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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MARICILDA DO NASCIMENTO FARIAS As representações dos negros nos livros escolares utilizados em Mato Grosso na Primeira República (1889 – 1930) Cuiabá-MT 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MARICILDA DO NASCIMENTO FARIAS

As representações dos negros nos livros escolares utilizados em Mato Grosso na Primeira República (1889 – 1930)

Cuiabá-MT 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MARICILDA DO NASCIMENTO FARIAS

As representações dos negros nos livros escolares utilizados em Mato Grosso na Primeira República (1889 – 1930)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação no Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação na Área Educação, Cultura e Sociedade, Linha de Pesquisa História da Educação. ORIENTADOR: PROF. DR. NICANOR PALHARES SÁ

Cuiabá-MT 2009

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F219r Farias, Maricilda do Nascimento. As representações dos negros nos livros escolares utilizados em Mato Grosso na Primeira República (1889-1930). / Maricilda do Nascimento Farias – Cuiabá (MT): A Autora, 2009. 177 p.: il.; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Nicanor Palhares Sá. Inclui bibliografia.

1. Livros Escolares. 2. História da Educação. 3. Representações dos negros. I. Título. CDU: 37(94)(=414.02)

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DEDICATÓRIA

A minha mãe, Maria Faustina, mulher forte, destemida, que na busca de realizar o seu sonho, formar os quatro filhos, tornou-se retirante.

Ao meu filho, Pedro Lucas Camargo Farias, que soube compreender as minhas ausências, que por várias noites dormiu em meio aos livros espalhados na cama e, ainda muito pequenino, tinha que pular pilhas de livros para chegar até a mamãe em busca de um abraço e um beijinho. Filho, acabou!!!

Ao meu namorado, Marcos Roberto Gonçalves, pelo companheirismo incondicional e por cultivar o nosso amor nos momentos mais difíceis desta trajetória.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela vida, por iluminar os caminhos que trilhei e pela sua infinita misericórdia.

Ao professor doutor Nicanor Palhares Sá, por me oportunizar desfrutar a exigência inquestionável de sua orientação.

Aos professores integrantes da banca examinadora, Circe Maria Fernandes Bittencourt e Lourenço Ocuni Cá, pela atenção e pelas contribuições no processo de qualificação.

À professora doutora Marlene Gonçalves, que me presenteou com amáveis ensinamentos durante o período de estágio e ao longo da tessitura desta pesquisa.

À professora doutora Elizabeth Madureira Siqueira, pelas valiosas sugestões e contribuições nos primeiros passos deste trabalho.

Aos professores Renilson Rosa Ribeiro e Marco Antônio de Oliveira, pelo pronto atendimento as minhas solicitações.

A Maria Auxiliadora, pela atenção e revisão criteriosa deste texto.

À funcionária da Biblioteca Nacional, Geni, pela localização de alguns livros escolares.

Aos funcionários da Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Educação, pela afabilidade no atendimento a mim dispensado.

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AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

Ao meu pai, João Saturnino de Farias, e aos meus irmão, Juliana, Mauricélia e Mauricio, por tudo que representam na minha vida e pela convivência fraterna.

A minha sempre amiga Luciana do Carmo de Assis e Silva, pelo incentivo, companheirismo, sugestões e sábias críticas construtivas.

A Isaura, Antônio, Adria, André, Meyre e Yallen, por possibilitar-me realizar um sonho.

A Salete, Carvalho e Karita, pela acolhida amável e por proporcionar-me o tão valioso alento familiar.

A Luciene dos Santos, pela compreensão por minhas ausências e pela fiel amizade.

A Mary Diana, pelo apoio fraternal na organização sistemática desta pesquisa.

A Nailza Barbosa, pelo companheirismo, cumplicidade e amizade construída.

A Cláudia Regina Pinheiro da Silva, pela compreensão, amizade, viabilização do término desta investigação e pelo exemplo de liderança.

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RESUMO

Este trabalho tem por objetivo perscrutar as representações dos negros nos livros

escolares adotados em Mato Grosso na Primeira República (1889-1930). Esse recorte

temporal contempla os primeiros anos da abolição dos escravos, a instauração da

República, o ideário republicano educacional, as questões do nacionalismo e o

surgimento, no Brasil, das teorias racistas, utilizadas na construção do mito da

democracia racial. A análise documental empreendida na investigação pauta-se em

relatórios de presidentes do Estado, em regulamentos da Instrução Pública, no

regimento interno de escolas, em atas do Conselho Superior da Instrução Pública, em

livros de almoxarifado e em materiais didáticos utilizados em Mato Grosso no período

em questão. Trata-se de uma pesquisa histórica subsidiada pelas áreas de História

Cultural e de História da Educação. A articulação das fontes documentais e

bibliográficas evidencia que, com a instauração da República, a idéia de nacionalidade

foi permeada por um conjunto de concepções e de representações sobre a população

brasileira, com ênfase na sua composição étnico-cultural. A presença do elemento negro

e do mestiço era, não raro, tomada como fator explicativo da inferioridade racial e do

atraso cultural do país. A escola deveria refletir os princípios e anseios da nova ordem

republicana que se pretendia instaurar. Mais do que isso, deveria ser um veículo de

transmissão dos valores do novo regime. Entretanto, em meio a um discurso que visava

à homogeneidade nacional, ao analisar alguns livros escolares amplamente utilizados no

início da República em diversas escolas mato-grossenses e brasileiras, percebe-se que,

mesmo com as imposições políticas, institucionais, sociais e editoriais, vários autores de

obras didáticas, ao elaborar a transposição didática, não se eximiram de veicular suas

apropriações diante das representações postas para aquele contexto.

Palavras-chave: Livros escolares. História da Educação. Representações dos negros.

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ABSTRACT

This work aims at scanning the representations of Black people in the school books in

use in the state of Mato Grosso during the First Republic (1889-1930). This time span

covers the first years of the abolition of slavery, the establishment of the Republic, the

republican ideals of education, the issues of nationalism and the emergence in Brazil of

racist theories, used in the building of the myth of racial democracy. The documentary

analysis undertaken in this research is based on Chairmen of the State’s reports, on

Public Instruction regulations, on schools internal rules, on minutes from the Higher

Board of Education, on warehouse ledgers and on didactic material used in the state of

Mato Grosso during the mentioned period. This is a historical research provided by the

areas of Cultural History and of History of Education. The connection of documentary

and bibliographic sources shows that, with the establishment of the Republic, the idea of

nationality was permeated by a set of concepts and representations about the Brazilian

population, with emphasis on its ethnic and cultural composition. The presence of the

Black element and of the Mestizo was often taken as an explanation to racial inferiority

and to the country’s cultural backwardness. The school should reflect the principles and

aspirations of the new republican order that was pretended to be installed. More than

that, it should be a vehicle for transmitting the values of the new regime. However, in

the middle of a speech which aimed at national homogeneity, when analyzing some

textbooks widely used at the beginning of the Republic in various schools in the state of

Mato Grosso and in Brazil, we have found that even with the political, institutional,

social and publishing impositions, several authors of didactic works, when preparing the

didactic transposition, did not avoid spreading their own appropriations of the

representations made for that specific context.

Keywords: School books. History of Education. Representations of the Black people.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................ 14

1 - MENTIRAS QUE PARECEM VERDADES........................................................... 22

1.1 – A Escola Republicana na lógica da modernidade................................................ 32

1.2 – Negros: incluídos ou excluídos na moderna Escola Republicana?...................... 38 1.3 – Grupos Escolares e livros didáticos: símbolo da homogeneização do saber...............................................................................................................................

51

1.4 – Atas e Regulamentos do Conselho Superior da Instrução Pública de Mato Grosso............................................................................................................................

57

2 – O ENSINO DE HISTÓRIA E A PRODUÇÃO DIDÁTICA..... ............................. 70

2.1 – Livros escolares: idéias e ideais em circulação no Estado de Mato Grosso na Primeira República........................................................................................................

95

2.2 – Livros didáticos veiculados e utilizados nas Escolas mato-grossense na Primeira República........................................................................................................

101

2.3 – O circuito do Livro Escolar.................................................................................. 108

3 – VERDADES QUE PARECEM MENTIRAS........................................................... 112

3.1 – Lições de História do Brasil, de Joaquim Manoel de Macedo............................. 113

3.2 – Nossa Pátria, Rocha Pombo................................................................................. 120

CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................

135

REFERÊNCIAS................................................................................................................

142

ANEXOS............................................................................................................................

151

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LISTA DE QUADROS

Quadro 01 - Crianças entre 5 e 11 anos freqüentadoras da escola segundo o Recenseamento de 1890 na Freguesia, em Cuiabá.........................

43

Quadro 02 - Atribuições do Conselho Literário e do Conselho da Instrução Pública.............................................................................................

58

Quadro 03 - Composição do Conselho Superior da Instrução Pública de Mato Grosso (1889-1910)........................................................................

59

Quadro 04 -

Seleção de conteúdos do programa de ensino de História do Liceu Cuiabano ano letivo de 1887................................................

77

Quadro 05 - Corpo docente das diversas cadeiras do Liceu Cuiabano, no período de 1880 a 1896...................................................................

89

Quadro 06 - Conteúdos de Educação Cívica e Moral e Historia do Brazil......... 91

Quadro 07 - Livros de História utilizados nas escolas mato-grossense na Primeira República..........................................................................

102

Quadro 08 - Mapa do almoxarifado: entrada e saída de livros didáticos de História............................................................................................

102

Quadro 09 - Distribuição das matrículas dos grupos escolares de Mato Grosso 103

Quadro 10 - Títulos localizados dos livros didáticos de História, utilizados nas

escolas mato-grossenses, durante a Primeira República.................

116

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01 - Livro Ata do Conselho Superior da Instrução Pública de Mato Grosso 1903 a 1929...........................................................................

56

Figura 02 -

Regimento Interno do Conselho Superior da Instrução Publica do Estado de Mato Grosso de 1903........................................................

56

Figura 03 - Escala hierárquica dos espaços de poder entre os presidentes de província, inspetores e professores....................................................

57

Figura 04 - Capa do livro "Breves lições de História do Brasil" de Creso Braga (1922)................................................................................................

62

Figura 05 - Autógrafo de Ruy Barbosa................................................................ 65

Figura 06 - Capa do livro didático "Minha Pátria" de J. Pinto e Silva (1922)..... 67

Figura 07 - Desenho da fachada do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.................................................................................................

69

Figura 08 - Livros didáticos utilizado nas escolas mato-grossenses, durante a Primeira República.............................................................................

69

Figura 09 - Tese para o concurso a cadeira de História da Escola Normal Pedro Celestino ............................................................................................

76

Figura 10 - Livro - Porque me ufano o meu paiz - Affonso Celso (1905)........... 80

Figura 11 -

Regulamento do Liceu Cuiabano, 1916.............................................

86

Figura 12 - Contra-capa do Livro Lições de História do Brasil, 1907, do autor Joaquim Manoel de Macedo..............................................................

87

Figura 13 - Livros escolares utilizados nas escolas mato-grossenses, durante a Primeira República.............................................................................

94

Figura 14 - Nota constante da capa do livro Breves Lições de História do Brasil, de 1922...................................................................................

109

Figura 15 - Livros didáticos de História, utilizados nas escolas mato-grossenses durante a Primeira República..........................................

111

Figura 16 - Livro – Nossa Patria e o autor Rocha Pombo................................... 119

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Figura 17 - Pelourinho.......................................................................................... 123

Figura 18 - Dia de Festa....................................................................................... 125

Figura 19 - Lundú................................................................................................. 127

Figura 20 - Na Villa.............................................................................................. 128

Figura 21 - Muxirão ou pixeirão........................................................................... 129

Figura 22 - “Verdadeiros heróis” da guerra contra a invasão holandesa.............. 131

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - População infantil entre 5 e 11 anos na Freguesia da Sé, segundo o Recenseamento de 1890....................................................................

44

Gráfico 2 -

Crianças negras frequentadoras da escola segundo o Recenseamento da Freguesia da Sé, de 1890 ...................................

44

Gráfico 3 - Crianças pardas frequentadoras da escola segundo o Recenseamento da Freguesia da Sé, de 1890 ...................................

45

Gráfico 4 - Crianças brancas frequentadoras da escola segundo o Recenseamento da Freguesia da Sé, de 1890 ...................................

45

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INTRODUÇÃO

“O mestiço é vigoroso e hábil. A cruza não lhe sacrificou nem a energia física do servo, nem a inteligência do senhor. Tanto o branco como o negro tinham de aclimar-se: porém o mulato ou o mameluco era a planta nativa [...]. Os que negam o valor dos nossos mestiços, como os que afirmam sua superioridade, falseiam a verdade, porque a vêem unilateralmente. Os nossos mestiços nem são todos absolutamente inferiores, nem todos absolutamente superiores. Há, entre nós, mestiços superiores e mestiços inferiores.” (OLIVEIRA VIANA, ano apud SILVA, 1959, p. 179.) [...] “Foi grande a influência exercida pelo negro; [...]. Não só na vida econômica, porém, se verificou seu influxo; também na constituição do tipo brasileiro, na formação moral e nos costumes [...]. As crendices, as superstições do negro, com sua efetividade, refletiram-se na formação de nossa gente, que herdou dela uma certa negligência crioula, uma resignação heróica para suportar a miséria, uma concepção um pouco fatalista e quiçá leviana da vida, sem grandes preocupações do futuro, o hábito do trabalho, sem amor, mas também sem revolta, e, enfim, a melancolia impressa mais na música e na poesia do que no estado da alma habitual do povo.” (SILVA, 1959, p. 41-42).

Esses fragmentos integram a 39ª edição de História do Brasil1, obra do autor

Joaquim Silva, escrita nas primeiras décadas do regime republicano, mais precisamente

em 1959, circulando e sendo utilizada como livro didático em diversas escolas brasileiras

durante toda a metade do século XX. Trata-se da produção que serviu de fonte de

inspiração e provocou questionamentos, interrogações e motivações para a realização

desta pesquisa, cujo objeto de estudo são as representações vinculadas aos negros nos

livros escolares2 adotados em Mato Grosso durante a Primeira República (1889-1930),

buscando-se evidenciar as relações (ou a ausência delas) entre essas representações e as

concepções educacionais vigentes no período em questão.

Pensar o cotidiano escolar como prática de produção, re-produção e construção

do conhecimento, para alguns pesquisadores, pode sinalizar a importância que os livros

1 Acredita-se ser oportuno esclarecer que, apesar de a circulação e utilização desse livro nas escolas

brasileiras ter sido marcante na 2ª metade do século XX, a obra apresenta-se imbuída dos pensamentos e concepções do início do mesmo século.

2 De acordo com o Guia do Banco de Dados Livros Escolares Brasileiros (1810-2005) (LIVRES, 2005, p. 7), consideram-se livros escolares ou livros didáticos todas as obras cuja intenção original é explicitamente voltada para o uso pedagógico, sendo manifestada pelo autor ou editor da produção. Nessa concepção inserem-se, além dos livros didáticos mais comuns, também denominados compêndios ou manuais escolares, as obras conhecidas como paradidáticas, coletâneas de literatura produzidas para as escolas e, ainda, atlas e dicionários especialmente editados para uso pedagógico.

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escolares tiveram na construção do imaginário social brasileiro, conferindo aos negros

uma imagem reconhecidamente tão negativa.

As representações dos negros construídas juntamente com o ideal republicano,

na opinião de alguns estudiosos3, estão em parte situadas no inconsciente coletivo da

sociedade atual, corroborando os preconceitos, os estereótipos e os valores que

codificam determinadas atitudes.

Nessa perspectiva, a importância da representatividade dos livros escolares na

constituição do saber histórico escolar merece destaque. Não que sejam eles a peça

fundamental do processo de ensino-aprendizagem, mas durante toda a Primeira

República, eles se apresentaram como uma importante referência para os intelectuais,

professores e alunos. Daí o interesse aqui expresso em investigar e compreender as

representações dos negros neles veiculadas.

O livro didático é uma fonte de pesquisa privilegiada para a História da

Educação, haja vista ter feito parte da vida escolar de provavelmente todas as pessoas.

Ao longo de todo o processo de escolarização, em todos os níveis de ensino, atuou de

modo imponente para fazer ou reconstruir boa parte da História. Quem, em uma dessas

conversas sobre o assunto, nunca se lembrou da cartilha em que foi alfabetizado? Ou,

ainda, quem nunca se lembrou de um texto que seu livro didático?

As pesquisas, sobretudo as históricas, têm indicado que os manuais escolares

são fontes preciosas de estudos, seja no campo da educação, das mentalidades, da

linguagem, das ciências, ou mesmo da economia, quando é focalizado como uma

mercadoria (CHARTIER, 1990; CHOPPIN, 2004). Assim, o livro didático constitui

uma fonte complexa, de múltiplas facetas e formas, que viabiliza diferentes olhares

investigativos. No entanto, em pesquisa na biblioteca setorial do Instituto de Educação

da Universidade Federal de Mato Grosso (IE/UFMT), não foram identificadas pesquisas

de cunho histórico, em especial aquelas que datam do período aqui recortado sobre os

livros didáticos de História.

Diante do exposto, percebe-se que, apesar da importância desse material

didático-pedagógico no cotidiano da escola e como significativa fonte de investigação

no cenário mato-grossense, as pesquisas que o tomam como objeto de estudo ainda são

pouco numerosas, principalmente as de fundo histórico.

3 Cf. MUNANGA (2005).

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Nesse sentido, considera-se relevante realizar um estudo sobre os livros

escolares de História que veicularam em Mato Grosso na Primeira República, não só

para se preencher esse hiato no campo investigativo local, mas também por ser um

suporte que veicula, em cada página, em cada volume, os valores, ideologias,

estereótipos e preconceitos de uma determinada sociedade, inserida em um determinado

espaço/tempo.

Neste trabalho de pesquisa, o período eleito, de 1889 a 1930, contempla

acontecimentos importantes que marcaram a sociedade brasileira, dentre os quais o

processo de escolarização dos negros. Na verdade, marca a implantação da República,

os primeiros anos após a libertação dos escravos, o nacionalismo, a instituição do ensino

primário público e gratuito e o advento das teorias racistas no Brasil, utilizadas na

construção do mito da democracia racial4.

Quanto ao processo de investigação propriamente dito, procedeu-se ao

levantamento, seleção e análise de fontes documentais localizadas no arquivo do Grupo

de Pesquisa em História da Educação e Memória (GEM), vinculado ao Programa de

Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso; no Arquivo Público de Mato

Grosso; no Arquivo da Assembleia Legislativa de Mato Grosso; no Arquivo do Colégio

Liceu Cuiabano; na Biblioteca Nacional; na Faculdade de Letras do Rio de Janeiro; na

Biblioteca do Livro didático da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

(FEUSP); na Biblioteca Municipal de Cuiabá; e em acervos particulares.

Esta pesquisa, de caráter histórico, buscou subsídios no âmbito da História

Cultural e da História da Educação, para compreender a historiografia e as

representações vinculadas aos negros nos livros didáticos da Primeira República (1889-

1930) em Mato Grosso.

Para coletar dados significativos e que possibilitassem a esta investigação a

mais real reconstrução da leitura da época, fez-se necessário localizar, reunir,

selecionar, organizar e analisar fontes documentais prenhes de acontecimentos

históricos mediatizados pelas ações dos homens e mulheres daquele tempo.

4 Fernandes (1978, p. 262) traduz bem essa questão do mito da democracia racial: “Não existe democracia

racial efetiva (no Brasil), onde o intercâmbio entre indivíduos pertencentes a ‘raças’ distintas começa e termina no plano da tolerância convencionalizada. Esta pode satisfazer às exigências de ‘bom tom’, de um discutível ‘espírito cristão’ e da necessidade prática de ‘manter cada um em seu lugar’. Contudo, ela não aproxima realmente os homens senão na base da mera coexistência no mesmo espaço social e, onde isso chega a acontecer, da convivência restrita, regulada por um código que consagra a desigualdade, disfarçando-a acima dos princípios da ordem social democrática.”.

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Dessa forma, pode-se refletir que a pesquisa histórica é uma difícil e fascinante

tarefa de reconstrução do passado, a qual passa pela seleção não aleatória de períodos e

acontecimentos, com o objetivo de reconstruir fatos e vidas.

Nesta investigação, concebe-se a História não como transmissão de verdades

prontas e acabadas, mas como conhecimento historicamente produzido, sendo sua

reconstrução um texto de cultura, porque na compreensão do real está a reflexão do

pesquisador.

Logo, quando as fontes revelam dados ao investigador, este deve se respaldar

não só no que está sendo representado, mas na reflexão que lhe permite questionar tal

representação. E, para essa reconstrução do passado, considera-se fonte investigativa

todo e qualquer vestígio deixado pelo homem, em que o trato e as interpretações

documentais baseiam-se na noção de documento apresentada por Le Goff (1984, p.

103): “[...] uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da

sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais

continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda

que pelo silêncio.”

Disso decorre, então, em alguns momentos desta pesquisa, a comparação do

trabalho do historiador/pesquisador com o trabalho do arqueólogo, que busca os objetos

em diferentes sítios escondidos e, consequentemente, revela as várias leituras possíveis.

Neste trabalho, utilizam-se as mais diversas fontes documentais que circularam

em Mato Grosso no período de 1889 a 1930, destacando-se: livros escolares; relatórios

de presidentes do Estado; relatórios de diretores da Instrução Pública; atas do Conselho

Superior da Instrução Pública, legislação; livros de almoxarifado com registros de

entrada e saída de material didático; fotografias; diários de classes; planejamentos

escolares; planos de cursos; jornais; revistas; e documentos variados, tudo isso

possibilitando a reconstrução e a compreensão das representações veiculadas sobre os

negros nos livros escolares.

No tocante aos livros escolares localizados, o principal procedimento de

análise situa-se no âmbito da configuração textual5 e icnográfica, uma vez que se

concebe serem os textos e as imagens prenhes de sentidos históricos e significados

5 Recorre-se à configuração textual (MORTATTI, 2000, p. 31) por compreender o texto como um sentido

plural, contraditório e que dá significado ao mundo. Segundo Silva (2007, p. 27), privilegiar tal procedimento é sentir a necessidade de ler, ouvir o que o autor quer dizer com a estruturação da sua obra e, consequentemente, realizar uma interpretação mais real possível do contexto sócio-histórico de veiculação do material que certamente respaldou a prática de inúmeros profissionais de Mato Grosso.

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culturais. Para tanto, aporta-se em Chartier (1990), especialmente em seu estudo sobre a

História Cultural e em suas noções de representação e apropriação.

As representações revelam como um dado grupo apreende o mundo social,

convergindo-as em discursos intencionais e envolvendo práticas, apropriações e

contextos de contorno social. Assim, essas representações são construídas de acordo

com a apreensão do mundo, não revelando, consequentemente, discursos neutros, antes

carregados de intencionalidades impostas por um determinado grupo. Nesses termos:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (CHARTIER, 1990, p. 17).

Portanto, a análise aqui proposta passa pela compreensão tanto das

representações sociais e culturais quanto da apropriação ou não dessas representações

pelos próprios indivíduos envolvidos nesse processo.

Por outro lado, parece interessante, também, se trabalhar a noção de apropriação,

permite pensar as diferenças no processo de recepção. Ou seja, as práticas culturais

devem ser compreendidas sob o cerne das diferenças, de modo que um mesmo bem

cultural pode ter sido usado de maneira diferente por grupos diferentes, em função das

ideias, das representações, das disposições de habitus de cada um deles.

Na visão de Chartier (1990, p. 136-137), pensar desse modo é compreender que:

As apropriações culturais permitem também que não se considerem totalmente eficazes e radicalmente aculturantes os textos ou as palavras que pretendem moldar os pensamentos e as condutas. As práticas que deles se apoderam são sempre criadoras de usos ou de representações que não são de forma alguma redutíveis à vontade dos produtores de discursos e de normas. O acto de leitura não pode de maneira nenhuma ser anulado no próprio texto, nem os comportamentos vividos nas interdições e nos preceitos que pretendem regulá-los. A aceitação das mensagens e dos modelos opera-se sempre através de ordenamentos, de desvios, de reempregos singulares que são o objecto fundamental da história cultural. [...] O que equivale a dizer, simultaneamente, que as práticas contrastantes devem ser entendidas como concorrências, que as suas diferenças são organizadas pelas estratégias de distinção ou de imitação e que os empregos diversos dos mesmos bens culturais se enraízam nas disposições do habitus de cada grupo.

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Assim sendo, há de se convir que a apropriação do texto didático acontece de

formas diferentes na medida em que são diferentes os contextos e os grupos que dele

tomam posse.

Corrêa (2000, p. 12), em seu estudo sobre a importância dos livros escolares

como fonte de pesquisa em História da Educação, adverte para a necessidade de se

desvendar esse material didático-pedagógico, especialmente por acreditar que são

portadores de conteúdos reveladores de representações e valores predominantes num

certo período de uma dada sociedade e que, simultaneamente à historiografia da

educação e da teoria da história, permitem rediscutir intenções e projetos de construção

e de formação social.

Diante desse assunto, Fonseca (1999 apud CORRÊA, 2000, p. 12) assim se

posiciona:

O livro didático e a educação formal não estão deslocados do contexto político e cultural e das relações de dominação, sendo, muitas vezes, instrumentos utilizados na legitimação de sistemas de poder, além de representativos de universos culturais específicos. [...] Atuam, na verdade, como mediadores entre concepções e práticas políticas e culturais, tornando-se importante na engrenagem de manutenção de determinadas visões de mundo.

Para Chartier (1990, p. 134), os livros são veículos de circulação de ideias que

traduzem valores e comportamentos que se pretendem ensinar. Logo, podem servir

como indicadores no projeto de formação social desencadeado pela escola, em

determinado tempo e espaço:

A relação entre o livro escolar e escolarização permitem pensar na possibilidade de uma aproximação maior do ponto de vista histórico acerca da circulação de idéias sobre o que a escola deveria transmitir/ensinar e, ao mesmo tempo, saber qual concepção educativa estaria permeando a proposta de formação dos sujeitos escolares. [...] Nesse aspecto em particular, vincula-se à história das instituições escolares e, amplamente, à das políticas educacionais. (CORRÊA, 2000, p. 13).

Nesse sentido, a sociedade representada pelos livros escolares corresponde a

uma reconstrução que obedece a motivações diversas, segundo a época e o local de

circulação. Por conseguinte, o livro didático não é um simples espelho da realidade;

antes, modifica-a para educar gerações, às vezes deformando imagens, esquematizando-

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as, modelando-as; frequentemente silenciando os conflitos sociais, os atos delituosos ou

a violência cotidiana. Para essas análises, dialoga-se, especialmente, com Choppin

(2004).

O autor adverte que os pesquisadores não devem se deter nos fatores explícitos,

ou seja, nas ideias expressas pelos estudiosos, importando, antes, aquelas que lhes são

subjacentes. É necessário, então, prestar atenção naquilo que eles silenciam, pois se o

livro didático é considerado um espelho, pode ser também uma tela.

Desse modo, foi necessário ler as linhas e, sobretudo, as entrelinhas da

estrutura do livro escolar, numa tentativa mais apurada de se realizar a mais real leitura

possível, nesse caso específico, das representações dos negros no referido material de

pesquisa.

Para que melhor se compreendam o percurso e as discussões desenvolvidas no

correr desta investigação, esta dissertação está organizada em três capítulos: o Capítulo

I é reservado à reconstituição histórica da construção do imaginário social brasileiro, a

fim de que se compreendam as práticas e representações mais marcantes no espaço

escolar, nos livros didáticos e na sociedade brasileira do final do século XIX e início do

século XX.

Para a reconstituição desse período histórico, foram estabelecidos diálogos com

alguns autores que conduziram a pesquisa a diferentes espaços e diferentes leituras

acerca das questões que aqui se propõem investigar. Em Mato Grosso, percorrendo

trilhas históricas e ruas da cidade de Cuiabá do final do século XIX, deparou-se com a

casa-escola, na qual se adentrou e foi-se recepcionado por um belo menino negro, de

inteligência aguçada, cabelos macios e que mantinha sempre um lindo sorriso no rosto,

conhecido por Agostinho.

Em conversa com o notável anfitrião, foi-lhe explicada a pesquisa, e ele

prontamente correu para apanhar os parcos livros didáticos que possuía, esclarecendo

que aqueles de histórias ilustradas com gravuras eram os seus prediletos. Os livros e e o

menino exerciam grande fascínio sobre a pesquisadora, que, segurando as mãos dele, foi

conduzida até o grupo escolar onde o garoto estudava.

Penetrando aquele espaço, sempre de mãos dadas, chegou-se a uma sala, que

mais parecia um pequeno arquivo, na qual Agostinho mostrou algumas leis,

regulamentos e atas escolares. A companhia de Agostinho era muito agradável, mas era

preciso avançar para a etapa seguinte da pesquisa...

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O Capítulo II aborda o ensino de História, os livros escolares, as instituições e

os intelectuais que deram legitimidade aos ideais republicanos de nação. Dessa vez, nas

caminhadas pelo centro de Cuiabá, já no início do século XX, encontrou-se um padre de

notável erudição. Ao lhe explicar a pesquisa, muito elegantemente pronunciou: “Pro

Pátria cógnita atque immortali. Estou convidando-a para um chá da tarde, no Instituto

Histórico e Geográfico de Mato Grosso.”

Aceito o convite, o encontro rendeu à pesquisadora o contato com a

intelectualidade mato-grossense, alguns professores de História, com o que se pôde ir

reconstituindo um pouco do saber histórico produzido e veiculado nos livros didáticos

durante a Primeira República em Mato Grosso. Foi então que se viu despertada a paixão

pelos livros e seus textos, seus autores, sua materialidade e ideologias impressas, tendo

aumentado o desejo de se conhecer mais de perto esse objeto...

O capítulo III dedica-se a analisar alguns livros de História veiculados e

utilizados pelos professores e alunos nas escolas mato-grossenses durante a Primeira

República. Para a construção desse capítulo, pensou-se nos livros didáticos que

Agostinho utilizara em sua vida escolar e tentou-se localizá-los. Porém, ele, no afã de

cursar uma faculdade, havia ido embora da cidade. Onde, então, localizar livros tão

antigos? Em meio a essa dúvida, teve-se conhecimento de um ilustre professor da

capital, que ali se encontrava a passeio para prestigiar a inauguração o Instituto

Histórico e Geográfico de Mato Grosso, em 1919. O professor, ao tomar conhecimento

desta pesquisa, apresentou-se como membro do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, professor do Colégio Pedro II e autor de diversos livros didáticos,

mostrando-se disposto a contribuir com a investigação.

E foi assim, dialogando com alguns autores e atores históricos, que se

conseguiu trilhar os caminhos, às vezes emaranhados, às vezes tortuosos, desta

caminhada.

Finaliza-se o texto desta pesquisa com as considerações obtidas por meio da

articulação, ainda que breve, entre fontes documentais e bibliográficas, descrevendo-se

uma possível leitura das representações dos negros impressas nos livros escolares

veiculados em Mato Grosso, no final do século XIX e início do século XX, que

configura o objetivo norteador desta investigação.

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1 MENTIRAS QUE PARECEM VERDADES 6

A análise das representações dos negros nos livros escolares em circulação no

estado de Mato Grosso, no período de 1889-1930, requer que se proceda a uma breve

reconstituição histórica sobre a construção do imaginário social brasileiro, facilitando a

compreensão das práticas e representações mais marcantes na sociedade daquele

período.

Acerca disso, Chartier (1990, p. 38) acredita que: “[...] um homem que viveu

em tempos passados deve ser inteligível não relativamente a nós, mas aos seus

contemporâneos.”

Crê-se na importância de se buscar alguns elementos da construção do

imaginário social brasileiro referente à população negra, no início da República, para

que se possa compreender até que ponto essas representações, elaboradas juntamente

com o ideal republicano, estão em parte situadas no inconsciente coletivo da sociedade

atual e possuem uma dimensão na qual brotam e são cultivadas as crenças, os

estereótipos e os valores que codificam certas atitudes.

Vale ressaltar que a existência das raças não tem o menor suporte da biologia e

da genética, como comprovam os resultados das pesquisas do Projeto Genoma7. Todos

somos uma só espécie humana. O que existem realmente são os fenótipos diferentes - a

aparência física de cada ser humano. O fato de uma pessoa ter a pele escura não

significa que tenha predominância de ascendência africana. A cor da pele e os traços

6 Mentiras que parecem verdades (1980) é uma obra de Humberto Eco que trata de pesquisa realizada na

Itália, sobre as ideologias impressas em livros escolares. Toma-se emprestada essa expressão por acreditar que no período republicano foram popularizadas ideologias fundamentadas em teorias raciais no imaginário do povo brasileiro. Posteriormente, as pesquisas revelaram como cognatos tais princípios divulgados e inculcados na e para a população.

7 O Projeto Genoma é um consórcio internacional que tem por objetivo mapear todos os genes da espécie humana até o ano de 2005. Em 1990, esse projeto contava com o envolvimento de mais de 5.000 cientistas. Basicamente, 18 países iniciaram programas de pesquisas sobre o genoma humano, entre eles o Brasil. Até agora já se sabe que todos os seres humanos são 99,99% idênticos do ponto de vista biológico, de sorte que a cor da pele não indica a ascendência genética de ninguém. O coordenador do Projeto Genoma no Brasil, o geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade de Minas Gerais (UFMG), desenvolveu a pesquisa intitulada Retrato Molecular do Brasil, estabelecendo com precisão, do ponto de vista da genética, a ascendência dos brasileiros. Foram estes alguns dos resultados alcançados: 97% dos brancos brasileiros têm ancestrais europeus pela linhagem paterna; nesse mesmo grupo, pela linhagem materna, 39% têm ascendência européia; 33%, ameríndia; e 28%, africana; e, ao todo, 61% dos brasileiros brancos têm herança indígena ou africana (PENA; BERTOLINI, 2004 apud MÜLLER, 2006).

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fisionômicos não necessariamente provam o que ela é, qual a sua ascendência genética

(PENA apud MÜLLER, 2006, p. 107).

Porém, no dia a dia da sociedade ainda se fala em raças, conceito que continua

possuindo um valor social, simbólico, embora não apresente nenhum valor para a

genética:

As raças têm existência social, existem no imaginário da sociedade, e isso contribui para a cotidiana construção das desigualdades raciais no Brasil. Por esse motivo, os pesquisadores que examinam a maneira como se processam as relações raciais no país continuam utilizando o termo raça, mesmo que os estudos sobre a genética humana tenham destruído a crença em uma separação da espécie humana baseada nessa idéia. (MÜLLER, 2006, p. 104-105).

Contudo, se a raça não existe como conteúdo biológico:

No imaginário e na representação coletiva de diversas populações contemporâneas existem raças fictícias e outras construídas a partir das diferenças fenotípicas como a cor da pele e outros critérios morfológicos. E a partir dessas raças fictícias ou “raças sociais” que se produzem e se mantêm os racismos populares. (MUNANGA, 2003, p. 6).

Nesse sentido, o conceito de “raça” explica seu uso enquanto realidade social e

política, pois, além de ser uma construção social, é, também, uma categoria de

dominação e exclusão presente nas relações sociais que se estabelecem e são permeadas

por práticas discriminatórias.

Segundo Rosa (2002), nas últimas décadas do século XIX e início do século

XX, o Brasil atravessava um período marcado pela crise e extinção das instituições

imperiais escravistas, cujos desdobramentos resultaram na implantação do regime

republicano. Emergiu, nesse contexto, intenso debate acerca da formação da nação e do

cidadão brasileiro, estabelecendo-se a necessidade de criação de novas tradições e

instrumentos capazes de assegurar a identidade e a coesão social. A grande questão do

momento cercava não só a organização de uma nova vida social e política, mas também

a construção de um universo nacional próprio à legitimação do novo regime.

À luz do quadro teórico que vigorava na época8, as aspirações das elites

intelectuais e políticas brasileiras de conduzir o país à modernidade, de igualá-lo às

8 Rosa (2002) evidencia que, dentre as diversas correntes europeias de pensamento, destacaram se: o

liberalismo, o evolucionismo, o positivismo e o darwinismo social.

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modernas nações europeias eram confrontadas com a herança do passado colonial,

visualizado, sobretudo, na contingência de uma população dominantemente mestiça,

imersa na ignorância e desprovida dos sentimentos de patriotismo e de nacionalidade,

bem como dos padrões de comportamento do mundo civilizado (ROSA, 2002, p. 15).

Flávio dos Santos Gomes (2003), ao pesquisar a construção da cidadania no

Brasil, enfatiza que, com o fim da escravidão, o processo de lutas e também as

desigualdades, considerando os trabalhadores e suas etnias, não desapareceram. A

caracterização e a reprodução das desigualdades ganharam, a propósito, outras

dimensões:

O escravo vira negro. Como? Não mais havendo a distinção jurídica entre os trabalhadores, a marca étnica - e histórica - da população negra é reinventada como fato social. A sociedade brasileira, mais do que permanecer desigual em termos econômicos, sociais e fundamentalmente raciais a partir de 1888 (portanto, temos que considerar as experiências desde a colonização), reproduz e aumenta tais desigualdades, marcando homens e mulheres etnicamente. A questão não foi somente a falta de políticas públicas com relação aos ex-escravos e seus descendentes no pós-abolição. Houve mesmo políticas públicas no período republicano reforçando a intolerância contra a população negra. (p. 462).

Volpato (1993), em seu estudo sobre o processo de coisificação em que esteve

submerso o negro durante todo o período escravista em Mato Grosso, afirma que, com o

ideal de progresso e civilização adotado no início da República, o conceito de trabalho

foi reformulado. O homem pobre livre, que já era marginal para o sistema escravista,

passou a ser encarado como o vadio, e o escravo, até então elemento vital ao sistema de

estruturação da sociedade, foi lentamente transformado no negro, tornando-se

responsável por todas as situações de atraso vividas pelo país.

O jornal A Reação, que circulava no Estado, ao criticar, em 10 de março de

1913, a ação da polícia de não permitir que os indivíduos pobres e negros sem trabalho

transitassem em total liberdade, obrigando-os a escolher patrão e regulamentar sua

situação de trabalho, por intermédio de uma caderneta adquirida por 2$000 de réis, com

essa postura o periódico demonstrou a representação dos negros construída no meio

social:

A constituição garante ao indivíduo o direito de não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, sinão em virtude de lei. A medida do Dr. chefe de policia ela não tem força de lei e nem na lei se escuda. A disposição penal citada não pode ser interpretada de modo a autorizar o dr. Chefe de policia a “fornecer cadernetas” aos

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empregados domésticos, “obrigando-os” a trabalhar e “escolher patrão”. [...] A determinação do Dr. Chefe de policia tornou-se antipathica e quicá perniciosa, depois que ficou estabelecido o preço de 2$000 para aquisição das cadernetas. Antipáthicas o é exigir de uma pobre gente que trabalha e ganha insignificâncias, a quantia de 2$000 para ficar obrigada a não ter direito de trabalhar por vontade própria. Perniciosa porque o vadio, o miserável que a quizer adquirir terá de munir-sa dessa quantia, talvez por meios ilícitos. (p. 01-a, grifos nossos).

Os trechos dessa matéria, intitulada Pelo trabalho livre, que a princípio

condenou os abusos cometidos pela polícia sobre os homens negros, pobres e sem

emprego, buscaram subsídios inclusive na Constituição para defender esses indivíduos,

no entanto terminaram por classificá-los como vadios, miseráveis e propensos a práticas

de crimes ilícitos. Assim, no imaginário social brasileiro, a imagem do homem negro

desempregado estava intrinsecamente associada ao vadio, ao miserável e ao praticante

de atos ilícitos.

Para Müller (2006, p. 108): “[...] a discussão que se travou durante toda a

Primeira República girou em torno de como institucionalizar um projeto de nação que

conferia a negros e indígenas um lugar social subalterno, uma cidadania de segunda

categoria.”

O artifício ideológico que se articulou nessa época, em íntima relação com o

discurso científico, contribuiu para a construção, dentro do corpo social, de uma

imagem negativa dos negros, a qual atuou como vírus poderoso, que naturalizava a

condição social subalterna desse grupo e justificava a exploração econômica, a rudeza

do aparato repressivo e o exercício oligárquico do poder.

Patto (1999) concebe que no período republicano as teorias raciais começaram a

desempenhar no Brasil o papel que vinham desempenhando na Europa desde o século

anterior. Hobsbawm (1979) resume tais teorias como recurso ideológico de justificar o

domínio de brancos sobre não brancos, de ricos sobre pobres, de civilizados sobre

primitivos.

A presença de críticas às desigualdades e à opressão capitalista no país gerou,

nesse período, a necessidade de se justificá-las, pois: “[...] o liberalismo não tinha

nenhuma defesa lógica diante dos clamores de igualdade e democracia. Portanto, a

bandeira ilógica do racismo foi inventada, a própria ciência, o trunfo do liberalismo,

podia provar que os homens não são iguais.” (HOBSBAWM, 1979, p. 277). Isso

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permitiu a Hobsbawm (1979) concluir que: “[o] darwinismo social9 e a antropologia

racista pertencem não à ciência do século XIX, mas à sua política.”

Müller (1999), ao estudar o pensamento de Manuel Bomfim (1993, p. 307)10

com relação às teorias racistas, acrescenta que o autor define o darwinismo social como

uma forma utilizada pelos países imperialistas para justificar o domínio econômico que

exerciam sobre o restante da humanidade. No entanto: “Convém repetir: não há razões

científicas, nem outras, que autorizem o sociólogo a declarar um povo, qualquer que ele

seja, incapaz de progredir.” (BOMFIM apud MÜLLER, 1999, p. 49).

Por outro lado, José Veríssimo, autor do livro A Educação Nacional, publicado

em 1985, influenciou intensamente os debates sobre a importância da difusão do ensino

primário para a formação da nação na Primeira República, acreditando na inferioridade

de negros, mestiços e índios. Em sua obra havia uma preocupação com o soerguimento

da parte boa, a população branca, conforme se pode conferir no seguinte trecho:

“Somos um país sem povo. Somos o produto de três raças perfeitamente distintas. Duas

selvagens e portanto, descuidosas e uma em rápido declínio depois de uma gloriosa,

brilhante e fugaz ilustração.” (VERÍSSIMO apud MÜLLER, 1999, p. 60).

Dessa forma, os negros e os mulatos passaram na República a ser objeto de

atenção da ciência e a arcar com o peso das mazelas sociais e econômicas que

assolavam o país. A condenação do cruzamento racial, que fez da mestiçagem o mal do

país, encontrou acolhida nas faculdades de medicina. O médico baiano Nina

Rodrigues11 foi um dos porta-vozes mais enfáticos dessa teoria.

O fim do sistema escravista colocou uma população de ex-escravos na rua, e

uma outra, predominantemente mestiça, foi concebida pela elite dominante como

problemática para a formação da nação brasileira. A mestiçagem era, pois, um problema

a ser resolvido em face do movimento de consolidação da identidade nacional: “O medo

da desagregação total da nação brasileira quer pela miscigenação com uma raça inferior

9 Conforme diz Alexandre (2006), os adeptos do darwinismo social acreditavam que no passado havia

raças puras e que o cruzamento estava degenerando a raça. Para eles, o processo de seleção natural criaria raças puras, a partir da diversidade, desde que fossem adotadas medidas eugênicas para conduzir a mudança biológica no sentido do progresso.

10 Bomfim, médico e ensaísta, abandonou a medicina por questões pessoais e dedicou-se à educação, tendo sido diretor da Instrução Pública na gestão de Pereira Passos e professor da Escola Normal do Distrito Federal.

