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Saúde em Debate ISSN: 0103-1104 [email protected] Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Brasil Simões Ribeiro, Alexandre Saúde Mental e cultura: que cultura? Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 83-91 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Rio de Janeiro, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773008 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

Universidade Federal de Minas Gerais - redalyc.org · Simões Ribeiro, Alexandre Saúde Mental e cultura: que cultura? Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre,

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Saúde em Debate

ISSN: 0103-1104

[email protected]

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

Brasil

Simões Ribeiro, Alexandre

Saúde Mental e cultura: que cultura?

Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 83-91

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773008

Como citar este artigo

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Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal

Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Alexandre Simões Ribeiro 1

1 Psicanalista; doutor em filosofia pela

Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG); professor da Universidade do

Estado de Minas Gerais (UEMG) no

campus da Fundaç.'io Educacional de

Divin6polis (FUNEDI).

[email protected]

ARTIGO ORIGINAL I ORIGINALARTICLE

Saúde Mental e cultura: que cultura?

Mental Health and culture: what culture?

"Em roda fronteira há arames rígidos e arames caídos"(CANCLlNI, Culruras híbridas, p. 349)

RESUMOA partir de uma crítica àsperspectivas mentalistasftrtementepresentes

entre os dispositivos da Saúde Mental, busca-se valorizar a articulação da Saúde

Mental coletiva com a cultura. Entretanto, questiona-se sobre que concepção de

cultura estaria perpassando com justeza os avanços no campo da Saúde Mental

coletiva. Há conceituações de cultura que restabelecem posições reacionárias e,

enquanto tais findam por se mostrar condizentes com o reftrço das concepções

mentalistas na Saúde Mental o que seria um retrocesso para posturas excludentes.

Porém, mostram-se mais proveitosas as concepções pós-estruturalistas de cultura.

Para tal são expostas linhas gerais dos conceitos de descoleção ehibridação apartir

das análises sobre a cultura empreendidas por Canclini.

PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Psicologia clínica; Saúde Mental

ABSTRACT From a criticaIpoint ofview to the mentalperspectives, strongly

operating between devices of Mental Health, there has been an attempt to

searching the joint ofcollective Mental Health with the culture. However, it is

put in question what conception ofculture would be supporting the advances in

thefield ofthe collectiveMental Health. There are culture conceptualizations that

reestablish reactionary positions and, thereftre, are combined with traditional

positions in the Mental Health, what would be a retrocession to the excluding

postures. However, the conceptions after-critical ofculture are more beneficial

The generallines ofdescollect concepts and hibridation from the analyses on the

culture are herein displayed in the words ofCanclini.

KEYWORDS: Psychoanalysis; Clinicalpsychology; Mental Health

Smíde mI Debate. Rio de Janeiro. v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan.ldt."Z. 2008

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Anotacao
Título do Artigo: SAÚDE MENTAL E CULTURA: QUE CULTURA? Autor(es): Alexandre Simões Ribeiro a_Alexandre_Simões_Ribeiro
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84 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e culrura: que cultura:

SALAS-AO-LADO

Nos últimos dez ou 20 anos, vem se percebendo

um interessante deslocamento nas rorinas e desafios que

compõem o campo da Saúde Mental no Brasil. Se for­

mos mais rigorosos, poderemos encontrar circunstâncias

propulsoras desse deslocamento em uma temporalidade

bem maior do que os dez ou 20 anos apontados. Contu­

do, percebe-se que, na última década, aquilo que ainda

era wn tanto quanto isolado, às vezes disperso, discreto

e, em alguns casos, incipiente e amórfico se impôs de

tal maneira que, atualmente, ultrapassa limites setoriais,

fronteiras profissionais e delimitações epistemológicas do

conhecimento e do fazer para se mostrar mais enredado•

e consIstente.

Aliás, como é sugerido neste artigo, parece que as

iniciativas de vanguarda presentes na Saúde Mental po­

deriam usufruir muito dos debates e circunstâncias vindos

de outros campos e problemáticas, não só relacionados à

doença, loucura, normalidade versus anormalidade. Em

suma, parece-me que uma forma de aprimoramento na

saúde mental, para além de aparatos adaptacionistas ou

normalizadores e taxonômicos, pode ser obtida se ousar­

mos visitar, por assim dizer, a 'sala-ao-Iado'.

