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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO MAURECI MARCELO VELTER JÚNIOR PROCESSOS INFORMAIS DE MUDANÇA DA CONSTITUIÇÃO FLORIANÓPOLIS 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

MAURECI MARCELO VELTER JÚNIOR

PROCESSOS INFORMAIS DE MUDANÇA DA CONSTITUIÇÃO

FLORIANÓPOLIS2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

MAURECI MARCELO VELTER JÚNIOR

PROCESSOS INFORMAIS DE MUDANÇA DA CONSTITUIÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso submetido à apreciação da banca examinadora da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, para a obtenção do título de Bacharel em Direito.Orientador: Prof. Dr. Airton L.Cerqueira Leite Seelaender

FLORIANÓPOLIS2014

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To have a right, then, is, I conceive, to have something which society ought to defend me in the possession of. If the objector goes on to ask why it ought, I can give him no other reason than general utility.[...] The interest involved is that of security, to every one's feelings the most vital of all interests. [...] since nothing but the gratification of the instant could be of any worth to us, if we could be deprived of everything the next instant by whoever was momentarily stronger than ourselves. Now this most indispensable of all necessaries, after physical nutriment, cannot be had, unless the machinery for providing it is kept unintermittedly in active play.John Stuart Mill

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RESUMO

A Constituição, enquanto documento que exprime o conteúdo essencial da ordem política e

jurídica de um país, convive com duas forças que operam em direções opostas: uma

tendente à rigidez e outra à flexibilidade. Deve imprimir estabilidade, sem, todavia, se

desvencilhar da realidade. A Constituição é, então, marcada pela oposição entre o dever de

segurança e a necessidade de se adequar às mudanças políticas e sociais. Deste modo, o

próprio constituinte, visando a conciliar esses valores opostos, deve prever a forma como o

texto constitucional será alterado, através de um processo formal previsto na própria

Constituição. Contudo, surgem e ganham força teses defendendo que a opção do

constituinte não seria suficiente para manter a Constituição em constante adaptação e, por

isso, seria necessário aceitar a possibilidade da Constituição sofrer mutações em seu texto,

isto é, modificações não formais não previstas no texto constitucional. Neste contexto, a

presente pesquisa tem por objeto o estudo das mutações constitucionais, processos

informais de mudança da Constituição, visando a analisar o que são e como operam, bem

como sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro. Outrossim, será

examinado o caso da Reclamação 4.335/AC, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, em

que a teoria das mutações constitucionais foi aventada para legitimar uma modificação

substancial no papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade.

Palavras-chave: Constituição. Reforma constitucional. Mutação constitucional.

Supremo Tribunal Federal. Controle de constitucionalidade.

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ABSTRACT

The Constitution, as the document that expresses the essence of the political and legal

system of a country, live with two forces working in opposite directions: one prone to

strictness and other to flexibility. It ought to print stability, without, however, break away

from reality. The Constitution is then marked by the opposition between the obligation to

security and the need to adapt to social and political change. Thus, the constituent itself, in

order to conciliate these opposing values, must predict how the Constitution will be

amended through a formal procedure laid down in the Constitution itself. However, emerge

and gain strength theses arguing that the constitutional option would not be enough to keep

the Constitution in constant adaptation and, therefore, would need to accept the possibility

of the Constitution to suffer mutations, i.e., informal changes in the constitutional text. In

this context, this research's purpose is the study of constitutional mutations, informal

processes of change of the Constitution, in order to analyze what they are and how they

operate, as well as its compatibility with the Brazilian legal system. Furthermore, it will be

examined the case of the Reclamação n. 4335/ AC, judged by the Supremo Tribunal

Federal, where the theory of constitutional change was suggested in order to legitimize a

substantial change in the role of the Senate in the control of constitutionality.

Keywords: Constitution. Constitutional theory. Judicial review. Constitutional

Mutation. Constitutionality review.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................................8

1. PROCESSOS DE MUDANÇA DA CONSTITUIÇÃO................................................10

1.1. Introdução – Constituição e reforma...................................................................10

1.2. Processos formais de mudança da Constituição.................................................14

1.2.1. Reforma, emenda e revisão..........................................................................14

1.2.2. Limites procedimentais e circunstanciais à reforma constitucional.............15

1.2.3. Limitações materiais ao Poder de Reforma..................................................16

1.3. Processos informais de mudança da Constituição.............................................21

1.3.1. Mutações constitucionais ............................................................................21

1.3.2. Formas de mutação constitucional...............................................................22

1.3.2.1. Mutação constitucional pela interpretação...................................23

1.3.2.2. Mutação por construção constitucional .......................................25

1.3.2.3. Mutação constitucional pelos usos e costumes.............................26

1.3.2.4. Desuetude como mutação constitucional......................................28

1.3.3. Mutações constitucionais no ordenamento jurídico brasileiro....................30

2. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL..........34

2.1. O caso da Reclamação Constitucional n. 4335/AC..........................................34

2.1.1. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade.................36

2.1.2. A suposta mutação constitucional no art. 52, X, da Constituição de 1988. 40

2.1.3. Crítica à tese da mutação constitucional no art. 52, X , da Constituição....44

2.2. As mutações constitucionais no cenário atual...................................................49

2.3. Limites às mutações constitucionais..................................................................52

CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................57

REFERÊNCIAS..................................................................................................................60

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INTRODUÇÃO

A Constituição é o fundamento de todo o ordenamento jurídico. É a lei

fundamental, a base de todo o direito posto. É Direito, mas também é política. Ela define o

Estado e por ele é definida. Nenhuma decisão política ou jurídica pode dela olvidar.

Portanto, discutir a Constituição é discutir os assuntos mais importantes à nação; é debater a

essência, o núcleo essencial do projeto político determinado pelo povo e para o povo.

Daí que a Constituição não se restringe a um pedaço de papel e não é alheia aos

processos históricos e à realidade fática, embora com esta não se confunda. A Constituição

ordena a realidade e por ela é ordenada. Determina e é determinada pelas tomadas de

decisão de um povo e de um Estado.

Deste modo, se a realidade não é imutável, a Constituição também não deve ser.

Para que cumpra sua tarefa, deve ser capaz de se adaptar às mudanças político-sociais,

porém sem a elas se subjugar. Deve ser sinônimo de estabilidade, de segurança, e a mesmo

tempo ser consonante com o presente. Não é tarefa fácil. A sociedade se transforma

constantemente, mudam-se as vontades, alteram-se os valores; ideias surgem e são

esquecidas, para tempos depois voltarem a emergir. Com as revoluções tecnológicas nas

comunicações e nos transportes, barreiras foram rompidas, distâncias foram encurtadas e

regiões remotas passaram a ser interligadas; consequentemente, o mundo passou a operar

em velocidade acelerada e as mudanças passaram a ocorrer com maior frequência e

intensidade.

Em razão disso, é comum que os próprios textos constucionais prevejam meios

para sua alteração, sempre buscando conciliar a necessidade de segurança e estabilidade

com a inevitabilidade da mudança. Para isso, recorrem a processos formais, rígidos, que

envolvem debates e manifestações de vários setores do Poder Político. Esses meios são, por

essência, mais lentos, demorados, até para garantir a adequada participação democrática no

processo. Porém, por vezes, pode ocorrer que estes processos levem tempo em demasia,

atrasando a adaptação e implicando em supressão da tensão entre norma e realidade,

situação que ainda pode ser agravada por crises institucionais ou pela ineficiência das

instituições políticas.

Neste contexto de mora do Poder Público em editar ou adaptar determinada

proposição normativa (especialmente de nível constitucional), é comum surgirem – e

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ressurgirem – teorias que buscam dar maior flexibilidade à Lei Fundamental, com o

pretexto de adaptá-la às mudanças político-sociais.

No cenário atual, ganha especial importância a chamada teoria das mutações

constitucionais, as quais seriam processos informais de alteração do texto constitucional,

que operariam por variados meios e seriam capazes de modificar o significado e o alcance

de determinada proposição contida na Constituição. A tese ganha amparo em parte da

doutrina nacional e possui dentre seus apoiadores membros do Supremo Tribunal Federal.

Todavia, tratando-se de uma teoria que propõe a modificação da norma maior do

ordenamento jurídico nacional e, por isso, tem relevância ímpar nos âmbitos político e

jurídico, é imprescindível a exata compreensão do instituto, até para evitar que este venha a

ser utilizado para legitimar pretensões antirepublicanas e inconstitucionais.

Desta forma, o presente trabalho visa a estudar os processos informais de mudança

da Constituição, o meio e as formas com que ocorrem, seu alcance e seus limites, bem

como sua compatibilidade com o Estado Democrático de Direito. Para isso, o estudo será

dividido em duas partes.

No primeiro capítulo, será feito um exame dos principais elementos inerentes à

teoria constitucional e aos processos formais de reforma constitucional, tal como previstos

na Constituição de 1988, passando-se então para um estudo dos chamados processos

informais de mudança da Constituição (mutações constitucionais), mostrando o que entende

a doutrina nacional sobre o instituto, bem como a forma e o modo como estas mutações

ocorreriam.

No segundo capítulo, adentrar-se-á a análise da recepção da teoria no ordenamento

jurídico nacional, tomando por base os debates travados no Supremo Tribunal Federal por

ocasião da Reclamação Constitucional n. 4335/AC, no qual se discutiu a suposta mutação

constitucional ocorrida no artigo 52, X, da Constituição Federal, que trata sobre o papel do

Senado Federal no controle de constitucionalidade difuso. Em seguida, examinar-se-á qual

a situação atual da teoria perante a Suprema Corte do país.

Ao final, a fim de conciliar a teoria das mutações constitucionais com o

ordenamento jurídico brasileiro, tentou-se estipular, com base em premissas estabelecidas

ao longo desta monografia, limitações objetivas às mutações constitucionais.

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1. PROCESSOS DE MUDANÇA DA CONSTITUIÇÃO

1.1. Introdução – Constituição e reforma.

Precede à análise da compatibilidade e adequação da teoria das mutações

constitucionais com o ordenamento jurídico nacional o exame de alguns conceitos

fundamentais acerca da teoria constitucional.

A estrutura dos Estados modernos é consubstanciada mediante sua constituição,

sendo que esta expressa o modo de ser daquele, de modo que a própria existência de um

Estado a pressupõe. Em outras palavras, a constituição de um Estado seria:

Um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado1 (SILVA, 2011, p.38)

Mas essa noção estatal não esgota o conceito de constituição. Com efeito, a

Constituição costuma ser observada por duas diferentes perspectivas: uma material, relativa

ao conteúdo, objeto e função, e outra formal – que atenderia à posição das normas

constitucionais em relação às demais normas jurídicas (MIRANDA, 2003, p. 321).

Paulo Bonavides sintetiza o aspecto material da Constituição como sendo “tudo

quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem

política” (BONAVIDES, 1999, p. 63). Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet

Branco, por sua vez, afirmam que

Fala-se em Constituição no sentido substancial quando o critério definidor se atém ao conteúdo das normas examinadas. A Constituição será, assim, o conjunto de normas que instituem e fixam as competências dos principais órgãos do Estado, estabelecendo como serão dirigidos e por quem, além de disciplinar as interações e controles recíprocos entre tais órgãos, Compõem a Constituição também, sob esse ponto de vista, as normas que limitam a ação dos órgãos estatais, em benefício da preservação da esfera de autodeterminação dos indivíduos e grupos que se encontram sob a regência desse Estatuto Político. Essas normas garantem às pessoas uma posição fundamental ante o poder público (direitos fundamentais). (MENDES;BRANCO, 2012, p. 62)

Jorge Miranda, por outro lado, discorda desta acepção predominantemente política

de Constituição material. Segundo o autor:

1 Dalmo de Abreu Dallari distingue quatro elementos constitutivos do Estado: soberania, território, povo e finalidade. Com base nisso, conceitua o Estado como “a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território” (Cf. Elementos de teoria geral do Estado. 19ed. Atual – São Paulo : Saraiva, 1995. p. 61 e 101.

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Sendo o Estado comunidade e poder, a Constituição material nunca é apenas a Constituição política, confinada à organização política. É também Constituição social, estatuto da comunidade perante o poder ou da sociedade politicamente conformada. Estatuto jurídico do estado significa sempre estatuto do poder política e estatuto da sociedade – quer dizer, dos indivíduos e dos grupos que a compõem – posta em dialéctiva com o poder e por ele unificada. E, sendo Constituição do Estado (em si) e Constituição do Direito do estado, necessariamente abarca tanto o poder quanto a sociedade sujeita a esse Direito. (MIRANDA, 2003, p. 328).

De todo modo, apesar de não haver uniformidade doutrinária, é possível

estabelecer um acordo operacional sobre o que seria o aspecto material da Constituição. Em

suma, seriam as normas constitucionais que exprimem o conteúdo básico referente à ordem

política – composição e funcionamento do poder – e social, a interação da sociedade com

este poder.

Em contrapartida, vista sob o prisma formal, a Constituição

é o documento escrito e solene que positiva as normas jurídicas superiores da comunidade do Estado, elaboradas por um processo constituinte específico. São constitucionais, assim, as normas que aparecem no diploma constitucional, que resulta das fontes do direito constitucional, independentemente do seu conteúdo. (MENDES; Branco, 2012, p. 64).

Neste sentido, Hans Kelsen distingue com clareza o sentido material da

Constituição de seu sentido formal, esclarecendo que a acepção formal alude ao documento

denominado Constituição – como Constituição escrita, cujo conteúdo não precisa se

restringir às normas que regulam a produção de normas gerais, podendo também dispor

sobre outras, como as que se referem a outros assuntos politicamente importantes. Estas

normas positivadas na Constituição escrita não podem ser revogadas ou alteradas pelo

procedimento comum de elaboração e revogação de leis, e sim seguindo um rito especial

submetido a requisitos mais severos. Segundo o jurista da Escola de Viena:

Estas determinações representam a forma da Constituição que, como forma, pode assumir qualquer conteúdo e que, em primeira linha, serve para a estabilização das normas que aqui são designadas como Constituição material e que são o fundamento de Direito Positivo de qualquer ordem jurídica estadual. (KELSEN, 1996, p. 247/248).

Diante disso, é possível estabelecer, em linha gerais, que: 1) a noção de

constituição, vista em sentido amplo, pode designar a estrutura do poder de uma

comunidade. Destarte, pode-se dizer que todo Estado tem uma constituição. 2) A

Constituição pode ser vista como o documento que organiza os elementos essenciais do

Estado – na acepção política e social –, sem precisar, contudo, restringir-se a eles

(CANOTILHO, 1998, p. 1055/1081).

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Com efeito, o segundo conceito parece mais adequado à proposta apresentada,

razão pela qual qualquer menção posterior ao termo Constituição fará referência à sua

acepção como documento (em especial como Constituição escrita) que disciplina a

arquitetura normativa básica do Estado (sentido material) e que contém normas

hierarquicamente superiores a todas as demais normas do ordenamento jurídico,

independentemente de seu conteúdo (sentido formal).

Entretanto, Konrad Hesse alerta que este conceito de Constituição, enquanto

conjunto de normas jurídicas, não está completamente desvinculado da realidade, pois sua

essência relaciona-se com sua vigência, isto é, a situação regulada pela norma

constitucional pretende ser concretizada na realidade, naquilo que o autor denomina

pretensão de eficácia (Geltungsanspruch). Em outras palavras: a Constituição não se

confunde com a realidade fática (expressão do ser), porém não pode se restringir a um

dever ser. Para Hesse:

Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas. (HESSE, 1991, p. 15)

Ainda segundo o autor, para que a Constituição adquira força normativa – isto é,

para que tenha eficácia e esteja apta a ordenar e conformar a realidade política e social –

faz-se indispensável a presença de certos pressupostos. Em primeiro lugar, o conteúdo da

Constituição precisa ser compatível com os elementos sociais, políticos e econômicos

dominantes, ou seja, deve corresponder – em maior ou menor grau – à natureza singular do

presente, uma vez que, por ser o documento que exprime o conteúdo básico referente à

ordem política e social, é essencial que possua o apoio e a defesa do povo.

Entretanto, não basta que o texto da Lei Maior esteja em conformidade com os

interesses da sociedade, pois é fundamental, também, que os partícipes da vida

constitucional partilhem dos valores exprimidos pela Constituição, naquilo que Hesse

designa como vontade da Constituição (Wille zur Verfassung). Dito de outro modo: faz-se

necessário o advento de um elemento extrínseco, qual seja, a intenção dos atores

constitucionais de fazer valer a Constituição. É essencial que estes valores constitucionais

prevaleçam ante os interesses momentâneos, pois o sacrifício de proveitos circunstanciais

em favor da preservação dos princípios constitucionais não só fortalece a Constituição,

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como revela-se um ganho incalculável à essência e à estabilidade do Estado Democrático

de Direito.

