas áreas em que a lavoura açucareira estava em decadência, alguns ex-escravos tiveram oportunidade de se estabelecer e cultivar sua pequena roça. Esses casos foram, no entanto, uma exceção. A regra geral foi a não-integração do negro à sociedade. Ele não tinha condições de concorrer com o imigrante, melhor qualificado tecnicamente. Os planos dos abolicionistas em relação à integração do escravo não se concretizavam. Os negros foram atirados no mundo dos brancos sem nenhuma indenização, garantia ou assistência. A grande maioria deslocou-se para as cidades, onde os aguardavam o desemprego e uma vida marginal. (ALENCAR; RAMALHO; RIBEIRO, 1986, p. 167-168).

A vida marginal nas cidades incluía a realização de biscates, furtos e roubos,

além da mendicância, práticas que, desde o período colonial, já faziam parte da vida

de muitos pobres ―livres‖. Estes, no sistema escravista, ocupavam um vácuo social,

uma vez que não assumiam os papéis bem definidos de senhores ou escravos. Com

a abolição, estes últimos se juntaram a essa massa de desvalidos, formando ―um

enorme exército de reserva do trabalho, que surgiu antes da criação de condições

econômicas para seu emprego na produção,‖ (KOVAL, 1982, p. 51), o que só veio a

ocorrer em larga escala com o advento da industrialização.

Apesar de ter havido alguns empreendimentos industriais na época colonial,

como ferrarias, engenhos de açúcar e pequenas fábricas de sabão, de tecidos e

artigos de couro, foi somente no início do século XIX que começaram a ser

instaladas fábricas de maior porte no Brasil. Uma das primeiras que se tem notícia

foi uma fiação de algodão, inaugurada em 1811 em São Paulo, que utilizava energia

hidráulica e também o trabalho escravo. No ano seguinte foram abertas tecelagens

no Rio de Janeiro, além de fábricas de macarrão e outras massas. Com o tempo, as

fábricas se espalharam pelo Brasil, embora São Paulo continuasse na liderança da

industrialização em nosso país, o que se consolidou a partir de 1920.

A situação do operariado brasileiro no final do século XIX e início do século

XX não era muito diferente da enfrentada pelo proletariado inglês durante a

Revolução industrial. As condições de trabalho eram precárias, com jornadas que

iam de doze a dezesseis horas, não havia o direito ao repouso remunerado nem

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férias e, ainda por cima, muitos patrões aplicavam castigos corporais aos

empregados, tudo isso somado a salários irrisórios; os acidentes de trabalho eram

frequentes. Tal qual as inglesas, as fábricas brasileiras também exploravam a mão-

de-obra de mulheres e crianças. As mulheres quase sempre recebiam metade do

salário dos homens, e as crianças, menos ainda. Estas últimas chegavam a ser

espancadas, e estavam mais sujeitas à mutilação pela maquinaria industrial.

A exploração desumana do operariado desencadeou manifestações de

protesto por parte dos trabalhadores, que reivindicavam melhores salários e

condições de trabalho, entre as quais estavam limitação da jornada e consequente

ampliação do tempo livre. A mobilização levou a deflagração de greves ainda no

findar do século XIX. Os gráficos foram pioneiros. Alfabetizados por necessidade de

ofício, entre 1857 e 1858 foram protagonistas de algumas greves em nosso país. No

ano de 1863, foi a vez dos ferroviários em Barra do Piraí, no Rio de Janeiro.

Ocorreram ainda várias manifestações dos operários brasileiros na década que vai

de 1870 a 1880. Contudo, foi somente no início do século XX que a mobilização

operária intensificou-se. Entre os anos de 1905 e 1908 aconteceram vários eventos

importantes na história do nosso proletariado: a criação da Federação Operária de

São Paulo, a realização do Primeiro Congresso Operário, duas greves em Santos,

paralisação dos ferroviários da Paulista, além da greve generalizada de maio de

1907, deflagrada na cidade de São Paulo. As greves tornaram-se ainda mais

expressivas entre os anos de 1917 a 1920, quando se sobressaiu a liderança dos

anarquistas de origem italiana, o que se explica pela presença maciça da mão-de-

obra de imigrantes na indústria brasileira.

Também no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX foram

criadas associações de operários urbanos, entre as quais estavam os Clubes,

Centros e Círculos operários. Essas agremiações tinham não apenas caráter político

(os Círculos operários, por exemplo, tinham inspiração político-teológica ou político-

religiosa), mas também funcionavam como centros recreativos, destinados a atender

a necessidades de entretenimento e sociabilidade dos operários. Mesmo quando se

organizavam como centros culturais ligados à militância política, as associações

realizavam bailes e apresentações musicais, como forma de atrair os jovens, o que

revela uma relação entre o lúdico e o político na origem de uma forma de lazer

relevante para a sociedade brasileira, que é o lazer operário. A importância dessa

forma de lazer pode ser percebida num clássico ensaio de sociologia do lazer no

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Brasil. Trata-se de um estudo de organização social das cidades, publicado em 1958

por Acácio Ferreira, cujo título é justamente lazer operário.

Logo na introdução da obra, o autor se reporta a uma conferência proferida na

Bahia por Gilberto Freyre, em que este teria afirmado que ―à medida que a máquina

substituía o homem, a organização do lazer tornava-se mais importante que a

organização do trabalho.‖ (FREYRE apud FERREIRA, A., 1959, p. 9). Tal afirmação

teria causado grande impacto na plateia, vez que a Bahia, naquela época, ainda

ensaiava os primeiros passos na industrialização, e era de se esperar que seus

habitantes estivessem mais interessados em discutir desenvolvimento econômico ou

organização do trabalho que planejamento do lazer.

Todavia, aquelas palavras de Gilberto Freyre foram retomadas por Acácio

Ferreira para reforçar a importância do tema tratado no ensaio deste, que tocava em

questões relevantes como a massificação das atividades lúdicas e a influência da

ideologia do consumo na fruição do lazer; a predominância do lazer passivo ou

espectadorismo; a carência de parques ou áreas verdes nas cidades para a prática

de atividades físicas, além dos obstáculos demográficos e urbanísticos para uma

adequada vivência do lazer por seus habitantes.

Muitos daqueles problemas persistem ainda hoje, boa parte deles como

reflexos do intenso processo de urbanização ocorrido em nosso país. O mundo

urbano tem provocado a transformação, e às vezes até a extinção, de formas

tradicionais e mais espontâneas de lazer. Mas, ao mesmo tempo, tem proporcionado

mais recursos para o lazer de massas, o que traz aspectos positivos e negativos.

Por um lado, há uma tendência para a democratização do lazer; por outro, para a

sua homogeneização e predominância do espectadorismo, questões que serão

tratadas mais adiante, quando forem discutidas as dificuldades de justificação e

garantia do direito ao lazer em nosso país, e de modo particular as políticas públicas

desenvolvidas nessa área.

Não se deve esquecer, ainda, no processo de democratização do lazer em

nosso país, a importância dos registros normativos da Consolidação das Leis do

Trabalho (CLT), no que diz respeito ao direito ao repouso dos trabalhadores,

especialmente o semanal e o anual. Sem a garantia legal dessas pausas

remuneradas do trabalho, como os trabalhadores subordinados poderiam desfrutar

do lazer?

Em nosso país, se bem que a tradição católica há muito recomendasse o

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repouso dominical, este passou a ser imperativo legal apenas em 1932. Cinco anos

mais tarde, tornou-se norma constitucional.14 Todavia, uma coisa era a

obrigatoriedade do repouso semanal; outra, de sua remuneração, consagrada

somente a partir da Constituição de 1946, e que se mantém até os dias atuais.

O repouso anual, por sua vez, passou a integrar a legislação trabalhista

internacional de maneira mais ostensiva a partir da criação da Organização

Internacional do Trabalho (OIT), no ano de 1919. Contudo, antes disso, a legislação

de alguns países já previa o direito a férias anuais para algumas categorias, sendo o

nosso país um dos pioneiros na implementação desse direito:

É digno de registro, neste sentido, o fato de ter sido o Brasil o segundo país em todo o mundo ─ a Inglaterra foi o primeiro, em 1872 ─, a implantar legalmente o direito a férias anuais remuneradas, o que ocorreu no ano de 1889. É bem verdade que o Aviso Ministerial de 18 de dezembro daquele ano concedia férias de quinze dias apenas aos funcionários do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Mas não deixa de ser um passo importante para que esse direito fosse posteriormente estendido a todos os empregados de empresas privadas, o que veio a ocorrer no ano de 1925, durante o governo do Presidente Artur Bernardes. Daí em diante, o instituto das férias foi sendo ampliado e disseminado, sendo hoje alçado em nosso país à categoria dos direitos constitucionais. (COSTA NETO, 2002, p. 171).

Os repousos dos trabalhadores, tutelados pela Constituição Federal e

disciplinados pela CLT,15 ainda que não sejam suficientes para a garantia do lazer

aos trabalhadores, são pressupostos para o exercício daquele direito pelos

assalariados. Tempo livre, por si só, não garante o lazer. Todavia, este não pode

existir sem que haja tempo livre ou disponível, como veremos no capítulo seguinte.

14

O art. 137, ―b‖ da Constituição Federal de 1937 dispunha que a legislação do trabalho deveria observar, além de outros preceitos, que o operário teria direito ao repouso semanal aos domingos e, nos limites das exigências técnicas da empresas, aos feriados civis e religiosos, de acordo com a tradição local. Por sua vez, o art. 157, ―V‖, da Constituição Federal de 1946, repete o mesmo preceito, acrescentado o adjetivo ―remunerado‖ ao ―repouso semanal‖.

15

A Constituição Federal de 1988 trata do repouso semanal remunerado e das férias anuais remuneradas no art. 5º, incisos XV e XVII, respectivamente. Na CLT, o repouso semanal está disciplinado nos artigos 67 a 69, e as férias anuais, nos artigos 129 a 153.

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CAPÍTULO 2: A PROBLEMÁTICA DA DELIMITAÇÃO CONCEITUAL DO LAZER E

DAS RELAÇÕES DESTE COM OUTRAS ESFERAS DA ORGANIZAÇÃO SOCIAL

A compreensão que se tem do lazer é permeada de preconceitos,

principalmente quando se trata do lazer de pessoas a quem são negados direitos

básicos. O lazer de uma criança num campo de refugiados causa espanto a muita

gente, como se fosse coisa de outro mundo. A existência de mais antenas

parabólicas do que refrigeradores em uma favela também é motivo de estranheza.

Em casos como esses, é como se as pessoas só pudessem ter acesso ao lazer

depois de satisfazerem plenamente outras necessidades. O certo, então, seria

elaborar uma hierarquia dessas necessidades, escalonadas numa pirâmide como a

sugerida pela interpretação da teoria de Maslow?16 E nessa pirâmide, onde

situaríamos o lazer?

No caso deste, os preconceitos derivam, em grande parte, da falta de

conhecimento sobre o que é realmente o lazer. Este muitas vezes é vinculado à

ideia de ócio nas acepções negativas de inação, preguiça ou desocupação, levando

à disseminação de concepções equivocadas, segundo as quais:

o lazer seria menos importante que o trabalho, lamentavelmente ainda tido como a dimensão mais importante da vida;

o lazer, numa suposta escala hierárquica de necessidades humanas, seria menos importante que a educação, a saúde e o saneamento (com certeza todas essas dimensões humanas são fundamentais, mas por que seria o lazer menos importante? Além disso, existe relação direta entre lazer e saúde, lazer e educação, lazer e qualidade de vida, as quais não podem ser negligenciadas);

o lazer é um momento de ócio, de ficar parado, quando não um momento de alienação da realidade (devemos estar atentos para perceber que ―não fazer nada‖ é uma possibilidade nos momentos de lazer, mas não a

16 O psicólogo americano Abraham Maslow (1908-1970) notabilizou-se pela proposta da hierarquia

das necessidades, que passaram a ser representadas numa pirâmide. De acordo com aquele autor, ―as motivações humanas, concebidas como estímulos que levam os homens à ação, podem ser compreendidas como necessidades básicas dispostas em uma estrutura hierarquizada. Não se trata de uma ordem de valores, mas de uma escala de aspirações e motivações da ação. Na base da pirâmide (que não é propriamente uma imagem proposta pelo psicólogo norte-americano, mas uma interpretação de sua teoria), encontram-se as necessidades fisiológicas. Em seguida, aparecem as necessidades de segurança (física e mental), as necessidades sociais e as necessidades de status e estima. Por fim, surgem as necessidades de auto-realização, atingidas apenas quando todas as outras estão satisfeitas. Para Maslow, com exceção das necessidades de auto-realização, as demais necessidades estão construídas geneticamente nos seres humanos, da mesma forma que os instintos.‖ (RABENHORST, 2002, p. 71).

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única). (MELO; ALVES JÚNIOR, 2003, p. 29-30).

Visando a elucidação da matéria, este capítulo será voltado para a

delimitação conceitual do lazer, considerando a complexidade que envolve tal

delimitação. Também será feita a análise das relações do lazer com outras esferas

da organização social, a exemplo da economia e da política, destacando-se a

relação entre lazer e trabalho. Por fim, será discutido o problema da classificação do

lazer, considerando-se as diversas formas de sua vivência na contemporaneidade.

2.1 A problemática da delimitação conceitual do lazer

O lazer é um fenômeno social que se entrelaça com outros fenômenos, mas

que, obviamente, distingue-se deles. Para entendê-lo com clareza e profundidade,

faz-se necessária sua delimitação conceitual. Afinal, os conceitos é que nos

permitem descrever, identificar e classificar os objetos que procuramos conhecer. É

por meio deles que chegamos o mais próximo possível da compreensão da

realidade, o que os torna fundamentais para todo pesquisador, como ilustra a

analogia de Einstein:

O pesquisador é, às vezes, como um homem que desejaria conhecer o mecanismo de um relógio que não pode abrir. Apenas a partir dos elementos que vê ou escuta (as agulhas giram, o tic-tac) pode procurar uma explicação elucidando, e do modo mais simples, numerosos fatos, inclusive, até, invisíveis. São os conceitos de movimento, de roda, de engrenagem que permitem compreender, sem o ver, o mecanismo do relógio. (EINSTEIN, apud LAVILLE; DIONE, 1999, p. 92).

No caso dos fenômenos sociais, que fazem parte não apenas da realidade

natural, mas adquirem o sentido de realidade humana, mesmo os fatos visíveis

muitas vezes não podem ser elucidados pela visão mecanicista utilizada para

desvendar o funcionamento das engrenagens do relógio. Por isso, na delimitação

conceitual do lazer, o caminho mais apropriado é o da compreensão e não da

explicação, na perspectiva da distinção formulada por Dilthey quanto a essas duas

formas de conhecer a realidade.17 E nessa compreensão, são importantes as

17 Para Dilthey, ―a realidade humana, tal como aparece no mundo histórico-social, é tal que podemos

compreendê-la de dentro, porque podemos representá-la sobre o fundamento dos nossos próprios estados. A natureza, ao contrário, é muda e permanece sempre como algo de externo. Portanto, nas ciências do espírito, que têm por objeto a realidade humana, o sujeito não se encontra diante de uma realidade estranha, mas diante de si mesmo, porque homem é quem indaga e homem é que é indagado.‖ (DILTHEY, 1883, apud ABBAGNANO, 2000, p. 157-158).

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contribuições advindas das reflexões filosóficas e sociológicas sobre o tema, bem

como a discussão sobre a própria etimologia da palavra lazer e os aspectos

semânticos a ela relacionados.

2.1.1 Lazer: etimologia e aspectos semânticos

Conjectura-se que a palavra lazer tenha aparecido no século XIII na forma

francesa loisir, derivada, por sua vez, do latim licere, que significa ser lícito ou

permitido. (CUNHA, A. G., 1997). Nesse caso, é possível identificar já em sua

etimologia o sentido subjacente de lazer como permissão, tempo de liberdade,

marcado pela ausência de regras ou obrigações.

A Enciclopédia dos iluministas (dictionnaire raisonné des sciences, des arts et

des métiers), prenunciadora da Revolução Francesa, já consagrava em meados do

século XVIII o termo loisir no sentido de ―tempo vago deixado pelas nossas

obrigações, do qual poderíamos dispor de maneira ‗agradável, honesta e virtuosa‘,

caso nossa educação tivesse sido adequada.‖ (GOMES, 2004, p. 139). Já na língua

portuguesa, há registro do uso dessa palavra no ano de 1619, de acordo com

pesquisa feita nas fichas do Índice do Vocabulário de Português Medieval (IVPM),18

de Antônio Geraldo da Cunha, publicação da Casa de Rui Barbosa, do Rio de

Janeiro.

A ocorrência de um termo próprio para designá-lo, antes do advento da

Revolução Industrial pode servir como argumento para a tese de que o lazer não é

invenção da modernidade. No entanto, a questão extrapola a cronologia do registro

etimológico, pois não é apenas o vocábulo, e sim a realidade a que ele se refere,

que determina a existência ou não do lazer em determinada época. Somente para

ilustrar, a língua espanhola não possui a palavra lazer ou a correspondente derivada

da mesma raiz latina. Isso não significa, obviamente, que o lazer não exista para os

habitantes de países que falam aquele idioma, que podem denominar o mesmo

fenômeno como ocio ou tiempo libre. Daí que o lazer também seja associado

semanticamente a skhole grega e ao otium romano.

18

No verbete lazer, do dicionário eletrônico HOUAISS da língua portuguesa, consta as indicações ―sXIII cf. FichIVPM; ETIM. tem sido ligado ao lat. licére ‗ser lícito, ser permitido, ter valor‘, através do arc. lezer ‗ócio, passatempo‘; ver lic-/ f.hist. sXIII lezer, 1619. O ―sXIII‖ indica o século da primeira ocorrência escrita conhecida, ou seja, século 13, enquanto o ―cf. Fich IVPM‖ refere-se à fonte da datação, ou seja o Índice do Vocabulário do Português Medieval, de Antonio Geraldo da Cunha.

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A skhole, como vimos, tinha o sentido de contemplação da verdade, da

beleza, do bem, e não de desocupação, indolência ou inatividade. Disso decorria a

valorização da skhole como modo de vida dedicado à busca da sabedoria (filosofia).

Não é por acaso que esse termo também é a raiz da palavra escola, que deve ser

um lugar onde se tenha prazer em buscar a sabedoria. São Tomás de Aquino, a

esse respeito, relaciona skhole com o ensino-aprendizagem, observando que o

fastidium é um grave obstáculo para a aprendizagem. Esta será tanto mais

proveitosa quanto for realizada sob o signo da alegria e do prazer (delectatio), que

contribuem para a dilatação (dilatatio) da capacidade de aprender.19 Nesse caso, o

sentido do lazer pode ser associado não apenas a permissão ou liberdade, mas

também ao aprender brincando ou brincar aprendendo, relacionado, por exemplo, à

importância didática das atividades lúdicas.

O otium romano, como também já foi visto, associava-se à recreação e

recriação. Recreação como descanso ou divertimento; recriação, por ser um tempo

destinado ao refazimento dos indivíduos, necessário para que estes pudessem se

dedicar satisfatoriamente aos negócios, de modo particular na esfera pública, onde

se exercia a cidadania. Esse caráter do otium romano também está presente na

atual semântica do lazer, que costuma ser vinculado tanto a desenvolvimento,

quanto a descanso e divertimento, ou seja, os três ―dês‖ do célebre conceito de

Dumazedier.

2.1.2 A contribuição de Dumazedier: definição e funções do lazer

O caráter complexo e multifacetado do lazer, prenunciado em sua etimologia,

também se faz presente em seus conceitos e definições. Uma das definições mais

conhecidas foi formulada por Jofre Dumazedier, cuja obra se constitui numa das

referências teóricas mais importantes no campo da sociologia do lazer. Segundo

Dumazedier:

O lazer é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais,

19

Jean Lauand trata da relação entre o ludus e a Suma Teológica de Tomás de Aquino no texto o lúdico no pensamento de Tomás de Aquino e na pedagogia medieval, disponível em

http://www.hottopos.com/notand7/jeanludus.htm, acesso em 08.04.2010.

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familiares e sociais. (1976, p. 34).

Essa definição foi elaborada a partir de pesquisas empíricas feitas pelo autor.

As respostas obtidas nas enquetes por ele realizadas levaram-no à conclusão de

que o lazer tem basicamente três funções: descanso, divertimento e

desenvolvimento (os três ―dês‖), ressaltando-se que, no caso de divertimento, a

estes se associam as acepções de recreação e entretenimento, que ajudam a

traduzir com mais propriedade o termo francês divertissement.

Como descanso, o lazer pode nos restaurar dos males da fadiga. Esta resulta

das obrigações do dia-a-dia, especialmente do trabalho, que quase sempre deixa

marcas dolorosas no corpo e cansaço na mente, cujo alívio depende em grande

parte do repouso restaurador das energias. Nesse sentido, Dumazedier (1976)

adverte sobre a necessidade de ampliação das pesquisas a respeito da

fatigabilidade inerente ao trabalho, com relação às diversas categorias profissionais,

o que poderia ser feito levando-se em conta a função restauradora do lazer.

Na função de divertimento, o lazer pode nos curar dos vários tipos de tédio. É

o caso do abatimento resultante da monotonia do trabalho, especialmente da

execução de tarefas mecânicas e parcelares. Também pode nos ajudar a preencher

o vazio da acídia, caracterizada pela prostração moral, moleza e frouxidão, e que

fragmenta o ser humano, levando-o ao desequilíbrio interior. O lazer como

divertimento pode ser um fator de equilíbrio, ajudando-nos a suportar as dificuldades

da vida.

Já como desenvolvimento, o lazer pode nos libertar das cadeias da ignorância

e da alienação, e ser um instrumento educativo. Educação, como sabemos,

compreende tanto a transmissão do patrimônio cultural quanto o processo de

formação da consciência, e visa, antes de tudo, ao desenvolvimento pleno da

pessoa. Encarado como ócio criativo,20 o lazer pode contribuir para a

democratização do acesso aos bens culturais e para uma educação que não se

limite à instrução, mas que se caracterize como formação ampla, crítica e

humanística, o que é facilitado quando a busca da sabedoria é feita com liberdade e

20 Expressão consagrada por Domenico de Masi (2000), para designar uma forma de pensamento

que, em linhas gerais, preconiza a simultaneidade entre trabalho, estudo e lazer, redistribuição do tempo, do trabalho, da riqueza, do saber e do poder e a construção de uma nova ética, centrada em necessidades humanas fundamentais como introspecção, convívio, amizade, amor e atividades lúdicas.

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prazer, como observava São Tomás de Aquino.

As três funções do lazer não devem ser vistas como divisões ou categorias

estanques. Há sempre uma imbricação entre elas, ainda que, em determinadas

situações, uma seja predominante. Ler um livro, por exemplo, pode ter a função de

descanso, entretenimento ou desenvolvimento, dependendo das circunstâncias em

que essa leitura se dá: se a leitura foi livremente escolhida, a que ela se destina,

qual o conteúdo do texto lido e o papel da leitura na vida daquele que lê, entre

outras coisas. É possível, inclusive, que a leitura não tenha nenhuma das funções

referidas e nem seja efetivamente uma forma de lazer, o que revela a dificuldade

para a conceituação desse fenômeno social complexo, problema que também foi

tratado por Dumazedier, naquilo que ele chama de ―a querela das definições.‖

2.1.3 O problema da delimitação conceitual ante a complexidade do lazer

Formular uma definição de lazer não significa remover de uma vez por todas

os obstáculos metodológicos e epistemológicos para sua adequada conceituação. O

próprio Dumazedier reconhece tal dificuldade, ao analisar as quatro principais

formas utilizadas pela sociologia, na busca da delimitação conceitual de um

fenômeno tão complexo.

A primeira adota a via negativa para essa delimitação. Às vezes fica mais fácil

dizer o que uma coisa não é, do que determinar com segurança o que ela é. No

caso do lazer, é possível dizer que ele não é uma modalidade comportamental

precisamente delimitada:

Todo comportamento em cada categoria pode ser um lazer, mesmo o trabalho profissional. O lazer não é uma categoria, porém um estilo de comportamento, podendo ser encontrado em não importa qual atividade: pode-se trabalhar com música, estudar brincando, lavar a louça ouvindo rádio, promover um comício político com desfiles de balizas, misturar o erotismo ao sagrado, etc. Toda atividade pode pois vir a ser um lazer. (DUMAZEDIER, 2008, p. 88).

Esta concepção, de caráter predominantemente psicológico por se basear no

elemento atitude, pode trazer vantagens e desvantagens na conceituação do lazer.

Por um lado, revela que este pode fazer parte dos mais diversos comportamentos

sociais, colaborando para a melhoria da qualidade de vida. Por outro, porém, abre

espaço para tornar indistintos conceitos como lazer, prazer e jogo.

A segunda forma, por sua vez, consiste em mostrar o lazer em contraposição

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ao trabalho produtivo. Tal entendimento, oriundo principalmente do pensamento

econômico, embora tenha o mérito de apresentar o tempo da liberdade em oposição

ao tempo regulado pelos mecanismos da produção, deixa de fora a delimitação do

lazer em oposição às obrigações familiares e sociais. Onde se situaria, então, o

lazer daqueles que, não estando no espaço da produção, trabalham na esfera da

manutenção e reprodução da vida?

No terceiro modo adotado para sua delimitação, o lazer passa a ser situado

no tempo liberado não somente da esfera produtiva, mas também da reprodutiva. No

entanto, consideram-se como lazer atividades ligadas a engajamento político e

deveres religiosos. Tais atividades, a que Dumazedier se refere como obrigações

sócio-espirituais e sócio-políticas, mesmo que façam parte do tempo livre,

apresentam-se mais como exigência institucional da sociedade do que como

expressão da liberdade e participação voluntária do indivíduo e, nesse caso, não

podem ser consideradas lazer.

Por fim, na quarta maneira apontada e adotada por Dumazedier, as atividades

consideradas lazer, como se vê na definição por ele formulada, são as realizadas

pelo indivíduo e voltadas para sua realização pessoal, após desvencilhar-se das

diversas obrigações sociais. O tempo do lazer, nesse contexto, mais que tempo

vago, é um tempo disponível, concepção que se coaduna com a afirmação de

Walzer:

A bela frase ―o doce tempo que se tem para si‖ nem sempre significa que a pessoa não tenha o que fazer, mas, pelo contrário, que não tem de fazer nada. Podemos dizer, então que o antônimo de lazer não é simplesmente trabalho, mas trabalho necessário, trabalho imposto pela natureza ou pelo mercado, ou, o que é mais importante, pelo capataz ou chefe. (2003, p. 252).

Mesmo sendo mais abrangente que as anteriores, a concepção adotada por

Dumazedier não está imune a críticas. Alguns estudiosos consideram a definição

daquele autor insatisfatória para a delimitação conceitual do lazer. Para eles, tratar o

lazer como um ―conjunto de ocupações‖ é reduzi-lo à prática de atividades

específicas, desvinculando-o de outras manifestações culturais relevantes. Além

disso, argumentam que a oposição entre lazer e obrigações profissionais, familiares

e sociais não é adequada, pois na vida diária não há fronteiras intransponíveis entre

essas atividades. Por isso, apresentam outras conceituações21, nas quais o lazer

21

Algumas dessas conceituações são apresentadas no Dicionário crítico do lazer (GOMES, 2004), entre as quais podemos destacar as duas seguintes: ―O lazer se constitui como um fenômeno

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geralmente aparece como dimensão cultural de vivência do lúdico, instaurando

relações dialéticas com outras dimensões sociais, inclusive com as obrigações

ligadas à esfera da produção.

Pondere-se, porém, que o pensamento de Dumazedier não expressa o

entendimento do lazer como compartimento estanque, como afirmam alguns dos

seus críticos, uma vez que relaciona o lazer com outras dimensões sociais, embora

procurando situá-lo como fenômeno específico, com características próprias,22

delimitação que se mostra importante para eliminar, ou pelo menos reduzir, as

ambiguidades das concepções subjetivistas do lazer, a exemplo da concepção

psicológica baseada na atitude. Essa postura metodológica adotada pelo sociólogo

francês foi importante para a consolidação da sociologia do lazer. O problema é que,

como o caminho por ele escolhido foi o da sociologia empírica, e esta ―exige a

construção de categorias operatórias e de uma teoria anterior ao percurso da

pesquisa,‖ (SANT‘ANNA, 1994, p. 69) esse prévio enquadramento teórico pode

implicar uma visão reducionista do objeto pesquisado.

Na sociologia empírica de Dumazedier, as atividades que não correspondem

ao enquadramento teórico não são tidas como lazer. Algumas são consideradas

lazer parcial ou semilazer, quando desenvolvidas em parte com fins lucrativos, a

exemplo do pescador de vara que vende alguns peixes, do jardineiro apaixonado por

flores, que cultiva legumes para sua subsistência, ou ainda ―quando alguém vai à

festa cívica por divertimento mais do que pela cerimônia em si, ou quando um

empregado lê um romance para mostrar ao chefe de serviço que o leu...‖

(DUMAZEDIER, 2008, p. 95). Estes e outros exemplos, a bem da verdade, em vez

de justificarem satisfatoriamente o enquadramento teórico do lazer, feito pela

sociologia empírica, servem para mostrar que, na prática, ele é um fenômeno muito

mais complexo que as teorias sobre ele formuladas.

Com base nessa constatação, Bellefleur (2002) entende ser preferível a

compreensão do lazer como processo vital polivalente e multiforme, a tentar defini-lo

atribuindo-lhe um conteúdo predeterminado, vez que é muito difícil que qualquer

tipicamente moderno, resultante das tensões entre capital e trabalho, que se materializa como um tempo e espaço de vivências lúdicas, lugar de organização da cultura, perpassado por relações de hegemonia.‖ (MASCARENHAS, apud GOMES, 2004, p. 123-124); o lazer é ―uma dimensão da cultura constituída por meio da vivência lúdica de manifestações culturais em um tempo/espaço conquistado pelo sujeito ou grupo social, estabelecendo relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações, especialmente com o trabalho produtivo.‖ (GOMES, 2004, p. 125). 22

O lazer, segundo Dumazedier (2008) tem caráter liberatório, desinteressado, hedonístico e pessoal.

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conceito dê conta da relatividade existencial desse fenômeno. O lazer, portanto seria

um conceito relativo e virtual, concebendo-se a virtualização como um vetor de

criação de realidade. Ele seria uma expressão linguística oriunda da dialética do

virtual e do atual: ―Desse modo, uma prática particular de lazer seria o aspecto

fenomenológico concreto de um acervo de possibilidades variáveis ao infinito, nos

limites da liberdade e das idiossincrasias humanas.‖ (BELLEFLEUR, 2002, p. 40,

tradução nossa). 23 Bellefleur reconhece, porém, a existência de uma constante

universal relacionada ao lazer, embora esta não exclua a sua relatividade conceitual.

O lazer invariavelmente se apresentaria como um ato resultante de escolha pessoal,

ligado a impulsos vitais percebidos como positivos.

Ocorre que mesmo essa constante universal pode ser questionada. O lazer,

como qualquer outra esfera da experiência humana, pode se relacionar não somente

a impulsos de vida, mas também de morte; não somente a desenvolvimento

pessoal, mas também a alienação. Nesse caso, se levarmos em consideração os

critérios de Dumazedier, não teríamos sequer o semi e sim o antilazer.

O antilazer não se caracterizaria apenas pelo desvirtuamento parcial de

alguma função do lazer, mas pela sua transformação em mercadoria, movida

principalmente pela ideologia do consumo. Ele deixaria de ser uma atividade a que a

pessoa se entrega livremente, para se tornar uma atividade compulsiva, na qual a

autonomia pessoal é quase nenhuma. Esse tipo de lazer (ou antilazer) alienante,

mais do que concessão do sistema econômico, é exigência intrínseca à subsistência

deste, uma vez que ―se esse sistema precisa, para o seu adequado funcionamento,

do tempo de trabalho dos seus componentes, precisa também que esses mesmos

componentes tenham tempo para consumir o que é produzido.‖ (MARCELLINO,

1995, p. 13).

2.2 As múltiplas relações do lazer

A adequada compreensão do lazer, como realidade complexa e capaz de

conter em si até elementos de antilazer, não pode ser feita apenas abstratamente,

num mundo ideal de puras formas, alheias ao contexto socioeconômico onde estão

enraizadas. Também não deve tomar o lazer como objeto isolado, muito menos

23

No original: ―Ainsi, une pratique particulière de loisir serait l‘aspect phénoménal concret d‘un réservoir de possibilités variables à l‘infini dans les limites de la liberté et de l‘idiosyncrasie humaines.‖

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como dado social hermético. Em vez disso, é importante que o estudo do lazer não

despreze a análise de suas múltiplas interligações com outros elementos que

integram o modo de produção de vida social. Algumas delas, por sua relevância,

serão abordadas a seguir.

2.2.1 Lazer e economia: a globalização do mercolazer

Nos dias de hoje, a economia mundial é marcada pelo capitalismo financeiro.

A base econômica não é mais atrelada ao elemento produtivo, e sim ao

especulativo. Em tal cenário, o mundo passa a girar movido pelo dinheiro, e como o

financeiro ―move a economia e a deforma, levando seus tentáculos a todos os

aspectos da vida,‖ (SANTOS, M., 2000, p. 44) o lazer, como não poderia deixar de

ser, também fica sujeito ao despotismo do dinheiro, que caracteriza o nosso atual

estágio de globalização.

O financeiro não é o único déspota nesse cenário. O consumo também

exerce um enorme poder, num mundo em que ―quanto mais as empresas se

globalizam, quanto mais escapam da ação reguladora do Estado, mais tendem a ser

apoiar nos mercados externos para crescer.‖ (FURTADO, 1998, p. 29). Para

crescerem cada vez mais, elas precisam fabricar não apenas produtos, mas

consumidores em larga escala. E para tanto, fabricam e espalham sonhos de

consumo, mesmo entre pessoas e povos que não tenham condição financeira para

consumir seus produtos, o que, obviamente, causa frustração e angústia.

Um dos lugares privilegiados para a prática e difusão da ideologia cultural do

consumo é o shopping center. Gestado no ventre da cidade capitalista, o shopping é

imagem e semelhança da racionalidade do capital. Ele faz parte da urbanização que

subjuga a natureza à lógica do lucro, mas ao mesmo tempo seduz o ser humano,

com a construção de um paraíso artificial, onde as pessoas podem usufruir as

delícias que o dinheiro pode comprar, longe dos problemas enfrentados na mesma

cidade, mas que são deixados do lado de fora das cancelas do shopping.

O lazer é uma das delícias desse éden do consumo. Lá se pode desfrutar do

cinema ─ do lado de fora, muitas salas de projeção viraram templos religiosos ─ e

de jogos eletrônicos, entre outras formas de lazer. O shopping também é ponto de

encontro de pessoas, que podem conversar comodamente nas praças de

alimentação, ou ainda participar de descontraídas happy hours. Esse tipo de lazer,

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tão comum em nossos dias, e que vem se tornando acessível a mais pessoas, é

considerado alienante por alguns estudiosos da matéria:

Os diversos equipamentos de lazer disponíveis em shopping centers levam seus freqüentadores a encontrar diversão em torno da celebração do objeto, de modo que, mesmo no lazer, o ser permanece subjugado ao ter. O lazer oferecido em shopping centers é alienante porque leva ao distanciamento dos sujeitos deles próprios, ao mesmo tempo que os ―empobrece‖. Esse empobrecimento deve ser entendido em relação ao que Marx considerava como a verdadeira riqueza, ou seja, ―[...] o homem (na) plena riqueza de seu ser, (é) o homem rico e profundamente dotado de todos os seus sentidos [...] (Silveira, 1989: 48. Grifo do autor). O homem rico, para Marx, não tem a riqueza na sua conotação burguesa, mas é o homem emancipado que realiza plenamente seus sentidos. A perversa lógica na qual está inserido o shopping center não possibilita que o homem desenvolva essa dimensão da riqueza. (PADILHA, 2006, p. 148)

A sujeição à lógica do capital não é exclusividade do lazer oferecido nos

shoppings. Ela se faz sentir em outras expressões da indústria cultural,24

particularmente na do lazer. Esta última tem como um dos seus ícones os parques

temáticos, construídos em vários países do mundo, principalmente a partir da

década de 1970, tendo como um dos seus pioneiros a Disneylândia, inaugurada em

1955, e que ainda hoje continua a exercer seu fascínio em muitas pessoas em todo

o mundo. Quem já não ouviu falar da pergunta corriqueira feita à filha adolescente

prestes a debutar: você quer uma festa ou uma viagem à Disney?

A indústria do lazer também está associada ao turismo. Este, por um lado,

contribui para o intercâmbio entre pessoas de diferentes nacionalidades, para o

desenvolvimento cultural e para o crescimento econômico, compreendendo um

complexo conjunto de serviços, públicos e privados, a exemplo dos

empreendimentos desenvolvidos no setor de hotelaria e de promoção de grandes

eventos. Todavia, quando massificado e manipulado, pode provocar destruição do

meio ambiente e favorecer práticas socialmente indesejáveis, como exploração

sexual e tráfico de drogas.

No âmbito do turismo de eventos, as festas tradicionais são transformadas em

grandes espetáculos, propagandeados na grande mídia em estatísticas de multidão.

No Brasil, as agremiações carnavalescas ganham visibilidade pelos milhões de

foliões que conseguem arrastar; o ―São João‖ é o ―melhor ou maior do mundo‖

24

Indústria cultural (Kulturindustrie) é expressão formulada por Adorno e Horkheimer, na Dialética do esclarecimento (2006). Aqueles autores identificaram a formação de uma indústria voltada para a produção de bens culturais em larga escala, e sua difusão pelos meios de comunicação de massa, fazendo com que até a obra de arte (a exemplo do cinema) seja homogeneizada, tornando-se presa e ao mesmo tempo instrumento do processo de produção e reprodução de mercadorias.

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(Caruaru ou Campina Grande?) em razão das aglomerações em logradouros

públicos adrede preparados como cenário para eventos grandiosos. Nem as

manifestações de fé estão imunes a essa indústria, que se vale da devoção popular

para explorar o turismo religioso.

Nesse contexto, o despotismo do dinheiro e do consumo pode transformar

tudo o que toca em mercolazer, expressão utilizada por Mascarenhas para se referir

à manifestação do lazer como mercadoria. Segundo aquele autor:

Se antes o lazer caracterizava-se como um antivalor ou uma antimercadoria, tratado como direito e alçado ao conjunto das políticas sociais como parte integrante da estratégia de financiamento público da reprodução da força de trabalho, além de incrementar a produtividade e preservar o salário para o consumo em massa de bens-duráveis, tal fenômeno assume agora uma posição muito mais de subordinação real do que de subordinação formal ao capital. Seus antigos atributos ou valores de uso sociais, dentre os quais podemos citar o descanso, a diversão ou o desenvolvimento, atrelados ou não a propósitos de cunho romântico, moralista, utilitarista ou compensatório, valem muito pouco no atual estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Em larga medida, cederam espaço ao mercolazer, do qual não se espera muito mais que a simples realização de um valor de troca, o salto perigoso em direção ao equivalente geral, momento final do giro do capital em que se resgata a mais-valia e se conferem os lucros, objetivo essencial e primeiro da indústria do lazer. (2005, p. 106).

