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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA M. Reus Engler TÒ THAUMÁZEIN: A EXPERIÊNCIA DE MARAVILHAMENTO E O PRINCÍPIO DA FILOSOFIA EM PLATÃO Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em filosofia. Orientador: Prof. Dr. Nazareno Eduardo de Almeida. Co-orientador: Prof. Dr. Luís Felipe Bellintani Ribeiro. FLORIANÓPOLIS 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

M. Reus Engler

TÒ THAUMÁZEIN : A EXPERIÊNCIA DE MARAVILHAMENTO E O PRINCÍPIO DA FILOSOFIA EM PLATÃO

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em filosofia. Orientador: Prof. Dr. Nazareno Eduardo de Almeida. Co-orientador: Prof. Dr. Luís Felipe Bellintani Ribeiro.

FLORIANÓPOLIS 2011

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Agradecimentos Ao professor Nazareno Eduardo de Almeida, que aceitou me orientar na fase final do trabalho, ajudou-me de diversas maneiras e sempre manteve comigo diálogo franco e elevado, dando mostras daquela nobreza d’alma que os Antigos chamavam de eúnoia. À professora Arlene Reis, que me orientou no início do trabalho, auxiliou-me sempre que possível e serena, peripateticamente guiou meus primeiros passos nos estudos helenistas. Ao professor Luís Felipe B. Ribeiro, meu co-orientador, em cujas aulas patéticas e inspiradas comecei a aprender grego clássico e a me aprofundar no estudo de Platão e dos Antigos. Ao professor William Altman, cujas ideias sobre o platonismo e sobre a filosofia em geral influenciaram-me profunda e indelevelmente. Seguindo sua sugestão organizei os capítulos dessa dissertação da forma como se apresentam. Ao professor Marcus Reis Pinheiro, que participou da banca de qualificação e fez importantes críticas ao trabalho. À professora Cláudia P. Drucker, que fez parte da banca de qualificação, contribuiu com críticas oportunas e ainda emprestou alguns livros para o trabalho. A outros mestres que foram importantes em minha formação: Alberto O. Cupani, Décio Krause, Luiz Hebeche e Selvino Assmann. Ao apoio do Reuni e da Capes, sem o qual não teria realizado a pesquisa. Ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFSC, e em especial ao seu coordenador, Prof. Dr. Darlei Dall’Agnol.

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Das Höchste, wozu der Mensch gelangen kann,« sagte Goethe bei dieser Gelegenheit, »ist das Erstaunen, und wenn ihn das Urphänomen in Erstaunen setzt, so sei er zufrieden; ein Höheres kann es ihm nicht gewähren, und ein Weiteres soll er nicht dahinter suchen; hier ist die Grenze. Aber den Menschen ist der Anblick eines Urphänomens gewöhnlich noch nicht genug, sie denken, es müsse noch weiter gehen, und sie sind den Kindern ähnlich, die, wenn sie in einen Spiegel geguckt, ihn sogleich umwenden, um zu sehen, was auf der anderen Seite ist.«1

Conversa de Goethe com Eckermann, 18-02-1829.

1 “O mais elevado que o homem pode alcançar”, disse Goethe nessa ocasião, “é o maravilhar-se, e quando ele é lançado em maravilhamento pelo fenômeno originário, ele deve sentir-se satisfeito; algo de mais alto não lhe é permitido, e ele não deve ir atrás de algo mais distante; aqui está o limite. Contudo, a visão de um fenômeno originário não costuma ser suficiente para os homens; eles pensam que se deve ir além, e assim são parecidos com as crianças, as quais, quando olham para um espelho, imediatamente o viram para ver o que está do outro lado”.

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RESUMO Esta dissertação é motivada por uma frase do Teeteto, de acordo com a qual a filosofia começa com a admiração. Nesse diálogo, Platão descreve uma cena em que o jovem Teeteto fica admirado quando compreende um dos argumentos sobre a sensibilidade apresentado por Sócrates. A fim de explicar o sentimento de Teeteto, Sócrates diz que o princípio da filosofia é a experiência de admiração. No primeiro capítulo, assim, tratamos do contexto do Teeteto e do significado da assertiva de Sócrates. No segundo capítulo, estudamos o conceito de páthos e alguns dos epifenômenos da admiração, a saber, a aporia, a passividade e a sensação de estranhamento. No terceiro capítulo, mostramos que, quando a filosofia começa na alma de alguém, há a atuação de uma dialética triplamente patética que pode conduzir o futuro filósofo para região intermediária entre o humano e o divino. No quarto capítulo, argumentamos que Sócrates usava a admiração como uma parte de seu método pedagógico, e que ele era visto por Platão e por seus contemporâneos como algo admirável em si mesmo. Por fim, no último capítulo interpretamos a alegoria da caverna como uma representação plástica e paradigmática dos principais momentos envolvidos na admiração filosófica. Palavras-chave: Platão, admiração, Teeteto, princípio da filosofia.

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ABSTRACT

This dissertation is motivated by a phrase of Theaetetus, according to which philosophy begins with wonder. In this dialogue, Plato depicts a scene wherein the young Theaetetus becomes astonished when he understands one of the arguments about sensibility presented by Socrates. In order to explain Theaetetus’ feeling, Socrates says that the beginning of philosophy (arché) is the experience (páthos) of wonder (tò thaumázein). In the first chapter, then, we deal with the Theaetetus’ context and the meaning of Socrates’ assertion. In the second one, we study the concept of pathos and some epiphenomena of wonder, namely, aporia, passivity and the feeling of estrangement. In the third chapter, we show that, when the philosophy begins in someone’s soul, there is the performance of a triply pathetical dialectics which can lead the future philosopher to the intermediary region between the human and the divine. In the fourth chapter, we argue that Socrates uses admiration as a part of his pedagogical method and that he was seen by Plato and his contemporaries as something wonderful in itself. Finally, in the last chapter we interpret the cave’s analogy as a plastic and paradigmatic representation of the main moments involved in the philosophic wonder. Keywords: Plato, wonder, Theaetetus, beginning of philosophy.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO __________________________________________ 1 O DIÁLOGO TEETETO E A ADMIRAÇÃO __________________ 11

1.1. Sobre o diálogo ____________________________________ 11 1.2. A conversa de Sócrates e Teeteto ______________________ 17 1.3. A primeira definição de conhecimento e a admiração_______ 30 1.4. Thaûma, Taumante e Íris_____________________________ 47 1.5 Arché ____________________________________________ 57

A FILOSOFIA COMO EXPERIÊNCIA PATÉTICA ____________ 62 2.1. O significado de páthos ______________________________ 62 2.2. A aporia de Eutífron ________________________________ 71 2.3. A aporia de Mênon _________________________________ 82

A FILOSOFIA COMO ESFERA INTERMEDIÁRIA ENTRE O SENSÍVEL E O INTELIGÍVEL____________________________ 104

3.1. O páthos da ignorância _____________________________ 104 3.2. O Alcibíades Maior ________________________________ 106 3.3. O Sofista e o método socrático _______________________ 117 3.4. A filosofia e o intermediário_________________________ 127

A ADMIRABILIDADE DE SÓCRATES ____________________ 142 4.1. A admiração como expediente protréptico ______________ 142 4.2. Sócrates e Alcibíades_______________________________ 156

A ALEGORIA DA CAVERNA: ENCENAÇÃO DO PRINCÍPIO PSÍQUICO DA FILOSOFIA ______________________________183

5.1. Introdução ao capítulo______________________________ 183 5.2. A alegoria da caverna e a admiração como heterónoia _____ 184 5.3. As sensações contraditórias e a matemática _____________ 198 5.4. O Teeteto e a digressão sobre o sofista _________________ 203 5.5. A digressão sobre o filósofo _________________________ 214

CONCLUSÃO _________________________________________ 226 Bibliografia primária_____________________________________ 231 Bibliografia secundária ___________________________________ 234

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INTRODUÇÃO

Ein Philosoph: das ist ein Mensch, der beständig ausserordenliche Dinge erlebt, sieht, hört, argwöhnt, hofft, träumt (...).

Nietzsche2.

Desde o início histórico da filosofia, associaram-se à figura do filósofo uma estranheza proverbial e uma falta de tato para com as coisas do cotidiano. Parece que a historieta contada sobre Tales, segundo a qual, perscrutando os astros, ele teria caído num poço, é muito mais do que um caso isolado ou um reles evento inserido no anedotário que enfeita marginalmente as reflexões sérias dos filósofos. Ao contrário, bem analisada, ela representa de modo arquetípico ou historial a peculiaridade que se encarna nesses homens e mulheres cuja vida é a manifestação do desejo de saber. O fato de tal anedota se referir àquele que ficou conhecido pela tradição como o primeiro filósofo, estando assim presente no momento exato em que a filosofia floresceu, só prova que, entre outras coisas, a absurdidade (‡top°a) desses homens deve ser vista como uma marca de nascença ou como uma característica indelevelmente selada pelo seu destino. Em verdade, seria de se perguntar se hoje a filosofia não se encontra em seu estágio final, quando os efeitos do nivelamento democrático e do relativismo teórico tendem a aniquilar essa singularidade do filósofo, fazendo dele mais um especialista, no sentido intelectual, e mais alguém que partilha dos mesmos valores e do mesmo modo de vida da imensa maioria. Será que não haveria nenhuma diferença entre aqueles que filosofam às deveras e aqueles que, tão-somente, vão existindo vida afora? E acaso também não haveria uma experiência primordial a partir do que tal diferença poderia se instaurar e ser diligentemente caracterizada? Ou uma emoção particular, uma paixão, uma disposição anímica que, não obstante estar presente em todos os seres humanos, manifesta-se de forma toda especial no filósofo? Devemos admitir que ainda se veem atualmente alguns resquícios dessa marca de nascimento: muitas pessoas ainda se acanham quando se descobrem diante de um suposto filósofo, e a filosofia ainda tem o condão de esfacelar radicalmente o senso comum, mesmo quando o faz tão-somente para depois reencontrá-lo límpido e purificado. Trôpega e evanescente, a estranheza original do filósofo ainda respira. Contudo, parece que o nosso século será lembrado como

2 “Um filósofo: é um homem que continuamente vê, vive, ouve, suspeita, espera e sonha coisas extraordinárias (...)”. NIETZSCHE, 2008, §292, pg. 176.

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aquele que viu na filosofia apenas uma atividade profissional, despojando-a de todo o heroísmo e de todas as peculiaridades de que fora dotada até então. Em certa medida, é com o intuito de refletir sobre isso e sobre temas semelhantes que resolvemos escrutar, no presente trabalho, a concepção platônica acerca do princípio psíquico da filosofia. Esses questionamentos supramencionados – e outros que serão apresentados ao longo da exposição – orbitam em torno de um problema fundamental, que é o fato de Platão haver dito, no Teeteto, a origem (a)rx h /) da filosofia se encontra numa experiência (pa/qoj) de maravilhamento (qau ma/ze in). Essa frase serve como verdadeiro Leitmotiv de nossas indagações, e estrutura a espinha dorsal do problema em questão. O problema (prçbljma) é tudo aquilo que é lançado antes mesmo de alguma coisa e também em nome dela; é o horizonte teórico, a armadura ou o alambrado conceitual que se edificam toda a vez que uma afirmação ou uma pergunta é feita de maneira essencial. Neste caso, nenhum pouco pequeno e desprezível é o horizonte que temos de contemplar, se de fato buscamos compreender a assertiva platônica; ele está intimamente imbricado não só com o pensamento desse autor, mas também com aquilo que desde há muito ficou conhecido como “amor à sabedoria”. Noutras palavras, tal como ventilado por Platão, o problema da admiração atinge o próprio âmago da filosofia, pois enuncia sobre ela uma proposição que pretende dizer algo acerca da origem dessa atividade, acerca do seu estatuto ontológico e de como ela age de modo privilegiado sobre o filósofo.

Isso se torna ainda mais importante e crucial quando se tem consciência de que foi Platão quem pela primeira vez definiu esse gênero de atividade humana, além de lhe haver conferido os contornos fundamentais que subsistiram como espécie de paradigmas ao longo da história do Ocidente, mesmo quando não foram seguidos com a devida fidelidade. A caracterização da filosofia apresentada no Banquete, com efeito, é talvez a primeira definição rigorosa dessa espécie de saber que começava a aflorar entre os Helenos3. Ainda que os pré-socráticos ou

3 HADOT, 1999, pg. 27. Maria Helena da Rocha Pereira, numa nota da sua tradução da República, lembra um artigo de W. Burkert – Platon oder Pythagoras? Zum Ursprung des Wortes “Philosophie” – e afirma que parece haver se estabelecido um consenso sobre a origem platônica da palavra filosofia. Cf. REPÚBLICA, 1996, pg. 265, nota 26. Sabe-se, aliás, que Burkert mantém certo ceticismo em relação a Pitágoras, donde a sua defesa da origem platônica da palavra filosofia. Cf. KAHN, 2007, pg. 17. Sem mencionar Pitágoras, Karl Albert afirma algo parecido: “Il termine “filosofia” (filosof°a) esisteva nella lingua greca già prima di Platone, e tuttavia proprio Platone diede a questa parola il significato che sino ad oggi

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Heródoto possam ter conhecido o vocábulo em questão, possam tê-lo empregado em raras ocasiões, tal como os textos remanescentes o comprovam, é somente com Platão que o estatuto e a silhueta da filosofia são claramente definidos. Entre outras coisas, toda a sua obra é uma tentativa de explicar, sob os mais variados aspectos, o que significa amar o saber e a ele dedicar-se completamente, e por isso ele nunca deixa de lado as belas exortações protrépticas e parenéticas, que até aparecem em contextos sumamente teóricos e “abstratos”, como é o caso do Sofista. Certo é que essa sua preocupação possui contexto histórico bem preciso: se Platão se ocupa tanto da essência da filosofia, amiúde até usando de certa literatura propagandística para defendê-la, ele o faz porque teme que ela seja confundida com a Sofística ou com a Retórica4. Não é difícil de perceber que ele desejou diferenciá-la desse “movimento prático-intelectual”, verdadeira embriaguez da juventude5, que não gozava de muita fama entre certas parcelas da população de Atenas e da Grécia em geral; assim como desejou apartá-la da simples arte de bem falar, que se cristalizava empiricamente na escola de Isócrates e numa série de outros autores menores6. Contudo, reduzir a sua preocupação teórica a isso seria algo verdadeiramente temerário. Ademais dos motivos que emergem a partir do cenário histórico, Platão

(seppur com scarti e revisioni) continua o dovrebbe continuare a mantenere (...)”. ALBERT, 1999, pg. 47. Sob ponto de vista diferente, Giorgio Colli defendeu que Platão criou a filosofia quando inventou o gênero literário do diálogo: “Platão inventou o diálogo como literatura, como tipo particular de dialética escrita, de retórica escrita, que, num quadro narrativo, apresenta a um público indiferenciado os conteúdos de discussões imaginárias. A esse novo gênero literário, o próprio Platão chama pelo novo nome de “filosofia””. COLLI, 1988, pg. 92. Levando em conta outros aspectos, a mesma opinião se encontra em Chatelet. CHATELET, 1977, pg. 31. 4 “Os diálogos de Platão têm, essencialmente, caráter de protréptico e contêm uma parênese cerrada, pois pretendem guiar para uma determinada forma e concepção de vida; não se pode excluir neles, apesar de todo o seu antagonismo essencial, a influência da oratória sofística de propaganda”. LESKY, 1995, pg. 545. Os helenistas que defendem a existência das chamadas doutrinas não-escritas de Platão também costumam ressaltar as estratégias retóricas e sofísticas de Platão. Slezák, por exemplo, afirma que o tom protréptico está presente em todas as fases do pensamento de Platão. SLEZÁK, 2005, pg. 49-50. A ideia de que os mitos escatológicos sejam também um convite à filosofia é já bastante conhecida. GOLDSCHMIDT, 1963, pg. 84. Reale também vê neles um complemento do discurso, ou a expressão de certa fé que é depois guarnecida com certas razões. REALE, 1994, pg. 41. 5 A expressão (Rausch der Jugend) é de Karl Joel, apud GUTHRIE, 1995, pg. 50. 6 Para Lesky, por exemplo, o fenômeno cultural mais importante do século IV é a luta travada entre Platão (filosofia) e Isócrates (retórica). LESKY, 1995, pg. 538. O clássico trabalho de Jaeger também ressalta a onipresença do debate entre as diferentes disciplinas a respeito da educação. Cf. JAEGER, 2003. E, a propósito, não se deve esquecer que foram os sofistas os primeiros não só a problematizarem a educação na Grécia antiga, como também a fazerem dela sua fonte de sustento. SCOLNICOV, 2006, pg. 15; DHERBEY, 1986, pg. 10.

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se perguntou pelo sentido da filosofia porque, como todo o grande pensador, buscava compreender a essência daquilo mesmo que o afetava – a si e aos seus alunos – de modo tão profundo e intenso. É de se julgar que não era muito claro (e ainda não o é) o que estava por trás do efeito provocado por Sócrates em todos aqueles que conviviam com ele: uma boa dose de retórica, sim, mas ainda alguma coisa que era completamente nova para a época, um gênero de saber e uma forma de vida que ninguém antes havia experimentado. Sócrates era muito mais complexo do que os sofistas, e sua influência não se restringia ao transe instigado por discursos brilhantes mas circunstanciais, que sempre tinham como limite o alcance da oportunidade, do kairçv. A sua influência se espraiava por um círculo de pessoas que tinham suas vidas modificadas em pontos fulcrais: nos juízos de valor, na compreensão dos deuses, nos costumes mais singelos e naquilo que hoje chamaríamos de visão de mundo. Mais de um autor contemporâneo concorda com a ideia de que Platão resolveu se dedicar à filosofia em virtude do abalo que sofreu com a morte de Sócrates 7. Isso não se confina ao aspecto político e a nenhum outro aspecto; em verdade, trata-se de um despertar que condicionou todo o seu pensamento e serviu para criar a tradição metafísica do Ocidente8. Como teremos a oportunidade de mostrar, as conclusões de Platão sobre o início psíquico da filosofia através da experiência de maravilhamento se aplicam a ele mesmo, donde podermos dizer que há na base de sua decisão pela filosofia qualquer coisa de traumático, num possível sentido neutro do termo.

Assim, convém indagar o que ele pretende dizer exatamente quando localiza a origem e o governo da filosofia numa disposição, numa paixão ou numa experiência anímica de maravilhamento. Que isso significa mais precisamente?

Esta dissertação constitui o esforço de criar um quadro teórico em que essa pergunta pode receber alguma luz. De algum modo, trata-se de um trabalho de antropologia filosófica ou ontologia existencial que apenas descreve uma “paixão” singular, como ela ocorre, a quem ocorre,

7 JAEGER, 2003, pg. 410; DUHOT, 2004, pg. 76 e 206; CHAPELL, 2005, pg. 10; GUTHRIE, 1978, pg. 231. 8 Erweckung é expressão de Gadamer para explicar o que aconteceu a Platão quando, tendo conhecido Sócrates, resolveu queimar seus trabalhos artísticos. Segundo ele, Platão não descobriu com essa experiência que não teria podido ser grande poeta, mas que não o queria ser, uma vez que diante da filosofia já não valia a pena o poetar. O despertar através de Sócrates (Erweckung durch Sokrates) ter-lhe-ia revelado seu verdadeiro talento. GADAMER, 1999, pg. 188. Como ainda poderá ser visto, Sócrates causou em Platão verdadeira conversão da alma (periagwgÐ).

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quais são seus momentos e seus efeitos. No que concerne à origem, ver-se-á que se trata de uma experiência psíquica capaz de doar ao aspirante a filósofo um mundo completamente novo, nascido do alargamento de sua visão teórica e do contato com a esfera da suprassensibilidade ou do divino. Esse processo implica a perda das opiniões comuns, a mudança radical de perspectivas e até mesmo o sofrimento e o desgosto para consigo mesmo que tais alterações podem suscitar. Em verdade, a saída da caverna, que ocupa posição central no pensamento de Platão, é a encenação plástica da origem psicológica da filosofia, porquanto descreva alguém que deixa a ignorância para se dirigir à verdadeira realidade. O termo psíquico (ou psicológico), aliás, não deve evocar as conotações hodiernas de que é imbuído, as quais pressupõem muitas teses e concepções de todo alheias ao pensamento grego. Ele apenas designa aquilo que é próprio do ser mais autêntico do homem, definido por Platão, em mais uma de suas perenes contribuições à história do espírito, como psique9. As condições prévias para que tal processo possa acontecer são, entre outras, o surgimento da aporia, a constatação da própria ignorância e a conseqüente purgação desse afeto. Nesse ponto, pois, entra com todas as suas singularidades a pedagogia socrático-platônica, que tem como um dos seus principais objetivos trazer os indivíduos para a posição ontológica intermediária, ocupada por Sócrates, em que se adquire a consciência de sua própria ignorância e se entra em contato com o divino. Tal posição é o abrigo próprio dos filósofos e estabelece as diferenças desses homens no que toca aos deuses e aos outros seres humanos que não foram purificados pela filosofia. Nesse método pedagógico se distinguem claramente dois aspectos: o primeiro, que é mais negativo, visa destruir a presunção do aluno através de uma série de expedientes; e o segundo, mais positivo, permite que o desejo de conhecer aflore na alma do educando e o conduza para a filosofia e para a busca pelo Bem. Em certo sentido, trata-se da negatividade da ironia e da positividade da maiêutica. As conseqüências disso envolvem reorientação dos desejos da pessoa, fortalecimento do aspecto racional de sua alma e a descoberta de paradigmas eternos e objetivos pelos quais ela pode doravante se

9 Reale demonstra como foi Sócrates quem delineou primordialmente o conceito de alma na cultura ocidental, e como Platão se apossou de tal conceito e o repensou de modo radical. Talvez ele até tivesse consciência da revolução que causava. REALE, 2002, pg. 15. Trata-se de ponto assente: JAEGER, 2003, pg. 529; CUSHMAN, 2007, pg. 12; ROBINSON, 2007, pg. 40.

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orientar a fim de atingir a melhor das vidas possíveis10. Grande parte do trabalho de iniciação que Sócrates empreende, causando revoluções psíquicas em seus interlocutores, se fundamenta na criação do estado admirativo, embora devamos admitir que nem todos esses personagens chegam a se voltar de uma vez por todas à filosofia. Muitos deles apenas reconhecem a contragosto que nada sabem daquilo sobre o que alardeiam a maior sapiência; outros sofrem modificações temporárias, caem em aporia ou usam do que supõem aprender com Sócrates para fins nada louváveis. Em que pesem seus fracassos educacionais, é sempre correto pensar que a noção socrático-platônica de conhecimento, diferentemente da noção dos sofistas, implica reviravolta radical na alma de quem a experimenta; ela simplesmente demonstra que não pode conhecer alguma coisa quem permanece no interior da caverna.

Para que tudo isso fique mais claro, organizamos nosso trabalho em cinco capítulos, brevemente explicados a seguir. No primeiro deles, analisamos o diálogo Teeteto a fim de entender tudo o que está implicado na afirmação feita por Sócrates. É apenas nesse diálogo que encontramos base textual explícita para a nossa pesquisa, de modo que precisamos esquadrinhar diligentemente cada um dos aspectos que emergem a partir dele. Contextualizamos a discussão até o momento em que aparece a sentença sobre a origem da filosofia; depois esmiuçamos as palavras nela contidas e diferenciamos seu significado da doutrina aristotélica, a qual também toma a admiração como princípio do filosofar. No segundo capítulo, tendo por arrimo os diálogos Eutífron e Mênon, oferecemos alguns exemplos dos efeitos da admiração nos discípulos que começam a filosofar e delineamos com maior acuidade aquilo que seria a natureza patética da filosofia, bem como os momentos que antecedem a sua origem, como é o caso da aporia e do feitiço que Sócrates costuma lançar sobre seus ouvintes. No terceiro capítulo, mostramos que a criação do maravilhamento depende de uma mudança de afecções e da passagem da ignorância inconsciente para a consciência da ignorância, que não só é a posição própria do filósofo, mas também o fundamento e a inovação da concepção socrática de sabedoria. Expomos o conceito platônico de ignorância, tal como apresentado no Alcibíades Maior; relacionamo-lo ao método purgativo de Sócrates que é

10 Nussbaum expôs claramente como Platão acredita que a vida do filósofo é a melhor possível; ela é: “A life, then, of goodness without fragility”. NUSSBAUM, 2001, pg. 138. Não é preciso dizer que tal juízo interpreta corretamente a filosofia de Platão, quando a toma por um modo de vida. Cremos ter sido bem demonstrado por Hadot que, para os antigos, dedicar-se à filosofia é fazer opção existencial que implica determinado modo de estar no mundo. HADOT, 1999.

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compendiado no Sofista e terminamos o capítulo estudando a noção de intermediário, que mostra como a filosofia se caracteriza por uma maior proximidade da esfera divina e como, em razão disso, o maravilhamento que a produz está eivado de sentimentos religiosos como o temor e a reverência. No quarto capítulo, assim, voltamo-nos explicitamente para Sócrates, com o propósito de averiguar suas contribuições pessoais para o fenômeno da admiração e a forma como ele faz de si mesmo algo admirável. Reunimos algumas passagens em que seus amigos se admiram de seus atos e palavras, como ocorre no Fédon e no Críton, e damos especial atenção ao encômio que Alcibíades faz no Banquete, o qual possui referências inequívocas à admiração que o filósofo suscitava. No quinto capítulo, por fim, podemos oferecer interpretação precisa do famoso mito da caverna, tornando claro que ele é nada mais nada menos do que a encenação alegórica do fenômeno da admiração, algo que até hoje não parece ter sido notado. Para condensar nossas conclusões sobre essa alegoria e sua relação com o maravilhamento psíquico, criamos e explicamos o conceito de heterónoia. Em seguida, fazemos breve passagem sobre a biografia de Sócrates e sobre a concepção platônica de matemática, elucidada no decorre do livro VII da República, a fim de explicitar como certos objetos do mundo podem despertar nossa inteligência e fazer irromper a admiração filosófica. Arrematamos o capítulo retornando ao Teeteto e estreitando os liames entre a alegoria da caverna e a digressão sobre o filósofo contida nessa obra.

O tema da admiração no pensamento platônico parece nunca ter recebido tratamento mais aprofundado; a frase do Teeteto circula jactansiosamente aqui e acolá, no registro oral e no escrito, mas nunca é pensada com a radicalidade devida. Apesar de haver inúmeros comentadores que se dedicaram ao estudo da concepção platônica de filosofia, poucos foram os que fizeram a conexão cerrada de um assunto com o outro, levando a sério a assertiva do Teeteto. Convencemo-nos desse fato se examinamos o mínimo da literatura existente acerca da questão. Karl Albert, que dedicou belíssimo livro ao escrutínio do conceito platônico de filosofia, embora se recorde dessa frase, só vê nela a confirmação da imagem do filósofo como intermediário entre os deuses e os homens, tarefa simbolizada pela figura mitológica de Íris11. Não obstante isso esteja certo, há ainda muita coisa pressuposta na pequena sentença em apreço: a palavra arché, que nela se faz presente,

11 Cf. ALBERT, 1991, pg. 57-8.

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por exemplo, não pode apenas ser compreendida como início, mas deve também ser entendida como “governo”, isto é, a instância que dirige a própria filosofia. O mesmo acontece com os autores que traduziram o diálogo e fizeram comentários críticos em cada uma das páginas: eles mal e mal escrevem alguma coisa sobre essa passagem. Cornford mais não faz do que lembrar o leitor de que Íris, a filha de Taumante também aludida na passagem em questão, já fora mencionada no Crátilo, razão por que esse diálogo deveria ser considerado anterior ao Teeteto. Anos depois John McDowell repetirá lição parecida, com a única diferença de pensar que Íris representa a filosofia por causa das etimologias que aparecem no Crátilo12.

No entanto, intelectuais e eruditos houve que se deram conta da importância do problema, tanto mais que a mesma ideia sobre a origem da filosofia aparece em Aristóteles e persiste entre alguns dos filósofos medievais, como Alberto Magno13. Um dos tratamentos mais instigantes é dado por Andrea Nightingale, que analisa brevemente o conceito de admiração ao longo da tradição ocidental e conclui que ele possui importante papel na prática da teoria, conquanto tenha sido pouco estudado14. Também Giovanni Reale, em sua História da Filosofia Antiga (Vol. I), comenta em apêndice a concepção geral que tinham os Gregos da filosofia, e ressalta, além de outras características, a primariedade da admiração como estado espiritual que abre as portas para os esplendores da investigação filosófica. Igualmente em seu dicionário reserva espaço para isso, remetendo o leitor do verbete para a explanação erudita do apêndice mencionado. Contudo, restringe-se a dois aspectos de tal noção, a saber, a admiração diante do ser e a necessidade de satisfazê-la, desatentando para outras particularidades e traduzindo tò thaumázein por “admiração”, sem oferecer elucidações

12 “The Cratylus connects Iris with e¹rein (408b), and e¹rein (l™gein) with dialectic (398d). So Iris (philosophy) is the daughter of Thaumas (wonder). Since our passage is unintelligible without the Cratylus, the Theaetetus must be the later of two”. CORNFORD, 1979, pg. 43, nota 1. “Iris represents philosophy because of the etymologies of Cratylus 408b4-5 and 398d5-8. And Thaumas (a Titan) represents wonder because of the derivation of his name”. McDOWELL, 1999, pg. 137. 13 “Nam omines homines, qui et nunc in nostro tempore et primum ante nostra tempora philosophati sunt, non sunt moti ad philosophandum nisi per admirationem… Qui autem dubitat et admiratur, ignorare videtur; est enim admiratio motus ignorantis procedentis ad inquirendum, ut sciat causam eius de quo miratur”. Apud, NIGHTINGALE, 2009, pg. 254. Outros filósofos possuem reflexões sobre a admiração: Aquino, Descartes, Espinosa, Bacon,Vico. Citaremos algumas delas quando for apropriado. 14“Wonder plays an important role in the pursuit and practice of theoría, yet it is rarely analyzed in the scholarly literature”. NIGHTINGALE, pg. 253.

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sobre tal escolha15. O livro Termos Filosóficos Gregos, de F.E. Peters, nem ao menos possui verbete que trate de modo pormenorizado o conceito de admiração; menciona-o apenas a fim de deslindar o substantivo “aporia”, valendo-se mais do texto de Aristóteles e ignorando as diferenças existentes entre ele e Platão16. A propósito, não estabelecer diferenças nítidas entre esses dois pensadores é deslize de que se não isentam filósofos da alçada de Schopenhauer ou de Heidegger. Ambos citam e comentam as duas passagens como similares do ponto de vista do significado, algo com o que não podemos concordar, se não por razões maiores, pelo simples fato de Aristóteles dizer que a filosofia tem como objetivo o fim da admiração17.

De mais a mais – e esse é o ponto mais relevante – poucos notaram que essa afirmação de Platão implica maneira completamente singular de conceber a atividade filosófica. Ao contrário daqueles que pensam que a filosofia seja apenas uma técnica de lidar com argumentos, uma atividade profissional ou algo que pode ser outorgado por um diploma, Platão a compreende como um acontecimento existencial que modifica ab imo corde a nossa maneira de estar no mundo. Assim para ele como para a maioria dos filósofos gregos, a filosofia é um evento que provoca reorientação ontológica nas pessoas e implica a experiência de determinadas “paixões”. Ela não é atividade meramente intelectual, pois embora possua discurso de elevado nível teórico, origina-se antes de uma série de escolhas e decisões existenciais que, muitas vezes, são justificadas a posteriori18. A absurdidade que caracteriza o modo de vida do filósofo, longe de ser simples afetação teatral, advém dessas opções que o tornam diferente da maioria das pessoas, e por isso pode-se concluir com certo desalento que a filosofia à grega está em seu estágio final, uma vez que filósofo já não parece

15 REALE, 1993, pg. 387ss. Jean Beaufret também se detém na admiração diante do ser. BEAUFRET, 1978, pg. 175. 16 PETERS, 1983, pg. 35-36. Os dicionários de filosofia geralmente possuem verbete demasiado panorâmico sobre o assunto, como convém à sua natureza. A exceção é talvez Ferrater Mora, que oferece algumas reflexões inovadoras. Cf. MORA, 1981, 60-2. Goldschmidt também possui belas páginas em que relaciona a admiração e o início da filosofia à experiência de contradição sensível, que aparece claramente no Teeteto: “L’origine de la réflexion philosophique est donc une experiénce de contradiction. On n’aurait que faire de la philosophie si le monde sensible – où nous sommes destinés à vivre et à agir – était transparent à nos sensations, s’il se comportait toujours de la même maniére et si tous les objets qui le composent consentaient à rester ce qu’ils paraissent et à ne nous étonner jamais”. GOLDSCHMIDT, 1993, pg. 119. 17 HEIDEGGER, 1979; SCHOPENHAUER, 1960. 18 HADOT, 1999, pg. 17-8.

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viver de maneira diversa do senso comum. Conceber a filosofia como modo de vida, por sua vez, também acarreta uma máxima de valor exegético, que nos leva a dar atenção aos personagens e ao contexto dramático dos Diálogos. Se filosofar significa viver de determinada maneira, as afirmações teóricas que aparecem nos Diálogos não podem ser simplesmente isoladas e interpretadas como se pertencem a um tratado, senão que precisam ser creditadas aos personagens que as defendem e às situações em que surgem19. No caso do Teeteto, veremos como isso é importante.

Mas não devemos nos adiantar em nossa exposição; observaremos oportunamente parte do que foi dito e omitido sobre o assunto. Cabe apenas dizer, por fim, que não faremos uso de todo o corpus platonicum, senão que escolheremos alguns diálogos que julgamos relacionados ao nosso tema. Utilizaremos algumas obras que apresentam a tentativa socrática de converter seus interlocutores à filosofia, pois elas põem em jogo os fenômenos psíquicos que tais pessoas vivenciam; algumas que coroam determinadas ideias pressupostas na missão pedagógica de Sócrates; e um ou outro diálogo, como é o caso do Sofista, que oferece tratamento inusitado de temas que já vinham sendo ventilados desde a “primeira fase” do pensamento do autor.

19 “The form in which he chose to express his thought is the dialogue, and he always confined his treatment of any problem to such aspects of it as seemed to him to be pertinent to the particular context of philosophical discussion which he is actually exposing”. CHERNISS, 1978, pg. 245. Borges acredita que, se são ignorados alguns aspectos do Teeteto – o prólogo, as cenas, os personagens – o que resta é um tratado sobre o conhecimento. Ele não está convencido da junção entre drama e dissertação no caso dos Diálogos. BORGES, 2008, pg. 4. Discordamos dessa posição: se são retirados tais aspectos da obra, resta-nos qualquer coisa que é tudo, menos um diálogo platônico.

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I

O DIÁLOGO TEETETO E A ADMIRAÇÃO

Aus bloßer Vernunft kommt keine Philosophie20.

Hölderlin, Hipérion.

1.1. Sobre o diálogo O Teeteto é um daqueles diálogos cuja interpretação seguiu o

mais das vezes ao pé da letra, por sorte ou azar, o subtítulo colocado pelos editores em cada uma das obras de Platão: “sobre o conhecimento”. Com efeito, a maioria dos intérpretes se volta para essa obra justamente para buscar as contribuições, as teses ou as críticas que Platão teria elaborado em torno da pergunta pela essência da e )pist h/mh. E isso não acontece apenas no lado dos intelectuais com influência da filosofia anglo-americana, de quem tal atitude é sempre esperada; acontece também entre aqueles ditos continentais: mesmo Heidegger, o mais combatido e representativo de todos, deu um curso sobre esse diálogo enfatizando justamente questões epistemológicas, no que se pode chamar de inusitada concordância exegética com seus adversários insulares21. Certa concordância também há, aliás, no que se refere ao período de composição a que possivelmente pertence. Os comentadores geralmente acreditam que o diálogo se enquadre no mesmo período do Parmênides, do Sofista e do Político. Uma vez que no interior dessas obras encontram-se evidências mais ou menos claras desse fato, isso não deve causar nenhuma surpresa. Tanto no Teeteto quanto no Sofista Sócrates relembra o encontro que teve outrora com o sábio Parmênides, encontro descrito no diálogo homônimo; e no Político, por sua vez, o prólogo menciona explicitamente a continuidade

20 “A filosofia não surge da simples razão”. 21 Certo que, do ponto de vista da exegese particular de Heidegger, o que dissemos é como que um exagero, pois as suas preocupações tendem no fundo à questão da verdade e do Ser, num sentido muito mais metafísico do que epistemológico. Heidegger está ciente de que o Teeteto não versa apenas sobre o conhecimento; mas isso acontece não porque veja nele a problemática acerca da filosofia, como nós fazemos, mas sim porque amplia o sentido de conhecimento e tenta pensar tal conceito de maneira mais grega. Ele pensa que nesse diálogo Platão elabora pela primeira vez o caminho que interroga o falso a fim de compreender o verdadeiro, atacando também as opiniões do homem comum. HEIDEGGER, 2002, pg. 237-9.

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da análise começada pelo Estrangeiro de Eleia no Sofista22. Se não bastasse, o jovem Teeteto é o interlocutor privilegiado do Estrangeiro na primeira discussão do encontro; e só quando se empenham a definir o político cede seu lugar a um Sócrates jovem, não obstante permanecer como um dos personagens do grupo23.

Todavia, no interior da dramaturgia platônica, sabemos que a conversa entre Teeteto e Sócrates ocorreu no mesmo dia em que este último foi até o tribunal para se inteirar da acusação de impiedade e de corrupção dos jovens que lhe haviam movido. O ano é, portanto, 399 a.C, e a longa conversa com Teodoro e seus discípulos precede imediatamente o encontro com o adivinho Eutífron, descrito no diálogo com o mesmo nome. Em razão disso alguns comentadores notaram algo curioso. No início do Teeteto, Euclides afirma que só conseguiu reconstituir toda a conversação havida entre Sócrates e o jovem ateniense com o auxílio de sucessivas rememorações feitas pelo próprio Sócrates, as quais foram diligentemente anotadas pelo filósofo de Mégara24. Ora, uma vez que depois de tal conversa Sócrates foi condenado e permaneceu na prisão, a aguardar o retorno do barco que fora a Delos, pode-se supor que foi na própria carceragem que Euclides o visitou para ouvir e coligir as partes do diálogo de que se não podia

22 Teet., 183e; Sof., 217c; Pol., 257a. Citamos as traduções dos diálogos indicadas na bibliografia, e avisamos quando traduzimos algum trecho. Usamos a tradução brasileira da Carta Sétima e, para citações em grego, utilizamos o Thesaurus linguae graecae. 23 Sobre as datas: CORNFORD, 1979, pg. 1; CHAPELL, 2005, pg. 12. A fala de Sócrates no Político (258a3-5) é explícita, quando esclarece porque devem deixar Teeteto descansar e convocar para a discussão o jovem Sócrates. “Com Teeteto conversei ontem e ouvi, ainda há pouco, o que te respondeu; mas do jovem Sócrates, nada ouvi”. Assim, a conversa de Sócrates com Teeteto teria acontecido na véspera; e no dia de hoje o menino teria falado sobre a definição do sofista com o Estrangeiro de Eleia, o qual passa agora a definir a figura do político. Também no fim do Teeteto (210d1-4), depois de dizer que irá agora se apresentar no Pórtico do Rei para ver da acusação que Meleto lhe impugnou, Sócrates marca encontro com Teodoro para a manhã seguinte no mesmo local. Na ordem levada a termo pelo gramático Trásilo, em que os diálogos foram divididos em nove tetralogias, o Teeteto aparece na segunda tetralogia, precedido pelo Crátilo e seguido pelo Sofista e pelo Político. O Parmênides surge no conjunto seguinte, junto com o Filebo, o Banquete e o Fedro. Cf. REALE, 1994, pg. 9. Em virtude do caráter aporético do diálogo, até houve tentativas de localizá-lo junto às obras da juventude de Platão, como o fez Schleiermacher; mas já há tempos isso não ocorre, apesar dos testes de estilometria mostrarem que ele não se enquadra no período tardio, mas sim no final do período médio, junto com a República, o Fedro e o Parmênides. SEDLEY, 2004, pg. 1-3. Aliás, mesmo com final aporético, o Teeteto se diferencia desses diálogos juvenis porque termina com certa satisfação, indiferente à possibilidade de um estudo futuro, ao passo que os diálogos aporéticos sensu stricto reclamam do fracasso final e exortam os personagens a prosseguirem com a investigação. BENITEZ; GUIMARÃES, 1993, pg. 298-299; SANTOS, 2008, pg. 9, n. 11. 24 Teet., 143a3.

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relembrar. Embora isso não diga muita coisa sobre o Teeteto em particular, lança alguma luz sobre o conjunto de diálogos relativos à morte de Sócrates: é aqui que começa, pois, o elogio da coragem que o filósofo há de apresentar durante todo o tempo em que aguarda a sua execução. De fato, se houve realmente tais encontros, há então ainda mais evidências para se afirmar que Sócrates não deixou em nenhuma ocasião de realizar as mesmas investigações a que era atreito, não tendo sido perturbado nem pela iminência da “travessia final”. Além de metrificar Esopo e de receber diariamente seus discípulos, teve presença de espírito bastante para evocar uma conversa recente cheia de raciocínios sutis e objetivos, isto é, com pouca ou nenhuma relação com temas morais, religiosos ou escatológicos. No entanto, como dito, trata-se apenas de especulação, e eruditos há que descartam a historicidade de tais fatos 25.

Outros pontos que levam os eruditos a datarem o diálogo como pertencente à fase tardia de Platão, pois, é a menção da batalha perto de Corinto, ocorrida no ano de 369 a.C., e a ausência de qualquer menção ou utilização da chamada teoria das ideias, peculiar aos diálogos que costumam ser encastoados no período médio da produção literária do autor. O primeiro fato é evento histórico que não pode ser desmentido, e certamente o diálogo é posterior a tal guerra, porquanto de outra maneira ela nem ao menos poderia ser evocada26. O segundo, pois, é controverso e decisivo, a ponto de formar duas correntes opostas de interpretação. De um lado, temos aqueles autores que acreditam Platão revisou as teses sustentadas na sua maturidade, abandonando, através de criticismo cerrado, a teoria das ideias no tempo em que compunha os diálogos da senectude. De outro, temos os autores que mantém visão unitária do corpus platonicum e sustentam que tal teoria não é mencionada, no Teeteto, por questões intrínsecas à dramaturgia do diálogo, o qual realiza

25 “Eucleides’ account of how he came to write the main dialogue is obviously fictitious. No such conversation could have taken place in Socrates’ lifetime”. CORNFORD, 1979, pg. 15. À primeira vista, Chapell parece concordar com Cornford, quando escreve: “Plato begins by establishing what seems certain to be a fiction about the origin of the Theaetetus’’. CHAPELL, 2005, pg. 25. No entanto, ele esclarece em nota que Euclides poderia ter visitado Sócrates na prisão, já que, segundo o testemunho do Fédon (58c5), Sócrates aguardou longo tempo entre seu julgamento e sua morte. CHAPELL, 2005, pg. 25, nota 16. A propósito, tanto Euclides quanto Terpsião estavam presentes no dia da morte de Sócrates (Féd., 59c2). Cremos que o elogio da coragem demonstrada por Sócrates, nos diálogos relativos ao processo movido contra ele, é mais do que evidente. Analisaremos melhor esse fato no capítulo exclusivamente dedicado a Sócrates, a fim de evidenciar que a isso se relaciona certo gênero de admiração. 26 Segundo José Trindade dos Santos, nada se sabe acerca dessa guerra. SANTOS, 2008, pg. 22, n. 22.

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uma reductio ad absurdum das teorias que tentam compreender o mundo sem apelar às ideias. Podem ser citados como revisionistas, entre outros, Gilbert Ryle, G. E. L. Owen e John McDowell; e como unitaristas, por sua vez, toda uma sorte de comentadores ilustres, a começar por Aristóteles, Proclo, os glosadores medievais, Berkeley, Schleiermacher, F. M. Cornford, Sir David Ross, A. Diès e Timothy Chapell27. Várias são as razões apresentadas de ambas as partes, e não é nossa intenção oferecer nova argumentação sobre esse ponto demasiado conflituoso. Em geral, cremos que toda essa problemática surge por duas preocupações fundamentais: a primeira nasce do desejo bastante natural de tentar compreender a ordem em que os diálogos de Platão foram escritos, e se houve ou não alguma mudança fundamental no cerne do seu pensamento; e a segunda, pois, nasce da desmedida ênfase que costumam os comentadores colocar nas questões epistemológicas, como acima já ressaltamos. De fato, no caso do Teeteto, a segunda preocupação tem conduzido os intérpretes a verdadeiros erros de exegese, tal como afirmar que a digressão sobre o filósofo, inserida no coração do diálogo, nada tem que ver com o restante da dramaturgia, ou, o que é ainda pior, afirmar que o diálogo tem qualquer coisa de desconexo, dado que apresente enorme gama de problemas28. Apresentaremos logo à frente alguns argumentos contrários a essa ênfase desmesurada, mostrando como o diálogo pode ser mais bem compreendido se a análise da alma do jovem Teeteto, assunto que abre e fecha a conversa, é encarada como raiz pivotante da obra, ao invés da discussão à roda da pergunta pelo conhecimento.

À parte tais questões, outras características gerais do diálogo podem ser ressaltadas. Em primeiro lugar, é praticamente inegável que ele apresente o que se pode alcunhar de estratégia de distanciamento por

27 Seguimos a apresentação da controvérsia tal como apresentada pelo próprio Timothy Chapell. Cf. CHAPELL, 2005, pg. 16-21. David Sedley tem posição peculiar no debate: ao mesmo tempo em que aceita certas mudanças no pensamento de Platão, o que considera óbvio, ressalta a sua continuidade. SEDLEY, 2004, pg. 15. José Trindade resume a controvérsia da seguinte maneira: “A [leitura] de Cornford: ler a obra como uma redução ao absurdo de qualquer tentativa de entender a realidade sem a teoria das formas; a de Ryle: como puro e simples abandono dessa teoria”. A própria posição de Trindade é peculiar: admite a intenção dramática do diálogo, mas enfatiza apenas as questões epistemológicas. SANTOS, 2008, pg.8; 10, n. 13. 28 Segundo Chapell, Ian Crombie e John Mcdowell ressaltariam o caráter desconexo do diálogo. CHAPELL, 2005, pg. 23-24. Foi Ryle quem disse que a digressão sobre o filósofo era “philosophically quite pointless”. Outros autores, levados pela mesma impressão, defenderam que o Teeteto serve como espécie de comentário filosófico a uma série de posturas possíveis. LIMA, 2004, pg. 30. Mais de um autor admite que se trata de uma composição única de Platão. SANTOS, 2008, pg. 12; BOERI, 2009, pg. 228.

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parte de Platão. Não se trata nem de descrição direta como ocorre, por exemplo, no Eutífron ou em outros diálogos; tampouco se trata da narração de algo passado, como se dá no Banquete; mas sim da leitura, realizada por um terceiro, de uma narração anotada por um dos ouvintes. Com efeito, é um dos escravos de Euclides que, num ato costumeiro para a época, lê o relato para seu dono e para seu amigo, Terpsião 29. A estrutura dramática é assim a sobreposição de mais de um plano narrativo. Não obstante isso pareça não ter nenhuma importância para a compreensão do diálogo como um todo, suscitou o interesse de alguns dos seus leitores30. Em segundo lugar, deve-se notar que é neste diálogo que Platão apresenta a celebérrima comparação do trabalho de Sócrates com o trabalho das parteiras. A semelhança das duas atividades serve para detalhar todas as singularidades da concepção pedagógica de Sócrates e de Platão, que é completamente diversa da concepção comum e também da sofística. Para alguns comentadores, o trecho sobre as parteiras deve remeter o leitor à teoria platônica da reminiscência, que também pressupõe que o conhecimento já esteja presente em cada pessoa; para outros, ele anuncia que o diálogo será inconclusivo ou 29 Teet., 143b3. “Gentlemen of leisure (eleutheroi) did not go normally to the trouble of reading documents for themselves: they got a slave to read the documents to them. Plato must have expected that the Theaetetus itself would be read in this way. (No doubt it was). So Plato means you, his reader, to be in this situation: you are having the Theaetetus read to you by your slave; and what is happening in the Theaetetus, as your slave reads it to you, is that two men are having Eucleides’ memoir read to them by their slave. I made some brief remarks about Plato’s use of distancing techniques in section 3. Here is another distancing technique”. CHAPELL, 2005, pg. 30. 30 “Com uma solução relativamente simples de apresentação temos um resultado singular: um diálogo narrado, ou uma narração sob forma de diálogo, em que Sócrates é o personagem principal e primeiro narrador, seguido por outros narradores, Euclides, como seu escravo, e, naturalmente, Platão. É significativo que logo o diálogo no qual, graças à imagem da maiêutica, a forma dialógica parece ser mais claramente indicada como condição de investigação filosófica, seja consequência de repetidas narrações”. LIMA, 2004, pg. 12. Paulo Butti de Lima ainda analisa por que Heidegger, diante desse distanciamento, ficou tão perplexo. Ele lembra que já na Antiguidade os comentadores tiveram seu interesse despertado por esse prólogo, quando duas versões diferentes circulavam; mas faz notar que a preocupação de Heidegger é de outra ordem, e tem que ver com a diferença entre filosofia e história ou filosofia e narração. Heidegger teria ficado perplexo com o prólogo porque, enquanto típico filósofo, descartava a narração como meio de se expressar a filosofia, algo de que dá mostras, em Ser e Tempo, ao comparar o estilo de Tucídides com o de Platão nas passagens conceituais do Sofista. LIMA, 2004, pg. 12. Cornford também relembra a existência do outro prólogo mencionado pelo comentador anônimo do diálogo: ele acredita que a outra versão existente foi apenas um esboço que calhou de ser preservado. CORNFORD, 1979, pg. 15. Para Sedley, o prólogo é de fato único na obra de Platão, e tem vantagem de receber o aval de Sócrates. Ele acredita que a intenção de Platão seja remeter os leitores para o Sócrates histórico, haja vista o Sócrates apresentado no Parmênides, diálogo anterior ao Teeteto, é indubitavelmente fictício, sustentando teses que são apenas de Platão. SEDLEY, 2004, pg. 16-17.

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experimental31. De nossa parte, suspendemos o juízo sobre o fato de ter Platão desejado que os leitores fizessem tal paralelo; mas não podemos negar que a passagem tem estreitos liames com a reminiscência, algo que será mostrado quando entendermos melhor o fenômeno da admiração. Independentemente da posição tomada, contudo, a comparação continua a ser uma das mais célebres que Platão já escreveu e deve ser lida ao mesmo tempo com sentimento e razão32. Em terceiro lugar, convém dizer uma palavra sobre o caráter inconclusivo do diálogo, já mencionado superficialmente. Como Burnyeat salienta, no fundo não ficamos sabendo qual seja a visão de Platão sobre o conhecimento; apresenta-se-nos um drama de ideias que, do ponto de vista teórico, tem resultado negativo33. O diálogo só é positivo no que toca ao efeito que causa no jovem Teeteto, o que constitui, a nosso ver, razão a mais para que seja tomado como elucubração acerca da filosofia que usa da problemática em torno do conhecimento para se desenvolver. Mas isso será tratado nas seções seguintes.

Cabe dizer, por fim, que a singularidade desse escrito não se esgota no que foi dito acima. Outros pontos há para serem recordados. O clima em que ele se desenvolve, por exemplo – a sua leitura em Mégara, num plano, e os seus personagens envolvidos diretamente com a matemática, no outro – relaciona-o do início ao fim a certo tipo de conhecimento que sempre foi concebido por Platão como o mais seguro e perfeito, apesar de todos buscarem ironicamente o significado dessa palavra. Ademais, embora haja na famosa digressão o estabelecimento de diferenças entre o filósofo e o orador ou o sofista, a certa altura presenciamos um Sócrates que se metamorfoseia em Protágoras a fim de defender a tese do homo mensura. Isso tudo sem falar no que é discutido propriamente sobre o conhecimento: tão profundas e rigorosas são as

31 Tanto o comentador anônimo quanto Cornford veem na maiêutica alusão direta ao Mênon, diálogo em que a teoria da reminiscência recebe larga atenção. CORNFORD, 1979, pg. 27-29. Outros autores, entre eles Chapell e McDowell, negam tal paralelo. CHAPELL, 2005, pg. 46. Sedley ressalta os paralelos e as diferenças, e mostra como o raciocínio de Sócrates é um tanto falacioso. SEDLEY, 2004, pg. 19-22. 32 “The passage in which Socrates compares himself to a midwife is deservedly one of the most famous Plato ever wrote; it should be read with feeling as well as thought”. BURNYEAT, 1990, pg. 6. Burnyeat ainda acredita que a passagem faz parte de toda a estratégia que Platão emprega a fim de apresentar a primeira das definições dadas por Teeteto, segundo a qual conhecimento é percepção. Uma vez que tal definição é testada e logo então abandonada, não há motivos para não aceitar semelhante interpretação, condizente com a mestria que Platão sempre apresenta. 33 “We never learn what Plato thinks knowledge is. Nonetheless, we are clearly meant to see that the negative outcome of the inquiry is not defeat but progress”. BURNYEAT, 1990, pg. 2.

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teses ventiladas, que a tradição filosófica pôde se apropriar do diálogo de diversas maneiras. Berkeley viu nele uma defesa do empirismo; Wittgenstein encontrou expressão de certo atomismo lógico e também exemplos da ânsia de generalização que ofusca os filósofos; outros ainda viram uma apologia do pragmatismo34. Nenhuma dessas visões, contudo, está completamente certa ou completamente errada; parece que nesse diálogo se manifesta de modo nítido o apelo protréptico que é costumeiro em Platão, cabendo ao leitor se decidir pela melhor das teses postas em jogo35.

Nas próximas seções, analisaremos o que o diálogo tem para dizer sobre a origem da filosofia. Começamos por ver como a conversa se desenvolve, levando em conta a ordem em que é apresentada.

1.2. A conversa de Sócrates e Teeteto O diálogo se inicia com pequena troca de palavras entre

Euclides e Terpsião, que serve basicamente para dois motivos: como homenagem póstuma a Teeteto e como explicação do meio pelo qual a conversa entre Sócrates e o menino foi conservada36. O segundo motivo já foi brevemente explicado acima, quando referimos a estratégia de distanciamento usada por Platão. O primeiro motivo, por seu turno, se relaciona com o sentido geral do diálogo conforme o compreendemos: os dois amigos, que acabaram de ver Teeteto em mau estado, ferido e ainda doente de disenteria, recordam como o vaticínio de Sócrates, de acordo com o qual o jovem tornar-se-ia homem célebre, era preciso e correto. Além de Platão elogiar com essa cena um membro muito ilustre e querido de sua Academia37, ele mostra que a longínqua conversa havida entre seu mestre e o efebo prestou-se para que esse último, que já tinha boas inclinações, seguisse o caminho honrado dos belos e bons, dando mostras duma alma nobre. Isso significa, em retrospectiva, que Platão está a dizer que o efeito provocado por Sócrates em Teeteto deu 34 BURNYEAT, 1990, pg. 1. 35 CHAPELL, 2005, pg. 13. Chapell compara o Teeteto às Meditações de Descartes, as quais não devem ser apenas lidas, mas também feitas e vividas. 36 Segundo Boeri, esse prólogo seria o lugar em que Platão declara expressamente sua insatisfação com a forma narrativa. BOERI, 2009, pg. 230. 37 CORNFORD, 1979, pg. 15. Teeteto era um dos membros ilustres da Academia e um dos pioneiros da matemática, principalmente da estereometria. O livro XIII dos Elementos de Euclides tinha por base muitas das suas descobertas, e é provável que por sua influência Platão tenha dedicado tanta valor a esse ramo da geometria, incluindo-o no currículo do filósofo. LESKY, 1995, pg. 568; JAEGER, 2003, pg. 903.

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frutos: o menino tornou-se filósofo, adotando um modo de vida que lhe permitiu, entre outras coisas, ser probo e corajoso quando solicitado pelo dever pátrio.

Terpsião: Pelo que dizes, estamos na iminência de perder um homem e tanto! Euclides: De muito merecimento (ka lo /n t e ka iì a )g a qo /n), Terpsião. Agora mesmo, ouvi fazerem-lhe os maiores elogios, pelo modo como se houve na batalha. Terp.: Não é de admirar. Estranho seria se fosse diferente. Mas por que não ficou aqui em Mégara conosco? Eucl.: Tinha pressa de chegar a casa. Insisti com ele e o aconselhei muito; porém não se deixou convencer. Por isso, o acompanhei; e, ao retornar, lembrei, com admiração (e)qa u /ma sa), de como Sócrates foi bom profeta a respeito de muita coisa e também de Teeteto. Se mal não me lembro, pouco antes de morrer ele encontrou Teeteto, que ainda era adolescente. Ambos a se conhecerem, e logo a conversar, tendo Sócrates ficado encantado com a natureza do rapaz (a u)t o u= t h\n f u/si n). Quando estive em Atenas, Sócrates me falou pormenorizadamente da conversa que então mantiveram, tendo acrescentado que se ele chegasse a ser homem, fatalmente se tornaria célebre. Terp.: Só falou a verdade, como parece. E a respeito de quê conversaram, poderias dizer-me?38

O prólogo nos coloca, portanto, diante de uma iniciação à

filosofia, de uma conversão da alma inteira que foi indubitavelmente bem sucedida, porquanto esteja sendo confirmada, depois de longos anos, por pessoas com capacidade para realizar tal julgamento39. É este o liame que introduz diretamente o segundo proêmio, aquele do diálogo propriamente dito, onde Sócrates fala de sua ânsia por conhecer meninos bem-dotados do ponto de vista intelectual; e é este o sentido geral da 38 Teet., 142b6-d5. 39 José Trindade Santos acredita que toda a cena é fictícia e irrelevante para a compreensão do diálogo. Certamente discordamos de sua postura, pelo menos no que toca à importância da cena para a compreensão do diálogo. SANTOS, 2008, pg. 22, n. 22; pg. 23, n. 23.

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obra, que conecta todas as suas partes num todo harmônico. Com efeito, a ideia de iniciação à filosofia, como já dissemos, é a raiz principal a partir do quê se ramificam as outras radículas do diálogo: ela não só dá início à encenação, como também conclui todas as discussões. O trecho supracitado, para que não seja encarado apenas como expediente arbitrário de Platão, ganha sentido quando compreendido como a possibilidade de avaliar o sucesso de um evento passado: este é o cerne da estratégia de distanciamento aqui exemplificada. No prosseguimento do diálogo, o nexo dessa iniciação com as outras partes se torna bastante nítido: em primeiro lugar, ele ilumina a comparação de Sócrates com as parteiras, que explica em que consiste o método de ensino do filósofo; em segundo, esclarece a afirmação sobre a origem da filosofia; e, por último, revela o sentido da digressão sobre o filósofo, que, como se fora uma peça retórica, oferece a Teeteto e a seus amigos bela e pungente imagem do que seja dedicar-se à filosofia. Esses pontos nunca são bem interligados nas interpretações do diálogo, justamente porque, como dito, costuma-se dar exagerada ênfase às discussões epistemológicas, tomando-as como a espinha dorsal do drama. Mas essas discussões são usadas, a nosso ver, com o propósito de avaliar a alma de Teeteto e de lhe apresentar a filosofia40. Certo é que elas possuem interesse e importância em si mesmas, servindo para que tenhamos consciência do que ocupava o pensamento de Platão por esse tempo; mas o seu caráter aporético perde o sentido se não é visto em direta relação com a iniciação do efebo. Mesmo no interior das discussões, a propósito, pode-se perceber nitidamente uma progressão argumentativa que visa levar Teeteto da esfera das simples sensações, onde ele se encontra antes de se relacionar com Sócrates, até a esfera da suprassensibilidade. As três definições de conhecimento apresentadas ao longo da conversa – a) sensação, b) opinião verdadeira e c) opinião verdadeira acrescida de justificação – por si só encaminham o jovem para um horizonte mais

40 “Consequently, we treat the Theaetetus as a work whose explicit question about knowledge is directly linked with the deeper issue of what philosophy is”. BENITEZ; GUIMARÃES, 1993, pg., 209. Em verdade, seria de se perguntar se a função do Teeteto não é oferecer a caracterização do filósofo. Sabemos que ele pertence à trilogia do Sofista e do Político, onde os personagens se propõem a investigar a definição de cada uma dessas figuras (Sof., 217a; Pol., 257a); contudo, não temos um diálogo com o título Filósofo. Ora, não seria isso estratégia irônica de Platão, dar-nos o retrato do filósofo no dia anterior às discussões sobre o sofista e o político? Tal estratégia ainda explicaria por que Sócrates deixa de ser o condutor dos dois diálogos seguintes, bem como o fato de o estrangeiro de Eleia incluir Sócrates junto dos sofistas. Trata-se, porém, apenas de hipótese que não temos o intuito de defender nesta ocasião. Como diz Cornford: “Why the Philosopher was never written, we can only conjecture”. CORNFORD, 1979, pg. 169.

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intelectualista do que sensível. Tal trajeto representa a saída da caverna ou o início psíquico da filosofia através da admiração. Em cada um desses momentos teremos oportunidade de ver como isso acontece.

No proêmio do evento rememorado, Platão se concentra na capacidade socrática de analisar os jovens e distinguir as naturezas bem-dotadas; mas também ressalta a preocupação de seu mestre com a educação e com o cuidado dos futuros cidadãos atenienses41. Sócrates aparece no ginásio, dialogando com Teodoro, à procura de meninos que se sobressaiam em algum gênero de estudo, sendo assim dignos de menção (a)c i¿% lo/gou). Ele interroga o velho geômetra, que tem muitos pupilos sob sua guarda, sobre os jovens atenienses, pois se preocupa em primeiro lugar com seus concidadãos, embora também apreciasse conhecer efebos vindos da terra natal de seu interlocutor, Cirene42. Essa sua característica já nos é conhecida: Sócrates é homem de seu tempo e de sua cidade; a sua mensagem visa deixar os Atenienses despertos, e talvez apenas por conseqüência se refira ao homem em geral43. Ambos os personagens são já idosos: Teodoro até se queixa de sua dificuldade em acompanhar as discussões, e o diálogo, segundo Euclides, deu-se num momento pouco antes da morte de Sócrates. O clima matemático é relembrado não apenas por Teodoro, mas também pelo próprio Teeteto. Talvez eles mesmos, como notado acima, sejam exemplo de pessoas que lidam diariamente com o tipo mais seguro de conhecimento, a saber, as matemáticas44. Ao responder a pergunta feita por Sócrates, Teodoro afirma que teria algum receio de mencionar o jovem caso ele fosse belo, porque então poderiam dizer as más línguas que ele anda por aí enamorado pelos efebos. Contudo, acontece que o menino não apenas não é belo, mas até mesmo se parece com Sócrates,

41 Nesse mesmo dia, sabemo-lo, Sócrates conversou com o adivinho Eutífron. A preocupação com a educação dos jovens continuava em sua mente: “Afigura-se-me o único [Meleto] que, em matéria de política, inicia como se deve, pois não é justamente dos jovens que deve se ocupar para torná-los virtuosos, da mesma maneira que o bom lavrador se ocupa primeiramente das plantas tenras, e depois das outras? Talvez seja esta a razão por que Meleto começa o tratamento por nós que, conforme ele diz, somos os corruptores dos jovens em fase de crescimento”. Eutíf., 2c8-3a2. 42 Teet., 143d1-143e3. 43 Apol., 30e3-31a7. Tal distinção de prioridade étnica, aliás, é outra coisa que Sócrates partilha com Cristo. 44 Eugênio Benitez e Lívia Guimarães notam como o diálogo apresenta três tipos de conhecimento personificados em três personagens: a matemática (Teodoro), a filosofia (Sócrates) e a sofística (Protágoras). Segundo eles, o propósito de Platão seria fazer com que o jovem Teeteto, que representa a juventude, optasse por um desses gêneros de saber. BENITEZ; GUIMARÃES, 1993, pg. 305-306.

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tendo o mesmo nariz achatado e os mesmos olhos saltados45. Esta semelhança dos interlocutores não parece ser alusão casual; em verdade, ela nos recorda imediatamente o discurso de Alcibíades no Banquete, pelo qual sabemos que Sócrates, em que pese seu aspecto externo, possuía beleza interna que sobrepujava tudo quanto é sensível46. Talvez se trate de uma alusão de Platão à alma do menino Teeteto, que possui qualidades dignas do filósofo ideal da República. De resto, no julgamento de Teodoro já está pressuposta a revolução estética levada a efeito por Sócrates, que valoriza mais a beleza interior ou anímica do que a beleza sensível. Isso também aparece na naturalidade com que o geômetra comenta a feiura de Sócrates. Em sua longa jornada pedagógica, em que ensinou muitos meninos, Teodoro nunca encontrou nenhum com tão maravilhosa natureza (qau mastw½j euÅ pe fu ko/t a). Ele cita as várias aptidões de que Teeteto é dotado: facilidade de aprender incomparável, docilidade única, boa memória, rápido entendimento. Teeteto não se deixa levar nem pela ira nem pela preguiça, e a sua vivacidade, que lhe garante várias qualidades espirituais, não o torna impulsivo tal um navio sem lastro. Ele avança com naturalidade na senda do saber e, levando-se em conta a sua idade, é de se admirar (qau ma/sai) com o que já realizou47.

O primeiro pronunciamento sobre Teeteto, assim, não podia ser mais favorável: seu mestre Teodoro gaba-lhe sem peias a natureza. Nas qualidades que ele enumera, podemos ver a primeira referência de Platão à República, notadamente ao livro VI. Tal livro antecede o clímax da obra apresentado na sétima parte, clímax esse que mantém relação explícita com a digressão sobre o filósofo contida no Teeteto. No livro VI, Platão se dedica à caracterização precisa dos filósofos, alinhavando suas qualidades e diferenciando-os do restante das pessoas. Ele pretende perscrutar a sua natureza (f u/sin) a fim de ver se podem ou não ser os guardiões da cidade idealmente arquitetada, tal como abaliza aqui a natureza do adolescente para ver suas aptidões48. Muitos são os apanágios elencados, todos os quais contribuem para esboçar um modelo ideal. Primeiramente é dito que os filósofos andam sempre apaixonados pelo saber, não de forma fragmentada, mas almejando a essência imutável em sua totalidade. Dado que se voltem para isso, têm aversão à mentira e aspiram somente à verdade, a qual sempre está

45 Teet., 143e4-9. 46 Banq., 218e7-219a4. 47 Teet., 144a-144b7. 48 Rep., 485a5-8.

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intimamente ligada à sabedoria. A concentração dos seus desejos também os faz cuidar apenas dos prazeres da alma, deixando de lado os do corpo. Por tal motivo, assim, eles não se afadigam em busca de riquezas, sendo naturalmente moderados. Também não possuem nenhum tipo de mesquinhez que os impeça de alcançar o divino, seu supremo objetivo. Eles se voltam para a contemplação de todo o ser, olhando para a vida sub specie deorum. Tal altivez de olhar faz com que sejam corajosos e não temam a morte. Além disso, eles são pessoas de natureza justa e cordata; têm facilidade de aprender e boa memória, cultivando atitude de espírito comedida e agradável que lhes facilita o acesso ao ser49. Nas palavras concludentes de Sócrates:

Será então possível censurar, sob qualquer aspecto, uma ocupação tal que nunca ninguém será capaz de a exercer convenientemente, se não for de seu natural dotado de memória e de facilidade de aprender, de superioridade e amabilidade, amigo e aderente da verdade, da justiça, da coragem e da temperança?50

O jovem Teeteto possui praticamente todas as características

agrupadas nessa passagem. Estamos diante, portanto, de uma iniciação ideal, que se direciona a alguém com toda a propensão natural para sair da caverna e se tornar filósofo51. Esse fato alegra Sócrates, que nem sempre encontra bons interlocutores, e ele logo deseja saber quem é o pai do menino. Teodoro não se recorda do nome do progenitor, mas imediatamente aponta Teeteto, que vem se aproximando junto com outros efebos, todos os quais acabam de ter untado seu corpo com óleo 52. Essa preparação para a ginástica acaba se revelando uma preparação para entrar em contato com Sócrates, que também exercia certa ginástica intelectual. Se Teeteto e os outros meninos estão com os corpos nus, o que é provável, Sócrates desnudará doravante a sua alma, analisando-a e

49 Rep., 485b-486e. 50 Rep. 487a2-5. 51 LIMA, 2004, pg. 10. Em verdade, Teeteto é o jovem com grande potencial que pode ser facilmente influenciável, sumariando em sua pessoa toda a juventude ateniense da época, o próprio Platão inclusive. BENITEZ; GUIMARÃES, 1993, pg. 301-302. Scolnicov acredita que a tarefa socrática – provocar uma revolução psíquica em seus interlocutores – pode ser facilmente realizada com Teeteto, graças às inúmeras qualidades do adolescente. Sócrates nem precisa se valer de toda a sua ironia, pois seu interlocutor é bem disposto, não se zanga por ser refutado e prontamente reconhece seus erros. SCOLNICOV, 2006, pg. 56-57. 52 Teet., 144c4.

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inspecionando para descobrir seus defeitos e sua aptidão para o exercício intelectual53. Em verdade, Sócrates também encetou revolução ginástica, pois a despeito de nunca desprezar o corpo e de ser ele mesmo alguém de constituição sã e robusta, preza mais o treinamento da alma, o qual também garante o domínio do corpo54. Sócrates reconhece o pai do efebo, Eufrônio, e garante ter ele sido homem de bom caráter (como seu nome o diz) e ter deixado considerável herança55. Percebe-se por tal comentário como Sócrates conhecia seus concidadãos e se preocupava com o que eles faziam entre quatro paredes, o que vai surpreendentemente contra a ideia do filósofo alheado e distante, apresentada na longa digressão protréptica contida no diálogo56. Com efeito, deve-se ter sempre em conta essa ambigüidade relativa ao filósofo tal como descrito por Platão e representado por Sócrates: ao mesmo tempo em que ele não dá a mínima atenção para os assuntos sobreposse humanos que alimentam a fogueira do falatório e da fama da cidade, ele está sempre inteirado do que se passa ao seu redor e preocupado em tornar melhores aqueles que, no trato íntimo, vêm ao seu encontro. Assim é que Sócrates trouxe a filosofia para os lares e as cidades, e definiu sua tarefa como a observação e o cuidado daquilo que é feito privadamente, ao mesmo tempo em que evitou os lugares públicos ao longo de sua vida, não entrou em nenhuma disputa pelo poder e absteve-se da tentativa de se tornar célebre ou poderoso.

Teodoro chama Teeteto e seus amigos, e Sócrates começa a questionar o menino com absoluta naturalidade, sem que tenham acontecido as devidas saudações e apresentações. Seu modo de agir é

53 Sobre esse ponto: “Surgiu assim uma ginástica do pensamento que logo teve tantos partidários e admiradores como a do corpo, e não tardou a ser reconhecida como o que já esta vinha sendo havia muito: como uma nova forma de paidéia. A “dialética” socrática era uma planta indígena peculiar, a antítese mais completa do método educativo dos sofistas, que tinha aparecido simultaneamente com ela”. JAEGER, 2001, pg. 523. Nietzsche possui a mesma opinião: “Dass er eine neue Art Agon entedeckte, dass er der erste Fechtmeister davon für die vornehmen Kreise Athens war, is das eine. Er faszinierte, indem er an den agonalen Trieb der Helenen rührte – er brachte eine Variante in den Ringkampf zwischen jungen Männern und Jünglingen. Sokrates war auch ein grosser Erotiker”. NIETZSCHE, 2008b, §8, pg. 19. 54 No Cármides, Sócrates diz que aprendeu o uso de certo remédio e dos encantamentos que o acompanham junto de Zalmóxis, famoso médico trácio de influência pitagórica. Este médico defende que a alma tem poder soberano sobre o corpo e suas doenças, sendo dela que derivam todos os bens e todos os males. A crença é também partilhada por Sócrates. Cárm., 156e6-157a1. Para ele, aliás, a finalidade da vida humana é atingir a perfeição da alma. CORNFORD, 2001, pg. 8. 55 Poder ser que a herança aí mencionada seja a boa influência moral do pai sobre o filho. BENITEZ; GUIMARÃES, 1993, pg. 308. 56 Segundo Diógenes Laércio, Sócrates se ocupava daquilo que se faz em casa de bem e de mal, ou seja, de questões essencialmente éticas. Vidas., II, 21, 4.

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abrupto e nada convencional, mas simultaneamente familiar, paternal e amistoso. Fala ao jovem que Teodoro os comparou fisicamente, e de pronto lhe pergunta se a comparação é exata, lançando mão de analogia com as artes a fim de averiguar a exação do juízo de Teodoro. Se dissesse um músico haver a mesma afinação entre duas liras, eles aceitariam a sua opinião profissional; mas como crer em Teodoro, que nem ao menos é pintor para estar aí a falar de semelhanças físicas?57 Todavia, se alguém elogiasse a alma de outrem, no que toca à virtude e à sabedoria, não conviria que aquele que ouviu o elogio analisasse a alma do elogiado, e que o elogiado a exibisse? Sócrates se propõe, assim, a investigar a alma de Teeteto, e este deve se despir intelectualmente através de uma discussão. Tal como se fosse mestre de ginástica, Sócrates fará avaliação do menino. As palavras são vistas como reveladoras do espírito de alguém: assim como a árvore se conhece pelos frutos e o leão pelas garras, assim a alma pelas palavras. Não é preciso dizer que Sócrates, em fazendo isso, afirma-se como alguém capaz de ajuizar sobre a natureza psíquica das pessoas. Deve-se notar, de resto, que Sócrates não se distancia do horizonte intelectual do menino, mas lhe pergunta algo que tem relação com os estudos matemáticos. Ele deseja conversar com Teeteto e com os seus amigos no intuito, nós o sabemos, de lhes provocar a curiosidade intelectual e convertê-los à filosofia. A sua pergunta, contudo, é assaz exigente, fazendo jus aos grandes dotes de seu interlocutor: que é o saber? Teodoro se recusa a discutir com Sócrates e o aconselha a não largar Teeteto58. Ao tentar dar uma resposta a Sócrates, Teeteto oferece vários exemplos de conhecimento, errando no mesmo ponto metodológico em que Mênon, em sua conversa com Sócrates, já se enganara59. Sócrates o faz ver que procura uma definição geral: não quer saber, por exemplo, os vários tipos existentes de lama – a lama dos oleiros, a lama dos construtores de fornos etc. – mas sim que lama é terra molhada. Teeteto facilmente compreende a analogia e afirma que ele e seus amigos já passaram por algo do gênero: tentaram reunir todas as potências, que são em número infinito, em apenas uma que fosse

57 Teet., 144d9- 145a13. 58 Teet., 146b1-7. 59 Teet., 146c7-d2. A semelhança do erro de Teeteto com o de Mênon (Mên., 72a6), e o fato de ambos caírem em aporia, serve de base para que Cornford, como dissemos acima, veja na passagem sobre a maiêutica uma alusão à teoria da reminiscência, amplamente elaborada no Mênon. CORNFORD, 1979, pg. 27-29.

