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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DEMETRIO CHEROBINI TEORIA DO CAPITAL, TRANSIÇÃO SOCIALISTA E EDUCAÇÃO NA OBRA DE ISTVÁN MÉSZÁROS: ESTUDO INTRODUTÓRIO Florianópolis 2016

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO … · 2017-03-11 · Trata-se de uma pesquisa teórica a respeito do conceito de capital na obra de István Mészáros e de sua relação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE EDUCAO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

DEMETRIO CHEROBINI

TEORIA DO CAPITAL, TRANSIO SOCIALISTA E

EDUCAO NA OBRA DE ISTVN MSZROS:

ESTUDO INTRODUTRIO

Florianpolis

2016

2

3

DEMETRIO CHEROBINI

TEORIA DO CAPITAL, TRANSIO SOCIALISTA E

EDUCAO

NA OBRA DE ISTVN MSZROS:

ESTUDO INTRODUTRIO

Tese apresentada ao Programa de Ps-

Graduao em Educao (PPGE) na

Universidade Federal de Santa Catarina

(UFSC), como requisito parcial para a

aquisio do Grau de Doutor em Educao.

Orientador: Dr. Paulo Sergio Tumolo

Florianpolis

2016

4

Ficha de identificao da obra elaborada pelo autor,

atravs do Programa de Gerao Automtica da Biblioteca Universitria da UFSC.

Cherobini, Demetrio

Teoria do capital, transio socialista e educao na

obra de Istvn Mszros: : Estudo introdutrio / Demetrio

Cherobini ; orientador, Paulo Srgio Tumolo -

Florianpolis, SC, 2016.

575 p.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa

Catarina, Centro de Cincias da Educao. Programa de Ps

Graduao em Educao.

Inclui referncias

1. Educao. 2. Mszros. 3. capital. 4. transio. 5.

educao. I. Tumolo, Paulo Srgio. II. Universidade Federal

de Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em Educao.

III. Ttulo.

5

DEMETRIO CHEROBINI

TEORIA DO CAPITAL, TRANSIO SOCIALISTA E

EDUCAO NA OBRA DE ISTVN MSZROS: ESTUDO

INTRODUTRIO

Tese apresentada ao programa de Ps Graduao em Educao, na linha

de pesquisa Trabalho e Educao da Universidade Federal de Santa

Catarina, para obteno do ttulo de doutor em Educao

Tese defendida em 21 de maro de 2015

BANCA EXAMINADORA:

___________________________

Orientado: Dr. Paulo Srgio Tumolo UFSC

________________________________

Examinador: Dr. Ricardo Antunes Unicamp

______________________________

Examinador: Dr. Ademir Quintilio Lazarini UEM

___________________________________

Examinador: Dra. Rosngela Mello UFSC

_________________________________

Examinador: Dra. Patrcia Laura Torriglia UFSC

_________________________________

Examinador: Dra. Astrid Avila Baecker UFSC

_________________________________

Suplente: Dr. Vidalcir Ortigara UNISUL

_________________________________

Suplente: Dra. Nise Jinkings UFSC

6

7

Ao meu mestre e camarada,

o educador Luiz Carlos Scapi,

com respeito e admirao.

8

9

Fica a saber que no trocaria a minha

desgraa pela tua servido.

Marx, Diferena entre as filosofias da

natureza em Demcrito e Epicuro

Segui il tuo corso, e lascia dir le genti!

Marx, O Capital

10

11

AGRADECIMENTOS

Ao meu amigo, orientador e mestre, Professor Paulo Srgio Tumolo, por

toda amizade, carinho, dedicao e aprendizado que me proporcionou ao

longo desses quatro anos. Com certeza, uma fonte de inspirao para

mim, que marcou profundamente a minha vida e a minha formao.

Ao querido mestre e amigo Scapi e aos amigos do 13 de Maio Ncleo

de Educao Popular de So Paulo, que fizeram de mim uma outra

pessoa, melhor, mais dedicada, mais consciente e mais persistente na

causa da emancipao humana.

Aos inesquecveis amigos que, de uma forma ou de outra, construram

para o meu crescimento como ser humano e, portanto, auxiliaram a

realizao desta tese: Ricardo Velho, Vilmar Valdir Both, Paulinho

Montedo, Henrique Cignachi, Guilherme Roos, Teo Bemgochea,

Endrigo Longhi, Maria Uba, Letcia Schio, Jocemara Triches.

A Fabola, pessoa querida que participou de momentos decisivos de

tudo o que aqui vai.

Aos professores presentes na banca de qualificao e de defesa pelas

importantssimas reflexes, crticas e contribuies ao meu trabalho:

Ricardo Antunes (Unicamp), Patrcia Laura Torriglia (UFSC), Astrid

Baecker vila (UFSC), Ademir Lazarini (UEM), Rosngela Mello

(UEM).

A Neli e Zeca, partcipes improtantes dessa jornada.

A meus pais, Ilda e Mateus, por toda a educao que me deram.

12

13

RESUMO

Trata-se de uma pesquisa terica a respeito do conceito de capital na obra de Istvn Mszros e de sua relao com as concepes polticas e

educacionais elaboradas pelo filsofo hngaro. O capital entendido

como sistema especfico de mediaes de segunda ordem estabelecido

sobre as mediaes primrias do trabalho. Enquanto tal, o capital, de sua

forma embrionria, como capital comercial e usurrio, passa a um

estgio superior quando da efetivao do capitalismo industrial,

desdobra-se a partir de crises cclicas e peridicas de superproduo de

capital, altera, em razo das condies histricas, a sua forma de reproduo sociometablica (em especial, surgem as suas formas

mutantes, tais como as efetivadas nas sociedades ps-revolucionrias do

sculo XX), at atingir uma fase de crise estrutural, a partir da dcada de 1970, caracterizada por aquilo que Mszros chama de produo

destrutiva. esse novo estgio histrico que fundamenta a atualidade histrica da ofensiva socialista, proposta calcada na efetivao das

mediaes extrainstitucionais de luta revolucionria dos trabalhadores, a

serem desenvolvidas na forma de um poder paralelo e autnomo, capaz

de se fortalecer e vencer as mediaes constituintes do ser do capital e

efetivar a emancipao humana. A educao contribui para esse

movimento na medida em que fomenta a conscincia comunista em

escala de massa, que significa a conscincia da necessidade de

superao do ser contraditrio do capital e de afirmao da sociedade

dos produtores livremente associados.

Palavras-chave: Mszros, Marx, capital, transio, educao.

14

ABSTRACT

This is a theoretical research on the concept of capital in the work of

Istvn Mszros and its relation to educational policies and concepts

developed by the hungarian philosopher. Capital is understood as a

specific system of mediations second order established on primary

mediations work. As such, the capital, from its embryonic form, as

commercial capital and usurer, going to a higher stage when the

realization of industrial capitalism unfolds from cyclical and periodic

bouts of capital overproduction, changes, due to the conditions

historical, their form of social metabolic reproduction (especially arise

its mutant forms, such as the effect in post-revolutionary societies of the

twentieth century), reaching a phase of structural crisis since the 1970s,

characterized by that that Mszros calls destructive production. It is

this new historical stage that underlies the historical actuality of the

socialist offensive proposed squashed in effect the extrainstitucionais

mediations of revolutionary struggle of the workers, to be developed in

the form of a parallel and autonomous power, able to strengthen and win

the constituents of being mediations capital and carry human

emancipation. Education contributes to this movement in that it

promotes the communist consciousness on a mass scale, which means

the awareness of the need to overcome the contradictory being the

capital and affirmation of the society of freely associated producers.

Keywords: Mszros, Marx, capital, transition, education.

15

SUMRIO

1 INTRODUO : A QUESTO DO CONCEITO DE

CAPITAL EM MSZROS.........................................................

19

2 CAPITAL: SEDE VAMPIRESCA E CRESCIMENTO

CANCERGENO...........................................................................

29

3 O ESPRITO DA OBRA: ONTOLOGIA, POLTICA E

TEORIA DA ALIENAO EM MARX.....................................

63 3.1 ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA DA

ALIENAO...................................................................................

64

3.2 ASPECTOS ECONMICOS DA TEORIA DA

ALIENAO...................................................................................

81

3.3 ASPECTOS POLTICOS DA TEORIA DA ALIENAO..... 89 3.4 ASPECTOS ONTOLGICOS E MORAIS DA TEORIA DA

ALIENAO..................................................................................

97

3.5 ASPECTOS ESTTICOS DA TEORIA DA ALIENAO.... 122 3.6 ASPECTOS EDUCACIONAIS DA TEORIA DA

ALIENAO.................................................................................

134

4 DESENVOLVENDO QUESTES TERICAS

FUNDAMENTAIS ACERCA DO SER DO CAPITAL E DE

SUA COMPREENSO................................................................

139 4.1 A LUTA DE CLASSES E A ESPINHOSA QUESTO DA

CONSCINCIA DE CLASSE .......................................................

140

4.2 O METABOLISMO SOCIAL E A LUTA PELO SEU

CONTROLE....................................................................................

147

4.3 IDEOLOGIA, CINCIA E PONTO DE VISTA SOCIAL DE

CLASSE: A SUA UNIDADE SISTEMTICA..............................

151 4.4 PASSOS IMPORTANTES NA CONCRETIZAO DE

UMA TEORIA DA TRANSIO SOCIALISTA..........................

157 4.5 APROFUNDANDO QUESTES: A CINCIA REAL DE

MARX..............................................................................................

170

4.6 DESENVOLVENDO ELEMENTOS DA TEORIA

MSZRIANA DA TRANSIO.................................................

174

5O PODER DA IDEOLOGIA: UMA SNTESE

ABRANGENTE ENTRE TEORIA SOCIAL, POLTICA E

IDEOLOGIA..................................................................................

181

5.1 IDEOLOGIA E POLTICA EM UMA OBRA GRANDIOSA. 183 5.2 AS POSIES IDEOLGICAS BSICAS DA

SOCIEDADE ATUAL.....................................................................

190

5.3 SOCIEDADE DE CLASSES E CONSCINCIA

16

COMUNISTA EM ESCALA DE MASSA..................................... 203

5.4 A SNTESE BUSCADA ENTRE ROSA LUXEMBURGO E

LENIN: ELEMENTOS PARA UMA TEORIA POLTICA

REVOLUCIONRIA.....................................................................

