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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA COORDENAÇÃO DE PESQUISA Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) - CNPq/UFS Imagens da natureza no romantismo brasileiro Área do conhecimento: 8.00.00.00-2 Sub-área do conhecimento: 8.02.06.00-0 Especialidade: romantismo brasileiro Bolsista: Amael Oliveira Orientadora: Dr a . Josalba Fabiana dos Santos (Departamento de Letras) Relatório Final 2008.1 Este projeto é desenvolvido sem bolsa de iniciação científica (Voluntária)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

COORDENAÇÃO DE PESQUISA

Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) - CNPq/UFS

Imagens da natureza no romantismo brasileiro

Área do conhecimento: 8.00.00.00-2 Sub-área do conhecimento: 8.02.06.00-0 Especialidade: romantismo brasileiro

Bolsista: Amael Oliveira Orientadora: Dra. Josalba Fabiana dos Santos (Departamento de Letras)

Relatório Final 2008.1

Este projeto é desenvolvido sem bolsa de iniciação científica

(Voluntária)

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RESUMO

Através das obras O guarani e Ubirajara de José de Alencar e de um diversificado acervo de trabalhos de pesquisadores das áreas de Crítica e Teoria Literária, História, Sociologia, Antropologia e Política, esta pesquisa busca contribuir para um maior conhecimento acerca do romantismo, por meio das diferentes imagens da natureza nele elaboradas e que são formadoras de diferentes concepções de nação. Para alcançar este objetivo, foi analisado como essas imagens constroem, destroem e refazem a nação brasileira através da memória e do quase esquecimento. Palavras-chave: romantismo, nacionalismo, identidade, memória.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 4

2. REVISÃO DA LITERATURA .............................................................................. 5

3. METODOLOGIA ................................................................................................. 10

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO .......................................................................... 11

5. CONCLUSÕES ..................................................................................................... 27

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 29

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INTRODUÇÃO

Uma das características mais marcantes do período romântico é o nacionalismo. No entanto, apesar de exaustivamente apontada em manuais de história literária e pela crítica especializada, apenas Antonio Candido realizou de fato um estudo abrangente a respeito − Formação da literatura brasileira (1959). Mesmo esse estudo não tem o caráter do que aqui se coloca, pois em Candido, como o título aponta, está se falando da formação de uma literatura nacional, no caso a brasileira. Enquanto esta pesquisa pretende tratar da fundação e da formação nacional através da literatura. Considerando para tanto que as relações identitárias não são fixas no tempo, estão constantemente se transformando. De maneira que o romantismo enquanto período estético datado terminou, mas as interpretações do fato nacional que ele gerou e gera continuam a se construir, destruir e reconstruir ao longo da história.

Esta influência pode ser sentida em especial, dentro da história da literatura, no movimento de vanguarda do modernismo brasileiro, período em que mais uma vez a questão da nacionalidade, já apontada pelos românticos, reaparece de maneira múltipla, diversa, antropofágica. A escolha feita pelos escritores do romantismo na exaltação da figura do indígena será novamente relida pelos modernistas em Macunaíma (1928) de Mário de Andrade, por exemplo.

Os escritores românticos, vivendo num período idealizador e limitados por precárias condições para realizarem pesquisas de campo satisfatórias, pintaram o Brasil de uma forma que ao leitor de hoje soa artificial, não só no que tange a paisagem, mas também no que se refere ao homem.

A natureza romântica é mítica, espaço da fundação da identidade nacional num passado fora do tempo histórico. O guarani, de José de Alencar, é a perfeita representação do “país jardim” (CHAUI, 2001, p. 63). Peri restitui Ceci ao locus amoenus clássico (CURTIS, 1996, p. 254), ainda que modificado pelo exotismo e abundância da paisagem tropical. Já em Ubirajara, Alencar coloca o índio como elemento humano anterior à civilização européia, e por isso, genuinamente brasileiro.

Essas duas obras compõem o corpus dos textos literários que serão analisados para delimitação das imagens da natureza neles construídas. Será a partir do estudo da fortuna crítica acerca do romantismo e dos trabalhos empreendidos por pesquisadores dos campos da Crítica e Teoria Literária, da História, da Antropologia e da Sociologia, que o fenômeno de construção da identidade nacional será analisado.

O estudo aqui presente busca contribuir para um maior conhecimento do romantismo, através das diferentes imagens da natureza nele abordadas e que são formadoras de diferentes concepções de nação. Neste sentido, busca-se a análise de como essas imagens constroem, destroem e refazem a nação, por meio da memória e do quase esquecimento.

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REVISÃO DA LITERATURA

Inicialmente tributário do processo que resultou na independência nacional em 1822, o romantismo inicia-se no Brasil em 1836 com a publicação de um livro de poesias intitulado Suspiros poéticos e saudades de Gonçalves de Magalhães.

No período em que vigorou como estética literária predominante, cerca de 45 anos, o romantismo caracterizou-se por uma variada produção em prosa, poesia e teatro. Em especial na prosa e na poesia, as obras produzidas em território nacional apresentaram em sua primeira geração uma necessidade de expressão que estabelecesse uma relação com as raízes genuinamente nacionais. A preocupação com a definição do tipo brasileiro irá marcar o enfoque dado por alguns escritores da época a figuras como o índio e o sertanejo. Enquanto em versos Gonçalves Dias louvava as riquezas naturais e a bravura do indígena, em prosa, empreendimento semelhante é executado por José de Alencar que com seus romances indianistas e sertanistas apresentará à população da recém independente colônia de Portugal um quadro do que se poderia chamar nação brasileira.

É dentro deste contexto que o pensamento de Antonio Candido (1981), para a crítica literária brasileira, representa uma fonte importante de estudos, tendo em vista, a análise diferenciada que faz do processo de formação da literatura nacional. O crítico empreende um trabalho que observa a produção romântica como um processo consciente de criação de uma imagem de identidade nacional.

Segundo Candido, o motivo para esse processo advém da “vontade consciente de definir no Brasil uma literatura independente, exprimindo a seu modo os temas, problemas e sentimentos da jovem Nação,” (1981, p. 303). Cândido explica ainda que as produções literárias do período surgiram como discurso de valorização dos aspectos naturais, fruto de uma tentativa de independência cultural em relação à metrópole portuguesa. “[...] o Romantismo no Brasil foi episódio do grande processo de tomada de consciência nacional, constituindo um aspecto do movimento de independência. Afirmar a autonomia no setor literário significava cortar mais um liame com a mãe pátria”. (CANDIDO, 1981, p. 303) O ensaísta vai constatar um movimento em três etapas que definirá os rumos adotados pelos escritores românticos. O primeiro destes se define por afirmar que o Brasil tem uma tradição literária própria. O segundo é a constatação de que os elementos que compõem essa tradição precisam ser desenvolvidos. O terceiro momento será “a formação de uma literatura nova, baseada em formas e sentimentos renovados, adequados a um país jovem que se afirmara na liberdade política”, (CANDIDO, 1981, p. 304.). Contudo, a esse projeto de construção de uma identidade nacional se oporá a inadaptabilidade do modelo de romance europeu. O romantismo na Europa era caracterizado pela narração de atos heróicos, historicamente localizados num passado distante, com especial destaque para as aventuras de cavalaria da Idade Média. Tais atos eram louvados e enaltecidos como símbolos da bravura nacional, da dignidade e da grandeza de espírito de um povo. No Brasil, a ausência deste passado, posto que não existem registros históricos do período anterior ao descobrimento, vai apontar para um quadro modesto de temas e modelos para constituir verdadeiramente uma imagem nacional. A solução apresentada pelos românticos foi a exaltação das potencialidades naturais, da natureza brasileira em sua diversidade de fauna, flora e humana. Sobre isso,

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Candido se manifestará no sentido de mostrar que a escolha do índio como símbolo nacional não ocorreu de maneira ocasional. Mas para que esta [Literatura brasileira] se constituísse realmente, julgava necessário

desenvolver os aspectos nacionais. Neste sentido, propõe a rejeição da mitologia greco-latina que, fundando-se na simbolização da natureza, não pode corresponder à do Novo Mundo; sugere a descrição desta e o aproveitamento, como tema, tanto do índio quanto dos primeiros colonos. (CANDIDO, 1981, p. 305.)