Todavia, para que isto ocorra, o conteúdo da Constituição não pode, como

premencionado, estar em dissonância com a realidade político-social. Por isso, sua

sobrevivência está diretamente interligada à sua capacidade de se adaptar às circunstâncias

e aos novos tempos. Para Hesse:

uma mudança das relações fáticas pode – ou deve – provocar mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa. A finalidade (Telos) de uma proposição constitucional e sua nítida vontade normativa não devem ser sacrificadas em virtude de uma mudança da situação. Se o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitucional afigura-se inevitável. Do contrário, ter-se-ia a supressão da tensão entre norma e realidade com a supressão do próprio direito. Uma interpretação construtiva é sempre possível e necessária dentro desses limites. A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação vigente. (HESSE, 1991, p. 23).

Destarte, sobrevindo modificações conjunturais que importem dissonância ou

incompatibilidade do conteúdo da Constituição com a realidade político-social, devem ser

tomadas medidas a fim de evitar que esta situação se agrave e comprometa a estabilidade

constitucional, afetando a própria força normativa da Lei Maior. Para isso, o próprio texto

da Constituição poderá ser alterado por meio da revisão ou reforma constitucional, isto é,

de procedimento formal previsto na própria Lei Fundamental.

Sem embargo, a modificação do texto constitucional se constitui medida drástica e

deve ser utilizada apenas quando estritamente necessária. Konrad Hesse adverte que a

constante revisão da Constituição acaba inevitavelmente por desvalorizar sua força

normativa. Em razão disso, a doutrina tem se dedicado a estudar formas mais sutis de

adaptação das normas constitucionais, como modo de evitar, sempre que possível, recorrer

a medidas tão energéticas como as reformas.

Sobre essa tendência doutrinária, esclarece Anna Cândida da Cunha Ferraz:

Daí a distinção que a doutrina convencionou registrar entre reforma constitucional e mutação constitucional; a primeira consiste nas modificações constitucionais regulados no próprio texto da Constituição (acréscimos, supressões, emendas), pelos processos por ela estabelecidos para sua reforma; a segunda consiste na alteração, não da letra ou do texto expresso, mas do significado, do sentido e do alcance das disposições constitucionais, através ora da interpretação judicial, ora dos costumes, ora das leis, alterações essas que, em geral, se processam lentamente, e só se tornam claramente perceptíveis quando se

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compara o entendimento atribuído às cláusulas constitucionais em momentos diferentes, cronologicamente afastados um do outro, ou em épocas distintas e diante de circunstâncias diversas.(FERRAZ, 1986, p. 9)

Não obstante, antes de adentrar na questão pertinente aos processos informais de

mudança da Constituição (mutações constitucionais), afigura-se vital um breve estudo

acerca dos processos formais de alteração constitucional, uma vez que, por serem

expressões de vontade do próprio Poder Constituinte Originário e por atenderem a fins

semelhantes aos das mutações constitucionais, a compreensão sobre sua forma, seus

requisitos e, em especial, seus limites, constitui elemento essencial para se aferir a

necessidade (ou não) de uso de métodos informais de alteração constitucional, bem como a

adequação destes para com o sistema normativo da Lei Fundamental.

1.2. Processos formais de mudança da Constituição

1.2.1. Reforma, emenda e revisão

Consoante o exposto, a modificação das Constituições é um acontecimento

inevitável na vida jurídica. Nenhuma Constituição que vigore por um período mais ou

menos longo de tempo deixa de sofrer modificações (MIRANDA, 2003, p. 389). Tratando

especificamente sobre o processo formal de mudança constitucional, afirma Jorge Miranda:

a revisão constitucional (a revisão em sentido próprio) é a modificação da Constituição expressa, parcial, de alcance geral e abstracto e, por natureza, a que traduz mais imediatamente um princípio de continuidade institucional.

É a modificação da Constituição com uma finalidade de auto-regeneração e autoconservação, quer dizer, de eliminação das suas normas já não justificadas política, social ou juridicamente, de adição de elementos novos que a revitalizem, ou, porventura, de consagração de normas preexistentes a título de costume ou de lei ordinária. É a modificação da Constituição nos termos nela própria previstos (MIRANDA, 2003, p. 392)

José Afonso da Silva, por sua vez, atenta para a questão terminológica, apontando a

diferença entre reforma (gênero), emenda e revisão (espécies). Segundo o autor:

A reforma é qualquer alteração do texto constitucional, é o caso genérico, de que são subtipos a emenda e a revisão. A emenda é a modificação de certos pontos, cuja estabilidade o legislador constituinte não considerou tão grande como outros mais valiosos, se bem que submetida a obstáculos e formalidade mais difíceis que os exigidos para a alteração das leis ordinárias, Já a revisão seria uma alteração anexável, exigindo formalidade e processos mais lentos e dificultados que a

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emenda, a afim de garantir uma suprema estabilidade do texto constitucional. (SILVA, 2011.p. 62),

O Constituinte de 1988 parece ter seguido essa corrente, colocando as duas

espécies de reforma no texto original da Constituição. De fato, a revisão constitucional

estava prevista no artigo 3º dos Atos das Disposições transitórias2; todavia, tratando-se de

regra transitória já aplicada, sua vigência esgotou-se, de modo que não pode mais se falar

em outra revisão constitucional.

Subsistem, contudo, as emendas constitucionais (previstas no art. 60 da Constituição

de 1988) que são, agora, o único modo de modificação formal da Constituição. Essa forma

de alteração possui limitações expressas e implícitas no texto constitucional, que podem ser

subdivididas, simplificadamente, em três categorias: limitações circunstanciais, formais (ou

procedimentais) e materiais (explícitas e implícitas). (MORAES, 2012, p. 693).

1.2.2. Limites procedimentais e circunstanciais à reforma constitucional

No que toca às limitações formais, José Afonso da Silva sintetiza a atuação do

poder de reforma na seguinte assertiva: “o órgão do poder de reforma (ou seja, o

Congresso Nacional) há de proceder nos estritos termos expressamente estatuídos na

Constituição” (SILVA, Curso, p. 65.)

O aspecto procedimental das Emendas está previsto no art. 60, incisos I, II e III, e

nos parágrafos §2º, 3º e 5º. Em síntese, ficou posto que a emenda pode se dar por iniciativa

de: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado

Federal; II - do Presidente da República; e III - de mais da metade das Assembléias

Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria

relativa de seus membros. Sobre a deliberação parlamentar, esta deverá ser feita em cada

casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver o

quorum de três quintos dos votos dos respectivos membros (§2º). Ademais, não poderá ser

objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa matéria já rejeitada, ou havida por

prejudicada (§5º), e, por fim, o constituinte anotou que a promulgação será realizada

conjuntamente pelas mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.

2 ADCT, Art. 3º . A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.

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Quanto às limitações circunstanciais, pode-se dizer que estas visam a “evitar

modificações na constituição em certas ocasiões anormais e excepcionais do país, a fim de

evitar-se perturbação na liberdade e independência dos órgãos incumbidos de reforma”

(MORAES, 2012, p. 695). Assim, consoante previsão no §1º do art. 60 da CF, não haverá

possibilidade de alteração constitucional durante a vigência do estado de sítio, Estado de

defesa ou de Intervenção Federal.

As limitações circunstanciais e formais são inerentes aos processos formais de

mudança da Constituição; por isso, sua aplicação às mutações constitucionais resta

prejudicada, tendo em vista que, conforme será melhor abordado adiante, “as mudanças

informais são difusas e inorganizadas, porque nascem da necessidade de adaptação dos

preceitos constitucionais aos fatos concretos, de um modo implícito, espontâneo, quase

imperceptível, sem seguir formalidades legais” (Bulos, 1997, p. 59).

Desta forma, tratando-se justamente de um processo informal de alteração

constitucional, não há necessidade de se seguir os ritos procedimentais estabelecidos pela

Constituição, por razões óbvias. Outrossim, considerando que as mutações não ocorrem em

um momento determinado, uma vez que “são apenas perceptíveis quando comparamos o

entendimento dado às cláusulas constitucionais em momentos afastados no tempo”

(BULOS, 1997, p. 59), também são inaplicáveis as limitações circunstanciais previstas na

Lei Fundamental.

De outra sorte, a análise das limitações materiais – tanto explícitas quando

implícitas – ao poder de reforma se mostra fundamental ao estudo do fenômeno das

mutações constitucionais, pois não existe nenhuma contradição lógica na sua aplicação aos

processos informais. Aliás, o conhecimento destas limitações ao Poder Constituinte

Derivado é primordial para o estabelecimento de limites ao chamado Poder Constituinte

Difuso3.

1.2.3. Limitações materiais ao Poder de Reforma

De início, saliente-se que os limites materiais ao poder de reforma são objeto de

controvérsia no âmbito do direito e da teoria constitucional. Gilmar Ferreira Mendes e

3 Conforme a expressão de Georges Burdeau, Traité de science politique, 2. ed., Paris, LGDJ, 1969, v. 4, p. 247-290 APUD BULOS, 1997, p. 171.

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Paulo Gustavo Gonet Branco apontam que:

A idéia mesma de que haja limites ao exercício do poder de rever a Constituição é motivo de controvérsia. A perplexidade surge de uma verificação: se ambos os poderes – originário e de reforma – são exercidos por representantes do mesmo povo, por que um desses poderes deve estar subordinado ao outro? (MENDES; BRANCO, 2012, p. 137).

Jorge Miranda aponta a existência de três teses principais: a dos que tomam as

limitações materiais como imprescindíveis e insuperáveis; a daqueles que questionam sua

legitimidade ou a sua eficácia; e a daqueles que as admitem, embora apenas como limites

relativos, suscetíveis de remoção através de dupla revisão ou de duplo processo de revisão

(MIRANDA, 2003, p. 413).

Os que impugnam a legitimidade ou a eficácia jurídica das normas de limites

materiais o fazem por questionar a possibilidade de uma geração vincular os projetos

políticos das gerações futuras. Esta problemática já foi levantada por Thomas Jefferson que,

em carta a James Madison em setembro de 1789, questiona se uma geração de homens teria

o direito de vincular a outra4. Na lição de Jorge Miranda, esta corrente aponta:

a inexistência de diferença de raiz entre poder constituinte e poder de revisão – ambos expressão da soberania do Estado e ambos, num Estado democrático representativo, exercidos por representantes eleitos; a inexistência de diferença entre normas constitucionais originárias e supervenientes – umas e outras, afinal, inseridas no mesmo sistema normativo; e a inexistência de diferença entre materiais constitucionais originárias e supervenientes – umas e outras, afinal, inseridas no mesmo sistema normativo; e a inexistência de diferença entre matérias constitucionais – todas do mesmo valor, se constantes da mesma Constituição formal. (MIRANDA, 2003, p. 415)

Já a posição intermediária, defendida por Jorge Miranda5, conhecida como tese da

dupla revisão, seria a de que

A validade dos limites materiais explícitos, mas, ao mesmo tempo, entende-se que as normas que os prevêem, como normas de Direito positivo que são, podem ser modificadas ou revogadas pelo legislador da revisão constitucional, ficando, assim, aberto o caminho para, num momento ulterior, serem removidos os próprios princípios correspondentes aos limites. Nisto consiste a tese da dupla revisão ou do duplo processo de revisão. (MIRANDA, 2003, p. 416)

4 No original: The question whether one generation of men has a right to bind another. Fonte: http://teachingamericanhistory.org/bor/madison-jefferson3/. Acesso em 19/08/2014.5 Nas palavras do autor: “Por nós, temos defendido, de há muito, a tese da necessidade jurídica dos limites materiais da revisão; mas, simultaneamente, temos acenado, embora com certas oscilações, para a relevância menor das cláusulas de limites expresos. [...]. Foi a partir destas e de outras afirmações que pôde qualificar-se a nossa posição de adesão à tese da dupla revisão” (MIRANDA, p. 418).

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Já a corrente que defende as limitações materiais, defende que o Poder constituinte

de reforma, enquanto poder constituído, deve atuar dentro dos parâmetros que lhe foram

atribuídos. Desta forma, o poder de reformar a Constituição é a faculdade de alterar certas

regras do texto constitucional, porém sem modificar a identidade e a continuidade da

Constituição considerada como um todo. Em suma, a função do Poder constituinte

Derivado

não é fazer Constituições, mas o inverso: guardá-las e defendê-las, propiciando a sua acomodação a novas conjunturas. Por isso, a adaptação que ele viabiliza, tendo caráter instrumental em relação à conservação do tipo de Estado existente, nunca pode sacrificar a forma essencial deste.” (MIRANDA, 2003, p. 414).

De início, nota-se que a posição contrária à validade das limitações materiais, ante

o argumento de que, caso aceitas, implicariam a prisão das gerações futuras às decisões de

gerações anteriores, não é adequada. Nada impede que a nova geração rompa as limitações

impostas, criando uma nova Constituição; neste caso, todavia, não há que se falar em

reforma constitucional, e sim em nova manifestação do Poder constituinte Originário. Esta

é a lição de GOMES CANOTILHO:

Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos, e, conseqüentemente, as alterações constitutionais, se ela já perdeu a sua força normativa. Mas há também que assegurar a possibilidade de as constituições cumprirem a sua tarefa e esta não é compatível com a completa disponibilidade da constituição pelos órgãos de revisão, designadamente quando o órgão de revisão é o órgão legislativo ordinário. Não deve banalizar-se a sujeição da lei fundamental à disposição de maiorias parlamentares <<de dois terços>>. Assegurar a continuidade da constituição num processo histórico em permanente fluxo implica, necessariamente, a proibição não só de uma revisão total (desde que isso não seja admitido pela própria constituição), mas também de alterações constitucionais aniquiladoras da identidade de uma ordem constitucional histórico-concreta. Se isso acontecer é provável que se esteja perante uma nova afirmação do poder constituinte mas não perante uma manifestação do poder de revisão. (CANOTILHO, 1998, p. 995)

De toda sorte, a corrente é incompatível com a ordem constitucional brasileira

estabelecida pela Constituição de 1988, vez que esta é expressa ao vedar a modificação

daquilo que seria o núcleo essencial do projeto do poder constituinte originário de

1988(MENDES e BRANCO, Curso, p. 138.). Bem assim que o artigo 60, §4º, da

Constituição cria as chamadas cláusulas pétreas, proibindo o Poder Constituinte Derivado

de deliberar sobre proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II

- o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos

e garantias individuais.

Subsistem, destarte, duas teses: a dos que aceitam as limitações materiais e as têm

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como imprescindíveis e incontornáveis e a dos que entendem que as normas que impedem a

revisão de certos preceitos básicos, embora juridicamente relevantes, não seriam elas

próprias imunes a alterações e à revogação (MENDES; BRANCO, 2012, p. 139).

Como já dito, a corrente defendida por Jorge Miranda, seguida também por Manoel

Gonçalves Ferreira Filho, embora reconheça a necessidade jurídica dos limites materiais da

reforma constitucional, entende que as próprias normas que estabelecem limitações

poderiam ser alteradas. Se o Poder Constituinte Derivado desejasse modificar alguma das

matérias presentes nas cláusulas pétreas, deveria primeiro eliminar os limites estabelecidos,

para só então deliberar sobre o conteúdo protegido. No caso brasileiro, seriam necessárias

duas emendas constitucionais: uma para alterar o art. 60, §4º, e outra para tratar acerca da

revisão desejada. Esta corrente, todavia, é rechaçada pela doutrina6.

Uadi Lâmmego Bulos entende que os limites materiais seriam imprescindíveis e

insuperáveis, motivo pelo qual sua supressão não seria possível; por isso, faz críticas

contumazes à tese da dupla revisão. Segundo o autor as cláusulas pétreas são:

Imprescindíveis, porque simplicar as normas que estatuem limites, outrora depositados pela manifestação constituinte originária, é usurpar o caráter fundacional do poder criador da Constituição.

