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1
Universidade Federal de Santa Catarina
Ilze Eliane Krting Pinto
Dilogo em Preto e Branco para o Monlogo de Miguel:
Reflexes em torno de um processo de criao.
Florianpolis
2013
2
ILZE ELIANE KRTING PINTO
Dilogo em Preto e Branco para o Monlogo de Miguel:
Reflexes em torno de um processo de criao.
Este Memorial foi julgado adequado para obteno de Ttulo de Bacharel em Artes Cnicas,
e aprovado em sua forma final.
Florianpolis, 26 de fevereiro de 2013.
_____________________________
Prof. Dr.Elisana De Carli
Coordenadora do Curso
Banca examinadora:
__________________________
Prof.Dr.Dirce Waltick do Amaral
Orientadora
UFSC
________________________
Prof.Dr. Aglair Maria Bernardo
UFSC
________________________
Prof.Dr. Maria de Ftima Souza Moretti
UFSC
3
Dedico esse trabalho aos trs homens da minha vida:
Nh Gut, meu pai, que me ensinou que nunca tarde;
Victor e Iury, meus filhos, razo e emoo da minha vida.
4
Agradecimentos
A lista de agradecimento teria que ser enorme. Por falta de espao cito apenas os mais
presentes ao longo de quase 5 anos de desafios
A toda a minha famlia, especialmente as minhas irms Sandra e Luciana. Que
seria de mim sem o apoio bem humorado e carinhoso das duas.
Alai Diniz pela coragem e determinao que serve de referncia. Se fiz um TCC em
Teatro porque o curso existe, em grande parte, graas ao seu incansvel trabalho.
Fernando Faria por ter feito A Ponte para eu ser hoje atriz. Obrigada por
acreditar em mim. Obrigada por ter me aberto tantas portas.
Sass Moretti obrigada por aceitar a minha presena inquieta no Nellol.
Jorge Lus Miguel por ter me confiado o texto e a honra de fazer Miguel.
Thomas Dadam pelo prazer de poder trabalhar com algum to talentoso.
Manu Mattiello sempre boa vontade em forma de gente.
Equipe Extinto Gamer pelo capricho da animao e obrigada Victor Hugo pelas
timas informaes para operar o vdeo.
Fernando Vignoli, genial artista plstico, pela generosidade de ceder sua obra.
Anglica Mahfuz pelo timo trabalho como preparadora corporal e pelo abrao
amigo que me deram fora.
. Grupo Somato por terem feito o arranjo musical com tanto profissionalismo e
disponibilidade. Admirvel a qualidade do que fazem.
Pollo Cabrera pelo apoio e pelas palavras de estmulo para a gravao da msica.
Betina, Dani e Dudu pela presena sempre to carinhosa nas apresentaes.
Barbara Danielli, Fabiana Aidar, Taina Orsi, Tatiana Cobucci e Rafaela Samartino,
vocs no imaginam como so importantes na minha vida.
APATOTADOTEATRO pela coragem de aceitar um projeto pesado e
desafiador o tempo todo. Obrigada por terem respeitado a concepo e a minha
direo. Obrigada pela confiana e por terem me feito sentir valorizada o
tempo todo.
Aos inmeros abraos dos amigos que estiveram nas apresentaes.
5
No atue. Aja.
No recrie. Crie.
No imite a vida.Viva.
No crie imagens de idolatria. Seja.
( Julian Beck)
6
RESUMO
O presente Trabalho de Concluso de Curso (TCC) ser o registro do processo de criao do
texto teatral Dilogo em Preto e Branco de minha autoria e do processo colaborativo que
permitiu a concretizao do projeto 3 fragmentos surreais e uma verdade, para a montagem da
apresentao teatral Dilogo em Preto e Branco para o Monlogo de Miguel. Duas
dramaturgias, a minha, e o Monlogo de Miguel, tendo como autor Jorge Lus Miguel, e uma
cena udio visual, do roteirista e diretor Thomas Dadam formam o espetculo teatral que foi
apresentado em dezembro de 2012, em Florianpolis. Os relatos de todo o processo da
criao da dramaturgia Dilogo em Preto e Branco at a montagem seguem acompanhados de
um ensaio terico, alm da organizao de material em vdeos e fotografias bem como dos
dados colhidos, na anlise simplificada da recepo da pea ao longo dos ensaios e das oito
apresentaes realizadas em quatro distritos distintos no municpio de Florianpolis .
Palavras - chave: dilogo, criao, dramaturgia.
7
ABSTRACT
This Work End of Course (TCC) will record the process of creating the theatrical text
Dialogue in Black and White of my own and collaborative process allowed the
implementation of the project 3 fragments surreal and a true to mounting the theatrical
presentation Dialogue in Black and White for the Monologue of Miguel. Two dramaturgy,
mine, and the Monologue of Miguel, whose author Jorge Luis Miguel, and an audio visual
scene, the writer and director Thomas Dadam form the theatrical spectacle that was presented
in, from December 2012, in Florianpolis . The reports of the entire process of creating the
drama Dialogue in Black and White to follow the assembly accompanied by a theoretical
essay, and the organization of material in videos and photographs as well as data collected in
simplified analysis of receipt of the piece throughout the trials and the eight presentations
made in four different districts in the city of Florianpolis.
Keywords: dialogue, creation, dramaturgy.
8
Sumrio:
1 Introduo: ............................................................................................................................... 9
2 Gnese da Montagem: ......................................................................................................... 12
2.1 A Pintura surrealista como referncia: ........................................................................... 13
2.2 A Concepo: ................................................................................................................. 16
3 Memrias e reflexes do primeiro dilogo. .......................................................................... 20
4 O Dilogo ............................................................................................................................. 27
5 Cenrio do embate : ............................................................................................................. 31
6 Roteiro para conhecer a montagem ..................................................................................... 33
7 O preparo dos atores no fragmento Dilogo em Preto e Branco: ......................................... 38
8 Concluso: ............................................................................................................................. 45
9 Referncias bibliogrficas: .................................................................................................... 48
ANEXOS .................................................................................................................................. 50
9
1 Introduo:
O presente Trabalho de Concluso de Curso (TCC) registra o processo de criao do
texto teatral Dilogo em Preto e Branco de minha autoria e do processo colaborativo que
culminou com a elaborao do projeto 3 fragmentos surreais e uma verdade. O projeto em
questo serviu de linha direcionadora para a montagem da apresentao teatral Dilogo em
Preto e Branco para o Monlogo de Miguel. Duas dramaturgias, a minha, e o Monlogo de
Miguel, tendo como autor Jorge Lus Miguel, e uma cena udio visual, do roteirista e diretor
Thomas Dadam formam um espetculo de mltiplas linguagens. Registra-se aqui todo o
processo da criao que levou- me a criar o texto teatral Dilogo em Preto e Branco at a sua
montagem.
Todo o processo at a montagem veio, a priori, com a necessidade de realizar e sanar
algo que me inquietava, a necessidade da experimentao no palco do que foi apreendido ao
longo da graduao em Artes Cnicas. Um exerccio pleno de atuar, dirigir e escrever junto
com colegas do curso e com um texto de minha autoria, j que um dos meus principais
objetivos declarados, no que se refere minha formao acadmica, sempre teve como
prioridade o conhecimento e a prtica em dramaturgia.
Dramaturgia que no fica limitada s palavras transcritas, mas tornada ao, junto aos
demais elementos que compem uma encenao. A linguagem da dramaturgia das aes
fsicas realizadas nas cenas pelos atores, pela luz, pelo figurino, pela msica, pelos gestos e
tenses musculares dos corpos, pelas imagens projetadas ganham sentido e se define
concretamente como linguagem no espao cnico, diante do pblico. Dramaturgia, sem a ao
cnica, torna-se apenas grafia, ou seja, dramaturgrafar sendo que o almejo a dramatiza-
ao.
A dramaturgia, referindo-se especificamente a composio do texto em palavras, tem
em si um objetivo mais abrangente do que a simples narrao de uma histria, para fazer
conhecer os seus seres ficcionais e como suas aes se processam. No teatro, em cena, a
dramaturgia escrita busca captar em seu enunciado a semelhana com a realidade, mas no
comportam e s representam a realidade das coisas e dos valores do real, no deixa de ser
metfora da vida.
10
Jean-Pierre Ryngaert 1 na introduo de seu livro Introduo anlise do teatro faz
uso, como citao, a frase do pensador francs Roland Barthes, na qual, o texto definido
como sendo uma maquina preguiosa e pressuposicional que faz com que o leitor tenha um
trabalho duro de cooperao para preencher os espaos do no dito ou o do j dito que ficou
em branco. Ryngaert, por sua vez, afirma que o texto teatral uma mquina mais preguiosa
que as outras, devido relao equivocada com a representao. Refora, ainda falando, que
Anne bersfeld refere-se a ele como sendo texto aberto com mais brechas do que outros
textos por pressupor um conjunto de signos no verbais com os quais os signos verbais que se
relacionaro na representao. Esta abertura, do texto, condiciona a participao efetiva de
outros agentes para que faam sua interferncia no espao cnico. A participao do pblico
diferente daquela que ocorre quando este leitor de texto literrio, pois ter que haver uma
leitura simultnea de diferentes linguagens que do forma ao texto teatral. Na cena, o texto
ganha a teatralidade e se identifica como teatro. Nesse reconhecer o texto teatral dialoga com
e atravs dos atores, diretores, figurinistas, iluminadores, msicos e com o pblico. Um
romance ou um poema se basta por si mesmo, o que no ocorre com um texto teatral. O
imaginar do leitor (pblico) e o que d sentido e cria significados preenchendo os espaos
vazios do texto que pedem para serem ocupados. Na representao teatral no h
obrigatoriamente o objetivo de sanar e preencher as lagunas de um texto, muitas vezes nela
surge pontos obscuros, como no texto, apresentando novos espaos por serem preenchidos.
Segundo o pensamento de Ryngaert os questionamentos sobre o que especificidade do texto
teatral, se esse ou aquele texto representvel, se so ou no teatro acontece por um
sentimento nostlgico das poticas dramticas e at pelo desejo de um tratamento normativo
que resolvesse nossas incertezas contemporneas. Afirma que quando uma encenao ganha
importncia extrema o texto em contrapartida perde a sua importncia.
O texto prevaleceu sobre o espetculo entre os anos 60 aos anos 80, onde a figura do
diretor tinha a liberdade de transformar tudo em teatro. J nos anos 70 a adaptao para o
teatro de qualquer tipo de texto era amplamente difundida sem distines, drama ou romance
ia para o palco.