De uma forma ou de outra o nacionalismo se expressa através da produção de

imagens relacionadas à natureza. Ao contrário de outros países em que a idéia de nação se cunhou através de lutas políticas, no Brasil ela foi formulada a partir da natureza, o que se observa na escolha das cores da bandeira (CHAUI, 2001, p. 62). No romantismo a natureza compensa a falta da civilização − a partir de parâmetros europeus, é claro − sem problemas. O país tinha se tornado independente havia pouco (1822), tudo ainda estava por ser feito.

O romantismo é revolucionário, está marcado por várias idéias cunhadas na Europa, inclusive o nacionalismo, e altera bastante o quadro no que se refere ao período estético que o precedeu, o arcadismo. Neoclássico, o arcadismo diz pouco à classe média emergente e não muito culta que começa a se configurar no Brasil do século XIX. O romance é a nova forma que traduzirá vários anseios dessa classe burguesa por meio de uma linguagem acessível. Além disso, o traço nacionalista proporcionaria aos novos ricos a possibilidade de uma identificação positiva com o país que se formava.

Para Afrânio Coutinho (1986, p. 231), foi no romance que o romantismo encontrou o melhor veículo para propagação de suas idéias. Segundo ele, é um produto de necessidades tanto dos escritores quanto dos leitores.

O romance, forma narrativa moderna, surgiu como resposta a necessidades de expressão, da parte do escritor, e a determinadas aspirações, da parte do leitor. Na raiz dessas necessidades está o romantismo, cujas sementes se encontravam fecundadas desde a segunda metade do século XVIII. Os movimentos revolucionários dessa época fizeram ruir a velha estrutura social, emergindo em conseqüência elementos novos das camadas inferiores da estratificação sócio-econômica. (COUTINHO, 1986, p. 231)

Será dentro desse quadro político-social que o romance brasileiro despontará como discurso de exaltação nacional. E, entre os romancistas de maior destaque do período, temos José Martiniano de Alencar (1829 – 1877). Alencar não só foi um importante romancista do romantismo brasileiro pelo grau de penetração de sua obra na burguesia da época, como também é, até hoje, considerado um dos mais completos escritores do período. Seus romances estão divididos em quatro gêneros temáticos distintos: os romances urbanos ou de costume (Cinco minutos, A viuvinha, Sonhos d’ouro, Senhora, Diva, Lucíola, entre outros), os romances históricos (A Guerra dos Mascates, As minas de prata), os regionais (O sertanejo, O gaúcho), os rurais (Til, O tronco do ipê) e os indianistas (O guarani, Iracema e Ubirajara).

Para Coutinho dois fatos contribuíram para a posição que o romancista cearense ocupa em relação ao público e à crítica:

Primeiro, o de continuar sendo um dos autores nacionais mais lidos em todo o país, o que pode ser facilmente comprovado pelo número de edições dos seus romances e, também, pelas estatísticas de bibliotecas, notadamente as circulares; segundo, o fato de a este prestígio permanente, de caráter popular, não corresponder nem mesmo o simples interesse da grande maioria dos nossos intelectuais. (COUTINHO, 1986, p. 251).

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Tendo por base a importância de sua obra para o período e para a história da literatura brasileira, foi tema desta pesquisa dois de seus principais romances, O Guarani (1857) e Ubirajara (1874). Este dois textos representam obras importantes para leitura das imagens da natureza e para a construção da identidade nacional.

É importante notar que o estudo da historiografia literária brasileira demonstra um desconhecimento por parte da crítica do final do século XIX do papel que a obra alencariana alcançou diante do processo de elaboração nacional. Na verdade, percebe-se um paradoxo entre o comportamento do leitor e dos críticos.

A obra do escritor sempre foi tratada pela história literária brasileira de maneira controversa. Se por um lado o sucesso junto aos leitores o manteve entre um dos autores mais lidos no país, por outro a crítica das suas publicações tratou a produção do escritor cearense de maneira indiferente. Enquanto os leitores iam diariamente aos jornais em busca dos capítulos publicados nos folhetins, a crítica adotava uma posição de silêncio.

Em sua autobiografia literária, Como e por que sou romancista (1893), o escritor cearense irá manifestar todo o seu desapontamento em relação à recepção das suas obras nos veículos de informação mais populares da época, os jornais.

Durante todo esse tempo e ainda muito depois, não vi na imprensa qualquer elogio, crítica ou simples notícia do romance, a não ser uma folha no Rio Grande do Sul, como razão para a transcrição dos folhetins. Reclamei contra esse abuso, que cessou; mas posteriormente soube que se aproveitou a composição já adiantada para uma tiragem avulsa. (ALENCAR, 2008.)

O mesmo Alencar contestará a comparação que os críticos do período fizeram de O Guarani com a obra The Last of the Mohicans (O último dos moicanos) do americano James Fenimore Cooper. À comparação, o escritor responderá na sua autobiografia literária de maneira irônica e agressiva.

Disse alguém, e repete-se por aí de oitiva que O Guarani é um romance ao gosto de Cooper. Se assim fosse, haveria coincidência, e nunca imitação; mas não é. Meus escritos se parecem tanto com os do ilustre romancista americano, como as várzeas do Ceará com as margens do Delaware. (ALENCAR, 2008.)

A aproximação foi vista como ofensa ao escritor, isto porque, para os artistas do

romantismo, a idéia de imitação ganhava contornos sombrios, a partir do momento em que a obra literária deveria ser fruto de uma inspiração pessoal, subjetiva e criativa. A explicação para isso, segundo Adilson Citelli, está na atitude de quebra do rigor das regras e afirmação da liberdade de criação. “[...] os românticos passaram a exercitar a subjetividade, creditando à inspiração e ao gênio a missão de separar um mero imitador de modelos de um original inventor de objetos artísticos” (CITELLI, 2002, p. 75). Em trecho posterior Alencar irá manifestar a sua indignação, acusando a crítica literária do período de preguiça e ausência de métodos analíticos.

O que se precisa examinar é se as descrições d’O Guarani têm algum parentesco ou afinidade com as descrições de Cooper, mas isso não fazem os críticos, porque dá trabalho e exige que se pense. Entretanto basta o confronto para conhecer que não se parecem nem no assunto, nem no gênero e estilo. (ALENCAR, 2008.)

Estudioso do Romantismo brasileiro, Afrânio Coutinho corrobora Alencar ao

afirmar que as apreciações de boa parte das análises feitas na segunda metade do século

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XIX se fundamentavam em referências à vida pessoal do escritor cearense. “A crítica em relação a Alencar raramente saiu do plano do sentimento, ou da consideração dos fatos da biografia, em vez da compreensão da obra, atraída por certos traços do temperamento e do caráter complexo do escritor” (1986, p. 252). Coutinho, citando Nélson Werneck Sodré, pontuará que à medida que os romances alencarianos penetravam na massa de leitores, e já de leitores de gerações diferentes, foram sendo esquecidos pela academia.

Ao contrário, teria sido ela própria (sua formação literária clássica e romântica), conjugada à observação da história brasileira, que levou Alencar a essa posição singular para a sua época, de perfeita consciência da necessidade de formar uma literatura nacional, não apenas no conteúdo, mas na forma, o que é particularmente significativo. (COUTINHO, 1986, p. 253)

Já Maria Cecília Boechat (2003) explica que para entender melhor a obra de

Alencar é preciso recuperar “a presença de uma forte autoconsciência ficcional, reflexiva, com a qual, ao contrário do que sempre quisemos admitir, o texto de Alencar estabelece sua relação crítica consigo mesmo, com o leitor e com a realidade brasileira” (BOECHAT, 2003, p. 15).