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capaz de designar todas as outras60. Entretanto, Teeteto acredita que não consegue responder à questão posta por Sócrates, sendo que Teodoro deve ter ajuizado mal sobre sua natureza. A princípio, ele até tinha oferecido com alguma tranquilidade uma tentativa de resposta; mas ela foi refutada por Sócrates e ele se encontra agora num espírito mais brando, como que admitindo que não sabe a resposta procurada. Este é o primeiro momento em que o jovem sofre os efeitos de uma pequena aporia: ele não sabe para que lado ir. Sócrates não o deixa desistir e o reanima, como antes já fizera, com uma fórmula que é mais do que usual em sua boca: “Sê corajoso” 61. Além disso, mostra que o problema não é fácil e a culpa não vem de Teeteto. O menino admite que, tendo ouvido algo a respeito dos temas tratados por Sócrates, já tentou descobrir uma definição para o conhecimento, e embora não tenha logrado nenhum sucesso, a questão ainda hoje o incomoda62. Pode-se supor a partir disso que ele acalentasse a ideia de um dia vir a conversar com o famoso filósofo, e por isso fosse treinando e se preparando para tal encontro; talvez quisesse lhe mostrar que não seria facilmente refutado como as outras pessoas. Em todo caso, certamente deve ter sido com ansiedade e grande expectativa – com um frio na barriga, para sermos bem preciso – que ele se encaminhou para junto de Sócrates depois de ter sido chamado pelo seu professor. Conquanto ele só expresse ingenuamente o que sente (pe/pon qa), Sócrates afirma que suas dores são dores de parto, o que mostra que ele não está vazio. Sócrates ainda conta algumas coisas sobre si mesmo, em tom de gracejo, supomos, como que para se tornar mais familiar e menos temido pelos adolescentes: diz que ele é o homem mais absurdo do mundo (a)t opwt ato/j) e que gera confusão (a)pore iÍn) no espírito dos

60 Teet., 147c7. Chapell discute o fato de Sócrates não aceitar definições dadas com auxílio de exemplos, contrapondo tal procedimento com a filosofia de Wittgenstein. CHAPELL, 2004, pg. 34-38. É interessante notar que, na fala do jovem Teeteto sobre a matemática, Platão evidencia mais uma vez que o menino tem tudo para ser o filósofo ideal. As disciplinas matemáticas que Teeteto cita quando fala de sua experiência com as potências – a progressão que vai da aritmética, via geometria plana, até a geometria dos sólidos e então alcança dialética – são exatamente as mesmas disciplinas que compõem o currículo do filósofo no livro VII da República. Teeteto ainda chega a dizer que deseja estudar com Teodoro, no futuro, astronomia, harmonia e cálculo, que são o restante do currículo, sem falar no fato óbvio de que ele está num ginásio (Teet., 145d1-3). Assim, a ligação deste diálogo com a República é mais do que clara e premeditada. SEDLEY, 2004, pg. 27; CHAPELL, 2004, pg. 30. 61 Teet., 148c9. Segundo José Trindade, este elemento dramático, pelo qual Sócrates encoraja o menino e às vezes Teodoro, abunda no Teeteto e é comparativamente raro em outros diálogos. SANTOS, 2008, pg. 6, n. 3. Isso pode servir como mais um indício do caráter protréptico da obra. 62 Teet., 148e.

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homens63. Teeteto se mostra informado sobre esse ponto, o que confirma a hipótese de que tivesse algum receio ou expectativa de se deparar com Sócrates. Todavia, tanto o jovem como as demais pessoas desconhecem o fato de que Sócrates é também parteiro, tal como o foi a sua mãe. Ele pede que o jovem não divulgue esse fato para ninguém e expõe o que seria a sua maiêutica. Convém salientar que o seu procedimento é diferente do que costuma ocorrer em outros diálogos. Aqui, Sócrates como que revela de antemão o que há de acontecer ao seu interlocutor pelo simples fato de entrar em contato com a sua absurdidade. Em outros lugares – como no Mênon, no Laques e no Banquete – são seus interlocutores que forjam metáforas e comparações a fim de tentar compreender qual é a essência da ação de Sócrates sobre suas almas; ele mesmo permanece silencioso ou então toma ironicamente o que lhe atribuem64. Agora é como se ele, mantendo sua intenção de levar o adolescente para fora da caverna através de um parto intelectual, precisasse as fases pelas quais o parturiente há de passar, com o fito de acalmá-lo e de torná-lo confiante, mais ou menos como o médico faz antes de uma cirurgia. Teeteto tem o privilégio de saber o que há de lhe acontecer ao longo do percurso argumentativo e experiencial que o conduzirá para mais perto do Sol. Além disso, Sócrates lhe apresenta com essa comparação a peculiaridade do método filosófico, que se aparta do matemático e do sofístico, dando ensejo para que o menino aclare seu horizonte mental e diferencie essas formas de saber. Ao invés de deduções e demonstrações, ou de longos discursos e improvisações brilhantes e enfeitadas, a filosofia lida, numa de suas partes essenciais, com operações doloridas na alma das pessoas, expurgando-as da presunção do saber e deixando que verdadeiros conhecimentos aflorem e venham à tona. Este é o cerne do método socrático de refutação, que consiste em destruir via ironia as opiniões mal formuladas que os seus companheiros de conversa sustentam, bem como o cerne da refutação irônica, similar a uma catarse, que também é utilizada pelo mais original dos sofistas65. 63 Teet., 149a9. Essa capacidade de Sócrates gerar aporia é proverbial. BOERI, 2009, pg. 237. 64 No Mênon, Sócrates é comparado por seu interlocutor a uma raia-elétrica e a alguém capaz de encantar e enfeitiçar as pessoas (Mên., 80a1-9). No Laques, Nícias explica o que Sócrates causa em quem conversa com ele (Laq., 188b4-6). E no Banquete, por fim, Alcibíades diz que Sócrates possui os mesmos poderes do sátiro Mársias, além de ser capaz de produzir delírios báquicos ou efeitos tão poderosos quanto os provocados pela mordida de uma víbora (Banq., 215b4; 215e). Tudo isso será mais bem estudado à frente. 65 Cf. Sof., 230b. “A “filosofia” que Sócrates aqui professa não é um simples processo teórico de pensamento: é ao mesmo tempo uma exortação e uma educação. A serviço destes objetivos estão ainda o exame e a refutação socrática de todo o saber aparente e de toda a excelência

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Sem querer discutir se isso pressupõe ou não a teoria da reminiscência, o fato é que sem dúvida Sócrates não acredita que está passando algum tipo de saber para seu interlocutor, senão que o está livrando de crenças ou, neste caso, ajudando-o a formulá-las com nitidez66. A passagem sobre a maiêutica se insere, assim, no escopo platônico de caracterizar o que seja a filosofia e o filósofo. Ela mesma é a condição metodológica, por assim dizer, para que Sócrates seja capaz de suscitar maravilhamento em seus ouvintes, ou seja, para que os torne aptos a filosofar. Por tal motivo, em termos de estrutura do diálogo, a afirmação sobre a origem da filosofia aparece logo depois do primeiro fruto de Teeteto ter nascido.

Midwifery is appropriate to a unique kind of problem – that which originates in feelings of wonder and perplexity (155c; cf. 148e) – and far from relieving that state of mind midwifery augments and transforms it. Perplexity and wonder occur when someone’s beliefs are suddenly shaken, when things long taken for granted are exposed to criticism; and in Socrates’ view this experience is characteristic of philosophy. As philosopher Socrates not only experiences wonder but induces it in others (149a)67.

Toda a exposição da arte maiêutica extrai seus elementos, por

analogia, do trabalho das parteiras e das crenças populares que circulavam sobre elas68. Assim, tais profissionais são mulheres que já tiveram filhos, mas que atualmente já não podem parir; elas não são estéreis, pelo fato de que a natureza humana não pode aprender uma técnica da qual não tem experiência69. Embora veladamente, Sócrates

(arete) meramente imaginária”. JAEGER, 2001, pg. 527. Para Jaeger o método socrático se faz de duas partes: refutação (elenchos) e exortação (protreptipkos). 66 A metáfora do parto mental, aliás, é algo comum em Platão, e aparece também no Banquete. BOERI, 2009, pg. 235; NIGHTINGALE, 2009, pg. 115-6. Segundo Trindade, Scolnicov considera a reminiscência e a maiêutica duas faces da mesma moeda. O próprio Trindade afirma que nada impede que se faça tal identificação. SANTOS, 2008, pg. 25, n. 29; pg. 55. 67 BENITEZ; GUIMARÃES, 1993, pg. 320. A admiração suscitada pela mudança de opiniões tem como base, no fundo, uma mudança de experiência: a passagem da ignorância inconsciente para a consciência da ignorância. Isso será visto nos próximos capítulos. 68 Chapell lista sete similaridades e quatro diferenças entre Sócrates e as parteiras. CHAPELL, 2004, pg. 42-43. 69 Teet., 149c1-2.

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admite aqui que ele mesmo já pariu alguma coisa em algum momento de sua vida, porque do contrário não poderia exercer seu ofício. Pelo menos tem de ter gerado a ideia que possui sobre o seu próprio modo de educar seus ouvintes. Significativamente, Ártemis, a irmã de Apolo, é a deusa protetora de tais mulheres e as auxilia nos partos. Não é improvável a tentativa platônica de apresentar com tal ideia uma forma feminina para Apolo, o deus que sempre apadrinha Sócrates em sua missão70. Da mesma forma que as parteiras reconhecem com facilidade uma mulher grávida, Sócrates reconhece as almas prestes a parir algum conhecimento. Tal como o filósofo, as parteiras lançam mão de certos remédios (f arma/kia), poções e encantamentos (e )p#/ dou sai) a fim de aumentar ou diminuir as dores do parto, levá-lo a bom termo ou expulsar o fruto da concepção 71. É talvez a afirmação mais clara de que Sócrates também emprega artifícios retóricos com a intenção de trazer à luz os saberes que seus ouvintes possuem sem consciência. Poções e encantamentos são palavras que fazem parte do léxico medicinal e, por extensão, do retórico; usá-las no final do século V e início do IV, quando Górgias ainda estava vivo, Protágoras ainda era lembrado e a tradição siciliana da retórica era espécie de moda, no mínimo significa fazer alusão a tais práticas72. Logo à frente, veremos quais são as variantes desses remédios que Sócrates emprega em seus interlocutores. Além disso, as parteiras também são excelentes casamenteiras, pois não apenas sabem cultivar e colher o fruto, como também escolher o tipo adequado de semente para cada terreno73. Como Sócrates falará explicitamente, isso quer dizer que ele pode recomendar a determinadas pessoas outros gêneros de estudos mais propícios às suas naturezas e, de resto, que ele também sabe conversar com cada um de uma maneira diferente: é retórico com Fedro, poético com Íon, empedoclesiano com Mênon, sofístico com Alcibíades. Apesar de todas essas semelhanças, a arte das parteiras é inferior à de Sócrates, porque ele precisa distinguir os frutos verdadeiros dos falsos, algo que não ocorre com as parteiras, que só presidem aos partos de crianças. Sócrates, à inversa, parteja homens e almas74. A sua superioridade está em que tem de examinar (b asani¿ze in) de todos os modos o que o jovem pariu, a fim de ver se

70 Cornford lembra que tanto Ártemis quanto Leto são associadas à filosofia no Crátilo, já que possuem caráter casto e sóbrio como o do filósofo. CORNFORD, 1989, pg. 141-2. 71 Teet., 149c9-d3. 72 Cf. Plebe, 1978. O Mênon, como veremos, é outra evidência dos poderes retóricos de Sócrates. 73 Teet., 149d5-8. 74 Teet., 150b6-9.

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tem em mãos quimeras, falsidades ou algo legítimo75. Ele percebe quando alguém tem a sua alma prestes a ser iluminada por novo saber que deseja aflorar; também percebe se a pessoa apenas sofre modificação passageira, se apenas se instrui com o intuito de ser ainda melhor no interior da caverna, como os sofistas ensinavam. Com base nisso, vê-se ser correta a acusação que lhe fazem, segundo a qual nunca apresenta ideias próprias, mas se limita a interrogar as outras pessoas 76. A divindade o impede de conceber e o incita a partejar os outros. Ele afirma não haver sequer um pensamento que tenha dado à luz, o que, como já notamos, é contraditório, uma vez que as estéreis não podem ser parteiras. Aqueles que convivem com ele, e que são auxiliados pelo deus, progridem às mil maravilhas (qau mast o\n oÀson), tanto segundo o seu juízo quando no juízo de outrem77. A melhoria dos amigos de Sócrates é perceptível e evidente, pelo simples fato de que ele, fazendo com que cultivem e desenvolvam o elemento racional de sua alma, leva-os a se aproximarem cada vez mais de sua verdadeira humanidade. Eles nunca aprendem nada de Sócrates, mas descobrem (e u(ro/nt ej) e geram (t e ko/nt ej) por si mesmos inúmeras coisas belas. Muitos que desconhecem esse processo se afastam de Sócrates antes do devido; acabam germinando frutos prematuros ou estragam os outros, e com o tempo parecem ignorantes aos próprios olhos e aos olhos de outrem. É sem dúvida o caso de Alcibíades, de Crítias e de Aristides, filho de Lisímaco, citado nominalmente no texto. Sócrates às vezes os recebe de volta, quando seu gênio lho permite, mas às vezes os ignora 78. Todos os que convivem com ele sofrem (pa /sx ou si), por fim, o mesmo que as parturientes: andam prenhes de dores noite e dia, plenos de aporia e, pode-se adicionar, num estado fora do comum, com seus humores alterados e sua percepção do mundo transmudada. Sócrates sabe despertar tal dor com sua técnica. Ele também assume o papel de casamenteiro e encaminha algumas pessoas a certos especialistas e professores, como Pródico79.

75 Este exame que Sócrates realiza é também o que ele faz de modo geral com as pessoas. Nícias dá um testemunho, no Laques, de acordo com o qual já foi examinado várias vezes por Sócrates (u(po\ Swkra/touj b asani¿z esqai), até mesmo com algum prazer (Laq., 188b4-6). Analisaremos melhor esse fato no terceiro capítulo, pois o ser examinado por Sócrates é também uma espécie de experiência (pa/sxein). 76 Teet., 150c5-7. 77 Teet., 150d4. 78 Teet., 150e-151a. 79 Teet., 151b5. No Laques, temos um exemplo desse fato. Ao longo do diálogo, Laques expressa mais de uma vez a opinião segundo a qual Lisímaco e Melésias devem consultar

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A sua longa exposição faz com que Teeteto fique ainda mais dócil e receptivo. Sócrates percebe que o jovem tem algo na alma pronto para sair; pede que se entregue aos seus cuidados e responda às questões que lhe propor. Ele não deve se aborrecer se tiverem de jogar fora algo inútil, como o fazem os muitos que se zangam com Sócrates e até o agridem, por não perceberem que só age por bondade. Como Teeteto não se arroga nenhum saber, não será necessária nenhuma refutação forçada, mas antes um encaminhamento para uma educação filosófica80. É somente depois de saber o que está acontecendo consigo, portanto, que ele se aventura a continuar a conversa. O menino já tem agora alguma noção do que seja a filosofia: sabe que ela, como a matemática, busca termos gerais que se aplicam a uma multiplicidade de coisas, mas sabe que também utiliza o método maiêutico para se desenvolver pelo menos em uma de suas fases essenciais. Agora pode então ocorrer a conversa sobre o conhecimento.

1.3. A primeira definição de conhecimento e a admiração

A conversa propriamente dita entre Sócrates e Teeteto começa quando o menino, depois de algumas hesitações, é incentivado por Sócrates a dar uma definição de conhecimento. Este é o primeiro rebento que Teeteto gera depois de já ter noção do método socrático. Acreditando que o sabedor sente que sabe, ele define o conhecimento como sensação.

Teeteto: Realmente, Sócrates, exortando-me (p a ra keleu o me /no u) como o fazes, fora vergonhoso não esforçar-me para dizer com franqueza o que penso. Parece-me, pois, que quem sabe alguma coisa sente o que sabe. Assim

Sócrates a respeito da educação de seus filhos; ele mesmo o faria, se ainda tivesse filhos com idade para isso. Laques não percebe que não há idade para aprender, e admite ser um daqueles homens que não têm tempo para a educação dos filhos, tão absorvidos andam com os negócios públicos (Laq., 202c2-6). Nícias concorda nesse ponto, e esta é, ao longo da discussão, talvez a única concordância dos dois generais: ambos julgam que os meninos estariam em boas mãos se sua educação fosse confiada a Sócrates. Ele afirma que sempre quis deixar Nicérato, seu filho, aos cuidados de Sócrates, mas que este sempre se recusou, enviando o menino para outros mestres (Laq., 220c7-d4). No fundo, ele não compreende que Sócrates não quer discípulos, mas amigos. Vale notar, ainda, que Sócrates aceitou educar Aristides, o filho de Lisímaco, como dito acima; mas o menino foi-se embora antes do devido. 80 SANTOS, 2008, pg. 58.

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o que se me afigura neste momento é que conhecimento não é mais que sensação 81.

Trata-se de algo bem ingênuo e espontâneo, e deve ser um

resquício mal digerido de educação sofística, haurida junto de seu mestre Teodoro, que lhe veio à mente82. Contudo, o importante é que por essa definição sabemos que o jovem Teeteto se encontra plenamente no interior da caverna: ele crê que todas as coisas que percebe pelos seus sentidos, longe de serem pálidos fantasmas, são coisas reais que possuem existência e constituem o fundamento do conhecimento que temos do mundo. Ele ainda não saiu da esfera das sensações e está longe de participar da revolução espiritual, levada a cabo por Platão, pela qual o mundo inteligível passou a ser considerado mais real e verdadeiro do que o sensível; é ainda um Grego no sentido clássico, totalmente preso à exuberância dos sentidos e da vida terrena83. Será através desse diálogo com Sócrates que o menino começará a vislumbrar algumas luzes vindas do exterior da caverna. Sócrates, talvez pressentindo o que passava pela cabeça de Teeteto, conecta a definição apresentada com as doutrinas dos mobilistas, dos sensacionistas e, principalmente, com os escritos de Protágoras84. Este sofista era bastante famoso por essa época, e se o diálogo se passa no ano de 399, não fazia muitos anos que morrera. Sócrates começa então a destrinçar a doutrina do sofista, na crença de que um sábio não diz as coisas sem mais nem menos. Primeiramente, ele ressalta a relatividade das sensações, mostrando que cada pessoa sente de maneira diversa a temperatura do

81 Teet., 151d7-e3. 82 No Sofista Teeteto dá mostras de que leu o livro de Protágoras sobre as artes. Sof., 232d9-e. “Plato naturally starts with the position of commom sense, that knowledge comes to us from the external world through the senses”. CORNFORD, 1979, pg. 29. 83 Hannah Arendt comenta, a propósito, a alegoria da caverna como o clímax de tal revolução: “Quem quer que leia a alegoria da Caverna na República à luz da história grega logo percebe que a periagoge, a viravolta que Platão exige do filósofo, constituía na verdade uma inversão da ordem do mundo homérico. Não é a vida após a morte, como no Hades homérico, mas a vida comum da terra que é situada numa “caverna”, num submundo; a alma não é a sombra do corpo, mas o corpo é que é a sombra da alma; e o movimento fantasmal e sem sentido atribuído por Homero à existência inerte da alma no Hades após a morte é agora comparado às ações sem sentido de homens que não deixam a caverna da existência humana para contemplar as ideias eternas visíveis no céu”. ARENDT, 1997, pg. 305. Sobre a questão dos sentidos em específico, Nietzsche tem comentário muito perspicaz, que mostra como Platão se opôs à maneira comum de pensar a evidência sensorial e a inverteu. Cf. NIETZSCHE, 2005, pg. 19-20. E Reale também exemplifica de várias maneiras o abismo que separa Platão de Homero – e de todos os que não se entregaram à filosofia, portanto – em questões fundamentais. Cf. REALE, 2002, pg. 80. 84 Teet., 152a5.

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vento: a uns ele parece frio, ao passo que a outros parece quente. De tal fenômeno eles concluem que nada há em si e por si mesmo: uma vez que as sensações não são ilusórias e refletem o que é, aquilo que elas refletem é contraditório e sem uma natureza em si mesma, que faça dele sempre a mesma coisa85. O fato de não haver nada em si e por si mesmo faz com que a designação exata de algo não seja possível, algo que também aparece no diálogo Sofista, a saber, que todos os nomes podem se conectar livremente entre si86. Assim, quando dizemos ser algo grande, devemos levar em conta que é também pequeno, dependendo de quem o percebe ou com o que é comparado. Tal postura pressupõe o fluir contínuo da realidade, algo acatado por vários filósofos e poetas, com exceção apenas de Parmênides. Sócrates apresenta outras provas de que o movimento é a causa de tudo o que devém e parece existir, ao passo que o repouso o é da corrupção e do não-ser. Do ponto de vista material, o calor e o fogo, que geram tudo o mais, são gerados pela fricção; o mesmo vale para o ponto de vista biológico, pois também é dessa fonte que procedem os seres vivos87. Do ponto de vista fisiológico, o corpo se deteriora sem ginástica e sem movimento; e a alma, sob a perspectiva psicológica, perde o saber que possuía sem estudo e exercício88. Por fim, no que toca aos astros, aos deuses e aos homens, tudo se conserva enquanto o sol e as esferas celestes se movem. Há, portanto, a apresentação de uma cosmologia, de uma psicologia e de uma biologia do movimento. Sócrates detalha ainda mais seu argumento através da análise de como percebemos as cores. A cor branca, por exemplo, não é nada de estável, em si e por si mesma, que exista dentro ou fora de nossa vista; ela é o resultado do encontro do olhar com o movimento próprio da cor. Aquela cor que designamos como existente não é o que atinge o percipiente nem o que é atingido, mas algo intermediário e particular a cada indivíduo. Por isso cada cor se apresenta de maneira diversa a mim ou a um cão89. Outrossim, para a própria pessoa as cores não aparecem da mesma maneira, dado que sempre estejamos a mudar. Parafraseando Horácio, poderíamos dizer: res mutantur nos et mutamur in illis.

Apesar de tais comentários e evidências, Sócrates fareja certas objeções a esses raciocínios, e teme que ele e Teeteto tenham dito coisas

85 Teet., 152d. 86 Sof. 252d. 87 Teet., 153b. 88 Teet., 153c. 89 Teet., 154a.

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estranhas e risíveis. Parece que Sócrates tenta pôr algumas regras ao fluir da realidade, mostrando que ele não é tão arbitrário nem tão onipresente. Antes disso, contudo, ele se vale de um exemplo para mostrar que a própria matemática pode ser relativa em certo sentido, ou então que as coisas podem mudar sua caracterização conforme sejam comparadas com isso ou com aquilo. Seis ossinhos, pois, ultrapassam quatro ossinhos justamente pela metade; porém, se comparados com doze, são ultrapassados na metade. Não é apenas o mais e o menos que aqui se modificam e passam a qualificar ora uma coisa, ora outra; é também a noção de metade, que primeiramente se faz com o número dois e, em seguida, com o número seis. Depois desse exemplo, Sócrates decide retomar toda a questão, temendo que tenham cometido algum erro e alegando que possuem tempo de sobra, o que por si só demonstra como se trata de uma conversa filosófica, que se mantém livre diante das exigências temporais90. Ele elenca três proposições que parecem ser verdadeiras, se bem que vão contra o exemplo dos ossinhos e da estatura, evocado logo abaixo. A primeira: nada fica maior ou menor enquanto se mantém igual a si mesmo. A segunda: uma coisa continuará igual, se nada lhe acrescentarem nem lhe tirarem. E a terceira: o que não existia antes, formou-se ou foi formado91. As três proposições são aceitas por eles e parecem óbvias, mas contendem com os exemplos mencionados, justamente por postularem certa idealidade permanente que é refratária ao completo fluir. Segundo outro exemplo, agora mais cotidiano, Sócrates é presentemente maior do que Teeteto; em um ano, contudo, será menor, sem que tenha diminuído sua estatura ou se modificado, mas pelo simples fato de Teeteto haver crescido. Assim, sem que se altere, ele será o que antes não era. E isso acontece em inúmeros outros casos92.

É neste momento preciso que Teeteto se admira e Sócrates, logo em seguida, profere a frase que serve de Leitmotiv ao presente trabalho.

Teeteto: Mas pelos deuses, Sócrates, admiro-me além do natural (u(p erf u w ½j w ¨j qa u ma /z w) que as coisas possam ser assim (t i¿ p o t ' e) st iì t a u=t a), e às vezes (e)ni ¿o t e), quando verdadeiramente volto os olhos para elas

90 Teet., 155a. 91 Teet., 155a3-b2. 92 Teet., 155b4-c7. “Uma realidade com tais características deixa Teeteto mergulhado em espanto”. SANTOS, 2008, pg. 29.

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(w ¨j a )lh qw ½j ble /p w n ei¹j a u)t a), chego a ter vertigens (s ko t o d iniw ½). Sócrates: Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou (t op a /z ein) erradamente a tua natureza (p eriì t h=j f u/s ew ¯j so u). Sobretudo (ma /la) é própria do filósofo, pois, esta experiência (p a /qo j), o admirar-se (t o \ qa u ma /z ein). Outro não é o princípio (a)rxh\) da filosofia senão este. Ao que parece, não foi mau genealogista quem disse ter Íris ( åI rin) nascido de Taumante (Q a u/ma nt o j). Porém já compreendes a relação entre tudo isto e a proposição que atribuímos a Protágoras? Ou não?93.

A admiração suscitada em Teeteto, no contexto da análise de sua natureza e de suas aptidões intelectuais, permite que Sócrates enuncie o primeiro juízo favorável em relação ao jovem – juízo mais do que significativo, porque descobre em sua ingênua e veemente perplexidade a origem e o governo da filosofia.

No mínimo três pontos precisam ser enfatizados para que tal afirmação seja devidamente compreendida. Em primeiro lugar, cumpre considerar que a admiração é provocada intencionalmente por Sócrates, para quem tais argumentos e discussões são familiares e conhecidos. A sua atuação sobre a alma quase virgem do jovem é condição imprescindível para que aconteça a experiência de maravilhamento; em nenhum momento ele perde as rédeas da conversa, senão que a conduz ao sabor de sua retórica protréptica e elêntica: pega uma frase que o menino de há muito “conhecia” pela rama, desenvolve-a e alastra suas conseqüências até apresentá-la de maneira completamente nova e inusitada, como se fosse a primeira vez que Teeteto escutasse a famosa sentença de Protágoras ou divisasse todo o conteúdo nela implícito. O próprio efebo admite que não é sempre que ele é capaz de ver as coisas desse modo: em algumas ocasiões (e )ni¿ot e), quando as observa de tal maneira que elas se apresentam em sua propriedade e desocultam sua verdadeira natureza (wj a)lh qw½j) aos seu olhos (b le /pw n), é que se sente cair em vertigens e se admira. Sócrates sem dúvida contribui para que ele possa, agora, ver as coisas dessa maneira94. Nestas ocasiões a 93 Teet., 155c8-d7. Traduzimos o original para enfatizar certas partes. 94 BURNYEAT, 1990, pg. 19. A associação da resposta de Teeteto com a frase de Protágoras também não é nada evidente, e revela como Sócrates possui intenções não-manifestas. SANTOS, 2008, pg. 59.

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sua admiração se diferencia da admiração corriqueira que todas as pessoas e ele mesmo experimentam ao longo da vida; não é admiração de rotina que podemos sentir vagamente por uma pessoa ou por um evento que presenciamos, mas um gênero de admiração que possui algo de especial e se coloca acima e extravasa (Ãp™r) a naturalidade (fÀsiv) do admirar-se correntio. Em verdade, de tal modo e com tal intensidade ele se sente admirado, que é como se seus pensamentos e suas percepções girassem (dineÀw) até deixá-lo tonto e desorientado em meio a um rodamoinho (d°nj) impreciso, nebuloso e escuro (skçtov), ainda que essa escuridão e essa nebulosidade emanem, como veremos, do excesso de luz que Sócrates o ajuda ver. Essa sua queda vertiginosa atesta a perda de familiaridade com as coisas que ele supunha conhecer e dominar; quando sofremos tonturas e vertigens, de fato, tudo o que fazemos normalmente e que é para nós o mais banal e próximo, aquilo para o que nem damos atenção – caminhar, falar com as pessoas, sentar-se etc. – torna-se estranho, insólito e difícil de ser realizado, como se a sua natureza tivesse sido momentaneamente alterada ou como se fosse a primeira vez que tivéssemos de passar por isso. Essa vertigem da admiração tem estreitos liames com a falta de experiência – assidum mirabile non est, diziam os latinos – pois em ambos os casos as coisas se nos apresentam mais facilmente em sua forma original, livre de pré-concepções e em toda a sua nudez ontológica, razão por que nos aparecem como esquisitas e maravilhosas. Aliás, seja dito de passagem que a ingenuidade e a pureza do olhar infantil, que também sempre lidam com o novo e o nunca antes experimentado, constituem variação possível do maravilhamento. A alma da criança tende a se impressionar além da conta com coisas e eventos considerados normais e sólitos pelos adultos; as suas primeiras aventuras no mundo são plenas de caracteres maravilhosos e extraordinários. É provável que infância só termine, pois, quando a criança começa a pensar que sabe alguma coisa e deixa de se admirar com o que experimenta; até este momento, todavia, ela se admira com tudo e tem a propensão mais original para a filosofia.

Essa mudança das sensações – o modo diverso como as coisas se apresentam para nós – é o segundo ponto que precisa ser sublinhado. Já dissemos que o jovem Teeteto se encontra imerso na mais plena escuridão da caverna; logo, a sua admiração tem como raiz, entre outras coisas, o conflito de sensações que ele é induzido por Sócrates a perceber. Não que no nível noético a admiração seja impensável; todavia, uma grande parte dela toma suas forças do fato de que o mundo

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sensível por si só é algo contraditório, que suscita nossa admiração em virtude da dificuldade que temos de compreendê-lo sem contradições95. No presente caso isso é ainda mais profundo do se costuma pensar. Teeteto se encontra no domínio do empírico e, apesar de estudar matemática, mal e mal suspeita da existência de outros seres com natureza diversa, que estejam acima da sensibilidade; ergo, a sua admiração tem para ele mesmo caráter universal, uma vez que se refira a tudo o que supõe existir – é a admiração, em uma palavra, pelo fato de as coisas serem o que são (t i¿ pot ' e)st iì t au=t a). Assim foi que a maioria dos intérpretes compreendeu essa passagem de Platão, no sentido mais universal e mais abstrato possível: a admiração pelo fato de que o ser é.

Justamente essa admiração, surgida no homem que se põe diante do Todo e pergunta qual é a sua origem e o seu fundamento, é a raiz da filosofia. E se é assim, a filosofia é, estruturalmente, ineliminável, justamente porque é ineliminável a admiração diante do ser, do mesmo modo como o é a necessidade de satisfazê-la.96.

Em terceiro lugar, deve ser levado em conta que tal início e tal

governo aqui mencionados não têm conotações históricas, mas psíquicas ou anímicas, ou seja, relativas à alma de alguém. Platão não está a falar de como a filosofia surgiu nas colônias gregas da Ásia Menor ou, como alguns dos antigos acreditavam, de como ela surgiu entre as castas sacerdotais do Egito. Esta é claramente a perspectiva aristotélica. Conquanto isso não deva ser completamente afastado, aqui ele está a descrever, pois, como o processo de caminhada em direção ao sol começa no interior de cada indivíduo, e por isso filosofia é vista como um evento psíquico que acontece a alguém de maneira meio livre ou arbitrária, isto é, como uma experiência (páthos) que não depende de

95 Na introdução já citamos a acertada interpretação de Victor Goldschmidt. No capítulo quinto isso será discutido com maiores detalhes. 96 REALE, 1994, pg. 399, grifo do autor. Reale não faz muita diferença nesta passagem entre Platão e Aristóteles; para este último a admiração é eliminável, e para Platão ela não o é não porque a filosofia seja infinita, mas porque a visão que temos do Bem, o conhecimento supremo, precisa ser sempre reconquistada. Segundo Albert: “La filosofia viene concepita qui come uma “ascesa” e tale ascesa non prosegue all’infinito, ma termina laddove é raggiunta la luce del vero giorno”. ALBERT, 1995, pg. 65. Há, assim, uma meta final para o filósofo platônico. Contudo, ela sempre deve ser recuperada, pois que, sendo teórica, implica verdadeira peregrinação ao ser. ALBERT, 1995, pg. 84; NIGHTINGALE, 2009, pg. 4.

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nossa vontade, embora possa ser intencionalmente provocada em nosso íntimo pelo método de ensino socrático. Aristóteles, com efeito, difere substancialmente de Platão, apesar de concordar em alguns pontos97. O tema da admiração surge na Metafísica quando o filósofo está a discutir as características gerais da sabedoria que busca conhecer os primeiros princípios e as causas de tudo quanto existe. É depois de ressaltar vários apanágios dessa ciência que ele menciona a admiração, usando dela para provar que os homens que aspiram à ciência do universal, sem esperar disso nenhum resultado senão o próprio conhecimento, começaram a filosofar para fugir da ignorância (fe u/ge in th\n aÃgnoian), assim como ainda fazem nos dias de hoje. Primeiramente eles se admiraram com aquelas dificuldades que lhes estavam mais à mão (t a\ pro/x e ira t w½n a)to/pw n), até progredirem pouco a pouco e se admirarem com os fenômenos da lua, do sol e dos astros. A admiração se enlaça assim com a aporia e a ignorância; quem se admira e entra em aporia (a)porw½n kaiì qau ma/zw n) reconhece que ignora, e então se esforça para fugir da ignorância sem buscar nenhuma utilidade senão o próprio conhecer. Nesse quesito particular os filósofos têm algum parentesco com os amigos dos mitos, pois os mitos também são uma coleção de coisas admiráveis, além de constituírem as primeiras explicações que os homens aventaram para os mais variados fenômenos que os deixavam perplexos98. Aristóteles percebe na admiração uma prova de que a filosofia e a mitologia não se prestam para produzir coisa alguma: elas não visam suprir nenhuma necessidade material do homem, tampouco contribuir para o seu bem-estar; servem apenas para

97 Todas as nossas reflexões sobre Aristóteles baseiam-se nas declarações de intenção que ele faz ao longo de sua obra filosófica, e não naquilo que ela foi ou é efetivamente. Estamos ciente de que ele pode ser compreendido por um viés menos dogmático e mais aporético, como a crítica do século XX (Owen, Irwin, Berti, Aubenque) o mostrou. Todavia, mantemos a crença na profunda diferença entre a sua concepção de filosofia e a de Platão, dando razão a Karl Albert: “Interpretare la filosofia platônica come una sorta di metafisica in senso aristotelico, significa fraintendere Platone”. Antes disso Albert notara que o fato de ter o termo metafísica surgido num círculo peripatético fez com que se atribuísse a Platão visão similar da filosofia, o que é um erro. Assim, a sua conclusão é de que as objeções que Heidegger faz à metafísica, por exemplo, só seriam válidas para o caso de Aristóteles, não para o de Platão, de Plotino, de Agostinho e de outros. ALBERT, 1995, pg. 97. Cushman parece ser até mais radical, pois pensa que, ao passo que a filosofia é um modo de vida para Platão, para Aristóteles ela é “simply knowledge of truth”. CUSHMAN, 2007, xviii. 98 Esta é uma das passagens em que Aristóteles como que presta elogio aos mitos, reabilitando o que eles têm de similar à filosofia. Ele faz o mesmo na Poética, ao tomá-los como o cerne da tragédia. Contudo, no próximo livro da Metafísica ele parece mudar completamente de opinião, ao dizer que não vale a pena investigar com seriedade aqueles que pensaram miticamente. Poét., 1450a, 38-9; Metaf., 1000a18-19.

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saciar a sede de conhecimento que todos os seres humanos temos como desejo natural.

Que, depois, ela [a sapiência] não tenda a realizar coisa alguma, fica claro a partir das afirmações dos que por primeiro cultivaram a filosofia. De fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem (ka iì nu=n k a iì t o \ p rw ½t o n), por causa da admiração (t o \ qa u ma /z ei n), na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a enfrentar problemas sempre maiores, por exemplo, os problemas relativos aos fenômenos da lua e aos do sol e dos astros, ou os problemas relativos à geração de todo o universo. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração reconhece que não sabe (o iãet a i a )g no eiÍ n); e é por isso que também aquele que ama o mito (f ilo /m u qo j) é, de certo modo, filósofo: o mito, com efeito, é constituído por um conjunto de coisas admiráveis (e)k qa u ma si¿w n). De modo que, se os homens filosofaram para se libertarem da ignorância, é evidente que buscavam o conhecimento unicamente em vista do saber e não por alguma utilidade prática. E o modo como as coisas se desenvolveram o demonstra: quando já se possuía praticamente tudo o de que se necessitava para a vida e também para o conforto e para o bem-estar, então se começou a buscar essa forma de conhecimento99.

Até aqui, pois, Aristóteles concorda com Platão. A sua

divergência – poderíamos até dizer a sua contribuição – se manifestará no ponto em que ele afirma que a filosofia deve conduzir os homens ao fim da admiração, para um estado de certeza. Antes disso, porém, ele já tentara fundamentar com bases históricas a antropologia filosófica que acabou de apresentar, sugerindo duas condições sócio-políticas para que os homens pudessem se deixar tomar pela admiração e buscar conhecer o universal em si mesmo: a liberdade e o ócio. Enquanto estavam

99 Metaf., 982b11-24.

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demasiado absorvidos pela ânsia de suprir suas necessidades vitais, estando assim sujeitos não só à natureza, mas também a outros homens, toda a forma de conhecimento que buscavam tinha algum fim prático e não era o puro desejo de conhecer e de fugir da ignorância. O conhecimento como fim em si mesmo só pôde ser procurado por homens que também eram fins para si mesmos. Destarte, foi preciso o surgimento de uma parcela de pessoas livres, cujas necessidades já estavam saciadas, para que ciências “inúteis” como a matemática – e também a filosofia – pudessem nascer, o que aconteceu precisamente com as castas sacerdotais no Egito. Aristóteles não chega a afirmar que os Egípcios foram os primeiros filósofos, mas dá a entender que eles, com seus escravos e seu extenso desenvolvimento histórico, realizaram o primum vivere, permitindo que sobrasse aos seus sacerdotes o deleite do deinde philosophari.

Daí resulta que, quando já se tinham constituído todas as artes desse tipo, passou-se à descoberta das ciências que visam nem ao prazer nem às necessidades da vida, e isso ocorreu primeiramente nos lugares em que primeiro os homens se libertaram (e) s xo /la sa n) das ocupações práticas. Por isso as artes matemáticas se constituíram pela primeira vez no Egito. De fato, lá era concedida essa liberdade (sxo la /z ei n) à casta dos sacerdotes 100.

A divergência entre os dois filósofos está no papel que a

admiração desempenha para a filosofia. Para Platão, a filosofia não deve necessariamente eliminar a admiração suscitada por qualquer evento. No seu desenvolvimento ela nos leva a diferentes níveis de conhecimento, que correspondem a todos os percalços que devemos enfrentar até que deixemos a caverna e possamos ver a luz do Sol, e certamente faz com que deixemos de nos admirar com algumas coisas. Para alguém que já atingiu a esfera da suprassensibilidade, por exemplo, a existência de vários conflitos e contradições no nível empírico já não deve ser fonte de grande perplexidade, e por isso é com a sua habitual bonomia que Sócrates avisa Teeteto de que em inúmeros outros casos encontramos a

100 Metaf., 981b20-25. O elogio da falta de uso da filosofia e da liberdade que ela pressupõe tem, pois, fortes componentes ideológicos, que valorizam certas características da aristocracia grega. Ele faz parte da estratégia geral, perpetrada no século IV por alguns autores, de criar o conceito de teoria. NIGHTINGALE, 2009, pg. 15.

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relatividade das sensações. Contudo, mesmo depois que atingimos a visão divina do ser e aprendemos a grande lição101 podemos vir novamente a nos admirar. É somente à custa de muito esforço, da perpétua reconquista de si mesmo e da lembrança do que viu que o filósofo consegue se alçar para a região pura do Sol. Em virtude do mundo sensível, a sua tendência é antes a de ser tragado de volta para as sombras da caverna, onde ele pode novamente se admirar com aquilo que já conheceu em outra ocasião102. Para Aristóteles, ao contrário, a posse da ciência própria do filósofo faz com que ele seja transportado para um estado melhor e também oposto àquele donde partiu, isto é, ele adquire certa impassibilidade admirativa (‡qaumasti¿a) diante do que anteriormente o deixava perplexo: o conhecimento da causa de algo, em suma, extermina a admiração. Isso acontece de forma progressiva desde as coisas mais ínfimas até as supremas. O filósofo, que almeja o conhecimento universal de tudo e que o obterá ao tomar posse da “ciência divina”, será alguém que já não se admira com nada, pois conhece as causas gerais de todos os fenômenos possíveis, a despeito de não os conhecer um por um em particular. Em termos comportamentais, este ideal do filósofo aristotélico se assemelha a certos traços dos estoicos e mesmo de Demócrito, todos os quais pregavam a imperturbabilidade admirativa, apesar das profundas diferenças que existem entre eles103.

101 Fedr., 248b4; Rep., 504e4. 102 São conhecidas as razões, dadas no Fédon, que continuamente atrapalham a ascensão do filósofo ao reino das ideias. O corpo, aqui, deve ser entendido como a natureza sensível em geral, toda ela sujeita ao devir, que sempre nos prende no interior da caverna. “Por culpa sua ainda [do corpo], e por causa de tudo isso, temos preguiça de filosofar. Mas o cúmulo dos cúmulos está em que, quando conseguimos de seu lado obter alguma tranquilidade, para voltar-nos então ao estudo de um objeto qualquer de reflexão, súbito nossos pensamentos são de novo agitados em todos os sentidos por esse intrujão que nos ensurdece, tonteia e desorganiza, ao ponto de tornar-nos incapazes de conhecer a verdade. Inversamente, obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si ser-nos-á necessário separar-nos dele e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos”. Féd., 66d2-e2. Guthrie considera que essa dupla vertente de racionalismo e puritanismo, tal como se mostra neste diálogo, deve-se ao fato de Platão estar tratando apenas da alma racional, tendo eliminado da psique as emoções e apetites físicos. GUTHRIE, 1978, pg. 234. Cornford acredita que o Fédon traga à tona a veia ascética de Platão, de modo muito distinto do que ocorre no Banquete. Para ele isso se deve ao mesmo fato apontado por Guthrie, sendo errôneo atribuir a Platão uma moral de restrição e negação. CORNFORD, 1978, pg. 119-21. Dodds, por fim, salienta que aquilo que é atribuído ao corpo, nesse diálogo, será na República internalizado e outorgado à alma. O sofrimento e o mal passam então a vir do conflito psíquico e não de nossa parte corpórea. DODDS, 1978, pg. 213. 103 “Já Demócrito louva a ‡qaumasti¿a (athaumastía) e a ‡qambi¿a (athambía: o não maravilhar-se); para o sábio estóico, a coisa mais sublime é nunca nos alterarmos por nada, e

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Por outro lado, a posse dessa ciência deve nos levar ao estado oposto àquele que nos encontrávamos no início das pesquisas. Como dissemos, todos começam (a Ãrxo nt a i) por admirar-se (a )p o \ t o u= qa u ma / z ein) de que as coisas sejam tais como são, como, por exemplo, diante das marionetes que se movem por si nas representações, ou diante das revoluções do sol e da incomensurabilidade da diagonal com o lado de um quadrado. Com efeito, a todos os que ainda não conhecem a razão disso, causa admiração que entre uma e outro não exista uma unidade mínima de medida comum. Todavia é preciso chegar ao estado oposto (t o u)na nt i ¿o n) e também melhor (t o \ a Ãm e ino n), conforme afirma o provérbio. E assim acontece, efetivamente, para ficar nos exemplos dados, uma vez que se tenha conhecido a causa: nada provocaria mais admiração num geômetra do que se a diagonal fosse comensurável com o lado. Fica estabelecido, portanto, qual é a natureza da ciência buscada, e qual é o fim que a nossa pesquisa e toda a nossa investigação devem alcançar104.

Tal objetivo preenchia igualmente o cerne do programa

científico arquitetado por Aristóteles. Na própria justificativa dos estudos necessários à realização de tal programa, o admirável de que se compõe o mundo é utilizado para explicar por que ninguém deveria se Cícero e Horácio louvam o nil admirari”. Snell ainda comenta em nota que Plutarco teria atribuído a Pitágoras o mhde\n qauma/z ein. SNELL, 1991, pg. 39. Ele poderia ainda ter citado o elucidante testemunho de Marco Aurélio, que escreve: “Quão risível e estranho não é aquele que se admira (o( qauma/z wn) por qualquer um dos eventos da vida”. Meditações, XII, 13. Esta ideia de que a filosofia nos deva conduzir através da certeza a certo apaziguamento da admiração, mutatis mutandis, retorna em Wittgenstein. Há nele qualquer coisa de estoico e aristotélico, mesmo que, ao invés de certeza, fale em Klarheit. A conhecida metáfora da mosca na garrafa expressa-o bem: quando tiver sido realizada a terapia da linguagem, a mosca sairá da garrafa e o enfeitiçamento (Bewilderment) linguístico que a trancafiou terá fim, dando lugar a um estado em que não seremos acossados por nenhum problema filosófico. Cf. WITTGENSTEIN, 1999, §109; §133. Podemos dizer que, mesmo no ideal científico de objetividade e ausência de paixões ou interesses, permanece algo desse impulso acima explicado; é o que Nietzsche diagnosticou como a permanência do ideal ascético no interior da ciência. 104 Metaf., 983a11-23.

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desagradar infantilmente ao pesquisar o mais vil dos seres vivos: porque em todos os seres físicos existe algo de admirável (t i qau mast o/n)105. Assim, com a pesquisa científica tendo descoberto o porquê de todas as coisas que nos deixam admirados, instaurar-se-ia o estado do “Nil admirari”, cuja versão hodierna, privada de todas as aprazíveis nuanças horacianas, é mais bem conhecida sob o nome de Entzauberung, o desencantamento do mundo106. Somente dentro de perspectiva fortemente historicista pode-se pensar esse suposto fim geral da admiração. Por conseguinte, quando Hannah Arendt chega a comentar que a ubíqua funcionalização da sociedade moderna, depois da ruptura com os antigos valores, talvez nos tenha privado do espanto diante do que é como é, ela está interpretando a admiração ou o espanto em sentido aristotélico, como algo que pode acabar assim que se atinge a certeza. Giovanni Reale segue linha de pensamento similar, fortemente inspirada em Edgar Morin, quando afirma que a irrestrita crença na onipotência do método científico elimina o sentimento de admiração de que falavam os Gregos, o mesmo sentimento que originou a própria ciência107. Todos esses autores, ao pensarem no fim da admiração, estão assumindo a interpretação aristotélica e mesmo demonstrando que o projeto que a sustinha foi em certa medida realizado. Aliás, na Pós-modernidade costuma-se propagar em alto e bom som o grand récit segundo o qual morreram todos os grands récits. Como já dissemos, para Platão sempre fica aberta a possibilidade da admiração; e mesmo no caso de Aristóteles, no que toca aos homens em particular e não à construção de um saber coletivo, pode-se dizer que cada um há de se admirar ou não conforme o grau de conhecimento que possui.

Essas são algumas das diferenças que se interpõem entre Platão e Aristóteles. Pensamos ser importante frisá-las, porque geralmente as duas posições são tomadas como iguais. Outro quesito em que eles são diferentes, pois, é no espectro de sentidos possíveis que atribuem à palavra admiração: enquanto que Aristóteles se detém muito mais na

105 De Part. animalium., 645a17. “Philosophy springs from primitive wonder, and moves towards the abolition of wonder, towards understanding the world so well through and through that no room is left for wonder at things being as they are”. ROSS, 2005, pg. 162-3. 106 É isso o que acontece quando o projeto iluminista se concretiza: “Portanto, nenhum mistério há de restar e, também, nenhum desejo de revelação”. ADORNO, 2000, pg. 119. Nightingale chega a propor, como solução para o desencantamento contemporâneo, uma retomada do conceito grego de teoria, desta vez voltado para o meio ambiente, com pessoas que se tornariam “eco-theorists”. A nosso ver, tal proposta é um eufemismo ideológico. NIGHTINGALE, 2009, pg. 266-268. 107 ARENDT, 1972, pg., 68; REALE, 2002b, pg. 38; 199.

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dialética entre a aporia e a certeza final, Platão também percebe o caráter reverencial da admiração, isto é, a sua ligação com a abertura para aquela região suprassensível que ele não hesitou em chamar de divina108. Isso será mais bem entendido quando, abaixo, falarmos de Íris. Convém comentar agora o caso de Aristóteles, que é antes uma estetização do conteúdo temeroso, religioso ou reverencial que se encontra na experiência grega (e também na nossa) de maravilhamento109. O trecho que citamos sobre As partes dos animais já o demonstra parcialmente, mas há também o que é dito na Poética e na Retórica. No primeiro desses tratados ele afirma que o maravilhoso (t o\ qau masto/n) deve ser realizado nas tragédias, sendo que na epopeia, justamente porque a ação não se desenrola ante os nossos olhos, até é admissível o irracional (t o\ aÃlogon) donde o maravilhoso provém. Em todo caso, o efeito do maravilhoso é sempre bem-vindo porque é agradável (h (du /), e prova disso é o fato de que, ao narrarem alguma coisa, todos os homens a amplificam para que granjeie maior interesse110. Na Retórica, por sua vez, ele retoma a tópica da admiração (t o\ qau ma/ze in) para relacioná-la novamente com o aprendizado e o compreender (t o\ manqa/ne in). Ele assevera que na admiração está contido o desejo de saber e que aquilo que admiramos é eo ipso desejável (t o\ qau masto\n e)piqu mh t o/n). Tudo o que se refere a esse gênero de prazer também está entrelaçado com o aprender e o admirar: a pintura, a escultura e o tudo o mais que é bem imitado (t o/ te mimou/me non), ainda que o objeto de imitação careça por si mesmo de agrado. Do mesmo modo acontece com os acontecimentos imprevistos ou com a fuga e a salvação de perigos, dois tipos de eventos que suscitam nossa admiração por sua própria natureza maravilhosa (pa/nt a ga\r qau mast a\ t au=t a)111. Ele cita de novo a admiração no

108 SLEZÁK, 2005, pg. 71. 109 Antes de lermos o livro de Andrea Nightingale, pensávamos que Aristóteles havia tornado literário (poético e retórico) o maravilhoso. O termo estetização define melhor esse fato. Nightingale se detém na análise do tratado Sobre as partes dos animais, e parece ignorar a Poética e a Retórica. NIGHTINGALE, 2009, pg. 262ss. Não seria impossível dizer que Aristóteles mantém a admiração ligada ao divino. Ela nos conduz à sapiência, que é divina em dois sentidos: porque tem como objeto coisas divinas, uma vez que o próprio Deus é um princípio; e porque Deus, que é onisciente, possui Ele mesmo a sapiência, o conhecimento universal de tudo. Metaf., 983a5-10. Mas seria levar o argumento longe demais, e esquecer, de resto, que Aristóteles partilha do deus dos geômetras, o qual não exige nenhuma reverência nem suscita nenhum temor. 110 Poét.., 1460a12-18. 111 Ret., 1371a.31-b12

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terceiro livro, ao falar do estilo, dizendo que importa dar a este caráter estrangeiro (c e /nhn), porquanto os homens admirem o que vem de longe e a admiração causa prazer112.

Essas considerações estéticas, assim como muitas outras de Aristóteles, tiveram forte influência sobre Longino e sobre a história da estética vindoura113. O tema mesmo da admiração foi ressuscitado em inúmeras ocasiões ao longo da história da filosofia, apesar de receber em cada caso matizes os mais variados. Na Idade Média, a apropriação da filosofia aristotélica fez com que alguns filósofos, como Alberto Magno, vissem na admiração a origem da filosofia. O Renascimento também retomou essa ideia, usando dela para fundamentar o saber vindo à luz com as novas ciências. Há uma longa tradição italiana que, respaldada na autoridade aparentemente concordante dos dois maiores filósofos antigos, buscou mostrar que o homem podia agora, com a mecânica e com a matemática, criar maravilhas similares às da natureza114. Mesmo na reformulação do programa científico aristotélico, levada a cabo por Bacon, a admiração mantém o seu papel e a sua ligação umbilical com o desejo de saber115. Com Descartes, no umbral da filosofia moderna, ela foi incluída na lista de paixões primordiais, num claro contraste contra a filosofia tomista. Foi ele também que, sem se libertar da concepção aristotélica, notou com precaução que o excesso de maravilhamento, aquele que não chega a atingir a certeza do conhecimento, poderia nos conduzir a um uso pervertido da razão ou então à simples curiosidade116. Isso serviu para que Pascal e outros cristãos pudessem criticar a fatuidade da curiosidade e diferenciá-la do profundo temor envolvido na admiração, postura que foi novamente defendida, já no século XX, por Heidegger, que resgatou a tópica da admiração e lhe ofereceu interpretação própria117. Heidegger também usou as afirmações de

112 Ret., 1404b10-12. 113 NIGHTINGALE, 2009, pg. 266. 114 TORRINI, 1984, pg. 263. 115 NIGHTINGALE, 2009, pg. 253. 116 DESCARTES, 2004, pg. 142; 151. Para a diferença entre Descartes e Aquino: RENAULT, 2008, pg. 289; TROTTMANN, 2008. Os modernos em geral mantém a mesma postura. Vico, por exemplo, associa o espanto com a ignorância no mesmo sentido de Descartes e de Aristóteles: “O espanto é filho da ignorância; e quanto maior o efeito admirado, tanto mais, proporcionalmente, cresce o espanto”. VICO, 1984, pg. 41, §35. Pode-se dizer que a conclusão desses pensadores sempre justifica a verdade do omne ignotum pro magnifico. 117 TORRINI, 1984, pg. 270. Nightingale vê em Nietzsche um detrator do conceito grego de teoria e de admiração. NIGHTINGALE, 2009, pg. 255. A maneira como Pascal entende a admiração visa, no fundo, demonstrar mais uma vez como o homem é um ser posto em meio ao abismo do nada e à imensidão do todo. A admiração tem papel fundamental na tarefa de fazer com que nos demos conta da natureza divina do mundo. PASCAL, 1073, §72, 51-6. É

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Platão e de Aristóteles num de seus textos mais tardios. Traduzindo páthos por Stimmung, conceito que já expusera em Ser e Tempo, ele concluía que a admiração era a maneira como os filósofos gregos puderam se manter em correspondência (das Entsprechen) com o ser do ente (zum Sein des Seiendes)118.

Antes dele, porém, Schopenhauer perfilhou a afirmação platônico-aristotélica e lhe deu novo significado condizente com a sua filosofia. É interessante comentá-lo mais detidamente por sua originalidade. Também para ele o affectus philosophicus por excelência é o mirari; mas ele o compreende como algo que nasce em virtude de dois fatores: o desgarre da inteligência em relação à Vontade, somente possível no homem, e o fato de que este mundo que atualmente é poderia perfeitamente não ser. O homem consegue filosofar porque nele, diferentemente do que ocorre em outros seres vivos, a Vontade atingiu tal grau de objetivação que pode contemplar a si mesma e se admirar perante as obras que, enquanto Natureza, é capaz de produzir. Isso varia consoante a excelência intelectual de cada pessoa, e quanto maior esta for, mais facilmente nos quedaremos perplexos diante de coisas tidas por banais e comuns. Não seria possível esse espanto num mundo constituído por substância absoluta, tal como imaginou Espinosa, do qual seríamos mero acidente119. Se tudo fosse necessário, nem a nossa existência nem o mundo nos seriam enigmáticos, e viveríamos numa concórdia tão perfeita como a que reina no mundo animal. O pasmo nasce da constatação de que a não existência do mundo é tão possível quanto o seu existir atual, e é até mesmo desejável, em certo sentido, se

um sentimento desse jaez, aliás, principalmente ligado à contemplação da natureza e das demais maravilhas do universo, que garante algum sentido à prova físico-teológica da existência de Deus. Kant afirma que somos conduzidos à admiração muda quando observamos vários dos atributos do mundo presente, razão pela qual passamos a crer em um ente que o tenha criado. Todavia, ele demonstra que esse sentimento não é o bastante para provar a existência de Deus. KANT, 1999, pg. 383. Heidegger comenta a questão da curiosidade em Ser e Tempo, e ainda que não queira lhe atribuir nenhum tom pejorativo, não foge à forte influência cristã, agostiniana e pascalina. Ele cita explicitamente o conceito grego de admiração: “A curiosidade nada tem a ver com a meditação que admira os entes, o qauma/z ein”. HEIDEGGER, 2005, pg. 233. 118 HEIDEGGER, 1956, pg. 84; HEIDEGGER, 2005, §29. No Discurso de Reitorado, todavia, ele afirma que a theoría era o modo pelo qual os Gregos se mantinham em correspondência com o Ser. HEIDEGGER, 1997, pg. 96-7. Analisamos algumas dessas questões em recente artigo, onde mostramos que a angústia substituiu para Heidegger, na sua filosofia, a posição que a admiração ocupava no pensamento grego. Cf. ENGLER, 2010, pg. 71. 119 De acordo com Abbagnano, Kierkegaard possui também a opinião de que é impossível que alguém se admire com algo necessário; só há admiração onde há devir. ABBAGNANO, 2003, pg. 18.

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consideramos as misérias por que temos de passar120. Mais do que a dualidade da Vontade, porém, e mais do que a sensação do não-ser, o que possibilita e motiva a filosofia é uma estupefação dolorosa haurida diretamente do espetáculo de sofrimento e mal moral que o mundo nos oferece todos os dias. A admiração não possui para Schopenhauer conotações alegres e prazenteiras; ele concebe o assombro inicial (Verwunderung) que origina a filosofia como algo que implica enigma e desconforto. Este enigma e este desconforto, se por um lado nascem da contemplação das misérias do mundo, brotam por outro da própria existência humana, que carrega em si a insolubilidade do problema do mundo. Neste sentido que o homem é animal metafísico. Assim que ele percebe a própria existência, reconhece a possibilidade de seu não-ser, apresentado como morte, e do próprio não-ser do mundo enquanto tal. De resto, olha para os infortúnios do dia-a-dia e, crendo que nada provenha do nada, pensa que até mesmo a dor deve ter sua razão de ser. A pergunta metafísica por antonomásia, portanto, que engendra todas as demais, que carregamos conosco e que é tanto mais vívida quanto mais formos conscientes e inteligentes, se resume no seguinte: por que o mundo existe e é cheio de descalabro? Ainda que haja tom biologista nessa concepção de Schopenhauer, não se lhe pode negar certo antropocentrismo. É somente o homem que tem ciência da própria infelicidade e que busca consolo para isso das mais diferentes maneiras. Esse consolo representa algumas das maiores realizações espirituais de que a humanidade pode se orgulhar: os sistemas metafísicos e as religiões121.

É bem sabido como tais ideias influenciaram Nietzsche e Freud, principalmente no que se refere à origem da religião. Contudo, não convém que alarguemos ainda mais o panorama histórico e filosófico sobre a admiração. Apenas citamos Aristóteles para mostrar que, ainda no âmbito da filosofia grega, já havia diferenças na maneira de conceber a origem da filosofia, outro quesito onde se revela a grande diferença que paira entre os dois maiores filósofo clássicos. Os outros filósofos 120 SCHOPENHAUER, 1997, pg. 284. 121 SCHOPENHAUER, 1960. Apresentamos panorama superficial das ideias de Schopenhauer, tão-somente com o intuito de revelar a originalidade de sua reinterpretação. Como dissemos, ele não diferencia a concepção de admiração de Platão da concepção de Aristóteles, conquanto tenha o costume de louvar o primeiro filósofo e criticar o segundo. SCHOPENHAUER, 2003, pg. 37. Em outro escrito, ao falar da velhice, ele exalta como uma de suas benesses a convicção séria e imediata do caráter vão e da insignificância de todas as magnificências do mundo, o que tem por resultado o nil admirari horaciano, privilégio do homem idoso a cujos olhos desapareceram todas as quimeras. Isso é bem típico, aliás, de todos aqueles que conseguiram anular a Vontade. SCHOPENHAUER, 2002, pg. 271.

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demonstram que a tópica da admiratio reapareceu sob diversas vestimentas ao longo da história. Mas, feitas estas observações, queremos agora retornar a Platão.

1.4. Thaûma, Taumante e Íris Para compreender bem a afirmação feita por Sócrates, é

importante analisar algumas das palavras que nela figuram, bem como os dois seres mitológicos mencionados. Faremos isto agora. Apenas no final do trabalho, no quinto capítulo, retomaremos a digressão sobre o filósofo e o diálogo Teeteto de modo geral.

O verbo qaum�zw carrega em si diversos significados: admirar-se, espantar-se, surpreender-se, assombrar-se etc. Com ele se formam as seguintes expressões usuais em várias línguas: uma maravilha de se ver (qaÂma ¸d™sqai; mirabile visu; a wonder to behold); não admira que (qaÂm� g@ oÇd™n; no wonder that; kein Wunder, dass; il n’est pas étonnant), ou admira que (it´s wonder that; ein Wunder, dass;), entre outras. Em Heródoto ele aparece também numa expressão muito característica: ficar atônito, cair em admiração ou em estupor (%n qðmati eºnai)122. Por sua vez, o substantivo qaÂma se presta para designar qualquer coisa que, por alguma razão, não é vista habitualmente ou possui características tais que a colocam acima do normal, seja por sua beleza, por sua raridade, por sua origem etc. Ele significa: maravilha, prodígio, milagre e, num sentido mais geral, tudo aquilo que for capaz de causar admiração. É assim que tal palavra acaba nomeando também as marionetes ou as artimanhas dos vigaristas e charlatães, que são literalmente chamados em grego de fazedores de milagres (qaumatopoiçv). Temos em português algumas palavras

122 História, I, 68, 5. A admiração tem papel importantíssimo em Heródoto. Nas primeiras linhas de seu livro ele declara que seu objetivo é justamente narrar os feitos imponentes e maravilhosos (eÃrg a mega/la te kaiì qwmasta) dos Gregos e dos Bárbaros, para que não caiam no olvido nem fiquem isentos da glória merecida. Em muitas ocasiões a sua narrativa estrutura-se tendo por guia o maravilhoso. Quando fala sobre o Egito, por exemplo, o autor decide se alongar um pouco mais porque tal país encerra mais maravilhas (pleiÍsta qwma/sia) do que os outros (II, 35, 2-4). A gramática do admirável abunda em suas páginas talvez mais do que em Homero. É óbvio que aqui se pode constatar outro ponto em que Heródoto se diferencia de Tucídides, o qual busca se orientar pelos fatos e até se desculpa se a ausência de coisas fabulosas não soar agradável aos ouvidos de seus leitores. Hist. Pelop., I, 22, 41-3.

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formadas diretamente a partir do vocábulo grego, que também denotam seu significado essencial: taumaturgo, que designa o indivíduo capaz de realizar prodígios, isto é, os santos e os milagreiros em geral; e taumatrópio, brinquedo criado no século XIX que, pela rotação de um disco preso a um barbante, com um desenho em cada fase, acaba criando (tropía) uma maravilha (thauma) de se ver, algo bem diferente do que o olhar comum encontra no dia-a-dia. O radical da palavra naturalmente dá origem a adjetivos, a substantivos e a advérbios.

Como seria de se esperar, o uso de tal vocábulo em Platão abrange praticamente todo o espectro semântico que ele possui na língua grega. No Mênon, Sócrates afirma que os Tessálios eram um povo admirado por suas riquezas e pelo seu domínio da arte equestre123. Ele designa aqui um tipo bem comum de admiração, aquela que poderíamos chamar de cívica, social ou pública, que é atribuída a uma pessoa ou a um povo que admiramos pela realização perfeita de algum mister, seja ele comercial, artístico, bélico etc. Trata-se de algo ainda vivo em muitas línguas: podemos falar, por exemplo, que a França é um país admirado no exterior pela excelência dos vinhos que produz. Esse gênero de admiração também se aplica a uma pessoa em particular, com alguma variação, para denotar como ela se sobressai em determinada atividade. Ainda no mesmo diálogo, Sócrates relata com certa ironia as coisas fantásticas que Cleofanto, filho de Temístocles, era capaz de fazer (qau mast a\ h)rga/ze t o): ficava em pé no cavalo e desse jeito conseguia arremessar uma lança124. O sentido aqui é de algo impressionante, que ocasiona admiração pela extrema perícia apresentada. É assim que ainda falamos de atletas ou de artistas: “Guimarães Rosa tem estilo admirável”. Platão também emprega os adjetivos admirável e maravilhoso para falar de algo muito belo, ou então de algo que, por ser tão bom ou tão desejável, quase se torna improvável de acontecer. Sócrates fala na Apologia que a morte seria vantagem maravilhosa, caso não passasse de um sono profundo (qau ma/sion ke/rdoj); e, ao narrar o mito do Fédon, afirma que são vários e admiráveis (po lloiì kaiì qau mast oiì) os lugares da

123 Mên., 70a6. Uso similar se encontra no Teeteto, quando Sócrates afirma que eles admiravam (e)qauma/z omen) Protágoras, como se fosse um deus (wÐsper qeo\n), por sua sabedoria (e)piì sof i¿#). Teet., 161c8. 124 Mên., 93d4. Na Apologia há um uso aproximado: Sócrates diz que viu pessoas “obrarem milagres” (qauma/sia de\ e)rg az ome/nouj) – expressão usual na língua grega – quando eram julgadas, em razão de seu medo da morte. Ou seja, elas eram agora capazes de fazer aquilo que em circunstâncias normais não seriam. Apol., 35a5.

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Terra125. Em ambos os casos se designa algo maravilhoso por sua natureza ou por sua extraordinária beleza.

O uso comum ou pejorativo também se faz presente nos Diálogos. Na República, Platão descreve a caverna e afirma que, por haver um muro que separa as pessoas presas dos objetos reais e da luz do Sol, ela se parece neste quesito com o teatro de marionetes (w Ðspe r t oiÍj qau mat opoioiÍj), em que também há um muro por trás do qual atuam os artistas126. No último livro desse diálogo, o mesmo termo é empregado para designar arte de prestidigitação (qau matopoii¿a), equiparada à pintura com sombreados (skiagraf i¿a), já que em ambas as circunstâncias ocorre certo tipo de magia que confunde a percepção sensível que temos dos objetos127. O mesmo uso pode ser visto significativamente no Sofista, quando Platão fala, no final do diálogo, que a raça e o sangue do sofista estão em usar da arte da produção para produzir ilusões através do discurso (e )n lo/goij to\ qau mat opoiiko\n)128. Isto constitui mais uma prova do que já afirmamos acima, a saber, que a admiração pode ser suscitada em nós por artifícios retóricos. A outra evidência, que será comentada no próximo capítulo, está no fato que a admiração que Teeteto experimenta é um páthos, palavra largamente utilizada em grego para se designar o efeito que uma peça retórica desperta em quem a escuta. A diferença desses tipos de admiração, contudo, está em que este último é meramente estético. Apesar de provocar espécie de reviravolta na pessoa que o sente, já que a modifica momentaneamente, ele não chega a conduzi-la para fora da caverna, pois não tem como embasamento todas as demais razões apresentadas pela filosofia. Certo que ele até pode apresentar aos seus ouvintes algumas luzes. No máximo, porém, se resume a um lusco-fusco, porque é apenas a mudança completa de vida, a verdadeira ascensão, que nos doa o Sol por

125 Apol., 40d1; Féd., 108c6. Há um emprego parecido no Lísis, quando Ctesipo descreve meio ironicamente a voz admirável (f wnv= qaumasi¿#) com que Hipotales canta para seduzir o jovem Lísis (Lís., 204d6). E no Fedro, pois, Sócrates declara que seu interlocutor é divino e admirável em razão do gosto e do fervor anormais que demonstra pelos discursos (Fedr. 242a7-8). Também na República, pois, Giges se admira ao contemplar as maravilhas que encontra no ventre da Terra. Rep., 359d5-6. 126 Rep., 514b5. Nas Leis (644d-e), Platão usa o mesmo sentido quando afirma que o homem é uma marionete (qaÂma) nas mãos de Deus. Segundo Dodds, trata-se de uma afirmação que esclarece o que Platão pensa sobre a natureza humana. DODDS, 1978, pg. 215-6 127 Rep., 602d3. 128 Sof., 260d2.

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inteiro129. No Fedro, por exemplo, o interlocutor de Sócrates fica admirado com o segundo discurso do filósofo. Sócrates também deseja naquela ocasião retirar o jovem do interior da caverna. Seu discurso, contudo, tem toda uma fundamentação filosófica, e será seguido por longa conversa em estilo maiêutico130.

Além desses empregos, outros dois merecem atenção. Platão utiliza com certa frequência um vocativo derivado do adjetivo qaum�siov, que constitui algo bem curioso. Em várias oportunidades Sócrates interpela seus interlocutores dizendo: “ó admirável” (w Õ qau ma/sie). A princípio poder-se-ia cogitar a hipótese de que Platão estaria dando indícios de que a pessoa assim nomeada, por ser ela mesma maravilhosa, tem propensão para se dedicar à filosofia. É o que se pode pensar, por exemplo, da passagem em que o jovem Teeteto é invocado por tal expressão131, ou então de quando Alcibíades a aplica a Sócrates132. O mesmo vale para o trecho em Platão diz que Dionísio II, alguém que sabemos não ter propensão nenhuma para a filosofia, não era homem admirável (mh\ qau mast o\j w Ôn aÃnqrw poj)133. Contudo, trata-se apenas de coincidência e há um motivo que nos faz descartar tal hipótese: o vocativo é também aplicado a pessoas que, de acordo com Platão, não são filósofos nem provavelmente podem ou querem sê-lo, como é o caso de Trasímaco134. À parte esse significado, o outro que merece atenção tem que ver com o sentido de reverência já mencionado acima, que acompanha o ato de teorizar e ver as formas. Quando Diotima descreve, por exemplo, o estágio final de visão do Belo que o filósofo atinge, ela afirma:

Aquele, pois, que até esse ponto tiver sido orientado para as coisas do amor, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já chegando ao ápice dos graus do amor, súbito (e)c a i¿f nh j) perceberá algo de maravilhosamente

129 Em verdade, Platão afirma na República que os sofistas só ensinam as doutrinas já partilhadas pela maioria: como se estivessem diante de um grande animal, eles sabem como irritar, apaziguar e mover a seu bel-prazer a besta. Rep., 493b. É importante ressaltar que, em nossa apresentação dos sofistas, tentamos reproduzir o que Platão pensava desses mestres da palavra, e não o que eles realmente foram. Sabemos que, do ponto de vista histórico, é possível criar imagem menos pejorativa da sofística. 130 Fedr., 257c2. 131 Teet., 151c6. Sócrates também chama Críton pelo mesmo vocativo. Crít., 48b3. 132 Banq., 222e8. O mesmo fala Fedro de Sócrates. Fedr., 247c5. 133 Carta VII, 345c. Por alguma razão a tradução brasileira ignorou esta negativa. 134 Rep., 337b7.

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(t i qa u ma st o \n) belo em sua natureza, aquilo mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas anteriores, primeiramente sempre sendo, sem nascer nem perecer, sem crescer nem decrescer (...)135.

Essa passagem prova que a admiração, pois, não é apenas evento primordial que acontece apenas uma vez e nunca mais retorna, mas algo que faz a filosofia nascer e ainda permanece presente em seu auge. E ademais mostra como Platão conserva o sentido de temor religioso, de reverência e de pasmo que desde sempre se fez presente nessa palavra136. Mas outras razões ainda podem ser dadas para solidificar tal ideia. A personagem Íris, como abaixo será visto, é explicitamente a mensageira que faz a união entre o divino e o terreno, papel que Platão atribui à filosofia. Além disso, o uso homérico da palavra qaÂma, que certamente era familiar a Platão e que, mesmo com a passagem do tempo, conservou-se em certa medida na língua grega, denota precisamente algum tipo de ser, de objeto ou de evento que realiza a intermediação entre as polaridades do divino e do humano. Assim, o escudo de Aquiles é uma maravilha de se ver, justamente

135 Banq., 210e2-211a2. O emprego do advérbio “súbito” (e)cai¿f nhj) e o contexto da argumentação, nessa importante passagem do diálogo, fazem lembrar o momento que antecede a digressão epistemológica da Carta VII e que contém a crítica à escrita da filosofia. Para explicar porque Dionísio cometeu um erro ao tentar escrever sobre aquilo que o filósofo lhe havia comunicado, Platão afirma que não é possível falar desse assunto como se fala das outras disciplinas, sendo que, apenas depois de longa e íntima convivência (pollh=j sunousi¿aj), brota repentinamente (e)cai¿f nhj) na alma uma luz que se alimenta a si própria e que gera a compreensão do tema. O ponto mais alto do Platonismo, assim, permanece incomunicável e deve ser experimentado por cada pessoa em particular. Carta VII, 341c4-d2. Cornford comenta que essa intuição da essência descrita no Banquete pode refletir uma experiência que Platão tinha em momentos privilegiados. Como ela não era apenas intelectual, continha em si aspectos tanto religiosos quanto metafísicos. CORNFORD, 1978, pg. 127-8. Rosen insiste no caráter profético da passagem, tomando em conta o contexto do diálogo, e pensa que a palavra “maravilhoso” é sinal de que o que é visto nessas ocasiões não pode ser expresso verbalmente. ROSEN, 1987, pg. 269. Jaeger também declara a importância da escolha consciente que Platão faz do ritual de mistagogia. JAEGER, 2003, pg. 736. Todos esses comentadores ignoram a relação que apresentamos com a Carta VII. Cushman recorda dessa associação e se utiliza dela para falar da predominância da visão, em Platão, como modo de apreensão da realidade. CUSHMAN, 2007, pg. 216. Lebrun, por sua vez, crê que essa passagem seja a única em que Platão descreve uma intuição que nos coloca imediatamente em posse do objeto visado. LEBRUN, 2006b, pg. 400. 136 Nightingale analisa brilhantemente a mesma passagem do Banquete. “This experience of wonder – what I call “Platonic wonder” – accompanies the vision of the Form. It includes owe, reverence and astonishment, and is therefore quite different from the perplexed form of wonder”. NIGHTINGALE, 2009, pg. 259.

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porque se trata de um objeto humano adornado com qualidades divinas; e o mesmo se dá com a cidade dos Feácios, que é vista por Ulisses através da névoa divina que Atená lançou sobre ele137.