Permanece ainda hoje, a preocupao dos estudiosos do sculo XVII, que queriam
regularizar a escrita, pela classificao por gnero. O teatro Contemporneo, quase na sua
totalidade, ignora os gneros. Ryngaert fala do conceito de tragdia de Aristteles, mas diz
que a definio de Aristteles mais aberta do que suas tradues imprecisas. Estas
1 Todos os comentrios nesse capitulo sobre viso de Ryngaert foram basedos na leitura do capitulo-O que e um
texto de teatro(p.3 ate p.31)
11
definies provocam debates tericos toda vez que uma obra se distancia de uma norma j
fixada. Grande parte das vezes os autores escrevem textos que ignoram os gneros, no
podendo assim ser classificado como cmico, trgico ou dramtico. No que diz respeito ao
dilogo ele no critrio absoluto do gnero dramtico. Alis, muitas vezes o ator se dirige
diretamente ao pblico. O critrio seria o texto falar para algum. Ao se pensar sobre se o
texto pode dispensar a representao Ryngaert estabelece que analise de texto e a analise da
representao so procedimentos diferentes mesmo sendo complementares. O trabalho
realizado no tablado exige novo olhar sobre o texto seguido de uma imediata preocupao
com o espao e o corpo. O texto funde - se ao trabalho do ator. Essencial para que haja essa
fuso a experimentao do texto a ser interpretado, onde a maior dificuldade reside em fazer
escolhas e renncias e desta feita a encenao nunca se esgota. Certo que o palco deixou de
impor normas escrita. At o silncio, a ausncia de palavras se faz escritura teatral.
O teatro atual aceita todos os textos, qualquer que seja sua provenincia, e deixa ao
palco a responsabilidade de revelar sua teatralidade e, na maior parte do tempo, ao
espectador a tarefa de encontrar a seu alimento. A escrita teatral ganhou em
liberdade e em flexibilidade o que perde, por vezes, em
identidade.(Ryngaert,1996,p.17).
Como autora de um texto teatral ter que v-lo isolado no papel, sem se fundir com a
emoo na voz, no movimento, na luz, na msica, ou seja, sem dialogar, sem mostrar-se para
o que veio nada mais do que olhar para um corpo sem vida, deformando-se, esquecido e
negligenciado, amontoado de palavras mudas. Ousei ento dar vida s folhas j amarelas que
foram criadas para ter corpo, voz, alma e para que as palavras escritas possam ser quando
ouvidas, vistas e sentidas e assim ganhar outro sentido.
No artigo Notas sobre a experincia e o saber da experincia Jorge Larrosa Bonda2
escreve o quo profunda a relao que temos com as palavras, que primeiramente transitam
em nosso interior dialogando conosco, para s depois, com elas, possamos nos colocar diante
dos outros e diante do mundo.
O homem um vivente com palavras. E isto no significa que o homem tenha a
palavra ou a linguagem como uma coisa , ou uma faculdade, ou uma ferramenta,
mas que o homem palavra, que o homem enquanto palavra, que todo humano
tem que ver com a palavra, se d em palavras, est tecido de palavras, que o modo
viver prprio desse vivente, que homem, se d na palavra e como palavra.
(BONDIA,2002,p.21).
2 Jorge Larrosa Bonda doutor em pedagogia pela universidade de Barcelona onde professor de Filosofia da
educao
12
2 Gnese da Montagem:
A gnese para a montagem ocorreu em abril de 2008, quando conheci o texto de Jorge
Lus Miguel. A experincia foi marcante, modificadora e construtiva, gerou em mim o
impulso da criao e a elaborao de um projeto para montagem e apresentao. O resultado
do longo e conflituoso dilogo entre as palavras do monlogo comigo e do meu dilogo
interior fez surgir em 2009 o texto Dilogo em Preto Branco. O objetivo do texto o dialogar
com o pblico sobre algo comum a todos, para depois montar o particular do Monlogo de
Miguel. O particular do texto de Jorge Luiz Miguel so os motivos do seu sofrimento
provocados pelo despertar das lembranas dolorosas da infncia ao tentar escrever sobre a ira.
O comum a todos a dor, a vergonha, a culpa, a dvida do que fazer com lembranas
dolorosas e conflituosas quando estas ficam vivas dentro de ns. Acompanhado da cena
audiovisual e cenrio virtual, o espetculo ganha ares e caractersticas de uma experincia
cnica que nada mais pretende do que o simples dialogar entre as muitas linguagens que
sero usadas como partituras na composio cnica para dialogar com o espao e com os que
estaro nele. O Memorial Descritivo servir como registro pessoal da experincia e tambm
tem seu carter como registro histrico para anlise posterior.
Numa gaveta encontrei na contra capa de um caderno esquecido, to amarelo quanto
s folhas da minha dramaturgia, uma frase de Lev Vygotsky que reflete bem a lgica que
estabeleo ao pensar a importncia da experincia. Segundo Vygotsky, O saber que no vem
da experincia no realmente saber. Essa frase reverberou em mim durante um longo
perodo gerando desconforto, pois, a experincia de realizar o exerccio do criado, ao
mesmo tempo cobra a busca para ampliar o que foi, para mim, deixado de lado no decorrer do
curso.
Toda experincia tem algo de nico e novo que acaba por faz-la imprevisvel. Na
experincia o resultado nem sempre certo, a incerteza a maior constante, dependendo das
condies, a nica coisa garantida o desconhecido.
A experincia, a possibilidade de que algo nos acontea ou nos toque, requer um
gesto de interrupo, um gesto que quase impossvel nos tempos que correm..., o
sujeito da experincia seria algo como um territrio de passagem, algo como uma
superfcie sensvel que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns
afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestgios, alguns efeitos... o sujeito da
experincia um ponto de chegada, um lugar a quem chegam as coisas,... sobre
tudo um espao onde tm lugar os acontecimentos (BONDA,2002,p.24).
13
Para escrever este ensaio, primeiramente reflito sobre a trajetria do projeto, que teve,
em um primeiro momento, o impulso para criar estimulado pela leitura do Monlogo de
Miguel. Li e reli o texto que me foi entregue na aula de dramaturgia, pelo autor Jorge Luiz
Miguel, para interpretar Miguel. O ttulo da obra era Sarna. A relao estabelecida na leitura
do texto foi de apropriao. Mergulhei no papel e sai dele com o texto escrito em mim. Do
texto recortei as palavras que iam alm do seu puro significado. Grifei com meu olhar
algumas frases, colei em outro papel o que estava no branco das entrelinhas e que usavam a
linguagem do apenas sentir. Grifei o que era dele e meu tambm. O texto fragmentado tinha
ento um significado que parecia particular.
Compagnon em O trabalho da citao descreve o reconhecer primeiro na leitura,
para depois ser significado escrito.
O grifo assinala uma etapa de leitura, um gesto recorrente que marca que
sobrecarrega o texto com o prprio trao. Introduzo-me entre as linhas munido de
uma cunha, de um p de cabra ou de um estilete que produz rachaduras na pgina;
dilacero as fibras do papel, mancho e degrado um objeto: fao-o meu. (COMPAGNON, 2007,p.17).
Nada melhor do que as metforas de Compagnon para uma dramaturgia de metforas
escritas por algum que no sabe escrever certo, para uma dramaturgia feita, em parte, por
uma dislxica como eu. Metforas presentes no texto ao falar da folha de papel escrita e da
folha por escrever, da folha entregue ao pblico para que nela escrevam, na metfora dos
objetos de Miguel, cadeira, escrivaninha, caixas e a capa de caderno, todas recobertas por
folhas de papel escritas, rasgadas e coladas cuidadosamente, pintadas com tinta guache.
2.1 A Pintura surrealista como referncia:
A metfora na imagem que ser usada para a divulgao das apresentaes da
montagem que nada mais do que um corpo humano rasgando e saindo de uma bola de papel
amassada tem como fonte inspiradora uma pintura surrealista.
A imagem em questo foi adaptada a partir da obra do pintor espanhol surrealista
Salvador Dali intitulada O Nascimento do novo homem - Criana geopoltica assistindo o
nascimento do novo homem, de 1943. Na pintura, percebemos que o novo homem sai de um
ovo, contorno do planisfrio do planeta Terra com seus continentes, numa aluso aos rumos
do mundo ainda vivendo a II Guerra Mundial. A viso de Dali crtica e nada otimista.
14
Enquanto o corpo do novo homem se projeta para fora, do interior do planeta, os mais fracos
ou quase mortos apenas observam passivamente. Sabia bem Dali que a nova ideologia
imposta no faria surgir um novo homem, nem modificaria o mundo. Na viso de Dal o
mundo mudaria com o trmino da Segunda guerra mundial para o temido. Cores e formas da
sua obra retratam a tristeza, a dor, o sofrimento e o medo, resultante do surgir da nova era,
do ps guerra. Antevia Dali os conflitos da nova repartio do poder que dividiu o planeta em
dois polos hegemnicos. Mundo Bipolar, como o crebro humano, mundo da misria e da
insanidade da guerra e que acabou globalizando e disseminando o medo e o terrorismo. A
referncia guerra externa do homem em suas relaes sociais, polticas e econmicas para
montar a imagem identidade do espetculo da guerra interior do homem.
15
( nota de rodap explicando como a imagem foi montada.
Quanto montagem, o pretendido, desde que foi concebido, a apropriao dos textos, da
cena audiovisual, de partituras corporais intensas e verdadeiras que vem com um embate
materializado num tango, com um desenho sonoro vibrante e sensvel, intercaladas por
interpolaes audiovisuais do cenrio virtual junto ao trabalho dedicado, regular e
comprometido da equipe estruturada para realizar todas as etapas necessrias para poder tirar
do papel o projeto e faz-lo chegar ao pblico.
16
2.2 A Concepo:
Na concepo da montagem, a preocupao de criar algo que se aproxime da
percepo comum que norteia as pessoas, no como banalidade, mas como universalidade.
Questo de posicionamento poltico quando abordamos a temtica da homofobia na infncia.