Tal tarefa já tinha sido proposta por Antonio Candido ao entender o período romântico ligado “à vontade consciente de definir no Brasil uma literatura independente, exprimindo a seu modo os temas, problemas e sentimentos da jovem nação” (CANDIDO, 1981, p. 303).

De acordo com Candido, o romantismo brasileiro “foi o episódio do grande processo de tomada de consciência nacional, construindo um aspecto do movimento de independência. Afirmar a autonomia no setor literário significava cortar mais um liame com a mãe pátria [Portugal]” (1981, p. 303). É dentro desse contexto, que Alencar irá despontar como o maior símbolo do engajamento que os escritores do período mantiveram com o objetivo de formação nacional.

É, então, no dizer de Alfredo Bosi que “o lugar de centro [no romantismo], pela natureza e extensão da obra que produziu, viria a caber com toda justiça a José de Alencar” (1994, p. 134-140). Bosi confirma a importância já apontada por Candido, situando o escritor como mestre superior na arte literária romântica.

Já ouve quem observou o infantilismo das construções alencarianas. Valor é o que aparece como valor. [...] De que “realismo” se trata aqui? É melhor falar do pitoresco ou na curiosidade do pormenor brilhante, destinados romanticamente a criar um halo de diferença em torno dos protagonistas. Mas descontada a intenção, Alencar, ao descrever a natureza e os ambientes internos, é tão preciso como qualquer prosador do fim do século. É claro, há mais participação emotiva no ato de descrever no romântico que no naturalista. (BOSI, 1994, p. 140)

É diante desse quadro de indiferença e louvor que o pesquisador que deseja adentrar no mundo ficcional de Alencar se encontra. Ao mesmo tempo em que busca entender a obra como fenômeno histórico, ou seja, dentro de um contexto de produção e recepção, busca-se também compreender o texto literário como um produto para além da história e próximo do leitor e da crítica. Se Alencar se posiciona dentro do Romantismo brasileiro como um ponto de destaque, não tão ingenuamente o coloca a

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crítica atual ao relatar e explicar um tecido social maior no qual o escritor cearense não é só peça formadora, mas também, um idealizador da imagem de nação brasileira.

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METODOLOGIA

Para tratar a questão da nação, foi feita pesquisa bibliográfica. Através da consulta aos acervos e bibliotecas do país, levantou-se um conjunto de trabalhos que contribuísse para a análise crítica da questão da construção da identidade nacional.

Como este tema se reveste de interesse para diversas áreas do saber científico, a abordagem adotada foi interdisciplinar, pois uniu contribuições advindas da História, da Sociologia, da Antropologia e da Filosofia. O caráter interdisciplinar se fundamenta na necessidade de abranger ao máximo o campo de trabalho ao adotar uma perspectiva mais totalizadora do problema de pesquisa. O foco interdisciplinar mostra as diversas nuances possíveis de análise da questão da nação e da memória brasileira, revelando o conflito e/ou convergência de idéias, comum ao conhecimento científico contemporâneo.

Acrescenta-se ainda a esta abordagem a leitura da fortuna crítica do romantismo, incluindo estudos brasileiros, europeus e americanos. O método foi o crítico-analítico, procurando ser o mais abrangente possível em relação à fortuna crítica do corpus abordado.

Em termos de etapas das atividades desenvolvidas para cumprimento desses objetivos, usou-se num primeiro momento o levantamento bibliográfico acerca de questões relacionadas aos conceitos de nação, nacionalismo, tradição.

Em um segundo momento, foi realizada a etapa de leitura e fichamento dos livros de ficção que são o ponto de partida para a discussão sobre construção da identidade nacional, através dos ideais românticos da segunda metade do século XIX.

Concomitante a conclusão dessas etapas, foi dado início a formação de um núcleo de discussões sobre os trabalhos desenvolvidos no final do século XIX e ao longo do século XX acerca dos temas nação e nacionalismo. Os debates proporcionam o confronto de idéias através da oposição e aproximação dos conceitos de nação e nacionalismo.

Concluída essa fase de análise e discussão da bibliografia, foi iniciado o processo de escrita dos trabalhos. É nesse momento, que a abordagem interdisciplinar possibilitou, através do método de análise-crítica, a disponibilidade de temas e propostas para defesa ou contestação de pressupostos teóricos apontados pelos estudiosos. Foi do encontro das diferentes perspectivas que se fez surgir uma outra forma de trabalhar com a questão do papel dos escritos românticos para construção de uma idéia de nacionalidade através das imagens da natureza.

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RESULTADOS E DISCUSÕES

O estudo das imagens da natureza para construção de uma idéia de nacionalidade brasileira passa pelo levantamento bibliográfico acerca dos conceitos de nação, nacionalidade, memória, estado, civilização e barbárie, discutidos por pesquisadores de vários países em períodos históricos distintos.

O objetivo do levantamento se fundamenta na necessidade de verificação da bagagem de estudos já estabelecidos ao longo do tempo sobre o tema em questão. Isto porque o trabalho do pesquisador depende do contexto de produções já arquivadas na cultura humana como modelos de discussões que delimitam os problemas, sugerindo soluções.

O estudo dos conceitos de nação, nacionalidade, estado, civilização e memória abrangem as possibilidades de abordagem do objeto de pesquisa, uma vez que fornecem elementos necessários a uma análise mais ampla da questão literária dentro de um estudo interdisciplinar que engloba ciências como a Antropologia, a Política, a História, a Sociologia e a Filosofia.

Estabelecido este enfoque interdisciplinar, num primeiro momento, foram analisados aspectos sobre os conceitos de nação e nacionalidade para os principais pesquisadores de nosso tempo. Entre eles, ganham destaque os trabalhos desenvolvidos por Joseph Ernest Renan, Partha Chatterjee e Homi K. Bhabha.

Em seu artigo “¿Qué es una nación?”, Renan pontua que há dois grandes problemas para o estudo do conceito de nação. Segundo ele, definir nação de acordo com a comparação com os impérios da Antiguidade Clássica (Grego, Romano, Egípcio e Babilônico, por exemplo) é um erro, pois o conceito de nação é algo bastante novo para a História, (RENAN, 2000, p. 54).

Outro grande problema é a definição de nacionalidade com base em critérios etnográficos e lingüísticos. Para Renan (2000, p. 58-59) também fatores como permanência de uma dinastia no poder central, a raça dos habitantes de uma região, a língua comum falada, a religião predominante e os aspectos da configuração espacial não servem de parâmetros para definição do que seja uma nação como se entende hoje.

Renan (2000, p. 60) explica que no caso das dinastias, uma conquista antiga aceita e esquecida depois pela massa do povo não garante a coesão social e o processo de identificação entre os membros de uma comunidade. Ele cita para tanto o caso da Suíça e dos Estados Unidos que são formados por conglomerados, sem nenhuma fase dinástica. Algumas nações formadas por dinastia podem se separar se esta dinastia deixar de existir.

Quanto ao aspecto étnico, Renan (2000, p. 60-61) coloca que, nas tribos e cidades antigas, a raça exercia um papel importante, porque essas comunidades eram apenas uma extensão da família. Mas nas nações modernas as considerações etnográficas não têm sentido de ser: a França é céltica, ibérica e germânica. As nações européias são essencialmente mescladas. Não há uma raça pura, ausente da mistura étnica ocorrida ao longo da história da humanidade.