As páginas acima quase tornam desnecessário que argumentemos a favor da tradução de qaum�zw por admiração ao invés de espanto, palavra que se popularizou no meio acadêmico por provável influência de Heidegger138. A palavra admiração tem muito a seu favor: além de ter sido consagrada pela longa tradição que, escrevendo em latim, escolheu-a para falar do mesmo tema, ela mantém a conotação visual que não só está presente no verbo grego, como também desempenha papel de inconfundível e óbvia relevância na filosofia platônica como um todo. Com efeito, o verbo qaum�zw se liga semanticamente a qe�omai e, portanto, às palavras visão (q™a) e teoria (qewr°a)139. Do ponto de vista semântico, assim, torna-se

137 PRIER, 1989, pg. 96-7. Prier relata que em Homero a palavra eºdov, que Platão usa para descrever aquilo que o filósofo vê na contemplação, era um por si mesmo um objeto instigador da admiração. PRIER, 1989, pg. 84. Não é errôneo pensar, assim, que a visão das formas é sempre um evento taumático. Usos similares no grego mais recente, que comprovam a permanência, na experiência de maravilhamento, de certa reverência e certo temor religioso, descrevendo o estado daqueles que presenciam o numinoso, podem ser constatados nos Evangelhos. Em Lucas (8, 25), as pessoas sentem medo (fobhq™ntej) e se admiram (e)qau/masan) ante um milagre, perguntando quem seria Jesus, que é capaz de comandar os ventos e água. O mesmo ocorre quando Cristo retira o demônio do corpo de um mudo, que imediatamente começa a falar (Lucas, 11,14). O povo então se admira (kaiì e)qau/masan éi íxloi). Ainda na Grécia clássica se pode encontrar esse sentido. Nas Bacantes, Eurípedes utiliza em mais de uma ocasião a palavra thaûma para designar todos os feitos portentosos que começam a ocorrer desde que o deus do vinho chegou a Tebas. Bacantes, 449, 667, 1063. 138 No texto em que comenta o trecho do Teeteto (Que é isto – a filosofia?) Heidegger utiliza a expressão Das Erstaunen, que o tradutor brasileiro verte por “espanto”. Nas Contribuições à filosofia, por sua vez, ele usa a expressão Das Erschrecken, que denota melhor a noção de temor. HEIDEGGER, 1956; Idem, 2006. 139 Divergem os autores quanto às etimologias dessas palavras. A etimologia de thaumázo é o indo-europeu dhǎo, que significa admirável, surpreendente, espantoso, assombroso. Andrea Nightingale diz que o significado mais literal de theoría é “assistir a um espetáculo”. Contudo, afirma seguir os autores que veem na teoria algo simultaneamente sagrado e espetacular. NIGHTINGALE, 2009, pg. 4, nota 3; pg. 45. Karl Albert pensa que a primeira parte desse substantivo não tem que ver com espetáculo, mas sim com deus (theós), e por isso diz que theoría significa “servir a um deus” (custodire dio), tal como fazem outros autores. ALBERT, 1995, pg. 80. Prier relata a ligação estreita entre thaûma e theaésthai, verbo donde derivam as palavras espetáculo (théa), teatro (théatron) e outras; ele afirma que a admiração governa a visão e que, muitas vezes, é engendrada pela presença do divino. PRIER, 1989, pg. 82-5. Chantraine aceita as associações de Prier e, quanto à etimologia de theoría, afirma que a noção de espetáculo não parece essencial à primeira vista, já que a palavra se aplica originalmente a uma função religiosa. Ele cita como possível a ideia de “observar um deus”. CHANTRAINE, 1999, pg. 425; 434. Gadamer, por sua vez, engloba nessa palavra o teatro, a contemplação dos

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bastante esclarecedor dizer que a filosofia começa com a admiração, prossegue com a contemplação teórica e alcança seu auge na visão do ser, ou então simplesmente que ela busca contemplar os aspectos inteligíveis, as formas (¸d™a, eºdov), outra palavra com forte cariz visual. O mesmo se diga de quando Platão afirma que os filósofos são amantes do espetáculo da verdade140. O verbo mirari do latim e a palavra admiratio são mais fiéis aos nomes gregos do que espanto, que se origina no latim medieval (ex-pavere). Além de perder as características visuais, tal vocábulo até expressa certo temor exagerado (pavor), que não condiz com a natureza corajosa do filósofo. Esse seu matiz de temor é talvez a única de suas vantagens, juntamente com seu emprego no português. Mas isso também pode ser encontrado na admiração: tal palavra possui vínculo etimológico com o milagre (miraculum), o momento em que o divino se apresenta e provoca o temor religioso e a reverência, e ainda pode ser usada no vernáculo em todas as ocasiões em que se usa o verbo espantar-se. Aliás, o termo espanto não consegue dar conta daquilo que acima denominamos o sentido comum ou pejorativo da palavra qaÂma em grego, ao passo que, relacionados à admiração, temos os adjetivos mirabolante e

astros e as embaixadas festivas e religiosas. GADAMER, 2001, pg. 36. Independentemente do que nos ensina a filologia, a experiência grega mostra que o teatro, as delegações religiosas, a visão dos deuses e a admiração reverencial eram fenômenos interligados, algo que Platão simplesmente adotou para a filosofia. De acordo com Snell: “Pois, se para Platão e Aristóteles a vida teórica e contemplativa é mais importante do que a vida prática e eleva o homem acima das coisas terrenas, essa “teoria” contém aspectos de um sentimento religioso que remonta ao qauma/z ein homérico”. SNELL, 199 1, pg. 37. 140 Rep., 475e4. Tou\j th=j a)lhqei¿aj, hÅn d' e)g w, f iloqea/monaj. A ideia da contemplação dos espetáculos remonta a uma antiga concepção pré-socrática de filosofia. Sabe-se que Pitágoras, perguntado sobre qual seria o propósito da vida humana, disse que era a observação do céu. Anaxágoras também respondeu algo parecido quando questionado sobre a mesma questão. REALE, 1993, pg. 401. Cícero relata outra anedota sobre Pitágoras. Leon, admirado com a novidade da palavra filosofia, perguntou a Pitágoras quem eram os filósofos e em que se diferenciavam das outras pessoas. Pitágoras respondeu que a vida humana era como um espetáculo: alguns homens vinham para tal festa a fim de participar dos jogos e serem honrados pela multidão; outros, para vender artigos variados e ganhar dinheiro; e os filósofos, por fim, eram aqueles homens que não buscavam aplausos ou lucro, mas compareciam à festa apenas por amor ao espetáculo, observando o que era feito e como era feito. Esses homens não são escravos do dinheiro nem da glória, pois a contemplação e compreensão das coisas (contemplationem rerum cognitionemque) coordena todos os seus esforços. Tusc., V, 9. A anedota também é referida por Diógenes Laércio. Vidas, VIII, 8. Ortega y Gasset usa dessa afirmação para dizer que Platão entreviu aqui a teoria segundo a qual toda a nossa vida brota de uma tonalidade emotiva radical. ORTEGA, 2007, pg. 72; 90. Nightingale nota o importante fato de que tal afirmação, intimamente ligado ao conceito de teoria, faz dos personagens República filósofos, já que também estavam contemplando o festival em honra da deusa Bêndis. NIGHTINGALE, 2009, pg. 78.

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mirífico, que traduzem com maior fidelidade o grego qaumatopoiçv. Ainda poderíamos citar a nossa conhecida expressão “obrar milagres”, que é versão literal do grego qau mast a\ %rg�zesqai, e a expressão “as maravilhas” (qaÀmata), que provém do latim mirabilia141.

A última observação sobre essa palavra é mitológica. Na passagem que estamos analisando, Platão menciona Taumante, personagem da mitologia grega que foi pai de Íris. Trata-se de um dos deuses marítimos primordiais elencados na Teogonia de Hesíodo142. Embora não possua mito particular, sabe-se que era filho de Ponto e Geia; casou-se com Electra, uma das ninfas filhas de “Oceano de profundo fluir”, e foi progenitor de Íris e das Harpias. É provável que ele personifique o assombro que as pessoas sentiam em relação aos fenômenos do mar, razão por que também foi reverenciado como deus das nuvens, dos nevoeiros e das chuvas marítimas143.

Taumante não parece ter significação especial para a compreensão da concepção platônica de admiração e de filosofia, além do que foi dito acima sobre a palavra com o mesmo étimo do seu nome. A compreensão do papel de sua filha Íris, por sua vez, é algo sobremodo importante para os presentes propósitos. Íris – virgo Thaumantea, como Ovídio a chamou – é a personagem da mitologia grega que, juntamente com Hermes, exerce o papel de mensageira dos deuses. Praticamente todas as mitologias possuem um personagem que exerce o mesmo mister: Mercúrio na romana, Garuda na indiana e Hermodr na nórdica. O seu trabalho consiste em levar as mensagens dos deuses para os seus protegidos humanos, bem como em fazer o caminho inverso. Isso é bem exemplificado pela sua representação pictórica, a qual a dispõe usando um véu que, ao ser atingido pelo sol, reflete as sete cores do arco-íris. Ela também é vista como o arco-íris mesmo, a ponte que conecta o Céu com a Terra, outro símbolo constante em diversas concepções mitológicas. No Gênesis, por exemplo, depois do episódio do dilúvio, Deus fala que há de pôr no Céu um arco para significar a aliança entre ele e os homens; na Escandinávia há a ponte Byfrost e no Japão, a ponte flutuante do Céu. Segundo Junito Brandão, trata-se de um símbolo existente do Irã à África e das Américas à China144. O arco-íris assim significa a chegada, a proximidade ou a presença de Deus, mesmo significado de quando aparece sobre a cabeça de um anjo para

141 POIRION, 1982, pg. 4. 142 Teogonia, 265-269. 143 GRIMAL, 1997, pg. 430; BRANDÃO, 1997, pg. 403. 144 BRANDÃO, 1986a, pg. 235.

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testemunhar que se trata de emissário divino. Dessa identificação, de resto, provavelmente se deriva o nome Íris: do indo-europeu uei, que significa dobrar e possui nexo com o latim viriae (bracelete), o qual já contém em si a ideia de arco145. Na história que se seguiu à da Grécia, Íris foi incorporada pela astrologia e pela alquimia. Uma vez que expressava as sete cores, passou também a ser sinônimo dos “sete” planetas e dos sete componentes astrológicos do caráter. Também foi identificada com a cauda do pavão em virtude de dois motivos: ele é a ave de Hera e possui todas as cores. Apesar de Íris ser a nuntia Dei em geral, sabe-se que é a serva especial de Hera, recebendo por isso o cognome junônia146. Em português e em outras línguas, o substantivo íris é ainda empregado para se falar da pupila dos olhos, que já nos tempos da alquimia, através de metáfora poética, era chamada de menina-do-olho (kçrj tou= ìfqalmou=) para designar a pedra filosofal, que também é capaz de produzir todas as cores147. Nas línguas modernas ela é assim chamada pela nossa própria imagem que vemos refletida ou irisada no interior da pupila.

No que toca à filosofia, portanto, Íris fica sendo a sua personificação mitológica. Este é mais um caso em que Platão realiza aquilo que costumamos chamar de estratégia de ressacralização, um ato criativo e de apropriação que consiste em tomar alguma história que já estava enraizada no imaginário do povo grego, sendo então dotada, pois, de grande força emocional e imagética, e convertê-la poeticamente num novo símbolo para elucidar temas introduzidos de forma inovadora pela filosofia. Com isso, ele consegue acrescentar algum matiz de antiguidade e sacralidade a esse novo tipo de sabedoria que, por várias razões, ainda tinha de ser apresentado ao público daquele tempo; e consegue outrossim iluminar conteúdos muitas vezes complexos, esclarecendo o seu pensamento através de imagens de há muito familiares aos seus eventuais leitores. Tal estratégia pode ser encontrada também no mito de Eros do Banquete, na apropriação que Platão faz de algum conteúdo órfico no Fédon, na sua recriação do conceito de teoria e em todas as comparações em que, com propósito longamente meditado, utiliza personagens mitológicos, como quando, por exemplo, fala que Sócrates se assemelha ao sátiro Mársias. Os primeiros cristãos servir-se-ão de estratégia muito similar a essa em sua relação com o paganismo, reapropriando-se de vigorosos e antiquíssimos símbolos já

145 Idem, Ibidem. 146 GRIMAL, 1997, pg. 254. 147 JUNG, 1990, pg. 37-42.

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existentes no imaginário do povo para dar sentido e sacralidade à sua simbólica ainda recente e não anunciada.

O fato de Íris ser tal personificação mitológica quer dizer, em primeiro lugar, que a filosofia possui o papel de fazer a ligação entre o divino e o terreno, o reino dos homens e dos deuses ou, em termos platônicos, do sensível e do inteligível. A filosofia é etimologicamente pontifical. Sabemos por outras razões – mais bem estudadas no terceiro capítulo – que o filósofo é intermediário entre os deuses e os homens, algo simbolizado magistralmente pela figura de Eros, que é também atribuível ao próprio Sócrates e os filósofos em geral. Aqui nos é dito que a própria filosofia é uma mensageira que se interpõe entre essas duas esferas e torna possível a sua comunicação148. Em termos alegóricos, ser a filosofia filha da admiração significa que, depois de padecer a experiência de maravilhamento, tem início a construção do percurso que há de levar o aspirante a filósofo das trevas da caverna à região pura e divina do Sol. A paternidade da admiração é condição para que o arco-íris que simboliza esse percurso comece a se erigir; através de tal experiência (páthos) podemos ter um vislumbre de luz e começar a suspeitar da existência de outros seres além dos sensíveis.

Em segundo lugar, agora se iluminam bastante as páginas escritas acima sobre o conteúdo reverencial que Platão atribui à experiência de admiração. Se ele já se deixava notar através das razões apresentadas, é ainda mais evidente depois do que dissemos sobre Íris, já que ela exemplifica uma das maneiras pelas quais os homens entram em contato com o numinoso ou o divino. Além da dialética entre a aporia e a admiração, também explorada por Aristóteles, Platão mantém viva a longa tradição grega que associava o maravilhamento à percepção de coisas, de seres e de eventos divinos. Como já notamos, em Homero a palavra qaÂma era utilizada para designar aquilo que acontecia aos homens quando se punham na esfera em que as polaridades do divino e do humano se tocavam. Ora, isso também vale para a concepção de Platão, se pensarmos que a filha do qaÂma é justamente a mensageira responsável por realizar tal mediação. A filosofia nascida da admiração, assim, cria um ambiente em que o terreno e o celeste se interpenetram.

148 CHAPELL, 2005, pg. 72, nota 49. “Quindi per Iride vale quanto abbiamo già detto per i “daimones” che mediano tra gli dèi e gli uomini. Poiché ella è la figlia di Taumante, dello stupore, e poiché quest’ultimo rappresenta l’origine della filosofia, nel passo del Teeteto sopracitato il pensiero filosofico viene inteso come un movimento che va dagli uomini alle divinità e viceversa, e non come un continuo “essere in cammino”, un eterno “non ancora”, come hanno creduto alcuni interpreti moderni”. ALBERT, 1995, pg. 58.

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Em terceiro lugar, pois, o ofício de mensageira dessa personagem revela algo sobre a natureza essencialmente conversacional da filosofia. Apesar de haver também outros meios, o contato filosófico dos homens com os deuses se dá primordialmente através de mensagens, isto é, através do discurso (lógos). Isto já foi anunciado pelo próprio Platão no Crátilo, no momento em que deriva o nome de Hermes e de Íris do verbo falar (e iãre i n), dando como justificativa o serem eles mensageiros149. Não foi apenas o apreço pela oralidade, pela arte dramatúrgica, pelos personagens que descrevia que levou Platão a escolher o diálogo como forma privilegiada de se expressar. Ele o fez também porque encarava a filosofia como a uma atividade profundamente dialógica ou conversacional, de tal modo que, quando o quis demonstrar more mythologico, usando de um expediente pelo qual tornava mais compreensível pelo seu público, valeu-se da mensageira dos deuses para fazê-lo. 1.5 Arché

Para que terminemos este capítulo, falta ainda dizer alguma coisa sobre a palavra ‡rxÐ. A tradução mais imediata desse termo, aquela que costuma ser escolhida, é origem, começo, princípio. O melhor desses três vocábulos é ainda princípio (principium), porque a sua etimologia conserva certa nuança que também se encontra no grego. Princípio provém da mesma raiz de que temos a palavra príncipe (princeps), aquele que é o primeiro (primus) em dignidade e poder, que tem a primazia e a principalidade sobre as outras pessoas, que as toma e delas se apodera (capere) por primeiro, primitivamente. Do mesmo modo, ‡rxÐ provém do verbo rxw, que significa ser o primeiro, fazer o começo, governar ou imperar. Arcontes (ˆrxontev) é como os Gregos chamavam os magistrados de Atenas, e ‡rxÐ como designavam o comando, o domínio, a magistratura, a soberania de alguém. Foi Heidegger – com seu método de etimologizar as palavras e “acariciá-las

149 Crát., 408b1-5; CHAPELL, 2005, pg. 72, nota 49. Chapell comenta que Burnyeat também sugere que, porquanto o arco-íris não dure mais do que um dado momento no céu, ele foi bem escolhido como divindade para simbolizar o impulso filosófico que defende ser o conhecimento percepção. Mas isso é interpretar a frase isoladamente, como se valesse apenas para o contexto da primeira definição de conhecimento; é também esquecer que a pergunta pela essência da filosofia perpassa o diálogo como um todo; e é, por fim, ignorar os atributos mais óbvios de Íris, bem como os da admiração.

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em sua arcana raiz”, como descreveu Ortega y Gasset – quem notou como esse pequeno fato vocabular era importante para a correta compreensão da passagem do Teeteto.

Das Erstaunen ist als p a /q o j die ‡rxÐ der Philosophie. Das griechische Wort ‡rxÐ müssen wir in vollen Sinne verstehen. Es nennt dasjenige, von woher etwas ausgeht. Aber dieses „von woher“ wird im Ausgehen nicht zurückgelassen, vielmehr wird die ‡rxÐ zu dem, was das Verbum ‡rxeiÍn sagt, zu solchem, was herrscht. Das p a /qo j des Erstaunens steht nicht einfach so am Beginn der Philosophie wie z. B der Operation des Chirurgen das Waschen der Hände voraufgeht. Das Erstaunen trägt und durchherrscht die Philosophie150.

Logo depois de tal comentário, Heidegger cita a passagem de Aristóteles sobre a admiração. Ele acredita que seria superficial e não-grego pensar que Platão e Aristóteles estão apenas a determinar com seu pronunciamento a causa do filosofar (Ursache des Philosophierens). Isso significaria que, em certo momento, os homens ficaram admirados ante o ser e começaram então a filosofar; com o progresso da filosofia, contudo, a admiração tornou-se supérflua enquanto impulso inicial e foi abandonada. Mas não é isso o que acontece. Heidegger tem razão ao dizer que também para Aristóteles é a admiração que coordena o caminho da filosofia, dado que seja ela que nos apresenta as aporias a partir das quais os problemas filosóficos se estruturam, ademais de motivar os filósofos a estudarem coisas aparentemente indignas, como os seres vivos que nos causam repugnância. Ele esquece, todavia, que Aristóteles em certo sentido desejou o fim da admiração, a qual terminaria no momento em que fosse atingida a ciência que conhece os princípios e as causas de tudo. Mas ele ainda está certo quanto ao grego e quanto a Platão. Em termos de tradução, tanto princípio quanto governo respeitam todos os quesitos linguísticos necessários para o

150 HEIDEGGER, 1956, pg. 80. Na tradução de Ernildo Stein: “O espanto é, enquanto páthos, a arkhé da filosofia. Devemos compreender, em seu pleno sentido, a palavra grega arkhé. Designa aquilo de onde algo vem. Mas este “de onde” não é deixado para trás no surgir; antes, a arkhé torna-se aquilo que é expresso pelo verbo arkheîn, o que impera. O páthos do espanto não está simplesmente no começo da filosofia, como, por exemplo, o lavar das mãos precede a operação do cirurgião. O espanto carrega a filosofia e impera em seu interior”. HEIDEGGER, 1979, pg. 21.

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entendimento do trecho em questão. Provavelmente um Grego da época, ao ler ou ouvir tal frase, tomaria a palavra em apreço nos dois sentidos possíveis, não só porque essa era a experiência que ela encerra em si, mas também porque ambos os significados circulavam com a mesma frequência e normalidade nas situações do cotidiano151. No que se refere a Platão, por sua vez, basta pensar no que já dissemos para perceber que a admiração não é apenas evento primordial que, uma vez ocorrido, nunca mais volve a acontecer. Mais do que isso, porém, importa lembrar que a sua filosofia é essencialmente ascética e ascendente, o que fornece outras provas para o argumento. Ela é ascética porque implica determinados exercícios intelectuais e a prática reiterada de certas virtudes; e é ascendente porque o saber a que aspira precisa ser encontrado fora das condições normais em que vivemos, isto é, depois de termos efetuado toda uma subida feita de várias escalas e paradas152. No Fédon, por exemplo, esses dois signos da filosofia de Platão se apresentam quando Sócrates fala da experiência de catarse. Aqui, novamente a filosofia é compreendida como uma busca algo ininterrupta, similar a uma caçada constante empós das realidades e do verdadeiro153. O filósofo chegará tanto mais perto da verdade, daquilo que ele realmente deseja, quanto mais houver se purificado; ele deve empreender uma série de exercícios e cuidados (t o\ me le/t h ma), de abstenções, de escolhas reiteradas para tornar-se puro e poder, assim, olhar abertamente a luz do Sol. O estado de pureza pelo qual ele anseia não lhe é dado de uma só vez154. No Banquete, outrossim, temos a descrição de outra ascese que culmina na visão do Belo em si. O filósofo que é dirigido pela força do Amor em suas buscas ama primeiramente um único exemplar sensível, um corpo que o faz gerar belos discursos. Em seguida, reconhecendo o parentesco da beleza sensível, ele se desprende do amor doentio a esse corpo em particular e passa a amar todos os corpos belos. Da sensibilidade ela passa ao inteligível, começando a amar a beleza das almas, que ao depois transfere também para os ofícios e as leis e, então, para as ciências. Somente depois de ter passado por todos esses estágios é que ele é

151 “Platón emplea innumerables veces la palabra ‡rxÐ (arché) que es en Aristóteles término para “princípio”. Pero en Platón non tiene nunca valor formal terminológico. Lo usa exactamente como lo usaban los atenienses en él ágora y en su tráfico coloquial”. GASSET, 1983, pg. 189. 152 HADOT, 1999, pg. 104-5; FOUCAULT, 2004, pg. 279. 153 Sobre a ideia da faina filosófica como caçada dos seres: Lís., 218.c.4-5; Féd. 66a3. 154 Féd., 67d7-e2.

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agraciado com a visão do Belo em si155. Novamente não é de imediato que pode alcançar o que deseja. O mesmo processo gradativo, ainda, vale para a teoria da reminiscência. Através do Mênon, sabemos que esse saber buscado pelos filósofos já se encontra em seu íntimo, tendo de ser reavivado e rememorado por meio do questionamento. Não se trata de algo externo e alheio, passível de ser ensinado e transmitido por livros; aliás, sabemos do desdém de Platão por todo o saber adquirido dessa forma artificial. Antes disso, trata-se de um saber diferente de tudo o que é proporcionado pelos sentidos, de algo a priori, como diríamos atualmente, que se mantém eternamente verdadeiro156. Assim, se levarmos isso em conta, a purificação mencionada no Fédon é na verdade desobstrução, limpeza de tudo o que impede a emergência do saber já possuído e por ora olvidado. Isso implica igualmente estágios, idas e voltas. O escravo de Mênon com certeza está num nível de purificação e de reminiscência menor do que Sócrates. Para ele, portanto, inúmeras serão ainda as ocasiões em que há de se admirar, caso venha a aspirar ao saber. Todos esses fenômenos, de suma relevância na doutrina platônica, atestam a ideia de que a filosofia se desenvolve conforme vários degraus ou estágios. Contudo, a prova mais cabal de que a admiração não acontece apenas uma única vez, mas está presente em todas as fases da filosofia, encontra-se na alegoria da caverna. Não analisaremos por ora tal alegoria, mas vale dizer que, se a admiração acontecesse apenas no início da filosofia, então bastaria sofrer uma vez a conversão da alma (periagwgÐ) para que nos tornássemos filósofos. A filosofia teria destarte apenas papel negativo; sumiria a maiêutica e restariam apenas a ironia e a refutação socráticas. Ora, certamente não é isso o que ocorre. É possível se admirar diante de diversos objetos de reflexão. Hoje Teeteto pode conversar com Sócrates a respeito do conhecimento e, sendo refutado e expurgado de pré-concepções, perceber que nada sabe. Será pequena reviravolta em seu íntimo, que pode despertá-lo para a verdadeira filosofia, como de fato aconteceu. Embora seja algo importante, isso não há necessariamente de lhe aclarar os pensamentos sobre a justiça, sobre a alma ou sobre outro tema. Se ele voltar a conceber, como Sócrates garante, há de gerar melhores frutos

155 Banq., 210a4-e. 156 As palavras de Sócrates são explícitas, e mostram com o escravo apenas aprendeu sobre o ponto em questão: “E agora, justamente, como num sonho, essas opiniões acabam de se erguer nele. E se alguém lhe puser essas mesmas questões e de diversas maneiras, bem sabe que ele acabará por ter ciência sobre estas coisas não menos exatamente que ninguém”. Mên., 85c9-d1.

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por conta da conversa que teve há pouco; e se nada gerar, será ao menos mais gentil e mais agradável para com os seus companheiros, sem ficar a supor que saiba alguma coisa157. Mas ele poderia encontrar Sócrates novamente e se admirar diante de outra questão. A sua saída da caverna não aconteceu completamente logo depois que conversou com Sócrates. Nessa ocasião ele presenciou algumas luzes, sim, mas ainda teve de trabalhar muito para se tornar filósofo, sendo provável que voltou a se admirar em outras oportunidades. Assim, o princípio da filosofia pode se dar em diversos casos. Em todas as reviravoltas de pensamento que o filósofo experimenta há algum gênero de admiração atuando.

157 Teet., 210b11-c5.

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II

A FILOSOFIA COMO EXPERIÊNCIA PATÉTICA

Philosophie geschieht je in einer Grundstimmung.

Heidegger158.

2.1. O significado de páthos

A análise da sentença sobre a admiração só pode ser completada se, além do que dissemos sobre os termos que nela figuram, dermos especial atenção à palavra pa/qoj. Dado que tal vocábulo se refira a algo que acontece na alma do futuro filósofo, compreendê-lo-emos melhor se perscrutarmos o que os interlocutores de Sócrates sentem e padecem quando ele os ajuda a filosofar. No contexto do Teeteto, pa/qoj é o conceito com o qual Platão define o estatuto ontológico da admiração. Sabemos assim que o início psíquico da filosofia é um fenômeno de determinada espécie; é diferente e não se enquadra na ordem dos desejos (%piqum°a), que o mais das vezes são coloridos por Platão com tintas pejorativas, e tampouco se encaixa na esfera dos eventos racionais, sempre glorificados como próprios do filósofo. Ele possui a mesma natureza de experiências que, como as paixões, as doenças, os reveses ou os efeitos da retórica, acometem-nos sem que possamos controlá-las por completo. Já que tal acontecimento se refere ao modo como a filosofia começa na alma de alguém, podemos lançar mão de pressuposição básica que nos permitirá aplicá-lo a outros casos em que a experiência de maravilhamento, apesar de estar presente, não é necessariamente mencionada. A admiração se refere ao princípio psíquico da filosofia; logo, as descrições que Platão nos oferece de pessoas que, ainda não sendo filósofos, começam a filosofar com o auxílio de Sócrates, podem ser tomadas como indicativos da natureza da admiração. Assim é que se ilumina o vínculo entre a aporia e o maravilhamento, bem como tudo o mais que os interlocutores de Sócrates dizem sentir quando ele age sobre suas almas. Como veremos, o estado em que tais pessoas se encontram e o efeito de Sócrates são também experiências do mesmo jaez, donde podermos dizer que no início da filosofia ocorre certa dialética patética que opera com três tipos

158 HEIDEGGER, 1983, pg. 10. “A filosofia acontece sempre e a cada vez em uma tonalidade afetiva”. HEIDEGGER, 2003, pg. 9.

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de pa/qh . Isso será mostrado no próximo capítulo, depois de termos preparado terreno com o estudo dos casos de Eutífron e de Mênon.

Em termos gerais, pode-se dizer que a palavra pa/qoj é dona de riqueza semântica quase incomparável, que poderia facilmente complicar nossa tarefa, não fosse a permanência em seu íntimo de um rasgo essencial de sentido. Desde há muito ela foi vestida com as peculiaridades de cada idioma a fim de servir a propósitos os mais variados, gerando nas línguas modernas termos importantes como patogenia, paixão, apatia, simpatia, paciência, patologia etc. Não obstante sempre manter algo de seu significado original, que indica essencialmente algum tipo de passividade159, ela sofreu várias e profundas modificações semânticas ao longo do tempo. Se na Grécia antiga designava, entre outras coisas, algo que nos acomete e derruba, por assim dizer, deixando-nos indefesos e à sua mercê, na idade moderna passou a nomear, sob a rubrica de paixão, uma gama de sentimentos que, embora ainda sejam refratários ao domínio da nossa vontade, tem qualquer coisa de ativo160. Na Modernidade as paixões nos impelem a agir, auxiliam na fundação de contratos sociais, conduzem-nos às mais temíveis tentações e são responsáveis, outrossim, por várias das peripécias heroicas e romanescas da literatura. O Romantismo, por exemplo, é em certo sentido a exaltação da entrega do ser humano às paixões, que são vistas como motivadoras de determinadas ações e comportamentos. Basta pensar em tudo o que o jovem Werther realiza por conta de seu amor, ou então nos feitos napoleônicos que Julien Sorel, já no período realista, empreende para saciar a sua ambição desenfreada. Parece que tendemos a ver nas paixões uma força ativa, que nos impulsiona a cometer este ou aquele ato, ao passo que os antigos, se também notavam tal aspecto, davam primazia para o caráter

159 “Sur le degré zéro de l’aor. paqe²n, a été créé p�qov n. “ce qui arrive à quelqu’un ou à quelque chose, expérience subie, malheur, émotion de l’âme, accident au sens phisosophique du terme”, donc terme très général qui s’est prêté à un emploi philosophique (íon. –att., etc.)”. CHANTRAINE, 1999, pg. 862. 160 MOREAU, 2008, pg. 7. Este autor ainda ressalta como o tema das paixões é onipresente na filosofia da Idade Moderna e como se formulou espécie de genealogia para estudá-las. Pensamos que o característico dessa época é contrapor a razão, valorativa e teoricamente, ao desregramento das paixões, seguindo assim inegável inspiração estóica e cristã. Parece que o cenário só começa a mudar com o Tratado de Hume, que vê a razão como escrava das paixões, postura que alcança seu auge com o Nietsche do Além do Bem e do Mal. Contudo, esses pensadores permanecem no interior do mesmo horizonte teórico e mais não fazem do que invertê-lo. O combate secular só receberá outra direção a partir do século XX, com os trabalhos de Ortega y Gasset e de Heidegger, que retomam o tema antigo do humor e eliminam da problemática a dialética obsedante entre racional versus passional.

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passivo da paixão, que o mais das vezes se apoderava daquela que era então considerada a força ativa do homem, a faculdade racional.

No entanto, a esfera de atuação desse vocábulo não se resume a isso. Tão influente ele é, em verdade, que em muitas línguas chegou a ser dicionarizado (inglês, alemão) em sua forma grega. Embora isso não haja ocorrido no vernáculo, não é raro ouvirmos ou lermos algo como: “ele sempre tem um páthos melancólico”; “fez a apresentação com aquele seu páthos habitual” etc. Nem sempre é uma experiência dolorosa que vem assim denominada. Muitas vezes apenas se denota com tal expediente a qualidade, o teor ou a atmosfera daquilo a que se aplica, algo com que os leitores de Nietzsche estão mais do familiarizados. Podemos fazer várias distinções com o simples emprego dessa palavra. Os heterônimos de Pessoa, por exemplo, são diferentes por que cada um tem o seu pa/qoj: Álvaro de Campos é o futurista elétrico e desbocado; Ricardo Reis é o purista com a calma pagã, com a resignação horaciana e assim por diante. Em cada caso ressaltamos um modo de ser específico, uma atmosfera ou aura emocional criada por cada poeta.

Na língua grega, por seu turno, o termo pa/qoj e os demais vocábulos correlativos também abrangem campo de significado bastante vasto. Podem se referir a uma doença, a um acidente, a um revés, a um imprevisto, a uma experiência no sentido mais geral, a um estado de ânimo, a uma condição, a um modo de expressão etc. Aristóteles, por exemplo, utiliza-o tanto no sentido ontológico quanto no sentido estético. Na Metafísica, pa/qoj designa entre outras coisas as afecções que a substância é capaz suportar, tendo assim alguma semelhança com o conceito de acidente161. O uso de pa/qoj enquanto qualidade ontológica de algo já era já familiar aos pré-socráticos, e foi expandido por Platão e Aristóteles para designar também a afecção que determinada coisa causa em quem a percebe162. Na Poética, por sua vez, pa/qoj é empregado para definir a terceira parte constituinte do mito; além da peripécia e do reconhecimento, o mito trágico carrega em si a catástrofe, que é “uma ação perniciosa e dolorosa, como o são as mortes em cena, as dores veementes, os ferimentos e mais casos

161 Metaf., 1003b.7 162 PETERS, 1983, pg. 183. Platão utiliza em vários diálogos o sentido ontológico e epistemológico do termo. Há como que um axioma consoante o qual tudo o que existe possui capacidade de produzir (poieiÍn) e de sentir (pa/sxein) alterações as mais diversas. Teet., 156a-b; Sof., 247d8-e4. Cf. PRADEAU, 2008, pg. 27.

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semelhantes”163. Aqui o seu significado remete para o que podemos chamar de revés, imprevisto ou acidente, nomeando o que nos acontece de maneira inesperada e incontrolável. O aparecimento dessa palavra no contexto da tragédia, precisamente no momento em que Aristóteles define a “alma e a essência” desse gênero artístico, revela que ela possui algum parentesco, ainda que longínquo, com o significado de sorte, fado ou destino (tÀxj), pois também é responsável por nos colocar em situações surpreendentes e nos apresentar acontecimentos alheios à nossa vontade. Com efeito, entregar-se a tal espécie de eventos e reuni-los na experiência constitui, pois, a verdadeira sabedoria trágica, como desde há muito se sabe pela lapidar sentença de Ésquilo164.

Ademais, há em Homero uma belíssima expressão que resume, em grande parte, o sentido fundamental dessa palavra. No décimo segundo canto da Odisseia, que retrata o momento em que os bois de Hélio são pilhados, Ulisses dirige um discurso aos seus amigos e subordinados, denominando-os “companheiros de infortúnio” (pa/sx onte j e(t aiÍroi)165. Esta singela denominação – vertida para o latim pelo conhecido socii malorum – provavelmente abarca todas as nuanças semânticas do termo em apreço, porque é exatamente isso que significa ser acometido por um pa/qoj: sofrer uma odisseia de reveses, de altos e baixos, de completa entrega ao destino; estar à deriva num mar revolto, à mercê do juízo caprichoso dos deuses; não poder se apossar daquilo que nos sobrevém, tampouco poder contê-lo ou comandá-lo. Podemos resumir isso ainda mais, se dissermos que significa padecer uma experiência. É assim que preferimos traduzir a palavra grega, pensando na etimologia do termo de recepção. Experiência (experientia) significa originalmente prova, ensaio, tentativa (peir�w). Mais detalhadamente, significa também sair (ex) dessa tentativa que sempre implica alguma sorte de perigo (periculum), de entrega a alguma coisa sobre a qual nem sempre se tem o comando. Acolher um pa/qoj, então, seria entregar-se por um instante a um perigo, a algo incerto, a uma tentativa; seria conseguir penetrar em algo que desconhecemos e sobre o que não temos domínio e em seguida

163 Poét., 1452b.10-13. 164 Agamêmnon., 177. “The deep meaning of the proverbial pathei mathos, repeated both just before and just after the narrative of the slaughter of Iphigenia (177, 250), is that hard cases like these, if one allows oneself really to see and to experience them, may bring progress along with their sorrow, a progress that comes from an increase in self-knowledge and knowledge of the world”. NUSSBAUM, 2001, pg. 45. 165 Odisseia, XII, 340.

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conseguir escapar. A experiência é sempre o movimento de entrada tateante no perigo desconhecido e a renovada saída dele. Os companheiros de Ulisses são sofredores porque experimentados nos perigos da existência; e são experimentados e experientes justamente porque se entregaram ao perigo necessário e ainda conseguiram escapar com vida. Karl Albert, pensando na essência da filosofia platônica, afirma que ela tem como escopo justamente uma experiência – no caso, atingir a unidade do Ser – que ele entende no sentido da etimologia alemã. Tal sentido não é de todo alheio ao latino. Erfahrung também pressupõem movimentação (Fahre) tentativa ou aproximada (Umgefähr), tingida pelo perigo (Gefahr), ainda que denote mais precisamente o término ou a realização de tal processo, como o indica o morfema “er” 166. Quando dizemos que pa/qoj é uma experiência, destarte, queremos apenas indicar que a pessoa tomada por tal fenômeno embarca num movimento que não dirige, que lhe é de alguma forma desconhecido e que, por tal motivo, tem qualquer coisa de perigoso.

Isso pode ser encontrado na vivência das paixões e de todos os outros eventos que ocorrem aos seres humanos e que são designados pela palavra pa/qoj. É assim que, igualmente, a experiência do poeta tem qualquer coisa de patético. Como Aristóteles afirma, o poeta que vive ou já vivenciou as paixões por ele narradas (oi e )n t oiÍj pa/qe si¿n e i¹sin) é mais persuasivo do que aqueles que não as vivenciam, justamente porque lhe é mais fácil criar uma situação verossímil e necessária de algo que já experimentou na própria pele167. Para se ser bom poeta, portanto, convém ser antes de tudo grande apaixonado, fato que torna mais simples a tarefa de reproduzir na linguagem uma jornada psíquica ou situacional que já foi realizada pelo próprio compositor. E o mesmo se diga quanto às peças oratórias, pois esse estratagema poético pertence em verdade ao domínio da retórica, algo que se comprova não apenas pelo segundo livro do tratado aristotélico, que discute explicitamente as paixões, mas também pela afirmação de Górgias, de acordo com a qual a alma, ao ouvir uma poesia ou um discurso, “experimenta através das palavras uma experiência

166 ALBERT, 1995, pg. 70. Comentando o caso específico do amor, Hadot tem posição similar: “A filosofia torna-se, então, experiência vivida de uma presença. Da experiência do ser amado, eleva-se à experiência de uma presença transcendente”. Ele continua dizendo com acerto que a ciência não é, para Platão, puramente teórica, mas também prática da virtude e afetividade. HADOT, 1999, pg. 109. 167 Poética, 1455a, 27-35.

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particular”168. O bom orador é justamente aquele que cria determinado clima afetivo em virtude do qual seus argumentos recebem peso e veracidade maiores169. Ele se vale de artifícios lingüísticos (os tópoi da retórica) e cênicos (quironomia, as vestes etc.) a fim de predispor seus ouvintes ao que há de dizer. Quando eles já estão envoltos por tal atmosfera, embarcam na experiência propiciada pelo orador e sua alma é conduzida (yuxagwge iÍn) perigosamente para onde este o deseja.

Na existência, na poesia e na retórica, por conseguinte, o pa/qoj sempre implica o movimento experiencial de algo sobre o que não temos controle e que nos coloca em estado passivo.

Os gregos sempre sentiram a experiência das paixões como um fato misterioso e terrível no qual experimentamos uma força que antes está em nós e nos possui, do que é possuída por nós. A própria palavra páthos o comprova: como o seu equivalente latino passio, indica alguma coisa que acontece aos homens, vítimas passivas170.

Esse simples sobrevoo linguístico já é suficiente para que se

perceba que tal palavra, em que pese seu significado essencial, não pode receber tradução única, mas precisa ser encastoada devidamente em cada circunstância. Mantemos o termo “experiência” para nos referir aos eventos de natureza psíquica, como a admiração, e acrescentamos o adjetivo “patético” para sublinhar sua natureza e diferenciá-la de outros gêneros de experiência. Mas o caso de Platão torna tal fato ainda mais evidente. Com efeito, ela utiliza polissêmica e prolificamente a palavra pa/qoj, assim como outras variações desinenciais fincadas na mesma raiz donde tal vocábulo provém. Parece que toda a exuberância semântica, que esse termo esbanja na língua grega, aninha-se nas 168 Elogio de Helena, 9, 24. iãdio/n ti pa/qhma dia\ tw½n lo/g wn eÃpaqen h( y uxh/. 169 “Persuadir consiste em criar uma espécie de clima afetivo que dá o seu peso aos argumentos, criando a recepção psíquica dos ouvintes; Górgias dizia que haveria que destruir a a gravidade dos adversários pela ironia, e a sua ironia pela gravidade”. DHERBEY, 1986, pg. 46. 170 E. Dodds, apud PLEBE, 1978, pg. 43. “Páthos é o nome comum do acontecimento pelo qual se passa; trata-se antes e simplesmente do que nos advém sem que sejamos sua causa”. PRADEAU, 2008, pg. 31. Há que se ressaltar também um uso que atribui conteúdo eminentemente pejorativo ao termo páthos. É a doutrina estoica da apatia que melhor o exemplifica, bem como as reflexões de Cícero, que, na esteira de tais ensinamentos, se perguntava se a palavra grega deveria ser traduzida por morbus ou perturbatio, e a definia como aversa a ratione contra naturam animam commotio. Cf. SORABDJI, 2000; VALENTE, 1984; ENGLER, 2010, pg. 68, n. 6.

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páginas memoráveis do filósofo: o sentido mais comezinho, que circula no dia-a-dia, e a cristalização técnica, sempre algo forjada e abstrata, andam parelhas em sua pena. Assim, nas primeiras linhas da Apologia, num trecho que provavelmente dá mostras do uso rotineiro da palavra, Sócrates afirma que não sabe o que foi ocorrer aos juízes para que acreditassem nas acusações de seus delatores, ou melhor, não sabe o que eles experimentaram (pe p o/nqate) para que viessem a pensar desse jeito. Percebe-se aí algum resquício do uso retórico do termo, haja vista os juízes primeiro ouviram as acusações, e só então se deixaram levar por elas. Por influência do que escutaram, sua alma andou em determinada direção e se tornou convencida das acusações levantadas. Nesse mesmo diálogo, tal vocábulo é ainda empregado com um matiz de significado, tendente para o âmbito jurídico, a fim de falar da pena que Sócrates há de padecer (paqe iÍn) pelo seu delito. Ele pergunta: “que sou digno de sofrer por ter sido como sou?”171. Aqui se trata do sentido mais geral de padecer alguma coisa, mesmo no âmbito físico, como ocorre quando somos dominados por alguma doença. O simples sentido de suportar algum sofrimento entra em cena na República, quando se mencionam as atribulações por que há de passar aquele que for justo e bom no governo da cidade. Sócrates afirma: “O sofrimento que agüentam os melhores, por parte da cidade, é tão pesado, que não há outro assim (...)”172. Esse mesmo sentido, de resto, já estava presente no Críton, quando as leis argumentam que devemos sofrer sem refutar tudo aquilo que a pátria nos ordena173. Não é muito diferente, aliás, a aparição dessa palavra no Fédon, precisamente no momento em que Sócrates decide narrar todos os reveses (pa/qh) que enfrentou, ou as experiências que teve, assim que decidiu levar a cabo a investigação da natureza174. Na oportunidade o termo indica aquilo que, depois de tomada a decisão, aconteceu sem que Sócrates tenha previsto ou desejado; foram as suas reviravoltas intelectuais, a sua alegria e a sua decepção com o naturalismo que lhe antecedeu. No Fedro, por sua vez, pa/qoj aparece em duas ocasiões importantes: primeiro, na esteira da retórica siciliana, Platão o emprega para definir aquilo que alguém sente quando ouve um discurso; e segundo, depois da palinódia de Sócrates,

171 Apol., 36d. 172 Rep., 488a2. 173 Crít., 51b4. 174 Féd., 96a1.

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ele é usado para designar o amor175. Este último uso é mais do que significativo, e pode que tenha influenciado a ideia contemporânea que temos desse sentimento. O fato a ser ressaltado é que toda a antropologia existencial desenvolvida no discurso de Sócrates, com seu fértil recurso ao mito da parelha alada, serve tão-somente para descrever o que significa estar-se sob o influxo de um pa/qoj. Tudo o que é dito sobre o amante e o amado pode ser visto como indicativo da essência do pa/qoj; e por isso se percebe que, não obstante nos pôr em situação passiva, tal experiência ou disposição pode ser ainda controlada pela faculdade racional. O pa/qoj, assim, não é necessariamente algo ruim ou incontrolável como o desejo (%piqum°a), mas algo que até pode ser utilizado a fim de conduzir alguém para o caminho maravilhoso da filosofia176.

Mas isso fica patente quando se analisa o caso de Teeteto. Aqui, a experiência patética também suscita a passividade de quem a suporta, mas não num sentido ruim, já que cria determinada predisposição intelectual que incentiva o jovem Teeteto a prosseguir na faina filosófica. A passividade se deixa mostrar quando o efebo menciona as vertigens e tonturas que o avassalam. Já ressaltamos que tal experiência

175 Sócrates diz, com efeito, que experimentou através de Fedro (eÃpaqon d ia\ se/) a força do discurso de Lísias. Fedr., 234.d.2. E sobre o amor, no final do seu segundo discurso, ele diz: “Esta experiência (tou=to de\ to\ pa/qoj), belo menino, sobre a qual versou meu discurso, os homens a chamam de amor”. Fedr., 252.b.1 3. O termo também descreve o fato de Sócrates ter sido tomado pelas Musas, dando mostras mais uma vez não só de sua variante retórica, mas também da passividade que sempre implica. “Então, amigo Fedro, não te parece a ti, como a mim, que fui tomado por uma disposição divina (qeiÍon pa/qoj peponqe/nai)? Fedr., 238.c.5-6. Tradução nossa. 176 PRADEAU, 2008, pg. 26. O desejo (%piqum°a) nem sempre é algo ruim em Platão. Na Carta VII, por exemplo, em que descreve como se esforçou por chamar Dionísio II para a filosofia, Platão afirma que tentara criar no tirano o desejo pela melhor de todas as vidas, a vida filosófica. Assim, nesse caso a conversão à filosofia envolvia componente desiderativo que apelava justamente ao baixo-ventre. Carta VII (347d1-2). Aliás, na República Platão afirma também que todas as “partes” da alma ou da cidade experimentam determinados páthe, o que mostra que eles não são específicos apenas do elemento irascível da alma. Rep., 435b-c; PRADEAU, 2008, pg. 27, n. 8. Lebrun, num comentário a Aristóteles, isento dos preconceitos estoicos e cristãos, escreve algo que vale também para Platão: “No homem bem educado, o páthos não é uma força que colocará permanentemente obstáculos à alma racional; ele está a serviço do lógos e em concordância com ele”. LEBRUN, 2006, pg. 383. Não concordamos com este autor, todavia, quando tenta aproximar Platão dos estoicos e lhe atribuir diferença demasiado forte entre razão e paixão. LEBRUN, 2006, pg. 390. Como Scolnicov já demonstrou, a razão não é para Platão intelectualidade pura, mas algo que tem suas raízes na emoção; e a emoção, por seu turno, também tem fins cognitivos e apenas representa nível menor de racionalidade. Aquilo que o filósofo mais deseja (Bem) é também o supremo objeto do conhecimento. “O cume cognitivo é também, ipsissimo facto, a suma emoção”. SCOLNICOV, 2006, pg. 29; 38.

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acarreia a perda de familiaridade com o que lhe era mais próximo, e abaixo será visto que a sua fonte é precisamente a mudança de afecções que ocorre no íntimo do menino. Quanto à predisposição intelectual, por sua vez, é algo que está documentado em outras passagens de Platão. No Fédon, por exemplo, quando Sócrates reflete sobre o que seja a temperança dos homens comuns, os quais só praticam essa virtude com o intuito de desfrutar de maiores prazeres no futuro, ele diz que essa é a situação (pa/qoj) na qual se encontram177. Aqui também o termo indica como que a propensão ou disposição para agir de determinada maneira, algo que nos acontece impessoalmente, mas de que podemos nos assenhorear com boas razões. Trata-se de uma afecção própria ao conhecimento, ao raciocínio ou à visão das ideias, como o comprova um trecho do Político em que o Estrangeiro fala de um p a/qoj relativo à ciência, isto é, um tipo de experiência que nos acompanha quando nos dedicamos a tais atividades178. Logo, o pa /qoj não é algo restrito à parte irascível da alma, apesar de sua irracionalidade; ele está presente mesmo nos momentos mais racionais, como quando filosofamos ou nos dedicamos à ciência em geral. Nesse sentido ele até se parece com aquilo que os Gregos denominavam e Àc ij, a disposição ou propensão intelectual para agir de determinada maneira179.

Quando se apodera de Teeteto, assim, a experiência de maravilhamento o faz embarcar numa jornada desconhecida que o deixa tonto e desorientado, entregue ao perigo do que lhe acontece. A sua desorientação vertiginosa é mais uma das variantes do efeito que Sócrates é capaz de produzir; ela se origina da transmutação do pa/qoj da ignorância, em que o menino vivia, para o pa/qoj da filosofia, onde ele se dá conta de que não sabe o que supunha saber. Mas também se origina do alargamento de sua visão teórica, que foi agora iluminada, ainda que pouco, pelas luzes vindas do exterior da caverna. Teeteto não só caiu em vertigens porque o excesso de luz lhe ofuscou a vista, mas

177 Féd., 68e3. 178 “Parece que acabei de me mover, de maneira mais estranha, em direção à afecção (experiência) que em nós se refere à ciência”. Polít., 277d6-7. Tradução nossa. Conferir o comentário de Pradeau. PRADEAU, 2008, pg. 26. Na República há um uso semelhante, quando Platão comenta que os cães são parecidos com os filósofos. Ele diz que esses animais suportam a custo os desconhecidos, mas acolhem bem aqueles que conhecem. Com isso demonstram a engenhosa disposição (páthos) de sua natureza. Rep., 376b. 179 No Sofista se afirma, por exemplo, que a melhor e a mais sensata disposição para a alma é saber o que ela não sabe e não se arrogar nenhum outro saber que não possui realmente. Belti¿sth g ou=n kaiì swf ronesta/th tw½n eÀcewn auÀth. Sof., 230d5. Nesse trecho o conceito de héxis poderia ser convertido pelo de páthos.

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também porque, ao se entregar à experiência que origina e comanda a filosofia, ele entrou em contato com a esfera divina (Íris), perdendo imediatamente o solo comum onde costumava se mover. A sua capacidade intelectual foi expandida para um gênero de visão intelectual (qewr°a) que implica a experiência de contemplar o todo e se pôr a caminho do divino. Isso é algo que ocorre a todos – ou a quase todos – os personagens que entram em contato com Sócrates, apesar de cada um deles nomear e descrever de maneira diferente aquilo que sente. É certo que eles mesmos não têm nenhuma consciência do que lhes acontece, sentindo-se apenas estranhos, perplexos, perdidos e atarantados. Mas nós podemos ver sua perplexidade de fora e diagnosticá-la como o início psíquico da filosofia. É o que faremos nas duas próximas seções, estudando brevemente o caso de Eutífron e de Mênon. 2.2. A aporia de Eutífron

O Eutífron é um diálogo cuja intenção fica patente desde o seu início. Sócrates afirma que Meleto o acusou de não crer nos deuses da tradição, de introduzir novos deuses e de corromper a juventude. Por tal fato, assim, Meleto deve ser sábio e no mínimo ter ciência de duas coisas: como os jovens são corrompidos e quem são seus corruptores. Se ele não o for – como a Apologia há de mostrar – não tem razão nem autoridade para levantar tal acusação. Ora, o mesmo acontece com o adivinho Eutífron, que acusa seu pai de impiedade sem ao menos saber o que seja a piedade. Destarte, o diálogo ilustra de maneira exemplar aquele tipo de pessoa que supõe saber alguma coisa, mas que, ao entrar em contato com Sócrates, percebe que o seu saber era mal fundamentado e cai em aporia. Ele descreve então um dos momentos essenciais que antecedem o início psíquico da filosofia, a saber, o momento em que o interlocutor de Sócrates tem barrado o caminho intelectual que costuma empreender. Como já escrevemos, a aporia se liga essencialmente à admiração. Tanto Aristóteles quanto Platão o notaram, embora ofereçam explicação relativamente diferente para esse vínculo. Seria difícil dizer qual dos dois eventos acontece primeiro. Idealmente falando, parece que a aporia antecede a admiração, porque ela ocorre para pessoas que supõe saber alguma coisa e que ainda não são, portanto, filósofos no sentido socrático do termo. Já a admiração, quando ocorre, nasce da expurgação da ignorância, que sucede a aporia e que implica a mudança de duas afecções específicas. Em todo caso, é

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certo que o estado aporético acontece no início psíquico da filosofia, o que o torna indicativo da natureza da admiração, segundo nossa pressuposição enunciada acima. A aporia de Eutífron revela o estranhamento e a perda de familiaridade envolvidos na admiração, eventos esses que fazem com que as palavras e os conceitos cotidianos percam seu sentido habitual e se tornem vagos e fugidios.

O primeiro estranhamento de Eutífron, em verdade, acontece logo no começo do diálogo, e é causado pelo fato de Sócrates ser visto num lugar a que não costuma vir, o tribunal. Algo de novo (ne wt e ron) deve ter acontecido para que isso seja possível180. No Fedro, o interlocutor de Sócrates também se admira e o acha estranhíssimo por desconhecer um lugar, as margens do Ilissos, conhecido de todos os Atenienses. Na ocasião Sócrates afirma que nunca sai da cidade porque deseja se instruir, sendo que isso só é possível na companhia de homens. Ele tem, como é dito na Apologia, espécie de posto militar 181. No Fedro ele só deixa seu posto porque Lísias estará presente no local através do discurso, e ele poderá ainda assim analisar um homem e continuar a fazer o que é o seu mister. Além disso, tanto Eutífron quanto Sócrates julgam evidente o fato de que Sócrates não poderia processar ninguém, sendo que, se ele está no tribunal, é sem dúvida porque alguém o processou. Por que isso seria tão evidente? Será porque Sócrates nada conhece, e para acusar alguém é preciso conhecer o assunto em questão? Ou será porque ele não se envolve com política e se mantém distante dos lugares em que ela é oficialmente praticada? Parece que se trata de ambas as coisas: tanto o afastamento de Sócrates em relação à política oficial quanto as suas declarações de ignorância tornam impossível que algum dia ele venha a processar quem quer que seja.

O diálogo também evoca a importância que Platão e Sócrates devotavam à educação dos jovens, entendida como instrumento político capaz de tornar os homens melhores. Sócrates afirma que Meleto é o único dos políticos que começa corretamente seu trabalho, a partir do cuidado dos jovens, tal como o bom lavrador o faz em relação às plantinhas182. Esse seria o método mais eficaz de se fazer política, e é similar ao que o próprio Sócrates fazia, pois que, apesar de discutir como todo o gênero de pessoas (homens, anciões, mulheres, especialistas, sofistas etc.) ele tinha afeição toda especial pelos efebos, talvez porque ainda visse a possibilidade de salvá-los e de encaminhá-

180 Eutíf., 2a. 181 Fedr., 230c6-d5; Apol., 28d10-29a. 182 Eutíf., 2c8-3a2.

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los para a senda da filosofia. No Cármides, onde discute com um efebo bem novo, a primeira coisa que ele pergunta, logo após haver voltado de Potideia, não é sobre os acontecimentos políticos que se deram na cidade, tampouco sobre alguma outra novidade, mas sim sobre quem se destacou em filosofia durante o tempo em que ele estava a servir como soldado183. A sua preocupação mais importante consiste em distinguir os jovens cujas naturezas tendem a levá-los para a filosofia. Em várias ocasiões ele admite ser amante dos jovens, e no Teeteto, como vimos, ele pede que Teodoro lhe apresente aqueles que são intelectualmente promissores. A sua predileção pelo ginásio como local de conversação transparece de sobejo em outros diálogos. Os efebos provavelmente se sentiam bem em sua companhia, pois ele não era arrogante, tratava-os de igual para igual e discutia temas que os interessavam184.

Tentando saber o porquê da acusação, Eutífron acredita que Meleto acusou Sócrates porque este sempre fala da exclusividade de seu gênio protetor. Ele compreende que isso ocorra, porque também costuma ser escarnecido e chamado de louco quando se põe a fazer profecias185. Sócrates pensa que os Atenienses só não apreciam aqueles homens que costumam ensinar as técnicas de que são senhores, isto é, os professores; ele teme que pareça não ser por filantropia que ele fale a todos os homens, sem cobrar nenhum salário, mas que seja por simples prazer186. Eutífron também afirma que acusar Sócrates é o mesmo do que acusar Héstia, a deusa dos lares, e, por extensão, a pólis inteira. Nesse sentido, por suas virtudes exemplares, Sócrates parece representar o corpo dos cidadãos ou então aquilo que os mantém unidos; querer incriminá-lo seria o mesmo do que profanar o que representa nossa comunhão harmoniosa no interior do lar. Como Sócrates, Héstia também apresenta certa imobilidade: nunca deixando as lareiras das

183 Cárm., 153d2-5. O exemplo mais claro dessa atitude ainda parecer ser o Lísis. 184 CORNFORD, 2001, pg. 40. 185 Com tal parecer, Eutífron admite que Sócrates é também espécie de adivinho. McPHERRAN, 1996, pg. 171. Baseado na opinião de Taylor, Cushman crê que a impiedade de Sócrates era a crença em alguma sorte de orfismo. CUSHMAN, 2007, pg. 18. Apesar de ser sempre visto como eminentemente político, não se pode negligenciar que o processo movido contra Sócrates tinha também indubitável caráter religioso. Duhot ressalta que a censura religiosa ocupa dois dos três itens de acusação, e que ela ocorreu em Atenas também no caso de Demócrito, de Protágoras e até mesmo, em certo sentido, no de Aristóteles. DUHOT, 2004, pg. 69-70. Deve-se levar em conta, também, o decreto promulgado por Diopites, cerca de 432, que censurava a descrença religiosa e o ensino da astronomia. Stone comenta a posição de E. R. Dodds, segundo a qual teria havido espécie de caça às bruxas na Atenas da segunda metade do século V; mas ele tenta mostrar como são fontes tardias que defendem tal fato. STONE, 2005, pg. 274ss. 186 Eutíf., 3.d.6-9.

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casas, ela é a deusa sedentária que, por ser virgem, assim como suas vestais romanas, simboliza o sacrifício permanente através do qual “uma perpétua inocência serve de elemento substitutivo ou até mesmo de respaldo às faltas perpétuas dos homens, granjeando-lhes êxito e proteção”187. A intenção de Platão, como dissemos, parece ser equiparar Eutífron a Meleto, pois ambos julgam realmente saber alguma coisa sobre aquilo de que acusam os outros: Meleto entende de educação e do culto antigo dos deuses, Eutífron, do que seja a piedade. O pai de Eutífron, considerado homem excelente, mostrou que não sabia o que fazer diante do homicídio; ele como que suspendeu o juízo, tendo ido buscar conselho junto daqueles que são os conhecedores oficiais de tais assuntos. A sua tragédia foi ter se esquecido do escravo e tê-lo deixado morrer. Seu filho, ao contrário, arroga-se este saber. Ora, ao mover sua ação, ele não respeita sua família, seu pai, seus parentes e amigos; por conseguinte, é como se desrespeitasse a deusa dos lares ou então o próprio Sócrates, ao dar mostras de ignorância. Aliás, sua noção de justiça é deveras radical e não faz diferença de estatuto entre estrangeiro e cidadão, homem livre e escravo, familiares e não-familiares etc. Ela parece ser religiosa, preocupada apenas com a impureza (t o\ mi¿asma) com que alguém impiedoso macula aqueles com quem convive188. É para ele um dever de consciência livrar-se dessa mancha moral através da expiação proporcionada pela justiça.

Durante a conversa, a habitual ironia de Sócrates consiste em tornar-se discípulo de Eutífron, homem mais novo, a fim de aprender algo sobre o divino e livrar-se assim da acusação movida por Meleto. Como bom discípulo, Sócrates se esmera em suas perguntas. Inquirido sobre a legalidade de processar seu pai, Eutífron responde com recurso a um exemplo da mitologia, notadamente o caso de Zeus e Cronos e de Cronos e Uranos, todos os quais, sendo pais e filhos, envolveram-se em litígios e desavenças físicas. Este tipo de argumentação é próprio dos sofistas. Sócrates afirma, no Fedro, que pelo seu tempo circulava uma série de interpretações engenhosas dos antigos mitos, e até aventa uma possível hermenêutica alegórica sobre o mito de Farmaceia e Orítia, embora o faça a contragosto189. Mas sabemos que Platão se opunha a

187 JUNITO, 1986, pg. 276. McPherran acredita que Sócrates é comparado com o pai de Eutífron; ele não percebe que, na verdade, Sócrates é equiparado a Héstia. McPHERRAN, 1996, pg. 170. 188 Eutíf., 4c1. 189 Fedr., 229c6-d1. Segundo Slezák, aliás, Platão menosprezava esse gênero de histórias que possuíam intencionalmente duplo sentido, já que a meta da comunicação do conhecimento era a clareza e a certeza, as quais só podiam ser atingidas pelo discurso vivo da oralidade.

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qualquer ideia dos deuses que os apresentasse como imperfeitos e dotados das mesmas fraquezas que os seres humanos. Este raciocínio é desenvolvido na República e também no Fedro. A sua posição, ao contrário, sempre tende a mostrar a infinita distância que nos separa da perfeição dos olímpicos, apesar de pôr tal perfeição como nossa meta190. Sócrates, ao ver Eutífron se valendo da tradição, quer saber se esta e se os poetas que a contam têm razão, isto é, se o que falam sobre os deuses é verdade. Ele mesmo não gosta de ouvir histórias que desonrem a perfeição dos deuses, mas todo o mundo é de opinião contrária. Neste ponto, Sócrates parece admitir que possui noção peculiar acerca do divino, mesmo que acate, ironicamente, a autoridade de Eutífron, o qual acredita que os poetas e a tradição dizem a verdade, admitindo que ainda haveria várias coisas ainda mais admiráveis (qau masiw ¯t e ra) para serem contadas191. O adivinho parece ser alguém que conhece e se vangloria de conhecer essas coisas ignoradas pelo vulgo; o sentido de “mais admiráveis”, assim, tem que ver com algo que surpreenderia caso fosse descoberta pela communis opinio, mais ou menos como se uma pessoa inculta fosse introduzida em alguns conhecimentos da teologia. Eutífron se prontifica a narrar várias outras coisas sobre os deuses, além de suas guerras, suas intrigas etc.

Sócrates diz que não se admiraria de saber que Eutífron pode conhecer tais coisas, mas se mostra desinteressado delas, porque pensa ser pouco o tempo (e )pi ì sx olh=j) de que dispõe192. Isto contradiz a regra geral dos diálogos, que sempre enfatiza a necessidade do ócio e do tempo livre para a filosofia. Parece lembrar, por um lado, o Teeteto, em cuja digressão é dito que todos aqueles que vão ao tribunal têm seus discursos medidos pela ampulheta, razão pela qual não podem se comparar com o filósofo193. E, de fato, o Eutífron não apenas sucede dramaturgicamente ao Teeteto, como também acontece num ambiente de tribunal e termina com a alegação, feita pelo adivinho, de que a conversa tem de dar-se por encerrada por que lhe falta tempo para SLEZÁK, 2005, pg. 62-3. De acordo com Cornford, porém, Platão admitia a interpretação alegórica para os mitos tradicionais, os quais não deviam ser simplesmente tomados ao pé da letra. Cornford deduz tal ideia do momento em que Platão, na República (377-8), fala sobre as fábulas com que serão educadas as crianças, o que nos parece um pouco precipitado, haja vista a recusa categórica do Fedro. CORNFORD, 1989, pg. 171. 190 No Fedro, o gênio de Sócrates se manifesta depois que ele pronuncia o primeiro discurso, no qual fala mal de Eros, e como que o obriga a compor uma palinódia, porquanto não se deva atribuir nenhum mal às divindades. Fedr., 242b8-e4; Rep., 379b. 191 Eutíf., 6b5-6. 192 Eutíf., 6c9. 193 Teet., 172d9-e4.

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continuá-la. Isso é mais um prova de seu embaraço, porque certamente ele teria todo o lazer do mundo para falar das coisas espantosas que sabe sobre os deuses; ele só carece de tempo para ser refutado por Sócrates. Por outro lado, Sócrates claramente mostra não se preocupar com tais assuntos, como já fizera no Fedro. No Íon, outrossim, Sócrates não apresenta muita vontade de ouvir o rapsodo, quando este tenta impressioná-lo com sua capacidade técnica, aquiescendo apenas a que ele recite um pequeno trecho de Homero194. Parece que em ambos os casos ele deseja ir para além dos saberes especializados, atingindo o âmbito comum da filosofia.

No prosseguimento da discussão, Sócrates mostra que as discórdias, em verdade, surgem em torno de questões acerca do bem e do mau, do justo e do injusto; elas não assomam quando se trata de algo que, por exemplo, pode ser resolvido pela matemática, pelo uso da balança etc. As controvérsias parecem se resumir àquela esfera do verossímil que trata de noções algo confusas, utilizadas sobremaneira na retórica195. Ora, como a piedade passa a depender dos deuses, e como estes discordam entre si, ela é então relativa. A discussão descamba assim em certo subjetivismo. É preciso, para que isso se resolva, haver a estabilidade, a objetividade e a universalidade de uma essência. A aporia que Sócrates apresenta mantém-se ainda no horizonte da discussão do relativismo ou do problema entre sujeito-objeto. Ele pergunta: algo possui em si mesmo uma natureza que o faz piedoso ou, por outra, ele é piedoso apenas porque várias pessoas assim o consideram? No primeiro caso, temos a afirmação da essência de algo; no segundo, temos um convencionalismo com base relativista, protagórica mesmo. Sócrates pede a definição do que seja a piedade e quer saber da essência, ignorando os exemplos; ele quer saber a ideia pela qual as coisas piedosas são o que são. Quando aprender isso, ele poderá usá-lo como paradigma para dizer o que é piedoso e o que não é, ou seja, ele poderá descer até a multiplicidade empírica com um conceito formal que a explica196.

Neste ponto, Eutífron, que supunha saber o que seja a piedade, cai em aporia e tenta elucidar o que lhe ocorre. Ele ressalta não ser capaz de dizer aquilo que pensa; sente que seu pensamento gira ao redor de si e de Sócrates, sem que pare onde eles gostariam de assentá-lo. Sócrates pensa que isso é algo similar ao que Dédalo fazia, o qual, como

194 Íon., 536d8-e2. 195 Eutíf., 7c10-d5; Fedr., 263a9-10. 196 Eutíf., 6.d9-e6.

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se sabe, não só dava vida às estátuas que fabricava, como também acabou preso em sua própria engenhosidade, isto é, no labirinto que planejara para Minos. Sócrates se compara ao mitológico arquiteto, mas diz que apresenta suas obras em palavras (e )n t oiÍj lo/goij), e elas também não querem, tal como as estátuas, ficar no lugar que lhes foi destinado por seu construtor. Segundo Sócrates, contudo, isso é apenas uma galhofa, porque no fundo as ideias em jogo são de Eutífron. O adivinho discorda e atribui ao filósofo o poder e o desejo de ver as figuras se movendo, comparando-o novamente com Dédalo; ele mesmo, Eutífron, gostaria de estacá-las, mas parece ser incapaz de fazê-lo.

Eutífron: Eu já não sei dizer-te o que penso, Sócrates. Pois parece que tudo gira ao nosso redor sem encontrar um lugar fixo. Sócrates: O que dizes, Eutífron, parece ser trabalho do nosso antepassado Dédalo. E se fosse eu que falasse e trouxesse à baila esses motivos, talvez pudesse afirmar, em tom de zombaria, que, por ser descendente daquele, as figuras que apresento em palavras procuram fugir e não querem ficar no lugar que se lhes indica. Porém como neste caso as hipóteses são tuas, convém que procuremos outro motivo de gracejo, porque está claro que não querem ficar contigo, conforme afirmas. Eutífron: Quer me parecer, Sócrates, que esta galhofa está bem de acordo com o que dissemos. Porque não sou somente eu que inspiro a necessidade de que estas hipóteses girem à nossa volta e se conservem fixas. És tu que me pareces Dédalo, já que, se as coisas dependessem de mim, eu faria de tudo para que ficassem197.

A comparação de Sócrates com Dédalo revela dois pontos

essenciais. Em primeiro lugar, a indiscutível engenhosidade intelectual de Sócrates, que é capaz de produzir, apenas com palavras, obras que ganham vida e andam por conta própria. Talvez isso possa ser conectado com o Cármides, o Fedro e o Banquete, diálogos em que se ressalta de forma bela e veemente a vida dos discursos e a sua fecundidade na alma

197 Eutíf., 11b6-c6. Não saber dizer o que se pensa é algo que sempre ocorre a quem cai em aporia. Na República isso acontece com Polemarco: “Já não sei o que dizia”. Rep., 334b7.

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de quem penetram198. Em todo caso, mostra que ele possuía, sim, a habilidade retórica que estava em voga entre os sofistas da época: tornar as palavras móveis e voláteis era capacidade de que se vangloriavam Tísias e Górgias, ainda no início da retórica siciliana, conforme o próprio testemunho de Platão demonstra199. Em segundo lugar, deve-se lembrar que Dédalo ficou preso em seu próprio construto, apesar de ser o único homem capaz de sair dele sem muitas dificuldades. Às vezes, ele é entendido como o excesso de intelectualidade que acaba sendo pernicioso para quem o possui200; e mais à frente, de fato, Sócrates se queixa de que esse seu poder lhe foge ao controle: ele também gostaria de estacar as ideias que ventila, e trocaria todas as riquezas de Tântalo e toda a técnica de Dédalo para que o conseguisse. Ele acaba sendo sábio sem que o queira, e nisso consiste o maior requinte de sua técnica. Por essa razão, afirma que periga ser também mais temível do que Dédalo, pois causa mobilidade não apenas às suas ideias, mas também às dos outros.

Sócrates: Então, meu estimado amigo, pode ser que seja eu ainda mais hábil (d eino /t ero j) do que esse homem em sua arte, visto que ele apenas conseguia que não se conservassem em suas obras, enquanto eu consigo isto não apenas em relação às minhas, mas também às demais (t a \ a )llo /t ria). E, com certeza, o que existe de mais extraordinário (ko my o /t a t o n) em minha arte é que sou hábil nela (ei¹miì so f o /j), contra a minha própria vontade (o Àt i a Ãkw n). Pois eu só desejaria que minhas razões possuíssem solidez (me/nei n) e se mostrassem firmes (ka iì a )ki nh/t w j i¸d ru= sqa i), e isto, em

198 Cárm., 157a4-5 ; Fedr., 276a5-9; Banq., 210c. 199 Fedr., 267a. De resto, a retórica é definida neste diálogo como “leve deslocamento” (metab ib a/z ein kata\ smikro\n) do sentido das palavras, criado através do jogo entre coisas semelhantes e dessemelhantes. Fedr., 262b5-8. Ora, na República Adimanto acusa explicitamente Sócrates de se valer de tal procedimento. Ele afirma que aqueles que discutem com Sócrates sofrem (pa/sxousin) o seguinte: pela falta de experiência em perguntar e responder, são levados pelo discurso (h(g ou=ntai) a cometer pequenos desvios (smikro\n parag o/menoi), os quais, quando acumulados no final, fazem surgir um erro grande e contrário (me/g a to\ sf a/lma kaiì e)nanti¿on) à posição inicial, de modo que acabam por ser refutados. É algo similar ao que ocorre com quem joga gamão contra jogadores hábeis, salvante o fato de que no primeiro caso se usam argumentos e não pedras: os jogadores hábeis cercam os inábeis e os deixam sem saída. Rep., 487b1-c3. 200 JUNITO, 1986, pg. 64-65.

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maior grau que os tesouros de Tântalo e a sabedoria de Dédalo juntos201.

Este fato nos revela como Sócrates, em certo sentido, também

estava em posição passiva diante dos rompantes da filosofia. Como filósofo por excelência, a sua admiração devia desconcertá-lo em inúmeras ocasiões, como o atestam os transes repentinos que o tomam, por exemplo, no Banquete e ainda em plena batalha de Potideia. No primeiro deles, ele é obrigado a parar no meio do caminho e a se entregar a uma reflexão súbita que se lhe apresenta ao espírito, algo que lhe acontece com frequência. No segundo, ficou imóvel durante um dia e uma noite inteiros, completamente embevecido por alguma reflexão que desconhecemos, mas que terminou com uma típica oração ao Sol, astro que foi canonizado por Platão como representante dos filósofos202. A partir do Eutífron e do Mênon, pois, sabemos que esse seu poder se transmite a quem quer que o toque ou entre em contato com ele. O testemunho mais claro, pungente e preciso continua sendo ainda, todavia, aquele de Alcibíades, conforme veremos oportunamente.

De modo geral, não duvidamos de que se possa ver aqui a teoria da corrente magnética de inspiração, tal como apresentada no Íon, ou algo que se lhe equipare de perto. Há dois aspectos que corroboram tal hipótese. Em primeiro lugar, os efeitos que ambos os fenômenos provocam se processam de maneira idêntica: tanto a inspiração poética quanto o transe socrático se propagam de uma pessoa para outra e produzem os mesmos sintomas do propagador no receptor. Conforme a conhecida metáfora do Íon assinala, é como se os anéis de uma corrente fossem movidos pela força magnética que os atravessa em forma de cadeia; quem é tocado por tal corrente, sai de seu estado racional (ākfrwn) e cai em espécie de transe (kat ex o/me noi). Primeiramente, as Musas concedem tal inspiração entusiástica aos poetas; estes a passam adiante para os rapsodos que, por fim, atingem todo o público. O efeito gerado se assemelha a um transporte báquico (b akx e u/ou si) ou coribântico que, possuindo a pessoa, faz com que ela fique completamente entregue ao que sente203. Isso é precisamente o que Alcibíades diz que Sócrates é capaz de provocar204. Em segundo lugar, não só a inspiração do poeta, como também toda a missão socrática são

201 Eutíf., 11d3-e1. 202 Banq., 175b1-3; 220c-d5; NUSSBAUM, 2001, pg. 193. 203 Íon., 533.c.9-535a2. 204 Vide capítulo IV.

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dons divinos (qe i¿a moi¿ra) que surgem à revelia daqueles a quem agraciam205. Aqui não é o lugar adequado para tratar do tema profundíssimo do dom ou privilégio divino, usado também para definir a virtude e as quatro loucuras divinas que assomam no Fedro206. Contudo, admitindo que ele é de fundamental importância na obra platônica, sendo apenas empregado em casos raros e específicos, torna-se evidente que haja qualquer vínculo entre os dois temas acima: a missão de Sócrates e a inspiração do poeta são similares porque ambas são doadas pelos deuses a determinados mortais, sem que estes possam fazer alguma coisa.

Se isto procede, assim, a filosofia poderia ser vista como algo que, tal como a força e o entusiasmo da poesia, também pode passar de uma pessoa para a outra. Talvez ela não o faça em sua positividade, transmitindo conhecimentos específicos sobre o mundo; mas certamente o faz em termos negativos, purgando de falsas opiniões quem entra em contato com ela. Sócrates, neste sentido, seria um transmissor da admiração e de todos os momentos espirituais implicados nesse fenômeno. Sem dúvida ele provoca intencionalmente a admiração em seus ouvintes para desorientá-los e livrá-los das crenças a que estavam atrelados; e ele mesmo é um ser admirável. Mas será que ele poderia dominar tal poder? Apesar de ser o filósofo concebido por Platão como alguém capaz de dominar suas próprias paixões e desejos, através do uso da razão, não se pode esquecer de que a admiração é um pa/qoj, algo que nos ocorre à revelia, independentemente de nossa vontade. A parte consciente da atividade de Sócrates, parece, reside não no fato de estar constantemente voltado para a filosofia, constantemente tomado de admiração e perplexidade, mas sim no modo como se vale dessa disposição de ânimo que o assalta: ele a emprega com fins pedagógicos, visando modificar a alma de seus ouvintes, e não para enriquecer, concretizar fins políticos ou galgar os degraus da escala social. O testemunho do Eutífron, portanto, está de acordo com o que dissemos desde o início. O adivinho é alguém que supõe saber alguma coisa e que, portanto, ainda não pode ser chamado de filósofo. Ao entrar em contato com a absurdidade de Sócrates, ele repentinamente cai em aporia e aquilo que supunha saber lhe foge ao controle, parecendo-lhe estranho e inusitado. O estado habitual de Sócrates, aporético e admirado, transpassa-lhe os pensamentos e o subjuga. A sua alma é

205 Íon., 536.c.2; Fedr., 230a5-6; Apol., 33c6. 206 Mên., 100b3; Fedr., 244c3.