11 Nina Rodrigues, positivista, considerava que os negros e o alto grau de mestiçagem seria uma influência negativa por pertencerem a uma raça biologicamente inferior. (SANTOS, 2002).

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quer pela simples destruição da raça branca por mãos negras ocupava a mente desses

primeiros emancipacionistas.” (SANTOS, 2002, p. 105).

Diante da tese do determinismo racial, tendo como base o darwinismo social,

pouco se poderia esperar de uma nação composta por raças pouco desenvolvidas, como

a negra e a indígena, isso sem se falar dos mestiços, maioria absoluta na população

brasileira. A saída que se configurou para o problema nos anos de 1920 foi o

lançamento da tese da reversibilidade da degeneração racial (SCHWARCZ, 1994).

A teoria da degenerescência passou a orientar os pressupostos eugenistas, que

estiveram em voga nas últimas décadas do século XIX e persistiram no meio médico

brasileiro até a década de 1940. Segundo Müller (2006), os eugenistas defendiam que os

mestiços, por terem herdado os defeitos de negros e brancos, terminariam por

desaparecer.

O impasse criado pela concepção do povo brasileiro como biologicamente

degenerado levou os intelectuais à originalidade do pensamento racial brasileiro. Uma

costura engenhosa unindo-se as linhas do evolucionismo e do darwinismo social

permitiu, conforme Schwarcz (2002, p. 18), que se enxergassem saídas para o país sem

que se precisasse negar a inferioridade dos negros:

Do darwinismo social adotou-se o suposto da diferença entre raças e sua natural hierarquias, sem que se problematizassem as implicações negativas da miscigenação. Das máximas do evolucionismo social sublinhou-se a noção de que as raças humanas não permaneciam estacionadas, mas em constante evolução e “aperfeiçoamento”, obliterando-se a idéia de que a humanidade era uma.

Assim, no início do século XX, o ideal de branqueamento popularizou-se. A

esperança era que levas de imigrantes que aportavam ao Brasil branqueassem o país no

espaço de poucas gerações. E: “A popularidade de tais idéias não era acidental, pois

possibilitavam um compromisso engenhoso entre a teoria racista e as realidades da vida

social brasileira” (SKIDMORE apud MÜLLER, 1999, p. 46).

Nesse momento, encontrava-se em processo de construção o mito da democracia

racial, que conferia lugares sociais distintos a brancos, negros e indígenas:

Esse ideário já estava sendo institucionalizado no incipiente sistema de ensino público criado, ainda, nos anos 10 e 20 do século XX. Priorizava-se construir a identidade nacional por meio da escola, com seus programas de ensino, com os livros didáticos e com a professora

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primária, simbolizando a encarnação da pátria e, preferencialmente, de cor branca. (MÜLLER, 2006, p. 109).

Ao analisar o livro História do Brasil, da 4ª série ginasial, de autoria de Joaquim

Silva (1959, p. 41-42), que circulou e foi utilizado como livro didático em diversas

escolas brasileiras durante a 2ª metade do século XX, percebe-se o quanto os materiais

didáticos serviram para institucionalizar as ideias em voga:

2) A formação étnica [...] como acontece entre outros povos, não constitui, assim, o brasileiro, uma raça pura; os elementos de sua formação, - o branco, o índio e o negro - calderam-se desde o início da época colonial, dando origem a vários tipos mestiços: o mameluco (ou mameluco) ou cabloco, descendente de branco e índio; o mulato, de branco e negro; o cafuzo, de negro e índio e ainda outros, oriundos do cruzamento de tais tipos. [...] A assimilação de elementos indígenas e pretos na massa de nossa população continua, a par de contingentes portugueses, italianos, alemães, árabes, eslavos e outros que afluem do Velho Mundo; cresce assim, cada vez mais, nos grupos mestiços, a porcentagem de sangue branco. É de notar que não há em nossa terra preconceitos ou questões raciais; e, por isso, o grande estadista americano Teodoro Roosevelt notou, com razão, que o futuro nos reserva uma grande benção; “ter evitado e solvido um problema altamente perigoso, quisá mortal, um conflito racial de vida e de morte.” (p. 41-42).

Nesse trecho, evidencia-se a disseminação do mito da democracia racial nas

escolas brasileiras, o qual pressupunha a inexistência de racismo no país, propagando,

ao contrário, uma convivência harmoniosa entre as raças.

Müller (2006, p. 111) avalia que:

Segundo alguns autores, essa foi a forma mais perniciosa de racismo que poderia se incrustar em nossa sociedade, pois, além de deixar as vitimas do racismo impotente para reagirem a situações de discriminação, possibilitava àqueles que fossem ou parecessem brancos a liberdade para utilizar artifícios racistas, muito sutis para serem contestados. A frase “o brasileiro tem preconceito de ter preconceito”, de autoria de Florestan Fernandes (1960), traduz muito bem o mito da democracia racial.

É importante salientar que existia, sim, democracia racial, mas desde que cada

um soubesse bem o seu lugar social. As elites consideravam que a heterogeneidade

cultural da população brasileira, marcada pelas crenças e tradições das três raças

fundadoras, era contraproducente, verdadeiro obstáculo ao progresso do país.

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Em outro trecho do referido livro de Joaquim Silva, percebe-se a maciça

participação da escola nas múltiplas funções de difundir, inculcar e homogeneizar as

representações construídas e produzidas, a fim de inferiorizar os negros seja no campo

social, cognitivo ou cultural:

2) A formação étnica III - o negro 1. O mestiço. “O mestiço é vigoroso e hábil. A cruza não lhe sacrificou nem a energia física do servo, nem a inteligência do senhor. Tanto o branco como o negro tinham de aclimar-se: porém o mulato ou o mameluco era a planta nativa [...] Os que negam o valor dos nossos mestiços, como os que afirmam sua superioridade, falseiam a verdade, porque a vêem unilateralmente. Os nossos mestiços nem são todos absolutamente inferiores, nem todos absolutamente superiores. Há entre nós, mestiços superiores e mestiços inferiores.” (OLIVEIRA VIANA apud SILVA, 1959, 179). [...] 3. Influência do negro. Foi grande a influência exercida pelo negro; [...]. Não só na vida econômica, porém, se verificou seu influxo; também na constituição do tipo brasileiro, na formação moral e nos costumes. [...]. As crendices, as superstições do negro, com sua efetividade, refletiram-se na formação de nossa gente, que herdou dela uma certa negligência crioula, uma resignação heróica para suportar a miséria, uma concepção um pouco fatalista e quiçá leviana da vida, sem grandes preocupações do futuro, o hábito do trabalho, sem amor, mas também sem revolta, e, enfim, a melancolia impressa mais na música e na poesia do que no estado da alma habitual do povo.” (SILVA, 1959, p. 42).

Mato Grosso não ficou imune a essa fabulosa construção das representações

negativas dos negros, juntamente com os ideais republicanos. Em pesquisa em

periódicos mato-grossenses da época, foram localizados trechos que demonstram o

quanto a cultura dos povos negros era estereotipada e discriminada pela elite letrada:

A feitiçaria é actualmente, o meio de vida mais rendoso, em nossa capital. Contra essa enganosa tapeação, entretanto, não tem se manifestado a nossa autoridade policial. Uma senhora que se diz “prodigiosa” roubou absurdamente a nossa população, sendo que, inerte, a isso assistiu a delegacia de policia da capital. Somente agora depois que essa feiticeira pode usurpar da população, as maiores sommas, lançando a desgraça sobre muitas pessoas, é que a nossa delegacia resolveu cumprir a sua missão. [...] o comparecimento urgente de nossa autoridade policial a casa de Mne. nhasinha é o que pedimos, afim de que se extermine com essa bárbara prática, própria somente para os negros da África que desconhecem a civilização. M. Silva 23/02/1930. (CORREIO DA SEMANA, 03 mar. 1930).

Para os autores sociais, a cultura do negro era não só sinônimo de atraso, crime,

práticas bárbaras e não civilizada, como também caso de polícia:

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Mesmo as representações sociais colectivas mais elevadas só tem existência, isto é, só o são verdadeiramente a partir do momento em que comandam actos. [...], das representações do mundo social que, a revelia dos actores sociais, traduz as suas posições e interesses objectivamente confrontados e que paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse. (CHARTIER, 1990, p. 19).

Nesse contexto, a formação da nação implicava formar o povo brasileiro, quer

por meio da incorporação e assimilação de imigrantes europeus na perspectiva do

branqueamento da população brasileira, quer pela via civilizadora da educação popular.

Para Souza (1998), a expressão educação popular comportava sentidos amplos e

restritos. Quando atrelada à questão da democracia, era utilizada no sentido de educação

para todos, ou seja, educação elementar sem distinção de classe, e dessa forma,

concebida como um direito e dever dos cidadãos e também do Estado. Todavia, quando

aplicado à perspectiva dos seus destinatários, o termo adquiria uma conotação de classe.

Dessa forma, segundo a autora, era clara a diferenciação entre o ensino secundário e o

superior - direcionados para a educação das elites - e o ensino primário e profissional -

destinados à educação do povo.

Valle (1997) estabelece que instruir um povo era sinônimo de civilizá-lo: dotá-lo

de um conjunto de saberes (reformulados sobre bases empíricas e científicas) e de

capacidades racionais, entendidos como úteis à vida social e política. Educar o povo

significava desenvolver-lhe os sentimentos e as disposições morais, a fim de dotar a

sociedade de comportamentos homogêneos e funcionais voltados para seu próprio

desenvolvimento.

A ciência e a educação, vistas como fatores de mudança social, civilização e

progresso, embasavam a percepção de que a construção da nação e a incorporação do

país à ordem moderna - compreendida como urbana e industrial - passavam pela difusão

da Instrução Primária:

Se estava na ordem do dia construir-se a nação e levar o país à modernidade, qual deveria ser o mecanismo preferencial de transformação das mentalidades e de criação da integração e do sentimento nacional? A escola. A escola primária e de preferência pública deveria ser oferecida massivamente a toda a população que aqui vivia. Começou-se a entender que a escola era o espaço privilegiado para a realização de rituais simbólicos que construiriam e reafirmariam o pertencimento à nação e o sentimento de nacionalidade. Através da escola, seriam difundidos os mitos de

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origem: a bravura dos bandeirantes; a bondade do senhor de escravos. Da mesma maneira, não havia instituições melhor para conformar novos valores morais e hábitos de trabalho e de higiene, relativos a uma sociedade que se queria “moderna”, urbana e industrial; enfim da conformação de novas mentalidades (MÜLLER, 1999, p. 58, grifos nossos).

Müller (1999) retoma aspectos focalizados em algumas regulamentações da

Instrução Primária do estado de Mato Grosso, dentre as quais o Regimento Interno dos

Grupos Escolares de 1910 (MATO GROSSO, 1910), que aborda questões como a

universalidade do ensino, a preocupação com o livro escolar e a inspeção dessas obras:

Art. 6. A mobília escolar constará da que for determinada pela Directoria Geral da Instrução Pública, devendo sua construcção ter por base os modelos que mais facilitem a inspesção, a responsabilidade individual dos alumnos e a satisfação dos preceitos hygienicos. [...] Art. 8. Os livros e mais objectos destinados ao ensino preliminar serão os approvados e mandados adoptar pelo conselho superior da Instrução publica, com exclusão de quaesquer outros. [...] Art. 61. É gratuita a matricula nos Grupos escolares e será facultada a todas as crianças indistinctamente com as restricções deste regimento.

Os artigos 8º e 61, há pouco mencionados, são reveladores do quanto a aliança

entre médicos e educadores traduziu a reiteração de alguns dos pressupostos eugenistas

no ambiente escolar, que resultaram em experiências cotidianas associadas aos materiais

didáticos e às práticas pedagógicas. A preocupação com a adequação da mobília,

constatada no artigo 6º, estava intrinsecamente relacionada com o processo de

higienização, presente nas ideologias sanitaristas da época.

Rosa (2002) informa que a necessidade de se instituir e expandir um espaço

social (escola pública) e uma cultura escolar12, formadores da nova nação e dos seus

novos cidadãos, articulava-se não só com a [re]constituição e legitimação do Estado e

de suas estratégias de ordenação do social, mas também com a formação de uma classe

trabalhadora, adequadamente preparada para responder às exigências do processo de

urbanização e do desenvolvimento industrial.

Faria Filho (1999a) assinala que a questão da importância e do lugar da

Instrução Pública na construção da nação perpassa toda a Europa e as Américas dos

séculos XIX e XX. No Brasil, ao longo do período imperial e da Primeira República,

12 O termo cultura escolar é adotado na acepção proposta por Júlia (2001, p.10). No próximo capítulo,

esse conceito será abordado de forma mais ampla.

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essa questão esboçava-se na crescente iniciativa dos governos provinciais,

posteriormente estaduais, em organizar e difundir a Instrução Pública, mais

especificamente a elementar, junto às classes populares.

Prosseguindo em suas análises, Rosa, há pouco referenciado, percebe que se

ressaltavam as funções sociopolítica e ideológica da educação popular, devendo a escola

integrar o indivíduo na sociedade urbana e industrial por meio de uma cultura moral e

científica e de uma ética disciplinadora - ética do dever, da responsabilidade e da

produtividade.

Desde a instauração da República, intensificaram-se os debates acerca da

construção da nacionalidade. A ideia era que: “[...] não tínhamos um povo, havia de

formá-lo.” (MÜLLER, 1999, p. 2000). A escola, por sua vez, tornou-se um espaço

privilegiado para a construção da nação, através da construção da identidade e do

sentimento nacionalista. Defendia-se que a escola primária formasse a mentalidade

popular através da difusão da história oficial e da disseminação de hábitos, valores e

comportamentos próprios de sociedades urbanizadas e modernizadas (XAVIER, 2006,

p. 255).

Nesse sentido, a instituição escolar foi um importante ambiente de circulação e

transmissão dos ideais republicanos, tendo sido sua participação nesse processo

indispensável, especialmente por ter institucionalizado mecanismos que favoreceram à

República legitimar seu poder. Sobre a institucionalização do espaço escolar como lugar

privilegiado para a disseminação e homogeneização do discurso republicano, tratar-se-á

logo adiante.

1.1 A ESCOLA REPUBLICANA NA LÓGICA DA MODERNIDADE

Para se compreender a construção da lógica da modernidade no espaço escolar,

buscaram-se subsídios nas ideias e nos projetos de reformas educacionais empreendidos

ainda no período pré-republicano, dentre os quais se destacam as propostas apresentadas

por Rui Barbosa, em seus Pareceres sobre a Reforma do Ensino Primário e das várias

instituições complementares da Instrução Pública13.

13 Souza (2000) destaca que esses Pareceres foram redigidos entre 1882 e 1883, tendo Rui

Barbosa, nesse trabalho, se apropriado de extensa e atualizada bibliografia de origem estrangeira, predominando obras em língua francesa e inglesa. Para a autora, o documento constitui uma das primeiras obras - e a mais completa delas - sobre a organização pedagógica da escola primária e sobre política de educação popular produzida no Brasil, no século XIX,

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Ressalte-se que, ao se servir dos Pareceres de Rui Barbosa como pano de fundo

desta pesquisa, não se tem o propósito analisá-los; está-se apenas percorrendo as

nuances do pensamento educacional que vigiam no conturbado período de transição do

Império para a República, percebendo que as ideias e os pensamentos tão em voga neste

último período têm suas raízes, ainda, naquele primeiro.

Rosa (2002) verifica que Rui Barbosa empreendeu um minucioso estudo teórico

acerca da situação educacional no Brasil nos anos finais do Império, sintetizando nos

Pareceres sublinhados as ideias e os modelos pedagógicos em circulação na Europa e

nos Estados Unidos, bem como o ideário liberal e cientificista que permeava o

pensamento social dominante de seu tempo.

A chave misteriosa das desgraças que nos afligem é esta e só esta: a ignorância popular, mãe da servilidade, da miséria. Eis a grande ameaça contra a existência constitucional e livre da nação; eis o formidável inimigo, o inimigo intestino, que se asila nas entranhas do país. Para vencer, revela instaurarmos o grande serviço da “defesa nacional contra a ignorância”, serviço a cuja frente incube ao parlamento a missão de colocar-se, impondo intransigentemente à tibieza dos nossos governos o cumprimento do seu supremo dever para com a pátria. (BARBOSA apud VALLE, 1997, p. 51).

Barbosa defendeu a necessidade do ordenamento do espaço escolar, de mobílias

e de materiais didáticos adequados, incluindo os compêndios e manuais de leituras,

além do estabelecimento de medidas preventivas às doenças infecto-contagiosas. Seus

Pareceres, em sua maioria, foram negligenciados e sequer foram discutidos na Câmara

dos Deputados. No entanto, Rosa (2002) aponta que grande parte das concepções e

propostas neles contida foi adotada nas reformas da Instrução Pública realizadas no país

nas primeiras décadas republicanas.

De acordo com Faria Filho (2002), Rui Barbosa procedeu em seus textos a uma

fundamentada crítica à educação escolar brasileira, propondo sua reforma radical.

Dentre suas críticas endereçadas aos métodos e aos mestres, o parecerista afirma que:

“Reforma dos métodos e reforma do mestre: eis numa expressão completa, a reforma

escolar inteira; eis o progresso todo e, ao mesmo tempo, toda a dificuldade contra a

mais endurecida de todas as rotinas, - a rotina pedagógica.” (BARBOSA, data apud

FARIA FILHO, 2002, p. 604).

contendo as representações educacionais em voga na época, tanto no âmbito nacional quanto internacional.

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Rui Barbosa (BARBOSA apud FREIRE, 1998, p. 116) considerava o método

intuitivo, uma nova metodologia de ensino, a base da reforma educacional brasileira:

O ensino intuitivo [...] foge de tudo quanto é arbitrariamente convencional e formalístico. Repudia as nações “a priori” [...]. circunscreve a parte catequética, didática, expositiva da missão do professor. Restitui aos fatos, diretamente consultados pelo aluno, a parte preponderante, que lhes cabe na educação do homem. Não permite que o professor veja, ouça, compare, classifique, conclua pelo discípulo. Cinge-se, quanto ser possa, a facilitar o estudantinho primário as condições da observação e da experiência solicitando-o constantemente a exercer todas as aptidões, sensitivas e mentais que põe a inteligência em comunicação viva com o mundo exterior.

Com relação aos métodos de ensino, a renovação didático-pedagógica da escola

primária proposta por Barbosa se fundamentava nas ideias de Pestalozzi e Froebel,

tendo como eixo norteador uma nova forma de se conceber e praticar o ensino,

consubstanciada no método intuitivo, também designado lições de coisas e que se apoia

em uma concepção filosófica e científica segundo a qual a aquisição de conhecimentos

advém da experiência, da observação e dos sentidos.

O Regulamento da Instrução Pública de Mato Grosso, datado de 1896, já

recomendava a aplicação do método intuitivo nas escolas públicas. No entendimento de

Amâncio (2000), essa recomendação, no Regulamento de 1910, soava como nova,

tendo em vista um programa de ensino bem explicitado, acompanhado de horário e

distribuição gradativa das matérias de ensino, sob a supervisão de um diretor escolar.

Isso não se estendia à legislação da Instrução Pública, que se adiantando à pratica

pedagógica - a qual aparentemente teimava em não acompanhá-la - determinava, já no

Regulamento Geral de 1896, a aplicação desse método no ensino das matérias escolares.

É o que se observa em alguns de seus artigos, apresentados a seguir:

Art. 10º - A escola elementar professa: § 1° - Leitura corrente de impressos e manuscritos; § 2º - Calligraphia e escripta; §3º - estudo prático para a língua materna; §4º - Exércícios de intuição, ou noções de cousas acompanhadas de exercícios de leitura e escripta e de explicações sobre formas, côres, números, dimensões, tempo, sons, qualidade dos objectos, medidas, seu uso e applicação; §5º - arithmetica pratica até divisão por dois algarismos; problemas fáceis sobre as quatro operações; noções geraes sobre numeração e valores dos algarismos; grandeza com a unidade; conseqüências resultantes dessa comparação; generalidade sobre os modos de dividir

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e subdividir a unidade; diversas espécies de fracção resultante de semelhante divisão. §6º - Cultura moral; commentário das narrativas dos livros de leitura e dos factos da vida escolar; §7º - Geografia physuca e história do Estado; §8º - Costura simples nas aulas de meninas. (MATO GROSSO, 1896).

Em consonância com o método intuitivo, o artigo 11 do mesmo Regulamento

alerta para o tipo de livro ideal aos exercícios de leitura, o livro com estampas:

Art. 11 - Os exercícios de leitura serão feitos de preferência em livros com estampas, para melhor applicação das noções de cousas; devendo o professor por sua parte limitar ao mínimo possível as regras e definições, attendendo ao caracter mais pratico do que theorico desta primeira parte do ensino primário.

Não faltaram para a Instrução Pública Primária de Mato Grosso, nos anos

iniciais da República, regulamentos que a normatizassem. Em termos de

regulamentação/normatização, a introdução do método intuitivo no ensino mato-

grossense não se restringiu ao Regulamento de 1896, cujos princípios foram retomados,

quase com as mesmas palavras, pelo Regulamento da Instrução Pública Primária de

1910.

Art. 12º - O ensino nas escolas primárias será tão intuitivo e prático quanto possível, devendo nelle o professor partir sempre em suas prelecções do conhecido para o desconhecido e do concreto para o abstrato, abstendo-se, outrossim, de perturbar a intelligencia da criança com o estudo, prematuros de regras e definições, mas antes, esforçando-se para que os seus alumnos, sem se fatigarem, tomem interesse pelo assumptos de que houver de tratar cada lição (MATO GROSSO, 1910).

Contudo, não se pode inferir que os pensamentos pedagógicos embutidos nessa

legislação, que traduzia o pensamento e a proposta educacional dos intelectuais e

administradores da Instrução Pública de Mato Grosso nas primeiras décadas do período

republicano, tenham sido vivenciados pelos professores e alunos nas práticas escolares.

E isso porque nenhuma fonte documental escrita forneceu indicações do que foi

efetivamente realizado. “Entre o enunciado e o concretizado há uma distância permeada

por um silêncio resistente, o qual muito lenta e fragmentariamente permite um certo

adentramento.” (AMÂNCIO, 2000, p. 140).

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Neves e Sá (2006), estudando as práticas pedagógicas da primeira metade do

século XX, relacionam a questão do método com a compreensão de mundo, de ciência,

de ideais e de construção teórica. Logo, não bastava ensinar a ler e escrever, isto é, não

era mais suficiente instruir; era preciso educar em todos os aspectos. Nessa perspectiva,

a questão mais importante era formar cidadãos políticos capazes de compreender o

sentido da República.

A moderna escola primária idealizada por Rui Barbosa deveria ser regida pela

arte de prevenir e de corrigir14 o corpo e a mente das crianças, como sugerem as teses

foucaultianas relativas aos processos de disciplinarização e coerção social.

O jornal A Situação, em circulação no estado de Mato Grosso, publicou em 20

de abril de 1873 uma matéria reveladora desse processo de disciplinarização do corpo e

da mente, como se observa neste trecho:

Mas todos sabem que quando os povos são ignorantes, mal educados, habituados a certos costumes, e a certos vícios, é necessário forçá-los a querer aquilo mesmo que é de seu proveito e interesse, até que a instrução, a experiência e a reflexão os ilustre e os ponha em estado de o quererem e fazerem espontaneamente.

Segundo Rosa (2002), o projeto engendrado por Rui Barbosa defendia a

implantação de uma escola primária moderna, de caráter obrigatório, universal e laico,

pautado em novos métodos e conteúdos de ensino.

Nessa direção, a introdução de novas disciplinas nos programas de ensino

inseria-se na perspectiva de uma formação escolar articulada com a lógica da

modernização e do progresso social e material do país. Nesse sentido, Barbosa defendia

a inclusão de conteúdos relativos a ciências, à educação moral e cívica, à ginástica, ao

desenho, à música e ao canto, ao sistema de pesos e medidas, aos trabalhos manuais, à

higiene e à economia doméstica, entre outros.

Vale aqui registrar Forquin (1993), para quem toda forma de educação,

particularmente a escolar, supõe um processo de seleção e de reelaboração dos

conteúdos de cultura a serem transmitidos para as novas gerações. Nesse processo,

14 Foucault (1984 apud ROSA, 2002), no texto Vigiar e Punir, estabelece analogia entre tais processos e

a ortopedia enquanto arte de prevenção e correção da deformação de uma forma canônica, sublinhando a relatividade/historicidade das significações atribuídas aos conceitos de normalidade/anormalidade, aplicativos ao comportamento social.

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entram em jogo os conflitos de interesse, as relações de poder, bem como os

fundamentos ideológicos norteadores das disputas por autonomia e/ou hegemonia entre

os diversos grupos sociais:

A “seleção cultural escolar” não se dá do mesmo modo e com a mesma intensidade em diferentes sociedades e épocas, mas sua matéria prima inscreve-se sempre sobre aquilo que constitui num momento dado a cultura de uma sociedade, isto é, o conjunto dos saberes, das representações, das maneiras de viver que têm curso no interior desta sociedade e são suscetíveis, por isso, de dar lugar a processos (institucionais ou não) de transmissão e de aprendizagem. (FORQUIN, 1993, p. 31).

Rui Barbosa propunha, então, um ensino primário mais científico e menos

literário, bem como dotar de caráter enciclopédico os programas escolares, em

substituição a uma escolarização restrita aos rudimentos da leitura e das habilidades de

escrever e contar.

Na visão de Rosa (2002), Barbosa se posicionava contra o que denominou

irracionalismo na concepção e na prática de metodologias e conteúdos da escola

brasileira de sua época, que, no seu entender, não se comprometia com o

desenvolvimento da inteligência. Para ele, esse método era debilitado, viciado e

sobrecarregado diante da capacidade de entendimento das crianças, pautado na leitura e

repetição formal dos livros, por ele caracterizado como de uma “fraseologia vã”.

Durante a Primeira República, os livros escolares sofreram influências dos novos

métodos e do pensamento vigente. Araripe Junior, ao prefaciar o livro didático História

do Brasil, de João Ribeiro, 13ª edição (1935), discutindo o valor pedagógico do livro

didático, destaca as mudanças sofridas por essa literatura na Inglaterra, na Alemanha e

nos Estados Unidos, advertindo para a importância do ensino pela retina e enaltecendo

o methodo como a maravilha da escola e a delicia do professor:

Uma inoculação electrica dos conhecimentos necessários à vida pelos processos simplificadores da economia do esforço intelectual e pelo desenvolvimento do gosto artístico latente em todo homem que não seja um cretino. Já se encontra, por exemplo, os Albuns históricos de lavisse, que ensinam pela retina e professores há que preconizam a aplicação à história de uma espécie de methodo Berlitz; isto é, a creação de estados de consciência no alumno em virtude de contínuos mergulhos num meio de resurreição histórica. Comprehende-se, porem, que sacrifícios de paciência e de dinheiro não são precisos para promover esses passeios históricos maravilhosos e constituir gabinetes

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de trabalho de modo a utilisarem-se todos os esforços do professor. Na falta de taes recursos reatam o manual e a verve do mestre. Na Alemanha e nos Estados Unidos a confecção de semelhantes manuaes suppletorios tem-se tornado uma questão vital. Methodo é a maravilha da escola e a delícia do professor; e no que entende com a pedagogia histórica, completamente abolidos os processos de exposição, ainda infelizmente usados em nossas escolas, e que apenas servem para crear no alumno antipathias profundas por essa casta de estudos, o manual é a carta de navegação pela qual o peior piloto póde levar o discípulo ao porto do destino. O auctor da História do Brasil procura justamente fazer entrar a corrente pedagógica, que tem produzido esses trabalhos, nos seus hábitos de ensino. T. A. Araripe Junior. (RIBEIRO, 1935, p. 9-11).

Percebem-se, por esse prefácio, as influências do método intuitivo, através dos

conselhos de deslocamento da pedagogia do ouvir para a do olhar15, bem como as

dificuldades das condições de trabalho dos professores das escolas públicas que se

espalhavam pelo país. Assim, desde o Império, o ideal de universalização da educação,

de mudança no método de ensino, nas práticas educativas, dentre outros, já faziam parte

do debate das elites intelectuais e adentraram a República. Vale lembrar que, no final do

Império, teve início a libertação dos escravos. Então, como ficou a questão do negro

nesse contexto? Ele também frequentava a escola primária proclamada pelos

republicanos?

1.2 NEGROS: INCLUÍDOS OU EXCLUÍDOS DA MODERNA ESCOLA

REPUBLICANA?

Pensar o espaço escolar enquanto espaço de desigualdade é um tanto quanto

contraditório, uma vez que, com a República, se acirraram ainda mais as discussões em

torno da igualdade. Portanto, a desigualdade é uma questão muito complexa de se tratar,

mesmo porque envolve fatores que geralmente se ocultam no nível da percepção

objetiva. E, quando o assunto é a desigualdade entre brancos e negros na educação, tal

complexidade amplia-se. Entretanto, as pesquisas apontam para sua existência, seja de

forma latente ou escancarada.

Souza (1998), ao pesquisar o movimento escolanovista no estado de São Paulo,

analisou um inquérito destinado aos professores que atuavam no ensino em 1926 e

15 Sobre a pedagogia do ouvir e do olhar, ver Vidal (1999).

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organizado por Fernando de Azevedo, a pedido do jornal O Estado de São Paulo,

constatando que, para os profissionais da educação, o ensino popular tinha uma

destinação específica: preparar o trabalhador para o mundo do trabalho. Essa era,

inclusive, a opinião de Sud Mennhcci16:

Para quem o ensino primário deveria encaminhar de forma rápida a obtenção dos meios para o sustento do homem - esta seria a escola popular - o segundo, destinado a formação de uma sólida cultura geral deveria permanecer restrito às elites pelas condições econômicas e sociais, e pelas incapacidades fisiológicas dos indivíduos (AZEVEDO apud SOUZA, 1998, p. 39)

Reis e Sá (2006) afirmam que em Mato Grosso se projetava uma educação

diferenciada para as lideranças políticas, os trabalhadores e a população em geral. Para

os líderes, propunha-se uma educação mais sofisticada e literária; para os trabalhadores,

uma instrução voltada à profissionalização; e para os demais, somente o ensino das

primeiras letras, que incluía ler, escrever e contar, garantindo-lhes o exercício do voto:

O ideário republicano apregoava um regime de participação política no qual era necessário o mínimo de escolarização, para se ter a garantia do voto, a exemplo de algumas nações européias. Desta forma, a educação se tornou pauta indispensável nos discursos políticos e a idéia de escolas para todos se proliferou em todo o país, apesar de que, na maioria das regiões, não tenha se concretizado (ALVES apud REIS; SÁ, 2006, p. 29).

O discurso do Sr. Dr. Augusto Fleury, proferido na solenidade de instalação do

Liceu Cuiabano17, realizada a 07 de março de 1880, e publicado no jornal A Província

de Mato Grosso, em 1880, corrobora a ideia de segregação educacional, após tecer um

longo comentário sobre a importância da reforma educacional e a necessidade da

instrução primária obrigatória. Em sua fala, avaliou o ensino secundário, que ora se

estabelecia no Liceu Cuiabano, como necessária a certa classe mais adiantada da

sociedade: “A instrução secundária, complemento da primária, não é menos necessária a

certa classe mais adiantada da sociedade.”

16 Sud Mennhcci foi um dos educadores que respondeu ao inquérito de 1926. 17 O Liceu Cuiabano, instalado na capital mato-grossense no final do século XIX, refletiu, de certa forma,

segundo Zanelli (2001), as intenções que nortearam o projeto de educação proposto pela elite política imperial, assim como representou o pensamento da elite regional acerca da natureza e dos objetivos do ensino secundário provincial.

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Sá e Siqueira (2006), traçando o cenário educacional de Mato Grosso no século

XIX e abordando a implantação do nível secundário de ensino no final do Império,

evidenciam o incondicional apoio do Estado e também os esforços das elites políticas

para a concretização daquele estabelecimento de ensino, que serviria de local para a

preparação de seus filhos rumo às faculdades imperiais.

Com base no projeto modernizador, cujo objetivo era transformar a sociedade de

forma a elevar o significativo contingente de homens livres do estágio da barbárie ao de

civilização, não bastava educar as crianças, sendo também necessário instruir os demais

membros da família. O temor pelo ócio exercitado pela população negra, pobre e

analfabeta levou as elites mato-grossenses a traçar estratégias de ocupação desse tempo

em atividades escolares.

Assim, em todo o Império foram feitas experiências de implantação de cursos ou escolas noturnas para os adultos que, pela tradição cultural, mantinham um comportamento condenável, tanto no tocante aos hábitos como aos costumes. [...] Em Mato Grosso esse esforço foi implementado, por diversas vezes, sem qualquer sucesso. (SÁ; SIQUEIRA, 2006, p. 136).

Com relação aos negros recém-libertos, o grande cuidado recaía em sua

formação moral. O Relatório da Instrução Pública de Mato Grosso, de 1889, ao

demonstrar a preocupação do estado de Mato Grosso com a inserção dos ex-escravos na

esfera escolar, fornece pistas do lugar reservado aos negros nessa instituição elitista e

qual a representação deles elaborada por essa sociedade:

É necessário dotar-se as escolas de todos os meios precisos para que regularmente possam funcionar. Em vez de criar 10 escolas com profusão, convém antes tel-as só nos centros populosos. Mas dotá-las de professores habilidosos e providos dos meios necessários para que o ensino primário seja conscienciosamente e a província não dispenda inutilmente as suas rendas. É também demasiadamente exíguo o subsidio destinados aos meninos pobres, principalmente agora que a população escolar tende à aumentar e é de necessidade indeclinável attender aos ingênuos e adultos, libertos pela lei de 13 de Maio, hoje em pleno gozo de sua liberdade, sem os princípios de moral e religião, eivados dos vícios do captiveiro e no mais completo obscurantismo. Urge mais do que nunca uma boa distribuição das escolas e escolhe-se os lugares em que mais convinham estabelecer-las. É problema que, a meu ver, talvez não possa ser resolvido sem a criação de aulas noturnas, públicas ou particulares subvencionadas. [...] Com relação a freqüência dos matriculados nas escolas de fora da capital, principalmente as mais remotas, não tenho todas as estatísticas que me habilitem a emitir juízo seguro sobre esta

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e conhecer seus resultados e aproveitamento dos alunos, visto como os professores não remettem regularmente os mapas ou não são minuciosos na sua organização, motivo por que não tenho podido cumprir exatamente e como deseja o artigo 5º da lei provincial nº 726 de 01 de março do ano passado. (RELATÓRIO DA INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1889, grifos nossos).

A partir desse documento, pode-se inferir que em Mato Grosso, com o fim da

escravidão, o escravo virou o negro eivado dos vícios do cativeiro e no mais completo

obscurantismo da moral e da religião.

Bittencourt (1993, p. 154) pondera que, para a maioria dos educadores que

apoiavam a escolarização dos trabalhadores livres, a História ensinada deveria voltar-se

para a preservação da ordem e da obediência:

[...] a História a ser ensinada desde o 1º ano escolar para os trabalhadores livres que emergiam em substituição aos escravos, deveria inculcar determinados valores para a preservação da ordem, da obediência à hierarquia para chegar ao progresso. O conceito de cidadania, criado com o auxílio dos estudos de História, serviria para situar cada individuo em seu lugar na sociedade: cabia ao político cuidar da política e ao trabalhador comum restava o direito de votar e de trabalhar dentro da ordem institucional. Os feitos dos “grandes homens”, de seres predestinados, haviam criado a nação e representantes destas mesmas elites cuidaram de levar a nação ao seu destino.

Nesse cenário, o citado relatório demonstra a posição do estado de Mato Grosso

em face da necessidade de escolarização da população negra na transição entre o

escravismo e o capitalismo. O lugar do negro nesse processo estava associado à

educação para o trabalho, e o ensino noturno que lhe era destinado atendia tanto ao

desejo da elite em mantê-los como mão de obra no mercado de trabalho, quanto aos

ideais republicanos de civilizar o povo brasileiro.

Percebe-se, assim, a contradição no nível do discurso: ao enfatizar a necessidade

do Estado em subsidiar a educação de negros e pobres, colocava-se a favor dos negros.

No entanto, essas mesmas posições favoráveis à democratização do ensino eram

fundamentadas em argumentos preconceituosos sobre a esses segmentos da população.

Ou seja, o mesmo discurso que exaltava a necessidade de ampliação da educação para

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atender aos negros recém-libertos e ingênuos18 baseava-se em argumentos

preconceituosos.

Essas ideias também foram responsáveis pela produção de estigmas contra os

negros, desqualificando-os para a vida política e social. Além disso, contribuíram para a

produção de um imaginário que reforçava a marginalização da maioria da população

brasileira. Essa visão negativa dos negros e pobres perpassava o próprio entendimento

do tipo de educação a ser ofertada ao povo.

Na acepção de Martinez (1997, p. 12), esse não é um discurso que nasceu com a

República. Já no final do Império, com a Lei do Ventre Livre, de 1871, o Ministro e alto

Conselheiro da coroa, Carlos Leôncio de Carvalho, defendeu a educação inclusiva para

as crianças beneficiadas por essa lei, argumentando: “[...] a propagação da educação não

significava um ato de humanidade. Era, ao contrário, justificada pela existência de

inúmeros menores abandonados à ignorância, verdadeiro ‘perigo’ para o Estado.”

Por outro lado, esse posicionamento do Estado em face do processo de

escolarização dos povos negros tentava dar respostas aos socialmente abandonados, aos

jovens vistos como perigosos e problemáticos para a sociedade branca.

Todavia, Sá e Siqueira (2006), ao abordar a implantação do ensino noturno no

final do Império, afirmam que o discurso modernizador e regenerador não foi suficiente

para garantir o funcionamento dos cursos noturnos em Cuiabá, que, após alguns meses

da abertura das aulas, foram fechados por falta de alunos.

Para Souza (1998), a escola primária pública, que deveria derramar para todos a

luz da alfabetização, cumprindo, assim, sua missão civilizadora de regeneração da

sociedade brasileira, operacionalizava a seleção dos eleitos. Fazia, pois, valer os

princípios abstratos da democracia burguesa, e a crença na igualdade social fundada no

mérito era exacerbada, revelando a profunda contradição existente entre os ideais e a

política de democratização do ensino, a qual pode ser observada ao se analisar o

Regimento Interno dos Grupos Escolares de 1910.

Capítulo II Da matrícula Art. 61. É gratuita a matricula nos Grupos Escolares e será facultada a todas as crianças indistinctamente com as restrições deste Regimento.

18 Ingênuo era o termo utilizado para designar os filhos das escravas beneficiadas pela Lei de 1871,

denominação cunhada pelo Ministro do Império e alto conselheiro da coroa, Carlos Leôncio Carvalho (NATIVIDADE; CUNHA JR., 2003).

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Art. 62. Serão matriculados as crianças cujos paes ou tutores apresentarem aos Directores o pedido de matricula e derem, por escripto, as informações exigidas pelo presente regimento, desde que a lotação das respectivas classes comporte os matriculados. Art. 63. A matricula será feita pelo director no respectivo livro e deverá constar della os seguintes esclarecimentos relativos a cada alumno: a) numero de ordem; b) nome; c) dia, mês e anno do nascimento; d) filiação, que conterá o nome do pae ou responsável; e) nacionalidade; f) data da matrícula primitiva (dia, mês e anno); g) residência (local, nome da rua e nº da casa). § Único. Alem das columnas para os referidos esclarecimentos, haverá mais uma columna para observações e outra para eliminações. Art. 64. A matricula será feita em cada anno lectivo, precedendo publicação de editaes pó 15 dias, antes do inicio do funcionamento das aulas. § 1. O Director publicará o edital, chamando os interessados a exhibirem certidão de idade e attestado de vacinação ou de revaccinação dos pretendentes à matricula. (MATO GROSSO, 1910).

De acordo com o art. 61 do Regimento, a matrícula era “facultada a todas as

crianças indistinctamente”, porém com algumas restrições expressas. Ora, era aberta

para todas as crianças ou para aquelas que atendiam aos interesses de uma determinada

classe social?

Igualmente, no art. 62, “Serão matriculadas as crianças cujos paes ou tutores

apresentarem por escripto as informações exigidas pelo presente regimento”, nota-se

outra restrição guardando mais uma contradição: em uma sociedade na qual a grande

maioria da população pobre era constituída de analfabetos, como estes apresentariam

por escrito um rol de informações?

É importante salientar também que a organização familiar da população menos

abastada e negra não era igual à da elite. Fernandes (1978), em seu estudo sobre a

integração dos negros na sociedade de classes, descreve que muitas famílias eram

constituídas por mães solteiras, de modo que algumas crianças eram desprovidas da

companhia paterna. Além disso, a gratuidade do registro de nascimento ainda não era

um direito legal assistido a todas as crianças, sendo que, provavelmente, uma

considerável parcela dos meninos e meninas em idade escolar não eram registrados/as.

Foi o que advertiu o jornal A Reação, que circulou em Cuiabá em 10 de março de 1913:

“Em geral, o povo de classe inferior nem siquer registra o nascimento dos filhos. O

registro civil entre nós, de facto, não existe, sinão para a minoria culta.”

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Nesse contexto, o acesso das crianças pobres e negras à educação, se não era

impossibilitado, era no mínimo dificultado. Nesse momento, a irônica frase de Souza

(1998) é pertinente: na retórica, escola pública, universal, gratuita e laica; de fato, escola

pública seletiva e para poucos.

Natividade e Cunha Jr. (2003), examinando o lugar dos negros na educação no

período de transição do século XIX para o XX, revelam que mesmo com toda a

dificuldade encontrada por essa população no que tange à instrução pública, alguns de

seus membros romperam as barreiras e percorreram caminhos que os conduziram à

instrução. A pista fornecida por esses autores é que uma das possibilidades encontradas

foram as conhecidas irmandades de negros - a do Rosário e a de São Benedito, entre

outras -, as quais exerceram decisiva influência na instrução desse povo, vista também

como forma de romper os limites impostos pelo escravismo.

Ao verificar o censo de 189019 da Freguesia da Sé (centro) e Freguesia de São

Gonçalo (Porto) em Cuiabá, constatou-se um número considerável de crianças negras e

pardas que frequentavam a escola e sabiam ler. Na Freguesia da Sé, do total dos 6.836

indivíduos, 1.174 eram crianças entre 5 e 11 anos, das quais 161 eram negras; 651,

pardas; e 362 brancas. O quadro a seguir resume as categorias de cor utilizadas nesse

levantamento:

Raça Número de crianças Frequentavam a escola

Preta 161 40

Parda 651 251

Branca 362 238

Quadro 1 - Crianças entre 5 e 11 anos freqüentadoras da escola segundo o Recenseamento de 1890 na Freguesia da Sé, em Cuiabá Fonte: Peraro (2003).

A partir do referido censo e de uma triagem cuidadosa elaborada pela

pesquisadora Mary Diana da Silva Miranda20 (2009), por ocasião da produção de sua

dissertação de mestrado, tornou-se possível quantificar proporcionalmente as crianças

19 Dados disponíveis no CD-ROM intitulado A população urbana de Cuiabá em 1890, de Maria Adenir

Peraro (2003). 20 Mary Diana da Silva Miranda, mestranda, membro do Grupo de Pesquisa História da Educação e

Memória (GEM), da UFMT. Atualmente, desenvolve uma investigação sobre as crianças negras na Instrução Primária em Mato Grosso e gentilmente cedeu para este estudo os dados estatísticas referentes às crianças em idade escolar.