Outro ponto importante defendido pelo historiador é o fato de a língua também não ser aspecto de diferenciação das nações modernas. Para Renan,

La lengua invita a reunirse; pero no fuerza a ello. Estados Unidos e Inglaterra, América española e Espana, hablan a misma lengua y no forman uma sola nación. Pero el contrario, Suiza, tan bien hecha, puesto que há sido hecha por ele asentimiento de sus diferentes partes, cuenta três o cuatro lenguas. (RENAN, 2000, p. 62)

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Assim como a língua, a raça, a permanência de uma dinastia no poder, a religião não pode garantir a união de um grupo em uma configuração que possa se chamar de nação. O historiador francês (RENAN, 2000, p. 63) comenta que, na origem, a religião mantinha a existência mesma do grupo social, porque era uma extensão da família; os ritos da religião eram os ritos da família. Mas nas nações modernas as massas crêem de maneira diferente. Cada qual crê e pratica ao seu modo o que quer e como quer. Não há mais uma religião do Estado.

O último mito acerca do que define uma nação são os aspectos geográficos. Renan vai se opor a este critério por defender a tese, como base em exemplos concretos, de que determinada configuração espacial não pode funcionar como elemento de união entre membros de um grupo social. E, embora defenda o papel definição de limites naturais para a constituição de Estados nacionais, Renan (2000, p. 64), vai contestar este critério por entender que o que vale como elemento unificador é algo de caráter social e não natural. Para ele,

No, la tierra no hace a una nación en mayor grado que la raza. La tierra da el substratum, el campo de lucha y de trabajo; el hombre pone el alma. [...] Una nación es un principio espiritual resultante de complicaciones profunas de la historia; es una família espiritual y no un grupo determinado por la configuración del suelo. (RENAN, 2000, p. 64)

Colocar como esse princípio espiritual, o conceito de nação, segundo o

historiador francês (RENAN, 2000, p.65), depende em seu processo formador, então, de dois fatores fundamentais: o esquecimento da violência da origem e o grau de semelhança entre os indivíduos. Isto porque, para a formação de uma nação, é preciso que a violência que ocorreu no início do processo colonizador seja esquecida a fim de que se evitem conflitos entre as futuras gerações de colonizado e colonizador. O esquecimento ainda favorece o agrupamento de pessoas de acordo com a história que partilharam no decorrer dos séculos de colonização e massacre.

Renan valoriza este dois aspectos para propor os dois fundamentos para concretização do que viria a ser este princípio espiritual. O primeiro dos aspectos está no passado, pois “o sufrimento em común une más que el gozo. En cuestión de recuerdos nacionales más valen los duelos que los triunfos, pues ellos imponen deberes; piden esfuerzos em común” (RENAN, 2000. p. 65).

O segundo está demarcado no presente, no cotidiano. O historiador francês vai defender a tese de que é necessária uma espécie de plebiscito diário, onde todos os membros reconhecem a união e a afirmam todos os dias. “El consentimento, el deseo claramente expresado de continuar la vida común. La existencia de una nación es (perdónenme esta metáfora) un plebicito de todos os días, como la existencia del individuo es uma afirmación perpertua de vida” (RENAN, 2000. p. 65).

É dentro deste contexto que as palavras dele apontam para importantes características do nacionalismo para o enfoque deste trabalho. A primeira é a importância do nacionalismo para a garantia da liberdade dos seus habitantes, uma vez que ela estaria perdida se o mundo tivesse apenas uma lei e um dono. O segundo ponto é o que Renan vai chamar de serviço à obra comum da civilização humana por suas faculdades diversas e com freqüência opostas. E, por fim, a consciência moral que fortalece o sentimento coletivo através do sacrifício da individualidade para o bem da comunidade.

Outro importante estudioso do conceito de nação e nacionalismo abordado nos núcleos de debates foi o antropólogo Partha Chatterjee (CHATTERJEE, 2000, p.123-164). Diferentemente de Renan, que eleva a história à condição de princípio formador

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das nações, Chatterjee aborda princípios culturais importantes para um diálogo maior com o contexto brasileiro.

Chatterjee (2000, p. 123) estabelece um processo de diferenciação entre os nacionalismos ocidental e oriental. Para ele ainda que exista o sentimento de que a nação está em desvantagem em relação às outras, as nações ocidentais estão, entretanto, culturalmente equipadas para extirpar estas deficiências. A origem dessa forma de nacionalismo está na Europa (França e Grã-bretanha), pois se relaciona a um conjunto de conceitos sobre o homem, os costumes e a sociedade européia.

Já o nacionalismo oriental, surge nos povos recentemente levado por uma civilização estranha a eles e cujas culturas ancestrais não se adaptam ao êxito e a excelência pelos padrões em crescente dominância e cosmopolitas. Há um esforço de reequipar culturalmente a nação para transformá-la, não imitando a cultura estranha, posto que perderia sua identidade, mas adaptando-se aos ideais de progresso, e respeitando suas peculiaridades. É o que Chatterjee vai chamar de um “intento contradictorio imitativo,” (CHATTERJEE, 2000, p. 124).

Como de enfoque diferente, o antropólogo indiano vai definir nacionalismo como “un marco ideológico racional para la realización de fines políticos altamente loables. Pero no es ésa la manera en que el nacionalismo ha hecho sentir su presencia en buena parte de la historia reciente.” (CHATTERJEE, 2000, p. 125). O que Chatterjee explica é que, em seus aspectos essenciais, o nacionalismo representa uma tentativa de atualizar em termos políticos o desejo universal pela liberdade e pelo progresso.

Foi compreendendo este fenômeno que o estudioso indiano irá mais uma vez redefinir seu conceito de nação com base em aspectos antropológicos. Chatterjee (2000, p.130), concordando com o que pontua Geller, defende a idéia de que o nacionalismo passa a ser, essencialmente, a imposição geral da alta cultura sobre a sociedade, cujas culturas baixas anteriores se tem imposto sobre as vidas da maioria e em alguns casos sobre a totalidade da população. Isto significa a difusão generalizada de um idioma, mediado pela escola e supervisionado pela academia, codificado para as requisições de uma comunicação tecnológica e burocrática razoavelmente precisa.

O antropólogo indiano, contudo, não esconde os pontos problemáticos do nacionalismo ideológico como fez Renan. Ele vai definir esta forma de abordagem do sentimento nacional como uma das “exportación más perniciosa de Europa”.

El nacionalismo como ideologia es obtuso, irracional, lleno de ódio y destructivo. No es um producto auténtico de ninguna de las civilizaciones no europeas que, en cada caso particular, lo reclaman como su herencia clásica. (...) No es hijo da razon o la liberdad sino de lo opuesto: del ferviente romanticismo, del misianismo político cuya inevitable consecuencia es la aniquilación de la liberdad. (CHATTERJEE, 2000. p. 132) O trabalho de Chatterjee ganha um destaque especial por ser feito por um

estudioso fora do eixo europeu. Por estar fora deste eixo, ele pode apontar para outros aspectos do fenômeno de constituição do nacionalismo a partir da experiência de países colonizados, como é caso do Brasil.

Outro importante estudioso indiano ganhou destaque nos debates e discussões acerca dos princípios culturais e literários para formação de uma identidade nacional. Homi K. Bhabha (2000, p. 211-219) compreende a idéia de nação relacionada à de narração.

Em seu trabalho, Narrando la nación, Bhabha (2000, p. 211-219) defende a tese de que as nações, como as narrações, possuem as mesmas origens. O que significa dizer

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que a nação pode ser compreendida como uma contínua narrativa do progresso nacional.