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momentaneamente liberada da experiência de ignorância em que vivia e momentaneamente tomada pela experiência da ação socrática e pela experiência que constitui o princípio psíquico da filosofia. Embora ele não chegue a mencionar explicitamente a admiração, tudo o que padece comprova que é isso o que lhe sobrevém: o maravilhamento diante de algo banal, a piedade, que desde há muito supunha conhecer e dominar. A sua falta de domínio diante dos próprios pensamentos e a sensação de que eles giram sem que possam ser estacados, aliás, são outros indícios desse fato. Trata-se de algo que nos recorda imediatamente as tonturas e vertigens do jovem Teeteto, apesar de ser descrito em tom menos veemente, como uma qualidade própria de Dédalo. Antes de conversar com Sócrates, a experiência da ignorância que Eutífron vivia permitia-lhe certa segurança e conforto diante de temas como o da piedade; as suas crenças e raciocínios estavam devidamente imóveis e marmorizados. Foi o contato com o filósofo que tornou suas ideias estranhas, móveis e voláteis. Isso é algo típico do estado de maravilhamento psíquico: aquilo que nos é mais próximo, de súbito, torna-se o mais distante e estranho, sendo em razão disso admirável. Foi assim, por exemplo, que Descartes pensou a admiração:

Quando, ao estabelecermos o primeiro contato com algum objeto, nos surpreendemos, ou quando o consideramos novo, ou bem diferente daquilo que até então conhecíamos ou do que presumíamos que deveria ser, isso nos leva a admirá-lo e a nos espantarmos com ele (...). 207

Imaginem o efeito que não produz uma estátua, ou um pensamento, anos e anos imóvel, que de repente começa a caminhar e a se mover em círculos – é algo no mínimo admirável. Sócrates é capaz de produzir tal maravilha e ele o faz por uma questão, por assim dizer, de jogo de luzes. Primeiramente, ele toma o objeto de discussão tal como é apresentado por seu interlocutor, ainda densamente envolto pelas trevas da ignorância. Depois, ele apresenta tal objeto no curso da discussão sob uma luz mais forte, vinda diretamente de fora da caverna; e assim procede até que o queira. O resultado é a perplexidade e o deslumbramento de seu ouvinte, o qual se admira de ver sob nova perspectiva aquilo que sempre lhe fora costumeiro e sabido. A admiração sempre provoca, assim, uma subida de vários graus em

207 DESCARTES, 2004, §53, pg. 142.

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direção à luz do Sol. Sendo o princípio da filosofia, ela o é também da anábase que exemplifica alegoricamente tal processo. Em algumas pessoas é mais bem-sucedida e pode perdurar para a vida toda; em outras é momentânea, causa apenas perplexidade e vergonha, irritação ou descontentamento.

A postura de Eutífron no restante do diálogo, por fim, comprova como a pequena purgação que sofreu o tornou mais brando e menos arrogante. Ele até mesmo chega a admitir que não é capaz de acompanhar os raciocínios expostos por Sócrates208. Mesmo assim o diálogo continua, sem resultado teórico positivo, até o momento em que o adivinho se vai embora alegando falta de tempo, o que impede de parir adequadamente o fruto de seu esforço intelectual209. Todavia, sua conclusão é evidente: se Eutífron não sabe o que seja a piedade, não tem direito de acusar seu pai de impiedoso. É provável que o adivinho tenha saído do local agastado e envergonhado, quem sabe até dando razões a Meleto210. Sócrates mais uma vez se desconsola, porque não aprendeu o que seja a piedade nem o divino, e não sabe, pois, como há de se virar com seus delatores. 2.3. A aporia de Mênon

Se o Eutífron, pelas razões apresentadas, já oferece evidentes

indícios do que seja a admiração, o Mênon o faz em grau ainda maior e mais claro. Com efeito, as metáforas aí utilizadas por Platão, para falar do que ocorre com quem entra em contato com Sócrates, são mais do que significativas e esclarecedoras, permitindo que se entendam vários atributos associados ao maravilhamento: a perda de familiaridade com o cotidiano, a sensação de estranhamento e de passividade, a visão de algo novo e desconhecido etc. Não por acaso, desde o início do diálogo ficam patentes duas posturas diversas em relação ao saber: a de Mênon, que se julga em posse de algum conhecimento, e a de Sócrates, que declara sua ignorância e seu desejo de se instruir. É claramente a afirmação de que se seguirá o embate entre esses dois tipos de pessoas: o suposto sábio, tomado pela experiência da ignorância, e o filósofo, consciente de que nada sabe e arrebatado pela experiência da admiração. Embora o diálogo

208 Eutíf., 12a3. “Não me sinto apto, Sócrates, a acompanhar-te em tuas análises”. 209 Eutíf., 15e3-4. SEDLEY, 2005, pg. 36. 210 Segundo Diógenes Laércio, em verdade, Eutífron teria sido dissuadido por Sócrates de levar a cabo a acusação de seu pai. Vidas, II, 29.

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seja visto como uma discussão sobre o conceito de virtude, a problemática do conhecimento transparece a todo o momento, estando subjacente a cada passo da conversa e culminando precisamente, do ponto de vista protréptico ou pedagógico, na aporia de Mênon e, do ponto de vista doutrinal, na teoria da reminiscência211. Mênon encarna o modelo arquetípico do ignorante superficialmente instruído que, como Eutífron, pretende saber alguma coisa. Ele recebeu lições de Górgias e parece se sentir seguro para discutir uma porção de temas famosos e candentes naquela época; porém, como se percebe ao longo do diálogo, tudo isso não passa de algo decorado, convencionalmente pronto e esquemático. Em verdade, quando Mênon bater-se com Sócrates, que lhe há de produzir uma mudança em seu modo de pensar habitual, sentir-se-á desamparado e ignorante, e toda a armadura das fórmulas sofísticas que lhe davam a ilusão de saber alguma coisa derreter-se-á em sua frente. Mas vejamos isso com mais calma, até o momento em que a aporia se apodera do interlocutor de Sócrates.

No início da conversa, Sócrates é repentinamente alvejado pela pergunta que serve de entrecho ao diálogo, a qual se compõe de quatro partes estreitamente relacionadas entre si: seria a virtude algo capaz de ser ensinado (didakt o\n), ou algo apreensível através de exercícios (a)skh to\n) ou, ainda, algo que nos advém por natureza (f u/se i) ou de alguma outra maneira (a Ãll% t iniì t ro/p%)?212 Embalado por sua constante ironia, Sócrates primeiramente se esquiva de responder sem mais nem menos à súbita pergunta, dando pequeno giro argumentativo, essencial para os seus propósitos, a fim de explicar o que lhe acontece. Ele afirma que os compatriotas de Mênon, os Tessálios, depois de terem conhecido Górgias e Aristipo, passaram a se sentir livres e audaciosos para fazer todo o tipo de perguntas e oferecer todo o tipo respostas, sem dar mostras de algum temor ou acanhamento. O próprio Mênon exemplifica tal fato ao propor, aparentemente do nada – pois não há desta vez um prólogo mais explícito que esclareça como se deu o encontro dos dois personagens – a questão acerca da possibilidade do ensino da virtude. De maneira indireta, assim, Sócrates acusa uma cidade inteira de estar embevecida pelos feitiços retóricos, deixando-se amuralhar pela arrogância e presunção advindas do falso saber que

211 Cf. FINE, 1995. “(...) Platão coloca aqui, deliberadamente, no centro da sua investigação o problema do saber e das suas origens”. JAEGER, 2003, pg. 700. “In his honest perplexity, Meno, it may be, is stumbling upon the core of Platonic insight concerning knowledge”. CUSHMAN, 2007, pg. 89. 212 Mên., 70a1-4.

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adquiriram a custo de lições e pagamentos. Segundo ele, contudo, o caso de Atenas é totalmente diverso: depois da saída de Górgias, supostamente ela teria ficado estéril em sabedoria, donde a sua atitude irônica, que o faz declarar nada saber a respeito do problema213.

Mênon se mostra decepcionado com o que ouve, pois certamente esperava mais do grande ateniense. “Mas tu, Sócrates, verdadeiramente não sabes o que é a virtude, e é isso o que, a teu respeito, devemos levar como notícia para casa?”214 Sem perceber que acaba de cair em uma armadilha, ele mesmo tenta dar uma definição de virtude a fim de agradar a Sócrates e exibir seu saber. Demonstrando segurança e tranquilidade, expõe um leque de exemplos por trás dos quais se pode entrever vagamente a virtude definida como “cada um fazer o que lhe convém”, razão pela qual há diferentes virtudes conforme os sexos, a idade, a condição social etc. A virtude do homem, por exemplo, consiste em “ser capaz de gerir as coisas da cidade, e, no exercício dessa gestão, fazer bem aos amigos e mal aos inimigos, e guardar-se ele próprio de sofrer coisa parecida”; ao passo que a da mulher consiste em “bem administrar a casa, cuidando da manutenção do seu interior e sendo obediente ao marido”215. Mênon não enuncia explicitamente tal conceito, o que faz com que se sinta intimorato para caminhar por entre uma miríade de exemplos que se enquadram, mercê de sua falta de clareza, no conceito de virtude que ele possui de maneira meio inconsciente. Ele é mais um Grego engazopado pela multiplicidade e exuberância das coisas sensíveis.

Entrando na discussão com a aparente intenção de se instruir, Sócrates deseja saber o ser (pe riì ou)si¿aj) da virtude, aquilo que faz com que em todos os casos ela seja exatamente o que é. É este aspecto primordial da definição que pode ser usado para instruir alguém que pergunta o que seja alguma coisa, prerrogativa própria dos filósofos que também retornará nas Categorias e na Metafísica de Aristóteles e que, pelo visto, ainda representava grande novidade para a época em que tal conversa aconteceu216. Tal como ocorre com as figuras da geometria, as virtudes são assaz diversas entre si e até mesmo contraditórias; todas elas, porém, são reconhecidas por um mesmo nome e possuem um

213 Mên., 71b1-3. 214 Mên., 71c. 215 Mên., 71e. Mênon deve ter aprendido com Górgias como diferenciar as várias virtudes. JAEGER, 2003, pg. 701. 216 Mên., 72b. Para Jaeger, nesta passagem se coloca em relevo, pela primeira vez, o conceito lógico do geral. JAEGER, 2003, pg. 703. Assim, Mênon certamente nunca tivera contato com tais investigações.

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“mesmo” (t au)t o/n) que faz com que sejam virtudes217. É justamente isso que o filósofo procura. Pode-se perceber aqui, à parte a inovação teórica atribuída desde a Antiguidade a Sócrates, um esforço pedagógico que tem como intuito fazer com que Mênon se afaste da multiplicidade empírica e se encaminhe em direção à unidade da essência (e Àn ge/ t i e iådoj t au)t o\n), o supremo objetivo do platonismo218. Essa multiplicidade era o que conferia aos sofistas a aura de onisciência que os tornou populares, bem como o que aprisiona Mênon e lhe dá a impressão de poder falar facilmente sobre o que é a virtude e também sobre outras coisas219. Assim, novamente o interlocutor de Sócrates é alguém que, sem compreender a revolução do platonismo, se encontra submerso no interior da caverna e, pior ainda, acredita piamente por conta do ensino sofístico que sabe alguma coisa. De fato, Mênon é um ignorante da mesma espécie que Eutífron, Alcibíades, Hípias, Trasímaco e outros, espécie essa que difere substancialmente daquela a que pertencem o jovem Teeteto e outros personagens, como Lísias, Cármides e quem sabe Céfalo e o escravo de Mênon. Embora todos sejam de fato ignorantes, os primeiros se arrogam alguma sapiência, motivo pelo qual suas trevas são ainda mais densas e profundas, ao passo que Teeteto, por exemplo, que é rapaz cordato e bem disposto, ignora o que seja o conhecimento não por supor sabê-lo, mas talvez por razões naturais, como a sua idade, ou então porque a condição normal de todos os homens que nunca filosofaram seja a caverna. Por isso, a atitude de Sócrates para com ele é diferente, e o seu êxito é facilitado e incentivado pela natureza psíquica do efebo220. Algo similar ocorre com Cármides e com os outros personagens citados acima. Aqui, porém, toda a estratégia de Sócrates consiste, em primeiro lugar, em mostrar como é infundado o suposto saber de Mênon, para que os dois possam, ao

217 A questão do nome não aparece à toa. Na ontologia formal desenvolvida no Sofista, malgrado o nome seja às vezes desconsiderado (220d), ele é também usado como espécie de indício formal que permite continuar a pesquisa: o nome sofista, por exemplo, é usado para que uma arte correspondente lhe seja atribuída, “porque alguém com um epíteto assim tão eminente não pode ser um leigo” (221d). 218 Mên., 72c-d. 219 O próprio Platão, no Sofista (233b-c7), fala da suposta onisciência desses professores itinerantes. Além disso, sabe-se que Hípias e Górgias, por exemplo, se propunham a responder a qualquer pergunta que se lhes formulasse. 220 “Esto, una vez más, mostra el talante filosófico y humano de Teeteto, que lo convierte en el interlocutor ideal para seguir dialogando”. BOERI, 2009, pg. 233-4.

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depois, investigar amigável e conjuntamente a questão sobre a virtude sem se preocuparem com nada de alheio ao seu propósito221.

Por conta de tal motivo, aliás, é que Sócrates, depois da refutação de outras tentativas feitas por Mênon, vê ocasião para diferenciar a agonística ou erística da dialética, usando para isso da sua própria postura numa conversa. Trata-se de importante distinção que dá os contornos à concepção pedagógica de Sócrates e de Platão e mais uma vez a aparta da “concepção sofística”. No primeiro caso, apresenta-se uma definição e espera-se pela derrota ou pela vitória, ambas as quais dependem do que será argumentado pelo adversário; não há tentativa comum de aprendizado, mas antes o tinir das armas umas contra as outras e o desejo de vencer. É verdadeiramente uma batalha (e Ãriv) ou disputa (‡gðn). No segundo, pois, conversa-se com um amigo que também possui o desejo de dialogar e de se instruir; as armas são então deixadas de lado e cada um se empenha a aprender junto do outro; é-se mais suave e a conversa parte de conhecimentos já estabelecidos pelos dois, alcançando então o desconhecido que se almeja compreender222. É a diferença que caracteriza a conversa com o jovem Teeteto, dialética e amistosa, com as demais batalhas que Sócrates enfrenta; ou então a diferença entre filosofia e sofística223. Não é difícil de se notar como o próprio Sócrates faz de tudo para que Mênon abandone sua atitude costumeira de combate, que deve ter aprendido com Górgias, e empreenda uma investigação em comum, tentando realmente conhecer alguma coisa. Outras passagens do diálogo tocarão nesse mesmo ponto, mostrando o ardor pedagógico de Sócrates e a resistência de Mênon, que só pelo fim abaixará a defesa.

221 Grimaldi compreende a ironia de Sócrates como uma maneira de tornar seus interlocutores sensíveis ao erro. “Para tornar esses ilusionistas [sofistas] sensíveis à verdade, a primeira condição é torná-los sensíveis ao erro”. GRIMALDI, 2006, pg. 27. Scolnicov é de opinião semelhante, acrescentando que o uso da ironia se trata de uma via indireta, uma vez que cada pessoa deve salvar-se por conta própria e convencer-se do valor intrínseco da racionalidade. SCOLNICOV, 2006, pg. 45-7. Embora isso esteja certo, não se deve esquecer que a ironia é espécie de humor, no sentido moderno e existencialista do termo, que impede Sócrates de levar a sério a si mesmo e aos outros, simplesmente porque ser sábio é para ele estar cônscio do que ignoramos. HADOT, 1999, pg. 52. 222 Mên., 75c8-d7. 223 Sócrates garante, no Teeteto, que já entrou em várias batalhas contra mais de inúmeros Hércules e Teseus que o malharam sem dó nem piedade, pois possui a doença de sempre querer discutir. Mesmo enfrentando tais dificuldades, ele não abandona o campo desses exercícios argumentativos em razão do terrível amor (eÃrwj deino\j) que nutre por eles. Teet., 169b5-c3.

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A diferença de postura em relação aos seus interlocutores, aliás, é algo característico de Sócrates: como bom mestre e bom conversador, ele sabe medir e escolher suas palavras para que se faça compreender. A sua habilidade retórica, diferentemente da habilidade dos sofistas, não está em fazer discursos empolados que, por sua magia e seus efeitos, semeiem em todo o mundo certo entorpecimento; mas está em conseguir pôr-se no mesmo nível daquele com quem conversa, usando de seus jargões, de suas experiências e de tudo o mais que já lhe é familiar. É daí que vem aquela sua linguagem coloquial, recheada de exemplos chãos e esclarecedores: ele desce até o buraco específico da caverna em que cada um se encontra, consegue enxergar com a parca luz a que cada um dos interlocutores está acostumado até o momento em que, através do alargamento de perspectiva, lança sua descarga elétrica e produz a aporia e a admiração, acabando com o modo habitual de pensar de seu ouvinte. É certo que em alguns diálogos isso não parece ocorrer. No Protágoras, por exemplo, há antes um confronte erístico em que dois longos discursos se enfrentam numa aristéia digna de Homero. Mas no Mênon, Sócrates tenta a todo o momento ser dialético, como o prova o fato de se servir da teoria empedoclesiana das emanações, que devia ser familiar a Mênon através do ensino de Górgias, suposto discípulo de Empédocles. Assim, quando a conversa é dialética, são admitidos certos conhecimentos básicos e podem-se extrair conclusões, implicações, refutações etc. O interlocutor, sem nada ter aceitado que lhe não fosse conhecido e certo, não tem o que fazer quando Sócrates revela tudo o que se aninhava por detrás daquele parco saber já possuído, precisando se conformar com as novas conclusões que lhe são apresentadas. Por isso Mênon se compraz com a resposta de Sócrates, ao ver a definição de figura sendo deduzida da teoria dos eflúvios, algo que ele admite como verdadeiro224; agrada-lhe também o aspecto teatral da resposta. Sócrates prefere a primeira definição que oferecera, aquela estritamente formal, e diz que Mênon não a compreende de todo, pois ainda não foi iniciado nos mistérios, isto é, na maneira de investigar que é própria da filosofia. Se Mênon pudesse ficar em Atenas, poderia conversar com Sócrates e ser iniciado num tipo de saber diferente da sofística225.

Sócrates faz várias concessões a Mênon, portanto, a fim de que a conversa possa prosseguir, e demonstra bastante saber no diálogo,

224 Mên., 76.d.8-76e1 225 Surpreendentemente, essa diferença entre dialética e erística aparece também no Teeteto, no momento em que Sócrates fala por Protágoras. Na ocasião, o sofista acusa Sócrates de ser agonístico e não dialético. Teet., 167e3-a2. Vide cap. V.

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apesar de ter dito em seu início que havia em Atenas uma estiagem de sabedoria. Dando uma definição de figura – figura é o limite de um sólido –, ele apresenta o paradigma formal que Mênon deve imitar226. Mênon então se anima e propõe nova definição de virtude: “alegrar-se com as coisas belas e poder alcançá-las”. No entanto, Sócrates mostra com facilidade que todas as pessoas desejam as coisas boas e belas, motivo pelo qual deveriam ser todas consideradas virtuosas. Ora, uma vez que isso não é o caso, a definição não pode estar correta. Desse modo, a virtude parece ter de residir no poder de alcançar ou realizar tais objetos do desejo, como a saúde, o ouro e a prata, os cargos importantes, a amizade etc.; seriam virtuosos todos os que são bem-sucedidos na satisfação de seu anseio pela beleza e bondade. Mas isso, como Mênon admite, não pode ser simplesmente alcançado sem escrúpulos nenhuns, senão que deve ser feito com justiça e piedade. Eis então que se ergue enorme contradição: a justiça, antes estabelecida como parte da virtude, entra agora no conceito do que deve ser definido, que passa a soar mais ou menos assim: “virtude é alcançar as coisas boas e belas usando, para isso, de uma parte da virtude (justiça)”. Todo esse raciocínio que embaralha o definiens com o definiendum faz com que Mênon caia em aporia.

Este é o momento que queremos analisar mais detidamente. Mênon explica que, antes de conhecer Sócrates, já ouvira dizer que este nada mais fazia do que cair em perplexidade e levar os outros consigo. Familiar aos círculos que propugnavam o movimento geral de educação da época, tendo até pagado a um dos maiores mestres da sofística para se instruir, Mênon deve ter ali escutado algumas anedotas acerca de Sócrates, mormente as que se referiam aos efeitos da sua famosa ironia227. Agora, ao sentir na própria pele o que isso significa, socorre-se de fortes e precisas comparações que denotam seu estado de ânimo: diz que se sente enfeitiçado, entorpecido e sob completo encanto. Seu estado espiritual é tão confuso e desorientado, tão fora do comum, que ele se assemelha a alguém que sofreu potente descarga de energia, como se houvera tocado numa raia-elétrica.

226 Mên., 77a 9 -77b1. ta\ de/ g e paradei¿g mata par' e)mou= eiãlhf aj. 227 Na República, Trasímaco fala da famosa ironia de Sócrates, dando a entender como era algo novo e peculiar. “Ó Hércules! Cá está a célebre e costumeira ironia de Sócrates! Eu bem sabia, e tinha prevenido os que aqui estão de que havias de te esquivar a responder, que te fingirias ignorante, e que farias tudo quanto há para não responder, se alguém te interrogasse”. Rep., 337a4-8.

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Mênon: Sócrates, antes mesmo de estabelecer relações contigo (su g g ene /s q a i), já ouvia dizer que nada fazes senão caíres tu mesmo em aporia (a u)t o /j t e a )p o reiÍ j), e levares também os outros (to u\j a Ãllo u j) a cair em aporia. E agora, está me parecendo, me enfeitiças e me drogas (g o h t eu/eij m e ka iì f a rma /t t eij), e me tens sob completo encanto (ka iì a )t e xnw ½j ka t ep # /d ei j ,), de tal modo que me encontro repleto de aporia (me st o \n a )p o ri¿a j). E, se também é permitida uma pequena troça, tu me pareces, inteiramente, ser semelhante, a mais não poder, tanto pelo aspecto quanto pelo mais, à raia-elétrica (na /r kv), aquele peixe marinho achatado. Pois tanto ela entorpece quem se aproxima dela e a toca, quanto tu pareces ter-me feito agora algo desse tipo. Pois verdadeiramente eu, de minha parte, estou entorpecido, na alma e na boca (t h\n y u xh\ n ka iì t o \ st o /m a na rkw), e não sei o que te responder. E, no entanto, sim, miríades de vezes (mu ria /kij), sobre a virtude, pronunciei numerosos discursos, para multidões, e muito bem, como pelo menos me parecia. Mas agora, nem sequer o que ela é, absolutamente, sei dizer. Realmente, parece-me teres tomado uma boa resolução, não embarcando em alguma viagem marítima, e não te ausentando daqui. Pois se, como estrangeiro, fizesses coisas desse tipo em outras cidades, rapidamente serias levado ao tribunal como feiticeiro (w ¨j g o /h j) 228.

Tudo o que é dito nessa passagem é muito relevante e, se

examinado mais pormenorizadamente, comprova outra vez como a aporia e a admiração se imbricam de maneira essencial. Como já foi notado, ao longo do diálogo há a tentativa de apresentar a Mênon uma nova maneira de se fazer perguntas e de se investigar alguma coisa, bem como a ideia de que, para compreender o que seja a virtude ou qualquer outra coisa, deve-se buscar a sua essência e se deixar de lado os

228 Mên., 79e7-80b7.

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múltiplos exemplos possíveis229. Noutras palavras, no diálogo com Sócrates acontece a iniciação de Mênon aos mistérios da filosofia. Embora seja alguém com educação mediana, Mênon ainda é alheio às inovações intelectuais introduzidas pelo mestre de Platão. Esta iniciação sempre implica a reviravolta psíquica que acompanha a admiração; também nesse caso, portanto, há uma pequena anábase em direção ao reino da suprassensibilidade e das essências, praticamente ignorado pelo interlocutor de Sócrates. Antes que isso aconteça, porém, apresenta-se com dramaticidade única a aporia, que neste caso específico parece andar ligada à admiração ou precedê-la imediatamente. Parece que perder o caminho é condição necessária para que a paisagem nos apareça pela primeira vez em sua originalidade, falando-nos de maneira significativa e maravilhosa.

Com efeito, até o presente momento, Mênon manejara com normalidade e destreza todo o conteúdo intelectual que se relaciona à palavra virtude; inúmeras vezes (mu ria/kij) fizera discursos sobre ela, ouvira preleções de grandes sábios e compreendera temas afins. Ele se sentia plenamente tranquilo e senhor de si ao discorrer sobre tal problema, como se tivesse de mencionar algo tão banal, por exemplo, quanto o que comera em sua última refeição. Mas agora, ao tentar manejá-la junto de Sócrates, ele levou espécie de choque, passando a vê-la de modo tão diverso e inabitual, tão estranho e insólito, que até lhe parece irreconhecível. O caminho intelectual que costumava percorrer, toda a vez que se punha a tagarelar sobre a virtude, foi-lhe agora barrado; já não lhe é possível continuar nesta senda; ele está desamparado e perdido, sem saída e sem recursos, que é precisamente o que significa o a)pore iÍn. Mênon compara esse estado de ânimo que o possui com três outros estados: o enfeitiçamento mágico, o entorpecimento químico-venenoso e o choque elétrico. A conversa de Sócrates agiu sobre ele, por conseguinte, de maneira semelhante ao que ocorre com alguém que ingere um filtro mágico, um veneno, ou mesmo um remédio bastante forte; ou então de maneira similar ao que acontece com quem foi enfeitiçado pelos sortilégios de algum mago ou, ainda, sofreu a potente descarga elétrica da tremelga. Em todas essas ocasiões

229 Como Jaeger ressalta, o diálogo tem o caráter de um exercício, que acaba introduzindo Mênon aos pontos essenciais do pensamento socrático. “Platão põe assim diante da consciência dos seus leitores os problemas lógicos elementares, sem cuja compreensão não é possível entender os seus diálogos. Ao fazê-lo, não perde de vista as limitações que a forma literária impõe à explicitação de problemas tão técnicos como este. No entanto, consegue também dar aos não-iniciados uma ideia da dificuldade e do encanto deste novo campo de investigação”. JAEGER, 2003, pg. 702; 708.

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há uma vítima paciente que recebe algo que não pode controlar. Dado que tais fenômenos se produzam no início psíquico da filosofia, para alguém que é declaradamente um ignorante, eles são indicativos da natureza da admiração e devem, pois, ser levados bem a sério.

Em primeiro lugar, a menção do fármaco é significativa por três motivos: pela inserção de tal vocábulo no léxico retórico e sofístico, pelo que Platão atribui a essa palavra no Cármides e pelos efeitos que uma substância alteradora da consciência pode produzir em quem a ingere230. No que diz respeito ao primeiro ponto, já ressaltamos acima como a arte maiêutica faz uso de encantamentos e poções para se desenvolver, e como isso se relaciona intimamente com a sofística e a medicina231. De fato, Platão delega a Sócrates o mesmo poder dos sofistas de enfeitiçar e drogar a alma de seus interlocutores. Mênon expande tal semelhança e a relaciona ainda uma vez à sofística, tocando em vários detalhes fulcrais. Porquanto seja discípulo de Górgias, alguém que admitia explicitamente o vínculo entre a medicina e a retórica, não pode ser casual a atribuição de tal metáfora a Sócrates; pelo contrário, a intenção de dotá-lo dos mesmos poderes taumatúrgicos dos sofistas é

230 Fármaco é palavra com a qual se designa, também, a cicuta bebida por Sócrates. Féd., 57b2. Em Homero, há um uso que mostra a onipotência que tal substância pode conter em si. Quando os amigos de Ulisses são transformados em porcos por Circe, a feiticeira, isso acontece porque tomaram um fármaco. Odisseia, X, 290, 1-3. Ademais, também Platão dota os discursos em geral de um cariz farmacológico. No Fedro, por exemplo, Sócrates só decide sair da cidade porque seu interlocutor descobriu uma poção (f a/rmakon) (o discurso de Lísias) em que Sócrates é viciado. Como os animais que, estando com fome, seguem a comida que se lhes agita na face, Sócrates irá para qualquer lugar da Ática se Fedro balançar em sua frente um discurso. Fedr., 230d3-e1. Cf. DERRIDA, 1991. 231 “A mesma proporção tem o poder do discurso perante a ordenação da alma e a ordenação dos remédios (f�rmakon) perante a natureza dos corpos. Pois, como dos remédios alguns retiram alguns humores do corpo, uns cessando a doença, outros a vida, assim, também, dos discursos alguns atormentam, outros agradam, outros aterrorizam, outros levam os ouvintes a uma situação de confiança e outros, por meio de uma persuasão má, drogam e enfeitiçam a alma”. Elogio de Helena, 14. O próprio Platão põe na boca de Sócrates, momentaneamente metamorfoseado em Protágoras, a ligação entre medicina e sofística. O contexto dramático é muito relevante e também comprova a existência de certa identificação entre os dois personagens. “Assim, também, no domínio da educação (e)n tv= paidei¿#) cumpre passar os homens do estado pior (eÀcewj) para o melhor. O médico consegue tal modificação por meio de drogas (f arma/koij); o sofista, com discursos (lo/g oij)”. Teet., 167a4-6. No Fedro, por sua vez, o parentesco entre a medicina e a retórica é novamente afirmado. Diz-se que a primeira, a fim de produzi robustez e saúde, analisa a natureza do corpo e cuida dele através da alimentação e de remédios (f a/rmaka), ao passo que a segunda, para gerar a virtude, analisa a natureza da alma e lhe comunica convicções por via de discursos (lo/g ouj) e outras práticas. Fedr., 270b4-9.

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intencional e patente232. É fora de dúvida que aquilo que o mestre de Platão suscitava em seus interlocutores se assemelhava aos efeitos causados pelo transe discursivo das peças retóricas. O convívio (su ggene/sqai) com ele também podia alegrar, atemorizar, gerar confiança ou outros sentimentos, da mesma maneira que um remédio provoca mudanças físicas no corpo de quem o experimenta, sejam elas a calma, a purgação de humores, o sono ou qualquer sintoma analgésico. A passividade dos “doentes” que recebem o fármaco é a mesma em ambos os casos: alguns têm a sorte de parir algum rebento intelectual interessante; outros apenas aturam as dores vertiginosas do parto sem que nunca cheguem a conceber. Mênon, como se pode perceber, por enquanto só conhece a aporia e as tonturas; apenas pelo fim do diálogo, quando entender o que seja a reminiscência, terá sentido algo de positivo, embora seja seu escravo quem será agraciado com o nascimento de um belo filho. Ele mesmo só assiste às fases do parto.

No que toca ao Cármides, por sua vez, vemos a palavra fármaco ser usada para designar a filosofia. Com efeito, neste pequeno diálogo Sócrates conversa com o jovem Cármides sobre a sabedoria, logo depois de haver retornado da batalha em Potideia. Os demais personagens presentes fazem o elogio do efebo e comentam a sua beleza física. Sócrates acha o menino realmente fora do comum e se deixa arrebatar por ele como se fosse um cabrito diante de um lobo233. Todavia, num contexto mui similar ao do Teeteto, ele se mostra interessado em saber se a alma do belo rapaz é também bem dotada por natureza como o seu corpo234. Segundo Crítias relata, Cármides estava há poucos dias se queixando de dores de cabeça; agora, porém, teve a ventura de encontrar um médico capaz de curá-lo. Assim, Sócrates se admite médico e possuidor de um remédio ou filtro (f a/rmakon) que deve ser usado junto com certas palavras mágicas (e ) p% dh\ de / t ij) para curar a dor mencionada. Ele não pode aplicar o remédio simplesmente, sem mais nem menos, mas precisa que Cármides mude todo o regime de sua vida para que a química surta algum efeito positivo. Segundo suas palavras, ele aprendeu como ministrar tal poção, bem como os encantamentos adjacentes, junto de Zalmóxis, conhecido

232 No final do diálogo, a aparição de Ânito e a discussão explícita sobre os sofistas também comprovam tal fato. “Sócrates é expressamente colocado sobre este fundo da paidéia sofística, na parte final do Mênon, quando no diálogo aparece uma nova figura, a de Ânito, que orienta a conversa para o problema da educação certa”. JAEGER, 2003, pg. 715. 233 Cárm., 155e. 234 Cárm., 154e. A expressão para “bem-dotado” é a mesma do Teeteto: euÅ pef ukwj.

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médico trácio que sofreu influência dos círculos pitagóricos235. Este médico asseverava que a alma tem poder soberano sobre o corpo e suas doenças, sendo que dela nascem todos os bens e todos os males que podemos receber. Desse modo, pelo tratamento da alma podem ser curadas as enfermidades tanto corpóreas quanto psíquicas, um postulado que, em certo sentido, era partilhado pela medicina grega e também por Antifonte, o sofista236. Os encantamentos que acompanham o remédio se compõem de belos discursos capazes de gerar a sabedoria, virtude que faz com que a alma facilmente produza a saúde no corpo. Sócrates exige, por conseguinte, que Cármides entregue sua alma inteira aos encantamentos que ele aprendeu com o trácio, pois do contrário nada há de dizer.

Ora, esse prólogo, além de descrever a Sócrates como um xamã ou curandeiro, dá a entender que o remédio e os encantamentos evocados na ocasião constituem a própria filosofia ou, no mínimo, a ação de Sócrates sobre a alma das pessoas237. O apelo contido nessas 235 Cárm., 155b-157c6. Zalmóxis pode ter sido escravo de Pitágoras. Ele teria ensinado a crença na imortalidade da alma aos Getas e aos Druidas, tendo se tornado um deus depois de sua morte. CORNFORD, 1989, pg. 144; KAHN, 2007, pg. 30. O papel do filósofo como médico é também mencionado no relato autobiográfico da Carta VII. Platão ali se compara com o médico a quem solicitam conselhos para viver melhor. Ele afirma que, se a pessoa estiver disposta a melhorar e a procurar ajuda, é para ele um dever da consciência ajudá-la. Contudo, se o enfermo se recusar a passar pelas fases do tratamento, é melhor então que o médico o abandone e não perca seu tempo com ele. Essas palavras são ditas a fim de justificar uma de suas idas de Platão a Siracusa. Carta VII, 330c-331d5. 236 Segundo Dherbey, Antifonte conseguia metamorfosear o “gênio” lacrimoso e triste de seus pacientes apenas usando do discurso; e o conseguia porque acreditava, de antemão, na origem psíquica de certas doenças. Dherbey afirma ainda que Antifonte antecipa alguns postulados da Psicanálise, como a descoberta do conteúdo psicológico latente via análise dos sonhos. DHERBEY, 1986, pg. 106. O parentesco da medicina com a catarse ou a mudança de disposição era algo conhecido na Grécia inteira pelo culto a Asclépio, o deus-herói da medicina. No tempo de Platão, tal culto estava sobremodo espraiado e já possuía conotações de caráter físico, isto é, já era visto como arte de curar o corpo. Entretanto, nos primórdios de tal tradição, os templos dedicados a Asclépio tinham que ver tão somente com a cura do espírito (nooterapia), ou com aquilo que se explica modernamente pelo termo metanoia, emprestado da psicologia analítica de C. G. Jung. Assim, em certo sentido, a medicina grega original era espécie de mutação da alma que levava à cura do corpo. BRANDÃO, 1987, pg. 92. Mesmo na Psicanálise se mantém a ideia de que doenças psíquicas podem se manifestar no corpo do indivíduo; é o que se chama tecnicamente de conversão histérica. A cura da alma, por conseguinte, também pode sanar os males do corpo. Robinson ressalta que Platão descobriu no Cármides a origem psicossomática de algumas doenças. ROBINSON, 2007, pg. 41. Esse fato, aliado à descoberta dos conflitos psíquicos do indivíduo, representada pela tripartição da alma, poderiam dar razão a Jaeger, quando diz que Platão é o pai da Psicanálise. JAEGER, 2003, pg. 958. 237 A ideia de que Sócrates apresente traços de xamã e curandeiro é mais ou menos aceita de modo geral atualmente. “If I am right in my tentative guess about the historical antecedents of the Pythagorean movement, Plato in effect cross-fertilised the tradition of Greek rationalism

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comparações é bem típico da conversão da alma exigida pelo platonismo: não se pode ser sábio se ainda estamos na caverna, pois isso seria como pôr uma atadura num corpo com hemorragia interna; é preciso que toda a vida da pessoa sofra uma mutação para que ela possa começar a viver sabiamente e compreender os ensinamentos filosóficos. Platão lança, pois, um grande argumento ad hominem, exigindo certa disposição de espírito, certa experiência para tornar claras e verazes suas doutrinas. Mas o mais importante é que atribui mais uma vez à ação de Sócrates a capacidade de drogar e entorpecer a alma daqueles que a sofrem. Se ficasse apenas nisso, sem modificar toda a dieta existencial da pessoa, seria como os sofistas; mas ele exige justamente conversão pela qual a pessoa é transmudada completamente238. Tal conversão representa a saída da caverna que se inicia através do maravilhamento e, como vemos agora, ela se assemelha em uma de suas fases ao que uma droga produz em nossa alma, possuindo assim um efeito etimologicamente farmacêutico239. A alusão ao fármaco do Mênon, portanto, está intimamente unida ao processo geral do início da filosofia, sendo que podemos tomar os seus efeitos como signos da admiração.

with magico-religious ideas whose remoter origins belong to the northern shamanistic culture”. DODDS, 1978, pg. 208. Duhot acredita, por exemplo, que o remédio que Sócrates aprendeu na Trácia seja precisamente o xamanismo. DUHOT, 2004, pg. 58. E Grimaldi ressalta que Sócrates possui todas as características próprias dos xamãs, segundo a enumeração feita por Mircea Eliade: ele é curandeiro; pode devolver as pessoas à sua própria identidade, ao seu eu mais veraz; é habitado por um espírito divino; pode se libertar do corpo e viajar até o céu. GRIMALDI, 2006, pg. 9. 238Segundo Grimaldi, este encantamento é obsedante nos primeiros diálogos e constitui toda a “primeira filosofia” de Platão, que será esclarecida pela segunda, aquela do Fédon e da República. GRIMALDI, 2006, pg. 8, n. 6; pg. 30. Cushman pensa corretamente que os encantamentos, por sua natureza evocativa e sugestiva, estão ligados à maiêutica; eles não transmitem conhecimentos, mas fazem com que a alma seja levada à persuasão. CUSHMAN, 2007, pg., 20. 239 Slezák também entende o fármaco e os encantamentos mencionados no Cármides como a própria filosofia, mais precisamente as supostas doutrinas não-escritas de Platão. Trata-se para ele dos princípios centrais da ciência dialética do bem e do mal. Tais princípios podem ser formulados, mas não podem ser ditos a todas as pessoas. “Não pode haver dúvida de que a metáfora do phármakon contém uma declaração sobre a forma correta de se comunicar o saber filosófico”. SLEZÁK, 2005, pg. 107. Seja tal saber escrito ou não, o fato é que a metáfora serve para designar a filosofia. Aliás, Robinson ressalta que a tradução francesa usou o termo discours philosophiques para dar conta da palavra lógos que aparece nessa ocasião. Ele considera a opção legítima, mas oferece em seu lugar os termos bom conselho ou conselho sólido, a fim de salientar que se trata de uma processo de aprendizagem intelectual. ROBINSON, 20007, pg. 43. Nos Memoráveis, Sócrates diz que possui vários amantes (Apolodoro, Antístenes, Símias, Cebes) que foram cativados com o uso de encantamentos (e)p%dw½n), filtros (f i¿ltrwn) e outros sortilégios (i¹u/g g wn). Trata-se certamente de outra alusão à filosofia. Memoráveis, III, 11, 16-17.

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Quanto às substâncias alteradoras da consciência – o fármaco visto como gênero de entorpecente ou droga – Platão é mais reticente: ele não chega a especificar que tipo de entorpecimento químico estaria em jogo. Contudo, podemos alargar sua metáfora a fim de compreendermos a relação do fármaco com a admiração.

Várias são as descrições contemporâneas do que essas substâncias produzem sobre os indivíduos que as ingerem. Os relatos mais famosos são os de Thomas de Quincey, de Baudelaire, de Walter Benjamim e de toda a literatura da New age, que vai de Terence Mckenna e Timothy Leary a Aldous Huxley. Não obstante se trate de anacronismo atribuir aos antigos, sem precisas ressalvas, aquilo que foi escrito em condições completamente diversas e peculiares, no mínimo podemos tomar em consideração um aspecto dessa experiência para entender melhor nosso tema, a saber, o fato de o indivíduo entorpecido ser levado a ver as coisas que o rodeiam de maneira inteiramente nova, incomum, como se as contemplasse pela primeira vez240. Aldous Huxley descreveu de maneira sublime como certos objetos familiares e de há muito conhecidos – como as dobras de sua calça, as flores de sua sala e uma cadeira – se lhe apresentavam inteiramente transfigurados e diferentes, depois de ele haver ingerido pequena dose de mescalina, a substância psicodélica contida no cacto peiote. Ele foi conduzido, em suas palavras, a uma visão sacramental da realidade; viu as coisas como elas realmente eram, em toda a sua perene e exultante beleza, e até chegou a ficar em pânico diante do desconhecido que se desocultou na confortante intimidade das coisas familiares. Ao falar de como a cadeira se apresentou sob forma inusitada, por exemplo, ele escreve:

Confronted by a chair which looked like the Last Judgement – or, to be more accurate, by a Last Judgement which, after a long time and with considerable difficulty, I recognized as chair – I found myself all at once on the brink of panic241.

240 Em certo sentido, sentimo-nos autorizado a alargar tal metáfora por conta do trabalho de Giulia Sissa. Esta autora empreende caminho parecido com o nosso: ela analisa as descrições contemporâneas das drogas e da toxicomania – Freud, Burroughs, de Quincey etc. – à luz do que os Antigos falavam sobre a insaciabilidade do prazer e de como ele pode facilmente se tornar um mal que tiraniza a alma das pessoas. É trabalho pioneiro e extremamente prolífico. SISSA, 1999. 241 HUXLEY, 1977, pg. 45. Em grande medida, o livro de Huxley é uma exploração do conteúdo numinoso que se revela em experiências visionárias propiciadas por substâncias psicodélicas. A ideia de numinoso, largamente usada por Rudolf Otto, representa por sua vez a manifestação de algo divino, independente da vontade do indivíduo e capaz de ocasionar

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Huxley continua comentando que esse pânico é muito parecido

com o que sentem aquelas pessoas que, repentinamente, são elevadas a um patamar de visão em que podem contemplar o Mysterium tremendum. O tom reverencial que está presente nessa contemplação visionária é similar ao que dissemos acima sobre a admiração, pois em ambos os casos ocorre a manifestação de algo divino ou numinoso, que nos deixa admirados mercê de sua extrema raridade e poder. Algo do gênero padeciam as testemunhas dos milagres que Cristo realizava, bem como os santos e demais profetas que tinham o dom das visões, como o atesta a ligação entre mirari e miraculum. No caso de Mênon, embora não haja traços de reverência, de medo ou de êxtase, tampouco a menção dos deuses, há considerável mudança de percepção que se assemelha ao que acontece com que ingere alguma dessas substâncias. Mênon também teve sua percepção intelectual de tal forma alterada, que já não era capaz de reconhecer a virtude, algo que anteriormente lhe era tão familiar e íntimo quanto a cadeira em que Huxley sentara várias vezes. O fármaco segregado pela personalidade de Sócrates, através de suas palavras e de seus atos, fez com que o mais habitual se tornasse, de repente, o mais distante e ignoto; houve uma forma de revelação para alma de Mênon, revelação que atualmente chamaríamos de psicodélica. Em certo sentido, isso acontece porque a esfera divina do original (‡rxÐ), onde deuses como Taumante presidem a tudo, foi confrontada com a esfera do dia-a-dia. Através da porta-voz intermediária, a filosofia (Íris), os deuses vieram habitar o recinto familiar de uma conversa casual sobre um tema já desgastado pelo uso. Noutras palavras, a suprassensibilidade desfigurou a simples esfera das sensações e a alçou a outro nível. Houve assim um alargamento de perspectiva, que saiu do meramente humano e sensível para o contemplar próprio dos deuses, o qewre iÍn2 42. Mênon, tal como alguém enfeitiçado e drogado, que mal e mal pode se mover entre a estranheza de mesas e cadeiras agora completamente novas, logo terá de ser conduzido docilmente por

mudança especial de consciência. Essa é a regra universal nas religiões. JUNG, 1995, pg. 9. “En un sentido específicamente religioso puede considerarse la admiración como una de las formas en que se manifiesta la actitud ante lo numinoso”. MORA, 1981, pg. 61. 242 Já mencionamos os nexos umbilicais que ligam a admiração à teoria. “Na verdade, theoría é apenas outra palavra para thaumázein; a contemplação da verdade à qual o filósofo chega finalmente é o assombro mudo, filosoficamente purificado, com o qual começou”. ARENDT, 1997, pg. 315. Na oscilação judicativa de Heidegger vê-se a mesma conclusão. Ora ele afirma que a vontade de permanecer junto ao Ser era, para os gregos, a teoria; ora afirma que era a admiração. HEIDEGGER, 1997, pg. 96-7; Idem, 1979, pg. 21.

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Sócrates, abandonando sua presunção costumeira por outra disposição, a da admiração. A experiência primordial que ele vivia, o páthos de supor saber alguma coisa, foi transmudada pelo páthos da admiração. Ele se encontra passivamente entregue aos rompantes patológicos da experiência filosófica, caminhando em direção à visão do ser.

As palavras mais simples, as ideias mais triviais tomam uma fisionomia nova e estranha; você se espanta de, até o momento, tê-las achado tão simples243.

Pode até parecer descrição exata do que acaba de suceder a Mênon, mas é na verdade um diagnóstico de Baudelaire sobre os efeitos que o haxixe produz em quem o consome. Sem dúvida, o uso de substâncias que alteram nossa consciência e visão sempre acarreta algum gênero de maravilhamento, que pode nos libertar das pressões do cotidiano e daquilo que supúnhamos conhecer. Trata-se de um fato conhecido pela maioria das sociedades e por algumas religiões sacramentais, que ultimamente tem sido explorado com êxito para fins comerciais e ideológicos. Sob o influxo de psicodélicos, ou mesmo de algo corriqueiro como o álcool, muitas pessoas se admiram com a mudança na percepção das cores; outras se olham no espelho e acham inusitadas as próprias feições; outras ainda padecem de certa hilaridade advinda de conexões de ideias e raciocínios que nunca haviam notado. O mundo todo à sua volta se transfigura e causa impressões que variam do imenso prazer contemplativo, muitas vezes decantado em expressões artísticas, até os terrores de visões e fenômenos incontroláveis. Independentemente do teor dessas experiências, há o mais das vezes uma passividade que faz com que o indivíduo se sinta completamente à mercê do que lhe ocorre. A retórica, outra experiência patética de índole farmacêutica, também tem a capacidade de domar a alma de quem lhe sente o poder e conduzi-la para vários lugares. Górgias dizia que o discurso, embora não possua a mesma aparência que a necessidade, tem o mesmo poder; ou seja, apesar de ser aparentemente inócuo, ele é poderoso o bastante para nos modificar de maneira necessária, sem que possamos fazer alguma coisa244. Quem ingere algum remédio, veneno ou poção, entrega-se à necessidade do efeito: já não pode conter o que lhe acontece e se torna passivo diante das alterações que suporta. A sua

243 BAUDELAIRE, 1998, pg. 25. 244 Elogio de Helena, 12, 3-4.

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possível admiração mantém nexos claros com a admiração dos filósofos, porque ambas são enoveladas pela experiência de passividade, pela perda de familiaridade com as coisas habituais e pela sensação de estranhamento. Isso também é parecido com a postura habitual das crianças, dizíamos nós, antes que nelas “desponte a cor de camaleão própria dos homens”, para usar da expressão de Hölderlin.

Essa mesma série de eventos se dá no enfeitiçamento, que também é atribuído a Sócrates e aos sofistas. De maneira parecida ao efeito dos fármacos, o encanto ou o enfeitiçamento mágico também produzem um modo inabitual de se ver o mundo, tornando passivos aqueles que o suportam e os conduzindo para regiões desconhecidas. O homem arrebatado pelo êxtase dionisíaco, ou aquele que foi hipnotizado, sentem várias modificações em tudo o que lhes era mais costumeiro. Sob o encanto de uma bruxa ou de um mago, é possível que alguém sinta amor por pessoas antes vistas como repugnantes, e ódio por entes anteriormente amados; diversas proezas são levadas a cabo por pessoas encantadas. Dom Quixote exemplifica sublimemente, sempre para desespero de Sancho Pança, o que significa estar enfeitiçado pelos temíveis nigromantes: um moinho transforma-se em um gigante, uma ovelhada vem a ser um exército e tudo o que era visto de maneira simples e conhecida adquire novas proporções por conta dos poderes taumatúrgicos atuantes. Há aqui a perda de familiaridade que já dissemos ser constituinte do maravilhamento. Como as tonturas do jovem Teeteto, o enfeitiçamento altera aquilo que nos rodeia e, apresentando-o pela primeira vez, pode facilmente torná-lo admirável. Aliás, talvez seja esse o vínculo existente entre o uso dos adjetivos “admirável”, “curioso” e “encantador”. É sempre uma experiência imbuída das características acima que nos impele a empregar tais palavras, muitas vezes de forma indiferenciada. Além disso, a mesma alteração acontece para quem sofre uma descarga elétrica e se vê tomado pelo efeito narcótico da tremelga. Ocorre um momento de extrema intensidade em que tudo se mostra sob nova face: insólito, inusitado, novo. Não há como dominar a corrente de energia que se propaga em nosso íntimo e sentimo-nos absolutamente passivos diante de tudo o que ela nos provoca. Como será visto no quarto capítulo, a ação de Sócrates também se assemelha à mordida de uma víbora, fenômeno que possui estreitas relações com o que acabamos de dizer. Além dos poderes similares aos de Dédalo, Sócrates ainda possui as variantes elétrica, farmacêutica, mágica, ofídica e báquica.

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Há que se prestar bastante atenção, por fim, à afirmação de Sócrates segundo a qual ele causa aporia nas outras pessoas apenas depois de ter ele mesmo se entorpecido com suas próprias indagações. No Eutífron, como notamos, também é sublinhada a capacidade que Sócrates possui de pôr no mesmo estado em que se encontra aqueles com quem conversa.

Sócrates: (...) Quanto a mim, se a raia-elétrica (na /r kh), ficando ela mesma entorpecida, é assim que faz também os outros entorpecerem-se (na rka = n), eu me assemelho a ela; se não, não. Pois não é sem cair em aporia eu próprio que faço cair em aporia os outros. Mas, caindo em aporia eu próprio mais do que todos, é assim que faço também cair em aporia os outros. Também agora, a propósito da virtude, eu não sei o que ela é; tu entretanto talvez anteriormente soubesses,

antes de me ter tocado (e)mo u= a Ày a sqa i); agora porém estás parecido a quem não sabe. Contudo, estou disposto a examinar contigo (m et a \ so u=), e contigo (su z h t h=sa i) procurar o que ela possa ser 245.

Depois de tocar (aÀyasqai) na raia-elétrica, Mênon sofre a

narcose de Sócrates e passa a desconhecer o significado da virtude. O simples toque faz com que ele seja perpassado por uma série de fenômenos que o modificam e deixam passivo. Talvez ironicamente, Sócrates assevera que não tem o intuito de levar seus ouvintes a caírem em aporia, mas que o faz de maneira natural, como algo que decorre de seu modo de proceder; no Eutífron, como visto, ele também garante que desejaria ver as palavras imóveis e sossegadas. Outra vez temos a clara afirmação de que ele também padece a passividade que a filosofia enquanto admiração acarreta em quem a experimenta. Sócrates não pode se conter e ficar sem se perguntar originariamente sobre as coisas, de tal maneira que elas sempre se apresentem de forma nova e inusitada e ele reconheça que as ignora. Constantemente ele se intoxica com o próprio veneno e se enfeitiça com as próprias palavras: elabora certo caminho

245 Mên., 80c6-d4. No Cármides, Sócrates também passa o seu estado aporético para Crítias: “Ouvindo tais argumentos e vendo-me cair em aporia, da mesma maneira como aquelas pessoas que, ao verem a outrem bocejar, imediatamente sofrem a mesma coisa, Crítias foi forçado pelo meu estado aporético, assim me pareceu, a deixar-se ele mesmo conquistar pela aporia”. Cárm., 169c3-6. Tradução nossa.

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intelectual e o percorre, mas, antes que encontre qualquer certeza, acaba ficando sem saída e sem recursos, e se admira de que as coisas sejam como são. O estar constantemente no estado admirativo, qualidade que é sobretudo (ma/la) própria aos filósofos, dificilmente permite que as coisas se solidifiquem e marmorizem a ponto de termos certeza de que sabemos alguma coisa. Pelo contrário, o brusco rompante da admiração, transmudando momentaneamente a natureza do objeto visado, sempre revela que a subida em direção ao Sol ainda não foi realizada e deve continuar a ser trilhada. Há até certa liberdade neste movimento psíquico, porque através dele o filósofo se liberta das amarras de hábitos mentais que lhe podem mascarar a verdadeira natureza dos entes. Essa libertação nem sempre é bem vista, justamente porque pode destruir a aparente segurança que reina no senso comum e na tradição246. É em razão disso, aliás, que Mênon se dá conta de que esse poder de Sócrates é algo temido pela maioria das pessoas, que prefere viver confortavelmente no interior da caverna. Assim, aconselha-o que fique em Atenas, porque poderia ser tomado como feiticeiro (go/h j) se fosse para outra cidade247. Mas sabemos que ele nem precisou viajar para que isso acontecesse: até os seus amigos mais íntimos, presentes no momento de sua morte, o viam como espécie de mago248, e a sua cidade natal, supostamente democrática, tomou para si o encargo e a infâmia de exterminá-lo antes que causasse maiores problemas.

O diálogo Mênon, portanto, tematiza de maneira positiva a aporia e revela os seus vínculos com a admiração. Ele continua em seu percurso dialético até desembocar na teoria da reminiscência, o que comprova como esses temas se relacionam intrinsecamente com a nova

246 Conforme o Fedro, existem também quatro loucuras divinas que ocasionam uma libertação divina dos hábitos. Fedr., 265a9. Defendemos em uma comunicação que Platão atribui a Sócrates as quatro loucuras que apresenta nesse diálogo e, por conseguinte, o poder de mudar os hábitos das pessoas. Cf. ENGLER, 2009, pg. 35-6. 247 Mên., 80b6. A afirmação tem base gorgiana, uma vez que utiliza o mesmo conceito (g ohtei¿a) com o qual Górgias define o encantamento retórico. Elogio de Helena, 10, 4. 248 No Fédon, Cebes diz haver uma criança, no interior de todas as pessoas, que teme a morte, e pede que Sócrates a convença da imortalidade da alma para que ela se livre de tal medo. Sócrates então responde: “Mas é necessário, disse Sócrates, que se façam encantamentos (e)p#/dein) todos os dias, até que eles a livrem disso”. E Cebes retruca: “E onde encontraremos um bom encantador (a)g aqo\n e)p%do\n), uma vez que nos deixas?” Féd., 77e8-78a2. Tradução nossa. O encantamento é usado nessa ocasião e em outras similares em virtude da natureza psíquica dos interlocutores de Sócrates, que ainda não está desenvolvida o bastante para entender argumentos propriamente racionais e filosóficos. Como Doods enfatiza, o racionalismo é para poucos; a maioria das pessoas precisa de mitos, de encantamentos e de nobres mentiras para ser moralmente saudável. Todavia, Platão usa tais artifícios tendo em mira a racionalidade. DODDS, 1978, pg. 212.

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forma de saber descoberta por Platão. Pode-se ver que a arte maiêutica e a reminiscência realmente se encontram e sugerem experiências similares: o efeito purgativo ou irônico de Sócrates, o aparecimento da aporia e da admiração, a passividade dos parturientes, o estranhamento que sentem, a perda de familiaridade com as coisas habituais etc. Não é possível dar à luz antes que se sofram todas as dores relativas ao parto, o que quer dizer que não se pode rememorar uma ideia sem que, anteriormente, se padeça a ação purgativa de Sócrates e se comece a filosofar através da admiração.

Isto fica claro na cena em que o escravo de Mênon é ajudado por Sócrates a rememorar a solução para um problema matemático. Depois de uma série de raciocínios simplórios, pois, Sócrates leva o escravo a cair em aporia. Ele afirma que não fez nenhum mal ao menino por entorpecê-lo, mas antes o ajudou, pois agora ele sabe o que ignora e tem talvez o desejo de conhecer. Na sua ignorância anterior, ele nem ao menos percebia seu estado em relação ao assunto em apreço; vivia em harmonia consigo mesmo e pensava discorrer com propriedade sobre aquilo que desconhecia. Agora que foi enfeitiçado, porém, encontra-se em melhor posição, pois pode vir a sentir prazer em relação ao tema que desejou conhecer.

Sócrates: Estás te dando conta mais uma vez, Mênon, do ponto de rememoração em que já está este menino, fazendo sua caminhada? Estás te dando conta de que no início não sabia qual era a linha da superfície de oito pés, como tampouco agora ainda sabe. Mas o fato é que então acreditava, pelo menos, que sabia, e respondia de maneira confiante, como quem sabe, e não julgava estar em aporia. Agora porém já julga estar em aporia, e, assim, como não sabe, tampouco acredita que sabe. Mênon: dizes a verdade. S: E não é verdade que agora e melhor a respeito do assunto que não conhecia? M: Também isso me parece. S: Tendo-o então feito cair em aporia e entorpecer-se como faria uma raia, será que lhe causamos algum dano? M: Não, não me parece. S: De qualquer forma, fizemos algo de proveitoso, ao que parece, em relação a ele

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descobrir de que maneira são as coisas de que tratamos. Pois agora, ciente de que não sabe, terá, quem sabe, prazer em, de fato, procurar, ao passo que, antes, era facilmente que acreditava, tanto diante de muitas pessoas quanto em muitas ocasiões, estar falando com propriedade, sobre a superfície que é o dobro, que é preciso que ela tenha a linha que é o dobro em comprimento. M: Parece. S: Sendo assim, acreditas que ele trataria de procurar ou aprender aquilo que acreditava saber, embora não sabendo, antes de ter caído em aporia – ao ter chegado ao julgamento de que não sabe – e de ter sentido um anseio por saber? M: Não me parece, Sócrates. S: Logo, ele tirou proveito de ter-se entorpecido? M: Parece-me que ele tirou 249.

Com a aporia, assim, Sócrates cria o anseio por conhecimento; faz com que algo aparentemente banal e conhecido de todos receba novo colorido, desperte a atenção de quem o contempla e cause admiração por ser como é. A pessoa para quem isso acontece se sente narcotizada, encantada ou entorpecida. A sua posição é passiva e acarreia a perda de familiaridade com o que supunha saber e o estranhamento consigo mesmo e com aquele objeto de reflexão específico; assemelha-se ao que sente alguém que experimenta uma substância alteradora da consciência. Aqueles que continuarem sob o influxo desse anseio chegarão ao ponto de querer e amar (fil™w) a sabedoria (sof°a), ou seja, poderão tornar-se filósofos. Todavia, a condição prévia para que tal aconteça reside na entrega do sujeito à objetividade dos argumentos, isto é, ele precisa acolher a experiência em que as coisas se revelam em sua propriedade e natureza (wj a)lhqw½j) e embarcar em sua jornada perigosa a fim de que possa realmente se livrar de pré-concepções e pensar de forma essencial. Não há como filosofar sem que nos deixemos levar passivamente pela periculosidade da experiência que origina e comanda a filosofia. A filosofia é experiência essencialmente patética. O próprio Mênon, ao ver a cena do escravo, percebe o que acabou de ocorrer consigo mesmo: vê como era ignorante e como agora está em melhor posição, desejando verdadeiramente saber o que é a virtude. Todo esse processo psíquico acontece em razão da mudança da

249 Mên., 84b1-c9.

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experiência de ignorância pela experiência de admiração, mudança essa que é mediada pela ação de Sócrates. Trata-se de uma modificação ontológica que conduz o aspirante ao saber a uma esfera própria dos filósofos: o ponto intermediário entre os deuses e os homens ou entre a suprassensibilidade e o reino sensível. É essa esfera intermediária que analisaremos no próximo capítulo.

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III

A FILOSOFIA COMO ESFERA INTERMEDIÁRIA ENTRE O SENSÍVEL E O INTELIGÍVEL

Cuando Platón quiere conocer una cosa que está a su vera, lo primero que hace es echar a correr en direción opuesta, alejarse infintamente de ella, irse más allá de los astros, y desde un “lugar supraceleste”, viniendo en retorno, ver que se puede decir con sentido sobre las cosas de este mundo, que tanto carecen de él. Esta platónica fuga para acercarse me parece la invención más genial que en el orden teorético se ha hecho en el planeta, sin que quepa comparársela ninguna otra.

Ortega y Gasset250.

3.1. O páthos da ignorância Há pouco enfatizamos, em nossa análise da filosofia enquanto experiência patética, como Eutífron e Mênon eram duas pessoas que, supondo saber alguma coisa, na verdade não passavam de ignorantes e desconheciam o sentido real daquilo cuja ciência acreditavam possuir. Mostramos também como a sua experiência foi radicalmente modificada no momento em que entraram em contato com Sócrates: no caso de Eutífron, ela foi volatilizada a ponto de o adivinho já não conseguir entender e tampouco marmorizar intelectualmente o que era a piedade; no caso de Mênon, ela provocou transe similar ao enfeitiçamento, ao entorpecimento químico-venenoso e à poderosa descarga elétrica da tremelga. Tomamos esses eventos como epifenômenos da admiração, uma vez que eles aconteceram para pessoas que filosofaram graças à influência de Sócrates e que vivenciaram, assim, o princípio psíquico da filosofia. A mesma coisa aconteceu ao jovem Teeteto, embora de forma mais completa, quando padeceu tonturas e vertigens ao se entregar à reflexão filosófica. Neste capítulo, fundamentaremos melhor o que há por trás desses fenômenos através do conceito de intermediário (me t ac u/). Em primeiro lugar, mostraremos como a ignorância é também experiência patética, coisa que já deixamos entrever

250 GASSET, 1983, pg. 156-7.

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anteriormente; e, em segundo, explicaremos como a passagem da ignorância inconsciente para a consciência da ignorância – passagem que caracteriza o início da filosofia – necessita de uma mudança de afecções para ocorrer. Feito isso, tornar-se-á clara a ideia de que a filosofia representa a esfera intermediária entre o sensível e o inteligível. De fato, o movimento que leva a pessoa ignorante, através da catarse irônica e da aporia, até o estado em que é consciente de sua situação, é também a abertura de uma esfera ontológica em que o divino se acerca do humano e o inteligível se acerca do sensível. A filosofia, personificada tanto na figura de Eros quanto na de Íris, pode estabelecer a comunicação entre essas duas instâncias e produzir através disso o maravilhamento.

Não foi outra coisa, aliás, que ocorreu com os casos já analisados. Como dito, o efeito sofrido por Teeteto e pelos dois personagens acima adveio, em grande parte, do contato com a esfera da suprassensibilidade. Antes de conhecerem Sócrates e de filosofarem, eles nem ao menos suspeitavam da existência de algo do gênero, vivendo absortos nas trevas da caverna e crendo serem reais as sombras que tinham diante dos olhos. Essa é situação de quase todos os personagens dos Diálogos. Ao serem levados a cair em aporia e ao se admirarem, contudo, tiveram sua visão intelectual alargada até o nível contemplativo dos deuses, a teoria, fato que os deixou ainda mais desconcertados e perdidos, pois os afastou da segurança habitual de que há pouco desfrutavam. Já ressaltamos como a teoria e a admiração, afora o ponto de vista semântico, possuem estreitas conexões entre si; agora podemos ver que a sensação de estranhamento contida no estado admirativo também é gerada pela dilatação intelectual implicada na peregrinação teorética. Sem dúvida nenhuma, tudo isso só foi possível em razão do auxílio imprescindível de Sócrates. Como verdadeiro filósofo, pois, Sócrates habita região intermediária entre os deuses e os homens ou entre o reino dos sensíveis e dos inteligíveis. Ao conversar e ao conviver com as pessoas, ele acaba muitas vezes por conduzi-las – de maneira intencional, mas amiúde até contra a sua vontade – para a mesma esfera ontológica em que vive. Assim, a sua ação pedagógica geralmente consiste em suscitar espécie de anábase psíquica pela qual seus interlocutores se afastam da escuridão cavernal e são guiados para mais perto da luminosa região solar. Tal experiência caracteriza o início psíquico da filosofia e não acontece apenas uma vez, mas comanda nossos movimentos intelectuais e está presente sempre que se pensa de maneira originária e verdadeira algum novo conceito. Ela se conecta

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intimamente com a aporia e implica a perda de familiaridade com as coisas habituais, a sensação de estranhamento e de passividade. Em sua base, pois, repousa a mudança de duas afecções específicas: a passagem da ignorância para o maravilhamento. Teeteto, Eutífron e Mênon, malgrado as diferenças de cada caso, foram auxiliados por Sócrates na substituição de um afeto por outro. Isso foi possível porque a própria ação de Sócrates sobre eles, seja como ironia ou como maiêutica, tem o mesmo estatuto ontológico de tais eventos e suscita passividade semelhante.

Essa mudança de afecções, pois, não é coisa de somenos. Em verdade, no que concerne ao saber, Platão estabelece tripartição das almas em três classes distintas: na primeira delas estão os ignorantes, que supõem ter algum conhecimento; na segunda estão os filósofos, que possuem consciência da própria ignorância; e na terceira estão os deuses, que são oniscientes e possuem a ciência e a virtude em sua plena inteireza. Já nessa divisão, recorrente em mais de uma obra, os filósofos ficam a meio caminho entre os homens e os deuses. A sua posição é caracterizada pelo maravilhamento, ao passo que a dos meros mortais tem como signo a ignorância e a dos deuses, pois, a ciência e a virtude perfeitas. O princípio psíquico da filosofia, portanto, é a passagem da primeira classe para a segunda, o que implica também o afastamento da região terrena e a aproximação da esfera divina da suprassensibilidade. Dois trechos muito importantes, com efeito, relacionam os dois temas acima e afirmam explicitamente a ignorância é um p�qov que só pode ser curado pela ação pedagógica de Sócrates. Não os comentamos no capítulo passado, pois, com o intuito de ligá-los imediatamente à noção de intermediário. O primeiro deles se encontra no diálogo Alcibíades Maior e o segundo, no Sofista.

3.2. O Alcibíades Maior

No diálogo dedicado a um dos amados de Sócrates, Platão descreve como o filósofo usava de sua própria singularidade para suscitar a admiração de seus interlocutores e, igualmente, oferece importante análise da ignorância. O primeiro ponto será visto no próximo capítulo. Ocuparemo-nos agora da análise da ignorância, a fim de criar terreno para as nossas conclusões acerca do intermediário.

Depois de um prólogo em que Sócrates declara sua constante preocupação pelo futuro do jovem Alcibíades, e em que o menino se

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confessa admirado pelo misterioso modo de agir do filósofo, Sócrates decide explicar quais seriam as causas desse seu zelo permanente. Para fazê-lo, vai direto ao coração de Alcibíades e pinta com imagens perenes a psicologia do jovem e as suas principais preocupações existenciais. Em muitos pontos a descrição platônica é perfeitamente exata com a figura histórica de Alcibíades e, se não bastasse, ainda parece vaticinar a aparição de um Alcibíades futuro – o fogoso e destemido Alexandre, o Grande – cujos ambiciosos planos lograram tornar-se reais. Sócrates nunca deixou de amar Alcibíades porque está certo de que todos os bens que o efebo possui – sua beleza, sua riqueza, sua inteligência etc. – não são suficientes para fazê-lo feliz. Em verdade, se um deus lhe aparecesse e lhe proibisse outras conquistas no porvir, obrigando-o a permanecer como é e com o que tem, Alcibíades não hesitaria em querer a morte. Sócrates tem consciência de que Alcibíades deseja se tornar o primeiro homem de Atenas e o primeiro homem entre os Gregos. Não demora muito ele tomará a palavra na Assembleia, e terá então a oportunidade de mostrar seus valores e sua superioridade, mesmo em relação à fama já estabelecida de Péricles. Todavia, até isso não lhe será suficiente, pois sua ambição não conhece limites: ele não ficaria contente se não pudesse reinar sobre todos os Gregos e ainda sobre os povos bárbaros, tornando-se também senhor da Ásia251. Segundo Alcibíades parece pensar, apenas Ciro e Xerxes, pela amplidão de suas conquistas, foram pessoas realmente dignas de renome.

Crendo que Alcibíades cultiva tais pensamentos e ambições, por conseguinte, Sócrates nunca se afastou dele e nem deixou de amá-lo252. O motivo é que apenas ele, com a benevolente ajuda divina (me t a\ t ou= qe ou=), tem o poder de livrar Alcibíades dessa senda. Sócrates já declarara que, caso se dispusesse a ouvi-lo, Alcibíades sentiria (pe u/sv) a força demoníaca que se manifesta em sua pessoa, a mesma força que o fazia silenciar anteriormente por conta da idade do jovem, a qual tornaria vãs suas tentativas de persuadi-lo253. Mais do que 251 Sabe-se que o intento primordial de Alcibíades era dominar Cartago e todas as cidades que rodeavam o Mediterrâneo, e por isso defendeu tão ardorosamente a malfadada expedição à Sicília, capítulo prévio à realização daquela que seria sua verdadeira obra. ROMILLY, 1996, pg. 98. 252 Grimaldi vê em Alcibíades o paradigma do desejo insaciável, verdadeira chaga da incompletude que no máximo, através da ação de Sócrates e da filosofia, pode receber algum apaziguamento. GRIMALDI, 2006, pg. 28. Conquanto isso esteja certo, Alcibíades é também o paradigma oposto de Teeteto: a natureza bem-dotada que, deixando-se levar pelos instintos, se lança na política e acaba sendo corrompida pelas agruras do próprio tempo. 253 Alcib. 1., 105d, 2-6. É o gênio de Sócrates que o impede de falar com Alcibíades. Por intervenção divina, assim, é designado o momento oportuno para a persuasão do jovem,

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todo mundo – parentes, amigos, familiares, tutores – Sócrates possui a potência (du/namin) para libertar Alcibíades de suas temerárias ambições254. Essa potência é precisamente o método pedagógico baseado na catarse irônica e na maiêutica, ambas as quais são momentos constitutivos daquilo que, como o Banquete há de revelar, é o poder maravilhoso de Sócrates, responsável por gerar a admiração e todos os demais epifenômenos que a acompanham.

Após haver escutado pacientemente tais digressões, Alcibíades declara que sempre considerou Sócrates estranho, mas que agora, tendo-o ouvido, ele se lhe afigura ainda mais absurdo (a)t opw ¯t e roj)255. De fato, esta conversa é a primeira oportunidade que o jovem possui de conhecer mais de perto a ação de Sócrates; antes disso ele apenas sabia de oitiva o que Sócrates costumava fazer e falar. Com a sua impetuosidade e ambição flagrantes, e interessado na eventual ajuda que pode receber, é natural que ele peça conselhos ao filósofo sobre como agir ante a Assembleia, tanto mais se se leva em conta a sua pouca idade. De que modo apenas Sócrates pode ajudá-lo?

Aqui começa o diálogo propriamente dito. Antes de falar, Sócrates toma suas precauções e explica como costuma desenvolver seus diálogos. Ele sabe que o jovem está acostumado com longos e enfeitados discursos (lo/gon makro/n) que deve ter ouvido aos sofistas, de quem recebeu sua “esmerada” educação. Em casa de Péricles, pois, desfilavam os maiores sábios daquele tempo, e é de se esperar que o seu protegido se familiarizasse com esse clima abundante de retórica. Todavia, não é destarte que Sócrates conversa. Ele precisa que Alcibíades, ao invés de ouvir passivamente o que diz, preste-lhe pequeno serviço (u(ph re/t hma) e responda às perguntas que Sócrates lhe fizer256. Em razão desse método o interlocutor é obrigado a tomar parte ativa na conversação e pôr sua própria pessoa em jogo; não pode simplesmente receber o influxo da retórica alheia, mas deve se posicionar ante ela, quer lhe resistindo, quer a aceitando. Trata-se da pré-condição para que ocorra satisfatoriamente a refutação purgativa e irônica praticada por Sócrates, a qual será vista no final no diálogo como

prerrogativa da retórica platônica que também se fazia presente entre os sofistas. Fedr., 272a4. Guthrie atribui a doutrina do senso de ocasião a Górgias e Alcidamas; todavia, o primeiro dos sofistas, Protágoras, já usava de tal habilidade, como o comprova o testemunho de Diógenes Laércio. GUHTRIE, 1995, pg. 253; 287; DIELS-KRANZ, 1990, Fr. A-1, 52. 254 Alcib. 1., 104e4-106a1. 255 Alcib. 1., 106a, 2-3. “Muito mais estranhos me pareces agora, Sócrates, que começaste a falar, do que quanto permanecias em silêncio”. Tradução nossa. 256 Alcib. 1., 106b1-4.

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uma forma do cuidado de si. Alcibíades desconhece os costumes socráticos e à primeira vista parece acatá-los de bom grado, se bem que, ao longo da conversa, mais de uma vez mostrar-se-á descontente quando Sócrates lhe atribuir determinadas ideias e conclusões que ele não gostaria de reconhecer como suas. A sua atitude é bastante erística, e só se tornará dialética ou filosófica – isto é, feita de amizade e de investigação comum257 – depois que for obrigado a admitir a própria ignorância e presunção, fato que se dará logo após o longo discurso que Sócrates faz. Mais uma vez, Sócrates vai até seu discípulo para ajudá-lo, partindo de conhecimentos previamente aceitos para deles extrair novas conclusões.

Dês e modo, a primeira conversa de Sócrates com Alcibíades visa deixar claro que o jovem, sendo ignorante, nada tem para aconselhar aos Atenienses, sendo que não deve se lançar à vida pública antes de ter se educado com seriedade e paciência. É uma conversa feita de vários momentos em que, pouco a pouco, Sócrates deve convencer seu discípulo a cuidar da própria alma e a ansiar pela virtude. Tudo começa com argumentação típica sobre os ofícios. Em vários assuntos particulares – arquitetura, equitação, adivinhação, música – um técnico qualquer teria conselhos melhores do que os de Alcibíades para oferecer aos seus concidadãos. Para o jovem parecem restar apenas as questões relativas à paz e à guerra, isto é, à verdadeira arte do general, cuja essência é puramente política. Com o cargo de general em mente, Alcibíades acredita que seja sua função dizer quando convém fazer guerra e quando não convém. Contudo, Sócrates logo o faz admitir que tal conveniência, no fundo, pressupõe o conhecimento seguro da justiça e injustiça, de maneira que Alcibíades deveria assim saber o que sejam o justo e o injusto258. Naturalmente o jovem ignora tais coisas, embora tenha a impressão de que sempre soube o que significam e de que obteve tal saber junto com as pessoas que conheceu em sua vida259. Sócrates lhe pergunta quem teria sido especificamente seu mestre, e logo em seguida desdoura a capacidade de ensino da maioria. A maioria só é capaz de ensinar aquilo sobre o que não paira nenhuma discórdia ou desavença, como ocorre com o emprego de substantivos da língua grega em determinadas ocasiões; quanto a tudo o mais que ignora, porém,

257 Vide a diferença entre erística e dialética comentada no capítulo anterior. 258 Alcib. 1., 109d1-4. 259 Alcib. 1., 110d-8.