Lehmann ao escrever Teatro, Ps Dramtico e Teatro Poltico faz uso da frase de Heiner
Mller que diz : A tarefa da arte tornar a realidade impossvel(MLLER apud
LEHMANN, 2009, p.233). Lehmann acrescenta que se pensarmos a funo da arte
chegaremos a concluso que a mesma negativa. Compreenda - se que para Lehmann isso
no quer dizer que seja necessariamente triste, ou violenta e que pode ter a ver com uma
coisa ingnua, com coisa grotesca ou sem sentido. Ressalta que quando fomos criana
gostamos de coisas sem sentido. Fala que Freud mostrou que em certa hora abandonamos
essas coisas sem sentido para avanar. O papel da arte tornar possvel o retomar o sem
sentido.
O exemplo da ao poltica da arte est na interrupo. A interrupo, segundo
Lehmann, experimentada quando ao executar algo paramos para perceber para alm do
condicionado. Interrupo que se relaciona com os nossos conceitos e com nossos
pensamentos. Pode funcionar tambm como choque fazendo com que a realidade se torne
coisa no mais possvel, provocando o pensar a respeito de algo. Buscamos tornar a realidade
impossvel.
Na montagem, existe a prioridade de que a sua compreenso seja ampla e ao mesmo
tempo nica e particular, para quem nela participa e para quem ir ver. Compreenso que ter
que vir atravs da sinestesia da composio cnica. Na dramaturgia, por mim escrita, no
houve preocupao com a ordenao das palavras ou mesmo com a mtrica na poesia de
alguns trechos, houve apenas uma ateno voltada para a musicalidade das palavras, para que
em conjunto, possam criar possveis conexes de reconhecimento inconsciente, independente
da coerncia ou no, enquanto frases pronunciadas.
Ao analisar a performatividade da palavra, Zunthor afirma que esta transcende o
fisiolgico e o psicolgico, pois se soma aos contedos pessoais firmados culturalmente,
socialmente e historicamente moldando um texto:
Todo texto potico , nesse sentido, performativo, na medida em que a ouvimos, e
no de maneira metafrica, aquilo que ele nos diz. Percebemos a materialidade, o
peso das palavras, sua estrutura acstica e as reaes que elas provocam em nossos
centros nervosos. Essa percepo, ela est l. No se acrescenta, ela est. a partir
da, graas a ela que, esclarecido ou instilado por qualquer reflexo semntico do
texto, aproprio- me dele interpretando-o, ao meu modo; a partir dela que, este
17
texto, eu o reconstruo, como o meu lugar de um dia. (ZUNTHOR, 2000. p. 63-
64).
Todos os recursos utilizados para compor as cenas tm como objetivo primeiro
conseguir gerar situaes dialgicas, conceito que discutirei a seguir, seja na composio dos
signos, na potica textual, na esttica sonora e visual, no desenho dos movimentos ou no
primeiro gesto da participao direta do pblico, onde o mesmo lana seu texto numa bola
amassada de papel no espao cnico, ato explcito da inteno de dialogar com o pblico e de
torn-lo parte do jogo. Valendo-se de mltiplas linguagens para a cena, tecemos uma obra rica
visualmente e de forte impacto emocional, e que leva o pblico reflexo. H sempre uma
tenso nas falas. Para quem ouve o sujeito de quem se fala e para a qual se fala no bem
definido e assim o pblico pode se reconhecer nas entrelinhas do texto. O cenrio, dialogando
com a dramaturgia, s poderia ser virtual, coerente com a ideia de que tudo est no
pensamento, somente os objetos, para contar a histria de Miguel, so concretos. Monlogo
de um escritor que assume a incapacidade de escrever sobre a ira que est a consum-lo.
Bola de papel, palavras escritas preto no branco, por isso do ttulo, Dilogo em Preto e
Branco para o Monlogo de Miguel. O que est escrito nas entrelinhas, s vezes, muito
mais contundente verdadeiro e real do que est grafado. Dilogo do no falado que ganha
forma e voz para discursar atravs do que estar em cena, por quem estar em cena, com
quem estar na platia.
Os dilogos ao se materializarem, na ao cnica, ganham mais que o sentido
semntico das palavras que suscitam o que somos, o que sentimos, o que tem significado e o
que tem a ver com os nossos valores. A palavra vista como fenmeno social, histrico e
ideolgico, por consequncia seus signos so variveis e flexveis. Palavras ganham diferentes
sentidos, se pensarmos que elas so reflexos do seu tempo e da realidade da sociedade onde
se inserem principalmente pelas interaes inevitveis que sofrem com as outras diversas
linguagens. Jogo de reciprocidade, de intersubjetividade, o que conheo se faz conhecido
atravs dos outros. Para apreender a realidade, perceber como ela se apresenta, o uso da
palavra, dos gestos, das formas, das convices, dos movimentos e da sonoridade monta um
mosaico nico, resultado da comunicao e da prtica coletiva de uma comunidade.
Conforme Bakthin em Esttica da criao Verbal, o Dialogismo pode ser um interagir
de muitas vozes e no h como pensar o homem, nem idealiz-lo sem as relaes que fazem
com que ele fale e oua o outro.
18
Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela determinada tanto pelo fato
de que procede de algum, como pelo fato de que se dirige para algum. Ela
constitui justamente o produto da interao do locutor e do ouvinte. Toda palavra
serve de expresso de um em relao ao outro. Atravs da palavra, defino-me em
relao ao outro, isto , em ltima anlise, em relao coletividade. /.../ A palavra
o territrio comum do locutor e do interlocutor. (Bakhtin, 2003:113).
Nessa montagem trs fragmentos independentes e ao mesmo tempo complementares
fazem com que a obra jamais tenha um carter hermtico, pois est totalmente aberta s novas
possibilidades de dialogar. O projeto fala dos sentimentos no revelados, comuns a todos, e
por fim abre espao para outras dramaturgias em forma de monlogo para falar do particular
permitindo a possibilidade de novos dilogos.
A montagem do espetculo s aconteceu porque o projeto que criei foi contemplado
pelo 1 Fundo Municipal de Cultura de Florianpolis em 2012. Com recursos o que estava no
papel pode ir para o palco executado pelo grupo de teatro APATOTADOTEATRO, onde
participo como atriz e diretora, e com o trabalho da equipe montada por Thomas Dadam3 e
Manu Mattiello para realizar o curta.
Ao idealizar o projeto transcrevi nos objetivos e na justificativa a natureza do
espetculo .
Em entrevista, o socilogo Zygmunt Bauman fala da nossa responsabilidade de
reanimar os princpios de humanidade e civilidade que estamos esquecendo. O projeto foi
pensado nessa premissa tendo como principal tema violncia fsica e psicolgica causada
pela intolerncia de gnero na infncia. A arte o nosso instrumento de comunicao para
afirmar que somos todos iguais e temos os mesmos direitos. Arte para se opor a nossa
realidade onde deparamos com uma sociedade repleta de conflitos e desigualdades absurdas.
Mundo gil de tecnologias que distanciam o homem do homem. H muito no paramos para
perceber o que se passa dentro do outro e gradativamente perdemos tambm o contato com o
que somos e com o que sentimos. Estamos confusos e muitos esto perdidos totalmente.
Nesse quadro de inrcia e incoerncias onde so palpveis os reflexos da degradao
das estruturas do homem como, por exemplo, a ascenso da violncia de toda natureza junto
intolerncia e ao consumo desenfreado que servem como forma de compensao para nossas
frustraes e limitaes, ns como fazedores de teatro optamos por temticas que possam ir
3 Thomas Dadam graduado em Comunicao-Cinema e vdeo- UNISUL/2011,Premiado em seis categorias no 5
Fita Crepe de Ouro;Participou em 33 Festivais de \cinema no Brasil e 21 no exterior sendo premiado em 10,
Manu Mattiello graduanda Artes Cnicas/UDESC e produtora cultural.
19
ao contra fluxo da lgica de indiferena e banalizao da vida na sociedade atualmente.
Octavio Paz 4 lembra que, para alguns escritores e artistas o fundamental a inteno, quase
religiosa, de sua obra. [...] Para outros, o artista deve ser simplesmente artista. A obra de arte,
s arte. Sem nenhuma inteno. A arte no jogo. Nem poltica. Nem economia. Nem
bondade. somente arte. Temos assim dois campos contrrios nos quais se colocam os
escritores , os dramaturgos, optei pelo campo da inteno da arte.
Assim sendo a montagem teatral em questo vem carregada da filosofia de trabalho e
da conduta pessoal por parte dos membros do grupo onde, responsabilidade e respeito vida
so nossa prioridade. Nossa crena fundamentada na esperana de que s fazendo sentir
que as pessoas iro conseguir sair da anestesia do no agir. A arte voltada aos valores que
humanizam. Objetivamos dialogar com o pblico atravs de um drama psicolgico onde as
situaes montadas levam o mesmo a ter que se colocar no lugar do outro.
4 Octvio Paz Lozano nasceu no Mxico foi poeta, ensasta,tradutor e diplomata. Sua obra era voltada ao campo
da teoria e a pratica da poesia moderna e vanguarda.Prmio Nobel Literatura em 1990
20
3 Memrias e reflexes do primeiro dilogo.
Nesse captulo pretendo iniciar o relato da trajetria, em forma de memorial, das
primeiras impresses suscitadas com a leitura do texto teatral de Jorge Lus Miguel. Este
primeiro contato foi mola propulsora para criar uma dramaturgia, um projeto e realizar uma
montagem teatral. O processo de criao teve como impulso primeiro uma vontade latente de
dialogar. O que encontrei no enunciado do monlogo impulsionou em mim vontade de
escrever. Transcrevo agora, minha percepo, meu entendimento como leitora do Monlogo
onde reflito sobre a relao texto - leitora e como a experincia tornou-se estmulo para que
eu me tornasse autora de outros textos. A abordagem que ora se inicia transborda das
reflexes e analises dentro de uma lgica particular e subjetiva, enquanto leitora e atriz do
Monlogo. Valho - me da prerrogativa concedida a todo leitor de no ato de ler elaborar e
avaliar o texto dentro de uma tica pessoal , pois a escritura para o leitor. Conforme
Roland Barthes em sua obra O Rumor da lngua, no captulo intitulado A morte do autor
encontramos que toda escritura um neutro destitudo de voz e origem, que foge do sujeito ,
o branco-e-preto, que perde a identidade comeando pelo corpo que escreveu. A escritura
surge com a morte do autor e o que fala no mais ele, mas a linguagem e s assim a
escritura comea. A linguagem per forma e o autor sucumbe em proveito da prpria obra.
