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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ANA CAROLINA AMARAL DE PONTES EDUCAÇÃO PARA CIDADANIA: uma análise sobre o aprendizado para a participação e democracia, numa leitura arendtiana. RECIFE 2011

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO · 2019. 10. 25. · 2011 . 2 ANA CAROLINA AMARAL DE PONTES EDUCAÇÃO PARA CIDADANIA: ... extensão Vestibular Solidário (UFPE- C.E.) onde dividimos

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE EDUCAÇÃO

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

    ANA CAROLINA AMARAL DE PONTES

    EDUCAÇÃO PARA CIDADANIA: uma análise sobre o aprendizado

    para a participação e democracia, numa leitura arendtiana.

    RECIFE

    2011

  • 2

    ANA CAROLINA AMARAL DE PONTES

    EDUCAÇÃO PARA CIDADANIA: UMA ANÁLISE SOBRE O APRENDIZADO

    PARA A PARTICIPAÇÃO E DEMOCRACIA, NUMA LEITURA ARENDTIANA

    Dissertação apresentada ao Programa de

    Pós-Graduação em Educação, como

    requisito parcial para obtenção do título

    de Doutora em Educação. Área de

    concentração Teoria e História da

    Educação.

    Orientador: Prof. Dr. Edilson Fernandes

    de Souza

    RECIFE

    2011

  • 3

    Catalogação na fonte

    Bibliotecária Andréia Alcântara CRB-4/1460

    P813e Pontes, Ana Carolina Amaral de.

    Educação para cidadania: uma análise sobre o

    aprendizado para a participação e democracia, numa leitura

    arendtina / Ana Carolina Amaral de Pontes. – Recife: O

    autor, 2011.

    167 f ; 30 cm.

    Orientador: Edilson Fernandes de Souza.

    Tese (Doutorado) - Universidade Federal de

    Pernambuco, CE. Programa de Pós-graduação em

    Educação, 2011.

    Inclui bibliografia e Anexos.

    1. Sociologia educacional. 2. Cidadania. 3. Arendt,

    Hannah, 1906-1975. 4. UFPE - Pós-graduação. I. Souza,

    Edilson Fernandes de. II. Título.

    CDD 370.19 (22. ed.) UFPE (CE2012-31)

  • 5

    À Hannah, para que se torne

    uma mulher repleta de fortaleza

    e ternura.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Ao longo de quatro anos de começos e recomeços, nas alegrias e angústias

    que sempre permeiam um trabalho acadêmico, além do suporte parcial da bolsa

    REUNI, torna-se indispensável agradecer às pessoas que cruzaram meus caminhos:

    Ao criador da escola indelével de matrícula obrigatória, Deus, por nos

    destinar à felicidade a despeito da indisciplina a que nos entregamos e que

    nos afasta dela.

    Às duas pontas de minha vida, como não poderia deixar de ser, minha mãe,

    Teresa, e meu filho Hanniel, ensinando, aprendendo, reensinando,

    reaprendendo...

    Ao parceiro do difícil e encantador aprendizado da vida a dois, Hainer.

    Ao orientador e Edilson Fernandes, por acreditar no meu potencial, por crer

    na possibilidade de superação de uma educanda-educadora, e me

    apresentar caminhos possíveis na minha busca teórica e prática dentro desta

    tese, não haverá agradecimento suficiente para tanto.

    A equipe do Programa de Pós Graduação em educação da UFPE, pelo

    atendimento carinhoso e interessado, em especial a Shirley, Rebeca, e

    Morgana, que torceram pela minha chegada.

    Aos/as colegas de curso e educadores/as, em especial as impressões

    especiais trazidas pelas professoras Alice Botler, Aída Monteiro, Márcia

    Ângela, Ferdinand Rohr e a “dupla” Márcia e Batista que atraem estudantes

    de tantos cursos.

    A meus alunos e minhas alunas nestes oito anos como educadora, em

    especial as crianças e jovens de Jordão Baixo, nos nossos domingos no

    Centro Espírita Hermelinda Lopes onde vivenciei na prática os paradoxos da

    teoria na aplicação prática; e os/as jovens sonhadores/as do projeto de

    extensão Vestibular Solidário (UFPE- C.E.) onde dividimos as limitações e

    desafios da universidade pública e construímos juntos/as a esperança de um

    acesso justo a uma educação de qualidade.

  • 7

    RESUMO

    Passando pelas concepções históricas e conceituais sobre cidadania, e de experiências na educação brasileira, observa-se que o tema “educar para cidadania” vai além de educar para democracia. Esta tese a compreensão de conteúdo, as relações com a comunidade e o fomento de espaços de discussão democrática na escola como elementos indispensáveis para a educação para cidadania. Considerando que o discurso educacional privilegia esta última, as pesquisas nesta tese tornaram possível perceber a distância entre teoria e prática no discurso de docentes, secretarias de educação e comunidade. Os objetivos desta tese estão compreendidos em refletir sobre a polissemia do conceito de cidadania, além do que tem sido identificado como seu conteúdo e sua prática na esfera escolar na realidade pernambucana buscando uma concepção para além da educação para democracia ou apenas uma disciplina. Tomando por base o pensamento de Hannah Arendt, busca por fim propor uma compreensão da educação para cidadania que envolva a escola como um todo, incluindo discussões sobre espaços democráticos, transversalidade e relações discentes-docentes e comunidade.

    Palavras-Chave: Educação para cidadania, democracia, espaços públicos, Hannah

    Arendt

  • 8

    ABSTRACT

    Going through the historical and conceptual ideas about citizenship, education and experience in Brazil, it is observed that the theme of "educating for citizenship" goes beyond educating for democracy. This thesis understanding of content, community relations and the promotion of democratic spaces for discussion in school as indispensable elements of education for citizenship. Whereas the latter focuses on educational discourse, research in this thesis made it possible to realize the gap between theory and practice in the discourse of teachers, education departments and the community. The objectives of this thesis are included in reflecting on the polysemy of the concept of citizenship, beyond what has been identified as its content and its practice in the field school in Pernambuco seeking a reality beyond conception of education for democracy or just a discipline. Based on the thought of Hannah Arendt, seeking finally to propose an understanding of citizenship education for the school as a whole, including discussions of democratic spaces, transversality and student-teacher relationships and community.

    Keywords: Education for citizenship, democracy, public spaces, Hannah Arendt.

  • 9

    SUMÁRIO

    Introdução .............................................................................................................. ..10

    1. Cidadania- ou o que não seja ............................................................................. 25

    1.1 Significados históricos e axiológicos para cidadania........................................25 1.2 Da cidadania escalonada..................................................................................38 1.3 Da cidadania. enquanto perda..........................................................................44

    2. A república na escola e a educação para cidadania ........................................ 51

    2.1 Da crítica à educação progressista desenvolvida por Arendt.........................51

    2.2 Visões (ou ausência delas) na educação para cidadania na história da educação brasileira...........................................................................................59 2.3 Fundamentos da educação para a cidadania..................................................71

    3 REPRESENTATIVIDADE E DECISÃO - DIVERSOS TONS DE UM DISCURSO. 78

    3.1 Experiências de representatividade brasileira..................................................78 3.2 Do espaço e do desafio da fala pública...........................................................82 3.3 Um falso presente: sobre participação decisória nos espaços públicos......94 3.4 Desafio da representatividade republicana dos conselhos no Brasil e seu reflexo na educação para cidadania............................................................106 3.5 Algumas palavras sobre representatividade na esfera escolar brasileira....................................................................................................110

    4 Educar para cidadania ....................................................................................... 116

    4.1 Paradigmas e contexto escolar da educação para cidadania numa república indefinida...............................................................................................................116 4.2 Mestre cidadão/ã?..........................................................................................120

    5. Qual cidadania?Resultados possíveis de pesquisas teóricas e práticas .... 129

    5.1 Objetivos,campos e seleção das pesquisas empreendidas.........................129 6. Considerações finais: uma proposta de educação cidadã participativa...... 144

    7 Referências utilizadas ........................................................................................ 163

    ANEXOS ................................................................................................................. 168

  • 10

    Introdução

    Discutir a possibilidade de educar para cidadania garante uma variada

    gama de perguntas. Grande pode ser o debate sobre como este pretenso ou esta

    pretensa “candidata/o” à cidadã/ão passaria do estado inicial para o “desejado”. O

    que significa educação para cidadania? O que poderia compreender educar para ser

    cidadão, cidadã; ou melhor: para exercer a cidadania?

    Naturalmente, a realidade brasileira nos demonstra o obstáculo da prática

    da cidadania através das possibilidades emancipatórias disponibilizadas

    formalmente pelo Estado onde a obediência ao direito estabeleceria essa premissa

    pouco contemplada no âmbito da participação real hodiernamente mais associada a

    orçamentos participativos, discussões em conselhos e redes de debate apoiadas

    pelo mesmo Estado. A despeito de um discurso estatal favorável à efetivação da

    cidadania, participação e inclusão; a concretização deste modelo tem sido limitada e

    seleta, uma vez que tem estado baseada no reconhecimento do sujeito e de ser

    direito pelo Estado, estagnando a construção.

    Os objetivos desta tese estão compreendidos em refletir sobre o conceito

    de cidadania, o que tem sido identificado como seu conteúdo e prática na esfera

    escolar e sua relação para além da educação democrática ou educação para

    democracia. Busca propor uma compreensão da educação para cidadania que

    envolva a escola como um todo. Os marcos teóricos utilizados como pontos de

    partida na temática de Política e Direitos constituíram-se na obra de Hannah Arendt

    e a compreensão inicial educativa do texto “A crise na educação”. Nas conclusões,

    buscamos instrumentalizar a abordagem na noção de competências, para esclarecer

    a transposição da teoria para uma proposta real de educação para cidadania.