2.2.2 Lazer, política e corporeidade

A política, tal qual a economia, pode assumir um papel tirânico em relação ao

lazer. A manipulação subsiste em formas mais sofisticadas do ―pão e circo‖ romano.

As festas, promovidas de acordo com o pretenso gosto do grande público, não

apenas contribuem para desviar a atenção das massas populares de suas

verdadeiras necessidades, mas continuam a funcionar como importante instrumento

nas mãos dos detentores do poder, cujo exercício historicamente tem sido marcado

pela espetaculosidade:

O poder utiliza meios espetaculares para marcar sua entrada na história (comemorações, festas de todo o tipo, construção e reconstrução de monumentos). As manifestações do poder não se coadunam com a simplicidade; a grandeza, a ostentação e o luxo as caracterizam. As emoções tendem a se exacerbar nos espetáculos festivos organizados pelos poderosos. As imagens utilizadas nas festas marcam a identidade dos regimes e dos espetáculos do poder, realizados com o objetivo de mostrar grandiosidade e força política. (GONÇALVES, 2002, p. 16-17).

Outra forma menos espetaculosa, mas igualmente relevante, de influência

política no âmbito do lazer, diz respeito ao exercício do poder sobre o corpo, tema

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que nos remete ao pensamento de Michel Foucault. Este, falando sobre os corpos

dóceis, lembra que no limiar do século XVII, a descrição idealizada do soldado

originava-se, em grande parte, de uma retórica corporal da honra, e que, a partir de

meados do século subsequente, o soldado passou a ser algo que se podia fabricar.

A matéria-prima era o corpo inábil do camponês que, submetido ao adestramento,

dava lugar ao corpo-máquina do soldado. E não era apenas no treinamento militar

que se exercia o poder sobre o corpo:

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo ─ ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi escrito simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. (FOUCAULT, 2002, p. 117-118).

O poder sobre o corpo, que é poder sobre a vida, assumiu duas formas inter-

relacionadas: o biopoder e a biopolítica. Na primeira, investe-se no corpo-máquina,

―no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças,

no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em

sistemas de controle eficazes e econômicos.‖ (FOUCAULT, 1997, p. 131). Na

segunda, o alvo do poder é o ―corpo-espécie‖, suporte dos processos biológicos que

vão desde a natalidade até a mortalidade, e que passam a ser submetidos a uma

série de ingerências e monitoramentos, que compõem uma biopolítica da população.

O biopoder foi decisivo para o desenvolvimento do capitalismo industrial.

Como vimos no primeiro capítulo, na época da Revolução Industrial, era necessário

para os donos dos meios de produção extrair do corpo do operário o máximo de sua

produtividade, sujeitá-lo de forma adequada aos mecanismos de produção. O corpo-

máquina do operário era acoplado à maquinaria das fábricas e submetido ao ritmo

desta. Nesse processo, para os industriais, o corpo-máquina do operário era um

corpo útil ao reinado da mais-valia; para os trabalhadores, era o corpo alienado,

submetido à exaustão de uma jornada de trabalho desumana.

Contrapondo-se à exploração do corpo-máquina, os trabalhadores

começaram a lutar pela limitação da duração do trabalho, com base em argumentos

de ordem não apenas fisiológica, mas ética e social. Afinal, antes de ser mão-de-

obra, o trabalhador é pessoa humana, e necessita de tempo disponível para usufruir

dignamente sua vida social, ―gozando os prazeres materiais e espirituais criados

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pela civilização, entregando-se à prática de atividades recreativas, culturais ou

físicas, aprimorando seus conhecimentos e convivendo, enfim, com sua família.‖

(SÜSSEKIND; MARANHÃO; VIANNA, 1993, p. 704).

As reivindicações relacionadas à limitação da duração do trabalho podem ser

vistas como uma forma de reação ao biopoder. Se não impediam a integração do

corpo do operário aos sistemas de controle eficazes e econômicos do capitalismo

industrial, ao menos se voltavam contra a extorsão das forças do corpo-máquina

adestrado à produção industrial. E como o lazer era inicialmente confundido com o

gozo dos repousos previstos na legislação trabalhista, a reivindicação pelo aumento

do tempo para o lazer dos trabalhadores representou uma das formas de resistência

ao biopoder. Por outro lado, a ampliação da concepção de lazer fez com que as

reivindicações pelo seu reconhecimento se constituíssem em forças de resistência à

biopolítica, ao suscitar a discussão sobre políticas de lazer direcionadas à melhoria

da saúde e da qualidade de vida da população.

A resistência ao biopoder e à biopolítica, como formas de oposição das

investidas do poder sobre o corpo, trazem à tona a discussão sobre corporeidade,

noção relevante para os estudos do lazer na atualidade. A corporeidade compreende

uma gama multifacetada de abordagens que tentam religar os elementos sensível,

inteligível e motor da pessoa, fragmentados pela visão mecanicista do ser humano.

Na perspectiva da corporeidade, corpo e mente não são vistos como realidades

dissociáveis. Ao contrário, a ideia de corporeidade leva em conta todas as

dimensões do ser humano, desde a sua estrutura biológica até os aspectos

históricos e sociais de sua existência, formando uma complexa unidade. A

corporeidade, portanto, surge como ―resultado complexo da articulação do universo

físico (physis), do universo da vida (bios) e do universo antropossocial.‖ (JOÃO;

BRITO, 2004, p. 267).

Não havendo a predominância de nenhum desses universos em detrimento

dos demais, também não há, na concepção de corporeidade, qualquer

desvalorização ou instrumentalização do corpo, como tem ocorrido em parte de

nossa tradição filosófica e científica. Nas academias de ciências médicas, a prática

usual é conhecer o corpo por meio de sua anatomização, como objeto manipulável.

Em outras áreas do conhecimento, o corpo é tratado como objeto mecânico,

comparável a uma máquina, e no âmbito econômico, ele costuma ser visto como

objeto de rendimento. Nenhum desses olhares, porém, coaduna-se com a

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concepção de corporeidade, nem permite a experiência do lazer como fruição de

vida:

Conhecer corporeidade é entender um corpo sujeito existencial, complexo, que vive sempre no sentido de sua auto-superação. A corporeidade no lazer mostrar-nos-á situações em que o ser hominal caminha para existencializar sua humanidade. Isso exige um estudo centralizado em um corpo sujeito, existencial, indivisível, que se movimenta para garantir a vida, entendida esta tanto no sentido individual quanto coletivo. (MOREIRA, 2003, p. 87).

Para o corpo tornar-se sujeito, e não sujeitado às diversas tiranias a que nos

referimos, é preciso que lhes sejam dadas condições para ser protagonista da sua

própria história. Isso é fundamental no caso do lazer, cuja vivência deveria ser

marcada pela liberdade de escolha das atividades, de acordo com as preferências

pessoais. No momento do lazer, cada pessoa deveria ser protagonista dos desejos

de prazer, liberdade e ludicidade, e viver essa experiência na integralidade das

dimensões que constituem o ser humano.

2.2.3 Trabalho e lazer: entre a bênção e a maldição

Em meio às múltiplas relações que podem ser estabelecidas entre o lazer e

outros elementos do modo de produção de vida social, merece especial atenção a

que se dá entre lazer e trabalho. Este tem sido utilizado não apenas como elemento

de contraposição ao primeiro, mas também como pedra de toque para sua

identificação. O trabalho, especialmente o produtivo, costuma ser apresentado como

o outro em relação ao lazer. Às vezes no sentido do seu contrário, às vezes como

antítese dialética, constituindo-se na outra face da mesma moeda.

O trabalho tem sido apontado como uma das características distintivas do ser

humano. O prólogo da encíclica Laborem Exercens reafirma essa ideia, ao observar

que a atividade das outras criaturas não podem ser chamadas de trabalho; apenas o

ser humano é capaz de realizar trabalho na real acepção da palavra, e o realiza

humanizando-se a si próprio. (BOMBO, 1993). Tal entendimento, sob diferente

inspiração, é defendido por Karl Marx, que adverte para que não se confunda o

trabalho humano com o labor dos animais, por mais que o primeiro, em certos

casos, pareça insignificante:

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. (1983, p. 149).

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É também de Marx a noção não apenas econômica, mas antropológica de

trabalho, como mediação entre o ser humano e a natureza. Por essa concepção, o

ser humano, em sua complexa corporeidade: cabeça, mãos, braços e pernas,

coração e mente, interage com a natureza, transformando-a em cultura em benefício

próprio, e, ao construir essa segunda natureza, que é o mundo da cultura, constrói-

se a si mesmo.

Todavia, se por um lado Marx elevou o trabalho humano acima do labor dos

animais, por outro demonstrou que o capitalismo, particularmente o industrial, com o

modo de produção fabril, promovia a alienação25 do trabalhador. Não sendo dono do

projeto daquilo que produz, o operário não podia ser comparado sequer ao pior dos

arquitetos, que planeja previamente a obra a ser construída. Daí que o trabalho do

corpo-máquina do operário, guardadas as devidas proporções, não se distanciasse

tanto do labor dos animais: mera agitação, como a de formigas em um formigueiro.

Embora de maneira não tão nítida quanto no modo de produção fabril, a

alienação pode se estender a outras formas de trabalho. Este, segundo a

perspectiva de Marx, pertence ao reino da necessidade, por mais que seja feito com

um sorriso nos lábios. O reino da liberdade estaria por ser alcançado fora dos

domínios da alienação do trabalho, no tempo livre conquistado pelo esforço

realizado no âmbito do trabalho produtivo. Entretanto, quando seduzidas pela

ideologia do trabalho, nem as classes trabalhadoras conseguem enxergar essa

liberdade, fato que já causava indignação no final do século XIX:

Uma estranha loucura tomou conta das classes operárias nas nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura trouxe consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor pelo trabalho, a paixão agonizante pelo trabalho, levada até o esgotamento da energia vital do indivíduo e de seus filhos. Em vez de reagir contra essa aberração mental, os padres, os economistas e os moralistas preferiram sacrossantificar o trabalho. Homens cegos e limitados desejaram ser mais sábios que seu próprio Deus. Homens fracos e desprezíveis desejaram reabilitar aquilo que seu Deus havia amaldiçoado. Eu, que não me declaro cristão, economista ou moralista, invoco o julgamento de seu Deus contra este julgamento próprio. Contraponho as terríveis conseqüências do trabalho na sociedade capitalista às pregações de sua moral religiosa e econômica do livre-pensar. (LAFARGUE, 2001, p. 143).

25

Alienação pode ser definida como ―o ser ou sentir-se totalmente estranho, isto é, ‗alienado‘, e por isso mesmo impotente em relação a objetos culturais ou a relacionamentos sociais que são, na realidade, produto da própria atividade intelectual ou prática. O termo costuma caracterizar não somente a estranheza do sujeito diante dos seus produtos, e a impotência que assim o atinge, mas também a contraposição hostil destes em relação a ele.‖ (GALLINO, 2005: p. 16)

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Quando afirma que a veneração do trabalho por padres, economistas e

moralistas afronta os desígnios de Deus, Paul Lafargue não destoa do ensino social

da Igreja Católica. Para este, o trabalho deve ser honrado por ser fonte de condições

de vida digna, sendo importante instrumento contra a pobreza. No entanto, a

idolatria ao trabalho é uma tentação na qual não devemos cair, ―pois que nele não se

pode encontrar o sentido último e definitivo da vida. O trabalho é essencial, mas é

Deus — e não o trabalho — a fonte da vida e o fim do homem.‖ (PONTIFÍCIO

CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2008, p. 156).26 Quanto a ser amaldiçoado por Deus,

tal argumento merece maior ponderação, pois a tradição bíblico-teológica não

corrobora integralmente essa assertiva.

De acordo com a mais antiga tradição bíblica, presente no hino de criação do

universo e na narrativa didática sobre as origens do ser humano que abrem as

Escrituras, a bênção precede a maldição. Tudo o que Deus criou é bom, e as

criaturas são abençoadas, especialmente homem e mulher, sua imagem e

semelhança, aos quais foi dada a incumbência de cultivar e guardar o jardim de

Éden. O trabalho, portanto, faz parte dessa condição originária do ser humano,

anterior à queda. Ele só passou a ser fadiga depois desta, quando o ser humano se

apartou de Deus. O projeto do Criador, porém, continua sendo o de que o ser

humano volte a cultivar e guardar o jardim. Não fosse assim, que sentido teria a

Encarnação, ainda mais do Verbo que, seguindo o ofício do pai putativo, fez-se

carpinteiro na oficina de Nazaré? Se Adão simboliza o homem caído, submetido ao

trabalho como fadiga, Jesus instaurou um verdadeiro evangelho do trabalho:

Jesus foi trabalhador manual, não como forma de vida excepcional mas simplesmente por ser um membro do povo de Israel. Isso não era problema. Nem foi considerado como escravo por ser trabalhador manual. Nem a condição de trabalhador manual foi considerada uma marca de humildade. Ser trabalhador não era rebaixar-se. (COMBLIN, 1985: p. 179).

Na nova ordem inaugurada por Jesus Cristo, o trabalho deve significar aquilo

que dele disse o poeta, referindo-se ao trabalhador que, ao aprender a ler, descobriu

que o seu trabalho ―não é a pena que paga por ser homem, mas um modo de amar

─ e de ajudar o mundo a ser melhor.‖ (THIAGO DE MELLO, 1965, apud FREIRE,

1975, p. 28). Mas para que isso seja minimamente possível, é necessário que tal

26 A idolatria ao trabalho, especialmente ao trabalho pesado, também é desmascarada por Bertand

Russel. Para ele, ―movimentar a matéria em quantidades necessárias à nossa existência não é, decididamente, um dos objetivos da vida humana. Se fosse, teríamos de considerar qualquer operador de britadeira superior a Shakespeare.‖ (2001, p. 58).

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qual o sábado bíblico, o trabalho seja feito para o ser humano, e não o ser humano

para o trabalho. Este não deve ser causa de aflição, nem dar ensejo à indevida

apropriação dos frutos da fadiga alheia.27 Mas como nem tudo no mundo do trabalho

é pleno de amor, como na Boa-Nova de Cristo, nem tem tanta beleza quanto o

cantar do poeta, o lazer, a exemplo do repouso sabático, pode se constituir num

fator anti-alienante, e em instrumento eficaz contra a escravização do ser humano

pelo trabalho, seja este voluntário ou compulsório.

O lazer, como o outro em relação ao trabalho, tem sido objeto de interesse da

sociologia. Nas décadas de 1950 e 1960, como registra Dumazedier, esse interesse

residia basicamente na busca de melhoria das condições de trabalho, bem como da

complementação ou compensação das imperfeições deste. Com o passar do tempo

e o aprimoramento dos estudos das complexas relações entre trabalho e lazer, a

tendência anterior foi sendo modificada, dando ensejo a uma visão dicotômica no

conjunto desses estudos:

Ela tomou a forma de uma oposição entre aqueles que S. Parker chama de ―segmentalistas‖ e os ―holistas‖. Isto é, aqueles que dão a ênfase à independência relativa do lazer com respeito ao trabalho (D. Bell) e os que frisam a dependência relativa do lazer com respeito ao trabalho. S. Parker frisa, na esteira de H. Wilensky, as possíveis consequências políticas de cada uma destas duas teorias. A primeira poderia terminar por desenvolver modelos de lazer criadores para compensar a degradação do trabalho; entre aqueles que se sentem particularmente alienados por sua situação de trabalho. A segunda poderia inspirar, ao contrário, uma revisão das situações de trabalho, um progresso das significações técnicas e sociais das tarefas e, daí, uma promoção de lazer de melhor qualidade. (DUMAZEDIER, 2008, p. 147).

Para Dumazedier (2008), ambas as vertentes teóricas são inaptas para

explicar a complexa realidade do lazer, pois representam uma discussão restrita a

uma polarização reducionista. Por isso, propõe que seja abandonada a visão

dicotômica acima referida, apontando o estudo dos resultados convergentes das

pesquisas empíricas realizadas, como a melhor opção para a viabilidade do

progresso das pesquisas sobre as relações entre trabalho e lazer. Portanto,

continuam abertos os caminhos (ou encruzilhadas) para discussão da matéria.

27 Nesse sentido, a conhecida admoestação da Segunda Carta aos Tessalonicenses: ―quem não quer

trabalhar, que também não coma,‖ (2Ts 3, 10) algumas vezes utilizada em defesa da idolatria do trabalho e à condenação do ócio, representa, na verdade, uma advertência para quem vive explorando o trabalho dos outros, a exemplo de pessoas da comunidade de Tessalônica que, esperando a iminente Parusia (a segunda vinda do Senhor), deixaram de trabalhar para viver às custas do trabalho alheio.

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2.3 Os lazeres na contemporaneidade

As problemáticas da delimitação conceitual do lazer e as divergências

teóricas quanto ao estabelecimento dos seus múltiplos inter-relacionamentos não

impedem a classificação de suas principais modalidades. Bellefleur (2002), por

exemplo, mesmo admitindo a virtualidade conceitual do lazer, apresenta uma

classificação deste em nove tipos diferentes, que ele denomina formas gerais do

lazer teleológico, por tomar como critério as suas finalidades, sejam reais, supostas

ou socialmente atribuídas. Na tabela por ele apresentada, o lazer vai desde o

humanista, relacionado à afirmação dos direitos humanos e ao desenvolvimento

integral da pessoa, ao lazer negócio, mercadológico, equiparável ao mercolazer de

Mascarenhas, haja vista sua vinculação à visão consumista e hedonista da

felicidade.28

Outras classificações são possíveis, dependendo dos critérios utilizados.

28

Bellefleur apresenta uma tabela com as formas gerais de lazer teleológico: 1. Lazer humanista: centrado na afirmação dos direitos humanos e no desenvolvimento integral da pessoa; 2. Lazer educativo: orientado para a aprendizagem das práticas do lazer ou evolução qualitativa dos seus praticantes em relação aos valores considerados socialmente positivos ou desejáveis. 3. Lazer moral: centrado na utilização das formas de lazer que permitem a regulação dos comportamentos pelas normas e regras individualmente ou socialmente admitidas, num contexto e época determinados. 4. Lazer religioso: associado à seleção e à prática de lazeres em relação de conformidade com uma doutrina, um sistema de crenças ou ideias de natureza espiritual, mística ou escatológica. 5. Lazer cultural: assim definido por sua capacidade ou propensão para colocar em prática processos de enculturação e aculturação, e de maneira geral promover as dimensões estéticas da existência humana. 6. Lazer terapêutico: associado a práticas curativas no campo da saúde, tanto física quanto mental. 7. Lazer político: ligado às ações ou orientações preconizadas por um partido político ou um governo, de um projeto de sociedade 8. Lazer ambientalista: definido em relação com as preocupações de natureza ecológica centradas na qualidade de todos os tipos de ambientes de vida9. Lazer mercadoria: centrado na exploração lucrativa e rentável do consumo discricionário, que permite a relativa situação de abundância e de prosperidade alcançada por uma determinada sociedade, e oferta de valores apresentados como portadores de hedonismo ou de felicidade humana. (2002, p. 78, tradução nossa). No texto original: ―1. Le loisir humaniste: centré sur l‘affirmation des droits humains et le développement polyvalent de la personne. 2. Le loisir éducatif: orienté sur l‘apprentissage des pratiques de loisir ou l‘evolution qualitative de leurs adeptes en rapport avec des valeurs jugées socialement positives ou souhaitables. 3. Le loisir moral: centré sur l‘utilisation de formes de loisir permettant la régulation des comportements selon des normes et règles individuellement ou socialement admissible, dans un context et à une époque donnés. 4. Le loisir religieux: associé à la sélection et à la pratique de loisirs en relation de conformité avec une doctrine, un système de croyances ou d‘idéaux de nature spirituelle, mystique ou eschatolologique. 5. Le loisir culturel: défini ainsi pour sa capacité ou sa propension à mettre en oeuvre les processus d‘enculturation et d‘acculturation, et d‘une façon générale à promouvoir les dimensions esthétiques de l‘existence humaine. 6. Le loisir thérapeutique: associé à des pratiques curatives dans le domaine de la santé, tant physique que mentale. 7. Le loisir politique: relié à des actions ou à des orientations préconisées par um parti politique ou un gouvernement porteurs d‘un projet de société. 8. Le loisir environnementaliste: défini em rapport avec des préoccupations de nature écologique centrées sur la qualité des milieux de vie en tout genre. 9. Le loisir marchand: centré sur l‘exploitation lucrative et rentable de la consommation discrétionnaire que permet la relative situation d‘abondance et de prospérité que connaît une société donnée, et proposant des valeurs présentées comme porteuses d‘hédonisme ou de bonheur humain.‖

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Algumas delas parecem se basear em mais de um critério, o que pode ensejar

ambiguidade. José Vicente de Andrade (2001), embora não utilize a palavra

classificação, fala de quatro matrizes básicas de formas de lazer: o espontâneo, o

programado, o esporádico e o habitual.29 Seus elementos distintivos dizem respeito

a critérios subjetivos e objetivos para a compreensão do lazer, a exemplo da atitude

e da liberdade de escolha que caracteriza a espontaneidade, e que não faz parte de

um lazer programado, ou, por outro lado, do tempo ou frequência com que o lazer é

vivido.

Controvérsias e ambiguidades, não apenas no que se refere ao lazer, são

inerentes às dificuldades próprias da classificação científica. Esta, como observa

Dumazedier (2008), é algo construído como resposta a um problema, revestindo-se

de três propriedades formais, que são: elaboração a partir de um determinado ponto

de vista, finitude e coerência, esta última referente ao nexo não apenas entre cada

um dos seus elementos, mas à configuração de um sentido harmônico à totalidade

desses elementos.

Na sociologia do lazer, é possível encontrar diversas classificações que

procuram atender a esses requisitos. O leque delas é bastante variado, indo desde

as classificações genéticas, feitas na perspectiva do desenvolvimento cultural, que

podem distinguir lazeres tradicionais, como leitura e música, de lazeres modernos,

como televisão e internet, até a distinção dos tipos de lazer ligados a determinados

centros de interesse. Nestes podem figurar as próprias pessoas, como é o caso do

tipo de lazer relacionado à sociabilidade, como também a ida ao mundo ou a

recepção deste, a exemplo do lazer de exploração e de imobilidade.30

Além de abranger dificuldades teóricas, a problemática da classificação do

lazer tem implicações práticas, que podem levar a discussões sobre determinadas

29

O lazer espontâneo, segundo Andrade, é ―conseqüência não prevista de alguma ação fundamentada naturalmente em decorrência de algum evento ou de uma série de eventos, situações ou circunstâncias previstas ou imprevistas (2001, p. 110). Sobre o lazer programado, o autor não apresenta uma definição específica, chamando a atenção para o fato de ser o mais praticado e vinculado a interesses comerciais, sendo menos eficiente para a recomposição das energias físicas e psíquicas; o esporádico, por sua vez, deveria ser entendido como ―o conjunto de atividades específicas que se efetuam segundo a disponibilidade de tempo, sem as características que determinam ou exigem periodicidades certas e durações determinadas‖ (Ibidem, p. 113), enquanto o habitual ―perfaz-se a partir das sensações percebidas no hiato normal entre as atividades costumeiras vinculadas à produtividade sistemática, à consciência do dever cumprido e às simples expectativas da diversão e relaxação.‖ (Ibidem, p. 113-114).

30

Sociabilidade, associação, jogos, artes, exploração e imobilidade são os tipos maiores de lazer apontados por Kaplan, sendo ligados, respectivamente aos seguintes centros de interesse: pessoas, interesses, regras, tradições, ir para o mundo e receber o mundo. (KAPLAN, apud DUMAZEDIER, 2008, p. 100)

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atividades, opções e serviços de lazer. Dumazedier, por exemplo, levanta a questão

sobre os bares (ou cafés-bares) e o lazer. Por serem lugares onde se consomem

bebidas alcoólicas, tais estabelecimentos devem ser considerados locais de

embriaguez e, por conseguinte, objeto de leis restritivas, ou autênticas instituições

de lazer, merecedoras de incentivo?

Investigações empíricas realizadas em Annecy, na França, no ano de 1957,

compreendendo mais de duzentos cafés, levaram Dumazedier a se posicionar pela

segunda alternativa da questão acima formulada. Segundo os resultados obtidos, a

grande maioria dos frequentadores dos cafés não comparecia àqueles locais na

intenção de consumir álcool, mas em busca de contato com pessoas, de vivência de

momentos compensatórios ou complementares das obrigações profissionais,

familiares ou sociais do dia-a-dia. O café, então, representava antes de tudo um

ponto de encontro para a experiência do lazer, por ser ―em primeiro lugar, um quadro

de relações sociais livremente escolhidas.” (DUMAZEDIER, 2008, p. 106).

É certo que não se pode aplicar a todos os casos as conclusões referentes a

pesquisas pontuais. Um café ou bar nos dias de hoje, em determinados pontos do

nosso país, pode não ter as mesmas funções dos estabelecimentos pesquisados no

território francês na década de 1950. Mas também é certo que o procedimento

utilizado por Dumazedier naquela investigação continua válido e relevante,

principalmente diante da constatação de que o lazer, em sua versão contemporânea

e globalizada, como observa Bellefleur, ―caracteriza-se cada vez mais por ser vivido

numa sociedade democrática de direito e de cidadania alargada, que o distingue de

todas as formas antigas de ócio‖, (2002, p. 36, tradução nossa)31 sendo visto não

mais como um privilégio ―conspícuo‖ da classe ociosa,32 e sim como direito social

importante para o exercício da cidadania.

31

No original: ―Ce qui caractérise sa version contemporaine est qu‘il est dorénavant vécu dans une societé de droit démocratique et de citoyenneté élargie, ce qui le demarque de toutes les formes anciennes d‘otium.‖ 32

No livro A teoria da classe ociosa, Thorstein Veblen procura demonstrar que as classes mais altas são costumeiramente excluídas de ocupações industriais, desempenhando funções intrinsecamente honoríficas. Nessa perspectiva, o ócio conspícuo, desde os filósofos gregos até os dias de hoje, tem sido instrumento para se obter respeito dos outros, pois ―a vida ociosa, por si mesma e em suas conseqüências, é linda e nobre aos olhos de todos os homens civilizados.‖ (1988, p. 22)

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CAPÍTULO 3: LAZER, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA

Vivido em sociedades de cidadania ampliada, o lazer deixa de ser elemento

periférico para se colocar no centro da vida cultural de milhões de pessoas em todo

o mundo. Ele envolve aspectos ligados tanto à esfera pessoal e familiar, quanto a

elementos estruturais da sociedade. Mas não é só. O lazer é formalmente

reconhecido como um dos direitos humanos pela ONU, como já foi referido na

introdução deste trabalho.

Contudo, nem o fato de ser acessível a mais pessoas, nem o seu

reconhecimento formal têm sido suficientes para que se atribua ao lazer valor

análogo ao conferido a outros direitos, como trabalho, educação e saúde, por

exemplo. Por isso, não é raro que alguns estudiosos deixem de incluir lazer no

núcleo mínimo de direitos inerentes à dignidade, ou, pelo menos, deem pouca

ênfase à sua importância no contexto das necessidades básicas da pessoa humana.

No intuito de lançar luzes sobre esse problema, neste capítulo será discutido

o tema do lazer à luz da teoria dos direitos humanos. Começando pela análise da

sua importância para a dignidade humana, noção que está na base dessa teoria.

Vinculada a essa discussão, será feita a abordagem do lazer como um dos

elementos integrantes da construção histórica da cidadania.

3.1 O lazer e a doutrina dos direitos humanos

Direitos humanos podem ser definidos como ―o conjunto de princípios e de

normas fundamentadas no reconhecimento da dignidade inerente a todos os seres

humanos e que visam assegurar o seu respeito universal e efetivo.‖ (ARNAUD, p.

271). Também podem ser entendidos como ―os resultados sempre provisórios das

lutas sociais pela dignidade.‖ (HERRERA FLORES, 2009, p. 37). A primeira

concepção enfatiza o abrigo desses direitos pela esfera normativa; a segunda realça

o aspecto dinâmico desses direitos como processo. Uma e outra, porém, não podem

deixar de tocar no elemento que se encontra no âmago da ideia de direitos

humanos: a concepção de dignidade. Sem esta não há condição de se falar em

direitos humanos, que, segundo alguns estudiosos, precisam ser reconstruídos e até

reinventados na contemporaneidade. Em tais empreendimentos, que implicam a

reconstrução ou reinvenção da própria dignidade, o lazer pode assumir um papel

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importante.

3.1.1 Dignidade e dignidade humana

A palavra dignidade (do latim dignitas, átis) deriva de digno (também do latim

dignus,a, um), vocábulo cujo significado expressa a ideia de merecimento. Digno é o

merecedor, o que está em conformidade, ajustado, significados que deixam

subentendidas as ideias de incompletude e relação. Quem (ou o que) é merecedor,

merece alguma coisa; quem (ou o que) é digno, deve ser digno de algo, podendo até

ser digno de desprezo ou condenação.

Todavia, a exemplo do que acontece com a palavra idôneo, que originalmente

quer dizer adequado ou capaz, requerendo complementação de sentido,33 o

adjetivo ―digno‖ também é utilizado para expressar o sentido de dignidade moral,

tornando-se sinônimo de justo, honesto, honrado. Por conseguinte, o substantivo

dignidade, cujo registro etimológico remonta ao século XIII,34 mesmo sem

adjetivação, tem sido empregado para significar dignidade humana, como qualidade

moral que infunde respeito e expressa consciência do próprio valor, sendo também

sinônimo de amor-próprio. Nesse sentido, não se poderia falar em dignidade dos

animais não humanos.

Mas será que os outros seres que compõe a natureza também são dotados

de dignidade, mesmo que diferente da nossa? O hino bíblico da criação do universo

responde positivamente a essa indagação. Nele os seres ganham existência a partir

do brado divino, de acordo com uma ordem crescente de dignidade, até chegar ao

ser humano (homem e mulher), obra-prima da criação. Portanto, na ordem da

criação, cada ser criado guarda sua peculiar dignidade:

Cada criatura possui sua bondade e sua perfeição próprias. Para cada uma das obras dos ―seis dias‖ se diz: ―E Deus viu que isto era bom‖. ―Pela própria condição da criação, todas as coisas são dotadas de fundamento próprio, verdade, bondade, leis e ordens específicas.‖ (GS 36, 2). As diferentes criaturas, queridas em seu próprio ser, refletem, cada uma a seu modo, um raio da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura para evitar um uso desordenado das coisas, que menospreze o Criador e acarrete conseqüências nefastas para os homens e seu meio ambiente.

33

A idoneidade pode ser financeira ou técnica, por exemplo, mas geralmente a palavra idoneidade, sem qualquer adjetivo, tem sido empregada como idoneidade moral. 34 Cf. o verbete DIGNIDADE do Dicionário Houaiss Eletrônico, que faz referência ao IVPM.

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(CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2000, n. 339, p. 99).

É importante frisar que mesmo a visão evolucionista das espécies não se

opõe à narrativa da criação presente na Bíblia, nem lhe retira ou diminui a riqueza

simbólica. Ao contrário, um bom trabalho hermenêutico do texto bíblico não só pode

coexistir com a concepção evolucionista, como permite realçar os aspectos

ecológicos da teologia da criação. Basta que sejam procurados, com a devida

atenção, os vários sentidos que a leitura do relato do capítulo primeiro do livro do

Gênesis nos proporciona:

O primeiro é que as criaturas, em cada espécie, em cada detalhe, são queridas pelo Criador assim como são e assim como estão. Numa visão evolucionista, podia-se tentar reconhecer Deus no primeiro ato de criação, que poderia conter em si tudo o que a criação precisasse, para daí evoluir com recursos internos, próprios. Se o relato bíblico faz cada coisa estar sob a palavra criadora de Deus, talvez teologicamente devamos entender desde a outra ponta: cada coisa, assim como é, assim como se apresenta, é querida por Deus. Trata-se aqui da dignidade de cada espécie e de cada ser. Aos olhos de Deus, tudo porta dignidade. Mesmo uma árvore ou um animal inútil aos nossos olhos, mesmo um ser que parece deficiente ou uma aberração segundo a nossa classificação, tudo tem a ver com o bem-querer de Deus; e nada merece desprezo. (SUSIN, 2003, p. 69).

O documento conhecido como Declaração Universal dos Direitos dos

Animais35 também reconhece direitos e dignidade a seres vivos não humanos. Se

eles nascem iguais perante a vida, é necessário respeitar-lhe o direito de existir.

Sendo assim, o ser humano, como espécie animal, não teria direito de exterminar

outros animais, tratá-los de forma cruel, explorá-los no trabalho além do razoável,

tampouco matá-los sem necessidade, o que poderia se constituir em biocídio. Estas

e outras imposições, feitas ao ser humano em respeito aos direitos dos animais,

levam em consideração o argumento de que a coexistência das outras espécies da

fauna do nosso planeta depende do reconhecimento do direito à existência delas

pela espécie humana.

Outro argumento utilizado para o reconhecimento da dignidade dos outros

animais baseia-se no princípio ético sobre o qual se assenta a igualdade humana. O

35

Proclamada na United Nation Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO - Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas) em 1978, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais se constitui numa proposição dos defensores da causa dos direitos dos animais, visando à sensibilização dos Estados membros da ONU para a necessidade de formulação de normas jurídicas que reconheçam direitos e dignidade a espécies não humanas. O texto da declaração está disponível no site www.forumnacional.com.br/declaracao_universal_dos_direitos_dos_animais.pdf, acesso em 20.04.2010.

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princípio de igualdade entre os seres humanos não pressupõe que não haja

diferenças entre as pessoas, mas exige que se leve em consideração as suas

diferentes necessidades e interesses, e se respeitem as suas peculiaridades, não se

justificando, por exemplo, o racismo e o sexismo. Com relação aos animais de

outras espécies, que apesar das diferenças tem alguns elementos comuns aos

seres humanos, deveria ser evitado aquilo que Peter Singer (2004) chama de

especismo, discriminação fundada na espécie dos animais. Pois os não humanos,

mesmo não sendo dotados de consciência, têm em comum conosco a senciência,

capacidade de sofrer, e por conseguinte, de experimentar alegria.

Portanto, parece razoável não se utilizar a palavra dignidade apenas com

referência aos seres humanos, dando-se preferência ao emprego do termo no

sentido amplo de qualidade do que é digno ou merecedor de respeito, sem ser

atributo exclusivo da espécie humana. Afinal, se nós, humanos, somos apenas um

dos componentes do que convencionamos chamar natureza, da qual dependemos

para existir, nada mais justo que reconhecer dignidade ao natural não

exclusivamente humano. E quando quisermos nos reportar à qualidade específica

no caso do animal racional, que seja utilizada a expressão dignidade humana, não

devendo a adjetivação, nesse caso, ser considerada redundância.

3.1.2 Dignidade humana como condição fundadora da dimensão ética

A reflexão sobre a dignidade humana tem ocupado o pensamento de filósofos

de diversas épocas. Muitos deles, segundo Eduardo Rabenhorst, fazem duas

observações relevantes a respeito da matéria. A primeira diz respeito à necessidade

de justificar a ideia de dignidade de todo ser humano. Historicamente, a concepção

de dignidade humana não aparece como um dado, e sim como um construído.

Desse modo, é necessário justificá-la para não se incorrer em tautologia ou reduzi-la

a argumento de cunho estritamente ideológico. Por outro lado, se é uma conquista

histórica e não um universal cultural, a noção de dignidade humana não está imune

a eventuais retrocessos, razão pela qual ―devemos ser capazes de provar que o

princípio da dignidade humana não foi uma conquista arbitrária da cultura liberal

ocidental, mas algo que deve ser estendido a todas as sociedades.‖

(RABENHORST, 2001, p. 11).

Nessa reflexão, é importante o papel da visão religiosa judaico-cristã. Esta,

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com sua antropologia teológica com fortes traços de antropocentrismo, já no Antigo

Testamento redimensionou a concepção de dignidade humana. Diferente da noção

cosmocêntrica que predominava entre os filósofos gregos, o ser humano aparece na

Bíblia como realidade mais sublime do cosmos, imagem viva do próprio Criador, e

que, no cantar do salmista, foi feito pouco menos que um deus, coroado de glória e

beleza, para cuidar das obras construídas pelas mãos do próprio Deus (Sl 8,6-9).

Por sua vez, no Novo Testamento, a antropologia teológica passa a ser

essencialmente cristológica. Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, é

―o homem tal como Deus o quer e o criou.‖ (BARTH, apud LADARIA, 1998, p. 58).

Com sua ação redentora, Ele resgatou a vocação do ser humano para a bem-

aventurança e elevou ao máximo a dignidade deste, colocando-o acima da própria

Lei, afinal, foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5,1).

Também é possível buscar fundamentos para a dignidade humana no

pensamento científico. A dignidade peculiar ao ser humano não decorreria de ser ele

imago Dei, e sim o aparente ápice da evolução natural. Na linhagem dos hominídeos

foram se consolidando traços estruturais distintos, como o aumento da capacidade

craniana, a sexualidade feminina contínua e não sazonal, o desenvolvimento da

linguagem e principalmente ―o fenômeno inédito ─ até onde sabemos ─ do mental e

da autoconsciência como a experiência mais íntima do ser humano.‖ (MATURANA;

VARELA, 2007, p. 256). Essa experiência permite ao ser humano ter consciência do

próprio eu, sentir-se como natureza pensante e até como consciência do cosmos.

Em razão dessa experiência, o ser humano passa a se definir como animal racional,

alcançando o requinte de pensar sobre o próprio pensamento, o que o caracteriza

como animal filosófico.

No âmbito da filosofia relacionada à reflexão sobre a dignidade humana,

merece destaque o pensamento de Kant. Sua influência é tamanha para o princípio

da dignidade humana, que este chega a ser confundido com o imperativo formulado

por aquele filósofo: ―age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua

pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e

nunca simplesmente como meio.” (KANT, 2003, p. 59). Isto significa que todo ser

humano, como ser racional e capaz de autodeterminação, é fim em si mesmo, não

havendo nada que lhe seja equivalente. Com base nessa perspectiva kantiana

inaugura-se uma nova era na história das concepções de dignidade humana. O ser

humano, como fim em si mesmo, não pode ser tratado como coisa nem por ele

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próprio, e a dignidade humana, como algo que não tem preço, deixa de ser derivada

da dignidade divina, passando a fundar-se na autonomia do sujeito, ou seja:

―...na capacidade humana de se submeter às leis oriundas de sua própria potência legisladora e de formular um projeto de vida de forma consciente e deliberada. E é essa autonomia, escreve Ferry, o motivo do respeito e o conceito fundador da humanidade.” (RABENHORST, 2001, p. 34).