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negras, pardas e brancas que frequentavam as escolas na região central de Cuiabá, no

período em questão:

Gráfico 1 - População infantil entre 5 e 11 anos na Freguesia da Sé, segundo Recenseamento de 1890 Fonte: Peraro (2003).

Gráfico 2 - Crianças negras frequentadoras da escola segundo Recenseamento da Freguesia da Sé, de 1890 Fonte: Peraro (2003).

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Gráfico 3 - Crianças pardas frequentadoras da escola segundo Recenseamento da Freguesia da Sé, de 1890 Fonte: Peraro (2003).

Gráfico 4 - Crianças brancas freqüentadoras da escola segundo Recenseamento da Freguesia da Sé, de 1890 Fonte: Peraro (2003).

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Para Miranda (2009), os dados apresentados anteriormente demonstram que em

Mato Grosso a Instrução Pública e Primária nem sempre se manteve alheia às

necessidades das crianças negras.

Haja vista todo o processo de exclusão social sofrido pelos negros, tais

informações aguçam alguns questionamentos: que escola as crianças negras

frequentavam? Os estabelecimentos de ensino frequentados por negros e pardos eram

públicos ou privados? E mais: esses grupos cumpunham uma parcela da elite cuiabana?

As fontes não revelam muitas informações a esse respeito, e as perguntas se mantêm

com todo o seu peso.

Em Mato Grosso uma possível resposta à primeira questão pode ser a casa-

escola, sobre a qual incidiam menos fiscalização do Estado, como sinaliza o

Regulamento Orgânico da Instrução Pública da Província, publicado no jornal A

Situação, em 12 de novembro, de 1874:

Art. 24. Ficão isentos de qualquer inspecção e também das obrigações especilicadas no presente capítulo, os professores, mestres ou mestras que ensinarem em família, embora tenhão alumnos de outras famílias, sendo contractadas exclusivamente para o ensino doméstico, uma vez que a escola não se dê em caracter publico por meio de anúncios ou convites. Neste caso, porém, deverá o chefe de família remeter até o dia 1º de Dezembro de cada ano um mapa dos alumnos que ensinar e de seu estado de adiantamento, sob pena de uma multa de 20$000 a 60$000 reis imposta pelo inspector geral das aulas, com recursos para o governo da província. Inspectoria geral das aulas em Cuiabá, 12 de novembro de 1874.

Foi possível observar em Cuiabá, por meio da legislação educacional, a

coexistência de três modalidades de ensino: a pública, a particular e a doméstica. A

primeira, ministrada às expensas do poder público; a segunda, realizada em

estabelecimentos particulares, à custa das famílias ou educadores; e a terceira, na

residência dos alunos ou pelos próprios pais ou por professores remunerados por estes

(SÁ; SIQUEIRA, 2000, p. 115).

De acordo com Paião (2006), muito antes de o governo provincial começar a se

ocupar com o ramo da instrução, gestando a escola pública e traçando-lhe os ângulos de

interesse sob forma legal, os professores privados, atuantes em escolas particulares e

domésticas, já se faziam presentes na província de Mato Grosso.

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A instrução pública cuiabana durante todo o período imperial desconheceu

estruturas físicas escolares especificamente criadas para esse fim. Em geral as aulas

funcionavam em espaços híbridos, nas casas dos professores, em cômodos separados e

disponibilizados nos horários de estudos para as atividades pedagógicas (SIQUEIRA,

2000).

O anúncio do professor Pedro Tito, publicado no jornal Echos de Cuiabá, no ano

de 1884, é revelador da clientela das escolas domiciliares, bem como da dificuldade

financeira da população pobre em frequentar a escola, ainda que pública:

Pedro Tito do Espírito Santo declara ao público que abriu uma escola particular do sexo masculino, propondo-se a ensinar gratuitamente as primeiras letras aos meninos extremamente pobres que existem nas imediações do baú, nesta capital, em número crescido e não podendo freqüentar escolas públicas pela falta exclusiva de meios. Por isso resolve fazer este anúncio, chamando a atenção de seus pais, tutores ou educadores, que se acha à disposição, a fim de aproveitarem este tão fácil meio para incutir em seus meninos a instrução. A sua residência é na rua do Baú. (SANTO apud PAIÃO, 2006, p. 34).

Com base no censo de 1890, Paião traça um breve perfil dos professores e

professoras da instrução privada de Cuiabá desse período, dentre os quais se

encontravam vários educadores negros. Infere, assim, que já no Império havia uma

parcela da população de cor negra instruída. O perfil traçado do professor Agostinho

Lopes de Souza corrobora tal afirmação e também exemplifica a dificuldade desse

grupo social em dar continuidade aos estudos:

Brasileiro, 30 anos, preto, solteiro, católico. Morava sozinho numa residência ao lado da tesouraria da fazenda, na freguesia da Sé, na 1ª quadra da Rua do Coronel Alencastro, n. 5, onde passou a lecionar, em 1885, como professor particular das matérias de “primeiras letras, português e aritmética”. (SOUZA, 19 nov. 1885 apud PAIÃO, 2006, p. 88). Dedicou-se ao magistério por não poder dar vazão ao desejo de continuar a estudar. Antes de ser professor, foi aluno do curso de Línguas e Ciências Preparatórias do Liceu Cuiabano, tendo sido colega de Firmo Rodrigues (1871-1944), que, em suas memórias, reservou-lhe algumas passagens: “Era preto, paupérrimo e de uma educação invejável. Sabia costurar e bordar. Muito benquisto entre os alunos. Dedicou-se ao magistério primário como professor público de escolas rurais. Morreu na maior pobresa.” (PAIÃO, 2006, p. 88).

O professor Agostinho assim é descrito por seu colega Firmo Rodrigues (1885):

“[tinha] uma educação invejável [e era] benquisto entre os alunos [...]”, mas, ainda

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assim, não conseguiu dar continuidade aos estudos. A dificuldade encontrada pelo

professor parece não ter representado um caso específico e sim a realidade da maioria

dos negros e negras que viviam em Cuiabá naqueles tempos.

Ao observar o espaço familiar das professoras e professores negros e pardos,

percebe-se que a maioria dos membros que o integravam, em especial as crianças,

sabiam ler, como pode ser evidenciado no perfil descrito da professora Bernardina Rich:

Professora particular, moradora da Freguesia da Sé, Travessa Voluntários da Pátria, n. 79. Tinha 18 anos, era brasileira, parda, solteira e católica. Vivia numa casa com 20 pessoas. As mulheres trabalhavam como quitandeiras e criadas, e os homens eram taberneiros, funileiros e ajustes21. As crianças em idade escolar sabiam ler.

Isso também se revelou na descrição sobre o professor Sebastião José da Costa

Maricá:

Brasileiro, pardo, 66 anos de idade, professor aposentado da instrução pública. Católico, casado com a parda Felippa Augusta Maricá, de 44 anos. Residia na 34ª quadra da rua Barão de Melgaço, n. 1071, Sé. Nesse endereço viviam mais 14 pessoas, todas pardas com sobrenomes diversos dos seus; dentre elas, 1 carpinteiro, 1 taverneiro e 1 pedreiro. Todas as pessoas menores de 10 anos sabiam ler.

A partir dos perfis dos professores das escolas particulares do início da

República, pode-se compreender que as residências das famílias negras eram habitadas

por grupos familiares numerosos e possíveis agregados, sendo pertinente a hipótese de

um número expressivo de crianças ter sido alfabetizado por esses agentes da educação.

A partir dessas informações, pode-se inferir que, apesar de o campo de trabalho

ter sido destinado aos negros, uma parcela dessa população, ainda que reduzida,

conseguiu embrenhar-se pelas brechas do sistema e adentrar o espaço escolar. Isso,

porém, não significava que sua permanência estaria garantia por muito tempo. Para eles,

a conquista de uma vaga era apenas o primeiro passo de uma trajetória marcada por

dificuldades.

Essa hipótese não diminui a grande exclusão educacional e social a que

estiveram sujeitos os negros e as negras mato-grossenses durante todo o período

republicano. Ela apenas conduz a reflexão de que por mais que o discurso dominante

21 Ajuste é a ação ou efeito de ajustar contas e mercadorias (CALDAS apud PAIÃO, 2006, p. 89).

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tentasse uma homogeneização, este era permeado por um relacionamento circular feito

de influências recíprocas entre a classe dominante e a classe subalterna22. Para uma

maior compreensão das práticas cotidianas, Certeau (1996) chama a atenção para a

importância de se deslocar o olhar dos grandes homens da história para o homem

comum.

A resistência do negro em meio a todo esse processo de negação de direitos não

tornou sua luta menos sofrível. Entretanto, seguir nessa trilha implicava perceber a

sociedade interagindo de forma mais dinâmica, sem que as pessoas se mantivessem

enclausuradas e estanques em categorias específicas.

Para Chartier (1990, p. 16-17):

As percepções sociais não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sócias, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. [...] Ocupar-se dos conflitos de classificações ou delimitações não é, portanto, afastar-se do social [...], muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais.

Segundo Reis e Sá (2006), o antigo sistema escolar excludente, elitista e

desprovido de sentido, até então existente, era foco de grandes insatisfações e

preocupações por parte tanto dos administradores como da população em geral,

principalmente porque ele não mais atendia aos clamores da população recém-liberta.

Faria Filho (2002b, p. 30), ao abordar o movimento caracterizado pela ideia de

universalização da educação básica para a população, assim o define:

O crescente movimento em defesa da instituição como via de integração do povo à nação e ao mercado de trabalho assalariado, que se viu sobremaneira fortalecido com a proclamação da República e com a abolição do trabalho escravo, significou também um momento crucial de produção da necessidade de refundar a escola pública, uma vez que aquela que existia era identificada como atrasada e desorganizada. Tal escola, assim representada, não podia levar avante tarefas tão complexas como aquelas projetadas para a mesma.

22 Termo utilizado por Ginzburg (2006), remetendo-se à expressão gramsciana classes subalternas, por

ser suficientemente ampla e despida das conotações paternalistas de que estão imbuídas as classes inferiores.

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Esse cenário discursivo permeou a construção de locais pensados e destinados

especificamente à instrução do povo, espaços esses apropriados para as práticas

educativas, dos quais emergiram os grupos escolares, símbolo da homogeneização do

saber disseminado, também se ampliando as normatizações e fiscalizações pertinentes

aos métodos de ensino e aos livros didáticos.

1.3 GRUPOS ESCOLARES E LIVROS DIDÁTICOS: SÍMBOLOS DA

HOMOGEINIZAÇÃO DO SABER

Ao longo desta investigação, verificando especialmente a integração/exclusão

dos recém-libertos da escravidão no processo de escolarização, foram encontradas

documentações pertinentes à instituição e implantação dos grupos escolares em Mato

Grosso. Considerando que esses estabelecimentos de ensino constituíam-se numa

representação do ideário republicano de modernização educacional e, segundo Souza

(1998), configuraram um novo modelo de organização escolar no início da República,

parece que se tornaram um importante vetor para a compreensão dos ideais republicanos

materializados e disseminados no processo de escolarização.

Reis e Sá (2006) esclarecem que o ataque sistemático ao modelo escolar vigente

- as escolas isoladas e rurais - era uma constante no novo período. Todos exigiam uma

escola que fosse realmente capaz de educar o povo, com professores verdadeiramente

preparados para orientar os alunos na direção correta, de superar a insuficiência e as

deficiências por que passava o ensino. Caberia à educação formar solidamente a

conduta dos indivíduos, prescrevendo-lhes regras que estariam em conformidade com a

harmonia social.

Souza (1998, p. 138), ao analisar os grupos escolares de Campinas, em São

Paulo, durante a Primeira República, argumenta que, nos primeiros anos após a criação

dos grupos escolares, estes possivelmente tenham sido escolas de elite, como também

afirmam Reis Filho (1981) e Antunha (1978). No entanto, não tardaram a se transformar

em escolas populares, e, como explicita Souza, ainda no início do século era comum a

convivência entre crianças provindas das classes dirigentes e filhos de trabalhadores.

A autora, verificando fotos das turmas do 3º Grupo Escolar de Campinas,

datadas de 1910, observa que os trajes das crianças não eram luxuosos e que havia nas

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diversas salas de aula uma parcela de crianças negras, demonstrando a diversidade da

clientela atendida nessa instituição.

Acredita-se ser oportuno relembrar enfaticamente que, em Mato Grosso, durante

a Primeira República, os grupos escolares representavam uma pequena fração das

escolas existentes. Ademais, reitere-se que a entrada das classes populares na escola

também não significava que sua permanência fosse garantida por muito tempo. Para os

filhos dos trabalhadores, a conquista de uma vaga era apenas um começo de uma

trajetória marcada por dificuldades.

Porém, a criação dos grupos escolares era supervalorizada pelos

administradores do ensino em Mato Grosso, por representar a materialidade da

homogeneização organizacional. O Relatório da Diretoria, datado de 1911, corrobora tal

afirmação:

Somente a instituição dos grupos escolares, com suas classes homogêneas, sujeito a unidade de programa, de horário e de orientação, constantemente sob as vistas do Diretor [...], oferece resultados mais fecundo. A sucessão regular dos exercícios dá ao estudo variedade, movimento e animação, ao tempo que estimula a aplicação e evita o cansaço; excita a atenção dos indolentes atraindo-os para assuntos variados [...] evita a falta de tempo, facilita o serviço da classe e prepara os alunos para terem, mais tarde, ordem na vida, que é sua dignidade e pontualidade, que é sua força. (MATO GROSSO, 1911, p. 2).

Os valores disseminados na escola deveriam repercutir na casa e na rua. Para

Boto (1998, p. 14), tratava-se, na verdade, de proceder a uma uniformização geral da

sociedade, pois: “[...] urgia, como contrapartida, homogeneizar símbolos, criar valores e

referências comuns, superar todo e qualquer regionalismo.”

A criação do grupo escolar representou uma reorganização da estrutura e do

funcionamento da escola, e, no intuito de atingir os moldes pretendidos, estes tiveram

seus conteúdos reproduzidos e seus métodos previamente determinados.

Nessa perspectiva, Reis e Sá (2006, p. 90-91) demonstram que entraram em cena

os regulamentos como instrumentos normatizadores da estrutura escolar, no âmbito

tanto administrativo quanto pedagógico:

Esses Regulamentos eram a garantia de que tudo iria caminhar na mais perfeita harmonia. Assim, a instrução elementar foi sofrendo algumas alterações, que acabaram definindo, paulatinamente, os tipos de escola e as modalidades organizacionais tidas e mantidas na

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Primeira República com as que estavam coesas com as exigências da sociedade e do período. Nesse sentido, os Regulamentos, por meio de suas determinações minuciosas, procuraram imprimir, em suas diversas expressões, um controle nos setores administrativos e pedagógicos das escolas.

Nesse contexto, de mãos dadas com os métodos de ensino, os livros didáticos

surgiram como poderosos aliados da pedagogia moderna. Indicando o que se deveria

estudar, esse material retirou a autonomia do professor, que deixou de tomar a decisão

em torno do quê e como ensinar, passando essa atribuição para a seara dos programas de

ensino, frequentes nas Reformas e Regulamentos e seus conteúdos, consubstanciados no

livro didático. Para Siqueira (2000, p., 227): “Passando por um irreversível processo de

homogeneização, o saber escolar tinha nos métodos e nos compêndios elementos

garantidores dessa uniformidade.”

Assim, já no final do Império as autoridades educacionais denunciaram a falta

de compêndios nas escolas, bem como de livros e cartilhas, cuja escassez, segundo o

Presidente Herculano Pereira Pena, em mensagem expedida à Assembleia Legislativa,

em 1862, contribuía para a ausência de uniformidade no ensino, uma vez que: “[...] no

esforço de contribuir com a instrução dos filhos, muitos pais ofereciam à escola os

livros que dispunham - nem sempre os mais adequados.” Muitas crianças estudavam ou

liam apenas o que lhes era proporcionado pelos pais: “[...] ficando aos mestres a

obrigação de proibir o uso do que for incorreto, ou por qualquer modo inconveniente.”

(MOACYR apud AMÂNCIO, 2008, p. 71).

O Pe. Ernesto Camillo Barreto, em Relatório datado de 1874 e apresentado ao

Presidente da Província de Mato Grosso, José Miranda Reis, denunciava essa variedade

de compêndios utilizados nas escolas:

[...] a variedade invade até os compêndios e os modelos de aprendizagem; cada qual leva para as escolas o livro que mais lhe apetece, ou que primeiro encontra e muitas vezes tiras de jornais. A cartilha, em geral, tem sido o mestre de leitura, das classes mais adiantadas. (MATO GROSSO, 1874).

Por essa via, percebe-se a preocupação das autoridades educacionais com os

possíveis desvios que os livros e textos denominados incorretos ou inconvenientes,

utilizados nas escolas mato-grossesnses, poderiam causar às crianças e jovens. Em

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contrapartida, evidencia que os livros escolares possibilitariam a uniformização do

conteúdo a ser repassado nas escolas do Estado.

Como avalia Bittencourt (1993, p. 17): “[...] o estabelecimento da educação

escolar foi planejado e acompanhado pelo poder governamental que passou a se utilizar

de vários mecanismos para direcionar e controlar o saber disseminado.” Daí o livro

didático constituir-se em um instrumento privilegiado de controle estatal sobre o ensino

e a aprendizagem dos diferentes níveis escolares.

A partir do regime republicano ampliaram-se as formas de vigilância sobre esse

material didático-pedagógico. O controle sobre a literatura escolar conduziu a criação de

órgãos burocráticos especiais. Em Mato Grosso foi criado o Conselho Superior da

Instrução Pública, que entre outras competências deixava explícita em seu regimento

interno, de 1909, a aprovação dos livros e compêndios adotados nas escolas locais.

A própria legislação pertinente evidencia a ampliação gradativa dos mecanismos

de fiscalização aplicados aos livros e compêndios escolares:

[...] CAPÍTULO VII DEVERES DOS PROFESSORES Artigo 38 - Ao professor público primário cumpre: [...] § 3º - Lecionar pelos livros e compêndios adotados e propor ao diretor Geral a adoção dos que julgar convenientes. (MATO GROSSO, 1889). [...] CAPÍTULO VI Da imposição das penas disciplinares Art. 189. A pena de multa de 30$000 e 60$000 reis terá logar nos seguintes casos: [...] § 3º Quando admitta ao ensino livros e compêndios que não tenham sido competentemente autorizados [...] (MATO GROSSO, 1910). [...] CAPÍTULO III Do material escolar [...] Art. 8. os livros e mais objetos destinados ao ensino preliminar serão os approvados e mandados adoptar pelo conselho Superior da Instrução pública, com exclusão de quaesquer outros. (MATO GROSSO, 1910).

As regulamentações da Instrução Pública de Mato Grosso, referentes aos

deveres ou penas disciplinares dos professores, apresentam sistemática e explicitamente

artigos sobre o uso dos livros didáticos adotados pelas autoridades educacionais

competentes: “Os professores que usassem livros proibidos estavam sujeitos a punições,

dos superiores, com possibilidades de multas.” (MATO GROSSO, 1910).

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Entretanto, verifica-se no artigo 38, § 3º do Regulamento de 1889, que os

professores gozavam de certa liberdade para a adoção dos livros didáticos, o que talvez

se tenha devido ao momento de transição do Império para a República, o qual foi

marcado pela influência dos ideais liberais. Essa liberdade, porém, deve ser entendida

dentro de alguns limites, pois as representações sociais não são discursos neutros: “[...]

eles tendem a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios

indivíduos, as suas escolhas e conduta.” (CHARTIER, 1990, p. 17).

A preocupação com os livros didáticos nas primeiras décadas da República

associa-se ao projeto civilizatório republicano, no qual a escola era entendida como o

caminho necessário para o sucesso do projeto de construção de uma nação moderna. O

Estado, então, procurou controlar a educação escolar, interferindo em esferas nas quais

o saber era produzido e nas formas como era utilizado e disseminado.

Bittencourt (1993, p. 74-75), analisando esse material didático-pedagógico nesse

período, conclui:

A política do livro escolar representou um dos traços característicos da produção cultural feita por uma elite que procurava se inserir no mundo “civilizado”, preservando paradoxalmente, de maneira intransigente, privilégios de uma sociedade hierarquizada e aristocrática. A manutenção desse controle exigiu a criação de uma legislação para evitar “desvios”, comprovando que o projeto concebido pelo poder estatal sofria “distorções” em seu processo de elaboração.

A legislação incide tanto no prisma dos mecanismos de controle quanto nas

possíveis práticas transgressoras. “O acto de leitura não pode de maneira nenhuma ser

anulado no próprio texto, nem os comportamentos vividos nas interdições e nos

preceitos que pretendem regulá-los.” (CHARTIER, 1990, p. 136).

A ata do Conselho Superior da Instrução Pública de Mato Grosso, datada de 21

de dezembro de 1920, que censura trechos da obra didática Vultos Matogrossense, de

Glicério de Povoas, demonstra claramente a preocupação com as ideias em circulação

nesses materiais e a efetivação, no Estado, de seus mecanismos de controle:

Sob a presidência do Senhor doctor Estevão Alves Côrrea, Dirctor Geral da Instrução. [...] As quatorze horas, previamente designadas pelo Senhor Presidente, havendo número legal de membros presentes, deu-se início os trabalhos, mandando em seguida que se procedesse a leitura da acta da sessão anterior. [...] após a aprovação da acta o Senhor Presidente procedeu a leitura do

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seguinte parecer, referente ao livro intitulado “Vultos Matto Grossenses”, da lavra do professor Glicério Povoas e apresentado pela commissão especial eleita na sessão anterior. Parecer: - A commissão especial do Conselho Superior da Instrução Pública do Matto Grosso, encarregada de dar parecer sobre o livro Vultos Mattogrossenses do professor Glicério Povoas, tendo com attenção lido e examinado o referido trabalho e considerando que ele vem preencher uma sensível lacuna da nossa história, digo da nossa literatura didática, contribuindo para o aperfeiçoamento da nossa cultura cívica, com a divulgação dos feitos de valor dos nossos grandes homens, entre nós bem pouco conhecidos; Considerando que é o único livro do gênero que se refere a mattogrossenses, mas; Considerando também que não é convincente que ele contenha as biographias de administradores e políticos que ainda existem a em torno dos quais a crítica apaixonada, a maior parte das vezes injustas e exageradas se exerce de modo altamente prejudicial à serenidade imparcial dos cultos cívicos que devem premiar os verdadeiros méritos e os exemplos dignos de imitação; Considerando finalmente que o culto das pessoas ainda militantes no scenário político ou administrativo pode occasionar o desenvolvimento de explorações partidárias ou de sentimentos bajulatórios e utilitaristas; é de parecer que seja o livro “Vultos Mattogrossenses” adotado nas escolas do Estado, uma vez que dele sejam retirados os resumos biográphicos das pessoas que ainda vivem. Sala das sessões do Conselho Superior da Instrução Pública de Matto Grosso em Cuiabá 21 de Dezembro de 1920; “Assignados - Philogonio de P. Corrêa, relator, João Pedro Gardes, João Teles Tino Corrêa Cardoso. Terminada a leitura o Senhor presidente submeteu-o á approvação do mesmo Conselho sendo unanimente approvado. (ATA DA SESSÃO ORDINÁRIA DO CONSELHO SUPERIOR DA INSTRUÇÃO PÚBLICA EM CUIABÁ, 21 dez. 1920, grifos nossos).

Esse trecho da ata traduz a atuação do Conselho Superior da Instrução Pública

de Mato Grosso tanto na decisão sobre os títulos dos livros didáticos que poderiam ser

adotados nas escolas do Estado, quanto nas escolhas dos seus conteúdos. Para Amâncio

(2000, p. 214-215):

Esse fato, por si, é indicativo da importância desse recurso didático, visto que o espaço por ele ocupado, era determinado e legitimado pelo órgão consultivo da presidência do estado para questões educacionais. Não era ocupado arbitrária e gratuitamente, como pode parecer à primeira vista.

Nota-se que a preocupação com o saber disseminado nos livros didáticos

conduziu a administração pública a ampliar as formas de vigilância sobre esse material.

Quanto a essa questão, Bittencourt (1993, p. 68) considera que as normas oficiais foram

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criadas juntamente com o estabelecimento de um corpo burocrático encarregado de

acompanhar a organização administrativa escolar em geral.

A estreita ligação entre o livro didático e o poder instituído condicionou esta

pesquisa à análise de algumas fontes documentais externas. Tendo o Conselho Superior

da Instrução Pública o importante papel de definir programas de ensino, a adoção ou a

substituição dos livros escolares, a introdução de qualquer método de ensino, bem como

a operacionalização das normas regentes do funcionamento das escolas e a carreira do

magistério, acredita-se ser oportuno tecer algumas considerações sobre este órgão, na

tentativa de melhor se compreender sua composição e atuação.

1.4 ATAS E REGULAMENTOS DO CONSELHO SUPERIOR DA INSTRUÇÃO

PÚBLICA DE MATO GROSSO

Com a Reforma de 1872, regulamentada pela Lei Provincial nº 15, de 04 de

julho de 188723, instituiu-se um conselho ligado à direção e inspeção da instrução

23 Conforme o artigo nº 110: “A inspeção e direção da instrução em toda a província competem ao

presidente da província; ao Inspetor-geral das aulas e inspetores paroquiais; ao Conselho Literário; e aos professores.” (SÁ; SIQUEIRA, 2000, p. 48).

Figura 2 - Livro ata do Conselho Superior da Instrução Pública de Mato Grosso - de 1903 a 1929

Fonte: APMT

Figura 1 - Regimento Interno do Conselho Superior da Instrução Pública do Estado de Mato Grosso de 1903.

Fonte: APMT

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pública mato-grossense. Conforme Siqueira (2000, p. 130), o governo provincial visava

unificar o ensino primário, eliminando o primário complementar e determinando os

horários, compêndios, métodos de ensino e sistema de fiscalização. A implantação de

tais medidas implicou a ampliação de mecanismos de controle do sistema de ensino.

Nesse movimento, um organismo foi criado para coordenar essa

homogeneização, o Conselho Literário, que funcionava como um tribunal de

julgamento exclusivo das questões da instrução. Contudo, analisando os processos

disciplinares da entidade, Siqueira (2002) conclui que esses processos apenas se

referiam aos professores e nunca às autoridades mais elevadas, como o Inspetor Geral e

os Inspetores Paroquiais. Dessa forma, o Conselho se posicionava estrategicamente

entre os Presidentes da Província e os Inspetores e Professores, delimitando, assim, os

espaços de poder na escala hierárquica:

Figura 3 – Escala hierárquica dos espaços de poder entre os Presidentes de Província, Inspetores e Professores Fonte: SIQUEIRA, 2000, p. 131

Dessa forma, o Conselho Literário fortaleceu as ações de fiscalização mediante a

atuação do Inspetor Geral e dos Inspetores Paroquiais, elementos que representavam os

olhos e ouvidos do poder. Rosa (2002) define que, com a reforma republicana de 1891,

a designação Conselho Literário foi substituído por Conselho Superior da Instrução

Pública, mantendo-se, porém, inalterado o cerne das atribuições que ambos

comportavam:

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Do Conselho Literário (Cf. Lei Provincial nº 15, de 04 de julho de 1873, art. 116 a 121)

Do Conselho da Instrução pública (Cf. Decreto nº 10, de 7 de novembro de 1891, art. 5 a 10)

Art. 120 - O conselho tomará parte em todos os negócios em que sua intervenção for exigida por este regulamento. Especialmente será consultado nos seguintes termos: § 1º - Sobre o exame dos melhores métodos e sistemas práticos de ensino. § 2º - Sobre a escolha e revisão dos compêndios. § 3º - Sobre sistema a adotar-se nos exames de habilitação para os concursos das cadeiras vagas. § 4º - Sobre a proposta de criação de escolas reclamadas pelas necessidades de instrução. § 5º - Sobre a elaboração das bases para qualquer reforma ou melhoramento de que carecer a instrução. § 6º - Sobre a apreciação do merecimento dos professores que devem ter acessos. § 7º - Sobre a elaboração do regimento interno das escolas públicas. Art. 121 - O Conselho julgará, com apelação ex-offício para o Presidente da Província, as infrações disciplinares a que estejam impostas penas maiores que as admoestações, repreensões, multa superior a 50$000 réis, ou suspensão por mais de 15 dias.

Art. 10 - Ao Conselho Superior da Instrução Pública incumbe: § 1 - Dar parecer I - Sobre programa de estudos e métodos de ensino; II - Sobre adoção de livros e utensílios escolares; III - Sobre o merecimento dos pendentes a cargo do magistério, em casos de concursos, bem como sobre a regularidade do processo relativo ao mesmo concurso; IV - Sobre elaboração de bases para qualquer reforma de que careça o ensino; V - Sobre o regime interno de quaisquer estabelecimentos públicos de instrução primária; VI - Sobre gratificações, vitaliciedade, remoções e conservação dos professores públicos. § 2 - Julgar os processos disciplinares que forem instaurados contra os professores públicos, ficando sua deliberação sujeita a aprovação do Presidente do Estado, a quem serão remetidos os recursos necessários. § 3 - Organizar seu regimento interno com aprovação do Governo.

Quadro 2 - Atribuições do Conselho Literário e do Conselho da Instrução Pública Fonte: Rosa (2002, p. 41).

Silva (2003), analisando a composição do Conselho Superior da Instrução

Pública de Mato Grosso (1889-1910), percebe a articulação estabelecida no sentido de

controlar a composição do organismo, garantindo-se a maioria dos membros indicados

pelo Presidente da Província/Estado e, consequentemente, a vitória nas decisões,

atitudes, conflitos etc. que pudessem, na prática de suas atribuições, desencadear algum

atrito ou vontade diversa à do dirigente maior da educação no período.

Verifica-se, também, que nos regulamentos por meio dos quais os professores

eram eleitos por seus pares para participar do Conselho, esses constituíam a minoria

absoluta do colegiado. Nesse sentido, tais membros, teoricamente, não tinham

condições de se articular numa participação mais efetiva nas decisões que cercavam a

educação regional. Essa situação pode ser visualizada mais claramente no quadro a

seguir:

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Ano Componentes Forma de Ingresso 1889 03 membros natos

01 professor Eleito

1891 Diretor Geral 02 professores do Liceu 02 professores públicos primários da capital 04 pessoas distintas

*A Lei não cita se eleitos ou indicados. Eleitos Escolhidos pelo Presidente do Estado

1896 Presidente do Estado (Presidente nato) Diretor Geral Secretário do governo 02 cidadãos *não possuía professores na sua composição

Nomeados pelo Presidente do Estado

1903 Diretor Geral Presidente da Câmara Municipal da capital Secretário do governo 01 professor do Liceu 01 professor do ensino primário da capital 03 cidadãos

Eleito Eleito Nomeados pelo Presidente do Estado

1910 A legislação não cita a composição do Conselho - Quadro 3 - Composição do Conselho Superior da Instrução Pública de Mato Grosso (1889-1910) Fonte: Silva (2003, p. 29).

A partir desses dados, pode-se inferir que, estando assim composto, o poder era

efetivamente exercido de acordo com a vontade política dominante. Segundo Silva

(2003, p. 31), os membros escolhidos pelo Presidente do estado de Mato Grosso

(Coronel, Desembargador, Major, dentre outros) faziam parte da elite, ficando claras, ou

explícitas, as linhas de autoridade24.

Os regulamentos e o regimento interno do Conselho foram construídos dentro de

ideais de absoluto controle administrativo e político por parte do Presidente da

Província e, posteriormente, do Estado. A propósito, Weber (1999, p. 193) esclarece

que:

Toda dominação manifesta-se e funciona como administração. Toda administração precisa, de alguma forma, da dominação, pois, para dirigi-la é mister que certos poderes de mando se encontrem nas mãos de alguém. O poder de mando pode ter aparência muito modesta [...]. Isso ocorre, em mais alto grau, na chamada administração diretamente democrática. Chama-se de “democrática” por duas razões que não coincidem necessariamente, a saber: 1) porque se baseia no pressuposto da qualificação igual, em princípio, de todos para a direção dos assuntos comuns, e 2) porque minimiza a extensão do poder de mando.

24 Expressão tomada por empréstimo de Reis e Filho (1995, p. 23), quando estes se reportam a uma

reforma legislativa no estado de São Paulo.

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Diante disso, a ocupação dos cargos eletivos por parte dos professores

escolhidos entre si poderia demonstrar que a comunidade participava de um órgão

importante para a educação, fazendo parte de um processo democratizante, e

minimizava, assim, o poder de mando. Entretanto, Silva (2003) adverte que não

constatou nas fontes pesquisadas indícios de decisões, discussões, propostas, dentre

outros, que demonstrassem alguma participação democrática.

Os membros eleitos tinham mandato de dois anos, podendo ser reeleitos. Os que

ocupavam cargo de confiança, como o Diretor da Instrução Pública e o Secretário do

Governo, permaneciam enquanto estivessem ocupando a função, pois a membresia do

Conselho era destinada ao cargo e não à pessoa que o ocupava.

É importante observar que os membros que ocupavam o cargo através da

nomeação do Presidente do Estado nele se mantinham enquanto a sua permanência

fosse de interesse da Presidência, conforme se pode observar no Regulamento de 1896,

em seu art. 140: “[...] que os conservará enquanto bem servirem.”

Segundo Silva (2003), a partir do Regimento Interno de 1903, o Conselho

Superior da Instrução Pública passou, além das funções deliberativas previstas nos

regulamentos anteriores, a decidir em grau de recurso em última instância sobre as

reclamações, as penas impostas pelas autoridades de ensino, na forma dos regulamentos

da Instrução Pública; a aprovar, mediante parecer de uma comissão especial por si

nomeada, os métodos e sistemas práticos de ensino, assim como a adoção e revisão ou

substituição de compêndios escolares; e a processar e impor penas regulamentares aos

membros do magistério público.

Com relação aos livros didáticos, o referido Regimento é mais enfático e cria

uma comissão especial eleita pelo Conselho para analisar as obras didáticas. É o que se

pode observar nestes artigos:

Art. 8º: Ao Conselho Superior compete além das atribuições que como autoridade consultiva lhe são confferidas pelas leis e regulamentos da Instrução Publica, especialmente: [...] 2: Approvar mediante parecer de uma commissão por si nomeada os methodos e sistemas práticos de ensino, assim como a adocção e revisão ou substituição de compêndios escolares. [...] Art. 22º: Os livros e trabalhos didactos submettidos à approvação do conselho serão sempre sujeitos ao parecer de uma commissão especial eleita pelo mesmo conselho, que attenderá na escolha a competência dos nomeados no assumpto sobre que versar o trabalho. (MATO GROSSO, 1903).

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Talvez, dada a importância dos livros didáticos na manutenção e legitimação do

poder instituído, observa-se que nas atas do Conselho os pareceres das comissões

formadas para aprovar essas obras eram fundamentados e representativos das ideias

vigentes, bem como das concepções de métodos de ensino e leitura. Isso pode ser

constatado na Ata de Reunião do Conselho do dia 21 de agosto de 1915, cuja pauta era

a análise de vários livros, dentre eles o Primeiro Livro de Leitura, de Álvaro Paes de

Barros, apresentados para apreciação e possível adoção. Depois de uma minuciosa

explanação do método analítico, a comissão emitiu o seguinte parecer:

Encarregados de dar parecer sobre o “Primeiro Livro de Leitura” de Álvaro Paes de Barros, apresentado ao Conselho Superior da Instrução Pública do Estado de Matto Grosso, temos a honra de o fazer do seguinte modo: [...] Enfim, o livro consiste numa miscellania de processos sem obedecer a nem um methodo, sem gravuras cujo alcance é tão fácil de se conceber; não está nos casos de ser approvado principalmente para Matto Grosso, que já iniciou a introdução do methodo racional - o analytico - de acordo com a orientação trazida pelos professores normalistas contractados em S. Paulo para reformar o nosso ensino. Cuyaba 28 de agosto de 1915. Alexandre Magno Addor, relator. Philogonio de P. Corrêa, Jayme Joaquim de Carvalho. Posto em discussão e a votos o parecer supra, foi elle approvado no sentido de não ser acceito o livro de que se trata. (ACTA DO CONSELHO SUPERIOR DA INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1915, p. 47-49).

Esse trecho conclusivo do parecer da Comissão merece destaque por dois

importantes motivos para esta pesquisa: o primeiro diz respeito ao poder de veto do

Conselho Superior da Instrução Pública no tocante à escolha dos livros didáticos serem

utilizados nas escolas públicas de Mato Grosso; o segundo está relacionado à

importância dada pela comissão às gravuras utilizadas nos livros.

Como toda ação desencadeia uma reação, Bittencourt (2004, p. 482) acredita que

as editoras, sabendo da ligação entre o livro didático e o poder instituído, traçavam

estratégias para aprovação de suas obras:

As estratégias das primeiras editoras centraram-se na aproximação ao poder institucional, podendo-se entender por essa via o critério de escolha dos autores. Estes correspondiam a um perfil que expressava essa dependência política. Compêndios, cartilhas eram textos que precisavam da aprovação institucional para que pudessem circular nas escolas, o que acabava por direcionar as opções dos editores na seleção dos autores. Entende-se, portanto, a preferência por autores oriundos do Colégio Pedro II ou da Academia militar. Além de

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assegurarem uma vendagem, dificilmente seus nomes seriam vetados pelos conselhos educacionais que avaliavam as obras.

Mediante esse contexto, torna-se importante ampliar o debate da produção

didática também para a esfera política. Comece-se por observar o livro Breves Lições de

História do Brasil, de Creso Braga (1922), em cuja capa o autor abre uma nota

exemplificando as estratégias políticas utilizadas para a aceitação e aprovação da obra

pelos Conselhos Superiores da Instrução Pública de diversos estados:

Figura 4 - Capa do livro Breves lições de História do Brasil Fonte: Creso Braga (1922).

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Adiante, as primeiras páginas do livro são destinadas às transcrições dos

Pareceres dos Conselhos, inclusive o de Mato Grosso, favoráveis a sua adoção:

ESTADO DE MATTO GROSSO Approvação e adopção officiaes pela Instrucção publica e pelo Governo do Estado de Matto Grosso. SECRETARIA DO GOVERNO PARECER Nº 4 A commissão especial do Conselho Superior da Instrucção, á qual foi presente, para emittir seu parecer, a petição do Sr. Creso Braga, para que seja adoptado, nas escolas publicas, o seu livro intitulado “BREVES LIÇÕES DE HISTÓRIA DO BRASIL”, tendo estudado detidamente o mesmo livro e; Considerando que dentre os diversos livros sobre História do Brasil, em uso nas nossas escolas, os que mais completam o seu fim tornam-se, entretanto, deficientes para o aproveitamento das classes mais adiantadas; Considerando que um livro, tratando dos factos do Brasil, desde o seu descobrimento até os nossos dias, porém, concisos, historiados succintamente e em fiel ordem chronologica, seria de grande utilidade para o conhecimento da vida do nosso Paiz, aos nossos jovens conterrâneos; Considerando que o livro intitulado “Breves Liçções de História do Brasil” preenche perfeitamente o fim desejado, podendo servir não só para estudo da nossa História às classes mais adiantadas das escolas, mas, também como livro de leitura, - é a mesma commissão de parecer que seja adoptado, nas escolas primárias do Estado, por sua verdadeira utilidade, o livro “Breves Lições de História do Brasil” de Creso Braga. Sala das sessões em Cuyabá, vinte e oito de Fevereiro de 1920. (a a) Antonia J. Ribeiro de Farias, Relatora João Pedro Cardés. Philogonio de Paula Corrêa. CONFERE COM O ORIGINAL. Secretaria do Governo do Estado de Matto Grosso, em Cuyabá 23 de junho de 1920. J. Dias de Barros / Official maior / VISTO / Padre M. Gomes de Oliveira. Director. NOTA - Segundo as normas administrativas do Estado de Matto Grosso, a adopção do livro resulta do acto acima que é, a um tempo, de aprrovação e adopção. (BRAGA, 1922, p. XXIX-XXX).

Posteriormente aos Pareceres, o autor denomina Juizo critico as diversas

congratulações de políticos e pessoas ilustres, aprovando-o e parabenizando-o pela

referida obra. É o que se pode verificar na felicitação do Secretário Geral do estado do

Rio de Janeiro, Enéas de Castro:

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Meu caro Creso. Tenho em meu poder o volume de suas “Breves Lições de História do Brasil”, que teve a gentileza de me mandar. Li com toda attenção o seu apreciado trabalho e felicito o meu illustrado amigo pela rara felicidade que teve na concepção d’aduella obra. Simples, de uma appehensão fácil para os pequenos leitores a quem é destinado, vem o seu trabalho prestar um relevantissimo serviço à nossa mocidade, bastando para proval-o a boa acolhida que teve da Instrução Publica dos Estados de S. Paulo e Rio de Janeiro. Agradecemos a sua lembrança, subscrevo-me com grande estima e muita consideração. Att.º Adm.º Obr.º e muito seu amigo (a) Enéas de Castro. Secretário Geral do Estado do Rio de Janeiro.

(BRAGA, 1922, p. LII).

A partir desse texto, apreende-se a intenção do autor/editora em demonstrar a

aproximação do autor com o poder instituído, valendo-se, inclusive, de laços de

amizades para dar maior legitimidade à aceitação da obra.

O último tópico, antes do prefácio, intitulado Principaes julgamentos da

Impresa, é destinado a explicitar a aceitação da obra didática pelos diferentes jornais e

periódicos em circulação do período. O trecho do Jornal do Commercio, datado de 11

de março de 1919, explicita o envolvimento direto do autor com o poder instituído e a

aprovação do livro pela imprensa local:

PRINCIPAES JULGAMENTOS DA IMPRENSA LIVROS NOVOS Breves Lições de Historia do Brasil - Creso Braga. O Sr. Creso Braga pertence a essa nova geração brasileira que trabalha e se esforça para produzir alguma cousa de praticamente útil. Funccionario do Ministerio da Agricultura, há pouco tempo teve occasião de prestar bons serviços ao Estado do Rio de Janeiro, como official de gabinete das duas administrações precedentes. No meio de todos esses seus affazeres, o Sr. Creso Braga encontrou momentos para fazer um bello trabalho didactico a que deu o título de Breves Lições de Historia do Brasil. Esse trabalho é de grande utilidade para o ensino. Tem mesmo certas originalidades, na feitura e disposição dos assumptos. [...]. Além disso, a exposição histórica é narrada de maneira concatenada, trazendo os diversos tópicos dos nossos annaes pequenas indicações ao lado, ou à margem. E, assim, o ensino é dosado de modo a se ter no fim da leitura uma sensação de conjucto do que fomos, do que somos e do que seremos historicamente. Por tudo isso, o livro do Sr. Creso Braga é no gênero, um dos melhores trabalhos à docência escolar. Agrada e educa, junta o útil ao agradável. E tudo isso a par de uma attação sympathica de confecção material, o que, comquanto secundaria, não deixa de ter já sua importância para o sucesso de livraria. (JORNAL DO COMMERCIO, 11 mar. 1919).

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Possivelmente, o fato de Creso Braga ter pertencido ao quadro do governo tenha

rendido maior credibilidade a sua obra, e disso, por sua vez, o autor/editora talvez tenha

tirado amplo proveito.