    Segundo Moretti1 a escola, além de dedicar-se a ensinar os saberes

    científicos e habilitar pessoas para a vida profissional, deve ter um objetivo maior:

    preparar para o exercício de seus direitos. Contudo, apesar de ser um espaço

    privilegiado para tal fim, o exercício da cidadania não se prende apenas às carteiras

    de sala de aula.

    Nesta caminhada, discutimos a proficuidade de “ondas de cidadania”

    algumas que pouco possuem de formação; além da fluidez da educação para

    cidadania enquanto conteúdo, e o quanto esta construção, na realidade, depende de

    1 MORETTI, Sergio L. Amaral. A escola e o desafio da modernidade. Revista ESPM, São Paulo,

    vol.6, jan./fev,1999.

  • 11

    uma concepção mais ampla não apenas de democracia escolar, mas também com

    sua relação com as instâncias de pauta e decisão na comunidade que se articulam

    com a escola.

    As experiências que motivaram essa tese foram vividas em oficinas no

    terceiro setor como educadora popular de direitos a crianças e adolescentes por três

    anos; bem como em projeto de extensão do Centro de Educação da UFPE (dois

    anos); como educadora infantil voluntária em comunidade no Recife por oito anos e

    por fim de vivência na graduação de Direito e Pedagogia, tanto como aluna como

    professora.

    Na busca teórica, este trabalho representa uma verticalização em temas

    anteriormente refletidos por ocasião de curso de mestrado, em temas como

    cidadania, direitos, acesso à fala e espaços públicos.

    Essas experiências chamaram a atenção para idéias que há muito se

    discutem no âmbito do ensino não formal, mas que no espaço das escolas parece-

    nos oscilar entre a transversalização sem maior compromisso ou disciplinarização

    sem estabelecer as ligações indispensáveis com a escola e a sociedade como um

    corpo vivo. Também na experiência da graduação em Direito, foi perceptível um

    formalismo exacerbado travestido por vezes de “pureza metodológica” permeando

    até alguns projetos de extensão, onde parece sugerir implicitamente a divisão entre

    conhecer “direitos” e tornar-se um profissional da área (e velar por esse

    conhecimento tornando-o pouco acessível, como “reserva” intelectual) ou

    profissional.

    Por ocasião destas reflexões, um hiato em especial aninhou a idéias deste

    trabalho: o que seria “ensinar” cidadania a crianças e jovens? A escola ensinaria

    uma pessoa a ser cidadã ou ensinaria como exercer a cidadania? O que seria a

    competência cidadã? Quais as relações estabelecidas entre o ambiente da escola e

    os espaços dos conselhos vistos por Arendt como um espaço mais próximo de uma

    representatividade democrática real?

    Com experiência adquirida anteriormente na leitura arendtiana, tomamos

    por fio condutor Hannah Arendt, posto que pretendemos focar o aspecto político do

    educar para a cidadania, no desenvolvimento de competências ligadas à crítica e

    auto-crítica, da compreensão democrática (também dos instrumentos, não somente

    democracia enquanto conceito ou prática) e sobretudo da fala pública, incluindo

  • 12

    observações sobre as relações (ou ausência delas) com espaços como o Conselho

    Tutelar e o Escolar.

    Diante da extensa lista de publicações, artigos, resumos, aulas, eventos e

    cursos cujo tema parece ser a cidadania, estes por vezes parecem desgastar o

    termo em direções tão variadas quanto complexas.

    Além de equilibrar-se na corda bamba da polissemia atual da palavra,

    também utilizamos a concepção de participação, que, por sua vez, também

    contemplada freqüentemente no vocabulário político, acadêmico e popular de nossa

    contemporaneidade sofrendo desgastes consideráveis de conteúdo e identificação,

    por essa razão dedicamos parte do trabalho a aprofundar o debate sobre o que se

    identifica por cidadania, bem como o que se identifica por participação.

    Do ponto de vista prático, a cidadania esta intrinsecamente ligada à

    participação, e por isto constitui um dos pontos de nossa pesquisa compreender o

    que requer esta cidadania que vislumbra e proporciona a competência para

    participação através de conteúdo e prática. Nesse sentido compreendemos que uma

    escola forma para cidadania também ao proporcionar aos alunos as competências

    para intervirem, no presente espaço da escola, e posteriormente, nos espaços onde

    suas vidas sociais e individuais se decidem.

    A Secretaria de Educação de Pernambuco, ao definir o Plano Estadual

    reafirmou a educação enquanto instrumento de formação da cidadania, como

    princípio norteador da política educacional2.

    O Plano Estadual de Educação concebe o ensino cidadão como “a oferta

    de um ensino que apresente o conhecimento, a tecnologia, a arte e cultura como

    processos históricos, e o aluno passe a ser o centro das preocupações da escola e o

    mesmo tenha seus direitos assegurados”3

    A escola é vista como um local que “explora e aprofunda laços de

    solidariedade e interdependência inerentes à atividade pedagógica, aberta e

    inovadora, que instiga a compreensão conceitual e a organização do pensamento e

    tematiza o mundo do trabalho, todavia, precisa ser construída de imediato (...)”

    2 Esse princípio ganha mais força quando é reconhecido que “a educação de qualidade é direito de

    todos e aponta o Ensino Fundamental como direito social básico e uma necessidade social imperiosa” (P.E.E; p. 10). A definição desses princípios recebeu influência da nova Lei e Diretrizes e Bases, pois, de acordo com o art. 2 da LDB: “A educação é dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho”. 3 Plano Estadual de Educação, p. 11.

  • 13

    Observamos que a inclusão deste princípio norteador é bastante

    auspiciosa e positiva, ainda que em seu texto, ainda não sinalize tão bem o aluno/a

    na interação com a pauta destes direitos, e sim na “recepção” deles, tendo-os

    “assegurados”.

    Polemizando as necessidades, em 1999 houve um pequeno embate entre

    a Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco e o Conselho Estadual de

    Educação sobre a forma do aprendizado da educação para cidadania, tendo o

    primeiro instituído a obrigatoriedade de uma disciplina; e o último criticado tal

    iniciativa, relembrando que o conteúdo já era contemplado de forma transversal em

    diversos instrumentos, como os citados no parágrafo anterior. Disciplina, princípio ou

    conteúdo transversal, isto definiria o aprendizado da cidadania? Enquanto disciplina

    gera até certa curiosidade: como avaliar se alguém está “aprovado/a” na disciplina

    cidadania?

    Nascemos cidadãos/ãs ou nos tornamos? Cremos que, se há algo que se

    “torna”, parece ser é nossa capacidade de exercer a cidadania. Se a escola

    representa muitas vezes uma preparação para os papéis que desempenhamos na

    próxima fase da vida enquanto adultos/as, a escola pode ser este espaço onde se

    treina para ser cidadão/ã? Se a cidadania envolve participação, a preparação na

    escola oferta possibilidades de compreender a ligação entre cidadania e democracia

    enquanto pessoa4 de direitos? É verdade que talvez o ensino e o alcance destes

    papéis sejam subjetivos. Todavia, é nossa intenção oferecer uma proposta para o

    debate, fortalecendo uma concepção de cidadania ativa e não passiva, receptora de

    direitos, ligada pelo vínculo espacial ou político (freqüentemente associadas em

    cidadania enquanto direitos territoriais e de nacionalidade).

    A discussão da construção da cidadania no espaço escolar - e o preparo

    para fora deste - é valiosa uma vez que compartilhamos a idéia de que o espaço

    público possui como função iluminar a conduta humana, onde se estabelece a

    “permissão para cada um mostrar para pior e para melhor, quem é e o do que é

    capaz”5. A escola representa um espaço semi-público que pode permitir a

    preparação para compreender e apropriar-se melhor dos espaços públicos de

    discussão, que também atuam produzindo direito, além dos canais formais. Nesse

    4 Pela escolha da linguagem inclusiva que permeia toda esta tese, freqüentemente será optado pela

    expressão pessoa em detrimento de “sujeito”, “indivíduo” ou expressões mais identificadas com o gênero masculino. 5 ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 8.

  • 14

    sentido não se trata naturalmente de formar tecnocratas do direito, mas cidadãos e

    cidadãs capacitados e reflexivos, interessados em participar em canais variados –

    do conselho escolar à rádio comunitária, por exemplo.

    Esta tese defende que a cidadania deve contemplar não apenas a

    perspectiva da emancipação individual, da educação para libertação das

    necessidades pessoais, materiais ou morais, mas a perspectiva da vida em

    conjunto, da transformação da realidade em favor da coletividade, possibilitando às

    pessoas tomarem parte de um processo de visibilidade conjunta, que também abre

    as portas para a alteridade, ao minorar a indiferença causada pelo não

    reconhecimento da outra pessoa como cidadão ou cidadã.

    Numa colocação tocante, Gramsci fala desta invisibilidade

    No entanto, quando ouvimos dizer que os turcos tinham massacrado centenas de milhares de armênios teríamos sentido o estremecimento lancinante que experimentamos que os nossos olhos caem sobre um pobre corpo martirizado ou que sentimos dolorosamente logo que os alemães invadiram a Bélgica? É um grande mal não ser conhecido. Significa permanecer isolado, encerrado na própria dor, sem possibilidade de ajuda, de conforto. Para um povo, para uma raça, significa a dissolução lenta, o aniquilamento progressivo de qualquer vinculo internacional, o abandonado a si mesmo indefeso e indigente (...). assim, a Armênia, nos seus piores momentos, não teve mais que algumas afirmações platônicas de compaixão por ela, ou de desprezo por seus carrascos: os massacres armênios tornaram-se proverbiais, não passavam, porem de palavras ocas que não conseguiam criar fantasmas e imagens vivas de homens de carne e osso

    6”.(grifos nossos)

    Neste trabalho usamos o conceito arendtiano de cidadania como “direito a

    ter direitos” e, nessa compreensão não-restritiva da autora, juntamente com a

    negação de um conteúdo fechado “a receber” ou “a assegurar”, como descrito por

    Van Gusteren, que delineou ser a mesma uma “prática conflituosa vinculada ao

    poder que reflete as lutas sobre quem poderá dizer o que, ao definir quais são os

    problemas comuns e como serão tratados7.