É importante ressaltar que o reconhecimento da dignidade inerente a cada

pessoa não deve ser reduzido a inclinação sentimentalista. Longe disso, o respeito

mútuo à dignidade humana é conditio sine qua non para a existência da sociedade

plural, em meio à qual os indivíduos se constroem eticamente na relação com os

semelhantes. Pois o reconhecimento de que os outros são dotados de dignidade

igual à nossa permite o estabelecimento de relações sociais simétricas, baseadas na

dimensão ética da vida humana. Esta, no dizer de Umberto Eco, nasce justamente

no momento da vida em que o outro entra em cena:

Toda lei, moral ou jurídica, regula relações interpessoais, inclusive aquelas com um Outro que a impõe. (...) Assim como ensinam mesmo as mais laicas entre as ciências, é o outro, é seu olhar, que nos define e nos forma. Nós (assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro. Mesmo quem mata, estupra, rouba, espanca, o faz em momentos excepcionais, e pelo resto da vida lá estará a mendigar aprovação, amor, respeito, elogios de seus semelhantes. E mesmo àqueles a quem humilha ele pede o reconhecimento do medo e da submissão. Na falta desse reconhecimento, o recém-nascido abandonado na floresta não se humaniza (ou, como Tarzan, busca o outro a qualquer custo no rosto de uma macaca), e poderíamos morrer ou enlouquecer se vivêssemos em uma comunidade na qual, sistematicamente, todos tivessem decidido não nos olhar jamais ou comportar-se como se não existíssemos. (ECO; MARTINI, 2000, p. 83-84).

3.1.3 O princípio da dignidade humana e a evolução dos direitos humanos

O princípio da dignidade humana, fundamento da sociedade civil pluralista,

também infunde a teoria dos direitos humanos. Além disso, é na perspectiva da

disseminação do respeito a esse princípio que se procura concretizar o desejo de

universalização desses direitos, num processo histórico marcado por importantes

conquistas para a melhoria das condições de vida de pessoas e povos em todo o

mundo. Fábio Konder Comparato, tratando da evolução histórica dos direitos

humanos, não se contém nos louvores a essa parte da história ao afirmar:

O que se conta, nestas páginas, é a parte mais bela e importante de toda a História: a revelação de que todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual

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respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. É o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém ─ nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação ─ pode afirmar-se superior aos demais. (2006, p. 1).

Direitos humanos, para o referido autor, são antes de tudo instituições

jurídicas que protegem a dignidade humana dos males da violência, desonra,

espoliação e indigência, e que foram sendo criadas e estendidas gradativamente a

todos os povos da Terra. A história desses direitos, por sua vez, é vista como

processo evolutivo de rara beleza, pois a perspectiva de Comparato não é, por

assim dizer, a da história dos historiadores, e sim da filosofia da história. Nessa

perspectiva, a universalização dos direitos humanos apresenta-se ao mesmo tempo

como fio condutor e meta do processo histórico. A história não é apenas sequencial

e consequencial, mas evolutiva e finalística, e, por conseguinte, dotada de sentido.

Esvaziá-la de sentido seria comparável a aceitar-se a inexistência de sentido para a

vida e para a evolução desta, o que implicaria um retorno ao caos primordial:

Pois se a evolução avança sem rumo, como nave desbussolada através da História, esta nada mais seria, como exclamou o desespero de Macbeth, que a tale, told by an idiot, full of sounds and fury, signifying nothing. Se a humanidade ignora o sentido da Vida e jamais poderá discerni-lo, é impossível distinguir a justiça da iniqüidade, o belo do horrendo, o criminoso do sublime, a dignidade do aviltamento. Tudo se identifica e se confunde, no magma caótico do absurdo universal, aquele mesmo abismo amorfo e tenebroso que, segundo o relato bíblico, precedeu a Criação. (COMPARATO, 2006, p. 5)

No entanto, por mais que se tenha uma visão de que a história tem um

sentido e tende a um fim, não há como negar que ela é permeada de inúmeros

conflitos, não só bélicos, mas econômicos, políticos, sociais e culturais. No caso da

história dos direitos humanos, esta também não está imune às causas e efeitos

desses conflitos, sendo feita de altos e baixos, avanços e retrocessos, não tendo um

sentido evolutivo tão retilíneo quanto gostaríamos que tivesse.

Entre esses altos e baixos, podemos destacar, como marcos importantes, três

declarações de direitos formuladas sob a inspiração da moderna concepção de

dignidade humana. As duas primeiras elaboradas no século XVIII e associadas

respectivamente, às Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789), e a terceira,

aprovada pela ONU em 1948, pela após o trauma da Segunda Guerra Mundial.

A Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (1776) é considerada a

primeira declaração de direitos fundamentais no sentido moderno. Ela dá o tom de

todas as grandes declarações de direito subsequentes, (COMPARATO, 2006) ao

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afirmar logo em seu artigo primeiro, que todos os seres humanos são, pela sua

natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, como

a fruição da vida e da liberdade, os meios de adquirir a propriedade e de procurar

obter felicidade e segurança. Além disso, consagra a liberdade religiosa e de

imprensa, bem como o devido processo legal.

Por sua vez, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) pode

ser vista como uma síntese do pensamento político, moral e social do século das

luzes, tendo como traço distintivo a visão universalista.36 Os revolucionários

franceses consideravam-se apóstolos e missionários de uma nova visão de mundo,

demonstrando-se convictos de que precisavam anunciar sua boa nova a todos os

povos. As palavras de Duquesnoy, membro da Assembléia Nacional e deputado do

Terceiro Estado, expressam bem o caráter deliberadamente universalista atribuído à

declaração francesa:

Uma declaração deve ser de todos os tempos e de todos os povos; as circunstâncias mudam, mas ela deve ser invariável em meio às revoluções. É preciso distinguir as leis e os direitos: as leis são análogas aos costumes, sofrem o influxo do caráter nacional; os direitos são sempre os mesmos. (DUQUESNOY, apud COMPARATO: 2006, p. 130).

Os três primeiros artigos contêm o núcleo doutrinário da Declaração. O artigo

primeiro, ao afirmar que os homens nascem e permanecem livres e iguais, diz

respeito à condição natural dos indivíduos, anterior à formação da sociedade civil; o

segundo refere-se ―à finalidade da sociedade política, que vem depois (se não

cronologicamente, pelo menos axiologicamente) do estado de natureza; o terceiro,

ao princípio de legitimidade do poder que cabe à nação.‖ (BOBBIO,1992, p. 93).

Esse núcleo doutrinário vai influenciar todas as declarações de direitos humanos

que lhe sucederam. Além disso, o realce aos direitos humanos é tão evidente que, já

no preâmbulo, a declaração assevera que os representantes do povo francês,

constituídos em Assembléia nacional, consideram que ―a ignorância, o descuido ou o

desprezo dos direitos humanos são as únicas causas das desgraças públicas e da

corrupção dos governos.‖ (COMPARATO, 2006, p. 153).

O alerta no preâmbulo da declaração francesa parece não ter sido

suficientemente assimilado no mundo contemporâneo. Mesmo após o apogeu do

século das luzes, o mundo ocidental presenciou a ruptura da tradição relacionada ao

36

A menção a direitos do homem e do cidadão, segundo Fábio Konder Comparato (2006), pode ser explicada também em função da característica de universalidade. A declaração se refere não somente aos cidadãos franceses, mas a todos os homens, independente de sua nacionalidade.

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princípio da dignidade e respeito aos direitos humanos. O totalitatismo irrompido no

século XX fez de seres humanos menos que animais, rebaixando-os à condição de

coisas descartáveis. E o mais grave é que a experiência totalitária, como frisa Celso

Lafer, ―não foi fruto de uma ameaça externa mas, ao contrário, foi gerada no bojo da

própria modernidade e como desdobramento inesperado e não-razoável de seus

valores.‖(2006, p. 19).

Tornava-se necessário, então, o trabalho de reconstruir essa tradição

bruscamente rompida, desiderato em parte alcançado quando a ONU, em 10 de

dezembro de 1948, aprovou a DUDH. Esta, ao mesmo tempo, consolida a tradição

de respeito ao princípio da dignidade humana afirmado pelas declarações

anteriores, e representa uma tentativa de restaurar ou reconstruir essa tradição.37

Mais de meio século após o advento da DUDH, novos desafios se

apresentam na trajetória histórica dos direitos humanos. O grande obstáculo a ser

vencido não é mais o totalitarismo, embora a sombra deste nunca deixe de se

constituir numa ameaça virtual. No século XXI, mais do que reconstruídos, os

direitos humanos precisam ser reinventados, para lidar mais adequadamente com

um mundo dilacerado por um novo individualismo, extrema competitividade e

exploração do ser humano.

Sobre a necessidade dessa reinvenção, Boaventura de Sousa Santos propõe

uma reformulação pós-imperial dos direitos humanos, com base na concepção

intercultural destes. Para ele, tal projeto pode parecer utópico. Entretanto, ―é tão

utópico quanto o respeito universal pela dignidade humana. E nem por isso este

último deixa de ser uma exigência ética séria.‖ (2008, p. 470). Joaquín Herrera

Flores, por sua vez, sugere a reinvenção desses direitos a partir da própria

redefinição da dignidade humana. Esta deveria ser vista concretamente, como um

fim material, ou seja, ―um objetivo que se concretiza no acesso igualitário e

37 Os aspectos de continuidade e reconstrução da tradição podem ser percebidos na seguinte

afirmação de Comparato: ―Inegavelmente, a Declaração Universal de 1948 representa a culminância de um processo ético que, iniciado com a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os valores, independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição, como se diz em seu artigo II. E esse reconhecimento universal da igualdade humana só foi possível quando, ao término da mais desumanizadora guerra de toda a História, percebeu-se que a idéia de superioridade de uma raça, de uma classe social, de uma cultura ou de uma religião, sobre todas as demais, põe em risco a própria sobrevivência da humanidade.‖ (2006, p. 225).

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generalizado aos bens que fazem com que a vida seja ‗digna‘ de ser vivida.‖ (2009,

p. 37). Os direitos humanos, por sua vez, seriam as conquistas provisórias

resultantes dos embates sociais em busca dessa dignidade concreta, como vimos

no início deste capítulo.

Em sua proposta de reinvenção dos direitos humanos, Joaquín Herrera Flores

nos oferece uma atividade pedagógica bastante ilustrativa. Primeiro ele revisita o

preâmbulo e os três primeiros artigos da DUDH, dando-lhes uma nova redação.

Depois, sugere a leitura comparativa dos dois textos, considerando-se para tanto

que os direitos humanos, como toda produção cultural, deveriam ser compreendidos

e aplicados à luz dos contextos históricos concretos.38 Da comparação entre os dois

textos fica evidente a crítica do autor à visão tradicional dos direitos humanos, cujo

conteúdo básico seria o direito a ter direitos, concepção que representaria um

―círculo fechado que não cumpriu com seus objetivos desde que se ‗declarou‘ há

quase seis décadas.‖ (HERRERA FLORES, 2009, p. 39).

Mas como se pode sair desse ―círculo fechado‖? Para Herrera Flores, os

direitos humanos teriam que ser reinventados a partir de novas bases teóricas. O

princípio básico a ser considerado é o de que, na vida das pessoas, em primeiro

lugar estão os bens, e não os direitos. Todos os seres humanos têm necessidades

de satisfação de bens materiais e imateriais, que variam de cultura para cultura.

Historicamente, o acesso a esses bens não tem sido universalizado. Ao contrário,

tem se caracterizado pela desigualdade decorrente de vários fatores, como divisões

econômicas, sociais, de gênero, e até do espaço geográfico que as pessoas podem

ocupar. Desse modo, as lutas dos desfavorecidos nesse processo histórico devem

ser vistas como lutas pela dignidade humana, e suas conquistas provisórias (muitas

delas consubstanciadas nos sistemas jurídicos de garantia), formariam o conteúdo

dos direitos humanos. O lazer pode ser visto tanto como um desses bens, quanto

38 Esta é a redação proposta por Herrera Flores: ―Preâmbulo: ‗...reconhecendo que os direitos

humanos não constituem um ‗ideal abstrato‘ que, como todo horizonte, se afasta a medida que nos aproximamos, proclamamos que tais direitos são o conjunto de processos que os indivíduos põem em marcha cotidianamente para ter acesso aos bens exigíveis para uma vida digna de ser vivida.‘ Art. 1º - Todos os seres humanos devem ter os instrumentos, meios e condições necessárias, a fim de que possam pôr em prática ‗processos de luta pela dignidade humana.‘ Art. 2º - A dignidade humana é um fim perseguido pelos direitos humanos. A dignidade consiste na obtenção de um acesso igualitário aos bens, tanto materiais como imateriais, que se consegue no constante processo de humanização do ser humano. Ar 3º - Para conseguir o anterior, os seres humanos em luta para abrir processos de dignidade devem ter suficiente poder individual e coletivo para exigir das instituições legislativas, internacionais e nacionais, um sistema de garantias (políticas, sociais, econômicas e jurídicas) que lhes permitam gozar do resultado de suas lutas. Para tal efeito, declaram-se como garantias mínimas as que se relatam a seguir...‖ (2009, p. 40).

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como uma dessas conquistas.

3.1.4 O lazer como bem cultural fundamental

Sendo um bem cultural dos mais importantes, o lazer pode satisfazer

necessidades humanas básicas. A esse respeito, Amauri Mascaro Nascimento

afirma que de acordo com a sociologia, o lazer atende, de modo geral, às seguintes

necessidades:

a) necessidade de libertação, opondo-se à angústia e ao peso que acompanham as atividades não escolhidas livremente; b) necessidade de compensação, pois a vida atual é cheia de tensões, ruídos, agitação, impondo-se a necessidade do silêncio, da calma, do isolamento como meios destinados a contraposição das nefastas conseqüências da vida diária do trabalho; c) necessidade de afirmação, pois a maioria dos homens vive em estado endêmico de inferioridade, numa verdadeira humilhação acarretada pelo trabalho de oficinas, impondo-se um momento de afirmação de si mesmos, de auto-organização da atividade, possível quando dispõe de tempo livre para utilizar segundo os seus desejos; d) necessidade de recreação como meio de restauração biopsíquica; e) necessidade de dedicação social, pois o homem não é somente trabalhador, mas tem uma dimensão social maior, é membro de uma família, habitante de um

município, membro de outras comunidades de natureza religiosa, esportiva,

cultural, para as quais necessita de tempo livre; f) necessidade de desenvolvimento pessoal integral e equilibrado, como um das facetas decorrentes da sua própria condição de ser humano.(1998, p. 304).

Nessa perspectiva, o lazer é apresentado principalmente no contexto da vida

urbana e como compensação ou complementação da vida dedicada ao trabalho.

Pelo menos é isso que se infere da leitura dos itens ―b‖ a ―e‖, nos quais aparecem as

palavras trabalho ou trabalhador, sendo no caso do item ―b‖, feita alusão à vida cheia

de tensões e ruídos, que certamente não se aplica ao estilo de vida do campo. Em

tais hipóteses, predomina a visão funcionalista do lazer e a concepção deste como

contraponto ao trabalho, este último visto como elemento central da cultura. No

entanto, uma análise mais profunda do sentido do lazer pode nos levar à

compreensão de que este não deve ser necessariamente um elemento periférico,

gravitando ao redor do trabalho. Ao contrário, o lazer pode ser visto também como

fundamento da cultura, como procura demonstrar Josef Pieper (2009).

Para aquele autor, existe uma enorme diferença entre a visão que hoje temos

do lazer e do trabalho, e a predominante no antigo mundo greco-romano, bem como

no pensamento medieval. Essa diferença não permitiria às pessoas daquelas

épocas entender a atual concepção de trabalho, da mesma forma que não nos

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permite compreender a noção que elas tinham de lazer.

Tomemos como exemplo a atual noção de trabalho. Esta chega a ser tão

ampla a ponto de abranger a totalidade das atividades desenvolvidas pelo ser

humano. O conceito de trabalhador, nessa concepção, refere-se não apenas a

alguém que exerce determinada profissão ou ofício, mas se confunde com a própria

ideia de ser humano, entendimento que ganha vulto no caso do trabalho intelectual,

que não corresponde necessariamente a trabalho inteligente, quando se leva em

conta o sentido original de inteligência, assim explicado por Olavo de Carvalho:

Inteligência, no sentido em que aqui emprego a palavra, no sentido que tem etimologicamente e no sentido em que se usava no tempo em que as palavras tinham sentido, não quer dizer a habilidade de resolver problemas, a habilidade matemática, a imaginação visual, a aptidão musical ou qualquer outro tipo de habilidade em especial. Quer dizer, da maneira mais geral e abrangente, a capacidade de apreender a verdade. A inteligência não consiste nem mesmo em pensar. Quando pensamos, mas o nosso pensamento não capta propriamente o que é verdade naquilo que pensa, então o que está em ação nesse pensar não é propriamente a inteligência, no rigor do termo, mas apenas o desejo frustrado de inteligir ou mesmo o puro automatismo de um pensar ininteligente. O pensar e o inteligir são atividades completamente distintas. A prova disto é que muitas vezes você pensa, pensa, e não intelige nada, e outras vezes intelige sem ter pensado, numa súbita fulguração intuitiva. (1994, p. 1).

Normalmente concebe-se como intelectual apenas o trabalho que

compreende esforço, ideia que, segundo Pieper, recebeu influência da

epistemologia kantiana:

De acordo com Kant, o conhecimento humano é percebido como ato de comparação, análise, estabelecimento de relações, distinções, abstrações, deduções e demonstrações ─ todas elas, formas de esforço intelectual. Conhecimento, espiritual humano, conhecimento intelectual (tal é a tese de Kant) é atividade, exclusivamente atividade. (PIEPER, 2009, p. 27, tradução nossa).

39

Dessa concepção resulta que o conhecimento conseguido sem esforço passa

a ser visto como falso conhecimento, o que se choca frontalmente com a atitude

filosófica original, centrada na vida contemplativa. Para os filósofos gregos, filosofia

não se confunde com esforço, mas é antes de tudo contemplação. Também não é

diferente essa compreensão da filosofia na Idade Média. Para São Tomás de Aquino

o ser humano também participa da faculdade angélica de visão não discursiva,

podendo aceder ao conhecimento da verdade pela Revelação divina, e não apenas

39 No texto original: ―According to Kant man‘s knowledge is realized in the act of comparing,

examining, relating, distinguishing, abstracting, deducing, demonstrating ─ all of which are forms of active intellectual effort. Knowledge, man‘s spiritual, intellectual knowledge (such is Kant‘s thesis) is activity, exclusively activity.‖

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como resultado do trabalho humano. Portanto, na concepção filosófico-teológica

tomista, o conhecimento não descarta o aspecto da não-atividade. Se o acesso à

verdade dependesse só de esforço humano, que sentido teria a realidade da graça

divina? E mesmo sem considerar o aspecto teológico, seria justo reduzir o insight a

simples transpiração, e banir a inspiração do nosso acervo semântico?

Contudo, a ideia de intelecção como trabalho preponderou sobre a de

iluminação pela via contemplativa. Como se não bastasse, no plano da ética

também foi disseminada a concepção de que o bom é o difícil, e quanto mais difícil,

melhor. Daí que, da mesma forma que o conhecimento adquirido sem esforço

passou a ser visto como falso conhecimento, tudo o que ser humano faz sem

esforço passou a ser visto como falsificação da verdadeira moralidade. Hércules,

nesse contexto, é o ideal do ser humano, por ter realizado trabalho digno de um

super-homem. Vimos, porém, que na antropologia teológica, que teve influência

sobre a concepção de dignidade humana, o ideal de humanização não provém do

modelo de Hércules, e sim do paradigma de Jesus Cristo. E na visão cristã, o agir

ético não depende apenas do esforço pessoal, mas da abertura à graça divina, o

que pode ser constatado no tratamento dado ao tema das virtudes pelo Magistério

da Igreja Católica.

Virtudes, de acordo com a doutrina católica, são perfeições habituais da

inteligência e da vontade que norteiam o agir do ser humano, permitindo-lhe não

apenas praticar o bem, mas dar o melhor de si. Elas propiciam ―facilidade, domínio e

alegria para levar uma vida moralmente boa. Pessoa virtuosa é aquela que

livremente pratica o bem.‖ (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1804, p. 486).

Contudo, a liberdade na prática do bem não exclui a ação divina na formação

da pessoa virtuosa. Os atos desta, deliberadamente voltados ao bem, são

purificados e elevados quando se abrem à graça divina. Daí que, além das virtudes

morais, adquiridas humanamente, a exemplo das virtudes cardeais da prudência,

justiça, fortaleza e temperança, existem as virtudes teologais (fé, esperança e

caridade), que se referem diretamente a Deus, e que se apresentam como

fundamento das outras virtudes humanas. A respeito das virtudes teologais, S.

Tomás responde a questões que ele mesmo levanta: se aparentemente não há

virtudes dadas por Deus (teologais) ou se não há necessidade de hábitos movidos

por tais virtudes, por se tratarem de virtudes infusas pelo poder divino, e não

naturais ao ser humano.

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S. Tomás parte da noção de virtude como disposição do que é perfeito (uma

disposição natural) para o que é ótimo (o divino). Ora, como problematiza o

Aquinate, se o divino é superior ao humano, as virtudes teologais não seriam

humanas, mas divinas, ou quase divinas, por serem dádivas de Deus ao ser

humano. Além disso, se o ser humano, por sua própria natureza e vontade, ordena-

se para Deus, princípio primeiro e fim último de todas as coisas, para que a

necessidade de virtudes infusas para conduzir os hábitos humanos? Mas, por outro

lado, se os preceitos da lei divina são relativos a atos das virtudes, e essa mesma lei

ordena atos de fé (crer no Senhor), esperança (esperar nele) e caridade (amá-lo) ─

ou seja, atos guiados pelas virtudes teologais ─, não estaríamos diante de uma

contradição? Na Suma Teológica, a solução dada a essas questões é a seguinte:

RESPONDO. Como ficou patente, a virtude aperfeiçoa o homem para atos pelos quais ele se ordena à bem-aventurança. Ora, conforme acima foi dito, a felicidade ou bem-aventurança humana é dupla: uma é proporcional à natureza humana, ou seja, pode o homem consegui-la pelos princípios de sua natureza; a outra supera sua natureza e só pode ser alcançada por graça divina, por certa participação da divindade, segundo se diz na Carta de Pedro, que por Cristo nos tornamos ―partícipes da natureza divina‖. E como essa bem-aventurança excede as possibilidades da natureza humana, os princípios naturais pelos quais o homem consegue agir bem, de acordo com sua possibilidade, não bastam para ordená-lo a essa bem-aventurança. É necessário, pois, lhe sejam acrescentados por Deus certos princípios pelos quais ele se ordene à bem-aventurança sobrenatural, tal como está ordenado ao fim que lhe é conatural por princípios naturais que, porém, não excluem o auxílio divino. Ora, esses princípios se chamam virtudes teologais, primeiro por terem Deus como objeto, no sentido que nos orientam retamente para ele; depois, por nos serem infundidos só por Deus; e, finalmente, porque essas virtudes são transmitidas unicamente pela revelação divina, na Sagrada Escritura. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 173).

Como se vê, a ideia de graça divina não exclui, mas pressupõe a natureza

humana. Nessa perspectiva, o equívoco é imaginar que o acesso à verdade e ao

bem supremo depende exclusivamente do ativismo humano. Isso não quer dizer que

o caminho para a verdade (e para o bem) seja isento de esforço. O esforço faz parte

da condição humana na trajetória do perfeito para o ótimo. Entretanto, condição não

se confunde com causa. O acesso à verdade e a conquista da felicidade não são

causadas exclusivamente pelo trabalho humano. Nem mesmo o esforço presente no

sacrifício e no autodomínio cristãos é fim em si mesmo. Na visão cristã, a vocação

humana não é para o trabalho, e sim para a bem-aventurança.

Ocorre que a perspectiva filosófica da contemplação e a visão teológica da

graça não têm muito peso no mundo do trabalho total, em que todos precisam

ocupar seu lugar de trabalhadores. Num mundo assim, nem mesmo o estudante

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escapa de ser visto como trabalhador intelectual. O trabalho é hiperbolizado como

fonte da dignidade do ser humano; é o trabalho que lhe confere honra, sem a qual

―se morre, se mata e não dá pra ser feliz‖, como diz a conhecida música de

Gonzaguinha.40 Já o lazer, situando-se no campo do não-trabalho, passa a ser

associado à preguiça ou acídia, que integra o rol dos sete pecados ou vícios

capitais.41 Todavia, tal associação é um equívoco, sendo importante distinguir acídia

de lazer, para que este possa ser considerado um bem cultural fundamental.

Acídia ou acédia (do grego akedia) é enfraquecimento da vontade, desordem

mental caracterizada por melancolia profunda. Para os monges medievais, a akedia

era vista como abulia espiritual, sendo o pior dos demônios, por ser capaz de

dilacerar o íntimo do ser humano:

Akedia é a incapacidade de estar inteiro no momento, de se envolver com o que está acontecendo. Evágrio conta a engraçada história de um monge tentado pelo demônio da akedia. O monge está em sua cela, mas não suporta ficar aí. Olha toda hora pela janela, na esperança de alguma visita. Amaldiçoa os cruéis irmãos, que hoje novamente não pensaram nele. Depois olha para o céu, talvez seja hora de sair para comer. Rebela-se contra Deus por permitir que o sol ande com tanta lentidão. Em seguida lê um pouco de sua Bíblia. Mas aí fica cansado e sonolento. Pega a Bíblia e usa como travesseiro. Então se irrita porque seu travesseiro está muito duro. Vota a se levantar e se rebela contra tudo. Evágrio quer dizer que o monge é choroso como criança porque não obtém o que quer, mas também não sabe o que quer exatamente. (...) Não é à toa que Cassiano chama a akedia de taedium (tédio, desgosto). A akedia produz nas pessoas o horror loci (desgosto pelo lugar onde se está). O indivíduo quer sempre estar em outro lugar. Quando trabalha, prefere não fazer nada. Quando não faz nada, se aborrece. Não consegue se envolver com a oração, com o trabalho, nem

40

Trata-se da música Guerreiro menino (um homem também chora), do cantor e compositor Luis Gonzaga do Nascimento Júnior (1945-1991). 41 Marciano Vidal, teólogo espanhol de projeção internacional e consagrado autor na área de ética

teológica, informa que na história da teologia foram elaboradas diversas classificações, algumas delas valorativas, em relação aos pecados. Segundo aquele autor, os teólogos geralmente têm seguido a classificação feita por S. Tomás de Aquino e a análise escolástica deste no que se refere aos pecados ou vícios: ―Aplicando a doutrina da distinção dos pecados e vícios em razão dos objetos, faz-se o seguinte arrazoado para provar seu número septenário: quatro referem-se à busca do bem aparente: da alma (vanglória), da vida corporal individual (gula) ou da espécie (luxúria), e dos bens exteriores (avareza); três referem-se à fuga do mal aparente: o trabalho (acídia), o bem dos outros (inveja), que traz a vingança.‖ (VIDAL, 1993, p. 705). Por sua vez, o ócio, como fuga do trabalho, é condenado por S. Tomás na Suma Teológica. Todavia, para ser considerado um vício, essa fuga, segundo o Aquinate, teria de ser incondicionada, pois em outros casos o ócio pode ser virtuoso: ―abandonar os afazeres humanos impostos pela necessidade é vício, como é virtude nos demais casos. Por isso é que Cícero, pouco antes, dissera: ‗Talvez devamos conceder aos que não se ocupam do bem público, aqueles que, com excelente capacidade, se dedicaram ao ensino, e aos que, por pouca saúde ou por outra causa mais grave, se afastaram da coisa pública, que tenham deixado a outros o dever e a honra de a administrar.‘ O que combina bem com isto de Agostinho: ‗O amor da verdade busca o ócio santo; a necessidade do amor assume a atividade justa. Se ninguém impõe tal fardo, entreguemo-nos a descobrir e a contemplar a verdade; mas se é imposto, aceitemo-lo por dever de caridade.‖ (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 171-172).

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mesmo com o fazer-nada. Não consegue sequer desfrutar o tempo livre. (GRÜN, 2004, p. 35).

Tendo como sintomas abatimento físico e espiritual, moleza e frouxidão, a

acídia faz da pessoa um indolente agitado, incapaz não somente de realizar um

trabalho proveitoso, mas principalmente de viver o lazer. Este, como observa Pieper

(2009), não resulta exclusivamente de fatores externos, como tempo de sobra,

feriado, final de semana ou férias. Uma pessoa pode estar num resort paradisíaco,

mas se lhe falta disposição para animar a si mesma, nem o melhor animador

profissional consegue proporcionar-lhe verdadeiro lazer. Este brota primeiramente

de uma atitude interior. Por isso, se comparado à noção de trabalho como atividade,

o lazer implica atitude de não-atividade. Entretanto, é um não-agir vivido com

tranquilidade interior e caracterizado pela abertura para contemplação do mundo. É

nesse sentido que pode ser reconhecido ao lazer o papel de bem cultural

fundamental, indispensável à dignidade humana e importante no processo de

reinvenção dos direitos humanos.

3.1.5 Lazer e reinvenção dos direitos humanos

O mundo atual, como já foi referido, mostra-se bem mais complexo do que o

ressurgido dos escombros da Segunda Guerra Mundial, a partir dos quais se deu o

processo de reconstrução dos direitos humanos. Essa complexidade permite que

sejam feitas diversas leituras do cenário mundial. Em algumas delas é possível

vislumbrar a coexistência de dois mundos: o do consumismo e o da exclusão social.

No primeiro, impera a idolatria do mercado e a cultura consumista. Nele fabricam-se

sonhos de consumo, massificam-se desejos e comportamentos, a pessoa é vista

pelo que tem, e valor é confundido com preço. Nesse cenário, qualidade de vida é

vista como sinônimo de capacidade de comprar coisas. Trata-se de um mundo

criado à imagem e semelhança do ser humano deslumbrado pela cultura do

consumo, vivendo imerso no que Baudrillard denomina liturgia formal do objeto:

À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objectos, dos serviços, dos bens materiais, originando como que uma categoria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana. Para falar com propriedade, os homens da opulência não se encontram rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais por objectos. O conjunto das suas relações sociais já não é tanto o laço com os seus semelhantes quanto, no plano estatístico segundo uma curva ascendente, a recepção e a manipulação de bens e de mensagens, desde a organização doméstica

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muito complexa e com suas dezenas de escravos técnicos até ao ―mobiliário urbano‖ e toda a maquinaria material das comunicações e das actividades profissionais, até ao espetáculo permanente da celebração do objecto na publicidade e as centenas de mensagens diárias emitidas pelos mass media; desde o formigueiro mais reduzido de quinquilharias vagamente obsessivas até aos psicodramas simbólicos alimentados pelos objectos noturnos, que vêm invadir-nos nos próprios sonhos. Os conceitos de ―ambiente‖ e de ―ambiência‖ só se divulgaram a partir do momento em que, no fundo, começámos a viver menos na proximidade dos outros homens, na sua presença e no seu discurso; e mais sob o olhar mudo de objectos obedientes e alucinantes que nos repetem sempre o mesmo discurso ─ isto é, do nosso poder medusado, da nossa abundância virtual, da ausência mútua de uns aos outros. Como a criança-lobo se torna logo à força de com eles viver, também nós, pouco a pouco, nos tornamos funcionais. Vivemos o tempo dos objectos: quero dizer que existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com a sua sucessão permanente. Actualmente, somos nós que os vemos nascer, produzir-se e morrer, ao passo que em todas as civilizações anteriores eram os objectos, instrumentos ou monumentos perenes, que sobreviviam às gerações humanas. (BAUDRILLARD, 2008, p. 13-14).

No outro mundo, vivem os desvalidos de todo gênero, outrora denominados

oprimidos, marginalizados, descamisados ou explorados. Hoje se costuma chamá-

los de excluídos, já que vivem numa época que, segundo Herrera Flores, é de

exclusão generalizada.42 A exclusão social crescente é um fenômeno ao mesmo

tempo perverso e qualitativamente novo. Quando nos referíamos a exploradores e

explorados, tínhamos que contar com estes últimos. Como não pode haver

exploradores sem explorados, estes tinham que ser colocados dentro do sistema. Já

os excluídos, estes não contam, pois “estão, por definição, fora do sistema, como se

não existissem.‖ (NUNES, A., 2003, p. 110).

A complexidade que caracteriza o mundo em que vivemos também

compreende inúmeras contradições. Na década de 1980, Fritjof Capra (2007) já

alertava para as incoerências que caracterizavam a crise mundial de então.

Enquanto em todo o mundo se gastavam rios de dinheiro em armamentos, milhões

de pessoas morriam de fome todos os anos. De acordo com dados estatísticos da

42 Nas palavras de Joaquín Herrera Flores, vivemos numa época de exclusão generalizada: ―Um

mundo no qual quatro quintos de seus habitantes sobrevivem à beira da miséria; um mundo no qual a pobreza aumenta em 400 milhões de pessoas ao ano, segundo o relatório do Banco Mundial de 1998, o que faz com que atualmente, 30% da população mundial viva(?) com menos de um dólar ao dia, situação que atinge de forma especial às mulheres. Além disso, 20% da população mais pobre recebe menos de 2% da riqueza do mundo, enquanto os 20% mais ricos ficam com mais de 80% do total de riquezas produzidas. Um mundo em que mais de 1 milhão de trabalhadoras e trabalhadores morrem por acidente de trabalho, 840 milhões de pessoas passam fome, um bilhão não tem acesso a água potável e a mesma quantidade é analfabeta, tudo em razão de planos de (des)ajuste estrutural que estão impondo o desaparecimento das mais diminutas garantias sociais (PNUD). Um mundo em que ao ano morrem de fome e de doenças evitáveis um número que resulta da multiplicação por 6000 o total dos mortos nas Torres Gêmeas... Está claro que não são as pessoas que contam, pois o que importa é unicamente a rentabilidade.‖ (2009, p. 151-152).

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época, trinta e cinco por cento da humanidade tinham carência de água potável,

enquanto metade dos cientistas e engenheiros de todo o mundo emprestava sua

inteligência à tecnologia de fabricação de arma. E a grande crise, segundo Capra,

era antes de tudo uma crise de percepção. A visão analítico-mecanicista já não era

suficiente para explicar a complexidade do mundo; seria preciso enxergá-lo a partir

de suas múltiplas conexões, numa visão holística ou de ecologia profunda. Muitas

das incoerências apontadas por Capra permanecem nos dias de hoje, e a crise de

percepção também persiste em diversas áreas.

Os direitos humanos fazem parte desse mundo complexo, exigindo

igualmente que sejam compreendidos a partir de uma nova percepção. Esta,

segundo Herrera Flores, deve se constituir numa visão complexa, aliada a uma

racionalidade de resistência e a uma prática intercultural. Só assim será possível ir

além do embate entre aqueles que postulam o universalismo dos direitos humanos

(visão abstrata) e os que se opõem a tal concepção sob o argumento das

particularidades da cultura de cada povo (visão localista). Para Herrera Flores,

―ambas as afirmações são o produto de visões distorcidas e reducionistas da

realidade. Ambas acabam ontologizando e dogmatizando seus pontos de vista ao

não relacionar suas propostas com os contextos reais.‖ (2009, p. 156).

A visão complexa dos direitos humanos, diferente da concepção abstrata e

localista, procura ver o mundo a partir da periferia e não do centro. O olhar a partir

do centro tende a ser excludente e reducionista: ―só existe um centro, e o que não

coincide com ele é abandonado à marginalidade. Periferias, entretanto, existem

muitas. Na verdade tudo é periferia, se aceitamos que não há nada puro e que tudo

está relacionado.‖ (HERRERA FLORES, 2009, p. 157). A visão de mundo a partir

das periferias, em lugar de pressupor dominação e violência, pode propiciar a

reinvenção dos direitos humanos a partir do diálogo e da convivência. A visão

complexa também contribui para solucionar os problemas da falta e do excesso de

contextualização, que caracterizam, respectivamente, a visão abstrata e a localista.

O contexto deixa de ser um empecilho para ser o conteúdo dessa nova perspectiva,

que procura incorporar as múltiplas inter-relações de circunstâncias que envolvem a

experiência dos direitos humanos.

A racionalidade de resistência, por sua vez, vai de encontro à racionalidade

formal do universalismo a priori, que tende a reduzir os direitos ao seu componente

jurídico em sentido estrito, deixando de fora a prática social como parte integrante da

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experiência jurídica dos direitos humanos. Por outro lado, não se contenta com a

racionalidade material localista, que aprioristicamente se fecha à tendência

universalista, engendrando paradoxalmente um outro universalismo, ―de retas

paralelas que somente se encontrarão no infinito do magma das diferenças

culturais.‖ (HERRERA FLORES, 2009, p. 162). Por essa nova racionalidade, as

diferentes visões se entrecruzam, o universal passa a ser visto como ponto de

chegada e não de partida, num processo ao qual Herrera Flores se refere como

multiculturalismo crítico ou de resistência, caracterizado pela prática intercultural.

Esta se apresenta como um ideal de convivência democrática entre as diferentes

culturas. Para tanto, faz-se necessário que cada cultura reconheça não apenas sua

incompletude, mas a necessidade de abertura ao diálogo intercultural, que não

implica uniformização de valores culturais hegemônicos. Ao contrário, no diálogo

intercultural, que pressupõe respeito pelo outro, o objetivo dos interlocutores não

deve ser a imposição mútua de valores particulares, mas o estabelecimento de

políticas de igualdade sem aniquilação da diversidade. Para isso, uma das propostas

é a criação de um novo meta-direito intercultural que, no entender de Boaventura de

Sousa Santos, deve nortear a articulação das políticas de igualdade e de identidade

num contexto pós-colonial e multicultural: ―temos o direito a ser iguais sempre que a

diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade

nos descaracteriza.‖ (2008, p. 313).

Reinventados a partir de uma visão complexa, do multiculturalismo crítico e

da prática intercultural, os direitos humanos deixarão de ser apenas textos

normativos produzidos por uma determinada tradição cultural. Serão, ao contrário,

―processos dinâmicos que permitem a abertura e a conseguinte consolidação e

garantia de espaços de luta pela dignidade humana.‖ (HERRERA FLORES, 2009, p.

