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Saúde em Debate
ISSN: 0103-1104
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Brasil
Simões Ribeiro, Alexandre
Saúde Mental e cultura: que cultura?
Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 83-91
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Rio de Janeiro, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773008
Como citar este artigo
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Home da revista no Redalyc
Sistema de Informação Científica
Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
Alexandre Simões Ribeiro 1
1 Psicanalista; doutor em filosofia pela
Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG); professor da Universidade do
Estado de Minas Gerais (UEMG) no
campus da Fundaç.'io Educacional de
Divin6polis (FUNEDI).
ARTIGO ORIGINAL I ORIGINALARTICLE
Saúde Mental e cultura: que cultura?
Mental Health and culture: what culture?
"Em roda fronteira há arames rígidos e arames caídos"(CANCLlNI, Culruras híbridas, p. 349)
RESUMOA partir de uma crítica àsperspectivas mentalistasftrtementepresentes
entre os dispositivos da Saúde Mental, busca-se valorizar a articulação da Saúde
Mental coletiva com a cultura. Entretanto, questiona-se sobre que concepção de
cultura estaria perpassando com justeza os avanços no campo da Saúde Mental
coletiva. Há conceituações de cultura que restabelecem posições reacionárias e,
enquanto tais findam por se mostrar condizentes com o reftrço das concepções
mentalistas na Saúde Mental o que seria um retrocesso para posturas excludentes.
Porém, mostram-se mais proveitosas as concepções pós-estruturalistas de cultura.
Para tal são expostas linhas gerais dos conceitos de descoleção ehibridação apartir
das análises sobre a cultura empreendidas por Canclini.
PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Psicologia clínica; Saúde Mental
ABSTRACT From a criticaIpoint ofview to the mentalperspectives, strongly
operating between devices of Mental Health, there has been an attempt to
searching the joint ofcollective Mental Health with the culture. However, it is
put in question what conception ofculture would be supporting the advances in
thefield ofthe collectiveMental Health. There are culture conceptualizations that
reestablish reactionary positions and, thereftre, are combined with traditional
positions in the Mental Health, what would be a retrocession to the excluding
postures. However, the conceptions after-critical ofculture are more beneficial
The generallines ofdescollect concepts and hibridation from the analyses on the
culture are herein displayed in the words ofCanclini.
KEYWORDS: Psychoanalysis; Clinicalpsychology; Mental Health
Smíde mI Debate. Rio de Janeiro. v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan.ldt."Z. 2008
83
84 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e culrura: que cultura:
SALAS-AO-LADO
Nos últimos dez ou 20 anos, vem se percebendo
um interessante deslocamento nas rorinas e desafios que
compõem o campo da Saúde Mental no Brasil. Se for
mos mais rigorosos, poderemos encontrar circunstâncias
propulsoras desse deslocamento em uma temporalidade
bem maior do que os dez ou 20 anos apontados. Contu
do, percebe-se que, na última década, aquilo que ainda
era wn tanto quanto isolado, às vezes disperso, discreto
e, em alguns casos, incipiente e amórfico se impôs de
tal maneira que, atualmente, ultrapassa limites setoriais,
fronteiras profissionais e delimitações epistemológicas do
conhecimento e do fazer para se mostrar mais enredado•
e consIstente.
Aliás, como é sugerido neste artigo, parece que as
iniciativas de vanguarda presentes na Saúde Mental po
deriam usufruir muito dos debates e circunstâncias vindos
de outros campos e problemáticas, não só relacionados à
doença, loucura, normalidade versus anormalidade. Em
suma, parece-me que uma forma de aprimoramento na
saúde mental, para além de aparatos adaptacionistas ou
normalizadores e taxonômicos, pode ser obtida se ousar
mos visitar, por assim dizer, a 'sala-ao-Iado'.