    Em nosso trabalho, além da opção pela linha arendtiana, traçaremos

    algumas observações necessárias sobre a diferença entre concepções de

    democracia já conhecidas, mas que ainda não atenderiam a visão que defendemos,

    como a influência democrática deweyana ou a democracia restrita exclusivamente

    ao espaço escolar.

    6CAVALCANTI,Pedro e Piccone, Paulo, organizadores, Armênia in Convite à leitura de Gramsci.

    Rio de Janeiro: Achiamé, 1984, p.101. 7 VAN GUNSTEREN, Notes in a Theory of Citizenship in Pierre Birnbaum, Jack Lively e Geraint

    Parry (orgs). Democracy, consensus and social contract. London: Sage. 1978, p. 27

  • 15

    A escolha por Johanna Arendt possui por pano de fundo toda sua

    trajetória, em especial sua compreensão de democracia e participação na vida

    pública, que nos afigura mais aderente as nossas idéias, ainda que não nos

    furtemos de, em alguns momentos, apontar-lhes a necessária crítica.

    Cientista política8, fora discípula de Heidegger, Husserl e Karl Jaspers e

    empreendeu durante toda sua vida uma profunda reflexão sobre a teoria e a prática

    política, tendo suas obras reiteradamente debatidas e conhecidas, devido a sua

    percepção e agudeza de crítica9. Sua visão sobre a educação ainda constitui um

    item menos estudado em sua obra, possivelmente pelo enfoque menos explícito da

    autora, no que tange a não possuir obra particular sobre o tema. Ainda que o tema

    da cidadania, em matéria de quantidade de produções, careça de originalidade

    (embora não tão carente de profundidade) falta, a nosso ver, uma maior freqüência

    de análise do pensamento da autora a respeito do tema; o que torna a escolha

    dotada de certa originalidade10. Arendt não exerceu a Pedagogia enquanto escolha profissional, todavia

    em mais de uma ocasião a oportunidade de vivenciar questões práticas despertou

    sua sensibilidade para a questão da educação, da “apresentação do velho mundo

    aos novos”, em sua concepção11. Após abandonar a Alemanha, trabalhou em Paris

    em uma organização que se dedicava a transferência de crianças judias da

    Alemanha para a Palestina, nos kibbutz.

    Falando da experiência, revelou:

    8 Optamos por utilizar da posição onde mais se identificava, recordando a entrevista à Günter Gaus

    em outubro de 1964 onde recusa o título de filósofa. Ainda assim, recordamos que segundo lembra Lafer, como ela mesmo afirma em uma correspondência a Gershom Sholem, “se posso falar em ‘vir de algum lugar’ este será da tradição da filosofia germânica” prefácio de A Condição Humana.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983, III. 9 Pelo visto, bastante precoce: na Literacy Enciclopedy, site mantido por especialistas oriundos de

    universidades pelo mundo, Kelsey Wood em brevíssima biografia observa que ao perder no mesmo ano de 1913 seu pai e seu avô, registra em diário sua mãe, Martha, que a menina de oito anos a instava a consolar-se argumentando: “lembre-se, mamãe, que isto acontece a muitas mulheres.” Disponível em , acessado em 20 de abril de 2010. 10

    Segundo pesquisa no Banco de Teses do Ministério da Educação, foram realizadas, de 1987 em diante, em todos os cursos de pós graduações cadastrados, quarenta e quatro dissertações e vinte e três teses com alguma ligação teórica com Hannah Arendt e Educação. Destas, apenas cinco dissertações abordam a cidadania como foco sob a luz da autora, apenas uma delas foi defendida no C.E. da UFPE, em 2010. No campo das teses, existem duas teses com a temática da educação e autonomia, uma apenas uma sobre cidadania em relação ao trabalho (considerando-se, mais uma vez, as que trazem abordagem sob Arendt). Pesquisa realizada em setembro de 2011. 11

    ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p. 225.

    http://www.litencyc.com/php/speople.php?rec=true&UID=143

  • 16

    Eu sentia então um profundo respeito por elas. As crianças ali recebiam uma formação profissional acompanhada de uma readaptação escolar. Cheguei mesmo a introduzir, às escondidas, por uma ou duas vezes, crianças polonesas. Essa era a regra do meu trabalho; era um trabalho social, educativo. Haviam instalado grandes acampamentos por todo país, onde preparavam as crianças e onde elas também faziam cursos, aprendiam a trabalhar a terra e tinham, sobretudo, que crescer. Era preciso vesti-las dos pés à cabeça, cozinhar para elas, conseguir-lhes papéis, negociar com seus pais – e principalmente conseguir dinheiro. Essa tarefa em grande parte cabia a mim. Eu trabalhava em colaboração com os franceses. Eis mais ou menos em que consistiam nossas atividades

    12.

    Por vezes, inclusive, antes de opinar sobre o tema, rendeu um breve

    mea-culpa da ausência de formação na área13, entretanto, suas observações sobre

    educação têm lugar em obras como em Da revolução, ou A condição humana.

    Algumas características do pensamento de Arendt sobre o tema podem

    ser, desde logo, observadas, o que aqui se explicita, por clareza: não esperemos

    dela qualquer louvamento de soluções revolucionárias na educação, posto que a

    mesma demonstra sérias prevenções em relação da acentuada paixão pela

    aplicação imediata de novas práticas pedagógicas, em detrimento da observação

    cuidadosa da teoria em si. O que a autora demonstrou foi certa desconfiança da

    aplicação excessivamente prática de novas teorias pedagógicas, sem o crivo de

    uma análise teórica corroborada pelo tempo e pelo bom senso14.

    Acreditamos que talvez este pensamento remeta ao medo da autora do

    não-pensar que, protegido, pode levar ao ancorar-se a qualquer conjunto de regras

    de condutas prescritas num dado momento. Arendt demonstra temor, não pelo medo

    da manutenção do status quo através do apego às regras, mas sim do apego às

    normas em si, em prejuízo da capacidade de decidir. E isso não se fecha num

    aspecto temporal: “se aparece alguém que, seja lá por que razões ou propósitos,

    deseja abolir os velhos valores ou virtudes, achará bem fácil fazê-los, contanto que

    ofereça um novo código.” (grifo nosso). Pior: conforme observa Arendt, não será

    necessária persuasão ou força, nem mesmo nada que prove que os novos são

    12

    ARENDT, Hannah Só permanece a língua materna, in Entre o passado e o futuro São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 131. 13

    “À parte essas razões gerais que fariam parecer aconselhável, ao leigo, dar atenção a distúrbios em áreas acerca das quais, em sentido especializado, ele pode nada saber (e esse é evidentemente, o meu caso ao tratar de uma crise na educação, posto que não sou educadora profissional)”. ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p. 222. 14

    “(…) em nenhum outro lugar as teorias mais modernas no campo da Pedagogia foram aceitas tão servil e indiscriminadamente” aduz Arendt ao criticar aplicação prática massificada de novas teorias educacionais nos E.U.A. ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997.

  • 17

    melhores que os velhos, pois quanto mais forte for o apego a um código, mais

    ansiosos/as estarão para assimilar o novo.15

    Outra postura arendtiana de fácil compreensão é a rejeição da alcunha de

    filósofa para a de cientista política, que será utilizada neste trabalho. Na prática, tal

    escolha representa a rejeição da contemplação em relação à ação. Em sua obra

    Crises da república, demonstra irritação com pesquisas como as que apontam

    resultados como, por exemplo, que a fome interfere no aprendizado:

    A resposta do governo para isto, e para o igualmente evidente colapso dos serviços públicos, tem sido invariavelmente a criação de comissões de estudo, cuja fantástica proliferação nos últimos anos fez dos Estados Unidos provavelmente o mais pesquisado país do mundo. Não há dúvida de que estas comissões, depois de gastar muito tempo e dinheiro para descobrir que “quanto mais pobre se é, maior é a chance de se sofrer de séria desnutrição” (genialidade que motivou até o Quotation of the day do New York Times), muitas vezes aparecem com recomendações razoáveis. Estas, no entanto, raramente têm algum efeito e são muitas vezes submetidas a um novo rol de pesquisadores. Todas as comissões têm em comum um esforço desesperado em descobrir algo sobre “as causas profundas” do problema, qualquer que seja ele – especialmente se se trata de violência – e uma vez que “causas profundas” são por definição ocultas, A conclusão final da equipe de pesquisa quase nunca passa de hipótese e teoria sem demonstração. A conseqüência evidente é que a pesquisa tornou-se um substituto para a ação, enquanto as “causas profundas” vão ocultando as causas óbvias – freqüentemente tão simples que nenhuma pessoa “séria” e “letrada” poderia lhe dar alguma atenção. Certamente descobrir remédios para deficiências óbvias não assegura a solução do problema; mas negligenciá-las significa que o problema não será sequer adequadamente definido. A pesquisa se tornou uma técnica de evasão e isto certamente não melhorou a já minada reputação da ciência. (grifos nossos)

    16

    Naturalmente, as pesquisas não podem ser banidas ou ignoradas (aliás,

    esta tese apresenta algumas), e não é isto que sugere Arendt. Contudo, o desgaste

    de algumas pesquisas, cuja finalidade indesejada pode ser a ocupação estática de

    estantes nas bibliotecas, não pode ser classificado como o fim almejado por elas,

    razão pela qual se busca nesta tese uma proposta em seu final. Em muitas

    situações, pesquisas parecem sair das estantes tão somente para alimentar novas

    pesquisas, sendo a manutenção deste círculo bastante irrazoável.