Uma dessas salas-ao-lado, que vem apresentando

potentes desconstruções e agudas complexidades, é pre­

cisamente a que se mostra sensível às considerações pós­

estruturalistas acerca da cultura. Tais circunstâncias e

resensibilização dos olhares iniciaram-se, de certa forma,

com a tradição inglesa dos Estudos Culturais (cf. SILVA,

2004): era preciso pensar o que vinha a ser educação,

conhecimento e cultura face às novas condições dos

trabalhadores no mundo pós-guerra, demarcado pela

bipolaridade de um globo dividido por dois sistemas

Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 83-91. jan./de'L. 2008

de produção antagônicos. Um pouco mais adiante no

tempo, tudo isso se torna agudo, pois a esse cenário

incorporam-se os fenômenos decorrentes da mobilidade

das fronteiras (às vezes, com efeitos devastadores para as

pessoas mais diretamente envolvidas nestas questões), ou

seja, os fenômenos oriundos de um mundo pós-colonial

em que a presença e a produção de diferenças, bem como

a diversidade de identidades (o louco, a mulher, o negro,

o africano, o sul-americano etc.), colocam em derrocada

olhares e fazeres até então aparentemente estáveis e que

garantiam a verdade, a ordem e o futuro.

É justo sublinhar, porém, a necessária discussão

acerca da loucura (em especial) e da Saúde Mental (em

geral) de maneira não restrita às especialidades (a iden­

tidade-psicólogo, a identidade-médico, a identidade­

família etc.) que se voltam, em tese, para tais temas, já

devidamente abordada por alguns autores (LOBOSQUE,

2001; AMARANTE, 2003). De certa forma, essa parece ser

a tônica difusa, mas sempre presente, na abordagem do

modo psicossocial de atenção à Saúde Mental (COSTA­

ROSA; LUZlo; YASUI, 2003).

Certamente, a articulação das questões suscitadas

pelos caminhos da loucura (em todas as suas formas) em

relação à cultura tem como repercussão a produção deA ., •

um novo tom ou anuno e, ate mesmo, esperança em melO

à Saúde Mental. E isso, por si só, já é bastante louvável.

Contudo, se não nos indagarmos minimamente acerca do

que se entende por 'cultura', não conseguiremos ir além de

uma extravagante idolatria do 'até-então-marginal' (sob o

escopo de um ideal de compensação ou reparação sociais)

ou de uma frágil ética da tolerância, que nos conduz a

acolher, suportar e tolerar a diferença (por exemplo, sob

a forma do louco). Ora, se há de fato uma possibilidade

e o desejo de se fazer uma transformação no campo da

Saúde Mental que não resulte em niilismo ou em uma

hierarquização disfarçada ('somos tão superiores que acei­

tamos a diferença!'), trata-se de se produzir a diferença e

não exatamente aceitá-Ia piedosamente. Em suma,

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{ ..} procuramos deixar claro desde o início que oprojeto antimanicomial não se reduz a reftrmasassistenciais. Por eficazes que sejam, as reformas no

dmbito da assistência só adquirem um caráter trans­ftrmador quando se articulam com uma intervençãona cultura, tendo a recriação das idéias sobre a figurado louco ao mesmo tempo como objetivo eeftito de suaimplementação. (LOBOSQUE, 2001, p. 30).

Mas é vital estarmos atentos para a seguinte pos­

sibilidade:

o conceito de cultura é profimdamente reacionário.É uma maneira de separar atividades semióticas(atividades de orientação no mundo social e cósmico)em esferas às quais os homens são remetidos. Tais ati­vidades, assim isoladas, são padronizadas, instituídaspotencial ou realmente e capitalizadas para o modode semiotização dominante - ou seja, simplesmentecortadas de suas realidades políticas. (GUAlTARI;

ROLNIK, 2000, p. 15).

Ou ainda:

Atrás da falsa democracia da cultura continuam a seinstaurar - de modo completamente subjacente - osmesmos sistemas de segregação a partir de uma cate­goria geral da cultura. Os Ministros da Cultura e osespecialistas dos equipamentos culturais, nessaperspec­tiva modernista, declaram não pretender qualificarsocialmente os consumidores das objetos culturais, masapenas difimdir cultura num determinado camposocial, quefUncionaria segundo a lei de liberdade detrocas. No entanto, o que se omite aqui é que o camposocial que recebe cultura não é homogêneo. (GUAlTARI;

ROLNIK, 2000, p. 20).