Para tanto, o também antropólogo indiano, propõe o conceito de ambivalência que surge de uma crescente consciência de que, apesar da certeza com que os historiadores escrevem sobre as origens da nação como um signo da modernidade da sociedade, a temporalidade cultural da nação escreve uma realidade social muito mais transitória. Citando trecho do livro Comunidades Imaginadas de Benedict Anderson, Bhabha vai defender a tese de que “el nacionalismo debe ser entendido no agrupándolo com ideologias políticas conscientemente adoptadas sino com los grandes sistemas culturales que lo precedieron, de los cuales − así como contra los cuales − el nacionalismo emergió a la existencia” (BHABHA, 2000, p. 212).

É partindo deste pressuposto antropológico que Bhabha (2000, p. 213) explica que narrações têm uma relação muito próxima das nações, através de duas características principais: primeiro, o fato de “encontrar la nación como está escrita muestra la temporalidad de la cultura e la consciencia social”, e o segundo que aponta para a característica de as narrativas contestarem a história evolutiva das nações, pois as histórias tradicionais não tomam a nação pela sua própria palavra, mas sim, na maior parte, assumem que o problema radica na interpretação dos “acontecimentos” que têm certa transparência ou visibilidade privilegiada.

Bhabha vai, a partir disso, declarar que a nação é um processo, não um produto acabado, fruto da história ou da cultura. “la historia puede estar hecha a medias porque está en el proceso deser hecha, y la imagen de la autoridad cultural puede ser ambivalente porque está atrapada, inciertamente, en el acto de componer uma imagen poderosa” (BHABHA, 2000, p. 214).

Outro conceito importante para o contexto desta pesquisa é a análise que o antropólogo indiano faz ao definir o que ele chama de In-Betwenn ou entre-lugar (na tradução espanhola). Este conceito aponta para uma união de culturas e não uma divisão estaque entre a cultura nacional e a cultura estrangeira. Para Bhabha (2000, p. 215), a localidade das fronteiras culturais não é unificada, nem unitária na relação consigo mesma, nem deve ser vista simplesmente como outra em relação com o que está fora ou mais além dela. É nesse “entre-lugar” que os significados de autoridade cultural e política são negociados. Também está relacionado à posição mediadora entre culturas diferentes, um fenômeno que ocorre com os intelectuais (pós-colonialistas) localizados entre as metrópoles e o Terceiro Mundo.

Após citar exemplos de ficções fundadoras, Bhabha ainda afirmará que “en cada una de estas ‘ficciones fundacionales’ los orígenes de las tradiciones nacionales se vuelven tanto actos de filiación y estabelecimiento así como momentos de desaprobación, desplazamiento, exclusión y contienda cultural” (BHABHA, 2000, p. 216).

O último ponto apresentado por Bhabha fornece elementos para uma nova leitura das questões do nacionalismo como mostrado no romantismo brasileiro. Esse novo ponto delineia um quadro de entrelaçamento entre o centro e a periferia, entre a metrópole e a colônia, entre Portugal e o Brasil.

América lleva a Africa; las naciones de Europa y Asia se encuentran em Australia; los márgenes de la nación desplazan el centro; los pueblos de la periferia regresan a reescribir la historia y la ficción de la metrópolis. La historia insular es narrada desde el ojo de um aeroplano que se vuelve esse “ornamento” que mantiene al público y al privado en suspenso. (BHABHA, 2000, p. 218)

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Esse papel importante de releitura da história nacional, através da narração, foi importante para o fornecimento das bases para o trabalho de interpretação do processo de construção de uma identidade nacional, empreendida pelos escritores românticos da primeira metade do século XIX, a partir da criação de uma mitologia indígena particular e da idealização dos aspectos da natureza brasileira, como propôs José de Alencar com os romances Ubirajara e O guarani.

Outro trabalho importante para a compreensão do fenômeno de construção de uma imagem de nação foi desenvolvido por Eric Hobsbawn e Terence Ranger (1984) que entendem por tradição inventada um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas. Para os autores, “tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado” (HOBSBAWN; RANGER, 1984, p. 9).

De acordo com os historiadores, não há lugar nem tempo investigados onde não tenha ocorrido a invenção de tradições. Contudo espera-se que ela ocorra com maior freqüência quando transformações rápidas da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para os quais essas tradições foram feitas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis.

Neste contexto, é necessário fazer a diferenciação entre tradição inventada e convenção ou rotina. Enquanto as tradições inventadas possuem função simbólica ou ideológica, a rotina ou convenção é um processo natural, pois é comum que qualquer prática social que tenha de ser muito repetida tenda a gerar certo número de rotinas. Possui função técnica, prática e não ideológica ou simbólica.

Os autores ainda afirmam que muitas instituições políticas, movimentos ideológicos e grupos, comuns entre os intelectuais desde a época romântica, inclusive o nacionalismo, sem antecessores, tornaram necessária a invenção de uma continuidade histórica, por exemplo, através da invenção de um passado antigo que extrapole a continuidade histórica real seja pela lenda, José de Alencar com Ubirajara e Iracema, seja pela invenção, como em O guarani. Símbolos e acessórios inteiramente novos foram criados como parte de movimentos e Estados nacionais, tais com o hino nacional, bandeira nacional ou a personificação da “Nação”, por meio de símbolos ou imagens oficiais ou não-oficiais, o índio e a natureza brasileiros, por exemplo.

Para Hobsbawn e Ranger, as tradições inventadas podem ser de três tipos: aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais, aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade e aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de idéias, sistemas de valores e padrões de comportamento.

Andreas Huyssen (2000), teórico alemão, afirma que essa preocupação com a memória não é um fenômeno circunstancial, reflexo do fin de siècle XIX, mas um processo que no pós-guerra alcançou o seu auge com a comercialização crescente e bem sucedida da Indústria Cultural do Ocidente. Huyssen corrobora com a tese dos historiadores ao afirmar que:

O real pode ser mitologizado tanto o mítico pode engendrar fortes efeitos de realidade. Em suma, a memória se tornou uma obsessão cultural de proporções monumentais em todos os pontos do planeta. (HUYSSEN, 2000, p. 16)

Sua principal tese explica que essa sedução pela memória é um processo que se caracteriza pela volta ao passado, buscando assumir a responsabilidade pelos fatos

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ocorridos, contrastando com a preocupação com o futuro que marcou o início do século XX que buscava garantir o progresso. Na opinião do teórico americano, há uma tentativa de combater o medo e o perigo do esquecimento com estratégicas de sobrevivência de rememoração pública e privada. “Quanto mais nos pedem para lembrar, no rastro da exploração da informação e da comercialização da memória, mais nos sentimos no perigo do esquecimento e mais forte é a necessidade de esquecer” (HUYSSEN, 2000, p. 20). A obra de Alencar apresenta também esse esforço de fixação de uma memória coletiva, como reflexo de uma preocupação com a identidade nacional. Nesse sentido, o escritor soube compreender a transitoriedade desse fenômeno que nas palavras de Hyussen é “notoriamente não confiável e passível de esquecimento; em suma é humana e social” (2000, p. 37). O escritor cearense soube compreender bem o processo de formação de uma identidade nacional que estava se delineando no quadro político com a independência do reino português e no quadro cultural com a ascensão do romantismo e suas propostas que destacavam símbolos nacionais como representantes da própria nação. Por meio de sua obra, Alencar (2008) procurava defender pressupostos intelectuais sobre como a “nossa ainda infante literatura” poderia contribuir com o objetivo de elaboração de uma identidade brasileira.

Tendo em vista esse quadro, os elementos que compõem a tônica romântica do escritor cearense não podem ser vistos fora desse projeto político. Segundo Citelli, o papel central que a paisagem natural tem nas obras indianistas do autor, por exemplo, não foi acidental, mas fruto de um posicionamento consciente cujo “objetivo é o de enlevar, pela natureza, a própria nacionalidade” (CITELLI, 2002, p. 79).