    Arendt decanta da ironia à simples irritação ao lembrar:

    Há, por exemplo, o fato conhecidíssimo e superpesquisado de que crianças em escolas de cortiço não aprendem. Entre as causas mais óbvias, está o fato de que muitas destas crianças chegam à escola sem o café da manhã e

    15

    ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. Pensamentos e considerações morais. São Paulo: Perspectiva,1997,p. 159. 16

    ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p.67.

  • 18

    estão desesperadamente famintas. Há uma porção de causas “profundas” para o fracasso delas em aprender, e é muito incerto que o café da manhã ajudaria. O que não é de modo algum incerto é que mesmo uma classe de gênios não poderia ser ensinada se ocorresse deles estarem com fome.

    17 (grifo nosso).

    Anteriormente ao texto A crise na educação, vemos em As origens do

    totalitarismo sua análise sobre as contradições do recurso da educação entre

    pessoas judias como forma de manutenção ou aceitação em sociedades não-judias,

    bem como da duplicidade entre a fidelidade à educação nos moldes judaicos e

    educação geral. Para isso ela cita a sustação de vultosa doação em 1820 pelos

    Rothschild para uma comunidade em Frankfurt pela idéia de reformadores que

    desejavam que as crianças judias recebessem educação geral18. Se por um lado a

    educação primorosa, que faziam com que parte da sociedade vislumbrasse entre a

    elite judaica uma “sede de instrução” como rota para a aceitação, esses

    “maneirismos” adotados eram acrescentados de certo abandono dos aspectos mais

    rigorosos da lei judaica, que eram opostos à postura de exigir dos/as demais (que

    não viviam tal realidade, pertencentes às massas) a fidelidade à ortodoxia.

    Parece-nos que as reflexões da autora sobre educação vieram a se tornar

    mais freqüentes após o início de sua experiência em Berkeley e em Princeton. Deste

    período, torna-se possível extrair dentre suas reflexões os temas recorrentes, que

    lhe caracterizam o interesse. Encontramos de forma constante suas comparações

    extraídas da Roma Antiga, em compreender crianças e jovens como “os novos”

    (observe-se que a autora distinguia pessoas gregas de romanas justamente por

    estas últimas vislumbrarem que o objetivo da educação fosse unir novos/as e

    velhos/as, fazendo-os/as dignos/as de seus/uas ancestrais.) 19

    Na Grécia, jovens invadiam a estabilidade do status quo, e uma análise

    dos escritos de Arendt sobre o tema nos remetem ao fato de que ela opta pela

    escola romana na compreensão da educação (pois considera que a essência da

    educação é a natalidade). Assim o ponto de partida é a tensão entre “os novos seres

    humanos e os que já caminham sob o sol, e os recebem”. Outros temas também

    surgem como multiculturalismo, (possivelmente uma preocupação ramificada de

    17

    Idem. 18

    A autora faz menção ao fato na nota de rodapé n. 17, à página 85 de As Origens do Totalitarismo.Anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 19

    ARENDT, Hannah, Da Revolução. Brasília: Ática-UnB,1988, p. 22.

  • 19

    1951 sobre a adaptação de apátridas); bem como o contexto desta tese: o espaço

    escolar como transição para a esfera pública20.

    Em A crise na educação, Arendt analisa eventos ocorridos nos Estados

    Unidos da América, todavia um dos problemas levantados por ela e encontrado na

    realidade estadunidense (e também européia) é o multiculturalismo.21 Este, todavia,

    não seria o desafio marcante de nossa realidade brasileira em comparação ao tema

    das desigualdades sociais, bem mais premente. Em nossa realidade, a educação

    termina buscando atender de forma mais estreita às necessidades ligadas a

    cenários de desigualdade. Em nosso país, as escolas (notadamente públicas) são

    incitadas a assumirem funções ausentadas dos lares pelas desigualdades sociais e

    econômicas que marcam nossa realidade (alimentação, higiene, vestimenta, entre

    outros).

    A autora não nega que desde Rousseau a educação se tornou um

    instrumento da política (e a própria atividade política, também, como educação).

    Todavia o problema da utopia política residirá no fato de que julgar possível começar

    um mundo novo com “os novos”, pode recair tão somente em “forjar” um novo à sua

    medida, pela vontade dos adultos (os “velhos”). Até porque, mesmo o “desejo de

    criar algo novo” dos que já compartilham o mundo (os “velhos”) será mais antigo que

    os “novos” que o possam executar.22 A isto, Hannah Arendt chama do desejo de

    “arrancar dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo23.

    Esta fraude demonstrada pela autora tem suas raízes na constatação de

    que não existe um mundo novo para as crianças: existe um velho mundo,

    preexistente, e que foi cimentado com as heranças e ações das pessoas que estão

    e das que já se foram, e que só é “novo” para quem está chegando.

    Nesse sentido, Arendt atribuía a essa falsa impressão do novo as críticas

    contundentes que fez à adoção de experimentos ainda incipientes na Europa

    Central, que, em suas palavras, derrubou quase que de um dia para o outro todas as

    tradições e métodos estabelecidos de aprendizagem; qualificando de “miscelânia de

    20

    ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p 238. 21

    Idem, p. 223. 22

    Idem, p.226. 23

    “Cada geração deseja ser livre para obrigar suas predecessoras”. Idem, p.226.

  • 20

    bom senso e absurdo” e que “todas as regras do juízo humano foram deixadas à

    parte.”24

    A autora então rejeita concepções de que o nível escolar inferior

    americano em relação à Europa não reside na pouca tradição ou juventude de um

    país que não alcançara os padrões do Velho Mundo, mas na servilidade da

    aceitação de teorias dispersas educacionais. Por outro lado, de forma radicalmente

    oposta, Arendt aponta que na realidade européia, o rigor da admissão ao estudo

    secundário, privilegiando a meritocracia (e por isso eliminando parte dos/as

    concorrentes) seria impensável na América do Norte, pela compreensão da

    educação como direito e da igualdade como pilar (e também em nossa concepção

    brasileira, naturalmente). Como efeito, Arendt aponta uma sobrecarga nas

    universidades que necessitam instituir períodos preparatórios para a mesma, dentro

    de suas próprias estruturas de ensino (o que também ocorre no Brasil, oscilando

    entre a evasão nos primeiros anos da universidade ou proposições como atualmente

    alguns dos objetivos do REUNI, que tem como foco aos/as bolsistas que estes

    empreendam projetos que diminuam a evasão universitária, por exemplo).

    A idéia de meritocracia como método seletivo, no Brasil, seria impensável

    não apenas porque contraria a autora quando diz que a meritocracia neste caso não

    seria de riqueza ou nascimento, mas de talento25. A utopia da visão arendtiana, para

    nós, consistira no fato que, na realidade brasileira, a meritocracia escolar está

    absolutamente submersa nas graves questões sociais e econômicas, que subvertem

    substancialmente o mérito escolar. Qualquer conceito de meritocracia (e vez ou

    outra florescem pessoas a defender, baseados em mui eventuais casos de

    superações individuais de adversidades esmagadoras, que a meritocracia seja valor

    seletivo absoluto26); é discutível quando não há a menor possibilidade de saber se

    aquela aluna ou aluno seria capaz de, em outras condições geradas por riqueza ou

    nascimento27, atingir maiores vôos.

    24

    ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p. 226 e p.227. 25

    Idem, p. 229. 26

    Em observação verbal em sala de aula no curso de Doutorado em Educação na UFPE, em 2009, a professora Dr. Márcia Ângela empreendeu algumas críticas relevantes sobre a “heroicização” de alunos/as específicos/as que, a despeito de circunstâncias fortemente adversas e ausência de educação privilegiada, vencem obstáculos, obtendo colocações surpreendentes em exames nacionais, uma vez que cria, em muitas pessoas, a falsa impressão de que “só não vence quem não quer” ou não tem “fibra suficiente”. 27

    E aqui lembramos que o autor Brayner observa que a escola republicana, universal, pública, laica e obrigatória pode ser capaz de atuar nas questões de um “nascer não escolhido e

  • 21

    Arendt também assinala como pontos da crise a criação artificial de

    mundos infantis como fundamento de uma pretensa igualdade que se deteriora

    numa tirania da maioria, assim como o abandono da autoridade pelo conhecimento

    do/a professor/a, uma realidade que vislumbramos com certa clareza em nossas

    pesquisas empíricas conduzidas, com docentes que lecionavam educação para

    cidadania, por exemplo.

    Este último pressuposto encontrar-se-ia enraizado no terceiro e último

    pressuposto criticado por Arendt28: a de não seria necessário ao/a mestre o

    conhecimento da matéria ensinada, para privilegiar a prática em detrimento da

    teoria. Que se demonstrasse constantemente como o conhecimento é produzido, o

    que, convenhamos é muito diverso da dimensão tomada da pouca importância do

    conhecimento prévio. Por outro lado, a exacerbação do inculcamento de habilidade

    refletiu-se na proliferação de habilidades diversas, em prejuízo de pré-requisitos

    usuais de um currículo escolar razoável (observe que a crítica da autora não está na

    inovação dos currículos, mas na exagerada valoração das chamadas habilidades

    extracurriculares29). Estas são algumas das visões arendtianas que encontrarão

    espaço para aprofundamento nesta tese, ao abordarmos o desafio da educação

    para cidadania em nosso país.