169). Sendo um dos componentes dessa dignidade, o lazer não pode ficar de fora

do processo de reinvenção dos direito humanos. Ainda mais quando se constata

que, nas sociedades contemporâneas, apesar de todas as dificuldades, ele não é

tido mais como fenômeno periférico e ocasional, e sim como elemento central e

estruturante da vida social:

O lazer já tendo sido reconhecido em sua amplitude e estrutura complexa e ainda nas suas relações com os demais aspectos de nossa civilização maquinista e democrática, não mais pode ser considerado um problema menor, sem importância e características próprias, colocado no fim da lista dos problemas importantes e na dependência de existir, ainda, tempo e dinheiro para que seja levado em consideração... O lazer apresenta-se

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como um elemento central da cultura vivida por milhões de trabalhadores, possui relações sutis e profundas com todos os grandes problemas oriundos do trabalho, da família e da política que, sob sua influência, passam a ser tratados em novos termos. Gostaríamos de provar que, em pleno século XX, não é mais possível elaborar teorias sobre problemas fundamentais, sem antes refletir sobre as conseqüências neles determinadas pelo lazer. (DUMAZEDIER, 1976, p. 20).

Ocorre que, para adequar-se à nova visão de direitos humanos, como

imaginados no projeto de reinvenção proposta por Herrera Flores, o lazer há que ser

também reinventado. E o processo de reinvenção do lazer, da mesma forma que o

dos direitos humanos, deverá fundar-se numa racionalidade de resistência aos

padrões culturais dominantes, bem como na abertura ao diálogo intercultural.

A racionalidade de resistência ensejará um lazer concebido de forma crítica,

um lazer que não seja apenas mercolazer. Num mundo em que predomina a cultura

do consumo e em que a influência da indústria cultural é avassaladora, certamente

não é fácil ao lazer fugir do destino de tornar-se mercadoria. Entretanto, essa

dificuldade não é exclusiva do lazer, mas se estende a outras atividades humanas.

Por isso, a despeito de todos os obstáculos, faz-se necessária a criação de

alternativas ao mercolazer, o que só pode ser feito no âmbito de um projeto mais

amplo de reinvenção da própria sociedade. As alternativas poderão surgir, por

exemplo, como frutos da concepção de lazer como ócio criativo, e poderão também

ser construídas por meio de políticas públicas de lazer destinado a minorias sociais.

O diálogo intercultural, por seu turno, será relevante como instrumento de

respeito e incentivo às diversas modalidades de lazer, como expressões culturais de

cada povo, de modo especial às formas mais tradicionais, que não foram ainda

submetidas ao jugo da indústria do lazer. Além disso, a temática do lazer poderá se

constituir num elemento importante no diálogo intercultural, se este for estabelecido

na perspectiva da valorização ou revalorização dos aspectos positivos da não-

atividade, que são comuns a diferentes tradições culturais, tanto orientais quanto

ocidentais. Tome-se como exemplo a não-ação (wu wei) do Taoísmo e a skhole

grega. O não-atuar taoísta não se confunde com inação ou acídia; significa

realização das coisas com naturalidade e quietude interior: trabalhar se o momento

requer trabalho, comer se a ocasião é para comer, repousar se o momento é para

repousar, tudo isso realizado sem predeterminação ou intencionalidade fora de

medida, pois as ações de quem fica o tempo todo pensando no que vai fazer não

fluem naturalmente; transformam-se em mera agitação. Essa quietude interior

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guarda semelhança com a skhole, base da tradição filosófica da vida contemplativa,

não sendo muito diferente da tranquilidade de coração que, mesmo no pensamento

contemporâneo ocidental, constitui-se em condição indispensável para vivência

plena do lazer. Josef Pieper (2009), por exemplo, concebe o lazer como uma forma

de silêncio, não do silêncio como ausência de barulho, e sim como atitude mental

contemplativa, silêncio como pré-requisito para apreensão da realidade. Somente

esse tipo de silêncio torna o ser humano capaz de ouvir e entender os murmúrios do

mundo natural, do qual o ser humano é parte, e do mundo construído e

compartilhado socialmente.

3.2 Lazer e cidadania

Tomando parte no projeto de reconstrução e reinvenção dos direitos

humanos, o lazer pode se constituir em instrumento e índice de cidadania. Esta,

porém, quando passa a ser objeto de discussão, apresenta as mesmas dificuldades

encontradas na abordagem dos direitos humanos e do lazer, pois da mesma forma

que estes, a cidadania é um fenômeno complexo e por vezes ambíguo.

A dificuldade se revela já na sua conceituação, como ilustra Leandro Karnal.

Para este, se nos fosse dado reunir para um debate personagens históricos de

diferentes épocas, a exemplo de Péricles, Montesquieu, Thomas Jefferson e

Robespierre, o que poderíamos esperar de uma discussão entre eles a respeito de

cidadania? Embora sejam considerados defensores da cidadania, ―possivelmente

eles discordariam em itens fundamentais. Cada época produziu práticas e reflexões

sobre cidadania muito distintas ─ e cidadania, como é lógico supor, é uma

construção histórica específica da civilização ocidental.‖ (KARNAL, 2008, p. 135-

136).

Mas também da mesma forma do que se passa com os direitos humanos, a

origem histórica ocidental da cidadania não impede o desejo de sua universalização,

mesmo que isso aconteça progressivamente, segundo a linha de raciocínio de

Benito Aláez Corral (2006), para quem a cidadania é uma instituição jurídica gradual.

Desde as suas origens históricas, ela expressa determinado tipo de integração do

indivíduo em distintas esferas de comunicação social, particularmente na política,

independentemente de beneficiar somente uma minoria de pessoas submetidas ao

ordenamento jurídico, mas que, atualmente, tende a incluir a maior parte delas,

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como resultado da progressiva autonomia e diferenciação do sistema jurídico.

Uma das esferas de comunicação social em que as pessoas tendem a ser

progressivamente incluídas é o lazer. Cada vez mais os diversos ordenamentos

jurídicos vão inserindo o lazer na esfera conceitual da cidadania. Por outro lado,

porém, a realidade social muitas vezes nega os princípios que norteiam esses

ordenamentos. Por isso é importante a compreensão da trajetória histórica e

conceitual da cidadania, com suas ambiguidades, contradições e tensões dialéticas,

a fim de situar o papel do lazer nessa trajetória, tanto no âmbito mundial quanto no

contexto nacional.

3.2.1 A história da cidadania no mundo: dialética de inclusão e exclusão

Costuma-se associar as origens da cidadania à organização comunitária das

cidades-estado gregas. Estas, porém, eram organizadas de forma bastante diferente

do que hoje concebemos como cidades, resultando do gradativo fechamento de

―territórios agrícolas específicos, cujos habitantes se estruturaram,

progressivamente, como comunidades, excluindo os estrangeiros e defendendo

coletivamente suas planícies cultivadas da agressão externa.‖ (GUARINELLO, 2008,

p. 32-33).

Não havia nessas comunidades uma autoridade política centralizadora,

ficando o exercício do poder principalmente nas mãos dos proprietários das terras.

Por isso os conflitos internos dependiam de decisão coletiva, que se davam no

espaço público. Mas nem todos, como sabemos, participavam igualitariamente

desse espaço, tampouco das definições da vontade da comunidade política, como

era o caso de escravos, mulheres e estrangeiros. Estes poderiam ser sujeitos

econômicos, reprodutivos e até educativos, mas nunca sujeitos políticos.

Situação análoga se dava nos primórdios da civitas romana, em que os

direitos de cidadania eram privilégio de proprietários de terras. Os patrícios, ou

homens bons, não só detinham autoridade diferenciada de outros grupos sociais,

dominando o senado e as magistraturas, como eram os únicos que podiam ostentar

os sinais de poder e distinção social, ―como o anel de ouro, uma faixa púrpura na

túnica e a capa curta adotada pelos cavaleiros.‖ (FUNARI, 2008, p. 51). Os plebeus,

por outro lado, formavam o grupo heterogêneo daqueles que não tinham os mesmos

direitos que os patrícios. Além desses dois grupos distintos, havia os clientes,

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espécie de vassalos dos patrícios, e os escravos destes, principalmente domésticos,

que compunham a entidade familiar, na condição de patrimônio dos seus senhores.

Vê-se, portanto, que em sua gênese greco-romana, a cidadania exercia

função muito mais de exclusão do que de inclusão. No entanto, não se pode perder

de vista que foi ainda na antiguidade romana que teve início um processo de

expansão da cidadania. Como esclarece Crifò (2000), diferente do que acontecia na

Grécia, em que o cidadão era produto da cidade, pois nascia e vivia em função

desta, em Roma a cidade derivava do cidadão, o que possibilitou ao Império

Romano transformar-se numa imensa urbe, que se estendia a todo o orbe habitado

por seus cidadãos.

Essa expansão da cidadania é associada ao cosmopolitismo característico do

pensamento estoico romano. Para este, a concepção de cidadania vinculava-se ao

cosmos e não à pólis, sendo o cosmopolita um cidadão do mundo. Por outro lado,

não se pode menosprezar o papel do direito romano nesse antigo processo de

globalização da cidadania. A cidadania romana, mais do que um vínculo filosófico-

cultural, apresentava-se como um vínculo jurídico. Tome-se como exemplo a

concessão da cidadania romana a todos os homens livres do Império no ano de 212,

por força do edito de Caracala.

Mas nenhum direito, por si só, é bastante para levar cidadania a todas as

pessoas do mundo, principalmente às que habitam o submundo. No caso de Roma,

a situação não era diferente. A concessão da cidadania romana a um grande número

de indivíduos fez com que aquela universalização implicasse, na prática,

banalização do status de cidadão, ou seja, sua desvalorização, dando ensejo ao

aparecimento de outros tipos de distinção social: ―ricos e poderosos passaram a ser

designados como honestiores, os outros foram chamados de ‗mais humildes‘

(humiliores).‖ (FUNARI, 2008, p. 75).

Entre os mais humildes, figuravam os cristãos dos primeiros séculos. Durante

algum tempo, os cristãos eram confundidos com os judeus, até porque originalmente

compunham uma pequena seita judaica formada por seguidores de Jesus de

Nazaré. Somente com a destruição de Jerusalém, no ano 70, o cristianismo foi se

apartando do judaísmo. Este perdeu o templo, seu principal ponto de referência,

enquanto a igreja cristã foi aos poucos se tornando independente da sinagoga, e ao

mesmo tempo, transformando-se em alvo de sistemática perseguição do Império

Romano.

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Inicialmente as perseguições não tinham base jurídica específica e pareciam

derivar daquilo que se convencionou denominar odium generis humani, prenunciado

pelo próprio Jesus Cristo (Lc 21, 17). Com o tempo, porém, passaram a ser

perpetradas com base em normas jurídicas direcionadas especificamente aos

cristãos, que, apesar de adotarem a postura de obediência às autoridades como

parte de sua doutrina, resistiam ao culto idolátrico dos deuses, bem como à

deificação do Imperador. E como a expansão da cidadania não implicava liberdade

de culto, a insurgência a essas imposições do direito romano causou a morte de

muitos cristãos.

Perseguição e martírio não foram suficientes para impedir a multiplicação das

comunidades cristãs. Ao contrário, o número de cristãos cresceu vertiginosamente

muito antes de ter o cristianismo se tornado a religião oficial do Império Romano.

Para muitos, o solo que fez crescer o cristianismo tornou-se fértil por ter sido regado

com o sangue dos mártires.43 O martírio, aliado à santidade, aos milagres e à

evangelização, são apontados como responsáveis pela chamada vitória do

cristianismo.

Eduardo Hoornaert, porém, levanta uma hipótese diferente. Para ele, o

grande fator para a impressionante expansão do movimento cristão, ainda incipiente,

numa sociedade de dimensão grandiosa quanto a romana, foi a formação de uma

rede associativa entre os integrantes das camadas inferiores do Império Romano.

Esse fator, normalmente apresentado de forma mais tímida em relação aos

anteriormente apontados, segundo Hoornaert, tem fundamento histórico mais

consistente que os demais.44 Daí que, para aquele autor:

43

Pierre Pierrard (2002) faz referência à ideia repetida de que o sangue dos mártires é semente de cristãos, e não desmerece o seu papel para o crescimento da fé cristã, salientando que etimologicamente mártir quer dizer testemunha, e o testemunho tem valor apologético. Diz ainda que dispomos de relatos historicamente confiáveis sobre o martírio de muitos cristãos. Mas também reconhece que não se pode atribuir total veracidade, no sentido rigoroso da ciência histórica, a outras narrativas a respeito de martírios, principalmente aos Atos e Paixões dos mártires, as mais antigas peças hagiográficas, que foram por vezes retocadas com objetivo de ampliar o testemunho edificante, transformando-se quase em canções de gesta recheadas de elementos da epopéia: ―o imperador malvado ou o procônsul dissoluto, o carrasco cuja mão treme, pretensas testemunhas oculares, interrogatórios prolixos e estereotipados, o terrífico arsenal de torturas, marchas fúnebres... Os Atos de santa Cecília, de santa Tecla, de São Sebastião, a Paixão de São Juliano... encontram-se entre os mais célebres desses pios romances‖ (PIERRARD, 2002, p. 29). 44

Para Hoornaert (2008), a história não confirma o discurso da Igreja a respeito das razões da expansão do cristianismo. O número de mártires cristãos dos três primeiros séculos foi menor que o de testemunhas-de-jeová dizimados nos campos de concentração nazistas; a santidade de muitos cristãos e mesmo os milagres não podem ser comprovados historicamente, considerando-se para tanto o caráter catequético e não histórico de muitos textos cristãos, a exemplo dos evangelhos. Além disso, a história não dá conta de uma significativa evangelização explícita no início do cristianismo.

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O cristianismo não venceu pela pregação de seus apóstolos ou bispos, nem pelo testemunho destemido dos mártires, pela santidade de seus heróis, pelas virtudes nem pelos milagres de seus santos. Venceu, isso sim, por uma atuação persistente e corajosa na base do edifício social e político da sociedade. Constituiu-se numa ―utopia que funciona‖ no seio do submundo romano. Conseguiu para muitas pessoas e muitos grupos uma cidadania real, embora limitada e bastante modesta quanto aos resultados em termos de sociedade global. (HOORNAERT, 2008, p. 94).

A ―vitória do cristianismo‖ culminou numa mudança radical. De integrantes de

comunidades perseguidas, seus adeptos passaram a fazer parte de um verdadeiro

império cristão. O edito de Milão (313), concedendo aos cristãos igualdade de

tratamento com adeptos de outras religiões, deu início formal a essa vitória. Por

outro lado, utilizou-se do cristianismo em benefício da unidade do Império,

―concedendo-lhe isenções e privilégios, alternados com gestos cesaropapistas, tudo

cumulando na proclamação de sua fé como a oficial do Império (380).‖ (LIMA, M.,

2004, p. 178).

Fragmentado o poder com a queda de Roma, o império cristão ocupou

grande parte do vazio político decorrente dessa fragmentação, especialmente no

mundo medieval do Ocidente, cuja unidade passou a derivar muito mais da religião e

da cultura, do que do poder político. Este foi fracionado nas mãos dos senhores

feudais, entre os quais estavam os dirigentes da Igreja Católica. A Igreja também

exercia um considerável poder, como instituição encarregada de administrar as

grandes recompensas almejadas na época, que não eram políticas ou econômicas,

mas espirituais. A cidadania, nesse novo cenário, foi perdendo características que

tinha na antiguidade clássica. Deixou de ser um privilégio político

predominantemente excludente, como havia sido na civilização helênica, e também

não era mais um status jurídico voltado para a inclusão, como ocorreu no processo

de universalização da cidadania romana. No mundo medieval, a vinculação do

indivíduo a uma determinada coletividade era mais uma relação de sujeição que de

participação política, situação que perdurou até a Renascença.

Embora não haja consenso sobre a demarcação cronológica do

Renascimento, este pode ser compreendido como o amplo conjunto de

transformações sociais, políticas e culturais que se iniciaram ainda na Idade Média e

marcaram a transição do feudalismo para o capitalismo. Como se sabe,

convencionou-se designá-lo como Renascimento justamente por se caracterizar por

uma volta aos padrões culturais da antiguidade greco-latina, entre os quais podemos

incluir a concepção clássica de cidadania relacionada à ideia de participação

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política. Carlos Zeron (2008) destaca, nesse período, as experiências ocorridas em

Florença e Salamanca, que contribuíram para o resgate e aprimoramento de tal

concepção.

Em Florença, a organização política diferenciava-se do típico modelo feudal,

de cidadania tendente a zero. Lá se esboçava uma estrutura política caracterizada

pela divisão de poderes: o executivo, exercido pelos priores com a assessoria de

conselhos restritos; o administrativo, cujas decisões provinham de diversos

conselhos, que funcionavam paralelamente ao poder executivo; e o legislativo,

constituído por assembleias eleitas periodicamente. Advirta-se, porém, que não era

qualquer habitante da cidade que podia ocupar cargos nessas esferas de poder:

Deles estava excluída a plebe, que correspondia à grande maioria da população, enquanto que o povo (O popolo, isto é, os artesãos e a pequena e média burguesia) encontrava-se reduzido a uma participação mínima. Se todo o povo possuía direitos políticos (em oposição à plebe, conforme a definição romana antiga do civis), os próprios florentinos acrescentavam adjetivos que evocavam a realidade política da cidade e traduziam a exclusão e a hierarquia na esfera política: eles distinguiam assim entre o popolo grasso, o popolo médio e o popolo minuto (literalmente: povo gordo, povo médio e povo miúdo). (ZERON, 2008, p. 103).

No caso de Salamanca, o destaque fica por conta do papel exercido pelo

frade dominicano Francisco de Vitoria, teólogo, filósofo e jurista, tido como fundador

do direito internacional moderno, e um dos principais expoentes da tradição filosófica

da chamada Escola de Salamanca. Depois de fazer seus estudos na Universidade

de Sorbonne, em Paris, onde recebeu grande influência do pensamento humanista,

Vitoria assumiu a cátedra de teologia na Universidade de Salamanca, onde lecionou

de 1526 até 1546. Atuou como conselheiro do imperador Carlos V, do Sacro Império

Romano-Germânico, e ainda como consultor do Concílio de Trento. As ideias

defendidas por Francisco de Vitoria, a partir da visão tomista do direito natural,

tornaram-se um marco importante para as modernas concepções de soberania e de

cidadania, pois refutavam as formas de poder universal do imperialismo e da

teocracia e, ao mesmo tempo, deixavam transparecer que o objetivo do poder

público é garantir os direitos dos cidadãos, haja vista que para Vitoria ―o horizonte e

a finalidade do poder público é o bem comum, isto é a res publica.” (ZERON, 2008,

p. 107).

A história posterior à Renascença cuidou de ampliar esse horizonte. Na Idade

Moderna, iniciou-se um novo tempo, marcado pelo trinômio: universalidade,

individualidade e autonomia, deixando para trás um mundo de ―verdades reveladas‘,

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assentado no trinômio particularismo/organicismo/heteronomia.‖ (MONDAINI, 2008,

p. 115). O respeito aos direitos individuais passou a ser uma forte característica

desse novo tempo, em que ocorreram as revoluções liberais inglesa, americana e

francesa, esta última tomada historicamente como limiar da contemporaneidade.

Para Mondaini, os acontecimentos desencadeados na Inglaterra do século

XVII, mais do que uma restauração imaginada pelos próprios ingleses, significaram,

de fato, uma revolução.45 Como resultado desta, o poder político trocou de mãos,

passando a ser exercido por uma nova classe social, já que o grande apoio do

Parlamento vinha das classes mercantis e industriais, bem como dos pequenos

proprietários de terra, o que possibilitou o posterior desenvolvimento do modo de

produção capitalista e o advento da Revolução Industrial. No plano econômico, a

terra deixou de ser instrumento de ócio e herança, transformando-se em fonte de

lucro, o que só foi possível no contexto de uma nova ordem social e política,

inspirada em um novo código de valores: ―falamos aqui da ‗nova moralidade do

capitalismo: o lucro e o individualismo.‖ (Ibidem, p. 123).

Na América do Norte, a revolução que fez surgir os Estados Unidos teve

características bastante peculiares. A grande novidade foi a própria invenção de uma

república federal a partir da confederação das ex-colônias britânicas, que haviam se

tornado estados independentes. Para que isso se tornasse possível, foi necessário

inventar também uma noção de liberdade, indissociável da ideia de cidadania, que

pudesse agregar grupos sociais heterogêneos, com diferentes interesses e visões

de mundo:

O gesto de liberdade de 1776 implicava amnésia para uma invenção possível: os EUA, o único país que nascia sem nome e tomava o nome do

45 Etimologicamente, revolução se refere ao ato de revolver, como giro ou passagem sucessiva de

um corpo a outro, sendo utilizado como termo astronômico para designar a trajetória cíclica dos astros. Sendo assim, muitos ingleses poderiam imaginar sua revolução como retorno a uma ordem estabelecida. Entretanto, o sentido predominante de revolução é o de irrupção do novo, ou, como define Canotilho, adotando a noção sugerida por Ralf Dahrendorf, revolução, sob o ponto de vista político e jurídico-constitucional, é o ―fenômeno político-social (ou conjunto de fenômenos) originador de mudanças rápidas e radicais essencialmente traduzidas no plano político-social pela deslegitimação de toda uma classe governante, com a conseqüente substituição da maioria dos seus principais membros e uma transformação constitucional de vastíssimas conseqüências.‖ (CATOTILHO, 1999, p. 199). Por outro lado, Florestan Fernandes observa que, no essencial, há pouca confusão quanto ao significado básico de revolução: ―mesmo na linguagem do senso comum sabe-se que a palavra se aplica para designar mudanças drásticas e violentas da estrutura da sociedade. Daí o contraste freqüente de ‗mudança gradual‘ e ‗mudança revolucionária‘, que sublinha o teor da revolução como uma mudança que ‗mexe com as estruturas‘, que subverte a ordem social imperante na sociedade.‖ (FERNANDES, 1993, p. 9).

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equívoco francês acrescido do toque federal: Estados Unidos da América. Só a construção de um determinado conceito de liberdade poderia unir fazendeiros escravocratas da Virgínia, comerciantes e manufatureiros da Nova Inglaterra, puritanos de Boston, católicos de Maryland, quacres da Pensilvânia, moradores das cidades como Nova York e muitos alemães das colônias centrais. A liberdade passou a ser constituída como fator de integração nacional e de invenção do novo Estado. (KARNAL, 2008: p. 139-140).

Na Revolução Francesa, a liberdade ganhou novos contornos. Ela fez parte

não apenas do sonho de construção de um novo país, mas foi alçada à condição de

bandeira de luta empunhada com aspiração de universalidade. A Revolução

Francesa foi conscientemente assumida como culminância do processo de

construção do ser humano como sujeito da história e, por conseguinte como sujeito

de direitos, cujas bases teóricas são oriundas do pensamento iluminista do século

XVIII. Este se caracteriza pelo espírito analítico que, segundo Ernst Cassirer (1997),

é um fenômeno tipicamente francês, principalmente quando se leva em conta que

antes da Revolução de 1789, a França já tinha sido palco da revolução filosófica

realizada por Descartes, que fez daquele país a pátria do pensamento analítico.

Além disso, a filosofia francesa oitocentista, como observa Cassirer, transformou a

doutrina dos direitos inalienáveis num evangelho moral, aderindo a ela com paixão e

proclamando-a com entusiasmo, ―e ao proclamá-la dessa maneira, inseriu-a

verdadeiramente na vida política real, conferindo-lhe essa força de choque, essa

potência explosiva que se manifestou nos dias da Revolução Francesa.‖ (1997, p.

334).

Todas essas revoluções concorreram para a construção da cidadania como

processo de transformação de súditos em cidadãos, necessário para a legitimação

do poder do Estado. A vontade deste passa a ser vista como fruto de um contrato

social, o que leva a pressuposição de um estado de natureza, não necessariamente

como um dado histórico ou sociológico, mas que funciona como um espelho, no qual

―o Estado e a sociedade de hoje devem contemplar seu próprio rosto [...], devem

aprender a ver-se e a julgar-se.‖ (Ibidem, p. 358).

Nesse novo cenário, o soberano passa a ser o povo, termo que dá margem a

mais um jogo de espelhos, haja vista que povo, mesmo sendo um elemento

fundamental para a ideia contemporânea de cidadania, é um conceito

reconhecidamente impreciso, multívoco, manipulável, ou seja, quase

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calidoscópico.46 Como se não bastasse, a formulação do conceito de povo, como

sujeito coletivo e soberano do estado democrático, não elimina as desigualdades

inerentes à sociedade de classes. Não se pode negar, como reconhece Marshall

(2005), que no seio das democracias do nosso tempo, existe uma constante tensão

entre o princípio da igualdade, pressuposto na ideia de cidadania, e a desigualdade

intrínseca ao capitalismo e à sociedade de classes,47 o que pode ser sentido na

história da cidadania no Brasil.

3.2.2 A cidadania no Brasil: avanços e retrocessos

Uma das mais conhecidas abordagens sobre a trajetória da cidadania no

Brasil foi produzida por José Murilo de Carvalho. Este delineou a história de nossa

cidadania, partindo da constatação de que cidadania plena, aquela que compreende

o exercício integral e universal de direitos civis, políticos e sociais, é algo

praticamente inalcançável, embora seja um horizonte estabelecido no mundo

ocidental, que ―tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da

cidadania em cada país e em cada momento histórico.‖ (CARVALHO, J.M., 2008, p.

9). Com base nesse parâmetro, é possível se falar em cidadãos completos e

incompletos, bem como identificar, na evolução histórica da cidadania brasileira, a

presença desses dois tipos de cidadãos, e até mesmo de um significativo

46 Sobre a indeterminação do conceito de povo, assim se reporta o Dicionário Enciclopédico de Teoria

e de Sociologia do Direito: ―o conceito de povo é seguramente plurívoco, tantas já foram suas acepções além das outras tantas que subsistem nas ciências humanas, ao sabor das pessoas, dos locais e das épocas. A constatação é evidente. Juridicamente, é inconseqüente na medida em que a noção não se reveste normalmente de nenhum significado técnico particular em direito, mesmo neste havendo freqüentes referências ao povo.‖ (ARNAUD, 1999, p. 613). 47

Segundo Marshall (2005), a cidadania é composta de direitos civis, políticos e sociais, que foram sendo conquistados sucessivamente. Os direitos civis são necessários para o exercício das liberdades individuais dos cidadãos, a exemplo do direito à vida e as liberdades de locomoção, pensamento e crença, entre outras. Os direitos políticos dizem respeito ao poder que o cidadão tem de decidir sobre a escolha das autoridades públicas e se candidatar a cargos públicos, bem como de decidir sobre os investimentos públicos. Por fim, os direitos sociais se referem ao conjunto dos direitos relevantes à sociedade, como educação, saúde e seguridade social. Todavia, historicamente é possível verificar uma oposição das classes dominantes à conquista da cidadania pelas classes inferiores. Em determinados períodos históricos, por exemplo, somente os detentores da propriedade exerciam direitos civis e políticos. Do mesmo modo, o exercício dos direitos sociais ficava na dependência do poder econômico. Sendo assim, os direitos sociais, que eram a bandeira de luta dos movimentos dos trabalhadores dos séculos XIX e XX redundou apenas numa garantia a igualdade formal e não à igualdade material no gozo desses direitos.

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contingente de não-cidadãos.

O Brasil colonial foi antes de tudo um Brasil de não-cidadãos. Se os pouco

mais de trezentos anos de colonização portuguesa deram em resultado um país

continental e uma nação com relativa unidade cultural, ao mesmo tempo nos

deixaram como legado uma população formada em sua grande maioria por

analfabetos e marcada pelas desigualdades de uma sociedade escravista. Por isso,

não é de estranhar que a participação do povo no processo que levou à nossa

emancipação política fosse tímida ou quase nula. Mesmo assim, na Constituição que

se seguiu à independência figuravam direitos políticos (como o direito de votar e ser

votado) até mais amplos do que os assegurados em muitos países da Europa, o que

permitiu uma participação da população no processo eleitoral, em percentuais mais

elevados do que os verificados na Inglaterra, Itália, Portugal e Holanda.48

Não se pode esquecer, porém, que durante muito tempo imperou em nosso

país o chamado voto de cabresto. Isso sem falar nas precárias formas de

alistamento eleitoral, normalmente feito pelos padres, por meio dos registros

paroquiais, além da prática corriqueira de fraudes nas eleições. Havia, desse modo,

uma distância considerável entre os direitos políticos formais previstos na

Constituição e o exercício desses direitos. No recém-criado Império do Brasil, a

realidade social se constituía num grande desafio para o exercício dos direitos de

cidadania, uma vez que é impossível formar cidadãos da noite para o dia, como bem

observa José Murilo de Carvalho:

Os brasileiros tornados cidadãos pela Constituição eram as mesmas pessoas que tinham vivido os três séculos de colonização nas condições que já foram descritas. Mais de 85% eram analfabetos, incapazes de ler um jornal, um decreto do governo, um alvará da justiça, uma postura municipal.

48 De acordo com os artigos 91 e 92 da Constituição do Império do Brasil (1824), podiam votar

todos os homens maiores de vinte e cinco anos (além dos entre vinte um e vinte cinco, casados ou bacharéis formados, clérigos e empregados públicos) que tivessem renda mínima de líquida anual de cem mil réis. Tal limitação de renda, segundo José Murilo de Carvalho (2008), não se constituía num obstáculo para a maioria da população trabalhadora, cuja renda era superior à exigida por lei. Segundo Carvalho, as exigências de renda na Inglaterra eram bem superiores. Além disso, a legislação brasileira permitia o voto do analfabeto, sendo por isso considerada uma legislação bastante liberal para os padrões da época. Com relação à participação no processo eleitoral, informa o mesmo autor que no Brasil, ―segundo cálculos do historiador Richard Graham, antes de 1881 votavam em torno de 50% da população adulta masculina. Para efeito de comparação, observe-se que em torno de 1870 a participação eleitoral na Inglaterra era de 7% da população total; na Itália, de 2%; em Portugal, de 9%; na Holanda, de 2,5%. O sufrágio universal masculino existia apenas na França e na Suíça, onde só foi introduzido em 1848. Participação mais alta havia nos Estados Unidos, onde, por exemplo, 18% da população votou para presidente em 1888. Mas, mesmo neste caso, a diferença não era tão grande.‖ (2008, p. 31).

.

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Entre os analfabetos incluíam-se muitos dos grandes proprietários rurais. Mais de 90% da população viviam em áreas rurais, sob o controle ou a influência dos grandes proprietários. Nas cidades, muitos votantes eram funcionários públicos controlados pelo governo. (2008, p. 32).

A bem da verdade, a própria formulação jurídica da cidadania brasileira à

época da independência era um problema difícil de ser solucionado. Quem haveria

de ser o cidadão brasileiro?:

Seria o português, o nascido no Brasil ou o indígena? ―Havia um país chamado Brasil, mas absolutamente não havia brasileiros‖, escreveu o botânico francês Saint-Hilaire, que viajara longamente pelo Brasil entre 1816 e 1822.‖ (CANÊDO, 2008, p. 524).

Em resposta a esse problema, a solução dada pela Constituição imperial foi

inventar a figura do cidadão brasileiro, que incluía desde aqueles nascidos em nosso

território, que fossem livres ou filhos de escravos nascidos livres, até estrangeiros

naturalizados, independente de sua religião.49 No entanto, o que se estava

inventando era muito mais a nacionalidade do que a cidadania brasileira. Pois a

cidadania, como exercício de direitos civis, políticos e sociais, ainda era uma

realidade muito distante tanto para os não-cidadãos formais, a exemplo dos

escravos, quanto para a maioria dos que eram designados cidadãos brasileiros.

Esse quadro não mudou muito com a chegada da República. Como vimos, os

negros libertos da escravidão não foram integrados à cidadania. O latifúndio

continuou sendo um obstáculo ao surgimento de pequenas propriedades e um

espaço praticamente imune à ação da lei e da justiça do Estado. Este, por sua vez,

persistiu na sua opção preferencial pelos interesses privados, especialmente dos

latifundiários. Tínhamos concretamente uma estrutura política e social em que as

oligarquias rurais eram hegemônicas, embora o texto da nossa primeira Constituição

republicana proclamasse o princípio da igualdade perante a lei e repudiasse

privilégios,50 não condizentes com a ideia de República. Tal situação perdurou em

49

De acordo com o art. 6º da Constituição do Império do Brasil, são cidadãos brasileiros: ―I.Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação; II. Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio. III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em serviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio no Brazil.; IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia.V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalisação.‖(BRASIL, 1824). 50

O art. 72 daquela Constituição, que abre a declaração de direitos, dispõe em se parágrafo segundo, que todos são iguais perante a lei, e que a República não admite privilégios de nascimento, desconhecendo foros de nobreza e extinguindo as ordens honoríficas existentes e todas as suas

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nosso país durante as primeiras décadas do século XX, como relata Tânia Regina

de Luca:

A distância entre a letra da lei e sua efetivação prática esteve longe de ser pequena. A esmagadora maioria da população vivia nas áreas rurais e estava submetida aos desígnios dos grandes proprietários. Em 1920, apenas 16,6% dos brasileiros residiam em cidades com vinte mil habitantes ou mais, enquanto a taxa de analfabetismo girava em torno dos 70%. Nesse contexto, não surpreende que os direitos civis e políticos fossem uma ficção jurídica. (2008, p. 470).

Surpreendente, porém, foi o fato de que a partir da década de 1930, com o

Estado Novo, houve um avanço dos direitos sociais, mesmo num contexto de

restrição de direitos civis e políticos. O Estado Novo, como afirma Murilo de

Carvalho, ―não queria saber de povo nas ruas. Era um regime mais próximo do

salazarismo português, que misturava repressão com paternalismo, sem buscar

interferir exageradamente na vida privada das pessoas.‖ (2008, p. 109). E foi nessa

mistura de repressão com paternalismo, no seio de um regime autoritário, mas não

totalitário, que os direitos sociais no Brasil tomaram a dianteira de outros direitos,

principalmente no que diz respeito à legislação social trabalhista e previdenciária.

Há quem afirme que a legislação social trabalhista em nosso país resultou de

um movimento histórico descendente,51 ou seja, de uma ação governamental de

cima para baixo. Pois no caso brasileiro, os direitos trabalhistas teriam sido fruto da

ação do governo de Getúlio Vargas, e não resultante de um movimento ascendente,

de lutas sociais como as que ocorreram no México, Inglaterra e França, por

exemplo. Outros entendem, porém, que essa legislação foi sendo conquistada a

partir das lutas do operariado, e que este ―não foi um instrumento cego nas mãos de

Vargas, como tentam provar os historiadores burgueses, mas sim lutou

independentemente em vários casos.‖ (KOVAL, 1982, p. 22). Seja como for, a ênfase

nos direitos sociais fazia parte do populismo, que envolvia uma relação ambígua

entre governo e cidadão, fato destacado por José Murilo de Carvalho:

Era avanço na cidadania, na medida em que trazia as massas para a política. Mas, em contrapartida, colocava os cidadãos em posição de dependência perante os líderes, aos quais votavam lealdade pessoal pelos benefícios que eles de fato ou supostamente lhes tinham distribuído. A antecipação dos direitos sociais fazia com que os direitos não fossem vistos como tais, como independentes da ação do governo, mas como um favor

prerrogativas e regalias.

51

De acordo com Segadas Vianna, os movimentos descendentes têm como características: ―a) inexistência de luta, sem que isso indique a ausência de uma questão social, embora latente; b) falta de associações profissionais; c) os grupos sociais são ainda inorgânicos; d) não há atividades econômicas que exijam massas proletárias densas.‖ (SÜSSEKIND; MARANHÃO; VIANNA, 1993, p. 56).

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em troca do qual se deviam gratidão e lealdade. A cidadania que daí resultava era passiva e receptora antes que ativa e reivindicadora. (2008, p. 126).

Com o fim do Estado Novo, a cidadania reivindicadora no Brasil pode ser

exercida com mais intensidade. A experiência democrática iniciada a partir de então

permitiu uma maior mobilização da sociedade civil, cujas organizações podiam atuar

sem receio de repressão estatal. Essa atuação se dava não apenas nas cidades, por

meio das entidades sindicais e do movimento estudantil, entre outros, mas também

no âmbito rural, em que se destacavam as ligas camponesas. Entre as

reivindicações desses grupos estavam as reformas estruturais ou de base, como as

reformas educacional, fiscal, política e agrária, que faziam parte também da agenda

de alguns partidos políticos. Portanto, o período que vai do fim do Estado Novo até o

golpe militar de 1964 caracteriza-se por uma cidadania em que os direitos políticos

tiveram mais ênfase do que em épocas anteriores.

Mas a trajetória democrática, como sabemos, foi interrompida pela ditadura

militar, que cerceou direitos políticos e civis dos cidadãos, mas, ao mesmo tempo,

contribuiu para ampliação de alguns direitos sociais, notadamente no âmbito

previdenciário. No final de 1966 foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social

(INPS), que ensejou a unificação dos antigos institutos de aposentadoria e pensão. A

Constituição de 1967 (art. 158, XVI), por seu turno, assegurava aos trabalhadores a

previdência social, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado,

estabelecendo o direito ao seguro-desemprego, posteriormente regulamentado com

o nome de auxílio-desemprego. No mesmo ano, o Seguro de Acidentes de Trabalho

(SAT) foi incorporado à Previdência Social. Também com o propósito de

universalização da previdência, foi criado em 1971, no auge da repressão política, o

Fundo de Assistência Rural (FUNRURAL), que não se valia de contribuições dos

proprietários nem dos trabalhadores rurais, mas concedia a estes últimos o direito a

aposentadoria e pensão, bem como assistência médica, e em 1972, os empregados

domésticos passaram a ser segurados da Previdência. Com estas duas últimas

medidas, ―a Previdência Social brasileira passou a abranger dois imensos

contingentes de indivíduos que, embora exercessem atividade laboral, ficavam à

margem do sistema.‖ (CASTRO; LAZZARI, 2008, p. 64).

Fazendo um balanço do governo militar na perspectiva da construção da

cidadania em nosso país, Murilo de Carvalho observa que nos vinte e um anos de

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94

sua duração houve avanços e retrocessos. Na relação entre direitos políticos e

sociais, os militares utilizaram expediente análogo ao empregado no Estado Novo,

ou seja, ao mesmo tempo que cercearam direitos políticos e civis, investiram na

ampliação de direitos sociais, o que destoou do período democrático havido entre

1945 e 1964, que foi marcado pelo alargamento dos direitos políticos e estagnação

ou menor avanço dos direitos sociais. Segundo aquele autor, o autoritarismo

brasileiro posterior a 1930 sempre tentou contrabalançar a restrição da liberdade

política com boas doses de paternalismo assistencialista. Essa tática foi mais exitosa

durante a época de Vargas, uma vez que ―o corporativismo sindical e a visão do

Poder Executivo dispensador de benefícios sociais ficaram gravados na experiência

de uma geração inteira de trabalhadores.‖ (CARVALHO, J.M., 2008, p. 190). Já no

caso do regime militar, essa manobra não foi tão eficaz, por razões várias, mas

principalmente porque a mobilização política que precedeu o golpe militar foi bem

mais intensa que a ocorrida antes da Revolução de Trinta.