O deslocamento

Qual seria o deslocamento que, em tese, justificaria

a freqüentação de salas-ao-Iado? Trata-se da migração de

uma concepção de clínica e de todos os seus aparatos

calcados em prerrogativas mentalisras para uma perspec-

RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura? 85

tiva que, em nítido contraste com aquela, apresentar­

se-ia mais porosa, aberta e extensiva, mas não por isso

isenta de rigor e, muito menos, de vigor. Reflexões

desenvolvidas entre nós por Jairo Goldberg (1992),

Paulo Amarante (2003), Abílio Costa-Rosa (2003),

Ana Pina (1994), Joel Birman (2005) e muitos outros,

certamente influenciados por uma série de movimentos,

tendências e suspeitas deflagradas por cenários que se

impuseram no período pós anos 1950, em muitos países,

apresentam-se como relevos distintos, mas integrantes

de um mesmo território; território este que já coloca em

xeque a própria noção entijecida de território, de espaço

com fronteiras discerníveis e de identidade fundante (por

conseguinte, de diferença). Ao articular essas circunstân­

cias, promovedoras de descentramentos, com o rápido

quadro que cheguei a ilustrar acerca da possibilidade de

se freqüentar salas-ao-lado, indagaríamos: quais são as

possibilidades de intervenção em Saúde Mental em um

mundo pós-colonial?

A esfera e a clínica estrita

Principalmente através dos diversos discursos e

ações que compõem a psicologia, algo se impôs em

nossos imaginários (e digo isto sem desconhecer a

amplitude desse campo, bem como a larga, e às vezes

discrepante, variedade de teorias que aí se apresentam

oficialmente desde a segunda metade do século 19): a

apreensão do psíquico como uma interioridade, como

algo que se apresenta como posse individualizada e,

em contrapartida, demarcadora de uma imprescindível

marca individualizante e, por isso, identitária.

O psíquico, como um emaranhado de traços, memó­

rias, fantasias, idéias e desejos privados, nos seduz há tem­

pos, fomentando nossos imaginários e adensando discursos

e ações que extrapolam de forma marcante o campo da

psicologia, ainda que sempre porte sua marca e presença

maiores: a psicologização. A consei tuição de identidades

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86 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e culrura: que cultura:

calcadas em atributos e afetações privados é uma decorrên­

cia direta desse homo psychologicus, finamente construído

ao longo da modernidade e aprimorado em um mundo

industrializado. Vejam como é recorrente, por exemplo, a

idéia de Freud (a princípio, um perspicaz anti-mentalista)

enquanto descobridor do inconsciente. Tão recorrente e

homogênea é essa imagem às prerrogativas do mentalismo

que fazemos dela uma marca de cientificidade (no sentido

de episteme, ou seja, saber articulado a uma coerência do

discurso) e caução das ações do psicanalista. Porém, uma

leitura mais atenta e aberta às curvaturas internas do que

Freud nos propôs pode verificar que a coisa mais estranha

que poderia lhe ser imputada é, precisamente, a condição

de ele ter sido o descobridor de algo que até então escapava

aos outros. Mas, para tanto, é preciso nos desvencilharmos

do seqüestro constante e naturalizado que nos traz uma

espécie de 'servidão voluntária' para, então, retomar a

incômoda expressão de La Boétie (1999). Essa servidão,

que implica em um curioso seqüestro, consubstancia-se

em mentalismo.

Todavia, é jusro frisar que a noção de interioridade

psicológica (e a operação psicologizante) encontra, an­

tes mesmo do estabelecimento inaugural do corpus da

psicologia a partir da segunda metade do século 19, seu

rastro em Santo Agostinho e em suas reflexões confes­

sionais. A partir de outro ângulo, podemos notar que

com Descartes (15%-1650), a interioridade é elevada

a uma dimensão que, em muito, convirá à instrumen­

talização da razão, ou seja, a esta localização da razão

como ferramenta que moverá, doravante, o mundo.

Aliás, essa imagem da mobilidade do mundo é utilizada

pelo próprio auror:

Arquimedes, para tirar oglobo terrestre de seu ligar etransportá-lo para outra parte, não pedia nada mais,exceto um ponto que jósse fixo e seguro. Assim, tereio direito de conceber altas esperanças, se jór bastanteftliz para encontrar somente uma coisa que seja certae indubitável. (DESCARTES, 1979, p. 91).

Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 83-91. jan./de'L. 2008

Para continuarmos a localizar grandes marcos e

momentos de inflexão que ainda hoje se impõem a

nós todos, contudo, não poderíamos nos descuidar de

Montaigne que possibilitou, com Ensaios e o tom que

ali se produziu, a ampliação da prática da introspec­

ção ao leitor comum como via de prospecção de uma

idiossincrasia enigmática. Está claro, contudo, que

Montaigne (1533-1592) não preconizou, nesse espaço,

o universal e o apodíctico, supostamente inscritos no

homem, debruçando-se sobre as opiniões, os costumes e

os dogmas de sua época, sensível à diversidade, ele soube

matricialmente chamar atenção para um caminho que

se abriu nas margens da filosofia, da literatura e da 'fala­

de-si' para o outro do externo, do dado a ver: o nosso

interior. A notória frase de Montaigne, "o que sou eu

sou para mim mesmo importa mais do que eu significo

para os outros" (1991, p. 47), ilustra precisamente a

dimensão que aí se inaugurou, não só em Montaigne

ou por ele, mas em seu tempo, desde então.

A ampliação desse processo para aqueles que nem

leitores eram, já que ele moldou imaginários e confor­

mou uma cultura (que, erroneamente, toma-se como

erudita) foi provocada, sob outra via, por Shakespe­

are que, segundo Harold Bloom (1995), nos levou a

reconhecermo-nos como dominados por uma profun­

didade obscura e insondável e, portanto, que nos levou

a entreoUVlr-nos.

o projeto de dominação, discernimento e ades­

tramento desse insondável não está em Shakespeare;

sejamos jusros, pois ele privilegia perspicazmente o

paradoxo, o oxímoro e a fugacidade como poucos, desde

então. Ele soube nos interiorizar possibilitando que, ao

mesmo tempo, nos descompletássemos e transformás­

semos. A colonização do psíquico interiorizado foi, a

despeito disso, uma decorrência da modernidade.

Curiosamente, debates que parecem ser bipolari­

zados, tal qual o estabelecido entre, as múltiplas escolas

materialistas (hoje, significativamente reerguidas com

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o respaldo dos diversos organicismos e marcadamente

paramentadas de um efeito de cientificidade espetacu­

larizadora) e as escolas introspeccionistas firmam-se, ao

que tudo indica, em um mesmo ponto arquimediano:

a posse (podendo ou não passar por desenvolvimentos,

regressões, etapas etc.) de uma essência que demarcaria

o espaço mental e o espaço do mental. A própria idéia

de mente ou de aparelho psíquico, na maioria das vezes,

é um corolário dessas perspectivas.

Para se opor a isso, uma boa parcela da filosofia,

sobretudo a anglo-saxã declaradamente influenciada por

Wittgenstein, plasmou uma crítica que denunciava o

'fantasma na máquina' (para retomarmos o tropo pro­

posto por Gilbert Ryle em 1949, em O conceito de mente;

cE Bouveresse, 1987) a título de patrocinador do mito

da interioridade. Mas sabemos também que esta crítica,

tendo trazido de início uma espécie de pharmakon aos

excessos essencialistas, acabou por solidificar uma certa,

e nefasta, reiteração do pragmatismo no campo teórico

e em muitas práticas, enclausurando-nos curiosamente

em outra forma de essencialismo.

Certamente, há razões para que essa imagem da

mente como espaço internalizado (ou /oros privado) seja

tão atraente e, às vezes, até mesmo se imponha como

óbvia, de forma a não haver outra maneira de se falar em

psiquismo, subjetividade e clínica senão sob esta óptica,

ou na tentativa desesperada de se desvencilhar da mesma,

adotar um trajeto diametralmente oposto que resultaria

em uma forma de behaviorismo radical.

O estabelecimento de espaços a serem conquistados,

demarcados e apreendidos em sua totalidade é uma das

importantes decorrências da razão instrumental e da mo­

dernidade. Surgindo o indivíduo como mola-propulsora,

produto e processo dessa cena, conforme Dumont (1985),

restava apenas categorizar, demarcar e apreender o espaço

interior hipostasiado sob a forma de mente.

'Como O espelho (ROSA, 1988, p. 65.)

RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura? 87

Esse imaginário que promulga a detenção privada e,

em extremo, solipsista, de uma substância-espaço mental

é tão impregnante que nem mesmo uma apreensão da

psicanálise, como já cheguei a sinalizar, conseguiu se des­

vencilhar inteiramente dela. Mesmo a densa afirmação

freudiana, proferida ao menos de três formas explícitas

ao longo de sua obra, e ecoada a cada circunstância

clínica que levasse o mesmo Freud a sempre reconstruir

a posição do psicanalista - "o eu não é senhor em sua

própria morada" (1976, p. 178) - não conseguiu le­

vantar barreiras densas à indexação da psicanálise a essa

ótica esférica acerca de nós mesmos.

Otica esférica de nós mesmos. O que isso significa?

Essa organização que nos conduz a um pathos dicotó­

mico: dentro-fora, sujeito-objeto etc. Nota-se, pois, que

as esferas à semelhança do que Guimarães Rosa (1988)

propõe acerca dos espelhos!, são muitas.

Quão comum é, entre psicanalistas, professores e

alunos de psicologia e o senso-comum, presenciarmos

a postulação do inconsciente menos como desconti­

nuidade e mais como conteúdo oculto, menos como

'impossibilidade de totalização' e mais como duplo que,

substancialmente, me habita?

Essas localizações sempre comportam efeitos clíni­

cos de grande envergadura. Em companhia de Foucault,

somos levados a compreender que na passagem do sé­

culo 18 para o 19, a medicina deu um salto que trouxe

implicações agudas que ultrapassaram em muito seus

espaços mais visíveis de operação. Instituiu-se então a

clínica médica moderna e foi a partir daí que muitos

outros campos obtiveram seus delineamentos. Tornou-se

possível, a partir da medicina, amparada principalmente

pelo mérodo anátomo-patológico, estabelecer um saber

sobre o individual mediado por seu sofrimento, a come­

çar pela instalação do mesmo em um corpo que já não

se contém: fisiologia, embriologia, anatomia e, por fim,

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dt."Z. 2008

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88 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e culrura: que cultura:

genética embaralhadas, mas convidando ao saber. Saber

este que não mais se volta para o estudo das doenças

tomadas como realidade em si, mas como específicas a

quem é afetado por elas. A clínica tornou possível uma

episteme do particular.

O passo seguinte, no campo das psicologias, foi

conectar esse aparato ao lugar da mente e engendrar, as­

sim, a clínica do psíquico. Dessa forma, a clínica pôde se

sentir inteiramente à vontade com sua própria linhagem

etimológica, fazendo com que o 'klinos' implicasse em

um reclinar-se hierarquicamente sob outro que estivesse

abaixo, deitado, recolhido em sua profundidade.

A dobra da esfera

Pois bem, o deslocamento ao qual me referi no

início desse texto tem íntima relação com O afrouxa­

mento, a derrocada desse espaço esférico, desse locus

mental. Na atualidade, começamos a ser atravessados

tanto para o melhor quanto para o pior, por um

outro pathos: não mais cabem tão hegemonicamente

narrativas sobre nós mesmos, bem como sobre os fe­

nômenos contemporâneos, que partam de perspectivas

solipsistas. O soli psista é aquele que nos propõe que

'meu mundo é meu mundo', tamanho o compromissoA· •• •••

com essenClas, apfloflsmos e categoflas unIversaIS que

independem da história e da política, ou seja, que não

se inscrevem em e através de processos contestados.

Solipso, ele segue sua rota hedonista apresentando-se

como a medida da vida.

Apresento a hipótese de que a crescente reAexão,

ação e interlocução que vêm se dando não mais na Saúde

Mental enquanto espaço bem demarcado, mas na 'Saúde

Mental coletiva' como espaço poroso e afeito a uma

constante reterritorialização do psíquico, não seria pos­

sível sem que se instale uma sincronicidade entre esses

processos e as reterritorializações implicadas nos estudos

voltados à cultura, desde um viés antiessencialista.

Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 83-91. jan./de'L. 2008

Mas, muitas vezes, o avesso do interior pode nos con­

duzir a uma superfície ou exterioridade que insiste em se

contrapor àquela mesma interiorização, em uma espécie de

platonismo às avessas. Não é a essas paragens que lançamos

o nosso olhar, na busca de uma possível mitigação quando

não-desconstrução do mito da interioridade. Compreendo

que um psiquismo que se coloca no 'entre-dois' e não exa­

tamente em um in ou out seria uma rora viável e oblíqua

aos poderes dos discursos essencialistas.