Um texto tecido de citaes , oriundas dos mil focos de vrias culturas e que entram umas
com as outras para dialogar, em pardia, em contestao. S h um nico lugar onde a
diversidade de vozes pode se reunir, este lugar o leitor: o leitor o espao mesmo onde se
inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citaes de que feita uma escritura: a
unidade do texto no est em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino no pode mais
ser pessoal: o leitor um homem sem histria, sem biografia, sem psicologia: ele apenas
esse algum que mantm reunidos em um nico campo todos os traos de que constitudo o
escrito. Sem a leitura do Monlogo de Miguel no haveria o escrever do Dilogo em Preto
e Branco. Antes de organizar a transcrio da leitura que fiz, discorro sobre o conceito de
monlogo que encontramos no Dicionrio de teatro de Patrice Pavis.
Pavis define monlogo como sendo discurso que a personagem faz para si mesma.
Estabelece ele uma diferenciao com o dialogo, pois no h o intercambio verbal. O
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monlogo caracteriza - se por sua extenso de fala destacvel do contexto conflitual e
dialgico. Destaca Pavis que h traos dialgicos no monlogo, citando Benveniste, onde o
monlogo um dilogo interiorizado, construdo em linguagem interior, entre um eu
locutor e um eu ouvinte (mesmo quando esse interlocutor e um ente imaginrio): s vezes, o
eu locutor o nico a falar, o eu ouvinte permanece, entretanto, presente, sua presena
necessria e suficiente para tornar significante a enunciao do eu locutor (p.247). O eu
ouvinte pode intervir para uma objeo, uma pergunta, uma dvida, um insulto. Pavis
continua explicando que junto do termo monlogo, temos o termo solilquio que faz parte do
chamado fluxo de conscincia, e que o discurso interior do personagem nesse caso mais
ainda que o monlogo, refere-se a uma situao psicolgica e moral que exige um refletir de
pensamentos em voz alta . O solilquio uma comunicao direta ao pblico. Outra
caracterstica marcante do monlogo a sua inverossimilhana: uma pessoa sozinha no
revela em alta voz seus sentimentos para si mesmo, pois a situao seria irreal, ridcula e
vergonhosa. O teatro realista ou naturalista s admite o monlogo quando motivado por
uma situao excepcional (sonho, sonambulismo, embriaguez, efuso lrica). Nos outros
casos, o monlogo revela a artificialidade teatral e as convenes de jogo. Pavis ressalta a
estrutura profunda do monlogo.
Todo discurso tende a estabelecer uma relao de comunicao entre o locutor
e o destinatrio da mensagem: o dilogo que melhor se presta a este intercambio.
O monlogo, que por sua estrutura no espera uma resposta de um interlocutor,
estabelece uma relao direta entre o locutor e o ele do mundo do qual
fala.(PAVIS, 1999, p.248).
A gnese de todo o processo de criao do Dilogo em Preto e Banco para o
Monlogo de Miguel aconteceu atravs da disciplina de Dramaturgia, ministrada pelo
professor Fernando Faria. Tudo ocorreu em sala de aula quando da proposta de exerccio aos
alunos de artes cnicas, ento na primeira fase, em 2008. Os mesmos deveriam criar um texto
que posteriormente seria dirigido e encenado por outros alunos. Todos os textos produzidos
acabaram sendo lido em sala antes de serem estabelecidos os atores e os diretores para cada
texto. Nessa primeira leitura estava atenda a sonoridade dos textos e no despreocupei- me
com a necessidade de analisar ou entender as narrativas. Ao ouvir o texto Sarna - Monlogo
da Ira em 3 cigarros de Jorge Lus Miguel, minha ateno foi modificada.
Fiquei impressionada com a sonoridade do texto a repetio de muitas palavras criava
um ritmo quase musical despertando algo inquietante em mim. No texto um jogo sonoro de
organizar e reorganizar falas que muito me agrada. O texto de Jorge Lus Miguel, naquela
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data aluno de Artes Cnicas/UFSC e de Artes Visuais/UDESC, criou em mim certo fascnio
por ser ousado e revelador e ao mesmo tempo tocante. O que estava escrito era impactante,
pois tratava - se de algo muito pessoal e reconhecvel, como ouvinte, fui apanhada pela
empatia. Era e possvel observar no texto uma estrutura de frases complexas, fragmentadas
claramente fluxo natural do pensamento e do sentir. O prprio autor revelou me que foi para
ele difcil escrever e at mesmo concluir as trs pginas de texto e que para tanto arrancou e
amassou muitas folhas. Conforme ele seu quarto ficou repleto de bolas de papel jogadas ao
cho. A imagem que foi passada por seu relato ganhou significao para ser transformada em
referncia e inspirao em todas as etapas do processo de criao, til como recurso a ser
explorada em cena. Alguns dias depois, no segundo momento do trabalho da disciplina, o
texto Sarna foi entregue para ser dirigido pelo ento aluno Claudinei Sevegnani. Surpresa e
feliz fui chamada para atuar no Monlogo de um personagem que na verdade no possua
nome. Fui orientada para ler e decorar o texto e informaram- me que trabalharia em cena a ira.
Na mesma noite chegando em casa fui ansiosa ler e vivenciar o primeiro dilogo com o texto,
o que sou diante do outro escrito em palavras e nas entrelinhas do texto que estava em
minhas mos.
J ao ler o titulo, na capa do texto, defrontei com uma serie de questionamentos que
me provocou uma profunda analise reflexiva que perdurou por toda a leitura e se repetiu e
repete em todos os momentos que o texto se apresenta. Mesmo hoje, depois de mais de quatro
anos, ainda encontro coisas que fazem pensar e questes ainda sem respostas e que fomentam
novas perguntas.
Minha primeira pergunta foi por que do ttulo Sarna?
Por que Monlogo da Ira em 3 cigarros?
Analisei, refleti e criei minhas hipteses como leitora tentando preencher lacunas do
texto. As imagens formadas com a leitura foram angustiantes, e para a atriz desafiadoras.
Retornando as primeiras impresses evocadas por alguns questionamentos, no pude fugir da
ideia de metfora e de pensar no desconforto do autor ao escrever a obra. Sarna uma doena
de pele, cientificamente conhecida como Escabiose. Altamente contagiosa gera facilmente
repulsa nas pessoas quando identificada, principalmente porque existe a associao de que ela
acontece pela sujeira e somente em quem no tem higiene. Muito comum na infncia, pelo
simples fato de que crianas manipulam muito mais objetos que um adulto e se sujam muito
brincando, alm de que acabam por tocar pessoas, animais e coisas sem censura. Nem sempre
limpas, mos e unhas, precisam de uma higiene mais acentuada, o que nem sempre ocorre,
ajudando assim a contaminao da pele. A escabiose causa um prurido intenso chegando ao
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insuportvel sendo angustiante e indisfarvel. Na fase aguda alm do prurido a sensao
intensa de ardncia comparvel sensao causada por fortes queimaduras de pele.
Comumente os infectados relatam que se pudessem arrancariam a prpria pele. A escabiose
em fase avanada abre caminho para bactrias causando leses purulentas, ftidas e profundas
que deixam cicatrizes. Em organismos mais debilitados o quadro pode agravar, evoluindo
para quadro sptico, levando o individuo vulnervel ao bito. Sarna tambm um termo
popular para classificar pessoas irrequietas, irritantes que no param e das quais todos querem
manter distncia. Quando chamamos algum de sarna existe a inteno de agredir.
No terceiro pargrafo do Monlogo de Miguel o termo sarna ganha fora e
agressividade pequeno porco sarnento e logo frente pequeno porco sujo. Pequeno
ento uma criana. No houve como deixar de associar a essa fala, na leitura e em cena, a de
agresso fsica de uma criana supliciada pela figura materna Ela levantou seus grandes
olhos verdes, sempre grandes olhos....
Todas as didasclias, feitas pelo autor, foram deixadas de lado pelas trs direes
diferentes que o monlogo j teve. Uma das recomendaes, no quinto pargrafo, era muito
longa e pedia que o texto nesta parte fosse gravado e ouvido com um gravador de mo para
dar impresso de falso, de irreal e de fantasia. Muitas vozes deveriam ficar repetindo
simultaneamente esta parte do texto em tempos diferentes para causar confuso. Nesse
pargrafo o idealizado pelo autor se choca com a primeira narrativa que inicia o texto. No
primeiro pargrafo frases demonstram a irritao de uma conversa familiar E ela contando
que isso e aquilo e aquilo que no posso dizer, e que conversar com a irm e ela contar
tudo, tudo! Eu disse: mas eu no diria isso, no diria isso, no diria de jeito nenhum, jeito
nenhum. Voc tem... certeza? e o - texto para leitura - no quinto pargrafo, a conversa amena
de aceitao descrevem outra realidade Conversaram sobre isso e aquilo e deram piruetas
que balanaram estrelas, entre outros... Conversava enrolando os pequenos cachos castanhos a
pequena e contava que falara tudo a ela. Perguntei, mas voc acha? Ela me respondeu
sorrindo.
No sexto pargrafo novamente a questo da limpeza, dos porcos faz com que haja um
retornar a pensar no titulo Sarna. Novamente o desejo do autor que fosse tudo diferente -
sorrindo ela me disse sem coisas sujas nem porcos. No precisar ser limpo,no precisar ser
vestido- quase uma ordem carinhosa de algum idealizado seguida por um assumir de que
no real - Ah eu podia acreditar. Na mesma linha ele repete a mesma frase s que o
acreditar refere-se agora ao fato de pensar no que havia escrito, no que mantinha oculto -
Algo dentro de mim, mas impossvel, eu que sou escrevi: impossvel. A menina que faz
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parte dele, existindo apenas no desejo, toma forma e com ela ento ele dialoga Quase lhe
mostrei o papel, tonta menina no sabe ler no sabe?...Ah, me diz, menina, confessa, me diz,
me diz que a beleza e a verdade no existem, me diz que eu fico contente. . Mais adiante no
mesmo pargrafo aluso direta a homossexualidade ... Eu que sou escrevi.
A palavra escrever, escrito surge sempre com frases de denotam conflito. Em
todas as situaes os sentimentos so dolorosos. Eu no posso escrever sobre a ira.
Dezenove vezes eu no posso escrever sobre a ira. No dcimo primeiro pargrafo a frase se
repete e ento a fala que parecia de raiva, ira, desfaz- se diante da revelao da impotncia
para escrever sobre ela Eu no posso escrever sobre a ira. Dezenove vezes eu no sei
escrever sobre a ira.. Miguel conta na verdade que o ato de escrever serve para contar o que
no esquece, algo mantido na lembrana e se faz ira.