Os avanços e retrocessos também podem ser notados na história da

cidadania brasileira após a redemocratização do país. A democracia política por si só

não tem sido suficiente para superar os grandes problemas socioeconômicos que

fazem do Brasil uma nação dilacerada pelas desigualdades. O Estado brasileiro e,

de modo especial o Poder Executivo, continua sendo para muitos ou apenas o

cobrador de impostos ou o distribuidor paternalista de benesses, no mais das vezes

atreladas ao fisiologismo político. Nesse contexto, apesar de muitos avanços

conquistados no exercício de direitos de cidadania, boa parte de nossa população

ainda é composta por cidadãos incompletos e até por não-cidadãos.

Tratando dessa questão, Milton Santos nos propõe duas perguntas bastante

provocativas: ―Quantos habitantes, no Brasil, são cidadãos? Quantos nem sequer

sabem que não o são?‖ (1998, p. 7). E leva-nos a refletir sobre as possíveis

respostas, partindo do pressuposto de que numa democracia de verdade, o modelo

econômico é que deve se sujeitar ao cívico, e não o contrário. O modelo cívico, que

tem como um dos componentes a cultura, pressupõe a prévia delimitação do modo

de vida ou da civilização que se pretende para todos os indivíduos em sua

convivência social. Daí que, quando aceitamos, por exemplo, o estabelecimento do

menor valor da remuneração do trabalho, abaixo do mínimo necessário para a vida

humana com dignidade, reconhecemos tacitamente que ainda estamos longe de

possuir uma verdadeira cultura, pois o modelo predominante é o econômico.

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Nesse sentido, falta muito para que cidadãos incompletos ou não-cidadãos

um dia cheguem a ser verdadeiros cidadãos. A cidadania plena deve ser

multidimensional. Por isso o cidadão não pode se restringir apenas à figura do

contribuinte ou do consumidor, tampouco se deve imaginar que o indivíduo se

investe automaticamente na condição de cidadão quando se torna eleitor. Este,

como nos faz ver Milton Santos, não é necessariamente cidadão, pois é possível a

existência de um eleitor não-cidadão, quando o indivíduo não exerce integralmente

suas potencialidades como protagonista da comunidade política: ―o papel desse

eleitor não-cidadão se esgota no momento do voto; sua dimensão é singular, como o

é a do consumidor, esse ‗imbecil feliz‘ de que fala H. Laborit.‖ (1998, p. 41).

3.2.3 Lazer e cidadania: caminhos e descaminhos da lazerania

Uma das dimensões da cidadania pode ser encontrada no lazer. Para realizar

plenamente suas capacidades e tornar-se integrante ativo e dinâmico da

comunidade em que vive, o indivíduo precisa ser protagonista também no bom uso

do seu tempo disponível. Só assim será possível a construção da lazerania,

concebida como ―possibilidade de organização do lazer como um tempo e espaço

para a prática da liberdade e o exercício da cidadania, por conseguinte, encarada

como uma força opositiva à hegemonia do mercolazer.” (MASCARENHAS, 2005, p.

207). Como processo que se encontra em contínua evolução, a lazerania faz parte

de um projeto político oriundo da imaginação utópica. Esta leva o ser humano a

planejar um mundo estruturado numa ordem econômica, social e política mais justa,

permitindo-se, nesse projeto, tantas aspirações, que podem se referir a quase tudo:

Por exemplo, e por mais em contrário que se manifestem os hipócritas, aspirar a que se acabe com o trabalho ─ pelo menos com esse trabalho que embrutece, consumindo o indivíduo e colocando-o numa situação de sujeição tal que melhor seria a prisão. Ou a morte. Ou então, pelo menos, pretender que todos trabalhem para que todos possam trabalhar menos, em vez de se matarem uns enquanto outros ficam assistindo de camarote. A imaginação utópica quer ainda ─ e é penoso constatar que a imaginação tem de intervir aqui também ─ que todos sejam tratados do mesmo modo, homens, mulheres e crianças. Que ninguém passe necessidades. Que ninguém seja considerado superior aos outros por ter mais coisas do que eles. Que os mais competentes e honestos dirijam os negócios públicos. Que ninguém seja obrigado a fazer o que não quer, o que não pode e não deve. Ou, então, que desapareça o dinheiro. E a propriedade privada. E que exista a liberdade de expressão e a religiosa. E que a educação seja acessível a todos. A esta lista cada um poderia acrescentar ainda uma série de exigências básicas: todas caberiam. E mais algumas e outras ainda não imaginadas. (COELHO, 1993, p. 87)

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Essa lista inacabada de aspirações pode soar como um projeto que, de tão

fantasioso, não seja merecedor de crédito. Mas se assim fosse, seria justo dizer o

mesmo da lista constante da DUDH, absorvida pelos textos constitucionais de tantos

Estados, inclusive o Brasil? Não é o que pensa Bellefleur (2002), para quem o

conjunto de direitos e liberdades constantes da Declaração Universal da ONU é um

exemplo de utopia reguladora do desenvolvimento, o que se evidencia

particularmente no preâmbulo da Declaração, em que os Estados membros

professam mais uma vez sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e

no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres,

reafirmam sua disposição de promover o progresso social e melhores condições de

vida em uma liberdade mais ampla, bem como o compromisso de desenvolver, em

cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e

liberdades fundamentais, e a observância desses direitos e liberdades.

A utopia reguladora, segundo Bellefleur, deve ser entendida ao modo de

Mannheim, ou seja, no sentido positivo de declaração de objetivos ideais de efeitos

civilizatórios passíveis de realização, embora nem todos se realizem.52 No caso da

Declaração da ONU, passado mais de meio século de sua proclamação, a

observância dos direitos humanos é, como se costuma dizer no âmbito da ciência

teológica, ao mesmo tempo um ―já‖ e um ―ainda não‖, ou seja, por um lado, é algo

que já se realiza e vem se ampliando; por outro, como desejo de universalização, é

realidade ainda distante de se concretizar, mas que, nem por isso, deixa de ser

elemento importante para o progresso civilizatório.

Sendo um dos integrantes desse projeto utópico, a lazerania ainda é mais um

ideal do que uma realidade. Todavia, se levarmos em conta a significativa herança

cultural do século XX relacionada ao lazer,53 esse ideal tem mais chance de se

52 Karl Mannheim estabelece a distinção entre utopia e ideologia, sendo a primeira realizável e a

segunda, não. A utopia, de acordo com o pensamento daquele autor, refere-se ao conjunto de ideias que visam a transformação da ordem existente, diferente da ideologia, que se refere às ideias que servem para manutenção dessa mesma ordem. Ideologias seriam ideias ―situacionalmente transcendentes que nunca conseguem de fato atualizar os projetos nelas implícitos. Apesar de freqüentemente se apresentarem como justas aspirações da conduta pessoal do indivíduo, quando levadas à prática, seu significado muitas vezes é deformado. A idéia do amor fraterno cristão, p. ex., numa sociedade fundada na servidão, é irrealizável e por isso ideológica, mesmo quando, para quem o entenda de boa fé, seu significado constitui um fim para a conduta individual.‖ (MANNHEIM, apud ABBAGNANO, 2000, p. 532).

53

Michel Bellefleur apresenta um quadro sobre a herança do século XX no âmbito do lazer, em que relaciona 13 itens, embora advirta que se tratam de aquisições frágeis: 1. Liberação gradual do tempo

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realizar na contemporaneidade do que em épocas passadas. Pois as condições

econômicas, políticas e sociais permitem a mais pessoas experimentar atividades

(ou não-ações) livremente escolhidas e voltadas para a fruição prazerosa da vida.

É claro que não se pode descartar a possibilidade de que a lazerania não

consiga impor-se ao mercolazer, já que se vislumbra uma forte tendência de que

este se torne a forma hegemônica do lazer contemporâneo. Além disso, seria

ingênuo desconsiderar o lado sombrio do lazer, relacionado não a impulsos de vida,

e sim de morte. Muita gente ainda se deleita com atividades perigosas ou cruentas,

a exemplo de touradas, corridas de touro, lutas de vale-tudo, entre outras. Os

habituais trotes com calouros universitários, envolvendo agressões físicas e

humilhações, para algumas pessoas não passam de divertimento, sem falar nos

entretenimentos em que há abuso de drogas lícitas ou ilícitas. Mas esse lado

sombrio pode ser visto como um desvirtuamento do lazer, fenômeno que pode

acontecer com qualquer atividade humana. O trabalho pode ser realizado tanto para

dignificar quanto para aviltar o ser humano; a educação, direcionada para o

sujeito à coação e aparecimento do tempo escolhido. 2. Mobilidade espacial sem precedentes na história humana, fundada nos modos e meios de transporte modernos e concretizando a aspiração de viagens. 3. Mobilidade espácio-temporal virtual, instantânea e planetária fundada nas tecnologias da comunicação. 4. Amplificação dos processos democráticos que levam a uma expansão da participação nas decisões coletivas. 5. Expansão dos direitos e liberdades, individuais e coletivas, e desenvolvimento das responsabilidades que lhe são inerentes. 6. Surgimento das sociedades de mais e mais tolerantes e pluralistas no que concerne às doutrinas e ideologias, com a ampliação da gama de comportamentos socialmente admissíveis. 7. Os mais altos níveis jamais alcançados de educação e formação de base. 8. Nascimento e intenso desenvolvimento de uma rede de proteção social como base da cidadania para tudo e para todos (saúde, seguridade social, etc.). 9. Maior acesso a um consumo discricionário (livre, mas dirigido). 10. Nascimento de uma sensibilidade para questões ambientais de todos os tipos e ordens. 11. Ruptura com modos e estilos de vida, bem como com a cultura prescrita ou imposta. 12. Massificação de informações e do conhecimento técnico e científico. 13. Polarização do desenvolvimento social sobre a temática do conjunto da qualidade de vida, prolongando e dando conteúdo para afirmação de direitos humanos adquiridos ou conquistados no século XX. (2002, p. 69, tradução nossa). No texto original: ―L‘héritage du XX

e siècle em loisir (Des

acquis fragiles): 1. La libération graduelle du temps contraint et l‘avènement du temps choisi. 2. Une mobilité spatiale sans précédent dans l‘histoire humaine fondée sur les voies et moyens de transport moderne et concrétisant l‘aspiration au voyage. 3. La mobilité spatio-temporelle virtuelle, instantanée et planétaire fondée sur les technologies de la communication. 4. Une amplification des processus démocratiques entraînant une extension de la participation aux decisions collectives. 5. Une extension des droits et libertés, individuelles et collectives, et le développement de la responsabilisation à leur endroit. 6. L‘avènement de sociétés de plus em plus tolerantes et pluralistes en ce qui concerne les doctrines et les idéologies, cela élargissant la gamme des comportements admissibles socialement. 7. Des niveaux d‘education et de formatiion de base les plus hauts jamais atteints. 8. La naissance et le développement houleux d‘un filet de protection sociale comme base de la citoyenneté de tous et toutes (santé, sécurité sociale, etc.) 9. Un accès élargi à la consummation discrétionnaire (libérée, mais encadrée). 10. La naissance d‘une sensibilité aux questions environnementales de tous genres et de tous ordres. 11. Un éclatement des modes et styles de vie, ainsi que de la culture prescrite ou imposée. 12. Une diffusion massive de l‘information et de la connaissance technique et scientifique. 13. Une polarisation du développement social sur une thématique d‘ensemble de la qualité de la vie, prolongeant et donnant contenu aux affirmations des droits humains acquis ou conquis au XX

e siècle.‖

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adestramento, pode resultar em alienação; a segurança pública, se reduzida à

questão de polícia, pode ser instrumento de violência e repressão. Nem por isso

trabalho, educação e segurança deixam de ser necessidades básicas do ser

humano, nem de integrar o conjunto dos direitos sociais fundamentais, no qual está

contido o lazer.

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CAPÍTULO 4: O LAZER COMO DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL E A

PROBLEMÁTICA DE SUA JUSTIFICAÇÃO E GARANTIA

O artigo sexto da nossa Constituição, que insere o lazer no rol dos direitos

sociais, como aludido no início deste trabalho, é o primeiro dos seis artigos que

compõem o capítulo II da Carta Magna. Este capítulo, por sua vez, está contido no

Título II, que trata dos direitos e garantias fundamentais. Depreende-se, portanto, da

visão sistemática desses dispositivos, que o lazer além de direito social é direito

fundamental. Mas o que significa um direito social fundamental e como ele pode ser

exercido ou exigido? Por outro lado, como também foi problematizado na introdução,

a realidade muitas vezes nega eficácia jurídica a dispositivos constitucionais mesmo

em se tratando de direitos fundamentais.

Neste último capítulo, a discussão será direcionada de modo mais específico

para o objeto central do trabalho, ou seja, a análise do lazer como direito social

fundamental e a problemática de sua justificação e garantia. Tal abordagem, nesta

oportunidade, poderá ser feita com maior profundidade, levando-se em conta que

nos capítulos anteriores, o lazer já foi estudado como fenômeno sociológico, em sua

evolução histórica, como conceito discutido sob diferentes perspectivas filosóficas,

bem como à luz da teoria dos direitos humanos e da cidadania.

4.1 O lazer e os direitos sociais fundamentais

Para se afirmar com segurança que o lazer é direito social fundamental não

basta citar o dispositivo constitucional que assim o considera. É importante, antes

disso, examinar a noção de direitos fundamentais, e no âmbito destes, situar o

conceito dos direitos sociais, investigando a natureza jurídica destes, para que se

possa verificar se o lazer pode ser considerado verdadeiramente um deles.

Mas isso ainda não é tudo. Como o direito existe para ser aplicado, haja vista

que ―direito não destinado a converter-se em momento de vida, é mera aparência de

direito‖ (REALE, 2007, p. 258), é necessário que se discuta a questão da eficácia

dos direitos sociais fundamentais. Caso contrário, estaremos nos contentando com a

condenação desses direitos à condição de meros textos normativos, como parte do

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ordenamento jurídico em potência, e não à concepção deles como normas jurídicas,

isto é, como ordenamento jurídico em ato.54

4.1.1 Direitos fundamentais: problemática terminológica e conceitual

Direitos fundamentais não é uma expressão unívoca, mesmo no âmbito da

ciência jurídica. Não é raro o seu emprego como equivalente de direitos humanos,

direitos naturais, direitos públicos subjetivos, liberdades públicas e direitos morais.

Levando em conta o seu caráter multívoco e a pluralidade de termos por vezes

considerado sinônimos, Gregorio Peces-Barba Martinez (2004) propõe uma

aproximação linguística aos direitos fundamentais, discutindo o sentido dos termos

acima referidos.

O termo direitos humanos, segundo aquele autor, tem um sentido análogo ao

conferido à expressão direito natural nos séculos XVII e XVIII. Na linguagem

corrente, encontram-se outros termos utilizados com sentido análogo, a exemplo de

direitos naturais, direitos públicos subjetivos, liberdades públicas, direitos morais e

direitos fundamentais, todos eles vinculados a uma visão de mundo individualista e

antropocêntrica, que se contrapõe à concepção objetivista e comunitária, própria da

Idade Média. De largo uso não apenas no âmbito jurídico, o termo direitos humanos

não raro reveste-se de caráter emotivo, expressando e suscitando sentimentos

positivos ou negativos tanto no orador que o enuncia, quanto no auditório ao qual se

destina,55 razão pela qual se presta muitas vezes à manipulação, como parte de

uma retórica vazia. Essa característica decorre em parte da própria noção de direitos

humanos, que advém não somente da esfera jurídica, relacionada ao seu

reconhecimento, exercício e garantia, mas também da ética, ―pelos valores a ela

subjacentes, como os de justiça, de liberdade, de igualdade, de fraternidade ou de

54 A distinção entre texto normativo e norma é objeto de análise de Eros Roberto Grau (2003), que se

vale da contribuição de vários outros autores, entre os quais Canotilho, para quem o texto normativo é o sinal linguístico, enquanto a norma é o que se revela, e Friedrich Müller, segundo o qual o texto normativo é apenas uma fração da norma, ou seja, a parte absorvida pela linguagem jurídica. Sendo assim, o conjunto de textos normativos forma o ordenamento jurídico em potência, enquanto as normas jurídicas são esse mesmo ordenamento em ato. Nessa perspectiva, a história e a cultura da sociedade na qual se aplica também fazem parte da norma.

55

Orador e auditório são aqui empregados no sentido que lhes atribui Chaïm Perelman, ou seja, o orador como todo aquele que toma a palavra para enunciar seus argumentos; o auditório, como o ―conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação,‖ (2000, p. 22) podendo ser o próprio orador (pois antes da pessoa convencer alguém é preciso convencer a si mesma), o interlocutor e o auditório universal, hoje em dia cada vez mais universal.

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solidariedade,‖ (ARNAUD, 1999, p. 272) e a ética é um campo bastante propício

para a retórica mais apaixonada.

Direitos naturais, por sua vez, é um termo que expressa uma visão

racionalista e abstrata, não levando em conta a realidade social e histórica. Por isso,

no entendimento de Peces-Barba, o termo não tem base sólida na cultura jurídica e

política, configurando-se como uma terminologia antiquada e fadada ao desuso,

restrita aos círculos mais conservadores, ideologicamente influenciados pelo

jusnaturalismo. Em que pese tal entendimento, não se deve esquecer que a

concepção de direito natural não é exclusiva de um jusnaturalismo antiquado. Os

Cinco minutos de filosofia do direito de Radbruch (1962) são um testemunho de que,

mesmo no mundo contemporâneo, há a necessidade do estabelecimento de uma

relação dialética entre as visões jusnaturalista e positivista. E ainda que se deem

outros nomes aos direitos naturais, a tradição jusnaturalista não deixa de estar

presente no âmago dos direitos humanos e, por conseguinte, dos direitos

fundamentais. Por outro lado, a ideia de direito natural não é necessariamente

expressão de um posicionamento reacionário, podendo ser um contraponto aos que

defendem a manutenção do statu quo. Leo Strauss demonstra isso muito bem,

quando nos mostra que aos olhos dos fundadores da escola histórica, surgida como

reação à Revolução Francesa, o direito natural parecia ameaçador, pois o

reconhecimento de princípios universais levaria as pessoas a julgar a ordem

estabelecida à luz desses princípios, pondo em dúvida a justiça dessa ordem. Por

isso, a escola histórica optou por mergulhar na intramundaneidade. Tal opção,

porém, fez da escola histórica um novo tipo de positivismo, caracterizado pela

ausência da relativa segurança do empirismo das ciências naturais, e pela ideia de

que o processo histórico carece de sentido. Com isso, o historicismo culminava em

niilismo, e ―a tentativa de fazer com que o homem estivesse absolutamente em casa

neste mundo acabava por convertê-lo num perfeito estrangeiro.‖ (STRAUSS, 2009,

p. 19).

Direitos públicos subjetivos é expressão não apenas mais moderna que

direitos humanos, como também mais técnica, cingindo-se ao âmbito da linguagem

jurídica. Trata-se, segundo Peces-Barba, de um termo que expressa a ideia dos

direitos como limites ao poder, oponíveis a este, mas ausentes na esfera das

relações entre particulares. Daí que a ideia de direitos públicos subjetivos está

atrelada à concepção de Estado liberal, distinguindo-se, assim, da noção de direitos

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fundamentais no contexto do Estado social.

Liberdades públicas, por outro lado, é um termo típico da doutrina francesa,

usado para expressar uma visão predominantemente positivista, e que se firmou

entre os franceses muito provavelmente como resposta ao caráter jusnaturalista e

ambíguo da expressão direitos humanos. No entendimento de Peces-Barba,

liberdades públicas é um termo com o qual se busca identificar ―alguns direitos,

reconhecidos no sistema jurídico, eficazes e protegidos pelos juízes,‖ (2004, p. 24,

tradução nossa)56 tendo sentido equivalente aos direitos públicos subjetivos da

doutrina jurídica alemã. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2009), liberdades

públicas correspondem ao que no Brasil por muito tempo se denominou direitos

individuais, e que atualmente compõem o núcleo dos direitos fundamentais.

Temos ainda a expressão direitos morais, oriunda da cultura anglo-saxônica,

e que se difundiu na cultura de língua espanhola de modo mais intenso que na de

língua francesa ou alemã. Esse termo se refere a direitos anteriores ao Estado e ao

ordenamento jurídico deste, e que são oponíveis ao poder de um modo geral. Trata-

se, na opinião de Peces-Barba, de um termo também inadequado, tanto quanto a

expressão direitos naturais, por representar um conceito moral adicionado à

realidade jurídica, que cumpre as mesmas funções ideológicas daquela expressão, e

ainda pelo fato de ser um termo alheio à cultura jurídica continental.

Após analisar os outros termos, Peces-Barba afirma que a expressão direitos

fundamentais apresenta-se como a mais adequada para designar os direitos

estudados em sua obra Lecciones de derechos fundamentales. Segundo ele, tal

expressão é mais precisa que direitos humanos, não ensejando a ambiguidade

inerente a este último termo. Também é capaz de abranger as dimensões de

moralidade e juridicidade básicas que compõem o direito, sem incorrer no

reducionismo jusnaturalista ou positivista. Além disso, a tradição linguística dos

juristas confere ao termo direitos fundamentais uma dimensão jurídico-positiva,

cingindo-a ao seu reconhecimento constitucional ou legal, o que o torna, no entender

daquele autor, mais adequado do que todos os outros termos anteriormente

referidos.

Ingo Sarlet também reconhece o caráter multívoco do termo direitos

fundamentais, bem como a existência de expressões análogas. Por isso, diz ser

56 No texto original: ―[...] unos derechos, reconocidos em el sistema jurídico, eficaces y protegidos por

los jueces.‖

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importante a distinção, ainda que de caráter didático, entre os termos direitos do

homem, direitos humanos e direitos fundamentais:

―direitos do homem‖ (no sentido de direitos naturais não, ou ainda não

positivados), ―direitos humanos‖ (positivados na esfera do direito internacional) e ―direitos fundamentais‖ (direitos reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado). (SARLET, 2008, p. 36).

Essa distinção, porém, não está imune a objeções, como faz ver o mesmo

autor. Segundo ele, a distinção entre direitos do homem e direitos humanos foi alvo

de crítica de Bruno Galindo. Para este:

[...] direitos do homem e direitos humanos (ou direitos do homem) são sempre todos os direitos inerentes à natureza humana, positivados, ou não, distinguindo-se dos fundamentais, que são os direitos constitucionalmente positivados ou positivados em tratados internacionais, ainda que com uma eficácia e proteção diferenciadas. (GALINDO, 2003, apud SARLET: 2008, p. 37).

Contrapondo-se a essa crítica, Sarlet argumenta que a distinção entre direitos

do homem e direitos humanos cinge-se ao fato de que ele defende a diferenciação

entre direitos fundamentais, como direitos constitucionais submetidos ao duplo

regime da fundamentalidade formal e material, e direitos humanos, como direitos

positivados no âmbito do direito internacional. Recorre ainda ao ensinamento de

Pérez Luño, segundo o qual o melhor critério para diferenciar direitos humanos de

direitos fundamentais é o da concreção positiva, haja vista que o conceito de direitos

humanos é mais amplo e menos preciso que o de direitos fundamentais. Estes, nas

palavras de Sarlet:

[...] possuem sentido mais preciso e restrito, na medida em que constituem o conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado, tratando-se, portanto, de direitos delimitados espacial e temporalmente, cuja denominação se deve ao caráter básico e fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito. Assim, ao menos sob certo aspecto, parece correto afirmar, na esteira de Pedro C. Villalon, que os direitos fundamentais nascem e acabam com as Constituições, resultando, de tal sorte, da confluência entre os direitos naturais do homem, tais como reconhecidos e elaborados pela doutrina jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, e da própria idéia de Constituição. (2008, p. 37-38).

Resultando da confluência apontada por Villalon, também parece correto

afirmar que os direitos fundamentais são basicamente direitos humanos absorvidos

pela ordem constitucional de cada Estado. Nesse sentido, é ilustrativa a

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denominação direitos humanos fundamentais, adotada por constitucionalistas como

Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Alexandre de Moraes.57

4.1.2 O problema da classificação dos direitos fundamentais em gerações ou

dimensões

Os direitos fundamentais, da mesma forma que os direitos humanos,

costumam ser classificados em gerações ou dimensões: a primeira, formada por

direitos civis e políticos; a segunda pelos direitos econômicos, sociais e culturais; 58 e

a terceira por direitos de solidariedade e fraternidade, compreendendo os direitos ao

desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, ao patrimônio comum da humanidade e

à comunicação. Fala-se até numa quarta geração ou dimensão dos direitos

fundamentais. Esta compreenderia os direitos à democracia direta, à informação e

ao pluralismo, dos quais depende ―a concretização da sociedade aberta do futuro,

em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se

no plano de todas as relações de convivência.‖ (BONAVIDES, 2008, p. 571).

Tal classificação, apesar de bastante difundida, não deixa de ser controvertida

e pouco consistente, o que pode ser verificado desde a forma inusitada pela qual a

expressão ―gerações de direitos humanos‖ tornou-se largamente utilizada. De

acordo com o professor Antônio Augusto Cançado Trindade, a referida expressão foi

utilizada pela primeira vez por Karel Vasak, numa conferência proferida em 1979, no

Instituto Internacional de Direitos Humanos, em Estrasburgo. Cançado Trindade foi

aluno de Vasak, tornando-se amigo deste. Numa conversa entre eles, o aluno

indagou ao professor o que teria levado este a formular a tese das gerações de

direitos humanos, mencionada naquela conferência. Para surpresa do primeiro, o

professor respondeu que não teve tempo de preparar uma exposição, então lhe

ocorreu fazer uma reflexão. Daí lembrou-se da bandeira da França, cujas cores

57

Manoel Gonçalves Ferreira Filho tem uma obra cujo título é justamente Direitos humanos fundamentais sendo apontado por Sarlet (2008) como o primeiro autor a utilizar essa expressão. Alexandre de Moraes também adota essa terminologia em livro com o mesmo título. 58

A expressão DESCA (direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais), incorporada à

linguagem coloquial a partir da Conferência ECO-92, realizada no Rio de Janeiro, como informa o Relatório azul (2002, p. 9), tem sido aos poucos utilizada na linguagem jurídica. No entanto, se levarmos em consideração a classificação tradicional dos direitos humanos em gerações, teríamos nos DESCA não somente direitos de segunda, mas de terceira geração, uma vez que se incluem neles os direitos ambientais.

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evocam o lema da Revolução Francesa: liberté, egalité, fraternité, e, naquela

ocasião, falou de gerações, muito mais como uma metáfora inspirada naquele lema,

para ilustrar a trajetória dos direitos humanos, do que com o intuito de formular uma

classificação científica.59 Todavia, alguns pensadores famosos, entre os quais se

destaca Norberto Bobbio, contribuíram para difundir essa expressão e teorizar sobre

a mesma, como se originalmente a ela fosse dado um maior valor taxonômico.

Além da falta de consistência ab origine, a classificação dos direitos humanos

em gerações ou dimensões não corresponde à verdade histórica da evolução

desses direitos. No âmbito internacional, os direitos sociais foram reconhecidos com

a Constituição OIT, que faz parte do Tratado de Versalhes, celebrado em 1919,

antes, portanto, dos direitos civis e políticos preconizados na Declaração Universal

de 1948. Já no Brasil, como vimos, os direitos sociais também saíram na frente, não

se enquadrando no modelo inglês estudado por Marshall. Some-se a isso o fato

dessa classificação representar uma visão fracionária dos direitos humanos, que vai

de encontro ao princípio da indivisibilidade destes, reconhecido formalmente pela

comunidade internacional.60

As mesmas ressalvas feitas à classificação dos direitos humanos em

gerações ou dimensões aplicam-se aos direitos fundamentais. Estes compreendem

ao mesmo tempo direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, direitos de

solidariedade e fraternidade, não fazendo sentido que qualquer um desses seja, a

priori, considerado mais ou menos relevante que os demais. Por isso, da mesma

forma que acontece com os direitos humanos, a classificação dos direitos

fundamentais em gerações ou dimensões pode ser útil muito mais para fins didáticos

ou simbólicos, do que como critério de precedência cronológica ou hierárquica de

cada geração ou dimensão.

É possível, contudo, que todos os direitos fundamentais sejam analisados nas

59

Cançado Trindade menciona esse fato em respostas publicadas no site Dhnet, numa matéria

intitulada Cançado Trindade questiona a tese de “gerações de direitos humanos” de Norberto Bobbio, disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/cancado_bob.htm, acesso

em 10.07.2010.. 60

Sobre esse princípio, o professor Fredys Orlando Sorto observa que ―a partir de 1993, com a realização da II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, afirma-se taxativamente a importância da indivisibilidade dos direitos humanos, dando aos direitos sociais o mesmo status dos consagrados direitos individuais. A Declaração e Programação de Ação de Viena (1993) estabelece, in verbis, que ‗Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase‘ (Parágrafo 5).‖ (SORTO; MAIA, 2009, p. 101).

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múltiplas dimensões que podem assumir cada um deles. O direito à propriedade, por

exemplo, na primeira dimensão (individual-liberal) apresenta concepção

eminentemente privada; na segunda, passa a gravitar em torno de sua função

social, e na terceira dimensão (de solidariedade) pode assumir função ambiental.

Nesse e noutros casos, ―não há qualquer hierarquia entre essas dimensões. Na

verdade, elas fazem parte de uma mesma realidade dinâmica. Essa é única forma

de salvar a teoria das dimensões dos direitos fundamentais.‖ (LIMA, G., 2003, p. 7-

8).

4.1.3 O problema do regime dos direitos econômicos, sociais e culturais

Outro problema relacionado à classificação dos direitos fundamentais diz

respeito à tradicional distinção feita entre direitos negativos ou onerosos (de primeira

geração ou dimensão) e direitos de crédito (de segunda geração). Por esse

entendimento, direitos civis e políticos, como direitos de liberdade, são direitos

negativos, por implicarem um não agir estatal. Já os sociais, econômicos e culturais

(de segunda geração), são tidos como direitos de crédito, porque exigem uma

prestação do Estado. Além disso, eles costumam ser vinculados mais explicitamente

aos denominados pressupostos de direitos fundamentais:

Considera-se pressupostos de direitos fundamentais a multiplicidade de factores ─ capacidade econômica do Estado, clima espiritual da sociedade, estilo de vida, distribuição de bens, nível de ensino, desenvolvimento econômico, criatividade cultural, convenções sociais, ética filosófica ou religiosa ─ que condicionam, de forma positiva e negativa, a existência e protecção dos direitos econômicos, sociais e culturais. (CANOTILHO, 1999, p. 443).

Afora os pressupostos, Canotilho se reporta a elementos estruturais e

configuradores dos direitos econômicos, sociais e culturais. No conjunto desses

elementos estão incluídos tanto os individuais quanto os normativo-constitucionais,

ambos servindo como fundamentos para a efetivação desses direitos em cada

sociedade. As diferentes concepções de dignidade humana, por exemplo, podem

ensejar diferentes tipos de políticas públicas voltadas à implementação dos direitos

considerados de segunda geração ou dimensão. Por outro lado, a realização de tais

direitos depende também da configuração jurídica que lhes é conferida pelo

ordenamento constitucional de cada Estado.

Para Canotilho, são basicamente quatro os modelos de positivação dos

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direitos sociais, econômicos e culturais, na perspectiva jurídico-constitucional. No

primeiro modelo, as normas que abrigam esses direitos são consideradas

programáticas, cuja importância é predominantemente política, já que possibilitam a

pressão da sociedade sobre as autoridades competentes para a implementação

desses direitos. No segundo, elas são vistas como normas de organização, que

delegam aos órgãos legiferantes a tarefa de regulamentação legal dos direitos

sociais, econômicos e culturais. O terceiro modelo de positivação, por sua vez,

considera as ―normas sociais‖ como ―garantias institucionais‖, impondo ao legislador

o respeito à essência da instituição e, ao mesmo tempo, a proteção desta, levando

em conta as demandas sociais, embora não se trate ainda, do reconhecimento

dessas normas como direitos subjetivos. Por fim, o quarto modelo confere às

―normas sociais‖ uma dimensão subjetiva, reconhecendo-lhe o status de direitos

subjetivos públicos, ―inerentes ao espaço existencial do cidadão,

independentemente da sua justicialidade e exeqüibilidade imediatas.‖ (CANOTILHO,

2009, p. 446).

Mesmo no quarto modelo de positivação, nem todos os direitos sociais,

econômicos e culturais são, de fato, tratados com a mesma dignidade que deve ser

inerente a todo e qualquer direito fundamental. Um dos obstáculos a essa

desigualdade de tratamento decorre da concepção de que eles são essencialmente

direitos a prestações materiais, cuja garantia exige atuação positiva do Estado na

criação de pressupostos imprescindíveis ao seu exercício. E como muitos desses

pressupostos são de difícil implementação, há quem lhes negue até a qualificação

de direitos, considerando-os insinceridades normativas ou ilusões constitucionais.61

Ocorre que o descompasso entre a letra da lei e a vida real não é

exclusividade das normas relativas aos direitos sociais, econômicos e culturais, mas

se estende a outros tipos de direito, como os políticos e civis. Luís Roberto Barroso,

61

Insinceridade normativa é expressão utilizada por Luís Roberto Barroso, como título do subitem de um capítulo em que trata da frustração constitucional. Discorrendo sobre a insinceridade normativa, o autor afirma que ―não é incomum a existência formal e inútil de Constituições que invocam o que não está presente, afirmam o que não é verdade e prometem o que não será cumprido‖ (2006, p. 61). Ilusões constitucionais é um termo empregado por Pinto Ferreira que, por sua vez, atribui sua disseminação a Karl Marx e Lenin. Segundo Pinto Ferreira: ―o próprio Marx falou das ilusões constitucionais, que bem salientou em trabalho publicado em 14 de setembro de 1848, Nova Gazeta Romana (Neue Bheinische Zeitung): ‗Dá-se o nome de ilusão constitucional ao erro político, que consiste em ter como existente uma ordem normal, jurídica, regulamentada, legal, numa palavra ‗constitucional‘, mesmo quando essa ordem na verdade não existe‘. Este assunto foi também amplamente discutido por Lenin, que incorporou definitivamente o nome no arsenal filosófico do marxismo.‖ (FERREIRA, P., 1989, p. 223-224).

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quando trata da insinceridade normativa, aponta como primeiro exemplo a

proclamação feita na abertura da Constituição dos Estados Unidos, que enaltece

aquele texto normativo como sendo obra do povo (we the people...). Todavia, a

decantada origem popular da Constituição estava longe de corresponder à realidade

dos fatos:

Os autores do texto, elaborado a portas fechadas e sem qualquer participação do povo, eram abastados comerciantes e proprietários, heróis militares e advogados de renome. Não se contabilizou um voto nem se ouviu uma palavra do cidadão comum. A escravidão não apenas foi aceita, como se deu aos Estados do Sul um bônus por isto, na previsão do inciso 3, da seção 2, do art. 1º, de que no cálculo do número de membros do órgão de representação popular (―House of Representatives‖) tomar-se-ia por base o número de ―pessoas livres‖ somado a ―três quintos da população restante‖. E mesmo o direito político básico de voto, era condicionado por qualificações de propriedade na maior parte do país. (BARROSO, 2006, p. 59).

Por outro lado, a realidade pode não somente atestar a insinceridade

normativa de direitos civis e políticos, considerados direitos defensivo-negativos,

mas negar a própria distinção entre estes e os chamados direitos de crédito.

Tomemos mais uma vez como exemplo o direito de propriedade, considerado

tradicionalmente um direito civil e, como tal, dotado de status negativo:

Sem dúvida, uma das garantias decorrentes do direito de propriedade compreende a proibição de violação da propriedade pelo Estado, salvo mediante regular processo expropriatório, com prévia e justa indenização, o que denota uma característica negativa desse direito (o Estado não pode confiscar a propriedade particular). No entanto, a sua plena proteção exige também inúmeras obrigações positivas: promoção de um adequado aparato policial para proteger a propriedade privada (segurança pública), edição de normas para garantir o exercício do direito, estabelecimento de medidas normativas e processuais adequadas para garantir a reparação do dano no caso de violação do direito de propriedade etc. Ou seja, não basta o Estado ficar inerte, sem gastar nada, para garantir o direito de propriedade. Pelo contrário, a proteção da propriedade exige o dispêndio de grande soma de dinheiro, sob pena de tornar a propriedade alvo fácil de criminosos. Apenas para ilustrar esse aspecto oneroso de um direito dito de primeira geração, basta dizer que os Estados Unidos gastam, com segurança pública, várias vezes o valor que é gasto com a saúde, sobretudo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. (LIMA, G., 2003, p. 4).

Análise semelhante pode ser feita com relação aos direitos sociais.62 O direito

62

Direitos sociais, como vimos, é expressão utilizada por Marshall para se referir a direitos considerados relevantes para a sociedade, a exemplo da educação, saúde e seguridade social. Todavia, há quem veja nessa expressão um pleonasmo, pois a rigor todo direito é social. Tal crítica, porém, não impediu que a expressão direitos sociais fosse consolidada, designando direitos em que há predominância de interesses coletivos, em contraposição à visão jurídica liberal-individualista advinda da Revolução Francesa. José Afonso da Silva os conceitua da seguinte forma: ―Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas

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à saúde, por exemplo, tanto pode assumir feição de direito negativo, quanto de

direito a prestação material. A este último aspecto é dada maior visibilidade, pois em

geral se confunde direito à saúde com direito à assistência médico-hospitalar, o que

envolve gastos públicos nessa área. No entanto, esse direito compreende ao mesmo

tempo o aspecto negativo, que consiste no impedimento de ação por parte do

Estado ou de outras pessoas, que resulte em prejuízo da saúde do titular do direito.

Desse modo, como observa Sarlet (2002), ao menos em princípio, qualquer ação

advinda do poder público ou mesmo de particulares, pode ser considerada

inconstitucional, podendo ser objeto de demanda judicial em sede de controle de

constitucionalidade.

4.1.4 O lazer entre os direitos sociais fundamentais

Depois de afirmar que não é fácil distinguir nitidamente os direitos sociais dos

econômicos, José Afonso da Silva propõe uma classificação dos direitos sociais em

seis classes:

(a) direitos sociais relativos ao trabalhador; (b) direitos sociais relativos à seguridade, compreendendo os direitos à saúde, à previdência e assistência social; (c) direitos sociais relativos à educação e à cultura; (d) direitos sociais relativos à moradia; (e) direitos sociais relativos à família, criança, adolescente e idoso; (f) direitos sociais relativos ao meio ambiente. (2006, p, 287).