Porém, sobretudo a partir da performática concilia­

ção de mitos cientificistas (talvez o maior de todos seja

a possibilidade de a ciência, através de uma englobante

parafernália tecnológica, scannear o espaço) com os

atuais modos de produção, circulação e consumo de

bens (rapidamente chamados de globalização), temos

a inundação de explicações e imagens fisicalistas do

funcionamento da vida em todos os seus aspectos e,

em especial, de nosso pathos. A exacerbação do espaço

individual, e não mais opaco ao organismo, colocou O

sujeito (ainda sobremaneira hipostasiado) na pele.

Benilton Bezerra Júnior (2002) argumenta perspi­

cazmente a forma como palavras e processos demarca­

dores de alguns aspectos de nossa condição, tais como

tristeza, desencanto, angústia e percalços da vida, deram

lugar a expressões mais abertas à técnica, à correção e à

adaptação, tais como 'depressão', 'clistimia', 'síndrome

do pânico', 'ansiedade' e 'afetivo-bipolar'. Nitidamente,

temos o mercado aberto a todos os 'especialistas do bem­

estar' que buscam um patamar de qualidade total, versa­

tilidade e assepsia do psiquismo. Eis aqui um fantasma

que, ao sair da máquina, assombra a Saúde Mental.

O mal-estar ganha, pois, uma visibilidade per­

formática (e as terapêuticas, idem). Nas palavras de

Benilton Bezerra (2002, p. 235):

Se na cultura do psicológico e da intimidade o sofri­mento era experimentado como conflito interior oucomo choque entre aspirações e desejos reprimidos e as

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regras rígidas das convenções sociais, hoje o quadro éoutro. Na cultura das semações edo espetdculo, o mal­estar tende a se situar no campo da performancefísicaou mentalfilha, muito mais que em uma interiori­dade enigmdtica que causa estranheza. Os quadrossintomdticos preva/entes parecem atestar isso: finô­menos aditivos (incapacidade de restringir ou adiara obtenção de satisfàção, que se torna compulsivapelovia das drogas ilícitas, dos medicamentos, do comumo,da gindstica e do sexo), tramtornos vinculodos à ima­gem ou d experiência do corpo (bulimias, anorexias,ataques de pânico), depressões menores e distimias(ausência de desejo, motivação, empenho).

SAÚDE MENTAL COLETIVA E CULTURA:

ENTRANDO E SAINDO DA SALA-AO-LADO

Uma das características mais marcantes do campo

da Saúde Mental coletiva, bem como de todas as possi­

bilidades de afetação que ali se colocam não mais sob a

primazia do mentalismo, mas em suas clivagens, é que

as práticas não seguem protocolos, estruturas, mapas

rígidos e previamente estabelecidos. Em relação ao mo­

delo de clínica calcado no mentalismo essencialista, diria

que no modo psicossocial os conceitos, ações, perguntas

e dúvidas estão em estado de 'descoleção', isto é, estão

desterritorializados quando cotejados com a situação

anterior. Descolecionar leva a 'deslocar', 'decolar', 'des-

colar' e, muitas vezes, a 'des-escolarizar'.

Na Saúde Mental coletiva, portanto, presenciamos

muitas práticas à espera de uma conceituação, bem como

de novos modos de conceituar e pensar. Conceituação,

aqui, não implica em um aparato teórico que conduza

à representação do real em suas minúcias para melhor

compreendê-lo e, então, submetê-lo a um poder de

dominação. Comporta, sim, a possibilidade constante

de tornar a novidade algo transmissível.

RIBEI Rü, A.S. • S:ll',de Menlal e cultura: que culrura~ 89

Compreendo que os profissionais atuantes na área

da Saúde Mental possam obrer uma interessante dobra

em seus tecnicismos realizando visiras à sala-ao-lado.

Um empolgante espaço de desconstrução de categorias

e perspectivas essencialisras vem sendo empreendido

nas problematizações acerca da cultura. Dentre diversas

possibilidades que participam de um amplo quadro (que

poderíamos denominar pós-crírico ou pós-estruturalista

a rítulo de uma nomeação um ranto quanto precária),

encontramos a argumentação de Nestor García Canclini

em seu Livro Culturas híbridas: estratégias para entrar e

sair da modernidade.