No final do segundo e sexto pargrafo a palavra impossvel vem sempre antes e depois
da palavra escrevi. Em ambas as passagens o que vem a seguir agresso, se no terceiro
pargrafo temos a figura da me agredindo fisicamente, no stimo temos a figura do pai
submetendo o filho por meio da agresso verbal Mas ento havia o garoto. No saguo do
aeroporto. Eu e o garoto no banheiro. O garoto num banheiro em mim. Vazio, o garoto vazio
num espao vazio em mim. O garoto com o pai.
- Assoa esse nariz garoto, assoa!
- No tem nada pai, no tem mais nada!
- Assoa!
- No tem nada!
Novamente o personagem no oitavo pargrafo refere-se ao ato de escrever Texto
por escrever. Nesta passagem no se cria uma histria para prosseguir o monlogo, ele acaba
repetindo as lembranas que foram despertadas que deixam perceptvel a humilhao, o
medo, o constranger do menino. Seguindo no nono pargrafo temos a splica do personagem
que emprega a metfora para falar do corpo e da alma. O que deveria ser, o desejo de ser
tratamento com respeito e carinho, so colocados ao pblico como um apelo .- O que
pegar uma pequena coisa viva, mido, coisa pequena, frgil, macia: vida. Alisa esse tecido
macio, veludo, contas coloridas. Alisa esse tecido quente, sala de espelhos, caleidoscpio de
cores e formas: vida!
E pise, pise, pise!
Diferente do relato com a me, onde houve um acalmar, com o relato do pai houve um
avanar dos sentimentos represados e a raiva no consegue mais ser contida. Repete-se pela
terceira vez a fala do pai com o filho. E a ira do garoto ganha uma frase:
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- Saindo do banheiro, recolhi os cacos do garoto e gritei:- Animal, pessoas assim
deveriam ser amarradas em rvores.
A repetio sistemtica, que encontramos por todo texto, fez com que pensasse no
nmero escrito em algarismo arbico e no de forma literal no subttulo da obra Monlogo
da ira em 3 cigarros. Na maioria das frases as palavras se repetem trs vezes, as frases que se
invertem fazem isso trs vezes e no texto em off, da relao familiar feliz, uma provvel
indicao do porque:
- s trs horas da tarde de ontem, encontrou Mariana. Conversaram sobre isso e aquilo e
deram piruetas que balanaram estrelas, entre outros. A mesa do caf era vermelha. Contei os
pratos: quinze. Os talheres: trs, a saber: colher garfo faca. Na Trindade tambm trs: pai, me
filho.
O trs marcante trs horas, trs objetos observados, mesa vermelha, pratos e
talheres. Os talheres trs: colher, garfo e faca. Na frase sobre a Trindade a ambiguidade de
interpretao. Em todos os momentos a sensao que ficava era que todo tempo as frases e
palavras se repetiam porque elas eram pronunciadas para o pai, para me e para ele. O
monlogo conta sobre uma famlia de 3 pessoas vitimadas pela ira gerada pela intolerncia
homofbica. O preconceito faz tanto mal a sade e a vida de algum quanto os cigarros 3
cigarros.
Analisando o texto Monlogo de Miguel inegvel a sua qualidade. Um texto de
bom gosto, muito envolvente que se vale de um crescente dramtico muito interessante,
sensvel e inteligente abordando a violncia na infncia. As lembranas e as cicatrizes da
violncia fsica e emocional na infncia transbordam. O monlogo carregado das impresses
pessoais do autor e por isso se faz to forte, verdadeiro e tocante. Estranhamente o texto no
me parecia completo. Questionei-me muito e o reli muitas vezes. Um texto to impactante no
precisaria de mais nada, por que ento me incomodava; busquei a resposta por longo tempo.
A resposta estava diante dos meus olhos, nas entrelinhas, o que me incomodava no
estava escrito. Na primeira fala de Miguel ele diz que no pode escrever sobre a ira, repete
que 19 vezes no pode e logo conclui e, no entanto voc no sabe, eu no sei..., o que ele
no falava me intrigava. A dor, o medo e a vergonha escritos nas entrelinhas, reconhecido
apenas inconscientemente.
O tema do monlogo a violncia pela intolerncia familiar, mas nele podemos
identificar algo comum a todos ns, que fica no branco das entrelinhas, coisas que no
contamos pela fala e escrita e que refletem em muitas coisas que fazemos e em muitas outras
coisas que deixamos de fazer. Houve de minha parte ento vontade de escrever exatamente
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sobre essa natureza humana de ocultar dentro de si seus tormentos. Precisava colocar no
papel, precisava dialogar com o monlogo. Surgiu o Dilogo em Preto e Branco. Na verdade
no prprio texto do Monlogo de Miguel no ltimo pargrafo, dcimo primeiro, encontrei o
pedido do autor - Mas um dia haver uma pea; com vrias vozes alm dessa. E luzes e
cores.... Essa ltima parte do texto passou a ser uma obrigao que transtornou e transformou
minha vida. Para poder dialogar com Miguel, a dramaturgia e o projeto de montagem que foi
criado, teria que usar vrias vozes, de mltiplas linguagens para a cena. E assim foi. No
prprio texto do Monlogo enxertei, no ltimo pargrafo, meu texto. Assinalei, grifei o
reconhecimento e meu compromisso, assumindo a minha igual incapacidade de escrever
sobre a ira - Eu no posso escrever sobre a ira, cinquenta e duas vezes eu no posso escrever
sobre a ira. E, no entanto voc no sabe.. Na repetio da fala de Miguel, adaptada agora
para a pessoa da atriz, o discurso do Monlogo no se fecha, ao contrario, reinicia novamente
com uma nova dramaturgia por escrever.
A liberdade de mudar e acrescentar ao texto, veio em 2008, logo aps a apresentao
da montagem. O autor do Monlogo transferiu para mim a responsabilidade de decidir o rumo
de sua obra, pois por ele, ela deveria ser destruda. Em 2009 criei o esboo do texto do que
hoje e o Dilogo, e como o monlogo, possui somente trs pginas de texto. Em 2010
montei o projeto completo e modifiquei definitivamente o nome do fragmento, por causa de
um santinho. Jorge Lus Miguel artista plstico e me ofereceu um flyer com a orao e a
pintura do arcanjo Miguel por ser muito bela. O arcanjo Miguel no cristianismo considerado
o comandante das legies de anjos que expulsaram Lcifer do cu. tido como um anjo
guerreiro que possui uma natureza inquieta e de enfrentamento o que mais se assemelha ao
comportamento humano. Algumas seitas crists acham que ele na verdade encarnou humano
como Jesus Cristo. O arcanjo Miguel seria ento o Filho de Deus na Terra. Sarna se fez
definitivamente Monlogo de Miguel.
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4 O Dilogo
O texto teatral Dilogo em Preto e Branco foi escrito em 2009. Ao pensar
no texto reuni duas poesias que escrevi, uma quando tinha dezenove anos, a mesma idade de
Jorge Lus Miguel quando escreveu o Monlogo, e a outra pouco antes de comear o curso de
Artes Cnicas na UFSC em 2008. A juno das duas, uma delas integralmente e a outra
alguns fragmentos, resultou no texto teatral mencionado. Em sua estrutura as frases no
definem claramente o sujeito para o qual se fala, nem de quem se fala. Em momentos fala do
particular em outros momentos do que universal. Nada foi escrito com a inteno de ser
totalmente entendido, por isso so amplas as possibilidades de interpretao por parte do
ouvinte. Foi muito pensado, calculado para ser impreciso como o ser humano e sonoro como
a poesia. O Dilogo precisa tambm de outras partituras para a sua composio. O tango o
prlogo para o dilogo.
Ao pensar a msica, para o embate entre a razo e emoo, esta no poderia fugir da
lgica que toda criao deve ser fundamentada em coerncia dentro de objetivo previamente
traado. Ao pensar a msica a primeira imagem que me veio mente foi de danarinos de
tango. Por causa de sua origem o tango carrega algo marginal, ainda polmica, a negao de
sua origem, que revela o preconceito de origem racial. Um espetculo que fala de preconceito
e intolerncia s poderia ter como melodia um tango.
O tango uma dana de corpos entrelaados com um vigor que de certa forma causam
a sensao que h um jogo de foras. Ora as imagens de seus movimentos desenham uma
carcia sensual em outra uma afronta, uma provocao para um duelo. Essa vigorosa dana
portenha tem sua origem, sua principal expresso precursora, nos bailes negros em Buenos
Aires. Origem africana negada e pouco difundida. Raros so os estudos que assumem a raiz
histrica dessa dana que em seus primrdios era proibida por ser vista como indecente,
sendo apenas danada por homens do subrbio. Nascida em bailes negros onde os tambores
marcavam a dana de candombl para Xang, deus do trovo e das tempestades na mitologia
dos Yorubs da Nigria, sendo tambm nome dado a um tambor usado para rituais. O tango
era renegado pela elite da poca que via como dana para negros e miserveis . Conforme
Horcio Ferrer, poeta , historiador e ensasta do tango, o que temos hoje est distante do que
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era em sua origem, pois foi empobrecendo, perdendo- se e suavizando - se paulatinamente .
Criou - se um abismo, em fases distintas, que fazem estranhos e distantes os bailarinos de
Bordel da Boca, dos bailarinos dos bailes de cabars dos bailarinos dos clubes atuais.
Registros de partituras musicais datadas de 1865 exemplificam e confirmam a origem negra
do tango.
Imagem publicada no jornal Illustracin Argentina ,30 de novembro de 1882.
O ator canadense German Mckay viveu nessa poca em Buenos Aires parodiando
comicamente gestos e a linguagem das pessoas africanas atravs do personagem Negro
Schicoba onde interpretava o canto e dana com partituras musicais do chamado tango. Os
principais registros que afirmam o papel da influncia africana so encontrados em fotos,
jornais e registros de delegacias feitas entre o sculo XIX e inicio do sculo XX ainda sendo
levantados e estudados.