A referida passagem sob análise do Jornal do Commercio faz alusão a um rol de

julgamentos apresentados por Creso Braga em seu livro. Ou seja, o autor/editora

utilizava-se também do apoio dos grupos de intelectuais para ampliar a aceitação de sua

obra. O autógrafo de Ruy Barbosa, um dos principais intelectuais e políticos da época,

no livro Breves Lições de História do Brasil, representa a utilização estratégia de

legitimação do livro didático:

Figura 5 - Autógrafo de Ruy Barbosa25 Fonte: Braga (1922, p. LXXVII-LXXIX).

O julgamento do jornal O Sericicultor, de Barbacena, de 27 de abril de 1919, a

respeito desse mesmo livro, destaca a importância das gravuras utilizadas por Braga em

sua produção:

HISTÓRIA DO BRASIL O Sr. Dr. Creso Braga, como novidade em trabalhos de tal disciplina, adoptou em sua obra o systema de estampar à margem de cada

25 Transcrição do “Autographo de RUY BRABOSA: Para as ‘Breves Lições de História do Brasil de

Creso Braga - A pátria é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o tumulo dos antepasfados: a comunhão da lei, da língua e da liberdade. Os que servem são os que não infamam, os que não conspiram, os que não sublevam, os que não desalentam, os que não emudecem, os que não acovardam, mas resistem, mas ensinam, mas se esforçam, mas pacificam, mas discutem, mas praticam a justiça, a admiração, o enthusiasmo. Ruy Barbosa’.”

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episódio ou acontecimento uma indicação resumida do texto, o que é de grande proveito para a retentiva, ferindo-lhe a impressionalidade, por essa espécie de chamadas, que methodizam a memória e facilitam a recapitulação, assim com as consultas. Com muito apreço, qui exprimimos as nossas sinceras felicitações ao dr. Creso Braga, e tomamos a liberdade de chamar a attenção do magistério para esse excellente trabalho, graças ao qual muito fácil se torna o mister de incutir no espírito das creancas, os acontecimentos da nossa historia. (O SERICICULTOR, 27 abr. 1919 apud BRAGA, 1922, p. LXIX).

Essas ilustrações tinham um papel fundamental, não podendo, absolutamente,

ser desprezadas, uma vez que se constituíam numa importante ferramenta do método

intuitivo, que estava em implantação nos diversos estados brasileiros nesse período,

sobretudo em Mato Grosso:

As estampas visavam tornar o ensino mais agradável evitando-se “fadigar o intelecto das crianças”. Desse modo, apresentar um livro sem gravuras naquele período era inadmissível, pois evidenciava desconhecimento dos princípios básicos que regiam o ensino “moderno”. (AMÂNCIO, 2000, p.190).

Analisando os livros didáticos utilizados nas escolas mato-grossenses do período

em tela, constata-se que os autores e editoras gradativamente se adequavam às novas

exigências e que, a partir dos anos de 1920, as estampas foram se tornando cada vez

mais frequentes, como também se observa no livro Minha Pátria - Ensino de História

do Brazil, de J. Pinto e Silva (1922):

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Figura 6 - Capa do livro didático Minha Pátria

Fonte: J. Pinto e Silva (1922).

Para Bittencourt (1993, p. 75), uma vez que se faz necessário criar uma

legislação para evitar desvios, comprova-se que o projeto concebido pelo poder estatal

sofria distorções em seu processo de elaboração.

Se os livros didáticos foram, de fato, colaboradores da disseminação dos ideais

republicanos, é imprescindível, portanto, que se discutam suas dimensões de lugar de

memória e de formadores de identidades.

Para Silva (2007), a sociedade representada por esse material didático-

pedagógico corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações diversas,

segundo a época e o local em que se inserem. Assim, não são um simples espelho da

realidade, antes a modificando para educar gerações, às vezes deformando imagens,

esquematizando-as, modelando-as, frequentemente de forma favorável.

Sistematicamente, silenciam os conflitos sociais, os atos delituosos ou a violência

cotidiana, sentido em que Choppin (2004, p. 557) diz: “[...] os historiadores se

interessam justamente pela análise desta ruptura entre a ficção e o real, ou seja, pelas

intenções dos autores.”.

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Resgatar o livro didático como fonte documental é uma difícil e fascinante

caminhada, devido, por um lado, a sua complexidade e, por outro, ao seu suporte

privilegiado para recuperar os conhecimentos considerados fundamentais para

determinada sociedade em determinada época.

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2 O ENSINO DE HISTÓRIA E A PRODUÇÃO DIDÁTICA

Figura 8 - Livros didáticos utilizados nas escolas mato-grossenses durante a Primeira República Fonte: BRAGA (1922); POMBO (19..); SILVA (1922)

O livro caracteriza-se por si só como um objeto histórico, cultural, social,

educativo e didático, fato que amplia o interesse desta pesquisa por esse objeto

multifacetado, sobre o qual, por conseguinte, se viabiliza o lançamento de múltiplos

olhares. Para Silva (2007, p. 44), o pesquisador, ao tomar o livro como objeto de estudo,

em especial o didático, deve ter a clareza de que esse material, assim como a escola,

está inserido em um contexto político e social, de sorte que não há como distanciá-lo

das ideologias impressas pelo espaço-tempo em que fora produzido.

Nessa perspectiva, acredita-se que uma investigação direcionada para o livro

didático de História deve, em primeiro lugar, mobilizar o contexto histórico, social e

cultural dessa disciplina mas não com o objetivo de desencadear uma discussão da

Figura 7 - Desenho da fachada do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso Fonte: Revista IHGMT (2001).

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história das disciplinas escolares, mesmo porque esse âmbito de investigação foge do

que propõe esta dissertação. De outro modo, considera-se pertinente tecer essa

abordagem, ainda que rapidamente, para que sejam compreendidos os caminhos

percorridos pela construção da historiografia brasileira e sua influência na construção e

nas modificações empreendidas no livro didático de História.

Isso se justifica pelo fato de os estudos relacionados ao livro evidenciarem que

ele carrega marcas do seu tempo, da sociedade em que está inserido, procurando, dessa

forma, atender a ideias, conceitos e práticas do respectivo período. Logo: “[...] não há

produção cultural que não empregue materiais impostos pela tradição, pela autoridade

ou pelo mercado e que não esteja submetida às vigilâncias e às censuras de quem tem

poder sobre as palavras e os gestos.” (CHARTIER, 1990, p. 137).

Sabe-se que a constituição do objeto livro é o resultado de um complexo de

elementos materiais - tinta, papel, letras e imagens -, mas, sobretudo, da ação sofrida

por um complexo de relações de poder da realidade sócio-histórica. Nesses termos,

conhecer essas relações de poder, mesmo que superficialmente, as quais constituem o

percurso do ensino de História no transcorrer dos anos, contribuirá para a tessitura desse

cenário fundado em/por movimentos de contradição.

Abud (2008, p. 29) esclarece que a trajetória da história como disciplina

escolar no Brasil se efetivou com a criação do Colégio Pedro II, no final da regência de

Araújo Lima, em 1837, mesmo ano de fundação do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro (IHGB), estabelecendo-se nesse período uma estreita relação entre ambas as

instituições:

Enquanto o Colégio Pedro II fora criado para formar os filhos da nobreza da corte do Rio de Janeiro e prepará-los para o exercício do poder, cabia ao IHGB construir a genealogia nacional, no sentido de dar identidade à nação brasileira e “formar, através do ensino de História, uma ciência social geral que (ensinasse) aos alunos, ao mesmo tempo, a diversidade das sociedades do passado e o sentido de sua evolução.” (FURET apud ABUD, 2008, p. 30).

Ainda segundo a autora, após a Independência de 1822, momento em que o

Brasil se estruturava como nação, a História acadêmica e a História da disciplina escolar

confundiam-se em seus objetivos, pois a nacionalidade era a grande questão posta à

sociedade brasileira. As classes dirigentes atribuíam a si mesmas o direito de escolha do

passado, visto como um caminho percorrido pela humanidade em direção ao progresso,

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iluminado pelo conceito de nação. “A História era o estudo das mudanças e, no final do

século XIX, era um método científico e uma concepção de evolução: ela se desenvolve

buscando o fortalecimento do Estado, conformação material da nação.” (FURET apud

ABUD, 2008, 30).

Acerca do assunto, Bittencourt (1993, p. 138) assim se posiciona: “[...] a

constituição da História como disciplina escolar definiu-se inicialmente pelas propostas

dos liberais brasileiros envolvidos nos debates educacionais da década de vinte do

século XIX.” Portanto, havia um desejo dos intelectuais em construir uma história laica

da nação que se formava sob a dominação de um Estado independente: “[...] mas não

[se] desejava[m] abolir os princípios educativos da Igreja Católica.”

Contudo, para se conhecer mais a fundo a natureza dessa proposta, procedeu-se

à análise do Relatório (MATO GROSSO, 1911) expedido pelo professor Leowigildo

Martins de Mello, diretor da Escola Normal e Modelo anexa, à Secretaria dos Negócios

do Interior, Justiça e Fazenda de Mato Grosso, responsável pela pasta da Educação no

Estado no período em questão. No documento, capta-se que o histórico da construção da

escola laica deixa claro o não rompimento com os valores cristãos:

A natural evolução da educação condduziu a escola, através de phases diversas, até ao typo leigo, hoje universal. - Na antiga escola oriental a educação tinha por fim a religião, a divindade; na grego-romana, a convivência social, o estado; na christã, o homem inseparável das suas relações com Deus; na escola hodierna, a educação tem por fim a formação do cidadão, a formação do organismo individuo-social. Primeiramente educou-se o homem para a divindade; mais tarde, só para o Estado; ultimamente, o homem pelo homem e para Deus; na actualidade educa-se o homem para si mesmo e para a sociedade. Esta ultima educação é o typo da escola leiga moderna. É uma escola humana, sem religião, mas não é contra Deus; e tanto assim é, que reconhece e observa o dever de deixar a cargo da família do educando, o direito de ensinar a este a religião que melhor lhe pareça.

Naquele momento, a História inserida nos currículos tinha como principal

objetivo legitimar o poder e os privilégios da elite brasileira, tal como se dava o

processo de inculcar os padrões culturais do mundo cristão, símbolo do mundo

civilizado.

Dentro das perspectivas dos educadores desejosos de ampliar as disciplinas do ensino elementar, o ensino de história teria dois objetivos. Serviria como lições de leitura, com temas menos áridos, para “incitar a imaginação dos meninos” e para fortificar o “senso moral”, aliando-se à Instrução Cívica, disciplina que deveria substituir

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a “Instrução Religiosa”. [...] o ensino de História era considerado como necessário, prevalecendo-se como objetivo fundamental a formação moral, concebendo-se a História como exemplo para futuras gerações. (BITTENCOURT, 1933, p. 151-157).

Na Primeira República, o movimento republicano utilizou-se de inúmeros

meios para formar os cidadãos brasileiros nos moldes que julgava pertinente com os

seus ideais. Várias foram as instituições que atuaram nesse projeto, dentre elas o IHGB,

associações, clubes e as escolas. Estas, por sua vez, foram de suma importância para a

disseminação dos ideais republicanos, pois se formaram através do ensino das diferentes

matérias e principalmente de História várias gerações de estudantes que aprenderam

determinados valores morais e cívicos e possivelmente os colocaram em prática.

Uma das diferenças fundamentais nos programas de História do Império para

os da República situa-se no fato de que naqueles primeiros uma parcela dos heróis havia

descido dos Céus, ou seja, os temas históricos iniciavam-se com narrativas bíblicas e

personagens da História Sagrada; já nestes últimos, os vultos destacados para servir de

modelo representativo das virtudes da nação eram os seres terrenos.

Corsetti (1999, p. 740-747), ao realizar um estudo sobre o ensino de História na

Primeira República no Rio Grande do Sul, afirma que com esse regime de governo

houve um deslocamento dos feitos destacados da Igreja - a Criação, a Queda, o dilúvio,

Abraão, José, Moisés e o Deserto, os profetas que anunciaram o Messias, o Salvador do

mundo - para as virtudes heroicas e patrióticas de algumas figuras - Colombo, Cabral,

Anchieta, Tomé de Souza, Henrique Dias, Tiradentes, D. Pedro I, D. Pedro II. Para o

autor, podia-se acrescentar mais um ou outro, mas a lógica não era alterada. Foi a fase

da configuração dos grandes vultos da Pátria, de cidadãos civis em substituição aos

heróis bíblicos, momento em que emergiu a preocupação em delinear os contornos dos

heróis nacionais. (BITTENCOURT, 1993, p. 167).

Na acepção de Schena (1999, p. 262), no Brasil o lugar privilegiado da

produção historiográfica permaneceu sob o domínio de um grupo muito restrito, que se

aproximava da tradição iluminista e desempenhou um papel decisivo na construção da

historiografia e das visões e interpretações que seriam propostas nas discussões da

questão nacional.

Foi durante o processo de consolidação do Estado Nacional que se viabilizou

um projeto para pensar a História brasileira de forma sistematizada, cujo

empreendimento contou com a contribuição do IHGB, com relação ao qual interessa,

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neste estudo, mostrar a orientação por ele adotada em face da História. Nesse sentido,

vale lembrar que o papel reservado a esse estabelecimento, conforme adverte Schwarcz,

(1993, p. 99) vinculou-se à composição de uma História nacional para um país

extremamente vasto e carente de delimitações não apenas territoriais. Assim, unificar a

nação significava construir um passado que se pretendia singular, embora claramente

marcado pelo perfil dos influentes grupos econômicos e sociais que participavam dos

diversos Institutos, nos quais os sócios eram escolhidos, antes de tudo, em função de

suas relações sociais.

Em Mato Grosso, a instalação do Instituto Histórico e Geográfico fez parte das

comemorações do bicentenário da fundação de Cuiabá, tanto que a ata de criação da

entidade data de 1º de janeiro de 1919. Porém, somente quase um século depois, ao se

analisar o regimento interno do Instituto, percebeu-se a influência das relações sociais e

econômicas na escolha dos sócios:

CAPÍTULO V

Dos Sócios Art. 14 - o Instituto terá as seguintes categorias de Sócios: -Fundadores -Efetivos -Correspondentes -Beneméritos -Honorários [...] Art. 18 - São Sócios Beneméritos os que, não sendo Sócios efetivos ou correspondentes, proporcionarem real benefício material ao Instituto. (REVISTA IHGMT, 1994).

Percebe-se que a composição do IHGMT parece seguir a mesma lógica do

IHGB, ou seja, podem ser sócios, beneméritos, aqueles que: “[...] proporcionarem real

benefício material ao Instituto.” Nesse sentido, apoiando-se nas palavras proferidas por

D. Aquino Corrêa26 (1919), em seu discurso pronunciado por ocasião da instalação do

Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, pode-se afirmar que a árvore do pau-

brasil, símbolo do IHGB: “[...] alargara a majestosa ramalhada por todos os Estados,

onde abrolharam, em rápida floração luminosa, as sociedades congêneres.”

Ao analisar a ata da sessão fundadora do Instituto Histórico e Geográfico de

Mato Grosso, nota-se que seus primeiros membros pertenciam à elite econômica, social,

26 Presidente do Estado, bispo e primeiro presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.

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política e intelectual do Estado, o que se pode evidenciar na composição dos sócios

fundadores:

- Presidente: D. Francisco de Aquino Corrêa - intelectual, bispo e Presidente do

estado de Mato Grosso;

- Secretário: Antônio Fernandes de Souza - Contador Geral da Usina do Itaicy,

o maior empreendimento industrial do século XIX; jornalista e historiógrafo;

colaborador de diversas revistas e jornais do Estado;

- 1º Vice-Presidente: Joaquim Pereira Ferreira Mendes - Desembargador,

Secretário de Estado dos Negócios do Interior, Justiça e Fazenda, no período de 1912 a

1915;

- 2º Vice-Presidente: Philogônio de Paula Corrêa - Professor de História,

político (exerceu o mandato de vereador e Deputado Estadual).

Schwarcz (1993) observa que a composição social dos associados dos

Institutos Históricos e Geográficos denotava claramente as ligações com os grupos de

poder econômico e político da época. Além disso, compreende que esses Institutos

tinham como objetivo construir uma história nacional: “[...] recriar um passado,

solidificar mitos de fundação, ordenar fatos buscando homogeneidade em personagens e

eventos até então dispersos.” (p. 101).

Pesquisando as notícias publicadas na imprensa local em 1919, referentes à

fundação do IHGMT, percebe-se não apenas a elitização dos sócios fundadores, mas

também a apropriação da bipolarização social: elite x povo. O jornal A Cruz, de 20 de

abril de 1919, assim descreve a solenidade:

Às 19 horas realizou-se em o Palácio da Instrução, a segunda parte do programa, que constou da inauguração do Instituto Histórico de Mato Grosso. Achando-se presentes ao ato as dignas autoridades do estado, representantes de todas as classes sociais, foi por S. Exa. Revmo. D. Aquino Corrêa, que é também presidente do Instituto, aberta a sessão, produzindo magistral peça oratória, escolhendo por tema a divisa: “Pro Pátria cognita atque immortali”. Ouviu-se em seguida o hino de Mato Grosso, cantado por 21 alunas da qual, usou da palavra o professor Pilogônio de Paula Corrêa, que empolgou por espaço de uma hora o seleto auditório, sendo ao terminar delirantemente aplaudido. Encerrada a sessão, retiraram-se os numerosos assistentes para a Praça da República, onde a grande massa popular, num borborinho de festa deleitava-se com a exibição de escolhidos filmes cinematográficos.

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A bipolarização social representada no jornal católico mato-grossense A Cruz,

conduziu a reflexão acerca da concepção de que a sociedade se formava com o

nacionalismo: as elites de um lado e o povo de outro, este último sendo considerado

simplesmente como massas que deveriam ser guiadas por aquelas primeiras.

Nesse movimento, a historiografia discute a definição da nação brasileira, bem

como define o outro em relação a ela, seja no plano interno ou externo. Índios e negros

ficaram excluídos desse projeto, por não serem portadores da noção de civilização, haja

vista que: “[...] o conceito de nação operado é eminentemente restrito aos brancos.”

(GUIMARÃES, 1988, p. 7).

Em 1844, o IHGB promoveu um concurso com o objetivo de premiar trabalhos

que elaborassem planos de escritura da História do Brasil. A tese vencedora foi a de

Karl Friedrich Philipp Von Martius, naturalista alemão e sócio correspondente do

Instituto, a qual se centrou nas três raças formadoras do povo brasileiro e defendia que o

historiador deveria mostrar a missão específica reservada ao país: “[...] realizar a idéia

da mescla das três raças.”

Qualquer que se encarregue de escrever a História do Brasil, paiz que tanto promette, jamais deverá perder de vista quais os elementos que ahi concorrerão para o desenvolvimento do homem. São esses porém de natureza muito diversa, tendo convergido de um modo muito particular as três raças... (REVISTA DO IHGB, data apud SCHWARCZ, 2002, p. 112).

Para Müller (1999, p. 72), os membros do IHGB que compuseram a História

do Brasil terminaram por estabelecer a ideia de uma hierarquia entre as raças: ao branco

cabia representar o papel de civilizador, sendo também sua responsabilidade aperfeiçoar

o índio; e o negro era o responsável pelo atraso da nação. “A interpretação racial que

Von Martius elabora do Brasil, tenderá, em anos posteriores, a ser recuperada. [...] e, a

idéia da existência de uma hierarquia entre as raças permanecerá.” (SCHWARCZ, 2002,

p. 112-113).

Um texto localizado no Arquivo da Escola Estadual Liceu Cuiabano, intitulado

“Formação do povo brasileiro” e que, segundo informações apresentadas na capa do

documento, trata de uma tese para concorrer à vaga da cadeira de História da Escola

Normal Pedro Celestino, inaugurada em 1º de fevereiro de 1911, nesta capital,

demonstra que a ideia de centrar no tema Formação do povo brasileiro, no ensino de

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História, permeou não apenas os discursos dos sócios do IHGMT, mas também a

formação de professores.

Figura 9 - Tese para o concurso à cadeira de História da Escola Normal Pedro Celestino Fonte: Arquivo do Liceu Cuiabano.

Coursetti (1999, p. 740) informa que os Institutos Históricos e Geográficos

Brasileiros se constituíram em espaços de um saber histórico característico do século

XIX. Assim, tinham cunho oficial, típico da congregação, e seu interior era composto

por uma elite intelectual aliada à elite econômica e financeira. Ressalte-se que os

Institutos tinham interesses políticos evidentes, já que a concepção de História ali

difundida relacionava-se à busca de eventos que possibilitassem a construção de uma

identidade nacional.

Em face disso, o descobrimento foi resgatado como um marco de origem. A

independência ganhou qualidade de justiça e patriotismo, tendo sido transformada num

recomeçar da vida nacional fundamental para a sua identidade. Nessa linha de atuação,

buscou-se a definição de uma cronologia histórica necessária para a configuração da

imagem de nação.

Esse modelo historiográfico parece que tomou fôlego e espalhou-se nas

diferentes Províncias/Estados brasileiros. Em Mato Grosso, apesar de o Instituto

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Histórico e Geográfico ter sido fundado apenas em 1919, apreende-se essa cronologia

histórica a partir dos programas de ensino e dos livros didáticos adotados nas escolas

primárias e secundárias. Tal situação pode ser observada no quadro abaixo, que exibe a

seleção de conteúdos do programa de ensino de História do Liceu Cuiabano para o ano

letivo de 1887:

Conteúdos

Portugal no final do século XV, sua marinha exploração e Cristovão Colombo. 1 - Descoberta do Brasil e seus primeiros exploradores. 2 - Gentis do Brasil. 3 - Cristovão, Jaques, e Martin Affonso de Souza. 4 - Colonização de D. João III. Capitanias hereditárias e seus donatários. 5 - estabelecimento de um governo geral, Thomé de Souza até Mem de Sá. 6 - Divisão do Brasil em dois governos, sua reunião em um só - domínio da Espanha e estado em que se achava o Brasil. 7 - Francisco de Souza, Diogo Botelho, Manoel Telles Barreto. 8 - Nova divisão em dois governos, sua reunião em um só. Capitanias do norte. 9 - Primeira e Segunda invasão hollandeza até a retirada de Mathias de Albuquerque.

10 - Guerra hollandesa até a paz com a Hollanda. 11 - Administração civil e religiosa, questões sobre índios Irenaos Bechmau. 12 - Palmares, sua destruição, guerra dos Mascates e dos Emboabas. 13 - Colônia do Sacramento - Espanhóis no Sul e Franceses no Rioagano. 14 - Brasil no reinado de D. João V - 1706-1750. 15 - Jesuítas, lutas ao sul, Marques de Pombal. 16 - Primeiras idéias de Independência em Minas - Tiradentes. 17 - Transmigração da família real para o Brasil, franceses ao norte, e espanhóis ao Sul. 18 - Revolução pernambucana - 1817 - Regresso da família real. 19 - Regência de D. Pedro até Ipiranga. 20 - D. Pedro I.

Quadro 4 - Seleção de conteúdos do programa de ensino de História do Liceu Cuiabano - ano letivo de 1887 Fonte: Zanelli (2001, p. 89).

Desse modo, os esforços do IHGB foram conduzidos a escrever a História do

Brasil como um palco de atuação de um Estado iluminado e civilizador. Seus

componentes trataram a questão como um processo linear, cronológico, marcado pela

noção de progresso. A importância dessa postura em relação à sequência dos fatos

influenciou, também, os livros escolares. O parecer da Comissão Especial do Conselho

Superior da Instrução Pública de Mato Grosso, em 1920, que aprovou a adoção do livro

didático Breves Lições de História do Brasil, de Creso Braga, nas escolas locais,

demonstra tal influência: “[...] Considerando que um livro, tratando dos factos do

Brasil, desde o seu descobrimento até os nossos dias, porém, concisos, historiados

succintamente e em fiel ordem chronologica, seria de grande utilidade para o

conhecimento da vida do nosso Paiz, aos nossos jovens conterrâneos. (BRAGA,

1922, p. XXIX, grifos nossos).

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Entretanto, essa linearidade temporal da História, centrada sobretudo nos

aspectos políticos, também foi alvo de críticas por parte de alguns intelectuais mato-

grossenses. Essa situação pode ser observada no texto publicado pelo Correio do Estado

(1923), reproduzindo o discurso proferido aos professores da Escola Modelo de Cuiabá,

em 03 de março de 1923, por Rubens de Carvalho27, diretor da referida escola:

História de um povo a simples narração, em ordem chronologica, dos acontecimentos políticos. A isso chamaríamos história política. Ao lado della, no envolvimento de uma nação, ocorreram os acontecimentos scientificos, artísticos, religiosos, econômicos, etc. [...] A história de um povo, como simples narração de factos, não é sciencia, e, quando ensinada, tem por fim fazer conhecidos dos homens actuaes desse povo, as phases de seu desenvolvimento, as luctas sustentadas pela conservação de sua integridade, as etapas percorridas na conquista da sua civilização, os homens que mais se distinguiram pela sua intelligencia, pela sua abnegação, pelo seu civismo, os exemplos edificantes das collectividades e dos indivíduos que viveram nas diferentes épocas. A História de um povo, como interpretação e comparação desses mesmos factos, é sciencia e quando ensinada, tem por fim dar aos homens actuaes, pela esperiencia generalisada do que passou, a previdência so que há de vir, traçando-lhes o melhor caminho.

Perceber as contradições de apropriação dos discursos, neste momento, é

importante para refletir que: “[embora] as representações sociais aspirem à

universalidade, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam.”

(CHARTIER, 1990, p. 17). E, por mais que o discurso da elite intelectual republicana

tendesse impor uma ordem, a apropriação dependeu das competências, posições e

disposições dos sujeitos envolvidos no processo. É o que adverte Chartier (1990, p. 58-

59):

Ler, olhar ou escutar são, efectivamente, uma série de atitudes intelectuais que - longe de submeterem o consumidor à toda-poderosa mensagem ideológica e/ou estética que supostamente o deve modelar - permitem na verdade a reapropriação, o desvio, a desconfiança ou resistência. [...] Daí o reconhecimento das praticas de apropriação cultural como forma diferenciada de interpretação.

27 Rubens de Carvalho, professor paulista convidado e contratado pelo governo de Pedro Celestino para

empreender uma reforma na Escola Normal do Estado de Mato Grosso em 1923, vindo então a assumir sua direção e a participar, posteriormente, da reorganização do ensino primário em 1927, normatizada pelo Regulamento da Instrução Pública Primária nesse mesmo ano.

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Todavia, em meio a tais divergências, havia o consenso entre os intelectuais em

torno da construção da galeria dos heróis nacionais:

Inicialmente, percebe-se a preocupação quanto à determinação de uma periodização para a História brasileira marcada pelos eventos que levaram à constituição da nação brasileira, domesticando o tempo para a construção do sentimento de nacionalidade. Denotou-se, por outro lado, ao se construir uma História civil, a busca em situar os heróis, as figuras que deveriam permanecer na memória social como exemplos, seguindo os pressupostos de uma concepção de História “como mestra da vida”. (BITTENCOURT, 1993, p. 214-216).

Para Bittencourt (1993), foram se consolidando os personagens históricos

como modelos a serem seguidos, e tornou-se necessária a composição das galerias de

brasileiros ilustres, cujos feitos deveriam ser conhecidos e divulgados. Surgiram, assim,

compêndios empenhados na valorização do sentimento nacional, que foram a marca de

uma nova fase da produção em História.

Philogônio de Paula Corrêa28, em seu discurso por ocasião da instalação do

Instituto Histórico de Mato Grosso, ocorrida em 08 de abril de 1919, assim define a

missão do Instituto, conforme noticia a Revista do IHGMT (1994, grifos nossos):

Instala-se hoje o nosso Instituto histórico. A sua missão é nobre. É tornar bem conhecidas a nossa grandeza e a nossa raça. É imortalizar os feitos dos que se foram, é imortalizar os heróis, é escolher modelos para o futuro. [...] E eis porque, nesta data tomamos com os nossos antepassados o compromisso solene de publicar e seguir os ensinamentos da sua obra. E nem se diga que heróis não possuímos e que, por ser nova, não tem ensinamentos à nossa história.

O discurso de exaltação da mescla das três raças, da valorização da pátria e do

heroísmo propalava-se também em Mato Grosso. Corrêa, dando continuidade a sua fala,

congratula o Presidente Honorário, o Sr. Conde de Affonso Celso, pela produção do

livro Porque me ufano do meu paiz:

De mato Grosso se pode repetir o que do Brasil já disse o nosso presidente honorário, o Sr. Conde de Affonso Celso, no seu livro “Porque me ufano o meu país” verdadeiro hino às grandezas da Pátria.

28 Primeiro vice-presidente do Instituto Histórico de Mato Grosso, o professor de História Phifogônio de

Paula Corrêa se destacou em diversas atividades: foi diretor do Liceu Cuiabano, diretor da Escola Normal “Pedro Celestino”, diretor da Instrução Pública, historiógrafo, jornalista, membro da Comissão de Planejamento Econômico do Estado e membro fundador da Associação de Imprensa Mato-Grossense. Também, colaborou em vários periódicos e nas revistas do IHGMT e da Academia Mato-grossense de Letras (REVISTA DO IHGMT, 1994).

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É superior pela sua grandeza territorial, pela sua beleza, pela sua riqueza, pela variedade do seu clima, pelo elemento formador da sua população e pelos nobres predicados do caráter do seu povo. Não se humilha, nunca foi vencido, é de heroísmo a sua história.

A referida obra foi amplamente utilizada como livro de leitura no Brasil até o

início da década de 1940, tendo sido, possivelmente29, apropriado por professores mato-

grossenses.

Figura 10 - Capa do livro Porque me ufano o meu paiz, de Affonso Celso, 1905 Fonte: Celso (1905)

A referência ao livro em apreço justifica-se pelo fato de ele materializar as

representações de nação construídas pela elite naquele momento. Nessa perspectiva, o

livro traz não só a valorização do sentimento nacional, o civismo, como também a

exaltação da formação do povo brasileiro. Entretanto, ao exaltar as três raças, dissemina

29 Diz-se “possivelmente” porque não foram encontradas fontes documentais que explicitassem sua

utilização nas escolas mato-grossenses. Entretanto, o livro fora localizado no acervo das obras raras da Biblioteca Municipal de Cuiabá, fato que realmente não evidencia seu uso. Entretanto, a assinatura encontrada na contracapa do exemplar de Maria Luzia Antunes Maciel, primeira professora do 1º ano feminino da Escola Modelo de Cuiabá, e a data registrada a lápis, 31/06/1909, fornecem pistas de uma possível utilização, se não por alunos, por professores que trabalharam nesse período.

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em seus textos o mito da democracia racial e a hierarquização das raças, como se pode

perceber nos trechos a seguir:

O mestiço brazileiro Do cruzamento das três raças - portugueza, africana e índia - originou-se o typo do mestiço brazileiro, chamado mameluco quando provém da união entre branco e o selvagem, cafuz ou caboré quando se engendra da do selvagem com o negro. A denominação popular - caboclo - designa os primeiros, - cabra - os segundos. Por sua energia, coragem, espírito de iniciativa, força de resistência a trabalhos e privações, ganharam os mamelucos justa celebridade no período colonial. Apresentam os cafuzes as qualidades dos mamelucos, a par de seus defeitos, entre os quaes avulta o da imprevidência, total despreocupação do futuro. Os mestiços brazileiros contribuíram e contribuem efficazmente para a formação da riqueza publica. Só elles exercem certas tarefas. Não se prestam a trabalhos, sedentários, mas são exímios na exploração da industria pastorial, importante num paiz como o Brazil, onde abundam os campos. (p. 81-82, grifos nossos).

Para o autor da obra, os negros não serviam para os trabalhos sedentários, mas

eram importantes ao desenvolvimento do país como mão de obra nos trabalhos braçais.

Celso associava à imagem do negro a imprevidência e total despreocupação do futuro.

E, quanto aos brancos? Quais as representações elaboradas?

Os portuguezes A história não registra noticia de um povo que, com menos recursos, mais fizesse do que o portuguez. Larga é a sua contribuição para o progresso humano, que nunca empeceu. Subjugou o mar tenebroso, dilatou o perímetro aproveitável do planeta; e, sendo um dos mais diminutos e menos povoados reinos da Europa, formou esse colosso - o Brazil. Dá mostras de injustiça e ingratidão o brazileiro que ataca ou deprime Portugal. [...] A sua literatura, a sua arte? Portugal creou o estylo gothico manoelino; possue Camões, uma das summidades do pensamento universal. A sua heroicidade, a sua resignação, o seu esforço? Onde quer que os portuguezes fixem domicilio, na Asia, na Africa, na Oceania, dão bellos exemplos de união, patriotismo, amor ao trabalho, philanthropia; elevam monumentos à caridade e à instrução. Em parte nenhuma é infecunda a sua passagem. Desfralda-se altiva, há tantos séculos, a sua bandeira branca e azul! Jamais teve nodoas, a não serem de sangue briosamente vertido. Nunca se abateram os cincos escudos das suas armas. Honra aos desbravadores do nosso paiz! (p. 75-76, grifos nossos).

Parece que, para Affonso Celso, a imagem dos negros vinculava-se à

resignação e ao trabalho braçal, enquanto aos brancos cabia o heroísmo, o patriotismo e

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o reconhecimento intelectual e artístico. Teria sido essa a representação veiculada nos

livros escolares em circulação na Primeira República?

Circe Bittencourt (1993, p. 212-226) avalia que no período de transição do

Império para a República, devido à necessidade de formação de um sentimento

nacionalista aliado à concepção de História, intensificaram-se as divergências entre os

intelectuais quanto aos temas que caracterizariam o nacionalismo. Com efeito, dois

tipos de autores e obras passaram a marcar os livros didáticos de História nessa fase: os

provenientes do setor militar e os intelectuais representantes de uma ala mais

progressista das elites e que se aglutinavam em torno do cientificismo30 da Escola de

Recife.

Na acepção dos militares, a questão do nacionalismo voltava-se para a

necessidade de um reconhecimento de pátria, delineando-se o corpo da nação em seus

aspectos físicos, suas tradições de lutas e conquistas. Contudo: “[...] percebiam o povo

segundo a visão européia: mestiços que resistiam a se submeter à civilização. Era um

nacionalismo que se curvava diante da europeização.” (BITTENCOURT, 1993, p. 224).

Os intelectuais mais progressistas defendiam e concebiam o nacionalismo

como a busca de uma identidade, como meio de um reconhecimento das especificidades

da população e da cultura brasileira. Para exemplificar o posicionamento desses grupos,

Bittencourt (1993, p. 226, grifos nossos) refere-se a Silvio Romero:

Silvio Romero, representante desse grupo, incorporou em seu texto didático de História os estudos antropológicos para travar um combate contra o racismo e o exclusivismo difundido pela literatura histórica proveniente da Europa ilustrada e incorporada com serenidade pelas nossas elites econômicas e pelos intelectuais que se encarregavam de perpetuar, nas escolas, o ideário civilizatório branco. Insistiu na impossibilidade de simplificar a questão racial, divulgada pelos livros europeus, demonstrando a impossibilidade da humanidade ser dividida em raças “puras”: não é tudo; os próprios três troncos principais de nosso povo já eram resultado de diversos cruzamentos especiais.

Em meio a tais divergências, novamente algumas unanimidades permearam a

produção didática nacional, entre elas: a construção de uma História do Brasil fundada

pela ação de heróis e a institucionalização da História profana nas escolas:

30 O movimento intelectual cientificista aglutinava figuras notáveis da chamada Escola de Recife, tais

como Silvio Romero, João Ribeiro, Schiefler, Capristrano de Abreu, entre outros, tendo se oposto, no campo educacional, ao domínio religioso e à hegemonia cultural da França.

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Os liberais concordes com a disseminação da alfabetização, com o cerceamento do voto do analfabeto, situavam a escola como instituição privilegiada na constituição da cidadania. A História escolar teve como missão aliar-se ao ensino do civismo, encarregando-se da formação moral do cidadão. Este foi o período da consolidação da História como sustentáculo da “pedagogia do cidadão”. (BITTENCOURT, 1993, p. 221).

A seguir, destacam-se alguns trechos dos discursos de D. Francisco de Aquino

Corrêa, intitulado “Pro Pátria cógnita atque immortali!”, e de Philogônio de Paula

Corrêa, ambos proferidos por ocasião da instalação do Instituto Histórico e Geográfico

de Mato Grosso, em 1919, e publicados na Revista do IHGMT (1919). Por meio desses

textos, explicita-se a crença de que os ideais da elite intelectual local entrelaçaram-se

com os ideais da elite intelectual brasileira no que tangia à construção da nação:

PRO PÁTRIA CÓGNITA ATQUE IMMORTALI! Toda a propaganda é pouca. Com que entusiasmo, pois, não devemos saudar o aparecimento de uma instituição que visa peculiarmente “publicar os documentos concernentes à história, à geografia e arqueologia de Mato Grosso, bem como à etnografia dos seus indígenas e à biografia dos seus homens ilustres!”. Benvinda a sociedade que traz por tenção em suas pacíficas armas, esta palavra luminosa: Por pátria Cógnita! Pela Pátria sempre mais conhecida! [...] [...]. instala-se nesta hora, mercê de Deus, o seu Instituto Histórico, cujo esforço contínuo será reviver as gloriosas tradições e imortalizar a alma bandeirante e estóica do povo matogrossense. Eis porque, Srs., é com verdade emoção de patriotismo que, ao declarar aberta esta sessão e instalado o Instituto Histórico de Mato Grosso, repito solenemente a palavra que encerra, como em uma nobre legenda heráldica, toda a grandeza do seu formoso ideal cívico: Pro Pátria cógnita atque immortali! Pela Pátria conhecida e imortal! (p. 229-232).

O discurso de Philogônio de Paula Corrêa é enfático quanto ao patriotismo, aos

aspectos físicos da formação do Estado-nação e ao heroísmo militar:

[...] Mato Grosso colônia! Um século inteiro de esforço pela dilatação das nossas fronteiras, de organização da nossa grandeza territorial. É o século de Luiz de Albuquerque. Formou-se nele o matogrossense puro, produto genuíno do bandeirante ousado e do guapo guaicuru, que devia arrostar com estoicismo sem rival, entregue aos seus recursos exclusivos, as dificuldades sem nome, as tremendas convulsões que abalaram o gigante nesses treze lustros homéricos do nosso regime monárquico, durante os quais não sabe o historiador o que mais admirar: se a sabedoria dos nossos administradores,

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sintetizados na figura luminosa do Barão de Melgaço, se a facilidade com que entre nós sempre se aclimataram todas as idéias nobres, todas as conquistas do pensamento humano ao serviço da civilização, ou se a vibrante narrativa de um poema inteiro de bravuras praticadas pelos nossos heróis militares nessa epopéia brilhante da resistência à inesperada e brutal invasão paraguaia. Aqui germinou, com pujança sem par, a semente bendita do abolicionismo, regada por sociedades formadas dos mais eminentes filhos desta terra. Foram delirantes os festejos com que saudamos a notícia da Áurea lei, já antecipada pelos seus valorosos precursores de Miranda, que anos antes da sua promulgação tinham a felicidade de terminar os seus discursos bradando cheios de orgulhos: “já não há escravos em Miranda”. [...]. Narrar as nossas grandezas e transformá-las em proveitosas lições para o futuro, é a tarefa, árdua por certo, mas altamente patriótica, da nossa útil associação. [...] E amanhã quando as nossas grandezas e os ensinamentos do nosso passado, divulgados e aprendidos, fizerem inflamar no mais justo orgulho o coração matogrossense, sentir-nos-emos felizes por sermos os iniciadores desta cruzada bendita que tem por fim imortalizar os nossos mortos distintos. (p. 233-237).

Percebem-se no discurso de Philogônio de Paula Corrêa não só a influência dos

intelectuais militares e a visão eurocêntrica da História, como também a hierarquização

das raças. É interessante notar que, ao se referir à formação do povo mato-grossense,

designa apenas duas raças: o branco, representado pelo bandeirante; e o índio,

representado pelos povos indígenas guaicurus31. Quanto aos negros, estes não são

contemplados como integrantes desse processo formativo. Levando em consideração

que em Cuiabá, de acordo com o recenseamento de 1890, mais de 70% da população

era constituída por negros e pardos, essa omissão parece um tanto quanto curiosa. Ou

não?

Neste momento, é interessante ressaltar a afirmativa de Schwarcz (1993, p.

137), para quem: “[...] os institutos cumpriram à risca o ditado que diz que para bem

lembrar é preciso muito esquecer.” A amnésia de Philogônio de Paula Corrêa quanto à

importância dos negros na formação do povo mato-grossense foi ingênua ou proposital?

O certo é que os institutos, enquanto locus de uma elite intelectual, social, econômica,

política e cultural do país, contribuíram na construção de uma História branca e

europeia no Brasil.

Os Institutos Históricos e Geográficos foram ressaltados nesta pesquisa para

demonstrar sua aproximação com a produção das obras didáticas de História, uma vez

que, segundo Guimarães (1988), Schwarcz (1993), Bittencourt (1993), Müller (1999),

31 Povos indígenas que habitavam Mato Grosso no período colonial. Os Guaicurus foram conhecidos

como cavaleiros, uma vez que se utilizavam com destreza e agilidade da arte hípica e, a exemplo dos Paiaguás, foram violentamente atacados pelos bandeirantes (SIQUEIRA, 2002, p. 60-65).

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Dávila (1970), Abud (2008), entre outros, o IHGB e o Colégio Pedro II foram as duas

instituições que credenciaram e deram legitimidade aos autores dos referidos livros na

área de História.

Os primeiros escritores de textos didáticos tiveram, estreitas ligações com o saber oficial não apenas porque eram obrigados a seguir os programas estabelecidos mas, porque estavam “no lugar” onde este mesmo saber era produzido. A primeira interlocução que eles estabeleciam era exatamente com o poder educacional institucionalmente organizado. O “lugar” de sua produção situava-se junto ao poder e era para o poder, nos colégios destinados à formação das elites, dialogando com intelectuais e políticos assentados no governo e participantes do IHGB. (BITTENCOURT, 1993, p. 205).

Era comum membros do IHGB serem professores do Colégio Pedro II. Assim,

as duas instituições representaram, em conjunto, as instâncias de produção de

determinado saber histórico.

O significado desse atrelamento é importante, porque a isso subjaziam

vinculações políticas que determinavam a própria direção a ser seguida no estudo da

História Universal, conforme nomenclatura da época, e no estudo da História do Brasil.

Ademais, ao mesmo tempo, o Colégio Pedro II era a escola secundária mais importante

do Brasil e serviu de modelo para as outras instituições públicas e privadas de ensino

que se constituíram no século XIX e início do século XX. O Regulamento do Liceu

Cuiabano de Mato Grosso, baixado com o Decreto nº 417, de 11 de janeiro de 1916,

explicita essa equiparação ao Colégio Pedro II:

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Figura 11 - Regulamento do Liceu Cuiabano, 1916 Fonte: Acervo do APMT.

Os professores do Colégio Pedro II gozavam de prestígio nacional, e, como

mencionado no capítulo anterior, vários deles escreveram livros didáticos. Logo, a

estreita ligação entre o ensino de História e a produção didática materializava a

associação entre o IHGB e essa unidade de ensino. O autor Joaquim Manoel de Macedo

representa bem a tríade: professor do Colégio Pedro II, membro ativo do IHGB e autor

de livros didáticos:

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Figura 12 - Contracapa do Livro Lições de História do Brasil, 1907, do autor Joaquim Manoel de Macedo Fonte: Macedo, 1907.