É preciso considerar, particularmente nas nações recém-independentes, o fato de que exaltar a natureza passou a ser sinônimo de afirmação nacional; de certo modo, o romântico confundiu os conceitos de terra e nação, a dimensão física e a dimensão política. Se a terra era boa, a nação também teria de ser. (CITELLI, 2002, p. 79)

A escolha da figura do indígena é outro exemplo desse posicionamento. Dentro dos parâmetros do romantismo europeu, a literatura deveria eleger um herói, não só para ser utilizado como pano de fundo para um enredo de louvor à figura que ele representava, mas também para servir de representante de sua comunidade específica. O herói romântico é o modelo que, ao ser exaltado, engrandece a história de glórias de uma nação. No caso do Brasil, a ausência de um passado medieval, habitado por cavaleiros corajosos e damas em perigo, surge para o escritor como um problema. A recente nação brasileira não possuía em seu acervo cultural a presença de tais heróis medievais. Alencar compreendeu, então, que era preciso forjá-los, mas para isso seria preciso escolher entre as três principais figuras da formação étnica do povo brasileiro: o branco, o negro e o índio.

O branco representava ao mesmo tempo o espírito de aventura e a cobiça dos bandeirantes. O negro, por sua vez, era em pleno período escravocrata símbolo da servidão. Já o índio era, na visão do escritor, o modelo de luta em defesa da posse das suas terras. Diante das três opções, Alencar escolhe o índio, mas não um qualquer. Ele elabora um indígena com corpo selvagem, mas alma de cavaleiro cristão. O resultado dessa escolha lhe rendeu três romances: O guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874).

As três obras traçam em conjunto um passado histórico idealista da recente nação. Ubirajara narra o momento anterior à chegada do conquistador branco, período

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em que os indígenas dominavam o solo nacional. Iracema, por sua vez, representa o conflituoso encontro entre esses dois povos e a submissão dos antigos senhores das florestas brasileiras. Já O guarani é a narração de um tempo posterior, quando submetido ao jugo português, o índio desponta como herói convertido ao cristianismo, portador de estatura moral, abnegação e heroísmo.

Esse caráter ideal não é construído pelo escritor romântico sem uma clara intencionalidade. O mesmo Alencar irá admitir posteriormente, em sua autobiografia que,

N’O guarani o selvagem é um ideal, que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça. (ALENCAR, 2008.)

Esse caráter construído conscientemente, contudo, não anula a capacidade de servir de elemento da composição da imagem nacional. Ao contrário, é justamente por ser idealizado que esse herói ganhará o leitor. O autor tinha o objetivo de fazer com que o seu público buscasse no índio o próprio reflexo de sua identidade, reconhecendo-se nele.

O GUARANI

Publicado primeiramente nos folhetins do Diário do Rio de Janeiro, entre os meses de fevereiro e abril de 1857, O guarani é um dos romances que toma para si a responsabilidade de promover uma cultura literária de expressão nacional. Seu enredo coloca o leitor diante das figuras do índio Peri e da donzela branca Cecília. Reconhecido por D. Antônio de Mariz, pai de Cecília, Peri é louvado antagonicamente pela oposição que se estabelece entre sua imagem selvagem e seu nobre espírito.

É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenha visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavaleiro português no corpo de um selvagem! (ALENCAR, 2006, p. 45)

A relação entre o indígena e a moça é de servidão cultuada. Para Peri, Ceci (nome dado pelo índio a Cecília) é a representante da Virgem Maria, por isso o mais vago desejo é entendido como uma ordem a ser cumprida. Esse caráter cristão do indígena será apresentando ao longo da obra por referências diretas e indiretas.

Em episódio narrado no capítulo A índia (ALENCAR, 2006, p. 74), Peri descobre o assassinato de uma filha aimoré pelo primogênito de D. Antônio de Mariz, o fidalgo D. Diogo. Este é o motivo para a cruel vingança que a tribo preparará para destruir o paquequer, a fortaleza habitada pela família portuguesa. O inimigo externo, contudo, não era o único. Dentre os seus próprios servos, D. Antônio ainda lidaria com a ambição e lasciva do ex-frei, agora apenas conhecido como o italiano Loredano, cujo objeto de desejo é a posse da jovem Ceci. Além de Peri, Cecília também é cortejada pelo nobre cavaleiro D. Álvaro, que por sua vez é a paixão secreta de Isabel, filha bastarda de D. Antônio. Dentre os três pretendentes, Alencar elege o herói selvagem para ser o escolhido da inocente e pura Ceci, justificando sua decisão com base na dignidade do sentimento do índio.

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Em Loredano, o aventureiro de baixa extração, esse sentimento era desejo ardente, uma sede de gozo, uma febre que lhe requeimava o sangue [...]. Em Álvaro, o cavaleiro delicado e cortês, o sentimento era afeição nobre e pura, cheia de graciosa timidez que perfuma as primeiras flores do coração [...]. Em Peri o sentimento era um culto, espécie de idolatria fanática, na qual não entrava um só pensamento de egoísmo [...]. Loredano desejava; Álvaro amava; Peri adorava. (ALENCAR, 2006, p. 51-52)

Descoberto o seu plano de rapto de Ceci, Loredano é condenado e morto. Álvaro reconhece o amor devoto de Isabel e, na batalha contra os Aimorés, morre abraçado a ela. Na mesma batalha, o paquequer é destruído. Os únicos sobreviventes do conflito são Peri e Cecília. Salva, a heroína é levada para viver junto ao índio em sua tribo, a dos guaranis. Imagens da natureza em O guarani O que se apreende da caracterização do selvagem alencariano é uma imagem integradora em que o ser humano é parte constitutiva da própria natureza. Peri não é um homem, no sentido de sujeito civilizado, mas é antes um animal, membro das florestas e não da roda da sociedade. Essa tese de reconhecimento de uma ligação entre homem-natureza, muito em voga no período, foi defendida por Johann Gottfried von Heder que em seu discurso sobre nacionalismo, “Genio nacional y medio ambiente” do final do século XVIII, afirmará que “nigún hombre, por lo demás, es uma sustancia independiente, sino que se encuentra em constante intercomunicarción com todos los elementos de la naturaleza,” (HEDER, 2000, p. 28). Essa aparente imagem de integração, contudo, cai se observada dentro do contexto geral da obra. O romance não é formado por imagens da natureza composta por elementos unificadores, puramente harmônicos. O que ocorre na descrição de Peri é apenas um fenômeno constitutivo de seu caráter ideal. Ele, na verdade, é uma exceção dentro da obra. Os demais indígenas são o contraponto do herói, a outra face da natureza, ainda oculta e temida. Os aimorés são descritos com características animalescas, reflexos de uma imagem de barbárie. Assim temos, ao mesmo tempo, uma imagem de natureza ligada à idéia de paraíso, integração e civilidade, e uma outra ligada à imagem selvagem, por vezes monstruosa e bárbara. Se temos o índio descrito como “um cavaleiro português no corpo de um selvagem”, nas palavras do patriarca fidalgo, temos também outras descrições que caminham em sentido oposto, aproximando as figuras indígenas a de monstros como ocorre com as descrições dos aimorés. “Os dentes agudos como presas do jaguar, já não tinham o esmalte que a natureza lhe dera; as armas ao mesmo tempo que instrumento da alimentação, o sangue os tingira da cor amaralenta que têm os dentes dos animais carniceiros,” (ALENCAR, 2006, p. 218). O diálogo que se estabelece entre essas duas imagens, a de Peri e a dos índios oponentes, é a própria dinâmica que emerge entre o processo civilizador e a barbárie. Como apontado por Norbert Elias (1993), o processo civilizador corresponde a uma mudança na conduta e sentimentos humanos no sentido de um maior controle das paixões que resulta numa crescente interdependência entre as pessoas. Segundo Elias (1993, p. 193-195), o controle exercido por terceiros, neste caso a família de D. Antônio, geraria um crescente autocontrole que classificaria as atitudes animalescas

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como vergonhosas. Alencar não só confirma essa tese, como também acrescenta que no caso brasileiro, esse processo de repressão dos sentimentos possui uma estreita ligação com a imposição do cristianismo, resultado da catequese do período colonial. Peri é um selvagem cristão. Esta é a maior diferença entre ele e os temíveis aimorés. Quando não caracterizado tipologicamente como seguidor da Igreja, Peri desponta quase que subliminarmente ligado à esfera religiosa por conceitos que agregam ao índio símbolos do culto, como ocorre no excerto seguinte, quando, prisioneiro, ele é cuidado pela mais formosa índia aimoré que o tenta seduzir.