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A melodia criada para a msica Tango da dor, criada para o espetculo, veio de
forma natural enquanto buscava sons de lamento e exercitava e experimentava sonoridades
diferentes produzidas em objetos variados. Foi pensando no ato de bater com a mo no peito e
pronunciar o termo Mea- culpa que o primeiro esboo meldico aflorou. Por no ter
conhecimento para transcrever a msica para partitura a melodia, apenas na voz e na
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percusso, foi apresentado ao grupo de msicos Somato5 e a Polo Cabrera que fizeram o
arranjo. Descrevi as intenes em cada fragmento da melodia que conta uma hstoria em dois
momentos. Os momentos foram traados pensando nas duas agresses que temos no
monlogo . A voz feminina que canta a dor que tenta dialogar primero com a violncia
fsica e lamenta para o pai , para a me e para o filho. Repete seu discurso com a mesma frase
musical quando ocorre a agresso psicolgica e lamenta novamente para o pai, a me e o
filho. O grupo musical Somato aceitou o desafio e com apenas trs ensaios gravamos em
estdio. Tivemos como instrumentos um violoncelo, dois violes, percusso, sanfona e voz.
Por sorte o tempo de gravao se encaixou quase que perfeitamente aos tempos e
movimentos criados para a dana.
Retornando ao texto teatral do Dilogo optei por dividi- lo em trs momentos apenas.
A diviso era premente para criar a composio da ao cnica durante os ensaios: Primeira
parte a emoo submete a razo; segunda a razo submete emoo e na terceira parte as duas
se unem para dialogar com o mundo a sua frente.
5 Banda Somato- sexteto catarinense formado em 2009. Vencedor de diversos festivais de msica j tendo
excursionado pela Europa e Amrica Latina.)
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5 Cenrio do embate :
O cenrio para o fragmento Dialogo em Preto e Branco s poderia ser surreal, pois a
mente de quem escreve. Sempre houve a preocupao que o cenrio virtual dialoga se, de
forma expressiva e harmoniosa, com a dramaturgia sendo parte bem integrado ao todo. Para
isso busquei na pintura de um talentoso brasileiro chamado Fernando Vignoli o nosso cenrio.
Em 2009, mesmo ano que escrevi o Dialogo, ele pintou a obra Corredor da Philadelphia,
baseado em uma foto de jornal mostrando o desespero dos palestinos sitiados e famintos na
Faixa de Gaza.
A barreira que divide o Egito da Faixa de Gaza derrubada em 23 de Janeiro de 2008 pelos
palestinos que atravessaram a fronteira para o reabastecimento de alimentos, combustveis e outros bens
essenciais.
A imagem criada por Vignoli6 era exatamente a imagem que eu tinha imaginado da
mente de algum. A coincidncia fez com que entrasse em contato com ele. No dilogo que
tivemos, generosamente, ele permitiu que sua obra fizesse parte do espetculo. Nas anotaes
6 Artista plstico nascido em Minas Gerais em 1960.Erradicou para os Estados Unidos em 2003 desde ento
expos suas obras em mais de 30 pases.Visto como um pintor surrealista e expressionista tem centenas de telas
espalhadas pelo Mundo.
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feitas pelo artista ele destacou o objetivo da imagem criada para falar sobre as guerras e pazes
que o homem promove. Contou ainda que visitou, um ano depois de concluda a obra, o
memorial do Holocausto em Berlim e que ficou espantado quando viu que a estrutura era
similar ao corredor por ele pintado. A pintura de Vignoli era perfeita para o cenrio do
espetculo e sua temtica.
Com a imagem liberada para ser o cenrio virtual contatei uma empresa de
programaes de jogos e solicitei que a tela sofresse uma animao que daria vida imagem
criada por Vignoli. A lgica estabelecida para tanto pode parecer estranha, mas se o cenrio
representava a mente tomada pelas lembranas e as lembranas conforme Grotowski corpo
esta no poderia ser esttica. Com a animao temos primeiramente a imagem surgindo
ruidosa em fragmentados para se montar inteira. No Monlogo de Miguel ela novamente se
movimenta como interpolao nos momentos que as lembranas da agresso fsica e
psicolgica acontecem: na fsica, olhos femininos em meio a relmpagos e na psicologia um
menino caminha desolado. O cenrio estava pronto para dialogar.
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6 Roteiro para conhecer a montagem
O roteiro abaixo tem o objetivo de tornar possvel a compreenso de como o
espetculo acontece, serve tambm para deixar mais claras as colocaes que viro em outros
captulos. Na descrio das cenas pormenorizo algumas das aes e intenes :
Dilogo em Preto e Branco para o Monlogo de Miguel.
Textos de Ilze Krting, Jorge Lus Miguel e Thomas Dadam;
Direo do Dialogo em Preto e Branco - Ilze Krting;
Atores Anglica Mahfuz, Gustavo Bieberbach e Ricardo Goulart;
Direo do Monlogo de Miguel- Gustavo Bieberbach e Ricardo Goulart;
Atriz Ilze Krting;
Direo da cena audiovisual Fragmento sem nome Thomas Dadam;
Miguel adolescente Christiano Scheiner;
Pai Jardel Cunegatto;
Me Manu Mattiello;
Jovem do banheiro Marcos La Porta;
Jovem do banheiro Renato Grecchi;
Danarina Bruna Konder;
Drama psicolgico durao aproximada de 50 minutos.
Sinopse: Quando as piores lembranas so despertadas, razo e emoo travam um duelo
quase mortal. O embate vai para o papel onde o escritor deixa preto no branco o que lhe
consome e se deixa dominar pela ira.
Cena 1 O pblico o personagem:
Recebidos pela performer o pblico escuta que a mais antiga das guerras acontece em nossa
cabea, onde razo e emoo decidem o que fazer com as lembranas dolorosas. Ficam
sabendo que aquele momento e de dialogo entre eles e os atores que h em tudo uma entrega
na esperana de uma troca maior de confiana. Recebem uma prancheta e caneta onde devem
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escrever o que lhe causa dor, para depois amassar e depositar a bola de papel no espao
cnico.
Quando entram para sentar em suas cadeiras veem os atores fora da ribalta em total silncio
observando o que fazem. Nesse momento a luz esta concentrada na plateia e permanecer
acessa at a ltima bola ser jogada ao palco. Quando o pblico comea a escrever acontece
inverso de papis, eles contam sua histria, revelam seus sentimentos. Quem primeiro toca o
espao cnico no a fantasia de um texto teatral ou personagens, mas sim os fragmentos
de lembranas que a vida produz em cada um deles. O papel amassado serve de ponte, no
permite que o palco crie paredes, fronteira est quebrada. O pblico est presente movendo-
se entre os atores levados na bola de papel, cativos, alguns imaginando o que ser feito com o
que escreveram.
Cena 2 Submisso dos atores:
A luz apaga na plateia e os atores recolhem os papis espalhados deixando num canto
qualquer. Dirigem-se cada um a uma extremidade do palco. Deitam no cho em decbito
ventral num corredor diagonal de luz.
Cena 3 - Submetidos pelas imagens:
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Escurece e as cenas do audiovisual so passadas. Primeiro bloco em branco e acontece em
dunas onde pai, me e filho aparecem. O homem est amarrado em uma rvore que mais
parece uma cruz e a me veste burca. O filho foge e encontra a danarina das areias em
vermelho que acaba por jog-lo no preto da escurido de um banheiro sujo. O pai num canto
ri enquanto o filho no cho est envolto por papel higinico. O filho v assustado um casal de
homens que se beijam. Chove no banheiro e ele arranca o papel do corpo como se fosse pele.
O deserto aparece novamente com uma folha de papel sendo queimada.
Cena 4.- As lembranas:
As imagens somem e o silncio e a escurido so rompidos por uma imagem fragmentada e
barulhenta que monta aos poucos uma tela acinzentada. As paredes so enfileiradas feitas
peas de domin prestes a desabar. Uma escada ao fundo distante e retorcida parece no ter
fim e ao mesmo tempo leva a lugar algum. O cenrio da mente humana se formou para a
razo e emoo se enfrentarem.
Cena 5 O tango da dor.
Um dos atores inicia um lamento. Aos poucos se levantam e encaram e deixam extravasar a
raiva num grito primitivo.
Recompem-se e enfrentam num abrao cruel que tenta arrancar algo da pele do outro. Todos
os movimentos que se seguem nunca se completam porque um interrompe o outro no eterno
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conflito pela alternncia do poder. Os movimentos contam um amor de conflitos que inicia
com o prprio assumir do amor. O tango fecha uma quarta dramaturgia que foi criada apenas
com imagens direcionadas, gradativamente desde a primeira cena, a questo do amor de
pessoas do mesmo sexo.
Cena 6- Embate de palavras
Ao cho razo e emoo se empurram e exaustos declaram que querem se apropriar de
sentimentos e das lembranas. A emoo vence e quase submete a razo. Na reao a emoo
dominada e estabelece que o sofrimento o combustvel que gera as aes . Razo e
emoo saem de cena para os atores agirem. Os dois atores recolhem e deixam juntas as
bolas de papel com os textos e em seguida montam o cenrio para Miguel.
Cena 7 Todos iguais.
Com o cenrio completo (mesa, cadeira e objetos de Miguel) os dois atores do as mos para
falar dos textos do pblico. Direcionam as frases, os olhares e a emoo para as pessoas que
ento diante deles. Antes de sair razo pergunta sobre a dvida que sempre temos quando
tentamos dialogar com o outro E eles vo entender?. Responde a emoo com a nica
resposta sincera para a pergunta Talvez.
Cena 8 Entra Miguel
Passa entre os atores e caminha na escurido em direo ao cenrio virtual. Para acende o
cigarro, deixa o isqueiro sobre a mesa, senta - se e conta ao pblico por que no pode escrever
sobre a ira.
Cena 9 A lembrana da violncia fsica
No cenrio virtual um par de olhos surge e some entre relmpagos. Miguel assume o discurso
da me e aplica ao prprio corpo castigo fsico.
Cena 10 O sonho
Miguel assustado com a violncia que assumiu busca no texto que escreveu, em seu dirio,
aquilo que idealizava que fosse real. Arranca nervosamente as pginas at encontr-lo, ouve
extasiado, enquanto retira seu sapato, uma voz feminina que conta situao imaginada.
Cena 11- A menina
De p retira as calas e senta para dialogar com a menina que oculta em si. Fala sobre o ato
impossvel de escrever sobre o que ele . Encontra a menina no espelho e passa um batom
vermelho em seus lbios. Retorna ao pblico dizendo no acreditar que havia tido coragem de
escrever.
Cena 12 Despertar das lembranas da violncia do pai.
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No cenrio virtual a imagem de um menino, magro e mrbido, caminha cambaleante em sua
direo. Miguel imita a voz do pai e depois do filho que estava sendo humilhado e agredido
verbalmente num banheiro de aeroporto.
Cena 13 O assumir da dor.