220

5.5 CAPITAL, ESTADO, CRISE ESTRUTURAL E

IMPERIALISMO EM O PODER DA IDEOLOGIA......................

241

5.6 A QUESTO DA EDUCAO EM O PODER DA

IDEOLOGIA....................................................................................

268

6CONSIDERAES SOBRE A FORMA PECULIAR DE

LEITURA DE MARX POR MSZROS..................................

275

6.1 DA ALIENAO AO FETICHISMO DA MERCADORIA... 290

7 PARA ALM DO CAPITAL: RUMO A UMA TEORIA DA

TRANSIO UM ESTUDO .....................................................

299

7.1 MEDIAES CONSTITUINTES,

INCONTROLABILIDADE E LIMITES DO CAPITAL ...............

299

7.2 A ATIVAO DOS LIMITES ABSOLUTOS DO CAPITAL 342

7.3 A PERSISTNCIA DO CAPITAL NAS SOCIEDADES

PS-REVOLUCIONRIAS: PRIMEIRAS APROXIMAES...

371

7.4 TRANSFORMAES DO CAPITAL E QUESTES DE

MTODO EM PARA ALM DO CAPITAL...................................

374

7.5 LINHAS GERAIS SOBRE A QUESTO DO

FENECIMENTO DO ESTADO.....................................................

389

7.6 ADENTRANDO A COMPREENSO DA CRISE

ESTRUTURAL DO CAPITAL ATUAL.......................................

403

7.7 APROFUNDANDO A ANLISE DA CRISE

ESTRUTURAL E DA NOVA FASE O IMPERIALISMO............

423

7.8 COMPREENDENDO AS FORMAS MUTANTES DE CONTROLE DO CAPITAL .............................................................

433

7.9 ELEMENTOS GERAIS DA TEORIA DA TRANSIO

SOCIALISTA .................................................................................

454

7.10 UMA ANLISE DA CONJUNTURA ABSTRATA NO

SEIO DE UMA TEORIA CONCRETA: O CASO DA

VENEZUELA DE CHVEZ .........................................................

472

7.11 DEMAIS QUESTES CANDENTES DA TRANSIO .... 481

8 A EDUCAO PARA ALM DO CAPITAL........................ 491

9CONCLUSO: TEORIA DO CAPITAL, TRANSIO

SOCIALISTA E EDUCAO NA OBRA DE ISTVN

MSZROS ...................................................................................

509

APNDICE: NOTAS SOBRE A HISTRIA DAS CRISES

CCLICAS DO CAPITAL ...........................................................

531

17

REFERNCIAS............................................................................ 555

18

19

1 INTRODUO: A QUESTO DO CONCEITO DE

CAPITAL EM MSZROS

Como abordar a obra desse homem, nosso

contemporneo?

Mszros, a respeito de Sartre

O presente estudo tem como objetivo analisar e fornecer

elementos para a compreenso do conceito de capital desenvolvido por

Istvn Mszros, bem como de algumas implicaes tericas, polticas e

educacionais que se desdobram a partir desse conceito. A origem de tal

problematizao se situa, precisamente, nas concluses obtidas em

nossa pesquisa de mestrado, realizada junto ao Programa de Ps-

Graduao em Educao da Universidade Federal de Santa Catarina,

entre os anos de 2008 e 2010, e intitulada Educao e poltica no pensamento de Istvn Mszros: estudo introdutrio.

Naquele momento, importava-nos apreender o conceito de

educao formulado pelo filsofo hngaro, considerado um pensador

relevante sobre a temtica educacional entre os meios polticos e sociais

progressistas, que se situam do lado emancipador da luta de classes,

portanto, do lado dos trabalhadores e contra o capital.

O resultado de nossos esforos investigativos de ento nos

levou concluso de que o conceito de educao em Mszros s

poderia ser decifrado em sua inteireza se considerado em relao sua

formulao de cunho poltico, isto , sua teoria para o enfrentamento da

ordem social do capital mediante a instaurao de um processo de

transio socialista. Compreendemos, assim, que, para Mszros, a

educao responde por um conjunto de atividades que se insere dentro

de um complexo mais amplo de empreendimentos prticos, efetivados

no sentido de organizar materialmente um sistema de mediaes capazes

de negar a forma capital e de afirmar/instaurar a revoluo social

orientada no rumo do socialismo. Em outras palavras, para o filsofo

hngaro, a educao, como fomentadora da contraconscincia comunista, parte de uma teoria mais ampla, fundamentalmente

poltica, teoria esta que precisa ser apreendida em sua totalidade se se

deseja iluminar a parte em que consiste, de fato, a teoria da educao.

Nesse contexto, verificamos que as elaboraes tericas de

Mszros sobre educao e poltica evidenciam uma influncia muito

forte da teoria da alienao de Marx, efetivada, em suas bases

20

elementares, nos Manuscritos econmico-filosficos, de 1844. A

educao vista, portanto, pelo filsofo hngaro, como constituinte

necessrio do hercleo esforo para a transcendncia positiva da

auto-alienao do trabalho, fenmeno que, na etapa histrica atual, se

materializa na forma social sob o controle do capital. A educao ,

assim, crtica da alienao sob todas as formas, mas, em especfico, sob

a forma do capital. Por conseguinte, a educao concebida por Mszros

crtica do capital. Sendo crtica do capital, e partindo do pressuposto de que o

capital s pode ser superado por meio de uma revoluo social, a

concepo mszriana a de uma educao revolucionria, portanto, que no permite absolutamente nenhuma concesso sequer ao atual

modo como os homens produzem e reproduzem a sua vida em

sociedade. Sendo revolucionria, a educao de Mszros uma educao que se dirige necessariamente para a e s se realiza na luta

de classes. Inserindo-se nessa dinmica prtica de contradies antagnicas que ela, a educao, pode veicular os contedos de cunho

cientfico, esttico, ideolgico elaborados a partir da perspectiva da

humanidade social (Marx) capazes de auxiliar a classe trabalhadora

nos seus objetivos emancipatrios.

Trata-se, ento, de uma proposta materialista que, compreendendo o capital como um sistema de mediaes de segunda

ordem que se afirma sobre e domina as mediaes de primeira ordem

da atividade produtiva , concorre para a formao dos instrumentos alternativos de combate dos trabalhadores, dentro da perspectiva da

ofensiva socialista, conjunto de aes estratgicas voltadas para efetivar

as mediaes de luta organizadas em funo da grande tarefa histrica de confrontar e vencer o sistema alienante e fetichista de controle

sociometablico do capital.

Nesse contexto, tomando-se em considerao a atual fase

histrica de desenvolvimento do sistema do capital, caracterizada,

segundo Mszros, pela sua incontornvel crise estrutural - situao na qual a produo destrutiva um elemento marcante -, essa luta se

apresenta com um carter urgente, como um dilema cada vez mais

impositivo, agudo, incisivo, de onde se depreende que a educao tem

um papel premente, estratgico e insubstituvel. Uma educao para a

transio socialista. Portanto, uma educao para alm do capital.

Da que, fica evidente, a elucidao do conceito de capital,para

Mszros, se mostra como uma condio necessria para a boa

apreenso de seu conceito de educao para alm do capital. O capital

21

o complexo sociometablico a ser negado, ao passo que,

concomitantemente, a transio socialista totalidade de aes prticas

no interior da qual a educao transformadora se articula organicamente

- o processo material que precisa ser afirmado como condio

necessria para a emancipao humana.

Note-se que, para que a revoluo social no se esgote no

movimento que se resume em negar um objeto determinado visto que,

como nos lembra constantemente o filsofo hngaro, toda prtica de

negao condicionada por aquilo que nega e, portanto, tem o seu ser

determinado pelo ser por ela negado -, preciso afirm-la como uma

realidade qualitativamente diferente do capital. Sua definio isto , a

definio da transio socialista, bem como da educao para alm do

capital depende, portanto, da anlise concreta do ser do capital. Da,

concomitantemente, o limite da pesquisa anterior e o problema que

serve de motivo para a investigao atual: para Mszros, em que

consiste o capital?

*

Ao longo de nosso percurso, observamos que a obra de

Mszros tem sido estudada no apenas por educadores interessados em contribuir no mbito da atividade educacional para os combates da

classe trabalhadora. Tem sido estudada, tambm, por intelectuais e

militantes vinculados s mais variadas organizaes polticas, a fim de

captar, no pensamento do filsofo hngaro, elementos que permitam

pensar e compreender a realidade concreta atual, no interior da qual se

d a dinmica da luta de classes. Sujeitos interessados, portanto, em

saber o que Mszros tem a dizer sobre o ser do capital em sua forma

atual e sobre as possibilidades abertas pela histria para a sua superao

definitiva.

Pudemos constatar, nesse contexto, opinies diversas, tanto

elogiosas como combativas, a respeito das posies sustentadas pelo

filsofo hngaro. A algumas delas devemos fazer meno, ainda que

brevemente, nesta introduo.

Para Ricardo Antunes, por exemplo, as reflexes contidas em

Para alm do capital se configuram como uma das mais agudas

reflexes crticas sobre o capital em suas formas, engrenagens e

mecanismos de funcionamento sociometablico, compondo uma

demolidora crtica do capital e uma das mais instigantes, provocativas

22

e densas reflexes sobre a sociabilidade contempornea e a lgica que a

preside (2002, p. 15).

Jos Paulo Netto, por sua vez, comparando as teorizaes de

Mszros com as de Gyrgy Lukcs, sem menosprezar a enorme

importncia do segundo para o desenvolvimento criativo da teoria

marxista, afirma que o primeiro avana visivelmente no que toca a

questes especficas, em especial aos temas da crtica da economia

poltica e no mbito da teoria poltica (2013, p. 16). Isso se deve,

segundo o estudioso brasileiro, ao fato de que a formao e o

desenvolvimento de Mszros demonstram cabalmente que ele um

ponto fora da curva-padro da intelectualidade contempornea, visto

que possui um acervo de conhecimentos e uma bagagem cultural que

lhe permitem transitar com desenvoltura e competncia notveis (Ibid.,

p. 15-6) nos temas diversos e multifacetados aos quais Lukcs se

dedicou. Isso se deve, tambm, ao mirante privilegiado de Mszros

em relao ao seu contexto histrico, um mirante que lhe possibilitou a

ativa participao direta em alguns acontecimentos histricos cruciais

do sculo XX, como a invaso da Hungria pela Unio Sovitica em

1956, evento que se revelaria marcante para o desenvolvimento do seu

pensamento e para a sua evoluo poltica.