Uma dessas salas-ao-lado, que vem apresentando
potentes desconstruções e agudas complexidades, é pre
cisamente a que se mostra sensível às considerações pós
estruturalistas acerca da cultura. Tais circunstâncias e
resensibilização dos olhares iniciaram-se, de certa forma,
com a tradição inglesa dos Estudos Culturais (cf. SILVA,
2004): era preciso pensar o que vinha a ser educação,
conhecimento e cultura face às novas condições dos
trabalhadores no mundo pós-guerra, demarcado pela
bipolaridade de um globo dividido por dois sistemas
Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 83-91. jan./de'L. 2008
de produção antagônicos. Um pouco mais adiante no
tempo, tudo isso se torna agudo, pois a esse cenário
incorporam-se os fenômenos decorrentes da mobilidade
das fronteiras (às vezes, com efeitos devastadores para as
pessoas mais diretamente envolvidas nestas questões), ou
seja, os fenômenos oriundos de um mundo pós-colonial
em que a presença e a produção de diferenças, bem como
a diversidade de identidades (o louco, a mulher, o negro,
o africano, o sul-americano etc.), colocam em derrocada
olhares e fazeres até então aparentemente estáveis e que
garantiam a verdade, a ordem e o futuro.
É justo sublinhar, porém, a necessária discussão
acerca da loucura (em especial) e da Saúde Mental (em
geral) de maneira não restrita às especialidades (a iden
tidade-psicólogo, a identidade-médico, a identidade
família etc.) que se voltam, em tese, para tais temas, já
devidamente abordada por alguns autores (LOBOSQUE,
2001; AMARANTE, 2003). De certa forma, essa parece ser
a tônica difusa, mas sempre presente, na abordagem do
modo psicossocial de atenção à Saúde Mental (COSTA
ROSA; LUZlo; YASUI, 2003).
Certamente, a articulação das questões suscitadas
pelos caminhos da loucura (em todas as suas formas) em
relação à cultura tem como repercussão a produção deA ., •
um novo tom ou anuno e, ate mesmo, esperança em melO
à Saúde Mental. E isso, por si só, já é bastante louvável.
Contudo, se não nos indagarmos minimamente acerca do
que se entende por 'cultura', não conseguiremos ir além de
uma extravagante idolatria do 'até-então-marginal' (sob o
escopo de um ideal de compensação ou reparação sociais)
ou de uma frágil ética da tolerância, que nos conduz a
acolher, suportar e tolerar a diferença (por exemplo, sob
a forma do louco). Ora, se há de fato uma possibilidade
e o desejo de se fazer uma transformação no campo da
Saúde Mental que não resulte em niilismo ou em uma
hierarquização disfarçada ('somos tão superiores que acei
tamos a diferença!'), trata-se de se produzir a diferença e
não exatamente aceitá-Ia piedosamente. Em suma,
{ ..} procuramos deixar claro desde o início que oprojeto antimanicomial não se reduz a reftrmasassistenciais. Por eficazes que sejam, as reformas no
dmbito da assistência só adquirem um caráter transftrmador quando se articulam com uma intervençãona cultura, tendo a recriação das idéias sobre a figurado louco ao mesmo tempo como objetivo eeftito de suaimplementação. (LOBOSQUE, 2001, p. 30).
Mas é vital estarmos atentos para a seguinte pos
sibilidade:
o conceito de cultura é profimdamente reacionário.É uma maneira de separar atividades semióticas(atividades de orientação no mundo social e cósmico)em esferas às quais os homens são remetidos. Tais atividades, assim isoladas, são padronizadas, instituídaspotencial ou realmente e capitalizadas para o modode semiotização dominante - ou seja, simplesmentecortadas de suas realidades políticas. (GUAlTARI;
ROLNIK, 2000, p. 15).
Ou ainda:
Atrás da falsa democracia da cultura continuam a seinstaurar - de modo completamente subjacente - osmesmos sistemas de segregação a partir de uma categoria geral da cultura. Os Ministros da Cultura e osespecialistas dos equipamentos culturais, nessaperspectiva modernista, declaram não pretender qualificarsocialmente os consumidores das objetos culturais, masapenas difimdir cultura num determinado camposocial, quefUncionaria segundo a lei de liberdade detrocas. No entanto, o que se omite aqui é que o camposocial que recebe cultura não é homogêneo. (GUAlTARI;
ROLNIK, 2000, p. 20).