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nada pode ensinar260. Ora, os homens sempre estão em desacordo no que se refere à justiça: umas cidades consideram justo o que para outras é injustiça, e dessa discórdia nascem guerras e mortes, como o comprovam a Ilíada e as batalhas mais recentes261. A isso, Alcibíades responde que as pessoas não se perguntam sobre o que seja a justiça simplesmente por julgarem óbvio tal conceito. Regurgitando o que certamente aprendera dos sofistas, ele mesmo acha que o justo é diferente do útil, pois muitas vezes o homem justo atrai inconveniências e inutilidades para si, enquanto que o injusto triunfa e obtém o que deseja262. Novamente Sócrates afirma que poderia inquiri-lo sobre o lugar em que aprendeu tais coisas e com quem as aprendeu, ao que Alcibíades se mostra um pouco irritado. Contudo, o filósofo não fará isso, mas espera ser convencido da última tese enunciada; afinal, se Alcibíades intenta convencer dentro em breve a Assembleia, bem que pode convencer um homem só de que a justiça é diferente da utilidade263. Alcibíades se recusa a defender a sua posição e prefere contestar a tese socrática de acordo com a qual existe uma igualdade entre esses dois conceitos. Sócrates conduz a argumentação, pois, até provar que o justo se iguala ao proveitoso. Em primeiro lugar, ele identifica o justo com o belo; depois retoma a identidade, recorrente nos Diálogos, entre as coisas belas e as boas; logo em seguida argumenta que o bem e o belo fazem as pessoas felizes, e que isso é algo proveitoso. Assim, fica demonstrado que quem é justo age de maneira boa e bela, angariando coisas proveitosas para si. Diante disso, Alcibíades fica perplexo e confessa não saber o que diz; sente-se como que deslocado e as coisas começam a mudar de aspecto em sua frente,

260 Alcib. 1., 111b-c4. O desdém socrático-platônico pela maioria é atestado em inúmeras ocasiões. No Críton, por exemplo: “Mas, estimado Críton, devemos nos preocupar tanto assim com a opinião do povo?” Crít., 44c, 6-9. De resto, o uso da língua comum como exemplo de algo sobre o que não paira nenhuma dúvida está presente também no Protágoras. Ali se diz, pois, que todos os Gregos são professores de seu idioma, tal como todos ensinam a virtude Prot., 328a. 261 Alcib. 1., 112a10-b2. A defesa da utilidade ao invés da justiça é outro lugar-comum que Alcibíades deve ter aprendido com os sofistas ou com a opinião corrente do seu tempo. GUHTRIE, 1995, pg. 160; REALE, 1193, pg. 206ss. 262 Alcib. 1., 113d8. 263 Deve-se notar aqui a ironia socrática: é claro que é muito mais fácil convencer uma Assembleia inteira, em sua maioria formada de homens rudes e com opiniões convencionais, do que persuadir aquele que o próprio oráculo de Delfos julgava ser o mais sábio dos homens. Ainda que de maneira negativa, Sócrates devia possuir imensa confiança em si mesmo, pois estava seguro de que ninguém o superava em termos de sabedoria. Em certo sentido, a humildade de sua ignorância ancorava-se na soberbia da sapiência, relação essa que ficava oculta atrás da mais inquebrantável ironia.

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ora parecendo umas, ora parecendo outras. Trata-se de mais um caso de aporia.

Mas pelos deuses, Sócrates, eu mesmo (eÃg w g e) não sei nem o que digo, mas as coisas parecem completamente absurdas (a )t o /p w j) para mim. Enquanto vais perguntando, ora me parecem de um jeito (eÀt era), ora de outro (a Ãlla) 26 4.

Tudo aquilo em que sempre acreditara, e sobre o que se baseava

a opinião corrente de Atenas, fortalecida pelas teses sofísticas em voga, começa a ruir ante seus olhos e ele se vê desamparado e “estranho”. Sócrates, o causador de tal efeito, decide lhe explicar o qual é a experiência ou o estado (pa/qh ma) que o efebo agora vivencia. A sua digressão sobre a ignorância, que nos interessa de perto, tem início neste ponto. Ele diz a Alcibíades que, caso alguém lhe perguntasse quantas mãos possui, não hesitaria em responder prontamente que são duas, pois tem o conhecimento disso. Alcibíades até concorda com o exemplo, mas com algum receio, a tal ponto e intensidade chega a sua desorientação265. Contudo, quando alguém lhe pergunta alguma coisa que desconhece, como no caso da justiça, Alcibíades se vê obrigado a responder de maneira contraditória e ainda contra a própria vontade, vagueando desordenadamente de um lado para outro. Assim, Sócrates conclui que a nossa alma apenas se torna errante (plana=sqai), não sabendo que respostas dar, quando se debruça sobre aquilo que julgamos saber, mas que de fato não sabemos; ela cessa de vaguear quando somos conhecedores do assunto266. A ignorância, por conseguinte, engendra a volubilidade de opiniões e nos faz pensar ora de um modo, ora de outro; à inversa, a ciência é estabilidade e consenso, tal como ocorre com as pessoas que usam os nomes gregos para designar corretamente os objetos a que se aplicam. Além disso, Sócrates e Alcibíades percebem que a nossa opinião não se torna errante quando voltada para aquilo que não supomos saber, isto é, aquilo que estamos certos de ignorar e sobre o quê não aventamos nenhuma conjectura. Por exemplo: não vagueia nossa alma sobre como se deve escalar o céu, uma vez que admitimos de 264 Alcib. 1., 116e2-4. Tradução nossa. 265 Alcib. 1.,116e7-117a2. 266 Alcib. 1., 117a3-b. Errância (pla/nh) é a palavra que Sócrates também utiliza para falar de sua investigação junto aos diversos tipos de peritos (Apol., 22a6). Pode-se supor que ele também se encontrasse num estado em que nada sabia com certeza, e por isso andasse a questionar os “sábios” aqui e acolá.

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antemão não saber como isso é possível267. Tampouco vagueia ela quando, cônscios de nossa ignorância, entregamos a decisão àqueles que efetivamente sabem: ao navegar, não ficamos a supor como se deva usar o timão ou dirigir o barco, pois simplesmente delegamos tal tarefa ao piloto e ficamos tranquilos268. Os erros na conduta prática, de resto, provêm dessa mesma ignorância. Tentamos levar a cabo ações sobre coisas que supomos conhecer e acabamos nos enganando; quando estamos seguros de desconhecê-las, por outro lado, deixamo-las para outros que as conhecem e não sofremos prejuízos. Os erros só prejudicam aqueles que se julgam sábios sem que o sejam: os “verdadeiros” ignorantes passam a sua vida inteira entregues à opinião alheia e não se arvoram um saber que não possuem, e os sábios jamais se equivocam. Em verdade, este tipo de ignorância é precisamente a causa dos nossos males269. Toda essa análise é muito relevante para os nossos propósitos. Em primeiro lugar, Platão retoma através dela a sua ideia de que, em relação à ciência, as almas se dividem em três classes. Entretanto, ele apresenta diferenças de tratamento e desta feita não menciona os filósofos nem os deuses, como faz em outras passagens que serão comentadas abaixo. Os sábios aqui aparecem como os técnicos ou especialistas em certa matéria; os ignorantes são aqueles que nem ao menos se dão conta de seu estado; e os que se julgam sábios sem que o sejam são as pessoas que tentam ter maior conhecimento e autoridade do que os expertos. Assim, parece que Platão estabelece distinção entre dois tipos de ignorância. Primeiramente ele se refere àqueles ignorantes bem-aventurados, homens e mulheres imbuídos de certa virtude popular que, depois da morte, serão agraciados com a companhia dos deuses, simplesmente porque nunca contestaram as tradições e viveram de forma pacífica270. Não são os ignorantes no sentido pejorativo, senão aquela gente simplória que, sem possuir consciência de sua ignorância, nem ao menos enceta alguma investigação. De modo similar ao que ocorre com os sábios – os arquitetos, por exemplo, se tomamos a construção de casa como critério – essa pessoas estão em perfeita harmonia consigo mesmas e possuem unidade de discurso e de pensamento que repele a errância e as deixa seguras. O jovem Teeteto, Céfalo e o escravo de Mênon parece pertencerem a essa classe, pois que,

267 Alcib. 1., 117b5-12. 268 Alcib. 1., 117c9-d.6. 269 Alcib. 1., 117d6-118a4-5. 270 SCOLNICOV, 2006, pg. 76.

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como já dissemos, eles são ignorantes não porque se arrogam algum saber, mas antes por questões como que naturais. A segunda classe de ignorantes, por sua vez, encerra toda a grandiloquente coorte dos sofistas e também aquelas pessoas que foram educadas por esses mestres, como Mênon e o próprio Alcibíades; e ainda inclui aqueles especialistas, donos de certo saber, que se dão o direito de falar indiscriminadamente sobre outras áreas de que nada compreendem, como ocorre com alguns poetas e artesãos271. São esses personagens que costumam sofrer vexame e humilhação quando se põem a discutir com Sócrates. A terceira classe, por fim, contempla os sábios e especialistas em algum assunto, pessoas que também possuem unidade de discurso e de pensamento que as deixam seguras e tranquilas. Como é dito na sequência do diálogo, a posse de uma arte ou técnica produz o consenso (o(mo/noia) entre os seus possuidores. Na cidade, por exemplo, tal consenso entre os concidadãos evita as guerras civis e incentiva a boa administração; na aritmética, proporciona acordo pacífico sobre as somas e subtrações272. Ele apenas deixa de existir quando um especialista abandona seu terreno e se aventura naquilo que não conhece. Se uma mulher inventa de falar sobre a arte dos hoplitas, por exemplo, certamente há de discordar de seu marido, que conhece o assunto muito melhor do que ela; e o mesmo vale se um homem, por outro lado, se arrisca a discutir a arte da fiação, conhecimento esse que é próprio das mulheres273. Mas enquanto se permanece restrito ao conhecimento realmente possuído, não há lugar para discussões e nem para a errância: todos pensam (émone²n) e dizem a mesma coisa (émologe²n).

Em segundo lugar, ademais, Platão também revela com essa análise mais uma parte da etiologia dos efeitos produzidos pelo contato com Sócrates. Sabemos agora que a volubilidade de opiniões – o efeito à Dédalo ou o choque da tremelga – tem suas raízes no fato de que Sócrates traz à tona a ignorância de seus interlocutores, que por si só torna errantes e fugazes todas as opiniões expressadas. Aqui se encontra explicação mais precisa para o que ocorreu com Eutífron e com Mênon, bem como para o que ocorre com o próprio Sócrates em muitas ocasiões 271 Apol., 22d4-e. 272 Aliás, um dos objetivos da filosofia platônica é também atingir a concórdia ou o consenso, tanto psíquica quanto politicamente. Na República, por exemplo, a concórdia advém da temperança e sustenta a harmonia entre os piores e os melhores sobre a questão de quem deve mandar e quem deve obedecer. Rep., 432a7-9. JAEGER, 2003, pg. 562; CASSIN, 1990, pg. 87. 273 Alcib. 1., 126c4-127a4.

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em que se intoxica com o próprio veneno. Com efeito, quando as pessoas chegam até ele, geralmente estão aprisionadas pela experiência de ignorância e desconhecem as contradições em que estão enredadas, de modo que sentem segurança para falar e pensar de uma mesma maneira. Elas creem que seu discurso é coerente e verdadeiro, e dispõem dele a seu bel-prazer, como se dispusessem de objetos imóveis e sob seu controle. Contudo, a conversa e a convivência com Sócrates alargam a sua visão intelectual, expurgam-nas da ignorância, modificam radicalmente as suas concepções e as deixam errantes e perdidas. Elas percebem então como carregavam contradições sorrateiras, e os objetos que lhe eram familiares adquirem vida e saem andando por conta própria, sem que se possa fazer alguma coisa. Na verdade, Sócrates apenas desobnubila um estado que já era latente e que, conforme seu pessimismo político, ataca a maioria das pessoas que curam dos negócios públicos, com exceção talvez de Péricles.

Puxa vida, Alcibíades, como experimentas [tal] experiência (p a / qo j p e /p o nq a j)! Eu mesmo não me atrevo a nomeá-la, mas, uma vez que estamos a sós, cumpre dizê-lo. Convives com a mais extrema ignorância (a )ma qi¿#), meu querido, de modo que o raciocínio [acima] acusa a ti mesmo; pois te arrojas à política antes de teres te educado (p riìn p a i d eu qh=na i). Não apenas tu experimentas (p e/p o nqa j) isso, porém muitos dos que se ocupam dos assuntos da cidade, com exceção de poucos, quiçá do teu tutor, Péricles274.

274 Alcib. 1., 118b 4-118c 2. Tradução nossa. Esta crítica reincidente de Platão, que volta e meia evoca personagens célebres da história grega, às vezes parece coincidir com as observações de Tucídides, que também nota como houve declínio do civismo na geração seguinte à de Péricles e como os sucessores deste não estavam à sua altura, mas buscavam apenas se locupletar. O mesmo tema deu enredo à comédia de Aristófanes. ROMILLY, 1996, pg. 119. De fato, Platão comenta a questão no Mênon (99b5-9), onde afirma que homens como Temístocles não guiaram a cidade por sabedoria, mas por uma opinião feliz; alude a ela no Laques (179b-c), onde Melésias e Lisímaco se queixam de que sua geração, e eles dois em particular, nada tem de grande para contar, se comparados com a geração de seus pais; e ainda a desenvolve neste ponto. Ele devia perceber, tal como seus contemporâneos, como eram medíocres e gananciosos os homens que então governavam a cidade – Cleonte, Ânito e Alcibíades. Contudo, às vezes a crítica platônica, indo muito mais além de Tucídides, chega ao ponto de deslustrar as próprias obras de Péricles, ressaltando que esse nada fez para melhorar aqueles que estavam sob seu governo. Isso também surge sutilmente nesta passagem, mas está enunciado com todas as letras no Górgias (521d, 6-8), onde se afirma que Sócrates era o único estadista de seu tempo. Aliás, Duhot ressalta que Péricles, em razão de seu poder e aristocratismo, provavelmente não

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Claramente denominada de p�qov, a ignorância do jovem

Alcibíades é posta às claras. Vê-se então que todos os seus temerários projetos e futuras ações seriam baldados desde o início, porquanto estivessem fundamentados em solo arenoso e inseguro, na experiência de ignorância. A ação de Sócrates é a única forma de livrar Alcibíades de tal infortúnio, pois através dela o efebo abandonaria sua presunção, admitiria ser ignorante e se entregaria ao verdadeiro cuidado de sua alma, como acontece de maneira momentânea ao longo do diálogo. Noutras palavras, com o auxílio de Sócrates Alcibíades começaria a filosofar. Este é o vínculo, pois, entre a admiração e a ignorância que queríamos pôr em relevo. Ambas as experiências possuem o mesmo estatuto ontológico e se transmudam uma pela outra com a ajuda do método pedagógico de Sócrates. Isso será mais bem dilucidado na próxima seção, quando falarmos do Sofista. Para o presente momento, basta saber que encontramos evidência de que o princípio psíquico da filosofia e a ignorância são experiências com a mesma natureza. Elas acontecem à revelia daqueles a quem acontecem e implicam a mesma passividade; deixam as pessoas entregues ao seu transe e as fazem experimentar as coisas de maneira singular. Se bem que tais fenômenos possam ser direcionados e eventualmente dominados pela razão, eles possuem grande força e acarretam uma série de mudanças fundamentais na parte intelectual e na parte emotiva de quem os vivencia. Quando a ignorância de alguém é revelada, por exemplo, a sua alma vagueia de um lado pelo outro sem conseguir se fixar. Ela sofre com a falta de segurança, sente-se estranha para si mesma e tudo lhe parece absurdo, sem conservar o mesmo aspecto por mais de alguns instantes. Esses efeitos, além de possuírem indubitável caráter patético, já são um prenúncio de que a admiração está prestes a ocorrer, haja vista a errância não somente pressuponha a sensação de estranhamento e de perda de familiaridade com as coisas habituais, mas também incentive o seu aparecimento.

O restante da discussão do Alcibíades Maior torna tal fato ainda mais patente, se se toma em consideração a ideia indiscutível de que o cuidado de si mesmo através do autoconhecimento é apenas outra

apreciava o agitador difícil de entender, plebeu e sem boas maneiras que era Sócrates. DUHOT, 2004, pg. 51; JAEGER, 2003, pg. 607.

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maneira de se alcunhar a filosofia275. Toda a conversa serve para que Sócrates arroje Alcibíades contra si mesmo e o leve a pensar no que fará de sua vida. Parece simplesmente que o rapaz é conduzido até o limiar da existência, onde se lhe abrem as cortinas do palco da vida e ele pode se perguntar o que há de fazer doravante. “Pois bem. E o que pensas sobre ti mesmo? O que permitir: ficas como agora, ou certo cuidado deve ser feito?”276 Sócrates insiste que Alcibíades deva se educar e discute com ele o que seria tal educação. Ele enfatiza quão absurdas são as ambições do jovem e exorta-o para que confie nele e no oráculo de Delfos, preocupando-se consigo mesmo e se esforçando por ser cada vez melhor. Alcibíades acaba se convencendo e se mostrando mais disposto a ouvir o que Sócrates tem para lhe comunicar. Depois de longo e elaborado discurso retórico – modalidade a que o efebo estava acostumado e por isso lhe era mais persuasiva277 – o jovem acredita que Sócrates falou várias verdades, diferentemente do que dissera antes. É mais uma ocasião em que Sócrates precisa usar de suas virtudes camaleônicas para persuadir seu interlocutor, pois se não fizesse o discurso dessa forma retórica, provavelmente Alcibíades não teria dado crédito aos seus conselhos. Agora, entretanto, ele pergunta a que tipo de cuidado deve se entregar: “Que cuidado (e)pime /le ian) é preciso fazer, ó Sócrates? Podes explicar? Mais do que tudo, assemelhas-te a alguém que acabou de dizer a verdade” 278.

O diálogo com Sócrates, portanto, tem a virtude de reconduzir o jovem à sua verdadeira identidade e livrá-lo da experiência que o aprisionava numa cadeia de opiniões e anseios inautênticos279. Ainda 275 “A filosofia é assim o verdadeiro cuidado da alma, o que a prepara para o encontro com o divino. A contrario, a ignorância, o erro nas ilusões deixa-nos presos nas armadilhas do corpo. DUHOT, 2004, pg. 191. 276 Alcib. 1., 119a8-9. Tradução nossa. Sócrates faz seus interlocutores ganharem consciência de quem realmente são, pondo a eles e a si mesmo contra a parede. “Sócrates é pois um revelador graças ao qual o discípulo vai empreender descobrir-se, isto é, ter acesso ao conhecimento de sua alma, que conserva ocultas dentro dela algumas reminiscências do divino”. DUHOT, 2004, pg. 126. Sobre a mesma questão: HADOT, 1999, pg. 54-56. 277 Há aqui um caso evidente de politropia, em que se pode ver a doutrina do Fedro sobre a retórica. Com efeito, como já vimos, Sócrates possui a virtude retórica de encontrar o discurso apropriado para cada alma, levando em conta fatores como a idade, a educação, a ocasião etc. Ele até tentou conversar conforme seu costume com Alcibíades, mas o efebo possui uma alma que se deixa encantar e persuadir mais facilmente por longos discursos. Neste caso, até a ocasião da conversa – a iminente entrada de Alcibíades na fase adulta – é importante em termos de persuasão, e por isso o gênio de Sócrates o proibira de agir até o momento. Fedr., 271d-272b. 278 Alcib. 1., 124b7-9. Tradução nossa. 279 Conduzir a pessoa à sua verdadeira identidade, como já dissemos, é atributo que Sócrates partilha com os xamãs. GRIMALDI, 2006, pg. 9.

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que momentaneamente, Alcibíades começa a filosofar e quem sabe pela primeira vez se preocupa seriamente com o destino de sua alma e da parte mais divina (qe io/t e ron) contida nela, a razão ou o entendimento280. A sua aporia e o seu desconcerto serviram para que fosse lançado contra si mesmo e reconhecesse o seu estado de ignorância. Apenas depois disso foi-lhe dado interessar-se realmente pela discussão. É mais um caso, assim, em que algumas luzes advindas do exterior da caverna purificam o companheiro de Sócrates e, não obstante de maneira temporária, fazem com que se admire e filosofe, aproximando-o da região própria da alma e das demais realidades suprassensíveis. 3.3. O Sofista e o método socrático

O Sofista apresenta outra evidência de que a ignorância possui o

mesmo estatuto ontológico do princípio da filosofia, bem como de que apenas pela ação pedagógica de Sócrates ela pode vir a ser purgada. De fato, na sexta e última definição de sofista oferecida ao longo do diálogo, a mais benevolente e positiva de todas, o Estrangeiro de Eleia perscruta junto com Teeteto a essência da ignorância e relaciona a sua cura ao método do mais genuíno e autêntico sofista, personagem esse que, por usar da ironia e também por outros motivos, representa Sócrates e mais ninguém.

Na esteira dos numerosos exercícios dialéticos apresentados até o momento, a discussão começa com a citação de vários afazeres domésticos que têm em comum a arte de separação (diakrit ikh /). Essa arte divide-se em duas partes e consiste em dissociar o melhor do pior ou em apartar o semelhante do semelhante. Conquanto a segunda parte não tenha nome específico, a primeira é conhecida universalmente sob a designação de arte da purificação. A própria purificação (kaqarmo/j) apresenta, por sua vez, uma dualidade visível sem muitos problemas. Primeiramente, há a purificação que se refere ao lado interno dos corpos vivos, representada pela medicina e pela ginástica, e a que se refere ao lado externo, exemplificada pela arte do banhista. Depois, há a purificação que se volta para os corpos inanimados, como é o caso da arte do apisoador, que trabalha com a preparação do couro e demais 280 Alcib. 1., 133c1-2. Robinson comenta a inovadora concepção de alma que é adotada nessa ocasião. Segundo ele, essa passagem do Alcibíades Maior poderia ser comparada com a doutrina da alma apresentada no Timeu. ROBINSON, 2007, pg. 47.

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tarefas similares. Todavia, mais importante do que essa divisão é aquele que assevera a existência de uma purificação que se dirige diretamente às almas e ao pensamento (dia/noia). Esta é a arte buscada ao longo desse momento do diálogo para definir o sofista como refutador irônico. Para caracterizá-la, os dois interlocutores começam por admitir que a maldade (kaki¿a), para a alma, é algo diferente da virtude. Concluem daí que a purificação psíquica visa suprimir o mal que possamos ter em nosso íntimo e nos deixar virtuosos. Na própria alma, o mal assume duas formas específicas: a enfermidade (no/soj) que sobrevém ao corpo e a fealdade (aiåsx oj). Dado que jovem Teeteto não compreenda direito esse ponto, faz-se necessário que o Estrangeiro de Eleia lhe explique que existe certa identidade entre a enfermidade e a discórdia (st a/sij). Na discórdia, com efeito, ocorre uma ruptura do acordo entre aquilo que a própria natureza havia tornado afim. Do mesmo modo, na fealdade impera um falta de medida (a)me t ri¿a) que a tudo conduz à deformidade genérica. É por tal motivo, de resto, que na alma das pessoas más sempre existe desacordo entre opiniões e desejos, coragem e prazeres, razão e sofrimento. Essas pessoas nunca estão contentes consigo mesmas e amiúde cometem atos contraditórios e assumem posturas conflitantes entre si.

Depois de tais conclusões, o Estrangeiro enuncia a tese que também compõe o coração da ética platônica, a saber, que toda a ignorância é involuntária. A ignorância vem definida assim como um impulso originário em direção da verdade e da razão que, ao ser posto em movimento, acaba se desviando. Ela nada mais é do que um contra-senso ou desvario (parafrosu/nh). No entanto, esse contra-senso constitui um vício que existe na alma juntamente com a própria maldade. Os vícios da alma, por sua vez, são divididos em duas classes: a covardia, a intemperança e a injustiça são enfermidades, ao passo que a ignorância, afecção múltipla e diversa, é uma fealdade281.

Teeteto: Sim, é preciso admitir ainda que há dois gêneros de vício na alma: a covardia, a intemperança e a injustiça devem todas ser consideradas como uma enfermidade em nós; e

281 Sof., 226b-228e. Note-se que a ignorância não deve ser entendida apenas do ponto de vista intelectual; ela é uma condição da alma inteira.“To summarize, it is manifest that for Plato ignorance or false opinion signifies, not alone intellectual error, but an unethical condition of the whole soul whereby a man is self-deceived, beguiled through the over-persuasiveness of unrestrained appetitive urges”. CUSHMAN, 2007, pg. 293.

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nesta afecção (p a /qo j) múltipla (p o llh=j) e diversa (p a nt o d a p h=j) que é a ignorância (a )g no i¿a j), devemos ver uma fealdade282.

À parte todas as distinções dialéticas evocadas, o que nos interessa é o fato de que a ignorância é novamente definida como um p�qov, o que confirma as conclusões que enunciamos acima. Ademais, o contexto da discussão, que imediatamente depois desse diagnóstico alude ao método socrático de ensino, demonstra como a cura para tal fealdade só é possível se a pessoa adoentada se entrega aos cuidados da filosofia tal como praticada por Sócrates. Dizer que a ignorância será sanada pela filosofia, pois, não constitui nenhuma novidade dentro da exegese de Platão. Mas queremos ressaltar que essa cura implica a passagem do afeto da ignorância para o do maravilhamento, quando então se começa realmente a filosofar. Essa mesma passagem pressupõe um tipo de catarse que, quando bem entendida, pode ser vista como outra maneira de se suscitar a admiração. Isso se torna evidente no prosseguimento da análise.

Com efeito, os dois personagens passam a procurar quais seriam as curas específicas para as enfermidades recém assinaladas. Concordam facilmente que as artes que cuidam do corpo e o tornam saudável são a medicina e a ginástica: a primeira se presta para livrá-lo da enfermidade, ao passo que a segunda o liberta da fealdade física. Devemos notar que não é casual o fato de Platão pôr lado a lado a medicina e a arte socrática. Como já foi visto no capítulo passado, ele partilhava da ideia sofística segundo a qual a retórica possui os mesmos poderes que a medicina, com a única diferença de se referir à alma e não ao corpo das pessoas. Aqui, a diferença está em que, depois de ter falado da medicina, é a pedagogia socrática que completa o paralelo ao invés da retórica, o que serve como mais um indício de que ele creditava a Sócrates os poderes taumatúrgicos sempre associados à habilidade discursiva dos sofistas. A cura da ignorância, de fato, se dá efetivamente por uma espécie de ensino. Já que existem dois tipos de ignorância, esse ensino também se ramifica em dois componentes. Existe um ensino que se refere à ignorância natural que podemos ter; ele consiste na educação técnica mercê da qual alguém que antes ignorava a arte do sapateiro, por exemplo, passa agora a conhecê-la. E existe outro particular, que se refere não a qualquer ignorância, mas àquela que, de tão grande e

282 Sof., 228e1-5.

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rebelde, equivale a todas as demais: a ignorância de se supor saber o que não se sabe. Este tipo de ensino é o que merece o glorioso nome de educação (paidei¿a). Ele mesmo se subdivide em duas raízes: a primeira é aquela forma de ensinar desde sempre usada pelos nossos pais, que consiste em falar com a pessoa ignorante, seja um filho ou familiar, num tom que varia entre a reprimenda e o aconselhamento, e que bem pode receber o nome de admoestação. Trata-se de uma maneira tradicional de ensinar o certo e o errado para pessoas que estão dispostas a aprender. O outro ensino, por sua vez, é muito mais intrincado e complexo, porquanto se dirija a pessoas que, supondo ter algum conhecimento, não se mostram dispostas a aprender com quem realmente sabe. Tal ensino tem o seus métodos e as suas pressuposições. Em primeiro lugar, crê que toda a ignorância é involuntária, como acima se explicou; em segundo, sabe que a admoestação é inútil quando usada com alguém que se supõe sábio no assunto em questão, pelo simples motivo de que tal pessoa recusar-se-á a aprender aquilo que já pensa ter sob seu comando. Para expurgá-la de tal afeto, assim, é mister o emprego da ironia. Convém citar todo o trecho, sem embargo de seu tamanho, pela beleza e pela sinteticidade que possui. Assim se expressa o Estrangeiro sobre as pessoas que fazem uso dessa forma de educação.

Estrangeiro: Propõem, ao seu interlocutor, questões às quais acreditando responder algo valioso, ele não responde nada de valor; depois, verificando facilmente a vaidade de opiniões tão errantes (p la nw me/ nw n), eles as aproximam em sua crítica, confrontando umas com outras, e por meio desse confronto demonstram que a propósito do mesmo objeto, sob os mesmos pontos de vista, e nas mesmas relações, elas são mutuamente contraditórias. Ao percebê-lo, os interlocutores experimentam um descontentamento para consigo mesmos, e disposições mais conciliatórias para com outrem. Por este tratamento, tudo o que havia neles de opiniões orgulhosas e frágeis lhes é arrebatado, ablação em que o ouvinte encontra o maior encanto e, o paciente (t% ½ p a /sxo nt i), o proveito mais duradouro. Há, em verdade, um princípio, meu jovem amigo, que inspira aqueles que praticam este método purgativo; o mesmo que diz, ao médico do corpo, que da alimentação

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que se lhe dá não poderia o corpo tirar qualquer proveito enquanto os obstáculos internos não fossem removidos. A propósito da alma formaram o mesmo conceito: ela não alcançará, do que se lhe possa ingerir de ciência, benefício algum, até que se tenha submetido à refutação e que por esta refutação, causando-lhe vergonha (a i¹sxu/ nh n) de si mesma, se tenha desembaraçado das opiniões que cerram as vias de ensino e que se tenha levado ao estado de manifesta pureza e a acreditar saber justamente o que ela sabe, mas nada além283.

Eis uma descrição concisa da pedagogia socrática, que de maneira essencial põe em destaque os principais eventos responsáveis por caracterizá-la284. Em primeiro lugar, há o momento clássico da ironia, quando Sócrates dissimula sua falta de conhecimento e se propõe a aprender, através de perguntas e respostas, junto de alguém que supõe deter algum saber específico. Daqui se segue como resultado que as opiniões de seu interlocutor se tornem errantes e confusas, o que imediatamente prepara e anuncia a entrada da aporia. A errância de opiniões é talvez o mais óbvio sinal de que alguém é ignorante, sendo trazida à tona porque o saber que se julgava possuir, depois de ter sido examinado e sacudido de um lado para o outro, revela-se infundado e fugidio. As contradições aparecem em virtude do jogo de luzes que Sócrates lança sobre o objeto de discussão, o qual, até então familiar e habitual ao seu interlocutor, agora se apresenta sob nova luz e numa perspectiva ampliada que o deixam praticamente irreconhecível. Trata-se do já explicado efeito da tremelga, da ação de Dédalo ou da segregação do fármaco que dá origem à sensação de estranhamento e à volatilização das crenças possuídas. Em segundo lugar, há o descontentamento e a vergonha para consigo mesmos que essas pessoas sentem (t % ½ pa/sx ont i) ao descobrir que aninhavam em si contradições e posturas conflitantes, as quais não apenas lhes davam a complacente ilusão de sabedoria, como enfeavam a sua alma e

283 Sof., 230b4-d4. 284 “In the sixth Division satire is dropped. The tone is serious and sympathetic; towards the close it becomes eloquent. The type defined is the ‘purifier of the soul from conceits that stand in the way of knowledge’ (231e) – a description which (as Jackson and others have seen) applies to Socrates and to no one else”. CORNFORD, 1979, pg. 177.

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impediam que os verdadeiros conhecimentos que ela desde sempre possuiu fossem trazidos ao nível da consciência. Esse descontentamento não é algo necessariamente ruim. Se a pessoa permanece nele e não empreende nenhuma tentativa de melhora, ele ocasiona certamente grande insatisfação e vexame, além de uma ojeriza toda particular pela pessoa de Sócrates, a qual não raro pode encontrar vazão na agressão física ou então na completa misologia285. É isso o que parece acontecer a Ânito, a Trasímaco ou a Crítias, todos os quais relutam em admitir seus erros e os atribuem à mal-intencionada retórica socrática. Contudo, se a pessoa experimenta tal sentimento de maneira positiva – e a isso sempre tendem as reiteradas exortações socráticas – fica agradecida para com Sócrates e busca a sua companhia e amizade; torna-se sensível ao erro e desperta em si o desejo de conhecer. Aqui entra em cena, então, o terceiro estágio de todo o processo, aquele que parece se referir indubitavelmente à maiêutica e à reminiscência, haja vista evoque a positividade do conhecimento que vem à superfície quando o erro é expurgado. Nessa ocasião, se for sincero o desejo de se instruir e de investigar a natureza das coisas, o p�qov da ignorância já deve ter cedido lugar àquela experiência que, sendo sobretudo própria dos filósofos, conduzirá a pessoa para a consciência de que ignora e para a região mais próxima dos deuses e da suprassensibilidade. Noutras palavras, a admiração terá acontecido e com ela uma ascensão psíquica que representa o princípio da filosofia. Como o Estrangeiro de Eleia afirma na sequência, apenas depois de tal refutação purgativa as pessoas se dispõem de maneira adequada para aprender, como atestam inúmeras situações no interior dos Diálogos. Sem a purificação, ninguém está isento de permanecer impuro e cheio de máculas. Ainda que seja tão nobre e importante quanto o rei da Pérsia, periga enfear e destratar aquilo que, por ser a responsável direta pela obtenção da verdadeira felicidade, devia ser a coisa mais bela em si, a sua alma286.

No Fédon, as reflexões sobre a catarse oferecem conclusão parecida. A fim de provar a tese aparentemente estapafúrdia de que o filósofo se ocupa tão-somente da morte – argumento tão estranho que faz Símias desatar no riso, tal como faria com qualquer homem do povo287 – Sócrates expõe longa argumentação que ressalta como o

285 Vidas, II, 29; Féd., 89d4. 286 Sof., 230d6-e3. 287 Féd., 64a10. Robinson relativiza esse suposto ascetismo extremo, mostrando que o próprio Platão está consciente da maneira simplificada como trata as coisas nesse ponto do Fédon. Em verdade, deve-se ter em mente que esse diálogo representa espécie de manifesto em que Platão

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filósofo deseja se separar do corpo, purificar-se e tornar-se cada vez mais similar às realidades inteligíveis que pode contemplar apenas com os olhos de sua alma. O corpo deve aqui ser entendido – já o dissemos – como toda a realidade sensível sujeita ao erro e ao devir, que não apenas é a nossa condição natural enquanto seres encarnados, mas que também representa o nosso estado antes que qualquer educação real tenha acontecido. É apenas de mais uma maneira de se aludir à caverna.

Por várias razões, pois, o corpo atrapalha o filósofo e o impede de desenvolver a sua parte mais divina. Este se vê obrigado a desprezar os prazeres da comida e da bebida, do sexo e de outros luxos que servem de adorno a nossa parte corpórea, uma vez que a preocupação com essas coisas acabe com o tempo e a disposição para a filosofia. Amiúde o corpo nos abarrota de paixões, de agitações, de doenças e de pensamentos tolos que servem de entrave à obtenção da sapiência. Em termos de conhecimento, depois, nenhum dos sentidos corporais capta os seres em si mesmos, como o justo ou o belo em si, mas antes impedem que isso seja feito e nos lançam na multiplicidade sensível, a qual costuma criar a fantasia de um saber pródigo e onisciente, usado a contento no enfeitiçamento sofístico. Mesmo quando alguém obtém algum tempo para pensar, o corpo o agita e o tumultua, roubando-lhe a pouca concentração que alcançara288. Por consequência, o filósofo somente atingirá o saber e a compreensão quando houver se afastado do corpo e tornado pura a sua alma, isenta de todas as máculas e misturas corpóreas. De modo completo e efetivo, isso acontecerá apenas na morte, que nada mais é do que a separação da alma e do corpo289. O filósofo, portanto, desejando tal separação, deseja outrossim a morte.

Todavia, enquanto ela não lhe sucede, ele pode alcançar algo parecido através da prática da filosofia e da virtude, que progressivamente o conduzem para a região em que ele almeja viver. Na verdade, Platão acredita que a temperança, a verdade, a coragem, a justiça e a sabedoria nada mais sejam do que espécie de purificação (ka/qarsi¿j t ij), porquanto através delas deixemos a caverna e alcancemos a esfera pura (e )n t %½ kaqar%½) onde também estão as ideias290. É uma afirmação inequívoca sobre o papel da filosofia. Ela

apresenta a alma como princípio vital e “eu” verdadeiro do homem. ROBINSON, 2007, pg. 73-4; 95. 288 Féd., 64d-67b4. 289 Féd., 64c4-8. 290 Rep., 520d8. “Talvez, muito ao contrário, a verdade nada mais seja do que certa purificação de todas essas paixões e seja a temperança, a justiça, a coragem; e o próprio pensamento outra coisa não seja do que um meio de purificação”. Féd., 69b8-c3.

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não é tão-somente conjunto de teses sobre o mundo, embora envolva esse aspecto doutrinal, mas antes uma série de escolhas e opções que fazem com que a pessoa atinja determinada experiência de vida e se sinta purificada. Em suma, a filosofia é essencialmente um modo de ser ou um estado anímico duradouro.

O método socrático, assim, está parcialmente explicado com o que foi dito acima. Falta ainda ressaltar um de seus aspectos, que é o fato de possuir o mesmo estatuto ontológico da experiência da ignorância e da admiração. Com efeito, no momento em que a pessoa deixa a caverna e começa a filosofar, há a atuação de uma dialética triplamente patética. Primeiramente, tal pessoa está vivenciando o p�qov da ignorância; em seguida, esta experiência é confrontada pelo p�qov advindo de Sócrates e, se porventura chega a ser bem-sucedida, suscita outra experiência, o maravilhamento. Já mostramos que, tanto na digressão sobre a maiêutica quanto no trecho do Sofista, fala-se num paciente que experimenta alguma coisa quando entra em contato com Sócrates. Ademais, na análise dos casos de Eutífron e Mênon ficou claro que, embora não houvesse o uso da palavra em questão, eles também estavam entregues a uma experiência patética no duplo sentido: não apenas porque eram ignorantes, mas também porque se sentiam passivos diante das reviravoltas intelectuais e emotivas a que eram levados pelo efeito de Sócrates. O processo que os levaria a se tornarem filósofos foi apenas imperfeitamente realizado, pois ainda que tenham sentido os epifenômenos da admiração, não chegaram a vivenciá-la tal como o jovem Teeteto. Eles se admiraram, sim, porque toda a filosofia é dirigida por tal experiência, mas isso se deu de forma pouco intensa e duradoura. No próximo capítulo, ao analisarmos como Alcibíades descreve o que lhe aconteceu ao se entregar aos cuidados de Sócrates, veremos que isso se repete de maneira exemplar. Agora temos de ver a descrição que o general Nícias, no Laques, oferece da ação pedagógica de Sócrates. No contexto do diálogo, depois de terem os personagens concordado que Laques e Nícias devam responder às perguntas de Sócrates, Nícias elabora explanação para ilustrar o que isso significa. De todos os presentes, ele é o mais familiarizado com as práticas de Sócrates. Laques apenas conhece os feitos valorosos de Sócrates nas batalhas, mas ignora tudo a respeito dos seus discursos. Segundo Nícias, Lisímaco também não conhece Sócrates às deveras; viu-o alguma vez quando ele ainda era criança, já que ambos pertencem ao mesmo dêmos, e sabe apenas que ele é filho de Sofronisco. Na sua explanação, Nícias

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afirma que quando se acerca alguém de Sócrates, mesmo que comece a falar sobre qualquer coisa, não poderá parar até que, andando em círculos, seja levado pelo discurso a discorrer sobre si mesmo, dando justificativas sobre como vive no presente e como viveu no passado. Por mais abstrato que seja o tema da conversa, Sócrates faz com que o interlocutor seja lançando contra si mesmo e passe a se contemplar por inteiro, como se estivesse defronte a um espelho. Os seus atos mais ínfimos – uma paixonite que ora sente por um efebo ou o entusiasmo que demonstra diante de um discurso (Fedro) etc.291 – bem como seus atos referentes a temas mais elevados – sua postura diante da morte (Fédon), o cumprimento das leis pátrias (Críton) etc. – são trazidos à luz do dia e passam a figurar na análise, fazendo com que a pessoa seja obrigada a julgar a si mesma e a ter consciência do que realmente é. Em suma, todos são despertados de seu sono dogmático e complacente pelo moscardo intrometido292. Em certo sentido, Sócrates serve como consciência moral dos Atenienses293. Ele é alguém que, por cuidar assaz de si mesmo, incentiva os outros a que pratiquem o mesmo tipo de cuidado. Por uma questão de aproximação e de convivência, as pessoas são postas à prova ou – numa tradução mais violenta, mas igualmente possível – são torturadas por Sócrates. Não admira assim que alguns se sintam envergonhados, que uns lhe atirem ameaças e que outros ainda lhe respondam com coices e pontapés. No caso de Nícias, ele não vê problema algum em ser tratado dessa maneira; já estava habituado a isso e bem sabia que teria de padecer novamente essas coisas. Ele se diz seguidor do preceito de Sólon, segundo o qual devemos aprender durante toda a nossa vida, e por isso não se irrita com analisar o bem e o mal que fez no passado e que ainda continua a fazer, porque desse modo se torna mais prudente para o futuro.

Nícias: Porque pareces [Lisímaco] ignorar que, se alguém pertence ao grupo íntimo de Sócrates e, por assim dizer, à família dos interlocutores habituais de Sócrates, vê-se forçado (a )na /g kh), seja qual for o tema de que queira tratar, a deixar-se levar pelo fio da argumentação (p eria g o /me no n t % ½ lo /g %) a uma série de explicações sobre si mesmo (p eriì a u(t o u),

291 Memoráveis, I, 3. 292 Apol., 31a.. 293 “Ele [Sócrates] é certamente o homem que cuida do cuidado dos outros; esta é a posição particular do filósofo”. FOUCAULT, 2004, pg. 271.

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sobre o seu próprio gênero de vida (z v=) e sobre toda a sua existência anterior. Quando alguém chega a isso, Sócrates não o deixa até que tenha passado pelo crivo (ba sa ni¿ sv) das boas maneiras. Quanto a mim, que conheço (su nh /qh j) os costumes de Sócrates, sei que não se pode evitar (a ) na /g kh) ser tratado assim (u(p o \ t o u/t o u p a /sxei n t a u=t a), e vejo com clareza que também não escaparei (p ei¿so ma i t a u=t a) disso. Pois sinto agrado e prazer, Lisímaco, em sua companhia, e não encontro o mal que pode me fazer recordar o bem ou o mal que fiz ou que ainda faço. Penso que, experimentado essa prova, torna-se mais prudente para o futuro, se se está na disposição, conforme o preceito de Sólon, de se aprender durante toda a vida e de não crer que a velhice por si só nos traga a sabedoria. Sofrer o exame de Sócrates (u(p o \ S w k ra /t o u j ba sa ni ¿z es qa i) não significa para mim uma novidade nem algo desagradável; desde há tempo sei que, com Sócrates, não seriam apenas os jovens examinados, mas também nós iríamos passar por isso294.

Dito de forma explícita, temos novamente a afirmação de que o efeito de Sócrates acontece à revelia daqueles sobre quem atua. O fato de ser reiteradamente chamado de p�qov apenas oferece mais uma prova textual para as conclusões que já havíamos auferido. Primeiramente, isso quer dizer que tal fenômeno possui alguma natureza retórica, reflexão que surge naturalmente a partir do próprio Sofista, pela simples razão de ser Sócrates tratado lado a lado com esses mestres da palavra. Como se pode pensar, eles pertencem a uma mesma família, conquanto suas parecenças não devam ser levadas muito longe e não passem das similaridades existentes entre um cão e um lobo295. Em

294 Laq., 187e6-188c. Tradução nossa a partir da versão espanhola de Francisco de. P. Saramanch. 295 Sof., 231a6-b. “Com efeito, aparentemente eles [o filósofo e o sofista] são muito semelhantes. Eles não produzem nada, não fabricam nada, e alcançam seus fins falando, por meio da magia de sua persuasão. Entretanto, um cão é o contrário de um lobo, assim como um filósofo é o oposto de um sofista. Certamente, o cão possui o mesmo faro e a mesma pugnacidade que o lobo, mas apenas para proteger seu rebanho do lobo que, pelo contrário,

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segundo lugar, tal fato quer dizer que o próprio Sócrates está entregue a uma força que não comanda de todo, e que passa de si para os outros através de sua personalidade e de seus discursos. Isso se processa de maneira parecida com a inspiração poética ou o transe báquico. Por ser filósofo no sentido mais alto do termo, é de se supor que ele também ande a se examinar mais do que todos, que se purifique a si mesmo e que padeça cotidianamente os efeitos da aporia e da admiração. Contudo, em grande parte isso também ocorre porque ele, habitando a região intermediária entre o sensível e o inteligível, acaba arrastando seus interlocutores para a mesma posição, como será explicado doravante. 3.4. A filosofia e o intermediário A compreensão do conceito de intermediário é essencial para a compreensão do conceito platônico de filosofia. Ao definir pela primeira vez esse gênero de ciência e de atividade humana, Platão manteve-se fiel ao étimo da palavra e o tomou em sentido literal. Com efeito, ele realmente acredita que o filósofo é alguém que nutre certa predisposição e certo amor (f i¿loj) pela sabedoria (sof i¿a), sem nunca atingi-la de uma vez por todas296. Ainda que em algumas ocasiões ele seja agraciado pelo encontro do objeto de seus desejos, como quando contempla o ser em sua plena inteireza, ele sempre precisa retomar sua caminhada e envidar novos esforços, pois a sua condição mortal tende a afastá-lo da esfera da suprassensibilidade e deixá-lo preso no interior da caverna. A filosofia tem uma meta e um fim, mas eles não permanecem estáveis em nossas mãos, senão que nos escapam e precisam ser reconquistados outra vez, como se fossem pássaros fugidios. Ao contrário do que ocorre no caso de Aristóteles, o filósofo platônico nunca se apossa completamente da sabedoria, motivo pelo qual sua admiração não é apenas acontecimento originário que, uma vez explicado e amortecido,

procura despedaçá-lo. O sofista é como um lobo: é um predador. Sua caça é o outro”. GRIMALDI, 2006, pg. 21. 296 Hadot ressalta como as palavras compostas com philo, desde Homero, designam a disposição de alguém que encontra seu interesse, seu prazer e sua razão de viver na dedicação a determinada atividade. Filosofia é assim o interesse ou a predisposição para a sabedoria. HADOT, 1999, pg. 37. Karl Albert, por sua vez, baseia-se nas conclusões de Burkert e sublinha que o elemento desiderativo da palavra (philos) não alude a um desejo infinito que nunca se sacia, mas antes a um trato cotidiano com aquilo a que aspira. ALBERT, 1991, pg. 54.

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jamais retorna novamente. Ela é evento psíquico que coordena todas as reviravoltas intelectuais em virtude do quê, nas mais variadas questões, o filósofo se afasta de sua perspectiva demasiada humana e se volta para o divino. Como dito, alguém pode ter se admirado e filosofado acerca do que seja o saber, mais isso não significa que tal pessoa, apesar das melhoras que sofreu, aprendeu alguma coisa sobre a justiça, sobre a virtude ou sobre a arte de governar. Em cada um desses casos será necessário que se lance à investigação e empreenda a segunda navegação ou a caça da realidade almejada, donde sempre restar espaço para que se admire e padeça todos os epifenômenos que secundam tal evento. Platão explora às deveras a negatividade do desejo e da ignorância, e nada mais distante dele do que o sonho utópico da metafísica, que embriagou tantos pensadores e tantas épocas, consoante o qual o filósofo descarta o elemento de incompletude de sua natureza e alcança o conhecimento perfeito do mundo.

Além disso, o intermediário não apenas significa que a filosofia é o meio termo entre o saber e o ignorar; significa também que ela acontece numa esfera ontológica determinada, onde ainda não nos afastamos completamente daquilo que nos impede o saber, e tampouco nos aproximamos da região em que habitam as realidades sobre as quais se baseia todo o tipo de conhecimento possível. Em termos psíquicos, isso quer dizer que ainda não alcançamos a nossa natureza verdadeira, a racionalidade, que pode nos livrar da sempiterna insatisfação com os prazeres sensíveis297. O nosso processo de purificação psíquica, que permite que as verdades já contempladas outrora sejam recordadas e trazidas à consciência, possui diferentes estágios e varia em cada pessoa, mas nunca pode ser efetivamente levado a cabo nesse mundo298. O filósofo é alguém que se recorda de um número de verdades maiores do que as pessoas comuns, justamente porque sua alma, menos sujeita à ignorância, purificou-se a ponto de espelhar a objetividade das essências com as quais possui o mais íntimo parentesco. Isso faz com que ele se desprenda da sensibilidade e de tudo aquilo que, do ponto de vista antropológico, pode fazê-lo esquecer de sua natureza racional, como acontece com os prazeres e demais fenômenos corpóreos; e faz também

297 “O que nos fará perfeitos é algo que já pertence a nossa própria natureza, se bem que não nos seja dado imediatamente. Não somos plenamente racionais, mas a racionalidade é a nossa própria natureza”. SCOLNICOV, 2006, pg. 30. 298 Féd., 66e2-4. Sócrates afirma nessa passagem que só atingiremos a completa sabedoria quando morrermos; em vida ela nos é impossível. Aliás, poder-se-ia extrair daqui mais uma razão pela qual a Academia, na época de Arcesilau e Carnéades, descambou no ceticismo.

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que possua valores de vida diferentes dos valores comuns, que lhe permitem acertar em suas escolhas e viver conforme a virtude299.

Ora, como nada disso pode acontecer sem que filosofemos, podemos concluir que a admiração, enquanto princípio da filosofia, abre as portas para a região intermediária e ainda serve como seu símbolo mais evidente. Todos os epifenômenos do estado admirativo também ganham sua força do fato de que a pessoa que se admira, padecendo uma série de mudanças em sua alma, acaba sendo introduzida numa esfera totalmente diversa daquela em que vivia. O seu maravilhamento faz com que se sinta estranha e passiva diante do que lhe ocorre, simplesmente porque sua maneira habitual de ver o mundo, assaz adstrita ao meramente humano, foi alargada a ponto de se aproximar da perspectiva divina, evento esse que não raro pode lhe provocar temor e reverência. Vendo as coisas pela primeira vez em sua exuberância ontológica, e percebendo que os conceitos e noções que supunha dominar se esvaíram ao vento, sente-se perplexa e deslumbrada, e pode desenvolver o desejo de conhecer e vir a se tornar filósofo.

Esses fatos, conquanto sempre pressupostos na obra de Platão, são comentados de modo mais detalhado em dois diálogos: no Lísis e no Banquete. No primeiro deles, a noção de intermediário é explorada no bojo das discussões sobre a amizade. Cumpre lembrar alguns argumentos para que tudo fique contextualizado. Primeiramente, Sócrates e os demais personagens tentam ver na amizade a concretização do encontro entre dois semelhantes. Eles acreditam que por partilharem de características, de gostos e de outros fatores similares, os amigos sentiriam prazer no convívio e buscariam uns aos outros. À primeira vista parece ser a amizade, portanto, uma reunião entre dois indivíduos de índole parecida300. Todavia, no prosseguimento da discussão essa primeira tese tem de ser descartada, simplesmente porque do contrário a amizade não seria possível entre as pessoas boas. De fato, se tais pessoas são parecidas umas com as outras, sendo dotadas de qualidades praticamente iguais, então nada podem oferecer aos seus amigos que estes já não tenham; e, se são realmente boas, bastam a si mesmas e também nada esperam dos outros. Não haveria razão para ansiar pelo convívio com outrem, e toda a satisfação em ter um amigo, assim, iria simplesmente embora. Diante dessa constatação, Sócrates muda o rumo da conversa e afirma que a amizade talvez resida entre os dessemelhantes. Ele cita Hesíodo para provar que os semelhantes não

299 NUSSBAUM, 2001, pg. 154. 300 Lís., 214d3-7.

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gostam uns dos outros, e cita Heráclito para ilustrar como as coisas do mundo são regidas por contrários301. Contudo, o novo argumento mostra-se igualmente falho: afinal, como poderia a temperança gostar da intemperança, ou o injusto daquele que pratica a justiça? Não é isso o que ocorre no mundo. Logo, o dessemelhante também não pode ser amigo do dessemelhante302. Não vendo nenhuma hipótese que seguir, Sócrates precisa lançar mão de uma inspiração divinatória, a fim de crer que talvez o terceiro termo esteja com a verdade: a amizade não pode ser realizada apenas pelos bons, nem pelos maus, mas por alguém que não é bom nem mau, mas está no meio desses dois extremos. A adivinhação é usada como expediente que permite prosseguir a busca através da garantia de uma nova hipótese que talvez não fosse cogitada. No mesmo sentido ela é usada no Cármides, assim como nos diálogos em que o gênio de Sócrates assume papel profético e lhe sussurra novo caminho de pesquisa303. Ao seguirem esta terceira senda, os personagens se deparam com a noção de intermediário.

Eles percebem que o intermediário, aquele que não é nem bom nem mau, só principia a amar o que é bom, tentando ser seu amigo, quando é afetado por algum tipo de mau. Antes disso, ele não teria por que buscar a convivência dos bons, tal como uma pessoa sã que não tem razões para procurar o bem da medicina, uma vez que se encontra em perfeita saúde. A afetação por um mal, entretanto, tem de ser algo acidental, como a tintura do cabelo ou algo parecido, que não pertença à essência do indivíduo por ela afetado. Ela serve para movê-lo em direção ao bem, se não chegar a torná-lo completamente mau304. Ora, o mesmo processo ocorre no que concerne à ciência. Com efeito, há três tipos de pessoas que se relacionam com ela: os deuses e homens que a possuem de todo, e que por isso não podem desejá-la e nem possuem motivos para fazê-lo; os ignorantes, que não a possuem e nem desconfiam disso, sendo incapazes de ver o próprio estado, tal como as pessoas más; e os intermediários, que tem consciência de sua carência e buscam sua cura. Estes reconhecem que estão momentaneamente 301 Lís., 215c2-216a3. 302 Lís., 216b2-9. Essas duas hipóteses apresentadas fazem parte da psicologia trivial do tempo de Platão. Com a sua concepção, pois, ele provocou audacioso avanço na discussão do problema. JAEGER, 2003, pg. 719. 303 Lís., 216d3-5. Cárm., 169b4-5. McPherran ressalta como Sócrates possui duas fontes de informação: a razão secular e a adivinhação proporcionada por seu gênio. Todavia, ele possui apenas uma maneira de justificação: a argumentação elêntica. Mesmo os vaticínios de seu gênio devem passar pela peneira do raciocínio elêntico, e a adivinhação não deve substituir a razão, apenas estimulá-la. McPHERRAN, 1996, pg. 177. 304 Lís., 217e6-218a2.

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afetados por um mau, a ignorância, e envidam esforços para se curar; eles não são bons nem maus em essência, nem ignorantes nem deuses, mas apenas filósofos.

Restam aqueles que, tendo em si este mal, a ignorância, ainda não agem de forma errada e nem são ignorantes, porém julgam não saber aquilo que realmente não sabem. Por tal motivo, aqueles que filosofam não são bons nem maus, ao passo que nem os maus e nem os bons filosofam305.

Eis aqui a classificação triádica de Platão, pela qual ele divide

as pessoas do mundo em relação à ciência306. O filósofo novamente é visto como alguém que busca sua cura, que se esforça pela própria salvação e que ocupa posição intermediária entre os simples mortais e os deuses bem-aventurados. Ele sempre se encontra nel mezzo del cammin. Com exceção desse gênero, os outros dois vivem em perfeita harmonia consigo mesmos e não têm razões para buscar qualquer melhoria: os deuses possuem todo o conhecimento e todas as demais virtudes; e os ignorantes estão embaídos por falsa consciência e segurança, que os levam a pensar que nada precisam fazer para serem virtuosos ou sábios. Tal como os deuses, eles vivem em aparente concordância consigo mesmos, pois não analisam as próprias ações e não chegam a perceber que carregam em si crenças contraditórias. Somente quando forem confrontados por alguém como Sócrates, que pratica a refutação purgativa, ver-se-ão obrigados a dar razão de seus atos e a contemplar o próprio estado. Daí a raiva e a vergonha que muitas vezes chegam a sentir. Tal classe de ignorantes é diferente – como já sublinhamos acima – daqueles que se arrogam algum saber. Em todo o caso, em ambas as circunstâncias o que ocorre é uma passagem que vai dessa falsa via até a via maravilhosa – aquela com auto-análise, dedicada à filosofia – tendo

305 Lís., 218a6-b3. Tradução nossa. 306 Deve-se notar, aliás, que essa distinção não é apenas intelectual, mas envolve também aspectos afetivos e volitivos: “A distinção estabelecida entre as três classes de espírito não se refere, evidentemente, à capacidade puramente intelectiva, mas à disposição prévia que condiciona a própria possibilidade de exercício de atividade intelectual dirigida para a conquista do conhecimento verdadeiro: disposições afetivo-volitivas que caracterizam cada indivíduo e determinam sua capacidade de conhecimento e compreensão”. MONDOLFO, 1968, pg. 137. Apesar desse comentário, Mondolfo não percebe que essa disposição prévia de que ele fala é um p�qov, tampouco que ela se relaciona com o conceito de intermediário e com o princípio psíquico da filosofia.

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em seu caminho como parada obrigatória a desorientação, o desgosto para consigo mesmo e, caso venha a dar frutos, o estado admirativo. Muitos dos interlocutores de Sócrates apenas trocam sua experiência de ignorância por aquela advinda da própria atividade socrática, sendo que apenas de forma superficial e momentânea chegam a vivenciar a experiência de maravilhamento. Os que são bem sucedidos, por outro lado, experimentam de maneira plena a admiração e começam a filosofar. Assim, a abertura para a esfera ontológica intermediária se dá com a modificação da experiência de ignorância pela experiência de admiração. É uma mudança de índole patética que pode nos libertar da caverna e fazer com que desejemos uma vida filosófica.

No Banquete, diálogo em que a noção de intermediário também recebe larga atenção, os eventos mencionados acima se tornam mais evidentes através do discurso profético e iniciatório feito por Diotima, conhecida sacerdotisa que, por nome e por profissão, parece entender do que seja o divino. Antes de tal cena, que sem dúvida representa um dos cumes do diálogo, Sócrates conversara a seu modo com o tragediógrafo Agatão sobre a natureza do amor. O filósofo devia simplesmente fazer o seu encômio como os demais convivas haviam feito até então, mas estava algo incomodado com a maneira demasiado retórica como as coisas foram tratadas. De fato, Sócrates acredita que num elogio se deva apenas dizer a verdade, deixando de lado os demais adornos que só fazem desvirtuar a natureza real daquilo que é louvado307. Na conversa com o anfitrião do encontro, assim, ambos concluem que o amor é sempre amor de algo e que, por conseguinte, ele é também carente (e )ndeh /j), porquanto não possua o belo que deseja. Dado que o bem seja sinônimo do belo, como já frisamos, o amor também não o possui de todo.

Sócrates: Se portanto o Amor é carente do que é belo, e o que é bom é belo, também do que é bom seria ela carente.

307 Banq., 198d3-e2. A retórica socrática sempre tem como paradigma a própria verdade, que também é a fonte donde retira sua força e inspiração. Na Apologia, Sócrates oferece descrição dos processos retóricos comumente utilizados no tribunal e, em seguida, diz que não fará uso de nenhum deles, mas falará apenas com base na verdade. Ele inverte toda a concepção comum de retórica e pensa que o mérito do orador (r(h/toroj) consiste em dizer a verdade (ta)lhqh= le/g ein). Apol., 17a-18a6. De fato, esta é a concepção da retórica filosófica que Platão apresenta no Fedro e que utilizou ao longo de sua obra. Fedr., 260d3-e.

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Agatão: Eu não poderia, ó Sócrates, contradizer-te; mas seja assim como tu dizes308.

Esta discussão é capítulo prévio ao belíssimo discurso de

Diotima, que já pressupõe em sua argumentação a carência desiderativa do amor (e Ãnde ia t w½n a)gaqw½n kaiì kalw½n) recém encontrada. Tal como ocorre no Lísis, a sacerdotisa introduz base de raciocínio que, diferentemente do puro princípio do terceiro excluído, permite a existência de um terceiro termo, notadamente o intermediário entre os dois opostos extremos. O amor pode ser caracterizado, destarte, como um ser entre a beleza e a feiura; ele não é completamente belo, porque disso sente carência, mas nem por isso é feio. E também aparece como um grande gênio (dai¿mw n me /gaj) cuja natureza se põe entre o divino e o mortal (me t ac u/ e )st i qe ou= te kaiì qnh tou=); alguém que não é em si mesmo um deus inteiriço, porque tem carência de algo, mas tampouco se reduz à simples humanidade. Diotima lhe atribui o venerando papel de mediador (e )n me/s%) nas relações entre os deuses e os homens. É por meio dele que os homens, lançando mão de magias de feitiços, de súplicas e sacrifícios, fazem seus pedidos aos deuses, assim como recebem suas devidas respostas. Tal como Íris e Hermes, seres de essência dialogal, o Amor é espécie de hermeneuta que permite que o todo se complete e se reencontre. Ele estabelece grande parte das relações entre essas duas esferas e, embora não encarne símbolo tão visível quanto o arco-íris, realiza a mesma tarefa de criar um espaço em que dois pólos opostos se encontram e se comunicam entre si309. Aliás, ele não é o único gênio que existe, pois muitos outros há que também realizam a ação de mediar o convívio e o comércio entre os deuses e os homens. As pessoas que são entendidas nessas coisas – os filósofos como Sócrates – são ditos homens de gênio (daimo/nioj a)nh/r); e os demais, sábios em outros ofícios especializados, são ditos meros artesãos.

Diotima: Como nos casos anteriores – disse-me ela – algo entre mortal e imortal.

308 Banq., 201c4-7. FERRARI, 1992, pg. 253. 309 Eros representa a harmonia dos opostos, como desde há muito se sabe pela poesia e pela filosofia pré-socrática. Ele une os planos do divino e do mortal, sendo compreendido como copula mundi. “Ocupa, assim, indubitavelmente, um lugar essencial na teologia platônica. Preenche o abismo que separa os dois reinos do terreno e do divino e é o vínculo, o syndesmos que mantém unido o Universo”. JAEGER, 2003, 736. Conferir também: ROSEN, 1987, pg. 198; MACEDO, 2001, pg. 83.

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Sócrates: O quê, então, ó Diotima? Diotima: Um grande gênio, ó Sócrates; e com efeito, tudo o que é gênio está entre um deus e um mortal. Sócrates: E com que poder? perguntei-lhe. Diotima: O de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como ele está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo ficado ligado todo ele a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda a arte divinatória (ma nt ikh \), como também a dos sacerdotes que se ocupam dos sacrifícios das iniciações e dos encantamentos (e)p % d a\j), e enfim de toda a adivinhação (ma nt ei¿a n) e magia (g o h t ei¿a). Um deus com um homem não se mistura, mas é através desse ser que se faz todo o convívio (o (mili¿a) e diálogo (d ia /lek t o j) dos homens com os deuses, tanto quando despertos como quando dormindo; e aquele que em tais questões é sábio é um homem de gênio, enquanto o sábio em qualquer outra coisa, arte ou ofício, é um artesão. E esses gênios é certo, são muitos e diversos, e um deles é justamente o Amor310.

Ante tal exposição, Sócrates pergunta qual seria a origem do

Amor. Não deve ser esquecido que o mestre de Platão, em toda a cena, põe-se na posição de discípulo que é iniciado em saberes ocultos e sagrados. Dessa feita é ele o parturiente que é ajudado a trazer à luz uma nova ideia sobre o que seja o amor; antes de tal conversa, é provável que partilhasse de opiniões similares àquelas que Agatão e os demais convivas expressaram há pouco311. Diotima satisfaz de presto a curiosidade de seu interlocutor e o mito que conta, sobre dotar toda exposição de caráter sacrossanto, diretamente adstrito à esfera do numinoso, explica à perfeição a natureza algo ambígua desse gênio. A

310 Banq., 202d11-203a8. 311 ROSEN, 1987, pg. 221. Alguns autores usam da diferença entre os pequenos e grandes mistérios, estabelecida por Diotima em seu discurso, para demarcar o ponto em que Platão avança para além do Sócrates histórico, o qual fica retido no primeiro estágio de revelação. MARKUS, 1978, pg. 134; CORNFORD, 1978, pg. 125; 129.

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estratégia de ressacralização do conteúdo mítico que dantes mencionamos, aliás, é aqui empregada de modo exemplar: o mito de Eros, que tinha versão mais ou menos canônica na tradição, volta para a forja poética e sai refundido com um tom protréptico, sendo utilizado para deslindar a essência da filosofia.

É interessante que o Amor seja fruto do conúbio entre Recurso (Po/roj) e Pobreza (Pe ni¿a). Seu nascimento se deu graças a uma artimanha de sua mãe, que nesse ponto superou seu pai em engenho e astúcia. Ele nasceu com natureza dúbia, agregando apanágios de ambos os progenitores. Pelo lado da mãe, ele é duro, seco, vive sem lar (aÃoikoj), descalço (a)nu po/dh t oj), pobre e em constante necessidade; oferece-nos a imagem de um homem simples que, como Sócrates e Aristodemo, não possui condições nem ao menos para se calçar direito. Pelo lado do pai, à inversa, é ele um ser insidioso para com as coisas belas, corajoso, viril e decidido; é caçador denodado (qhre u th\j), ávido de sabedoria e cheio de artimanhas; passa toda a sua vida a filosofar (f ilosof w½n dia\ pant o\j tou= b i¿ou) e é um terrível mago (de ino\j go/h j), feiticeiro (f armake u\j) e sofista (sof ist h/j). Nesse trecho se pode notar claramente o jogo com a etimologia da palavra Póros, usada para denominar o pai de Eros. Platão afirma que o Amor não é mortal nem imortal, mas germina todos os dias, quando está provido de recursos (e u)porh /sv), e às vezes acontece-lhe de morrer para depois retornar à vida, em razão da natureza paterna. Ele nunca enriquece nem fica completamente sem recursos (a)p ore iÍ); sempre consegue (porizo/me non) alguma coisa, embora ela logo se lhe escape em seguida. Por tudo isso ele está a meio caminho entre o saber e a ignorância (sof i¿aj t e auÅ kaiì a)maqi¿aj e )n me/s% e)st i¿n), razão pela qual se põe a filosofar.

Diotima: Nenhum deus filosofa (f ilo so f eiÍ) ou deseja (e)p iqu meiÍ) ser sábio (so f o \j) – pois já é – , assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes (a )ma qeiÍj) filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja

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portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso312.

Definida a natureza do Amor, destarte, fica relativamente fácil

deduzir de tal essência que ele é também filósofo. O forte do argumento reside na mesma estrutura triádica utilizada acima, pela qual existem dois extremos opostos e um intermediário que, estando entre ambos, absorve um pouco dos atributos de cada um. Repete-se de maneira parecida o argumento que já foi apresentado no Alcibíades Maior e no Lísis. Assim, no que concerne à sabedoria, os deuses são o extremo que a possui de todo, tal como algum sábio humano que acaso exista; e os ignorantes são o seu oposto, pois nada possuem que os faça sábios. Esses dois extremos concordam no seguinte ponto: eles não filosofam. Os deuses não o fazem simplesmente porque, sendo sábios, não lhes resta motivo para que desejem sê-lo; e os ignorantes não filosofam porque, conquanto não sejam belos, nem bons, nem sensatos, são tão incapazes de pensar e de ver o próprio estado, que lhes parece suficiente continuar sendo assim como são. Eles simplesmente não podem desejar aquilo que já supõem ter de sobra. Ambos também concordam na maneira como vivem, desfrutando de uma unidade de consciência (o(mo/noia) e de fala (émolog°a) que os deixa tranquilos e seguros, repelindo toda a espécie de errância intelectual envolvida na aporia e em caso similares, como já comentamos. O filósofo, por outra, sentindo-se agudamente carente e estando cônscio de sua ignorância, coloca-se entre esses dois tipos de seres e se entrega à filosofia, que parece ser a única forma de libertá-lo de sua pobreza original e torná-lo mais parecido com a exuberância e completude divinas. De maneira pungente, ele sabe e sente que lhe falta alguma coisa e que ainda não atingiu de modo pleno a sua verdadeira natureza; assim, almeja a mesma estabilidade, o mesmo conhecimento e a mesma perfeição dos deuses. A filosofia tem para ele, por conseguinte, um papel soteriológico.

No caso do Amor, aliás, sabemos que essa carência existe por conta de seus progenitores, que lhe dotaram de natureza dúbia. Ele é ignorante e necessitado pelo lado materno, mas astucioso e sofista pelo lado do pai; e, como ele deseja o belo, acaba desejando também a sabedoria, que está entre as coisas mais belas que existem. No caso do filósofo, não parece ser outra a razão que o torna carente, senão o fato de, enquanto homem, também ter origem tal que o dota de qualidades

312 Banq., 204a1-7.

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advindas de dois extremos opostos, o corpo e a alma. Para Platão, com efeito, a alma só não possui a sabedoria aqui na Terra, inter alia, porque é constantemente tolhida pelas mais diversas urgências do corpo; mas ela tem todas as condições de o fazer, uma vez que outrora já se encontrou nesse estado. Se o indivíduo conseguisse se identificar completamente com sua alma, vivendo de forma real sua imortalidade, tal como parece acontecer com o Sócrates do Fédon, o seu corcel bom, aquele dócil e de boa raça, conseguiria se alçar até o lugar supraceleste, onde tomaria o alimento mais conveniente para sua alma, contemplaria as ideias e se lhes tornaria similar. Por ser dotado de corpo, contudo, ele é arrastado pelo mau corcel para o mundo material, fica sujeito a uma série de incômodos da parte dos sentidos e não consegue adquirir pureza suficiente, que o habilite a viver na pura região das ideias. Como filósofo, porém, ele mantém vivo seu anseio pela altura – a Lüsternheit nach Höhe do Zaratustra – e por isso experimenta o que é viver numa região diferente daquela em que vive a maioria das pessoas.

Sócrates: Quais então Diotima – perguntei-lhe – os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes? Diotima: É o que é evidente desde já – respondeu-me – até a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria (so f i¿a), e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo (f ilo /so f o n) e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. E a causa dessa sua condição é a sua origem: pois é filho de um pai sábio (so f o u=) e rico (eu)p o /ro u) e de uma mãe que não é sábia, e pobre (a )p o/ro u) (...) 313.

Em tudo o que disse até agora, Platão oferece clara e concisa

descrição do papel da filosofia e da relação do filósofo com o saber. Em primeiro lugar, anuncia de maneira onipatente que a filosofia tem o condão de elevar a humanidade à esfera divina314. Conforme a nossa explicação, quando alguém filosofa, transmuda sua experiência comum de ignorância pelo maravilhamento, avizinhando-se assim da

313 Banq., 204b1-7. 314 “It [Eros] thus spans the whole compass of human personality, and makes the one empirical bridge between man as he is and man as he might be”. DODDS, 1978, pg. 221.

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perspectiva própria dos deuses. A admiração que experimenta, muitas vezes mesclada de temor e reverência pela proximidade do divino, esbandalha sua maneira comum de ver as coisas através do alargamento de sua visão intelectual; deixa-a perplexa e confusa, justamente porque a introduz numa região intermediária onde a suprassensibilidade, em se manifestando, desestrutura o mundo ordinário das sensações e deita às urtigas a segurança anteriormente desfrutada. A filosofia é a ponte que, geralmente de maneira dialogal, liga o hemisfério humano ao divino, tal como a sua contraparte mitológica o assinala; e a condição para que esse processo ocorra, o efeito que ele causa e também o seu símbolo mais evidente se encontram indissoluvelmente ligados ao estado admirativo. É a experiência dessa disposição particular que, por um lado, estrutura o caminho ascensional que conecta os dois pólos mencionados e, por outro, gera a sensação de estranhamento, de passividade e de perda de familiaridade com as coisas habituais, porquanto esfacele a unidade de fala e de consciência que reinavam até o momento. Admirar-se sobremaneira, quando temos a oportunidade de contemplar as coisas em sua propriedade, não é apenas experimentar um estado anímico como o medo ou a curiosidade; ao contrário, é modificar radicalmente nossa maneira de estar no mundo e doar-se a uma experiência que nos põe em contato com o mundo dos deuses. Se o aspirante a filósofo deixa-se tomar pelo maravilhamento, dando largas à sua ânsia por saber, faz com que sua alma convole para uma reestruturação completa de si, como ainda veremos oportunamente.

Em segundo lugar, Platão descreve a relação particular do filósofo com o saber. De fato, as características do Amor nos evocam claramente a figura de Sócrates e do filósofo em geral, o que se comprova de várias maneiras315. Os adjetivos usados para determinar esse grande gênio – mágico, feiticeiro, caçador, sofista etc. –, as características físicas mencionadas – pobre, descalço, necessitado etc. –,

315 “At least since the time of Ficino it has been observed that the description of Eros is reminiscent of Socrates”. ROSEN, 1987, pg. 233. Rosen acrescenta algumas diferenças entre ambos: Sócrates é feio e anda calçado de vez em quando, como aparece no próprio Banquete; é cidadão de Atenas, ao passo que Eros vive em todas as cidades e não tem lar; a natureza filosófica de Eros seria prática e não teórica etc. Apesar de tais diferenças, a identificação ainda se impõe, não apenas pelas razões que apresentamos ao longo do texto, mas também pelo fato dramatúrgico de Sócrates ser elogiado da mesma forma como Eros o foi. A argumentação de Hadot é peremptória: “Ora, esse retrato do Eros-Sócrates é, a um só tempo, o retrato do filósofo, na medida em que, filho de Poros e de Penia, Eros é pobre e deficiente, mas sabe, por sua habilidade, compensar sua pobreza, sua privação e sua deficiência”. HADOT, 1999, pg. 75. Jaeger é da mesma opinião: ele acredita que Sócrates é Eros, cuja paixão pedagógica busca o convívio dos jovens belos e bem-dotados. JAEGER, 2003, pg. 747.

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as tarefas atribuídas a ele e o tom geral da descrição nada mais fazem do que condensar atributos que costumam ser reivindicados como pertencentes a Sócrates. No máximo, poderia parecer que haja um ou outro ponto mais obscuro, como, por exemplo, o fato de estar o Amor entre a mortalidade e a imortalidade. Mas isto é coisa recorrentemente afirmada por Platão, sempre que diz sermos seres dotados de alma e corpo. A ideia de germinar e de morrer em seguida, por sua vez, pode se referir à caça das realidades e ao sucesso do filósofo em atingir o objeto de suas buscas, o que, por conta da aporia, nem sempre é bem-sucedido e precisa muitas vezes ser refeito desde o início. Trata-se da luta contínua do filósofo consigo mesmo e com as sensações, a fim de vencer sua parte mais pobre e apoderar-se do que há de melhor em si. Além disso, Platão diz sem rodeios que o filósofo é um ser intermediário entre o humano e o divino, algo que já víramos quando analisamos a tripartição das almas em relação ao saber. Isso significa que, se algum ignorante chega a filosofar realmente, vivenciando em sua alma a admiração, pode sair dessa classe de pessoas e passar para aquela onde vivem os filósofos. O signo dessa passagem é o maravilhamento, que é anunciado por uma série de epifenômenos que não apenas causam a perda de familiaridade com as coisas comuns, mas também indicam a maior proximidade da esfera divina. Deixando de ser ignorante e entregando-se à filosofia, pois, tal pessoa passa a habitar uma região intermediária entre a caverna e o reino da suprassensibilidade.

A passagem da ignorância inconsciente para a consciência da ignorância, assim, caracteriza o princípio psíquico da filosofia. Isso é tanto mais correto e indubitável quanto notamos que, na inovadora concepção socrática de sabedoria, que em certo sentido permaneceu em Platão, a consciência da própria ignorância tem praticamente o estatuto de um mandamento divino. Com efeito, consoante o que deduziu da missão que o oráculo de Delfos lhe delegou, será mais sábio aquele que tiver maior consciência das coisas que ignora. Em verdade, toda pedagogia de Sócrates tem como intuito trazer as pessoas para o nível intermediário em que ele próprio se encontra. Nos ignorantes simplórios e inofensivos, que nem ao menos suspeitam de sua condição, ele cria o desejo de saber, tal como ocorre com o escravo de Mênon; e naqueles que se julgam sábios, arvorando-se posição semelhante à dos deuses, ele traz à tona a ignorância que se aninha por detrás de sua presunção através de práticas refutatórias. O seu mais alto objetivo é que abandonemos a perspectiva demasiado humana e saibamos contemplar a região supraceleste.