Insuperáveis, pois modificar as condições estabelecidas por um poder mais alto – o poder constituinte inicial – com o escopo de reformar-se o processo revisional é promover uma fraude à Constituição – Verfassungsbeseitigung, dos juristas alemães. (BULOS, 1997, p. 44)

LÂMMEGO BULOS ainda aponta que esta tese resultaria nas chamadas rupturas

constitucionais, as quais, segundo Gomes Canotilho, seriam:

As chamadas rupturas constitucionais traduzem-se na <<quebra>> de certas normas da constituição para os casos excepcionais, permanecendo o texto em vigor para os restantes. A ruptura constitucional abriria ao legislador de revisão a seguinte possibilidade: criar uma disciplina especial contrária à constituição para determinados casos concretos, mantendo-se, no entanto, a validade geral das normas constitucionais. (CANOTILHO, 1998, p. 1005)

MENDES e BRANCO também afirmam que não há sentido em declarar imutáveis

certas normas se a própria declaração de imutabilidade também não o for; porque assim

também se estaria frustrando, ainda que por via transversa, a intenção do constituinte

originário.

De ver então que a doutrina nacional tem adotado a tese de que as limitações

6 Contra ela, pode-se citar: Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, Gomes Canotilho, Uadi Lammego Bulos, José Afonso da Silva.

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materiais (cláusulas pétreas) são imprescindíveis e insuperáveis, já que ao assegurarem a

imutabilidade de certos valores postos pelo Poder Constituinte Originário, preservam a

identidade de seu projeto e previnem um processo de erosão da própria Constituição. Neste

sentido:

A cláusula pétrea não existe tão só para remediar situação de destruição da Carta, mas tem a missão de inibir a mera tentativa de abolir o seu projeto básico. Pretende-se evitar que a sedução de apelos próprios de certo momento político destrua um projeto duradouro. (MENDES; BRANCO, 2012, p. 140).

Desta forma, a própria imutabilidade das cláusulas pétreas seria, em si, uma

cláusula pétrea implícita (MORAES, 2012, p. 697); enquanto as explícitas seriam a forma

federativa, a separação dos poderes, os direitos e garantias fundamentais e o voto secreto,

direto, universal e periódico. Não obstante, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho,

“essas proibições - as "cláusulas pétreas", como se usa dizer - não têm o peso e o sentido

que a elas querem dar certos juristas. Elas não "petrificam" o direito constitucional positivo

e por meio dele o ordenamento jurídico do país.” (FERREIRA FILHO, 1995, p. 703)

Gilmar Ferreira Mendes também reconhece que a aplicação ortodoxa dessas

cláusulas pode, ao invés de assegurar a continuidade do sistema constitucional, antecipar

sua ruptura (MENDES, 1997, p. 69). Ives Gandra da Silva Martins também atenta para fato

de que o Constituinte “Faz menção ao vocábulo "abolir", o que pressupõe a possibilidade

de manutenção dos quatro complexos de normas mencionados no § 4.º, com outra redação

ou campo de abrangência” (MARTINS, 1998, p. 109).

Isso significa dizer que não é defeso ao Constituinte reformador modificar questões

inerentes à federação, ao sistema eleitoral ou à separação de poderes. Dessa forma, não é

inconstitucional uma emenda que, e. g., modifique uma competência antes atribuída a um

Poder, outorgando-a a outro. O que o constituinte originário vedou é a supressão de um dos

Poderes da República em detrimento de outro. Diversamente, é permitido que, por meio de

emenda, promova-se uma reforma tributária, modificando a competência para instituir

determinado tributo, desde que não se esvazie completamente o orçamento do ente

federado, de forma que ele passaria a depender exclusivamente de repasses de outro

membro da Federação. Do mesmo modo, pode-se citar como exemplo a elaboração de uma

emenda suprimindo um dos incisos do art. 22 da CF/88, fazendo que a competência antes

da União retorne aos Estados-membros, em decorrência de sua competência residual (art.

25, §1º, da CF); neste caso, também não há que se falar em confronto com cláusula pétrea.

Enfim, são incontáveis as hipóteses possíveis.

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Portanto, constatar se houve ou não violação do Poder Constituinte reformador à

cláusula pétrea depende, sempre, de uma análise do caso concreto, a fim de aferir se a

intensidade da medida foi tamanha que teria atentado contra as próprias bases políticas

estabelecidas pelo Constituinte de 1988. Assim, a exata delimitação da extensão das

cláusulas pétreas é, sem dúvida, tarefa magna das Cortes Supremas (MENDES, 1997, p.

69).

Todavia, não se pode negar que um projeto de emenda constitucional versando

sobre alguma das matérias enumeradas nos incisos do art. 60, §4º, da CF trafega no limiar

da constitucionalidade. Embora não seja defeso ao Poder Constituinte Reformador

promover modificações, desde que não substanciais, ao núcleo essencial do projeto político

do Constituinte, estas são, sempre, questões sensíveis e que demandam cautela.

Outrossim, a questão é de particular importância e voltará a ser discutida no fim do

deste estudo, no qual se verificará a possibilidade do poder constituinte difuso trafegar

nesta zona limítrofe.

1.3. Processos informais de mudança da Constituição.

1.3.1. Mutações constitucionais

A possibilidade dos textos constitucionais sofrerem modificações por meios outros

que não os processos formais de mudança (reformas, revisões ou emendas) foi observada

pela primeira vez pela doutrina alemã. Na ocasião, verificou-se que o funcionamento das

instituições do Reich, na vigência da Constituição Alemã de 1871, era constantemente

modificado, sem que ocorressem quaisquer reformas constitucionais.

Neste cenário, surgiu a necessidade de diferenciar estes processos das reformas

formais propriamente ditas. Cunhou-se, para designá-los, o termo mutação constitucional.

Segundo Georg Jellinek:

Por reforma de la Constitución entiendo la modificación de los textos constitucionales producida por acciones voluntarias e intencionadas. Y por mutación de la Constitución, entiendo la modificación que deja indemne su texto sin cambiarlo formalmente que se produce por hechos que no tienen que ir acompañados por la intención, o conciencia, de tal mutación.7

7 GEORG JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, trad. Christian Förster, Madrid, Centro de Estúdios Constitucionales, 1991, p. 7 APUD BULOS, 1997, p. 55).

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José Afonso da Silva diferencia os processos informais dos formais ensinando que,

enquanto estes constituem o método de mudança das constituições rígidas, por meio de

atuação de certos órgãos e seguindo certas formalidades estabelecidas nas próprias

constitucionais, os processos informais seriam alterações ocorridas pela via da tradição, dos

costumes, de alterações empíricas e sociológicas, pela interpretação judicial e pelo

ordenamento de estatutos que afetem a estrutura orgânica do Estado (SILVA, 2011, p. 62).

Uadi Lammego Bulos adota a nomenclatura utilizada pelo publicista alemão Paul

Laband, valendo-se da expressão mutação constitucional para “cognominar certas

mudanças que imprimem novos sentidos às normas constitucionais, sem desfigurar-lhes a

letra e o conteúdo” (BULOS, 1997, p. 60).

Anna Cândida da Cunha Ferraz, por sua vez, utiliza as expressões processos

indiretos, processos não formais ou processos informais para designar todo e qualquer meio

de mudança constitucional não produzida pelas modalidades organizadas de exercício do

Poder Constituinte derivado (FERRAZ, 1986, p. 12). Reserva, assim, o vocábulo mutação

constitucional somente para os processos que modifiquem o sentido, significado e o alcance

de normas constitucionais, mas sem contrariar a Constituição; para os processos que

introduzem alterações de forma contrária à Constituição, ultrapassando os limites fixados

pelas normas constitucionais, vale-se do termo mutações inconstitucionais.

A todo modo, é possível estipular um acordo operacional, estabelecendo que os

processos informais subdividem-se em mutações constitucionais – que modificam o

significado sem alterar o texto – e mutações inconstitucionais – que ocorrem à revelia da

Constituição.

1.3.2. Formas de mutação constitucional

Outrossim, estes processos informais também podem ser classificados pela forma

como que ocorrem. Anna Cândida Cunha Ferraz diferencia a mutação constitucional pela

interpretação constitucional e pelos usos e costumes constitucionais, embora alerte que

estas não esgotam todas as formas possíveis (FERRAZ, 1986, p. 13).

LAMMEGO BULOS adota classificação similar, dividindo as atuações do Poder

constituinte difuso em: a) mutações constitucionais ocorridas através da interpretação

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constitucional, nas suas diversas modalidades e formas; b) mutações decorrentes das

práticas constitucionais; c) mutações através da construção constitucional; e d) mutações

constitucionais que contrariam a Constituição, estas denominadas mutações

inconstitucionais (BULOS, 1997, p. 71).

Faz-se necessário, agora, o estudo de cada uma dessas modalidades, avaliando a

forma como que ocorrem, bem como seus limites e a sua compatibilidade com a ordem

democrática brasileira.

1.3.2.1. Mutação constitucional pela interpretação.

A interpretação jurídica é uma operação mental inerente ao processo de aplicação

do Direito. A interpretação pode ser vista como interpretação da lei, isto é, a constatação do

conteúdo deduzido da norma geral, criando-se, por meio de sentença judicial ou resolução

administrativa, norma individual para o caso concreto. Há também a interpretação da

própria Constituição, na medida em que os órgãos criadores do Direito infraconstitucional –

processo legislativo – devem compactuar as normas criadas com as normas extraídas da Lei

Fundamental.

Todavia, a interpretação, enquanto processo de atribuição de um significado a um

ou vários símbolos linguísticos escritos, com viso a obter uma decisão de problemas

práticos (CANOTILHO, 1998, p. 1126), não leva a uma única solução correta. Kelsen

ensina que:

Se por “interpretação” se entende a fixação por via congnoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. (KELSEN, 1996, p. 390/391)

Deste modo, partindo da premissa de que uma mesma norma constitucional pode

ter diversos significados, é possível afirmar que haveria mutação constitucional sempre que

o órgão aplicador dá uma nova interpretação a uma determinada norma constitucional,

atribuindo um sentido novo, mais abrangente, alcançando situações que antes não eram

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contempladas. Assim, “se essa mudança de sentido, alteração de significado, maior

abrangência da norma constitucional são produzidas por via da interpretação

constitucional, então se pode afirmar que a interpretação constitucional assumiu o papel

de processo de mutação constitucional” (FERRAZ, 1986, p. 57).

Lammego Bulos diz que a mutação constitucional pela via interpretativa ocorre

quando houver: a) modificação no sentido de um vocábulo; b) alteração nos fins

inspiradores de uma norma; c) alargamento ou restrição do conteúdo de uma dada

expressão normativa; d) impressão de novo significado à letra da lei; e) colmatação de

lacunas; e f) adaptação das normas às novas realidades surgidas após a elaboração da

Constituição(BULOS, 1997, p. 130).

A doutrina cita como exemplo desta expansão do sentido, significado e alcance de

uma proposição a norma contida no inciso XI do art. 5º da Constituição de 1988, o qual

dispõe que a casa é asilo inviolável do indivíduo8. Embora o vocábulo possa ser

interpretado apenas como o imóvel onde o indivíduo estabelece sua moradia, o Supremo

Tribunal Federal utilizada a expressão em sentido amplo, distinguindo-o do conceito de

domicílio9, estendendo a acepção para qualquer compartimento privado não aberto ao

público, onde alguém exerce profissão ou atividade1011. À vista disso, Uadi Lammego Bulos

conclui que “ao atribuir à palavra casa conteúdos de significação ampla, o ato

interpretativo promoveu uma mudança informal no inciso XI, mas sem qualquer violação à

sua letra” (BULOS, 1997, p. 119).

A interpretação da Constituição, contudo, não se restringe à esfera judicial, sendo

feita também pelos órgãos do legislativo e do executivo. Anna Cândida da Cunha Ferraz

define a interpretação constitucional legislativa como a “atividade desenvolvida pelo órgão,

dotado de poder legislativo, que busca o significado, o sentido e o alcance da norma

constitucional para o fim de, fixando-lhe o conteúdo concreto, completá-la e,

consequentemente, dar-lhe aplicação” (FERRAZ, 1986, p. 65).

8 CF/88, art. 5º, XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

9 CC/02, Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo.

10 Este é, diga-se, o conceito de casa empregado pelo Código Penal – vide art. 150, §4º.

11 Neste sentido: HC 82788, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/04/2005, DJ 02-06-2006 PP-00043 EMENT VOL-02235-01 PP-00179 RTJ VOL-00201-01 PP-00170]

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Já a interpretação constitucional pelo Poder Executivo (não compreendida, aqui, a

sua interpretação enquanto partícipe do processo legislativo), ocorreria quando seus órgãos

tomassem decisões, ajustassem seus atos, resoluções e disposições, tudo sob a égide dos

preceitos constitucionais (BULOS, 1997, p. 133).

1.3.2.2. Mutação por construção constitucional

A mutação pode se dar, também, através da construção constitucional. Embora

muitos autores a considerem espécie de interpretação constitucional12, parte da doutrina

opta por distinguí-las e tratá-las como coisas distintas. Carlos Maximiliano, fazendo

referência à doutrina norte-americana, ensina que

A interpretação atém-se ao texto, como a velha exegese; enquanto a Construção vai além, examina as normas jurídicas em seu conjunto e em relação à ciência, e do acordo geral deduz uma obra sistemática, um todo orgânico; uma estuda propriamente a lei, a outra conserva como principal objetivo descobrir e revelar o Direito; aquela presta atenção maior às palavras e ao sentido respectivo, esta ao alcance do texto, a primeira decompõe, a segunda recompõe, compreende, constrói. (MAXIMILIANO, 1997, p.40)

BULOS entende que o fenômeno de construção constitucional necessita do ato

interpretativo, enquanto a recíproca não é verdadeira. Afirma que na interpretação o

intérprete fica preso às normas estatuídas na Constituição; a construção constitucional, por

sua vez, autoriza que o aplicar vá “além das normas constitucionais, para captar as

exigências sociais, as necessidades da vida prática” (BULOS, 1997, p. 147).

Neste diapasão, o constitucionalista compreende a construction como um meio

eficiente pelo qual as constituições sofrem mudanças substanciais no sentido, alcance e

conteúdo de suas normas, consignando como exemplo a experiência da Suprema Corte dos

Estados Unidos da América. Para BULOS:

As necessidades de uma época, a moral dominante e as teorias políticas, confessadas ou inconscientes e, até, os preconceitos que os juízes partilham com seus concidadão, representam papel muito mais importante que o silogismo na determinação das normas pelas quais se regulam as condutas humanas. A substância do direito em qualquer momento corresponde, aproximadamente, dentro de sua esfera, àquilo que se acredita ser conveniente; mas, sua forma e maquinismo, assim como o grau em que se pode produzir os resultados desejados, dependem muito de seu passado. (BULOS, 1997, p. 169).

12 Anna Cândida da Cunha Ferraz, embora ressalve a distinção que parte da doutrina – em especial a norte americana – faz entre interpretação e construção constitucional, trabalha este última como espécie do primeiro (FERRAZ, p. 46/47).

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1.3.2.3. Mutação constitucional pelos usos e costumes

O reconhecimento do costume como fonte do direito constitucional, especialmente

nas Constituições rígidas, não é matéria pacífica. De fato, considerando que a Constituição

é a manifestação de um poder constituinte soberano, e suas normas detêm supremacia sobre

as demais, é complicado aceitar que suas proposições possam ser questionadas pelo simples

prática de atos desconformes a elas, ou por quaisquer fatores inorgânicos, vindos de onde

vierem (MIRANDA, 2003, p. 380).

Todavia, como já abordado no subitem 1.1, a Constituição não se esgota no

momento de sua criação. Os órgãos constitucionais devem atuar mesmo quando a

Constituição é omissa ou obscura sobre determinado tema – e a forma como o fazem

constitui complemento à própria lei fundamental. A rigidez da Constituição não afasta a

existência do costume; contudo, seu relevo torna-se secundário. A Constituição formal tem

a vocação de regular a totalidade das relações políticas e, por isso, só onde ela não chega é

que pode entrar o costume, do que se extrai que os usos e costumes só podem atuar de

maneira complementar(MIRANDA, 2003, p. 384).

Neste contexto, a doutrina tem por hábito dividir os costumes em três espécies:

secundum legem, praeter legem e contra legem. O primeiro seria aquele previsto pelo

próprio direito positivo13; o segundo, seria o costume que preenche as lacunas das normas

positivas; e, por fim, o costume contra legem seria o que contraria as disposições escritas

(FERRAZ, 1986, p. 180).