Talvez seja relevante salientar que naquele momento os livros escolares

apresentavam-se para os professores como um importante instrumento de apoio no

processo de aquisição de leituras. No caso específico de Mato Grosso, de acordo com o

Regulamento da Instrução Pública de 1880, os concursos públicos para a docência não

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exigiam habilitação profissional específica, requerendo apenas a comprovação da

capacidade profissional, a propósito o último dos itens requisitados:

Artigo 81 - Só poderão propor-se ao magistério público os cidadãos brasileiros que provarem os seguintes requisitos: 1º - Maioridade legal; 2º - Moralidade; 3º - Insenção de culpa; 4º - Capacidade profissional. (SÁ; SIQUEIRA, 2000, p. 165).

De acordo com o mesmo Regulamento, a capacidade profissional era

verificada por meio de exame de habilitação envolvendo provas nas modalidades oral e

escrita, tendo como referência os conteúdos do ensino secundário e versando somente

sobre as disciplinas professadas na cadeira que estivesse em concurso. Eram

dispensados da prova de capacidade profissional os diplomados pelos Liceus, pelas

Escolas Normais, ou por quaisquer Faculdades do Império.

Para Siqueira (2000, p. 44), em Mato Grosso, a partir das três últimas décadas

do século XIX, as diretrizes da instrução pública ficaram a cargo de uma elite de

intelectuais composta por indivíduos com formação superior advindos das Faculdades

de Direito, de Medicina e de Engenharia e por oficiais militares. É o que se pode

observar no quadro a seguir, que apresenta a formação do corpo docente que atuou nas

diversas cadeiras do Liceu Cuiabano, no período correspondente entre 1880 e 1896:

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Professores Profissão Cadeiras 1 - Dormevil dos Santos Malhado Médico Pedagogia/Metodologia 2 - José Magno da Silva Pereira Capitão Gramática Portuguesa 3 - Belarmino Augusto de Mendonça Lobo Capitão Matemática Elementar 4 - Antônio Corrêa da Costa Engenheiro Matemática Elementar 5 - João Pedro Gardés Bacharel em Letras Francês e Inglês 6 - Antonio Pereira Catilina da Silva Professor Latim 7 - José Estevão Corrêa Tenente Filosofia e Retórica 8 - Antônio Manoel da Costa Barros Doutor História e Geografia 9 - Caetano Manoel de Faria Albuquerque Engenheiro Matemática Elementar 10 - Camilo Accioli Silva Bacharel em Direito Francês e Inglês 11 - Saturnino da Silva Rondon - Matemática Elementar 12 - Francisco da Costa Ribeiro Alferes História e Geografia 13 - José Leite Pereira Gomes Filho Médico Matemática Elementar 14 - Eduardo Poyart Bacharel Filosofia/ Retórica/

Francês 15 - José Bernabé de Mesquita Advogado Latim/Filosofia/Retórica 16 - Januário da Silva Rondon Bacharel Latim/Português/

Pedagogia

17 - Arthur Cavalcante do Livramento Capitão Português e Pedagogia 18 - João Alves Guerra Funcionário Público

Federal Matemática Elementar

19 - Emiliano Augusto de Mattos Bacharel em Direito Português e Pedagogia 20 - Demétrio da Costa Pereira - Latim Quadro 5 - Corpo docente das diversas cadeiras do Liceu Cuiabano, no período de 1880 a 1896 Fonte: Zanelli (2001, p. 99).

Ao observar que as duas cadeiras de História eram ocupadas por profissionais

sem habilitação na área, pode-se inferir o quão importante foram os livros escolares na

vida desses agentes educativos, perpassando inclusive os quesitos de formação docente

e instruções metodológicas.

Outro fator que merece destaque é o fato de a História ensinada nas escolas não

estar contida apenas nos compêndios de História. Outros livros escolares, como os de

leitura, as seletas32 e os de Educação Moral e Cívica auxiliavam na disseminação do

saber produzido nessa área.

O trecho do livro de leitura de Hilário Ribeiro, Novo Quarto Livro de Leitura,

de 1910, utilizado nas escolas mato-grossenses, é revelador dos valores morais,

patrióticos e cívicos disseminados também em livros dessa natureza:

32 As seletas são compilações de trechos de autores diversos que serviam, em princípio, para o estudo da

língua, trazendo invariavelmente extratos sobre temas históricos (BITTENCOURT, 1993, p. 211)

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Quarta Parte EDUCAÇÃO CIVICA A Patria A patria é o paiz em que nascemos. Cuja historia é o nosso patriotismo e cujo pavilhão é a nossa honra. Se eu vos perguntares o que é a pátria, que respondereis, meus amigos? Qual d’entre vós é capaz de dizer-me o que é a patria? - É o paiz em que nascemos, a terra de meus paes e a minha terra. Sou pequeno ainda, mas o que é verdade é que penso desde já em servil-a e projetel-a um dia, se for necessário. - Bravo, Jorge!... Mas de que modo servirás a tua patria? - Muito bem; basta que eu seja instruído, honesto e trabalhador. Quando vejo um homem vadio ou encontro um criminoso, sempre digo Amim mesmo: - Se pensassem na patria não praticariam actos indignos d’ella!... O que ama o seu paiz, deve honral-o e engrandecel-o! - Bravo, bravo, meu filho! Disseste bem; é preciso pensar na família e na patria, em todos os actos da vida. Onde não há virtudes privadas, não há também virtudes cívicas. (p. 193).

Para Bittencourt (1993, p. 166), a introdução do ensino de Instrução Moral e

Cívica nas escolas representou um apêndice da História, ou um acréscimo a esta

disciplina, servindo para desenvolver o sentimento patriótico e direcionando a moral

secular.

Segundo Müller (1999, p. 86), em Mato Grosso, devido à preocupação em se

manter a integridade territorial, por tratar-se de um Estado de fronteira, o programa da

disciplina de Educação Moral e Cívica centrou-se na valorização da integridade

territorial, daí a ênfase nos símbolos nacionais: a bandeira nacional e a reafirmação dos

dias pátrios.

Analisando o Regulamento da Instrução Pública Primária do Estado de Matto

Grosso, de 1910, foram localizados os conteúdos de Educação Cívica Moral e de

Historia do Brazil33 no programa de ensino elaborado para as escolas isoladas,

percebendo-se que ambas as disciplinas se complementavam. Enquanto a História

popularizava o eurocentrismo e os heróis nacionais, a Moral e Cívica se

responsabilizava pelas questões de patriotismo, civismo e os valores morais

disseminados nos ideais republicanos para a construção de um Estado-nação:

33 Utilizam-se as designações Educação Cívica Moral e Historia do Brazil por serem fiéis às grafias

utilizadas no Regulamento de 1910, encontrado no Arquivo Público de Mato Grosso (APMT)

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Educação Cívica e Moral Historia do Brazil 1 - A Pátria. A Bandeira como symbolo da Pátria. Descripção da Bandeira. 2 - Deveres para com a pátria. Exemplos de amor à Pátria pela descripção de scenas onde figurem heróes da poaz, da guerra, das sciencias, etc. que se sacrificaram ou muito fizeram pela Patria. 3- Estudo dos Feriados Nacionaes. 4 - Governo; sua necessidade. Impossibilidade da existência de uma sociedade sem governo. Demontração desta verdade por meio de exemplos. Diversas formas de governo. 5 - Demontração das vantagens do governo republicano: igualdade, a liberdade e a fraternidade. Como se forma o governo. O voto. [...] 8 - os serviços públicos: administração e funccionalismo civil; obras pias; manutenção da ordem e policia; manutenção da paz e da soberania nacional: o exercito e a armada. 9 - A instrucção publica: sua necessidade; guerra ao analphabetismo. 10 - Emulação do caracter dos alumnos pela leitura de scenas Moraes que demontrem as vantagens do amor á verdade, ao bello e á virtude 11 - Guerra á mentira, á hypocrisia, á supertição, á inveja, etc. mostrando o professor á classe exemplos de fealdade de taes acções. 12 - Educação intensa do caracter nacional, pela leitura ou exposição de factos ou scenas dignificantes, próprias para incutirem um elevado amor á Pátria, como: Antônio João e a defesa da fronteira; a união das três raças na lucta hollandeza; Greenhalgh e a defesa da bandeira, etc.; exemplos de homens que primaram pelo devotamento á Pátria: sympathia pelas classes encarregadas da guarda e manutenção da nossa integridade territorial e soberania nacional.

1 - Cristóvão Colombo. Vasco da Gama. 2 - Descobrimento do Brasil. 3 - Povos que habitavam o Brasil por occasião do descobrimento. Os colonos. As capitanias hereditárias. Martim Affonso e João Ramalho. 4 - Estudo detalhado do governo colonial. 5 - A catechese dos indígenas. Anchieta. 6 - As invasões francezas. 7 - O dominio hespanhol e a guerra hollandeza. 8 - O Bequimão. Guerra dos mascates. 9 - Bandeirantes e emboabas. Descobrimento de Matto-Grosso e fundação de Cuiabá. Resenha histórica de Matto-Grosso. 10 - Tirandentes.

Quadro 6: Conteúdos de Educação Cívica e Moral e Historia do Brazil Fonte: Regulamento da Instrução Pública Primária do Estado de Matto Grosso (1910).

As listas de conteúdos sinalizam a preocupação oficial do Estado e as

discussões que perpassavam os meios intelectuais. Mais do que isso:

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[...] eram um instrumento ideológico para a valorização de um corpus de idéias, crenças e valores centrados na unidade de um Brasil, num processo de uniformização, no qual o sentimento de identidade nacional permitisse o ocultamento da divisão social e a direção das massas pelas elites. (ABUD, 2008, p. 34).

Xavier (2006, p. 258-259), pesquisando a formação da nacionalidade no

âmbito da cultura escolar, concluiu que a escola, enquanto espaço de circulação e

transmissão de ideais, buscou no ensino de História, nos livros escolares, nas

comemorações cívicas e na disciplina uma forma de atuarem como mediadores entre

concepções e práticas políticas e culturais, tornando-se importante componente da

engrenagem de manutenção de determinadas visões de mundo e de História.

Em Mato Grosso, as comemorações cívicas também estiveram presentes no

interior das escolas, conforme se pode observar no artigo do jornal A Reação, de 1º de

dezembro de 1912:

Festa da Bandeira Accedendo ao convite que gentilmente nos foi endereçado pelo nosso intransigente confrade, professor Gustavo Fernando Kuhulmann, digno director do Grupo Escolar do 2º districto desta capital, tivemos o prazer de assistir, no dia 19 do fluente, em o edifício em que funcciona aquelle estabelecimento de ensino, a atrahente e sympathica festividade escolar, promovida por aquelle director, para commemorar a data anniversária do decreto do governo Provisório, que instituiu a actual Bandeira Nacional. Essa bella festa cívica foi iniciada às nove horas da manhã, com o acto solenne da elevação do pavilhão nacional da fachada do estabelecimento, ouvindo-se nessa occasião, o hymno nacional executado pela bem ensaiada banda do Batalhão policial do Estado. Após esta cerimônia, o Sr. Professor Kuhlmann convidou o venerando cidadão Director Geral da Instrução Pública, major Estevão Corrêa, para presidir a sessão solenne, sendo convidadas, igualmente, para tomar assento junto á mesa, os exms. Srs. Coronel Joaquim Caracciolo Peixoto de Azevedo, Presidente da assembéia Legislativa e tenente-coronel Manoel Escolastico Virginio, Governador desta cidade. Em acto continuo, o Sr. Presidente declarou aberta a sessão, concedendo, nessa ocasião a palavra ao illustrado professor Kuhlmann, que produziu um brilhantismo discurso allusivo á data que commemorava. Calorosos applausos cobriram suas ultimas palavras. [...] Como remate dessa encantadora festa, fez-se ouvir o Hymno Nacional, que foi ouvido com o Maximo respeito, conservando-se todo o auditório em pé. Sr. Kuhlmann foi de estrema gentileza para com os convidados, fazendo depois distribuir á petizada finos bolos, doces e bonbens.

A presença das mais altas autoridades locais e a própria veiculação do

acontecimento no jornal A Reação são pistas da importância das solenidades cívicas que

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as escolas, com a República, trouxeram para seu interior, possivelmente sob a influência

dos ideais republicanos.

A pesquisadora Maria Lúcia Rodrigues Müller (2008, p. 33), examinando

fotografias referentes a Instrução, datadas da Primeira República, afirma que as imagens

analisadas mostram uma estreita relação entre a afirmação dos rituais pátrios e a escola.

Inicialmente, porém, a autora constata que: “Até os anos 1910, as cerimônias cívicas

eram realizadas na Prefeitura ou em outros locais [...]”E acrescenta que os participantes

dessas festas eram pessoas comuns da cidade, homens e mulheres, negros, mestiços,

escuros. Enfim, a pesquisadora informa que, já no início dos anos 20, essas festividades

foram transferidas para as escolas e que, como se pode observar no noticiário do jornal

A Reação, citado anteriormente, o público participante e os atores das solenidades já

não eram os mesmos; passaram a ser os alunos, os professores e as autoridades.

Na Primeira República houve uma constante preocupação do Estado,

representado pelas elites que se alternavam no poder, com as práticas políticas e

culturais disseminadas tanto no interior das escolas como fora dos seus muros. Daí a

importância dada aos livros escolares, às comemorações cívicas e ao ensino de História.

Assim:

Não foi por acaso que a história tornou-se obrigatória nos currículos. O ensino de História serviu de base para a formação do cidadão nacional. A escola deveria alfabetizar grande número de alunos e assegurar um determinado saber que fosse transmitido aos futuros cidadãos brasileiros. A República tratou de cuidar da constituição da galeria dos heróis nacionais, pela instituição tanto dos feriados e festas cívicas, quanto pela seleção dos personagens a serem cultuados, determinando uma segunda vertente do alcance da História que extrapola os próprios muros da escola. (NADAI, apud SCHENA, 1999, p. 272).

A importância dos livros escolares na disseminação e permanência de discursos

fundadores da nacionalidade conduziu esta pesquisa a discutir suas dimensões como um

lugar de memória, evidenciando saberes já consolidados e aceitos socialmente.

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2.1 LIVROS ESCOLARES: IDEIAS E IDEAIS EM CIRCULAÇÃO NO ESTADO

DE MATO GROSSO NA PRIMEIRA REPÚBLICA

Figura 13 - Livros escolares utilizados nas escolas mato-grossenses durante a Primeira República Fonte: Braga (1922), Silva (1922), Pombo (19..), Celso (1905)

Os livros, assim como as escolas, têm sua existência delimitada por um

contexto político e social. Logo, precisam ser considerados como resultantes de um

conjunto de normas, disposições e determinações culturais.

Os textos escritos que consubstanciam livros têm uma longa história.

Inventados no Oriente, nas civilizações asiáticas, eram usados na China desde o século

XI. No Ocidente há muito tempo o livro vem sendo condicionado ao funcionamento da

escola. Comenius, em 1657, preocupado com a possibilidade de ensinar tudo a todos,

escreveu sua Didactica Magna, um manual de ensino cuja metodologia visava

possibilitar ao professor instruir centenas de alunos ao mesmo tempo. Ademais: “[...] o

autor propõe um livro com fins didáticos, que além do conteúdo, traria também as

tarefas a serem desenvolvidas por ano, mês, dia e hora.” (SILVA, 2007, p. 64).

O livro didático apresenta-se hoje como um importante instrumento para o

professor e para o aluno no processo de ensino-aprendizagem, sendo indiscutível o

grande espaço que conquistou no cotidiano escolar. No Brasil, os primeiros livros foram

produzidos a partir de 1810 pela Imprensa Régia, que introduziu a história do livro

brasileiro e posteriormente foi denominada Imprensa Nacional. “Na tensão entre

anacronismo e modernidade, inscreve-se a ambivalência peculiar à história do livro

didático no Brasil, com repercussões no plano cultural, econômico e pedagógico, por

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consequência, na história social da leitura no país.” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2003, p.

128).

Em Mato Grosso, somente em meados do século XIX foi implantada a imprensa

na Província, porém, de acordo com Siqueira (2000, P. 227), durante todo o século XIX

não foi registrada qualquer obra impressa. Dessa forma, os compêndios didáticos

utilizados nas escolas mato-grossenses provinham da Europa e do Rio de Janeiro.

Esse fato não impediu a publicação de algumas obras didáticas de autores locais,

como é o caso do compêndio intitulado Quadro Chorographico de Matto Grosso

(1918), de Estevão de Mendonça, lente catedrática do Liceu Cuiabano. Tal fato pode

ser observado no parecer emitido em 1905 pelo Conselho Superior da Instrução Pública

a respeito dessa obra:

Além do mérito que revela pela correção e elegância de sua forma, [...] vem preencher uma das mais palpitantes necessidades do ensino público primário, fornecendo à mocidade os conhecimentos necessários da história e geographia do Estado, disciplinas estas que fazem parte das que constituem o programa de estudos tanto nas escolas elementares como nas complementares; é de parecer que a mesma obra seja não só considerada de reconhecida utilidade [...], como adoptada nas escolas públicas do Estado, tão logo seja impressa e exposta à venda. (CONSELHO SUPERIOR DA INSTRUÇÃO PÚBLICA, 07 out. 1905).

No trabalho de pesquisa documental realizado por Fátima Aparecida da Cunha,

bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e

apresentado na avaliação do CNPq/2001 ao Grupo de pesquisa em História da Educação

e Memória/UFMT, a autora elabora uma relação dos livros mais usados nas escolas

públicas primárias em Mato Grosso, de 1910 a 1930, da qual consta a Corografia de

Mato Grosso, de Estevão de Mendonça, que circulou no meio escolar entre os anos de

1911 e 191234.

A análise dos textos dessas obras permite-nos observar que as ideias neles

veiculadas não constituem de forma nenhuma discursos neutros, representando, antes,

os valores morais, sociais e culturais considerados importantes naquele espaço/tempo. O

primeiro texto do livro didático Minha Pátria, de J. Pinto e Silva, publicado em 1922,

pode ser tomado como exemplo desse cenário:

34 Rosa (2002, p. 88), ao analisar a relação de materiais escolares do almoxarifado da Diretoria da

Instrução Pública, criado por ocasião da reforma de 1910, admite que a adoção desse compêndio fora bastante limitada em Mato Grosso, tanto nas escolas primárias quanto nas secundárias.

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Fizemos, hoje eu e meus condiscipulos, uma visita ao Pantheon-escolar. O mesmo salão espaçoso, irreprehensivelmente asseado, como no saudoso dia da sua inauguração. Tudo na melhor ordem possível: retratos, paizagens, mappas, etc., continuam formando secções distinctas, de modo a facilitar o estudo de cada uma dellas. Aqui, armários envidraçados encerram interessantes collecções de objectos históricos; alli estantes e mesas estão repletas de documentos sobre o mesmo assumpto. E todas essas coisas, apesar de inanimadas, nos fazem vibrar a alma, pois todas ellas recordam a pátria que tanto estremecemos. Ao penetrar na vasta sala sente-se um desejo irresistível de aprender, de saber. Acompanhou-nos o nosso novo professor, joven ainda, de maneiras distinctas e delicadas. Pela sua paciência, pelo seu trato sempre affavel, pela clareza de suas lições, em pouco tempo conquistou a sympathia de toda a classe. “Meus caros discípulos”, disse-nos elle, “já sabeis o fim que nos traz aqui, estou certo de que sois muito amigos da nossa mãe-commum, a pátria brazileira. Notae, porém, o seguinte: não é bastante dizer-se amigo de seu paiz; é preciso sêl-o realmente. Ser patriota é trabalhar sempre e sempre pelo engrandecimento da pátria. E, para isso, não há melhor meio do que imitar os exemplos de amor-patrio que nossos antepassados nos legaram. Mais ainda: esses ensinamentos devemos aprendel-os, não só dos patrícios illustres, como de quaesquer outros grandes homens.” (p. 7-8).

Narrativas como essa antecipavam o teor os textos históricos do livro didático

em apreço. Logo, as ideias difundidas em livros dessa natureza não disseminam apenas

valores, mas também comportamentos:

Ora, o menino já tinha estudado todas as suas lições; estava, pois, aborrecidíssimo, por não ter mais em que se occupar. Lembrou-se, então de ir ajudar o pae que, encerrado em seu gabinete, estava copiando uma das cartas commerciaes. Dirigiu-se ao escriptorio do papae, pediu-lhe permissão para entrar, e disse-lhe ao que vinha. - Obrigado, meu filho, mas não convém que me auxilies nas copias. Entretanto, vou aproveitar a tua boa vontade. Olha, toma este álbum e vae arranjando as gravuras nelle contidas. (SILVA, 1922, p. 32-33).

Em face do teor das informações veiculadas, os livros didáticos de História

serviram como engrenagem de manutenção do poder de uma elite dominante.

Tornaram-se verdadeiros intermediários entre as concepções e práticas políticas e

culturais.

Corrêa (2000, p. 19) admite que o livro escolar faz parte de uma cultura escolar,

é organizado, veiculado e utilizado com uma intencionalidade, já que é portador de uma

dimensão da cultura social mais ampla. Por isso, esse tipo de material serve como

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instrumento, por excelência, da análise sobre a mediação que a escola realiza entre a

sociedade e os sujeitos em formação.

Para a autora, o livro didático permite que se entenda a instituição escolar vista

por dentro, por ser ele portador de parte dos conteúdos do currículo escolar naquilo que

diz respeito ao conhecimento. E, tratando-se dos livros que foram organizados e

distribuídos em escolas do século XIX e XX, podem-se observar, em seu conjunto,

elementos de vários âmbitos da cultura social:

Nesse sentido, entendo que a contribuição avança pelo fato de não se restringir exclusivamente às práticas escolares, mas também, e principalmente, ao seu conteúdo, uma vez que os elementos contidos no livro dão vida e, ao mesmo tempo, significado às práticas escolares. (CORRÊA, 2000, p. 18).

Acredita-se ser oportuno, neste momento, dialogar com Julia (1993, p. 15) sobre

a noção de cultura escolar:

Um conjunto de normas que definem saberes a ensinar e condutas a incorporar e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses saberes e a incorporação desses compartimentos, normas e práticas ordenadas de acordo com finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).

Os conteúdos veiculados nos livros escolares utilizados na Primeira República

atendiam a condutas e comportamentos socialmente aceitáveis, do ponto de vista moral

e ético (normalizações sociais), e válidos para sua época e contexto histórico. Na visão

de Corrêa (2000, p. 18), são as normalizações sociais que a priori determinam o que

deve ou não ser ensinado nas escolas. De certo modo, a legislação legitima as

expectativas valorativas que a sociedade quis ou quer ver disseminadas por meio dessas

instituições.

No contexto das escolas mato-grossenses, os livros didáticos adotados nessa

mesma época foram sistematicamente selecionados pelo Conselho Superior da Instrução

Pública, como se viu anteriormente, podendo-se encontrar, nas publicações escolares,

trechos como este:

Ainda Bem! O nosso paiz, meu rapaz, carece de homens independentes, fortes e que possam dar alguma coisa. Cresce com a idéa de fazer a Matto-Grosso todo o bem que um filho carinhoso e

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rico deve fazer a seus Paes pobres... Os nossos Estados precisam de homens de valor e de dedicação. A terra produz muito, é prodigiosa de fertilidade; mas isso não basta para lhe dar importância. Só prosperam os paizes em que os homens são cultos e trabalhadores. Cresce com a Idea de cortar o teu Estado de estradas de ferro, de lhe estudar as culturas, de fazer propaganda para colonisar os seus sertões, de lhe augmentar as industrias, de corresponder, enfim, ao muito que lhe deves, retribuindo-lhe em benefícios os dons naturaes que délle e dos teus herdaste. Cresce com o pensamento de tornar o teu Estado o primeiro. Essa ambição o engrandecerá. Comunica aos teus collegas de classe essas idéas de patriotismo, atira a semente a torto e a direito que em algum cérebro Ella póde encontrar terreno próprio para a sua germinação! (ALMEIDA, 1911, p. 183-185).

A partir dessa passagem do livro de leitura de Julia Lopes Almeida, intitulado

Historias da Nossa Terra e publicado em 1911, pode-se inferir quais as normalizações

sociais a sociedade quis ver disseminadas nos textos escolares naquele espaço/tempo.

Nesse sentido, se aí se podem evidenciar o patriotismo, o valor ao trabalho e a

educação, o progresso representado pela indústria, o devido comportamento de um

cidadão para com o seu Estado, de certa forma se tem a representação dos valores

morais e éticos que aquela sociedade queria ver propagados e apropriados.

Conforme já dito, é o reflexo do consenso dos intelectuais do Brasil com relação

à necessidade de se construir e disseminar a galeria dos heróis nacionais, homens

ilustres que deveriam representar o panteão histórico brasileiro. Assim, buscou-se em

Almeida a representação dada aos negros reconhecidos como esses heróis, como é o

caso de Henrique Dias, cabo de guerra que teve importante participação na expulsão dos

holandeses do Nordeste do país.

Encontra-se na mesma obra um texto intitulado “O Preto Velho”, do qual

seguem alguns trechos:

O PRETO VELHO [...] Olhamos, e vimos um preto esfarrapado cambalear e cair na calçada. - Coitado! Disse Maria, o pobrezinho morre! - qual! Respondi eu desdenhosamente; Elle está bebe... Não conclui a phase, porque meu pae attrahido pelas piedosas exclamações de minhas irmãs, estava já à janelle, dardejando um olhar zangado sobre mim. - Vae, João disse-me elle, desce à rua socorre aquelle infeliz, seja elle quem fôr e o que fôr. Não faças máo juízo de ninguém! Corri. A chuva augmentava; curvei-me, chamei o velho, sacudi-o; mas o desgraçado nem abria os olhos! Meu pae deixou-me estar alli

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ajoelhado por alguns minutos e mandou depois recolher o velho ao vestíbulo da nossa casa. [...] Passando algum tempo, o pobre recobrou os sentidos e confessou estar morrendo de fome e frio! [...] Estava já o preto quente e confortado, quando bateram com força à porta; elle então estremeceu, balbuciando: - Estou perdido! De fato, entraram dois soldados que o procuravam, dizendo que esse preto velho era um preso evadido da cadeia do Recife. O pobre caíra de externuado. [...] Meu pae pediu em voz baixa aos soldados que não declarassem ao pé de nós qual fora o crime dáquelle homem. Minha mãe dava ao infeliz conselhos de submissão e paciência; e assim, o velho entregou-se resolutamente aos soldados. A hora da saída, Maria, que é a mais pequena e a mais curiosa de nós todos, perguntou ao preso, furtivamente: - como se chama você? - Henrique Dias, balbuciou elle cabisbaixo. - O nome dáquelle homem não vos suggére nada de respeitável e de grande? (p. 83-88).

Ao analisar o mencionado texto, verifica-se que a imagem dos negros está

associada a termos pejorativos, à miséria e à criminalidade. Por outro lado, também

institui o comportamento ideal para esse grupo etnorracial: “Minha mãe dava ao infeliz

conselhos de submissão e paciência; e assim, o velho entregou-se resolutamente aos

soldados.”

Quando a imagem do branco aparece sistematicamente em oposição à do negro,

independentemente do assunto tratado, isso não é representativo de algo? Será que esse

tipo de saber disseminado não reflete o modelo de imagem que vale a pena ser

incorporada e na qual os alunos devem se espelhar?

Ao considerar que os textos que integrantes dos livros escolares eram registros a

serem decodificados quanto aos saberes a inculcar nas jovens gerações, estes, por sua

vez, representavam os valores morais e comportamentais de determinada sociedade em

determinado contexto histórico.

Logo, não é de se estranhar o desejo pelo branqueamento da população. Se tudo

que era bom estava associado à imagem do branco, e ao negro associava-se a imagem

negativa, possivelmente esses fatores contribuíram para a proliferação e popularização

das teorias racistas, tão em voga naquele período.

Tais enfoques evidenciam que o livro escolar não se reduz a um suporte de

conteúdos educativos ou a um instrumento pedagógico para métodos de ensino. Como

destaca Choppin (2004), trata-se também de um veículo de ideologia e de cultura que

tem sua importância acentuada por ser destinado às novas gerações de maneira ampla e

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generalizada. A pluralidade das dimensões que pode ser atribuída ao livro escolar faz

dele uma fonte contínua de interesse especial para os diferentes pesquisadores.

2.2 LIVROS DIÁTICOS VEICULADOS E UTILIZADOS NAS ESC OLAS

MATO-GROSSENSES NA PRIMEIRA REPÚBLICA

A partir das fontes documentais localizadas no Arquivo Público de Mato Grosso;

no acervo do Grupo de Pesquisa em História da Educação e Memória (GEM), vinculado

ao programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Mato Grosso; no Arquivo da

Assembleia Legislativa de Mato Grosso; e em pesquisas bibliográficas, foi possível

localizar os títulos dos livros didáticos de História utilizados no estado de Mato Grosso

no decorrer da primeira República.

Essa constatação foi viabilizada por um trabalho de pesquisa minucioso, tendo

dispensado exaustivas leituras documentais, sobretudo das atas do Conselho Superior da

Instrução Pública do Estado de Mato Grosso, das relações de material escolar do

almoxarifado da diretoria Geral da Instrução Pública e dos livros de entrada e saída de

material das escolas.

Na medida em que a investigação assemelha-se ao labor de um arqueólogo, que

busca objetos em diferentes sítios escondidos, a localização de atas mencionando

pareceres da Comissão Especial do Conselho da Instrução, designada para avaliar os

livros escolares a serem adotados pelas escolas públicas mato-grossenses, constituiu-se

em verdadeiras conquistas para este estudo. Um exemplo desses achados é o parecer

abaixo:

Ata da sessão ordinária do Conselho Superior da Instrução Publica de 10 de abril de 1920. Acompanhando o volume de Breves lições de Historias do Brasil, do Creso Braga, veio o parecer da comissão pedindo adapção de tal compemdio por sua verdadeira utilidade expressou-se o seu relato nos seguintes termos: “Parecer” A comissão especial do Conselho superior da Instrução á qual foi presente para emittir seu parecer a petição do senhor “Creso Braga” para que seja adaptado nas escolas publica os seu livro intitulado “Breves lições de Historias do Brasil”, tendo estudado detidamente o mesmo livro e, considerando que dentre os diversos livros sobre Historias do Brasil em uso nas nossas escolas, os que mais completam o seu fim tornou-se, entretanto, deficientes para o aproveitamento das classes mais adiantadas; Considerando que um livro tratando dos fatos do Brasil desde o seu descobrimento até os nossos dias porem concisos, historiados sucintamente e em fiel ordem chronologica seria de grande utilidade para o conhecimento da vida do nosso paiz aos nossos jovens

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conterrâneos; Considerando que o livro intitulado “Breve Lições da Historia do Brasil” preenche perfeitamente o fim desejado, podendo servir não só para estudo da Historia do Brasil ás classes mais adiantadas das escolas mas também como livro de leitura. E a mesma commissão de parecer que seja adaptado nas escolas publicas primarias do Estado, por sua verdadeira utilidade, o livro intitulado “Breve Lições de Historia do Brasil” de Creso Braga. Sala das sessões em Cuyabá, 28 de Fevereiro de 1920 (assignado) Antonia Jorgina Ribeiro de Faria (relatora). (GARDIZ; CORRÊA, 1903-1929, livro 94).

A localização dos títulos das obras didáticas nas atas do Conselho Superior da

Instrução Pública ainda não era suficiente para afirmar sua utilização nas escolas de

Mato Grosso. Recorreu-se, então, às relações dos materiais escolares do almoxarifado

da diretoria Geral da Instrução Pública e aos livros de entrada e saída de material das

unidades de ensino, no intuito de cruzar os dados e chegar ao que realmente se

pretendia.

Segundo Silva (2007, p. 22-23), do ponto de vista metodológico é difícil

estabelecer uma fiel diferença entre veiculação e utilização de livros didáticos,

mesmo porque nem sempre a circulação de um dado título garante que ele tenha sido

adotado, como também não garante um uso efetivo, orientado pelos princípios

metodológicos assumidos ou recomendados por seus autores.

No entanto, o fato de os livros serem mencionados nos documentos, a

despeito de terem sido utilizados ou não no espaço escolar, já representa um forte

indício das concepções em voga naquele presente histórico. A esse respeito, Cardoso

e Amâncio (2005, p. 08)35 consideram que:

A circulação de determinados títulos em determinados períodos indica uma opção (imposição?) política-pedagógica que merece ser analisada e discutida, especialmente porque acreditamos que não existe material didático neutro, visto serem construídos por seres humanos reais que têm interesses diversificados.

O cruzamento das fontes documentais e bibliográficas possibilitou a esta

pesquisa identificar os seguintes livros de História utilizados nas escolas mato-

grossenses no período em tela:

35 Referimo-nos ao Relatório de Pesquisa intitulado Políticas educacionais e práticas pedagógicas em

alfabetização: um estudo a partir da circulação de cartilhas em Mato Grosso - 1910-2002, desenvolvido pelas Professoras Doutoras Cancionila Janzkovski Cardoso e Lazara Nanci de Barros Amâncio, do Depto. de Educação, do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, UFMT, campus de Rondonópolis.

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Título Autor Ensino Lições de História do Brasil Joaquim Manoel de Macedo Secundário História do Brasil Rocha Pombo Secundário Nossa Patria Rocha Pombo Primário Breves lições de História do Brasil Creso Braga Primário Minha Patria João Pinto e Silva Primário

Quadro 7 - Livros de História utilizados nas escolas mato-grossenses na Primeira República Fonte: Construção da autora.

Analisando a relação do Almoxarifado da Diretoria Geral da Instrução Pública

do Estado de Mato Grosso entre os anos de 1924 e 1927, constata-se que a quantidade

de livros que saiu do estoque era reduzida comparativamente à quantidade de alunos

matriculados no mesmo período. Para ilustrar tal fato, segue no quadro abaixo os livros

de História utilizados para a Instrução Primária nas escolas mato-grossenses, no ano de

1925, quais sejam Nossa Pátria, do autor Rocha Pombo, e Minha Pátria, de João Pinto

e Silva. Verifica-se um número reduzido de exemplares tanto no estoque quanto em

termos de saída:

Títulos Estoque e

entrada

Saída mensal de livros de História de 1925 (jan./dez.)

Jan.

Fev.

Mar.

Abr.

Maio Jun.

Jul.

Ago.

Set.

Out.

Nov.

Dez.

Nossa Pátria,

de Rocha Pombo

77 - 6 6 - - - - 6 - - - 12 6

Minha Pátria,

de J. Pinto e Silva

56 - - - - - - - - - - - 12 -

Quadro 8 - Mapa do almoxarifado: entrada e saída de livros didáticos de História Fonte: Amâncio (2000).

Segundo mensagem expedida por Mário Corrêa da Costa, governador do Estado

de Mato Grosso, o número de alunos matriculados em 1925, apenas nos grupos

escolares do estado de Mato Grosso era de 2.327. A esse propósito, Amâncio (2000)

informa que as matrículas obedeciam a seguinte distribuição:

Grupos Escolares 1º ano 2º ano 3º ano 4º ano Total Escola Modelo 238 167 138 110 653 Grupo Escolar Senador Azeredo 169 70 56 19 314

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Grupo Escolar Espiridião Marques 49 44 30 16 139 Grupo Escolar de Rosário Oeste 96 31 24 15 166 Grupo Escolar Caetano Pinto 76 36 17 6 135 Grupo Escolar Luiz de Albuquerque 103 91 70 38 302 Grupo Escolar Antônio Corrêa 150 47 22 14 233 Grupo Escolar Joaquim Murtinho 157 41 36 4 238 Grupo Escolar Afonso Pena 103 20 15 9 147 Total 1141 547 408 231 2327

Quadro 9 - Distribuição das matrículas dos grupos escolares de Mato Grosso Fonte: Amâncio (2000).

Considerando o contingente de matriculados, 2.327 estudantes, verifica-se que o

total de livros de História, 48, que deram saída do almoxarifado é um número

insignificante. E, mesmo que tivesse ocorrido a distribuição total do estoque, o número

de exemplares ofertados corresponderia a menos de 6% (seis por cento) dos alunos.

O autor, ao proceder a uma análise das cartilhas que circulavam no Estado no

período em questão, levanta algumas indagações pertinentes também para esta pesquisa:

quais seriam os critérios de distribuição desses livros? Todos os alunos recebiam os

livros gratuitamente? Será que a Diretoria Geral da Instrução Pública só fornecia livros

escolares aos alunos considerados indigentes? a Diretoria Geral da Instrução Pública

repassaria o material aos demais alunos mediante a cobrança de algum valor monetário?

Será que os alunos compravam os livros de livreiros particulares? Ou será que os

professores recorriam a outros recursos não autorizados ou não previstos pela

Diretoria?

No afã de responder a algumas dessas perguntas, recorreu-se a outros

documentos em busca de uma melhor distribuição dos livros escolares. As observações

encontradas por Amâncio , em 1918, no mapa escolar do professor João Pereira Gomes,

da Primeira Escola de Miranda, podem esclarecer algumas dúvidas nesse sentido:

Alunos matriculados - 38; freqüência regular - 22; os motivos da pouca freqüência apontados pelo professor são: doenças, alguns alunos foram para fazendas, outros mudaram-se e outros não têm justificativa. O caso de dois alunos: Simeão Reis Guadros (11 anos, comportamento regular) e Sant´Anna Rodrigues (8 anos, bom comportamento) merecem maior atenção. O professor explica que Simeão não teve freqüência em setembro por “falta de meios para comprar livro”; em outubro esse aluno volta a freqüentar as aulas usando um Primeiro Livro de Feitura. O caso de Sant´Anna parece mais grave pois sua ausência em setembro é justificada também por “falta de meios de comprar livro”, mas a aluna não

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volta a freqüentar as aulas. No mês de outubro suas faltas são consideradas “sem motivos justificado”. (p. 225, grifos nossos).

As observações do professor Gomes não só revelam que os livros escolares

eram comprados, como também demonstram a dificuldade dos alunos em adquiri-los

de sorte que em alguns casos essa carência fora motivo de desistência da escola.

O relatório do professor Leowigildo Martins de Mello (MATO GROSSO,

1911), diretor da Escola Normal e Modelo annexa, enviado ao Secretário de Estado

dos Negócios do Interior, Justiça e Fazenda, ao se referir aos materiais escolares

também vem elucidar alguns questionamentos:

A escola possue em deposito e em uso livros didacticos dos melhores autores nacionaes que se tem dedicado á literatura pedagógica infantil. Porém esses livros são destinados às classes adeantadas, não tendo ella um único exemplar daquelles de que precisa para o ensino da classe mais atrazada. E, considerando as condições especiaes da praça cuyabana, que, alem de não possuir todo o material exigido na escola, ainda vende o pouco que tem por preço que não está ao alcance de todas as bolsas, seria de urgente necessidade, para bem da marcha regular do ensino, uma intervenção do poder competente, no sentido de facilitar á população escolar pobre, a aquisição de tal material. A legislação estadual manda fornecer material aos alumnos indigentes. Mas, alem destes, a quasi totalidade da população escolar das escolas publicas, é pobre e só com sérios e penoso sacrifício conseguem comprar um ou outro objecto exigidos pela applicação dos modernos methodos de ensino. E isto pela razão de que taes objectos são vendidos por um preço excessivo. Para sanar tal estado de coisas, seria opportuna uma intervenção do Governo, no sentido que passo a expor: - Não seria penoso ao poder competente fazer a escola uma dotação completa do material didactico, habilitando-a ao fornecimento geral de seus alumnos. Tal fornecimento seria feito gratuitamente, como é de lei, aos alunos reconhecidamente indigentes. Aos demais, a escola só forneceri-mediante indemnisação, que seria cobrada da razão única de custo de material posto em Cuyabá. [...]. Para que tal se consiga, é bastante que o Governo autorize a directoria da instrucção a fazer compra do primeiro fornecimento ás escolas, e ao Thesouro do Estado, a creação da caixa escolar. O pecúlio desta será constituído com a indemnização paga pelos alumnos em virtude do material fornecido pela escola, fundo esse que será destinado exclusivamente a acquisição de material escolar. È provável que se revoltem contra este projecto os livreiros de nossa praça, que, mesmo, se poderiam dizer lesados em seus interesses. Porém, mais interessados que os livreiros são os chefes de familia que cuidam da educação de seus filhos e, estes, certamente, não negariam applausos ao Governo, pois reconheceriam a justiça de tal acto, visando unicamente a facilidade maior da conffunsão do ensino em todas as camadas sociaes.

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Esse documento indica que o Estado realmente doava livros escolares apenas

para os alunos considerados indigentes, o que conduz a reflexão de que estes eram

bem poucos, haja vista o reduzido número do material distribuído.

O professor também sugere a criação de uma caixa escolar para sanar o

problema da falta de livros nas escolas, a qual parece ter sido autorizada pelo

governo, pois o jornal local Correio do Estadopublicou, em 04 de março de 1923,

uma matéria intitulada Uma bella iniciativa, referindo-se a essa ocorrência na Escola

Normal e Modelo anexa:

Uma bella iniciativa O Sr. Professor Rubens de Carvalho, diretor das Escolas Normal e Modelo annexa desta capital, tomou a si o encargo de fundar uma “Caixa Escolar”, destinada a fornecer o material escolar necessário aos alumnos da Escola Modelo. Para realizar esse desiderato, convocou aquelle professor, uma reunião preliminar, que foi effectuada no salão nobre do Palacio da Instrução, no dia 21 do corrente. Presidiu essa reunião, o exmo. Sr. Dr. Virgilio Alves Corrêa, d. Secretário do Interior, Justiça e Fazenda. O professor Rubens, usando da palavra, expoz o motivo daquella reunião, salientando as grandes vantagens da fundação da “Caixa Escolar, que tão excellentes resultados tem produzidos em toda parte. Ao que nos conta, a contribuição mínima será de 1$000. Para essa bella inicitiva só temos palavras de louvor. (CORREIO DO ESTADO, 04 mar. 1923).

Os documentos parecem conduzir o diagnóstico de que apenas um reduzido

número de alunos teve acesso aos livros escolares. Pode-se questionar: o objetivo da

elite republicana de inculcar e homogeneizar seus ideais por meio dessas obras fora

totalmente alcançados? Ou melhor, foi realmente homogêneo?

Para Chartier (1999), essas relações constituem-se mediante um “movimento

contraditório36”. Em uma vertente posiciona-se o leitor, que se depara com regras e

padrões caracterizados em uma obra, ou seja, de certa forma, “o autor”, “o livreiro-

editor”, “o comentador”, “o censor”, dentro das suas expectativas, tentam cercear a

leitura, fazendo com que os textos produzidos por eles sejam compreendidos sem

36 As palavras e expressões que aparecem entre aspas neste trecho são tomadas emprestadas de Roger

Chartier, empregadas em seu livro A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII, na primeira parte da obra, intitulada A ordem dos livros. Nesse tópico, logo na primeira página, o autor tece muito bem a questão das relações com o texto: leitor-leitura. Nesta dissertação, elas também aparecem na tentativa de esclarecer essas relações com o texto, especificamente com o texto didático, ou seja, com o objeto da investigação: livros didáticos de História.

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qualquer variação possível de significação, de sentidos. Na outra vertente, deparamo-

nos com a leitura, que se apresenta de maneira móvel, flexível, “rebelde e vadia”,

como a caracteriza Chartier, uma vez que os leitores mobilizam infinitas estratégias

para “subverter as leituras impostas”, procurando ler as entrelinhas, ler o não lido e o

não dito.