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O provável, senhores, é que, na realidade, o sábio seja o deus e queira dizer, no seu oráculo, que pouco valor ou nenhum tem a sabedoria humana; evidentemente se terá servido deste nome de Sócrates para me dar como exemplo, como se dissesse: “O mais sábio dentre vós, homens, é quem, como Sócrates, compreendeu que sua sabedoria é verdadeiramente desprovida do mínimo valor”316.

Ligado à própria concepção socrática de sabedoria, portanto, o

conceito de intermediário relaciona-se intimamente com a filosofia e com a admiração. O filósofo é primordialmente caracterizado pela posição que ocupa em relação ao completo saber e à completa ignorância. Tanto Eros quanto Íris, que servem de personificações alegóricas do filósofo e da filosofia, exemplificam esse fato, já que ambos se postam entre os deuses e os homens. Aliás, o indício vocabular que citamos anteriormente, segundo o qual o Amor é chamado de p�qov no Fedro, também se presta para fundamentar ainda mais essas conclusões, pois assinala que a mesma passividade do maravilhamento está presente nas oscilações eróticas por que passam os filósofos, quando constantemente se elevam até o inteligível e retornam em seguida para o mundo sensível. Embora esses movimentos possam sugerir qualquer conotação geográfica – e sublinhamos, de fato, que o filósofo vive em região diferente daquela em que habitam as outras pessoas – não se deve esquecer que designam, na verdade, algo que se passa inteiramente na psique. O nascimento da filosofia via admiração ocasiona uma série de modificações que abrem espaço intelectual diferente: o espaço noético. A modificação topológica que assinalamos ocorre porque a alma se abre a outra espécie de realidade, onde pode contemplar seres inteligíveis como as essências eternas. O mesmo vale para quando Platão assevera que a matemática é também intermediária entre as ideias e a sensibilidade. Ela é atividade dianoética que se vale de hipóteses e difere da dialética porque esta, abandonando as proposições hipotéticas com que se alçou até o inteligível, alcança o

316 Apol., 23a5-b4. Baseado na mesma concepção de sabedoria, aliás, Sócrates não teme a morte, pois que temê-la seria supor saber o que ele não sabe, isto é, se ela é um bem ou um mal. Apol., 29a-b. HADOT, 1999, pg. 77.

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princípio anipotético através do puro entendimento (nou=j)317. Sob o nosso ponto de vista, que dá maior importância para a experiência do indivíduo, a afirmação parece ser muito mais pedagógica ou existencial do que ontológica, a despeito de ter sido o mais das vezes interpretada como designação geográfica dos seres que existem318. A matemática é um intermediário porque serve como exercício intelectual que torna o filósofo atento para realidades suprassensíveis e o afasta da pura imediatez da sensibilidade. Ela permite que ele universalize as figuras particulares que encontra na natureza e, com isso, se abra para outro gênero de realidade. A frase colocada no umbral da Academia – “Não entre aqui quem não for geômetra” – significa tão-somente que, se a pessoa não realizou a ascensão básica capaz de torná-la atenta para realidades diferentes das sensíveis, dificilmente há de compreender qualquer lição de filosofia. Ela ainda não está pronta para ser iniciada nesse gênero de saber, porque partilha do séquito daqueles que só creem no que podem agarrar com as duas mãos319.

Isso ficará mais evidente no quinto capítulo, quando estudarmos a alegoria da caverna e a capacidade que a matemática possui de despertar nossa inteligência.

317 Rep., 511c3-e4. Na República Platão também usa o conceito de intermediário para falar da opinião, que se põe entre o saber e a ignorância. A princípio se poderia pensar, então, que o filósofo está condenando à opinião, uma vez que também ocupa posição intermediária entre a ciência e a ignorância. Embora essa seja a sua condição mais freqüente, em razão dos estorvos sensíveis a que está sujeito, não devemos esquecer que há momentos em que ele obtém a ciência. Rep., 478b-d. Sobre a matemática como meio: CHATELET, 1977, pg. 117-8. 318 Autores que interpretam Platão como pensador metafísico sensu stricto, e que lhe atribuem doutrina protológica, geralmente tomam essa ideia como afirmação acerca da divisão do real, o que não é de todo errôneo, já que os textos permitem essa perspectiva. O primeiro a fazer isso foi Aristóteles, que foi seguido por eruditos ilustres como Reale. Metaf., 987b14-18; REALE, 1994, pg. 97-99. Como estamos analisando a questão do ponto de vista da experiência do indivíduo, preferimos a posição de Duhot: “Há pois que se substituir a noção de mundo inteligível pela de um espaço noético, que se abre em uma longa experiência interior, desafia toda a topologia e se alcança por uma apreensão intuitiva, indizível e sempre parcial”. DUHOT, 2004, pg. 105. 319 Teet., 155e3-6. Diz-se no Fédon, ademais, a alma não purificada acredita que apenas as coisas corpóreas são reais. Féd., 81b-c2. Cf. ROBINSON, 2007, pg. 63.

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IV

A ADMIRABILIDADE DE SÓCRATES

Sócrates é o mais espantoso fenômeno pedagógico da história do Ocidente.

W. Jaeger320.

4.1. A admiração como expediente protréptico Ao longo do que temos dito, já deixamos entrever que Sócrates, por ser filósofo ao grau sumo, também padecia de maneira intensamente aguda os efeitos do maravilhamento: mais do que todos, ele estava completamente tomado pela experiência de admiração. A filosofia não era para ele discussão ocasional sobre temas propostos, mas um modo de vida que alterava essencialmente a sua maneira estar no mundo. Para começar a filosofar sobre qualquer coisa, segundo Platão, é preciso se admirar; e dado que Sócrates filosofasse sobre tudo, podemos concluir que ele também se admirava com tudo. É provável que os seus heraclíticos mergulhos em si mesmo – habituais e prolongados, segundo sabemos – tivessem que ver com qualquer espécie de atividade teórica. Dado que a teoria e a admiração sejam eventos praticamente da mesma ordem, uma vez que ambas ocasionem dilatação da perspectiva intelectual, parece-nos que os transes de Sócrates também se relacionavam com as mudanças implicadas no maravilhamento psíquico que é fons et origo da filosofia321. Ele devia se admirar com coisas que

320 JAEGER, 2003, pg. 512. 321 Os transes de Sócrates costumam ser interpretados de diversas maneiras. Duhot pensa que, embora nunca se saiba o que de fato Sócrates vivia nesses momentos, eles não devem ser relegados ao plano do folclórico. Eles atestam que Sócrates acreditava no sobrenatural; são antissociais e o deixam alheio ao mundo externo; e, sobretudo, acontecem-lhe de maneira inopinada. DUHOT, 2004, pg. 80-83. Cornford acredita que esse estado de “devaneio sonhador” não é suficiente para se afirmar que Sócrates ou Platão tenham alguma vez vivenciado o êxtase místico. Os relatos descreveriam a absorção total de Sócrates, que se empenha em deslindar algum problema, e teriam nascido da imaginação poética de Platão, o qual era capaz de compreender a essência do entusiasmo místico tal como o Eurípides das Bacantes. Cornford admite que Platão possa ter tido momentos de iluminação em que penetrava na vida das coisas, mas seriam de natureza mais amena. CORNFORD, 1989, pg. 139-140. Nussbaum, por sua vez, é de opinião que os transes de Sócrates mostram como ele era capaz de se distanciar de seu corpo e do mundo circundante, buscando contemplação autossuficiente, o que serviria como exemplo da vida de alguém que realizou a ascensão descrita no discurso de Diotima. A sua abordagem, assim, leva em conta os aspectos dramáticos do Banquete. NUSSBAUM, 2001, pg. 183-4. Hannah Arendt, por fim, relaciona os transes de Sócrates diretamente à assertiva sobre a admiração, dizendo que esta devia ser

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ainda não havia pensado, seguir em seu encalço através dos discursos e, depois de várias fases e vários degraus, provavelmente contemplá-las em toda a sua inteireza ontológica, atingindo a visão da ideia que sempre vem acompanhada de admiração. Ainda que já estivesse acostumado a determinados raciocínios, não deixava de continuar caindo em aporia e intoxicando-se com o fármaco que, em certo sentido, é destilado pela própria filosofia. A aporia é apenas um dos momentos constitutivos da dialética, mais precisamente o momento em que o percurso em meio à razão ou aos discursos acaba sendo obstruído por algum motivo. Ela está assim intimamente ligada à própria atividade filosófica322. Como Eros, Sócrates costumava oscilar entre momentos de aporia e momentos em que atingia alguma certeza, apesar de ser tragado em seguida para a multiplicidade empírica do mundo. Isso tudo, pois, já dissemos ao longo do texto. No entanto, falta dizer que Sócrates usava de sua singularidade como algo admirável em si mesmo, que podia causar espécie de admiração muito similar àquela encontrada em argumentos de jaez filosófico. Através de seus atos, de suas palavras e de sua personalidade, ele deixava seus ouvintes confusos, perplexos e admirados, e se aproveitava desse estado para lhes mostrar a beleza de uma vida dedicada à filosofia. Noutras palavras, Sócrates usava intencionalmente a admiração que suscitava como expediente pedagógico para conduzir as pessoas à filosofia; ela era mais uma das partes de seu método protréptico, pois intrigava seus auditores e os predispunha a ouvir esse ser admirável que era tão diverso do comum dos homens. É óbvio que também os seres humanos podem causar admiração por serem o que são, assim como ocorre com os eventos do mundo ou com os argumentos filosóficos. Ressaltamos no primeiro capítulo que o verbo qau ma/zw também possuía sentido cívico ou social, sendo usado para nomear ações e pessoas que se destacavam entre seus iguais. Esse matiz também está presente no caso de Sócrates, não obstante possuir algumas diferenças fulcrais. A admiração que ele resultado imediato da experiência de ver Sócrates imergir em seus pensamentos. ARENDT, 1979, pg. 315. Apesar das diferentes interpretações, dois pontos são constantes: os transes de Sócrates se referem a algum tipo de contemplação teórica e ocorrem de maneira arbitrária. Esses dois fatos, a nosso ver, mostram como tais vivências mantêm relação com o maravilhamento psíquico. 322 No Sofista (253b10), ao definir a dialética, Platão fala de uma ciência que seja capaz de caminhar entre os discursos (dia\ tw½n lo/g wn poreu/esqai) e apontar quais gêneros são concordes entre si e quais não o são. A essência do método filosófico é definida como um caminhar. Ora, a aporia é tão-somente o momento em que esse mesmo caminhar é interrompido por alguma dificuldade (a)poreu/w). Assim, para além do vínculo etimológico e experiencial, a aporia faz parte da essência da filosofia.

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promove, em primeiro lugar, é de grau ainda maior do que a admiração comum, pois está relacionada com a extrema singularidade de seu ser, algo que nunca aconteceu antes e que jamais se repetirá da mesma maneira. E, em segundo, ela não é produzida apenas porque Sócrates realiza alguma ação com incomparável destreza e habilidade, como acontece no caso dos atletas ou artistas, mas sim porque ele raia ao absurdo. Esse fato faz com que a admiração provocada por ele, tal como o maravilhamento filosófico, seja capaz de desestruturar o modo comum de se pensar e viver, diferentemente do que se dá na admiração comum, que apenas coroa e enaltece esse modo ao apresentá-lo, por assim dizer, no superlativo. A admiração que Sócrates suscita, em suma, acarreta também a sensação de estranhamento, de passividade e de perda de familiaridade com as coisas habituais.

As raízes disso eram diversas. Por um lado, Sócrates causava admiração em outras pessoas porque ele mesmo, sendo filósofo, vivia constantemente admirado, experimentando na própria pele fenômenos como a aporia, o enfeitiçamento, a falta de hábito, a vivência no reino intermediário etc. O seu estado psíquico simplesmente transpassava as pessoas que entravam em contato com ele, sem que pudesse ser contido. Como visto, ele próprio assevera que apenas transforma radicalmente a experiência dos outros depois de ter sido ele mesmo enfeitiçado, eletrocutado e entorpecido, ou seja, a experiência de maravilhamento que vivenciava atingia as outras pessoas de maneira similar ao transe instigado pelos discursos retóricos e, principalmente, pela inspiração poética tal como apresentada no Íon. Por outro lado, isso acontecia porque, enquanto as pessoas conviviam com ele, acabavam sofrendo modificações psíquicas que lhes abriam uma região ontológica diferente, onde se aproximavam do divino e abandonavam a sua estreita perspectiva mortal. Teorizando sobre tudo, Sócrates não podia observar as coisas com o mesmo olhar costumeiro das pessoas; quando tocava em algo, tornava-o objeto de discussão filosófica e, com isso, despojava-o das características meramente humanas de que fora dotado até então.

Há um exemplo belíssimo desse fato em Diógenes Laércio, se bem que toda a literatura sobre Sócrates não passe da coleção de historietas feitas da mesma matéria e com a mesma verve. Com efeito, um simples jantar em casa de Sócrates e Xantipa serve para que o anfitrião faça de tal acontecimento, antes banal e cotidiano, ocasião para discorrer sobre a temperança. Xantipa, mulher comum que era323, está

323 Xantipa geralmente é vista como uma megera que apenas perturbava a vida de Sócrates. Duhot, contudo, tenta resgatar outro lado dessa mulher. Primeiramente, ele mostra como ela

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preocupada e um pouco envergonhada por conta da frugalidade demasiado aparente das iguarias que tem para oferecer, e teme que os ricos convidados notem a pobreza dos pratos. Ela concebe o banquete de maneira tradicional e por isso os seus sentimentos são mais do que justificados e previsíveis. Sócrates, contudo, com a sua visão peculiar das coisas, lança as tenazes de seu estro filosófico sobre esse fato corriqueiro e afirma: “Não te preocupes, pois se forem moderados os convidados ficarão satisfeitos com a refeição; se forem grosseiros, não nos incomodaremos com eles” 324. Em suas mãos, assim, aquilo que deveria ser mais um dos afazeres cotidianos e sociais de uma família, atividade sobre a qual não pairava nem dúvida nem elucubrações abstratas, se torna um teste para averiguar a virtude alheia. Filosofando sobre o que devera ser um banquete, ele reinterpreta tal atividade e a modifica profundamente. “As coisas fabulosas são as coisas comuns tocadas pela mão do gênio”, dizia o doutor Jivago sobre Puchkin325. Mas a frase também se aplica a Sócrates: basta que mudemos o adjetivo “fabulosas” por “maravilhosas” e troquemos “gênio” por “filósofo”. Sócrates tem o poder de tornar mais distantes aquelas coisas que sempre nos foram as mais próximas, o que por si só nos liberta da possível tirania que poderiam exercer sobre nós. Cícero também deveria ter notado o que há de radical e de inusitado nessa ação, quando escreveu magistralmente que Sócrates convocou a filosofia e a retirou (devocavit) do céu para introduzi-la nas cidades (in urbibus) e nos lares (in domus), compelindo-a (coegit) a esgaravatar (quaerere) a vida (de vita), os costumes (moribus), o bem e o mal (bonis et malis) 326. Ele devia ter dito que ela também modificaria visceralmente a maneira de conceber até mesmo esses lugares hospitaleiros e comezinhos, pois traria a perspectiva celeste, mais ampla e mais universal, para o âmbito acanhado onde reinavam apenas tradições humanas.

formava com Sócrates um casal atípico, do mesmo modo como acontecia com Péricles e Aspásia. Depois, afirma que as suas palavras no Fédon (60a) – “Vê, Sócrates, esta é a última vez que conversam contigo os teus amigos, e tu com eles!” – dariam mostras de como compreendia aquilo que constituía a vida do marido. Ele não estaria lançando imprecação, mas lamentando, sem levar em conta o próprio sofrimento, a sorte do marido, cuja maior felicidade sempre fora conversar com seus amigos. DUHOT, 2004, pg. 63-4. Nietzsche, no tempo em que ainda considerava Sócrates um espírito livre, pensa que Xantipa facilitou a missão de seu marido, pois que, tornando-lhe inóspito o lar, obrigou-o a ficar pela cidade, fato que fez dele o maior dos dialéticos de rua em Atenas. NIETZSCHE, 2005, § 433, pg. 211. 324 Vidas, II, 34. Cena muito parecida é relatada por Xenofonte. Memoráveis, III, 14. 325 PASTERNAK, 1998, pg. 398. 326 Tusc., V, 4, 8-11.

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Eventos dessa sorte são abundantes na literatura sobre Sócrates. Todos revelam como ele possuía valores diferentes da maioria e como podia alterar a percepção das pessoas sobre assuntos os mais cotidianos. Baseando-se na percepção dessa singularidade admirável, manifestada numa porção de atos diversos, que surgiu o gênero da poesia socrática, coleção de encômios e relatos que visavam manter viva a memória dos feitos e das palavras de Sócrates327. Em Xenofonte há uma série de historietas que mostram como era impossível que Sócrates contivesse a singularidade de sua perspectiva e como, sempre que se punha a falar, acabava transmudando a maneira normal com que as pessoas julgavam as coisas, suscitando algo parecido com o que acontece para alguém que está sob efeito de algum fármaco ou feitiço. Nos Diálogos, Platão utiliza a palavra ‡top°a para sintetizar as inúmeras características que Sócrates apresenta e que fazem dele uma amálgama de homem e divindade328. Sócrates é considerado o homem mais absurdo do mundo, o mais deslocado de todos pois que, entre outras coisas, desconhece os lugares familiares a todos os Atenienses, costuma cair frequentemente em aporia, causar confusão em quem conversa com ele e, acima de tudo, não pode ser comparado com ninguém do presente nem do passado329. Essa peculiaridade inaudita impressionou de maneira vívida e imarcescível o jovem espírito de Platão, tornando-se essencial para a concepção de filosofia que ele estava formulando, como desde há muito os eruditos já o notaram330. Todavia, o que ninguém notou ainda é que Platão concebe essa característica, que passou para a história como apanágio próprio dos filósofos, como algo proveniente da admiração que Sócrates constantemente padecia e provocava. A absurdidade do filósofo, com efeito, tem sua gênese no fato de que o seu olhar não é o mesmo olhar da multidão. Cada ação e cada pensamento que o singularizam e tornam estranho, pois, são o resultado das paisagens que ele contemplou em sua peregrinação teórica em meio aos discursos.

327 Jaeger ressalta como esse gênero de literatura se diferenciava do encômio, comum ao século IV, pois não era apenas a exaltação de um indivíduo que realizava os ideais da época. JAEGER, 2003, pg. 499-500; LESKY, 1995, pg. 529. 328 “Sócrates aparece, assim, pouco tempo após sua morte, como uma figura mítica”. HADOT, 1999, pg. 50. Jaeger diz que Sócrates é para Platão a personificação do super-homem moral; JAEGER, 2003, pg. 567. Cushman afirma que Platão via seu mestre como a um homem integral, ao mesmo tempo feliz e virtuoso. Era dessa experiência que ele passou a ter a felicidade como corolário da virtude. CUSHMAN, 2007, pg. 11. 329 Hadot afirma que isso faz de Sócrates o Indivíduo no sentido kierkegaardiano. E o próprio Kierkegaard pensa que Sócrates, sendo o mais bizarro dos homens, foi quem pela primeira vez descobriu a categoria do Indivíduo. HADOT, 1999, pg. 56; KIERKEGAARD, 1986, pg. 62. 330 Cf. Introdução.

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Assim, uma vez que a teoria sempre pressuponha a admiração, a absurdidade do filósofo nasce das sucessivas remodelações psíquicas que ele sofreu através do maravilhamento. É por admirar-se com tudo que Sócrates filosofa sobre tudo; e por filosofar sobre tudo que ele se torna alguém singularíssimo.

Assim no Fédon como no Críton, dois diálogos que exaltam a diferença do filósofo em relação aos outros homens, essa singularidade é claramente associada ao maravilhamento. De fato, as quatro obras que abarcam o processo de julgamento e morte de Sócrates estão completamente eivadas de um elogio a sua coragem, nascida da maneira incomum como encara a morte. No Críton, há uma cena antológica. O amigo de infância de Sócrates aparece logo cedo na prisão, com o intento de propor que Sócrates se escape dali. Ele sabe que o barco que foi a Delos acabou de retornar e, conquanto não considere justa a fuga, teme ser mal-falado futuramente por não haver auxiliado seu mestre quando possuía recursos para tanto. Ele entra na prisão logo depois da aurora, em virtude de favores que o guarda lhe devia. Porém, ao ver Sócrates dormindo o sono bonançoso dos justos, senta-se ao seu lado e não o desperta, com medo de que ele deixe de usufruir desses bons momentos que não tardam em cessar com a morte. Ao levantar-se, Sócrates pergunta-lhe por que não foi acordado, ao que Críton responde:

Críton: Por Zeus, não, Sócrates! Em teu lugar, eu recearia estar acordado e sentindo tamanha angústia; por isso, a partir do momento em que entrei aqui, admirei-me (qa u m a /z w) ao perceber o teu sono sereno, e não quis, acordando-te, privar-te do desfrute de momentos tão ditosos. Em verdade, Sócrates, admirei teu caráter desde que te conheci, mas jamais tanto quanto agora, a ver-te suportar esta desgraça com tanta serenidade331.

A admiração que Críton experimenta é a quebra com aquilo que se deveria esperar de um homem que, a partir daquele momento, sabe com certeza o dia de sua morte. O normal seria a angústia e o desespero, o medo e saudade dos entes queridos que hão de permanecer cá no

331 Crít., 43b3-9. Acrescentamos à tradução a expressão “ao perceber”, que o tradutor deixou de lado. Tal expressão modifica o sentido da frase, pois Críton se admira ao perceber o sono de Sócrates, e não simplesmente admira o sono. Na brilhante conlusão de Cushman: “The marvel of Socrates was that he lived and died by principle”. CUSHMAN, 2007, pg. 10.

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mundo. É um tipo de admiração que ainda contém a componente cívica ligada ao verbo qau ma/zw, pois ressalta a coragem e tranquilidade excepcionais de alguém; ao mesmo tempo em que é sobremaneira diferente, já que apenas um cidadão, o mais estranho de todos, pode ostentá-la, e já que ela tem a capacidade de desfigurar os pensamentos e sentimentos comumente experimentados em ocasiões como esta. Sócrates nem ao menos teme a morte, pois ou não ousa dizer que sabe o que ela representa, como se afirma na Apologia, ou então sabe que ela há de levá-lo para junto dos deuses e heróis, como se diz no Fédon332. Essa posição teórica faz com que aja de maneira diferente das outras pessoas. De fato, ele já pensou sobre a morte; já fez a jornada intelectual que, partindo do maravilhamento, pode tê-lo conduzido à visão da essência buscada, ato que também implica o mesmo pasmo e reverência experimentados no início da busca. Por conseguinte, não olha para ela com os olhos da tradição, tampouco com o medo quase natural que é próprio das pessoas sem nenhuma instrução filosófica. Tem maneira peculiar de observá-la e disso extrai conclusões práticas – a sua coragem e tranquilidade – que por si só provocam a admiração naqueles que as contemplam. Críton, com efeito, não pode permanecer no interior de sua experiência habitual que o levava a encarar a morte como algo temível e indesejável, pois essa experiência é diretamente confrontada pela atitude de Sócrates. Apesar de sua tacanhez intelectual, ele precisa rever seus conceitos. É este o tom que perpassa todos os diálogos relativos ao processo de condenação de Sócrates.

Na Apologia, por exemplo, temos a impressão de que todo o julgamento – suas regras, seus objetivos, suas partes componentes, seus procedimentos corriqueiros etc. – estão a sofrer o mesmo exame que Sócrates aplica aos homens com quem conversa, tornando-se incomuns e extraordinários e obrigando as pessoas presentes a revisarem as concepções que mantinham quer sobre um julgamento, quer sobre outras questões mais filosóficas, como a justiça, a sabedoria ou a morte. Sem dúvida, juízes, jurados e público assistem a algo inteiramente novo e inusitado, e Sócrates até se admira de que, em tão pouco tempo, ganhe

332 Nota-se facilmente como a Apologia é mais reticente do que o Fédon. A razão mais simples para tal fato se encontra na ideia de que, na primeira obra, Platão estaria descrevendo o Sócrates histórico, enquanto que na segunda expressaria suas próprias teorias. Cornford pensa que, no Fédon, Sócrates é levado a transcender-se si mesmo, pois se entrega à poesia e, dado que esteja para morrer, profetiza várias coisas como se fosse um cisne. Com tal estratagema, Platão consegue levar Sócrates para além de seus traços históricos e apresentar apologia mais convincente, como se afirma no próprio diálogo. CORNFORD, 1989, pg. 109-11.

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tantos adeptos para o seu lado333. Desde o início de sua argumentação ele age de modo diferente, e ao invés de se mostrar humilde ou temeroso, arroga-se o direito de determinar qual seriam os papéis do orador e dos juízes. Ele se lamenta do estilo oratório e evoca as qualidades dessas peças, dizendo por que conseguem convencer quem as escuta; torna patente o procedimento vergonhoso pelo qual os réus, usando de seus laços familiares, suscitam a compaixão dos juízes; ressalta que apenas um dia é pouco tempo para se avaliar a vida de um homem e tomar decisão sobre ela334. No meio do processo, ademais, ele deixa de lado sua condição de acusado e decide interrogar um de seus acusadores. Meleto vê-se obrigado a responder às questões que Sócrates lhe faz, e cedo se mostra a desarrazoabilidade de sua acusação, que nem ao menos foi fortalecida por testemunhas335. Essa é apenas uma das conversas que ocorrem ao longo do processo, pois há também várias ocasiões em que interlocutores imaginários interpelam a Sócrates com possíveis objeções. O modo como ele fala e os recursos inusitados que emprega destoam tanto do que devia ser um julgamento comum, que tem de pedir, de forma obsedante, que os Atenienses não se amotinem nem se agitem336. A diferença que cita reiteradamente, consoante a qual ele diz a verdade e os seus acusadores mentem, dá a entender que toda a singularidade do processo advenha disso: parece que jamais alguém dissera a verdade em um tribunal, mas apenas o verossímil, e que agora, por ser ela dita aberta e impudentemente, sobrevêm tamanhas diferenças e peculiaridades. Tudo o que os jurados e juízes deveriam pensar em seu foro íntimo a fim de tomar sua decisão – os prós e os contras da missão socrática – é dito às escâncaras por Sócrates, o qual realiza o trabalho de conduzir o pensamento de seus próprios avaliadores. Mesmo que ele não o queira admitir, há algo de psicagógico em suas palavras337.

Seja qual fora a razão da idiossincrasia de seu processo, a conclusão é bem óbvia: Sócrates simplesmente dá mostras de que não lhe agradam nem um pouco os trâmites e os costumes comuns aos

333 Apol., 36a3. 334 Apol., 17a-18a6. Sócrates decide falar com a mesma naturalidade que emprega no dia-a-dia, quando os discursos forenses se caracterizam precisamente pela arte que contêm em sua elocução. LIMA, 2004, pg. 107. “A defesa de Sócrates – tanto na versão dada por Platão como na relatada por Xenofonte – espanta pela sua ausência de aparato, pela sua simplicidade, pela sua bonomia”. CHATELET, 1977, pg. 36. 335 Apol., 24d-28b. 336 Esse pedido é um dos tópoi da obra e aparece de forma obsedante. Exemplos: Apol., 17d, 27b, 30c2. Lima comenta que se trata duma maneira de mostrar que o filósofo está lidando com uma multidão tumultuosa. LIMA, 2004, pg. 97. 337 Sócrates também repete várias vezes que está dizendo a verdade. Cf. LIMA, 2004, pg. 96.

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processos judiciais, e por isso, sem abandonar seu jeito de ser, transmuda-os por inteiro. Ele não possui má intenção e nem age dessa maneira por temer a morte; apenas se nega a abandonar os costumes que professou ao longo da vida. Em verdade, Sócrates não consegue haver-se de maneira convencional, aceitando as regras do julgamento e esquecendo, ainda que por instantes, sua posição filosófica. Tudo lhe é filosófico e passível de discussão, e tanto se lhe dá se é preciso mostrá-lo a uma ou a quinhentas e uma pessoas. Em razão de seu contínuo maravilhamento, ele desde sempre está em uma esfera filosófica, sendo que transforma tudo o que toca e o transfere para esse âmbito. Mesmo um simples jantar, como dissemos, serve de inspiração para que disserte acerca da temperança. Sócrates possui qualquer condão similar ao de Midas: as ações mais comezinhas, quando tocadas por ele, convertem-se não em ouro, mas em interessantíssimos problemas filosóficos, que facilmente desfraldam a admiração de seus ouvintes e lhes alteram a experiência. Nada há no cotidiano que se mantenha imune as suas garras. Por ser ele mesmo o mais absurdo entre os homens, por andar sempre entorpecido e por ter a capacidade de transmitir esse entorpecimento, tudo o que ele faz comunica a mesma disposição (pa/qoj) em que está vivendo. Assim como é impossível tocar em Midas e não ser metamorfoseado em ouro, é impossível entrar em contato com Sócrates e ficar fora do delírio báquico e filosófico.

No Fédon, a admiração do personagem homônimo se manifesta de forma similar ao caso de Críton, se bem que em nível ainda mais paradigmático. Ao narrar as derradeiras horas de seus mestre, Fédon assume o papel de corifeu e passa a expressar tudo o que os discípulos sentiram. Ele serve como porta-voz para todos aqueles que puderam presenciar a absoluta excentricidade de Sócrates, bem como o que nela havia de divino e maravilhoso. No início de seu relato a Equécrates, ele começa por dizer que, enquanto esteve presente aos últimos momentos de Sócrates na prisão, experimentou coisas admiráveis. Sobretudo, impressionava-o a tranquila nobreza que Sócrates apresentava e que fazia dele alguém feliz nos gestos e nas palavras, que parecia estar certo de ir desfrutar no Hades uma bem-aventurança inacessível aos outros mortais. Ante tal cena, Fédon não podia ser impelido a compadecer-se. A despeito de sentir o prazer costumeiro por estarem falando de filosofia, padecia ao mesmo tempo a dor por saber da morte iminente de seu grande amigo. Todos os demais presentes estavam tomados pela mesma agitação, que os fazia simultaneamente rir e chorar, com exceção de Sócrates, que se manteve sereno até o fim e em nada fugiu aos seus

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costumes. A mescla de sentimentos opostos fazia com que Fédon sentisse suas impressões como absurdas e desconcertantes.

Fédon: Enquanto estive ao lado de Sócrates, minhas impressões pessoais (eÃp a qo n) foram, de fato, bem singulares (qa u ma /s ia). Na verdade, ao pensamento de que assistia à morte desse homem ao qual me achava ligado pela amizade, não era a compaixão o que me tomava. O que eu tinha sob os olhos, Equécrates, era um homem feliz: feliz, tanto na maneira de comportar-se quanto na de conversar, tal era a tranquila nobreza que havia no seu fim. E isso, de tal modo que ele me dava a impressão, ele que devia encaminhar-se para as regiões do Hades, de para lá se dirigir auxiliado por um concurso divino (qei ¿a j mo i¿ra j), e de ir encontrar no além, uma vez chegado, uma felicidade tal como ninguém jamais conheceu! Por isso é que absolutamente nenhum sentimento de compaixão havia em mim, como teria sido natural em quem era testemunha de uma morte eminente. Mas o que eu sentia não era também o conhecido prazer de nossos instantes de filosofia, embora fosse essa, ainda uma vez, a natureza de nossas conversas. A verdade é que havia em minhas impressões (p a /qo j) qualquer coisa de desconcertante (a Ãt o p o/n), uma mistura inaudita, feita ao mesmo tempo de prazer e de dor, de dor ao recordar-me que dentro em pouco sobreviria o momento de sua morte! E todos nós, ali presentes, nos sentíamos mais ou menos com a mesma disposição, ora rindo, ora chorando; um de nós, até, mais do que qualquer outro: Apolodoro. Deves saber, com efeito, que homem é ele e qual seja o seu feitio338.

Além de tudo o que é dito nessa sublime passagem, interessa-se

particularmente a primeira frase, porque ela de novo associa o verbo

338 Féd., 58e-59b.

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qau ma/zw à palavra pa/qoj339. Com efeito, Fédon e os demais amigos de Sócrates percebem uma maneira completamente insólita de alguém se portar diante da morte, fato esse que os leva a vivenciarem determinada experiência de maravilhamento. Por estarem presentes no círculo de atuação de Sócrates, sentem-se sob o aguilhão da admiração e não podem contê-la em seu íntimo. A experiência habitual que deveriam viver num caso desses convola em outra que implica desconcerto e ruptura com o modo comum de se pensar. Eles veem alguém que, tendo sua consciência em paz e estando imbuído de juízos de valor inteiramente diversos daqueles acatados pela maioria, caminha com serenidade para a morte, a qual também é concebida de forma peculiar e inovadora. Tanto quanto seu julgamento, a morte de Sócrates é evento absolutamente fora do comum, que beira facilmente o absurdo (aÃt opon). Tal fato desperta por si só a admiração de quem o testemunha.

Em outra fala de Fédon, quando novamente interrompe a sua narrativa para especificar o que ele e os demais amigos de Sócrates vivenciaram na prisão, os mesmo eventos vêm à tona.

Fédon: Em verdade, Equécrates, muitas vezes me maravilhei (p o lla /kij qa u m a /sa j) diante de Sócrates, mas confesso que nunca senti tanta admiração por ele como naquelas horas finais em que estive ao seu lado. Que um homem como ele fosse capaz de responder, é coisa que nada tem de extraordinário. Mas o que achei maravilhoso (ma /li st a e) qa u/ma sa) de sua parte foi antes de tudo o bom humor, a bondade, o ar interessado com que acolhia as objeções daqueles moços e, além disso, a finura com que percebeu e soube avaliar o efeito que sobre nós tinham (p ep o /nq eme n) produzido as suas objeções (u(p o \ t w ½n lo /g w n). E, enfim, como o soube curar! Pois parecíamos uns fugitivos, uns vencidos. Sua voz nos alcançou novamente, nos obrigou a fazer meia volta e a tornar, sob sua conduta e com ele, ao exame do argumento340.

339 Encontra-se no Banquete outra frase em que ambas as palavras aparecem juntas, quando Diotima diz que Sócrates não deve sentir nada de admirável, ao perceber como pensara a natureza do Amor de forma errônea. Banq., 204c. 340 Féd., 88e4-89a7. Sócrates também causa admiração menos intensa, derivada da liberdade com que age. No Banquete (175a2), Aristodemo, que encontrara Sócrates no caminho para o

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Fédon admite que sempre se admirou com as proezas de Sócrates, e acrescenta que isso foi ainda mais intenso quando, na prisão, presenciou-lhe os momentos derradeiros. Acima de tudo, admirava-se com o modo como Sócrates podia continuar a manter seu bom humor e sua entrega às discussões, pensando apenas no bem que causaria em seus amigos e não na morte que o aguardava no crepúsculo do dia. Pelos seus atos, suas palavras e sua pessoa, Sócrates é algo admirável em si mesmo. De maneira similar aos companheiros de Ulisses, que também viam um prodígio no ciclope Polifemo341, os coevos de Sócrates o tinham por personagem maravilhoso e completamente diferente. Em uma época que louvou as grandes individualidades, fossem elas políticas, atléticas ou intelectuais, isso podia fazer com que as pessoas acatassem sua autoridade e se dispusessem a segui-lo, ou seja, podia ser parte de seu método protréptico. Em verdade, é de se supor que muitos discípulos – Críton, por exemplo – nem sequer compreendessem a fundo o que Sócrates pregava em praça pública, buscando seu convívio e aceitando seus conselhos tão-somente porque estavam irremediavelmente cativados por sua singularidade. Fazia parte do canto de sereia de Sócrates incentivar essa sorte de admiração em seus conhecidos. Mesmo quem não teve a honra de privar de sua intimidade podia se admirar de seus feitos e desejar uma vida parecida com a dele, também dedicada à filosofia. Assim sabemos que Zenão de Cicio, após um naufrágio que sofrera, decidiu dedicar-se à filosofia e passou a seguir Crates, o Cínico, simplesmente porque havia lido o segundo livro dos Memoráveis de Xenofonte e ficara assaz empolgado com os ditos e feitos de Sócrates342. E sabemos também de várias pessoas – mulheres, artesãos, agricultores, escravos, estrangeiros – que se encaminhavam à Academia de Platão já praticamente convertidos à filosofia, depois de terem lido algum dos Diálogos343. Ainda hoje é possível sentir esse

festim e fora convidado por ele, se espanta de que o filósofo, apesar de ter se engalanado para comparecer ao banquete, deixa de lado todas as convenções sociais para correr empós de uma ideia que lhe assomou à mente. Quando o servo que foi buscar o filósofo conta que ele está parado e se recusa a entrar, Agatão acha o fato estranho e ordena que o servo volte e o traga. Mas Aristodemo impede essa ação e assevera que se trata de um hábito de Sócrates. No Teeteto (142c4), Euclides também se admira, como vimos, com a habilidade profética de Sócrates, que agourou acertadamente o sucesso intelectual e moral de Teeteto. 341 Odisseia, IX, 190. 342 Vidas, VII, 2. 343 “A Academia era muitíssimo concorrida. Conta-se de um lavrador que, depois da leitura do Górgias, abandonou seu campo, de um Caldeu e até mesmo de uma senhora vestida de homem”. LESKY, 1995, pg. 568. A mulher é provavelmente Axiotéia, segundo Hadot: “É

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magnetismo de Sócrates, pelo menos para aqueles a quem seu nome recorda mais do que os exemplos silogísticos do professor de lógica.

Entretanto, de todos aqueles que se viram inelutavelmente incitados a filosofar por influência desse pensador, nenhum foi maior nem mais bem-sucedido do que o próprio Platão344. O cisne adejante, que em sonho profético apareceu no colo de Sócrates345, é simplesmente o discípulo que deu certo, e o incomparável sucesso pedagógico que Sócrates logrou aqui poderia cobrir todos os inúmeros fracassos que sofreu alhures346. Platão só pode descrever tão bem a ação de Sócrates sobre as pessoas – o princípio da filosofia que ele causa em suas almas – porque padeceu ele mesmo, com a intensidade dramática e romântica dos grandes homens, tudo o que circunda tal fenômeno. Ele também deve ter se admirado com Sócrates e padecido os epifenômenos que rodeiam tal evento, e isso de tal maneira que o vigor dessa experiência o levou a mudar peremptoriamente o rumo de sua vida, purificando o que havia de comum e mesquinho em suas aspirações poéticas e políticas e levando-o a usar o produto disso para o bem da filosofia. O fato de atribuir a seu mestre poderes taumatúrgicos diz muito sobre a própria experiência que teve. Pouco importa nesse caso se o Sócrates histórico era assim na realidade; importa apenas que Platão assim o sentiu, compreendeu e embelezou poética e miticamente347. A forma de vida que aprendeu com Sócrates veio a ser para ele a única salvação possível para a degenerescência de seu tempo.

Fui obrigado a dizer, louvando a verdadeira filosofia, que a ela cabe discernir o politicamente justo em tudo dos indivíduos, e que a espécie dos homens não renunciará aos males antes que a espécie dos que filosofam correta e verdadeiramente chegue ao poder político, ou a

assim que Axiotéia, mulher de Fliunte, tendo lido um dos livros da República, vai até Atenas para tornar-se aluna de Platão, e os historiadores antigos afirmam que ela durante muito tempo escondeu o fato de ser mulher”. HADOT, 1999, pg. 112; Memoráveis, I, 2, 2-3. 344 “É certo que todo o gênero artístico dos diálogos platônicos brota de uma só e grande experiência vivida, a da personalidade de Sócrates”. JAEGER, 2003, pg. 640. 345 Vidas., III, 5. 346 “Is there nevertheless some interlocutor, absent from the early dialogues, whom Socrates does bring to successful intellectual childbirth? I can see only one plausible answer: Plato himself”. SEDLEY, 2004, pg. 37, grifo do autor. Há também Teeteto, conforme o primeiro prólogo do diálogo homônimo o demonstra. 347 É provável que Sócrates não se reconhecesse na maneira como Platão o pintava, donde as suas palavras após ouvir a leitura do Lísis: “Por Héracles! Quantas mentiras esse rapaz me faz dizer!” Vidas, III, 34.

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espécie dos que têm soberania nas cidades, por alguma graça divina, filosofe realmente348.

Em virtude disso, quando se vir impelido a concretizar as suas ideias, tentará obter com Dionísio II a mesma metamorfose anímica que sofreu por influência de Sócrates. Decidido a ir até Siracusa para dar provas de que realmente crê em seus próprios discursos, ele buscará convencer apenas um homem de que a filosofia é a melhor das vidas possíveis, a fim de que a cidade inteira seja salva e conduzida à felicidade349. Conquanto não haja nenhuma evidência explícita, em todo o emocionante relato da Carta VII, que nos permita afirmar Platão tenha usado a admiração como expediente protréptico para convencer Dionísio, é de se crer que ela fizesse parte de seus discursos e ações, simplesmente porque todos tendiam a provocar a anábase psíquica que libertaria Dionísio das opiniões convencionais do seu tempo. Platão tentou criar em Dionísio o desejo pela filosofia350, tal como Sócrates fez com o escravo de Mênon, e não lhe oferecer fórmulas prontas e demais conselhos políticos que não implicassem reviravolta completa na vida do governante. Isso era trabalho dos sofistas que, depois dos poetas, assumiram o papel de conselheiros nas cortes da época. Platão quis que Dionísio saísse da caverna, mas o tirano infelizmente não se dispôs a passar pelas etapas que o levariam a se admirar de verdade: não quis sofrer o vexame da aporia, não deixou-se purificar, nem abandonou as regalias que desfrutava enquanto soberano. Ao contrário, tomou o ensino que recebeu como uma mercadoria de que podia se servir para compor seus próprios livros, o que desencadeou da parte do filósofo diatribe ferrenha contra a comunicação da filosofia via escrita.

O malogro que Platão colheu nessa tentativa se assemelha, em parte, ao que sucedeu a Sócrates no caso de Alcibíades. Em ambos os casos os filósofos apenas conseguiriam a remodelação momentânea da alma de seus possíveis discípulos, o que não foi suficiente para salvá-los. Acabaram por perdê-los para as mazelas do tempo e para os vícios inerentes aos próprios jovens em questão. O próprio Alcibíades confessou que não era capaz de seguir os conselhos de Sócrates, embora muitas vezes se sentisse impelido a isso. No seu caso, como veremos agora, as etapas do maravilhamento que dá início à filosofia aparecem 348 Carta VII, 326a5-b4. 349 Carta VII, 328c2-3; 339e5. 350 Carta VII, 330b6; 338b6; 345d3-4. “É totalmente sob este ponto de vista que se encara a atitude de Platão para com o tirano, tal qual a Carta Sétima expõe: a atitude do mestre que vai ao encontro do seu discípulo”. JAEGER, 2003, pg. 1285.

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de maneira clara e precisa, ainda que não tenham sido levadas a cabo de modo duradouro. 4.2. Sócrates e Alcibíades

Certamente não constitui tarefa fácil descrever a conturbada e paradigmática relação de Sócrates e Alcibíades, relação cujas peripécias e reviravoltas suscitaram tanto interesse na Antiguidade quanto ainda suscitam nos dias de hoje, pelo menos no interior dos círculos acadêmicos e helenistas. A nossa interpretação é apenas a tentativa de mostrar que Sócrates, querendo chamar Alcibíades para a filosofia, usou da admiração que suscitava como expediente protréptico. Além de Platão, pensadores como Ésquines, Euclides e Antístenes, familiares aos ensinamentos de Sócrates, usaram de tais personagens em diálogos filosóficos, fato que por si só demonstra a existência de qualquer coisa de memorável nesse relacionamento351. De resto, os dois Atenienses são lendários e arquetípicos em igual medida: eles oferecem o retrato do filósofo justo e do político ambicioso, ou, em termos platônicos, do homem que exerce a verdadeira política e do jovem bem-dotado cuja natureza, tendo sido corrompida pela falta de educação adequada, leva-o às ações políticas mais pérfidas e censuráveis352. Em muitos pontos eles servem como exemplo de duas atitudes opostas, algo que constituirá o cerne do Banquete. De um lado, temos o mestre, um homem que, apesar de ser pobre e feio, é justo, temperante, altruísta e leva uma vida austera que se orienta por paradigmas externos e objetivos. De outro, temos o aluno, alguém que é rico, bem-nascido, belíssimo (um kalok‡gaqçv), mas, ao mesmo tempo, inescrupuloso, descomedido, egoísta, dono de uma vida devassa e aventureira que se rege tão-somente por paradigmas subjetivos, cegos e surdos a todo o dever. Enquanto Sócrates só cuida de servir ao deus délfico e à justiça, deixando de lado toda a consideração de bens ou males que lhe possam sobrevir, Alcibíades sempre revela em suas ações que só pensa em si mesmo e em

351 LESKY, 1995, pg. 534-5. Alcibíades também merecerá a atenção de Isócrates, que lhe há de tecer o elogio em seu discurso intitulado “Sobre a Parelha”. De resto, outros autores antigos tratarão de sua pessoa, nem sempre de maneira específica: Lísias, Tucídides, Xenofonte, Andócides, Diodoro da Sicília, Cornélio Népote e Plutarco. ROMILLY, 1996, pg. 14-15. 352 JAEGER, 2003, pg. 607; 748. “Creio ser um dos poucos atenienses, para não dizer o único, que se dedica à verdadeira arte política, e que ninguém mais, senão eu, presentemente a pratica”. Górg., 521d, 6-8.

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mais ninguém353. Como se não bastasse, ainda em termos políticos existe uma oposição: em um extremo, o homem de austeridade militar que alimenta inclinações espartiófilas e, conseguintemente, opta pelo governo dos melhores e pela conservação das leis; noutro, o homem desregrado e entregue às mais contraditórias atitudes, prestando-se como exemplo daquela política ultrademocrática que facilmente conduz, segundo o próprio juízo de Platão, ao advento da guerra civil (stásis) e da tirania354.

De certo modo, não parece concebível que Sócrates tenha jamais se interessado por esse rapaz que representava a jeunesse dorée de uma Atenas e de um século que ele, enquanto filósofo, não hesitou em censurar355. Que é que ele via nesse aristocrata mimado e petulante, nesse hedonista fanfarrão? Por que amava tanto Alcibíades? Há que se prestar a atenção ao tipo de persuasão privada que Sócrates exercia, bem como à sua constante preocupação com a política, para que se entenda essa aparente causa de perplexidade356. Sócrates se ocupou seriamente de Alcibíades, entre outras coisas, porque pressentia o poder e a influência que o dileto pupilo de Péricles logo alcançaria na vida pública do império ateniense. Ele desejou encaminhar o jovem para um caminho menos perigoso e, se possível, afastá-lo completamente de uma

353 Na Apologia (28c-d), com efeito, Sócrates se compara com Aquiles, herói que também desconsiderou a iminência da morte para poder vingar seu amado, Pátroclo, e sair assim de um estado desonroso. Esta comparação diz muita coisa: em primeiro lugar, confere caráter heróico à filosofia, o que condiz com o fato de ser Calíope, musa da poesia épica, uma das inspiradoras dos filósofos (Fedr., 259d3). Em segundo, Sócrates relata no Críton (44b) que teve um sonho consoante o qual logo estaria nas planícies férteis da Ftia. Ora, isso é provavelmente uma alusão ao seu destino post mortem, que lhe reservará um lugar na Ilha dos Bem-Aventurados, um privilégio próprio dos heróis; basta pensar que ele menciona a terra natal de Aquiles, em que reinava seu pai, Peleu. Por sua vez, sobre o egoísmo de Alcibíades, eis o juízo de uma eminente historiadora: “Aliás, grosso modo, eles [os Atenienses] tinham razão: Alcibíades – os acontecimentos viriam a confirmar tal suspeita – só tinha compromisso consigo mesmo”. ROMILLY, 1996, pg. 107. Sobre a heroicidade de Sócrates: JAEGER, 2003, pg. 580. 354 No encontro em que alguns dos aliados dos peloponésios exigem a declaração de guerra contra Atenas, os oradores coríntios elaboram uma comparação entre o espírito ateniense e o espartano que, a nosso ver, aplica-se surpreendentemente às qualidades e às diferenças de Sócrates e Alcibíades. Hist. Pelop., I, 70. Alcibíades, de fato, representa o desregramento ultrademocrata. DUHOT, 2004, pg. 29; NUSSBAUM, 2001, pg. 165. 355 “Ora, esse século deslumbrante, Sócrates quase não amou. Aparentemente insensível à beleza arquitetural, hostil a Péricles e à democracia, adversário dos professores, assume sua situação de marginal definindo-se como um zangão na cidade, aquele que perturba e exaspera, até ser esmagado. Aristófanes tinha-o representado grotesco, e a Assembleia o condenou à morte”. DUHOT, 2004, pg. 14. Nussbaum afirma que o Banquete deve ser lido tendo como pano de fundo a fascinação dos Atenienses por Alcibíades e sua história. Ele é outra obra que se inspirou na personalidade cativante desse personagem. NUSSBAUM, 2001, pg. 166. 356 LIMA, 2004, pg. 44.

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atividade cujo êxito pressupunha a degeneração da própria alma. Algo similar a isso, como explicado, será vivido por Platão, em que pesem todas as diferenças, no seu convívio com Dionísio II. E Sócrates se preocupou com Alcibíades, de mais a mais, porque via nele uma grande natureza, perfeitamente capaz de se desincumbir dos maiores desafios requeridos pela vida filosófica. Como se sabe, Sócrates acredita que a filosofia tem má-fama entre seus contemporâneos porque, ao invés de ser praticada por almas nobres, é-o apenas por pessoas medíocres que, não tendo prosperado na vida pública, voltam-se para os estudos. As almas nobres são impedidas de filosofar em virtude de sua absorção nos negócios da cidade. Sem dúvida nenhuma, Alcibíades serve como exemplo desse fato357.

Não nos é possível pesar, entretanto, o valor de cada um desses detalhes. Aqui nos interessa primordialmente a maneira como Sócrates influi sobre a personalidade de Alcibíades, experiência que é sentida e descrita pelo próprio jovem com palavras bastante eloquentes. Acreditamos que o elogio de Sócrates feito por Alcibíades, no Banquete, encerra várias referências ao fenômeno da admiração, uma vez que se refira ao efeito pedagógico da companhia de Sócrates, ao caráter exortativo com que ela se revestia e, ainda, às mudanças a que conduzia. Valendo-se de uma proliferação de referências ao maravilhoso, o encômio também descreve a admiração que a simples personalidade de Sócrates causava em quem o conhecia, pois ele não só praticava vários atos incomuns, como possuía singularidade tal que não podia se comparar com nenhum varão do passado nem do presente. E, ainda, assinala a existência de duas variantes do efeito produzido por Sócrates: a ofídica e a báquica. Ambas essas variantes também são encastoadas por Alcibíades no registro de uma experiência (páthos) patética, o que guarnece ainda mais as teses que temos defendido até agora. Baseando-nos nessas passagens é que podemos distinguir em Sócrates a personificação da admiração. Porém, antes que vejamos tudo isso, convém retornar ao Alcibíades Maior.

Neste diálogo, com efeito, ocorre como que o capítulo prévio ao elogio do Banquete, pois ali é-nos dado ver como Sócrates leva seu interlocutor a admitir que sofre do mal da ignorância e que está, portanto, no primeiro estágio da tripartição das almas e do saber antes analisada. Na ocasião, Alcibíades é parcialmente curado de seu estado, pelo menos enquanto permanece ao pé de Sócrates; ele passa para a

357 Rep., 495d-e.

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classe daqueles que tem consciência da própria ignorância e até promete se endireitar e cuidar de si mesmo, conforme analisamos anteriormente.

O diálogo se inicia com longo preâmbulo de Sócrates, no qual oferece pormenores sobre sua relação com o jovem. Tal prólogo deve salientar as razões do orgulho de Alcibíades, orgulho esse que fazia agourar para si mesmo um futuro estupendo e incomparável; e deve ressaltar a diferença dessa vida em relação à de Sócrates, um homem feio, pobre, sem dinheiro nenhum e descendente de uma família sem passado tão glorioso. Ele pergunta ao jovem se este não se admira de que ele, Sócrates, porfie tanto em manter seu amor, uma vez que foi o primeiro a amar Alcibíades e, ante as desistências de outros, ainda mantém viva a chama de seu sentimento.

Sócrates: Ó filho de Clínias, parece-me que te admiras (qa u ma /z ein) de que eu, tendo sido o teu primeiro amante, ainda não te abandonei, ao passo que os outros já o fizeram, e de que justamente esses, em multidão, conversaram contigo, enquanto que eu nada te disse ao longo desses anos. Não era humana a causa disso, mas certo impedimento divino cuja força irás sentir (p eu/ sv) dentro em breve. Uma vez que agora isso já não me impede, aproximo-me de ti; tenho esperança de que já não me impedirá no futuro. Em todo esse tempo, fui especulando e acabei percebendo como te portas para com teus amantes. Por mais numerosos e orgulhosos que fossem, não houve um que não fugisse de ti e acabasse sobrepujado por teu pensamento. Desejo esclarecer a razão por que os desdenhas. Afirmas que não precisas de nenhum desses homens para nada; os recursos que possuis, desde as coisas do corpo até as da alma, são bastante vastos para que não careças de ninguém. Em verdade, julgas ser o primeiro em beleza e estatura, e é claro para todos que não mentes nesse pormenor; depois, pertences à mais ilustre família da mais poderosa cidade da Grécia, e por conta de teu pai possuis aí vários amigos e parentes valorosos, os quais, se o precisasses, prestar-te-iam ajuda. Pelo lado de tua mãe, aliás, nenhum deles é pior

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nem menos valoroso. Além de tudo quanto eu disse, julgas ainda que dispões do poder de Péricles, o filho de Xantipo, que teu pai deixou como tutor teu e de teu irmão e que pode fazer o que bem entende, não apenas nesta cidade, mas também em toda a Grécia e entre os grandes e numerosos povos bárbaros. Colocar-te-ei ainda entre os ricos, embora isso pareça ser aquilo com o que menos te preocupas. Sendo arrogante em virtude de todas essas coisas, dominaste teus amantes, os quais acabaram sendo sobrepujados por serem inferiores, algo que não te passou despercebido. Assim, bem o sei, admiras-te (qa u ma /z ei j) sobre o que devo pensar para não abdicar de teu amor, e sobre que tipo de esperança tenho para não arredar o pé enquanto todos os outros já debandaram 358.

Desde cedo Sócrates deve ter percebido os dons naturais de

Alcibíades, a beleza de sua alma e os riscos que corria de se perder, razão pela qual começou imediatamente a amá-lo e a velar por ele. Durante longo tempo não lhe pôde dirigir a palavra, pois certo impedimento demoníaco (t i daimo/nion e)nant i¿w ma) lho impedia e lhe assegurava que tudo quanto falasse seria vão; é somente agora que pode falar, quando o efebo se encontra prestes a ingressar na vida pública. Ele sempre observou como Alcibíades sobrepuja e domina seus inúmeros amantes. Isso ocorre porque o jovem não precisa de ninguém: é dotado de alma e corpo belos, dono de riquezas materiais, descendente das melhores famílias de Atenas e, ademais, tem como tutor o homem mais poderoso do momento, Péricles, que exerce seu domínio sobre várias cidades e povos. Assim, não se admira de que Sócrates – esse plebeu sem formosura física, sem linhagem divina e sem posses materiais – não desista de amá-lo? Como bom hoplita que era, o filósofo tem esperança de manter seu posto, ainda que averigue a deserção dos outros amantes. Pode ser que creia ser melhor do que estes em algum ponto; não, certamente, naqueles pelos quais alguém é comumente considerado bem-aventurado, pois nisso não há quem se equipare ao jovem em questão. Talvez Sócrates tenha algo diferente e capaz de cativar as atenções de Alcibíades.

358 Alcib. 1., 103a-104c6. Tradução nossa.

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Alcibíades de fato se admira com a preocupação de Sócrates. Sempre pensara em lhe perguntar por que vivia a importuná-lo, apresentando-se onde quer que ele estivesse. Admira-se com sua ocupação nada usual e teria o maior prazer em saber algo sobre isso. Deveria pensar: “Por que razões esse homem quer tanto minha atenção? Que ele pensa que possui, capaz de me cativar, depois que tantos outros já fracassaram?”

Alcibíades: Na realidade, pois, admiro-me (qa u ma /z w ) com o que seja a tua ocupação (o \ so \n p ra =g ma), e com imenso prazer me informaria a respeito 359.

Alcibíades não conhece a essência da missão socrática, e nem

ao menos está acostumado ao método de pergunta e resposta. Na Apologia, o próprio Sócrates admite que não possui ocupação comum, igual à dos outros homens, e sabe que disso advém a má-compreensão de seus contemporâneos em relação a sua pessoa. Em todo caso, à parte essas questões, o que cumpre sublinhar é que mais uma vez Sócrates utiliza a admiração que desperta com fins protrépticos. Por seu comportamento absolutamente singular, ele faz com que Alcibíades se sinta instigado e desejoso de saber quais são as causas que levam Sócrates a agir desse modo. O filósofo manteve tática de aproximação lenta em relação ao mancebo; observou-o durante bastante tempo, apresentando-se onde quer que ele fosse, mas nunca lhe dirigiu a palavra. Fazendo-se notar por omissão, provocou a admiração de Alcibíades, que agora se encontra curioso e pronto para ouvir o que Sócrates tem para lhe dizer. Alcibíades se depara com um comportamento totalmente fora do comum, que por si só tem a capacidade de predispô-lo ao diálogo e à influência de Sócrates.

No Banquete, temos o emocionante relato que descreve como tal fato se desenvolveu ao longo dos anos, já que agora Alcibíades é mais velho e experiente do que no primeiro diálogo. Platão reservou ao desregrado político a honra e o mérito de descrever a essência de Sócrates. Na ocasião, assim que Sócrates termina o seu relato sobre os discursos de Diotima, afirmando que o Amor é a melhor maneira de se aperfeiçoar a natureza humana, os convivas vão a pouco e pouco retomando suas conversas, quando subitamente (e)c ai¿ f nh j) escutam um forte ruído do lado de fora da casa. Neste ponto se inicia a 359 Alcib. 1., 104.d.3-5. Tradução nossa.

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encenação dramática que serve de preâmbulo ao último e talvez mais importante encômio do diálogo. Todos os presentes distinguem um estrondo no portão e os sons de uma flautista. Agatão, dono da casa, logo ordena que seus escravos apurem do que se trata. Eis senão que aparece Alcibíades, numa entrada mais do que teatral360. Completamente embriagado, a escorar-se nos ombros da flautista, falando a plenos pulmões e com a cabeça adornada de hera e de fitas, ele se dirige aos convidados, dizendo que veio para beber com eles e coroar o mais belo e sábio de todos, Agatão. A sua vestimenta – principalmente a coroa de heras – o seu estado de embriaguez e o fato de estar acompanhado por um cortejo, pois, são sinais patentes de que Platão está criando atmosfera dionisíaca, que será ainda mais clara e pungente nas metáforas usadas por Alcibíades361. O belo personagem pede aos demais convivas que o acompanhem na bebida, ao que eles respondem com barulho e espalhafato, tal se fora numa assembleia espartana, solicitando-lhe que se sente e tome parte no festim. Ninguém pode resistir aos encantos desse homem. Alcibíades se encaminha então para junto do anfitrião e, entretido com sua coroa, acaba não se dando conta da pessoa de Sócrates, que jaz ao lado do tragediógrafo. É com surpresa e desconcerto algo cômicos que ele o nota, logo lhe lançando uma pilhéria típica de bêbado: ele afirma que Sócrates costuma se esconder e surgir de súbito, onde quer que ele, Alcibíades, venha a estar, e que deve 360 Banq., 213a3. Nussbaum ressalta que a aparição repentina de Alcibíades relembra a maneira súbita como a ideia do Belo surge em nossa alma. A intenção de Platão seria apresentar Alcibíades como exemplar empírico da beleza, cheio de todas as qualidades que o filósofo deixa para trás quando realiza a sua ascensão, e perceptível pelos sentidos e não pela alma. O paralelo vale igualmente para o fato de que Alcibíades também pede para ver Agatão, assim como o filósofo busca o Bem (agathon) suprassensível. A leitura de Nussbaum sempre contrapõe Sócrates e Alcibíades e os apresenta como duas possibilidades conflitantes pelas quais o leitor deve se decidir. O Banquete é para ele um diálogo que deixa o leitor com uma escolha existencial por fazer. NUSSBAUM, 2001, pg. 184. No que se refere à aparição súbita de Sócrates, Rosen possui opinião similar, que enfatiza como o Banquete é um diálogo sobre a filosofia: “Socrates becomes visible to Alcibiades “instantaneously” (e) cai¿f nhj), te same Word used by Diotima to describe the appearance of beauty itself. The Symposium presents us with the parousia of Socrates rather than the Idea of beauty; it is na “existential” statement of the nature of the philosophy rather than an ontological description of the structure of Being”. ROSEN, 1987, pg. 288-9. 361 Bacantes, 78-82. Para Nussbaum, Alcibíades encarna Dioniso, não apenas porque está bêbado, irracional e entusiasmado, mas também porque mistura elementos trágicos e cômicos em seus atos e discursos. NUSSBAUM, 20001, pg. 194. Embora isso esteja correto, não se pode ignorar a identificação de Sócrates com Dioniso, que é onipatente. Por sua vez, Jaeger ressalta que Platão une o apolíneo e o dionisíaco no Banquete, porque mostra que sem o impulso e o entusiasmo inesgotáveis das forças irracionais do homem jamais se poderá atingir a transformação suprema do espírito, que acontece quando se contempla a ideia do Belo. JAEGER, 2003, pg. 724.

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ter feito maquinações para se sentar perto de Agatão, que é o mais belo entre os presentes.

“Por Héracles! Isso aqui que é! Tu, ó Sócrates? Espreitando-me de novo aí te deitaste, de súbito (e)c a i¿f nh j) aparecendo assim como era teu costume, onde eu menos esperava que haverias de estar?”362

Esta fala conecta imediatamente os dois diálogos de que

estamos tratando, já que retoma a experiência que Alcibíades costumava sentir quando era jovem e ainda não conhecia a missão de Sócrates e, ademais, atribui a Sócrates a mesma capacidade de surgir de rompante, sem mais nem menos, que é também característica da entrada triunfal de Alcibíades. No prosseguimento da cena, Sócrates suplica que Agatão intervenha em seu auxílio, porque ele já padeceu inúmeros infortúnios desde que se enamorou de Alcibíades: tomado pelo ciúme, o jovem obrou verdadeiros milagres (qau mast a\ e)rga/ze t ai) para que seu amante não pudesse ver outros belos efebos363. Alcibíades dá a sua palavra de que nada fará de inconveniente, mas pede que Agatão lhe passe metade das fitas, a fim de que possa coroar a “admirável cabeça” (t h\n qau masth \n kef alh /n) 364 de Sócrates, o homem que, ao contrário de Agatão, cujas vitórias são ocasionais, sempre sai vencedor em todas as discussões. Assim, Sócrates também recebe o título de mais belo e mais sábio, aquele a quem Alcibíades viera para coroar, e passa a usar de um dos símbolos de Dioniso. Agora ele já está vestido a caráter para ouvir o elogio em que lhe atribuirão poderes similares aos do deus do entusiasmo365.

Desde o início da aparição de Alcibíades, dois pontos se tornam manifestos. Em primeiro lugar, a admiração incondicional que o jovem – que nem é tão jovem assim neste tempo, apesar de seu encanto sempre viçoso – devota à figura de Sócrates, o qual sempre é encarado como ser admirável e incomum. Começa aqui a proliferação de usos de palavras relacionadas ao fenômeno do maravilhoso, que atingirá seu cume durante o fim do elogio feito por Alcibíades. Tal proliferação não deve

362 Banq., 213b8-c2. 363 Banq., 213d3. 364 Banq., 213e2. 365 De acordo Morgan, embora Platão faça Alcibíades exibir um Sócrates báquico, há algumas diferenças que devem ser levadas em conta, como o fato de Sócrates evitar a embriaguez. MORGAN, 1992, pg. 234.

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ser vista apenas como espécie de pobreza vocabular de Alcibíades, que insiste em se valer de certos vocábulos; mas antes como um indício, habilmente planejado por Platão, de que Sócrates é em si mesmo a personificação da admiração. Quem está acostumado à leitura dos Diálogos, sabe que Platão não cultiva vocabulário rigorosamente técnico, mas que, quando quer enfatizar algum ponto, socorre-se de repetições e artifícios similares, com o fito de chamar a atenção do leitor. A sua inigualável consciência de compositor é razão bastante para que lhe atribuamos alguma intenção por detrás de tais repetições. Em segundo lugar, percebe-se que Alcibíades, posto que ame Sócrates às deveras, apenas permanece no primeiro estágio do Amor, aquele em que amamos unicamente um exemplar sensível do Belo366. Certo que há alguns pormenores que o diferenciam dessa pessoa: ele não está preocupado em amar Sócrates, que nem ao menos efebo é, para gerar em seu interior discursos sobre a virtude e sobre como o homem deve se relacionar com o Bem; e, de resto, ele certamente não ama o corpo de Sócrates, do qual parece motejar, senão os tesouros anímicos que o velho sileno oculta da grande massa. Além disso, deve-se notar que o discurso de Alcibíades se diferencia dos demais pelo fato de ele estar completamente bêbado (mequ/ont a aÃndra pa/nu sfo/dra) e, pois, em outro patamar de realidade. Para enaltecer condignamente o homem responsável pelos delírios filosóficos, o enaltecedor deve estar ele mesmo delirante. Alcibíades se mostra ruidoso e palrador, e ainda mais descarado e impertinente do que costuma ser no dia-a-dia; seu discurso é completamente livre de quaisquer convenções que em outros lugares – em um tribunal, por exemplo – poderiam sofrear a torrente da verdade; ele possui a radicalidade da filosofia.

A continuação do preâmbulo se dá com a insistência de Alcibíades para que todos se emborrachem como ele. Ele vê como ainda estão sóbrios e se elege chefe da bebedeira; solicita em seguida um porta-gelo, maior do que todas as taças, enche-o e o faz rodar entre os presentes. É necessário que todos comunguem do delírio dionisíaco que o embala no momento. Sócrates toma o recipiente e bebe, conquanto Alcibíades saiba que ele nunca fica bêbado. Deve-se dizer, aliás, que Alcibíades parece ter uma natureza bem-dotada, com alguma parcela da firmeza de ânimo que ele elogia em Sócrates, porque, embora trôpego e ebrifestivo, ele consegue elaborar um discurso excelente, que se

366 Como outros admiradores de Sócrates, Alcibíades ama um personagem histórico específico. NUSSBAUM, 2001, pg. 168.

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sobressai ao dos demais e que mostra como ainda mantinha algum domínio de suas sensações.

Depois dessa cena, Erixímaco intervém para saber de Alcibíades o que farão em seguida. Esse personagem tem a função de coordenar as atividades dos convivas, preocupando-se com as questões mais práticas, tal como Críton o faz no Fédon; é dele que parte a ideia dos elogios ao amor, apresentada como uma maneira de serenar a indignação de Fedro, o qual, além de estar sempre preocupado com tais questões, padece da mesma enfermidade de Sócrates e é inveterado amante de discursos367. Não deixa de ser curioso que todos sigam as prescrições de um médico, coisa que o próprio Alcibíades sublinhará através de uma citação de Homero. No mínino tal fato dá mostras da poderosa influência que a medicina, ciência recém descoberta, exercia no ânimo daquela sociedade. Isto também ocorre no Fedro, pelo menos no que se refere ao passeio dos dois personagens, que acaba sendo fundamental para o diálogo, uma vez que os conduza ao lugar divino por cuja causa tanta coisa há de acontecer.

Erixímaco deixa Alcibíades a par do passatempo que os entretinha antes de sua ruidosa chegada, instando para que ele também faça um elogio do amor. Entretanto, Alcibíades alega dois motivos que o impedem de fazê-lo: a sua completa embriaguez e o fato de não poder louvar ninguém na presença de Sócrates368. Erixímaco então lhe sugere que louve o próprio Sócrates. Diante da hesitação de Alcibíades, Sócrates lhe pergunta o que ele tem em mente fazer, pois teme que seja ridicularizado. Depois de Alcibíades garantir que apenas falará a verdade, Sócrates não apenas se acalma, como incita seu amante a realizar tal empreitada. Assim, Sócrates parece conceder toda a sua aprovação ao retrato que Alcibíades pintará de sua pessoa e de sua atividade como parteiro de almas.

A partir de então se inicia o discurso propriamente dito. O longo e meticuloso preâmbulo tem o intuito de assinalar várias coisas, como brevemente mostramos. Não se pode ignorar, por exemplo, o estado alterado de Alcibíades, pois é em virtude disso que ele falará com tanta eloquência e veracidade. Não estivesse ele embriagado, certamente conter-se-ia mais, a despeito de sua conhecida impulsividade. Também não se pode esquecer o fato de Sócrates concordar que falem a verdade sobre sua pessoa. Em primeiro lugar, isso mostra que ele é alguém que nada tem de que temer, nada tem para ocultar. Ao contrário da grande

367 Fedro inspira não só um orador (Lísias), mas todo um diálogo de Platão. 368 Banq., 214c6-d4.

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maioria das pessoas, que não se exporiam a um tribunal desse jaez a não ser que alguns exageros desculpáveis e algumas mentiras pudessem ser usadas para colorir qualidades que não possuem e mascarar defeitos de que estão cheias, Sócrates não tem medo de que o descrevam tal como é, pois sempre foi justo e sincero, fazendo de toda a sua vida uma defesa de sua inocência e virtude. E ele de fato acredita que Alcibíades é alguém que não só conhece a verdade sobre sua pessoa, como é capaz de expressá-la adequadamente. É de se indagar por que Platão confiou papel tão honroso a alguém como Alcibíades, que, em muitos casos, serve-lhe como perfeito exemplo de uma natureza tirânica e degenerada. Talvez ele visse em Alcibíades alguém tão incomparável quanto o próprio Sócrates369. Em segundo lugar, o modo como Alcibíades há de fazer seu encômio se ajusta às regras da retórica socrática, que, ao invés de se orientar pelo verossímil, sempre tem em mira a própria verdade. É em razão desse fato que ela sempre soa arrogante e despudorada para a maioria das pessoas. E, por fim, deve-se dizer que o simples fato de Sócrates poder substituir o lugar de Eros, enquanto mote para uma peça oratória, já demonstra que sua natureza não é comum, mas possui qualquer coisa de demoníaca, e que ele pode ser identificado com Eros sem maiores problemas. Os convivas acham absolutamente normal que isso ocorra, e nenhum deles intervém para reclamar de qualquer pormenor.

Alcibíades se propõe louvar Sócrates usando de imagens que tenham em vista a verdade e não o ridículo370. Antes de fazê-lo, ele reitera que dirá apenas a verdade e solicita que Sócrates o interrompa caso diga alguma mentira. Isso mostra mais uma vez como Sócrates aceita a maneira como é descrito. Ademais, ele pede que Sócrates não se admire se o elogio for feito de maneira não linear, porque, estando assim embriagado, não é fácil dar conta da singularidade de Sócrates (t h\n sh\n a)t opi¿an)371. Alcibíades parece não perceber, nesse trecho,

369 Rosen acredita que o discurso de Alcibíades é, no fundo, um louvor do descomedimento que tanto ele quanto Sócrates possuem. Alcibíades exaltaria a loucura de Sócrates para justificar a si mesmo, sem notar a diferença de que a sua loucura, diferente da do filósofo, é humana e doentia. ROSEN, 1987, pg. 283. De fato, não se deve negar que Alcibíades era também admirável, ainda que no sentido meramente humano. Tendo o desejo, hoje tão comum e exaltado, de chamar a atenção e causar escândalo, ele acabava se diferenciando das outras pessoas que eram limitadas pelas circunstâncias sociais. Há muitas anedotas em que isso se reflete. Todavia, a admiração que causa é no máximo algo “interessante”, que hoje figuraria nas revistas dos famosos, e passa muito longe do que Sócrates provocava. 370 Banq., 215a6. eÃstai d' h( ei¹kwÜn tou= a)lhqou=j eÀneka, ou) tou= geloi¿ou. 371 Conforme Nussbaum, o discurso de Alcibíades não é geral nem objetivo, mas se limita a comunicar a experiência particular que ele sentiu; ele é particular, retórico e imagético,

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que a embriaguez é o único modo pelo qual ele pode penetrar mais facilmente a essência de Sócrates: apenas quem está inteiramente fora de sua condição normal pode compreender a absoluta peculiaridade do filósofo. De resto, por essa afirmação sabemos que o seu discurso será descrição daquilo que torna Sócrates extraordinário, o que amarra de forma ainda mais firme os nós existentes entre o maravilhamento e a a)t opi¿a.

A primeira imagem que Alcibíades utiliza é a dos silenos dos estatuários, que soíam ser esculpidos com uma flauta ou siringe em sua boca e, a despeito de seu grotesco aspecto externo, continham estátuas dos deuses no seu interior372. Sócrates sem dúvida se parece com tais sátiros do ponto de vista externo: no que dele nos restou, notam-se olhos esbugalhados, perfil selvagem e algo desleixado, barriga saliente e uma estatura não lá muito alta. Isso condiz bastante com as imagens mitológicas dos seguidores de Dioniso. E, internamente, ele também possui imagem divina: o paradigma eterno que orienta sua vida e ao qual ele tenta se igualar. Quanto ao seu corpo, ele não parece se diferenciar demasiado de outros homens gregos, e até lhes é inferior em termos de beleza e proporção373. Sofre a mesma coisa que esses silenos se comparados com outra estátua menos comum ou simplesmente mais bela. Todavia, em seu íntimo ele tem algo a mais do que os seus contemporâneos, tal como os silenos em relação às estátuas com interior pleno: ele é guardião de algo capaz de evocar os deuses, um artefato humano que, dotado de certa simbologia religiosa, tem o poder de nos alçar até o âmbito divino. Não é preciso enfatizar demasiado que essa primeira imagem oferecida por Alcibíades já associa Sócrates a um ser que participa do cortejo de Dioniso. Mais adiante isso retornará de maneira evidente. Ademais, ela também relembra o que foi dito anteriormente acerca do intermediário, pois afirma que o interior de Sócrates, quando contemplado, assemelha-se em aspecto ao divino. Noutras palavras, Sócrates é um humano que, como Íris e Eros, pode

carecendo das qualidades próprias à filosofia. NUSSBAUM, 2001, pg. 187. Contudo, deve-se dizer que ele atinge alguma generalidade e expressa o que outras pessoas também sentiam e que, por sua absoluta liberdade, tem qualquer coisa de filosófico. 372 A menção das estátuas certamente devia evocar ao leitor da época a profanação dos Hermes, pela qual Alcibíades foi denunciado. NUSSBAUM, 2001, pg. 171. 373 Nietzsche tem a opinião de que a feiura física de Sócrates é mais uma prova de sua decadência. Ele ressalta como essa característica era considerada repugnante entre os gregos e chega a ajuntar o argumento bizarro, tirado da criminologia, de que a feiura externa de Sócrates era sinal de sua deformidade interna. Se isso fosse verdade, aqueles bigodes e as pequeníssimas orelhas diriam muito sobre o próprio Nietzsche. NIETZSCHE, 2008b, § 3, pg. 16.

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estabelecer contato com os deuses e mediar as relações deles com os homens.