    Do ponto de vista prático-formal, este trabalho buscou seguir as

    orientações técnicas da Associação Brasileira das Normas Técnicas nas questões

    gerais, e quanto ao uso de negrito, este ficou restrito aos títulos de referências,

    sendo o inclinado destinado a expressões em língua estrangeira, e a utilização de

    ambos os recursos para o destaque de informações que desejamos transmitir.

    Apesar de um pouco mais trabalhoso e menos utilizado, optamos pelo sistema

    completo de notas de rodapé, para facilitar a identificação exata da página ou trecho

    da obra a que se referem citações ou mesmo transcrições literais de passagens de

    textos, e evitar remeter o/a leitor/a às referências ao final do trabalho, como ocorre

    com o sistema autor-data.

    arbitrário”.BRAYNER, Flávio Henrique Albert. Educação e republicanismo. Experimentos arendtianos para uma educação melhor. Brasília: Líber, 2008, p. 47. 28

    ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. A crise na Educação. São Paulo: Perspectiva,1997, p 232. 29

    “Não discutirei tampouco a questão mais técnica, embora a longo prazo mais importante, de como é possível reformular os currículos de escolas secundárias e elementares de todos os países de modo a prepará-las para as exigências completamente novas do mundo de hoje”.Idem, p.234.

  • 22

    Quanto às pesquisas empíricas empreendidas, utilizaremos o penúltimo

    capítulo para explicações mais detalhadas, além da disponibilização em anexo dos

    questionários e gráficos necessários. Os caminhos metodológicos inerentes a uma

    tese de doutorado passaram, naturalmente por alterações. As investigações

    preliminares mostraram inicialmente alguns obstáculos no sentido de que, quando

    não disponível em uma disciplina, a educação para cidadania dificilmente estava

    contemplada em ações que pudessem ancorar a transversalidade, sendo a última

    mais presente no discurso que na prática.

    Desta forma, pareceu-nos que o contraste teria mais a contribuir para o

    objetivo dessa pesquisa, dificultada pelo fato de que escolas particulares haviam

    buscado mais a disciplinarização da educação para cidadania, enquanto escolas

    públicas normalmente abordavam a educação para cidadania de forma transversal.

    Por isso, enveredamos sobre o estudo comparativo. Ainda assim, nos inspiramos

    parcialmente na experiência de pesquisa vivenciada pelos professores Alfredo

    Gomes e Edson Francisco de Andrade, publicizada no artigo Autonomia das

    escolas: dimensões e contradições no sistema municipal de Recife, por ocasião

    do estudo com as escolas nomeadas primavera, verão, inverno e outono, para

    pesquisarmos a prática da educação para cidadania em quatro escolas (públicas e

    privadas). Temos compreensão que tal escolha gera um ponto de vista, que sozinho,

    não poderá contemplar toda a multiplicidade de situações e justificativas para a

    prática, onde a comparação em educação gera uma dinâmica de raciocínio que

    obriga a identificar semelhanças e diferenças entre dois ou mais fatos, fenômenos

    ou processos e sua interpretação, o que revela a importância de compreender outros

    dados e discursos.

    Para os propósitos dessa pesquisa sentimos necessidade tanto de dados

    qualitativos como quantitativos. Com isso, decidiu-se, em relação às entrevistas com

    professores/as, por questionamentos com liberdade de acréscimos e comentários

    dos/as mesmos/as, e pela observação do ambiente escolar. Do ponto de vista

    quantitativo, empreendemos duas pesquisas, uma direcionada a pessoas votantes

    em uma eleição para o conselho tutelar, e na outra ponta, uma pesquisa direcionada

    aos secretários e secretárias de educação dos municípios pernambucanos, sobre a

    programação da abordagem da educação para cidadania nas escolas municipais.

    Naturalmente foi empreendida uma pesquisa bibliográfica clássica, para o

    suporte teórico da tese em mãos. Utilizou-se a análise documental de legislação,

  • 23

    planos, matérias em jornais e sites, outras teses e dissertações, publicações de

    institutos de pesquisas e obras relativas.

    Do ponto de vista do conteúdo, este trabalho organiza-se em seis

    capítulos: no capítulo inicial são debatidos conceitos sobre a cidadania, com seus

    significados históricos bem como as concepções de cidadania escalonada e de

    cidadania enquanto perda.

    No segundo capítulo apresentamos alguns ruídos atuais na realidade

    brasileira para a conexão entre cidadania e educação para cidadania, tratando da

    concepção de república na escola e dos fundamentos da educação para a cidadania

    ao longo da experiência brasileira, com seus avanços e retrocessos.

    No terceiro capítulo, estabelecemos a análise da idéia da

    representatividade e decisão, com as experiências de representatividade brasileira,

    o desafio da fala pública e da participação decisória nos espaços públicos.

    No quarto capítulo traremos as compreensões do educar para cidadania,

    nos paradigmas e contexto escolar da educação para cidadania quando a própria

    concepção de república brasileira parece, por vezes, oscilar.

    No quinto capítulo refletimos sobre os resultados de nossas pesquisas

    empíricas, estabelecendo os sentidos entre a pesquisa teórica bibliográfica e os

    fragmentos de realidade encontrados em nosso recorte prático, conectando os

    achados para fornecer as reflexões das nossas considerações finais na proposta de

    educação para cidadania, ao sexto capítulo.

    Justificamos a escolha do tema pela relevância da compreensão de como

    entender a perspectiva do ensino da cidadania, em limitações e possibilidades, e

    sobre qual formação para cidadania propor. A justificativa não se restringe a como

    se compreende “ensinar cidadania”, mas como conceber a cidadania no ambiente

    escolar sob um olhar participativo (mais que democrático) e que a contemple como

    construção, sem abrir mão da competência.

    Com esta escolha, teremos a oportunidade de fazer uma análise de um

    tema relevante na educação sem, esperamos, recair no pouco punido delito das

    palavras vazias, como forma de tornar a cidadania mais próxima de nossas vidas, e

    desta forma contribuir em seu fortalecimento.

  • 24

    1. CIDADANIA - OU O QUE NÃO SEJA

    1.1 Significados históricos e axiológicos para cidadania

    Discussões sobre organização estruturada humana podem ser observadas

    na concepção de contrato social de Rousseau, onde se compreendeu a perspectiva

    do Estado como uma criação humana a serviço dos mesmos seres humanos, numa

    renúncia de sua força e liberdade ao Estado através deste contrato. A recompensa

    constituiria a proteção de um interesse comum, na função de legitimidade-poder

    (pensamentos já aventados por Spinoza, que além da idéia de “pacto social”,

    assinalara “jamais seremos homens se não formos cidadãos”). A perspectiva é

    encontrada em outras leituras posteriores, como a legitimidade-crença de Weber,

    onde a dominação legítima compreende a “submissão voluntária aos sistemas de

    poder em cuja validade o sujeito acredita”30.

    Hodiernamente, podemos observar que, em se tratando da posição

    humana na sociedade, enquanto cidadãos ou cidadãs, os critérios de

    enquadramento de cidadania começam na redução da cidadania territorial ou

    declarada. Nesta estreita concepção, atenderiam pelos nomes de outros ou outras,

    o que couber na extensa peneira das minorias atemporais, a exemplo de imigrantes,

    apátridas ou mulheres. Como o próprio conceito de cidadania, o conceito de

    excluídos/as também se presta a algumas críticas. Observa Oliveira que

    Antes de tudo, creio que uma decantação terminológica preliminar se faz necessária, pois, como costuma ocorrer com os conceitos que caem no domínio público, também o de exclusão vem se prestando aos mais diversos usos, o que ocasiona uma certa diluição retórica de sua especificidade. Assim é que têm sido chamados de excluídos os segmentos sociais mais diversos, caracterizados por uma posição de desvantagem e identificados a partir de uma pertinência étnica (negros e índios), comportamental (homossexuais), ou outra qualquer, como é o caso dos deficientes físicos, por exemplo. Na maior parte dos casos, esses segmentos constituem grupos tradicionalmente chamados de ‘minorias’, designação que permanece, a meu ver, mais apropriada

    31.

    De qualquer maneira, além da exclusão fática de situações como a

    negação prática da cidadania, como no caso da condição de apátrida, também se

    identificam as distorções conhecidas por cidadãos e cidadãs em situações de

    30

    MERQUIOR, José Guilherme. Rousseau e Weber, dois estudos sobre legitimidade. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 2002, pág.22, 75 e 106. 31

    OLIVEIRA, Luciano. Os excluídos existem? Notas sobre a elaboração de um novo conceito. Disponível em , acessado em 20 de julho de 2011.

  • 25

    “escalonamento” de acesso às benesses que deveriam ser oportunizadas na

    sociedade em que vivem. Possivelmente pelas nuances provocadas pelo

    subjetivismo da segunda análise, deixou-se de digressar sobre a cidadania negada

    premptoriamente (na situação de não-cidadãos/ãs, formalmente). Prevalece a

    relevância que oscila em dois níveis: da inefetividade ou diversidade das cidadanias

    entre as pessoas de uma mesma sociedade, ou até a concepção (que parece ter se

    imiscuído mais especialmente na esfera educativa) de que tudo possa contribuir

    para reduzir essa distância da cidadania almejada.

    Nesse sentido, discorrer sobre o tema provoca inicialmente um

    contragosto do presente trabalho, que é o fato de que a palavra cidadania

    assemelha-se atualmente a uma roupa desgastada pela utilização de inúmeros

    transeuntes, cada qual com o manequim mais diverso que outro, que dilatam ou

    reduzem sua extensão, e sobretudo trocam seu conteúdo de acordo com quem a

    vista e para qual fim deseja dirigir-se.