Nesse sentido, o estudioso acrescenta:

O livro sempre visou instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua decifração, a ordem no interior da qual ele deve ser compreendido ou, ainda, a ordem desejada pela autoridade que o encomendou ou permitiu a sua publicação. Todavia, essa ordem de múltiplas fisionomias não obteve a onipotência de anular a liberdade dos leitores. Mesmo limitada pelas competências e convenções, essa liberdade sabe como se desviar e reformular as significações que as reduziram. Essa dialética entre a imposição e a apropriação, entre os limites transgredidos e as liberdades refreadas não é a mesma em toda parte, sempre e para todos (p. 08).

Rastreados os títulos dos livros escolares veiculados ou utilizados em Mato

Grosso na Primeira República, esta pesquisa deparou-se com outro obstáculo: a

localização das obras. Iniciou-se, pois, outra etapa da pesquisa, desta vez com a

mudança do cenário e dos atores. Assim como o arqueólogo, passou-se a buscar dados

em outros sítios: acervos particulares, sebos, na Biblioteca Nacional, no acervo de obras

raras da Biblioteca Municipal de Cuiabá e na Biblioteca do Livro Didático da FEUSP,

dentre outros.

A localização de algumas obras didáticas constituiu-se num ponto importante

para a seleção das que foram analisadas: Porque me ufano do meu paiz, de Affonso

Celso (1905); Lições de História do Brasil, de Joaquim Manoel de Macedo (1907);

Historias da nossa Terra, de Julia Lopes de Almeida (1911); História do Brazil,

História do Brasil, e Nossa Patria, todos de Rocha Pombo (1919); Minha Patria, de

João Pinto e Silva (1922); Breves lições de História do Brasil, de Creso Braga (1922); e

História do Brasil, de João Ribeiro (1935).

Silva (2007, p. 86-87) recorda que o processo de veiculação dos títulos é apenas

uma parte do circuito do livro escolar. Nesse sentido, mesmo esta pesquisa tendo como

foco a análise textual desse material, é imprescindível considerar o processo que

envolve a sua história, o que justifica a compreensão do livro didático de História dentro

desse circuito.

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2.3 O CIRCUITO DO LIVRO ESCOLAR 37

Os livros, de uma maneira geral, passam pelo mesmo ciclo de vida de uma

pessoa, e sua história é significativa em cada fase desse processo. Ele pode ser descrito

como um circuito de comunicação: “[...] que vai do autor ao editor (se não é o livreiro

que assume esse papel), ao impressor, ao distribuidor, ao vendedor, e chega ao leitor.”

(DARNTON, 1990, p. 112). Da ponta inicial, o autor, até chegar à ponta final, o leitor,

inúmeras implicações interferem nesse intercurso, as quais são mobilizadas na tentativa

de instaurar a ordem do livro, que seria a coerção do texto sobre o leitor. Mas, para

Darnton (1990), é este interlocutor que encerra tal ciclo, pois dá vida à palavra

impressa, de forma a influenciar o autor antes e depois do momento de produção.

Essa influência do leitor sobre o autor não é difícil de perceber nas edições dos

livros dos mais diversos gêneros textuais. Para Silva (2007, p. 86): “[...] essa

interferência pode se manifestar em forma de reflexão do autor a respeito de trabalho

anterior, no caso das reedições, ou mesmo prever algumas situações de reações adversas

que poderão surgir.”

Machado de Assis, por exemplo, sempre reserva em seus textos um espaço para

conversar com um provável interlocutor, a quem se dirige empregando algumas

expressões dialógicas repentinas, tais como “Abane a cabeça leitor”. Esses fatos

linguísticos inda podem ser percebidos nas reedições de suas obras, às quais, por algum

motivo, o autor introduz alterações em relação ao texto original.

Eis aí algumas das situações em que o autor se aproxima do leitor, e, dessa

forma, no caso do livro didático, em que o autor se aproxima do leitor-professor. Assim:

O circuito percorre um ciclo completo. Ele transmite mensagens, transformando-as durante o percurso, conforme passam do pensamento para o texto, para a letra impressa e de novo para o pensamento. A história do livro se interessa por cada fase desse processo e pelo processo como um todo, em todas as suas variações no tempo e no espaço, e em todas as suas relações com outros sistemas, econômico, social, político e cultural, no meio circundante. (DARNTON, 1990, p. 112).

37 Circuito elaborado por Silva (2007, p. 86), a partir da expressão utilizada por Márcia de Paula Gregório

Razzini, no artigo “Livros e leitura na escola brasileira do século XX”. O texto destaca aspectos relevantes na trajetória da história do livro e da leitura na escola do século XX. Mais informações ver Razzini (2005).

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Na acepção de Silva (2007, p. 87), o circuito do texto escolar de fato não é

diferente; ele faz o percurso completo: do autor ao leitor - professor e aluno. São

inúmeras as situações nas quais o autor se aproxima do leitor-professor, por exemplo,

quando ele antecipa uma provável escolha ao referir que a obra está de acordo com a lei

que direciona a educação em um determinado espaço/tempo; ou quando o apresenta

como uma imposição do próprio sistema. Em outras palavras, às vezes a condição para

veiculação e adoção dos títulos didáticos é que eles estejam em conformidade com o

currículo oficial vigente, o que, de certa forma, não deixa de ser um cerceamento às

escolhas.

O livro didático de História Lições de História do Brasil, do autor Joaquim

Manoel de Macedo, publicado em 1907, é esclarecedor desse diálogo com o professor.

O autor, no prefácio da obra, ao dialogar com o professor, tenta explicar o porquê de seu

livro didático ser tão volumoso, se é destinado ao estudo por crianças, assim

argumentando:

Uma obra escripta para servir ao estudo de meninos não deve ser longa, e o nosso compendio á primeira vista desagradará pela sua aparente extensão; affigura-se-nos porém que um rápido exame do livro demonstrará que este só avulta pelas explicações, pelos quadros synopticos e pelas perguntas que seguem ás lições com o fim de facilital-as, e de graval-as na memória dos discípulos. (MACEDO, 1907, p. 01).

Aqui, o autor provavelmente leva em consideração a opinião do leitor-

professor. Há, também, outro diálogo com o professor, por parte do organizador da

obra:

ADVERTENCIA

Encarregado, pelo editor das lições de História do Brasil do dr. Joaquim Manoel de Macedo, de completar este compendio, tratei antes do mais, de respeitar o plano adoptado pelo seu autor. Era isso principalmente o que cumpriu fazer, para não sacrificar o caracter de um livro, que já nove edições sucessivas consagraram. Rio de janeiro, 14 de novembro de 1905. (MACEDO, 1907, p. 02).

Já o autor Creso Braga, em seu livro didático Breves lições de História do

Brasil, de 1922, traz já na capa da obra duas informações importantes, o que subentende

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um diálogo com o professor e o cumprimento da imposição do sistema vigente na

Primeira República, conforme se pode apreender na foto a seguir:

Figura 14 - Nota constante da capa do livro Breves Lições de História do Brasil, de 1922 Fonte: Braga, 1922

Como se pôde observar no capítulo anterior, não era raro, durante a Primeira

República, constatar nas edições didáticas o anúncio de que as obras tinham aprovação

do Conselho Superior da Instrução Pública ou eram equiparadas ao plano do Colégio

Pedro II. Para Razzini (2005, p. 106-107):

O controle da instituição patrocinadora da educação sobre o livro didático sempre fez parte da história desse objeto cultural, seja no ensino religioso, leigo, público ou privado. Daí a necessidade da freqüente composição entre os que na ponta da produção (autores e editores) e os agentes encarregados da aprovação dos livros para uso dos seus consumidores finais, os alunos.

João Pinto e Silva, autor de Minha Patria, também datado de 1922, igualmente

dialogando com o professor, enaltece o sucesso da obra anterior para justificar seu

direcionamento às práticas escolares desse profissional:

ADVERTENCIA Seguindo neste livro plano idêntico ao já exposto no que, sob o mesmo titulo, publicamos para o segundo anno preliminar, resolvemos repetir aqui as Notas exaradas no outro, por nos parecerem de grande alcance para o fim da presente obra. Eil-as:

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1ª - Explique o professor ao alumno os termos de cada lição, principalmente os gryphados. 2ª - Chame-lhe a attenção sobre as illstrações do texto. 3ª - solicite-o na parte histórica, por meio de questionários bem formulados. 4ª - faça- interpretar a lição lida. 5ª - Empregue o mappa-geographico, sempre que for preciso. 6ª - Faça o alumno desenvolver, oralmente, ou por escripto, os exercícios indicados no fim de cada lição Autor. (p. 07).

Chartier (1994, p. 9), ao analisar os problemas e condições históricas do livro,

destaca três polos que definem o espaço dessa história: a análise dos textos, a partir de

suas estruturas e objetivos; a história do livro, com todas as formas que o tornam

escrito; e o estudo das diferentes práticas associadas a esses objetos ou de suas formas

produzindo usos e significações diferenciadas. O processo no qual as obras adquirem

sentido tem, portanto, uma relação triangular: entre o texto, o objeto que lhe serve de

suporte e a prática que está ligada a este. As variações na relação entre estes três polos

implicam mudanças de significação.

Ao situar esta investigação no primeiro desses polos - a análise dos textos -,

não se descarta a importância das outras dimensões que participam do processo de

construção do texto escolar. E esse destaque acontece em razão do delineamento da

pesquisa e do próprio objeto de estudo: a representação dos negros nos livros escolares

utilizados em Mato Grosso na Primeira República.

Então, o próximo capítulo reúne as análises textuais e icnográficas das

representações dos negros veiculadas em dois livros escolares de História que foram

utilizados nas escolas matogrossenses, no período em tela. Os dois livros foram

recrutados para análise devido a sua ampla utilização nas diversas escolas brasileiras

durante o período em tela.

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3 VERDADES QUE PARECEM MENTIRAS

Este capítulo é dedicado a analise de alguns livros didáticos de História que

circularam e foram utilizados pelos professores e alunos nas escolas mato-grossenses

durante a Primeira República, mais precisamente no período compreendido entre o final

do século XIX e as três primeiras décadas do século XX. Porém, recuos e avanços

temporais foram exigidos pelo próprio processo da investigação, a fim de permitir a

contextualização necessária e adequada ao cumprimento dos objetivos definidos para

esta pesquisa.

Não se deteve aqui na realização de uma análise exaustiva das fontes

encontradas, ou, ainda, não se elegeu como objetivo criticar as obras didáticas em

Figura 15 - Livros didáticos de História utilizados nas escolas mato-grossenses durante a Primeira República Fonte: Pombo (19..); Macedo (1907)

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questão; concentrou-se, sim, na busca pela compreensão das representações dos negros

apresentadas em tais publicações.

Destaque-se que Mato Grosso não era um Estado produtor de livros escolares,

nem exportador de teorias via publicação de textos didáticos. De acordo com Silva

(2007, p. 85): “Mato Grosso era nutrido38 pelas produções didáticas de outros centros.”

Esse fator implica a reflexão de que muitos dos livros escolares adotados nas

escolas mato-grossenses possivelmente também o foram em estabelecimentos de ensino

de diversos outros Estados brasileiros, de modo que a localização dessas obras nessas

diferentes regiões constitui-se, por si só, num indício dessa hipótese. Igualmente, alguns

estudos analisados no correr desta pesquisa corroboram essa ideia.

Dar-se-á início, neste momento, a um diálogo, mediante a tessitura de algumas

considerações a respeito do livro Lições de História do Brasil, de Joaquim Manoel de

Macedo, datado de 1907 e cuja escolha se deu em função de a obra ter sido aprovada em

1880 pela Congregação39 do Liceu Cuiabano para uso no ensino secundário, tendo sua

utilização adentrado o período republicano.

3.1 LIÇÕES DE HISTÓRIA DO BRASIL, DE JOAQUIM MANOEL DE

MACEDO

Para discorrer sobre esse tópico, tecer-se-á uma breve biografia de Joaquim

Manoel de Macedo, por acreditar que sua trajetória de produções bibliográficas

representa com propriedade um grupo de intelectuais e escritores de livros escolares da

Primeira República.

Como muitos estudiosos da época, Macedo exerceu várias funções: foi escritor,

político e professor do Imperial Colégio Pedro II; participou ativamente do IHGB;

atuou também como membro da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, do

Conselho Diretor de Instrução pública da Corte e sócio do Conservatório Dramático do

Rio de Janeiro. Dentro desse amplo conjunto de atividades, segundo Andrade (2008),

destacam-se quatro frentes: a política, a imprensa, a escrita e o ensino de História.

38 Silva (2007, p. 85) emprega o termo nutrido por compreender que, à medida que se compra e se adota

determinado material, está-se nutrindo, valendo-se das teorias e concepções que o constituem. 39 Utiliza-se o termo “congregação” por ser a designação utilizada na Ata da Congregação dos Professores

do Liceu Cuiabano, para aprovação dos compêndios do ensino secundário público (18 set. 1880).

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Na política, Macedo foi deputado provincial do Rio de Janeiro, na legislatura de

1854 a 1859, e deputado geral, em 1863, 1867 e 1878, pelo partido Liberal; além de ter

estado sempre ligado à família Imperial, na qual chegou a ser professor de História do

Brasil das princesas Isabel e Leopoldina.

Na imprensa, destacou-se pelas crônicas semanais que escrevia nos periódicos

A Nação, jornal do partido Liberal, entre 1852 e 1854; Jornal do Comércio, de 1855 a

1862; e A Reforma, também do partido Liberal, entre 1869 e 1870.

Na escrita, Joaquim Manoel de Macedo se tornou popular com a obra A

Moreninha (1844) e, como cronista, suas principais contribuições foram as publicações

de A Carteira do meu Tio, datado de 1855, e Memórias do Sobrinho de meu Tio,

publicado entre 1867 e 1868.

No ensino de História, foi o primeiro professor de História do Brasil do

Internato e Externato do Imperial Colégio Pedro II tendo ali ingressado em 1849 e

permanecido até vir a falecer, em 1882.

Durante o período em que desempenhou a função docente, o autor escreveu

dois manuais de História do Brasil, ambos denominados Lições de História do Brasil,

sendo, porém, um para uso dos alunos daquela unidade escolar e o outro para uso dos

alunos das escolas de instrução primária. Essas obras, em 1865, além de terem sido

adotadas no Imperial Colégio, passaram a ser recomendadas para todos os outros

colégios do Império, haja vista o Pedro II, como já citado anteriormente, ter servido de

modelo para as demais instituições de ensino secundário.

O livro Lições de História do Brasil ora analisado é sua décima edição,

publicada em 1907 e organizada por Olavo Bilac, que, em suas próprias palavras,

manteve inalterado o plano adotado pelo autor:

ADVERTENCIA Encarregado, pelo editor das lições de História do Brasil do dr. Joaquim Manoel de Macedo, de completar este compêndio, tratei antes do mais, de respeitar o plano adoptado pelo seu autor. Era isso principalmente o que cumpriu fazer, para não sacrificar o caracter de um livro, que já nove edições sucessivas consagraram. Rio de janeiro, 14 de novembro de 1905. O.B. ( p. 02).

A postura adotada por Bilac reforça o que ele próprio explicita em seu texto: a

obra de Joaquim Manoel de Macedo teve ampla aceitação e foi adotada em diversas

escolas brasileiras, podendo tal receptividade ser justificada por tal número de edições,

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uma vez que a análise aqui empreendida tem por objeto, como já se disse, sua décima

edição.

Em face disso, é importante ressaltar que o livro veicula as representações

sociais por certo pertinentes ainda ao Império, época contemporânea do autor.

Lições de História do Brasil teve como livreiro-editor H. Gardiner e consta de

519 páginas não ilustradas. No entanto, logo nas páginas iniciais, o autor apresenta

prováveis justificativas aludindo à espessura do material, pois era destinado a um

público jovem e caracteriza o que julga ser uma extensão aparente:

Uma obra escripta para servir ao estudo de meninos não deve ser longa, e o nosso compendio á primeira vista desagradará pela sua aparente extensão; affigura-se-nos porém que um rápido exame do livro demonstrará que este só avulta pelas explicações, pelos quadros synopticos e pelas perguntas que seguem ás lições com o fim de facilital-as, e de graval-as na memória dos discípulos. (p. 01).

Com relação aos negros, na obra prevalece o silêncio: em meio às 519 páginas,

o autor destinou apenas quatro para abordar a história dos negros no Brasil. Porém,

Choppin (2004, p. 22) adverte que as escolhas dos autores tanto com relação à seleção

dos fatos quanto na sua forma de abordá-los não são neutras, e, nessa perspectiva: “[...]

os silêncios são também bem reveladores: exige dos manuais uma leitura em negativo!”

Macedo se refere aos negros somente em relação à destruição dos Palmares e à

abolição. E, ao abordar a Guerra Hollandeza, o máximo a que chega é mencionar

Henrique Dias:

De volta á várzea de Recife reuniram-se aquelles chefes a Henrique Dias que ficara mantendo o cerco que já se tinha posto a essa cidade, e fundaram sobre uma eminência que dominava a planicie um arraial fortificado que se chamou do Bom Jesus, em lembrança do outro que tivera o mesmo nome; e a 7 de Outubro de 1645, nesse novo arraial, foi João Fernandes Vieira acclamado governador. (p. 196).

O autor não enaltece as qualidades de comando e a importância de Dias na

expulsão dos holandeses e, ao se referir a Antônio Philippe Camarão, companheiro de

batalha daquela personalidade histórica, nomeia-o índio:

O bravo D. Antônio Philippe Camarão, victima de febre violenta, índio tão illustro, tão hábil capitão, e intrépido soldado, tão notável pelos seus serviços, que merecera do rei Philippe IV a graça do título

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de Dom para elle e seus herdeiros, o foro de figalgo, o habito da ordem de Christo com uma pensão pecuniária, e a patente de capitão-mor dos índios. (p. 198).

Como se vê, Macedo enaltece Camarão com atributos de peso. A propósito, no

momento de produção da obra, as discussões indianistas40 encontravam-se a pleno

vapor, e grande parcela dos povos negros ainda se confinava nas senzalas.

Para Ribeiro (2004, p. 246-247), em relação aos negros como parte formadora

do povo brasileiro, Macedo opta pelo silêncio e limita a presença desse grupo étnico

racial ao quilombo dos Palmares, povoando a memória nacional a ser ensinada nos

bancos escolares:

Macedo era contra a escravidão, embora não tivesse escrito sobre o assunto uma linha no seu manual escolar. Não fez qualquer nota sobre o elemento da raça negra como co-partícipe na construção da nação brasileira porque sua preocupação era definir os foros de civilização que a Monarquia de Dom Pedro II carregava e o negro não era passível de tal assimilação. Ela estava fora da encenação monumental do ato de formação da nacionalidade brasileira no texto didático de Macedo.

Joaquim Manoel de Macedo parece realmente não dar voz aos negros, e muito

menos espaço. Em sua obra, dedica pouco mais de meia página para se referir a um dos

ícones da resistência desse povo, o quilombo dos Palmares, refúgio que, ainda, é

focalizado apenas no momento em que foi destruído. Como não bastando esse recorte

na realidade dos fatos constitutivos desse embate, o negro é retratado como simples

coadjuvante do protagonismo vitorioso do homem branco. Desse modo, as conquistas e

a organização do quilombo dos Palmares não figuram no texto, ainda que ali se

reunissem várias aldeias de quilombolas41 totalizando mais de 20 mil moradores, a

mesma população de Salvador, capital do Brasil na época (SCHIMIDT, 2005, p. 209).

Ademais, ao retratar os negros, o autor os associa à criminalidade, à desordem

e à violência:

Aproveitando-se da desordem, das emigrações e do abandono de fazendas e propriedades, durante a guerra hollandeza, muitos escravos fugiram e foram acoutar-se nas faldas da serra da Barriga e provavelmente em outras matas, formando quilombos, onde pelo correr do tempo outros escravos se reuniram aos primeiros,

40 Indianistas eram os intelectuais que discutiam a inclusão do índio na categoria de brasileiro e não

indianistas eram os que rejeitavam essa ideia. 41 Quilombolas eram pessoas que viviam nos quilombos.

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procurando assim livrar-se da opressão do captiveiro, e sem dúvida também a elles se ajuntaram desertores e criminosos. [...] A existência dos Palmares era um perigo para as capitanias onde existiam e avizinhavam com esses quilombos. (p. 224).

Enfim, enaltece as figuras de Domingos Jorge Velho e dos paulistas por terem

conquistado Palmares:

Em 1667, o paulista Domingos Jorge Velho obrigou-se a destruir aquelles quilombos e a aprisionar os quilombolas [...], e seguindo-se encarniçada campanha, e muitos combates, em que ostentaram todo o seu valor os Paulistas commadados por Domingos Jorge Velho, conseguio conquistar definitivamente os Palmares em 1697. (p. 225).

Nesse cenário, parece que o autor transmite a mensagem do que pode acontecer

aos insurgidos e exalta a superioridade dos brancos.

O próximo tópico a retratar os negros é no capítulo da Abolição intitulado: A

Abolição e a República (1888-1889). Esse capítulo fora escrito por Olavo Bilac, pois,

neste período, Joaquim Manoel de Macedo já havia falecido.

Para Bilac, a escravidão fora mantida devido à impossibilidade de os

governantes garantirem a permanência do equilíbrio dos cofres públicos caso ocorresse

a libertação dos escravos:

O Brasil foi um dos últimos paizes a decretar a emancipação dos escravos. Isso foi motivado pela impossibilidade, em que sempre se viram os governos, de realisar de chofre essa medida humanitária, sem comprometer gravemente afortuna publica e particular: basta dizer que no dia 13 de maio de 1888, quando foi assignada a lei da abolição, ainda existiam no Brasil mais de setecentos mil escravos. (p. 423).

Sendo assim, levando-se em consideração os quase trezentos anos de

escravidão no Brasil, os negros eram tratados como mercadoria, provavelmente valiosa

para a nação. O texto também é esclarecedor do rol de prioridades estabelecidas pelo

Estado brasileiro, dentre as quais, ao que tudo indica, as questões humanitárias

realmente não eram assunto de pauta. Em um país no qual a escravidão de pessoas

perdura tanto tempo, é um tanto quanto contraditório falar em medida humanitária. Ou

não?

Nesse contexto, as conquistas sobre os negros que almejavam a liberdade,

deram-se num processo tranquilo, sem lutas, sem guerra: “[...] uma glória, porém, cabe

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á nossa nacionalidade, a de ter effectuado essa reforma social sem derramamento de

sangue, entre expansões de jubilo intenso e fraternal.” (MACEDO, 1907, p. 428).

Parece que o autor esquece ou silencia que nas páginas anteriores faz referência à

encarniçada campanha de combate ao quilombo dos Palmares.

Nesses termos, a libertação dos escravos é apresentada como uma iniciativa

dos homens brancos, sendo aos negros concedida uma posição de expectador desse

processo:

Só com a lei de 1850 (devido ao estadista Eusébio de Queiroz) ficou o tráfico realmente extincto. A lei de 28 de setembro de 1870, devida principalmente ao visconde do Rio Branco, e sanccionada pela princesa D. Isabel que na ausência do Imperador exercia a regência do Império, veio completar a de Eusébio de Queiroz - declarando livres todos os nascidos de ventre escravos. (MACEDO, 1907, p. 428-429).

Diante desse cenário, o autor adota a posição de que tal movimento libertador

aconteceu definitivamente ou pela generosidade dos senhores de escravos ou pela

vitória da propaganda abolicionista: “[...] em 13 de maio de 1888, a princeza D. Isabel,

que pela terceira vez exercia a regência, sancionou a lei decretada pelas camaras, por

proposta do ministério João Alfredo, declarando extincta a escravidão no Brasil.” (p.

429).

E, nesse processo de libertação descrito na obra em apreço, também não há

lugar de destaque para a princesa Isabel, a exemplo do que ocorria em outros livros

didáticos em circulação no mesmo período. Primeiramente, o autor referenda Eusébio

de Queiroz, com a lei de extinção do tráfico negreiro, e, depois, João Alfredo, com a lei

de extinção da escravidão no Brasil. Àquela figura real, restou-lhe apenas a sanção das

leis em virtude da ausência do Imperador, fato que pode estar associado às ideias do

movimento republicano, que no ano seguinte proclamou a República.

Entretanto, por mais que os filtros sociais, políticos, econômicos e culturais do

discurso tentem impor uma ordem, era impossível sufocar e calar milhares de negros

que lutaram para mudar o próprio destino e o de sua gente. Em decorrência disso,

flagram-se contradições ao longo do texto de Macedo, como no caso do envolvimento

dos negros na luta pela liberdade: ora figuram como simples coadjuvantes do processo,

ora como protagonistas.

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Começaram, então, as alforrias em massa, obtidas, quer pela generosidade dos senhores de escravos, quer pelo resgate effectuado por meio de subcripções populares. [...] Em 1888, a agitação chegara ao seu auge. Bandos compactos de escravos abandonavam as fazendas; o exercito recusou-se terminantemente a intervir para suffocar esses levantes. (p. 429).

E, mesmo de forma subliminar, percebe-se no livro a resistência desses grupos

à escravidão: “[...] muitos escravos fugiram e foram acoutar-se na serra da barriga,

formando quilombos, onde pelo correr dos tempos outros escravos se reuniram aos

primeiros, procurando assim livrar-se da oppressão do captiveiro”. (p. 224).

Apesar de o autor ignorar a administração política, social e militar necessária

para governar, aproximadamente, vinte mil quilombolas residentes em Palmares,

afirma: “[existia ali] uma espécie de governo, cujo chefe denominava-se zumbi.” (p.

224).

Parafraseando Chartier (1990, p. 18-19), a partir do momento em que as

representações sociais comandam atos, mesmo que à revelia dos atores sociais que as

elaboram, elas traduzem as posições e interesses desses indivíduos. Assim, tais

representações passam a ter existência e descrevem a sociedade tal como pensam os

membros que a integram, ou como gostariam que ela fosse.

A partir dessa análise, nota-se que o estudo das representações veiculadas aos

negros nos livros escolares compreendem bem mais os valores, comportamentos e

normas estabelecidos pelos brancos do que fatos relativos aos próprios negros. Por esse

prisma, parece que o livro Lições de História do Brasil foi elaborado por um emissor

branco para um receptor também branco.

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120

3.2 NOSSA PÁTRIA, DE ROCHA POMBO

Será analisada a partir deste momento a 60ª edição do livro Nossa Pátria, de

autoria de Rocha Pombo, da qual não consta o registro da data de publicação, embora

em sua apresentação, elaborada pelo próprio autor, encontre-se indicado o ano de

191742. A obra, bastante ilustrada, narra os fatos da História do Brasil em seus processos

evolutivos, e foi adotada por professores e alunos mato-grossenses nas primeiras

décadas do século XX, como consta da já referenciada relação elaborada pelo

Almoxarifado da Diretoria Geral da Instrução Pública do Estado de Mato Grosso, de

1924 a 1927, e dos relatórios do Conselho Superior da Instrução Pública.

O livro foi destinado ao ensino primário, como se constata nas palavras do autor

ao apresentar sua obra:

Este livrinho e feito para a intelligencia das creanças e dos homens simples do povo. Neste dias, que alvorecem tão novos, em que se procura crear o culto da pátria, penso que o primeiro trabalho para isso é fazer a pátria conhecida daquellles que a devem amar.

42 Possivelmente, essa data se refere a uma das primeiras publicações do livro em apreço. Em face disso,

adotar-se-á nesta investigação a indicação [19--], referindo-se ao século certo de edição da obra ora analisada.

Figura 3 - Livro - Nossa Patria e o autor Rocha Pombo Fonte: Pombo ([19--]).

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Não se ama uma terra sinão quando alguma coisa sagrada a ella nos prende - algum sacrifício, ou alguma tradição gloriosa. São essas coisas que firmam a nossa existência moral. [...] Rio - 1917

Rocha Pombo (p. 03).

Antes de se lançar um olhar mais cauteloso e aprofundado à obra de Rocha

Pombo, em busca de maiores detalhes, acredita-se ser oportuno elencar algumas

informações sobre o autor. Nascido em Morrestes, no Paraná, no ano de 1857, foi

historiador, professor, político, escritor, jornalista e membro do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro. Era abolicionista e republicano, tendo sido eleito deputado,

quando se transferiu para a corte e logo se habilitou para lecionar no Colégio Pedro II e

na Escola Normal. Escreveu vários livros didáticos de História, romances, contos e

poesias. Chegou a ser eleito, em 16 de março de 1933, para oculpar a cadeira 39 da

Academia Brasileira de Letras, que tem como patrono Francisco Adolfo de Varnhagen,

mas faleceu antes de tomar posse.

Situar Rocha Pombo em seu espaço/tempo faz-se necessário para uma melhor

compreensão de sua obra. Inicie-se dizendo que, ao contrário da postura adotada por

Joaquim Manoel de Macedo, que, conforme já visto, optou pelo silêncio em relação aos

negros como parte constituinte do povo brasileiro, o autor, em seu livro didático Nossa

Pátria, possivelmente influenciado pelas ideias republicanas, lançou-se por um caminho

em que ressalta os três elementos formadores dessa gente na construção da nação.

O livro é constituído de 150 páginas, subdividas em 51 tópicos sucintos, e,

daquele total, 57 páginas apresentam gravuras, das quais 25 são destinadas aos negros.

A hierarquização das “raças” e o mito da democracia racial permearam os

textos dessa publicação, de sorte que já nas primeiras páginas do capítulo I, intitulado

“Nossa Pátria”, o autor refere-se à “igualdade entre as raças”: “De certo que devemos

amar todos os homens. O nosso semelhante, qualquer que seja o seu paiz e a sua raça, é

sempre um ente sagrado. Tudo na vida nos diz muito claro que todos os homens são

irmãos, e como taes devem amar-se.” (p. 06).

Entretanto, esse discurso de fraternidade e igualdade é logo interrompido nas

páginas seguintes, no tópico denominado “Os africanos”, em cuja narrativa o autor

ressalta a necessidade de mão de obra para a manutenção da economia colonial

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portuguesa na América e, diante da dificuldade de escravizar os índios, justifica a

escravidão africana:

Esta gente era também selvagem como os indios, e vivia lá quasi como os indios viviam aqui. Apenas os africanos não eram livres como os indios; tinham os seus reis, chamados sobas, que com elles eram muito crueis. Aqueles reis vendiam gente como si fosse gado. Sabendo disso, os nossos colonos mandavam lá comprar quantos queriam para os ajudarem nas plantações. (p. 31).

Esse trecho é revelador da construção de uma história etnocentrica e da

hierarquização das raças, e o autor continua seu relato reforçando o mito da democracia

racial:

Quasi todos, em vez de odiar, ficaram logo querendo bem aos senhores. Sobretudo as mulheres foram as grandes amigas das creanças. Trabalhadores, obedientes e muito espertos, os africanos fizeram muito pelo progresso do nosso paiz. Soffreram bastante sahindo lá do meio dos seus; e as vezes o sacrificio para elles era tão grande que chegavam a morrer de saudade. Afinal a raça foi recompensada, pois descendentes daquellles pobres escravos hoje são iguaes aos antigos senhores, e sem duvida muito mais felizes do que os parentes que ficaram lá na Africa. [...] Hoje, somos todos como irmãos. (p. 32).

Com o tom adotado na elaboração de seus textos, Rocha Pombo forja uma

imagem amena e não violenta da escravidão conduzida pelos portugueses no Brasil,

além de defender que ela salvou os negros de um futuro sem perspectivas, resgatando-os

da África selvagem, aproximando-os da civilização e finalmente garantindo-lhes a

liberdade e a igualdade.

Florestan Fernandes (1978, p. 30), procedendo a uma revisão sistemática das

teses da benevolência e suavidade da escravidão, argumenta terem sido elas justificadas

pelos pesquisadores tributários dessa perspectiva, não somente pela dura, bárbara e

cruel realidade da escravidão, mas também pela própria violência inerente ao sistema

escravista, a qual se constitui numa de suas principais formas de controle e manutenção.

De acordo com Ribeiro (2008, p. 68), a imagem do senhor de escravo como

alguém “humanitário”, do Brasil como “paraíso racial” e da África como “viciosa”,

terra da barbárie, esteve presente no discurso dos abolicionistas da segunda metade do

século XIX.

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É importante lembrar que os autores dos livros didáticos são frutos de um

determinado tempo/espaço. Logo, a escrita da História é sempre uma interpretação e

reinterpretação de quem a produz. Diante disso, devem-se apreciar com certo cuidado

alguns trechos das narrativas por eles elaboradas e que, de uma forma ou de outra,

parecem escapar-lhes da sua autonomia. Nesse contexto, o jogo contraditório fundado

nas/pelas palavras dos escritores pode ser revelador e fornecer possíveis pistas para

outras interpretações e reconstituições de uma mesma sociedade.

O trecho há pouco citado do livro de Rocha Pombo é ilustrativo dessa

contradição. Referindo-se à chegada dos negros ao Brasil como escravos, o autor

declara que: “[...] em vez de odiar, ficaram logo querendo bem aos senhores.”

Entretanto, no parágrafo que sucede ao que traz essa informação, afirma: “Soffreram

bastante sahindo lá do meio dos seus; e ás vezes o sacrificio para elles era tão grande

que chegavam a morrer de saudade.”

Então, o autor acreditava mesmo que a escravidão era aceita pelos negros? Ou

essa idéia é uma construção do autor? A despeito desses questionamentos, neste

momento da pesquisa o interessante é perceber que, mesmo com todos os filtros sociais,

econômicos, políticos e culturais, mesmo com as várias tentativas de amenizar os

horrores da escravidão, é impossivel apagar as cicatrizes e as mazelas sociais e culturais

disso decorrentes.

Ao fianlizar o tópico XI, intitulado “Os europeus”, o autor caracteriza as

representações de cada elemento formador das três raças:

Vê-se, portanto, que a população do Brasil se formou dessas tres raças que temos indicado: os indios, que já estavam aqui; os africanos, que vieram como escravos; e os europeus, que tomaram conta do paiz. Por isso, o brasileiro tem as qualidades mais notáveis dessas tres raças: - é altivo, amoroso e intelligente. (p. 35).

Por conseguinte, a “democracia racial” tão enfatizada na Primeira República no

Brasil e transposta para os livros escolares “era possível” desde que cada sujeito

conhecesse e aceitasse o seu devido lugar na hierarquização social. Logo, não passou de

um mito, de uma construção sem alicerce.

Rocha Pombo, ao descrever a organização das vilas no período colonial, mais

uma vez caracteriza os papéis sociais de brancos e negros:

Quando o numero e a importância dos moradores já permitisse a formação de uma camara, a freguesia e elevada á classe de Villa.

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Essa camara era composta de umas quantas pessoas escolhidas entre os homens bons da Villa, quer dizer - entre a gente principal. Era incumbida de reger a Villa. No dia em que o povoado passava de freguesia à classe de Villa, era preciso também levantar-se na praça principal, em frente da casa da camara, uma columna ou poste de madeira, que se chamava pelourinho. Este poste significava o poder e a justiça do rei. Nelle se amarravam os criminosos e os escravos que deveriam ser castigados. (p. 44).

A bipolaridade entre brancos - “homens bons” - e negros - criminosos - era

uma constante nos textos didáticos desse período, configurando representações que

marcaram inúmeras produções dessa natureza.

Após a ênfase dada à necessidade da construção de pelourinhos nas vilas, o

autor apresenta uma imagem de negros sendo castigados no pelourinho, sob o olhar

atento de uma plateia de “criminosos” e “homens bons”.

Figura 17 - Pelourinho

Fonte: Pombo ([19--], p. 45).

Essa imagem é repleta de representações da sociedade colonial, a partir da qual

o artista, lançando um olhar etnocêntrico, construiu sua obra. Ao observar a cena,

verificam-se negros sendo castigados por outros negros sob o olhar atento de homens

brancos - “homens bons” e negros. Essa demonstração de poder dos “homens bons” em

praça pública tem um significado: dar exemplo aos demais negros. Também podem ser

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notados negros fazendo parte do corpo de ordenança43 e outros castigando os próprios

companheiros, numa demonstração de que aos “obedientes” seriam concedidas

pequenas vantagens.

Acrescente-se que as imagens apresentadas no livro de Rocha Pombo podem

ter sido escolhidas e apresentadas não somente pelo autor, mas por outros profissionais

que fizeram parte do processo de produção final da obra - editoração, publicação etc.

Bittencourt (2008, p. 75), referindo-se a Ernest Lavisse, expressa que, para esse

historiador:

“Ver as cenas históricas” era objetivo fundamental que justificava ou ainda justifica a inclusão de imagens nos livros didáticos em maior número possível, significando que as ilustrações concretizam a noção altamente abstrata do tempo histórico. Para Lavisse, as gravuras dos livros serviram ainda para facilitar a memorização dos conteúdos, sendo que o autor tinha cuidados especiais em apresentar, no corpo da página, o texto escrito mesclado a cenas que reforçavam as explicações escritas pelo autor.

Portanto, mesmo o livro Nossa Patria não fazendo apologia à escravidão, ainda

que apresente, sem nenhum comentário crítico, imagens retratando os negros em cenas

como as há pouco descritas, isso contribui para a construção das representações

fortemente negativas associadas a esse povo.

Percebe-se que Rocha Pombo fugiu da construção de uma História estritamente

política, factual e personalista, ao apresentar com frequência nas narrativas e nas

imagens aspectos do cotidiano, como aqueles representativos das atividades realizadas

pelas mulheres:

As mulheres viviam quase fechadas no interior das casas, cuidando dos serviços domésticos. Esses serviços eram, então, mais penosos do que hoje. As mulheres tinham de fazer toda roupa da família. É verdade que as roupas não eram muitas [...]. Mas, se as roupas eram poucas, deviam ainda assim, custar muito a fazer, porque eram feitas a mão. Não havia, como hoje, machinas de costura. E era preciso ainda fazer o próprio panno, tecendo a lã e o algodão em pequenos teares, pois o pouco panno que vinha da Europa era muito caro.

43 Corpo de ordenança: instituição militar responsável pela segurança pública dos municípios no período

colonial. Constituíam as tropas mais diretamente manipuláveis pelos proprietários rurais. Os oficiais, embora nomeados pelo governador, eram escolhidos a partir de uma lista tríplice organizada pelas câmaras municipais, intensamente controladas pelos proprietários rurais. (FERNANDES, 1973, p. 36-37)

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Alem de tudo isso que as mulheres tinham de fazer para toda a família, os trabalhos da cozinha eram mais difficeis. Não havia fogões. Fazia-se fogo de lenha debaixo de uma trempe de ferro; e sobre essa trempe punha-se a panela de barro. Não havia phosphoros; e era preciso conservar o fogo sempre acceso. Chamava-se mesmo - guardar o fogo. Quando este se apagava, era preciso pedir fogo ao vizinho. Dahi se vê como era custosa a vida para as famílias. Mas também é certo que as donas de casas contavam com o auxilio das escravas; e quasi sempre não tinham mais que o trabalho de as governar. (p. 47-49, grifos nossos).

Ao focalizar o cotidiano das mulheres, o autor finaliza suas observações

afirmando: “[...] que as donas de casas contavam com o auxílio das escravas; e quasi

sempre não tinham mais que o trabalho de as governar.” Logo, esses aspectos flagrados

do dia a dia representam as atividades desenvolvidas pelas escravas domésticas, já que

às mulheres brancas cabia apenas “governar as escravas”.

A imagem exibida a seguir retrata as famílias coloniais e corrobora o fato de

que quem desenvolvia as atividades na casa do senhor eram os escravos domésticos:

Figura 18 - Dia de Festa Fonte: Pombo ([19--], p. 47).

Crê-se ser oportuno destacar que algumas representações da casa-grande

veiculadas nos livros escolares também serviram para disseminar as teses da

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“benevolência” do senhor de escravo e da “docilidade” da escravidão brasileira. No

entanto, ao abordar o cotidiano colonial, Pombo traz à tona aspectos da rotina diária

dessa gente, fugindo das abordagens estanques e momentâneas (a destruição dos

Palmares e a abolição, por exemplo) atribuídas à população negra e que são

características de alguns livros escolares contemporâneos ao dele.

Ribeiro (2004, p. 263), examinando o livro de História do Brasil de Rocha

Pombo, destinado ao nível superior de ensino, afirma que o autor retratou nas páginas

que o integram aspectos da presença do escravo negro na vida cotidiana dos seus

senhores, no espaço privado da casa-grande, lugar privilegiado anos mais tarde por

Gilberto Freyre na construção de sua interpretação sobre o passado colonial português.

Provavelmente, a preocupação de Rocha Pombo em pensar o espaço da casa-grande, estivesse baseada na obra de Capistrano de Abreu, que, em Capítulos de História Colonial (1500-1800), atribuiu importância à história social e dos costumes e onde, pela primeira vez, aparecia a casa-grande e a senzala. (RIBEIRO, 2004, p. 265-624).

Nos textos e imagens apresentadas no capítulo XVI de sua publicação, Rocha

Pombo aborda o cotidiano da vida nos sítios, dizendo inicialmente que: “[...] só

moravam na Villa as famílias que dispunham de recursos... Os que não contavam com

taes meios de vida, e eram pobres, tinham de viver com as famílias pelas vizinhanças

das povoações, occupando-se de lavoura e criação.” (p. 50). A imagem a seguir

recupera uma visão dessa vida no sítio:

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Figura 19 - Lundú Fonte: Pombo ([19--], p. 50).

Prosseguindo em suas observações, continua com a descrição das atividades

diárias da população pobre que vivia nos sítios:

Os moradores pobres, porém, não tinham escravos, e viviam nos seus sítios plantando alguma coisa, e tendo usos e costumes que se pareciam muito com os dos índios... Para essa gente era uma verdadeira felicidade ir à Villa (ir á capella - como se dizia). Só os mais remediados é que no dia de festa conseguiam isso. Havia muitos que morriam sem saber o que era a Villa... Mas, a gente do sitio, que não tem Cavallo ao menos, anda sempre a pé; e, por isso, os que moram mais longe nem sempre podem ir á Villa. Fora dos tempos de festa o lavrador pobre só vai á Villa ou á freguesia vender as suas lavouras e comprar algumas coisas de que precise. Na Villa encontra melhores preços; mas os fiscaes da camara quase lhe tiram tudo, como ainda hoje, infelizmente, acontece em algumas cidades. (p. 51-52).

Logo após esse texto, encontra-se no livro uma imagem intitulada “Na Villa”,

conduzindo o leitor à interpretação de que se trata de moradores pobres do sítio:

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Figura 20 - Na Villa

Fonte: Pombo ([19--], p. 52).

Mesmo o autor não mencionando nas narrativas que os pobres eram os negros,

as imagens inseridas ao longo do texto apontam para essa hipótese. Volpato (1993, p.

193-199), estudando sobre a vida cotidiana e a escravidão em Cuiabá, revela que uma

parcela de negros livres vivia na zona rural, sobrevivendo da caça, da pesca, da colheita

frutos silvestres e da lavoura. Sendo assim, talvez, ao se referir aos pobres, o autor

contemple uma parcela da população de negros libertos.

Mais adiante Rocha Pombo conclui esse capítulo descrevendo algumas

características dos “homens pobres”:

Mas uma coisa muito curiosa se dava entre aquelles pobres homens, que iam ficando como fora da sociedade: eram muito amigos uns dos outros e muito unidos. Como as roçadas (córtes de mattas) e outros preparativos para as plantações, eram trabalhos muito pesados e não podiam ser feitos por um só homem, aquelles lavradores entre si se ajudavam com muita alegria. Era bastante que qualquer delles desse aviso aos outros de que precisava de um ajutório para fazer uma derrubada, e todos acudiam prompto; e o serviço era feito no mesmo dia com grandes festas. Chamavam a isto de muxirão ou pixeirão. (p. 53).