David Harvey, de sua parte, tambm faz uma meno elogiosa a

Mszros, dizendo que ele tirou corretamente grande proveito (2011,

p. 52) das esparsas reflexes de Marx sobre o poder burgus em

ascenso, que viria a esmagar as revolues socialistas nos pequenos

recantos do mundo um ponto crucial, como se ver adiante, para as

teorizaes do filsofo hngaro sobre o fim da fase de ascendncia

histrica do capital e sobre a crise estrutural desse sistema. O economista egpcio Samir Amin escreveu, sobre o livro A

crise estrutural do capital, estou convencido de que todos ns aprenderemos muito com ele (2009) e o filsofo Leandro Konder

afirmou, sobre as reflexes de Mszros a respeito dos mltiplos

aspectos do ser social contidas em Filosofia, ideologia e cincia social, que o filsofo hngaro defende com maestria a originalidade da

produo filosfica de Karl Marx e apregoa a essncia dialtica da obra

do pensador alemo contra deformaes positivistas (2008). Podemos

citar, ainda, entre as referncias simpticas, o estudioso Jos Chasin, que

caracterizou como proeza os esforos envidados e os resultados de

23

Mszros para caracterizar a produo destrutiva e a crise estrutural do

capital no opsculo Produo destrutiva e Estado capitalista1.

Por outro lado, temos tambm avaliaes no to benevolentes

sobre as construes do filsofo hngaro. O economista Jos Martins,

por exemplo, depois de criticar acidamente o ecltico socilogo [?]

hngaro Istvn Mszros (2005, p. 24), refuta ou acredita refutar a

teoria da crise estrutural com... uma citao de Marx (que, colocada ao

lado de uma citao de Mszros, pretende dar a impresso de, por

haver discrepncias entre elas, isso por si s justificaria o completo

descarte das formulaes tericas do filsofo hngaro...).

De outra parte, uma crtica que tem o mesmo esprito da

anterior, embora relacionada com a teoria da transio de Mszros, a

do professor Hector Benoit, que duvida que o autor [isto , Mszros],

em seu conceito de transio possua alguma inspirao mais slida na

teoria marxista clssica, e o censura, consequentemente, em seguida,

por no se inspirar na tradio da Oposio de Esquerda, por no

coincidir com a concepo de transio que aparece no programa da IV

Internacional e por se afastar das concepes de Lenin e de Marx

(2003, p. 5). Mszros condenado, assim, puramente, por se afastar

e por no se inspirar nas posies de Marx, Lenin, Trotsky e nas da

IV Internacional...

O critrio dessas crticas parece-nos precrio e at mesmo

procustiano, na medida em que busca enquadrar e descartar o

filsofo hngaro a partir de uma mera verificao de suas discrepncias

em relao obra Marx, ou de passagens isoladas da obra de Marx,

tomadas de modo um tanto fetichista. Na verdade, temos a impresso de

que esse critrio esconde um outro, a saber: minha interpretao da teoria e minha concepo poltica - absolutas e insuperveis - so as

medidas para a avaliao da sua formulao terica. por isso que entendemos que tais posies se assemelhariam a uma espcie de leito

de Procusto com o qual se pretende avaliar o autor mediante critrios

arbitrrios situados fora de sua obra e, por que no dizer?, em certo

sentido, fora mesmo da prpria histria.

*

1 No decorrer deste texto, veremos ainda outras referncias positivas obra de

Mszros, procedentes de intelectuais e militantes vinculados s mais diversas

organizaes e orientaes tericas marxistas.

24

De nossa parte, pensamos que nem se o objetivo de Mszros

fosse o de meramente repetir a letra do que est escrito em Marx, Lenin,

ou de quem quer que seja, se justificaria uma avaliao feita nesses

moldes. Ademais, no isso, em absoluto, o que deseja o pensador

hngaro. Pela leitura de Para alm do capital, sua obra mxima,

acreditamos que fica razoavelmente claro que a inteno do filsofo a

de criar conceitos que expressem a realidade histrica e no

simplesmente repetir conceitos engendrados em outros contextos. Essa

criao conceitual e, sublinhamos, a efetivao de um conceito sobre

o capital est contida nesse projeto busca dialogar criticamente com a

tradio passada, ao mesmo tempo em que confronta esse rico cabedal

com a anlise do devir histrico, intentando elev-lo a um patamar

superior de compreenso e de formulao.

Mszros visa a uma conceituao do capital que no dispensa

o que Marx escreveu, mas que procede no sentido de incorporar o rico

acmulo terico proporcionado pelo filsofo alemo aos resultados das

novas investigaes que a histria, em seu processo aberto de vir-a-ser,

exige e proporciona. O resultado uma concepo qualitativamente

diferente, e que, por isso, precisa ser ponderada a partir dela mesma, de

sua coerncia interna, de sua adequao aos seus pressupostos e

objetivos, e, claro, de sua coerncia com a prpria realidade concreta

que procura dar conta em termos de explicao.

O resultado dessa nova teoria do capital no pode ser medido

por meio de abstratas referncias procustianas a Marx, e sim por sua

comparao com a prpria histria. O julgamento da teoria ser dado,

assim, no pela opinio deste ou daquele estudioso em particular, desta

ou daquela organizao, ou militante, ou dirigente especficos: ser dado

pela histria.

justamente por esse motivo que tal teoria precisa ser

investigada, perscrutada, escrutinada, a fim de que sua constituio

ntima, seus fundamentos, seus nexos internos, suas ideias basilares

sejam evidenciadas, sejam debatidas, sejam criticadas pelo nico sujeito

histrico a quem interessa o tipo de reflexo a que Mszros se dedica

realizar: a classe trabalhadora em sua luta de morte contra o capital.

ela, a classe trabalhadora em marcha, quem ter as melhores condies

de verificar que ou quais formulaes conceituais e tericas so as mais

profcuas e produtivas no que tange conquista do seu objetivo

supremo: a efetivao da emancipao humana e a realizao dos

indivduos socialmente ricos e plenamente desenvolvidos.

25

O que nos propomos, com este estudo, dar alguma

contribuio para esse debate, com a conscincia de que os resultados de

nossos esforos so bastante modestos e que esto muito aqum, em

termos de profundidade, complexidade e clareza, do que a classe

trabalhadora realmente necessita.

*

O que , ento, para Mszros, o capital? Como dissemos

acima, sua teorizao no dispensa as formulaes de Marx, mas as

integra em uma elaborao qualitativamente diferente. A grande

dificuldade, para a apreenso em detalhe dessa formulao alternativa,

est em saber de que maneira procede o filsofo hngaro em seu

movimento de criao conceitual. Como efetua a sua interlocuo crtica

com Marx? Quais obras do pensador alemo so as mais importantes e

como so usadas no interior da apropriao criativa de Mszros? O que

negado e conservado, e como se d a tentativa de elevao da teoria a

um patamar superior?

Para fornecer elementos que, qui, possam elucidar algumas

dessas questes, movemo-nos, ao longo desta investigao, no sentido

de fazer com que a prpria obra de Mszros falasse por si. Isto :

mediante uma pesquisa terica, intentamos desvend-la a partir de seu

vir-a-ser enquanto corpo conceitual e terico. Isso exigiu no o estudo

de uma ou de outra obra especficas, tomadas isoladamente, e sim a

perquirio da obra do autor, em seu desenvolvimento constitutivo,

como um todo.

claro que tivemos, nesse escrutnio, que efetuar recortes e

privilegiar certos escritos em detrimento de outros. No entanto, os

escritos privilegiados foram os que se nos revelaram os mais

representativos do pensamento do autor. Assim, nosso esforo se deu no

sentido de tentar fazer com que as obras particulares escolhidas fossem

situadas no interior da obra global, aberta e em processo, e, nessa dinmica, perscrut-las de tal forma - uma em relao s outras e cada

uma em relao ao todo - que, da insero das partes no todo em

movimento, tanto as partes especficas quanto o todo complexo se

iluminassem reciprocamente, a partir desse ir e vir ininterrupto de

dissecao e de recomposio.

Seguimos, desse modo, o mesmo caminho terico-

metodolgico j delineado em nossa pesquisa anterior, mas com um

objeto de pesquisa novo. Antes, havamos investigado e chegado

26

concluso de que a educao para alm do capital assim se definia por

se situar no interior de uma teoria poltica para alm do capital teoria

esta, bem entendido, efetivada em termos de uma teoria da transio socialista. Agora, o que importa descobrir, justamente, o contedo

capital que d luz a essa educao e a essa teoria poltica especficas.

Uma vez apreendido o conceito de capital forjado por Mszros bem

como os conceitos que da se desdobram: crise estrutural, imperialismo,

entre outros -, tanto a sua teoria da transio socialista quanto a sua

teoria da educao se esclarecem por consequncia.

O presente estudo visa a contribuir, ento, para o

aprofundamento do conhecimento da obra de um autor que nunca

deixou de envidar esforos no sentido de realizar a plena emancipao

de sua classe2. Nesse contexto, apresentamos, no primeiro captulo, a

pista fundamental que guiou o movimento desta pesquisa, as linhas

gerais do conceito de crise estrutural do capital a partir da anlise do

ensaio Produo destrutiva e Estado capitalista. No segundo captulo, elucidamos os elementos concernentes ao ncleo terico e filosfico do

pensamento de Mszros delineados no livro A teoria da alienao em

Marx. A se encontra o seu sistema in statu nascendi, o fundamento de

sua teoria em termos de ontologia e poltica, bebidos na fonte das

reflexes do Marx de 1844.

No captulo terceiro, comeamos a analisar o movimento desse

pensamento em direo a uma teoria concreta a respeito do ser social do

capital e das possibilidades de sua superao mediante um processo

socialista de transio. Constatamos, aqui, que tal teoria se materializa

em um conjunto de ensaios publicados entre as dcadas de 1970 e 1980,

que averiguamos com algum detalhe no decorrer do texto. No quarto

captulo, verificamos uma formulao mais concreta dessa teoria a partir

do estudo da obra O poder da ideologia, tratado no qual se encontram bastante explcitas influncias tericas fundamentais para as ideias de

Mszros e que permitem compreender meandros e facetas importantes

de seu pensamento.