    Possivelmente, podemos observar que não é tão difícil pensar o que talvez

    não seja cidadania, ou mais nitidamente que muitas coisas podem contribuir para

    um desenvolvimento geral humano, mas não necessariamente da cidadania de um

    ser humano inserido numa determinada sociedade.

    Primordialmente, não caberá a promessa de um pretenso mapeamento

    histórico do conceito de cidadania neste capítulo. Além da crítica qualquer espécie

    de “evolucionismo histórico” podemos resvalar em mera compilação de informações

    de resultado sofrível. Exposição minuciosa de itens sobejamente conhecidos resulta,

    no falar de Oliveira, na “tendência a escrever na dissertação ou tese verdadeiros

    capítulos de manual, explicando redundantemente (...) o significado de princípios e

    conceitos que são como o bê-a-bá da disciplina”32. Desta forma, atemo-nos aos

    fatos de buscar aqui atender a um dos olhares possíveis sobre o percurso histórico

    da conceituação da cidadania.

    A despeito da sua origem intrinsecamente ligada à vida em sociedade,

    variações diversas de ordem política, social e econômica trouxeram um

    cinzelamento da cidadania aos padrões vigentes de cada espaço de tempo e

    32

    OLIVEIRA, Luciano. Não fale no Código de Hamurábi! Disponível em acessado em 21 de março de 2009.

  • 26

    convicções. Sua existência nas relações humanas organizadas ora sofreu

    estreitezas, ora alargamentos em seu conceito.

    Na realidade da Grécia, a cidadania atendia por um conceito de

    naturalidade: homens nascidos em terras gregas atendiam o requisito primário de

    cidadão, conseqüentemente excluindo estrangeiros. Sendo posteriormente

    acrescidos na esfera da cidadania, permaneceram, contudo, os critérios de

    separação, hierarquizando as cidadanias, numa polarização do poder político que

    traziam em seu bojo a limitação do seu acesso 33.

    Em Roma, por sua vez, a similitude alcançava também a realidade da

    cidadania. A economia lastreada na escravidão, e a óbvia disparidade entre classes

    de habitantes, traziam uma cidadania restrita ao patriciado, que dispunham dos

    direitos políticos vigentes. Condições posteriores foram acrescidas a quem tivesse

    naturalidade romana além da situação de homem livre. Contudo não se pode falar

    em popularização da condição cidadã neste caso. A influência da religião calcada

    nos mitos serviu de instrumento para uma alegada comunicabilidade exclusiva do

    patriciado com as divindades, exercendo controle sobre os campos políticos, como o

    Patriciado e mesmo o Senado 34. Mesmo com o advento da criação do Tribunato e

    da Assembléia da Plebe, a vocação aristocrática romana se mantinha firme ainda

    que eivada de algumas conquistas.

    No Feudalismo, a nuvem religiosa sobraçou o brilho da preocupação com

    as questões políticas35, e somando-se às invasões bárbaras que surpreendiam uma

    população ainda de costumes sobreviventes da queda do Império Romano; o cenário

    resultou numa organização social dividida em camponeses/as, nobreza e clero. A

    dependência da proteção de nobreza e clero pelas possibilidades materiais de

    defesa destas classes trazia situações como a impossibilidade de que integrantes de

    classes inferiores estabelecessem seus próprios julgamentos de conflitos entre si;

    diferentemente da nobreza, só julgada entre seus pares. À maneira de crianças, não

    se reconhecia na plebe a capacidade de solucionar conflitos ou mesmo representar

    suas necessidades, exigindo-se para tal estarem vinculados aos senhores de

    antanho. Desta forma, um servo só acessaria o poder público sob mediação de um

    33

    Sobre isto discorre Cardoso, citando as classes censitárias do legislador Sólon, no século VI a.C. CARDOSO, Ciro Flamarion . A Cidade Estado Antiga. São Paulo: Ática,1985, p.47. 34

    Idem, p.65. 35

    ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 43.

  • 27

    nobre, em relação de submissão e fidelidade36. Faz-nos pensar se esta

    representação “amparada” se repete nos dias atuais, diante da mistura de

    representatividade ou mero apoio aos/as que não possuiriam condições de

    representarem-se, no dilema entre “falar com” ou “falar por”.

    É importante acrescentar que há distinções entre cidades medievais

    propriamente ditas e a sociedade feudal. Entende-se que na sociedade feudal não

    havia princípio de igualdade entre cidadãos, enquanto que nas cidades medievais

    havia “ensaios” de cidadania, através de direitos e deveres restritos e intra-muros.

    Marshall repele esta situação com embrionária de cidadania, pois concebe a mesma

    como nacional: não baseadas em costumes locais, mas em costumes de um país 37.

    Tal compreensão ganha corpo no período da Baixa Idade Média, onde a

    gradual centralização do Estado estabeleceu um novo dinamismo econômico,

    político e social. Com um capitalismo nascente que fazia par com as aspirações da

    nova burguesia, esta última vivia a dualidade do poder econômico despido de

    direitos, que ainda restritos a outras classes. A idéia de um caráter hereditário do

    poder perde força na Baixa Idade Média, adquirindo um aspecto de transição. As

    transformações trazidas no bojo do nascente desenvolvimento da ciência, e a

    propagação do conhecimento, começam a trazer uma maior valorização do sentido

    de liberdade. E, embora discutíveis posto que restritos, também aos desejos de

    igualdade. As transformações sociais e políticas que acompanhavam a mudança de

    mãos do dinheiro existente inclinavam-se à contestação da hegemonia do clero e

    nobreza, sendo que as sementes espalhada pelo novo pensamento favoreciam a

    ascensão da burguesia. Essa nova racionalidade sentiu-se atendida com as idéias

    iluministas-liberais, florescentes à época.

    De forma ainda incipiente, tais compreensões alimentava-se de

    experiências como as Revoluções Burguesas na Europa, nos séculos XVII e XVIII, e

    de fontes teóricas como Rosseau e Locke38. A revolução de idéias começou a

    receber a poderosa injeção da Revolução Industrial, delineando uma luta por

    igualdade que, na prática, foi mais voltada a reduzir a distância entre burgueses e

    36

    BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Editorial Estampa, 1982, p.398-405. 37

    MARSHALL, Thomas Humprey. Cidadania, Classe social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p.64. 38

    LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. São Paulo: Abril Cultural, 1973 e ROSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social e Outros Escritos. São Paulo: Ed.Cultrix, 1980. Enquanto as concepções abraçadas por este último compreendiam uma universalidade; as idéias de Locke pareciam servir às necessidades da burguesia, uma vez que buscavam associar ao conceito de liberdade o conceito de propriedade material (mesma referência, p.88).

  • 28

    nobreza. Abaixo destas, havia toda uma massa, que passando ao largo destes

    novos clamores, personificava a “burguesia” ansiosa da “nobreza burguesa”. Com o

    agravante de que não restava-lhe poder econômico para suavizar o impacto da

    pressão exercida 39.

    Diante deste novo quadro, observava-se inicialmente nestas pessoas

    apenas a privação de cidadania, onde trabalhadores desempregados (homens, em

    sua maioria, mas já grassava o trabalho insalubre de mulheres e crianças, sub-

    remuneradas) decidiram voltarem-se contras o aspecto visível da Revolução

    Industrial: as nascentes máquinas. O retorno sobre estas atitudes desesperadas

    consistiu na aprovação pelo Parlamento Britânico, em 1812, da pena de morte para

    quem destruísse uma máquina40.

    Além da visível influência nas relações de trabalho à época, as novas

    concepções inspiraram movimentos de reformas e de independência em outros

    países. A primeira oportunidade de reconhecimento de valores elevados à condição

    de direitos e garantias foi a Bill Of Rights, datada de treze de fevereiro de 1689,

    como marco da chamada Revolução Gloriosa. Nessa circunstância, o a burguesia

    inglesa conseguiu impor limites à ação real. Vale observar que esta noção à época

    estava bem mais fixada a uma valorização do direito de propriedade (numa

    concepção mais individualista que comunitária). Naturalmente que o resultado

    estabelecia uma cidadania desigual, onde o critério para caracterizar a condição de

    cidadão com direitos não era mais a religião ou a nobreza, mas a propriedade

    material. Assim, a discussão sobre cidadania terminou adiada para o período

    posterior às Revoluções Burguesas, em critérios como liberdade e igualdade.

    Este novo eixo – liberdade e igualdade – terminou por discutir a inclusão

    de mais integrantes da sociedade nos direitos políticos, ainda que para cidadãos

    39

    Na busca de minimização de custos e aumento de lucros, a força de trabalho masculina adulta era desprezada em contrapartida à utilização de mão de obra feminina e infantil, trazendo duas formas de convulsão social: a fragilidade orgânica e a ausência de normas de proteção escravizava estes/as, enquanto a massa de homens desempregados fomentava o comércio de bebidas, aumentando as ocorrências de agressões, muitas delas dirigidas às mesmas mulheres e crianças. Depoimento de Thomas Clarke, onze anos, em 1883, à Comissão do Parlamento Inglês: “Ganhava quatro xelins (com a ajuda do irmão) como emendador de fios. Sempre nos batiam se adormecíamos... O capataz pegava uma corda da grossura do meu polegar e batia em nós... costumava ir até a fábrica pouco antes das seis, e trabalhar até nove da noite. Trabalhei toda noite, certa vez.” GUIMARÃES, Christina e ALVES, Antônio. Atualidades, uma visão histórica. Recife: Líber, 1996, p.15. 40

    Lord Byron, membro da Câmara dos Lordes, afirmou dissonantemente - embora em tom paternalista - que não se poderia negar que as revoltas surgiram de circunstâncias provocadas pela miséria sem paralelo: “a luta destes miseráveis mostra que apenas a carência absoluta poderia ter levado pessoas antes honestas e industriosas, a cometer excessos tão prejudiciais a si, suas famílias e a comunidade”. Idem, p.15.