Mas Peri, frio e indiferente, não se comovia, nem aceitava essa afeição passageira e efêmera que tinha começado com o dia e devia acabar com ele; sua idéia fixa, a lembrança de seus amigos, o protegia contra a tentação. (ALENCAR, 2006, p. 226)

Além da resistência ao pecado, símbolo da fé cristã, o selvagem possui um olhar que reconhece o mundo como efêmero e passageiro, olhar que representa a crença na vida eterna alcançada com a salvação. No caso em questão, sua abnegação religiosa que como um mártir se sacrifica pelo próximo, o leva a este ato de resistência em defesa do eterno, mostrando-se como um exemplo de bravura, como um verdadeiro herói medieval.

Vale ressaltar que o fator incivilizado dos inimigos também se relaciona a ausência de religião: “[...] o índio [Peri] conhecia a ferocidade desse povo [os aimorés] sem pátria e sem religião [...]” (ALENCAR, 2006, p. 76). Nesta última citação há dois pontos que merecem ser desenvolvidos em maior profundidade. O primeiro é a ausência da cultura cristã, emergindo no texto como resultado de uma visão européia que defendia um esteriótipo de índio como seres sem experiências transcendentais, metafísicas, e, por isso, ligados ao mundo efêmero e pecaminoso. E o segundo é o conceito ufanista de pátria cuja ausência representa nos aimorés a falta de um certo sentimento de irmandade entre eles e os demais habitantes de uma mesma terra.

Compreendendo essa distinção, o narrador de O Guarani se coloca numa postura de valorização desse caráter selvagem como libertador do indivíduo, que ausente das amarras sociais pode sentir livremente.

Na vida selvagem, tão próximo da natureza, onde a conveniência e os costumes não reprimem os movimentos do coração, o sentimento é uma flor que nasce como a flor do campo, e cresce em algumas horas com uma gota de orvalho e um raio de sol. (ALENCAR, 2006, p. 22).

O trecho acima exemplifica bem a aproximação que o texto alencariano possui em relação à obra de Elias. Em ambos, a barbárie é o local da ausência de repressão social. No caso do romance, essa ausência do olhar repressor da sociedade promove uma autêntica capacidade de amar, posto que os sujeitos estão libertos do peso da “conveniência” e dos “costumes”; o que corrobora a tese de que Peri, e não todo índio, apresenta o se que poderia chamar de verdadeiro sentir, em que verdadeiro representa o respeito aos impulsos sentimentais, sem a obediência aos padrões sociais. Só a partir desse ponto seria justificável entender, dentro dos padrões da sociedade burguesa da época, a ousadia do índio em querer amar a donzela branca. No trecho posterior, o narrador ainda contrapõe a vida selvagem à vida na sociedade de repressão: “Nos

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tempos da civilização, ao contrário, o sentimento torna-se planta exótica; que só vinga e floresce nas estufas, isto é, nos corações onde o sangue é vigoroso, e o fogo da paixão ardente e intenso” (ALENCAR, 2006, p. 225).

Ao definir a dinâmica sentimental nas esferas civilizada e incivilizada, o autor aponta para um processo de construção do enredo fundado em duas características opostas e, ao mesmo tempo, complementares. Ambas presentes na permanente negociação entre uma imagem nacional e outra estrangeira.

A explicação para esse fenômeno de elaboração a partir de uma ambivalência já foi postulado por Homi K. Bhabha (2000) que, citando Volosinov, afirma que o signo ideológico é sempre multiacentuado e com rosto de Jano. O pensador explora a ambivalência da linguagem na construção do discurso duplo da nação. “Esto convierte al familiar dios de dos caras en una figura de prodigiosa duplicidade que investiga el espacio de la nación en el proceso de articulación de elementos: donde los significados pueden ser parciales porque están in media res [...]” (BHABHA, 2000, p. 214).

É importante frisar que esse procedimento não é pontual na obra, antes perpassa todo o tecido narrativo. Não só os índios possuem essa dupla imagem, mas a própria natureza apresenta a mesma estrutura de duas faces. A primeira é a da mãe gentil, presente inclusive nos versos do Hino Nacional, e relacionada à figura do herói Peri, símbolo do bom selvagem, como ilustrado neste recorte: “Então tratou de recuperar as forças que havia perdido, e tudo quanto a floresta lhe oferecia de saboroso e nutriente serviu a este banquete da vida, em que o selvagem festejava a sua vitória sobre a morte e o veneno” (ALENCAR, 2006, p. 257) e a segunda é a do monstro, do local da barbárie, da incivilidade, relacionada aos demais indígenas da obra, como os Aimorés, símbolos dos selvagem inimigos do branco.

Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz; cobertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates, armados de grossas claves e arcos enormes, avançavam soltando gritos medonhos. [...] harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem reduzida à brutalidade das feras. (ALENCAR, 2006, p. 195)

A mesma imagem ambivalente pode ser vista na descrição do perfil feminino. Isabel, filha bastarda de D. Antônio, representará na obra a imagem da mulher nacional, nascida no calor da terra tropical. Diferentemente de Cecília que apresenta traços europeus, pré-moldados ao estereótipo da heroína romântica, a brasileira unirá em si mesma essa imagem dupla. Ao mesmo tempo, Isabel é desfalecida, em obediência ao modelo herdado pelo folhetim europeu, e vivaz, de riso provocador, uma expressão ambígua ligada à imagem de paraíso sexual, que chega até os dias atuais.

Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília; era o tipo brasileiro em toda a sua graça e formosura, com o encantador contraste de languidez e malícia, de indolência e vivacidade. Os olhos grandes e negros, o rosto moreno e rosado, cabelos pretos, lábios desdenhosos, sorriso provocador, davam a este rosto um poder de sedução irresistível. (ALENCAR, 2006, p. 33)

Não só o conjunto de oposição demarca esse momento de ambivalência, como também a própria união figurativa, em um mesmo personagem, de características antitéticas. Sensualidade e castidade são atributos inerentes à personagem. Ao contrastar languidez e malícia, indolência e vivacidade, o escritor estrutura uma mulher que, como

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o deus Jano, é de duas faces. A face da castidade voltada para a Europa cristã e a face sensual voltada para o Brasil selvagem.