O deslocamento
Qual seria o deslocamento que, em tese, justificaria
a freqüentação de salas-ao-Iado? Trata-se da migração de
uma concepção de clínica e de todos os seus aparatos
calcados em prerrogativas mentalisras para uma perspec-
RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura? 85
tiva que, em nítido contraste com aquela, apresentar
se-ia mais porosa, aberta e extensiva, mas não por isso
isenta de rigor e, muito menos, de vigor. Reflexões
desenvolvidas entre nós por Jairo Goldberg (1992),
Paulo Amarante (2003), Abílio Costa-Rosa (2003),
Ana Pina (1994), Joel Birman (2005) e muitos outros,
certamente influenciados por uma série de movimentos,
tendências e suspeitas deflagradas por cenários que se
impuseram no período pós anos 1950, em muitos países,
apresentam-se como relevos distintos, mas integrantes
de um mesmo território; território este que já coloca em
xeque a própria noção entijecida de território, de espaço
com fronteiras discerníveis e de identidade fundante (por
conseguinte, de diferença). Ao articular essas circunstân
cias, promovedoras de descentramentos, com o rápido
quadro que cheguei a ilustrar acerca da possibilidade de
se freqüentar salas-ao-lado, indagaríamos: quais são as
possibilidades de intervenção em Saúde Mental em um
mundo pós-colonial?
A esfera e a clínica estrita
Principalmente através dos diversos discursos e
ações que compõem a psicologia, algo se impôs em
nossos imaginários (e digo isto sem desconhecer a
amplitude desse campo, bem como a larga, e às vezes
discrepante, variedade de teorias que aí se apresentam
oficialmente desde a segunda metade do século 19): a
apreensão do psíquico como uma interioridade, como
algo que se apresenta como posse individualizada e,
em contrapartida, demarcadora de uma imprescindível
marca individualizante e, por isso, identitária.
O psíquico, como um emaranhado de traços, memó
rias, fantasias, idéias e desejos privados, nos seduz há tem
pos, fomentando nossos imaginários e adensando discursos
e ações que extrapolam de forma marcante o campo da
psicologia, ainda que sempre porte sua marca e presença
maiores: a psicologização. A consei tuição de identidades
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dt."Z. 2008
86 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e culrura: que cultura:
calcadas em atributos e afetações privados é uma decorrên
cia direta desse homo psychologicus, finamente construído
ao longo da modernidade e aprimorado em um mundo
industrializado. Vejam como é recorrente, por exemplo, a
idéia de Freud (a princípio, um perspicaz anti-mentalista)
enquanto descobridor do inconsciente. Tão recorrente e
homogênea é essa imagem às prerrogativas do mentalismo
que fazemos dela uma marca de cientificidade (no sentido
de episteme, ou seja, saber articulado a uma coerência do
discurso) e caução das ações do psicanalista. Porém, uma
leitura mais atenta e aberta às curvaturas internas do que
Freud nos propôs pode verificar que a coisa mais estranha
que poderia lhe ser imputada é, precisamente, a condição
de ele ter sido o descobridor de algo que até então escapava
aos outros. Mas, para tanto, é preciso nos desvencilharmos
do seqüestro constante e naturalizado que nos traz uma
espécie de 'servidão voluntária' para, então, retomar a
incômoda expressão de La Boétie (1999). Essa servidão,
que implica em um curioso seqüestro, consubstancia-se
em mentalismo.
Todavia, é jusro frisar que a noção de interioridade
psicológica (e a operação psicologizante) encontra, an
tes mesmo do estabelecimento inaugural do corpus da
psicologia a partir da segunda metade do século 19, seu
rastro em Santo Agostinho e em suas reflexões confes
sionais. A partir de outro ângulo, podemos notar que
com Descartes (15%-1650), a interioridade é elevada
a uma dimensão que, em muito, convirá à instrumen
talização da razão, ou seja, a esta localização da razão
como ferramenta que moverá, doravante, o mundo.
Aliás, essa imagem da mobilidade do mundo é utilizada
pelo próprio auror:
Arquimedes, para tirar oglobo terrestre de seu ligar etransportá-lo para outra parte, não pedia nada mais,exceto um ponto que jósse fixo e seguro. Assim, tereio direito de conceber altas esperanças, se jór bastanteftliz para encontrar somente uma coisa que seja certae indubitável. (DESCARTES, 1979, p. 91).
Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 83-91. jan./de'L. 2008
Para continuarmos a localizar grandes marcos e
momentos de inflexão que ainda hoje se impõem a
nós todos, contudo, não poderíamos nos descuidar de
Montaigne que possibilitou, com Ensaios e o tom que
ali se produziu, a ampliação da prática da introspec
ção ao leitor comum como via de prospecção de uma
idiossincrasia enigmática. Está claro, contudo, que
Montaigne (1533-1592) não preconizou, nesse espaço,
o universal e o apodíctico, supostamente inscritos no
homem, debruçando-se sobre as opiniões, os costumes e
os dogmas de sua época, sensível à diversidade, ele soube
matricialmente chamar atenção para um caminho que
se abriu nas margens da filosofia, da literatura e da 'fala
de-si' para o outro do externo, do dado a ver: o nosso
interior. A notória frase de Montaigne, "o que sou eu
sou para mim mesmo importa mais do que eu significo
para os outros" (1991, p. 47), ilustra precisamente a
dimensão que aí se inaugurou, não só em Montaigne
ou por ele, mas em seu tempo, desde então.
A ampliação desse processo para aqueles que nem
leitores eram, já que ele moldou imaginários e confor
mou uma cultura (que, erroneamente, toma-se como
erudita) foi provocada, sob outra via, por Shakespe
are que, segundo Harold Bloom (1995), nos levou a
reconhecermo-nos como dominados por uma profun
didade obscura e insondável e, portanto, que nos levou
a entreoUVlr-nos.
o projeto de dominação, discernimento e ades
tramento desse insondável não está em Shakespeare;
sejamos jusros, pois ele privilegia perspicazmente o
paradoxo, o oxímoro e a fugacidade como poucos, desde
então. Ele soube nos interiorizar possibilitando que, ao
mesmo tempo, nos descompletássemos e transformás
semos. A colonização do psíquico interiorizado foi, a
despeito disso, uma decorrência da modernidade.
Curiosamente, debates que parecem ser bipolari
zados, tal qual o estabelecido entre, as múltiplas escolas
materialistas (hoje, significativamente reerguidas com
o respaldo dos diversos organicismos e marcadamente
paramentadas de um efeito de cientificidade espetacu
larizadora) e as escolas introspeccionistas firmam-se, ao
que tudo indica, em um mesmo ponto arquimediano:
a posse (podendo ou não passar por desenvolvimentos,
regressões, etapas etc.) de uma essência que demarcaria
o espaço mental e o espaço do mental. A própria idéia
de mente ou de aparelho psíquico, na maioria das vezes,
é um corolário dessas perspectivas.
Para se opor a isso, uma boa parcela da filosofia,
sobretudo a anglo-saxã declaradamente influenciada por
Wittgenstein, plasmou uma crítica que denunciava o
'fantasma na máquina' (para retomarmos o tropo pro
posto por Gilbert Ryle em 1949, em O conceito de mente;
cE Bouveresse, 1987) a título de patrocinador do mito
da interioridade. Mas sabemos também que esta crítica,
tendo trazido de início uma espécie de pharmakon aos
excessos essencialistas, acabou por solidificar uma certa,
e nefasta, reiteração do pragmatismo no campo teórico
e em muitas práticas, enclausurando-nos curiosamente
em outra forma de essencialismo.
Certamente, há razões para que essa imagem da
mente como espaço internalizado (ou /oros privado) seja
tão atraente e, às vezes, até mesmo se imponha como
óbvia, de forma a não haver outra maneira de se falar em
psiquismo, subjetividade e clínica senão sob esta óptica,
ou na tentativa desesperada de se desvencilhar da mesma,
adotar um trajeto diametralmente oposto que resultaria
em uma forma de behaviorismo radical.
O estabelecimento de espaços a serem conquistados,
demarcados e apreendidos em sua totalidade é uma das
importantes decorrências da razão instrumental e da mo
dernidade. Surgindo o indivíduo como mola-propulsora,
produto e processo dessa cena, conforme Dumont (1985),
restava apenas categorizar, demarcar e apreender o espaço
interior hipostasiado sob a forma de mente.
'Como O espelho (ROSA, 1988, p. 65.)
RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura? 87
Esse imaginário que promulga a detenção privada e,
em extremo, solipsista, de uma substância-espaço mental
é tão impregnante que nem mesmo uma apreensão da
psicanálise, como já cheguei a sinalizar, conseguiu se des
vencilhar inteiramente dela. Mesmo a densa afirmação
freudiana, proferida ao menos de três formas explícitas
ao longo de sua obra, e ecoada a cada circunstância
clínica que levasse o mesmo Freud a sempre reconstruir
a posição do psicanalista - "o eu não é senhor em sua
própria morada" (1976, p. 178) - não conseguiu le
vantar barreiras densas à indexação da psicanálise a essa
ótica esférica acerca de nós mesmos.
Otica esférica de nós mesmos. O que isso significa?
Essa organização que nos conduz a um pathos dicotó
mico: dentro-fora, sujeito-objeto etc. Nota-se, pois, que
as esferas à semelhança do que Guimarães Rosa (1988)
propõe acerca dos espelhos!, são muitas.
Quão comum é, entre psicanalistas, professores e
alunos de psicologia e o senso-comum, presenciarmos
a postulação do inconsciente menos como desconti
nuidade e mais como conteúdo oculto, menos como
'impossibilidade de totalização' e mais como duplo que,
substancialmente, me habita?
Essas localizações sempre comportam efeitos clíni
cos de grande envergadura. Em companhia de Foucault,
somos levados a compreender que na passagem do sé
culo 18 para o 19, a medicina deu um salto que trouxe
implicações agudas que ultrapassaram em muito seus
espaços mais visíveis de operação. Instituiu-se então a
clínica médica moderna e foi a partir daí que muitos
outros campos obtiveram seus delineamentos. Tornou-se
possível, a partir da medicina, amparada principalmente
pelo mérodo anátomo-patológico, estabelecer um saber
sobre o individual mediado por seu sofrimento, a come
çar pela instalação do mesmo em um corpo que já não
se contém: fisiologia, embriologia, anatomia e, por fim,
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dt."Z. 2008
88 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e culrura: que cultura:
genética embaralhadas, mas convidando ao saber. Saber
este que não mais se volta para o estudo das doenças
tomadas como realidade em si, mas como específicas a
quem é afetado por elas. A clínica tornou possível uma
episteme do particular.
O passo seguinte, no campo das psicologias, foi
conectar esse aparato ao lugar da mente e engendrar, as
sim, a clínica do psíquico. Dessa forma, a clínica pôde se
sentir inteiramente à vontade com sua própria linhagem
etimológica, fazendo com que o 'klinos' implicasse em
um reclinar-se hierarquicamente sob outro que estivesse
abaixo, deitado, recolhido em sua profundidade.
A dobra da esfera
Pois bem, o deslocamento ao qual me referi no
início desse texto tem íntima relação com O afrouxa
mento, a derrocada desse espaço esférico, desse locus
mental. Na atualidade, começamos a ser atravessados
tanto para o melhor quanto para o pior, por um
outro pathos: não mais cabem tão hegemonicamente
narrativas sobre nós mesmos, bem como sobre os fe
nômenos contemporâneos, que partam de perspectivas
solipsistas. O soli psista é aquele que nos propõe que
'meu mundo é meu mundo', tamanho o compromissoA· •• •••
com essenClas, apfloflsmos e categoflas unIversaIS que
independem da história e da política, ou seja, que não
se inscrevem em e através de processos contestados.
Solipso, ele segue sua rota hedonista apresentando-se
como a medida da vida.
Apresento a hipótese de que a crescente reAexão,
ação e interlocução que vêm se dando não mais na Saúde
Mental enquanto espaço bem demarcado, mas na 'Saúde
Mental coletiva' como espaço poroso e afeito a uma
constante reterritorialização do psíquico, não seria pos
sível sem que se instale uma sincronicidade entre esses
processos e as reterritorializações implicadas nos estudos
voltados à cultura, desde um viés antiessencialista.
Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 83-91. jan./de'L. 2008
Mas, muitas vezes, o avesso do interior pode nos con
duzir a uma superfície ou exterioridade que insiste em se
contrapor àquela mesma interiorização, em uma espécie de
platonismo às avessas. Não é a essas paragens que lançamos
o nosso olhar, na busca de uma possível mitigação quando
não-desconstrução do mito da interioridade. Compreendo
que um psiquismo que se coloca no 'entre-dois' e não exa
tamente em um in ou out seria uma rora viável e oblíqua
aos poderes dos discursos essencialistas.