Tal classificação, como adverte o próprio autor, não pretende ser rígida,

baseando-se nos artigos da Constituição Federal agrupados no capítulo dos direitos

sociais (art. 6º a 11). A essa classificação, ele acrescenta outra que leva em conta os

direitos sociais do homem como produtor e como consumidor, explicando que os

direitos sociais previstos nos artigos sétimo ao onze são direitos sociais do homem

produtor e os previstos no artigo sexto, os do homem consumidor.

Embora o direito ao lazer esteja inscrito no art. 6º da Constituição Federal,

José Afonso da Silva não o menciona expressamente, quando cita os direitos sociais

do homem consumidor. Todavia, faz referência à sua inclusão no citado artigo,

constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.‖ (2006, p. 286-287).

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considerando o direito ao lazer como parte dos direitos relacionados ao direito

ambiental. Para aquele autor:

Lazer e recreação são funções urbanísticas, daí por que são manifestações do direito urbanístico. Sua natureza social decorre do fato de que constituem prestações estatais que interferem com as condições de trabalho e com a qualidade de vida, donde sua relação com o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado. ―Lazer é entrega à ociosidade repousante. Recreação é entrega ao divertimento, ao esporte, ao brinquedo. Ambos se destinam a refazer as forças depois da labuta diária e semanal. Ambos requerem lugares apropriados, tranqüilos num, repletos de folguedos e alegrias em outro.‖ A Constituição menciona o lazer no art. 6º e faz ligeira referência no art. 227, mas no art. 217, § 3º, declara que o Poder Público incentivará o lazer como forma de promoção social. Como visto, ele está muito associado aos direitos dos trabalhadores relativos ao repouso. Nesse sentido, ele fora definido no Antreprojeto da Comissão Afonso Arinos, art. 24: ―Todos têm direito ao lazer e à utilização criadora do tempo liberado ao trabalho e ao descanso.‖ É um direito social que vai depender de melhor definição na legislação ordinária. (SILVA, 2006, p. 315-16).

As considerações de José Afonso da Silva merecem um exame mais

cuidadoso, pois nos remete a questões importantes, relacionadas à compreensão do

direito ao lazer, no âmbito dos direitos sociais. Além disso, a discussão das

afirmações daquele autor pode contribuir para uma avaliação mais adequada da

importância do direito ao lazer como direito fundamental, tema que não é enfatizado

por grande parte dos nossos doutrinadores.

Em primeiro lugar, o autor afirma que lazer é função urbanística. Urbanismo

pode ser compreendido tanto no significado restrito de conhecimento voltado para a

organização e racionalização das cidades, quanto na acepção mais ampla, de

ciência da organização dos espaços reservados ao desenvolvimento da vida

humana em todos os seus aspectos. Neste último sentido, o urbanismo preocupa-se

com a realização de funções básicas da vida social, como habitação, trabalho e

lazer, extrapolando o âmbito das cidades.

Por outro lado, mesmo que se considere o mundo urbano como o espaço

privilegiado para o lazer, é possível perceber que ―não apenas a cidade é em si

mesma um espaço de lazer, como todos os seus espaços podem e devem servir a

esta finalidade.‖ (CAMARGO, 2003, p. 36). Assim, a moradia não é lugar apenas

para o ser humano se abrigar das intempéries, mas um espaço para a vivência de

diversas funções básicas da vida, inclusive o lazer.63 Este pode ser vivido nos mais

63 Sobre o lazer desenvolvido no ambiente da moradia, Marcelino informa que ―quando se procura

investigar os hábitos de lazer da população em geral, encontram-se índices elevados de atividades desenvolvidas no âmbito doméstico. Ouvir música e assistir televisão são indicados com frequência

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diversos ambientes, a exemplo de escolas ou centros de saúde, embora estes não

sejam locais destinados especificamente ao lazer.

Como decorrência da primeira afirmação, José Afonso da Silva assevera que

o lazer é manifestação do direito urbanístico. Certamente não se pode negar a

relação do lazer com esse ramo do direito, que tem como objeto o estudo das

normas relacionadas ao urbanismo. Entretanto, e com a devida vênia, reconhecer

essa relação não significa circunscrever o lazer a uma disciplina jurídica específica,

considerando-o manifestação desta. Pois o lazer se relaciona com outras áreas do

direito e, como vimos na classificação feita por Bellefleur com base no critério

teleológico, o aspecto ambientalista, que pode ser vinculado ao direito urbanístico, é

apenas um entre os muitos que o lazer pode assumir.

As afirmações acima discutidas estão intimamente vinculadas à ideia que

grande parte da doutrina jurídica tem do lazer. Se este é visto apenas como

“entrega à ociosidade repousante‖ num lugar tranquilo, tendo como finalidade o

refazimento das forças após o trabalho diário e semanal, a inferência mais lógica é

associá-lo aos direitos dos trabalhadores relativos ao repouso, remetendo-se sua

melhor definição à legislação ordinária, como propõe José Afonso da Silva. No

entanto, se o lazer é entendido como direito humano fundamental, a significação que

se dará a ele, seja no âmbito doutrinário, seja no legislativo, será mais ampla do que

a de um direito relacionado ao repouso dos trabalhadores. A delimitação desse

significado insere-se entre os problemas de justificação do lazer como direito

fundamental.

4.2 Problemas de justificação do lazer como direito fundamental

A justificação do lazer como direito humano fundamental, e não apenas como

direito relacionado ao repouso dos trabalhadores, é uma questão problemática,

como se depreende pela leitura das considerações de José Afonso da Silva acima

transcritas. E não é somente aquele constitucionalista que parece colocar o direito

ao lazer a serviço do direito ao trabalho, o que implica, obviamente, preeminência

deste sobre aquele. Pois no meio jurídico, de modo geral, o lazer é visto como ―gozo

de tempo livre após os afazeres da sobrevivência,‖ (CALVET, 2006, p. 77) o que

superior a 80%, ao passo que as práticas realizadas fora do lar não chegam a atingir 10% das respostas dos entrevistados.‖ (1995, p. 60).

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leva o direito ao lazer a ser examinado principalmente na perspectiva das relações

de trabalho. Por isso é importante que se faça a abordagem dos problemas

relacionados à justificação do lazer como direito fundamental de todos, associado ou

não ao direito-dever fundamental do trabalho. Entre esses problemas, podemos

destacar a dificuldade de valoração ética do lazer em decorrência da grande força

da ideologia do trabalho e a alienação do lazer na sociedade de consumo.

4.2.1 O direito ao lazer e ideologia do trabalho

Trabalhar, de acordo com uma concepção bastante difundida no mundo atual,

é muito mais que instrumento para sobrevivência digna, é a própria finalidade da

vida. A disseminação dessa ideia se deve em grande parte ao espírito do

capitalismo, que hauriu muito do seu vigor da ética religiosa protestante, como nos

faz ver Max Weber. Na visão de mundo advinda desse espírito, a vivência do ócio foi

perdendo valor, exaltando-se, em seu lugar, a austeridade da vida voltada para o

acúmulo de bens, e não para a fruição destes. Por sua vez, o louvor ao trabalho

tornou-se elemento central nesse contexto. De modo mais enfático que em outras

épocas, o trabalho passou a ser apresentado como vocação do ser humano e meio

de agradar a Deus, o que abriu caminho para exploração dos trabalhadores pelos

donos do capital, contribuindo para o maior desenvolvimento do capitalismo em

países de maioria protestante, como também nos mostra Weber:

É certo, naturalmente, que toda a literatura ascética, de quase todas as religiões, está saturada do ponto de vista de que o trabalho consciente, mesmo por baixos salários, da parte daqueles a quem a vida não oferece outras oportunidades, é algo de sumamente agradável a Deus. Nisto, a ascese protestante não produziu em si novidade alguma. Contudo, ela não se limitou a aprofundar até o máximo esse ponto de vista, pois produziu uma norma, que sozinha, bastou para torná-la eficiente: a da sua sanção psicológica através da concepção do trabalho como vocação, como meio excelente, quando não único, de atingir a certeza da graça. Por outro lado, ela legalizou a exploração dessa específica vontade de trabalhar, com o que também interpretava como ―vocação‖ a atividade do empresário. Não é difícil perceber quão poderosamente a procura do reino de Deus, apenas através do preenchimento do dever vocacional, e a estrita ascese imposta naturalmente pela Igreja, especialmente nas classes pobres, iria influenciar a ―produtividade‖ do trabalho, no sentido capitalista da palavra. O tratamento do trabalho como ―vocação‖ era tão característico para o moderno trabalhador, como a correspondente atitude aquisitiva do empresário. Foi a percepção dessa situação, então nova, que levou um observador anglicano tão arguto como Sir William Petty a atribuir o poderio holandês do século XVII ao fato de os numerosos ―dissenters” (calvinistas e batistas) serem em sua maioria ―pessoas que encaram o trabalho e a industriosidade como seu dever para com Deus.‖ (1997, p. 128-129).

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É interessante notar que esse poderio não teve o mesmo êxito no

empreendimento que os holandeses tentaram realizar no Brasil, também no século

XVII, o que não deve ser atribuído à ausência de laboriosidade. O que os

holandeses não tinham, isto sim, era a adaptabilidade dos portugueses, que se

faziam americanos nas Américas e africanizavam-se com os africanos. E como

observa Sérgio Buarque de Holanda, os calvinistas holandeses até que se

esforçaram para chamar a si negros e índios do Brasil, obtendo algum êxito nesse

esforço. No entanto:

O que parece ter faltado em tais contatos foi a simpatia transigente e comunicativa que a Igreja católica, sem dúvida mais universalista e menos exclusivista do que o protestantismo, sabe infundir nos homens, ainda quando as relações existentes entre eles nada tenham, na aparência, de impecáveis. (HOLANDA, 1998, p. 65).

Nosso catolicismo também era mais transigente com o espírito de aventura

que infundiu nossos colonizadores. Ao singrar os mares e promover os grandes

descobrimentos, os portugueses estavam seduzidos pela riqueza, mas não pela

riqueza que custa trabalho, e sim da que custa ousadia. Portanto, nossa colonização

não foi obra de trabalhadores, mas de aventureiros. Os primeiros, como ensina

Sérgio Buarque de Holanda (1998), compõem o tipo humano que considera

primeiramente o obstáculo a transpor e não a glória a ser alcançada, tendo um

campo visual mais acanhado, em que a parte apresenta-se maior que o todo. O tipo

aventureiro, ao contrário, desconhece fronteiras, movendo-se em espaços que

parecem não ter limites. As diferenças entre esses dois tipos humanos ganham

ainda mais nitidez quando se faz o cotejo entre a ética do trabalho e a ética da

aventura:

Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro ─ audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem ─ tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo.

Por outro lado, as energias e os esforços que se dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros; as energias que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador. (HOLANDA, 1998, p. 44).

Mesmo reconhecendo a inexistência de cada um desses tipos humanos em

estado puro no mundo real, Sérgio Buarque observa que historicamente as nações

ibéricas sempre revelaram propensão à ética da aventura, sendo avessa à ética do

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trabalho. Por isso não era de admirar que para elas a não-ação e o ócio fossem

associados a virtudes e não à desonra.64 Esta era relacionada a trabalhos vis,

dignos de escravos, não de pessoas livres. Tanto que apesar da pecha de

preguiçosos atribuída aos índios, como referido no primeiro capítulo deste trabalho,

a ociosidade deles não destoava muito do ideal de vida virtuosa da nobreza ibérica,

conferindo-lhes até certa fidalguia, bem diferente do que ocorria com os escravos,

cujo trabalho era considerado degradante, pejorativamente chamado ―trabalho de

negro.‖65

As influências do espírito aventureiro e da aversão à ética do trabalho,

presentes nas raízes do nosso país, ainda se fazem sentir em nossa cultura. O

desejo de ganhar dinheiro sem muito esforço, a instabilidade no trabalho, o prestígio

de ofícios que não sujem as mãos nem extenuem o corpo, a erudição ostentosa do

bacharelismo, tudo isso continua a fazer parte do nosso ethos. Todavia, a ideologia

do trabalho também não está fora dele. Sintoma disso é o fato de que um dos

maiores obstáculos para a erradicação do trabalho infantil em nosso país provém da

ideia entranhada na mente de muitas pessoas, de que trabalhar desde cedo é

fundamental para a formação plena do ser humano.

É importante destacar que essa ideia não é exclusiva de uma determinada

camada da população, haja vista que a ideologia do trabalho vai além da visão de

mundo de cada classe social e transcende o próprio espírito do capitalismo. A

64 Sérgio Buarque de Holanda ressalta que a ―inteireza‖, o ―ser‖, a ―gravidade‖ o ―termo honrado‖ e o

―proceder sisudo‖, atributos que ornamentam e são exaltados no ―nobre escudo‖ português, conforme expressão do poeta Francisco Rodrigues Lobo, expressam virtudes essencialmente inativas. Por outro lado, a ação sobre as coisas pressupõe sujeição a um objeto interior e consequente anuência a uma lei estranha ao indivíduo, não exigida por Deus, e que em nada aumenta a sua glória ou a dignidade humana. Por isso ―uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia‖ (HOLANDA, 1998, p. 38).

65

A esse respeito, Sérgio Buarque de Holanda explica por que aos índios era legalmente permitido o exercício de certos ofícios que eram proibidos a negros e mulatos. Segundo ele: ―O reconhecimento da liberdade civil dos índios ─ mesmo quando se tratasse simplesmente de uma liberdade ‗tutelada‘ ou ‗protegida‘, segundo a sutil discriminação dos juristas ─ tendia a distanciá-los do estigma social ligado à escravidão. É curioso notar como algumas características ordinariamente atribuídas aos nossos indígenas e que os fazem menos compatíveis com a condição servil ─ sua ‗ociosidade‘, sua aversão a todo esforço disciplinado, sua ‗imprevidência‘, sua ‗intemperança‘, seu gosto acentuado por atividades antes predatórias do que produtivas ─ ajustam-se de forma bem precisa aos tradicionais padrões de vida das classes nobres. E deve ser por isso que, ao procurarem traduzir para termos nacionais a temática da Idade Média, própria do romantismo europeu, escritores do século passado, como Gonçalves Dias e Alencar, iriam reservar ao índio virtudes convencionais de antigos fidalgos e cavaleiros, ao passo que o negro devia contentar-se, no melhor dos casos, com a posição de vítima submissa ou rebelde.‖ (1998, p. 56).

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experiência socialista, no seio da qual ―do ‗direito sagrado ao trabalho‘, aos poucos

se passou ao trabalho compulsório para todos,‖ (CARMO, 1992, p. 55) também foi

uma das grandes responsáveis pela disseminação dessa ideologia. Mais que isso, o

socialismo forjou uma verdadeira religião do trabalho, venerando como heróis

aqueles que dedicaram suas vidas à realização de tarefas, mesmo penosas, em

benefício da coletividade, e colocaram em segundo plano sua satisfação pessoal.

Tão forte é a influência da ideologia do trabalho que muitas sociedades,

sejam capitalistas ou socialistas, tendem a tornar-se sociedades do trabalho. Este se

torna elemento central de todas elas, encarado como dever moral e social dos mais

importantes, e por isso apontado como o principal caminho para o êxito pessoal e

profissional. Tudo isso porque, de acordo com a ideologia do trabalho:

- quanto mais cada um trabalha, melhor vivem todos; - aqueles que trabalham pouco, ou aqueles que não trabalham, prejudicam a coletividade e não merecem ser seus membros; - quem trabalha como deve é socialmente um vencedor e quem não obtém sucesso é responsável por seu insucesso. (GORZ, 2007, p. 211).

Na sociedade do trabalho, é difícil justificar eticamente o lazer, já que este

geralmente é relacionado ao ócio, entendido como inatividade. Nessa perspectiva, o

lazer deixa de ser tido como um bem fundamental, para ser visto como uma ameaça

para a coletividade, que parece tremer de medo diante da iminente ou atual

sobrepujabilidade do tempo livre sobre o tempo de trabalho das pessoas.66 Talvez

seja por isso que não é dado ao direito ao lazer o mesmo valor atribuído a outros

direitos sociais, e quando se quer infundir valor ético ao lazer, este quase sempre

necessite ser vinculado ou associado ao trabalho, e não reconhecido como algo

valioso por si mesmo.

Para se contrapor à visão depreciativa ou reducionista do lazer faz-se

necessária uma mudança de percepção, realçando os aspectos positivos do ócio,

bem como os exageros da ideologia do trabalho. Não se trata de afirmar que o

trabalho é desimportante, mas tomar consciência de que ele não pode ser o alfa e o

ômega da existência e da dignidade humanas, não sendo razoável atribuir a ele um

conceito superior ao que lhe convém. Por outro lado, o aumento do tempo livre deve

66 Paulo Sérgio do Carmo, tratando dessa questão, informa que o jornal carioca Correio da Manhã

publicou, em 10 de julho de 1970, um artigo intitulado lazer, mal do fim do século. O artigo, segundo aquele autor, foi produzido sob influência de notícias provenientes dos Estados Unidos, e traduzia bem uma grande inquietação da civilização ocidental na época: ―com o aumento da riqueza, temia-se que o tempo livre suplantasse o tempo de trabalho, gerando dessa forma a ociosidade, considerada algo pernicioso para a sociedade.‖ (1992, p. 15).

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ser encarado não como uma ameaça à sociedade, mas como possibilidade de novo

arranjo social, no qual a vivência do lazer pode contribuir para a melhoria da

qualidade de vida das pessoas. Nesse caso, o direito ao lazer deve ocupar um lugar

de destaque entre os direitos fundamentais da pessoa humana.

A mudança de percepção proposta acima não é tão simples, principalmente

porque envolve resistências culturais. No entanto, parece ser uma alternativa

coerente com a realidade do mundo atual, onde vem se delineando, já há algum

tempo, um fenômeno que se costuma chamar de crise do trabalho, caracterizada,

entre outras coisas, pela escassez estrutural e cada vez mais significativa do

trabalho remunerado permanente, aliada à necessidade cada vez menor de tempo a

ser gasto com esse tipo de trabalho, o que implica um desafio para a boa ocupação

do tempo livre, em sociedades fortemente influenciadas pela ideologia do trabalho.67

4.2.2 O problema da alienação do lazer na sociedade de consumo

O tempo livre, que é condição necessária, mas não suficiente, para a vivência

da lazerania, pode ser ocasião para o tédio, a acídia, a solidão indesejada, entre

outros impulsos negativos. Estes, como referido no capítulo anterior, podem resultar

em desvirtuamento do lazer, que passa a ser vivido não como um momento de

crescimento pessoal, mas em suas formas negativas ou degenerativas.

67 A existência, há alguns anos, de crise do trabalho formal no mundo parece incontestável, como

atestam as estatísticas referidas por Domenico de Masi: ―No Primeiro Mundo, ‗trabalham‘ mais ou menos 20% da população. No Terceiro Mundo, os ‗trabalhadores‘ não atingem a dez por cento. Em suma, dos quase seis bilhões de habitantes do planeta, os considerados ‗trabalhadores‘ não chegam a um bilhão. Os outros cinco bilhões são crianças, velhos, pensionistas e aposentados, donas de casa que cuidam da família, jovens que estudam e pessoas que vivem em busca do que fazer para sobreviver ─ ou tentando matar o tempo ─ se herdeiros de fortunas.‖ (1999, p. 13). A tendência de que essa crise continue é bastante provável, como comprovam os dados apontados por André Gorz: ―Segundo um estudo de Wolfgang Lecher, do WSI (Instituto de pesquisas econômicas e sociais da DGB), a presente evolução conduziria, caso se mantenha, daqui a uma dezena de anos, a uma segmentação da população ativa na seguinte proporção: 25% de trabalhadores permanentes, qualificados e protegidos por acordos coletivos nas grandes empresas; 25% de trabalhadores periféricos que, nas empresas subcontratadas e nas empresas de serviços, ocupam empregos precários, pouco qualificados, mal pagos, segundo horários que variam conforme deseja o empregador e sujeito às flutuações do mercado; 50% de trabalhadores marginais, desempregados ou semidesempregados, fazendo trabalhos ocasionais ou sazonais, ‗pequenos trabalhos‘. Já hoje, 51% dos franceses entre 18 e 24 anos estão neste caso (26% de completamente desempregados, 25% empregados em ‗pequenos serviços‘); na Itália, na Espanha, nos Países Baixos, na Grã-Bretanha, notadamente, essas proporções são ainda mais elevadas.‖ (2007, p. 217). Essa situação faz com que seja necessário menos tempo de trabalho para cada trabalhador, para que todos possam ter ―direito‖ ao trabalho. Consequentemente, sobra mais tempo livre para todos, que devem se educar para uma boa vivência desse tempo.

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Michel Bellefleur (2008) relaciona onze dessas formas espúrias do lazer. No

quadro por ele formulado estão os lazeres que exaltam a violência; os que provocam

privação da consciência; lazeres egoístas, que ferem ou negam direito alheio;

lazeres causadores de delitos ou coniventes com estes; lazeres perigosos,

selvagens e até suicidas; lazeres mefíticos, como tais entendidos os que se

destinam à satisfação da sordidez humana, a exemplo do sadismo; outros que

levam a pessoa a se refugiar nas drogas, por ele chamadas ―paraísos artificiais de

degeneração‖; lazeres que não têm outra finalidade a não ser a transgressão de

normas sociais; lazeres predatórios, que exploram os recursos coletivos para

satisfação pessoal; lazeres que desprezam a proteção e preservação ao meio

ambiente; enfim, todo e qualquer lazer relacionado a impulsos de morte, seja para

quem o pratica, seja para os outros.68

Além das formas manifestamente negativas existentes nas sociedades

modernas, nestas parece predominar os denominados lazeres passivos, fenômeno

que não é de hoje. Acácio Ferreira, em sua pesquisa pioneira sobre o lazer operário,

já demonstrava preocupação com esse problema. Segundo aquele autor, os

habitantes das metrópoles, em suas horas de lazer, passavam a maior parte do

tempo a consumir os produtos da indústria da recreação:

A maioria da população ─ diz Rumney ─ passa seu tempo de folga saboreando a maior atividade de nossa época: o espectadorismo. Esta atividade, se é que a podemos chamar assim, assume diversas formas. Os principais divertimentos, especialmente nos E. E. Unidos, são: cinema, televisão, rádio, jogos de futebol e ―baseball‖, espeluncas, ―boites‖, corridas

68

Segundo Bellefleur, estas são algumas formas negativas ou degenerativas de lazer: 1. Lazeres que exaltam a violência por si mesma e os delitos que ela gera. 2. Lazeres que ocasionam uma ruptura ou perda da consciência livre e responsável, momentânea ou recorrentemente. 3. Lazeres que levam à promoção de comportamentos individuais sem levar em conta os direitos dos outros ou os negam. 4. Lazeres geradores de crimes e complacentes com os desvios e a delinquência. 5. Lazeres perigosos que geram comportamentos extremos, selvagens, desequilibrados ou suicidas. 6. Lazeres mefíticos, voltados para satisfação da baixeza, sordidez, sadismo e perversidade. 7. Lazeres de fuga ou evasão em paraísos artificiais de degeneração (álcool, droga, etc). 8. Lazeres que cultivam o prazer da transgressão por si mesma. 9. Lazeres motivados pela predação, uso e exploração de recursos coletivos para fins pessoais. 10. Lazeres praticados com desprezo das realidades ambientais. 11. Todo lazer portador de efeitos mortíferos para si e para os outros (2008, p. 82, tradução nossa). No texto original: ― Quelques formes négatives ou dégénératives du loisir: 1. Les loisirs exaltant la violence pour elle-même et les sévices qu‘elle engrendre. 2. Les loisirs occasionnant une rupture ou perte de la conscience libre et responsible, momentanée ou récurrente. 3. Les loisir faisant la promotion de comportements individuals sans égard pour les droits d‘autrui ou les déniant. 4. Les loisirs criminogènes et complaisants face à la deviance et à la délinquance. 5. Les loisirs dangereux engendrant des comportements extremes, sauvages, desequilibres ou suicidaires. 6. Les loisirs méphitiques, tirant satisfaction de la fange, de l‘ordure, du sadisme et de la perversité. 7. Les loisirs de fuite ou d‘evasion dans des paradis artificiels dégénérateurs (álcool, drogue, etc.). 8. Les loisirs motives par la prédation, l‘usage et l‘exploitation des ressources collectives à des fins personnelles. 9. Les loisirs pratiqués au mépris des réalités environnementales. 11. Tout loisir porteur d‘effets mortifères pour soi ou les autres.‖ (BELLEFLEUR: 2002, p. 82).

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de cavalos e cães e jogos de azar. Mesmo nos esportes, os espectadores ultrapassam em número os participantes. (1959, p. 54).

Para muitos estudidosos, o espectadorismo não se constitui numa ameaça

para a sociedade, pois as diferentes posturas das pessoas em relação aos

chamados lazeres passivos não possibilitam a formulação de um entendimento

generalizado sobre o tema. Como se não bastasse, a distinção entre atividade e

passividade é muito relativa em se tratando de lazer. Acácio Ferreira, por exemplo,

exclui a leitura da lista dos lazeres passivos, mas inclui entre estes os atos

religiosos. Todavia, ele mesmo pondera: ―Ora, quem nos dirá que o grau de

participação do indivíduo que está lendo é maior do que o de um outro rezando

contrita e fervorosamente?‖ (1959, p. 95).

Mesmo não sendo uma forma degenerativa do lazer, o espectadorismo ainda

causa preocupação nos dias de hoje. Uma das críticas mais comuns refere-se ao

excessivo tempo que se passa diante de um aparelho de televisão ou de um monitor

de microcomputador, que pode contribuir para o sedentarismo e a obesidade cada

vez mais precoces, para a homogeneização cultural, e até para idiotizar grande

parte da população das mais diversas culturas. O espectadorismo em relação aos

esportes também continua sendo um fenômeno muito comum. No Brasil,

considerado o país do futebol, este esporte não é só uma atividade física praticada

por muitos, mas um importante motivador do espectadorismo e do consumo de

bebidas alcoólicas, não sendo por acaso que fabricantes destas procuram associar a

imagem do seu produto à de atletas desse esporte, o que não deixa de ser uma

contradição.

Não se deve esquecer, porém, que os meios de comunicação como a

televisão e a internet, que exercem um enorme fascínio nas pessoas em todo o

mundo, podem servir para o crescimento pessoal, mesmo quando o conteúdo dos

programas televisivos ou os sites acessados pelos internautas sejam direcionados

para o entretenimento. Este, aliás, é um dos grandes remédios contra o tédio, mal

que não faz distinção de classes sociais ou culturas. Percebe-se, por exemplo, o

crescimento da aceitação de programas de televisão ocidentais no mundo islâmico,

a despeito do receio de disseminação de valores culturais supostamente prejudiciais

a este, o que pode ser explicado pelo papel da televisão como um dos principais

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passatempos para afugentar o tédio.69 Quanto aos exageros no uso da internet, este

não é um problema que se restringe ao lazer, pois nos dias de hoje ela já nos toma

grande parte do tempo dedicado ao trabalho, ao estudo, movimentações bancárias e

compra de produtos, entre outras atividades.

Mas voltando ao quadro de Bellefleur, este observa que os elementos ali

enumerados podem nos fazer imaginar que se tratam de casos excepcionais de

desvio de curso no desenvolvimento do lazer contemporâneo. Todavia, tal

impressão pode ser questionada, pois as potenciais usurpações do lazer não são

acidentais. Elas integram a própria estrutura do comportamento humano. Esconder

esse fato pode até ser útil para colocar em prática boas intenções voltadas para a

promoção social, mas não dá conta da complexa realidade do lazer, ainda mais

sabendo que, concretamente, ele também deita suas raízes na sociedade de

consumo, com todas as seduções, problemas, mazelas e ambiguidades inerentes a

esta.

Na sociedade de consumo, o bem-estar é enaltecido como o equivalente da

felicidade. Esta, como observa Jean Braudillard, afasta-se da exaltação coletiva,

pois fundamenta-se em princípios individualistas, que são reforçados pelo

reconhecimento explícito do direito individual à felicidade, constante, por exemplo,

na Declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão. Desse modo, a

―Revolução do Bem-Estar‖ torna-se, no dizer daquele autor, a sucessora não só das

revoluções liberais, mas de todas as revoluções que se inspiram ideologicamente

num igualitarismo como miragem:

A ―Revolução do Bem-Estar‖ é a herdeira, a testamenteira da Revolução Burguesa ou simplesmente de toda a revolução que erige em princípio a igualdade dos homens sem a poder (ou sem a conseguir) realizar a fundo. O princípio democrático acha-se então transferido de uma igualdade real, das capacidades, responsabilidades e possibilidades sociais, da felicidade (no sentido pleno da palavra) para a igualdade diante do objecto e outros signos evidentes do êxito social e da felicidade. É a democracia do „”standing”, a democracia da TV, do automóvel e da instalação estereofônica, democracia aparentemente concreta, mas também inteiramente formal, correspondendo para lá das contradições e desigualdades sociais à democracia formal inscrita na Constituição. Servindo uma à outra de mútuo álibi, ambas se conjugam numa ideologia democrática global, que mascara a democracia ausente e a igualdade impossível de achar. (BAUDRILLARD, 2008, p. 50).

Nutrindo-se da promessa de igualdade universal, a ―Revolução do Bem-Estar‖

extrai grande parte do seu vigor da ideia segundo a qual não há desigualdade das

69

A esse respeito, v. Midia, lazer e tédio (LOVISOLO, 2002).

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pessoas, quando se considera o valor de uso dos objetos e dos bens, mesmo que

elas não sejam iguais quando se toma como parâmetro o valor de troca daqueles.

Por isso, qualificando-se as necessidades pelo valor de uso, torna-se possível

eliminar as desigualdades sociais, haja vista que ―ao nível do bife (valor de uso), não

existe proletário nem privilegiado.‖ (Ibidem, p. 51).

É tamanha a força da ―Revolução do Bem-Estar‖ que nem os países

socialistas escapam do seu poder de sedução. Neles também se prega a chegada,

embora por caminhos diferentes dos oferecidos pelo capitalismo, a um estágio de

desenvolvimento em que haja um equilíbrio final entre as necessidades individuais

ou sociais e a abundância de bens para satisfazê-las. Nesse almejado estágio, seria

então possível um completo bem-estar para todas as pessoas indistintamente.

Os lazeres são elementos importantes nesse desejo de pleno bem-estar para

todas as pessoas. Como tal, integram o conjunto de seduções e ambiguidades

características da sociedade de consumo. Ocorre que, além de todos os problemas

inerentes a esta, eles têm de enfrentar o dilema resultante da transformação do

tempo em mercadoria, com extraordinário valor de troca e quase nenhum valor de

uso, fenômeno que pode ser percebido tanto na sociedade do trabalho quanto na do

consumo, pois em ambas é muito forte a ideia de que tempo é dinheiro.

Na sociedade do trabalho, a separação entre tempo livre e tempo ocupado

tornou-se mais intensa. O taylorismo, com o objetivo de racionalizar a produção e

evitar desperdício de tempo, contribuiu para disseminar a concepção de tempo útil e

para intensificar o apego exagerado à delimitação rigorosa da duração das

atividades humanas, já que o tempo era visto como capital suscetível de

cronometragem. Isso fez com que o tempo do não-trabalho fosse estigmatizado

como tempo perdido ou inútil, não sendo exagero os comentários de Nietzsche no

aforismo sobre lazeres e ociosidade:

(...) Tem-se vergonha do repouso, a meditação mais demorada causa remorsos. Reflete-se com o relógio na mão, da mesma forma como se almoça, com os olhos fixos no correio da Bolsa, vive-se como alguém que temesse ―deixar escapar alguma coisa‖. (...) Se a sociedade e as artes procuram ainda um prazer, é um prazer semelhante ao que se preparam os escravos fatigados pelo trabalho. Vergonha sobre esse contentamento na ―alegria‖ entre pessoas cultas e incultas! Vergonha sobre essa suspeita crescente contra toda alegria! O trabalho tem cada vez mais a boa consciência de seu lado; o pendor à alegria chama-se, atualmente, ―necessidade de se restabelecer‖ e começa a ter vergonha de si mesmo. ―Deve-se fazer isto pela saúde‖ ─ é assim que se fala sempre que se é surpreendido num passeio pelos campos. Sim, chegaremos brevemente a não ceder a um pendor para a vida contemplativa (isto é, caminhar

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acompanhado de pensamentos e amigos), sem desprezo de si e má consciência. (2002, p. 211-212).

Na sociedade do consumo, ainda que não se tenha vergonha do ócio e dos

lazeres, o tempo não deixa de ser mercadoria. Ele apresenta-se como um objeto em

meio a um mundo de objetos, compartilhando do estatuto comum a estes, no qual se

inserem a apropriabilidade e a alienabilidade. Tempo, nesse caso, é algo que

podemos ter ou perder. Daí que a lógica da sociedade de consumo inviabiliza a

ideia de tempo livre, como pondera Baudrillard:

Ora, no nosso sistema, o tempo só pode ser ―libertado‖ como objecto, como capital cronométrico de anos, de horas, de dias, de semanas a ―‖ por cada qual ―a seu bel-prazer‖. Por consequência, já não é ―livre‖, uma vez que se encontra regulado na sua cronometria pela abstracção total do sistema de produção. (2008, p. 202).

Nesse contexto, o lazer se revela não propriamente como fruição prazerosa e

espontânea do tempo livre, muito menos como realização de atividades voltadas

para o desenvolvimento pessoal, mas sobretudo como consumo de tempo

excedente, improdutivo, consumo de um capital cronométrico suntuário. Como tal,

falta-lhe autonomia, vez que sua definição se dá em relação ao tempo de trabalho,

considerado capital cronométrico produtivo para a sociedade. Ao mesmo tempo,

guarda um caráter ostentatório do qual não há como fugir, como lembra o mesmo

autor:

Em todos os signos, atitudes e práticas, em todos os discursos em que se exprime, o lazer vive da exposição e do exibicionismo de si próprio enquanto tal; vive da contínua ostentação, da marca e do reclame. Tudo se lhe pode tirar e suprimir, menos isso, já que é essa particularidade que o define. (Ibidem, 2008, p. 212).

A transformação do lazer em objeto de consumo, normalmente considerado

supérfluo e associado à alienação, é mais um empecilho no caminho da justificação

do direito ao lazer. Contudo, o grande problema reside na própria lógica da

sociedade de consumo, que converte tudo em objeto e, ainda por cima, tende a

diminuir o valor de uso e ampliar o valor de troca de bens essenciais à vida humana.

Nas grandes cidades, quanto custa o espaço para que o cidadão exerça o direito de

ir e vir, transitar em paz ou estacionar um veículo? Qual o preço do direito ao

silêncio necessário ao descanso, ou o de respirar um ar não poluído? Portanto, a

discussão acerca do direito ao lazer no âmbito da sociedade de consumo deve levar

em conta não apenas a possibilidade de alienação do lazer, mas de todas as

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atividades humanas, haja vista que até o tempo, no qual essas atividades se

desenvolvem, também tende a se transformar em objeto de consumo.

4.3 Problemas de garantia do direito ao lazer

Vimos que, em sua versão contemporânea e globalizada, o lazer deixou de

ser privilégio para ser direito. No entanto, para muitos grupos sociais, esse direito

apresenta-se mais como boa intenção normativa do que como realidade de vida.

Escassez de recursos econômicos, insensibilidade política e preconceitos culturais

são grandes obstáculos à efetividade das normas jurídicas que tutelam o lazer como

direito fundamental. Torna-se importante, então, examinar os empecilhos à garantia

do direito ao lazer, discutindo-se questões como a falta de prioridade do direito ao

lazer em relação a outros direitos fundamentais, em razão do princípio do mínimo

existencial e da teoria da reserva do possível; a dificuldade de integração e

valorização do lazer nas políticas públicas; o problema do lazer das minorias sociais

diante da realidade da pobreza, além das dificuldades de vivência do lazer para

grupos específicos, como é o caso do lazer das mulheres.

Aliada a essa discussão, é relevante analisar o tema da educação para o

lazer. Tal análise se faz necessária, haja vista que a educação para os direitos

fundamentais é imprescindível para a efetividade destes. No caso do direito ao lazer,

a educação para o seu exercício deve ser analisada na perspectiva da necessidade

de educação para a boa vivência do tempo livre, requisito para a efetiva

consolidação do lazer no rol dos direitos fundamentais, como instrumentos voltados

para o desenvolvimento integral da pessoa humana e para a construção da

cidadania.

4.3.1 Mínimo existencial, reserva do possível e direito ao lazer

O princípio do mínimo existencial costuma ser associado às ideias de Jonh

Rawls. Para este, ―liberdades e direitos básicos e sua prioridade garantem

igualmente para todos os cidadãos as condições sociais essenciais para o

desenvolvimento adequado,‖ (2000, p. XV), condições que, via de regra, são

remetidas à tutela do Estado. Por conta disso, o conceito de mínimo existencial é

bastante utilizado quando se discute a eficácia jurídica dos princípios constitucionais,

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particularmente do princípio da dignidade humana, e o papel do Estado na garantia

desses princípios.

Uma das questões a ser respondida nessa discussão diz respeito ao

conteúdo mínimo da dignidade humana, ao qual o Estado deve obrigar-se, por força

do que é reconhecido em sua Constituição. Ana Paula de Barcellos não teme

enfrentar essa questão bastante problemática, e como proposta de concretização, a

partir da Constituição Federal brasileira de 1988, afirma que o exame sistemático

desta permite conceber um mínimo existencial constituído por ―quatro elementos,

três materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, a saúde básica,

a assistência aos desamparados e o acesso à Justiça.‖ (2008, p. 288). Esses quatro

elementos, segundo a autora, compõem o núcleo da dignidade humana a que se

deve reconhecer eficácia jurídica positiva, bem como o status de direito subjetivo

judicialmente exigível.

Mesmo não havendo consenso sobre os elementos que devem compor o

mínimo existencial, é assente a ideia de que este não deve ser confundido com

mínimo vital. Mínimo existencial não deve se restringir à mera sobrevivência física,

mas deve levar em conta o direito a uma existência digna, à vida com um mínimo de

qualidade, entendimento que vem ganhando espaço tanto na doutrina quanto na

jurisprudência constitucional:

Não deixar alguém sucumbir à fome certamente é o primeiro passo em termos da garantia de um mínimo existencial, mas não é ─ e muitas vezes não o é sequer de longe ─ o suficiente. Tal constatação, todavia, nunca impediu que se sustentasse que a obrigação do Estado ─ em termos de direitos subjetivos a prestações ─ estaria limitada à garantia do mínimo vital, posição esta, aliás, enfaticamente refutada por Ricardo Lobo Torres em todos os seus escritos sobre o tema, ao destacar, entre outros aspectos, a direta fundamentação do mínimo existencial, entre outros princípios, na dignidade da pessoa humana. Tal interpretação do mínimo existencial (conjunto de garantias materiais para uma vida condigna) é a que tem prevalecido não apenas na Alemanha, mas também na doutrina e jurisprudência constitucional comparada, notadamente no plano europeu, como dá conta, em caráter ilustrativo, a recente contribuição do Tribunal Constitucional de Portugal na matéria, ao reconhecer tanto um direito negativo quanto um direito positivo a um mínimo de sobrevivência condigna, como algo que o Estado não apenas não pode subtrair ao indivíduo, mas também como algo que o Estado deve positivamente assegurar, mediante prestações de natureza material. (SARLET, 2010, p. 389-390).