A segunda imagem de Alcibíades, de tom similar ao da primeira, traz à tona Mársias, o lendário sileno flautista que ousou desafiar Apolo para uma competição musical. Com o instrumento que recebera de Atená, ele conseguia realizar duas façanhas memoráveis: primeiramente encantava os homens e os deixava possessos, fazendo em seguida com que se recordassem dos deuses e com que sentissem falta das iniciações e do próprio divino. Tal como as estátuas mencionadas acima, mas certamente com maior eficácia, o seu instrumento era capaz de transportar as pessoas para a esfera numinosa donde ele mesmo provinha; ele as arrancava de seu modo de vida habitual, lançava-as em espécie de transe e elas conseguiam sentir, com isso, como eram carentes da divindade. Segundo Alcibíades, Sócrates é muito mais admirável (polu/ ge qau masiw ¯t e roj) que Mársias, porque é capaz de obrar os mesmo prodígios que esse sileno, com a diferença de que não se socorre de nenhum instrumento senão de simples palavras (yiloiÍj lo/goij). Ele também efetua a comunicação dos homens com os deuses. Além disso, a comparação com Mársias pode ser mantida ainda sob outro aspecto. Como se sabe, este flautista era tão soberbo e convencido de seus dotes que ousou desafiar a Apolo para uma competição musical, competição essa que perdeu e que lhe custou a própria pele. Sócrates, que para os convivas do Banquete tinha o mesmo defeito, a ponto de Alcibíades lhe lançar na cara tal epíteto (És insolente!)374, também desafiou a sabedoria desse deus, embora possamos supor que tenha acabado vencido como o sátiro. Com efeito, assim que soube do pronunciamento oracular acerca de sua suposta sabedoria, tentou refutar o próprio Apolo, razão por que saiu pelas ruas de Atenas em busca de alguém que fosse mais sábio do que ele mesmo. Teve de demorar algum tempo nessa errância até que compreendesse o enigma do oráculo, baseado concepção bastante peculiar de sabedoria, e se resignasse a ser o mais sábio entre os homens, justamente por estar cônscio de sua ignorância. É só a partir daí que se tornou detentor da missão apolínea que consistia em revelar aos outros a ignorância involuntária de que padecem.

Mas não és flautista? Sim! E muito mais maravilhoso que o sátiro. Este, pelo menos, era

374 Banq., 215b7. u(b risth\j eiå. CORNFORD, 1989, pg,, 109, n. 1; DUHOT, 2004, pg. 136.

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através de instrumentos que, com o poder de sua boca, encantava os homens como o que ainda agora toca as suas melodias – pois as que Olimpo tocava são de Mársias, digo eu, por este ensinadas – as dele então, quer as toque um bom flautista quer uma flautista ordinária, são as únicas que nos fazem possessos (ka t e/x es qa i) e revelam os que sentem falta (d eo me/no u j) dos deuses (t w½n qew ½n) e das iniciações (t elet w ½n), porque são divinas375.

Já nesta comparação podemos ver que, em grande medida, as

pessoas que entravam em contato com Sócrates e com a filosofia sentiam-se elevadas para outro tipo de realidade, evento psíquico que descreviam como espécie de encantamento ou possessão. Isso significa que elas passavam a ver com outros olhos muitas das coisas a que estavam acostumadas a contemplar diariamente; é provável que novos e inusitados pensamentos lhes ocorressem e que até se sentissem outras pessoas. Todos esses eventos, bem como a conhecida passividade que acarretam, são indicativos do maravilhamento. De resto, a comparação do poder da flauta com o poder das palavras pressupõe a concepção pitagórica de psicagogia, já utilizada no Fedro para tratar da essência da retórica. Platão admite aqui que as palavras de Sócrates suscitam efeito tão forte e tão psicagógico quanto as notas musicais, o que está em perfeito acordo com as habilidades retóricas que, como vimos, ele lhe atribuiu em mais de uma ocasião. A menção da música só faz corroborar tal fato. Como sabemos pela República, a música era vista por Platão como algo que exercia poderosíssima influência na vida psíquica das pessoas e em sua disposição moral; toda a educação apresentada nesse diálogo tem como baluarte essa teoria376. Dizer que Sócrates tem também esse poder significa dizer, por conseguinte, que ele é capaz de modificar a alma das pessoas, modelá-las conforme certo paradigma ou simplesmente influir nelas de modo decisivo. O princípio dessa mudança acontece com a admiração.

Continuando seu encômio, Alcibíades descreve de maneira mais precisa o que ocorre a quem porventura ouve os discursos de Sócrates e se deixa encantar por eles. Todos são tomados por espécie de transe ou

375 Banq., 215b8-c6. 376 O papel da música na educação e na psicologia é outra concepção que Platão parece ter herdado do pitagorismo, ainda que a sua originalidade seja tão grande nesse ponto que, como Kahn ressalta, fica difícil saber o que é seu e o que não é. KAHN, 2007, pg. 73.

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empolgação (e )kpe plh gme /noi e)sme \n kaiì kat ex o/me qa) 377, e tão fortemente isso se associa ao que ele fala, que acontece mesmo quando suas palavras são referidas por outra pessoa, seja ela mulher, homem, adolescente ou ainda alguém sem nenhum valor. Os poderes ocultos nas palavras de Sócrates atingem o ouvinte tal como a corrente magnética de inspiração que se apodera dos poetas (Íon), não importa qual seja o rapsodo que os declame. O próprio Alcibíades passou (pe /ponqa) por isso várias vezes e ainda passa (pa/sx w) no presente momento, percebendo que o mesmo se dá com outras pessoas378. Ao ouvir Sócrates, ele sente que está vivendo de maneira indigna, como se fora um escravo, e que não pode continuar a levar a mesma vida que ora leva, mas precisa endireitar-se urgentemente. Tal sentimento nunca se apossou dele quando ouvia os melhores oradores, Péricles inclusive; sua alma não se agita com as palavras de outrem e não se vê exortada nem compelida a mudar. Ao ouvir Sócrates, porém, correm-lhe as lágrimas pela face e o seu coração bate mais forte do que o coração dos coribantes em seus transportes extáticos. Novamente Alcibíades percebe que isso ocorre também com outras pessoas.

“Quando com efeito os escuto, muito mais do que aos coribantes em seus transportes, bate-me o coração, e lágrimas me escorrem sob o efeito dos seus discursos, enquanto que outros muitíssimos eu vejo que experimentam (p a /sxo nt a j) o mesmo sentimento; ao ouvir Péricles, porém, e outros bons oradores, eu achava que falavam bem sem dúvida, mas nada de semelhante eu sentia (eÃp a sxo n), nem minha alma fica perturbada nem se irritava, como se se encontrasse em condição servil; mas com este Mársias aqui, muitas foram as vezes em que de tal modo me sentia que me parecia não ser possível viver em condições como as minhas. E isso, Sócrates, não irás dizer que não é verdade. Ainda agora tenho certeza de que, se eu quisesse prestar ouvidos, não resistiria, mas

377 Banq., 215.d.5-6. 378 Banq., 215d6-e.

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experimentaria (p a /sxo imi) os mesmos sentimentos379.

Os discursos de Sócrates são sempre exortativos e parenéticos,

fazendo com que a pessoa que os escuta seja obrigada a analisar a própria vida e, fortificando em sua alma o elemento racional, a escolher o que é o melhor para si. É isso que dizia também o general Nícias, conforme mostramos. Alcibíades sempre experimentou tal fato de maneira patética, tornando-se passivo diante do que ouvia de Sócrates. Embora houvesse nisso traços de retórica, eles não podiam ser comparados pura e simplesmente com os discursos dos outros oradores, pois continham em si uma chamada de consciência de que os outros discursos eram privados. Em verdade, Sócrates usa de seus poderes taumatúrgicos para fazer com que Alcibíades seja reconduzido ao seu “eu” mais autêntico; com tal modificação psíquica, ele leva o jovem a admitir que se descuida de si mesmo a fim de se dedicar aos assuntos da cidade, como já se tornara claro a partir do Alcibíades Maior. Acossado por tal fato, a custo Alcibíades busca fugir de Sócrates, como se escapasse das sereias, com medo de sentar-se ao seu pé e envelhecer ao ouvi-lo. Nesse quesito ele se assemelha a Ulisses: quer ouvir e se deliciar com a beleza singular do canto das sereias, mas, ao mesmo tempo, deseja continuar sua viagem e manter-se imune ao efeito encantatório que tal melodia exala. Desnecessário dizer que, com a metáfora das sereias, Alcibíades novamente alude à natureza mágica de Sócrates. Ademais, Sócrates é o único homem capaz de fazer com que Alcibíades se sinta envergonhado, coisa que muitas pessoas nem acreditariam ser possível, tamanha é a altivez e o descaro que demonstra em seus atos. Ele sabe que Sócrates tem razão e que é impossível contradizê-lo, pois ele nunca perde nenhuma discussão, como já fora admitido no início. No entanto, quando se aparta da influência parenética das palavras socráticas, é vencido pela glória da cidade e cai novamente no torvelinho da vida pública. Este era o principal motivo, aliás, que levava Sócrates a duvidar que Alcibíades pudesse se tornar filósofo. Ele sempre se envergonha quando se depara com Sócrates,

379 Banq., 215e-216a4. A raiva de Alcibíades em relação a Sócrates provavelmente decorre do fato de que sente expostas as suas fraquezas. NUSSBAUM, 2001, pg. 189. Xenofonte diz que Alcibíades e Crítias, na realidade, nunca apreciaram a companhia de Sócrates, simplesmente porque este os refutava e fazia sentir as próprias faltas. Ambos sofrearam suas paixões quando conheceram Sócrates, mas apenas até o momento que aprenderam o que queriam utilizar na vida pública. Memoráveis, I, 2, 24; 47.

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porque se lembra do que lhe prometera, e até gostaria que ele deixasse de existir, apesar da dor que isso lhe causaria.

E senti (p e/p o nqa) diante desse homem, somente diante dele, o que ninguém imaginaria haver em mim, o envergonhar-me (a i¹sxu/ ne sqa i) de quem quer que seja; ora, eu, é diante deste homem que somente me envergonho (a i¹sxu/ no ma i). Com feito, tenho certeza de que não posso contestar-lhe que não se deve fazer o que ele manda, mas quando me retiro sou vencido pelo apreço (t imh=j) em que me tem o público. Safo-me então de sua presença e fujo, e quando o vejo envergonho-me pelo que admiti (a i¹sxu/ no ma i t a \ w ¨m o lo g h me/na)380.

A menção da vergonha remete-nos para a análise da pedagogia

socrática tal como apresentada no Sofista; já vimos como tal sentimento é parte essencial da catarse que Sócrates realiza. Além disso, vê-se que o parecer de Sócrates no Alcibíades Maior e na Apologia é verdadeiro: são as honras e os trabalhos da cidade que corrompem a boa natureza dos jovens, da mesma forma que várias pessoas estragam a natureza do cavalo, e uma só a melhora e adestra381. Por tal razão a filosofia se encontra em sua situação atual de vexame: os melhores são roubados pela vida pública, e só lhe restam naturezas imperfeitas que, ao invés de contribuírem para seu desenvolvimento, atraem juízos ruins para ela. É um juízo que se aplica também a nossa época. Neste caso, o efeito dos discursos socráticos só vale quando Alcibíades se encontra na presença de seu mentor, e se apaga tão logo o jovem deixa se arrebatar por outros afazeres382. Tal oscilação não provém de uma suposta fraqueza da parênese socrática, mas antes da natureza inconstante de Alcibíades, que

380 Banq., 216a8-b6. 381 Alcib. 1., 135e6-8; Apol., 25a12-c. 382 Hadot lembra que, num diálogo de Ésquines de Esfetos, Sócrates afirma que pode ajudar Alcibíades apenas por amá-lo, ainda que nada tenha de útil para lhe ensinar. E no Teages (130d), que Hadot considera apócrifo, um discípulo diz que, mesmo sem ter recebido nenhum ensinamento de Sócrates, ele progride simplesmente por estar no mesmo lugar do mestre e poder tocá-lo. HADOT, 1999, pg. 57-8. Isso mostra o quanto a sua influência era sentida de maneira veemente. No caso de Alcibíades, como ressaltamos inúmeras vezes, essa influência só se fazia sentir quando o rapaz estava perto de Sócrates. “É indubitável que Alcibíades queria ser discípulo de Sócrates, mas a sua natureza não deixa se separar de si próprio. O eros socrático ardeu na sua alma por momentos, mas não chegou a atear nela uma chama permanente”. JAEGER, 2003, pg. 748

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sempre se deixa impressionar por aquilo que está mais à mão, não conseguindo suplantá-lo através de paradigmas imutáveis e seguros. Pensando na célebre e belíssima parábola de Cristo, é de se dizer que a culpa não é do semeador e nem da semente, mas do solo que deveria germinar; ele tem qualquer defeito que impede aquilo que nele é lançado de crescer por conta própria, até o ponto que já não necessitaria do auxílio do semeador383. Alcibíades é claramente alguém com natureza pétrea: recebe com facilidade e alegria as sementes, mas isso é passageiro, pois a ausência de terra faz com que as raízes não vicejem. Se Sócrates morresse, assim, Alcibíades ver-se-ia livre. Infelizmente ou não, ocorreu que o jovem veio a morrer antes de seu mestre, em razão das artimanhas e atribulações em que ele mesmo se envolvera.

No prosseguimento de seu relato, Alcibíades afirma que há de revelar um Sócrates que ninguém conhece. Em verdade, resume todos os efeitos que Sócrates causa dizendo que ele é dotado de um poder maravilhoso (t h \n du/namin wj qau masi¿an). Vimos anteriormente que Sócrates dizia-se possuidor de um poder em virtude do qual poderia salvar Alcibíades de suas perigosas ambições. O poder maravilhoso é a capacidade de criar o maravilhamento na alma das pessoas e, assim, o início psíquico da filosofia. Alcibíades afirma que Sócrates sempre se porta amorosamente (e )rw t ikw½j) para com os jovens; mostra-se aturdido e tão ignorante quanto eles, mesmo que no fundo esteja a lhes preparar uma cilada384. É assim que externamente ele se parece com um sileno. De resto, ele não possui consideração nenhuma pelos belos, pelos ricos e por aqueles que são honrados pela multidão; ele simplesmente ironiza tudo isso. É apenas quando se torna sério que se pode vislumbrar como seu interior é divino, repleto de estátuas não menos divinas (qe iÍa), áureas (x ru sa=), belíssimas (pa/gkala) e maravilhosas (qau mast a/). Alcibíades já logrou ver uma vez tal beleza; ficou completamente encantado e com a impressão de que faria tudo quanto Sócrates lhe ordenasse. A fim de sugar todo o saber oculto no peito do filósofo, supôs que seria bastante entregar-se a ele, pois tinha em grande apreço a própria beleza e acreditava que todos os homens fariam de tudo para possuí-la. Com isso em mente, o jovem armou diversas armadilhas para seduzir a Sócrates e alcançar o que desejava. Numa primeira tentativa, mandou seus servos embora para que ambos ficassem a sós, crendo que Sócrates faria alguma coisa. Contudo, depois da conversa

383 Fedr., 276e-a4. 384 Xenofonte relata que Sócrates possuía vários amantes. Memoráveis, III, 11, 16-17.

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rotineira, o velho moscardo simplesmente se retirou sem mais nem menos. Alcibíades valeu-se então de outro estratagema, pelo qual os dois ficariam mais próximos e também um pouco excitados emocionalmente: convidou Sócrates para se exercitar com ele, num lugar e horário em que ambos ficariam novamente sozinhos. Devia crer que, ao contemplar seu corpo e ao tocá-lo, Sócrates se rendesse aos seus amavios e lhe solicitasse alguns favores. Tudo isso debalde: mais uma vez seus desígnios mostraram-se vãos, pois apesar de haver se exercitado e lutado várias vezes com o jovem, Sócrates retirou-se sem nada ter arriscado fazer. Ante tais recusas, Alcibíades lança mão de medida ainda mais desesperada e temerária, convidando Sócrates para um jantar a dois. Na primeira vez, Sócrates vai-se embora cedo, logo que terminam a ceia; na segunda, é obrigado a ficar e a dormir com Alcibíades385.

Neste ponto, Alcibíades interrompe seu relato para fazer como que uma advertência aos seus ouvintes, que acaba revelando a variante ofídica do efeito de Sócrates, além de mencionar novamente a dionisíaca ou báquica, que já vinha sendo registrada desde o início do encômio. Ele garante que só pode continuar a falar graças a duas razões: em primeiro lugar, porque está inteiramente bêbado, o que o leva a dizer a verdade, conforme o conhecido adágio; e, em segundo, porque reconhece o valor do ato de Sócrates e não quer deixá-lo cair no olvido. Tais preocupações parecem necessárias, porque aquilo que vem em seguida tornaria qualquer pessoa motivo de chacota. Contudo, Alcibíades sabe que tal não acontecerá em virtude dos homens a quem se dirige, os quais, por já terem igualmente padecido o efeito de Sócrates, saberão compreendê-lo e perdoá-lo. É algo mais ou menos similar ao que ocorre com as pessoas que já sofreram os fenômenos provocados pela mordida de uma víbora. Estas pessoas só revelam todas as sandices que cometeram, quando estavam sob efeito do veneno, a quem já passou por situação semelhante, pois somente estes têm a compaixão necessária para não zombar do ocorrido, além de compreenderem que não há resistir à pujança do veneno. Alcibíades foi mordido por algo muito mais virulento do que uma víbora, num lugar também mais doloroso: foram os discursos filosóficos que lhe picaram a alma e o coração. Ele descreve as dores que sofreu de um modo que nos recordamos facilmente daquele personagem que está deixando a caverna ou, ainda, que está parindo alguma ideia com a ajuda de Sócrates, pois ambos se

385 Banq., 217a-d.

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sentem desnorteados e com dores. Todo o seu público sabe do poder desses discursos, quando pegam de uma alma jovem, não desprovida de talentos, e a fazem tudo dizer e tudo praticar. Agatão, Aristodemo, Fedro e os demais (Aristófanes inclusive!) já participaram do delírio filosófico provocado por Sócrates e da loucura do filósofo. Logo, podem ouvir Alcibíades com complacência e entendimento.

E ainda mais, o estado (p a / qo j) do que foi mordido pela víbora (u(p o \ t o u= eÃx ew j) é também o meu. Com efeito, dizem que quem sofreu (p a qo/nt a) tal acidente não quer dizer como foi senão aos que foram mordidos, por serem os únicos, dizem eles, que o compreendem e desculpam por tudo que ousou fazer e dizer sob o efeito da dor (u(p o \ t h=j o )d u/nh j). Eu então, mordido por algo mais doloroso (a )lg eino t e/ ro u), e no ponto mais doloroso em que se possa ser mordido – pois foi no coração (ka rd i¿a n) ou na alma (y u xh\n), ou no que quer que se deva chamá-lo que fui golpeado e mordido pelos discursos filosóficos, que têm mais virulência que a víbora, quando pegam dum jovem espírito, não sem dotes (mh\ a )f u o u=j), e que tudo fazem cometer e dizer tudo – e vendo por outro lado os Fedros, Agatãos, Erixímacos, os Pausânias, os Aristodemos e os Aristófanes; e o próprio Sócrates, é preciso mencioná-lo? E quanto mais... Todos vós, com efeito, participastes em comum (ke ko inw nh/ ka t e), do delírio filosófico e dos transportes báquicos (t h=j f ilo so /f o u ma ni ¿a j t e ka iì ba kxe i¿a j) e por isso todos ireis ouvir-me; pois haveis de desculpar-me do que então fiz e do que agora digo386.

Depois dessas advertências, Alcibíades retoma sua narrativa,

contando o que se deu em seguida ao jantar. Ele decidiu que devia se declarar abertamente a Sócrates, e disse então que resolvera entregar-se a ele, deixar ao seu dispor sua influência e seu bens, porque ninguém havia mais apto do que Sócrates para transformá-lo num homem melhor

386 Banq., 217e6-218b5.

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(oÀt i be /lt ist on e)me \ gene /sqai). Sócrates lhe responde, com seu modo irônico, que Alcibíades não é de fato uma alma vulgar, pela simples razão de que consegue ver em Sócrates um poder (du/namij) através do qual ele pode tornar-se melhor387. De certo, Alcibíades, diferentemente da maioria dos Atenienses, conseguia divisar o poder da filosofia que Sócrates carregava em seu íntimo. Todavia, ele se engana se pensa poder trocar um tipo de beleza pelo outro, como se pudera trocar ouro por cobre. Esse tipo de beleza que Sócrates possui nada tem que ver com a visão; é algo invisível, que se torna tanto mais manifesto quanto mais nos afastamos dos sentidos. Alcibíades ouve tudo e deixa as rédeas com Sócrates, para que este faça o que achar melhor para ambos. Deita-se sob o manto do filósofo e abraça com as duas mãos este “ser demoníaco (t %½ daimoni¿%) e verdadeiramente (w ¨j a)lh qw ½j) admirável (kai ì qau mast% ½)”388. Ambos pegam no sono e Sócrates se comporta como se fosse um pai ou um irmão mais velho.

Terminado o relato de seus infortúnios, Alcibíades elenca novas virtudes de Sócrates. Conta que, depois de tudo o que ocorreu, sentiu-se bastante embaraçado: humilhado, em verdade, ao mesmo tempo em que reconhecia o valor e a firmeza de ânimo de Sócrates389. Nunca havia encontrado alguém que se lhe equiparasse. Ainda mantinha o propósito de atraí-lo e roubar sua sabedoria, mas não sabia como fazê-lo: Sócrates se mostrara inflexível à beleza do jovem, que era sua arma mais poderosa, e tanto mais inflexível seria a ofertas pecuniárias. Alcibíades sentia-se como que escravizado e em completa desorientação (h )po/rou n)390, deixando-se andar à toa aqui e acolá. A sua desorientação é também indício do fenômeno de maravilhamento, assim como do que ocorre com aqueles que são ajudados por Sócrates a parir. A personalidade singular de Sócrates, fazendo com que Alcibíades não saiba como se portar, provoca desorientação similar àquela dos argumentos que geram aporia. Alcibíades vive o princípio da filosofia em sua alma graças ao amor que nutre por Sócrates. Na sequência da narrativa, essa peculiaridade do filósofo é novamente evocada.

Alcibíades conta que por esse tempo aconteceu a batalha de Potideia (432), em que lutaram juntos, e também a batalha de Delião (424), dois momentos em que a sua admiração pelo filósofo só fez

387 Banq., 218e. 388 Banq., 219c. 389 Banq., 219d3-7. 390 Banq., 219e3.

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aumentar ainda mais. Nesta parte do elogio começa verdadeira catalogação de todos os portentos realizados pela natureza prodigiosa de Sócrates; Alcibíades enumera vários fatos que ressaltam o quanto esse homem se diferencia das outras pessoas e o quanto é admirável. Em Potideia, por exemplo, Sócrates superava a todos os soldados em suportar as fadigas; jejuava sem problemas quando isso se fazia necessário; e, se o obrigavam, bebia mais do que todos e agüentava a tudo, sendo que o mais admirável (oÁ pa/nt w n qau mast o/t at on) era que não ficava nenhum pouco embriagado391. Nunca os sentidos podiam subjugar a força de seu pensamento e de sua vontade. Até mesmo quando caía geada, e todos buscavam se aquecer como pudessem, ele continuava a andar descalço e com o mesmo manto que sempre vestia, a ponto de pensarem os soldados que estivesse zombando deles. Isso significava obrar milagres (qau ma/sia h)rga/ze t o). Duma feita, ainda de madrugada, deixou-se estar em pé absorto em profunda meditação, à cata de alguma ideia que demorava a chegar. Ao meio-dia, quando se deram conta do tempo em que ele já estava a meditar, os soldados começaram a ficar admirados (qau ma/zonte j)392. Não era comum que um homem fizesse uma coisa dessas. Durante a noite, os soldados trouxeram seus leitos para fora, por conta do calor, e ficaram a observar por quanto tempo Sócrates permaneceria no mesmo lugar e na mesma posição. Provavelmente todos dormiram sem que o tenham visto se mexer. Com efeito, ele apenas se movimentou quando raiou a aurora, tendo então feito uma prece ao sol e se retirado. Nenhum desses soldados presentes poderia, depois do que viu, julgar que alguém se efemina por se dedicar à filosofia. Na batalha Sócrates também excedia os hoplitas comuns. Foi o único que teve coragem de salvar Alcibíades e suas armas e ainda teve a magnanimidade de recusar qualquer condecoração pelo ato. Em Delião, quando todos corriam em debandada, ele se retirava sereno e olhava de soslaio para o inimigo, mostrando-se mais seguro de si do que o próprio comandante, Laques393.

Alcibíades está certo de que poderia prosseguir na enumeração de muitas outras qualidades admiráveis (qau ma/sia) de Sócrates394. O que mais lhe causa admiração (tou=t o aÃc ion pant o\j qau/mat oj), pois, é que Sócrates não se compara a nenhum varão do presente ou do

391 Banq., 219e5-220a5. 392 Banq., 220c6. 393 Banq., 220e-221c. 394 Banq., 221c2-3.

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passado. Aquiles poderia ser comparado com Brasidas, da mesma forma que Péricles lembra qualquer coisa de Nestor ou de Antenor, pois cada um deles realiza um tipo de pessoa que é recorrente ao longo das épocas. Sócrates, no entanto, não pode ser comparado a ninguém, senão aos silenos já mencionados. É nisto que consiste precisamente a sua singularidade extrema (t h \n a)t opi¿an): ele é inclassificável e se encontra fora de todos os lugares-comuns que compõem a tipologia das personalidades395. Ao invés de exaltar algum modelo ideal da sociedade, a sua peculiaridade apresenta algo que contrasta plenamente com todos os ideais e que, em razão disso, pode desestruturá-los com a maior facilidade. O mesmo vale para os seus discursos. Por fora, parecem risíveis e ridículos, estão sempre a repetir as mesmas coisas e falam sobre asnos, sobre sapateiros e coisas parecidas, como se fosse uma conversa trivial de mercado; em nada se assemelham aos discursos empolados e eruditos dos sofistas. Todavia, em seu interior estão repletos de coisas diviníssimas e de estátuas da virtude (a)ga/lmat ' a)re th =j), sempre nos exortando para que façamos o bem.

Na peroração, Alcibíades ainda censura o modo como Sócrates se portou com ele e também com Cármides, Eutidemo e outros, fingindo-se primeiramente de amante para depois terminar sendo o amado. Por isso aconselha a Agatão que se acautele e que aprenda com as experiências narradas (paqh ma/t w n) para que não sofra (paqo/nt a) algo parecido no futuro, assemelhando-se aos tolos que, como afirma o provérbio grego, só aprendem depois de sofrer. Como bem notou o imperador Adriano recriado por Yourcenar: “O maior sedutor não é, afinal, Alcibíades e, sim, Sócrates”396.

***

Que se pode colher de quanto foi dito? Quais são as lições que auferimos da relação de Sócrates com seus discípulos e, principalmente, de sua relação com Alcibíades?

Em primeiro lugar, convém dizer que o Sócrates aqui comentado é o Sócrates tal como criado e enaltecido pelo estro platônico, fato que pode fazer dele algo bem diferente do personagem histórico. Não nos interessa tanto o que ele realmente foi, até porque

395 Banq., 221d2. 396 YOURCENAR, 1974, pg. 41.

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isso é difícil de saber; mas sim como Platão o sentiu e descreveu, pois foi essa experiência que o levou a criar a filosofia397. Quanto a Alcibíades, por sua vez, deve-se levar em conta que ele vivencia o princípio psíquico da filosofia e, portanto, que o seu discurso se refere diretamente ao maravilhamento, ainda que tal não seja mencionado de forma explícita. Todo seu encômio é uma descrição do que significa ser filósofo e, outrossim, do que significa conviver com um filósofo. Já vimos anteriormente que Alcibíades pertence, em virtude de sua ignorância, à classe de pessoas que não filosofam. Ao entrar em contato com Sócrates, porém, ele é levado a filosofar e experimenta assim todos os epifenômenos que ladeiam tal evento. Ele passa momentaneamente da classe dos ignorantes para a classe daqueles que, além de ter consciência do que desconhecem, encontram-se numa região mais próxima do divino. O seu relato se enquadra no registro do patético, enfatizando mais de uma vez como ele se sentia passivo e à mercê de Sócrates. Semelhante estado é próprio da experiência do princípio da filosofia, cuja natureza acarreta o mesmo gênero de passividade. Aliás, até o amor que Alcibíades nutre por Sócrates, se bem que carnal e terreno, é também um páthos e ocasiona passividade similar.

Alcibíades elenca vários fenômenos relativos à admiração, que mostram como é a experiência do princípio psíquico da filosofia que está em jogo em seu elogio: o desconcerto da aporia, a vergonha de si mesmo, o estranhamento, a perda de familiaridade e a aproximação do divino. A desorientação em que ficou depois de se entregar ao influxo de Sócrates recorda as pessoas que deixam a caverna ou as que são ajudadas por Sócrates a parir algum conhecimento, ambas as quais sentem-se confusas e perdidas. A sua vergonha, nascida do fato de que deve prestar contas da própria forma de viver, evoca a fala do general Nícias no Laques, bem como o resumo da pedagogia socrática apresentado no Sofista. Ela é sinal de que Alcibíades sofreu pequena expurgação que, por modificar sua experiência de ignorância por outra, faz com que se sinta desorientado, desgostoso para consigo mesmo e até 397 Não chegamos ao ponto de asseverar que o Sócrates platônico é o verdadeiro, como o faz Cornford, embora partilhemos da opinião de que Platão conhecia bem os traços biográficos de seu mestre e, em virtude disso e de sua grande capacidade filosófico-literária, oferece o retrato mais rico e talvez mais autêntico que entre os que dele se fizeram. CORNFORD, 2001, pg. 53; DUHOT, 2004, pg. 44; CUSHMAN, 2007, pg. 5 Admitimos a relevância filológica do debate sobre o Sócrates histórico, mas cremos que ele é de pouca valia do ponto de vista filosófico e pode no máximo determinar quais ideias eram de Platão e quais eram de seu mestre. O Sócrates que ainda vive na história do espírito e que exerce alguma influência sobre as pessoas é sem dúvida aquele que Platão criou e variou ao infinito. E como observa Scolnicov, aliás, uma nítida distinção entre eles é impossível. SCOLNICOV, 2006, pg. 18.

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com vontade de melhorar e ser outra pessoa. A outra experiência em questão é tanto a ação de Sócrates quanto o maravilhamento. O estranhamento e a perda de familiaridade, por seu turno, são explicados com recurso a três eventos similares: o encantamento musical que Mársias provocava, a mordida de uma víbora e o delírio báquico ou coribântico suscitado por Dioniso. Todos esses eventos implicam maneira insólita de comportamento, pensamentos inusitados, passividade e mudança no olhar, efeitos que desde o início temos atribuído ao maravilhamento. Alcibíades chega a se desculpar pelas sandices que cometeu quando foi tomado pelo efeito viperino de Sócrates; admite ter andado completamente fora de si, dizendo e fazendo coisas que lhe escapavam ao comando. A variante ofídica da ação de Sócrates coincide em vários pontos com a descarga elétrica que ele costuma causar, podendo ser entendida em bases similares àquelas que apresentamos anteriormente. Alcibíades também atribui a Sócrates poderes psicagógicos de encantamento, afirmando que apenas com palavras Sócrates encanta e fascina seus ouvintes. Algo parecido com isso também aparece quando Sócrates é comparado com as sereias, e ambos esses fenômenos relembram a análise do enfeitiçamento e da magia que elaboramos no segundo capítulo. A menção a Dioniso, pois, vem para reforçar ainda mais a tese de que Sócrates, através do maravilhamento, faz com que as pessoas deixem de lado seu modo habitual de ser. Está é a variante báquica de sua pedagogia. Desde o momento em que Alcibíades entra em cena há a tentativa de criar uma atmosfera dionisíaca e de tornar salientes os apanágios báquicos de Sócrates. É-lhe outorgada a capacidade de criar a loucura coribântica pela qual os iniciados se libertam de suas atitudes cotidianas e transpõem os limites do âmbito humano para adentrar no divino. Trata-se de uma loucura orgiástica e alucinante que conduz a modificações tão intensas quanto as que um poderoso fármaco pode suscitar. Tal como a admiração, a loucura dionisíaca domina inteiramente aqueles de quem se apodera.

Esse três eventos acima, por fim, ressaltam o que há de divino na ação de Sócrates, pois o associam claramente ao deus da embriaguez, dos mistérios e da profecia. A completa subversão psíquica que Sócrates causa engendra-se também pelo fato de ele trazer a perspectiva divina para a esfera simplória do humano. Quando descortina aos seus ouvintes os tesouros celestes que alberga em seu imo peito, fá-los sentir como são carentes do divino e os afasta de sua perspectiva meramente humana. A sua possível identificação com Eros, como dissemos, constitui outra

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maneira de dizer que a filosofia realiza a comunicação entre os deuses e os homens; mas aqui tal comunicação é realizada através do frenesi que elimina as pressões do cotidiano e põe seus adeptos em comunhão com Dioniso.

Todos esses fatos já haviam aparecido em nossas análises anteriores, ainda que com diversas roupagens. Eles são partes constituintes do poder maravilhoso (t h \n du/namin w ¨j qau masi¿an) de que Sócrates é detentor, o qual, como dito, é a faculdade de gerar o maravilhamento psíquico nas pessoas. A diferença do caso de Alcibíades – que também se faz notar com Críton e com Fédon – é que, sem em parte a sua admiração é provocada pelos discursos de Sócrates, do mesmo modo como acontece a Teeteto, em parte ele nasce da própria personalidade incomum de Sócrates. Este é o ponto que queremos sublinhar. Seria metodologicamente desastroso separar a personalidade de Sócrates de seus discursos, e nem por sombras é isso que pretendemos fazer398. Apenas desejamos frisar que o seu modo de ser, além dos discursos que vem para justificá-lo, é em si mesmo fonte de admiração, dando origem aos mesmos fenômenos encontrados na admiração filosófica. Como filósofo por antonomásia (ma/la), Sócrates vive de maneira vigorosa os efeitos da admiração e, ademais, passa-os adiante mesmo que não o queira. Ele habita região ontológica diferente das pessoas comuns; possui valores igualmente diversos e encara o mundo de forma peculiar. Isso faz com que seu comportamento seja absolutamente inclassificável e raie ao absurdo. A sua absurdidade anda de mãos dadas com seu caráter maravilhoso, pois se origina da maneira excepcional com que ele encara os eventos mais comezinhos. Em verdade, ele só pode ser absurdíssimo porque já é maravilhoso. No elogio de Alcibíades, isso aparece tanto nos adjetivos empregados quanto nos feitos narrados. Eles contribuem para mostrar que o comportamento do filósofo tem as mesmas virtudes que os seus discursos, sendo igualmente capaz de produzir os epifenômenos que caracterizam o maravilhamento. Fazendo jus à sua figura quase mítica, Sócrates, assim, é a personificação da admiração.

Os demais pormenores de seu efeito, bem como o seu caráter absurdo e extemporâneo, serão discutidos no próximo capítulo, quando

398 “A influência cultural de Sócrates é inseparável de sua personalidade. A força do seu influxo radicava no rigor categórico com que não só colocava suas exigências, mas também na adequação do seu comportamento às mesmas”. LESKY, 1995, pg. 533. “What Socrates taught was not separable from the impact he had upon his hearers”. CUSHMAN, 2007, pg. 5.

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comentarmos a alegoria da caverna e a imagem do filósofo apresentada no Teeteto.

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V

A ALEGORIA DA CAVERNA: ENCENAÇÃO DO PRINCÍPIO PSÍQUICO DA FILOSOFIA

5.1. Introdução ao capítulo Nas páginas anteriores discutimos o que acontecia a vários personagens dos Diálogos que, com a ajuda de Sócrates, eram levados a filosofar e experimentavam, assim, o maravilhamento em suas almas. Conforme a pressuposição que enunciamos no segundo capítulo, tomávamos os eventos relativos ao início psíquico da filosofia como epifenômenos da admiração, donde havermos estudado a aporia, o enfeitiçamento, o entorpecimento, a vergonha de si mesmo, a perda de familiaridade com as coisas habituais e outros efeitos presentes na pedagogia socrático-platônica. Tal pressuposição está na base de todo o nosso trabalho. De fato, se Platão assevera que o princípio psíquico da filosofia se dá com a admiração, então todos os fenômenos presentes nas cenas que descrevem como as pessoas começam a filosofar, em vários diálogos, podem ser entendidos como indicativos da essência de tal fenômeno. Foi o que fizemos ao analisar o caso de Teeteto, de Eutífron, de Mênon e de Alcibíades. Todavia, se nessas oportunidades tais fenômenos aparecem de maneira contextualizada e restrita, outro lugar há em que assomam sem que sejam limitados às idiossincrasias de um personagem nem cingidos a uma cena e ocasião específicas. Na alegoria da caverna, com efeito, Platão retrata de maneira ideal o modo como a filosofia principia na alma de alguém. Essa encenação aparece como exercício de imaginação, mito ou modelo que se presta para aclarar uma gama de assuntos que vinham sendo tratados ao longo da obra. Ela apresenta de forma paradigmática a maneira como uma pessoa abandona a classe dos ignorantes que supõe saber o que não sabem e, libertando-se do senso comum e da esfera da sensibilidade, caminha para a região mais próxima dos deuses e adquire consciência da própria ignorância. Embora seja indubitavelmente uma descrição do princípio psíquico da filosofia, em toda a passagem não há a utilização literal de palavras relativas ao maravilhamento (qau ma/ze in), motivo pelo qual temos de nos valer de nossa pressuposição. Não enunciar explicitamente um pensamento, porém, não faz dele algo inexistente; torna-o no máximo um subentendido que deve ser evidenciado pela exegese. Em todo o relato se sobressaem vários epifenômenos da admiração – a aporia, a

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sensação de estranhamento e de passividade, o possível desgosto para consigo mesmo – ademais de uma sinopse dos principais traços do filósofo e de sua relação com a cidade em que habita. Há também descrição minuciosa da peregrinação teórica que ele envida a fim de alcançar a tão almejada visão das essências. Tanto essa sinopse quanto essa descrição, que resumem e retomam a maioria dos temas já discutidos até aqui, relacionam-se intimamente com a digressão sobre o filósofo contida no Teeteto, como já fizemos notar brevemente399. Em ambos os casos Platão carrega nas tintas para mostrar como o filósofo se diferencia das pessoas comuns e como isso nasce da singularidade de seu olhar, que é muito mais olímpico do que terreno. Assim, estudaremos agora a alegoria da caverna com o propósito de ressaltar sua íntima ligação com o maravilhamento. A chave da nossa interpretação pode ser resumida pela ideia de que a reviravolta da alma descrita nesse mito, a qual dá início à caminhada experiencial em direção ao Sol, é processo heteronoético cujo signo mais evidente se encontra na admiração. Usamos o conceito de heterónoia, adrede inventado para se contrapor ao grego homónoia (o(mo/noia), a fim de enfeixar os momentos presentes nesse fenômeno. Ademais, também mostraremos que certos objetos podem causar a admiração e despertar a inteligência das pessoas, levando-as a sofrer reorientação ontológica sem o auxílio do filósofo, como se depreende da biografia de Sócrates. Uma vez feito isso, retornaremos ao diálogo Teeteto para concluir nossas reflexões sobre a admiração e o seu significado nessa obra em que ela é mencionada de forma explícita. Entre esses dois momentos, porém, faremos interlúdio para resgatar o clima do Teeteto e escrutinar a hora em que Sócrates se transforma em Protágoras. No que toca à estrutura da obra, esta cena possui sua importância porque representa a digressão sobre o sofista, precedendo e clarificando por via da contraposição o que é dito em seguida sobre o filósofo. Constituiria deslize exegético ler tais passagens separadamente.

5.2. A alegoria da caverna e a admiração como heterónoia

A alegoria da caverna é, sem dúvida, o mais célebre dos mitos de Platão, e condensa em si várias teses e posturas que estão no coração

399 Para a discussão deste ponto: CORNFORD, 1979, pg. 89; BURNYEAT, 1990, pg. 36-7; CHAPELL, 2005, pg. 127; SEDLEY, 2004, pg. 71. Tomamos o partido dos unitaristas, para quem a relação com a República e a menção das formas estão presentes na digressão.

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de sua filosofia400. Sócrates oferece através dela uma experiência ou impressão (pa /qoj) acerca da nossa natureza, no que concerne à educação e à sua falta. Não se trata de mera cadeia de raciocínios, mas de exercício retórico e experiencial que, apoderando-se de nós e carregando-nos em seu interior, deve nos fazer atentos para vários pontos teóricos que são ilustrados na orla do imagético401. A plasticidade do relato com certeza convém ao entendimento dos personagens em questão, os quais, pelo simples fato de serem Gregos, são bastante afeitos a imagens e demais artifícios similares. Ele descreve homens que estão afastados de sua verdadeira natureza e que são reconduzidos a ela através da filosofia, padecendo tudo o que este retorno provoca. A filosofia é a força que orienta a paidéia para que retornemos a nossa essência. Desde a sua infância (e)k pai¿dw n) eles estão agrilhoados num recinto escuro e afastado da iluminação solar, e têm como única fonte de luz uma fogueira que queima ao longe, por detrás de todos eles. Entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente (e )pa/nw o(do/n) e um pequeno muro, atrás do qual transitam várias pessoas que vez por outra conversam entre si, enquanto carregam toda a sorte de objetos. O interlocutor de Sócrates acha o quadro absurdo (aÃt opon), bem como os prisioneiros descritos; ele não se dá conta de que ele mesmo está em jogo na alegoria, ainda que Sócrates garanta que essas pessoas são semelhantes a nós402. Em tais condições, ao longo de suas vidas os prisioneiros nada mais viram senão as sombras que se projetam diante de seus olhos; eles não podem virar suas cabeças e contemplar diretamente a luz e os objetos, e tomam por reais as sombras que veem e os ecos que ouvem, sem ao menos suspeitar de que haja algo diverso disso.

No entanto, Sócrates cogita o que aconteceria aos cavernícolas se fossem conduzidos a sua autêntica natureza (f u/se i), após terem sido

400 “Rien ne peut rendre plus facilement acessibles les thèses essentielles du platonisme”. SCHUL, 1968, pg. 3; REALE, 1994, pg. 293. 401 Rep., 514a1-2. Depois de ressaltar que Platão utiliza certa “retórica de estranhamento” na alegoria, com a intenção de fazer com que o leitor se sinta deslocado em seu mundo mais familiar, Nightingale escreve: “The Analogy of the Cave is a protreptic discourse that urges the reader to embrace the life of philosophic theoria. Distancing us from our traditional world-view, it encourages us to accompany the mythic philosopher on his journey to the Forms. If the reader accepts this rhetorical invitation, he will depart from his present point of view (and, in some sense, from the familiar world in which he lives) and enter into the aporia and atopia that characterize the activity of philosophic theorizing”. NIGHTINGALE, 2009, pg. 96. 402 Rep., 515a4-5.

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libertados (lu/sin) das correntes e da ignorância (a)f rosu/nh j)403. Se um deles fosse desagrilhoado (lu qe i¿h) e forçado a se endireitar, a olhar para a luz e a caminhar de repente (e)c ai¿f nh j), sentiria dores (a)lgoiÍ) e não conseguiria ver os objetos para cujas sombras olhava anteriormente, em virtude do deslumbramento (marmaru ga\j) que se apossaria de seus olhos pouco aclimatados a tamanha intensidade luminosa404. Se a tal pessoa fosse dito que agora, finalmente, tem ante os olhos os objetos reais, e se lhe fizessem questões (e )rw tw ½n) sobre o que vê e lhe exigissem respostas (a)pokri¿ne sqai), certamente ela cairia em aporia (a) pore iÍn) e, buscando complacente refúgio na realidade a que estava habituada, negaria a realidade desses objetos e ainda acreditaria que as sombras da caverna eram mais reais do que eles405. O medo do desconhecido e da liberdade faria recrudescer sua natureza inautêntica

Em verdade, essa é a reação normal daquelas pessoas que, em confronto com Sócrates, recusam-se a admitir os próprios erros e agarram-se a opiniões convencionais para fugir das obrigações lógicas e morais que se depreendem da conversa filosófica. De fato, quando Sócrates empreende certa violência intelectual (b i¿#) que obriga seus interlocutores a realizarem a ascensão (a)nab a/se wj) para fora da caverna, a maioria deles se agasta (o)du na=sqai¿) e irrita (a)ganakt e iÍn), e nem consegue ver direito os objetos exteriores, pois seus olhos estão cheios da mais intensa luminosidade (au)gh=j)406. É preciso que a pessoa se habitue (su nh qe i¿a) paulatinamente às novidades que agora enxerga, passando por processo formado por vários estágios. Num primeiro instante, conseguirá olhar apenas para a sombra dos objetos; depois, já estará em condições de ver a imagem deles refletida na água; e só então poderá finalmente fitar as próprias coisas. Quando seus olhos estiverem mais acostumados, será capaz de olhar para o Céu durante a noite, divisando a Lua e as estrelas, até o momento

403 Rep., 515c4-6. A palavra que Sócrates utiliza para falar da libertação (lu/sij) do cavernícola, embora possua o sentido comum de libertação, desligamento, dissolução ou alforria, era também usada para falar do efeito específico causado por Dioniso. Este mesmo deus tinha por cognome “libertador” (Lua²ov), como se pode ver nos poemas de Anacreonte. Assim, essa passagem República pode ser associada ao que dissemos anteriormente sobre Sócrates e sua capacidade de provocar o delírio báquico ou coribântico. O desagrilhoamento do cavernícola assemelha-se ao que Sócrates causava em Alcibíades e em outros discípulos. 404 Rep., 515c4-d. 405 Rep., 515c6-e4. 406 Rep., 515e6-56a3.

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glorioso em que poderá contemplar (qe a/sasqai) o próprio Sol tal como ele é. Com essa experiência limite, perceberá que esse astro é a causa os anos e das estações, e que a tudo dirige no mundo sensível407.

De forma resumida, esta é a anábase que o cavernícola realiza para retornar a sua essência e compreender que existe outro mundo além daquele a que estava confinado desde a infância. Dado que o relato seja declaradamente pedagógico, de acordo com as próprias palavras de Sócrates, não é difícil perceber como se refere aos eventos presentes no início psíquico da filosofia. A pedagogia nunca é para Platão – temos insistido desde o início – a arte de transmitir coleção de informações fossilizadas e doutrinais; tampouco a arte que versa sobre a passagem de conhecimentos de um recipiente mais cheio para outro mais vazio408. Ao contrário, ela é por essência uma experiência de índole patética que tenciona modificar radicalmente a vida do educando. Em primeiro lugar, assim, é mister notar o papel do educador na alegoria: o cavernícola não se desaferrolha por conta própria, mas é desaferrolhado (lu qe i¿h) por alguém, como assinala a voz passiva do verbo em apreço. Trata-se da admissão de que, na imensa maioria das ocasiões, as pessoas só começam a filosofar com a ajuda de outrem ou sob os auspícios de Sócrates, como ocorre de modo recorrente nos Diálogos. Já nesse ponto deixa-se entrever o caráter passivo dessa experiência, que pressupõe a inteira entrega do educando ao educador. Entre os Gregos era muito comum a noção de mestre e discípulo, e considerava-se normal que um jovem se sujeitasse inteiramente aos ensinamentos de alguém mais velho. Sócrates nunca se disse professor de ninguém e sempre preferiu ter amigos a discípulos; o contexto da alegoria provavelmente alude, por conseguinte, à persuasão privada que ele praticou ao longo da vida, a

407 Rep., 516a5-b7. Karl Albert usa da alegoria para corroborar sua tese de que a filosofia não é para Platão algo que nunca acaba. Ele ressalta que a alegoria é uma descrição da faina filosófica, a qual possui uma meta e um fim na visão das ideias. ALBERT, 1991, pg. 64. Embora isso esteja certo, não se deve esquecer que essa caminhada precisa ser refeita inúmeras vezes, praticamente para cada objeto de discussão. Jaeger também aceita a opinião de que a visão do Sol ou o conhecimento do Bem em si é a meta a que tendem os esforços do filósofo, mas acrescenta o seguinte comentário: “É aqui que ela alcança seu estado, embora de fato não possa chegar a um estado de posse constante e de inerte contentamento consigo própria. Encarada do ponto de vista do indivíduo, a Filosofia é, na sua essência mais íntima, um esforço continuamente ocupado, de olhos no paradigma contido no existente”. JAEGER, 2003, pg. 890. 408 Banq., 175d3-e6. Jaeger ressalta como Platão repudia a noção comum de educação, segundo a qual os conhecimentos devem ser transmitidos de mestre para discípulo. “A verdadeira educação consiste em despertar os dotes que dormitam na alma”. JAEGER, 2003, pg. 888.

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qual tinha a virtude de transformar drasticamente a vida de quem compartilhava de seu convívio409.

Em segundo lugar, essa libertação da pessoa, se por um lado a conduz ao que realmente é, por outro lhe traz desconforto psíquico e outros problemas diversos, principalmente em virtude da região ontológica distinta para a qual a conduz. O cavernícola recém-alforriado penetra em um mundo que desconheceu durante a maior parte da sua vida; enxerga qualidades diversas e mais intensas daquelas a que estava habituado; vê pela primeira vez, de forma nítida, objetos que só conhecia de maneira vaga através de contornos bruxuleantes e ensombrados; entrega-se a uma dilatação visual, em suma, que o desorienta completamente. Se não bastasse, tudo isso lhe advém de chofre, com o emprego de certa violência por parte do libertador410. É compreensível que experimente aguda sensação de estranhamento, pois não está nenhum pouco habituado ao que presencia e precisa acostumar seus olhos para que seu desconcerto comece a se apaziguar. A dor que o acomete, gerada pelo excesso de luz a que é submetido, assemelha-se às dores do parto que, segundo Sócrates, também deixavam seus ouvintes estarrecidos e cheios de aporia. De fato, se questionada para falar sobre o que agora vê, tal pessoa fica confusa e sem saída, justamente porque todas as possíveis respostas que conhecia deixaram de ser válidas para a nova realidade a que foi transportada. A sua alma começa então a perambular às cegas, sem conseguir se deter em nenhum lugar, e suas palavras e conceitos de outrora ganham vida própria e giram sobre si mesmos. Ela até busca recuperar a segurança de antanho; esforça-se para tanto e se zanga consigo mesma e com quem a levou a passar por isso. No entanto, não consegue retornar de todo ao que era, e os objetos que tenta segurar correm e se afastam de suas mãos.

Em terceiro lugar, por fim, cumpre salientar que em todo o mito a filosofia vem concebida como espécie de caminhada. Isso significa que ela é experiência pessoal, passível de ser compreendida a fundo apenas por quem a realiza e põe em jogo o próprio ser. Poderia um viajante que fez tal peregrinação teórica e maravilhosa contar algo do que viu pelo caminho, sim; narraria as principais fases do trajeto e as coisas que viu, como Platão o faz ao nos presentear com a alegoria. Entretanto, somente quem levar a cabo toda a viagem poderá entendê-la realmente. É preciso galgar os degraus por conta própria para que se descortine toda a exuberância da paisagem, e no máximo podemos ser

409 Memoráveis, II, 6, 28-30. 410 A violência do pensamento, como Gadamer enfatiza. GADAMER, 2001, pg. 25

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auxiliados por um guia que já conhece o percurso. Dito de outra forma, a filosofia, em sua expressão mais original, não pode ser transmitida verbalmente, mas implica a experiência tingida pelo perigo (pa/qoj) de se pôr a caminho em direção a um horizonte desconhecido. Sócrates tão-somente assinala a estrada que deve ser percorrida, mas cada um de seus ouvintes precisa cruzá-la por sua própria conta e risco411.

Na Carta Sétima, que narra os sucessos relativos à conversão da alma de uma só pessoa, Platão também define a filosofia como gênero de caminho. Ele significativamente a alcunha de “via maravilhosa” (o(do/n qau masth \n). Pensamos não se tratar de simples adjetivação o uso da palavra “maravilhosa”; é antes alusão inconfundível à experiência de maravilhamento que permeia a faina filosófica, alusão essa que coroa as conclusões tiradas até agora. Depois de comentar que Dionísio II estava completamente afetado pela filosofia (ma/la pe ponqo/t a), pelo menos em um dos momentos em que pareceu sentir o amor sincero ao saber, Platão escreve:

Aquele que ouviu, caso realmente seja filósofo, tendo familiaridade e sendo digno da tarefa, por ser divino, considera que é caminho admirável (o (d o /n t e h(g eiÍt a i qa u ma s t h\n) ter ouvido e que se deve esforçar, e considera ainda que a quem faz assim não é possível viver de outro modo. Depois disso, tendo-o o seu guia (h(g o u/me no n) iniciado nesse caminho, não desiste antes de chegar a um fim em tudo, ou de ganhar força para por si próprio ser capaz de

guiar, sem aquele que indica o caminho412.

O resto da passagem continua a mostrar como a pessoa que completou tal caminhada modifica-se integralmente, e como passa a se orientar pela filosofia e a repudiar os outros modos de vida, mais ou menos como ocorre com o cavernícola que já não suporta sua antiga habitação. Destarte, todos os fenômenos acima descritos, como se

411 “A alegoria insiste nas provas da subida e na impossibilidade de comunicar aos outros a realidade verdadeira que se contemplou, pois só a contemplação dessa realidade revela que a realidade verdadeira não passa de sombra. O conhecimento verdadeiro é portanto incomunicável; não pode ser demonstrado porque só é dado na visão que supõe uma longa preparação”. DUHOT, 2004, pg. 102. 412 Carta VII., 340c-d. Reale comenta a passagem no contexto da crítica platônica à comunicação escrita da filosofia. REALE, 1994, pg. 17-20.

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percebe de maneira evidente, constituem representação imagética, sucinta e ideal do que ocorre a alguns personagens de Platão – Eutífron, Mênon e Alcibíades, por exemplo – quando são guindados por Sócrates até a esfera noética, se bem que eles não sejam inteiramente convertidos à filosofia e só experimentem de modo parcial o efeito de tais fenômenos. Passivamente, eles são conduzidos até o espaço da suprassensibilidade que antes ignoravam; uma vez aí, estranham a novidade do que percebem e se admiram de que as coisas sejam tal como são; a sua ignorância vem à tona e eles se sentem desencaminhados e atônitos, e em alguns casos até se irritam com Sócrates ou consigo mesmos. Os diferentes estágios de visão descritos na alegoria, aliás, representam o progresso intelectual daqueles que começam a filosofar. Eles indicam que, à medida que a pessoa se aproxima da visão das ideias, passa por sucessivas etapas em que tem de se avezar novamente ao que agora se lhe revela ao espírito. Não é de um só golpe que lhe é dado contemplar o esplendor das ideias; à inversa, precisa persistir bastante na ascensão intelectual e se esforçar para se elevar cada vez mais, experimentando em cada degrau os epifenômenos característicos que já padecera no início da ascensão. Em cada uma das passagens para outro nível de habituação o maravilhamento se faz presente. De resto, o desnível de conhecimento entre os seres humanos se explica através dessa escala. Tais estágios também podem ser vistos em relação com o grau de purificação que a pessoa atingiu, com as escalas da ascensão erótica e com a reminiscência das ideias, fenômenos esses que explicitam o caráter etimologicamente arcaico (‡rxÐ) da filosofia. Tudo isso já foi analisado com pormenores nas páginas precedentes.

A mudança anímica que tais pessoas padecem, em verdade, é a condição para que habitem a região pura. Ela mesma é espécie de purificação que, entre outras coisas, faz com que ocorra forte modificação de valores e uma consequente reorientação desiderativa413. Com efeito, aquele que saiu da caverna se regozija com sua mudança e deplora sua antiga habitação e as coisas em que acreditava quando lá vivia. As honras e os elogios, os prêmios e o poder que poderia ter na caverna lhe parecem falsos e irrisórios414. Ele se encontra em completa

413 Sobre a reorientação desiderativa e de valores: NUSSBAUM, 2001, pg. 157-8. Sobre a catarse: “Plato’s conception of conversion and its role in the attainment of knowledge embodies his own important development of the idea of katharsis”. CUSHMAN, 2007, pg. 161; 148; JAEGER, 2003, pg, 887. 414 Rep., 516c4-d7.

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oposição com aqueles que ainda residem nas trevas; já não anseia pelas mesmas coisas e nem vê o mundo do mesmo jeito. Se acaso volta para caverna, leva muito tempo para habituar seus olhos novamente à escuridão, e acaba agindo de maneira estranha e disparatada, o que não raro desperta o riso e a suspeita dos cavernícolas. Tendo alterado seu olhar com a sua peregrinação, ele é agora alguém absurdo e fora de lugar (aÃt opoj). Os cavernícolas nutrem tamanho medo e ódio por ele que, se tentasse soltá-los, não hesitariam em querer a sua morte415. Eles podem rir da absurdidade do filósofo que “estragou” sua visão e agora, admirando-se com tudo, faz papel de ridículo, como de fato aconteceu com as Nuvens de Aristófanes; ou podem simplesmente temê-lo e preferir que morra e os deixe em paz, como sucedeu a Sócrates de modo exemplar. Alegoricamente, esses fatos se referem ao que acontece com quem se afasta da sensibilidade para o espaço noético, ou seja, dizem respeito à diferença do filósofo em relação aos homens comuns que estão enclausurados na perpétua sucessão dos eventos empíricos.

Sócrates: Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior (t h\n d e\ a Ãnw a ) na /ba s in) e à visão do que lá se encontra (ka iì q e/a n t w ½ n a à nw), se a tomares como a ascensão da alma (t h=j y u xh= j a à no d o n) ao mundo inteligível (t o \n no h t o \n t o /p o n), não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo eu entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem (t o u= a ) g a qo u= i¹d e/a); e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa (a i¹t i¿a) de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para ser sensato na vida particular e pública416.

415 Rep., 516e8-517a6. 416 Rep., 517a8-c5.

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O próprio Platão interpreta seu mito como uma metáfora para traduzir a ascensão que o filósofo realiza até o lugar em que contempla as ideias, ascensão essa que se inicia com a admiração e que, em seu final, ainda a mantém sob forma de pasmo e reverência. Ele nos autoriza a compreender toda a fábula como um relato dos percalços intelectuais por que passa quem se dedica à filosofia, e é curioso pensar que não tenha ligado de modo claro essa descrição ao maravilhamento, deixando tal vínculo oculto e, em certo sentido, impensado. Mesmo Heidegger, que se propôs justamente a pensar o impensado e o não-dito de Platão, também passou por alto esse importante liame. Ele não se apercebeu de que a passagem entre os diferentes degraus de desvelamento (Stufen der Unverborgenheit) do Ser, conforme sua interpretação, é permeada por sucessivas experiências de admiração; tampouco notou que a reviravolta presente no início e ao longo da subida reproduz teatralmente o maravilhamento. Não obstante haver contribuído com vários pensamentos interessantes e notado outros pontos de grande relevância, descurou daquilo que poderia estabelecer um dos vínculos mais sólidos entre o livro VII da República e o Teeteto417. O seu procedimento é o mesmo dos variados intérpretes que não atinam como esses temas se relacionam de maneira fundamental e dizem respeito a uma mesma questão: o princípio psíquico da filosofia. No máximo, costuma-se enfatizar a ligação da alegoria com a atividade teórica e, por consequência, com certas comitivas religiosas existentes entre os Gregos. De fato, é muito provável que para compor tal metáfora Platão tenha usado como modelo as delegações religiosas de seu tempo, as theoríai, lançando mão mais uma vez de sua estratégia de ressacralização. Essas delegações públicas tinham a tarefa de viajar até outra pólis a fim de presenciar as festas religiosas de determinada divindade políade, um ritual que servia para estreitar as ligações entre os

417 Heidegger chega à correta conclusão de que a alegoria se refere à liberação da essência do homem e sua relação com a verdade. Todavia, não se dá conta de que a passividade inicial e reincidente dessa liberação esteja fundada na experiência de maravilhamento, a qual, por afastar e tornar tais coisas estranhas, faz com que o cavernícola as veja sob perspectiva mais elevada, como se fora pela primeira vez. A filosofia é condição para que o homem se mova para sua essência e para a clareira do desvelado; e a admiração é condição para que haja filosofia. Logo, o vínculo entre a alegoria da caverna e o Teeteto está não apenas na transformação da pergunta pela verdade (desvelado) em pergunta pelo falso (velado), mas principalmente no fato de que a relação do homem com a verdade depende de uma transformação psíquica que, em gerando a filosofia, direciona nossa alma para o verdadeiro. Ambas as obras nos ensinam não haver filosofia sem o processo heteronoético do maravilhamento. HEIDEGGER, 2002, pg. 92; Idem, 1978.

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habitantes de ambas as cidades. Realizavam a romaria necessária, prestavam seu culto, viam o espetáculo e depois retornavam para narrar sua experiência aos seus concidadãos. Os momentos dessa peregrinação real e histórica praticamente coincidem com aqueles por que passa o filósofo que ascende à esfera noética, sendo dotados do mesmo sentido religioso e apresentando efeitos parecidos418. Eles se diferenciam, obviamente, por se referirem a uma viagem concreta, ao passo que a alegoria da caverna descreve o que acontece na alma de alguém. O lugar a que o filósofo se translada não deve ser entendido literalmente em sentido topográfico, como já alertamos no terceiro capítulo; ele significa tão-somente a descoberta do espaço noético através da racionalidade, espaço esse onde “residem” as entidades eternas e universais de que trata a filosofia.

No prosseguimento do texto, Platão utiliza a alegoria em sentido inverso, pensando não no cavernícola que sai da caverna para a luz, mas no filósofo que retorna às trevas. Ele ressalta que aqueles que ascenderam à região luminosa já não haverão de querer tratar dos assuntos demasiado humanos da caverna, mas esforçar-se-ão (e )pe i¿gont ai) para permanecer nas alturas onde possuem maior liberdade. No caso de retornarem e de serem obrigados a contender sobre a justiça ou sobre outros valores, seja em tribunais ou alhures, farão gestos disparatados e risíveis, pois seus olhos já não estão amoldados às trevas que reinam na região humana. O mesmo estranhamento que o cavernícola sente, quando percorre o caminho íngreme até o exterior da caverna, acomete o filósofo que deixa as realidades divinas com que está habituado e retorna para a escuridão onde imperam apenas sombras e fantasmas. A sua alma apresenta a mesma falta de hábito (a)h qe i¿a) que se apodera de quem é libertado por Sócrates, e da mesma maneira acaba ficando cega e sofrendo terríveis vertigens (e )sko/t w t ai). A diferença é que padece tais efeitos não porque, estando acostumada às trevas, foi agora bruscamente levada à luz, mas porque vivia em uma região de intensa luminosidade (u(po\ lamprote /rou marmaru gh=j) e agora, de súbito, viu-se ofuscada419.

Em termos exegéticos, isso explica por que o filósofo já não consegue se mover na realidade com a mesma ingenuidade e certeza das

418 Essa é a interpretação de Nightingale. NIGHTINGALE, 2009, pg. 73. Conforme Morgan, pode-se também interpretar o mito como uma descrição dos estágios que compunham os Mistérios de Elêusis, já que a veia religiosa é bem acentuada. MORGAN, 1992, pg. 239. 419 Rep., 517c7- 518b4.

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pessoas comuns. São-lhe problemáticas todas as coisas que os outros fazem com a segurança do hábito; ele cai em aporia e se admira com os fatos e as coisas mais corriqueiros; acaba se afundando no poço porque só olha para cima. De fato, o filósofo observa as coisas do mundo sob a elevada perspectiva dos deuses, levando em conta seu aspecto universal e inteligível, e tem dificuldade para vê-las apenas sob a perspectiva de sua singularidade empírica. Isso faz com que alargue a estreita esfera do cotidiano e a encare como fonte de questões filosóficas, vivendo nela de maneira temática e teórica, sem desfrutar da mesma plácida absorção aos entes intramundanos que caracteriza o senso comum. Ele sente vertigens se é obrigado a restringir seu pensamento ao plano das sensações, tal como acontece com Teeteto e com todos aqueles que, admirando-se e filosofando, descobrem a suprassensibilidade. Quando tem de discutir aquilo que os habitantes da caverna julgam ser a realidade – em um tribunal, por exemplo – não consegue esconder sua absurdidade e acatar as regras e procedimentos correntes, sendo que acaba desestruturando a normalidade do cotidiano e causando admiração e desconcerto nas pessoas, como aconteceu no julgamento de Sócrates. De maneira inevitável, o filósofo que sai da caverna perde o senso de familiaridade com as coisas terrenas, ainda que encontre abrigo em outra esfera da existência. Esses fatos, assim o cremos, não se restringem simplesmente ao caso de Platão, mas são válidos ainda hoje. Quem quer que já filosofou alguma vez, pondo-se em jogo sem temer as consequências, sabe como essa experiência nos afasta veementemente da visão comum, assim como sabe o quanto é difícil conduzir as pessoas sem instrução filosófica até o entendimento de algum problema de profundo interesse e relevância. Entre a filosofia e o senso comum há sempre um abismo de variadas dimensões, abismo cuja travessia é o segredo de todo o método pedagógico que se preze.

Para Platão, essa travessia se efetua através da reorientação ontológica da alma do educando. Como já enfatizamos, ele não crê que o conhecimento possa ser transmitido sem mais nem menos de mestre para discípulo, o que seria como introduzir a vista em olhos cegos420; e nunca aceitaria a ideia estapafúrdia, tão comum em nossa época, de que algum objeto eletrônico mais sofisticado, por exemplo, poderia melhorar o aprendizado dos alunos. A verdadeira educação consiste para ele em

420 Rep., 518b8-c2. “Tornar-se filósofo significa experimentar uma “transformação da alma” (y uxh=j periag wg h\, República, 521c6; cf. 518d4) que modifica a vida toda. O que constitui o filósofo é uma atitude totalmente diferente diante da realidade – somente ele é capaz de conhecer as Ideias”. SLEZÁK, 2005, pg. 83.

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fazer com que o entendimento e toda a alma do discípulo sejam direcionados para a visão do Ser. Não há como ensinar alguma coisa para aqueles que ainda permanecem acorrentados no âmago da caverna; isso pressuporia que eles poderiam ver alguns objetos fora de seu antro sem realizar a escarpada ascensão que é condição imprescindível para tanto. Eles só podem aprender alguma coisa efetivamente se toda a sua alma, desagrilhoando-se da ignorância que a mantinha presa, enceta a caminhada em direção ao Sol e se modifica por completo, convertendo-se ao paradigma objetivo das ideias eternas421. A educação real, em resumo, só existe com a revolução psíquica dramatizada pela saída da caverna.

Sócrates: A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de um órgão pelo qual aprende; como um olho que não fosse possível voltar das trevas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado, juntamente com a alma toda, das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais brilhante do Ser. A isso chamamos o bem. Ou não? Gláucon: Chamamos. Sócrates: A educação seria, por conseguinte, a arte dessa revolução (p eria g w g h=j), a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de o fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso422.

Essa revolução, consoante a nossa tese, se inicia com o maravilhamento e reaparece toda a vez que o filósofo cai em aporia e se

421 “Para Sócrates, a conversão da alma é a conversão ao eîdos, à definição universalmente válida. A introspecção que procura a consistência interna é, assim, também uma tentativa de unificação da alma”. SCOLNICOV, 2006, pg. 28. 422 Rep., 518c4-d. Substituímos a palavra “desejo”, que tinha sido a opção da tradutora, pela palavra “revolução”, que expressa melhor o que Platão quer dizer. “Viravolta”, “reorientação” ou “reviravolta” também são possibilidades aceitáveis. Segundo Jaeger, com essa ideia sobre a educação, Platão se torna o autor do conceito cristão de conversão, já que o deslocamento da palavra para a experiência da fé se processou com base no platonismo dos antigos cristãos. JAEGER, 2003, pg. 889, n. 77. As palavras relativas à conversão, pois, aparecem cerca de quarenta e sete vezes ao longo do livro VII da República. CUSHMAN, 2007, pg. 147.

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admira com algo que ainda não havia pensado. O mito da caverna apenas expressa sensu allegorico aquilo que o filósofo vivencia quando começa a filosofar seja sobre o que for; o seu maravilhamento é reincidente e tem por efeito não apenas torná-lo consciente de sua ignorância, mas também desvelar-lhe realidade mais original que, como a visão das ideias, lhe inspira certo temor religioso e o modifica desde o âmago. Tendo isso por base, podemos agora resumir nossas conclusões em um conceito que expressa os matizes e as ondulações presentes no fenômeno da admiração.

No terceiro capítulo, quando tratamos do caso de Alcibíades, vimos que na análise platônica da ignorância havia dois momentos principais. Em primeiro lugar, o ignorante vivia em uma unidade de fala (émologe²n) e de consciência (émone²n) consigo mesmo, justamente porque desconhecia seu estado; aparentava-se assim àquelas pessoas que realmente sabem alguma coisa, como os deuses ou os especialistas, pois desfrutava de uma segurança e tranquilidade advindas do consenso ou unanimidade (uma só alma) que reinava em seu íntimo. Ele não tinha razões para se preocupar em aprender aqueles conhecimentos que já supunha possuir; habitava a cavidade da insciência e desde criança estava habituado com aquela realidade que, para ele, era tudo quanto existia. Supondo estar em posse da sabedoria, não chegava a desejá-la, sendo alheio a qualquer atividade filosófica. Em segundo lugar, quando sua ignorância era revelada através do método socrático, a sua alma começava a vaguear atabalhoadamente (plana=sqai), os seus supostos conhecimentos como que adquiriam vida e ele perdia a segurança que há pouco usufruía. Dissemos que isso acontecia em virtude da substituição da experiência (pa/qoj) da ignorância pela experiência da ação socrática e, em alguns casos, pela experiência de maravilhamento. Essa substituição alargava a perspectiva intelectual do ex-ignorante até o nível contemplativo dos deuses (qewr°a) e o alçava para uma região ontológica distinta, mais próxima da suprassensibilidade, fatos esses que eram acompanhados pela sensação de aporia, de passividade, de perda de familiaridade e até de temor e reverência. A pessoa não sabia direito como agir em um ambiente que nunca havia visitado. A intervenção de Sócrates era necessária para que tudo isso acontecesse, a despeito de haver certos objetos e ciências, como veremos, que também podem causar o maravilhamento.

Ora, na alegoria da caverna, esses eventos são novamente expostos sob diferentes cores. Esta fábula garante que o filósofo, por ter se educado e dirigido sua alma para aquilo que sempre existe, reside em

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diferente esfera do ser, onde predomina a experiência original de maravilhamento e tudo lhe parece digno de reflexão filosófica. Tal esfera está fora da caverna e próxima do Sol, sendo larga bastante para roçar as fímbrias do divino. Somente nela é que se pode fazer a experiência legítima do conhecimento. O habitante da caverna, por seu turno, encontra-se embalado por outra experiência, aquela em que julga saber aquilo que, em verdade, ignora; sua visão se restringe ao Allzumenschliches e ele nunca chega a tocar no primordial, pois vive preso na escuridão da ignorância. O contato entre essas duas experiências, através do convívio dialogado ou da percepção da singularidade do filósofo, faz com que o interlocutor do filósofo sofra alargamento de sua visão intelectual, passando a perceber como problemáticas e duvidosas, admiráveis e inusitadas todas as coisas que anteriormente julgava banais. Uma porção de luz é trazida até ele, e a concordância ou o consenso que possuía consigo mesmo, e que manifestava diante desse problema específico, desfaz-se por conta da apresentação de outra realidade, até então desconhecida e insuspeita. Ele experimenta assim o deslumbramento (marmarugÐ) que está fortemente associado à admiração, como o testemunha, aliás, a sinonímia dessas palavras em português423. Por conseguinte, se chamarmos de o(mo/noia o seu estado pacífico e não admirado, conforme Platão sugere, designando com isso a unanimidade ou unidade psíquica em que ele vivia no ventre da caverna, podemos forjar um neologismo e dizer que agora se deu uma heterónoia, isto é, ocorreu o aparecimento de algo estranho que desfigurou seu horizonte intelectual. Ao conversar com Sócrates, a circunscrição harmoniosa em que o cavernícola se abrigava foi rompida e ele já não pode pensar da mesma forma que antes. Não apenas seus conceitos mudaram, como também ele se tornou atento para uma realidade mais próxima do divino, que se opõe ao que estava acostumado desde a infância. A reviravolta anímica que padece tem por signo o maravilhamento que rompe a unidade de fala e de consciência vigente na experiência de ignorância. O princípio psíquico da filosofia, portanto, é um processo heteronoético.

423 Schul entende o deslumbramento (éblouissement) em sentido puramento físico, citando a passagem do Fédon em que se fala do risco de estragar os olhos com observar diretamente o sol e os eclipses e, mais adiante, comparando-o com o que sentem os heróis mitológicos que retornam do Hades para a luz do dia. SCHUL, 1968, pg., 50-1. No máximo, dado o contexto da passagem do Fédon, pode-se dizer que ele relaciona tal estado à busca socrática de definições, mas nem de longe ele nota o liame com a admiração.

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Usamos o termo heterónoia porque ele tem a virtude de nunca ter sido empregado para outros fins, sendo assim isento de matizes conceituais alheios ao presente caso. Há que criar conceitos quando se faz necessário capturar o que ainda não foi dito. Ele conserva em si, ademais, nítida oposição à analise platônica da ignorância, explicando perfeitamente a passagem que ocorre a quem abandona a classe dos ignorantes e, aproximando-se do divino, transfere-se para a classe dos que desejam o saber de que estão privados. Na ideia de unidade ou unanimidade psíquica, pois, está enfeixada a situação comum em que tal pessoa vivia desde a infância. Com a menção do “outro” (eÀt ero n), designamos não apenas a ruptura com essa natürliche Einstellung que prevalecera até o momento, mas também a proximidade de uma região ontológica distinta e até então desconhecida. O outro alude igualmente ao caráter numinoso da experiência, que transporta a pessoa para um “mundo” diferente; e esclarece a sensação de perda de familiaridade com as coisas habituais, o sentimento de enfeitiçamento e de passividade. Os epifenômenos do maravilhamento que estamos deslindado até agora, em suma, podem ser facilmente compreendidos com o uso desse conceito. 5.3. As sensações contraditórias e a matemática

Embora seja necessária a intervenção do filósofo para que esse

processo heteronoético ocorra, como sublinhamos especialmente no capítulo anterior, também as próprias coisas podem despertar nossa reflexão e nos alertar para a realidade usualmente descoberta pela filosofia. O filósofo desagrilhoa-nos da ignorância e atiça nossa inteligência através de seus discursos e da absurdidade de seu comportamento, ambos os quais contrastam vividamente com o que é tido por normal no interior da caverna; mas também algumas sensações o fazem, mormente aquelas que parecem manifestar conceitos contrários. Isso aparece no decorrer do livro VII da República – quando, depois de seu famoso mito, Platão começa a tratar do currículo dos futuros filósofos-guardiães – e é conveniente que o analisemos agora.

Aliás, vale dizer que o estudo das ciências que compõe o currículo dos filósofos é a maneira racional de elevar alma à contemplação das essências e da verdade, possibilitada através da saída da caverna. A educação preconizada na República visa deliberadamente produzir, com o preparo e o vagar de anos, a conversão da alma às

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ideias; por longo processo gradativo de ensino, o futuro amante da sabedoria vai a pouco e pouco deixando as trevas da ignorância e ingressando na luz do Sol. Cada uma das matérias que estuda contribui para isso, motivo por que todas apresentam inegável cariz ascético. Ao contrário, a ação patética de Sócrates sobre seus ouvintes, tal como o uso de certas emoções ascensionais (amor, admiração), é a maneira irracional ou forçada de obter os mesmos fins. Essa ação é mais frequente e mais real do que a educação da República, que existe apenas no plano ideal. De fato, se as pessoas não podem passar pelo esmerado currículo vigente na cidade, tendo suas almas convertidas através de uma metódica, longa e paulatina educação, resta-lhes sofrer espécie de choque, de entorpecimento ou de conversão extática que lhes revele a necessidade de mudarem de vida.