De p Miguel olha confuso para o pblico e recita um texto por escrever. Fala enquanto retira
a camisa, e retorna a assumir o pai agressivo.
Cena 14 A splica.
Miguel conversa com o pblico do por que de tanta ira.
Cena 15- A ira
Miguel retoma a histria do banheiro e arranca as faixas que envolvem seu peito. Grita ao
pblico que no pode escrever sobre a ira, porque no sabe escrever sobre ela. Fala que um
dia o palco do teatro ter outras vozes para fazer isso por ele. Miguel se desfaz.
Cena 15 A atriz.
Miguel sai me deixando em cena e eu assumo meu prprio texto. Vejo meu corpo sem
mscaras e retiro debaixo da cadeira de Miguel uma caixa vermelha onde pego uma camisola
para vestir. Vejo o pblico e recolho os restos de Miguel num pano vermelho. Vejo as bolas
de papel e envolvo-os em tecido vermelho. Retorno para a cadeira e falo ao pblico que
tambm no posso escrever sobre a ira e que eles, no entanto, no sabem.
Cena 16 Ritual.
Terminada minha fala os outros dois atores retornam ao palco em total silncio com um tacho
de metal e colocam todos os textos dentro dele. Feito isso samos do palco e convido o
pblico para seguir junto. Fora do teatro acendo o isqueiro para queimar os papis.
Observamos os textos transformarem se em cinzas e agradecemos.
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7 O preparo dos atores no fragmento Dilogo em Preto e Branco:
O desafio de ter que dirigir a dramaturgia que criei foi muito maior do que
pressupunha, montei um roteiro bem definido por saber o que almejava. Os objetivos e
concepo estavam definidos e planejar foi tranquilo. Estabeleci uma linha de conduo
dentro de um programa de ensaio. Do planejamento apenas as datas foram parcialmente
seguidas, pois problemas na produo diminuram e modificaram a maior parte da conduo
do processo que acabou ainda mais reduzido.
Nos primeiros ensaios foi possvel perceber a necessidade de uma ateno muito
maior no que se referia ao preparo corporal dos dois atores. Tivemos basicamente dois meses
e meio com quatro ensaios semanais de pouco menos que trs horas. Do que restou de tempo,
metade ficou destinada ao trabalho com a dramaturgia textual do fragmento Dilogo em
Preto e Branco. A outra metade do tempo foi dedicada ao preparo fsico dos atores, pois
tinham que estar aptos a uma seqncia de movimentos agressivos, preparados para danar
tango e preparados para serem corpos profundamente receptveis e expressivos. A maior
parte do preparo fsico foi feito por Anglica Mahfuz, graduanda de Artes Cnicas da UFSC e
profissional com experincia em preparo corporal de atores. Sem o trabalho realizado por
ela, pura disciplina e paixo por teatro, tudo teria ficado invivel.
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Um corpo presente, bem disposto e aberto para comunicar-se era essencial. Ao longo
do trabalho desenvolvido pela preparadora pudemos trocar informaes para que, alm de
flexveis, pudssemos ter corpos com percepo de ritmo musical e potico.
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A msica foi ferramenta para criar formas e dilogos de maneira natural. No decorrer
dos ensaios, tivemos um longo perodo de insistentes e exaustivas repeties dos movimentos
criados para o embate do tango. Aulas semanais de dana entraram na programao.
Com tantas mudanas fui obrigada a deixar de lado alguns planejamentos para adequar
- me aos resultados obtidos a cada momento e apurei mais minha observao para captar
melhor a reao dos atores. Era imprescindvel ampliar minha percepo para identificar quais
seriam os estmulos ideais para cada situao. A maior dificuldade, no entanto estava na
prpria proposta de como trabalhar, de como dar forma e sentido ao que estava alm das
palavras. Tivemos para tanto que trabalhar com um teatro de risco fsico e emocional, um
teatro verdade. A consequncia disso no seria outra, o desgaste fez parte de processo de
preparo corporal e emocional, em todas as etapas da montagem. Quando falei com os atores,
deixei claro o quo doloroso seria o processo, pois teria que desmont-los emocionalmente
para que em cena ousassem ser, diante do pblico e da vida, vulnerveis, atentos e
sensibilizados e que teriam que permitir serem tocados por cada olhar das pessoas presentes
nas apresentaes e no cotidiano. Compreender o que est escrito no olhar e no corpo do outro
e dialogar com esse outro requer muito. O pblico trouxe em cada apresentao uma nova
dramaturgia de dor que os atores tiveram que assimilar e assumir em seus corpos. Todos os
ensaios foram para sentir e se reconhecer sem mscaras (se que podemos viver sem
mscaras, diria Pirandello). Para tanto no poderia haver nenhuma resistncia, s entrega.
Quebrar a resistncia no fcil e no indolor. Os ensaios foram guerra e para a guerra, a
mais antiga que a humanidade trava, guerra entre razo e emoo dentro de nossos
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pensamentos, isolados que somos nesse existir humano. Nesse caso, em especial, um
agravante: por estar tratando dos sentimentos reclusos que remetem a violncia e a
intolerncia e que tornam a vida um tormento, teramos que viver um sofrimento maior. O
peso das nossas escolhas materializou-se em cena onde muitos textos, alm dos escritos pelo
roteirista e pelos dramaturgos, os textos do pblico e dos atores dialogaram.
Grotowski serviu e serve sempre como referncia no conduzir do rduo trabalho que
foi e preparar atores. Por ser uma pea de cunho psicolgico e de forte impacto emocional,
busquei o Mtodo Grotowski de criao cnica descrito em seu livro Em Busca de um Teatro
pobre. Todo o projeto de encenao exigia que pensasse no total desnudamento do ator para
poder se ter em cena um corpo em completo estado de sinceridade . O teatro no pode ser
um fim em si mesmo, diz Grotowski. Seu objetivo sagrado e ao mesmo tempo o ator
veculo onde ele tem em seu corpo, ao mesmo tempo, seu meio de trabalho e ferramenta de
explorao, material de estudo e instrumento. Penosos sempre so aos atores os ensaios pelo
simples fato de que eles sempre se veem obrigados a se autoconhecer e se autoestudar. Sem
isso ele no consegue verdadeiramente ser invadido pelo papel. Nessa experincia ele
descobre o seu maior obstculo a sua prpria pessoa. Para se deixar penetrar, ele precisa
derrubar barreiras fsicas e psquicas atravs de muito trabalho. O ato de representar uma
das coisas mais belas e dignificantes, afirma Grotowski, que v esse ato como sendo uma
entrega, um ritual de sacrifcio onde o ator deixa em cena, para o espectador um presente,
mostrando aquilo que a maioria oculta. Desnudo o ator deposita suas mscaras e segredos.
Segundo Grotowski, a relao ator-pblico similar relao do sacerdote com o fiel. O
sacerdote celebra o rito em nome e para os demais, enquanto os atores celebram e oferecem
para quem ali est invocando e deixando a mostra o que h em todo homem e que encoberto
pela vida cotidiana. O teatro torna visvel o invisvel e diz em seu rito coisas interditas.
Interesso-me no ator porque um ser humano. Isto diz respeito a uma organizao
fundamental : primeiro encontro-me com outra pessoa. O contato, o sentimento
mtuo de compreenso e a impresso que resulta do feito de abrir-se a outro ser, e
tentar entend-lo; em suma, a superao de nossa sociedade. Em segundo
lugar, a tentativa de compreender a mim mesmo e atravs da conduta de outro
homem, de encontrar -me nele. Se o ator reproduz um ato que lhe desenhado,
parece que o domaram. O resultado uma ao banal do ponto de vista metdico e,
e no mas profundo de meu ser o considero um ato estril, porque nada se abriu
diante de mim. Porm se no curso da colaborao estreita chegamos ao ponto em
que o ator, liberado de suas resistncias cotidianas, se revela profundamente
mediante um gesto, considero ento, que do ponto de vista metodolgico o trabalho
foi efetivo. Ento sentirei-me enriquecido, porque nesse gesto perceptvel uma
espcie de experincia humana que me foi revelada, algo mais especial que se
poderia definir como um destino, como uma condio humana. (GROTOWSKI ,
1998, p.91).
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Antes mesmo de trabalharmos com o texto, tentamos trabalhar a nossa compreenso
de nos mesmos. O que no falamos e no fazemos porque causa dor, medo ou vergonha foi
nosso primeiro ponto abordado. Remexemos coisas que no revelamos. Grotowski quando
desenvolveu seu mtodo ia alm do ensaio para uma apresentao, treinava seus atores para
desbloquear corpo e a memria. Tudo comea no interior do corpo para vir para fora. O
corpo no desperta lembranas, o corpo lembranas. Meu objetivo foi desbloquear o que no
normal no se permite expresso como verdade e na criao das aes as lembranas pessoais
teriam que caminhar livres. O oculto ganhou forma, movimento e sonoridade nas palavras, na
msica e no movimento.
O texto foi, naquele momento, apenas base para compor o restante, fosse
coreografia, fosse a ideia de como usar imagens e som. Da por diante tudo foi resolvido,
analisado e experimentado at ter significado. No laboratrio muita coisa foi mudada e
acrescentada, inclusive em relao ao texto. Alguns procedimentos que no iriam ocorrer, a
no ser no final do processo, foram antecipados para gerar mais segurana nos atores para que
vissem na prtica o resultado do que faziam. Trabalhava algo delicado, transferncia
emocional atravs da escrita tendo como objeto condutor uma bola de papel. Fiz a primeira
experincia com os atores e a preparadora fsica, aps um exerccio de sensibilizao. Mesmo
com uma resposta satisfatria havia necessidade de repetir o experimento com pessoas que
no estivessem no processo. Para isso algumas pessoas foram convidadas para participar dos
ensaios. Elas viram as primeiras passadas do texto, ouviram a msica do tango, apenas com
percusso e vocal, e fizeram a simulao escrevendo seus monlogos para que soubssemos a
recepo e assim ter certeza de que atingamos os objetivos esperados. Tinha a convico que
se a simulao fosse com pessoas fora do processo de montagem eles poderiam ficar mais
convictos que seguamos pelo caminho correto. Na simulao, depois de ter ouvido o tango e
as duas primeiras partes do texto, as pessoas recebiam um papel onde estava escrito: Qual o
seu monlogo? Esse espao seu. Escreva preto no branco ou deixe em branco aquilo que
no falas, aquilo que te causa dor. Amasse depois o papel e deixa ela no espao cnico.