Vinculado ao princípio do mínimo existencial temos a teoria da reserva do

possível,70 invocada reiteradamente como um obstáculo real para a concretização

70 Fernando Facury Scaff , fazendo remissão aos ensinamentos de Andreas Krell, informa que o

conceito de reserva do possível surgiu de uma decisão da Corte Constitucional alemã, na qual ―ficou

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dos direitos sociais. A estes, de acordo com entendimento jurídico amplamente

aceito, não pode ser dada concretude sem que haja intervenção legislativa que os

permita vir a existência, o que faz com que sua garantia jurídico-constitucional seja

quase nula, como bem observa J.J. Gomes Canotilho:

Os direitos sociais só existem quando as leis e as políticas sociais os garantirem. Por outras palavras: é o legislador ordinário que cria e determina o conteúdo de um direito social. Este é o discurso saturado da doutrina e da jurisprudência. (...) Uma tal construção e concepção da garantia jurídico-constitucional dos direitos sociais equivale praticamente a um ―grau zero de garantia.‖ (1999, 450-451).

O esvaziamento da garantia jurídico-constitucional dos direitos sociais baseia-

se principalmente em argumentos extraídos da teoria dos custos dos direitos. Se os

direitos não nascem em árvores, como enfatiza Flávio Galdino (2005), os primeiros a

sofrer restrição no tempo das vacas magras são justamente os direitos sociais, haja

vista que predomina a ideia de que eles custam caro, diferentemente dos direitos de

liberdade, tradicionalmente considerados menos onerosos aos cofres públicos. Por

isso não é difícil a aceitação da teoria da reserva do possível, de acordo com a qual

a garantia de direitos sociais só se justifica se houver dinheiro nos cofres públicos, o

que implica fragilização desses direitos, haja vista que ―um direito social sob ‗reserva

dos cofres cheios‘ equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica,‖

(CANOTILHO, 1999, p. 451), e faz com que não exista efetivamente direitos sociais

fundamentais, e sim direitos sociais dependentes da legislação que possibilite a sua

existência, de acordo com disponibilidade orçamentária.

No caso do direito ao lazer, a garantia deste é passível de maior resistência

ainda, à luz do princípio do mínimo existencial e da teoria da reserva do possível.

Pois além de ser rotulado como direito social, não raro ele é visto como supérfluo, e

gastar com o supérfluo sempre parece odioso. Normalmente somos levados a crer

que não é moralmente legítimo o dispêndio com tudo aquilo que se afigura

desnecessário, ou, na hipótese de escassez de recursos, com o que não seja

prioritário. Mas em se tratando de necessidades humanas, como se pode dizer quais

delas devem ser consideradas básicas ou prioritárias?

assente que ‗a construção de direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição da disponibilidade dos respectivos recursos‘. Neste sentido, a disponibilidade desses recursos estaria localizada no campo discricionário das decisões políticas, através dos orçamentos públicos.‖ (SCAFF, 2005, p. 89)

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Mesmo tendo consciência da dificuldade de responder a essa questão, Johan

Galtung (1994) elabora um quadro de necessidades humanas básicas, agrupando-

as em quatro classes: necessidades de sobrevivência, para evitar a violência; de

bem-estar, para evitar a miséria; de identidade, para evitar a alienação, e de

liberdade, para evitar a repressão. A partir desse quadro, ele procura comparar as

necessidades aos direitos humanos reconhecidos internacionalmente, observando

que podem existir necessidades sem direitos correspondentes e vice-versa, bem

como a possibilidade de necessidades serem contrariadas por direitos e vice-versa,

haja vista que as necessidades são experimentadas individualmente, enquanto os

direitos precisam ser formulados para a generalidade dos casos.

Ao lado das necessidades, é apresentada uma lista de agentes relevantes

para a satisfação delas, sendo interessante notar que na lista não aparece a palavra

lazer, e as que mais se aproximam da ideia deste são descontração e recreio.

Descontração, ao lado de empregos, aparece como agente de satisfação das

necessidades de auto-atuação, ―para a realização de potenciais‖, enquanto recreio é

associado à satisfação das necessidades relacionadas à alegria, autonomia e

espírito de aventura, todas elas incluídas na classe das necessidades humanas de

identidade, e não de liberdade, bem-estar ou sobrevivência.

Não deve causar estranheza a ausência do lazer numa lista de necessidades

básicas do ser humano, tampouco a indicação de algumas de suas formas, como

recreio e descontração, como agentes de satisfação da necessidade de identidade e

não de liberdade, bem-estar ou sobrevivência. Pois de modo geral, as atividades

relacionadas ao ócio e ao lúdico tendem a não ser incluídas entre as prioridades da

vida humana, ainda que não recebam explicitamente o estigma de supérfluas, até

porque isso poderia ensejar um paradoxo: se forem chamadas necessidades, não

são supérfluas; se tratadas como supérfluas, não são necessidades. Daí por que,

em situações concretas de pobreza e escassez de recursos, fatalmente o direito ao

lazer é relegado a um plano secundário.

Ocorre que o problema da delimitação das necessidades básicas e da sua

satisfação por determinados agentes, de modo especial pelo Estado por meio da

atuação do direito, é muito mais complexo e profundo do que se pode imaginar, pois

envolve uma série de questões cujas respostas tendem a não ser consensuais:

O que é uma necessidade básica? Existem necessidades comuns ao conjunto dos seres humanos independentemente do quadro cultural no qual eles estão inseridos? Como o reconhecimento empírico de necessidades

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básicas (plano descritivo) poderia ensejar direitos morais (plano normativo)? Enfim, qual é o papel do Estado na identificação e satisfação das necessidades básicas? (RABENHORST, 2002, p. 70).

Examinando essas questões, com o objetivo de averiguar a adequabilidade

de uma teoria das necessidades no âmbito da justificação dos direitos humanos,

Eduardo Rabenhorst (2002) destaca o caráter polissêmico da expressão

―necessidade básica‖, cujo sentido tende a variar de acordo com o campo de estudo

em que é utilizada.71 Afirma ainda que é mais difícil demonstrar a existência de

necessidades básicas universais do que provar que as necessidades não se

reduzem a eventuais escolhas subjetivas, em razão do relativismo do conceito de

―necessidade básica‖, impregnado das especificidades históricas, axiológicas e

culturais que o envolvem.

A despeito dessa dificuldade, um dos critérios utilizados na tentativa de

demonstrar a universalidade das necessidades básicas funda-se na concepção de

que são básicas as necessidades cuja não satisfação causa ao seres humanos

―danos irremediáveis‖ ou ―sérios prejuízos‖. Estes últimos, de acordo com o

entendimento de Doyal e Gough, citados por Rabenhorst, consistem na

―possibilidade objetiva de impedimento aos seres humanos de viverem física e

socialmente em condições de poder expressar a sua capacidade de participação

ativa e crítica.‖ (Ibidem, p. 73).

O critério dos ―danos irremediáveis‖ ou ―sérios prejuízos‖ tem levado à

conclusão de que as necessidades humanas, básicas e universais, são aquelas

relacionadas à preservação da vida e à tutela da autonomia, o que coincide

aparentemente com a primeira e a última classe de necessidades básicas apontadas

por Galtung (1994), ou seja, sobrevivência e liberdade. Entretanto, no quadro

daquele autor, a nutrição, o sono e a proteção contra as doenças, por exemplo,

fazem parte das necessidades de bem-estar e não de sobrevivência. Por sua vez,

entre as necessidades de liberdade estão escolhas subjetivas como a do cônjuge,

bens e serviços, além de estilo de vida, cuja não satisfação aparentemente não

71 Rabenhorst observa que na psicologia o sentido de necessidade é muitas vezes sinônimo de

motivação (causa de uma ação), como se pode verificar na teoria formulada por Maslow, diferente da concepção filosófica de D. Wiggins, na qual a suspeição ronda o conceito de necessidade básica, pois este se aproxima de outros conceitos não equivalentes como desejos, interesses, motivações e carências, enquanto na análise do economista Max Neef as necessidades, examinadas no contexto do estudo sobre o desenvolvimento, apresentam-se como condições imprescindíveis para que o sistema funcione, e ―uma necessidade básica, por sua vez, é aquela cuja satisfação enseja a destruição do sistema ou impede a realização de algumas de suas funções.‖ (2002, p. 72).

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causaria ―danos irremediáveis‖ ou ―sérios prejuízos‖, se estas expressões forem

avaliadas com muito rigor.

Seja como for, o certo é que, quando se fala em mínimo existencial, a

intenção normalmente é colocar dentro desse mínimo as necessidades ligadas à

manutenção da vida (e neste caso a saúde é incluída entre elas) e à autonomia do

ser humano. Por outro lado, quando se fala em reserva do possível, geralmente é

para deixar do lado de fora desse mínimo as necessidades consideradas não

prioritárias, a exemplo do lazer, cuja garantia tende a sofrer mais restrições do que a

de outros direitos sociais, embora constitucionalmente seja reconhecido como direito

fundamental.

4.3.2 Dificuldade de integração e valorização do lazer nas políticas públicas

Os conceitos de reserva do possível e mínimo existencial relacionam-se aos

problemas da disponibilidade de recursos para a satisfação das necessidades

humanas, e influenciam a elaboração de orçamentos públicos nos quais o lazer

costuma aparecer de forma bastante tímida. Exemplo disso é a pesquisa realizada

pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo a qual o valor

dos recursos aplicados na função esporte e lazer, em relação ao total das despesas

dos municípios brasileiros, era em média 0,97% e 0,90%, nos anos de 2002 e 2003,

respectivamente. (IBGE, 2006).

Esporte e lazer, de acordo com os critérios da pesquisa, é função distinta do

esporte educacional e do esporte de rendimento. Este último é o organizado

internacionalmente, por meio de normas de cada prática esportiva, sendo voltado

para a busca de resultados em competições, enquanto esporte educacional é aquele

praticado em formas sistemáticas ou assistemáticas de educação. Ambos, portanto,

não se confundem com esporte e lazer, cuja principal característica é ser praticado

voluntariamente, abrangendo modalidades esportivas direcionadas para integrar os

praticantes na vida social, para promover saúde e educação, e para preservar o

meio ambiente.

A destinação de migalhas orçamentárias para gastos com esporte e lazer não

se deve exclusivamente à austeridade dos detentores das chaves dos cofres

públicos, tampouco à impossibilidade de aumento de gastos em razão da escassez

de recursos. É claro que tais fatores também contam, mas não se pode perder de

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vista que a fixação de percentuais orçamentários para realização de políticas

públicas resulta de um processo de definição de prioridades, e estas são ordens de

preferência, isto é, de escolha, de opção entre duas ou mais coisas. A nenhum

escolhedor, por mais sábio que seja, é dado se livrar das influências culturais da

sociedade em que vive. E o lazer, ainda que associado ao esporte, parece não ter a

respeitabilidade social que lhe é merecida.

Entretanto, também parece já ser tempo oportuno para uma mudança de

percepção e de postura em relação ao valor do lazer, tanto por parte da sociedade

civil, quanto dos que integram a estrutura do poder público. Nesse sentido, Beatris

Chemin defende que o lazer passe a ser incluído no rol de prioridades dos

responsáveis pelas políticas públicas municipais. Pois o lazer, como ressalta aquela

autora, é elemento imprescindível para a qualidade de vida e para a conquista da

dignidade da pessoa humana, devendo, portanto, ―ser lembrado, valorizado e ser

tornado efetivo pelo Poder Público na vida cotidiana dos munícipes.‖ (2008, p. 82).

Defender um tratamento prioritário para o lazer não significa colocá-lo como

elemento central das políticas públicas, mas integrá-lo de nas diversas políticas que

se relacionem com ele. A associabilidade deste não se restringe ao esporte, mas se

estende a muitas outras áreas relevantes como saúde, educação, preservação do

meio ambiente e urbanismo, uma vez que ele guarda íntima relação com qualidade

de vida. Sendo assim, se a dimensão do lazer não for esquecida no âmbito das

políticas públicas dessas áreas, ele pode ser contemplado de maneira menos

acanhada nos orçamentos públicos, ainda que destes não conste uma política

direcionada especificamente para o lazer.

Nas políticas de urbanismo, por exemplo, o grande objetivo a ser alcançado

deve ser a humanização das cidades. Estas, como lembra José Afonso da Silva,

(1997) a partir do fenômeno da acelerada urbanização, passaram a conviver com

enormes problemas e desafios, como deterioração do meio ambiente,

desorganização social, déficit de moradias, problemas de higiene e saneamento

básico, entre outros, que exigem a ação dos poderes públicos visando à

transformação do meio urbano em habitat condizente com o desenvolvimento de

vida humana em condições dignas. Nesse processo, o lazer desempenha uma

função primordial, sendo importante destacar, a esse respeito, que a recreação é

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reconhecida pela Carta de Atenas (1933) 72 como uma das quatro funções básicas

da cidade, ao lado da habitação, trabalho e circulação.

No propósito de humanização das cidades, Luiz Octávio de Lima Camargo

defende a apropriação de espaços públicos para o lazer, que pode se associar às

outras funções da cidade acima referidas e também fazer parte dos espaços a elas

destinados, começando pelo espaço destinado à habitação. Como lembra Camargo,

nem mesmo as cavernas pré-históricas serviam unicamente para a proteção contra

as adversidades ambientais ou da agressão de animais selvagens. Habitar é muito

mais do que guardar pessoas em abrigos seguros, pois se fosse assim os bunkers

seriam as casas ideais. As ruas, por sua vez, não devem ser sacrificadas ao ―deus

automóvel‖, tampouco fábricas, oficinas e escritórios devem idolatrar o ―deus

trabalho‖. Daí por que o lazer não deve se confinar a uma única área geográfica,

mas integrar harmonicamente diversos espaços da cidade, se esta quiser se tornar

mais humana, como também observa Camargo:

(...) Se um Prefeito me diz que tem um x de verba e me pergunta se deve aplicar em um centro de saúde ou em um centro de lazer, não tenho dúvidas em recomendar-lhe a primeira opção, com uma condição. Essa condição vale para um centro de saúde, para uma escola, para uma avenida, para um ‗piscinão‘, para uma estação de metrô ou qualquer obra prioritária do município. A condição é que se pense na dimensão de lazer de qualquer obra que se venha a instalar. Um centro de saúde recebe mães com crianças impacientes, que sofrem no confinamento da sala de espera. Por que não prever uma área livre com pelo menos algumas alternativas de atividades? Uma escola pode ser pensada como um espaço para os seus alunos, mas certamente é o equipamento urbano mais completo de alguns bairros. Por que não planejá-la também para o lazer de fim de semanas e férias das pessoas, quando esses espaços estão ociosos? A criação de uma avenida, de um piscinão, de uma estação de metrô, gera nesgas, áreas excedentes de desapropriação (...) Por que, juntamente com o planejamento da obra em si, não se planeja também o aproveitamento lúdico desses espaços remanescentes que, não raro, são apropriados por algum espertalhão? (2003, p. 42).

4.3.3 Pobreza, exclusão e direito ao lazer das minorias sociais

De modo geral, as cidades apresentam-se como ambientes hostis ao

exercício do direito ao lazer para a maioria dos seus habitantes. Na Carta de Atenas,

considerada um marco do moderno urbanismo, observa-se a existência de

72

A Carta de Atenas, resultado do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), realizado no ano de 1933 na cidade de Atenas, foi publicada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), estando disponível no site http://www.icomos.org.br/cartas/Carta_de_Atenas_1933.pdf, acesso em 12.07.2010.

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superfícies livres no interior de algumas cidades, que poderiam ser destinadas ao

lazer. Entretanto, elas geralmente são insuficientes, mal destinadas e pouco

utilizáveis pela maioria dos habitantes, exigindo mudanças na organização dos

espaços urbanos, para que a população tenha condição de aproveitar o tempo

disponível da melhor maneira possível, melhorando, assim, sua qualidade de vida.

Não bastam, porém, reformas urbanas para o pleno exercício do direito ao

lazer. São necessárias, também, políticas voltadas para o combate à pobreza, uma

vez que esta se configura num dos maiores obstáculos à garantia de direitos

fundamentais, especialmente para as minorias sociais. Mas o que deve ser

entendido como pobreza e minorias sociais, e de que modo o direito ao lazer deve

ser tratado em relação a esses fenômenos?

Pobreza não é algo simples de se definir. Embora sendo relacionada, grosso

modo, à carência de recursos necessários a uma vida digna, ela é palavra utilizada

para designar uma condição que pode até ser mensurada objetivamente, mas que

não deixa de expressar o relativismo histórico e cultural que influencia essa

mensuração, nem afasta totalmente a ambiguidade decorrente do subjetivismo

presente em suas definições, formuladas nas diversas áreas do conhecimento

humano.

Objetivamente, a pobreza costuma ser associada à incapacidade de pessoas

ou populações para suportar os custos necessários a uma existência decente.73

Ocorre que o dimensionamento desses custos varia em razão do momento histórico,

da diversidade cultural e do estágio de desenvolvimento econômico e social de cada

população, o que faz com a denominada linha da pobreza suba ou desça, levando

em conta esses fatores em cada sociedade. Além disso, a definição de pobreza e a

fixação da linha abaixo da qual a vida passa a não ser considerada digna do ser

humano pressupõem a utilização de algum parâmetro médio de comparação,

geralmente relacionado a um grupo de referência:

73 Os custos da produção e reprodução do ser humano podem ser distribuídos em quatro grupos: ―1)

custos necessários para assegurar a cada indivíduo a maior expectativa de vida ao nascer; 2) custos necessários para permitir a cada um viver o maior tempo possível nas melhores condições de saúde física e mental; enquadram-se sobretudo nesses custos aqueles destinados a uma alimentação suficiente e equilibrada, sob o aspecto dietético, e à habitação; 3) custos para oferecer a cada pessoa as melhores condições para desenvolver (através da instrução e do trabalho) e assim empregar utilmente (no trabalho) as próprias potencialidades físicas e mentais; 4) custos necessários para assegurar a cada pessoa amplo acesso à fruição dos bens culturais (arte, espetáculos, tradições, ambiente etc.) e gozo adequado do tempo livre.‖ (GALLINO, 2005, p. 498).

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De fato, qual é a ―maior expectativa de vida‖, ou o tipo e o estado de saúde, que um indivíduo pensa poder ─ ou, mais exatamente ─ julga ter o direito de conquistar? Aqueles das sociedades estrangeiras mais avançadas nesses índices? Ou aqueles das classes mais privilegiadas da sociedade a que pertence? Ou aqueles que os cientistas garantem ser possível alcançar se forem feitos determinados investimentos em pesquisas médicas, no saneamento ambiental, no melhoramento da organização do trabalho? Com base nas pesquisas disponíveis, várias hipóteses são possíveis. A mais bem fundamentada é, talvez, a hipótese de que o grupo que geralmente é tomado como referência nas sociedades modernas e contemporâneas seja o conjunto das classes médias, que já nas sociedades em via de industrialização formavam a parte mais visível e influente da população ─ em termos de formação das necessidades, estilos de vida, modelos lingüísticos, controle sobre educação e seus meios de comunicação, proposta de uma imagem do homem e da sociedade ─ e representam, nas sociedades industriais desenvolvidas, a maioria absoluta da população: sem perder, mas antes reforçando, os supramencionados caracteres e capacidades. (GALLINO, 2005, p. 499).

Portanto, a pobreza também envolve aspectos relativos. Os pobres de hoje

não são somente os que carecem de bens materiais para subsistência, mas os

pobres de oportunidades de pleno desenvolvimento. Mais que penúria, pobreza é

―não conseguir alçar-se à condição de sujeito capaz de comandar seu próprio

destino (DEMO, 2003). Em outros termos, pobreza é não ter, mas é também não ser

ou estar impedido de ser, como bem procurou demonstrar Amartya Sen (1999).‖

(RABENHORST, 2002, p. 75).

Dentro dessa concepção mais ampla de pobreza, são especialmente pobres

aqueles que integram as denominadas minorias sociais, cuja delimitação conceitual,

embora não isenta de controvérsias, sempre aponta para grupos que, pelas mais

diversas circunstâncias, vêem-se impedidos de tomar as rédeas de sua própria

trajetória histórica. Por isso, precisam de redobrado esforço para obtenção de

direitos e reconhecimento social de seu discurso, constituindo-se em grupos

vulneráveis do ponto de vista jurídico-institucional, que têm de empreender uma luta

contra-hegemônica, no jogo das relações de poder presentes na sociedade.

Para os pobres de todo o gênero, a garantia do direito ao lazer também

requer esforço além da conta, pois faz parte desse movimento social contra-

hegemônico. A pobreza, como ―forma mais macroscópica da desigualdade,‖

(GALLINO, 2005, p. 498) implica limitações inerentes à própria condição do pobre,

como falta de recursos para custear boas atividades de lazer, falta de educação

adequada para entender o real sentido deste, falta de discernimento para não se

deixar ludibriar pelo lazer manipulável da política do pão e circo. Por outro lado, a

situação de pobreza pode ser utilizada ideologicamente para estigmatizar o pobre

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como aquele que não se esforça para enriquecer, aquele que não gosta de trabalhar.

Desse modo, de processo complexo resultante de diversas causas, a pobreza é

reduzida a atributo individual. Com isso, fica difícil defender o direito ao lazer para o

pobre, pois para quem é tachado de preguiçoso, o imperativo mais comum é: vai

trabalhar, vagabundo!

A despeito dessas dificuldades, nos últimos anos têm sido desenvolvidas

algumas pesquisas e ações, nas quais o lazer é visto como instrumento de combate

à violência e à exclusão, e de resgate da cidadania dos pobres de todo o gênero.

Célio Turino (2003) é organizador de um livro, no qual encontramos o relato de boas

experiências realizadas na cidade de São Paulo, cuja prefeitura inseriu o lazer em

programas sociais, inclusive com a formação de agentes comunitários de lazer.

Victor Andrade de Melo (2003), por sua vez, discute o tema lazer e minorias sociais,

em pesquisa na qual podemos destacar as questões do lazer dos idosos, dos

presidiários e das prostitutas.

É comum nos dias de hoje a formação de grupos de idosos em todo o Brasil,

que se reúnem periodicamente para realização de diversas atividades, entre as

quais se destaca o lazer. A atuação dos organizadores desses grupos é louvável, até

porque a nossa população de idosos aumentou significativamente, e cada vez mais

aumenta a busca por viver a velhice com qualidade de vida. Existem, contudo,

algumas distorções na forma pela qual o lazer é inserido nesses grupos, pois muitas

vezes ele é instrumento de alienação da ―terceira idade‖, dando-se a esta um falso

glamour de ―melhor idade‖, e, pior ainda, de infantilização dos idosos, manipulados

como sujeitos passivos de atividades por eles não escolhidas, o que não contribui

efetivamente para a melhoria da condição dos idosos em nossa sociedade. Isolados

em grupos, cuja voz não é ouvida por outros segmentos sociais, e tratados como

objetos de ações das quais não são protagonistas, os idosos continuarão sendo

pobres, no sentido de não comandarem seu próprio destino.

Direito ao lazer para presidiários é questão que para muitos parece um

despropósito. Somos tentados a considerar o prazer na fruição do tempo disponível

um luxo absurdo no ambiente prisional. No entanto, também parece impossível o

êxito no processo de ressocialização de presos sem que o lazer faça parte desse

processo. Por que é tão fácil defender o trabalho, e não o lazer, para presidiários?

Não será porque não nos livramos totalmente da visão do trabalho como castigo? É

claro que trabalhar é importante para ressocializar um apenado. Todavia, associar

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trabalho a castigo é restituir ao primeiro um estigma do qual ele já se libertou com a

doutrina cristã. Portanto, não só o trabalho, mas também o lazer, deve fazer parte da

rotina de quem está legalmente privado da liberdade de ir e vir, mas não condenado

à desumanização. É nesse sentido que a ONU, nas Regras Mínimas para o

Tratamento de Presos, sugere a prática de educação física e recreativa, bem como

atividades de recreio e culturais, em benefício da saúde física e mental dos presos,

preocupação que também está presente em nossa Lei de Execução Penal (LEP).74

Falar em direito ao lazer para prostitutas também pode soar como disparate.

Pois para muitos, elas vivem uma vida de diversão e prazer, concepção que não

condiz com a realidade da prostituição. Esta, como explica André Gorz (2007),

representa uma relação servil em estado puro, pois o que para o cliente é prazer,

para a prostituta é trabalho. Tal relação se caracteriza por um consumo direto e

imediato sobre a pessoa da prostituta, que se torna instrumento de prazer, vendendo

ao cliente uma tentativa de simulacro da própria entrega, pois oferece o corpo como

se fosse algo separado dela mesma, o que diferencia esse trabalho de outras

relações servis:

Ora, diferentemente de todos os outros serviçais que simulam profissionalmente a solicitude obsequiosa, o bom humor, a sinceridade, a simpatia etc., a prostituta não pode reduzir sua prestação a esta comédia ritual de gestos e de fórmulas próprias à servilidade comercial, à amabilidade comercial, à dedicação comercial. De si mesma, a prostituta não oferece apenas os gestos e as palavras que ela sabe produzir sem envolver-se, mas exatamente o que ela é sem simulação possível: seu corpo, isto é, aquilo pelo qual o sujeito é dado a si mesmo e que, sem dissociação possível, constitui o solo de todos os seus vividos. É impossível entregar seu corpo sem se entregar, é impossível permitir que dele se utilizem sem que seja humilhado. (GORZ, 2007, p. 147).

O trabalho das prostitutas, mesmo não se submetendo a rígida uniformização

de jornada, por vezes lhes dificulta a vivência do lazer, como comprova a pesquisa

realizada por Victor Andrade de Melo (2003), com prostitutas da Vila Mimoza, no Rio

de Janeiro. Nas entrevistas realizadas com elas, constatou-se que muitas

trabalhavam em jornadas extenuantes, que chegavam a dezesseis horas por dia, e

quando saíam do trabalho, algumas só queriam dormir. Outras conseguiam tempo

para trabalhar em atividades que não fosse a prostituição, e a primeira opção de

74 As Regras Mínimas para o tratamento do preso podem ser encontradas no site

http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm, acesso em 13/07/2010. Por sua vez, o direito à recreação dos presos está previsto no art. 41, V, da Lei 7.210/84 (LEP).

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lazer, mencionada pela maioria delas, era se dedicar aos afazeres domésticos,

principalmente ao cuidado dos filhos, de quem geralmente escondiam a condição de

prostitutas, atitude que, no entendimento do autor, deve-se à influência dos papéis

da mulher e da mãe, historicamente idealizados pela sociedade.

4.3.4 Por um tempo todo seu: o problema da garantia do direito ao lazer para

mulheres

Os papéis historicamente idealizados de mulher e mãe apresentam-se como

obstáculos à garantia do direito ao lazer não somente para prostitutas, mas para

todas as mulheres. O tempo disponível destas tem sido sistematicamente sacrificado

em diferentes épocas e culturas, por conta da imposição desses papéis pela

sociedade, o que as torna mais vulneráveis do que muitos integrantes das minorias

sociais, no que diz respeito ao pleno exercício desse direito.

Desde os tempos mais remotos, as mulheres têm trabalhado em atividades

da esfera produtiva. Se esse fato não se fazia notar de forma mais acentuada antes

da modernidade, é porque o trabalho delas geralmente se desenvolvia no seio do

grupo familiar ou comunitário. Todavia, com a Revolução Industrial, o

desenvolvimento da maquinaria facilitou o ingresso de mulheres no trabalho das

fábricas. Elas formavam um grande contingente de mão-de-obra barata, o que

resultou na redução de salários, aumento da jornada de trabalho e exploração ainda

mais desumana do operariado.

Para minorar essa exploração, muitos países estabeleceram normas

especiais de proteção ao trabalho das mulheres. Tais medidas, à primeira vista,

contribuíam para a melhoria da condição socioeconômica das trabalhadoras.

Contudo, há quem desconfie que a implementação de legislação protetiva do

trabalho das mulheres escondia outro propósito, que era desestimular a contratação

destas pelas empresas, evitando a concorrência com os homens, em trabalhos

normalmente dominados por estes.

A esse arcabouço jurídico que, por via indireta, dificultava o acesso das

mulheres ao mercado de trabalho, somou-se a disseminação de noções

pretensamente científicas, que defendiam a ideia de que lugar de mulher é a casa, e

seu tempo, o tempo para a família, como bem observa Paul Lafargue:

Quando as jovens e as mulheres de pequena burguesia, obrigadas a lutar

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pela sua subsistência e aumentar os recursos da família, começavam a invadir os armazéns, as administrações, os correios e as profissões liberais, os burgueses foram tomados de inquietação pois os seus próprios meios de existência eram já limitados; a concorrência feminina ia reduzi-los ainda mais. Os intelectuais, que empreendem a defesa dos machos, acharam prudente não recomeçar com os sermões de moralistas, que tinham sido tão piedosamente mal sucedidos junto das burguesias ricas: apelaram antes para a ciência, demonstrando através de razões irrefutáveis e superiormente científicas que a mulher não pode abandonar as ocupações domésticas, sem violar as leis de natureza e da história (LAFARGUE, 1904, apud CESARINO JÚNIOR; CARDONE, 1993, p. 343-344).

Foi então, com base no argumento de que não era legítimo às mulheres

abandonar as ocupações domésticas, que muitas delas foram mandadas embora

das fábricas; deixaram de ser operárias e voltaram a ser basicamente donas de

casa. Tratava-se, portanto, de mais um movimento pendular controlado pelo modo

de produção capitalista, que explorava as mulheres como reserva de mão-de-obra,

pronta a ser convocada quando se fizesse necessário.

Só que algo de novo estava por vir. O desenvolvimento tecnológico resultante

da era industrial possibilitou o aumento da produtividade não apenas do trabalho

fabril, mas também do doméstico, que passou a ser feito com o auxílio de algumas

máquinas, como a de costura:

A máquina de costura, assim como os demais aparelhos domésticos que a seguiram, alterou por sua vez as condições de reprodução da força de trabalho ao aumentar, de forma notável, a produtividade do trabalho doméstico. Com a máquina de costura, a mulher do operário poderia, com o mesmo gasto de tempo, costurar um volume bem maior de roupas de cama e mesa e de uso para si e para as crianças, supondo-se que o marido adquirisse suas roupas confeccionadas. Neste sentido, a máquina de costura deve ter elevado o padrão de consumo da família operária, como o fez também todo elenco de aparelhos domésticos desenvolvidos posteriormente: o fogão elétrico ou a gás, a geladeira, a máquina de lavar, o aspirador de pó etc., etc. Mas não se deve também esquecer o outro efeito dos aparelhos domésticos: o de encurtar a duração do trabalho doméstico. Com a sua ajuda, a dona de casa pode cozinhar, manter a casa em ordem e limpa, cuidar da roupa da família etc. em muito menor tempo do que antes. (SINGER, Paul, 1979, p. 135-136).

Encurtada a duração do trabalho doméstico ─ ao menos num primeiro

momento, porque depois esse tipo de trabalho parece ter se sujeitado à lei de

Parkinson75 ─, sobrava um pouco mais de tempo livre para as mulheres. Agora seria

75

Em linhas gerais, a lei de Parkinson, formulada por Cyril Northcote Parkinson em artigo publicado em 1955, diz que o trabalho se expande para encher o tempo disponível. Segundo Betty Friedan, essa lei pode ser adaptada à dona de casa americana, podendo-se dizer sobre esta que a carreira doméstica, a carreira materna ou até o sexo se expandem para preencher o seu tempo disponível: ―Esta é, sem dúvida, a verdadeira explicação do fato segundo o qual, mesmo com todos os utensílios que poupam trabalho, a dona de casa americana provavelmente passa hoje mais tempo ocupada que sua avó. E também explica em parte a preocupação nacional com sexo e amor, e o aumento da

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dado a elas barganhar mais espaço na esfera da produção, sem ter que carregar a

culpa de ―violar as leis da natureza e da história‖, por conta do abandono das tarefas

domésticas. Com isso, inaugurava-se mais uma era marcada pela dupla jornada de

trabalho das mulheres. Estas, a partir de então, teriam diante de si, de forma ainda

mais acentuada, o desafio da multiplicação do tempo, a ser dividido entre as esferas

da produção e da reprodução, sem esquecer a fatia abocanhada pelas atividades

relacionadas ao mito da beleza, que faz a dupla jornada se transformar em tripla.76

Nos dias atuais, em que o tempo destinado à produção ainda é

supervalorizado, para a procriação e os cuidados com a manutenção da vida

reserva-se o tempo que resta depois que cada pessoa se desincumbe do trabalho

produtivo. Este é visto como aquele que cria a mais-valia. No entanto, é possível

concebê-lo numa perspectiva mais ampla, compreendendo-se como produtivo o

trabalho que cria bens de consumo ou serviços destinados à satisfação das

necessidades humanas, por meio de um complexo processo em que se

desenvolvem relações de produção de caráter não capitalista, mas que são

fundamentais para a reprodução da força de trabalho, como explica Paul Singer:

É preciso atentar que os valores de uso adquiridos no mercado requerem toda uma série de atividades para poderem ser usados ou consumidos: a comida tem que ser preparada, a louça tem que se lavada e seca, as peças, os móveis e os demais objetos também têm que ser limpos, sem falar dos cuidados especiais que devem ser prestados a crianças pequenas, pessoas idosas e doentes. Tudo isso exige uma soma de esforços, de tempo de trabalho não-social considerável. A divisão de tarefas dentro da família do trabalhador ─ quem vende sua capacidade de trabalho no mercado, quem cuida dos serviços domésticos, quem amplia sua capacidade de trabalho futura freqüentando cursos ─ estabelece relações de produção entre marido e mulher, pais e filhos e entre estes e outros eventuais componentes do domicílio, que são essenciais para a reprodução da força de trabalho. (1979, p. 119).

Na prática, porém, não é fácil delimitar, do valor total de um produto feito na

esfera da produção, qual o montante decorrente do trabalho doméstico. Neste não

há demarcação entre horas de trabalho e de lazer; nele não se bate cartão de ponto,

nem se tem horário de trabalho fixo. No caso das donas de casa que não

desenvolvem atividades no espaço típico da produção, como se pode afirmar que

natalidade.‖ (FRIEDAN, 1971, p. 207). Essa observação pode ser estendida a donas de casa de outros lugares do mundo. 76

Naomi Wolf (1992) trata dessa questão no livro O mito da beleza. As mulheres, que conquistaram seu espaço no competitivo mundo profissional, e conseguem lidar com a dupla jornada de trabalho, são levadas a enfrentar uma tripla jornada, tendo que dividir o pouco tempo que lhes resta investindo obsessivamente na procura da juventude e formosura que, segundo o mito da beleza, são indispensáveis para preservar o lar e o trabalho profissional.

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seu trabalho produz valor de troca, se elas continuam a prestar serviços aos maridos

mesmo quando estes estão desempregados? Por isso, não se pode tirar a razão de

Andrea Nye, quando esta considera o trabalho doméstico uma anomalia

inassimilável pelos mecanismos de produção (1995, p. 77), tanto que, quando

realizado pelas donas de casa, ele é tido como inatividade econômica e não como

trabalho não remunerado.77

Essa ―anomalia‖ continua a ser desenvolvida predominantemente por

mulheres, o que não deixa de ser uma das formas de exploração masculina.78 Esta,

que transcende modelos econômicos e políticos, por se relacionar a arraigados

valores culturais, é mais um obstáculo à garantia do lazer para as mulheres. Se na

época de Virgínia Woolf (1882-1941), mais do que de leis reconhecendo direitos das

mulheres, a emancipação destas dependia de independência financeira e de um teto

todo seu,79 na dinâmica da vida atual, em que o tempo é um bem escasso, elas têm

de enfrentar não apenas desafios de ordem econômica e social, mas principalmente

resistências culturais, para conquistarem um tempo todo seu.

A bem da verdade, aqui e acolá aparecem iniciativas de atenuação da

exploração masculina, no tocante à repartição das tarefas domésticas. Exemplo

disso é a Lei Espanhola n. 39, de 1999, conhecida como Lei de Conciliação da Vida

Familiar e Laboral (LCVFL).80 Entre as inovações trazidas pela referida lei está a

faculdade concedida à mulher, de opção para que o pai partilhe da licença a ela

conferida para cuidar do filho recém-nascido. Daí que, como argumenta Cláudio

77

Cristina Bruschini (2006) defende a tese de que, devido ao elevado número de horas que as pessoas, especialmente mulheres, dedicam ao trabalho doméstico, este deveria ser considerado trabalho não remunerado e não inatividade econômica. 78

No verbete Mulher (Sociologia da), do Dicionário de Sociologia dirigido por Luciano Gallino, a destinação quase exclusiva das mulheres ao trabalho doméstico é incluída entre as coordenadas que definem a condição feminina nas sociedades modernas e contemporâneas. Segundo aquela obra, são pelo menos quatro os elementos do trabalho doméstico que fazem com que muitas mulheres o considerem uma forma de exploração masculina: ―(I) é uma concentração de atividades tediosas, desagradáveis e cansativas, embora a fadiga de algumas delas tenha sido recentemente aliviada com a difusão dos eletrodomésticos; (II) para substituir o papel da ‗dona-de-casa‘ por forças de trabalho institucionais enfrentar-se-ia (ou se enfrenta, para os poucos que podem contratá-lo) custos análogos aos de uma fábrica ou loja; (III) a invisibilidade social e cultural do trabalho doméstico faz com que ele seja considerado um dever óbvio da M., ainda que esta exerça um trabalho institucional fora de casa; (IV) a prestação do trabalho doméstico não-remunerado, em troca de comida, alojamento, roupa, que constitui por tradição o aspecto econômico do pacto matrimonial, é, de per si, um fator de degradação da personalidade e da figura moral da M.‖ (GALLINO, 2005, p. 432-433).

79

Um teto todo seu (A room of one‟s own) é o título do célebre livro de Virginia Woolf, no qual a autora defende a opinião segundo a qual se a mulher quer mesmo escrever ficção, são necessárias basicamente duas coisas: ela precisa de dinheiro e de um teto todo seu, ou, como diz o texto original: ―a woman must have money and a room of her own.‖ (WOOLF, 2004, p. 2).