E, para finalizar, dispõe após esse texto esta imagem que mais uma vez é

representada por negros:

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Figura 21 - Muxirão ou pixeirão Fonte: Pombo ([19--]).

Retomando as considerações de Volpato, capta-se que as difíceis condições de

vida exigiam dos pobres livres a construção de relações de proximidade e solidariedade

(p. 202). Mas, Rocha Pombo, ao atrelar à imagem desse segmento social aspectos

positivos, como a solidariedade e o trabalho, foge dos estereótipos - negros x

criminalidade, negros x animalidade - característicos de algumas obras didáticas desse

período.

Ao trazer para o corpo desta pesquisa imagens utilizadas como recurso

pedagógico do livro Nossa Patria, não se pretendeu submetê-las a uma análise técnica e

iconográfica, a intenção foi apenas buscar a relação do conteúdo dessas ilustrações com

o contexto histórico e social em que se inserem.

Logo, as interpretações, deduções e especulações apresentadas partem do olhar

constitutivo de valores de um determinado tempo histórico, partem de alguns interesses

e apropriações, ou seja, partem do chão em que se pisa.

No capítulo seguinte, intitulado “Quilombos” o autor centra sua atenção nos

negros. Mais uma vez ele dá início à abordagem tratando do cotidiano das mulheres

negras escravizadas a partir do momento de sua chegada ao Brasil:

Muitos dos africanos que eram trazidos para o Brasil, principalmente as mulheres, ficavam nas cidades. Começaram logo a entender a língua dos brancos, e a aprender algum trabalho ou algum officio.

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Eram, então, chamados escravos ladinos e valiam muito mais do que os outros. As raparigas entravam logo nos serviços domésticos, aprendendo tudo com muita facilidade, e tornando-se preferidas ás indias. (p. 54).

Evidencie-se também que, ao delinear esse cotidiano, Rocha Pombo foge dos

padrões de uma historiografia estritamente eurocêntrica, branca e masculina, tão própria

daquele contexto histórico.

Mesmo o autor apresentando de forma explícita e implícita o mito da

democracia racial e a hierarquização das raças, não omitiu o infortúnio e a resistência

dos negros à escravidão:

Mas o maior numero de escravos, assim que chegavam, iam para as fazendas ou para os engenhos; e ahi como se estivessem fora do mundo, passavam a viver como um rebanho, debaixo da vontade do senhor. É por isso que não tendo comunicação com mais ninguém sinão com os seus irmãos de raça e de sina, lhes era difficil aprender de prompto a língua dos brancos; e assim conservavam por muito tempo quase todos os usos, costumes e festas lá da África... Havia, porem, senhores muito deshumanos, que tratavam as pobres creaturas como si fossem simples animaes. E então, a vida que levavam na senzala e no trabalho, de sol a sol, era para os míseros uma continua amargura. (p. 56).

Diferentemente de Macedo, que opta por retratar o quilombo dos Palmares

apenas no momento de sua destruição, Rocha Pombo se refere aos diversos refúgios

existentes nas capitanias como símbolos da resistência negra e referenda aquele como

sendo o mais célebre deles:

Não demorou que os fugitivos (chamavam-se negros fugidos) se fossem reunindo no interior das matas, e ahi vivendo como tinham vivido na África. Deu-se a essas habitações o nome de quilombos, e houve grande numero delles em todas as capitanias. Os mais celebres foram os dos Palmares. (p. 56-57).

Embora exalte Palmares, o autor priva-se de emitir qualquer juízo de valor ao

abordar tanto os aspectos da organização política, econômica, social e cultural do

quilombo, quanto o massacre e extermínio dos quilombolas. Seria isso devido ao fato de

Palmares ter representado uma fissura que poderia separar ao invés de unir?

Sendo Rocha Pombo partidário das discussões das elites políticas e intelectuais

em torno da urgência de se construir uma identidade e um sentimento nacionalistas, a

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tônica do seu trabalho está na união e não na fissura das três raças. A ênfase dada ao

“heroísmo das três raças” na guerra contra os holandeses em Recife sinaliza essa

acepção.

Após apresentar a imagem a seguir, apresentando os “verdadeiros heróis” da

guerra contra a invasão holandesa,

Figura 22 – “verdadeiros heróis” da guerra contra a invasão holandesa (da esquerda para a direita, João Vieira, André Vidal, Henrique Dias e Felipe

Camarão) Fonte: Pombo ([19--], p. 71).

assim conclui o texto:

As três raças tinham povoado o Brasil ali estiveram sempre alliadas contra aquelles usurpadores: os Henrique Dias e os Camarão não se mostraram menos bravos e dignos que os André Vidal e os João Vieira. Os lances daquella guerra, como as batalhas dos Guararapes e outras, mostraram que os colonos já eram capazes de defender a terra que era sua. (p. 71-72).

A forma como o autor organiza a disposição dos textos e das imagens em sua

obra parece revelar sua insistência em defender uma ação irmanada das três raças na

formação do povo brasileiro. Para Ribeiro (2004, p. 266), Rocha Pombo buscou na

guerra contra os holandeses um modelo representativo para comunicar ao leitor-aluno

do presente, de forma apaixonada, que, além dos sofrimentos e diferenças existentes

entre as raças, houve no passado nacional o interesse maior com o sentimento de pátria,

surgindo daí a união que constituiu a nação brasileira.

Ao contrário do cenário apresentado no livro Breves Lições de História do

Brasil, que configura a abolição dos escravos como uma iniciativa dos homens brancos,

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restando aos negros apenas o papel de espectador, Pombo enfatiza a luta e a resistência

dos negros nesse processo:

E, então, travou-se quase uma luta, porque os senhores diziam que sem os escravos, que trabalhavam nas fazendas e nos engenhos, cahiriam todos na miséria, e que o Brasil todo ficaria pobre. Por isso, muitos tinham medo de esperar-se. Os escravos começaram a fugir das fazendas e dos engenhos, e os soldados do exército não quizeram prendel-os e a nação inteira gritava pela abolição (p. 137).

O autor descreve o movimento abolicionista como uma luta popular, em

especial dos negros. E, na galeria dos protagonistas desse embate, alude a Luiz Gama44,

Patrocínio e Joaquim Nabuco, entre outros:

Começou-se por todas as províncias a exigir que ninguém mais fosse escravo num paiz livre como o nosso. Homens de talento e de coragem, como Patrocínio, Joaquim Nabuco, Luiz Gama e tantos e tantos, foram clamando, pela imprensa e da tribuna. (p. 137).

De acordo com Ribeiro (2004, p. 268), Pombo, quando discorre em seu livro

escolar sobre a luta dos negros contra a escravidão, valoriza a presença deste elemento

racial na composição da nacionalidade.

Finalizando estas apreciações, aponta-se o destaque que esse intelectual atribui

à figura dos negros, em especial às mulheres, na construção das relações entre a senzala

e a casa-grande. Todavia, não se deve esquecer da importância do tempo/espaço e do

lugar social ocupado pelo autor no processo de apropriação das representações postas

aos sujeitos históricos.

Logo, algumas análises comparativas entre o livro Breves Lições de História

do Brasil, de Joaquim Manoel de Macedo, e Nossa Pátria, de Rocha Pombo, tiveram

como objetivo perceber as apropriações e representações de contextos históricos

distintos. A obra de Macedo sendo fruto do Império e a de Rocha Pombo

contemporizando os primeiros anos da República e uma sociedade pós-abolição.

Daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas

diferenciadas de interpretação. “Compreender estes enraizamentos exige, na verdade, 44 Luiz Gama era escravo e, aos dez anos de idade, foi vendido pelo pai, aprendeu a ler e escrever, fugiu

do seu senhor e conseguiu provar que havia nascido livre. Com a ajuda e proteção de amigos, começou a estudar as leis e tornou-se rábula, aquele que exercia a profissão de advogado, mas não possuía diploma. Defendia na justiça os cativos, escondia em casa negros fugidos e argumentava que um escravo que matasse o seu senhor, fazê-lo-ia em legítima defesa (PILLETTI, 1997, p. 45).

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que se tenha em conta as especificidades do espaço próprio das práticas culturais, que

não é de forma nenhuma passível de ser sobreposto ao espaço das hierarquias e divisões

sociais.” (CHARTIER, 1999, p. 25-28).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao perscrutar as representações dos negros veiculadas nos livros didáticos

utilizados nas escolas mato-grossenses durante a Primeira República, essas obras foram

tomadas como um produto cultural, logo, atrelado aos determinantes espaço/tempo.

Dessa forma, procurou-se contextualizar o período eleito para compreender esse

privilegiado objeto de pesquisa e os valores ideológicos nele impressos.

Percebeu-se, no transcorrer da investigação, que a massificação de discursos

embasados em teorias científicas distorcidas, durante o final do século XIX e o início do

século XX, possivelmente não só contribuíram para a construção, dentro do corpo

social, de uma imagem negativa dos negros, que pouco a pouco tiveram naturalizada

sua condição social subalterna, como também justificaram a exploração econômica, a

rudeza do aparato repressivo e a perpetuação do poder de uma elite oligárquica.

Na República, os negros tornaram-se alvo de atenção para a ciência e arcaram

com o peso das mazelas sociais e econômicas que assolavam o país. Nesse contexto, a

condenação do cruzamento racial, a teoria do branqueamento e a construção do mito da

democracia racial permearam os discursos da elite brasileira e encontraram acolhida no

espaço escolar, cenário em que uma importante ferramenta destacou-se como suporte

indispensável para a instituição das idéias em voga: o livro didático.

As elites republicanas, concentradas na construção do mito da democracia

racial, incumbiram-se de reservar lugares sociais específicos para brancos e negros,

atribuindo ao espaço escolar múltiplas funções: difundir, inculcar e homogeneizar as

representações construídas e produzidas com a finalidade de inferiorizar os negros nos

âmbitos social, cognitivo ou cultural.

Desse modo, viram-se intensificados os debates de caráter nacionalista, e a

escola, por sua vez, tornou-se um ambiente privilegiado para a constituição da nação,

mediante a construção de uma identidade e de um sentimento com essa marca. Iniciou-

se, então, o processo de implantação de uma escola empenhada em formar a

mentalidade popular, por meio da difusão da história oficial e da disseminação de

hábitos, valores e comportamentos próprios de sociedades urbanizadas e modernizadas.

Nesse sentido, a escola atuou como um importante espaço de circulação e

transmissão dos ideais republicanos, tendo sido indispensável sua participação nesse

processo, especialmente pela institucionalização de mecanismos que favoreceram à

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República legitimar o seu poder. Porém, essa instituição de ensino apresentou-se como

um território de contradições, de construção do conhecimento e não de mera

transmissão e reprodução de ideologias.

Na análise aqui empreendida sobre as publicações didáticas que circularam e

foram adotados nas escolas de Mato Grosso no período eleito, observou-se que os

autores e editoras gradativamente se adequavam às novas exigências educacionais

daquele espaço/tempo, tanto que, a partir dos anos 20, as imagens que estampavam as

páginas desse material foram se tornando cada vez mais frequentes.

É possível que tal situação seja explicada pela estreita relação existente entre o

livro didático e sua produção com as concepções educacionais em vigor na época

focalizada. Nesses termos, com a implantação do método intuitivo, os livros escolares

sofreram influências desse novo modelo educacional, razão do aparecimento das

gravuras impressas, então concebidas como indispensáveis para o ensino primário. A

propósito, essa relevância dada às gravuras manifestou-se, inclusive, quando se

tornaram um quesito a ser considerado quando da aprovação ou não de determinada

obra pelo Conselho Superior da Instrução Pública do Estado de Mato Grosso.

Com relação aos negros recém-libertos, a grande preocupação das autoridades

mato-grossenses incidia na formação moral desse grupo e em sua educação para o

trabalho. O relatório da Instrução Pública de Mato Grosso de 1889, ao demonstrar a

problemática enfrentada pelo Estado para a inserção dos ex-escravos na esfera escolar,

fornece pistas do lugar reservado a eles nessa instituição elitista e das representações

dos negros para a sociedade. Nesse sentido, a bandeira levantada em prol do ensino

noturno para os negros, defendida pela elite republicana, atendia tanto ao desejo dessa

minoria dominante em mantê-los como mão de obra no mercado de trabalho, quanto aos

ideais republicanos de civilizar o povo brasileiro.

Porém, mesmo sendo destinado aos negros o espaço do labor, uma parcela

dessa população, ainda que reduzida, conseguiu embrenhar-se pelas brechas do sistema

e ter acesso ao espaço escolar. Todavia, isso não significava que a permanência na

escola seria garantida por muito tempo. Para os negros, a conquista de uma vaga era

apenas o primeiro passo de uma trajetória marcada por dificuldades, e o nível de

escolarização conquistado por alguns deles não diminuiu o grande índice de exclusão

educacional e social que sofreram durante todo o período republicano em Mato Grosso.

É neste cenário que dar-se início em Mato Grosso à implantação dos grupos

escolares. Com o propósito de atingir os moldes pretendidos pelos ideais republicanos

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no tocante à modernização e à civilização, esses centros de ensino passaram a

reproduzir os conteúdos e os métodos previamente determinados, materializados e

disseminados no processo de escolarização.

Isso configurou um processo de homogeneização que se tornou uma das

principais preocupações das autoridades políticas e educacionais mato-grossenses, para

quem os livros escolares poderiam ser fortes aliados na disseminação dos ideais

pretendidos, uma vez que possibilitariam a uniformização do conteúdo educativo e

evitariam a utilização de materiais inadequados, denominados incorretos ou

inconvenientes, utilizados nas escolas locais, os quais poderiam ser nocivos à educação

das crianças e jovens de nosso Estado.

Em face disso, o poder governamental passou a utilizar vários mecanismos

para direcionar e controlar o saber a ser disseminado. Daí o livro didático ter-se

constituído em um instrumento privilegiado do controle estatal sobre o ensino e a

aprendizagem nos diferentes níveis escolares, em função do que se ampliaram a

vigilância sobre a literatura escolar, desencadeando a criação de órgãos burocráticos

especiais. Em Mato Grosso, foi criado o Conselho Superior da Instrução Pública, que,

entre outras competências explicitadas em seu regimento interno de 1909, consta a

aprovação dos livros e compêndios adotados nas escolas mato-grossenses.

O movimento republicano utilizou-se de inúmeros meios para formar os

cidadãos brasileiros nos moldes que julgavam pertinentes com os seus ideais. Várias

foram as instituições que atuaram nesse projeto, dentre elas o Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro (IHGB), associações, clubes e as escolas.

Nessa proposta figurava claramente a função social atribuída à escola: integrar

o indivíduo na nova sociedade, urbana e industrial, por meio de uma cultura moral e

científica e de uma ética disciplinadora. Por outro lado, ficava implícita a difusão

diferenciada da cultura e a legitimação da hierarquia das raças.

Nesse momento, a História que figurava nos currículos tinha como principal

objetivo legitimar o poder e os privilégios da elite brasileira. Os membros do IHGB, ao

comporem a História da nação, terminaram por estabelecer a idéia da existência de uma

hierarquia entre as raças: aos componentes da raça branca cabia representar o papel de

civilizador, sendo também sua responsabilidade aperfeiçoar a índia. E ao negro era

imputada a causa do atraso do país (SCHWARCZ, 2002, p. 112).

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Essas idéias puderam ser apreendidas impressas nas páginas dos livros

escolares utilizados nas escolas mato-grossenses. O livro de leitura Porque me ufano do

meu paiz, de Affonso Celso, aborda em seus textos não só a valorização do sentimento

nacional, o civismo, mas também a exaltação da formação do povo brasileiro pelas três

raças. No entanto, ao fazê-lo, disseminou o mito da democracia racial e a

hierarquização das raças.

Partindo-se do princípio de que os textos constantes dos livros escolares são

registros a serem decodificados quanto aos saberes a se inculcar nas jovens gerações,

deve-se levar em conta que eles encerram em suas linhas - e entrelinhas - valores morais

e comportamentais de determinada sociedade inserida em um determinado contexto

histórico.

Os documentos encontrados direcionam a leitura de que apenas um reduzido

número de alunos teve acesso aos livros escolares. Então, pode-se questionar: o objetivo

da elite republicana de inculcar e homogeneizar seus ideais por meio dos livros

escolares foi totalmente alcançado? Ou melhor, foi realmente homogêneo? Neste ponto

das reflexões aqui efetuadas, vale lembrar que o livro, segundo Chartier (1999), sempre

visou instaurar uma ordem, embora haja as interferências do leitor, que, de uma forma

ou de outra, pode subverter a leitura pretendida. Diante desse referencial, talvez até

mesmo os alunos que tiveram contato com os textos veiculados nos livros escolares em

Mato Grosso puderam realizar outras leituras além das desejadas pelos autores; ou seja,

os leitores desses materiais - alunos e professores - puderam ler o não dito.

Esses questionamentos manifestam-se e apresentam importância, uma vez que

aqui se considera o caráter ambíguo do livro. Isto é, mesmo sendo destinado a

homogeneizar e divulgar determinadas crenças, a inculcar normas, regras e valores, ele

pode, também, instaurar diferenças, passíveis de ser desencadeadas pelo fato de o leitor

realizar leituras plurais, que Chartier (1999, p. 08) caracteriza como rebeldes e vadias.

Esses atributos decorrem do fato de essas diferentes leituras mobilizarem infinitas

estratégias para subverter as leituras impostas. Criam-se estratégias que possibilitam a

leitura, nas entrelinhas, do não lido e do não dito.

Mato Grosso no final do século XIX e início do século XX, nutriu-se, da

produção didática de outras localidades. Entretanto, esse fator não constitui em

impedimento para as leituras plurais, rebeldes e vadias que alunos e professores mato-

grossenses realizaram. O cruzamento das fontes documentais e bibliográficas viabilizou

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a localização dos principais títulos dos livros didáticos de História utilizados nas escolas

mato-grossenses daquele tempo, o que pode ser visualizado no quadro abaixo:

Título Autor Ensino Lições de História do Brasil Joaquim Manoel de Macedo Secundário História do Brasil Rocha Pombo Secundário Nossa Patria Rocha Pombo Primário Breves lições de História do Brasil Creso Braga Primário Minha Patria João Pinto e Silva Primário

Quadro 10 - Títulos dos livros didáticos de História utilizados nas escolas mato-grossenses durante a Primeira República Nota: Construção da autora.

O fato de Mato Grosso não ter produzido livros escolares conduziu a reflexão

de que muitos dos livros de História utilizados nas escolas mato-grossenses

possivelmente foram adotados também em escolas de outros Estados brasileiros, sendo

a localização de tais obras nessas localidades um indício dessa hipótese.

Ao longo da Primeira República, parte significativa dos autores provinha do

meio acadêmico, do IHGB e eram professores do Colégio Pedro II. Esses intelectuais

vivenciavam o processo de construção do saber erudito concomitantemente ao processo

de criação da História oficial. Talvez em razão do número restrito de autores, as obras

permaneciam por maior tempo no mercado, sendo reeditadas inúmeras vezes, em

conseqüência do que as escolas brasileiras acabavam adotando os mesmos títulos. Nesta

pesquisa, tomou-se como objeto de estudo a 60ª edição do livro Nossa Pátria, de Rocha

Pombo, o qual foi localizado na Biblioteca Municipal de Cuiabá.

Com o exame dos livros didáticos de História utilizados nas escolas mato-

grossenses, notou-se que, mesmo cabendo aos negros a função de personagens

secundários, marginalizados e coadjuvantes dos brancos, os “grandes sujeitos históricos

em cena”, eles parecem ter resistido às representações postas. De forma explícita ou

implícita, os textos deixaram transparecer a importância da população negra na

construção da nação brasileira, importância essa configurada nas entrelinhas dos textos,

ainda que à revelia da intenção do autor, na medida em que este relata a luta cotidiana

desse povo para alcançar a liberdade e manter sua dignidade.

Contudo, essa interpretação não anula a contribuição dos materiais didáticos na

elaboração de representações negativas dos negros no imaginário coletivo; antes,

esclarece que, apesar de todos os filtros impostos, sejam eles institucionais, sociais ou

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editoriais, inúmeros autores não se eximiram de veicular suas apropriações das

representações estabelecidas em determinado contexto.

Para apresentar o desfecho desta pesquisa, reporta-se aqui a três ilustres

personalidades. A primeira é Agostinho Lopes de Souza, o menino lindo, sorridente,

perspicaz e de cabelos fofinhos com quem se entrou em contato no final do século XIX

e gentilmente apresentou à pesquisadora a casa-escola, o grupo escolar e os livros

didáticos. Agostinho, que fora embora para o Rio de Janeiro estudar, retornou bacharel

em História e ficou tão entusiasmado quando informado de que os livros analisados

nesta pesquisa foram aqueles por ele utilizados durante sua vida escolar, que resolveu

tecer algumas percepções sobre as representações dos negros nos livros, Breve Lições

de História do Brasil, de Joaquim Manoel de Macedo, e Nossa Patria, de Rocha

Pombo.

E assim Agostinho dá início a suas considerações...

Tratando-se de Breves lições de História do Brasil, é importante destacar que a

obra é fruto do Império, não causando estranhamento que os milhares de negros que

viviam no país ficaram restritos a dois fatos históricos: a destruição dos Palmares e a

abolição. Nas poucas páginas destinadas a esse povo, era invariável e exclusivamente

relacionado com a escravidão.

No entanto, mesmo Macedo tendo abordado dois importantes acontecimentos

históricos para os negros, estes não passaram de meros coadjuvantes do protagonismo

dos brancos.

Breves lições de História do Brasil era um livro muito espesso e não

apresentava figuras impressas, de sorte que eu, ainda muito criança, sentia um pouco de

cansaço durante as leituras. Então, sempre que era possível, dedicava-me a ler Nossa

Patria, de Rocha Pombo, especialmente porque trazia em suas páginas muitas gravuras

e uma narrativa histórica de mais fácil compreensão para um leitor imaturo.

Mas, o interessante mesmo era ver Pombo abordando algumas questões que

não são encontradas com facilidade em outros livros, como o cotidiano das mulheres

negras e dos negros recém-libertos e a resistência da população negra à escravidão. E,

apesar de preconizar as teorias racistas, que conferiam aos brancos uma posição

hierárquica superior em relação a índios e negros, o autor expõe a formação do povo

brasileiro sem camuflar os conflitos entre os povos.

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Agradecendo as contribuições de Agostinho, estende-se o convite, neste

momento, a Nelson Mandela, sul-africano Prêmio Nobel da Paz em 1993, para

apresentar suas sábias palavras:

Mais ainda permanece a esperança de que também estes sejam abençoados com razão suficiente para entender que a história não será negada e que a nova sociedade não poderá ser criada pela repetição de um passado repugnante, ainda que refinado ou sedutoramente maquiado. [...] Que as aspirações de todos nós provém que Martin Luther King Jr. Estava certo quando disse que a humanidade já não poderia estar tragicamente ligada à noite sem estrelas do racismo e da guerra.45

E quem encerra este diálogo é Martin Luther King:

Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença – nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais... Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas nãoserão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!46

Antes do ponto final, faz-se oportuno salientar que as interpretações,

especulações e indagações apresentadas nesta pesquisa, partem do olhar de um

determinado ponto. Ou seja, “a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para

compreender é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer, como

alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos

alimenta. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação47”.

45 Trecho do Discurso de aceitação e conferência do Nobel, proferido por Nelson Mandela e publicado na

obra intitulada Declarações de Paz em Tempos de Guerra, organizada por Emir Sader e Cláudia Mattos e publicada em 2003.

46 Trecho do discurso de aceitação e conferência do Nobel, proferido por Martin Luther King em 1963. 47 Metáfora a Águia e a galinha de Leonardo Boff.

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1ª Sessão da 21ª Legislatura da Assembléia Provincial. Cuiabá, 3 de maio 1876. Anexo 2. APMT – Microfilme 1876. __________. Relatório: 1911. O diretor da Escola Normal e Modelo annexa destinado a Secretaria dos Negócios do Interior, Justiça e Fazenda de Mato Grosso. In: AMÂNCIO, Lazara Nanci de Barros. Ensino de leitura na escola primária de Mato Grosso: contribuição de aspectos de um discurso institucional no início do século XX . Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista de Marília - São Paulo. 2000. ___________. Regimento Interno dos Grupos Escolares, 1910. APMT, estante 10, n° 213 – 1910. ___________. Regimento Interno da Instrução Pública, 1903.APMT, estante 12 – 1903. ___________. Regulamento do Ensino Primário da Província de Mato Grosso de 1889. APMT – 1889. ___________. Regulamento da Instrução Pública Primária de 1896. APMT – 1896. ___________. Regulamento da Instrução Pública Primária de 1910. APMT – 1910. ___________. Relatório da Instrução Pública, 1889. APMT, estante 12, nº 212 – 1910. JORNAL. Correio do Estado. Cuiabá - MT, 1923. APMT, jornais diversos, caixa-29, p. 01-B. _________.______________. Cuiabá-MT, Anno III, nº 115, APMT, caixa, 26, p. 01-B. JORNAL. Correio da Semana. Cuiabá – MT, 03 de março de 1930. APMT, caixa 029, p. 01-B ________. A Reação. Cuiabá - MT 1913. APMT, cx – 022, p. 01-a. ________.________. Cuiabá-MT. 1º de dezembro de 1912. APMT, jornais diversos, caixa - 022, p. 01-A. ________. A Situação. Cuiabá – MT, 12 de novembro de 1874. APMT, cx.22, p. 01 – A. ________.__________. Cuiabá-MT, 20 de abril de 1873. Nº 5. APMT. REVISTA/IHGMT, 1994, Tomos CXLI-CXLII, ANO LXVI RIHCGB, 1844, p. 389-390, apud, SCHWARCZ, 2002

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LIVROS DIDÁTICOS UTILIZADOS: ALMEIDA, Julia Lopes de. Histórias da nossa terra. 4ª ed. São Paulo: AILLAUD ALVES & CIA, 1911. BRAGA, Creso. Breves lições de História do Brasil. São Paulo: Thypografia Piratininga, 1922. CELSO, Affonso. Porque me ufano do meu paiz. Rio de Janeiro/São Paulo: LAEMMERT & C., 1905. MACEDO, Joaquim Manoel de. História do Brasil para uso das Escolas de Instrução Primária. 10 ª ed. Rio de Janeiro: H. GARNIER LIVREIRO, 1907. POMBO, Rocha. História do Brazil para o ensino secundário. 19ª ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Editores Proprietários WEISZFLOG IRMÃOS, 1918. __________. História do Brazil para o ensino secundário. 3ª ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Editores Proprietários WEISZFLOG IRMÃOS, 1919. RIBEIRO, João. História do Brasil: curso superior segundo os programas do Collegio Pedro II. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1935. RIBEIRO, Hilário. Novo Terceiro livro de leitura. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1910. SILVA, Joaquim. História do Brasil para a quarta série ginasial. 39ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. SILVA, J. Pinto e. Minha pátria: ensino da História do Brazil no terceiro anno do curso preliminar. 16ª ed. São Paulo: Thypografia Siqueira, 1922.

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ANEXOS

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JORNAL. A Reação, Cuiabá-MT, 10 DE MARÇO DE 1913. APMT, cx-022.

A polícia é como que uma sentinella avançada da tranqüilidade publica e,

consoantes nos diz o Código Francez “o meio que serve o Estado para manter a ordem

publica, a liberdade e a propriedade e a segurança individuaes”.

(D’O Debate).

Excellente occasião nos proporciona o conceituado orgam do partido

Republicano Conservador neste Estado de patentearmos, á luz meridiana da opinião

publica, veracidade dos princípios liberaes racionalistas que por vezes temos explanado:

principios de tolerância recíproca, de justiça desapaixonada, de ausência de

preconceitos. Excellente occasião, repetimos, nos offerece. O debate de discutirmos, nos

limites do justo, do razoável, humano emfim, um assumpto que se prenfedemos.

Aqui mostraremos que discutimos sem enfraquecimento - quanto mais quebra -

da cortezia que mantemos com os jornaes dignos, decentes e cortezes desta capital.

Mostraremos que, censurando actos e opiniões não confundimos taes actos e opiniões

com as pessôas que a estas patrocinam e praticam aquelles,embora as censuras sejam

rigorosas e cheias de ardor que as conclusões racionaes infundem.

Concordamos com articulistas contradictor quando se refere á liberdade e á

divergencia das opiniões, nos limites do razoavel; é este justamente o fundamento dos

ideaes que defendemos. Por isso que, como bem diz Payot, “nenhum homem, nenhum

grupo de homens conhece a verdade toda”, a ninguém é dado o querer que a sua opinião

prevaleça á força, sem admitir, sem desejar até, a contradição. Concordamos outrosim,

que quando o ilustre articulista se refere á utilidade das discussões superiores a calmas.

E, si por estes “principios reguladores do pensamento humano” fosse educado o

nosso Povo, o nosso progresso moral e político seria muito mais apreciável. Não

teríamos a lastimar tantas luctas sanguinolentas, oriundas da intolerancia que ainda se

prega em nosso Paiz e que alguns obcecados pretendem restabelecer em plena

Republica, por meio de uma violenta e desabusada propaganda.

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Teríamos mais civismos e menos paixão, mais probidade e menos fanfarronada;

teríamos o espírito das reflexões calmas e não esse espírito precipitado que por ahi anda;

seriamos mais originaes e menos imitadores.

Foi justamente com a máxima reflexão que citamos em nosso artigo inicial, o

principio não só constitucional como republicano e philoshofico. Nem se supponha que

iríamos demonstrar a illegalidade da ordem do dr. Chefe de Policia diante de tal

axicma, sem o havermos analysado profundamente.

Justamente porque a policia não detem uma “funcção abstracta”, e portanto

superior, ella não pode ceifar na ceára da educação moral dos indivíduos nem torcer um

direito por força de uma necessidade.Necessidade alguma, por mais verdadeira que seja,

pode sobrepor-se ao direito mais insignificante, por isso que “a maior necessidade é

mínima em face do mínimo direito”.

A constituição garante ao individuo o direito de não ser obrigado a fazer ou

deixar de fazer alguma cousa, sinão em virtude de lei. Tudo quanto não for

expressamente determinado me lei não pode ser imposto a ninguém. Por mais

necessária que pareça – examinada por uma única face - a medida do dr. Chefe de

Policia, ella não tem força de leis e nem na lei se escuda. A disposição penal citada pelo

articulista não pode ser interpretada de modo a autorizar o dr. Chefe de Policia

a”fornecer cadernetas” aos empregados domésticos,”obrigando-os” a trabalhar e a

escolher “patrão”.

Além disso, analysando bem essa disposição de lei, notamos que não basta

deixar de exercitar profissão, officio ou qualquer mister em que ganhe a vida; é preciso

também não possuir meio de subsistência e domicilio certo em habite, para incorrer na

pena.

Quanto ao ”meio de subsistência”, logicamente o possúe o homem ou mulher de

recados, que obtém aqui e ali do que viver, ao mendigo que se socorre da caridade

publica, o vendedor ambulante, emfim, todos quantos ganham a vida honesta. Embora

miseravelmente. Esses não estão incursos nas penas que, alias claramente, o Código

estabelece para taes casos, penas essas que só podem ser applicadas mediante processo

regular. Porém, nada nos diz que esse indivíduos não estejam sujeitos á determinação do

dr. Chefe de Policia. Ora, si a determinação do dr. Chefe de Policia attinge a quem a lei

não attinge, não está dentro da mesma lei, por isso que é mais extensa do que esta.

Além disto, a medida do dr. Chefe de Policia não é a applicação da pena estabelecida

pelo código e sim uma “coacção arbitraria do individuo ao trabalho”. E, como não será

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uma “violação a liberdade de crença”, si não, só uma, porém, muitas crenças se oppõem

directamente a ella?

Por maior que seja a feição preventiva da policia ella não pode prever onde a lei

não prevê. O seu meio, o seu único meio legal é a “vigilância” e nunca a interferência

na vida particular de cada um, a menos que prejudique á collectividade. Mas, o meio de

que se serviu o dr. Chefe de Policia não previne a vagabundagem, por isso que o habito

vicioso de um individuo não se corrige por um simples acto official. Muito menos esse

meio porá paradeiro á malandrice. Que o dr. Chefe de Policia estivesse bem

intencionado não o negamos; mas, negamos que seja licito o meio illegal de que se quiz

servir, por isso que lhe fallecem attribuições para tanto. De propósito, subepigraphamos

Este artigo com palavras do articulista do O Debate, nas quaes cita o Código

Francez. Por ahi se vê que a missão da Policia é manter a ordem publica, a liberdade, a

propriedade e a segurança individuaes. E é justamente a liberdade individual que a

ordem do dr. Chefe de policia vem desassegurar,ou, pelo menos, restringir.

O individuo livre trabalha porque quer e não porque a isso seja obrigado. A

vontade de trabalhar determinada pelas necessidades da subsitencia, compete á moral do

individuo e escapa á alçada policial que é garantir a ordem publica, manter emfim e não

obrigar. Porque razão a Policia terá de garantir ao capitali8sta a posse do meio que lhe

dá subsistência sem trabalho e obrigar o desprotegido da fortuna procurar patrão?

Não se estará assim acentuando “por um excesso de autoridade”, a desigualdade,

a injustiça social, donde pode brotar a desharmonia?

Evidentemente, não há razão alguma para se adoptar uma medida tal com uma

determinada classe. Todos são iguaes perante a lei. Si a policia pudesse obrigar a

trabalhar, o seu papel nas greves não seria só garantir a propriedade e aquelles que

quizessem trabalhar. Seria também coagir os que se abstivessem do trabalho a voltar

para elle. Não é só: todos os dias estão entrando em nosso território indivíduos de

procedência e precedentes duvidosos, que não tem profissão, que nos diz por isso que

de tal não pagam imposto: são os sacerdotes que introduzem no povo, a par de uma

moral religiosa innegavelmente falsa, o vírus da folia, dos fandangos, que conduzem

justamente ao mal que o dr.Chefe de Policia pensou prevenir. A este não se exige

passaporte porque a constituição não permitte: vae-se agora exigir da criadagem a

obrigatoriedade de retiras as “cardenetas?” E não parece que é um “excesso de

pessimismo” julgar que todo individuo que não tenha occupação certa seja desonesto?

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Pode se corrigir a vagabundagem, mas, por meios que não sejam alem de

coercivos inexeqüíveis. O exemplo nos vem de todos os grandes centros onde, além do

policiamento regular que não possuímos, procurou-se estabelecer o regime das

cadernetas. É justamente nesses grandes centros onde a ociosidade, a mandrilice mais

campeiam. O regime das cadernetas ahi chega a ser as vezes uma burla de que muitos se

servem para illudir os mais.Attestados falsos , nos dirão. Mas de que estamos nós

saturados? Não é disso mesmo? Demais, nem todos os meios são iguaes. Mesmo que a

regulamentação do trabalho fosse realmente verdade noutros centros, entre nós ella

encontrará maiores dificuldades: Em geral, o povo de classe inferior nem siquer registra

o nascimento dos filhos. O registro civil entre nós de facto, não existe, sinão para a

minoria culta.

De todo este artigo, que não pode ser vasado nos molde coordenados do

primeiro por ser uma resposta mais ou menos directa, resulta, portanto, ficarem pe pé

todas as afirmações que haviam feito justificando-as. E agora temos que acrescentar

mais:

A determinação do dr. Chefe de Policia tornou-se antiphatica e quiçá perniciosa,

depois que ficou estabelecido o preço de 2$000 para aquisição das cardenetas.

Antiphatica porque o é exigir, de uma pobre gente que trabalha e ganha insignificâncias,

a quantia de 2$000 para ficar obrigada a não ter direito de trabalhar por vontade própria.

Perniciosa porque o vadio, o miseravel que a quizer adquirir terá de munir-sa

dessa quantia talvez por meio ilícitos.

Pedindo, enfim, desculpas, ao nosso contradictor por esta indigesta molle,

pedimos-lhe, também, que sem rodeios, nos prove que a medida do dr. Chefe de Policia

é legal, justa, razoavel, moral, tolerante, simphatica e que não poderá ser perniciosa. Si

o fizer, submetter-nos-emos ás razões. Por enquanto, continuamos a censural-a em

nome da Liberdade humana, em nome do trabalho livre.

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ACTA DA SESSÃO ORDINÁRIA DO CONSELHO SUPERIOR DA

INSTRUÇÃO PÚBLICA EM CUIABÁ, AOS 21 DE DEZEMBRO DE 1920.

CONSELHO SUPERIOR DA INSTRUÇÃO PÚBLICA EM CUIABÁ, A OS 21 DE

DEZEMBRO DE 1920.

Sob a presidência do senhor doctor Estevão Alves Corrêa, Director Geral da

Instrucção, reuniu-se no dia vinte e um de dezembro do ano de mil novecentos e vinte, o

Conselho perior da Instrução Pública, achando-se presentes os seguintes senhores

membros:. Coronel João Celestino Corrêa Cardoso, Major Joaquim Gaudie de Aquino

Corrêa, Bacharéis João Pedro Gardis e Plhilogonio de Paula Corrêa e Dona Idalina

Ribeiro de Faria, como representante eleita do professorado primário. Deixaram de

comparecer os senhores: Doctor Antonio Fernandes Trigo Loureiro e Padre Manoel

Gomes de Oliveira. Ás, quatorze horas, previamente designadas pelo Senhor Presidente,

havendo numero legal de membros presentes, deu-se inicio aos trabalhos, mandando em

seguida que se procedesse á leitura da acta da sessão anterior. Terminada esta, foi a acta

posta em discussão, e não havendo quem sobre Ella quizesse usar da palavra para

discutil-a, foi posta em discussão, digo approvação foi approvada sem observações e

depois assinada. Após a approvação da acta o senhor presidente procedeu a leitura do

seguinte parecer, referente ao livro intitulado “Vultos Mattogrossenses”, da lavra do

professor Glycerio Povoas e apresentando pela commissão especial eleita na sessão

anterior: parecer: A commissão especial do Conselho Superior da Instrução Pública do

Matto Grosso, encarregada de dar parecer sobre o livro “Vultos Mattogrossenses” do

professor Glycerio Povoas, tendo com attenção lido e examinado o referido trabalho e,

Considerando que ele vem preencher uma sensível lacuna da nossa história, digo;da

nossa litteratura didactica, contribuindo para o aperfeiçoamento da nossa cultura cívica,

coma a divulgação dos feitos de valor dos nossos grandes homens, entre nós bem pouco

conhecidos; Considerando , que é o único livro , no gênero que se refere a

mattogrossenses, mas; Considerando também que não é conveniente ele contenha as

biografhias de administradores e políticos que ainda existem e em torno dos quaes a

critica apaixonada, a maior parte das vezes injustas e exagerada, se exerce de modo

altamente prejudicial á serenidade imparcial dos cultos cívicos que devem premiar os

verdadeiros méritos e os exemplos dignos de imitação; Consideram do finalmente que o

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culto das pessoas ainda militantes no scenario político ou administrativo, póde

occasionar o desenvolvimento de explorações partidárias ou de sentimentos

bajulatorios e utilitaristas; é de parecer que seja o livro “Vultos Mattogrossenses”,

adaptado nas escolas do Estado uma vez que dele sejam retirados os resumos

biographicos das pessoas que ainda vivem. Sala das sessões do Conselho Superior da

Instrução Publica do Estado de Matto Grosso em Cuiabá, 11 de Dezembro de 1920

“Assignados: Philogonio de P. Corrêa, relator, João Pedro Gadis, João Celestino Corrêa

Cardoso.

Terminada a leitura o Senhor presidente submetteu-o á approvação do mesmo

conselho sendo unanimemente approvado.

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ACTAS DA SESSÃO ORDINÁRIA DO CONSELHO SUPERIOR DA

INSTRUÇÃO PUBLICA EM 4 DE AGOSTO DE 1928.

Aos quatro dias do mez de Agosto de mil novecentos e vinte oito, ás quatorze

horas, com a presença dos Senhores Doutor Cesário Alves Corrêa, Diretor Geral da

Instrução Publica, como presidente, e Coronel Manoel Felizardo da Costa Campos,

dona Thereza Lobo Queiroz, Bacharel Jaime Joaquim de Carvalho e Doutores Olegário

Moreira de Barros e Alyrio de Figueredo, como membros, reuni-se ao Conselho

Superior da Instrução Publica. Havendo numero legal de membros presentes á hora

previamente designada o Senhor Presidente abre a sessão mandando ler a acta da sessão

anterior. Procedida a essa leitura é a acta submettida á approvação e em seguida

aprovada. Declara então o Senhor Presidente, haver convocado a presente reunião afim

de submetter á sua apreciação e estudo o trabalho didático intitulado “ esboço da

História da Literatura Brasileira, de autoria do SRs Bel Nilo Povoas, sendo nessa

sessão lido o seu requerimento pelo mesmo Senhor Presidente. Depois de explicado o

fim da presente reunião pede o SRs. presidente que se proceda, de accordo com o

regimento interno á eleição de uma commissão especial afim de dar parecer sobre o

trabalho apresentado. Procedendo-se á eleição, são aclamados membros da dita

commissão os seguintes senhores: Dr. Olegário Moreira de Barros, Alyrio de Figueredo

e Bacharel Jayme Joaquim de Carvalho. Entregue o trabalho ao relator escolhido, Dr.

Alyrio de Figueredo, Im Presidente dá por encerrada agradecendo aos membros

presentes o haverem attendido o seu convite. Em seguida mandou que se lavrassem a

presente acta, que deverá ser lida e submetida á approvação na próxima reunião. Eu

Antonio Corrêa da Silva Pereira, Secretario do Conselho Superior a escrever e sbscrevo.

Em addtamento á presente acta, declaro que o Senhor professor Fernando Leite

Campos, esteve na reunião do Conselho, não funcionando por ter jurado suspeição. Eu

Antonio Corrêa da Silva Pereira, Secretario do Conselho lavrei a presente acta e fiz o

additamento acima.

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ACTA DA SESSÃO ORDINÁRIA DO CONSELHO SUPERIOR DA

INSTRUÇÃO PUBLICA AOS DEZ DIAS DO MEZ DE ABRIL DE M IL

NOVECENTOS E VINTE.