O quinto captulo um captulo intermedirio, onde analisamos

duas questes estrategicamente vitais para a apreenso do movimento da

2 Istvn Mszros nasceu no seio de uma famlia de classe trabalhadora, em

Budapeste, no ano de 1930. Ainda durante a infncia, trabalhou em fbricas de

avies, de tratores, txteis, tipografias, e at no departamento de manuteno

de uma ferrovia eltrica, que demandava o trabalho mais pesado de todos. Para

mais informaes a respeito da histria de vida do filsofo hngaro, ver

Mszros (2006).

27

formao terica do filsofo hngaro: sua maneira terico-metodolgica

de abordar a obra de Marx e elementos sobre o modo como o conceito

de alienao se mostra presente nas obras do Marx de maturidade, em

especial, nO Capital. O sexto captulo dedicado ao estudo de sua obra

maior, Para alm do capital: rumo a uma teoria da transio, onde

averiguamos pontos centrais de sua formulao que, apesar de j

assentados em publicaes anteriores, passam agora a apresentar uma

concretude, densidade e profundidade muito maiores.

O stimo captulo retoma as reflexes sobre a educao

expostas fundamentalmente no ensaio A educao para alm do capital.

O oitavo captulo, a concluso deste trabalho, procura sintetizar o estudo

sobre o conceito de capital em Mszros no objetivo de dar concretude

ao seu conceito de educao para alm do capital.

Por fim, como apndice da presente investigao, apresentamos algumas notas de estudo sobre a histria das crises cclicas do capital,

com a inteno de que tais apontamentos possam dar informaes

relevantes para a compreenso concreta do vir-a-ser do capital tal como

o concebe Mszros.

28

29

2 CAPITAL: SEDE VAMPIRESCA E CRESCIMENTO

CANCERGENO

A natureza do capital permanece a mesma,

tanto em sua forma no desenvolvida como

em sua forma desenvolvida.

Marx, O Capital

Em A teoria da alienao em Marx, obra cujo objetivo

analisar os aspectos ontolgicos, econmicos, polticos, estticos e

morais da teoria da alienao contida nos Manuscritos econmico-

filosficos, de 1844, Mszros ressalta elementos que considera

importantes para uma pesquisa terica. Talvez o principal deles seja o de

que o contedo de uma obra particular de um autor historicamente

representativo melhor compreendido se o analisamos luz de sua obra

global. No escrito em questo, tais pressupostos se traduziam no

seguinte procedimento prtico:

A estrutura da interpretao e da avaliao desses

manuscritos [isto , os Manuscritos econmico-

filosficos] a totalidade da obra de Marx sem o

que as descries de sua primeira sntese no

podem passar de uma caricatura, por mais que no

se pretenda isso. No apenas porque as

observaes enigmticas e sugestes aforsticas

dos Manuscritos de Paris no podem ser

decifradas sem referncia s suas obras

posteriores, mas principalmente porque atribuir o

conceito de alienao exclusivamente ao perodo

de juventude falsificar grosseiramente o Marx

Maduro [...], solapando a unidade e a coerncia

interna de seu pensamento. (2006b, p. 26, grifos

nossos)

Com tal proposio, Mszros est afirmando, entre outras

coisas, que nem sempre o contedo de uma obra especfica de um dado

autor inteligvel analisando-se essa obra em si mesma, e que, para

que se faam compreensveis muitos dos elementos de que essa obra

composta, deve-se integr-la ao movimento do vir-a-ser global do

pensamento desse autor, fato que possibilita ao investigador, justamente,

tomar esse prprio movimento que contm continuidades e

30

descontinuidades como chave para o entendimento daquilo que, em

princpio, pode parecer no satisfatoriamente claro na formulao

daquela obra especfica. Por isso, diz Mszros em seu ensaio, os

Manuscritos econmico-filosficos so interpretados com base na

totalidade da obra de Marx, o que permite que as observaes

enigmticas e sugestes aforsticas do texto de 1844 possam ser,

assim, melhor decifradas.

Em seu ensaio de fins da dcada de 1970 dedicado obra de

Sartre, essas ideias so retomadas. A, o filsofo hngaro afirma que, se

se proceder corretamente ao tomar o movimento do pensamento do autor

investigado como princpio para o entendimento, tanto da sua obra

global, quanto de suas obras especficas,

esses elementos [isto , os pontos e fases

particulares da obra de um autor] sero

iluminados em todos os pontos especficos do

desenvolvimento [...], os quais representam os

elos do movimento global e, assim, mostram a

tendncia fundamental de seu desenvolvimento.

(1991, p. 88)

Devemos empregar esse procedimento para o estudo do

conceito de capital no pensamento de Mszros. Sendo este um conceito

particular dentro de um sistema de conceitos, agiremos no sentido de

perquiri-lo a partir de sua integrao em relao obra global do

filsofo hngaro. Mas, uma vez que no temos em mos sua obra

global, somos obrigados a, pelo menos, tomar as obras mais

significativas e representativas de sua teoria. Por essa razo, como se

ver, o livro Para alm do capital ser analisado com base no estudo de

outros escritos mszrianos que, em nossa pesquisa, se mostraram

importantes como reveladores de elementos, facetas, determinaes e

at mesmo pistas para o esclarecimento do conceito de capital

desenvolvido pelo filsofo hngaro. Assim agindo, iremos, pouco a

pouco, cercando o conceito de capital em Mszros para, no momento

oportuno, adentrarmos de forma mais direta no estudo desse conceito

pelo que se apresenta delineado em sua obra mais importante.

De incio, ento, a primeira informao importante que

sublinharemos, e que tomaremos como fio condutor para esta

investigao, a seguinte: diferentemente do que afirma uma certa

vulgata a respeito da teoria de Mszros, o conceito de crise estrutural

do capital no nega que existam e continuem a ocorrer as famosas crises

31

cclicas e peridicas de superproduo de capital. Elas persistem, mas

dentro de um contexto histrico mais amplo, uma era de transio

caracterizada por Mszros como crise estrutural do capital. Vamos

agora analisar alguns pontos da obra do filsofo hngaro que confirmam

cabalmente essa nossa primeira afirmao.

*

O ensaio Produo destrutiva e Estado capitalista, aparecido

no Brasil em 1989, contm escritos onde j se observa um

desenvolvimento considervel, por parte de Mszros, a respeito de sua

teorizao sobre a crise estrutural do capital. Representam um

momento privilegiado da reflexo do filsofo hngaro onde algumas

ideias que tambm apareciam no contemporneo O poder da ideologia so analisadas especial e detidamente.

Como escreve Jos Chasin na Introduo desse ensaio, o filsofo tematiza um elemento central da forma atual de reproduo do

capital, a

produo da destruio, isto , a nulificao

direta de vastas quantidades de riqueza

acumulada e de recursos elaborados como meio

dominante de ordenao do capital

superproduzido. O que se torna possvel porque

consumo e destruio so equivalentes funcionais

do ponto de vista do perverso processo de

realizao capitalista. [...] Essa transformao

radical da produo genuinamente orientada para

o consumo em destruio [...] , por todos os

motivos, na propagao e reverberao de suas

implicaes sutis e brutais, o complexo

determinativo da destruio da identidade do

homem sua atividade auto-instauradora de si

como gnero humano. (1989, p. 12-3)

Para decifrar os meandros da atual necessidade de o capital

realizar a produo da destruio de forma planejada, dirigida e

generalizada, Mszros parte da relao dialtica existente entre a

atividade produtiva (com o concomitante desenvolvimento da fora

produtiva do trabalho) e o consumo. Seguindo as pegadas de Marx, o

filsofo hngaro estabelece que, ao longo do processo histrico,

avanos na produtividade inevitavelmente modificam o padro de

32

consumo, bem como a maneira pela qual sero utilizados, tanto os bens

a serem consumidos quanto os instrumentos com os quais sero

produzidos (1989, p. 15). Esses avanos, por sua vez, incidem,

reciprocamente, sobre a atividade produtiva em si mesma,

determinando tambm ao mesmo tempo a proporo segundo a qual o

tempo disponvel integral de uma determinada sociedade ser

distribudo entre a atividade necessria para o seu intercmbio

metablico bsico com a natureza e todas as outras funes e atividades

nas quais se engajam os indivduos da sociedade em questo (Ibid.,

idem)3.

3 Mszros cita, em seu ensaio, largamente, os Grundrisse, texto em cuja

Introduo, de 1857, Marx teoriza justamente sobre a relao dialtica existente

entre produo e consumo. Com efeito, afirma o filsofo alemo: O consumo

produz a produo de duas maneiras: 1) na medida em que s no consumo o

produto se torna produto. Por exemplo: um terno s se torna realmente um terno

quando vestido; uma casa desabitada no realmente uma casa. [...] 2) na

medida em que o consumo cria a necessidade de uma nova produo e, por

conseguinte, a condio subjetiva e o mbil interno da produo, a qual seu

pressuposto. O consumo motiva a produo e cria tambm o objeto que, ao

atuar sobre ela, vai determinar a sua finalidade. [...] Pelo lado da produo, o

problema caracteriza-se assim: 1) A produo fornece ao consumo a sua

matria, o seu objeto. Consumo sem objeto no consumo; nesse sentido, a

produo cria, produz o consumo. 2) Porm, a produo no fornece apenas um

objeto de consumo; d-lhe tambm o seu carter especfico e determinado, d-

lhe o toque final tal como o consumo d ao produto o toque final que converte

uma vez por todas em produto. [...] O que a produo produz objetiva e

subjetivamente no s o objeto do consumo; tambm o modo de consumo. A

produo cria, pois, o consumidor. 3) A produo proporciona no s um objeto

material necessidade, mas tambm uma necessidade ao objeto material. [...] O

objeto de arte e analogamente, qualquer outro produto cria um pblico

sensvel arte e capaz de fruio esttica. Deste modo, a produo no cria s

um objeto para o sujeito; cria tambm um sujeito para o objeto. A produo

produz, pois o consumo: a) fornecendo-lhe a sua matria; b) determinando o

modo de consumo; c) provocando no consumidor a necessidade de produtos que

ela criou originalmente como objetos. Por conseguinte, produz o objeto de

consumo, o modo e o impulso para consumir. Pelo seu lado, o consumo [cria] a

disposio do produtor, solicitando-o como necessidade animada duma

finalidade (a produo) (1979, p. 41-43). E, mais adiante, inserindo novas

mediaes (distribuio, troca) ao circuito dialtico produo-consumo, Marx

esclarece sobre o momento predominante dessa dinmica: A concluso a que

chegamos no de que a produo, a distribuio, a troca e o consumo so

idnticos; conclumos, sim, que cada um deles um elemento de um todo, e

33

Portanto, Mszros est considerando aqui que, em se tratando

especificamente do sistema do capital, a atividade de produo e de

consumo, que tem sempre o momento predominante na produo mais frente, o filsofo dir que , na verdade, na auto-reproduo

4 se

estabelece a partir de uma dinmica em que seus polos interagem entre

si e se intercondicionam mutuamente. Tal premissa, salvo engano de

nossa parte, um dos elementos mais importantes para toda a

argumentao desenvolvida pelo filsofo hngaro no referido ensaio.