Porém, sobretudo a partir da performática concilia
ção de mitos cientificistas (talvez o maior de todos seja
a possibilidade de a ciência, através de uma englobante
parafernália tecnológica, scannear o espaço) com os
atuais modos de produção, circulação e consumo de
bens (rapidamente chamados de globalização), temos
a inundação de explicações e imagens fisicalistas do
funcionamento da vida em todos os seus aspectos e,
em especial, de nosso pathos. A exacerbação do espaço
individual, e não mais opaco ao organismo, colocou O
sujeito (ainda sobremaneira hipostasiado) na pele.
Benilton Bezerra Júnior (2002) argumenta perspi
cazmente a forma como palavras e processos demarca
dores de alguns aspectos de nossa condição, tais como
tristeza, desencanto, angústia e percalços da vida, deram
lugar a expressões mais abertas à técnica, à correção e à
adaptação, tais como 'depressão', 'clistimia', 'síndrome
do pânico', 'ansiedade' e 'afetivo-bipolar'. Nitidamente,
temos o mercado aberto a todos os 'especialistas do bem
estar' que buscam um patamar de qualidade total, versa
tilidade e assepsia do psiquismo. Eis aqui um fantasma
que, ao sair da máquina, assombra a Saúde Mental.
O mal-estar ganha, pois, uma visibilidade per
formática (e as terapêuticas, idem). Nas palavras de
Benilton Bezerra (2002, p. 235):
Se na cultura do psicológico e da intimidade o sofrimento era experimentado como conflito interior oucomo choque entre aspirações e desejos reprimidos e as
regras rígidas das convenções sociais, hoje o quadro éoutro. Na cultura das semações edo espetdculo, o malestar tende a se situar no campo da performancefísicaou mentalfilha, muito mais que em uma interioridade enigmdtica que causa estranheza. Os quadrossintomdticos preva/entes parecem atestar isso: finômenos aditivos (incapacidade de restringir ou adiara obtenção de satisfàção, que se torna compulsivapelovia das drogas ilícitas, dos medicamentos, do comumo,da gindstica e do sexo), tramtornos vinculodos à imagem ou d experiência do corpo (bulimias, anorexias,ataques de pânico), depressões menores e distimias(ausência de desejo, motivação, empenho).
SAÚDE MENTAL COLETIVA E CULTURA:
ENTRANDO E SAINDO DA SALA-AO-LADO
Uma das características mais marcantes do campo
da Saúde Mental coletiva, bem como de todas as possi
bilidades de afetação que ali se colocam não mais sob a
primazia do mentalismo, mas em suas clivagens, é que
as práticas não seguem protocolos, estruturas, mapas
rígidos e previamente estabelecidos. Em relação ao mo
delo de clínica calcado no mentalismo essencialista, diria
que no modo psicossocial os conceitos, ações, perguntas
e dúvidas estão em estado de 'descoleção', isto é, estão
desterritorializados quando cotejados com a situação
anterior. Descolecionar leva a 'deslocar', 'decolar', 'des-
colar' e, muitas vezes, a 'des-escolarizar'.
Na Saúde Mental coletiva, portanto, presenciamos
muitas práticas à espera de uma conceituação, bem como
de novos modos de conceituar e pensar. Conceituação,
aqui, não implica em um aparato teórico que conduza
à representação do real em suas minúcias para melhor
compreendê-lo e, então, submetê-lo a um poder de
dominação. Comporta, sim, a possibilidade constante
de tornar a novidade algo transmissível.
RIBEI Rü, A.S. • S:ll',de Menlal e cultura: que culrura~ 89
Compreendo que os profissionais atuantes na área
da Saúde Mental possam obrer uma interessante dobra
em seus tecnicismos realizando visiras à sala-ao-lado.