Por conseguinte, o costume é capaz de complementar a Constituição. As práticas

longevas e uniformemente aceitas dos partícipes da vida constitucional – em especial do

Legislativo, do Executivo e do Judiciário – podem servir para preencher lacunas ou regular

matéria não disciplinada pela Lei Maior. Seria a hipótese do chamado costume praeter

legem (ou praeter constitutionem).

Anna Candida da Cunha Ferraz afirma que, embora exista divergência14, não há

13 Neste sentido, pode-se citar o art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro, bem como o art. 100, inciso III, do Código Tributário Nacional, que prevê que “as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas” constituem-se em fonte complementar do direito tributário.

14 A autora aduz a posição de Hans Kelsen, que não admite a lacuna em direito, nem as chamadas próprias nem as técnicas. De fato, o jurista austríaco (KELSEN, 1996, p. 273/277) consigna que “a suposição do tribunal de que um caso não foi previsto pelo legislador e de que o legislador teria formulado o Direito de diferente modo se tivesse previsto o caso, funda-se quase sempre numa presunção não

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como se negar a existência de lacunas na Constituição. Assim, os costumes constitucionais,

ao preencherem estas lacunas, teriam importância ímpar na integração da ordem jurídica,

em especial nas matérias afetas ao direito público, sobretudo em virtude da “dificuldade em

reduzir-se a fórmulas rígidas as relações de natureza política” (FERRAZ, 1986 p.197).

Jorge Miranda também reconhece a importância das normas costumeiras, com sua

função de clarificação, desenvolvimento e adequação da ordem jurídica às necessidades de

evolução social. Menciona a importância dessas normas em sistemas constitucionais longos

ou quase cristalizados, como modo progressivo de formação do Direito (MIRANDA, 2003,

p. 385).

Lammego Bulos também reconhece a compatibilidade dos costumes

constitucionais praeter legem com as constituições formais, rígidas e escritas. Diz que o

instituto tem a capacidade de atenuar ou minimizar a obscuridade do Texto Maior, servindo

para suprir deficiências do produto legislado defeituoso. Diz que as práticas constitucionais,

por desempenharem função supletiva, “contribuem para a aplicação do texto judicioso ao

fato social cambiante” (BULOS, 1997, p. 186).

Já o chamado costume secundum legem (ou secundum constitutionem), por sua vez,

seria aquele no qual o próprio texto legal prevê complementação por norma costumeira,

fundada nos usos e costumes. Cita-se como exemplo os artigos 445, §2º, 628, parágrafo

único, 658, parágrafo único, 699, 700, 711, 724, e 1297, §1º, todos do Código Civil

Brasileiro. Assemelha-se ao costume praeter legem e também tem função complementar.

Na hipótese do costume secundum constitutionem, este deveria ser previsto no próprio texto

constitucional; todavia, a doutrina não aponta a existência de norma prevendo complemento

costumeiro na Constituição de 1988.

demonstrável”. Alerta que caso se entendesse que “quando a aplicação da ordem jurídica vigente é, segundo a concepção ético política do tribunal, insatisfatório no caso sub judice, o tribunal pode decidir o caso segundo a sua livre apreciação. Uma tal formulação conferiria ao tribunal, porém, um poder evidentemente demasiado extenso”. Kelsen também aborda as chamadas lacunas técnicas, que seriam as que se apresentam “quando o legislador omite normar algo que deveria ter normado para que de todo modo fosse tecnicamente possível aplicar a lei”. Cita o seguinte exemplo: “quando a lei determina, por hipótese, que um órgão deve ser criado por eleição, mas não regula o processo de eleição”, Kelsen diz que, neste caso, não haveria lacuna, pois a omissão significaria que “qualquer espécie de eleição – eleição de maioria relativa ou absoluta, eleição pública ou secreta, etc. - é legal. O órgão encarregado de realizar a eleição pode determinar o processo de eleição como bem entenda. A determinação do processo eleitoral é deixada a uma norma de escalão inferior”.

Mesmo para aqueles que não concebem a existência de lacunas no direito a chamada mutação constitucional por costume praeter legem seria possível. Subsumindo-se a tese ao exemplo citado, na hipótese do órgão responsável pela eleição tê-la realizado reiteradas vezes, sem editar, contudo, qualquer norma jurídica formal (lei, resolução, decreto, portaria etc) disciplinando o processo, é possível afirmar que a norma que prevê a necessidade de eleição foi complementada pelo costume.

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Não obstante, o costume constitucional contra legem é, em regra, repelido pelas

Constituições formais. Isso não significa dizer que este costume não existe. Ele pode surgir

por variados motivos, mas quase sempre advém da não rigorosa observância das normas

constitucionais pelos partícipes da vida constitucional. Pode até ser um sinal de que a

Constituição não corresponda à realidade histórica concreta de seu tempo.

Segundo Jorge Miranda, “o costume constitucional contra legem equivale à

preterição da constitucionalidade” (MIRANDA, 2003, p. 385). Uadi Lammego Bulos

também se mostra contrário à aceitação do costume contra legem (ou, no caso, contra

constitucionem), pois este seria um lídimo atentado à ordem jurídica vigente e, por isso,

deve ser repelido (BULOS, 1997, p. 177). Anna Cândida da Cunha Ferraz, por sua vez,

embora aponte a existência de divergência doutrinária, anota que a corrente mais cautelosa

entende que a não aplicação prolongada de textos escritos não importa em revogação ou ab-

rogação da norma, a qual poderia ser aplicada a qualquer tempo; posicionando-se pela

inadmissibilidade da formação do costume constitucional contra constitucionem (FERRAZ,

1986, p. 180/184.).

De fato, aceitar a possibilidade de mutação constitucional por práticas contrárias às

normas constitucionais seria reduzir a Constituição a um mero pedaço de papel – na

acepção de Lassale. As práticas constitucionais contrárias à Lei Fundamental, contudo, não

podem ser ignoradas: elas podem ser um sintoma de um problema na ordem constitucional.

É verossímil que sejam um indício de que a proposição normativa não mais corresponde à

natureza real do presente. Konrad Hesse entende que, nestes casos, a revisão constitucional

afigura-se inevitável, visto que do contrário haveria supressão da tensão entre norma e

realidade com a supressão do próprio direito (HESSE, 1991, p. 23).

Portanto, essas práticas contrárias à Constituição não podem ser ignoradas – o que

não significa que devem adquirir força normativa. São, eventualmente, um chamado à

atuação do Poder Constituinte Derivado para que, pela via formal, adapte as normas

constitucionais. O poder constituinte difuso, por não ser expressamente previsto, não é

dotado da mesma eficácia das normas constitucionais escritas pelo Constituinte Originário

ou pelo poder de revisão. Ele não é apto a revogar normas constitucionais; isto é: “o

costume constitucional não pode reformar a Constituição” (FERRAZ, 1986, p. 184).

1.3.2.4. Desuetudo como mutação constitucional

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Neste contexto, retorna-se à clássica discussão da teoria do direito a respeito da

validade e eficácia das normas positivas. Estariam estas diretamente interligadas – logo,

uma norma ineficaz seria também inválida – ou seriam completamente independentes uma

da outra? Parece que nenhuma das assertivas está totalmente correta, tampouco

absolutamente errada, de modo que a chave para a problemática se encontra em um campo

intermediário. De fato, a solução adequada foi proposta por Hans Kelsen em sua Teoria

Pura do Direito. Segundo o jurista da Escola de Viena:

A solução proposta pela Teoria Pura do Direito para o problema é: assim como a norma de dever-ser, como sentido do ato-de-ser que a põe, se não identifica com este ato, assim a validade de dever-ser de uma norma jurídica se não identifica com a sua eficácia da ordem do ser; a eficácia da ordem jurídica como um todo e a eficácia de uma norma jurídica singular são – tal como o ato que estabelece a norma – condição de validade. Tal eficácia é condição no sentido de que uma ordem jurídica como um todo e uma norma jurídica singular já não são consideradas como válidas quando cessam de ser eficazes. (KELSEN, 1996, p. 236).

Consequentemente, para a Teoria Pura a eficácia é condição de validade, porém

com ela não se confunde. Uma ordem jurídica, para ser válida e vigente, deve ser como um

todo eficaz, ainda que algumas de suas normas individualmente consideradas careçam de

eficácia. Não obstante, a subsunção desta regra pertinente à validade do ordenamento

jurídico como um todo às normas singulares deve ser vista com ressalva, pois não é

pacífico na doutrina que o desuso de uma proposição normativa importe na perda de sua

validade.

Neste sentir, conceitua-se o desuso (desuetude ou desuetudo) como a inobservância

consciente, uniforme, consentida, pública e reiterada, por longo período de tempo, de uma

disposição normativa. O desuso, em tese, diferencia-se da inércia legislativa, embora na

prática essa distinção não seja claramente verificável. Para FERRAZ, “o ponto fulcral da

distinção é o animus interveniente na não aplicação da norma ou do instituto, seguido,

necessariamente, da permanência da inaplicação por tempo prolongado”.

Para parcela da doutrina, como MIRANDA (2003, p. 386) e BULOS (1997, p.

175), o desuso seria espécie de costume contra legem. A professora Anna Candida da

Cunha Ferraz, no entanto, opta, acertadamente, por distingui-los, explicando que neste

último a contraposição ou contrariedade à norma escrita é manifesta e definida, criando-se

nova norma, desta vez costumeira, em colisão com as normas postas. O desuso, por outro

lado, ocorre quando o comando impositivo não é aplicado, restando inerte, de forma que

aparenta não existir. Embora possa contrariar à norma positiva, isto acontece de modo

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reflexo, pois não há a criação de norma substitutiva.

Convém destacar, agora, os efeitos do desuso de normas singulares do ordenamento

jurídico, notadamente as do plano constitucional. Segundo Kelsen, o efeito é ab-rogatório15;

Carlos Maximiliano, todavia, adverte que essa generalização é perigosa, ante o risco de se

contrapôr um texto explícito, de autoridade certa, a uma prática apenas consuetudinária,

cuja fonte e alcance é, muitas vezes, duvidosa (MAXIMILIANO, 1997, p. 192). Assim

também entende Anna Candida da Cunha Ferraz, para quem o desuso importa apenas na

paralisação da norma constitucional, ainda que com ânimo definitivo, mas sua revogação só

pode ser feita mediante reforma constitucional ou por meio de nova Constituição

(FERRAZ, 1986, p. 235).

Além do mais, como já visto, o desuso é comumente associado ao costume contra

legem e, tal como este, repudiado pela maioria da doutrina, sobretudo no âmbito

constitucional. De toda sorte, ainda que se adote o entendimento de que o desuso tem

caráter revogatório e se constitui em um válido processo informal de mudança da

Constituição – o que não parece ser adequado –, é preciso pontuar que este não se trata de

mera ausência momentânea de eficácia. Na lição de Jorge Miranda:

Como quer que seja, para que, através de costume, caia em desuso uma norma constitucional ou para que seja substituída por outra, tem de haver a consciência de que não se trata de simples derrogação por momentânea necessidade; tem de haver a consciência de que um novo sentido é adoptado para valer em situações futuras idênticas e de que este sentido genérico ou generalizante não tem ou já não tem a marca da inconstitucionalidade; e essa consciência não pode ser apenas entre os titulares dos órgãos do poder, tem de se manifestar outrossim entre os cidadãos e traduzir-se num mínimo de aceitação por parte deles [MIRANDA, 2003, p. 386)

1.3.3. Mutações constitucionais no ordenamento jurídico brasileiro.

Exposto o conceito sobre o instituto das mutações constitucionais, bem como as

espécies e os entendimentos doutrinários sobre o assunto, convém pontuar alguns exemplos

de mutação ocorridos no ordenamento nacional16.

15 “A desuetudo é como que um costume negativo cuja função essencial consiste em anular a validade de uma norma existente.”(KELSEN, 1996. p. 237).

16 Dada a natureza informal das mutações constitucionais, todos as hipóteses a seguir descritas são, por assim dizer, discutíveis, até porque a própria compatibilidade do instituto com a ordem jurídica brasileira é questionável, conforme se verá no Capítulo 2. No entanto, como todos os casos comportariam monografia própria, inconveniente adentrar no mérito de cada um. Por isso, pressupõe-se que são mutações constitucionais, sem olvidar eventuais posições contrárias. A todo modo, são hipóteses aceitas pela maioria da doutrina e amplamente praticados pelos Tribunais Pátrios.

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Um exemplo típico de alteração no sentido, significado e alcance de uma

proposição normativa ocorreu com o artigo 97 da Constituição Federal, que dispõe:

Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

Essa norma instituiu a regra da reserva de plenário, que determina que a declaração

de inconstitucionalidade de uma determinada proposição normativa submetida ao controle

difuso só pode ser realizada pela maioria absoluta dos membros do Tribunal competente,

não podendo ser realizada pelos seus órgãos fracionários, salvo na hipótese de Tribunal com

órgão especial (art. 93, XI, da CF).

Segundo Dimitri Dimoulis, essa proposição se justifica pela necessidade evitar

decisões conflitantes por um mesmo órgão judicial (Dimoulis, 2011, p. 300). Para Luis

Roberto Barroso, o instituto introduzido pela Constituição de 1934 – e que, à época,

aplicava-se apenas ao controle incidental e difuso, porém com a criação do controle

concentrado, estendeu-se também a ele – espelha o princípio da presunção de

constitucionalidade das leis (BARROSO, 2009, p. 96).

Todavia, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 190.728/SC, de

relatoria do Ministro Ilmar Galvão, decidiu, por maioria de votos – vencido o Ministro

Celso de Mello –, pela inaplicabilidade da reserva de plenário às questões de

inconstitucionalidades já julgadas pelo Tribunal Pleno em outra ocasião, entendendo que a

nova interpretação era compatível com o art. 10117 do Regimento Interno do STF e não

violava a norma constitucional do art. 97. Segundo a ementa do julgamento:

EMENTA: ART. 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ACÓRDÃO DE ÓRGÃO FRACIONÁRIO QUE, INVOCANDO DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, MODIFICATIVA DE PRECEDENTE DO PLENÁRIO DA CORTE DE ORIGEM SOBRE A MATÉRIA CONSTITUCIONAL EM CAUSA, JULGOU DE LOGO A APELAÇÃO, SEM RENOVAR A INSTÂNCIA INCIDENTAL DA ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE.

Procedimento que, na esteira da orientação estabelecida no art. 101 do RI/STF, não pode ser tido por ofensivo ao art. 97 da Constituição Federal, posto que, além de prestigiar o princípio da presunção da constitucionalidade das leis, nele consagrado, está em perfeita harmonia, não apenas com o princípio da economia processual, mas também com o da segurança jurídica, concorrendo, ademais, para a racionalização orgânica da instituição judiciária brasileira. Recurso não conhecido. [STF, RE 190.728, Relator Ministro Ilmar Galvão, 30 de maio de 1997.]

17 RI/STF. Art. 101. A declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, pronunciada por maioria qualificada, aplica-se aos novos feitos submetidos às Turmas ou ao Plenário, salvo o disposto no art. 103.

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Posteriormente, o Poder Legislativo, com a Lei 9.756/98, chancelou o

entendimento da Suprema Corte, incluindo o parágrafo único do art. 481 do Código de

Processo Civil, com a seguinte redação: “Os órgãos fracionários dos tribunais não

submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade,

quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal

sobre a questão.” Hoje, a questão encontra-se consolidada na jurisprudência do STF18.

Dessa forma, não restam dúvidas da modificação no significado, sentido e alcance

da norma prevista no art. 97 da Constituição, tendo em vista que por construção

jurisprudencial, adiante incorporada à legislação ordinária, passou-se a permitir a

declaração de inconstitucionalidade por órgão fracionário, a despeito da literalidade do

dispositivo constitucional, que exige deliberação do Plenário da Corte.

Uma outra hipótese de ocorrência de um processo informal de mudança da

constituição se refere à norma prevista no art. 102, §2º, da CF/8819. O dispositivo enfatiza

que as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no

controle concentrado, produzirão eficácia contra todos e efeitos vinculantes. Entretanto, o

Supremo Tribunal Federal também aplica efeito erga omnes às medidas cautelares deferidas

em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Neste sentido votou o Ministro

Sepúlvida Pertence, na ADI nº 1.244/SP (Questão de Ordem, rel. Min. NÉRI DA

SILVEIRA):

Não vejo outra solução, Sr. Presidente, admitindo o efeito vinculante que terá a decisão de mérito, a não ser atribuir à decisão cautelar efeito suspensivo dos processos cuja decisão pende da aplicação, inaplicação ou declaração de inconstitucionalidade em concreto da lei que teve a sua eficácia suspensa por força de decisão cautelar do Supremo Tribunal Federal.Do contrário, a convivência, já difícil, dos dois sistemas de controle de constitucionalidade que praticamos conduzirá ao caos.