  • 29

    desprovidos economicamente, esta cidadania estivesse longe de representar uma

    realidade. Deste período, destaca-se a Declaration des droits del´homme et du

    citoyen, em vinte e seis de agosto de 1789, que evidenciou a questão da cidadania.

    Na ocorrência das guerras mundiais, vieram à tona nuances mais

    complexas deste debate. Uma coleção de situações inusitadas gerava uma

    perplexidade que foi além das discussões sobre cidadania e desigualdade social,

    que foi o caso de nossa primeira hipótese, no início deste capítulo. A velha

    vinculação da cidadania a uma nação perdera completamente o sentido nas fusões

    e mesmo eliminação da divisão tradicional do mundo conhecido. A violência sem

    precedentes dos conflitos, foi aumentada por um poder dizimador superior ao já visto

    até então (fruto, quem sabe, da não-visualização do inimigo, redutor de conflitos

    éticos ou internos na eliminação do que sequer se vê...). A criação e a manutenção

    de regimes totalitaristas, a prática da violência institucionalizada pelo Estado e a

    fragilidade do poder da sociedade civil; bem como um novo tipo de medo reinante

    sobre o futuro, sinalizavam que a cidadania necessitava encontrar um caminho para

    além dos partidarismos e nações. Começou, portanto, a idéia ainda vacilante da

    vinculação da cidadania aos direitos humanos, ainda que, às vezes, ser cidadão do

    mundo, muitas vezes, fosse ser “cidadão de nada”.

    Com a Segunda Guerra Mundial, as perplexidades só aumentaram. O

    extermínio em massa de milhões de pessoas num passo a passo resumidamente de

    cidadãos/ãs malquistos/as, para cidadãos/ãs de segunda classe e não – cidadãos/ãs

    igualou judeus/as, eslavos/as, ciganos/as, homossexuais, comunistas, velhos/as,

    portadores/as de deficiência física ou mental aos antigos hilotas das sociedades

    espartanas. Talvez um pouco mais grave: sua morte não apenas era banal, ou sua

    condição sub-humana: sua eliminação foi considerada, preventiva ou tardiamente41,

    necessária.

    A eliminação “criteriosa” de pessoas somava-se à morte massificante e

    anônima, através de métodos de longo alcance como o lançamento das bombas

    atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, a seis e nove de

    agosto de 1945, que mataram cem mil pessoas diretamente e deixaram marcas em

    41 Cerca de setenta mil pessoas foram consideradas inaptas a viver, pelo regime nazista, por questões de velhice ou doença. Muitas foram assassinadas nos próprios sanatórios e orfanatos em que se encontravam, na tentativa de eliminar por completo a população de portadores/as de deficiência física ou mental. CORREIO DO BRASIL, Descoberto Cemitério Nazista, reportagem de cinco de outubro de 2006.

  • 30

    gerações posteriores42. Diante de tantas perguntas, mas sobretudo diante da

    necessidade urgente de respostas, em vinte e seis de junho do mesmo ano foi

    criada a Organização das Nações Unidas, cujo órgão mais importante, o Conselho

    de Segurança, assumiu a tarefa de buscar manter a paz mundial. Em 1948, a

    Declaração Universal dos Direitos do Homem foi seguida pela elaboração de outras

    declarações43. A criação de mecanismos internacionais de proteção de direitos

    humanos buscou inicialmente atender a um novo conceito de cidadania; não mais

    focada na vinculação das pessoas às nações, mas à sua condição humana. O

    entrave, todavia, permanecia num aspecto crítico: embora os direitos humanos

    fossem definidos como insuscetíveis de alienação, superior aos governos (e aí os

    primeiros vagidos de uma concepção de cidadania planetária); no momento em que

    não havia um governo também inexistia instituição com força suficiente para garanti-

    la. Ou, conforme observou Arendt no caso das minorias, quando uma entidade

    internacional se investia de autoridade supra-nacional não-governamental, “seu

    fracasso se evidenciava antes mesmo que suas medidas fossem completamente

    tomadas”. Isto porque se opunham não somente os governos a esta pretensa

    usurpação de soberania, e sim porque diante de um discurso, segundo a visão da

    autora, que aproximava-se constrangedoramente da defesa dos animais (pela

    fraqueza da efetividade real); “as próprias nacionalidades interessadas deixaram de

    reconhecer uma garantia não-nacional, desconfiando de qualquer ato que não

    apoiasse claramente os seus direitos “nacionais”44.

    A transição de cidadania e do poder público, em situação de condições

    aviltantes e desiguais também pôde ser observada na criação do Welfare State, o

    Estado do Bem Estar Social. Com a perspectiva de atender aos desequilíbrios

    econômicos, terminava por constituir um óbice por sua própria formação, baseada

    em posturas paliativas, não estruturais. Tal política trouxe na década de setenta a

    42

    GUIMARÃES, Christina e ALVES, Antônio. Atualidades, uma visão histórica. Recife: Líber, 1996, p.91. 43

    Convenção para a Prevenção e a repressão do Crime de Genocídio, 1948; Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, 1965; Pacto Internacional Relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966; Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, 1966; Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação das Mulheres, 1980; Convenção contra Tortura e Outras Penalidades ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, 1984. 44

    ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. Anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.325.

  • 31

    exposição da debilidade de suas ações na promoção de alterações significativas

    para consecução da cidadania almejada.

    Tanto a idéia do Estado do Bem Estar Social quanto os acordos firmados

    entre as nações; e mesmo as garantias constitucionais entre as nações após as

    discussões desdobradas pela ocorrência das guerras; não foram suficientes para

    uma verdadeira promoção de cidadania. Não que contemplasse em profundidade

    temas como liberdade, igualdade ou direitos humanos. Atualmente, além do aspecto

    democrático de alguns regimes, e da substituição gradual do Estado do Bem Estar

    Social pelo Estado Democrático de Direitos; percebe-se que em nosso caso

    específico, não são as diferenças culturais ou tolerâncias que nos afastam. Na

    prática, nossas desigualdades sociais e contrastes econômicos são os dados que

    continuam alijando pessoas do processo de participação e decisão política,

    alienando-nos de direitos essenciais. Nesse sentido, sabemos que não basta relegar

    à escola, mais uma vez, o condão de alterar estruturas das quais ela mesmo faz

    parte. Embora seja indiscutível a importância da escola no processo de

    desenvolvimento humano em sociedade, não se pode esquecer que freqüentemente

    tem se transferido à escola responsabilidades e transformações almejadas (ainda

    que a sinceridade deste desejo seja criticada por muitos/as) que, individualmente, e

    nas atuais condições, não seria capaz, nem responsável.

    Na conhecida análise sobre a cidadania elaborada por Marshall, o

    sociólogo inglês acreditava que o desenvolvimento da cidadania atendeu a relações

    entre diferentes classes. Entendeu o autor que ela é ditada mais pela história que

    pela lógica:

    Chamarei estas três partes, ou elementos, de civil, política e social. O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. (...) Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo.(...) O elemento social se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-star econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade

    45.

    45

    Nesse sentido, a cidadania surge dividida em categorias diversas, no interesse de demonstrar o desenvolvimento discrepante de cada uma, vinculando-as aos setores da sociedade que pertenciam. MARSHALL, Thomas Humprey. Cidadania, Classe social e Status. Rio de Janeiro: Zahar. 1967, p.63 a 66.

  • 32

    Assim, Marshall trouxe que a cidadania civil, superando o período da

    Idade Média, foi direcionada à burguesia. O autor demonstrou duas conseqüências

    sobre quando a justiça real - fixada no direito consuetudinário do país e não em

    costumes locais- é estabelecida. A primeira identifica que no desligamento dos

    elementos da cidadania tornou-se possível para cada um deles “seguir seu caminho

    próprio, viajando numa velocidade própria sob a direção de seus próprios princípios

    peculiares”. Na segunda, a distância dos órgãos nacionais, com tecnicismos que

    fizeram com que os cidadãos tivessem que apoiarem-se em especialistas que

    pudessem fornecer orientações sobre a natureza dos seus direitos de cidadania e

    auxiliá-los/as a obtê-los.46.

    O que torna, passado os anos, incomum na leitura de Marshall não

    constitui suas noções conceituais do que seja cidadania, e sim como a narrativa dos

    vôos solitários de seus componentes ainda encontra reflexo na contemporaneidade.

    Verificamos que possuímos, numa postura autista, um conteúdo teórico e um

    conteúdo prático sobre cidadania, cujo desafio tem se encontrado na diminuição da

    distância entre um e outro. E isto tem pontuado, praticamente, a prolongada

    discussão sobre o papel da escola na educação para cidadania. O que na realidade

    poderia significar aceitar que os alunos e alunas (especialmente parece existir este

    discurso para discentes de escolas públicas, devido à situação de vulnerabilidade

    econômica e social) embora sejam considerados e consideradas formalmente

    cidadãs e cidadãos por nascimento, necessitariam da atuação da escola para

    atingirem esse estado prático de exercício da cidadania. Não se discute amiúde a

    situação destes e destas do ponto de vista nacional em relação a outros países

    (embora isto ocorra eventualmente em casos de crianças de pais com

    nacionalidades diversas). A discussão reside em como se tornar cidadão/ã em seu

    próprio país, mesmo posteriormente a ter assim sido declarado/a

    “documentalmente”.