Enquanto escreviam eram observados pelos atores em total silncio. Quando deixavam a bola
de papel, os atores brincavam um tempo com a bola de papel , em seguida falavam a terceira
parte do texto para a pessoa. Sem exceo a emoo falou mais alto e o dilogo realmente
aconteceu. Terminado o texto, eu apanhava a bola de papel e pedia pessoa que nos
acompanhasse sem saber o porqu. amos para fora da sala, em espao aberto onde eu podia
abrir o texto para ento queim-lo. Em todas as situaes, alm das cinzas do papel, o olhar
atento e silencioso de quem havia escrito. Quase a totalidade dos relatos dos nossos
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convidados falava de alvio e da intranquilidade gerada pela possibilidade de ter seu texto
lido. Alm da certeza do objetivo atingido, os atores ficavam cada vez mais fortes e abertos
para o momento mais difcil da apresentao, momento de invadir o sentir do outro. Nesse
ltimo instante eles preparam o pblico para receber Miguel e para estar com ele, momento de
dilogo, no de personagens, mas sim das pessoas que so com as pessoas do pblico. Olham
e falam buscando - se no outro e tentando entender as respostas silenciosas que podem ter ou
no. Todas as barreiras so quebradas e as palavras do texto so apenas palavras, pois o que
realmente dialoga so as energias dos corpos presentes.
Outras mudanas obrigatoriamente ocorreram. Na composio dos movimentos do
tango precisei promover mudanas, pois deparei com os limites dos atores. Razo e emoo
em um grande embate s que dentro dos atores que estavam a represent-las. Repetidas vezes,
a passagem da sequncia de alguns movimentos sempre acabou em erro, tive ento que mudar
a conduo do tango e modificar as intenes. O tango uma dana que estabelece um
condutor e um conduzido. Mesmo com marcaes deparei com a personalidade marcante de
um dos atores, que sempre falha quando percebe que est sendo conduzido, que sempre cria
obstculos para ser comandado. Inverti o comando e os erros cessaram. Para que houvesse
verdade e beleza deixei de lado algumas coisas que pretendia e apropriei-me da histria dos
dois atores. Os movimentos criados fluram, porque em cena o novo texto conta o que as duas
pessoas em cena sentem so e vivem. No sei se eles percebem que contam sua prpria
histria e que so, em cada movimento, eles mesmos, sei s que seus corpos reconhecem e
entendem o que contado . Um dos momentos mais sublimes de todo o espetculo acontece
exatamente no tango. A verdade do Ser foi maior que a verdade do personagem, ou seria
o inverso?
No laboratrio de criao da ao cnica e trabalho corporal produzimos exerccios
para a autodescoberta e assim potencializamos virtudes e reconheceremos limitaes. Foi
feito o registro escrito por parte dos atores, em um dirio, onde deveriam colocar os
sentimentos despertados e relatos das impresses colhidas com a observao direta das
pessoas no dia a dia. Os registros nos dirios dos dois atores no li, pois respeitei a
privacidade deles, s debatemos a respeito de sentimentos verbalizados durante o perodo do
ensaio. Os registros fotogrficos e em vdeo serviram de suporte para melhorar e ajustar
movimentos e entonaes nas cenas. Voltando a Grotowski, ele sabiamente deixou escrito
algo que diz muito a respeito do que vivemos para tornar possvel nossa apresentao:
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Por que nos preocupamos com arte? Para cruzar fronteiras , vencer limitaes ,
preencher o nosso vazio para nos realizar . No se trata de uma condio, mas de
um processo atravs do qual o que obscuro em ns, torna-se paulatinamente
claro. Nesta luta com a nossa verdade interior, neste esforo em rasgar a mscara
da vida, o teatro, com sua extraordinria perceptibilidade, sempre me pareceu um
lugar de provocao. capaz de desafiar o prprio teatro e o pblico, violando
esteritipos convencionais de viso, sentido e julgamento de forma mais
dissonante, porque sensibilizada pela respirao do organismo humano, pelo
corpo e pelos impulsos interiores.(GROTOWSKI,1992, p.19)
Usei Grotowski como filosofia de trabalho buscando experincias autenticas. O
intuito foi o mesmo que ele tinha quando afirmava que o princpio bsico de fazer teatro
para a formao de um ser humano melhor. Entre 21 de agosto e final de novembro de
2012 muitas coisas aconteceram durante o processo de montagem se o princpio se
concretizou no me sinto apta para avaliar a sua eficcia, deixo ao tempo essa analise.
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Concluso:
Este trabalho o relato de um perodo de quase cinco anos de experincias desde o
conhecimento de uma dramaturgia em sala de aula construo de um espetculo teatral. Para
tanto todo o processo exigiu, no decorrer do mesmo, muita anlise, reflexo , persistncia e
entrega. Em todas as instncias o que foi exigido passou muito alm da conta. O impacto
gerado pelo texto desconcertante de um menino de 19 anos foi estmulo direto para criar ,
para buscar formas, compor e definir uma proposta esttica polifnica.
Em todos os meus trabalhos opto pela temtica que envolve a violncia e a
intolerncia. Em todos recebo o nus de lidar com assuntos desagradveis e renegados pela
maioria da nossa sociedade. Os temas vistos como ousados ou imprprios so alvos fceis da
agressividade humana. Materializar ideias difcil, principalmente por vivermos um tempo de
imagens e de pouca civilidade. Entraves burocrticos, desconfiana, falta de postura e
comprometimento profissional foram algumas das maiores barreiras para transpor, para
viabilizar a obra.
Criar de certa forma para mim foi fcil, no por questes de habilidade cognitiva, mas
sim porque tenho um corpo com muitas lembranas. Lembrando oportunamente Grotowski,
meu corpo lembrana contribuiu decisivamente para minha performance como atriz e abre
um leque de gatilhos criativos. A idade e as experincias de vida por um lado acrescentam ,
por outro servem como argumento para o descrdito. Ao longo do processo de criao, do
texto teatral e a concepo do projeto para o espetculo, descobri que ideias surgem na razo
direta quantidade de estmulos criativos que recebo e que me inquietam, mas que a execuo
do criado caminha na razo inversa da vontade de fazer por falta de valorizao, respeito e
incentivo. As experincias para produzir o espetculo me fizeram vislumbrar uma realidade
desalentadora, a viso distorcida de muitos sobre o fazer teatro, onde arte algo com
pouco mrito.
Para estruturar, dramaturgia e concepo da ao cnica, ative-me a ideia de ser fiel e
coerente ao fluxo do pensamento para buscar significao em tudo, base e linha de conduo
de todo o processo. Princpio freudiano de tentar gerar associaes livres impulsionadas pelo
inconsciente, tanto do meu pensamento quanto do pensamento coletivo, para comunicar,
dialogar. Objetivando continuamente sair e ultrapassar o valor semntico das palavras para
tentar converter os diversos textos em algo singular sem deixar de ser experincia coletiva.
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A bola de papel mais que recurso cnico a liga entre realidade e fantasia do teatro.
Simultaneamente no palco a dor escrita do pblico, dos atores e dos personagens. No h
diferenas e a inverso, que ora faz do pblico personagem, aproxima.
Relatou um senhor que ao ouvir o discurso de Miguel, uma frase do menino no
banheiro, ficou muito aflito. A frase era muito parecida com a que ele havia escrito no papel
depositado no palco. Ele no sabia se havia chorado por ele ou por Miguel. Outra mulher veio
meio sem graa contar que a frase do menino Miguel era a mesma que ouviu do filho com
quem tinha brigado, ela estava se sentindo tocada e culpada ao mesmo tempo. Outra jovem
contou que ficou escrevendo com medo e desconfiada, tanto que mudou sua letra, pois temia
que algum soubesse o que havia escrito.
Na hora que os papis foram queimados observei muito bem o pblico e em todas as
situaes a mesma reao: silncio, cabeas baixas, posturas tensas de corpos contrados
observando com olhos fixos e suspensos o fogo produzido com os textos. Como na
experincia dos ensaios a maioria se sentiu aliviada. Uma jovem recomendou a uma amiga
que assistisse, pois para ela a experincia foi libertadora. Essa mesma amiga nos contou que
realmente foi isso que ela tambm havia sentido.
Da mesma forma que pude ver que as intenes nas aes cnicas foram bem
sucedidas pela recepo verbalizada do pblico, pude ver a intolerncia, a homofobia se
manifestar. Pensei que seria agredida por um homem que queria sair do teatro tal a raiva que
nele se manifestava. Contando com o homem possesso, apenas trs pessoas passaram por
mim para abandonar o espetculo exatamente na hora do tango. O tango diz bem claro em
cada gesto, em cada olhar que esta discursando sobre homoafetividade.
O projeto foi pensado no encontro, no dilogo do outro que est em ns com o outro
que tem algo de ns. No final de uma apresentao uma pessoa afirmou que no conseguiu
entender bem o texto, mas que havia sentido o que Miguel sentia e isso bastava para ela. A
maior satisfao que tive foi ver a apropriao, o tomar para si que muitas pessoas fizeram e
da lgica que estabeleceram para entender e sentir o Dilogo em Preto e Branco para o
Monlogo de Miguel.
A dificuldade do texto foi premeditada dentro de um discurso impregnado com
sentimentos inerentes condio humana e que nos fazem to semelhantes. Nada poderia ser
claro ou simples, pois como seres humanos somos muitas vezes incompreensveis. Somos
dualidade, crebro divido em dois hemisfrios, criativo e racional, razo e emoo. No
espetculo um texto teatral totalmente fluxo do pensamento, que saiu feito exploso do que
estava contido e outro pensado para ser parte do que faltava. Os dois juntos pedem por outras
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linguagens, por outras vozes. Trs fragmentos sem linearidade que se complementam sem
serem conclusivos, trs direes distintas e trs atores fazem e formam um espetculo teatral.
Dilogo em Preto e Branco para o Monlogo de Miguel s um espetculo sincero que tenta
dialogar e dialogar hoje desafio.
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Referncias bibliogrficas:
BAKHTIN, Mikhail. Esttica da criao Verbal. Introduo e traduo do russo: Paulo Bezerra. So
Paulo: Martins Fontes, 2003.
BARTHES, Roland. O Rumor da Lngua. Traduo: Mario Laranjeira. So Paulo: Martins
Fontes,2004.
BONDA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experincia e o saber experincia. Traduo : Joo
Wanderley Geraldi. Campinas: Revista Brasileira de Educao n 19, p. 20-28, 2002.
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