Não há como negar, sem embargo, que esse entendimento20 ignora a restrição do

art. 102, §2º, da CF, uma vez que permite a outorga de efeitos vinculantes a decisões

proferidas em sede de cognição sumária. A despeito disso, o próprio legislador

18 A título exemplificativo: (STF,AgRg 460.056-1 - 1.ª Turma - j. 14/2/2006 - v.u. - rel. Sepúlveda Pertence - DJU 10/3/2006), (RE 433806 AgR, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 08/03/2005, DJ 01-04-2005).

19 CF- Art. 102,§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

20 No mesmo sentido: Rcl 2653 MC/SP MEDIDA CAUTELAR NA RECLAMAÇÃO, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Julgamento: 30/06/2004.

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infraconstitucional chancelou esta tese ao incorporá-la no art. 11, §1º, da Lei 9.86821. .

Pode-se falar, assim, em verdadeira mutação constitucional da norma, em razão da

atribuição de novo sentido, significado e alcance, sem alteração do texto constitucional.

Por último, cita-se a interpretação dada ao artigo 45, inciso IV, da Constituição de

1967/69, hoje reproduzido no art. 52, X, da CF/88, para o controle concentrado de

constitucionalidade como típico caso de mutação constitucional.22 De fato, com a

introdução no Brasil do sistema concentrado de constitucionalidade, o STF decidiu que a

declaração de inconstitucionalidade em sede abstrata prescindiria da intervenção do Senado

Federal para suspender a execução da lei declarada inconstitucional. Esse posicionamento

já tinha respaldo na jurisprudência dos anos 1960, consolidando-se já na década de

197023 .Ademais, o Regimento Interno do STF já em 198024 previa a comunicação ao

Senado Federal apenas no caso da inconstitucionalidade ter sido declarada incidentalmente,

dispositivo que ainda se encontra em vigor25.

Assim, a fim de conciliar a norma do art. 52, X, da CF com o citado entendimento

do Supremo Tribunal Federal, faz-se necessária uma restrição de sentido ao dispositivo,

uma vez que só é aplicável ao controle concreto, e não ao controle abstrato. DIMOULIS

(2011, p. 291) sugere que o artigo deve ser lido da seguinte forma:

Art. 52, Compete privativamente ao Senado Federal: [...]

X. Suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional, de maneira concreta e incidental, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal

Afirmam que essa interpretação tem um argumento sistemático, qual seja, de que o

21 Lei 9.868. Art. 11.§ 1o A medida cautelar, dotada de eficácia contra todos, será concedida com efeito

ex nunc, salvo se o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia retroativa.

22 Não se trata da tese da abstrativação dos efeitos do controle de constitucionalidade aventada pelo Ministro Gilmar Mendes, em 2007, na RCL 4335/AC, que buscava unificar os sistemas de controle de constitucionalidade por meio da mutação constitucional. Esta discussão será objeto do subitem 1.3.

23 Gilmar Ferreira Mendes (In: O papel do Senado no controle de constitucionalidade) cita como decisão que teria firmado a posição o Parecer do Min. Moreira Alves no Processo Administrativo no 4.477-72, Diário de Justiça, [S. l.], 16 maio 1977. (p. 3123-3124).

24 Publicado no Diário da Justiça, Ano LV, nº 205, em 27 de outubro de 1980. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/REGIMENTOINTERNO19801.pdf. Acesso em 27/09/2014.

25 Dispõe o art. 178 do RI/STF: Art. 178. Declarada, incidentalmente, a inconstitucionalidade, na forma prevista nos arts. 176 e 177, far-se-á a comunicação, logo após a decisão, à autoridade ou órgão interessado, bem como, depois do trânsito em julgado, ao Senado Federal, para os efeitos do art. 42, VII, da Constituição. Nota: O artigo se refere à Constituição de 1967, sendo que a norma do art. 42, VII, consta no art. 52, X, da Constituição de 1988.

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controle judicial abstrato perde seu sentido se a norma declarada inconstitucional só pode

ser afastada com decisão discricionária do legislativo, embora reconheçam que “não deixa

de ser uma interpretação autocriativa que restringe o sentido do art. 52, X, da CF. O STF

assumiu nesse caso o papel do poder constituinte reformador” (DIMOULIS, 2011, p. 291).

Destarte, essa redução teleológica da norma então posta no art. 45, VI, da Constituição de

1967/69, pode ser considerada como autêntica mutação constitucional, sendo, inclusive,

uma das bases que sustentam o argumento do Ministro Gilmar Mendes para atribuir um

novo sentido, estendendo essa redução também para o controle incidental, à norma do art.

52, X, da CF/88.

2. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E O SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL

2.1. O caso da Reclamação Constitucional n. 4335/AC

A teoria das mutações constitucionais ganhou especial relevo no cenário jurídico

atual em razão da tese aventada pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes na Rcl 4335/AC. O

caso se tratava de Reclamação Constitucional ajuizada pela Defensoria Pública do Estado

do Acre, em face de decisão do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de

Rio Branco, que indeferiu o pedido de progressão de regime em favor de condenados em

regime integralmente fechado, escudado no art. 2º, §1º, da Lei n. 8.072/1990 – Lei dos

Crimes Hediondos.

Na hipótese, o Supremo Tribunal Federal havia há pouco tempo, por ocasião do HC

82.959/SP, julgado a inconstitucionalidade do dispositivo. Todavia, o Juiz da Vara de

Execuções Penais do Acre justificou o indeferimento da progressão sustentando que a

decisão do STF teria apenas efeito entre as partes, necessitando da intervenção do Senado

Federal, na forma do art. 52, X, da Constituição26, para que adquirisse eficácia erga omnes.

A Defensoria Pública do Estado do Acre, então, ajuizou Reclamação Constitucional ao STF,

alegando que a decisão do Juízo de Primeiro grau teria ofendido a autoridade do STF (art.

102, inciso I, alínea “L”, da CF/88).

A relatoria do caso foi distribuída ao Ministro Gilmar Mendes que, buscando ilidir

a questão pontuada pelo Juiz do Estado do Acre, introduziu a chamada teoria da

26 CF/88. Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;

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abstrativização dos efeitos do controle concreto-difuso de constitucionalidade, afirmando

ter ocorrido mutação constitucional no art. 52, X, da Constituição, de modo que a

competência do Senado Federal seria apenas “dar publicidade à suspensão da execução de

lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão do Supremo Tribunal

Federal”27.

A tese tem importância ímpar no cenário jurídico atual, pois seu acolhimento da

teria forte repercussão no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro,

aproximando os sistemas de controle de constitucionalidade difuso e concentrado. O

Ministro Gilmar Mendes justificou sua posição dizendo que:

Se o Supremo Tribunal pode, em ação direta de inconstitucionalidade, suspender, liminarmente, a eficácia de uma lei, até mesmo de uma Emenda Constitucional, por que haveria a declaração de inconstitucionalidade, proferida no controle incidental, valer tão-somente para as partes?

De fato, o atual modelo permite que as instâncias inferiores continuem aplicando

uma norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no controle concreto,

fazendo com que o Tribunal seja chamado repetidas vezes a se pronunciar sobre a mesma

matéria, o que sem dúvidas aumenta exponencialmente o número de recursos à Corte.

Conforme Dimitri Dimoulis, a parcela da doutrina que se posiciona a favor da solução

adotada pelo Ministro Gilmar Mendes utiliza argumentos consequencialistas, visto que,

caso aceita a interpretação, adviriam vantagens para o Poder Judiciário nacional, pois os

processos seriam mais céleres e não haveria desperdício de recursos materiais e humanos

com processos repetidos (DIMOULIS, 2011, p. 292).

Aqui cabe, contudo, um recorte metodológico. O objetivo do presente estudo é

averiguar a ocorrência de mutação constitucional no art. 52, X, da Constituição da

República, e não a teoria de abstrativização do controle difuso de constitucionalidade. Não

há óbice algum à adoção desta última, desde que feita por meio de Emenda constitucional,

na forma do art. 60 da Lei Fundamental. Embora seja imprescindível conhecer o papel do

Senado Federal e a norma posta no art. 52, X, da CF, para fins de examinar se houve

mutação constitucional – em especial tendo em vista a natureza do instituto, já exposta no

subitem 1.3, que depende de circunstâncias fáticas e sociais –, não convém adentrar ao

mérito da atribuição de efeito erga omnes às decisões do STF no controle incidental de

constitucionalidade; isto é, verificar se a medida seria boa ou ruim para o sistema

27 Esta interpretação do voto do relator foi feita pelo Ministro Eros Grau, que votou no mesmo sentido do Ministro Gilmar Mendes.

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processual brasileiro.

Em última análise, poderia-se dizer que a mutação constitucional seria o meio,

enquanto a abstrativização dos efeitos do controle difuso seria o fim. O presente capítulo

propõe-se a estudar o meio.

2.1.1. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade

Entende-se por controle incidental de constitucionalidade o poder atribuído ao

Poder Judiciário de, ao ser chamado para resolver um conflito de interesses, reconhecer a

incompatibilidade de uma determinada norma infraconstitucional com a Constituição,

negando-lhe aplicação no caso concreto (BARROSO, 2009, p. 89). O instituto tem origem

no direito norte-americano, tendo como paradigma o caso Marbury vs. Madison,28 ocorrido

em 1803, embora já tenha sido aventado, no plano teórico, por Hamilton29. Contudo, em

razão da diferença entre os sistemas jurídicos, a recepção do instituto pelo ordenamento

jurídico nacional resultou em efeitos diferentes do modelo original.

De fato, o sistema jurídico adotado nos EUA é baseado no direito anglo-saxão

(common law), enquanto o Brasil adotou o sistema baseado no modelo continental-europeu

(romano-germânico ou civil law). Sabe-se que no modelo anglo-saxão as decisões da

Suprema Corte, em especial as que decidem pela inconstitucionalidade de determinada lei,

possuem maior eficácia e são vinculantes aos juízes e tribunais, até pela própria natureza do

modelo da common law, com institutos como o stare decisis e outros inerentes ao sistema

28 O caso Marbury vs. Madison foi o primeiro precedente versando sobre a declaração de inconstitucionalidade de lei federal. O caso era politicamente complexo, o então presidente – John Adams – perdeu as eleições para seu adversário político Thomas Jefferson. Buscando tomar controle sobre o Judiciário, Adams aprovou uma lei reduzindo o número de ministros da Suprema Corte, criou vários cargos para juiz de circuito e nomeou seu então secretário de Estado – John Marshall – para a presidência da Suprema Corte. Editou ainda uma outra lei, criando dezenas de cargos de juízes de paz. Aprovada a lei, o presidente assinou os atos de investidura no último dia de governo, restando ao Secretário de Estado a entrega dos diplomas de investidura aos juízes de paz. Contudo, em razão do exíguo tempo, nem todos os interessados foram investidos no cargo. Com a posse de Thomas Jefferson, o qual não reconheceu as nomeações, seu novo secretário de Estado – James Madison – recusou-se a entregar os diplomas faltantes. Um dos juízes prejudicados, William Marbury, impetrou um writ of mandamus perante a Suprema Corte, a qual era presidida por John Marshal. A Suprema Corte, seguindo o voto de Marshall, indeferiu o mandamus, julgando a lei incompatível com a Constituição Americana, configurando-se em um dos mais importantes precedentes da história americana. A doutrina aponta que a decisão foi baseada em uma estratégia política de Marshall, uma vez que se aceitasse o pedido de Marbury, haveria forte possibilidade do Executivo manter sua posição e não cumprir a decisão da Suprema Corte, enfraquecendo-a. Havia, porém, outros meios para indeferir o pedido, sem necessidade de se valer da declaração de inconstitucionalidade. Não obstante, com essa decisão Marshall conseguiu fortalecer o poder da Suprema Corte, criando um poderoso mecanismo de solução em conflitos futuros com os demais poderes, sem entrar em conflito, no caso, com o Poder Executivo. Mais sobre o assunto: Dimoulis, 2011, p. 32/46.)

29 Cf. Federalist Papers, art. 78, Alexander Hamilton.

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de precedentes.

Já no Brasil, a eficácia subjetiva das decisões judiciais é limitada às partes da lide e

não afeta a terceiros (art. 472, CPC). A eficácia objetiva, por sua vez, está adstrita ao pedido

posto, sendo que a coisa julgada restringe-se à parte dispositiva da sentença. Sendo assim,

as questões prejudiciais, decididas incidentalmente no processo, não fazem coisa julgada

(art. 469, III, do CPC).

Ocorre que as questões decididas em sede do controle difuso de constitucionalidade

sempre serão incidentais, visto que se o pedido posto na lide for apenas a declaração de

(in)constitucionalidade da norma, estar-se-ia diante do controle abstrato-concentrado. Dessa

forma, as decisões proferidas por essa via tem eficácia inter partes e, via de regra, ex tunc30.

Entretanto, o Constituinte, visando a criar um modo de atribuição de eficácia erga

omnes às decisões do Supremo Tribunal Federal que julguem pela inconstitucionalidade de

determinado dispositivo legal, editou a norma prevista no art. 52, X, da CF, possibilitando

ao Senado Federal que suspenda a eficácia do ato normativo declarado inconstitucional pelo

órgão de cúpula do Poder Judiciário.

A fórmula foi introduzida no ordenamento pátrio com a Constituição de 1934. É

original do direito brasileiro, não tendo equivalente em outros sistema jurídicos. Foi uma

tentativa de atribuir às decisões do STF efeitos similares aos obtidos pelas decisões da

Suprema Corte no direito norte-americano. Lá, como já dito, adotou-se o sistema jurídico

da common law, de forma que as decisões da Suprema Corte no controle de

constitucionalidade incidental e difuso são vinculantes para os demais órgãos

judiciais.Todavia, o sistema brasileiro incorporou a tradição romano-germânica (civil law),

de modo que não há, regra geral, eficácia erga omnes às decisões judiciais, até mesmo às do

Supremo Tribunal Federal. Assim, tendo em vista a singulariedade do instituto, mostra-se

inadequada a sua análise à luz do direito comparado.

Faz-se necessário, portanto, conhecer os motivos que levaram o constituinte a

incorporá-lo ao ordenamento pátrio. Ana Valderez Ayres Neves de Alencar realizou

pesquisa sobre o papel do Senado Federal Brasileiro no controle de constitucionalidade,

intitulada “A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos

declarados inconstitucionais”, na qual examinou os debates ocorridos na Assembleia

30 Para mais sobre a eficácia subjetiva, objetiva e temporal das decisões no controle incidental-difuso, recomenda-se a leitura de DIMOULIS, 2011, p. 303/304 e BARROSO, 2009, p. 123/127.

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Constituinte que resultou na Constituição de 1934. Um estudo das discussões parlamentares

permite uma melhor compreensão das razões para a criação da fórmula hoje contida no art.

52, X, da Constituição de 1988, mas que também constava no art. 64 da Constituição de

1945, bem como no art. 42 da Constituição de 1967, depois transformado em art. 45 pela

Emenda Constitucional nº 1 de 1969).

Dentre os vários congressistas que se aventuraram no debate, destacaram-se Levi

Carneiro, contrário à medida, e Prado Kelly, principal defensor do instituto. A seguir,

transcrevem-se trechos relevantes dos debates:31

LEVI CARNEIRO: […]

apenas nos conflitos do Judiciário com o Legislativo, ou o Executivo, terá ele intervenção – suspendendo a “execução, no todo ou em parte, de qualquer lei, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucnais”, por sentença. Já aludi a essa atribuição, mostrando os inconvenientes que dela podem resultar. Entendi-a como envolvendo discrição do Conselho. Pode, no entanto, entender-se que o Conselho não tem qualquer arbítrio no caso – e lhe cabe, sempre, suspender, automaticamente, a execução da lei declarada inconstitucional. Nesse caso, a sua intervenção será desnecessária: bastaria que se atribuísse à decisão judiciária – da Corte Suprema, e definitiva, seria preciso dizer – o efeito de revogar a lei inconstitucional. Isso seria, aliás, como já disse, possibilitar a temida “ditadura do Judiciário”.

Mas o principal é que, nem de um modo, nem de outro, o Conselho Federal agiria como “órgão de coordenação”, ou dirimiria os conflitos suscitados.