A anlise da taxa de uso decrescente, portanto, est assentada

sobre esse pressuposto, e toda e qualquer referncia que Mszros faz a

representa diversidade no seio da unidade. Visto que se determina

contraditoriamente a si prpria, a produo predomina no apenas sobre o setor

produtivo, mas tambm sobre os demais elementos; a partir dela que o

processo sempre se reinicia [grifo nosso]. evidente que nem a troca nem o

consumo podiam ser os elementos predominantes. O mesmo se verifica em

relao distribuio tomada como distribuio dos produtos; e se a tomarmos

como distribuio dos agentes da produo, ela um momento da produo. Por

conseguinte, uma dada produo determina um dado consumo, uma dada

distribuio e uma dada troca; determina ainda as relaes recprocas e bem

determinadas entre esses diversos elementos. Sem dvida que a produo em

sentido estrito tambm determinada pelos outros elementos. Assim, quando o

mercado esfera de troca se expande, a produo aumenta de volume e

divide-se ainda mais. Quando o capital se concentra, ou quando se modifica a

distribuio dos habitantes entre a cidade e o campo, etc., a produo modifica-

se devido a essas modificaes de distribuio. Por ltimo, as necessidades de

consumo influem na produo. Existe uma interao de todos esses elementos:

isto prprio de um todo orgnico (Ibid., p. 53). Em seu importante estudo

sobe os Grundrisse, Enrique Dussel, comentando sobre a relao entre produo

e consumo, resume-a explicativamente afirmando que, para Marx, a produo

cria o objeto do consumo, o modo de consumo e o impulso (Trieb) [...].

Contudo, [...] o consumo tambm cria a produo: [...] O consumo, como ato

mesmo pelo qual se usa ou destri o objeto (por ingesto, p. ex.), gozo,

satisfao. Enquanto tal, criao da necessidade tendncia, impulso a gozar

novamente outro objeto. Deste modo, o consumo determina ideal,

representativa ou tendencialmente a produo (2012, p. 41-2). 4 Nas suas palavras, o capital no est em absoluto preocupado com a produo

enquanto tal, mas somente com a auto-reproduo (Ibid., p. 101). Produo e

auto-reproduo ampliada do capital podem no s no coincidir, diz Mszros,

como se opor diametralmente. o que acontece atualmente, quando se verifica

a auto-reproduo destrutiva do capital. Este captulo tratar de explicitar

componentes determinantes da referida destrutividade.

34

respeito do assunto deve ser situada no interior de tal contexto

conceitual especfico.

A taxa de uso decrescente, diz o filsofo, est, em certo

sentido, claramente implcita nos avanos conquistados com relao

prpria produtividade (Ibid., p. 16). Ou seja, a taxa de uso decrescente

se desenvolve a par e a passo com a atividade produtiva, em especial,

com o aumento da produtividade desta - engendrada pelo

desenvolvimento histrico -, que, no sistema do capital, cresce

celeremente e de maneira exponencial.

A taxa de uso decrescente se expressa, de incio, segundo

Mszros,

na proporo varivel em que uma sociedade

aloca quantidades determinadas de seu tempo

disponvel total para a produo de bens de rpido

consumo (por exemplo comida), em contraponto

aos que continuam usveis (por exemplo re-

utilizveis) por um perodo de tempo maior: uma

proporo que obviamente tende a se modificar a

favor dos ltimos. (Ibid., p. 16)

Portanto, essa proporo varivel que se altera mediante

modificaes afirmadas na atividade produtiva em desenvolvimento

constante entre a quantidade de tempo dispendida na produo de bens

de rpido consumo e a quantidade de tempo gasta na produo de bens

reutilizveis o que se deve ter em mente ao se buscar compreender as

mudanas que o capital realiza na taxa de uso decrescente.

Mszros dir, na sequncia, que, atingido certo estgio de

desenvolvimento das foras produtivas, no interior do sistema do

capital, a tendncia de essa proporo varivel se orientar em favor dos

bens reutilizveis revertida de modo radical. Para bem usar as palavras do filsofo hngaro, isso significa que

a sociedade descartvel [encontra] o equilbrio,

entre produo e consumo necessrio para a sua

contnua reproduo, somente se ela puder

artificialmente consumir em grande velocidade

(isto , descartar prematuramente) grandes

quantidades de mercadorias, que anteriormente

pertenciam categorias de bens relativamente

durveis. Desse modo, ela se mantm como

sistema produtivo manipulando at mesmo a

35

aquisio dos chamados bens de consumo

durveis, de tal sorte que estes necessariamente

tenham que ser lanados ao lixo (ou enviados a

gigantescos cemitrios de automveis como

ferro-velho, etc.) muito antes de esgotada sua vida

til. (Ibid., idem)

Em outras palavras, em dado contexto histrico do

desenvolvimento do capital, o equilbrio buscado por esse sistema

para adequar a produo e o consumo necessrios para a sua reproduo

sistmica, se estabelece por meio de uma produo e do devido tempo

disponvel que essa atividade requer - que se estrutura de tal forma que d luz um consumo (em enorme velocidade) de grandes quantidades

de mercadorias que antes se enquadravam na categoria de bens durveis.

Da que o sistema do capital se mantm fazendo com que a atividade

produtiva manipule a aquisio e o consumo dos bens durveis de modo

a fazer com que sejam descartados bem antes de serem totalmente

usados de fato, gastos, etc. Em sntese, a alocao do tempo disponvel

para a atividade produtiva proporcionalmente aumentada para a

produo de, por assim dizer, bens durveis que no devem durar.

Esse quadro se agrava amplamente quando, como resultado do

desenvolvimento do capital, o complexo militar-industrial se estabelece

como centro em torno do qual se organiza a atividade produtiva e

reprodutiva social humana. Nesse contexto, a reproduo do capital gera

um tipo de consumo adequado s novas exigncias desse sistema, o que

resulta numa situao amplamente problemtica para a garantia da

viabilidade do metabolismo humano sobre o planeta, como Mszros se

empenhar em demonstrar.

importante ressaltar, nesse contexto, que a tendncia taxa de

utilizao decrescente no representa, por si s, um problema para a

sociabilidade humana. De acordo com Mszros, ela inerente ao

prprio desenvolvimento das foras produtivas e pode ser considerada

mesmo como algo positivo. A esse respeito, o filsofo hngaro compara

o uso constante dos meios de produo em estgios extremamente

primitivos do desenvolvimento histrico com o uso de meios de

produo, por exemplo, por parte de um arteso num contexto histrico

mais prximo do capitalismo. No primeiro caso, quando os meios de

produo so praticamente a extenso inorgnica do corpo do sujeito,

o seu uso constante. No segundo caso, a situao diferente, pois,

36

sob a tica avantajada de um estgio muito mais

avanado, a especializao manifesta na

multiplicidade das diferentes ferramentas

empregadas pelo arteso, que rene uma gama de

habilidades em uma s pessoa (por exemplo o

mestre-arteso), inevitavelmente traz consigo o

fato de que parte dos instrumentos de produo

(na realidade, at sua maioria) permanea sem

uso, enquanto outros esto sendo usados por ele.

(Ibid., p. 18)

Essa sub-utilizao no , por si mesma, como dissemos, algo

negativo, nem representa um problema para a sociabilidade humana. A

coisa, no entanto, muda de figura no contexto do sistema do capital,

quando as alteraes na atividade produtiva e no consequente consumo

exigido por esse complexo sociometablico colocam em cena novas

situaes, que so dramticas e desafiadoras para a humanidade como

um todo. Aqui, o tipo de reproduo sociometablica engendrada pela

dinmica inerente ao prprio sistema exige a necessidade da contnua

utilizao da maquinaria produtiva capitalista. Nesse sentido, como

explica Mszros,

a inerente articulao social da maquinaria

produtiva capitalista implica, como pr-requisito

de sua higidez, a necessidade de sua contnua

utilizao. Esta uma exigncia que tem que ser

satisfeita, caso se queira evitar a reao em

cadeia das assim chamadas disfunes

temporrias, de consequncias mais ou menos

destrutivas. Consequentemente, a sub-utilizao

(ou no utilizao) da maquinaria produtiva

capitalista em determinadas condies scio-

econmicas (por exemplo, crises peridicas;

porm, como logo veremos, cada vez menos e to-

somente sob as circunstncias de tais crises) a

manifestao de uma sria doena social. (Ibid.,

p. 19)

Ou seja, em contextos outros que no o do predomnio da

relao-capital, a sub-utilizao dos instrumentos de produo no

representa, por si s, um problema. No entanto, quando do domnio do

capital, essa sub-utilizao expresso da ativao de contradies

37

entranhadas na constituio mais ntima desse sistema de produo e

reproduo sociometablica.