No contexto do diálogo, destarte, Platão havia mostrado que os filósofos, apesar de desejarem permanecer o mais possível na região pura, serão obrigados a descer até a caverna e ajudar as pessoas que lá habitam por meio do governo da cidade. Eles têm o dever ético, depois da educação que receberam, de zelar pelo bem dos demais cidadãos, e cabe-lhes exercer o poder político justamente porque não o desejam424. Como dito, o filósofo atinge essa posição por se entregar a determinado tipo de educação que o afasta da ignorância. Não é uma educação realizada ao acaso, como um jogo de dados, mas sim “o voltar da alma (yu xh =j pe riagw gh\) de um dia que é como as trevas para o verdadeiro dia, ou seja, a sua elevação até a verdadeira realidade (t ou= oÃnt oj ouÅsan e)pa/nodon)”, que nada mais é do que a verdadeira filosofia (f ilosof i¿an a)lh qh =)425. Assim, é necessário encontrar as ciências que podem dar conta da tarefa de levar a alma do mutável para o essencial. Além da música e da ginástica, que já eram partes da educação ideal, Platão recorre à matemática, tão comum e universal a ponto de fazer parte de todas as outras ciências. Ela possui o condão de acordar nossa inteligência e predispô-la ao escrutínio, tal como fazem algumas sensações426. De fato, algumas sensações são suficientemente avaliadas pelos sentidos, de modo que não convidam o espírito à reflexão; ao passo que outras, por possuírem em si qualidades contraditórias, fazem que tenhamos de lançar mão do raciocínio (parakalou=nt a). Elas caracterizam os objetos que conduzem

424 Rep., 521b1-5. 425 Rep., 521c5-8. 426 Rep., 523a1-3.

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simultaneamente a impressões contrárias. Quando observamos as características visuais dos dedos, por exemplo, conseguimos distinguir uns dos outros através da visão, e não precisamos recorrer ao raciocínio. Quando se trata da dureza e da moleza, ao contrário, o sentido encarregado de discerni-las avisa à alma que o dedo é a um só tempo mole e duro, e nessas ocasiões é forçoso que a alma caia em aporia (a)pore iÍn) e seja compelida a se perguntar sobre a essência da leveza e da dureza, do peso e da rigidez, porque recebe dados absurdos (aÃt opoi) que carecem de exame427. A mesma coisa ocorre com aqueles objetos que parecem simultaneamente grandes e pequenos: para compreendê-los, a alma necessita de se indagar pela primeira vez (prw ½t on) o que seja a grandeza e a pequenez428. É uma aporia desse gênero, pois, que impressionou Teeteto e o levou a se admirar. Entre todos esses objetos dotados de tal virtude, sobressaem-se de maneira particular a unidade e os números. A unidade não é cabalmente explicada pela visão, que sempre nos doa um objeto ao mesmo tempo uno e múltiplo; no plano das sensações, ela deixa nossa alma em aporia (a)pore iÍn), obrigando-a em seguida a prosseguir em sua busca (zhte iÍn) e a pôr em movimento (kinou=sa) o entendimento puro (t h\n eÃnnoian) a fim de sanar seu estado de perplexidade. Logo, tanto a unidade quanto os números incitam o espírito a voltar-se para contemplação do Ser e a perguntar-se pela essência das coisas, razão pela qual a matemática deve constar no currículo dos filósofos429. O mesmo efeito que Sócrates causou no escravo de Mênon, lançando-o em aporia e levando-o a continuar sua busca, é provocado pela essência matemática dos objetos. As próprias coisas podem suscitar nossa admiração e nos levar à filosofia. A matemática, de resto, tem ainda outras qualidades: também consegue elevar o filósofo para o alto e fazê-lo discorrer sobre os números em si, sem que se socorra de quaisquer sensações. É nesse sentido que, pedagogicamente, ela é um intermediário entre a esfera do sensível e do inteligível, porque faz com que a pessoa que a estuda comece a se desprender da sensibilidade para notar a existência de seres de outra natureza, ou seja, ela começa a deixar a caverna e realizar a anábase em direção do Sol, o qual será atingido posteriormente com o auxílio da dialética.

427 Rep., 524a6-b2. 428 Rep., 524c10-11. 429 Rep., 524d9-525a2.

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As matemáticas constituem para Platão um trabalho espiritual pelo qual nos exercitamos para a ascensão que conduz do sensível ao noético430.

Essas reflexões recebem confirmação se a biografia de Sócrates, pelo menos como apresentada por Platão, é levada a sério. Com efeito, se a admiração que suscita o princípio da filosofia só pudesse ser causada com a intervenção de outrem, ou se, em outras palavras, todas as pessoas só pudessem deixar a caverna se fossem libertadas por alguém, então teríamos de supor que Sócrates recebeu ajuda de Arquelau, seu suposto mestre, ou de outra pessoa, pois do contrário não poderia ter filosofado motu proprio. Mas não é isso o que Platão relata. Embora na maioria dos casos haja a figura do filósofo que auxilia alguém a sair da caverna, o Sócrates platônico é descrito como alguém que se libertou dos grilhões da ignorância com a ajuda das próprias coisas, as quais despertaram seu entendimento através da admiração e, levando-o para além da sensibilidade, fizeram-no filosofar.

No Fédon, onde rememora sua relação com a pesquisa da natureza (pe riì f u/se wj ist ori¿a), ele afirma que foi através das perplexidades que experimentava que resolveu abandonar esse estudo e mudar seu método para a análise dos conceitos, empreendendo a segunda navegação que inaugurou o uso de definições na filosofia. No começo, sentiu-se entusiasmado com a possibilidade de conhecer as causas de tudo quanto existe, e entregou-se de corpo e alma ao exame de questões naturalistas sobre a origem dos seres vivos, sobre os astros, sobre a constituição dos corpos etc. Não tardou a descobrir, porém, que era de uma inaptidão notável para tais elucubrações. Tudo aquilo que ele sabia com certeza tornou-se obscuro e incerto em razão de seus novos estudos, e ele perdeu a segurança habitual que desfrutava outrora. É de se supor que tenha experimentado nesse momento algo parecido com as pessoas que abandonam a caverna e perdem com isso a hospitalidade do lar em que viveram desde a infância431. Sobretudo, deixavam-no perplexo as questões relativas à unidade e à matemática em geral, como ainda o deixam na ocasião do relato.

Sócrates: Por Zeus, atualmente estou muito longe de saber a causa de qualquer dessas coisas! Não sei resolver nem sequer se quando se adiciona

430 DUHOT, 2004, pg. 138. 431 Féd., 96a6-d6.

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uma unidade a outra, a unidade à qual foi acrescentada a primeira torna-se duas, ou se é a acrescentada e a outra que assim se tornam duas pelo ato de adição. Fico admirado (qa u ma /z w)! Quando as duas unidades estavam separadas uma da outra, cada uma era uma, e não havia dois; logo, porém, que se aproximaram uma da outra, esse encontro tornou-se a causa da formação de dois. Também não entendo por que motivo, quando alguém divide uma unidade, esse ato de divisão faz com que esta coisa que era uma se transforme pela separação em duas! Essa coisa que produz duas unidades é contrária à outra: antes, acrescentou-se uma coisa a outra – agora, afasta-se e separa-se uma da outra. Nem sequer sei por que um é um!432

Sócrates ainda narra como se decepcionou com a leitura de Anaxágoras e como chegou à conclusão de que, para não piorar sua cegueira, devia se escapar para o âmbito dos conceitos e aí investigar a verdade dos seres433. Foi isso que curou sua ânsia naturalista e lhe abriu as portas da filosofia. Apesar da importância de toda a sua rememoração, o que nos interessa é sublinhar que Platão descreve a ação salvífica da matemática, capaz de despertar o espírito de seu sono dogmático, como um capítulo da conversão de Sócrates à filosofia. Em seu caso, foram as coisas mesmas que lhe causaram admiração e o levaram, depois de alguma errância, à vida filosófica. Sem ter a ajuda de alguém de fora da caverna, Sócrates se lançou solitariamente à investigação dos entes e nessa epopeia, principalmente quando pensava sobre a unidade e sobre a matemática em geral, acabou se admirando e abandonando a esfera da sensibilidade para se alçar à região do puro entendimento. Ele se colocava as mesmas questões sobre a grandeza e a pequenez que deixaram admirado o jovem Teeteto434, e foi por se sentir insatisfeito com o que obtinha apenas dos sentidos que aportou no inteligível. Tanto quanto os discursos e a personalidade do filósofo, portanto, a matemática e alguns objetos podem provocar a admiração e avivar com isso nossa inteligência, fazendo com que principiemos a filosofar.

432 Féd., 96e6-97b4. 433 Féd., 99e4-6. 434 Féd., 96d8-e4.

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Essa discussão da matemática, que leva em conta o conflito de sensações e o despertar da consciência, já nos recorda por si o diálogo Teeteto. Mais do que isso, porém, a alegoria da caverna associa-se claramente à digressão sobre o filósofo contida em tal obra, como veremos em breve.

5.4. O Teeteto e a digressão sobre o sofista

No primeiro capítulo, tratamos de modo mais pormenorizado o diálogo Teeteto e a sentença sobre a admiração, defendendo que ele constituía substancialmente uma obra acerca da essência da filosofia que, a fim de se desenvolver, apoiava-se na importante problemática em torno do conhecimento. Não analisamos assim seus possíveis pontos doutrinais, como se faz de maneira obsedante em toda a exegese, mas enfatizamos os seus aspectos protrépticos e dramáticos, mostrando como ela podia ser mais bem interpretada se a pergunta pela essência da filosofia fosse vista como sua raiz pivotante, a partir da qual nasciam as demais radículas. Tal raiz estruturava a obra em um todo harmônico, dando sentido para partes que geralmente são tidas por irrelevantes, como o primeiro prólogo, a sentença sobre a admiração e até mesmo a digressão sobre o filósofo ou o seu final inconclusivo. O primeiro prólogo gerou tanta perplexidade nos intérpretes, por exemplo, que até se alinhavaram razões filológicas para descartar os quebra-cabeças que punha, ou então razões pessoais por parte de Platão, como um possível elogio póstumo a Teeteto. No entanto, ele é perfeitamente claro se encarado do ponto de vista protréptico, pois se presta para confirmar a iniciação do jovem Teeteto à filosofia, como vimos anteriormente com maior vagar. Discutimos também a longa passagem sobre a maiêutica e as partes componentes da sentença sobre a origem da filosofia. Agora, no interior desse contexto protréptico, e tendo em mente o que acabamos de dizer sobre a alegoria da caverna, retomaremos o diálogo onde o deixamos e analisaremos o momento em que Sócrates fala em nome de Protágoras, para depois contrapor essa cena com a digressão sobre o filósofo.

O diálogo Teeteto tem por escopo – já o salientamos – apresentar a filosofia ao personagem homônimo e provocar em sua alma transformação tal que o liberte da caverna onde atualmente se encontra. Apesar de estudar matemática, Teeteto mal suspeita da existência de seres diferentes dos sensíveis e, quando é solicitado a dizer o que pensa

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ser o conhecimento, acredita mesmo que ele se resuma às sensações. Ele é um típico Grego de sentidos vigorosíssimos que, desconhecendo a revolução teórica levada a termo por Platão, encontra-se mergulhado na exuberância empírica do interior da caverna. Sócrates esforça-se para analisar a natureza do menino e ajudá-lo a realizar a anábase que o deixará mais perto da luminosa região divina. Logo percebe que, ao contrário do que costuma ocorrer em sua faina pedagógica, encontra-se diante de alguém com facilidade de aprender, dotado de boa memória e de índole dócil, atributos esses que fazem de Teeteto o discípulo ideal a ser iniciado na vida filosófica. Esse fato põe o diálogo em estreita relação com o livro VI da República, onde a natureza do filósofo é perquirida e as mesmas características acima citadas são-lhe atribuídas. A sua intenção, assim, é descrever parte dessa iniciação perfeita cujo sucesso é confirmado sorrateiramente pelo primeiro prólogo. A passagem sobre a admiração, nesse contexto, é o primeiro momento em que o efebo sente a força que move a filosofia e, entregando-se passivamente às vertigens que o acometem, olha para as coisas com o esplendor da verdade e alarga sua capacidade intelectual até o plano teórico. Sócrates havia extraído conclusões interessantes da tese de que conhecimento ou saber é sensação, e foram elas que, entrando em conflito com o que Teeteto supunha saber ou já haver pensado, causaram o processo heteronoético que desestruturou a suave unidade psíquica em que ele viva antes de conversar com Sócrates, rompendo a sensação de familiaridade e segurança que possuía e o elevando para um nível não habitual de realidade. Neste instante, Teeteto foi solto das correntes que o prendiam e pôde virar sua cabeça para ver o caminho que o levará até a visão da verdadeira realidade. A admiração que experimenta é, destarte, sinal inconfundível de que a reviravolta de sua alma já começou.

Na sequência do diálogo, a discussão se mantém ainda no âmbito dessa primeira definição, comentando com minudências as teses de Heráclito e de Protágoras e auferindo as consequências teóricas apropriadas. Depois do momento em que Teeteto se admira, Sócrates promete que há de lhe revelar os segredos de homens engenhosíssimos e passa a expor a doutrina do movimento universal. Ele afirma haver duas espécies de movimento, o ativo e o passivo, de cuja união nascem todas as sensações possíveis; elabora longa reflexão para mostrar que não existem qualidades em si mesmas, tese sobre a qual já explanara, mas apenas qualidades relativas que resultam dos variáveis encontros desses dois tipos de movimento. Segundo tal doutrina, todas as coisas estariam

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em contínuo fluxo, ora agindo sobre as outras, ora recebendo alguma ação; e nada haveria em si e por si mesmo, devendo ser banidas expressões como “alguma coisa”, “isto” ou “ser”, porque na realidade há apenas o devir435. Para saber se o menino acompanha a exposição, Sócrates lhe pergunta o que acha de tais pensamentos. Teeteto não sabe ao certo o que pensar, porque desconfia que Sócrates, ao invés de apresentar aquilo em que acredita, apenas desfia os argumentos a fim de testar seu interlocutor. E, de fato, é isso mesmo o que Sócrates admite fazer: sem se preocupar em demasia com o conteúdo do que explica, já que se declara estéril em tais assuntos, ele quer ajudar Teeteto no trabalho de parto. Os argumentos que discute são apenas encantamentos que têm em vista esse propósito:

Sócrates: Já te esqueceste, amigo, que eu não só não conheço nada disso como não presumo conhecer? Nesses assuntos sou estéril a conta inteira. O que faço é ajudar-te no trabalho de parto; daí, recorrer a encantamentos (e)p # /d w) e oferecer a teu paladar as opiniões dos sábios, até que, com o meu auxílio, venha à luz a tua própria opinião. Uma vez isso conseguido, decidirei se se trata de um ovo sem gema ou de algum produto legítimo. Anima-te (qa rrw ½ n), pois; não desistas e declara com independência e decisão o que pensas a respeito do que te perguntei436.

O próprio Sócrates reconhece, assim, que a discussão por si mesma não é o que mais lhe interessa, senão os efeitos que ela pode gerar na alma de Teeteto. A despeito de sua óbvia relevância, os assuntos ventilados são úteis e bem-vindos apenas à medida que concorrem para provocar a admiração e a consequente reorientação ontológica na alma do menino. Com isso em mente, Sócrates faz com que Teeteto creia completamente em cada doutrina que traz à tona, justamente para que seja mais vigoroso o efeito purgativo que surge com a mudança de opinião. Depois de levar Teeteto a endossar a tese do completo devir e a tese protagórica de que conhecimento é sensação, nos termos em que foram apresentadas, ele aventa algumas objeções clássicas ao simples empirismo437. Em primeiro lugar, lembra da

435 Teet., 156a1-157c3. 436 Teet., 157c7-d5. 437 Teet., 157d9-11.

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existência de sonhos, de doenças, da loucura e das alterações da vista em geral, estados patológicos esses que, iludindo nossos sentidos, contribuem para descartar a ideia de que nossas sensações são sempre verdadeiras. Ademais, recorre a um conhecido argumento que perpassará toda a história vindoura do ceticismo, qual seja, que é muito difícil, se não impossível, separar criteriosamente o sono da vigília, havendo muitas ocasiões em que tomamos por reais os acontecimentos que vivenciamos dormindo438. Dado que Teeteto não saiba o que responder a isso, muito provavelmente porque jamais notara tais problemas, o próprio Sócrates refuta com facilidade as objeções. A sua resposta não possui nada de complicado e consiste em retomar a ideia de que a verdade das sensações é relativa a quem as recebe, mudando conforme se alteram os estados de tal pessoa, mas nem por isso deixando de ser menos veraz. Assim, embora o gosto do vinho seja amargo para quem está doente e doce para quem está em perfeita saúde, a veracidade de cada uma dessas sensações não é menor em nenhum dos casos. Em ambas as oportunidades a sensação de quem degusta a bebida é verdadeira, já que cada pessoa, sã ou doente, é o único juiz em condições de dizer o que existe ou não para si, de acordo com a correta interpretação do dito de Protágoras439. Neste ponto, então, Sócrates declara que o rebento de Teeteto finalmente nasceu, depois do longo e penoso trabalho de parto. Agora convém que se efetue o ritual de anfidromia, envolvendo-o em raciocínios e examinando-o para ver se não se trata de um ovo gorado. Sócrates pergunta se Teeteto seria capaz de ver seu filho sendo rejeitado por alguma hipótese, e Teodoro garante que seu discípulo, por ter boa índole, suportará o que for necessário440. A figura de Teodoro, aliás, começa a retornar ao diálogo nessa passagem. Sócrates enceta breve conversação com o velho matemático em que explica o que aprecia na doutrina de Protágoras, antigo amigo de Teodoro, antes que volte ao diálogo com Teeteto e busque refutar a tese do sofista. De maneira sub-reptícia e com leveza de ânimo, Sócrates critica o antropocentrismo da sentença do homo mensura, que dá primazia ao homem e não a qualquer outro animal capaz de sensação, como o cinocéfalo ou os girinos. Fala ainda que, se cada pessoa é juiz das próprias sensações, sendo verdadeiro apenas aquilo que lhe aparece, seja em que condições forem,

438 Teet., 157e-158e. Aristóteles alinhava argumentos parecidos para refutar os céticos e sofistas. ENGLER, 2010b. 439 Teet., 158e5-160e4. 440 Teet., 1605-161a6.

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então não haveria motivos para frequentar os cursos de Protágoras e pagar-lhe salários astronômicos, porquanto cada ser humano seria tão sábio quanto outro. Teodoro, conquanto se incomode com as críticas feitas a seu amigo, não está disposto a entrar na discussão com Sócrates e recomenda que este volte a palestrar com Teeteto. Teodoro quer apenas permanecer com espectador, sem tomar parte ativa na disputa441. Quando Sócrates se volta para Teeteto, assim, a primeira coisa que lhe pergunta é se porventura não se admira (aÅra ou) su\ qau ma/ze ij) de ter se tornado, de súbito, nada inferior a qualquer homem ou divindade em matéria de sabedoria, conforme há pouco ficou demonstrado. A resposta do menino representa a segunda vez em que se admira.

Teeteto: Por Zeus, de forma alguma! E sobre o que me perguntas, pois, sobremaneira me admiro (pa/nu qau ma/zw). Ao estudarmos há pouco a assertiva de que tudo o que aparece a cada um é tal como lhe aparece, eu achava a proposição muito bem formulada; porém agora essa impressão se transformou precisamente no seu contrário442.

Tendo sido persuadido de um ponto de vista, em um primeiro

instante, Teeteto se admira intensamente quando se vê obrigado a admitir o contrário e a mudar de opinião. É a modificação de sua perspectiva, e não a natureza das coisas, que agora engendra a admiração, apesar de ocorrerem efeitos similares em ambos os casos443. Na verdade, trata-se do jogo de luzes que já mencionamos e que Sócrates sói empregar em suas conversas. Como dissemos, ele primeiramente apresenta o objeto sobre determinada luz; revela apenas algumas de suas facetas e faz com que a pessoa se habitue ao que

441 Teet., 161a7- 162b7. 442 Teet., 162c7-162d2. Modificamos ligeiramente a tradução a fim de enfatizar o verbo “admirar-se”. 443 A mudança de opiniões também causa admiração, haja vista desconstrua o consenso psíquico que se possuía. Em várias ocasiões Sócrates se aproveita desse fato: gera um consenso para em seguida desestruturá-lo e, com isso, deixar seu interlocutor perplexo. No Fédon, Sócrates pergunta se Cebes e Símias acreditam na teoria da reminiscência. Depois de Cebes responder afirmativamente, Símias fala: “Eu também – ajuntou Símias – ficaria muito admirado (pa/nu aÄn qauma/z oimi) se viesse a mudar de opinião”. Féd., 92a4-5. Algo similar acontece na sequência do diálogo: Cebes ficou admirado (pa/nu e)qau/maz on) com a objeção que Símias fez a Sócrates, de cuja opinião ele estava convencido; e depois novamente se admirou quando Sócrates refutou tal objeção. Agora, assim, ele já não se admiraria (qauma/saimi) se a sua própria objeção sofresse (pa/qoi) o mesmo destino. Féd., 95a7-b4.

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enxerga, persuadindo-se de que conhece perfeitamente o que tem diante dos olhos. Essa situação como que cria unidade de fala e de consciência momentâneas, isto é, gera-se certo consenso na alma da pessoa com quem Sócrates conversa. Depois, trazendo à baila novos raciocínios e aumentando a luminosidade que aureola o objeto, Sócrates faz dele algo desconhecido e estranho para seu interlocutor, o qual sofre então o processo heteronoético pelo qual que se esboroa a pacata unidade psíquica em que vivia. Nesta situação específica, a pessoa pode então soltar-se dos grilhões e observar aquele objeto fora das sombras em que costumava vê-lo. Nem é preciso dizer que isso só acontece porque o próprio Sócrates – o platônico, sem dúvida – parece conhecer o objeto sob a verdadeira luz, presumivelmente porque o contemplou fora da caverna. Aqui é mais uma ocasião em que ele utiliza esse privilégio com o fito de desfraldar a admiração e a reviravolta ontológica de seu interlocutor.

Na continuação da conversa, Sócrates acirra suas críticas a Protágoras e obtém refutação passageira da tese de que conhecimento é sensação; depois, tendo decidido rever os argumentos, metamorfoseia-se no célebre sofista a fim de fazê-lo defender-se com maior dramaticidade e vigor. É aqui que aparece a digressão sobre o sofista. Embora fosse interessante escrutinar a parte das críticas de Sócrates, que por si só apontam para a existência de algo além das sensações, deixá-la-emos de lado para ver diretamente a fala de Protágoras, que possui maior interesse em termos de enredo444. O seu discurso é importante no mínino por dois motivos. Em primeiro lugar, em razão da metamorfose do filósofo em sofista, ele mostra como o esses dois seres pertencem a gêneros parecidos e escorregadios, os quais partilham de algumas características graças às quais são confundidos com frequência. Para quem vivia na esplêndida Grécia de outrora, de fato, não era nada fácil discriminá-los, e a cômica confusão que Aristófanes fez no palco pode ser vista como exemplo gritante da confusão maior que embaçava o julgamento das pessoas. Em segundo lugar, no que se refere à estrutura do diálogo, tal fala oferece caracterização do sofista que antecede

444 As críticas usam como exemplo a língua dos bárbaros, os caracteres escritos e a memória. Nos dois primeiros casos, as sensações não são bastantes para que se obtenha o conhecimento: o ouvido não é capaz de discernir o conteúdo de uma língua estrangeira, se não o auxilia o entendimento; tampouco pode o olho ler o que diz uma sentença escrita, se o seu dono não for alfabetizado e não dominar certos conhecimentos. A memória, por seu turno, mostra que podemos nos lembrar de algo que conhecemos sem utilizar as sensações. Se o conhecimento fosse sensação, assim, não poderíamos nos lembrar de algo se estivéssemos com as pálpebras cerradas. Teet., 163b-164e.

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imediatamente a digressão sobre o filósofo. Ele se presta assim para realçar em que se contrapõem essas duas figuras e, ademais, para desanuviar o horizonte mental de Teeteto, o qual, simbolizando a juventude ateniense, põe-se no meio do conflito entre esses dois caminhos pedagógicos. Teeteto não distingue muito bem esses personagens, dizíamos nós, e tanto o diálogo inteiro que agora mantém com Sócrates, quanto o diálogo de que participará na manha seguinte com o Estrangeiro de Eleia, dão azo para que passe a estremá-los com maior exação. Antes da digressão sobre o filósofo, portanto, feita pelo próprio filósofo por antonomásia, ele escuta a digressão sobre o sofista, elaborada por um “cão” que, momentaneamente, aumenta sua selvageria e desenvolve seus dotes lupinos a fim de uivar sobre sua ocupação. Em verdade, Sócrates decide prestar auxílio (b oh qe iÍn) ao mito de Protágoras, que tinha sido maltratado desde o início por ser órfão445. A veemência e a louvável sinceridade com que Sócrates encena seu papel, tomando os argumentos do sofista como se fossem seus e arrancando deles todo a sua seiva, indicam como se sentia seguro e ao do lado da verdade, sem temer que viesse a ser vencido. O discurso se desenvolve movido não pelo anseio de refutar uma pessoa, mas pela gana de encontrar a verdade.

Tendo Sócrates como porta-voz, assim, Protágoras reafirma sua tese de que cada indivíduo é a medida do que existe e do que não existe, diferindo dos outros em escala infinita, porque para eles também as coisas são e aparecem de forma particularizada. Cada ser humano é compreendido como espécie de ilha epistemológica, confinada a perceber apenas águas que lhe circundam as margens. Na vigência de tal relativismo extremo e, em certo sentido, solipsista, sábio é quem “pode mudar o aspecto das coisas, fazendo ser e parecer bom para esta ou

445 Teet., 164e2- 6. A ideia de ajudar o escrito aparece também no Fedro, ligando-se à Carta VII e inserindo-se na crítica geral que Platão faz da comunicação escrita. Em tal diálogo, o filósofo é definido tendo por critério a maneira como se relaciona com seus escritos: ele apenas comunica as coisas menos sérias via escrita, e conserva as mais importantes no nível da oralidade, utilizando-se delas para defender e socorrer o que escreveu. Platão lamenta que o escrito ande indiscriminadamente entre todos os homens e seja incapaz de responder a eventuais questões que lhe fazem. Ele seria útil, assim, apenas como expediente mnemônico capaz de avivar o conhecimento que já se adquiriu por outro meio. Fedr., 275d-276a; 278b7-d. Cf. REALE, 1994, pg. 12-17; SLEZÁK, 2005, pg. 82-85. Trabattoni apresenta interpretação diferente da passagem e critica a posição da escola de Milão (Reale) e de Tübingen (Slezák). TRABATTONI, 2003, pg. 137ss. Em que pesem essas divergências, o certo é que no contexto do Teeteto Platão dá um exemplo dos reveses a que se sujeita um discurso que não pode ser auxiliado nem guarnecido por seu autor.

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aquela pessoa o que era ou lhe parecia mal” 446. Como já dissemos, porquanto não haja diferença entre ser e aparecer, todas as sensações são igualmente verazes, esteja a pessoa sã ou doente. As ondas sensoriais que tangenciam uma ilha são tão verdadeiras quanto as que tangenciam as outras. No que toca ao Ser, cada homem se encontra em posição ontologicamente equidistante e recolhe aspectos particulares, mas indubitavelmente reais. Nem um deles é mais sábio ou mais ignorante do que outro; apenas acontece que possuem diferentes disposições. Protágoras julga, porém, que a disposição da pessoa sã é melhor e superior do que outra em tudo, sem justificar em que consiste tal superioridade. Parece que ele aceita com isso certa ordem natural, ainda que não comente nada a respeito. Em todo o caso, a diferença de conhecimento entre as pessoas já não depende da realidade em si, que é relativa, mas da capacidade argumentativa com a qual demonstram que uma sensação é melhor ou superior. É neste ponto que a ontologia, para usar da célebre formulação de Cassin, se converte em logologia447. Como que adotando a tese parmenídica segundo a qual só existe o ser, Protágoras acredita que não é possível formar opinião do que não existe, tampouco receber outras impressões que as do momento, as quais são sempre verdadeiras. Todos recebem sensações verdadeiras, mas alguns as recebem mais convenientes ou melhores. O sofista, assim, é aquele homem capaz de usar discursos que, funcionando como os fármacos medicinais, suscitam modificações na alma das pessoas e fazem com que adotem melhores disposições. Ele é mais sábio não porque ascendeu a diferentes níveis de realidade, como ocorre ao filósofo da alegoria da caverna, mas porque pode se valer das palavras para fazer com que uma opinião receba a pátina de melhor, de mais útil ou de mais conveniente. A sua função é agir sobre as pessoas e as cidades para modificar-lhes o julgamento e levá-las a uma condição melhor. Assim, ele precisa estar plenamente consciente das opiniões que são cultivadas no seio da cidade, bem como dos expedientes que poderiam vir a mudá-las. Embora possua a sua liberdade de profissional liberal, que pode vender seu produto para quem puder pagá-lo, precisa estar de corpo e alma entre os homens, conhecer suas ocupações, seus desejos e temores. Ele não possui nada de melhor ou mais divino do que eles, e a rigor nem os supera em sabedoria. A sua diferença reside no domínio da arte do

446 Teet., 166d5-8. “His phenomenalism really meant pan-subjectivism”. CUSHMAN, 2007, pg. 41. 447 CASSIN, 1990, pg, 10.

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discurso, pela qual não só convence seus discípulos de que é mais sábio, como também recebe pagamento.

Sócrates-Protágoras: O que afirmo é que estes últimos [agricultores] trocam nas plantas, quando estas adoecem, as sensações perniciosas por sensações sadias, que é justamente como procedem os oradores sábios e prudentes, fazendo parecer justas às cidades as coisas boas em substituição às más. De fato, tudo o que parece belo e justo para cada cidade, continua sendo para ela isso mesmo enquanto assim pensar: porém o sábio faz ser e parecer (eiåna i ka iì d o keiÍ n) benéfico o que até então lhes era pernicioso. Pela mesma razão, o sofista capaz de educar seus discípulos desse modo é sábio e merece ser muito bem pago por eles, depois de terminado o curso. Nesse sentido, apenas, é que uma pessoa será mais sábia do que outra, sem que ninguém possa formar opiniões falsas448.

Com esse discurso, Protágoras não só defende novamente sua

tese, mas também tenta modificar sub-repticiamente a disposição de Sócrates e dos demais ouvintes, os quais, de fato, passam mais uma vez a estudar o problema desde o início. É outra das oscilações argumentativas que são lançadas sobre os personagens. No começo de sua apologia, Protágoras criticara Sócrates por discutir com crianças, e a agora também o acusa de querer apenas vencer as discussões, tentando refutar seu interlocutor (a)gw nizo/me noj) sem se preocupar com a investigação comum e dialogada (diale go/me noj)449. Trata-se de uma passagem irônica, pois já vimos anteriormente que a distinção entre agonística e dialética é na realidade platônica. Protágoras até chega a mencionar a filosofia, dizendo que, se Sócrates cuidar apenas de mostrar os erros em que seus interlocutores incorrem, fará com que se desgostem consigo mesmos e, buscando uma modificação, se voltem para o amor à sabedoria. Porém, se apenas refutar por refutar, fará de

448 Teet., 167b7-d2. 449 Teet., 167d4-168b6. Tschemplik nota que este argumento ad hominem é contraditório: já que não há para Protágoras uma medida externa, a verdade, só resta mesmo refutar a medida de cada um, isto é, o nosso interlocutor em particular. Tschemplik não percebe a ironia de Platão nesse ponto. TSCHEMPLIK, 2005, pg. 88.

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seus ouvintes pessoas que odeiam a razão. Sendo assim, Protágoras pede que Sócrates analise de novo a sentença do homo mensura e a tese do movimento universal com uma disposição amigável, e não com o gênio azedo e birrento de há pouco.

Sócrates-Protágoras: Se me aceitares o conselho, não será com esse gênio azedo e birrento, como disse há pouco, mas com espírito amigável e compreensivo que analisarás nossa proposições, quando declaramos que tudo se move e que as coisas são como, de fato, aparecem a cada um, tanto para os indivíduo quanto para as cidades450.

Afora as teses ontológicas enunciadas, o que mais se sobressai

na profissão de fé de Protágoras é o retrato que pinta do sofista. De maneira rápida, porém contundente, ele mostra o profundo envolvimento que tal mestre da palavra mantém com a cidade e com as pessoas em particular, descrevendo via metáforas os efeitos de sua atuação. O sofista cuida das pessoas como o agricultor cultiva as plantinhas ou como o médico trata dos doentes. Tal e qual esses dois profissionais, ele sabe o que é melhor para seus “clientes” e emprega artifícios e demais conhecimentos técnicos a fim de levá-los a uma situação melhor através da transformação psíquica. O seu principal instrumento de trabalho é a habilidade retórica com que modifica o pensamento de quem paga por seus cursos. Para agir, assim, é obrigado a estar sempre presente entre humanos; precisa escandir seu tempo e sua atuação conforme exijam aqueles que lhe dão o sustento financeiro; não possui a liberdade de falar à vontade, mas deve usar suas palavras de maneira instrumental e medi-las para que causem o efeito desejado em determinada oportunidade, assim como o médico tem de usar o bisturi para cortar e o estetoscópio para auscultar o coração. O sofista não é plenamente livre para se entregar a reflexões e comportamentos que o tornem absurdo ou extemporâneo, nem pode declarar abertamente o que pensa sobre aqueles com quem conversa, pois que, se assim proceder, periga não encontrar alunos dispostos a ouvir suas lições. Precisa ser servil, convencional e terreno, sujeitando seus ensinamentos aos desejos daqueles que o pagam e apenas agindo de forma contrária quando julga conveniente. A sua mestria retórica e sua capacidade de alterar os ânimos das pessoas são características que parece partilhar com o

450 Teet., 168b2-6.

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filósofo, o qual também usa de encantamentos para provocar mudanças psíquicas em seus ouvintes e se assemelha, assim, a um médico451. Não se deve esquecer, contudo, a origem distinta da sabedoria de cada um deles, responsável também por alterar a natureza do efeito que causam na alma dos educandos. Segundo Platão, o filósofo é sábio porque possui apreensão mais real e originária das coisas, já que as conhece a partir da perspectiva teórica, no aspecto visível que apresentam fora da caverna. Quando atua de forma completa sobre as pessoas, leva-as até esse lugar e lhes modifica profundamente a alma, a qual se abre para nova região ontológica, repudia sua antiga condição e sofre reviravolta desiderativa e de valores. Ao revés disso, o sofista é sábio apenas porque pode convencer as pessoas desse fato, e as modificações anímicas que porventura suscita, sem irem de encontro aos valores comuns, só fazem engrandecê-los e justificá-los. De fato, ele não possui acesso privilegiado ao Ser e nem a capacidade de se libertar desse mundo empírico e contemplá-lo a partir de um lugar supraceleste. Admitindo que seu conhecimento é tão real e veraz quanto o de qualquer pessoa, reconhece que possui olhar terreno e que só se distingue dos demais mercê da virtuosidade oratória com que defende suas posições. Quando produz algum efeito na alma de seus alunos, pode até fazer com que este dure por longo tempo, como acontece com a atuação do médico sobre a doença; mas não provoca reviravolta tão radical quanto a filosófica, uma vez que deixa a pessoa habitando a mesma região a que já estava familiarizada e apenas altera alguns de seus aspectos. O sofista faz as sombras dançarem, mas nunca leva o cavernícola para a luz do Sol, simplesmente porque nem ao menos crê em sua existência.

Por meio do discurso de Sócrates metamorfoseado em Protágoras, portanto, Platão ressalta as semelhanças e as diferenças entre o filósofo e o sofista, o que prepara terreno para o surgimento da digressão sobre o filósofo. É certo que, nessa pequena fala, Platão apenas seleciona alguns aspectos do sofista e nem de longe o caracteriza com toda minúcia quem emprega em outras ocasiões. Ele até abusa da ironia e põe na boca de Protágoras ideias que seguramente não pertenciam a esse mestre da palavra. Ainda assim, a cena possui

451 O mesmo vale para o cuidado que Sócrates tinha para com Atenas. “These characteristics ascribed to the sophist are applicable to Socrates himself and in the Apology he describes his concern with the city in a language similar to the one employed by Protagoras”. TSCHEMPLIK, 2008, pg. 90. Contudo, esse comentário esquece que Sócrates possui valores contrários aos da cidade, sendo morto por ela, ao passo que o sofista ganha sua fama justamente por ensinar o que a cidade mais preza.

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relevância pelo lugar que ocupa, devendo ser levada em conta quando se pensa o papel da filosofia no Teeteto. 5.5. A digressão sobre o filósofo

Depois de ter defendido Protágoras e auxiliado sua tese, órfã e

indefesa, com ardor juvenil (ne anikw ½j), Sócrates retoma a sentença do sofista e a critica baseando-se na diferença de saber que os homens apresentam e na autocontradição a que se sujeita a postura do sofista. Ele insiste que Teodoro o acompanhe na discussão, deixando Teeteto e seus amigos de lado e agarrando-se ao geômetra como se fosse Anteu. Ele não quer deixar que seu amigo, apesar de idoso, fique fora do processo dialógico e mantenha-se imune aos efeitos da filosofia; todos são levados a comungar do delírio báquico e filosófico. A mudança de interlocutor, que aparentemente nada possui de relevante, é no fundo um estratagema retórico ou pedagógico. Falando com Teodoro, Sócrates acabará por entregar aos meninos, de maneira indireta, belíssimo quadro sobre a vida do filósofo e sua disposição afetiva fundamental. É um momento em que se permite afrouxar as rédeas do método de pergunta e resposta para descambar no multicolorido da oratória. Nesse sentido, parece que o filósofo é mais facilmente caracterizado pela retórica do que pela filosofia, pelo menos quando se leva em conta a juventude do público que escuta a caracterização. É claro que Sócrates poderia ter feito o retrato de maneira dialética, tendo Teeteto como interlocutor. Agindo ao contrário, porém, ele aguça mais vividamente a curiosidade dos meninos, pois os deixa escutar tranquilos e aparentemente distantes uma conversa entre homens feitos, que concordam com praticamente tudo o que é dito no momento.

Antes disso, porém, vem a nova apreciação de Protágoras, que é de algum modo incentivada pela própria fala sofista. Como dito, ela arrima-se na ideia recorrente em Platão de acordo com a qual, em certos domínios técnicos, existem pessoas mais sábias do que as outras. Há vários tipos de profissionais que são superiores aos outros homens graças ao saber que possuem: na medicina, o médico sabe mais do que o leigo; na arte militar, o general sabe mais do que o simples soldado e assim por diante. Por toda a parte as pessoas admitem tal diferença de saber, que se evidencia principalmente quando buscam comandantes e

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professores para si próprios, para seus animais e para seus trabalhos452. Disso se pode concluir que nas opiniões dos homens não há apenas verdade, mas também falsidade, razão pela qual algumas pessoas são consideradas ignorantes. De resto, o estado epistemologicamente insular que Protágoras defende, baluarte de seu relativismo algo solipsista, nem sempre acontece na realidade. Quando formamos uma opinião em nosso íntimo, por exemplo, ela nem sempre é verdadeira, e os outros homens também possuem o direito de atuar como juízes de nosso julgamento e tentar melhorá-lo, tanto mais quando seus interesses também estão em jogo453. Por fim – e este é o ponto mais elegante da refutação – o próprio Protágoras é coagido a admitir que os seus contraditores estão com a razão quando negam seu princípio, visto asseverar que a opinião de todos se refere ao que existe454. Ele não pode dizer que fala algo mais verdadeiro do que seus adversários, porque assim invalidaria seu princípio. E, de igual maneira, também precisa aceitar a ideia de que as cidades diferem umas das outras em relação à verdade, ainda que a maioria das pessoas proclame que conceitos como o justo e o injusto, ímpio e o piedoso, não existam por natureza e sejam apenas convenções humanas455.

Neste ponto da argumentação, pois, inicia-se a digressão sobre o filósofo. Sócrates acredita que o tema da convenção tenha dirigido a conversa para um horizonte mais amplo, e parece dar mostras de querer voltar ao assunto anterior. Teodoro, contudo, ressalta que eles possuem tempo de sobra (sx olh\n) e podem discorrer sobre o que quer que seja456. Esta fala é a deixa para que Sócrates inicie seu retrato do filósofo. Ele começa por notar a diferença existente entre as pessoas afeitas a especulações filosóficas e aquelas outras que, desde a juventude, têm o vezo de falar em tribunais e lugares semelhantes. Os primeiros sempre se revelam oradores ridículos (ge loiÍoi) quando são obrigados a medir seu tema conforme as regras e o tempo vigentes nos lugares públicos, coisa que Sócrates sentirá na própria pele dentro em breve, neste mesmo ano de 399 a.C. Todavia, eles são verdadeiramente

452 Teet., 170a6-b6. 453 Teet., 170d4-e3. 454 Teet., 171a6-9. 455 Teet., 172a-172c. 456 Teet., 172c2. Barker nota como a menção do ócio parece ser a única coisa que motiva a digressão. BARKER, 1976, pg. 458. Cremos que ela surja por conta da iniciação de Teeteto. Podemos supor que Sócrates não visse a hora de mostrar aos jovens, de forma livre e colorida, o que caracteriza a vida dos filósofos, tendo encontrado ou criado nesse momento a oportunidade para tanto.

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livres, pois têm folga para conversar em paz e podem trocar de assunto consoante sua inspiração. Os demais assemelham-se a escravos: sempre discursam premidos pela clépsidra e por seus adversários, que não deixam a argumentação extravasar os limites impostos pelos pontos de acusação ou defesa. A sua luta nunca se trava por questões indiferentes ou de cunho objetivo, mas é permeada por interesses pessoais que a desviam da verdade. Com o passar dos anos, eles se tornam hábeis em adular seus senhores com suas falas servis, o que lhes granjeia fama e poder do ponto de vista externo; internamente, porém, suas almas ficam expostas a perigos de toda a sorte e não conseguem se desenvolver direito, já que não são criadas no clima da liberdade e da retidão. Eles respondem à injustiça com injustiça, tornando-se retorcidos e deformados; e mal terminam a adolescência, sem terem nada de sadio em mente, creem-se sábios e habilidosos (de inoi¿ t e kaiì sof oiì), adjetivos esses que os equiparam aos sofistas457.

Por nova indicação de Teodoro, Sócrates decide examinar também as pessoas que se dedicam à filosofia. Segundo o geômetra, esses são livres porque fazem com que os discursos os sirvam, já que não têm juízes nem expectadores a quem devam se subordinar458. Sócrates se detém apenas nos diretores do coro dos filósofos, para não perder tempo com a arraia miúda. Trata-se da admissão de que descreverá o filósofo no superlativo, sem se preocupar com os desvios casuais que alteram sua natureza. O filósofo é de natureza tal que, desde a mocidade, desconhece os principais lugares de reunião pública, como a ágora, os tribunais e conselhos oficiais; ele simplesmente nada sabe das leis ou das últimas decisões políticas tomadas. Do mesmo modo, é alheio às disputas pelos cargos no poder, tramadas quer entre círculo fechados, quer entre banquetes animados por flautistas. Desconhece, outrossim, quem são os cidadãos mais famosos, aqueles que tiveram recentemente um filho ou que herdaram algo de seus antepassados. É tão ingênuo que nem ao menos se dá conta de que ignora os acontecimentos do dia. O seu alheamento, contudo, não decorre da vanglória, mas do simples fato de que se interessa por outras coisas e deixa apenas que seu corpo habite a cidade, enquanto seu pensamento paira por cima de tudo isso numa altivez alípede, voltando-se para a contemplação dos astros, para o estudo da natureza universal das coisas e para a visão de cada ser em sua totalidade. No livro VI da República, quando utiliza a metáfora da embarcação para deslindar a essência da cidade, Platão também 457 Teet., 172c3-173b7. 458 Teet., 173b8-c5.

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afirma que o filósofo é alguém que se perde na contemplação dos astros, o que novamente ressalta a relação dessa obra com o Teeteto. Enquanto as demais pessoas se engalfinham na luta pelo poder, o filósofo se retira para buscar o conhecimento do que realmente é importante. Ele poderia ser o melhor piloto, pois se preocupa com o conhecimento das estações, do ano, do céu e das estrelas. Contudo, os outros tripulantes pensam que ele é um nefelibata (met ew rosko/pon) inútil e palrador, sem capacidade nenhuma para dirigir a nau459. Também nesse caso ele anda próximo do ridículo. Na digressão, tal atividade faz o filósofo retomar o signo de seu destino que pela primeira vez se revelou com Tales, quando este pensador, absorvido na observação dos astros, caiu em um poço e provocou o riso de uma escrava trácia. Já naquele tempo o filósofo era considerado estranho e absurdo porque se apartava de tudo o que era empírico a fim de perscrutar a natureza das coisas; ignorava quem fossem seus vizinhos, pois se perguntava pelo Homem em si460.

Teodoro compreende o que Sócrates fala e concorda com tudo. Na continuação, Sócrates explica porque esse comportamento faz com que o filósofo acabe passando por imbecil. De fato, quando se vê coagido a tratar daquilo que está diante de seus pés, seja no tribunal ou em qualquer outro lugar, público ou privado, é lançado em total aporia (pa=san a)pori¿an) em razão de sua falta de experiência com essas coisas terrenas (u(po\ a)pe iri¿aj). A sua irremediável inabilidade (a)sx h mosu/nh de inh/) para lidar com as coisas práticas faz rebentar o riso de todos. Se precisa acusar alguém, não consegue fazê-lo direito, porque desconhece os vícios dos homens e nunca se ocupou com picuinhas a respeito da vida alheia; se precisa elogiar, estoura em gargalhadas, certamente porque possui outros valores e considera pura empáfia os termos pomposos que deveria utilizar. O mesmo acontece quando ouve o elogio de um rei ou a exaltação da riqueza pecuniária de alguém. No primeiro caso, pensa que enaltecem um porqueiro, cabreiro ou vaqueiro cujo rebanho é vasto; no segundo, não se impressiona com a menção de uma vasta propriedade territorial, haja vista esteja habituado a considerar a extensão da Terra inteira. Seu desdém sobranceiro também se manifesta diante de títulos de nobreza, uma vez que, avezado a ver o todo, sabe que todas as pessoas possuem miríades de antepassados entre os quais se sucedem escravos e potentados, ricos e

459 Rep., 487e7-489a2. 460 Teet., 173c6-174b6. “In each case here the contrast is between the view of things which we get from within some scheme of rules and conventions, and the view we get when we look at things whole”. BARKER, 1976, g. 460.

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pobres, Gregos e bárbaros. Assim, o filósofo é sempre ridicularizado pelo povo, que ora o julga desdenhoso, ora desconhecedor enciclopédico das coisas mais comezinhas, todas as quais lhe causam aporia (a)porw ½n)461.

Até este momento, o discurso de Sócrates apenas se referiu às atribulações que o filósofo enfrenta quando precisa descer ao interior da caverna e enxergar as coisas através da escassa luminosidade a que seus habitantes estão acostumados. Ele tomou direção inversa à da alegoria da República, que começa descrevendo o processo heteronoético que ocorre ao cavernícola que sobe até a região suprassensível para só depois se deter nos percalços suportados pelo filósofo. Com exceção do acentuado elemento cômico que aqui abunda, porém, a digressão relembra vários pormenores do mito da caverna. Ela mostra o que acontece a alguém que, habituado a viver na esfera noética, precisa descer até a cotidianidade da experiência sensível e se locomover em meio aos valores, aos objetos e aos comportamentos em vigor nesse âmbito. Apresentando inabilidade incurável para com as coisas singulares, nascida de seu trato com o universal, tal pessoa suscita facilmente o riso dos cavernícolas e é tomada por ridícula e ingênua, já que cai em aporia diante de eventos considerados singelos e normais. Em verdade, o seu estado de contínuo maravilhamento, pelo qual ela se afasta da região humana e observa os entes sob a perspectiva celeste, faz com que veja problemas onde os outros seres humanos veem apenas situações corriqueiras. Ao invés de ter sempre a mesma fala e a mesma concordância sobre certos assuntos, ela reconhece que os ignora e deixa sua alma perambular empós do que realmente sejam. Esse movimento a afasta ainda mais da circunscrição conceitual de seus semelhantes, se bem que eventualmente a presenteie com a visão da essência buscada, a qual também destoa de seus pobres exemplares sensíveis. Até mesmo os juízos de valor prezados na esfera pública e privada da cidade lhe são estranhos e risíveis, e ela acaba sendo considerada desdenhosa ou estúpida porque não reflete o comportamento esperado em determinada circunstância: ri quando deveria se admirar, fica impassível quando deveria mostrar surpresa e assim por diante. Os seus sintomas dão mostras do que significa viver sob o influxo da admiração reincidente, servindo para explicar a Teeteto e aos demais mancebos a peculiaridade (‡top°a) dos filósofos. Depois de dizer que a filosofia tem seu

461 Teet., 1748- 175b7.

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princípio nas vertigens da admiração, em suma, Sócrates ilustra retoricamente o comportamento a que isso conduz.

No restante da digressão, ele relata o que ocorre quando uma pessoa comum é levada até as alturas (aÃnw) a que o pensamento do filósofo costuma se elevar. Primeiramente, já não encontra nenhum dos múltiplos exemplares sensíveis sobre os quais discorria anteriormente e é constrangida a contemplar a justiça em si, a realeza em si, a felicidade ou a desgraça do homem a partir de uma perspectiva universal. Tudo isso diverge absolutamente daquilo que sempre conheceu. Se é obrigada a fazer discursos sobre o que vê, por conseguinte, a sua alma pequenina sofre efeitos similares aos que o filósofo sofria na região terrena: sente vertigens (a) dh monw½n) em razão da altura a que foi guindada e, por falta de hábito (u(po\ a)h qe i¿ aj) de sondar tais píncaros, cai em aporia (a)porw ½n) e mal consegue balbuciar alguma coisa, o que provoca o riso de todos os que receberam educação apropriada e contrária à dos escravos462. Os fenômenos que padece se enquadram perfeitamente no círculo conceitual do que atribuímos ao maravilhamento, repassando não só o que acontece a inúmeros interlocutores de Sócrates, como também o que se dá de modo paradigmático na alegoria da caverna. É mantida a distinção metafórica entre a região superior e inferior, que permite compreender a passagem como o relato de uma anábase psíquica; são mencionados eventos característicos como a aporia, a vertigem, a falta de hábito e a incapacidade de responder a questões; e, por fim, explicam-se esses fenômenos pela diferença entre a singularidade das coisas empíricas e a universalidade de essências como a “justiça em si”. Há nova descrição do processo heteronoético que origina psiquicamente a filosofia.

Na trama do Teeteto, portanto, a digressão se presta para continuar a iniciação filosófica do jovem interlocutor de Sócrates, fazendo-o relativizar a educação comum à época e compreender o que significa ser filósofo, alguém que é completamente diverso da maioria das pessoas. Se o menino já escutara que a filosofia tem seu começo e seu governo na experiência de admiração, agora percebe o que isso quer dizer em termos de atitudes cotidianas. Não sendo o interlocutor na ocasião, aliás, pode ouvir deleitado todo discurso e entregar-se sem restrição aos seus efeitos. A ênfase que Sócrates coloca entre a liberdade do filósofo e a escravidão dos oradores introduz novos temas na conversa e, ademais, revela como Platão também viu no ócio intelectual

462 Teet., 175b9-d7.

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a condição imprescindível para a filosofia. De fato, o filósofo só pode se entregar aos rompantes da admiração, só pode seguir no encalço de alguma ideia nova que lhe assoma ao espírito, se possui a folga nascida da ociosidade intelectual (sxolÐ). Como vimos no primeiro capítulo, Aristóteles fala de modo explícito sobre a relação entre o ócio e o princípio da filosofia. Ele acredita que foi por dispor de tempo que os homens puderam se dedicar a ciências isentas de fins práticos. Platão é da mesma opinião: é preciso que estejamos libertos da tirania das ocupações e do olhar da necessidade, que é cego para tudo o que não seja ação, para que possamos contemplar as coisas em sua propriedade. Quando estamos demasiado ocupados, pois, enxergamos a tudo dentro de determinada intencionalidade prática, que restringe os demais aspectos das coisas e no-las apresenta revestidas apenas com suas roupagens rotineiras. No interior dessa experiência a natureza e a razão de ser dos entes são evidentes e não problemáticas, motivo por que não nos causam nenhuma admiração. Cumpre ter tempo para perder a familiaridade com o mais habitual e poder olhá-lo livremente, tal como fazem as crianças, a fim de sentir a admiração. O otium intellectuale, por conseguinte, está na base da experiência que origina a filosofia, donde a insistência de Platão sobre esse tema no Teeteto.

Perto do fim de sua divagação, Sócrates muda o tom algo jocoso que adotara até o presente instante e torna-se mais sério e compenetrado a fim de apontar as aspirações e os deveres éticos do filósofo. Teodoro havia interrompido a fluência do discurso para dizer que, se porventura Sócrates convencesse todo o mundo do que fala, haveria mais paz e menos males entre os homens. Com um juízo de cunho tanto teológico quanto cosmológico, Sócrates desbarata a esperança do geômetra e assevera que é forçoso sempre haver inúmeros males, em virtude da natureza perecível (t h \n qnht h\n f u/sin) desse mundo. Logo, caso queiramos nos libertar deles, é preciso que fujamos daqui o mais rápido possível para tentarmos viver junto dos deuses. Esta fuga – que no Fédon se dava através da purificação, a qual fazia com que o filósofo se apercebesse de sua imortalidade e incentivasse em si o elemento racional – consiste nessa ocasião em tornar-se à medida do possível similar a deus (o(moi¿w sij qe%½), passando a ser justo (di¿kaion) e piedoso (oÀ sion) com o concurso da sabedoria (me t a\ f ronh /sew j)463. Sócrates não aceita as razões dadas pela

463 Morgan conecta tal fato ao tipo de aprendizagem que Platão preconiza e à maneira como ele concebe a filosofia: “ Platonic learning, then, is an ecstatic ritual process because it is precisely

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maioria para que se evite o vício e se busque a virtude; ele as considera míticas e insuficientes. A verdadeira fundamentação para esse comportamento ético reside no fato de que devemos nos tornar o mais possível semelhantes a deus, como dito acima, meta que será alcançada quando formos justos, porquanto deus seja justo em grau máximo. O verdadeiro paradigma para a ação correta dos homens, assim, encontra-se na imitação do comportamento divino, o qual sempre age tendo em mira a justiça. O conhecimento disso configura a verdadeira sabedoria e virtude, e a sua ignorância, pois, maldade e vício evidentes464. Novamente Platão põe um abismo entre a esfera humana e a divina, fazendo o filósofo assomar como alguém que, embora seja habitante da primeira, envida todos os esforços imagináveis para se transportar até a segunda. A experiência da admiração e da teoria, bem como a sua natureza intermediária, são provas de que muitas vezes seu empenho não é baldado: o divino pode ser alcançado através da filosofia. De resto, com essa ideia Platão também refuta à socapa a tese de Protágoras, de acordo com a qual o homem é medida de todas as coisas. Do ponto de vista ético, essa tese validaria a conclusão de que é suficiente apenas um padrão humano para a justiça, para a sabedoria e para a virtude em geral. Platão, entretanto, afirma precisamente o contrário, e aqui na digressão sobre o filósofo retoma sorrateiramente a fala do sofista para refutá-la. Depois de ter colocado o modelo divino como suprema aspiração ética do homem, e o conhecimento desse fato como verdadeira sabedoria e virtude, ele escreve:

Sócrates: As demais aparências de habilidade (d eino /t h t e/ j) e de sabedoria, quando se mostram no exercício do poder público, são conhecimentos grosseiros; nas artes, vulgaridade. Assim, quando alguém é injusto ou ímpio, por ações ou palavras, será melhor não conceder-lhe que todo o seu êxito se baseia na astúcia, pois esse indivíduo se envaideceria com o reparo, muito ancho por ter ouvido dizer, segundo crê, que não é néscio ou fardo inútil sobre a terra,

organized, religiously motivated by the desire to become divine, and facilitated by the assumption that human soul, which is immortal, can become divine or nearly divine. The result of this Platonic appropriation of the ecstatic model, then, is a conception of philosophy as a lifelong quest for salvation”. MORGAN, 1992, pg. 232. Kahn acredita que a doutrina da “semelhança com Deus” é uma reinterpretação da doutrina pitagórica segundo a qual devemos “seguir um deus”. KAHN, 2007, pg. 76. 464 Teet., 176a3-c5.

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porém homem como terão de ser os que melhor sabem vencer na vida pública. A esses tais é preciso dizer-lhes a verdade: que são tanto mais o que julgam não ser, quanto menos sabem o que são. De fato, todos eles desconhecem qual seja o castigo da injustiça, o que menos do que tudo não se pode ignorar. Não é o que todos pensam: castigos corporais e morte, de que os malfeitores muitas vezes escapam, senão penalidade a quem ninguém se exime465.

Tudo aquilo que é prezado na cidade, enquanto não transbordar

as margens meramente humanas, não passará de astúcia ou malícia. Ao paradigma mortal que o sofista propôs em seu discurso, Sócrates contrapõe o paradigma divino. No decorrer do diálogo, Teeteto pode agora julgar com maior exatidão a diferença entre esses dois gêneros de pensadores. O sofista é aquele que se mantém confinado dentro dos limites humanos, considerados por ele reais e verdadeiros. Ele não realiza nenhum movimento ascendente pelo qual põe esse mundo de cabeça para baixo, às avessas (die verkehrte Welt), nega seus valores, transmuda visceralmente sua natureza e descobre algo mais perfeito; apenas lida com o aquilo que é apreciado pela maioria466. Não provoca a verdadeira heterónoia em seus clientes e sua ocupação consiste em lhes alterar de leve a unidade psíquica, sem nunca exigir que abandonem seus hábitos mais arraigados. Já o filósofo, por experimentar reincidentemente a admiração, abre-se para uma esfera totalmente diversa da humana, sofre reorientação ontológica que modifica seus valores e desejos e o converte a uma norma externa e objetiva. Ele alarga seu horizonte intelectual até a perspectiva teórica, passando a ter Deus como medida de seus atos, de suas palavras e de todas as coisas. Quando se ocupa das pessoas, destarte, tende a fazê-las passar pelo mesmo processo heteronoético que ele mesmo experimentou e mudá-las

465 Teet., 176c6-e. A palavra deino/thj e seus derivados (deino/j) são comuns, na época, para designar o sofista e sua arte. Cf. GUHTRIE, 1995, pg. 35-6. De acordo com Cushman, em mais de uma ocasião Platão reacende a mesma discussão e toma o modelo divino em detrimento do humano. No caso específico de Protágoras, Cushman ressalta que Platão até não se oporia em ser o homem a medida das coisas, com tal que o homem fosse entendido como um ser dotado de psique imortal que é afim da realidade inteligível e do divino. Platão criticaria em Protágoras, portanto, a concepção limitada de homem e de alma. CUSHMAN, 2007, pg. 44. 466 Cushman afirma que os sofistas eram, na opinião de Platão, pessoas convencionais que, ao invés de modificarem os costumes das cidades que visitavam, viviam prudentemente e deixavam tudo como estava. CUSHMAN, 2007, pg. 37. Em suma, os sofistas promovem a ilusão e os filósofos a destroem.

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de maneira profunda. Fundamentalmente, o filósofo diverge do sofista porque sua sabedoria e seu padrão moral nascem de paradigmas diferentes das convenções humanas tidas por verdadeiras e prezadas no interior das cidades467. Todas as pessoas que seguem o paradigma humano, conforme o discurso de Sócrates, se afastam da ordem divina e são castigadas pela própria vida que escolhem para si. Se lhes é dito que, caso não renunciem a essas supostas habilidades, não serão recebidas no local puro (o( t w½n kakw½n kaqaro\j t o/poj), mas terão conviver sempre (a)e iì) com aqueles que lhes são semelhantes, viram as costas e desprezam o que ouviram, tamanha é cegueira em que estão enleados468. É muito provável que esteja em jogo, nesta passagem, mais um dos mitos escatológicos de Platão, apesar da aparente reticência com que é citado; o clima relembra bastante as conhecidas passagens da República, do Fédon e do Górgias que tratam do mesmo tema. Além da diferença entre a sorte dos bons e dos maus, a menção dos castigos incorpóreos, do julgamento, da situação além-morte e do lugar puro dá a entender que ele esteja a falar da vida depois da morte, pressupondo para tanto a imortalidade da alma469. Junto com tudo o que se disse ao longo da digressão a respeito do divino, isso também serviria para provar que, se a teoria das ideais não é trazida à tona no Teeteto, tal ocorre por razões didáticas, e não porque Platão tenha se alijado dela. Sócrates não deixou de ter como baluarte a tese da imortalidade da alma, que anda de mãos dadas com a doutrina das ideias; apenas não a mencionou explicitamente em razão do interlocutor com que conversava.

No fim da digressão, Sócrates alude outra vez a um dos efeitos que sua pedagogia costuma causar em pessoas que julgam saber alguma coisa. Quando são obrigadas a sustentar uma discussão, sem abandonar o campo por qualquer motivo, não apreciam as teses que eles mesmos

467 “Sabedoria e aparência de sabedoria, sabedoria e reconhecimento: a pergunta sobre o conhecimento conduz diretamente à representação do sábio; a figura do filósofo (sábio em oposição à cidade) é fundada na sua diferença do sofista (sábio aparente em função do reconhecimento da cidade). A cesura é radical e distancia a sabedoria de toda forma de habilidade”. LIMA, 2004, pg. 33. 468 Teet., 176e3-177a8. 469 Cushman mostra como a noção de lugar puro e de catarse estão associadas a certo conteúdo órfico que se faz presente nos diálogos que mencionamos e também no Timeu. Ele não se recorda, contudo, da passagem do Teeteto. CUSHMAN, 2007, pg. 18-9. “The brief glimpse of eschatology brings out a vital aspect of the entire Digression. As an excursus, it shares many of the features of the myths with which Plato loves to crown his dialogues: an eloquent declaration of faith that there is divinely dispensed justice in the world, founded on the big picture and looking beyond the range to which dialectical argument can aspire”. SEDLEY, 2005, pg. 79. Barker é de opinião similar. BARKER, 1976, pg. 461.

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defendem e sua retórica acaba emurchecendo470. Pode que seja uma pequena e passageira reprimenda a Teodoro, que não se dispõe a discutir com Sócrates, apesar de se confessar discípulo e amigo de Protágoras. No fundo, porém, é uma alusão ao desgosto para consigo mesmo que acomete todos aqueles em cujo interior, como diria Zaratustra, ainda “soa a voz do rebanho”. São pessoas que não realizaram toda a anábase para fora da caverna e que, por algum motivo, já não desfrutam da mesma segurança e tranquilidade que tiveram outrora.

***

Os principais momentos da experiência de admiração, portanto, podem ser encontrados não apenas na digressão do Teeteto, como também na alegoria da caverna. Isso comprova a ligação íntima que essas duas obras possuem entre si, pelo menos no que toca ao tema da iniciação filosófica. O Teeteto continua em seu percurso e ainda faz com que o efebo homônimo ofereça duas definições de conhecimento, as quais são escrutinadas pelos personagens e acabam se mostrando insuficientes. Em que pese seu caráter “peirástico”, essas definições por si só já o conduzem para mais perto do reino das essências, uma vez que transcendem a pura sensibilidade e alcançam a esfera da linguagem e dos conceitos. A sua iniciação filosófica fica parcialmente realizada nessa ocasião em que acontece o primeiro dos muitos processos heteronoéticos que haverá de sofrer, como o confirma a conversa entre Euclides e Terpsião. O diálogo chega ao seu término enfatizando mais uma vez qual era o seu propósito e sua raiz pivotante. Sócrates pergunta explicitamente se, sobre a questão específica do conhecimento, Teeteto ainda está sofrendo as dores do parto ou se já pôs para fora tudo o que tinha em seu íntimo. Exultante, o menino assegura que com a ajuda de Sócrates disse várias coisas de cuja existência nem ao menos suspeitava. Ele não se zanga nem se mostra descontente quando a arte maiêutica decide que tudo o que discutiram não passava de vento. Sócrates garante que Teeteto ficará agora em melhores condições, sem supor saber aquilo que não sabe471. Se ainda não viu completamente o esplendor do Sol, Teeteto pôde ao menos divisar alguns lampejos que o tornaram atento para a existência de uma realidade diferente da sensível. A admiração despertou sua inteligência e virou sua alma para o verdadeiro Ser,

470 Teet., 177b1-7b. 471 Teet., 210b4-d4.

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criando a ponte que liga o hemisfério humano ao divino. Tendo sido apresentado ao caminho maravilhoso, agora só lhe resta se esforçar para percorrê-lo. Como Sócrates disse no começo da conversa: “Se Deus quiser e se fores varonil, serás capaz”472.

472 Teet., 151d5-6. Tradução nossa.

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CONCLUSÃO

Para concluir nossas reflexões sobre a admiração, convém ler mais uma vez a fala de Sócrates no Teeteto.

Sobretudo é própria do filósofo, pois, esta experiência, o admirar-se. Outro não é princípio da filosofia senão este. Ao que parece, não foi mau genealogista quem disse ter Íris nascido de Taumante473.

Depois de todo o horizonte teórico que contemplamos, já pela

via da análise propriamente dita, já por alusões ou rápidas olhadelas, esperamos que esta frase possa ser agora entendida de maneira mais profunda e adequada. A exegese (%cÐgjsiv) é justamente o esforço intelectual que visa trazer para fora da obscuridade e da vagueza alguma experiência humana que algum dia vicejou, outra vez apropriando-se dela e traduzindo-a para o contexto do presente. Fizemos notar que a assertiva do Teeteto se caracteriza justamente por ser antes uma passagem de omissão, usualmente subestimada, do que uma passagem que deveria estruturar um problema capaz de nos introduzir no âmago da concepção platônica de filosofia. Tentamos tomar essa afirmação como espinha dorsal de nosso caminho e olhar para as outras questões como se fossem suas vértebras, ao contrário do que costumam fazer outros intérpretes, os quais se valem dela, muitas vezes, apenas para ilustrar marginalmente algum tema maior de que estão tratando. De fato, é notável a superficial ligeireza com que ela costuma ser pensada, a despeito de sua óbvia relevância e do poder taxativo com que designa e qualifica ontologicamente a força motriz da filosofia. Para dar mais um exemplo disso, recordemos que o livro de Cushman, todo ele dedicado à maneira como Platão concebe a filosofia, nem sequer uma vez examina esta frase, a despeito de construir caminho próprio de investigação e de alcançar algumas conclusões acertadas e deveras interessantes474. O mesmo se diga sobre o conceito de páthos e sobre o diálogo Teeteto em geral. Embora inextricavelmente relacionados à questão do maravilhamento, tanto o conceito quanto a obra são o mais das vezes vistos dentro de uma ótica restritiva e monocórdia, que já não consegue

473 Teet., 155d1-7. 474 CUSHMAN, 2007.

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atentar para outros aspectos senão aqueles consagrados por longa tradição.

Apesar de nossas incursões na filosofia platônica como um todo, nunca é demais ressaltar que tudo quanto escrevemos se refere tão-somente ao princípio do filosofar. É pelo fato de se ter de compreender “princípio” em seu sentido fundamental, tanto como origem quanto como governo, que fomos levado a tratar de temas que aparentemente só surgem e se tornam relevantes quando a marcha da filosofia já deixou a timidez dos primeiros passos e está prestes a alcançar seu apogeu. Do mesmo modo, por analisarmos o estatuto ontológico da experiência de início da filosofia, precisamos mencionar assuntos como a catarse, a aporia, a reminiscência, a teoria das ideias etc. Podemos dizer que essa necessidade é mais uma razão para as nossas escolhas documentais. Com efeito, elas se centram em alguns dos diálogos ditos aporéticos, que contêm a tentativa de produzir reviravolta ontológica nos interlocutores de Sócrates e de apresentar-lhes a filosofia, e naqueles diálogos que, por serem mais dogmáticos, iluminam os problemas que já tinham sido levantados anteriormente475. Mantemos a posição de que os diálogos devem ser interpretados levando em conta seu contexto e seus aspectos dramatúrgicos, e não vemos contradição em admitir tal contextualização do conteúdo das obras, por um lado, e adotar perspectiva panorâmica, por outro. Isso apenas seria problemático se a assertiva que analisamos fosse mais doutrinal do que, por assim dizer, metafilosófica.

É curioso pensar que Platão tenha escolhido a admiração, presente em vários movimentos da alma humana (surpresa, alegria, indignação etc.), como “sentimento” próprio do filósofo. Se tal experiência pode evocar conotações sérias e reverenciais, concordes com o caráter “religioso" da filosofia platônica, pode também referir-se à mera curiosidade e àquilo que os cristãos chamavam de fascinatio nugacitatis, como alguns pensadores já sublinharam476. Há um escrito proveniente do círculo peripatético que exemplifica a faceta mais

475 Segundo Jaeger, os problemas da filosofia platônica se esboçam nos primeiros diálogos e são esclarecidos pelas obras da fase madura do autor. JAEGER, 22003, pg. 417. Sem que nos comprometamos com cronologias, somos da mesma opinião. 476 Segundo Gadamer, teriam sido Ambrósio e Agostinho os responsáveis pela transformação da curiosidade em algo negativo, o que não existia no povo grego graças a sua sede de saber. GADAMER, 2001, pg. 28. Gadamer esquece, todavia, que Platão já distinguia os meros amantes de espetáculos, que se sensibilizam com as cores, as formas e outros apanágios das apresentações artísticas, dos amantes do espetáculo da verdade, que eram os filósofos capazes de reconhecer a unidade do Belo e das outras ideias. Rep., 475d-e.

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superficial que caracteriza essa emoção. Intitula-se “Acerca de relatos admiráveis” (Pe riì qau mas°w n a)kou sma/t wn), e versa sobre coisas maravilhosas que se contam nos mais diversos lugares: certos ratos na ilha de Chipre, por exemplo, são capazes de comer ferro; certos sapos de Cirene são absolutamente desprovidos de voz etc.477 O texto não se importa com distinguir precisamente entre verdade e ficção e, junto com Heródoto e com Homero, recorda-nos o sentido de “maravilhoso” tal como empregado nos relatos de Marco Polo, na história natural de Plínio, nos escritos dos exploradores quinhentistas e no Wonderland de Lewis Carroll. É algo muito próximo daquilo que constitui objeto da literatura fantástica e do atual sensacionalismo científico que, através dos meios de comunicação, embota a capacidade crítica das pessoas com notícias e novidades as mais supérfluas.

Em que pesem suas diferenças, todavia, mesmo no interior desse sentimento pode-se constatar a ânsia por conhecimento que justifica a escolha da admiração como experiência própria do filósofo. Admirar-se com argumentos acerca da sensibilidade ou admirar-se com um relato inusitado que ouvimos, pois, significa reconhecer a existência de algo que ainda não havíamos notado. Em ambos os casos nossa atenção é despertada para algum modo de ser ou algum ente que se manifesta no mundo; o que muda é apenas a relevância do objeto de admiração e a atitude da pessoa que se admira. O filósofo se entrega a uma experiência que extravasa os limites naturais do sentimento comum de admiração e ainda lhe revela a natureza dos entes em sua propriedade, o que o incita a prosseguir em sua busca e a investigar diligentemente o mundo circundante. A pessoa normal, por sua vez, apenas vivencia um sentimento que é abarcado no interior de sua experiência cotidiana e que, no máximo, pode surpreendê-la por alguns instantes. Dito de outra forma, somente a admiração filosófica provoca processo heteronoético que desfralda uma reviravolta ontológica em quem o experimenta.

Tal fato também se evidencia na biografia de alguns filósofos, se interpretarmos com certa liberdade algumas de suas vivências. Sabe-se que, depois de ficar intrigado com a quadragésima segunda proposição dos Elementos, Hobbes teria refeito todo o percurso argumentativo da geometria até chegar aos seus axiomas, uma experiência que mudou radicalmente a sua Weltanschauung e o fez utilizar a matemática como peça central de seu método. É provável que

477 De mirabil. auscultat., , 832a22-25; 835a33-34.

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nesse acontecimento estivesse envolvido aquele gênero de admiração relativo à matemática, conforme analisamos no capítulo quinto: o filósofo se apercebeu de algo que ainda não notara devidamente, sendo que isso acicatou sua inteligência e o impulsionou a se dedicar à filosofia. Algo similar se deu com Descartes. Na noite de 10 de novembro de 1610, ter-lhe-ia sido revelado de modo maravilhoso, numa espécie de visão extática, a estrutura matemática do universo. Ele foi tomado por sentimento tão profundo, que guardou a lembrança do acontecimento para a vida toda e, como se sabe, também usou a matemática como gênero de baluarte de sua filosofia478. Não é totalmente à toa que depois escolheu a admiração como uma das paixões primordiais. Ambos os filósofos sofreram reviravolta ontológica que determinou o curso futuro de suas vidas. Igualmente se diz que Wittgenstein costumava ser tomado por questões repentinas que, sobre se lhe apresentarem como excruciantes enigmas, alheavam-no de todo o ambiente e o faziam mergulhar em si mesmo, de modo parecido ao que ocorria a Sócrates. As questões filosóficas tinham para ele caráter patético, pois ocorriam à sua revelia e o tomavam por completo, donde a sua ideia de eliminar os problemas através da terapia da linguagem479. O próprio Platão, por fim, é o mais perfeito exemplo desse fenômeno, pois só começou a filosofar depois de ter se admirado intensamente com os discursos e a personalidade de Sócrates.

São transes admirativos desse jaez, como dissemos, que dão origem à absurdidade dos filósofos. Por modificarem sua visão e orientarem sua alma para o verdadeiro ser, acabam se tornando diferentes das pessoas comuns e não raro suscitam o riso ou o temor de quem os conhece. Há um nexo cerrado entre a chaplinesca queda de Tales no poço, a experiência de admiração, o diálogo Teeteto e o destino da filosofia no Ocidente. A filosofia começa com um tropeço cuja causa é olhar admirado que um homem lança para os astros, numa atitude que o leva desconsiderar o mundo mais imediato que o rodeia. Tales só olha para cima, porém, com o intuito de entender melhor o que acontece aqui embaixo. Ele está intrigado com a forma como as coisas são, está surpreso e admirado, e por isso expande seu pensamento até o éter para compreender aquilo que está diante de seu rosto. Quando Platão interpreta tal gesto, no Teeteto, ele diz que a admiração é a experiência que dá início à filosofia e ainda lhe serve de força motriz. Ou seja, ele toma a peripécia de Tales, o primeiro filósofo, como um sintoma ou

478 BRONOWISKI; MAZLISH, 1983, pg. 209; 231. 479 MONK, 1995, pg. 19.

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consequência de um páthos que dominava o milesiano por completo. Não podia ser mais patente a sua intenção de relacionar ambas as ideias: torna-se óbvio que desde quando se iniciou, a filosofia é um modo de vida que se apodera inteiramente de quem a experimenta e transmuda sua alma de maneira radical. Não é apenas uma habilidade técnica de lidar com argumentos, um modo de pensar, uma visão de mundo, uma ideologia ou um título que pode ser outorgado pelas instituições adequadas. Todas essas noções são alheias a Platão e só fazem sentido para nós. Por conta disso, aliás, não é errôneo pensar que a filosofia, tendo se desgarrado de seu curso original, grego em essência, encontra-se agora em seu estágio final, pois parece que já não suscita nenhuma modificação duradoura em quem a experimenta, não implica a prática de certas virtudes nem a experiência de determinadas paixões. O filósofo pode hoje ser um “Esteves sem metafísica”, engavetar seu saber técnico em uma parte de si e continuar agindo e vivendo como as demais pessoas. Ele pode fazê-lo e o faz se nenhum problema. Todavia, se atualmente consegue desviar dos poços, atuar no meio das sombras e se confundir com a multidão, isso acontece não porque se tornou mais astuto, mais sensato, mais inteligente; mas sim porque deixou de olhar para cima.

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