Num caso, continuando em vigor a lei, resolvendo que ela não fosse revogada, nem por isso impediria que o Judiciário continuasse a declará-la inconstitucional. A lei não convalesceria. Não se revalidaria. O conflito subsistiria. Noutro caso, teria prevalecido, apenas, a decisão judiciária. Seria o Judiciário que prevaleceria sobre os outros poderes.

Assim, o Conselho Federal sugerido nem poderá corresponder às esperanças que despera no patriotismo dos que o sustentam.

PRADO KELLY: […]

Na sistemática preferida pelo nobre Deputado, Sr. Levi Carneiro, o Supremo Tribunal deretaria a inconstitucionalidade de uma lei, e os efeitos dessa decisão se limitariam às partes em litígio. Todos os demais cidadãos, que estivessem na mesma situação da que foi tutelado num processo próprio, estariam ao desamparado da lei. Ocorreria, assim, que a Constituição teria sido defendida na hipótese que permitiu o exame do Judiciário, e esquecida, anulada, postergada em todos os outros casos.

[....]

Certas constituições modernas têm criado cortes jurisdicionais para defesa da Constituição. Nós continuamos a atribuir à Suprema Corte a palavra definitiva da

31 Os trechos citados não se encontram, necessariamente, em ordem cronológica. Para melhor conhecimento sobre os debates, recomenda-se o já citado trabalho de Ana Valderez Ayres Neves de Alencar.

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defesa e guarda da Constituição da República. Entretanto, permitidos a um órgão de supremacia política estender os efeitos dessa decisão, e estendê-los para o fim de suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando o Poder Judiciário declara inconstitucionais.

Adiante nos debates, o Deputado Odilon Braga justifica o caráter discricionário da

decisão do Senado Federal que suspende a eficácia de lei declarada inconstitucional

ODILON BRAGA: Quando a fundamentação da inconstitucionalidade desde logo convence o Conselho, este, para evitar aos cidadãos o incômodo de repetir apelos ao Judiciário, antecipa-se na prática da atribuição que lhe conferimos, e suspende a lei ou ato inconstitucional.

Quando, porém, os fundamentos não são suficientes: quando o próprio Conselho não reconhece a liquidez dessa inconstitucionalidade, aguarda que outros cidadãos renovem a arguição perante o Poder Judiciário, para que se firme a jurisprudência.

Da análise dos debates da Constituinte de 1934 aufere-se que o grupo defensor a

introdução instituto – o qual se consagrou vitorioso – tinha a intenção de propiciar às

decisões do Supremo Tribunal Federal efeitos a todas as partes em posições similares.

Contudo, atento às eventuais mudanças de entendimento dos órgãos judiciais, o

Constituinte optou por atribuir a um órgão político, alheio ao Poder Judiciário, a

competência para a ampliação dos efeitos da decisão. Seria mais um acréscimo ao sistema

de freios e contrapesos (checks and balances), inerente ao princípio da separação dos

poderes do Estado. Cuida-se, portanto, de um ato político e discricionário.

Destarte, o Senado Federal, com base em juízo de conveniência e oportunidade,

decidirá pela suspensão ou não da lei declarada inconstitucional. Caso entenda que a

questão merece melhor amadurecimento jurisprudencial, simplesmente se abstém de

atribuir eficácia erga omnes; do contrário, suspende a eficácia do ato, para que tenha efeitos

a todas as partes. Mas se o ato de suspensão é discricionário, seu conteúdo não o é. O

Senado delibera se suspende ou não a eficácia da lei declarada inconstitucional. Porém,

declarada a suspensão, esta deve ser ater aos termos postos na decisão – isto é, o Senado

não pode adentrar ao mérito da decisão judiciária. Isso significa que no caso do STF julgar

inconstitucional uma parcela de determinado ato normativo, o Senado não pode suspender a

eficácia de todo o ato – incluindo a parte julgada constitucional. Deve se restringir, desta

forma, à parte declarada inconstitucional. Sobre isso não há divergência. Gilmar Ferreira

Mendes, citando Prado Kelly – deputado constituinte em 1934 e, posteriormente, Ministro

do STF – no MS 16.512, anotou que “o Senado Federal não revoga o ato declarado

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inconstitucional, até porque lhe falece a competência para tanto. Cuida-se de ato político

que empresta eficácia erga omnes à decisão do Supremo tribunal proferida em caso

concreto”(MENDES, 2004, p. 154).

Igualmente, a competência do Senado Federal se restringe às declarações

incidentais de inconstitucionalidade feitas pelo Supremo Tribunal Federal, não se aplicando

nos casos de controle concentrado de constitucionalidade, nos quais a decisão da Corte já

possui efeitos erga omnes. Sobre isso, também não há divergência doutrinária e

jurisprudencial, consoante demonstrado no subitem 1.3, constando inclusive no art. 176 do

Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

Deste modo, nota-se que o instituto sofreu poucas alterações desde a sua introdução

no ordenamento pátrio, com a Constituição de 1934. Contudo, a proposta do Ministro

Gilmar Mendes, caso aceita, promoveria uma verdadeira revolução no instituto,

praticamente esvaziando a competência do Senado prevista no art. 52, X, da CF/88; por

isso, convém examinar as razões expostas e averiguar a plausibilidade da tese aventada.

2.1.2. A suposta mutação constitucional no art. 52, X, da Constituição de

1988.

O Ministro Gilmar Mendes iniciou seu voto tecendo relatos sobre a origem da

competência discutida e o papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade.

Como isso já foi discutido no subcapítulo acima, despiciendo reprisar a questão.

Segue o Ministro tecendo fortes críticas à competência do Senado, pontuando que o

instituto “se inspirava diretamente numa concepção de separação de poderes – hoje

inevitavelmente ultrapassada”. Assevera que o instituto mostra-se inadequado para lidar

com o contexto atual do controle de constitucionalidade, uma vez que só tem utilidade para

as decisões que declaram inconstitucionalidade de lei, não servindo para as demais, tais

como as decisões do STF que fixam orientação constitucionalmente adequada, dá a lei

orientação conforme a Constituição ou efetua declaração de inconstitucionalidade parcial

sem redução de texto. Conclui, por fim, que “a única resposta plausível nos leva a crer que

o instituto da suspensão pelo Senado assenta-se hoje em razão de índole exclusivamente

história” (voto, p. 25).

Os argumentos postos pelo Relator são plausíveis e fundamentados, porém,

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novamente, inoportuno debater a questão por esse prisma. Seria um debate adequado para

ser travado no Congresso Nacional. Excede à competência do Poder Judiciário adentrar ao

mérito das escolhas do Constituinte, em especial o Constituinte Originário, ainda que esta

seja considerada inadequada. Ad argumentum tantum, imagine se o Judiciário negasse

vigência a um tributo previsto na Lei Fundamental escudado no fundamento de que o

sistema tributário brasileira teria adotado um modelo bizantino e retrógado e por isso

necessitasse de reforma. A decisão seria absurda. Como aquela também o é.

Enfim, segue o Ministro seu raciocínio relatando a importância do papel do

Supremo Tribunal Federal com a introdução e aperfeiçoamento do controle concentrado de

constitucionalidade. Menciona o aumento do rol de legitimados para propôr ação direta de

constitucionalidade, bem como a eficácia extensiva da coisa julgada no processo coletivo,

como exemplos de que o país estaria abandonando o controle misto de constitucionalidade

e consolidando-se em favor do controle concentrado. Adentra também à já citada

modificação na compreensão do art. 97 da Constituição e a relativização da regra da

reserva de plenário. Diz que a linha seguida pelo Tribunal Superior é de que a prévia

decisão plenária ilide a presunção de constitucionalidade da norma, permitindo aos órgãos

parciais dos outros tribunais que a utilizem para julgar e fundamentar casos concretos

ulteriores, pontuando que esse entendimento passaria a equiparar, praticamente os efeitos

das decisões proferidas nos processos de controle abstrato e concreto” (p. 30 do voto).

A partir dessa linha, conclui que

a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decsiões proferidas no controle direto e no controle incidental.

Somente essa nova compreensão parece apta a explicar o fato de o Tribunal ter passado a reconhecer efeitos gerais à decisão proferida em sede de controle incidental, independentemente da intervenção do Senado. […]

Esse conjunto de decisões judiciais e legislativas revela, em verdade, uma nova compreensão do texto constitucional no âmbito da Constituição de 1988.

É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. […]

A prática dos últimos anos, especialmente após o advento da Constituição de 1988, parece dar razão, pelo menos agora, a Lúcio Bittencourt, para quem a finalidade da decisão do Senado era, desde sempre, “apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos”

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Sintetizando o voto do Ministro Relator pode-se dizer que o raciocínio seguido foi

de que o atual sistema de controle de constitucionalidade brasileiro (que engloba dois

modelos distintos, concentrado e difuso) mostra-se inadequado e ultrapassado; por outro

lado, as últimas modificações introduzidas pelo Legislativo, bem como as atuais

interpretações do Supremo Tribunal Federal, caminham para aumentar a importância do

controle abstrato-concentrado de constitucionalidade, em detrimento do controle difuso.

Com base nisso, conclui que essa tendência teria causado uma mutação constitucional, de

modo que a competência do Senado, prevista no art. 52, X, da CF, de dar eficácia erga

omnes às decisões do controle difuso teria sido incorporada ao Supremo Tribunal Federal.

O raciocínio é, no mínimo, forçado. Por mais méritos que a abstrativização do

controle difuso possa ter, isso não explica como poderia o Supremo Tribunal Federal

modificar substancialmente o conteúdo de uma proposição constitucional, não só ao

emprestar novo significado, sentido e alcance à norma, mas alterando o próprio texto da Lei

Maior. O STF estaria atuando como Constituinte Derivado e usurpando uma competência

de outro órgão da República. O Ministro Relator, convenientemente, não enfrenta essa

questão.

Contudo, o Ministro Eros Grau encampou a tese do Ministro Relator, exarando

voto-vista no qual enfrenta diretamente a problemática referida. Aliás, é ele quem mais se

aprofunda no estudo das mutações constitucionais, dando sua própria versão sobre a

natureza do instituto.

O início do voto-vista já mostra o tom da fundamentação empregada. Inicia seu

posicionamento afirmando que o direito é marcado pela oposição entre a tutela da

segurança jurídica e da liberdade, garantidas pela lei no “sistema do direito burguês”, e a

necessidade de contínua adequação ao “devir social”, garantida pela interpretação. Daí que

enquanto a primeira só pode ser assegurada na medida em que o texto vincule o intérprete,

a segunda demanda criatividade que pode fazê-lo ir além do texto.

Assevera que a proposta do Ministro Relator não se restringe a mera interpretação

do texto, mas avança até o ponto de propor a substituição de um texto normativo por outro.

Dessa forma, não estaria o STF restrito aos limites a que se sujeita o intérprete, pois não se

estaria falando de interpretação, e sim de mutação constitucional, pois, na concepção do

Ministro Eros Grau, “na mutação constitucional caminhamos não de um texto a uma

norma, porém de um texto a outro texto, que substitui o primeiro”. Sintetiza, assim, de

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forma clara a proposta do Supremo Tribunal Federal, ao afirmar que se passou de um texto

que dizia:

[compete privativamente ao senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal]

a outro texto

[compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo]

Essa alteração seria justificada pois decorreria da “incongruência existente entre as

normas constitucionais e a realidade constitucional, entre a Constituição formal e a

Constituição material”, de forma que a mutação ocorrida não seria uma degenerescência,

mas sim uma manifestação de sanidade do ordenamento, visto que a norma contida no art.

52, X, da Constituição seria obsoleta.

O Ministro ainda tentou antecipar as críticas doutrinárias, reconhecendo que

existem diferenças essenciais na eficácia dos dois meios de controle de constitucionalidade

do direito brasileiro32 e que caso o entendimento esposado pelo Relator, e por ele

encampado, prevaleça, nenhuma diferença fundamental existiria entre as duas modalidades

(concentrado e difuso) de controle constitucionalidade. Contudo, com certa prepotência,

ignora a posição da doutrina, pois, em suas palavras:

Sucede que estamos aqui não para caminhar seguindo os passos da doutrina, mas para produzir o direito e reproduzir o ordenamento. [...]. O discurso da doutrina [= discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ele nos seguirá; não o inverso.

Desta forma, endossou a tese aventada pelo Relator da Reclamação, votando

favorável à modificação da redação do artigo 52, X, da Constituição, de modo a atribuir às

decisões do STF eficácia erga omnes – e reduzir a competência do Senado a mero órgão de

publicação – visto que, a seu sentir, a remoção do obsoleto instituto e o consequente

aumento da importância da Corte Suprema seria uma forma de adequação da Constituição

ao “devir social”, visto que, para o Ministro Eros Grau, “o Judiciário é atualmente arena

em que se joga a luta de classes”.

32 No controle concentrado, a decisão tem, salvo hipótese de modulação dos efeitos, eficácia ex tunc e erga omnes; no controle difuso, eficácia ex tunc entre as partes; e, no caso de suspensão pelo Senado Federal, eficácia erga omnes e ex nunc.

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2.1.3. Crítica à tese da mutação constitucional no art. 52, X , da

Constituição.

Apesar dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, vozes no próprio

Supremo Tribunal Federal manifestaram receio diante da grandiosidade da medida

proposta. O Ministro Sepúlveda Pertence chegou a comentar que poderia soar como um

“golpe de Estado”33.

Em concisa, mas incisiva, manifestação, o Ministro Pertence apontou as

fragilidades, e os perigos, da tese aventada, alertando que o acolhimento da proposta do

Ministro Relator implicaria em reduzir a nada o papel do Senado no controle de

constitucionalidade. Asseverou, ainda, que com a introdução do instituto da Súmula

Vinculante – com a Emenda Constitucional n. 45 – a mutação constitucional proposta se

torna dispensável, pois o instituto citado já é capaz de suprir – em menor ou maior grau – a

função de dar maior eficácia às decisões da Suprema Corte.

Também em linha contrária, o Ministro Ricardo Lewandowski – talvez quem, no

STF, tenha tecido os melhores contrapontos à proposta apresentada – apresentou um

também monográfico voto rechaçando os argumentos do Relator. De início, fez um

retrospecto histórico dos institutos debatidos, abordando a matriz norteamericana do

judicial review, a forma como ocorreu a recepção do instituto no direito brasileiro

(comentando as peculiaridades da recepção de institutos da common law em sistemas de

matriz romano-germânica – civil law), bem como a introdução no país do sistema austríaco

de controle de constitucionalidade (controle concentrado) e o modo como o STF tratou a

competência do Senado em relação ao novo modelo, tudo para ao fim questionar a

conclusão do Ministro Relator de que a competência trazida pelo art. 52, X, da Constituição

de 1988 “assenta-se hoje em razão de índole exclusivamente histórica”.

Ao fim, constatou que o Senado Federal vem exercendo a competência

reiteradamente a ele atribuída pelos Constituintes brasileiros desde a Constituição de 1934.

Para isso, trouxe dados demonstrando que só entre os anos de 2007 e 2010 a Comissão de

Constituição e Justiça do Senado Federal pautou para deliberação cerca de 53 ofícios

33 “Mas não me animo à mutação constitucional proposta. E mutação constitucional por decreto do poder que com ela se ampliaria; o que, a visões mais radicais, poderia ter o cheiro de golpe de Estado. Às tentações do golpe de Estado não está imune o Poder Judiciário; é essencial que a elas resista” (trecho do voto do Ministro Sepúlveda Pertence na RCL 4335/AC).

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encaminhados pelo STF, solicitando a promulgação da resolução para suspender os efeitos

dos dispositivos declarados inconstitucionais. Ressaltou ainda os dados trazidos pelo

Ministro Joaquim Barbosa – que também votou de forma contrária à alegada mutação

constitucional – que demonstram que a Câmara Alta teria suspendido, no período

compreendido entre 1998 e 2007, quase 100 normas declaradas inconstitucionais. Em razão

disso, concluiu que a Câmara Alta vem exercendo regularmente a competência atribuída,

motivo pelo qual não há que se falar em desuetude da norma constitucional a justificar a

mutação constitucional.

A doutrina também não poupou críticas à tese do Ministro Gilmar Ferreira Mendes.

Em artigo assinado por Lênio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio

Mont'Alverne Barreto Lima34, os constitucionalistas desconstroem todos os fundamentos

levantados pelo Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau.

Inicialmente, o artigo repete a origem histórica do instituto hoje constante no art.