Temos, ento, o seguinte quadro: por um lado, a taxa de

utilizao decrescente diz respeito quantidade de tempo social

disponvel para a produo, que tende a variar, com o desenvolvimento

das foras produtivas, no sentido de ser alocado mais para a produo de

bens durveis do que de bens de consumo relativamente rpido; sob o

contexto do capital, essa proporo alterada, em virtude de mudanas

na prpria atividade produtiva, a fim de fazer com que o tempo

disponvel para a produo seja empregado cada vez mais na produo

de bens que devem ser rapidamente consumidos (tendo que ser,

necessariamente, vendidos, mas no necessariamente usados). Por

outro lado, temos o fato de que a sub-utilizao (ou no-utilizao) de

meios de produo no significa, por si s, um problema, em se tratando de formas sociais outras que no a dominada pela relao-capital; mas,

na forma social do capital, essa sub-utilizao a expresso de contradies existentes no mago desse sistema, como nas ocasies de

crises peridicas, por exemplo. (Ressalte-se, aqui, que Mszros

estabelece essa reflexo sempre tendo como base, como dissemos

anteriormente, a relao dialtica existente entre a atividade produtiva e

o consumo, que tem a primeira como momento predominante, mas cujos

elementos da relao se imbricam e se condicionam reciprocamente).

O filsofo hngaro segue sua explicao dizendo que a queda

da taxa de utilizao, que se verifica com o pleno desenvolvimento do

capital, tem como pressuposto a transformao da fora de trabalho em

mercadoria. Uma vez que este elemento se torna mercadoria, a

produo e a produtividade tendem a aumentar, bem como o nmero de

consumidores (que antes era relativamente limitado) a crescer, fatos que

so acompanhados, em dado momento histrico, por uma forma

especfica de diminuio da taxa de uso. Com base nessas condies,

portanto, o desenvolvimento da atividade produtiva se torna mais

dinmico, sempre tendo como elemento determinante desse

desenvolvimento a subordinao do valor de uso s necessidades de

reproduo ampliada do capital.

Nesse sentido, afirma Mszros:

Devidamente situado no tempo e no espao, isto

[a transformao da fora de trabalho em

mercadoria] representa uma inovao radical, que

abre horizontes anteriormente inimaginveis para

o desenvolvimento econmico. Uma inovao

38

baseada na constatao prtica de que qualquer

mercadoria pode estar constantemente em uso,

num extremo da escala [por exemplo, na esfera da

produo], ou ainda nunca ser usada, no outro

extremo das possveis taxas de uso [por exemplo,

na esfera do consumo], sem perder por isso sua

utilidade no que tange s exigncias

expansionistas do modo de produo capitalista

[grifo nosso]. Como resultado, o capital adquire

algumas novas potencialidades produtivas

importantes, na medida em que realmente no h

consequncia alguma para o seu sistema se a taxa

de uso, que caracteriza a relao do consumidor

com um dado produto, for mxima ou mnima.

Isto no afeta em absolutamente nada a nica

coisa que realmente importa do ponto de vista do

capital. A saber: que uma certa quantidade de

valor-de-troca seja efetivamente realizada na

mercadoria em questo atravs do ato de venda

em si [grifo nosso], sem levar em conta se ela

subsequentemente estar sujeita a uso constante

ou a muito pouco, se que a algum [...], como

pode ser o caso. Pois o capital define til e

utilidade em termos de vendabilidade; um

imperativo que pode ser realizado sob a

hegemonia e no domnio do prprio valor-de-

troca. (Ibid., p. 22-3)

Mszros, sempre partindo da relao dialtica entre produo e

consumo no processo de auto-reproduo do sistema do capital, est

buscando definir aqui o que ocorre com a taxa de uso quando do pleno

desenvolvimento histrico desse especfico complexo sociometablico.

Da a comparao que faz com modos de produo anteriores, nos quais

o trabalhador e seus meios de produo permaneciam estreitamente

unidos, como o caracol e sua concha (Marx, apud Mszros, ibid., p.

22). No sistema produtivo do artesanato urbano do medievo tardio, por

exemplo,

o objetivo direto e principal dessa reproduo a

subsistncia como artfice, como mestre-arteso,

por conseguinte, valor-de-uso; no riqueza, no

valor-de-troca como valor-de-troca. A produo ,

em vista disso, sempre subordinada a um dado

39

consumo, abastece a demanda e se expande

apenas lentamente. (Marx, apud Mszros, ibid.,

p. 21)

Mas, com a separao entre o caracol e sua concha, isto ,

com a afirmao da nova forma social, o quadro muda de figura, a

relao entre produo e consumo se altera. Altera-se, por conseguinte,

a taxa de utilizao nos vrios momentos do circuito que compe a

dinmica sociometablica. No contexto urbano do medievo tardio, a

taxa de uso de um produto produzido artesanalmente tendia a ser alta,

assim como relativamente baixo era o nmero de pessoas atradas para o

crculo do consumo. Por outro lado, no contexto do capital, com a

transformao da fora de trabalho em mercadoria, a forma que assume

a atividade produtiva e reprodutiva traz modificaes significativas para

a taxa de uso. O que importa, agora, no a satisfao de necessidades

humanas, mas a reproduo ampliada do capital.

O uso de certas mercadorias pelos seus compradores, do ponto

de vista do capital, pode ser mximo ou mnimo: no tem importncia.

Pois, como afirma Mszros, citando Marx: o valor-de-troca de uma

mercadoria no aumenta se o seu valor-de-uso for completamente

consumido e com maior proveito (Marx, apud Mszros, ibid., p. 23).

O mesmo se aplica, diz o filsofo hngaro, de maneira inversa. por

isso que

uma vez que a transao comercial tenha ocorrido,

auto-evidenciando a utilidade da mercadoria em

questo atravs do ato de venda, nada mais h

com que se preocupar do ponto de vista do capital.

De fato, quanto menos uma dada mercadoria

realmente usada e re-usada [...], enquanto a

demanda efetiva do mesmo tipo de utilizao

reproduzida com sucesso, melhor do ponto de

vista do capital: com isso tal sub-utilizao

produz a vendabilidade de outra pea de

mercadoria. (Ibid., p. 24)

Portanto, o que interessa para o capital a sua reproduo mediante a produo e a venda da mercadoria. O capital indiferente

em relao ao que o comprador vai fazer com a mercadoria, como e

quanto ir consumir dela, etc. Mas, diz Mszros, quanto menos uma

dada mercadoria usada ou reusada, melhor para a reproduo do

capital, na medida em que essa sub-utilizao retroalimenta o processo

40

de produo e de venda de novas peas de mercadorias, impulsionando,

dessa forma, a dinmica de todo o sistema. Ou seja, a atividade

produtiva, dirigida pelo capital, passa a organizar um determinado tipo de uso, de acordo com as suas necessidades auto-expansivas.

Nesse sentido, o que verdadeiramente vantajoso

para a expanso do capital no um incremento

na taxa (ou na intensidade) com que uma

mercadoria por exemplo uma camisa usada,

e sim, pelo contrrio, o decrscimo de suas horas

de uso dirio. Pois, enquanto tal decrscimo for

acompanhado por uma expanso adequada do

poder aquisitivo da sociedade, isso cria a demanda

por outra camisa. [...] De fato, esta tendncia para

reduzir a verdadeira taxa de uso tem sido

precisamente um dos principais meios atravs dos

quais o capital conseguiu atingir seu crescimento

verdadeiramente incomensurvel ao longo do

desenvolvimento histrico. (Ibid., p. 24-5)

Da ser o sistema do capital, segundo Mszros, crescentemente

dissipador em propores cada vez maiores, pois isso que, de fato,

atende aos imperativos de lucratividade que movem as suas

engrenagens mais profundas. Assim, assevera o filsofo hngaro:

Estas prticas produtivas dbias [grifo nosso] so

inseparveis da taxa de uso decrescente, que s

pode se tornar inteligvel se relacionada com a

separao forada do caracol de sua concha.

Uma vez que a estreita relao (no importa quo

coercitiva na origem) do trabalhador com os

meios de produo seja destruda pela alienao

delas do trabalhador, as partes constituintes do

processo de trabalho podem, e devem, seguir seu

prprio curso de desenvolvimento auto-orientado,

resultando finalmente no tipo de manifestaes

absurdas com as quais estamos todos

familiarizados. (Ibid., p. 28)

Produo (e superproduo) e uso se inter-relacionam e se

condicionam, aqui, dialeticamente, no processo auto-expansivo de

reproduo do capital, calcado, como diz Mszros baseado em Marx,

na alienao dos meios de produo do produtor, meios de produo

41

esses que se convertem, justamente, em capital e passam a se opor s

necessidades humanas, sobrepondo a elas as suas prprias necessidades.

Mszros afirma que isso repercute efeitos na taxa de uso

decrescente, no s das mercadorias, mas no que se refere ao plano da

utilizao do prprio capital (Ibid., p. 33). Isto , de acordo com o

filsofo hngaro, ocorreria, em virtude de sua prpria dinmica

produtiva e auto-reprodutiva, uma decrescente taxa de uso do capital

(Ibid., idem). Salvo engano de nossa parte, essa decrescente taxa de uso

do capital, no contexto da argumentao do filsofo, deve ser

entendida no sentido da destrutividade do prprio capital, inerente a sua

prpria dinmica sociorreprodutiva. Ocorreria, assim, uma combinao

de superproduo (com a realizao da troca correspondente a essa

superproduo) e sub-utilizao, mas sub-utilizao no sentido de uso

dissipador. Em relao a tais questes, vemos que Mszros argumenta,

aqui, primeiramente, no seguinte sentido:

Basta que recordemos a esse respeito a atual

situao da indstria automobilstica. No

somente porque muitas fbricas de automveis, de

mdias a grandes, desapareceram [grifo nosso]

nas trs ltimas dcadas em todo o mundo, dos

EUA Inglaterra, Frana, Itlia, Alemanha, etc.,

mas porque at mesmo indstrias

comparativamente grandes e subsidiadas pelo

Estado, como a British Leyland [...] e a Renault

tendo ambas encampado um nmero razovel de

empresas de porte em seus tempos de expanso,

usando a mesma racionalizao da economia de

escala continuam a passar por dificuldades

srias, em funo de sua aparente falta de

habilidade crnica para se adaptarem s

exigncias produtivas da sempre crescente

economia de escala adequada. (Ibid., p 33-4)

Portanto, a esse desaparecimento de unidades produtivas de

capital desaparecimento, ou destruio, inerentes prpria dinmica sociorreprodutiva do sistema que Mszros est se referindo quando

fala em decrescente taxa de uso do capital, uma decrescente taxa de

uso que combinada, como se percebe pela passagem acima destacada,

com as exigncias produtivas do desenvolvimento econmico na

42

forma social vigente, orientadas pela sua inerente necessidade de

superproduo crnica (Ibid., p. 37).