80

O texto da lei está disponível no site http://www.derecho.com/l/boe/ley-39-1999-promover-conciliacion. Acesso em 12/10/2010.

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Pedrosa Nunes, referindo-se a Almendros Gonzáles:

(...) a conciliação da vida familiar e laboral permite a inserção do homem como co-responsável pela gestão das atividades domésticas, o que representa a concretização de um dos supostos do princípio constitucional da igualdade entre homens e mulheres (artigo 14 da Constituição da Espanha). (NUNES, C., 2010, p. 367).

Contudo, ainda é forte a resistência à concretização dessa igualdade no

âmbito familiar. 81 Há quem veja como egoísmo o direito das mulheres a um tempo

só para elas, principalmente quando são esposas ou mães. Libertar-se das

atividades domésticas para fazer o que lhes aprouver implicaria subtrair do marido e

dos filhos o tempo destinado ao cuidado destes. Mas como pode haver garantia do

direito ao lazer sem esse tempo disponível?

4.4 O problema da educação para o lazer no âmbito da educação para os

direitos humanos

Etimologicamente, o verbo educar provém do Latim educare, que significa

criar, amamentar. Educar também é associado à forma latina educere, que tem o

sentido próprio de ―levar para fora, fazer sair, tirar de,‖ (FARIA, 1991, p. 189) e que

aponta para a ideia de educação como condução do indivíduo ―para fora‖, ou seja,

de processo no qual se procura tirar de cada um o melhor de si mesmo. Educar,

nesse sentido, é ajudar a pessoa a ser e crescer, é permitir que ela se torne livre,

como decorrência do desenvolvimento de suas potencialidades. Por isso, educação

deve envolver não apenas o aspecto da instrução, caracterizada pela transmissão e

apreensão do patrimônio cultural historicamente construído por cada sociedade, mas

também o da formação da consciência, com ênfase no cultivo de valores éticos e no

empoderamento.

Empoderamento é um neologismo nascido com os movimentos de direitos

civis nos Estados Unidos, na década de 1970, por meio da bandeira do poder negro,

81

Apesar das mudanças ocorridas desde a época de Virginia Woolf, ainda há muita resistência quando à repartição mais equitativa das tarefas domésticas por homens e mulheres. O estudo ―Demografia e Gênero‖, primeiras análises da Pnad 2007 feitas pelo Ipea, conclui que ―os homens resistem a compartilhar com as parceiras a responsabilidade pela casa e pelos filhos [...] ‗Apesar de a mulher brasileira estar assumindo o papel de provedora, ela continua sendo a principal responsável pelo cuidado doméstico, o que não representou variações expressivas no período.‖ (BRASIL, 2008, p. 78). O mesmo estudo destaca que, a despeito das mudanças na estrutura familiar do nosso país, a família brasileira continua sendo a ―esfera social mais refratária e resistente em direção à igualdade entre homens e mulheres‖ (ibidem, p. 78), o que pode ser constatado pelo alto índice de violência doméstica contra as mulheres.

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sendo logo utilizado pelo movimento feminista. É um termo já incorporado ao

discurso dos direitos humanos, sendo empregado para designar o processo pelo

qual as pessoas, a partir da tomada de consciência de sua condição, atuam no

sentido de se tornarem protagonistas de sua própria história.

No âmbito da educação para os direitos humanos, o favorecimento de

processos de empoderamento apresenta-se como uma das grandes metas, ao lado

da formação de sujeitos de direito e a educação para o ―nunca mais‖, ou seja, para

que não ser permita o retorno à barbárie perpetrada pelos totalitarismos. Neste

sentido, é emblemático o texto de Theodor Adorno (1995), Educação após

Auschwitz, no qual aquele autor afirma que a primeira de todas as exigências para a

educação é a de que Auschwitz jamais se repita. Para tanto, a educação há de ser

voltada em primeiro lugar para uma auto-reflexão crítica. Além disso, precisa

concentrar-se na primeira infância, pois, como lembra Adorno, é nessa fase da vida

que se forma todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde cometem crimes

bárbaros, como os praticados nos campos de concentração, ressaltando-se que

estes não eram apenas campos da barbárie, mas exemplos de um ―mundo

administrado‖, onde os atos de desumanidade foram perpetrados por pessoas que

não eram formalmente deseducadas.

Na educação da primeira infância, o lazer deve ocupar um espaço

privilegiado, e lazer de criança é, sobretudo, brincar. Nas brincadeiras e jogos, a

criança desenvolve não apenas a imaginação e a memória, mas pode aprender

lições de ética, convivendo prazerosamente com os outros, respeitando-lhes a vez e

a voz, bem como suas diferenças. Lições de ética ensinadas por meio das

brincadeiras podem contribuir para que, desde a infância, as virtudes sejam

assimiladas com prazer, afinal, como lembra Eduardo Bittar (2003), reportando-se à

filosofia aristotélica, virtude e prazer, longe de serem elementos antagônicos, são

conceitos que se exigem reciprocamente.82

82 Sobre a necessidade de permanente formação ética, a filosofia aristotélica nos ensina que ―a

nutrição do sentimento ético deve proceder desde a juventude, fazendo-se o cultivo das leis éticas a serem perseguidas em ato. E é especialmente difícil aos jovens fazerem das leis éticas normas de comportamento, pois não o meio-termo, mas o excesso ou o defeito é que estão a guiar o ânimo jovem. Tornando-se a lei ética um hábito, esta deixa de representar algo penoso e passa a decorrer espontaneamente da vontade humana de fazer do que é virtuoso algo atual, palpável e concreto.‖ (BITTAR, 2003, p. 1127). Por outro lado, sobre a importância do prazer na formação dos jovens, é interessante a concepção aristotélica acerca do papel da educação musical para a paidéia geral do espírito humano: ―A música participa da educação juvenil, e assim deve ser. Nenhum ensinamento lhes é ministrado com eficácia se não acompanhado de um certo prazer, constata Aristóteles. Este

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140

O ato de brincar é tão fundamental que há quem defenda que o lúdico é

anterior à cultura, uma vez que os animais brincam da mesma forma que os seres

humanos. Cachorros são capazes de brincar observando regras de não se

morderem com violência, fingindo ficarem zangados, e divertindo-se nessas

brincadeiras. (HUIZINGA, 2000, p. 5). E mais do que natural, o lúdico pode ser tido

como divino. Na Escritura Sagrada (Pr 8, 22-31), a Sabedoria aparece brincando e

alegrando-se na presença do Criador. Ela não é criatura, mas criadora; é Designer

do universo, identificada por São Tomás de Aquino como sendo o próprio Verbo

divino. Este, ao contrário do que se pode imaginar, não cria trabalhando, e sim

brincando,83 pois sendo Todo-Poderoso, Deus não precisa de esforço para criar.

Além disso, Ele não cria com objetivo de fabricar determinado produto para sua

utilidade, mas pelo simples prazer da criação, como parte da explosão do seu amor

superabundante.

Essa visão natural e divina do lúdico muitas vezes é obscurecida por

preconceitos. O livro O nome da rosa, de certa forma contribui para difundir a ideia

de que a teologia medieval censurava a brincadeira e o riso. A Idade Média, por sua

vez, estigmatizada como era das trevas, quase sempre é apresentada como época

de cerceamento do lúdico. Tais ideias, porém, não correspondem inteiramente à

realidade dos fatos. São Tomás, reverenciado no romance de Umberto Eco como o

doutor de Aquino, (1992, p. 37) não somente enfatizava o caráter lúdico da ação

criadora de Deus, como recomendava, a exemplo de grandes educadores da época,

que o ensino se desse um ambiente de alegria e prazer, sentimentos implícitos na

etimologia de escola (do grego skhole), como vimos no segundo capítulo. Além

disso, os homens e as mulheres medievais eram sensíveis ao lúdico, conviviam com

o riso, faziam piadas e brincadeiras, como observa Jean Lauand, ao tratar do lúdico

sensualismo parece ser próprio da idade, a psicologia aristotélica o perpassa a ponto de extrair a seguinte conclusão: por estar a música acompanhada de prazer, a idade juvenil lhe é própria para o aprendizado. O puro divertimento ou o puro diletantismo não são próprios desta fase. É certo que na primeira juventude se deve aprender música, para que, num segundo momento, passe-se a fruir de seus deleites, agora competentemente instruído para bem discernir e julgar o que seja a boa ou a má canção. Este diletantismo musical é próprio para todas as idades. Em Aristóteles, os efeitos benéficos da musicalidade são análogos àqueles produzidos pela ginástica sobre o corpo. Deve-se, pois, ter presente o quanto esta paidéia participa das preocupações de Aristóteles pela boa formação das bases da polis por meio de sua juventude.‖ (BITTAR, 2003, p. 1280).

83

A ideia da criação divina como trabalho é refletida na seguinte afirmação de Domenico de Masi: ―Milhões de cristãos interpretam a atividade criativa do homem como uma continuação da obra criadora de Deus, mas não ousariam jamais pensar no ócio humano como continuidade na terra do ócio divino. Eles aceitam pacificamente que Deus, o Criador, depois de ter-se esforçado por seis dias, repousou no sétimo.‖ (1999, p. 297-298).

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no pensamento de S. Tomás de Aquino e na pedagogia medieval. Exemplo disso

eram os festejos carnavalescos, em que celebravam o mundo às avessas, como

vimos no capítulo primeiro, além de manifestações culturais espontâneas, como o

teatro popular e os cantadores das feiras.

Diferente do que ocorria na Idade Média, o mundo às avessas da atualidade

parece não ser tanto o carnaval. Hoje em dia, brinquedo de criança é menos

imaginação e mais mercadoria; o ensino, por vezes, mais adestramento do que

estímulo à criatividade; e os jogos, mais para se assistir do que para se jogar. Pior

ainda quando um jogo, a exemplo no futebol, tão difundido em nosso país, torna-se

mais negócio do que esporte, e pretexto para a agressão ao outro, como tem

acontecido no caso da violência praticada por torcidas organizadas.84 Nesse

contexto, a educação para o lazer pode se constituir num dos elementos importantes

da educação para os direitos humanos.

Na primeira infância, essa educação deve ser voltada para ensinar a criança a

brincar, o que pode soar como absurdo, pois brincar, para a criança, parece algo

natural. Entretanto, se pensarmos que em nossa sociedade chegamos a fazer

campanha educativa para uma mãe amamentar o filho, temos de admitir que a

demarcação entre o natural e o não natural não é tão nítida quanto pode parecer à

primeira vista. No caso do lazer infantil, como pondera Marcellino (2006), a indústria

cultural para a criança cada vez mais toma o lugar da produção cultural da criança, o

que contribui para a alienação da própria infância. Esse alheamento atinge um nível

tão alto, a ponto de fazer com que o ato de brincar, que deveria ser um atributo

comum a essa fase da vida, passe a ser receitado por especialistas a pais e

professores, como meio de minimizar os efeitos danosos dessa alienação, sendo

importante salientar, como faz Marcellino, que não há somente um fator responsável

por esse estado de coisas:

Há a especulação imobiliária, restringindo os espaços para o brinquedo, há a própria industrialização do brinquedo, há o trabalho e as obrigações dos pais, que também interferem etc. No entanto, não tenho dúvidas em afirmar que um dos motivos é que as crianças não são consideradas como seres humanos, como valor em si mesmos, aqui e agora. E talvez, o principal motivo para que ocorra o furto do lúdico da infância esteja baseado na crença de que a criança, considerada como ―adulto em miniatura‖, tenha como finalidade única da existência a preparação para o futuro. Ora, o mundo do brinquedo, em essência, não se prende à preparação sistemática

84

Adorno já alertava para a ambiguidade do esporte que, por um lado, pode ter efeito contrário à

barbárie, por meio do fairplay, mas por outro, pode promover agressão, brutalidade e sadismo, especialmente no caso de espectadores .(1995, p. 126).

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para o futuro, mas à vivência do presente, do agora. (MARCELLINO, 2006: p. 36-37)

Poderíamos acrescentar aos problemas apontados por Marcellino, o

excessivo tempo gasto pelas crianças na internet e em entretenimentos eletrônicos.

Este problema, que pode levar a um lazer passivo e alienante, apresenta-se como

mais uma preocupação para aqueles que se opõem ao ―furto do lúdico da infância‖ e

à transformação da criança num ―adulto em miniatura,‖ fenômenos que mesmo não

sendo de hoje, ganham nova dimensão na atualidade, a ponto de especialistas

falarem até na possibilidade de extinção da infância em nosso mundo.85

Se na primeira infância a educação para o lazer pode contribuir para o

resgate do direito de ser criança, em outras fases da vida ela pode ajudar na

vivência do tempo disponível de maneira edificante. Em nossa sociedade há uma

grande preocupação com a preparação para o trabalho, tanto que esta é uma das

metas da educação, de acordo com o texto da nossa Constituição Federal. No

entanto, não se dá muita importância à preparação para a boa vivência do tempo do

não-trabalho. Em geral temos dificuldade em lidar com o ócio, não raro associado ao

tédio, à perda de tempo ou à inutilidade de não poder trabalhar, que pode levar à

depressão, como sói acontecer após a aposentadoria.

A educação para o lazer também pode integrar uma luta contra-hegemônica,

diante do rolo compressor da indústria cultural e da excessiva aceleração do ritmo

de vida, que alienam e desumanizam. Se for desenvolvida com espírito crítico, ela

pode ser entendida como ―instrumento de defesa contra a homogeneização e

internacionalização dos conteúdos vinculados pelos meios de comunicação de

massa.‖ (MARCELLINO, 1995, p. 71). Por outro lado, ela pode servir de proteção

contra os malefícios resultantes do alucinante ritmo de vida a que somos submetidos

no mundo atual.

85

O conhecido estudo de Ariès (2006) apresenta a infância como uma descoberta da modernidade, quando no seio da família burguesa e da instituição escolar, as crianças foram apartadas dos adultos, deixando de aprender as lições de vida diretamente com estes. Por outro lado, vários especialistas britânicos, em carta dirigida ao jornal Daily Telegraph, no ano de 2006, advertiram que fatores típicos da vida atual, como alimentos industrializados, marketing, educação escolar excessivamente competitiva e entretenimentos eletrônicos estão ―envenenando‖ a infância, podendo levá-la à extinção, conforme notícia disponível no site www.telegraph.co.uk/news/1528642/Junk-culture-is-poisoning-our-children.html, acesso em 09/07/2010.

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O ritmo de vida, como já observava Alvin Toffler (1998), torna-se cada vez

mais acelerado, nas sociedades em que tudo tende a ser instantâneo, desde a

comida até a educação e a construção de cidades. Com essa aceleração, o tempo

não apenas parece encolher, mas a vida se torna uma grande correria. Por isso,

segundo Toffler, o ritmo de vida deveria ser encarado com mais seriedade, como

variável que exerce influência fundamental sobre o comportamento humano:

Ela é uma variável psicológica de crucial importância, que sempre foi ignorada. Durante as eras passadas, quando as mudanças na sociedade eram lentas, os homens podiam ─ e assim o faziam ─ permanecer inconscientes dessa variável. No desenrolar da vida inteira de uma pessoa, o ritmo poderia variar muito pouco. O esforço da aceleração, no entanto, altera drasticamente este quadro. Pois é precisamente através de uma aceleração no ritmo da vida que a crescente velocidade de amplas mudanças científicas, tecnológicas e sociais se faz sentir na vida do indivíduo. Grande parte do comportamento humano é motivado ou pela atração, ou pelo antagonismo em relação ao ritmo de vida imposto ao indivíduo pela sociedade ou pelo grupo dentro do qual ele se encontra. O fracasso em compreender este princípio é o que está por trás da perigosa incapacidade da educação e da psicologia de preparar as pessoas para um desempenho proveitoso numa sociedade superindustrializada. (1998, p. 48).

Preocupação idêntica pode ser percebida no pensamento de Milton Santos,

segundo o qual a existência do nosso mundo parece submeter-se ao signo da

velocidade. Esta, movida pela competitividade, pelos avanços tecnológicos e pelo

fascínio da instantaneidade, especialmente na troca de informações, tornou-se uma

necessidade, num mundo em que pressa virou virtude. Mais do que necessidade, a

velocidade passou a ser cultuada, juntamente com a tecnologia de ponta, num

mundo em que as grandes empresas transnacionais adquiriram dimensões

planetárias. Ocorre que nem todas as pessoas, empresas e instituições são

altamente velozes. Muitas delas não podem, outras não querem e algumas nem

precisam ser. E como nos alerta Milton Santos, essa velocidade desmesurada e

própria de uma minoria, ―não tem nem busca de sentido. Serve à competitividade

desabrida, coisa que ninguém sabe para o que realmente serve, de um ponto de

vista moral ou social.‖ (2002, p. 163). A educação para o lazer pode servir como

contraponto ao culto da velocidade exacerbada, haja vista que o lazer deve

representar, acima de tudo, um tempo liberto da sofreguidão provocada pelo corre-

corre da vida.

É claro que, como qualquer prática educacional formal ou não formal, a

educação para o lazer não está livre de problemas, suscitando muitas interrogações

para as quais não se tem respostas seguras. A principal delas, segundo Marcellino

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(1995), reside no dilema de como se pode educar para o lazer, conciliando a

propagação de valores e conteúdos considerados socialmente desejáveis, com a

liberdade de escolha, que é uma característica essencial do lazer. Afinal, se este

representa a possibilidade de cada um fazer o que quiser do seu tempo disponível, a

educação para o lazer poderia resultar em cerceamento dessa liberdade. Todavia,

ao mesmo tempo que suscita essa questão, aquele autor se posiciona diante do

referido dilema:

Creio que a escolha será tão mais autêntica quanto maior for o grau de conhecimento que permita o verdadeiro exercício da opção entre alternativas variadas. Além disso, as barreiras impostas pelos preconceitos e pelas várias correntes ideológicas, verificadas no plano cultural, poderão ser relativizadas com mais facilidade, à medida que o lazer vá sendo convenientemente entendido em termo dos seus valores e funções. (MARCELLINO, 1995, p. 71).

Portanto, também no âmbito do lazer, o exercício da liberdade requer o

máximo de conhecimento a respeito dos objetos de nossas escolhas. Não são livres

as decisões tomadas sob o véu da ignorância. Além disso, é necessária a tomada de

consciência sobre as consequências de nossas escolhas, o que pressupõe não

somente acesso a informações, mas formação ética do escolhedor. Em outras

palavras, o exercício da liberdade, na esfera do lazer como em qualquer outra

atividade humana, não prescinde da educação. Esta é fundamental para que o

exercício do direito ao lazer possa contribuir para o empoderamento e para a

formação de sujeitos de direito, harmonizando-se com os objetivos da educação

para os direitos humanos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conclusão de um trabalho monográfico normalmente implica uma volta ao

começo. Terminada a exposição, a tendência é que se queira atar as duas pontas

do texto, procurando conferir-lhe a aparência de um todo coerente, acabado em si

mesmo, que tenha começo, meio e fim, embora o fim não seja necessariamente um

ponto final, no sentido de fechamento das questões suscitadas ao longo da

pesquisa. Implica, igualmente, um balanço do que foi alcançado ao final do trabalho,

à luz do que foi proposto em seu início ─ o que guarda também o sentido de volta ao

começo ─ e, na medida do possível, a sugestão de saídas viáveis para o

enfrentamento dos problemas suscitados. O procedimento não vai ser diferente no

caso deste trabalho.

De início, foi dito que o propósito da pesquisa era investigar, de forma

sistemática, os principais problemas da teoria jurídica do lazer como direito

fundamental e as dificuldades para a eficácia social desse direito. Para a abordagem

do tema, voltada para discussão da questão central do trabalho ─ quais as

dificuldades para justificação e garantia do direito ao lazer ─, foi escolhido o método

dialético, sendo o trabalho estruturado em quatro capítulos, relacionados aos

objetivos específicos da pesquisa.

No primeiro capítulo, dedicado à evolução histórica do lazer no Brasil e no

mundo, vimos que a identificação da origem do lazer é controversa. Dependendo da

compreensão do que seja lazer, este pode ser considerado como fenômeno

existente já nas primeiras civilizações ou inventado apenas na modernidade.

Todavia, a despeito dessa controvérsia, os registros históricos comprovam

diferenças marcantes entre o lazer das camadas mais abastadas e o das

populações mais pobres, desde as primeiras civilizações, a exemplo do que

acontecia na Grécia e em Roma. No Brasil, a história do lazer também é marcada

por conflitos sociais, presentes desde o choque cultural decorrente da colonização

portuguesa até os dias atuais, em que as desigualdades ainda são os maiores

obstáculos para a garantia dos direitos fundamentais.

No segundo, em que foi discutida a delimitação conceitual do lazer e as

relações deste com outras esferas da organização social, constatamos que não é

fácil definir o lazer. Trata-se de um fenômeno complexo e entrelaçado com muitas

outras atividades humanas. Por isso, talvez seja mais fácil dizer o que ele não é, do

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que o que ele é, uma vez que o lazer não é uma categoria comportamental

rigorosamente delimitada (até trabalho pode ser lazer), como pondera Dumazedier,

sendo preferível, na direção do que propõe Bellefleur, compreendê-lo como

processo vital polivalente e multiforme, sem conteúdo previamente definido, mas que

se apresenta sempre como ato resultante de escolha pessoal para a vivência

prazerosa do tempo disponível.

O estudo feito no terceiro capítulo, por sua vez, permite-nos afirmar que o

lazer é um bem fundamental para a dignidade humana, tanto quanto o trabalho, haja

vista que este não é a finalidade única da vida. Sem o direito ao lazer, a dignidade

humana é uma dignidade amputada. Desse modo, o direito ao lazer é relevante para

os direitos humanos, seja no seu aspecto teórico de doutrina construída sobre a

noção de dignidade humana, seja no aspecto prático, de luta pela universalização da

garantia dessa dignidade. Ao mesmo tempo, o acesso de mais pessoas à fruição do

direito ao lazer pode representar a integração dos indivíduos no processo de

expansão e ampliação da cidadania. Essa constatação, porém, não impede a

existência de vários problemas relacionados à justificação e garantia do direito lazer

como direito fundamental, tema que se apresenta como centro de interesse deste

trabalho, e que foi abordado de forma mais específica no quarto capítulo.

Verificamos no quarto capítulo que, mesmo no âmbito da ciência jurídica, a

expressão ―direitos fundamentais‖ não é unívoca. Como se não bastasse, a

classificação destes é problemática, principalmente quando se procura associá-los

às gerações ou dimensões de direitos humanos, que carecem de consistência

teórica e de correspondência histórica. Daí que o lazer, tradicionalmente incluído

entre os direitos sociais e, por isso, considerado direito de crédito (e não de

liberdade), termina tendo o seu valor minimizado tanto no plano teórico, quanto no

prático. No primeiro caso, contribuem para a diminuição do seu valor, entre outros

fatores, a grande força da ideologia do trabalho e a alienação do lazer na sociedade

de consumo. Já no aspecto de sua garantia, o direito ao lazer sofre restrições

advindas da concepção de reserva do possível, o que dificulta sua integração e

valorização no âmbito das políticas públicas, especialmente quando voltadas para as

classes mais pobres e para as minorias sociais. A estes problemas somam-se os

obstáculos culturais à fruição do tempo livre, a exemplo do que acontece no caso do

lazer das mulheres, cujo enfrentamento requer, entre outras coisas, uma adequada

educação para o lazer, tema que encerrou o último capítulo.

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Portanto, a partir de tudo o que foi visto e discutido, é possível concluir que a

inclusão do lazer, pelo nosso texto constitucional, entre os direitos sociais

considerados fundamentais, não é capaz, por si só, de tornar esse direito efetivo

para todos. As resistências culturais, muitas delas derivadas da ideologia do trabalho

e da falta de conhecimento sobre o significado e a dimensão do lazer, dificultam a

justificação deste como direito fundamental. Por outro lado, a realidade

socioeconômica, marcada pela escassez de recursos e pelas desigualdades sociais,

impedem a garantia desse direito a grande parte da população.

Esses problemas, todavia, não são suficientes para transformar o direito ao

lazer numa insinceridade normativa ou ilusão constitucional, nem impedem que se

façam conjecturas para resolvê-los ou minimizá-los. Ninguém espere, obviamente,

soluções fáceis para problemas tão complexos. No entanto, a pesquisa científica

não pode abrir mão da tarefa de pensar soluções para os problemas humanos,

ainda que não tenha respostas para todas as indagações por ela suscitadas, não

sendo diferente no caso da ciência jurídica.

Qualquer tentativa de solução para os problemas de justificação do direito ao

lazer passa pela resistência à idolatria do trabalho. É importante demonstrar o

equívoco da perpetuação da ideologia do trabalho como pensamento hegemônico,

numa nova realidade, em que a sociedade do trabalho vai perdendo a supremacia,

passando a ser, cada vez mais, ―sociedade do tempo escolhido‖ e da

―multiatividade.‖86 Numa sociedade como esta, não é absurdo sonhar com um

trabalho gratificante, capaz de trazer satisfação para quem o desenvolve, reunindo

―liberdade de escolha; condições de realização; motivação para efetivação;

remuneração justa; tempo adequado para o lazer etc,‖ (CECATO; COUTINHO,

2009, p. 116) e que não seja, como hoje, privilégio de pouquíssimos felizardos. Para

tanto, é relevante a procura de um novo sentido para o trabalho humano, que não

precisa ser visto necessariamente como o centro da existência humana: ―É preciso

aprender a vê-lo sob um outro olhar: não mais pensá-lo como algo que possuímos

ou não possuímos, mas como algo que fazemos.‖ (GORZ, 2004, p. 9). Mas como é

86 A expressão ―sociedade do tempo escolhido‖ e da ―multiatividade‖ é tomada de empréstimo de

André Gorz. Para este, os grandes problemas da sociedade se devem ao atraso do político em relação ao avanço das mentalidades. Daí que a solução para esses problemas também é de natureza política, localizando-se, de acordo com as palavras daquele autor: ―na definição de novos direitos, de novas liberdades, de novas seguridades coletivas, de novos arranjos do espaço urbano, de novas normas sociais pelas quais o tempo escolhido e as atividades escolhidas não se inscreverão mais à margem da sociedade, mas no interior mesmo de uma escolha de sociedade: de uma ‗sociedade do tempo escolhido‘ e da ‗multiatividade.‖ (2004, p. 77).

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possível falar em perda da centralidade do trabalho, se este deve ser pensado como

algo que fazemos?

Zéu Palmeira Sobrinho (2006), tratando do contexto da crise teórica sobre a

centralidade do trabalho, situa André Gorz entre os que negam tal centralidade, mas

que destacam o aspecto positivo dessa negação, que poderia ensejar a

oportunidade de libertação do trabalho do jugo do capitalismo. Acrescenta ainda,

com base na divisão formulada por Sérgio Lessa, que no tocante à discussão sobre

a centralidade do trabalho, existem três tipos de centralidade: ontologócia, política e

da cotidianidade. Desse modo, ainda que se possa falar em perda da centralidade

do trabalho, esta só poderia ocorrer no âmbito da cotidianidade ou mesmo da

centralidade política, jamais quanto à centralidade ontológica, que expressa a visão

do trabalho como categoria ampla, a-histórica e indissociável do agir histórico do ser

humano:

O trabalho, diferentemente do capital, é o elemento ou mediação imprescindível à existência do ser social. Isso não significa dizer que a realidade do homem reduz-se ao elemento trabalho, mas que este ─ em face do seu caráter ontológico ─ não pode ser superado. Resulta, ainda, que o homem, ao distinguir a essência a-histórica do trabalho e o caráter histórico do capital, conceba as condições e as possibilidades de um dia vir a superar o modo de produção capitalista. (PALMEIRA SOBRINHO, Zéu, 2006, p. 48).

A mudança de percepção sobre a noção de trabalho tem implicações no

redimensionamento do próprio direito trabalhista,87 que necessita dilatar suas atuais

fronteiras dogmáticas e epistemológicas, para abrigar em seu seio não apenas a

esfera restrita do trabalho subordinado, mas também ―a tutela e regulação de todo e

qualquer trabalho emanado da ação humana,‖ (NUNES, C., 2009, p. 23) no âmbito

da qual merece destaque o direito a um trabalho decente, cuja universalização

passou a ser a grande meta da OIT.88

87

Arnaldo José Duarte do Amaral procura demonstrar, inclusive, a necessidade de uma nova teoria geral do direito do trabalho, condizente com o Estado democrático de direito, e que aponta para um novo direito do trabalho, que não cuidará apenas do trabalho: ―tratará, também do direito ao trabalho. Não de qualquer trabalho, mas um trabalho decente nos moldes propostos pela OIT, ou seja, direito ao labor criativo e o contraponto teórico deste direito ao labor: o direito fundamental ao lazer.‖ (2008, p. 140).

88

O conceito de trabalho decente surgiu a partir de 1997, com o Relatório do Diretor Geral da OIT, sobre a 87ª Conferência Internacional do Trabalho, no qual Juan Somavia afirma que ―o objetivo fundamental da OIT, hoje, é que cada mulher e cada homem possam ter acesso a um trabalho decente e produtivo, em condições de liberdade, eqüidade, segurança e dignidade.‘ Não é complexo concluir que o conceito contido na assertiva não prescinde de direitos como remuneração justa; saúde e descanso; seguridade social e, acima de tudo, o próprio trabalho, pressuposto de todos os demais.‖ (CECATO, 2007, p. 364).

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Do mesmo modo que acontece o com o trabalho, o sentido do lazer também

precisa ser redimensionado. Na sociedade do ―tempo escolhido‖ e da

―multiatividade‖, o lazer não precisa ocupar a centralidade da consciência e das

atividades humanas, como é caso do trabalho, na sociedade do trabalho, e do

consumo, na sociedade do consumo. Pois uma sociedade do lazer continuaria

sendo uma sociedade de único centro, e a visão de mundo que focaliza apenas o

centro, como vimos, tende a ser excludente e reducionista, condenando à

marginalidade tudo o que não é centro. No entanto, se a visão de mundo não

converge para um único ponto, e sim para múltiplos elementos da realidade em sua

complexa interação, não só o trabalho, mas o lazer, também pode ser decente,

como devem ser decentes o consumo, a política, a religião, a economia, entre outras

atividades humanas, sem que nenhuma delas tiranize as demais.

Um lazer decente, ao qual se possa conferir mais importância como direito

fundamental, também deve tentar resistir à alienação da sociedade de consumo.

Nesta predomina o mercolazer, amplia-se o espectadorismo e ganham força as

formas degenerativas de lazer, o que contribui para a propagação da ideia de que o

aumento do tempo disponível é um mal social, por gerar mais oportunidades das

pessoas não fazerem nada ou, pior ainda, ocuparem seu tempo com atividades

consideradas socialmente negativas. Entretanto, o aumento do tempo que cada um

tem para si mesmo pode se constituir não num redutor, e sim num multiplicador da

prática de boas atividades, que não precisam ser rentáveis, nem se submeterem à

economia de mercado, e que devem ser estimuladas desde os primeiros anos de

vida, como pondera André Gorz:

É preciso que cada um, desde a infância, seja levado e solicitado pela multiplicação à sua volta de grupos, equipes, ateliês, clubes, cooperativas, associações, redes nas quais pode inserir-se em suas atividades e projetos. Atividades artísticas, políticas, científicas, ecosóficas, esportivas, artesanais, relacionais; trabalhos de auto-produção, de reparação, de restauração do patrimônio natural e cultural, de ordenação do meio ambiente, de economia de energia: ―centros infantis‖, ―centros de saúde‖, redes de trocas de serviços de ajuda mútua e de assistência mútua etc. (2004, p. 112-113)

As atividades desses grupos podem se constituir em lazeres voltados para o

desenvolvimento pessoal. Além disso, podem proporcionar o acesso ao lazer para

um número maior de pessoas, minimizando os efeitos da pobreza e escassez de

recursos, da insensibilidade política e dos preconceitos culturais, apontados neste

trabalho como grandes problemas para a garantia do direito fundamental ao lazer.

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Quando se fala em garantia de direitos sociais fundamentais, como o lazer, há

uma tentação de atribuir aos poderes públicos a responsabilidade exclusiva por

ações destinadas a assegurar o pleno exercício desses direitos. Essa tentação é até

justificável, uma vez que os direitos sociais econômicos e culturais são tidos

tradicionalmente como direitos que exigem uma prestação do Estado, grande

responsável pela promoção de políticas públicas relacionadas a esses direitos e, no

caso do Estado-Juiz, pela concretização da garantia a esses direitos, nas lides que

lhes são submetidas a julgamento. Todavia, nem os direitos sociais são, de fato,

direitos estritamente de crédito, como pudemos constatar nesta pesquisa, tampouco

as políticas públicas para garanti-los podem ter êxito sem a parceria dos poderes

públicos com a sociedade civil.

Tomemos o exemplo do lazer das crianças e adolescentes. Para estes, de

acordo com o art. 16, IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), brincar,

praticar esportes e divertir-se, que não são outra coisa se não atividades de lazer,

fazem parte do direito à liberdade. Ora, se o direito à liberdade é incluído

tradicionalmente nos direitos de primeira geração, considerados direitos dotados de

eficácia negativa, o direito ao lazer das crianças e adolescentes também deve ser

dotado dessa mesma eficácia, implicando, portanto, um não agir estatal, bem como

a possibilidade de busca da tutela judicial no caso de sua violação, seja pelo Estado,

seja por particulares.

Essa eficácia negativa do direito ao lazer também pode ser verificada em

decisões proferidas na Justiça do Trabalho, quando se comprova a exigência

abusiva, pelos empregadores, de trabalho extraordinário dos seus empregados.89

Esse abuso, aliás, é tão comum, que levou a jurisprudência sumulada do Tribunal

Superior do Trabalho (TST)90 a incluir as horas extras habituais no cômputo das

verbas trabalhistas, o que não deixa de ser uma institucionalização da excrescência,

pois o que é extra, logicamente, não pode ser habitual. (COSTA NETO, 2000).

Por outro lado, a participação da sociedade civil no enfrentamento dos

problemas relativos à garantia do direito ao lazer tanto pode acontecer por meio da

atuação de organizações não estatais que desenvolvem atividades de lazer, quanto

89 Uma dessas decisões, que se tornou paradigmática por seu pioneirismo, é a sentença do Juiz do

Trabalho Carlos Hindemburg de Figueiredo, da 9ª Vara do Trabalho de João Pessoa, na Paraíba, prolatada nos autos do proc.00279.2009.026.13.00-0, cujo texto pode ser consultado no site do TRT da 13ª Região. 90

V. súmulas n. 24, 45, 63 e 172 do TST.

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de todos os grupos sociais que têm o dever fundamental de promover a educação,

da qual faz parte a formação para os direitos humanos, entre os quais está o lazer.

Educação, como se depreende da leitura do artigo 205 da Constituição Federal, é

muito mais do que ensino escolar, cabendo não apenas ao Estado, mas à família e à

sociedade, o dever de promovê-la e incentivá-la.

A família, a comunidade e a sociedade, por sua vez, têm o dever fundamental

não apenas de educar para o lazer, mas de assegurar esse direito a crianças e

adolescentes, de forma prioritária, de acordo com a redação do artigo 227 da

Constituição, aprimorada no artigo 4º do ECA. Nesse caso, é indispensável a

tomada de consciência dos cidadãos e da sociedade para o cumprimento desse

dever fundamental, e da co-responsabilidade na garantia do direito ao lazer às

pessoas em desenvolvimento.

Essa tomada de consciência é importante não somente no que diz respeito ao

direito ao lazer das crianças e adolescente, mas à garantia de todos os direitos

fundamentais dos cidadãos. De modo geral, somos educados para reivindicar

direitos, enquanto a educação para os deveres é relegada a segundo plano, numa

hipertrofia de direitos, que ―guarda conexão com a noção de um cidadão pouco (ou

quase nada) comprometido com a sua comunidade e seus semelhantes.‖ (SARLET,

2008, p. 241). Por outro lado, uma educação que despreza o comprometimento

social não forma autênticos cidadãos, e sim ―deficientes cívicos‖, expressão utilizada

por Milton Santos, quando ele discute os objetivos da educação.

Para aquele autor, a discussão sobre os objetivos do processo educacional é

imprescindível para definir o modelo de país que queremos construir. A educação,

que deve harmonizar interesses individuais e sociais, tem como seu grande

referencial a sociedade. É esta, em última análise, que condiciona todo o processo

educacional. Ocorre que a globalização perversa transforma a sociedade no mundo

do individualismo egoísta, do ―vale-tudo‖ e do ―salve-se quem puder,‖ sujeitando o

próprio projeto educacional a essa lógica deplorável, para a qual contribui uma série

de fatores:

[...] a combinação atual entre a violência do dinheiro e a violência da informação, associadas na produção de uma visão embaralhada do mundo; a perplexidade do presente e do futuro; um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa cegueira radical que reforça as tendências à aceitação de uma existência instrumentalizada. (SANTOS, M., 2002, p. 151).

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A educação para o lazer, no âmbito da educação para os direitos humanos,

pode ajudar a desembaralhar essa visão de mundo, diminuindo a cegueira da

aceitação de uma existência instrumentalizada. Pois a vivência plena e edificante do

direito ao lazer, nas sociedades em que cresce o tempo disponível, pode ser um

poderoso instrumento para o ser humano recuperar o poder sobre sua vida, vivendo

melhor, mesmo com menos trabalho.

Educar para o lazer, nesse contexto, insere-se no projeto de construção de

uma ética do tempo livre, que pode retirar sua inspiração na skhole grega, ética

imaginada por Sebastian de Grazia, André Gorz, Domenico de Masi e Dumazedier,

entre outros. A construção de tal ética, por sua vez, requer a formulação de uma

nova ―teoria diacrônica da produção do tempo de lazer em interação com a

transformação correspondente do conjunto dos tempos sociais,” (DUMAZEDIER,

1994, p. 186) tarefa que não é fácil, pois, como vimos, o lazer é fenômeno complexo,

sobre o qual ainda há muito o que aprender, principalmente no que tange ao seu

papel na criação do ―homem novo‖, aquele que, no dizer de Dumazedier, é capaz de

―mudar pouco a pouco, através das rupturas mais ou menos conflituosas, o equilíbrio

entre o tempo social para si mesmo e os tempos socialmente compromissados ou

obrigatórios, assim como a ‗estrutura simbólica‘ de todos os tempos sociais.‖ (Ibid.,

194). Todavia, apesar das dificuldades que envolvem o tratamento de um tema tão

complexo, não se pode perder de vista que a construção da ética do tempo livre

pode contribuir para a universalização do direito ao lazer e, por conseguinte, para o

desenvolvimento pleno das capacidades humanas, o que implica, em última análise,

contribuição para reduzir a pobreza, haja vista que esta, como nos faz ver Armatya

Sen, (2010) não se confunde com baixa renda, constituindo-se, sobretudo, na

privação de capacidades básicas do ser humano.

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