Um empolgante espaço de desconstrução de categorias
e perspectivas essencialisras vem sendo empreendido
nas problematizações acerca da cultura. Dentre diversas
possibilidades que participam de um amplo quadro (que
poderíamos denominar pós-crírico ou pós-estruturalista
a rítulo de uma nomeação um ranto quanto precária),
encontramos a argumentação de Nestor García Canclini
em seu Livro Culturas híbridas: estratégias para entrar e
sair da modernidade.
Ali, Canclini empreende uma lúcida crítica em rela
ção ao tratamento dicorômico e essencialista reservado,
classicamente, à cultura (suas produções, seus processos,
suas lógicas e demarcações), mas, notemos bem: não só
à cultura. Recorrendo a dois conceitos mutuamente im
plicados - os conceitos de 'hibridaçãO' e de 'descoleção'
- Canclini procura argumentar que não mais podemos
compreender e lidar com a cultura a partir de dualismos
(por exemplo, cultura erudira/cultura popular, cultura
massiva/cultura popular, hegemônico/subalterno,
tradicional/moderno etc.) e, muito menos, a panir da
suposta segurança dos lugares em que ela é produzida
ou, a princípio, contida. Trara-se, por conseguinte, de
se desomogeneizar a culrura.
Nesse sentido, Canclini apresenta uma forte argu
mentação que questiona o eStatuto de locais destinados
à cultura e à preservação da história ou do patrimônio
cultural de um povo, uma etnia ou grupo, tal como se
dá usualmente com os museus e os monumentos.
Ao falar em hibridação, isto é, a constante articu
lação entre elementos supostamente puros e discretos,
promovendo outros elementos, estruturas, processos
que apagam as certezas em relação às fronteiras de
marcadoras, conforme CANCLlNI (2006, pxix), somos
conduzidos a rever os lugares das coisas e dos processos.
Segundo Canclini:
SaútÚ nn Ekbau. Rio de Janeiro. v. 32. n. 78/79/80. p. 83-91, jan.ldez. 2008
90 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e culrura: que cultura:
odesenvolvimento moderno tentou distribuir os objetose os signos em lugares específicos: as mercadorias de usoatual nas lojas, os objetos do passado em museus de história, os quepretendem valerporseu sentido estético emmuseus de arte. Ao mesmo tempo, as mensagens emitickzspelas mercadorias, pelas obras históricas e artísticas,e que indicam como usa-las, circulam, pelas escolas epelos meios massivos de comunicações. Uma classificaçãorigorosa ckzs coisas, e ckzs linguagens que filam delas,sustém a organização sistemática dos espaços sociais emque devem ser consumidos. Essa ordem estrutura a vidados consumidores eprescreve comportamentos emodos depercepção adequados a cada situaçãtl. (2006, p. 300).
A descoleção é uma decorrência da hibridação e,
enquanro tal, implica em repensar os modos e usos dos
poderes:
A partir do que viemos analisando, uma questão setornafUndamental: a reorganização culturaldopoder.Trata-se de analisar quais são as conseqüênciaspolíticas ao passar de uma concepção vertical e bipolarparaoutra descentralizada, multideterminada, das relaçõessociopolítica. (CANCLlNI, 2006, p. 345).
Talvez rivesse valia a amplificação de uma descole
ção na Saúde Mental. Certamente, muitos daqueles que
por aí transitam e produzem seus modos de subjetivação
já o sabem ou já o fazem. Entendo que seja aí o lugar
em que a psicanálise ainda pode ter sua chance, não
bem como técnica de revelação do incógnito ou arte
interpretativa que busque esclarecer, mas como ação que
instaura descontinuidades e, portanto, devires. Tal como
convidam as palavras de Benilton Bezerra:
Oquedeterminará olugardapsicanálise no cenário socialckzs próximas décackzs será sua capacidade de atualizaraquilo que está na origem da sua clínica: a sustentação deum campodeprática quepõequalquer tipo de experiênciahumana sob o crivo da interrogação. (2002, p. 238).
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2Vale ressalrar que o conceiro de hibridação se rorna mais porenre à medida em que a hibridação não implica em junção roralizanre. bem como na proporçãoem que é um processo que implica em perdas e ganhos. Ainda segundo Canclini, "é necessário registrar aquilo que, nos enrrecruzamenros, permanece diferenre"(2006).
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Recebido, abr.l2008
Aprovado: jun.l200B
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