52, X, da CF, constatando o que já se pôde ver neste trabalho quando do estudo das

discussões da Constituinte de 1934: a delegação da competência ao Senado Federal foi uma

opção do constituinte fundada em uma exigência democrática, qual seja, a necessidade de

participação da sociedade no processo de decisão acerca da (in)constitucionalidade de uma

lei produzida pela vontade geral.

Para STRECK, atribuir eficácia erga omnes e efeito vinculante às decisões do STF

em sede de controle difuso de constitucionalidade seria ferir os princípios constitucionais

do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art. 5ª, LIV e LV, da CF), uma

vez que isso atingiria àqueles que não tiveram participação nos processos de tomada de

decisão. Essa não foi a opção do Constituinte, pois do contrário não teria elaborado

tamanha diferenciação entre o controle concentrado e o controle difuso.

Esse não é, porém, o problema central da questão. Como já mencionado no início

desse Capítulo, a discussão acerca da abstrativização dos efeitos no controle incidental tem

vida própria e independe da tese da mutação constitucional, possuindo méritos e deméritos

que lhe são afetos. Nada impede que o Constituinte Derivado, por meio de emenda à

Constituição (art. 60 da Lei Fundamental), a introduza no ordenamento pátrio. O ponto,

aqui, restringe-se à discussão acerca da possibilidade de “introduzí-la” através de mutação

34 A nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: Mutação constitucional e limites da legalidade da Jurisdição Constitucional. Publicado no site www.mundojurídico.adv.br em 19.08.2007.

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constitucional.

De início, convém distinguir a interpretação dada ao art. 97 da Constituição –

também referida como mutação – com a pretendida transformação do art. 52, X, da CF. No

primeiro caso, o Supremo Tribunal Federal apenas optou pela dispensabilidade de se

encaminhar o Plenário da Corte processos cuja prejudicial de inconstitucionalidade já

houvesse sido julgada pelo Pleno, permitindo que uma de suas Turmas de Julgamento

decidissem a demanda, propiciando maior celeridade e economia processual. Nesta

hipótese, o STF apenas implementa uma modificação em uma competência própria, já

devidamente delineada e consolidada. Continua sendo a Corte quem decide a lide, mas

através de um órgão fracionário, composto por uma parcela de seus membros.

O Ministro Lewandowski consignou também que no citado caso a transformação

operou-se a partir de uma práxis processual adotada pelo STF, sem desrespeitar qualquer

princípio ou norma fundamental da ordem jurídica nacional. Já no caso proposto, almejar-

se-ia deslocar uma competência atribuída pelos constituintes a determinado Poder para

outro, o que excederia os próprios limites teóricos da mutação constitucional.

Mais do que isso, importa questionar a própria concepção de mutação

constitucional adotada pelos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau. Conforme observado

por STRECK, há nítida contradição nos discursos dos Ministros, em especial no voto Min.

Eros Grau. Em um dado momento, o Ministro diz que “a mutação constitucional é

transformação de sentido do enunciado da Constituição sem que o próprio texto seja

alterado em sua redação, vale dizer, na sua dimensão constitucional textual” para em

seguida dizer que “na mutação constitucional não apenas a norma é nova, mas o próprio

texto normativo é substituído por outro”.

Para Eros Grau, o único limite a ser observado, quando se está diante de uma

mutação constitucional, seria “se o texto resultante da mutação mantém-se adequado à

tradição (= à coerência) do contexto, reproduzindo-a, de modo a ele se amoldar com

exatidão. A mutação não é uma degenerescência, senão uma manifestação de sanidade do

ordenamento”. Sem embargo, consoante aponta STRECK, pode-se indagar, a partir da fala

do Ministro, de qual tradição se estaria falando? Aliás, não seria a mutação um instituto que

serviria justamente para modificar a tradição “obsoleta”? De dizer que a posição é, no

mínimo, tautológica.

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Ademais, não se pode olvidar a discussão sobre a compatibilidade da teoria das

mutações constitucionais com a ordem democrática brasileira. Consoante exposto no

subitem 1.3, a doutrina brasileira enxerga a mutação constitucional como um meio de dar

completude ao sistema, colmatando lacunas e evitando aquilo que Konrad Hesse chama de

supressão da tensão entre norma e realidade. Todavia, não se pode negar que, em

determinadas situações, a mutação constitucional pode significar, equivocadamente, a

substituição do poder constituinte pelo Poder Judiciário” (STRECK et al, p. 17).

Ora, se o principal partícipe da vida constitucional – o seu guardião por excelência

(art. 102, caput, da CF) – deixa de cumprir uma opção expressa e inequívoca da

Constituição, não há como evitar o esvaziamento da força normativa da Lei Fundamental

(HESSE). Outrossim, ainda na lição de Konrad Hesse, se a constante revisão constitucional

– feita através do Poder Constituinte de Reforma e seguindos os ritos formais da Lei –

acaba inevitavelmente por desvalorizar a força normativa da Constituição, o que falar da

“revisão” consumada pelo Judiciário, sem participação democrática e, pior, feita in casu,

afetando situações que deveriam ter sido regidas pela norma constitucional (até então) em

vigor. Em última análise: quem protegerá a Constituição de seu guardião?

Destarte, a teoria das mutações constitucionais deve ser vista à luz do momento

histórico em que surgiu. Consoante já exposto, a tese foi introduzida na Alemanha no final

do século XIX e início do Século XX, por autores como Laband, Jellinek – com obras

escritas em 1895 e 1906, respectivamente – sendo posteriormente desenvolvida por Hsu-

Dau Lin (em 1932). Tratava-se de um contexto social e jurídico complemente diverso do

atual. Segundo STRECK (et al, 2007), o próprio conceito de mutação constitucional

demonstrava apenas a incapacidade do positivismo legalista da velha Staatsrechslehre do

Reich alemão de 1870 em lidar construtivamente com a profundidade de sua própria crise

paradigmática, o que não ocorreria no Brasil.

Atentam os constitucionalistas, também, ao fato de que, à época, não existiam

Cortes Constitucionais nos parâmetros atuais, de modo que a participação do parlamento e

do governo nas mutações constitucionais era mais valorizada; questionam, em razão disso,

se os referidos autores alemães teriam dado o mesmo tom às teses mutacionistas se

vivessem em tempos de Cortes Constitucionais. Por fim, concluem que “a tese da mutação

constitucional advoga em última análise uma concepção decisionista da jurisdição e

contribui para a compreensão das cortes constitucionais como poderes constituintes

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permanentes” (STRECK et al, 2007, p. 19).

Além disso, ressalte-se que o risco institucional que o mal uso da tese pode

ocasionar é reconhecido até pelos principais defensores do instituto da mutação

constitucional. Anna Cândida da Cunha Ferraz, pioneira no estudo do tema no país, dedica

um capítulo de sua obra para tratar dos processos manifestamente inconstitucionais ou

mutações inconstitucionais. Para autora, esses processos podem surgir por diversas razões e

pelos mais variados meios; no entanto, apresentam alguns aspectos comuns, quais sejam: (i)

são manifestamente inconstitucionais, isto é, a inconstitucionalidade é facilmente

perceptível; (ii) desbordam os limites de forma ou fundo fixados pelo constituinte e de

observância obrigatória pelos órgãos de aplicação do direito; e (iii) não são submetidos ao

controle de constitucionalidade, de modo que não há mecanismo para impedir a sua

sobrevivência, ainda que viciada.(FERRAZ, 1986, p. 244/245)

A autora assevera que embora não se possa negar a existência das mutações

inconstitucionais – visto que perduram na prática – combatê-las e repelí-las é um

imperativo indiscutível, pois são teoricamente inadmissíveis diante da concepção de

Constituição como decisão política fundamental positivada, reflexo de uma ideia de direito

na comunidade, que deve prevalecer sobre todo o sistema jurídico e político, abarcando

governantes e governados (FERRAZ, 1986, p. 250).

De fato, subsumindo-se os elementos presentes no voto do Relator na RCL 4335/AC

aos critérios estabelecidos pela autora paulista, constata-se que a aventada “mutação

constitucional” do art. 52, X, da CF se trata, em verdade, de típica mutação

inconstitucional. Isso porque, em primeiro lugar, sua inconstitucionalidade é nitidamente

perceptível: a Constituição diz que “Compete ao Senado Federal suspender a eficácia de

lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal” enquanto a proposta do

Relator seria extrair do dispositivo que “Compete ao Supremo Tribunal Federal suspender

a eficácia de lei declarada inconstitucional pelo próprio STF”. Em segundo lugar, a medida

transborda todos os limites semânticos da norma e da própria intenção do Constituinte de

1988, uma vez que unifica os sistemas de controle de constitucionalidade que o constituinte

optou, de forma expressa e inequívoca, por distinguir. Por último, de ver que a proposta não

estaria sujeita ao controle de constitucionalidade, considerando que seria o próprio

Supremo Tribunal Federal – a quem compete dar a última palavra sobre o assunto – o autor

da proposta, de modo que não haveria nenhum órgão externo capaz de rever a decisão da

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Corte.

2.2. As mutações constitucionais no cenário atual

Por sorte, a proposta do Ministro Gilmar Mendes na Rcl 4335/AC não logrou êxito.

Embora a reclamação tenha sido julgada procedente, houve, no curso do julgamento, a

edição da Súmula Vinculante n. 2635, o que foi visto como fato superveniente, passível de

consideração por força do art. 462 da Lei Processual Civil. A orientação foi dada no voto-

vista do Ministro Teori Zavascki, que acabou seguido pelos ministros Luís Roberto

Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello. Assim, somados os votos dos Ministros Gilmar

Mendes e Eros Grau, a Reclamação foi julgada procedente por maioria de 6 votos a 4,

vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e

Marco Aurélio.

De ver, entretanto, que dentre os votantes apenas 7 ainda se mantém na composição

atual do STF. Além disso, quatro dos votantes sequer se manifestaram sobre a controvérsia

acerca da mutação constitucional, inclusive o Min. Teori Zavascki que, apesar do longo

voto, visivelmente esquivou-se da questão. Apenas o Min. Luis Roberto Barroso teceu

breves comentários sobre a problemática, dizendo que o processo de mutação constitucional

encontraria limite na textualidade dos dispositivos da Constituição e, por isso, a suposta

mutação do art. 52, X, da CF não poderia prescindir da mudança de texto da norma.

Não há, portanto, uma posição clara da Suprema Corte Brasileira sobre o tema. É

provável que a matéria ainda volte à pauta do Tribunal, principalmente em razão dos

visíveis conflitos institucionais que vem ocorrendo entre o Poder Judiciário e o Poder

Legislativo.

Neste sentido, aliás, recentemente houve caso importante no cenário político do

país que quase foi capaz de reacender a problemática das mutações constitucionais. O caso

envolvia a perda do mandato parlamentar do Deputado Natan Donadon, condenado em

2010 a 13 anos, 4 meses e 10 dias de prisão em regime fechado pelos crimes de peculato e

formação de quadrilha, com mandado de prisão expedido pelo Supremo Tribunal Federal

35 Súmula Vinculante 26: Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.

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em 26 de junho de 201336. O plenário da Câmara rejeitou o parecer pela cassação do

mandato, com 233 votos a favor da cassação, 131 pela absolvição e 41 se abstiveram, num

total de 405 deputados. Eram necessários, porém, 257 votos para a aprovação do parecer.37

Após a votação, o Deputado Carlos Sampaio (PSDB/SP) impetrou mandado de

segurança contra o ato do Presidente da Câmara dos Deputados que submeteu ao Plenário a

deliberação sobre a perda do mandato parlamentar, buscando reconhecer que o ato (que

trataria sobre a perda do mandato) era meramente declaratório e deveria ser proferido pela

Mesa da Câmara. O fundamento principal: teria ocorrido uma 'mutação constitucional' no

sentido e no alcance do art. 55, VI, §2º da Constituição38 e, por conseguinte, não haveria

mais a exigência de deliberação do plenário da Casa Legislativa correspondente.

A relatoria do mandamus (MS n. 32.326) foi distribuída ao Ministro Luis Barroso.

Nas razões da decisão que apreciou o pedido cautelar, rechaçou o argumento trazido pelo

impetrante, dizendo que o “Direito tem possibilidades e limites, e o intérprete não deve –

como ninguém deve, nessa vida – presumir demais de si mesmo, transformando-se em

constituinte ou legislador” e que apesar do tratamento dado pelo Constituinte no art. 55,

inciso VI e §2º, da CF não ser o melhor, “a regra geral há de ser a interpretação estrita,

não cabendo ao Judiciário esvaziar as prerrogativas institucionais expressamente

conferidas a outro Poder, por discordar de sua inspiração.”.

Elabora, assim, importante e sensato voto, ressaltando os limites interpretativos e a

importância da separação dos poderes, tudo para, ao final, de forma absolutamente

paradoxal, deferir o pedido liminar e suspender a sessão do Plenário da Câmara que não

cassou o deputado Donadon.

Os fundamentos da suspensão foram, em apertada síntese, os seguintes: a) a

Constituição prevê como regra geral que, na hipótese do parlamentar sofrer condenação

criminal transitada em julgado, a perda do mandato será decidida por voto secreto e maioria

absoluta, pelo Plenário da Casa da qual aquele pertence; b) esta regra, todavia, não se aplica

36 Conforme reportagem “veiculada no site: Jornal o Globo. Fonte: http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/supremo-manda-pf-prender-deputado-natan-donadon.html. Acesso em 24/09/2014.

37 Fonte: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/ULTIMAS-NOTICIAS/450595-PLENARIO-REJEITA-CASSACAO-DE-NATAN-DONADON.html. Acesso em 24/09/2014.

38 Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: IV - VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. §2ºNos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

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em casos de condenação em regime inicial fechado, por tempo superior ao prazo

remanescente do mandato parlamentar; c) a decisão da Câmara, nestas situações, é

vinculada e declaratória; e d) o tratamento constitucional dado ao tema não é bom e

apresenta sequelas institucionais indesejáveis.

Salta aos olhos, novamente, a excrescência da decisão judicial. A situação ainda

piora pois o próprio Ministro já havia julgado caso envolvendo o mesmo dispositivo

constitucional menos um mês antes 39, ocasião em que teceu os seguintes comentários:

Acho que a condenação criminal, pelo menos acima de um determinado grau de gravidade do delito, deveria ter essa consequência automática. Mas a Constituição diz o contrário. O dia que a Constituição for o que os intérpretes quiserem independentemente do texto, nós vamos cair numa situação muito perigosa", disse. Ele afirmou ainda que a decisão sobre Cassol não interfere no julgamento dos recursos do caso do mensalão.”40

Neste momento, parece oportuno frisar que a decisão do Ministro Barroso não é o

objeto deste estudo, até porque comportaria uma análise própria e exclusiva41. O que se

pretende é apenas demonstrar o clima de pesada insegurança jurídica instaurado pelo

Supremo Tribunal Federal. E mais: a (perigosa) tendência de reduzir as decisões políticas

de competência do Congresso Nacional em meras chancelas das decisões do Poder

Judiciário, tendo caráter vinculado e meramente declaratório. Foi assim no já abordado caso

do art. 52, X, da CF, no qual se pretendia reduzir o papel do Senado Federal no controle de

constitucionalidade à mera publicação da decisão do STF, e também na hipótese do art. 55,

VI e §2º, da CF, em que competência da Casa Legislativa de decidir a cassação do mandato

de seus membros seria suprimida, restando apenas o dever de publicar o que a Judiciário já

havia dito. Em ambos os casos, a função do Congresso Nacional seria reduzida a simples

Diário Oficial do Supremo Tribunal Federal.

Não obstante, em ambos as hipóteses não houve julgamento decisivo pelo Plenário

da Suprema Corte. A Rcl 4335/AC, como supracitado, resolveu-se em decorrência da

edição posterior da Súmula Vinculante n. 26; já em relação ao MS. 32.326, também

sobreveio fato superveniente, qual seja, a cassação do mandato pelo Plenário da Câmara

39 Julgamento proferido na Ação Penal 565, em 08/08/2013; sendo que a decisão liminar no caso Donadon foi em 02/09/2013. 40 Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/08/1324523-decisao-do-stf-reduz-tensao-com-congresso-diz-ministro.shtml. Acesso em 24/09/2014.

41 Para mais sobre o assunto, recomenda-se o artigo “O Supremo não é o guardião da moral da nação”, de autoria de Lênio Streck, publicado em sua coluna Senso Incomum, na Conjur. Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-set-05/senso-incomum-supremo-nao-guardiao-moral-nacao#_ftn1_9328. Acesso em 24/09/2014.