Salvo engano de nossa parte, o filsofo est combinando, em

sua anlise do contexto histrico atual do desenvolvimento do capital,

partindo da relao dialtica entre produo e uso, a superproduo e o

superconsumo nas respectivas esferas da produo e do consumo, mas, dialeticamente expressas na forma de superproduo e superconsumo

dissipadores isto , tal parece ser o sentido da sub-utilizao a que o filsofo constantemente faz referncia (Ibid., p. 38-9).

Da Mszros afirmar que a tirania capitalista do tempo

mnimo (autorizado pela produo) unida taxa de uso decrescente (na esfera de cada um deles, produo e consumo) tem de prevalecer sem

obstculos (Ibid., p. 39), e prevalecem at que algumas das

contradies inerentes ao sistema sejam ativadas de tal forma que

coloquem em questo a sua prpria viabilidade como regulador do

sociometabolismo humano.

Nesse contexto, o filsofo desenvolve suas ideias afirmando

que a tendncia taxa de uso decrescente afeta as trs dimenses

fundamentais da produo e do consumo capitalistas: 1) bens e servios;

2) instalaes e maquinaria; 3) a prpria fora de trabalho. Em relao

primeira dimenso, a tendncia se expressa na crescente velocidade da circulao, que, por sua vez, no elimina a tendncia para a crise de

superproduo (Ibid., p. 43). Isso apenas faz com que seja necessrio,

nas palavras de Mszros,

divisar meios que possam reduzir a taxa pela qual

qualquer tipo particular de mercadoria usado,

encurtando deliberadamente sua vida til, a fim

de tornar possvel o lanamento de um contnuo

suprimento de mercadorias superproduzidas no

redemoinho da circulao acelerada. A

obsolescncia planejada em relao a bens de

consumo durveis produzidos em massa, a

substituio, o abandono ou o aniquilamento

deliberado de bens e servios que oferecem um

potencial de utilizao intrinsecamente maior (por

exemplo, o transporte coletivo) em favor daqueles

nos quais a taxa de uso tende a ser muito menor,

at mnima (como o automvel particular) e que

absorvem uma parte considervel do poder de

compra da sociedade; a imposio artificial de

capacidade produtiva quase que completamente

43

inusvel (por exemplo, o superdesperdcio de

um complexo computador usado como

processador de texto, num escritrio onde uma

simples mquina de escrever seria perfeitamente

suficiente); o crescente desperdcio resultante da

introduo de tecnologia nova, contradizendo

diretamente a alegada economia de recursos

materiais (por exemplo, o informatizado

escritrio desprovido de papel, que consome

cinco vezes mais papel); a extino deliberada

das habilidades e dos servios de manuteno,

para compelir os clientes a comprar dispendiosos

produtos ou componentes novos, quando os

objetos descartados poderiam facilmente ser

consertados (por exemplo, compelir as pessoas a

comprar sistemas completos de silenciosos para

carros ao preo de 160 libras, em lugar de um

servio de solda de 10 libras, que seria

perfeitamente indicado para o caso) etc., - tudo

isso pertence a essa categoria, dominada pelos

imperativos e determinaes bsicas para

dissipativamente fazer decrescer as taxas de uso

reais. (Ibid., p. 43-4)

A cnica prtica da obsolescncia planejada, do dizer de

Mszros, , nesse contexto, adotada em larga medida. No entanto, ela

no completamente eficaz em resolver o problema da necessidade

radical de dissipao em larga escala, por parte do sistema, de bens

perfeitamente usveis. Nesse caso, o capital precisa criar uma garantia

muito mais segura, numa forma diretamente institucionalizvel, para a

necessria dissipao, em ampla escala, requerida pela dinmica auto-

expansiva da superproduo crnica.

Como afirma Mszros, essa garantia proporcionada ao

capital pelo surgimento e consolidao estatal do complexo militar-

industrial, que temporariamente afasta vrias das contradies mais

importantes (Ibid., p. 44-5). O complexo militar-industrial, segundo

suas palavras,

apropria e dissipa recursos e fundos de capital

excedente aparentemente ilimitados, sem se somar

absolutamente aos problemas da realizao e das

presses competitivas, como seria

necessariamente no caso da expanso do capital

44

orientada para o consumo real. Ao mesmo tempo,

o astronmico desperdcio [...] encontra sua

automtica justificativa e legitimao no apelo da

ideologia do interesse nacional e da segurana

nacional, sob a ao combinada dos poderes

legislativo, judicirio e executivo, em unssono

com os complexos militares-industriais

correspondentes. (Ibid., p. 45)

Torna-se claro, nesse contexto, as razes da exigncia de se

produzir guerras em larga escala, que passa a ser uma necessidade

intrnseca dinmica sociorreprodutiva do sistema do capital, fato que a

histria do sculo XX comprova em ampla medida.

Em relao segunda dimenso da produo e circulao

capitalistas mencionada por Mszros, instalaes e maquinaria, h

complicaes similares geradas pelo imperativo de expanso do sistema.

A taxa de uso decrescente se expressa aqui na forma de dissipao

crnica de instalaes e maquinaria, acoplada a uma presso crescente

para artificialmente encurtar o ciclo de amortizao dos mesmos, a fim

de se contrapor prpria tendncia (Ibid., idem). O sucateamento de maquinrio novo, aps um perodo de uso muito reduzido, exemplifica

aquilo que o filsofo visa explicar.

Essa desconcertante prtica produtiva (Ibid., p. 46)

realizada no intuito de substituir a maquinaria sucateada por algo mais

avanado, e vem acompanhada da ideologia da inovao tecnolgica como seu respaldo legitimador. De novo, aqui, o Estado desempenha

um papel fundamental, tanto provendo as corporaes com os fundos

necessrios para a renovao das instalaes e seu desenvolvimento,

quanto dando sustentao material, atravs de financiamento e

organizao direta, da assim chamada pesquisas bsica e tambm da

pesquisa de orientao tecnolgica.

Em relao ao terceiro aspecto da produo e consumo

capitalistas, o uso dissipador da fora de trabalho, Mszros afirma que

esta a contradio potencialmente mais explosiva (Ibid., p. 47) do

sistema do capital. Aqui, a taxa de uso decrescente se expressa como

desemprego crescente. Do ponto de vista do capital, trata-se de um

problema desconcertante, na medida que ele enxerga o trabalhador no

s como fator de produo, mas tambm como consumidor de

massa. O capital deve, ento, lidar com a contradio de precisar

encontrar consumidores de massa de modo que isso seja capaz de se

45

combinar com a exigncia de emprego de cada vez menos de trabalho

vivo.

A esse respeito, o filsofo hngaro afirma que

esta , de fato, a contradio antagnica e

literalmente explosiva dessas duas necessidades

fundamentais, porm irreconciliveis do capital,

que domina o discurso da moderna teoria

econmica burguesa, oferecendo a

reconciliao imaginria da contradio em tela

pela reescritura de seus termos de referncia e

redefinio da substncia de seus componentes,

tendo por objetivo a racionalizao ideolgica.

Consequentemente, a cincia econmica no s

inventa o Consumidor como entidade

independente, mas tambm invoca o capitalista

como o Produtor, reduzindo assim ficticiamente

o papel estratgico do trabalho a um mnimo

irrelevante. Dessa maneira, a poltica econmica

burguesa do sculo 20 simultaneamente reflete e

legitima, de um modo invertido caracterstico, a

mais anti-social e desumanizante tendncia do

capital para a eliminao brutal do trabalho vivo

do processo de trabalho. (Ibid., p. 49)

E, mais frente, acrescenta:

Sob tais circunstncias [isto , quando as duas

primeiras dimenses bens e servios e

instalaes e maquinaria so absorvidas pelas

contradies inerentes taxa de uso decrescente],

quando uma proporo cada vez maior de trabalho

vivo se torna fora de trabalho suprflua do ponto

de vista do capital, a cincia econmica

apologtica subitamente descobre que a

destituio de trabalho um problema estrutural, e

comea a falar de desemprego estrutural. O que

esquece de acrescentar , simplesmente, que

desemprego em massa estrutural somente para

o capital, e no para o avano do processo

produtivo enquanto tal. A responsabilidade, desde

que reconhecida, obstinadamente lanada sobre

os ombros do prprio progresso tecnolgico, ao

qual, naturalmente, ningum pode

46

conscientemente se opor, exceto talvez em nome

da utopia pessimista do pensamento liberal

desencantado denominada economia estvel.

(Ibid., p. 50-1)

Essas coordenadas tericas servem como base para a reflexo

que Mszros faz, em seguida, a respeito daquilo que denomina como

linha de menor resistncia do capital e suas transformaes ao longo do

desenvolvimento histrico. Essa teorizao entrelaada com o tema do

complexo militar-industrial, que passa a ser analisado em maior

profundidade. Mais uma vez, o pressuposto assumido aqui a

interao dialtica entre produo e consumo, que o filsofo hngaro

busca, especialmente, nos Grundrisse de Marx5. Essa interao

dialtica, na dinmica do movimento auto-reprodutivo e auto-expansivo

do capital,

implica a necessidade, por parte do capital, de

perseguir uma estratgia de realizao, que no

s supere as limitaes imediatas da demanda

flutuante do mercado, mas ao mesmo tempo tenha

xito tambm em se desembaraar radicalmente

das restries estruturais do valor-de-uso

enquanto atado necessidade humana e ao

consumo real. (Ibid., p. 59)

Frise-se: o movimento do capital, assentado na relao dialtica

entre produo e consumo, em razo das suas contradies internas ir

perseguir uma estratgia de realizao que no seja dependente da

demanda flutuante do mercado e que no esteja atrelada s limitaes do

5 Uma citao de Marx, aqui, ilustrativa do ponto sobre o qual a reflexo de

Mszros se assenta. Diz o filsofo alemo: A produo de mais-valia relativa,

isto , a produo de mais-valia baseada no crescimento e desenvolvimento das

foras produtivas, exige a produo de um novo consumo; exige que o crculo

de consumo no interior da circulao se amplie, como previamente ocorreu com

o crculo da produo. Primeiro, ampliao quantitativa do consumo existente;

segundo, criao de novas necessidades pela propagao das j existentes por

um amplo crculo; terceiro, produo de novas necessidades e descoberta e

criao de novos valores-de-uso (Marx, apud Mszros, Ibid., p. 56). Mas por

no estar submetida satisfao das necessidades humanas e sim ao

imperativo abstrato da realizao do capital (Ibid., idem), essa relao

dialtica entre produo e consumo revela-se extremamente contraditria e,

assim, problemtica para a viabilidade do sistema sociometablico estabelecido.