Ali, Canclini empreende uma lúcida crítica em rela­

ção ao tratamento dicorômico e essencialista reservado,

classicamente, à cultura (suas produções, seus processos,

suas lógicas e demarcações), mas, notemos bem: não só

à cultura. Recorrendo a dois conceitos mutuamente im­

plicados - os conceitos de 'hibridaçãO' e de 'descoleção'

- Canclini procura argumentar que não mais podemos

compreender e lidar com a cultura a partir de dualismos

(por exemplo, cultura erudira/cultura popular, cultura

massiva/cultura popular, hegemônico/subalterno,

tradicional/moderno etc.) e, muito menos, a panir da

suposta segurança dos lugares em que ela é produzida

ou, a princípio, contida. Trara-se, por conseguinte, de

se desomogeneizar a culrura.

Nesse sentido, Canclini apresenta uma forte argu­

mentação que questiona o eStatuto de locais destinados

à cultura e à preservação da história ou do patrimônio

cultural de um povo, uma etnia ou grupo, tal como se

dá usualmente com os museus e os monumentos.

Ao falar em hibridação, isto é, a constante articu­

lação entre elementos supostamente puros e discretos,

promovendo outros elementos, estruturas, processos

que apagam as certezas em relação às fronteiras de­

marcadoras, conforme CANCLlNI (2006, pxix), somos

conduzidos a rever os lugares das coisas e dos processos.

Segundo Canclini:

SaútÚ nn Ekbau. Rio de Janeiro. v. 32. n. 78/79/80. p. 83-91, jan.ldez. 2008

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90 RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e culrura: que cultura:

odesenvolvimento moderno tentou distribuir os objetose os signos em lugares específicos: as mercadorias de usoatual nas lojas, os objetos do passado em museus de his­tória, os quepretendem valerporseu sentido estético emmuseus de arte. Ao mesmo tempo, as mensagens emitickzspelas mercadorias, pelas obras históricas e artísticas,e que indicam como usa-las, circulam, pelas escolas epelos meios massivos de comunicações. Uma classificaçãorigorosa ckzs coisas, e ckzs linguagens que filam delas,sustém a organização sistemática dos espaços sociais emque devem ser consumidos. Essa ordem estrutura a vidados consumidores eprescreve comportamentos emodos depercepção adequados a cada situaçãtl. (2006, p. 300).

A descoleção é uma decorrência da hibridação e,

enquanro tal, implica em repensar os modos e usos dos

poderes:

A partir do que viemos analisando, uma questão setornafUndamental: a reorganização culturaldopoder.Trata-se de analisar quais são as conseqüênciaspolíti­cas ao passar de uma concepção vertical e bipolarparaoutra descentralizada, multideterminada, das relaçõessociopolítica. (CANCLlNI, 2006, p. 345).

Talvez rivesse valia a amplificação de uma descole­

ção na Saúde Mental. Certamente, muitos daqueles que

por aí transitam e produzem seus modos de subjetivação

já o sabem ou já o fazem. Entendo que seja aí o lugar

em que a psicanálise ainda pode ter sua chance, não

bem como técnica de revelação do incógnito ou arte

interpretativa que busque esclarecer, mas como ação que

instaura descontinuidades e, portanto, devires. Tal como

convidam as palavras de Benilton Bezerra:

Oquedeterminará olugardapsicanálise no cenário socialckzs próximas décackzs será sua capacidade de atualizaraquilo que está na origem da sua clínica: a sustentação deum campodeprática quepõequalquer tipo de experiênciahumana sob o crivo da interrogação. (2002, p. 238).

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2Vale ressalrar que o conceiro de hibridação se rorna mais porenre à medida em que a hibridação não implica em junção roralizanre. bem como na proporçãoem que é um processo que implica em perdas e ganhos. Ainda segundo Canclini, "é necessário registrar aquilo que, nos enrrecruzamenros, permanece diferenre"(2006).

Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 83-91. jan./de'L. 2008

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Recebido, abr.l2008

Aprovado: jun.l200B

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SaÚlk,m o,batr, Rio d~ Janeiro. v. 32, n. 78179/80, p. 83-91, jan.ldo.. 2008