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dos Deputados, em sessão ocorrida no dia 12/02/201442, motivo pelo qual o Min. Roberto

Barroso julgou prejudicado a ação mandamental, com fulcro no art. 38 da Lei 8.038/90,

retirando-o da pauta de julgamento43. A controvérsia, portanto, mantém-se nebulosa, sem

decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

2.3. Limites às mutações constitucionais

Diante desse cenário de relativa instabilidade institucional, com o aumento da

judicialização da política que vem resultando em constantes invasões do Poder Judiciário na

esfera de competência do Poder Legislativo, é inevitável associar a teoria das mutações

constitucionais com um possível mecanismo de inchaço da competência do Supremo

Tribunal Federal.

De fato, a mutação constitucional, enquanto concebida como qualquer meio de

mudança constitucional não produzida pelas modalidades organizadas de exercício do

Poder Constituinte derivado (FERRAZ, 1986, p. 12), é um instituto eminentemente afeto ao

Poder Judiciário, pois será este quem dará a última palavra sobre a ocorrência ou não de

modificação informal na Lei Fundamental. Dito de outro modo: é o Judiciário quem difere

o que é mutação constitucional do que é mera infração da Constituição ou da lei (lato

sensu).

Vale dizer que até mesmo nas hipóteses onde a mutação decorre da práxis

constitucional, será o Poder Judiciário quem decidirá se a prática é coerente com a

Constituição, complementando-a, ou se se trata de simples atividade inconstitucional que

necessita ser repelida. Até mesmo no caso de mutação constitucional por produto

legislado44, o STF pode simplesmente julgar inconstitucionais os dispositivos legais.

Em razão disso, seria conveniente – e até mesmo essencial, caso se queira

compatibilizar a tese a uma ordem jurídica democrática – estabelecer limites claros para a

atuação do chamado poder constituinte difuso.

Há vozes na doutrina, contudo, que reputam incompatível com a natureza do

42 Fonte: http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/02/em-votacao-aberta-camara-decide-cassar-mandato-de-natan-donadon.html. Acesso em 24/09/2014.

43 Consoante decisão publicada no DJE nº 56, divulgado em 20/03/2014.

44 Como exemplo, pode-se citar a Lei 9.756/98, que introduziu o art. 481 do CPC, que contraria a literalidade do art. 97 da CF, bem como o art. 11, §1º, da Lei 9.868/99, que também difere da disposição literal do art. 102, §2º, da CF. Ambas as hipóteses já foram expostas no subitem 1.2 deste trabalho.

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instituto o estabelecimento de limitações. Para Uadi Lammego Bulos:

Não se afigura possível determinar os limites da mutação constitucional, porque o fenômeno é, em essência, o resultado de uma atuação de forças elementares, dificilmente explicáveis, que variam conforme acontecimentos derivados do fato social cambiante, com exigências e situações sempre novas, em constante transformação. (BULOS, 1997, p. 197)

Anna Candida da Cunha Ferraz, por sua vez, entende de modo diverso. Segundo

ela, a mutação

Como exercício de função constituinte implícita, é forçosamente limitada. Seus limites são necessariamente mais amplos e definidos do que os limites que se impõem ao constituinte derivado, isto é, ao poder de reforma constitucional, na medida em que este, com permissão expressa da Constituição, atua precisamente para reformá-la, emendá-la, modificando o texto e o conteúdo constitucional. (FERRAZ, 1986, p. 11).

Parece mais sensata a conclusão adotada pela Prof. Anna Candida da Cunha Ferraz,

de forma que pode se compreender que todos os limites materiais postos ao Poder

Constituinte de Reforma se aplicam ao chamado poder constituinte difuso, pois do contrário

permitiria-se até mesmo a revisão de cláusulas pétreas por vias da mutação constitucional, o

que se afigura inconcebível com a ordem democrática. Aliás, de dizer que o próprio Uadi

Lammego Bulos parece compartilhar dessa posição – embora aparente se contradizer com a

citação acima – uma vez que é enfático defensor da imprescindibilidade e insuperabilidade

das cláusulas pétreas (BULOS, 1997, p. 44).

De fato, fica difícil justificar a possibilidade de uma mutação constitucional

contrariar cláusula pétrea, excedendo até mesmo aos limites estabelecidos ao Poder

Constituinte de Reforma. Parte-se, assim, de uma premissa praticamente inquestionável: a

mutação constitucional encontra limites nas cláusulas pétreas. Só isso, todavia, não permite

uma compatibilização da teoria das mutações constitucionais com a ordem democrática

brasileira. Como já observado, não se pode outorgar ao Poder Judiciário (quem, em geral,

se investe na condição de poder constituinte difuso) os mesmos poderes estabelecidos ao

Constituinte de Reforma; logo, os limites não podem ser idênticos. É preciso ir além.

Sem dúvidas, pelo própria natureza informal do instituto das mutações, a tarefa não

é fácil. Contudo, considerando que o poder constituinte difuso possui as mesmas limitações

do Constituinte reformador, só que mais amplas, é possível estabelecer alguns critérios

básicos, tendo como ponto de partida as cláusulas pétreas.

Conforme já abordado no subitem 1.2, a Constituição estabelece quatro cláusulas

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pétreas (I – forma federativa de Estado; II – voto direto, secreto, universal e periódico; III –

separação de Poderes; e IV – direitos e garantias individuais). Ocorre que a Constituição

veda emendas tendentes a abolir estes princípios diretivos do ordenamento pátrio. Isso não

significa dizer que é defeso ao Constituinte reformador modificar questões inerentes à

federação, ao sistema eleitoral, aos direitos e garantias fundamentais ou à separação de

poderes. É possível a manutenção destes complexos, embora em forma diversa ou com

outro campo de abrangência. Em última análise, a delimitação da abrangência das cláusulas

pétreas é questão subjetiva e eminentemente jurisprudencial45.

Permanece esclarecer, porém, se o poder constituinte difuso também poderia –

desde que, por óbvio, tenha cumprido os requisitos inerentes à mutação constitucional –

trafegar nesta zona limítrofe. Parece adequado pensar que não, pois, como já assentado, as

limitações aos processos informais devem ser sempre mais amplas que a dos processos

formais de mudança da Constituição.

Partindo-se desse pressuposto, pode-se definir algumas matérias nas quais não seria

possível a ocorrência de mutação constitucional, em nenhuma hipótese. Essas matérias

teriam por base as próprias cláusulas pétreas. Assim, não se poderia alterar por via da

mutação constitucional qualquer norma pertinente à separação dos poderes, à forma

federativa do Estado, à substância do sistema eleitoral, bem como a supressão de direitos e

garantias individuais.

No caso dos direitos e garantias fundamentais, é difícil imaginar uma suposta

ocorrência de mutação constitucional tendente a suprimí-los, de modo que a limitação fica

um tanto quanto abstrata e intangível. Em relação às outras cláusulas, no entanto, é possível

a extração de critérios objetivos. Neste diapasão, seria vedado ao constituinte difuso

modificar uma competência, independente de qual, estabelecida a um ente federado,

outorgando-a a outro; ou ainda modificar regra que altera substancialmente o sistema

eleitoral; ou , por fim, modificar as competências de um Poder da República, devidamente

consolidadas e delineadas, transferindo-as a outro.

Compreendida a mutação constitucional dentro desses limites, reduzir-se-ia a esfera

de decisionismo do instituto, tanto atacada pela doutrina, bem como evitaria as tentações do

golpe de Estado, o qual, como bem lembrou o Ministro Sepúlveda Pertence, nem o Poder

Judiciário está imune. Outrossim, teses perigosas à República, como a aventada pelo

45 Vide subitem 1.2.

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Ministro Gilmar Mendes, seriam imediatamente afastadas, por tratarem sobre a repartição

das competências entre os três Poderes da República. A proposta não afetaria, todavia,

outras situações onde a mutação constitucional adquiriu papel eminentemente

complementar, como nos casos dos artigos 97 e 102, §2º, ambos da Constituição da

República.

Seria um meio de compatibilizar a teoria com a ordem jurídica nacional. Por óbvio,

o acréscimo destes limites não suprimiria as outras limitações inerentes ao instituto da

mutação, como na hipótese desta violar manifestamente a letra da Constituição e os fins

previstos na Lei Fundamental, configurando-se naquilo que a doutrina chama de mutações

inconstitucionais. Imprescindível a constatação, também, da presença, no caso concreto,

dos elementos fáticos que justificariam a mutação46.

Sintetizando-se o raciocínio, para se aferir a ocorrência ou não de mutação

constitucional, segundo os critérios propostos, dever-se-ia percorrer os seguintes passos: 1)

verificar se a suposta mutação constitucional envolveria matéria afeta à separação dos

poderes, à forma federativa de Estado, à substância do sistema eleitoral ou à supressão de

direitos e garantias fundamentais; cuida-se de uma questão prejudicial, analisada de forma

objetiva, logo, constatada a sua presença, afasta-se de plano o advento da mutação

constitucional; podendo ser hipótese de falseamento ou quebramento constitucional, prática

inconstitucional ou mutação inconstitucional. 2) não recaindo na vedação referida, passa-se

ao exame da norma constitucional cujo sentido, significado e alcance teria sido alterado, a

fim de aferir se esta alteração seria contrária à letra e ao espírito da Lei Fundamental, à luz

de critérios subjetivos inerentes à hipótese sob análise. Em caso positivo, trata-se

novamente de mutação inconstitucional. 3) Não estando presentes nenhum dos elementos

impeditivos acima tratados, procede-se à investigação dos elementos fáticos e contextuais

que justificariam a mutação constitucional. Esta última fase é peculiar e depende muito das

circunstâncias postas, podendo ocorrer por qualquer uma das formas citadas no subitem 1.3.

De toda sorte, independente do acolhimento ou não da proposta sugerida alhures,

não restam dúvidas de que a matéria comporta maior estudo e reflexão por parte da doutrina

nacional. Como se pôde ver, tanto a doutrina como a jurisprudência não possuem posição

firme sobre a questão. O conceito, a forma e especialmente os limites das mutações

constitucionais ainda permanecem vagos e controversos. Um melhor amadurecimento do

tema é essencial, notadamente no cenário atual, no qual a teoria vem sendo utilizada para

46 A questão foi melhor abordada no subitem 1.3.

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legitimar pretensões que podem modificar substancialmente o regime político instituído

pela Constituição de 1988.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A existência de processos informais de mudança da Constituição é um fenômeno

inegável, visto que esses são manifestações da realidade sobre o ordenamento jurídico,

operando na esfera do ser e não do dever ser. Isto não significa que devem ser aceitos,

tampouco os torna legítimos. O fato de uma conduta contrária à Constituição ser

reiteradamente repetida não a convalida. Práticas que contrariam as proposições

constitucionais devem ser evitadas e repelidas, pois do contrário haveria um esvaziamento

da força normativa da Constituição, e, por consequência, esta não seria mais capaz de

ordenar a realidade e disciplinar as relações jurídicas.

Daí que a conveniência de distinguir as mutações constitucionais, que convergem

com os princípios da Constituição, das mutações inconstitucionais, que ocorrem ao arrepio

desta. Enquanto as mutações inconstitucionais são fenômenos que esvaziam a força

normativa da Constituição e corroem o Estado Democrático de Direito, as mutações

constitucionais poderiam servir justamente para dar completude às lacunas do ordenamento

jurídico, auxiliando a manter a tensão entre norma e realidade.

Neste cenário, a doutrina constitucional adverte que embora as mutações

constitucionais sejam fenômenos essencialmente informais, que ocorrem pelas mais

variadas formas, derivados do fato social cambiante, com exigências e situações sempre

novas, estas não podem atentar contra o espírito da Constituição, isto é, o conjunto de

valores postos na Lei Maior, sob pena de se tornarem mutações inconstitucionais.

Ocorre que, conforme se verificou neste estudo, apenas esta limitação não basta

para compatibilizar a teoria das mutações constitucionais ao ordenamento jurídico nacional

e a um Estado Democrático de Direito. Como visto, a mutação constitucional é um instituto

eminentemente judicial, aplicado especialmente pelo Supremo Tribunal Federal, o qual

também compete a guarda da Constituição. Consequentemente, parece perigoso possibilitar

ao Poder Judiciário que atue como poder constituinte difuso, mormente porque o juízo de

adequação de determinada mutação ao 'espiríto da Constituição' é baseado em critérios

subjetivos.

Com efeito, a recepção da teoria das mutações constitucionais sem a adoção de

critérios objetivos de limitação do poder de reforma é incompatível com a ordem

constitucional vigente, correndo-se o risco de causar inchaço excessivo do Poder Judiciário,

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fragilizando as instituições da República e corroendo a própria separação dos poderes.

À vista disso, a fim de conciliar a tese com a ordem vigente, tentou-se estabelecer

um critério objetivo de limitação ao poder constituinte difuso, partindo-se apenas de uma

dedução lógica das disposições constitucionais e da natureza doutrinária do instituto das

mutações constitucionais. O raciocínio é simples.

Em primeiro lugar, sabe-se que a Constituição da República proíbe o Poder

Constituinte Derivado de modificar aquilo que seria o núcleo essencial do projeto do

Constituinte de 1988, as chamadas cláusulas pétreas. De dizer, contudo, que a Lei

Fundamental não impede o Poder Constituinte Derivado de alterar questões afetas às

cláusulas pétreas, e sim de realizar emendas tendentes a abolí-las, conforme redação

expressa do artigo 60, §4º, da CF/88. Daí é possível extrair a primeira proposição lógica,

que servirá como premissa maior do raciocínio, qual seja, o Poder Constituinte de Reforma

não é ilimitado e não pode alterar aquilo que seria o núcleo do projeto do Constituinte, isto

é, as cláusulas pétreas.

Por segundo, a doutrina constitucional pontua claramente as diferenças entre Poder

Constituinte Derivado e Poder Constituinte Difuso, ou seja, as reformais constitucionais

formais não se confundem com as mutações constitucionais e por elas não podem ser

substituídas. Neste sentido, consoante já demonstrado, é pacífico o entendimento de que a

mutação constitucional tem caráter supletivo e seus limites são necessariamente mais

amplos que os do Poder Constituinte Derivado, pois este atua com expressa autorização do

Constituinte Originário, enquanto aquela tem natureza formal e serve para preencher

lacunas do ordenamento. Disso se aufere a segunda proposição (premissa menor): as

mutações constitucionais são obrigatoriamente mais limitadas do que as reformas

constitucionais.

Posto isso, tem-se o seguinte: 1) premissa maior: o Poder Constituinte Derivado

deve agir com cautela quando delibera sobre questões afetas às cláusulas pétreas, não

podendo tomar medidas tendentes a abolí-las; 2) premissa menor: o Poder constituinte

difuso é obrigatoriamente mais limitado que o Poder Constituinte Derivado; 3) conclusão: o

poder constituinte difuso não pode atuar em questões diretamente relacionadas às cláusulas

pétreas.

Deste modo, este trabalho concluiu que para compatibilizar a teoria das mutações

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constitucionais com a ordem constitucional vigente é fundamental concebê-la dentro dos

limites objetivos sugeridos, não podendo ser objeto de mutação constitucional qualquer

questão correlata à separação dos poderes, à forma federativa, ao voto direto, secreto,

universal e periódico e aos direitos e garantias fundamentais. Assim, é incompatível com a

Constituição qualquer alteração das competências entre os Poderes da República

(Executivo, Legislativo e Judiciário) ou entre os membros da Federação (União, Estados e

Municípios) por meio de mutação constitucional, bem como modificação no sistema

eleitoral ou criação e supressão de direitos e garantias fundamentais.

Portanto, para que o processo informal de mudança da Constituição seja válido,

faz-se necessário que respeite o limite proposto, sem prejuízo das restrições inerentes ao

próprio instituto, como a adequação à letra e ao espírito do texto alterado, bem como a

constatação da presença dos elementos fáticos que ocasionam a mutação constitucional.

De igual modo, partindo-se destes elementos acima postos, é possível inferir que a

suposta mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição de 1988, defendida pelos

Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau na Reclamação Constitucional 4335/AC, trata-se, em

verdade, de típica mutação inconstitucional, pois não só versa sobre matéria que não pode

ser objeto de mutação constitucional (transferência de competência do Senado Federal ao

STF), como também é contrária à letra da Lei Fundamental e à intenção do Constituinte

Originário, conforme já demonstrado neste trabalho.

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