47

valor de uso assentado sobre alguma necessidade humana. A realizao

do capital ter que se dar, em razo disso, sobre outra base, sobre uma

demanda muito mais radicalmente determinada e sobre um uso para

alm de qualquer necessidade que se possa chamar de verdadeiramente

humana. Uma vez conseguido isso, diz Mszros, o caminho est

completamente aberto para deslocar muitas das contradies internas do capital (Ibid., idem).

Essa dinmica, explica Mszros, pode perdurar por um perodo

relativamente longo, mas tende a se saturar e a se confrontar com as

dificuldades para assegurar os recursos necessrios para o crescimento

cancergeno e cada vez mais dissipador do padro de produo (Ibid.,

idem). Quando isso ocorre, diz o filsofo, verificamos uma mudana

estrutural no sistema, a seu ver no plenamente prevista por Marx: a

transformao radical da produo genuinamente orientada para o consumo em destruio (Ibid., idem). Afirma-se, assim, em larga

escala, de modo generalizado, um crescimento cancergeno (Ibid.,

idem), uma produo-dissipadora (Ibid., idem), que adota uma forma

radical de desperdcio, isto , a destruio direta de vastas quantidades

de riqueza acumulada e de recursos elaborados - como meio dominante

de ordenao do capital superproduzido (Ibid., p. 60).

Dessa forma, em dado estgio do desenvolvimento do capital,

diz Mszros, consumo e destruio se tornam equivalentes funcionais

para o perverso processo de realizao capitalista (Ibid., idem),

ainda que, na prtica, verifique-se uma articulao desse processo com o

consumo normal, isto , o consumo de valores de uso correspondentes

a necessidades humanas. Mas a tendncia preconizada pelo capital,

afirma o filsofo hngaro, que essa articulao varie cada vez mais em

favor do polo do consumo destrutivo ou pseudoconsumo destrutivo

(Ibid., idem), como ele tambm designa esse processo -, como

observado, ao longo do sculo XX, nos pases capitalistas dominantes6.

Nesse ponto da reflexo de Mszros, a influncia terica e

poltica de Rosa Luxemburgo decisiva. Foi ela, segundo o filsofo,

quem primeiro assinalou antes da ecloso da primeira guerra mundial,

em 1913, as grandes vantagens da produo militarista para a

acumulao e a expanso capitalistas (Ibid., ibid.). bastante

6 Por isso, Mszros dir, mais frente, que, nas condies atuais, o objetivo e

o princpio orientador da produo vm a ser: como assegurar a mxima

expanso possvel (e a correspondente lucratividade) na base de uma taxa de

uso mnima, que mantenha a continuidade da reproduo ampliada? (Ibid., p.

72).

48

significativa, nesse contexto, a passagem citada por Mszros de A

acumulao do capital, de autoria da clebre dirigente revolucionria

comunista. Diz ela, referindo-se ao papel do militarismo no interior da

dinmica socioreprodutiva do capital:

Na forma de contratos governamentais para

suprimentos militares o poder de compra disperso

dos consumidores concentrado em grandes

quantidades e, livre das extravagncias e

flutuaes subjetivas do consumo pessoal, ele

adquire quase regularidade automtica e

crescimento rtmico. O prprio capital

basicamente controla este movimento rtmico e

automtico da produo militar atravs da

legislao e da imprensa, cuja funo moldar a

assim chamada opinio pblica. por isso que

esta rea particular da acumulao capitalista

parece capaz a princpio de uma expanso infinita.

Todos os outros esforos para expandir o mercado

e estabelecer as bases operacionais do capital

dependem largamente de fatores histricos,

sociais e polticos, que esto alm do controle do

capital, ao passo que a produo para o

militarismo representa um campo cuja expanso

progressiva e regular parece primariamente

determinada pelo prprio capital. (Luxembrugo,

apud Mszros, ibid., p. 60-1)

Mszros endossa tal reflexo sobre a produo-militarista,

mas sublinha que, desde o tempo de Rosa Luxemburgo at os nossos

dias, essa dinmica engendrou uma mudana qualitativa, isto , no

haveria somente uma produo-militarista, mas um complexo militar-industrial, que tem uma relao com o Estado capitalista mais

ricamente determinada. por isso que, segundo o filsofo hngaro,

apesar de as determinaes bsicas permanecerem as mesmas no que

toca realizao do capital, a sua implementao assume agora uma

forma consideravelmente mais avanada - isto , economicamente mais

flexvel e dinmica, assim como ideologicamente menos transparente e

por isso politicamente menos vulnervel (Ibid., p. 61).

A questo da linha de menor resistncia do capital se insere nesse contexto argumentativo. A linha de menor resistncia diz respeito

ao movimento do capital de perseguir a melhor estratgia, ou o caminho

49

mais vivel, para a sua realizao. Por exemplo: se, diante de uma grave

crise, o capital

encontra um equivalente funcional

capitalisticamente mais vivel ou fcil para o

curso da ao, que suas prprias determinaes

materiais iriam predicar de modo diferente

(diferente significando a expanso da produo

correspondendo ao desenvolvimento da rica

necessidade humana, como descrita por Marx),

ele est fadado a optar por aquele que mais

obviamente est de acordo com sua configurao

estrutural geral, mantendo o controle que j

exerce, em vez de perseguir alguma estratgia

alternativa que pudesse exigir o afastamento de

prticas bem estabelecidas7. (Ibid, p. 62)

De acordo com Mszros, quando a linha de menor resistncia

se mostra incapaz de atender por mais tempo s necessidades do

desenvolvimento capitalista, somente a que so buscadas alternativas

a fim de deslocar as contradies subjacentes e, assim, prevenir a

ativao das potencialidades liberadoras inerentes socializao da

produo to esperanosamente contemplada por Marx (1989, p. 63).

Em outras, palavras, o filsofo hngaro est dizendo que, em razo das

prprias contradies internas do sistema, e em especial das

determinaes efetivadas pela luta de classes, o capital pode redefinir a

sua linha de menor resistncia8.

7 Em Para alm do capital, encontramos um comentrio que ajuda a esclarecer

a referida passagem a respeito da linha de menor resistncia. Diz Mszros: O

modo de controle sociometablico do capital estabelecido tem duas vantagens

principais, apesar de suas contradies. A primeira a inrcia macia das

estruturas prevalecentes que empurra tudo no sentido da linha de menor

resistncia. A segunda que o nico sujeito social capaz de assumir o desafio,

o trabalho em sua imediaticidade (isto , em seu modo estabelecido de

reproduo), tambm est inserido no crculo vicioso da linha de menor

resistncia, subsumido e dominado pelas relaes produtivas e distributivas do

sistema do capital (2002, p. 943). essa inrcia macia das estruturas

prevalecentes, portanto, que se expressa na linha de menor resistncia, na qual

no s o capital, mas tambm o trabalho esto inseridos. 8 Essa redefinio da linha de menor resistncia do capital discutida por

Mszros, entre outros aspectos, no que toca relao centro-periferia do

sistema, um tema que por sua vez envolve as questes da mais-valia absoluta e

50

Segundo se depreende do ensaio de Mszros, uma alterao

significativa da linha de menor resistncia do capital que resulta no

desenvolvimento do atual complexo militar-industrial e seu papel-chave

na dinmica sociometablica do sistema. O complexo militar-industrial

, segundo o filsofo hngaro, a mediao que permite combinar

mxima expanso possvel com taxa de uso decrescente mnima (Ibid.,

p. 73), e que surgiu no desenvolvimento histrico do capital aps uma

srie de tentativas falidas em lidar com os problemas da superproduo

de modo menos dissipador depois da crise econmica mundial de

1929/33 (Ibid., p. 73).

Apesar de os passos iniciais para o desenvolvimento desse

complexo j estarem presentes nos primeiros anos do sculo XX, diz

Mszros, a sua adoo geral s aconteceu depois da Segunda Guerra

Mundial, sendo os Estados Unidos o lcus onde exerceu e exerce desde

ento a posio dominante, sem deixar de estabelecer conexes com o

mundo todo9. Nesse sentido, ao falar da estreita conexo entre as

da mais-valia relativa. Infelizmente, no podemos nos alongar aqui sobre este

tema. Ver, a esse respeito, as reflexes contidas entre as pginas 63 e 73 e 87 e

seguintes de Produo destrutiva e Estado capitalista. 9 Em um importante estudo sobre a poltica externa norte-americana no contexto

do segundo ps-guerra, Perry Anderson revela, entre outras coisas, a formao

nesse perodo de mais de setecentas bases estadunidentes no mundo que lhe

possibilita policiar o mundo com a ajuda de instituies como a CIA, cujo

tamanho permanece um segredo, embora tenha crescido exponencialmente

desde que foi fundada, em 1949, e cujo oramento aumentou mais de dez vezes

desde os dias de Kennedy 4 bilhes de dlares em 1963, 44 bilhes em 2005,

em valores constantes [e que] na prtica um exrcito particular disposio do

presidente (2015, p. 130-1). O historiador ingls ainda assinala caractersticas

fundamentais daquilo que chama de imprio global dos EUA: Foras

Especiais em mais de cem pases ao redor do mundo; oramento militar maior

que o de todas as outras grandes potncias combinadas; aparatos tentaculares de

infiltrao, espionagem e vigilncia; pessoal de seguranas nacionais

ramificado; e, por ltimo, mas no menos importante, um establishment

intelectual dedicado a reviso, refino, ampliao e atualizao das tarefas da

grande estratgia, de uma qualidade e produtividade maiores do que as de

qualquer contraparte preocupada com assuntos domsticos como poderia se

esperar que tudo isso encolhesse mais uma vez s mximas magras de 1945? A

Guerra Fria havia terminado, mas o dia de um gen