Sob a presidência do Senhor Doutor Estevão Alves Corrêa, Diretor Geral da

Instrução Publica, reuniu-se o Conselho Superior da Instrução, aos dez dias do mês de

Abril de mil novecentos e vinte, numa das salas do edifício em que funciona a mesma

Diretoria, achando-se presentes os seguintes senhores membros: Coronel João Celestino

Corrêa Cardoso, Bacharéis João Pedro Gardiz e Philognio de Paula Corrêa e Dona

Antonia Jorgina Ribeiro de Faria. Deixaram de comparecer os senhores Padre Manoel

Gomes de Oliveira. Doutor Antonio Fernandes Trigo Loureiro, Major Joaquim Gaudie

de Aquino Corrêa sendo que os dois últimos por se acharem ausentes desta Capital. Ás

quatorze horas designadas para dar inicio aos trabalhos, o senhor doutor presidente

mandou que se procedesse á leitura da acta da sessão anterior, que lida e submetida á

approvação, foi unanimente approvada. Em seguida passou-se á leitura dos pareceres

referentes ás seguintes obras: Gymnastua Brazileira por Leon Horvad; Arithimetica

Elementar livro Iº série – G. A. Bücher, Methodolgia e Pedagodia Profº Alyrio França;

Breve Lições de Historia do Brasil, prof Celso Braga, Livro de Leitura de Erasmo

Braga intitulado “Serie Braga” Quanto as duas primeiras obras foi a commissão do

parecer que sejam as mesmas aconselhadas para consulta dos senhores professores do

Estado, é o seguinte o parecer citado.”Parecer”- A commissão especial do Conselho

Superior da Intrução Publica do Estado de Matto Grosso á qual foram presentes a

Arithimetica Elementar de G.A.Bücher (Livro Iº) e Gymnastua Brasileira” do professor

Léon Horvad e de parecer que sejam os mesmos livros acumulados para consultas dos

senhores professores do Estado. Sala das sessões do Conselho Superior da Instrução

Publica do Estado de matto Grosso em Cuyabá, 28 de Fevereiro de 1920 ( assinado)

Philogonio de Paula Corrêa (relator) Antonia Jorgina Ribeiro de Faria, João Pedro

Gardez. A mesma comissão no trabalho do senhor professor Alyrio França opinou pela

remessa dessas obras, á Escola Normal afim de ser estudada pela respectiva

Congregação é esse o “PARECER” – A Comunicação especial do Conselho Superior

da Instrução Publica do Estado de Matto Grosso á qual foram presentes para dar

parecer, os compêndios de Pedagogia e Methodologia do professor Alyrio França.

Attendendo a que o estudo da Pedagoia de methodologia só e feito em Matto Grosso

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na Escola Normal desta Capital e, Attendendo ainda que pelo §2º e do artigo 6º do

Regulamento que baixou com o decreto nº 266 de 3 de Dezembro de 1910 pelo qual se

rege a Escola Normal do Estado á sua Congregação compete adaptar compêndios,

ignorar e ar parecer sobre trabalho referente ao ensino publico; É de parecer que a

congregação da Escola Normal sejam enviadas os trabalhos do professor França. Sala

das sessões do Conselho Superior da Instrução Publica em Cuyabá, 28 de Fevereiro de

1920.(asssignado, Philogonio de Paula Corrêa, relator), Antonia Jorgina Ribeiro de

Faria, João Pedro Gardiz. No trabalho do senhor professor Erasmo Braga, livro de

leitura intitulado “Serie Braga”, opinou a commissão que o mesmo pode ser adaptado

nas nossas escolas como livro de leitura esternando-se a respeito no seguinte

”Parecer”__ A Commissão especial do Conselho Superior da Instrução á qual foi

presente para emitir parecer a petição dos senhores Weixgflog Irmão, de João Paulo,

para que seja adaptado nas escolas publicas do Estado o livro de leitura de Erasmo

Braga, intitulado “Serie Braga” tendo se lido com attenção julga que pode ser adaptado

como livro de leitura nas nossas escolas primarias. Sala das sessões em Cuyabá, 28 de

Fevereiro de 1920. (assignado, Antonia Jorgina Ribeiro de Faria, relatora), Philogonio

de Paula Corrêa, João Pedro Gardiz. Acompanhando o volume de Breves lições de

Historias do Brasil, do Creso Braga, veio o parecer da comissão pedindo adopção de tal

compemdio por sua verdadeira utilidade expressou-se o seu relato nos seguintes termos:

”Parecer” A comissão especial do Conselho superior da Instrução á qual foi presente

para emittir seu parecer a petição do senhor” Creso Braga” para que seja adaptado nas

escolas publica os seu livro intitulado “Breves lições de Historias do Brasil”, tendo

estudado detidamente o mesmo livro e Considerando que dentre os diversos livros sobre

Historias do Brasil em uso nas nossas escolas, os que mais completam o seu fim tornou-

se entretanto, deficientes para o aproveitamento das classes mais adiantadas;

Considerando que um livro tratando dos fatos do Brasil desde o seu descobrimento até

os nossos dias provem concisos, historiados sucintamente e em fiel ordem clronologica

seria de grande utilidade para o conhecimento da vida do nosso paiz aos nossos jovens

conterrâneos; Considerando que o livro intitulado “Breve Lições da Historia do Brasil”

preenche perfeitamente o fim desejado, podendo servi não so para estudo da Historia do

Brasil ás classes mais adiantadas das escolas mas também como livro de leitura. E a

mesma commissão de parecer que seja adaptado nas escolas publicas primarias do

Estado, por sua verdadeira utilidade, o livro o livro intitulado “Breve Lições de Historia

do Brasil” de Creso Braga. Sala das sessões em Cuyabá, 28 de Fevereiro de 1920

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(assignado) Antonia Jorgina Ribeiro de Faria (relatora), João Pedro Gardez; Philogonio

de Paula Corrêa. Além dos citados pareceres, foram ainda apresentado ao Conselho

firmados pela commissão especial mais os seguintes relativo aos requerimentos de

Carolina Pompeu de Camargo, pedindo a pensão de 20, 000 para seu sobrinho Mario de

Camargo Pinto, continuar seus estudos numa das Academias Superiores da Republica,

sendo-lhe deferido tal pedido no parecer que segue. “PARECER” __ A Commissão

especial do Conselho Superior da Instrução Publica do Estado de Matto Grosso,

encarregada de dar o parecer sobre o requerimento no qual Dona Carolina Pompeu de

Camargo pede uma pensão ao Governo afim de que seu sobrinho e educando Mario

de Camargo Pinto, ex- aluno do Lyceu Cuiabano, possa continuar seus estudos no Rio

de Janeiro. Considerando que o referido Mario de Camargo Pinto fez com regularidade

o curso completo do Lyceu Cuiabano obtendo notas satisfatórias nos seus exames

conforme prova o documento junto sob nº 3; Considerando ser o peticionário

mattogrossense, tendo nascido nesta Capital á rua Antonio João no dia 8 de Julho do

ano de 1902, como se evidencia do Documento nº 1; Considerando mais ser ele

reconhecidamente pobre sendo sua pobreza attestada pelo Senhor doutor delegado de

Policia desta Capital no Documento nº 2; Considerando finalmente que o candidato é ,

não simplesmente pobre mas também orfhão de pai e mãe, sacrifício da sua tia Dona

Carolina Pompeu de Camargo, a quem entretanto não sobram recursos para custear a

instrução superior do seu sobrinho que só poderá ser feita na Capital da Republica; É de

parecer que seja concedida ao estudante mattogrossense Mario de Camargo Pinto uma

pensão mensal, na forma requerida, devendo ter inicio o pagamento da alludida pensão

desde a data em que o candidato provar estar matriculado em uma das academias

superiores reconhecidas pela Republica. Sala das sessões do Conselho Superior da

Instrução Publica em Cuyabá, 25 de Fevereiro de 1920. (assignado) ____ Philogonio de

Paula Corrêa, relator, Antonio Jorgina ribeiro de Faria, João Pedro Gardez.

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RELATÓRIO: 1911. O DIRETOR DA ESCOLA NORMAL E MODE LO

ANNEXA DESTINADO A SECRETARIA DOS NEGÓCIOS DO INTER IOR,

JUSTIÇA E FAZENDA DE MATO GROSSO.EXMO. SR. SECRETÁRIO DE

ESTADO DOS NEGÓCIOS DO INTERIOR JUSTIÇA E FAZENDA.

De acordo com as disposições regulamentares em vigor venho submettér ao

preclaro Juízo de V. Exa. o historico de minha acção profissional na instrução publica

desta Capital.

Em Junho do anno de 1910 o antecessor do actual Governo Exmo. Sr. Coronel

Pedro Celestino Corrêa da Costa, dirigiu-se ao Estado de S .Paulo, afim de obter dous

normalistas para o serviço de reorganização do ensino neste Estado ,patriótico

emprehendimento que tão salutarmente tem sido secundado pelo Governo do Exmo. Sr.

Dr. Joaquim Augusto da Costa Marques. O Estado de S. Paulo, accedendo

gostosamente a distinção com que o honrava o Estado irmão, designou-me e ao meu

collega, professor Gustavo Kulhmann, para servirmos a’s ordens do Governo de Matto

Grosso, a cuja disposição fomos postos em 1 de Junho de 1910, data em que nos

apresentamos no Ri de Janeiro ao Exmo. Sr. Dr. Annibal de Toledo, então delegado de

Matto Grosso para os fins do contracto. Chegando a esta Capital em data de 1 de agosto,

fomos logo apresentados ao Exmo. Sr. Presidente do Estado , que mandou lavrar

conosco o contracto que se fazia mister. Afim de bem nos aquilatarmos do mechanismo

pedagógico que movimentava as escolas primarias da Capital, procedemos

circunstanciadas visitas a’s mesmas, tendo ficado a meu cargo as do 1º districtos e as do

2º designadas ao meu collega.

Bem orientado sobre o estado da instrucção primaria, lembrei ao então Sr.

Presidente do Estado a creação imediata de dous grupos escolares nesta capital, única

senda que tornava viável o projecto de reorganização escolar.

E isto fiz, levado não só pela exuberantes vantagens que grupo escolar apresenta

sobre a instituição das escolas isoladas, como também por ter considerado impossível

qualquer empreendimento reorganizador nestas, attento o estado de atrazo em que as

mesmas se encontravam.

Das escolas visitadas não haviam uma que funcionasse de accordo com as leis

methodologicas mais geraes. O horário e o programa em detalhe eram desconhecidos

do professor. Sua orientação pedagógica ia além da pratica que por si unicamente

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conseguira. Desta sorte não me admirou a diversidade de methodo seguido, nem a falta

de unidade no ensino. Louvei mesmo os professores, pois a’ míngua de uma orientação

definida, elles se suppriam com a intuição natural de que eram dotados. Uma escola

encontrei mesmo, onde, por entre a confusão das outras disciplinas, brilhavam

vislumbres de orientação pedagógica no ensino da leitura e da geographia. Na

distribuição das classes havia a mesma desorientação: - os alunos eram os mesmo tempo

da 5º, classe em leitura, da 3º, em escrita e da 1º em números, isto é, não havia harmonia

no desenvolvimento gradual das faculdades infantis. A leitura e a escripta era

desenvolvidas com prejuízo das demais disciplinas preliminares. Consideração tal

estado de coisas, para que a reorganização se iniciasse pelas escolas isoladas, mister se

tornava um normalista para cada uma, pois nada havia que se aproveitasse, - tudo estava

por fazer.

Somente instituição do grupo escolar, com sua classes homogêneas, sujeito a

unidade de programa, de horário e de orientação, constantemente sob as visitas do

Director, apresentava probabilidades de um sucesso. Desta sorte, pedi sua creação e

insisti sobre sua conseqüente installação.Instituição pedagógica completamente nova no

meio mattogrossense, o grupo escolar teve contradictores que temiam pelos resultados

possíveis. A despeito destes, o Governo resolveu satisfatoriamente o magno problema,

creando e installando dous grupos escolares nesta Capital. E hoje Exmo. Sr. Dr.

Secretario do Interior, ninguém mais duvida das vantagens indiscutíveis de tal

instituição escolar, pois, falam bem alto os resultados obtidos no curto espaço de um

anno lectivo e a confiança do povo nella é attestada pela matricula em tal

estabelecimento que iniciou suas aulas com menos de duzentos alumnos e encerrou-as,

a 30 de novembro do anno próximo findo, com numero superior a quatrocentos.

INSTALLAÇÃO DO GRUPO ESCOLAR

O decreto Nº. 258 de 20 de agosto de 1910 creou nesta Capital dous grupos

escolares e mandou que no serviço dos mesmos se observasse e regimento interno dos

congeneres paulistas, localizando-os , um no 1º e outro no 2º districto. Designou-me o

Governo para a regencia do grupo escolar do 1º districto, annexando-lhe as seguintes

escolas: 1 ª. Escola complementar do sexo feminino, regida por D. Alzira Valladares e

as 1ª, 3ª e 4ª. Escolas elementares, também do sexo feminino, e a 3ª. Do sexo masculino,

regidas respectivamente pelas Sras. Almira de Mendonça, Maria Luzia Antunes Maciel,

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Azelia Mamoré, Antonia Georgina Ribeiro de Faria, Albertina Ribeiro de Faria e

Joaquina de Cerqueira.

Para o funccionamento do grupo escolar do 1º districto,

foram sublocados dous prédios da rua 1º de Março. Se bem que taes casa não

preenchessem as condições pedagógicas e hygienicas exigidas em prédios escolares,

foram ellas as mais adaptáveis encontradas, quando, autorizado pelo Governo, visitei

diversas para proceder à escolha.Depois de adaptal-a e melhoral-as o mais possível,

dotando-as do material escolar existente na Capital, foi designado o dia 3 de setembro

de 1910 para a solennidade da inauguração.

INAUGURAÇÃO

As 11 horas da manhã de 3 de setembro de 1910, no edifício do grupo escolar,

presentes o Sr. Coronel Presidente do estado, funccionalismo federal e estadual, o

Director e os adjunctos dos mesmo grupos, declarou inaugurado e isntallado o grupo

escolar do primeiro districto, tendo –se lavrado de tal solennidade a seguinte acta: - As 2

horas da tarde de 3 de setembro do ano de 1910 , no gabinete da directoria do grupos

escolar do 1º districto, sito em Nº 16 da rua 1º de Março, nesta cidade de Cuyabá,

capital do Estado, presentes o Exmo.Sr. Coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa,

Presidente do estado , autoridades federaes, estaduaes e escolares e demais pessoas que

este termo subscrevem, por S.S. o Sr. Presidente do Estado foi declarado installado e

inaugurado o grupo escolar de 1º districto da Capital. A direcção pedagógica do mesmo

foi confiada ao professor Leowgidildo Martins de Mello, contractado em S. Paulo para

prestar seus serviços profissionaes ao ensino publico de Matto Grosso , tendo-se-lhe

designado para auxiliares as Exmas. Sras. D.D. Maria Luzia Antunes Maciel, Joaquina

de Cerqueira, Almira de Mendonça, Alzira Valladares, Azelia Mamoré e Antonia

Georgina Ribeiro de faria. Do que, para constar, foi lavrado o presente termo no livro de

visitas do mesmo estabelecimento, que vae assignado por todos os presentes.

(Seguem-se assignaturas diversas)

Ao ser installado o grupo era esta organização:

1º anno masculino - a cargo da adjuncta D. Joaquina de Cerqueira; 1º idem

feminino – idem idem – D. Maria Luzia Antunes Maciel ; 2º idem masculino – idem

idem D. Alzira Valladares; 2º idem feminino D. Almira de Mendonça; 3º idem

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masculino – idem idem D. Antonia de Faria 3º idem feminino idem idem D. Azelia

Mamoré .

À falta de preparo conveniente dos alunnos obrigou a direcção do grupo a não

crear o 4º anno de ambas as secções, por ocasião da installação.

ORGANIZAÇÃO

Installado o grupo escolar, estava preparado o terreno para receber a semente

promissora de futuros resultados, isto, é, estavam às classes promptas para serem

orientadas. Ia ser iniciado o trabalho mais penoso. Os alunnos, mal preparados e mal

habituados, peiados pela natural desconfiança que lhes infundia a nova isntitruição,

offereciam serias dificuldades á acção reorganizadora. Os professores, adstrictos ao

pernicioso methodo da decoração, ao ensino de todas as disciplinas por intermédio do

livro tratadista, não estavam também em condições favoráveis á reorganização. Por

ultimo, a falta completa do material pedagógico e do mobiliario escolar necessários á

applicação dos methodos novos, e a proximidade do anno lectivo, levaram a direção do

estabelecimento a cuidar unicamente da organização disciplinar do grupo, até que,

dotado do apparelho escolar completo, o serviço orgânico pudesse ser iniciado em todas

as suas partes. Por estas razões, os mezes de setembro, outubro e novembro de 1910,

foram destinados ao training de professores e de alunnos sob a direcção constante do

Director. Banidos do ensino todos os livros, excepto o de leitura, condemnada para

sempre a decoração, foi meu trabalho neste lapso de tempo, orientar aos professores no

modo de fazer suas explicações pela linguagem oral e aos alunnos na maneira de melhor

aproveita-las.

HORARIO

Uma das maiores lacunas que encontrei nas escolas isoladas por occasião das

visitas que lhes fiz, foi a falta de horário. Uma escola sem horário, é na phrase de um

grande mestre, Montaigne, um centro atrophiador das faculdades infantis. Na escola,

onde creanças em grande numero são reunidas sob a direcção de um só sistema de

educação, a primeira preocupação do docente, deve ser attender á distribuição

conveniente dos alumnos, pelos diversos momentos da classe, lei que, em pedagogia, se

chama – emprego de tempo.Uma escola dotada de bom horário torna seu serviço mais

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fácil para mestres e alumnos e offerece resultados mais fecundos. À sucessão regular

dos exercícios dá ao estudo variedade, movimento e animação, ao mesmo tempo que

estimo a applicação e evita o cansaço:excita a attenção dos indolentes attraindo para

Assumptos variados; dá coragem aos que não tendo aptidão das as disciplinas,

esperam com impaciência o momento do exercicício em que se pode salientar; evita a

irreflexão de alunnos que custa de uns se poderiam dedicar mais ao conhecimento de

outros estudos; evita a falta de tempo, facilita o serviço da classe e prepara os alumnos

para terem, mias tarde, ordem na vida, que é sua dignidade, e pontualidade, que sua

tarde, ordem na vida que é sua dignidade, e pontualidade, que é sua força.São estas ,

dentre outras, as razões que pugnam em prol dos bons meios de empregar o tempo

escolar.Questão sobremodo difícil e complexa, apezar de sumidades pedagógicas a Ella

terem dedicado seus estudos, ainda não se disse a seu respeito a ultima palavra. Um

bom horário deve obedecer aos seguintes princípios: - a) Ocupar toda classe;

b)proporcionar a duração dos exercícios á edade e ao desenvolvimento physico e

intellectual dos alumnos; c) abranger o programa completo, destinando a cada matéria o

tempo exigido pela sua maior ou menor difficuldade ou facilidade; d) alternar em horas

sucessivas elementos mais difficeis com outros menos difficeis. Attendendo a estes

princípios e também desejando estabelecer um plano – horario já subscripto pela

pratica, daptei o que vae em o annexo Nº 1. Depois de haver manuseado durante um

anno, posso asseverar possuir elle aptimas condições pedagógicas, pois além dos

resultados colhidos de seu emprego, nenhum caso de fadiga cerebral ou de

atrofhiamento qualquer foi por mim observado.

PROGRAMA

A expressão programa, applicada ao ensino, offerece dous sentidos: - simples

enumeração das matérias do ensino; exposição detalhada do desenvolvimento que se

deve dar a cada disciplina, isto é, proporcionar ás faculdades infantis o quantum de

conhecimentos a serem ministrados. Disto resalta naturalmente a importância do

programa na escola. Si em nosso meio os agentes da educação fosse oriundos de uma

escola profissional, bastaria que o programa enumerasse unicamente as disciplinas que

devem ser estudadas na escolas primaria. Mas, tratando-se de agentes de educação

estranhos a um curso pedagógico regular, é claro que o programa deve lhes precisar a

qualidade e quantidade dos conhecimentos a ensinar. Da combinação do horario com o

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programa resulta a obediência á mais geral das leis pedagógicas e, ao mesmo tempo, ao

fim da educação:_ desenvolvimento gradual e harmônico das faculdades infantis.

Contraponham-se as escolas a esta disposição, e surgirá logo, como protesto eloqüente e

terrível, o atrophiamento geral ou parcial das faculdades infantis. Em o annexo Nº 2,

incluo a este o programa que adoptei no grupo escolar. Não tenho a veleidade de fazel-

o passar por cousa minha. É uma adaptação do que se preceitua nos grupos escolares

paulistas. Certo alguns defeitos e acompanham.As lacunas que por ventura existem

nelle, serão removidas quando a pratica, a experiência, os resultados no-los definirem.

CURSO DO GRUPO ESCOLAR

EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA

Munido do horario e do programa encetei a reorganização escolar, atacando

pelas bases os erros que encontrei e que acima foram citados. A educação moral e

cívica, que na escola deve ser objecto de um carinho e de um cuidado extremos,

mereceu da minha parte especial attenção, por não ser processado nas disciplinas

ensinadas ás creanças, até ao momento da installação do grupo escolar. Seu

desenvolvimento foi operado não só pelo ensino dos deveres e direitos cívicos ao

alcance infantil, como também pela comemoração das datas nacionais. Desta sorte, a

escola, para a creança assumiu feições de um templo amorável e bom, onde a Família, a

Sociedade e a Pátria eram constantemente cultuadas, com sinceridade, pelo amor e pelo

respeito infantis. As escolas não podem, não devem descurar os ensinamentos cívicos.

Desde o evento grandioso de 15 de novembro de 1889, que transformou radicalmente as

instituições sociaes que nos regiam, o ensino publico é leigo em nossa pátria. Por leiga

se deve entender a escola que respeita todas as religiões, sem professar qualquer dellas,

e não escola contraria a qualquer credo ou a Deus, segundo pregam, com intuitos

pequeninos alguns phariseus do ensino em nosso meio social. A educação só pode ser

completa e perfeita desde que desenvolva gradual e harmonicamente as faculdades

inttelectuaes, moraes e physicas dos educandos. Nos tempo idos da monarchia, em que

a religião era unida ao Estado, a educação moral se realizava por meio do ensino do

catecismo cathólico romano aos alumnos. Proclamada a Republica e com esta a

liberdade de cultos, foi banido da escola o ensino religioso. Desde então se fez mister

nova orientação para a educação moral. Collimando receber em seu seio filhos de todos

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os credos, respeitando-lhes e mantendo-lhes as opiniões religiosas, a escola adaptou por

sua a sublime religião da família, da Sociedade e da Pátria que, comum a todas as

crenças, a nenhuma se contrapõe. Sua moral é o ensinamento dos deveres para com os

seus, de cada qual para consigo, para com os seus, para com a sociedade e para com a

Pátria. E isto se faz pelo estimulo do patriotismo, ministrando ao alumno o

conhecimento dos heroes verdadeiros, daquelles que, por seus méritos e virtudes

cívicos, dignos se fizeram do nosso amor e do nosso respeito.

A natural evolução da educação conduziu a escola, atravez de prhase diversas,

até ao typo leigo, hoje universal. – Na antiga escola oriental a educação tinha por fim a

religião, a divindade; na grego-romana, a convivência social, o Estado; na christã, o

homem inseparável das sua relações com Deus;na escola hodierna, a educação tem por

fim a formação do cidadão, a formação do organismo ondividuo-social. Primevamente

educou-se o homem só para divindade; mais tarde, só para o Estado; ultimamente, o

homem pelo homem e para Deus; na actualidade educa-se o homem para si mesmo e

para a sociedade. Esta ultima educação é o typo da escola leiga moderna. É uma escola

humana, sem religião, mas não é contra Deus; e tanto assim é que conhece e observa o

dever de deixar a cargo da família do educando, o direito de ensinar a este a religião que

melhor lhe pareça. Tal é o único typo de educação humana, de accordo com os

modernos conceitos que a moderna sociologia faz sobre o homem. Levado por taes e tão

poderosas considerações, não poupei esforços para que a educação moral e cívica fosse

realmente desenvolvida na escola a meu cargo. E esse esforço foi alcançado theorica e

praticamente pelo ensino dos direitos e dos deveres do homem, em harmonia com maior

ou menor desenvolvimento intellectual das faculdades infantis; praticamente, pela

comemoração infantil das datas nacionais, dos homens grandes da Patria, tornando-se as

creanças outros tantos elos dessa sympathica, amorável cadeia cívica , que liga o

passado ao presente e prepara, pelo amor e respeito á Sociedade, os homens de amanhã,

a Patria futura.

EDUCAÇÃO INTELECTUAL

Como se viu, na intruducção deste trabalho, até o momento em que foi iniciada a

reorganização do ensino, o ministério deste nas escolas publicas da Capital, não

obedecia a um plano determinado de orientação. È verdade que o regulamento, então

em vigor, cogitava do ensino intuitivo, condemnava os processos retrógados da

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decoração e esboçava um plano programma ou, melhor, enumerava as matérias que

deveria ser ministradas na instrução primaria. Mas, senhor de um apparelho escolar

defeituoso, acanhado e incompleto, insciente em matéria de uma orientação definida,

abandonado a si mesmo, o professor não podia observar o regulamento e, por tal, não

devemos culpa-lo. Mostrava-se ao educador o fim a que seu labor era destinado, mas se

lhe não forneciam os meios necessários para que collimasse o alvo desejado. Além

disso, deixados os professores a si mesmos, realizando o trabalho educativo pelos meios

que melhor e mais práticos lhes pareciam ser, era natural que soprasse pela escola uma

tal desorganização, bem como, se observasse nellas uma accentuada divergência de

vistas. Desta sorte, cada escola reflectia, naturalmente, as predilecções d seu dirigente.

Aqui, viam-se alunos que liam optamente, mas escreviam e calculavam mal; alli

meninas que bordavam a seda e o ouro impeccavelmente, porém, que não sabiam

casear, remendar, pregar botões, ou fazer qualquer dessas pequeninos nadas do serviço

domestico.Impunha-se á reorganização, estabelecer um plano uniforme de

conhecimentos a se ministrar, fixando previamente a quantidade e a qualidade dos

mesmos,bem como estabelecer o tempo que cada disciplina deveria ser consagrado.

Esta medida veio evitar o grande inconveniente da desharmonia no ensino, fixando de

vez o desenvolvimento geral da educação intellectual. Estabelecimento de instrucção

elementar e complementar aqui existente, o grupo escolar é um curso primário, seriado

em quatro classes distinctas para ambos os sexos. Por essas classes, primeira, segunda,

terceira e quarta distribuem-se gradativamente, os conhecimentos que constituem a

instrucção são preliminar, ou melhor, primaria, propriamente dicta, de matérias

ensinadas da primeira e quarta classe obedecem a um plano uniforme; de tal natureza

que o educando ,ao iniciar o seu curso na primeira classe, recebe conhecimentos,

dosados pedagogicamente, de todas as disciplinas consagradas no programa geral do

grupo escolar. Com esta orientação, o grupo escolar apresenta uma uniformidade

perfeita em suas aulas e impossibilita completamente o desenvolvimento maior de

outros conhecimentos. Os programas da primeira á quarta classe, contém de accordo

com desenvolvimento particular de cada classe, as seguintes matérias: -

Leitura – linguagem oral e escripta – arithimetica – geographia historia pátria –

sciencias physicas e naturaes e hygiene - educação moral e cívica- geometria- musica –

desenho – gynastica e trabalhos manuaes.

Em o annexo Nº 2, vae o programa detalhado destas matérias, pelo qual se

avaliará da qualidade e da quantidade de cada uma, nas quatro classes do grupo escolar.

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– Não foi sem grandes dificuldades que se conseguiu o desenvolvimento approximado

desse programma, pois luctava contra tal desideratum a falta dos meios indispensáveis,

a falta dos apparelhos mais necessários para que isso se realizasse. Comtudo, á boa

vontade dos meus auxiliares e á applicação dos educandos, deve em grande parte a

consecução desse objectivo a , hoje, o desenvolvimento intellectual no grupo escolar, é

harmonico, uniforme e methodico em todas as suas phases.

EDUCAÇÃO PHYSICA

Estudando a evolução physicologica do homem, como a psychologica, podemos

asseverar que todos os seus actos psychicos teem profundas relações com a sua vida

orgânica. Em nenhum momento da vida os phenomenos psychicos se apresentam como

essencialmente diferentes e independentes dos physicologicos. Estudando a educação,

na sua mais ampla accepção, podemos affirmar que ella é um todo indivisível que na

phase de Motaigne, não tende desenvolver uma intelligencia ou um corpo, mas sim um

todo, como uma parelha de cavallos, atrelados ao mesmo carro. Não seria por tanto

natural que a escola cuidasse dos educando moral e intellectualmente, desprezando a

educação physica. Já de há muito conhece o vulgar – mens sana in corpore sano.Para

que a intelligencia se desenvolva e se capacite para o aprendizado intellectual,mister se

torna que o organismo também de desenvolva e se fortifique, é necessário que haja

harmonia nessa evolução physio-paychicologica.Não bastassem taes considerações para

convencer da importância educação physica methodizada, e eu lembraria, no passado

recehellenica, cuja historias tantas lições nos dá em matéria de educação.

Convencido de que, principalmente em nosso meio, muito se devia cuidar da

educação physica, teria immediatamente posto em pratica a gynastica escolar moderno,

se o grupo escolar estivesse para isso aparelhado. Porém tal não acontecendo, limitei

esta parte do programa a passeios campestre os quaes, além de oferecer aos alumnos um

campo mais hygienico para a boa respiração e mais próprio para os jogos infantis,

tornavam mais proveitosas por serem praticas, as lições coia-s. Este systema de

gynastica é hoje adoptado nos países de educação adentada, e seria muito útil de tal

assumpto cuidassem nossos programas escolares.

PREDIO ESCOLAR

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A mais urgente medida a se tomar, é a mudança da escola para outro prédio.

Nenhuma das casas que ella occupa actualmente , offerece as condições hygienicas e

pedagógicas exigidas nos prédios escolares. Nem mesmo poderão adaptar taes prédios

para escolas, pois, sobre serem péssimas as divisões internas, onde a luz e o ar não

penetram em quantidade sufficiente, estão localizado em uma rua anti-hygienica, que

recebe as águas servidas das casas da parte superior, conservando-as em depósitos e

estagnadas. Esta ultima condição, só por si, justifica uma providencia urgente, no

sentido de afastar a escola desse local repleto de miasmas, desse foco de micróbios

perigosíssimos para a normalidade da vida escolar.

MOBILIARIO ESCOLAR

O mobiliário em uso no grupo escolar é do typo adoptado escolas norte

americanas, offerecendo todas as vantagens que se podem anferir de carteiras

verdadeiramente escolares. Somente uma pequena parte delle impróprio para escolas

primarias, por ser destinada a escolas secundaritas. O mobiliário destinado aos alunos,

nas classes, é, pois, perfeito e uniforme. Outro tanto se não pode dizer do mobiliário

destinado ao serviço da classe, que é de mau typo e muito ordinário. Pode-se mesmo

considera-lo imprestável. E a unica causa dessa mau aquisição, reside no facto de se ter

encarregado da compra desse material, pessoal não idones e incompetente que, além de

fazer á instrucção o fornecimento de material de modelo condenmnado , ainda exigiu

por elle um preço verdadeiramente exorbitante.

MATERIAL DIDATICO

A escola possue em deposito e em uso livros didacticos dos melhores autores

nacionaes que se tem dedicado á literatura pedagógica infantil. Porém esses livros são

destinados às classes adeantadas, não tendo ella um único exemplar daquelles de que

precisa para o ensino da classe mais atrazada.E, considerando as condições especiaes da

praça cuyabana, que, alem de não possuir todo o material exigido na escola, ainda

vende o pouco que tem por preço que não está ao alcance de todas as bolsas, seria de

urgente necessidade, para bem da marcha regular do ensino, uma intervenção poder

competente, no sentido de facilitar á população escolar pobre, a aquisição de tal material

. A legislação estadual manda fornecer material aos alumnos indigentes. Mas, alem

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destes, a quasi totalidade da população escolar das escolas publicas , é pobre e só com

sérios e penoso sacrifício conseguem comprar um ou outro objecto exigidos pela

applicação dos modernos methodos de ensino.E isto pela razão de que taes objectos são

vendidos por um preço excessivo. Para sanar tal estado de coisas, seria opportuna uma

intervenção do Governo, no sentido que passo a expor: -

Não seria penoso ao poder competente fazer a escola uma dotação completa do

material didactico, habilitando-a ao fornecimento geral de seus alumnos. Tal

fornecimento seria feito gratuitamente, como é de lei, aos alunos reconhecidamente

indigentes. Aos demais, a escola só forneceri-mediante indemnisação, que seria

cobrada da razão única de custo de material posto em Cuyabá. A adopção dessa medida

traria consigo dous importantes resultados:

a)apparelhar a escola para poder desenvolver , com uniformidade e harmonia, e

sem programa de ensino;

b) evitar ao Estado futuros dispêndios com novas compras de material.

Actualmente a escola não pode fornecer a todos os seus alumnos e estes não

podem comprar o material de que precisam, já porque é muito caro, já porque não existe

na praça. Esta anormalidade acarreta sérios prejuízos, pois por mais boa vontade que

tenha o educador para cumprir seus deveres, a sua acção é constantemente cercada por

falta de meios. Pela mesma razão por que por mais hábil operário, falto de seus

instrumentos, só consegue obras toscas e imperfeitas, o educador, sem o apparelho

escolar completo e perfeito, só pode conseguir educação imperfeita , anormal,

atrophiadora das faculdades infantis. Mas, por outro lado as condições financeiras do

Estado, não permitem ao Governo, por agora, dispender grandes sommas com a

instrucção, no sentido de aparelhar as escolas para fornecimento gratuito aos alumnos

todos.Pois bem parece que acceita a medida atraz indicada, as escolas poderão

funccionar regularmente e o Governo fará economias grandes na verba relativa á

aquisição de material didactico. Para que tal se consiga, é bastante que o Governo

autorize a directoria da instrucção a fazer compra do primeiro fornecimento ás escolas, e

ao Thesouro do Estado, a creação da caixa escolar.

O pecúlio desta será constituído com a indemnização paga pelos alumnos em

virtude do material fornecido pela escola, fundo esse que será destinado exclusivamente

a acquisição de material escolar. È provável que se revoltem contra este projecto os

livreiros de nossa praça, que, mesmo, se poderiam dizer lesados em seus interesses.

Porém, mais interessados que os livreiros são os chefes de familia que cuidam da

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educação de seus filhos e, estes, certamente, não negariam applausos ao Governo, pois

reconheceriam a justiça de tal acto, visando unicamente a facilidade maior da

conffunsão do ensino em todas as camadas sociaes.

CORPO DICENTE

Tem sido tal a concorrência de candidatos a matricula em ambas as secções do

grupo escolar, que a direcção desse estabelecimento tem sido obrigado rejeitar

candidatos, por insufficiencia do prédio. O facto da procura de matricula é bastante

significativo para escola e importa a acceitação dos novos methodos pelo povo, mesmo

apezar das injustas campanhas que lhe têm movido certos indivíduos por intuitos que

não sei alcançar. E o annexo Nº4, vae um resumo do movimento de matricula e

frenquencia de campos durante o anno lectivo, pelo qual se vera que o maximo da

matricula attingiu ao elevado total de quatrocentos e trinta e seis alumnos, e o maximo

nunca foi inferior a quatrocentos.

CORPO DOCENTE

O corpo docente do grupo escolar é constituído de 8 adjuncto e 2 adjunctos.

Aquellas leccionam a cinco classes femininas e as três primeira masculinas. O facto de

haver três professoras dirigindo classes masculinas, assenta no principio de

superioridade da mulher sobre o homem, em matéria de paciência e do carinho. Sendo

as primeiras classes mais difficeis e aquellas onde ffluem maior numero de creanças em

tenra edade, devem ser dirigidas, de preferência, por mulheres, pois o resultado do

ensino alli, depende exclusivamente da paciência, do carinho e da dedicação da mestra

para com seus alumnos . Não seria justo que deixasse de mencionar neste capitulo o

carinho, a dedicação, o amor que o corpo docente do grupo consagrou ao ensino durante

o período a que se refere este relatório. Seria injustiça declinar nomes. Todos

trabalharam devotamente e foram fieis no cumprimento dos seus deveres. Essa união de

esforços, essa convergência de vistas para o mesmo fim, essa unidade de sentimentos,

tudo contribuiu poderosamente para que o grupo escolar alcançasse a confiança que

actualmente lhe concede a sociedade cuyabana. Em annexo Nº discrimino o corpo

docente e as alterações por que elle passou n decorrer do anno lectivo próximo findo.

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CORPO ADMINISTRATIVO

O escolar administrativo do grupo escolar compõe-se de um director, um

porteiro e dous serventes. O porteiro do estabelecimento e os serventes foram sempre

pontuaes no exercício dos seus cargos. Adeante, na parte referente ao corpo

administrativo da Escola Normal, me estenderei mais sobre este capitulo. O annexo Nº

5 mostra as alterações sofridas pelo corpo administrativo.

DISCIPLINA GERAL

È bastante eloqüente, para provar a superioridade da actual orientação escolar, o

facto de se não ter applicado penas disciplinares a corpo dicente do grupo escolar, no

decurso do anno lectivo a que se refere este relatório. A actual orientação banin por

completo o castigo physico. Os alumnos são corrigidos unicamente por meios dóceis,

moralisadores. A disciplina escolar repousa unicamente no amor mutuo entre o

educador e o educando, de que resulta a superioridade moral daquelle e o respeito deste.

Á escola de hoje é diversa da de outr’ora. A creança, ao vir para aula, sente que a

escola é uma continuação do lar. O mesmo amor, o mesmo carinho, os mesmo cuidado

que a infância tem no seio da familia, são-lhe dedicados pela escola. È natural, portanto

que a creança venha espontaneamente para a escola.

E quando se tem conseguido este resultado, quando a creança vê a escola lhe

sorrir, abrindo-lhe carinhosa, amorosamente os braços, quando tal se conseguia a

indisciplina é letra morta e o resultado do ensino deixou de ser um problema, para ser

um facto. E, com orgulho o affirmo, o grupo escolar conseguiu ser , para seus

educandos, a continuação da familia.

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JORNAL. Correio do Estado. Cuiabá-MT, ano III, nº 115, 04 de março de 1923 .

APMT. Cx – 022.

O Ensino de Historia

Muita gente se engana a respeito do ensino primário, confundindo-o com um

ensino sem plano, desconnexo, unilateral: ler, escrever e contar, ler o 1º livro, depois o

2º, depois o 3º depois o 4º depois o 5º; escrever uma carta, e executar as 4 operações,

verificando-as com a prova dos noves fora. Passar para outro livro e passar para outro

anno do curso é para os que pensam assim, a mesma cousa. Quanta falsidade de

conceitos! Vós que ensinaes, sabeis melhor do que eu a que distancia da verdade estão

essas ideás. Vós, que observaes attentamente os vossos alumnos, sabeis, que não se trata

de passar de livro, mas de desenvolver as faculdades todas da intelligencia,

sensibilisando aquellas faculdades chamadas de acquisição, fortalecendo as de

conservação e exercitando as de elaboração. Vós, que conheceis e continuares sempre

estudando a psychologia infantil, avaliaes o desacerto de alguém que julgasse de pouca

responsabilidade os vossos trabalhos.

Vós, que preparaes em casa as vossas lições, diariamente, antes de vir para a

escola, pela meditação sobre o que vindes ensinar naquelle dia, e como o fareis, para

facil e perfeita, comprehensão de vossas classes, estaes convencidas de que o ensino,

ainda que primário, deve ser harmonico, integral, graduado, racional, previdente dos

fins a attingir.

Na escola primaria se ensina a ler, a escrever, a contar, assim também como se

ensina o desenho, a geometria, a geographia, a musica, a história, as sciencias physicas

e as sciencias naturaes. É como se vê, um programma integral de instruição, verdadeira

base de uma cultura generalizada. Mas esse mesmo programa de instruicção integral,

deve ser um programma de educação intellectual completa: e para que seja, é preciso

que cada sciência conserve o seu espírito e esse methodo devem estar presente a cada

lição. Assim, nunca deixará o professor de perguntar a si mesmo, ao iniciar o ensino de

cada disciplina de programa do programma: porque se formou esta sciencia?

Uma sciencia, diz Claparéde, é sempre uma resposta ou uma tentativa de resposta

a uma pergunta que o homem se propõe; uma pergunta sempre que alguma cousa o

admira. Mas essa admiração continua Claparéde, é, por sua vez, provocada por algum

embaraço na maneira de conceber os phenomenos ou se adaptar a elles: é quando o

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homem se sente desprovido de automatismo ou hábitos, que lhe permittem agir num

caso dado, que se põe a reflectir sobre a maneira de organizar a sua conducta, e esta

reflexão, que o conduz a indagar da natureza e successão dos phenomenos, leva o à

investigações scientificas. Como se vê Claparéde dá para o berço das sciencias –

utilitarismo. E embora muitos conhecimentos hajam inscriptos no rol do cabedal

humano por obra de puro desejo de saber e como consequencia do espírito de

indagação, que é innato nos homens, tenham todo, elles bem depressa uma feição

utilitária e essa feição utilitária há de ser a norma invariável de ensino nas escolas

primarias. Ao iniciar o ensino de uma disciplina a uma classe deve o perguntar a si

mesmo: qual a utilidade do ensino que vou ministrar? O fim da escola não preparar o

homem para a vida, pela instrucção e pela educação?

Entremos no assumptos da nossa palestra – o ensino de Historia. Não se

entenda por Historia de um povo simples narração, em ordem chronologica, dos

acontecimentos políticos. A isso chamaríamos Historia política. Ao lado della no

envolvimento de uma nação, ocorrem os acontecimentos scientificos, artísticos,

religiosos, econômicos, etc.

Historia de um povo, ou melhor, Historia de Civilisação de um povo é, para

Monod, o conjuncto das manifestações da actividade e do pensamento desse povo,

considerados em sua successão. A historia pode ser simples narração de factos e pode

ser a interpretação e comparação desses factos.

A Historia de um povo, como simples narração de factos, não é sciencia, e,

quando ensinada, tem por fim fazer conhecidos homens actuaes desse povo, as phases

do seu desenvolvimento, as luctas sustentadas pela conservação da sua integridade, as

etapas percorridas na conquista da sua civilisação, os homens que mais se distinguiram

pela sua intelligencia, pela sua abnegação, pelo seu civismo, os exemplos edificantes

das collectividades e dos indivíduos que viveram nas diferentes épocas.

A Historia de um povo, como interpretação e comparação desses mesmos

factos, é sciencia e; quando ensinada tem por fim dar aos homens actuaes, pela

esperiencia generalizada do que passou a previdência do que há de vir, traçando-lhes o

melhor caminho.

Não vos direi que o ensino de Historia ás classes dos primeiros annos

preliminares deva ter um caracter scientifico. As inducções históricas não estão ao

alcance de espíritos ainda encerrados no casulo das intuições ficarão para depois, para

os cursos complementares, secundários e superiores; ficarão para aquelles que ides

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agora instruir nos factos do nosso passado, conduzindo-os, de surpreza em surpreza, de

curiosidade em curiosidade, atravez de 4 seculos; ficarão para aquelles cujos espíritos

ireis agora iniciar na contemplação do desenvolvimento nacional, dando-lhes os

porquês, as causas, as conseqüências de cada mudança de regimem. Agora, portanto,

não ides ensinar a História como sciencia, mas tão somente como narração do passado

nacional, como repositório de exemplos, os mais edificantes, de nomes os mais

renováveis, de acções as mais heróicas, de civismo o mais puro. È esse o vosso papel:

pintar aos olhos dos vossos alunnos o Brasil asphyxiado dos primeiros mezes de 1822, o

Brasil agitado de 31, o Brasil fremente de 64, o Brasil generoso de 88 o Brasil

esperançoso de 89, o Brasil progressista, emprehendedor e forte de nossos dias, por obra

e valor de todos os seus filhos; o Brasil previdente de agora, preparado, instruído,

robustecendo os seus futuros homens. Sabereis colorir todos esses quadros e anima-los e

movimenta-los e torna-los estimáveis; sabereis alimentar com elles a intelligencia das

creanças ao mesmo tempo que alimentar as suas virtudes; sabereis fixar conhecimentos

e desenvolver sentimentos; sabereis fazer conhecida e amada das creanças a nossa

Historia.

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