    Sabemos que estes avanços e recuos adquiriram valor à medida que nos

    demonstram que a cidadania de fato se constrói cotidianamente, sobretudo porque

    nossos conceitos são constantemente renovados diante de um mundo que também

    se mostra em variadas formas47. Ainda assim, é importante destacarmos que a

    46

    Idem, p.66. 47

    Isto, remetendo-se, claro, ao fato de que a compreensão do mundo (onde também nossos conceitos são inseridos) é inacabada. Sobre o tema, certa oportunidade Arendt coloca: “a

  • 33

    cidadania, compreendida como processo e integrante do jogo democrático, requer o

    contemplar da fala pública, da possibilidade da visibilidade, da interferência nas

    relações. E nesse sentido, este processo sente a importância da formação escolar.

    Tanto nos fatores mais comezinhos, como a compreensão do código falado e

    escrito, como de uma compreensão maior sobre a cidadania em si mesma. Desta

    forma, faz sentido dizer que os conteúdos contemplados na escola contribuem para

    a cidadania, através das ferramentas e construções oportunizadas, porém não

    elimina a constatação que educar para a cidadania compreende mais que fornecer

    elementos gerais.

    Na esteira do entendimento de cidadania e gerações de direitos,

    recordamos serem os humanos, políticos e civis na primeira geração; sociais e

    econômicos na chamada segunda geração; direitos coletivos na terceira e por fim os

    direitos dos povos, como quarta geração48. Esta quarta geração, por sua vez,

    aproxima a cidadania de temas como o respeito ao diferente e a tolerância, que

    também são conteúdos transversais em freqüente discussão nas escolas brasileiras.

    Ainda que saibamos que a diversidade e especificidades humanas tragam conflitos

    de ponderação de interesses, apoiamo-nos em observações como da pesquisadora

    argentina Elizabeth Jelin que nota ser necessário reconhecer que não existem

    critérios racionais para a eleição entre valores alternativos. Também acresce que

    esta situação traz como resultado uma busca mais especial: encontrar um espaço

    em que, no reconhecimento da contingência das crenças próprias, se reconheça a

    urgência de um compromisso ético-político em conformidade com as questões

    centrais “dos tempos que nos cabe viver”. Neste contexto, “evitar o sofrimento,

    ampliar as bases da solidariedade, expandir os campos da ação pública e

    responsável, ao mesmo tempo em que se promove a tolerância, o respeito à

    autonomia e à diferença”, podem não ter uma justificativa una e transcendente, mas

    podem, diante destes tempos, serem contingentes49.

    compreensão é interminável e, portanto, não pode produzir resultados finais; é a maneira especificamente humana de estar vivo, porque toda pessoa necessita reconciliar-se com um mundo que nasceu como um estranho e no qual permanecerá sempre um estranho, em sua inconfundível singularidade.” ARENDT, Hannah. Compreensão e Política, in A Dignidade da Política, Rio de Janeiro: Relume-dumará, 1993, p. 39. 48

    JELIN, Elizabeth. Construir Cidadania: uma visão desde baixo. Revista Lua Nova. N 33. 1994, p. 44. 49

    Idem, p.44.

  • 34

    Necessitamos para este processo a constante discussão sobre a

    cidadania, seja através dos meios de comunicação, das associações, conselhos;

    mas naturalmente das escolas. Sabemos que o próprio conceito de cidadania está

    em movimento, não sendo um conceito acabado e entregue quando de seu

    nascimento com vida (e quando registrado...). Partindo deste ponto, não nos bastará

    discutir apenas o conceito, mas colocar em pauta o papel da escola numa formação

    que favoreça a fala pública e a visibilidade, que permitam instrumentalizar e educar

    este/a cidadão/ã não apenas no jogo democrático, mas no exercimento de uma

    concepção maior de cidadania.

    Com uma realidade social e política peculiar, vemos que alguns dos

    desdobramentos das idas e vindas do conceito de cidadania de forma global

    traduziram-se em nosso país como uma visível diferença entre o Brasil legal e o

    Brasil real. Esta dualidade marca-se pelo domínio das forças do Estado em relação

    às forças da sociedade civil e a apropriação da coisa pública, numa ausência muito

    clara de limites entre o público e o privado.

    Recortando o trecho histórico brasileiro a partir da Velha República, onde

    não apenas ausentava-se uma estruturação razoável dos direitos civis, como em

    tantos outros países, estes direitos não se estendiam de forma a estabelecer como

    cidadão/ã qualquer habitante. Aliás, nem mesmo entre estes havia uma relação

    horizontal de cidadania. Esta última sofria a ausência de direitos sociais, a falta dos

    direitos estabelecidos em função de uma solidariedade comunitária e organizada

    pelo Estado, no atendimento às necessidades básicas.

    Para a década de trinta até meados de quarenta, a noção de cidadania

    estava fortemente controlada pelo Estado, e mesmo a existência de sujeitos

    coletivos não tornava possível sua popularização. Começando em 1945 (e até 1964)

    situações como o pluripartidarismo e uma reorganização das forças políticas, o

    crescimento da autonomia da sociedade civil começou por demonstrar um vôo

    autonômico do reconhecimento de entidades coletivas. Nesse sentido, a atuação

    das Ligas Camponesas, entidades sindicais e União Nacional dos Estudantes

    contribuíram para um questionamento maior sobre cidadania brasileira. Essa

    discussão acabou diminuída (na verdade fortemente adiada) pelo advento do Golpe

    de Estado, intervenção militar que acabou significando a restrição de direitos por um

    período de vinte anos (1964-1985). Este conhecido período, marcado por

    repressões em todas as esferas de organizações da sociedade civil e também a

  • 35

    partidos políticos; estabeleceu a “cidadania negativa”. No caso, a ausência de

    direitos só não era maior que a ausência das garantias destes direitos. Perceberam-

    se situações de negação do direito à vida na prática, sem que sequer estivesse

    previsto na teoria.

    Podemos inferir deste período dois resultados do ponto de vista axiológico:

    para parcela da população se ampliou a idéia de comunidade e clamor por

    cidadania. Aqui, explicita-se, não mais uma cidadania que contemplasse direitos

    sociais voltados à assistência, mas de foco desviado para as garantias, no sentido

    do direito da força do/a cidadão/ã contra o Estado. Assim, sua independência e

    inviolabilidade buscavam a limitação do poder do Estado. Por outro lado, entre a

    massa de quem pouco sabia (se bem que violência, em muitos períodos da História

    parece precedida por uma negação de incredulidade de quem recebe a notícia)

    havia também a profunda cisão do eu privado e eu social de alguns/mas. Isto no que

    tange aos/as que haviam abraçado a idéia da necessidade da cidadania conjugada

    no coletivo, mas estavam enredados na angústia da salvação individual física em

    detrimento dos valores pessoais abraçados a sonhos no plural. O mais grave talvez

    fosse que nem a salvação individual absolveria o/a supliciado/a. Se o/a salvasse do

    presente, não o salvava da dívida de culpa no futuro. Talvez porque a crueldade do

    futuro esteja em desconsiderar as circunstâncias específicas do passado. Este

    pareceu constituir o destino de personagens de carne e osso como frei Tito50. Num

    dos depoimentos colhidos e publicados pela Arquidiocese de São Paulo:

    Eu não pensava em mais nada que não fosse a possibilidade de me safar daquela situação. O que me preocupava era uma salvação individual, não procurava uma sobrevivência política. (...)Quando as torturas se amainaram, meu estado psicológico era deplorável. Ao mesmo tempo em que tudo fizera para livrar-me da tortura, agora começava a sentir remorsos por tudo aquilo e ficava com uma contradição muito grande, pois enquanto eu não hesitava em trair para conseguir uma condição de melhora pessoal, começava a pensar no que representou essa traição, não só ao nível político, como também ao nível pessoal

    51. (grifo nosso)

    Além da cassação de representantes políticos e da instalação do

    bipartidarismo, houve praticamente a supressão dos direitos civis, ao mesmo tempo

    em que o desenvolvimento econômico e a segurança receberam mais ênfase que o

    social (ainda que discutíveis). Também foi clara a predominância da força do Estado

    sobre a sociedade civil e seus efeitos sobre a concepção de cidadania, tais como a

    50

    ARQUIDIOCESE DO RIO DE JANEIRO. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985, p.222. 51

    .Idem, idem.

  • 36

    invasão do espaço público pelo privado e o reforço da profunda dependência

    econômica e cultural de outros países.

    Com a lenta retomada do que compreendíamos por democracia (ao

    menos no que tange às eleições direitas...) o efeito mais interessante para a

    cidadania, além da promulgação da Constituição de 1988 (que estabeleceu a

    cidadania como princípio interno, e os direitos humanos como princípio externo); foi

    a reocupação do espaço público pelas organizações de sociedade civil. Esta

    reorganização, somada ao fortalecimento dos movimentos sociais e o

    pluripartidarismo, deu a tônica de uma nova fase para a cidadania brasileira.

    Logo após o fôlego da liberdade, a cidadania no que tange ao aspecto dos

    direitos políticos sofreu um irônico revés com a renúncia tardia (objetivando evitar o

    impedimento) do primeiro presidente da república eleito por voto direto no país. O

    “choque de gestão” iniciado pelo presidente deposto foi suavizado, todavia mantido

    por seu vice-presidente assumido (Itamar Franco). Posteriormente este último

    auxiliou a eleger seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. O ex-

    ministro teve como marco da gestão a re-separação entre público e privado.

    Infelizmente esta se focou apenas no ponto de vista econômico, na promoção de

    privatizações de entidades públicas.

    É possível perceber que embora no mundo ideal da cidadania sugerido

    pela Constituição brasileira, as propostas destaquem-se pela promoção da

    igualdade, traçando metas tangentes ao ideal; a grande desigualdade social do

    saldo de fusão entre público e privado, conseqüentemente força a criação