Como Peri tem o seu contraponto nos índios Aimorés, a nobre heroína Cecília terá seu contraponto na jovem brasileira, Isabel. A filha morena de D. Antônio é lasciva, sensual, brasileira, significado que se aproxima de sua condição de bastardia, e Ceci, a européia casta, de tez branca e loura, como mostra o trecho abaixo:

Os grandes olhos azuis, meio cerrados, às vezes se abriam languidamente como para embeberem de luz, e abaixavam de novo as pálpebras rosadas. Os lábios vermelhos e úmidos pareciam uma flor de gardênia de nossos campos, orvalhada pelo sereno da noite; o hálito doce e ligeiro exalava-se formando um sorriso. Sua tez alva e pura como um floco de algodão, tingia-se nas faces de uns longes cor-de-rosa, que iam, desmaiando, morrer no colo de linhas suaves e delicadas. (ALENCAR, 2006, p. 32, grifo nosso)

Pela comparação entre as duas descrições, um ponto importante sobressai: o contraste existente entre os dois perfis femininos demarca o posicionamento de destaque na hierarquia do discurso narrativo de uma personagem, no caso Ceci, em detrimento de outra. Isabel é complexa, cheia de atributos opostos. Já a heroína é uma personagem simples, plana, formada por uma imagem de integração como a que ocorre com o seu par romântico, Peri. Por trás disso, Alencar elege a figura do modelo romântico europeu para a protagonista de sua narrativa, apontando para uma imagem de nação ligada ao ambivalente, fruto da mistura das etnias1. Ainda dentro dessa mesma problemática, um outro tipo de estrutura pode ser elencado para demonstrar essa ambivalência constitutiva do tecido narrativo. A própria natureza apresenta qualidades que, dependendo do olhar do personagem, podem ser de doçura ou de amargor. No caso do exemplo abaixo, em uma mesma cena, idéias opostas se unem no olhar de Isabel que contempla a mata brasileira e reconhece nela um caráter irônico e contraditório. “E uma coisa singular! Esse sol tão brilhante, essa luz esplêndida, esse céu azul, que aos outros reanimara, e que devia inspirar a Isabel o mesmo sentimento, pareceu-lhe ao contrário uma amarga ironia” (ALENCAR, 2006, p. 254).

Vale salientar que esse quadro corresponde a um posicionamento adotado pelo próprio escritor cearense; o que significa dizer que é intencional e minuciosamente trabalhado com o fim de elaborar um discurso nacional. Neste sentido, o próprio narrador de O guarani se coloca no discurso, por meio dos pronomes possessivos, para caracterizar-se como pertencente à nação brasileira. “Esta cesta continha todas as resinas aromáticas, todos os perfumes que dão as árvores de nossa terra; o anime da aroeira, as pérolas do benjoim, as lágrimas cristalizadas em embaíba, e gotas do bálsamo, esse sândalo do Brasil,” (ALENCAR, 2006, p. 26 - grifo nosso). O olhar do narrador também se permuta ora em um olhar de aproximação em que se reconhece como brasileiro, como no caso acima, ora em um olhar de estrangeiro que se espanta com a barbárie, riscos e perigos da vida selvagem, como se fosse um europeu que, ao chegar ao Brasil, assusta-se diante das inundações do rio Paraíba, como observado no trecho abaixo:

1 Leia-se por mistura étnica no caso alencariano, a do branco e do índio.

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Dir-se-ia que algum monstro enorme, dessas jibóias tremendas que vivem nas profundezas da água, mordendo a raiz de uma rocha, fazia girar a cauda imensa, apertando nas suas mil voltas a mata que se entendia pelas margens. Ou que o Paraíba, levantando-se qual novo Briareu no meio do deserto, estendia os cem braços titânicos, e apertava ao peito, estrangulando-a em uma convulsão horrível, toda essa floresta secular que nascera com o mundo. (ALENCAR, 2006, p. 292-293)

Mais uma vez a obra de Bhabha fornece bases para a discussão desse olhar duplo do narrador de O Guarani. Desta vez o teórico utiliza o conceito de in-between que em tradução aproximada significaria entre-lugar. É neste entre-lugar que o narrador se encontra, isto porque, “la ‘localidad’ de la cultura nacional no es unificada ni unitaria em relación consigo misma, ni debe ser vista simplesmente como ‘otra’ em relación com lo que está afuera o más allá de ella” (BHABHA, 2000, p. 215). Assim sendo, esta ambivalência no olhar do foco narrativo é também fruto do rosto de Jano, do problema que relaciona o dentro e o fora da localidade nacional.

Esta questão de localização do espaço da cultura nacional será desenvolvida a partir do enfoque que entende as fronteiras culturais como híbridas, pontos de encontro e negociação. É nesse momento que o ideal de uma nação como uma unidade fixa é derrubado para defesa da imagem de uma nação múltipla que dialoga com outros espaços. O que está em jogo, então, é a união das duas imagens de natureza como conseqüência de um conceito de nação em processo de construção.

A imagem de estranhamento em relação à barbárie, reflexo desse modo de olhar estrangeiro, o “fora”, pode ser explicada, de acordo com os estudos do teórico indo-britânico, como o surgimento dentro do próprio discurso nacional, objetivo de elaboração do escritor cearense, de um Outro. Nas palavras de Bhabha, “el ‘otro’ no está nunca afuera o más allá de nosotros; emerge necessariamente em el discurso cultural, cuando pensamos que hablamos más intimamente y autóctonamente ‘entre nosotros’” (BHABHA, 2000, p. 216).

Bhabha explica que o discurso nacional não é reflexo de uma única voz, mas de uma voz que se pensa detentora do falar e outra que emerge no próprio falar para indicar que o processo de identificação é também de alteridade. O outro, o estrangeiro, não está na Europa, mas no próprio discurso que elabora o nacional. Ou seja, Alencar fala do Brasil ao mesmo tempo articulando esse olhar nacional e esse outro que emerge com o espanto pela barbárie do mundo selvagem. Vacilando ora para uma das faces, ora para outra, o escritor constrói uma obra complexa, que aparentemente, faz da natureza um produto do ideal romântico de exaltação, mas também articula essa imagem como um objeto de diferenciação, ou de identificação pelo outro, pela alteridade.

Alencar é um escritor fruto da angústia da influência européia sobre o seu saber nacional. Ele não pode fugir ao espanto. Ao contrário, ele adere à perplexidade, provocando no leitor esse duplo olhar de aproximação e afastamento, nacional e estrangeiro, o dentro e fora do local da cultura. A verdade é que a nação não está concluída, mas em processo. A face de Jano é este rosto que olha do entre-lugar para o dentro, buscando nele o que há de diferente e semelhante com o fora.

Amado pelos leitores e rejeitado pela crítica do século XIX, José de Alencar se delineou no contexto da produção literária romântica como figura de destaque. Seu romance O guarani sobreviveu aos vários testes de recepção, várias gerações leram a obra, mostrando um valor que vai além do que está escrito.

No romance em questão o que está escrito é apenas uma parte da história a ser contada. Por trás das frases de efeito, da descrição primorosa, existe um debate

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intelectual de um escritor que buscar elaborar um tecido nacional, utilizando para isso a natureza como elemento de identificação comum.

UBIRAJARA

Publicado em 1874, Ubirajara é o último romance indianista de Alencar. Assim como a Iracema (1865), o autor o chamou de lenda. Esta definição não é ocasional, na verdade, o próprio escritor observa a semelhança que há entre as duas obras, chegando a afirmar na nota de advertência que o romance era “irmão de Iracema” (ALENCAR, 2005, p. 27).

Após 17 anos da publicação de O guarani (1857), Ubirajara é fruto de um outro contexto histórico, tanto na esfera política do Brasil como na própria vida do então deputado. O jovem Alencar que escreveu a história do romance entre Peri e Ceci deu espaço ao velho Alencar, mais maduro e moderado em suas ponderações.

Dois fatos são de destaque para a compreensão do que se processou nesse outro momento da vida do autor: primeiro, em 1870, o abandono da carreira política como reação ao sentimento de mágoa que cultivou pelo imperador D. Pedro II e, posteriormente, vítima de tuberculose, o começo dos primeiros impactos da doença, que na época era incurável e que o faria leiloar todos os seus bens para ir a Europa no ano de 1876, em busca de tratamento médico.

Alencar, mesmo afastado da política, manifestava todo o seu furor contra o imperador. Foi defensor da escravidão no Brasil, um ponto importante para explicação da escolha do escritor pela figura dos índios como heróis nacionais, em detrimento do negro escravizado.

Foi a questão dos escravos que mais aborrecimentos trouxe ao escritor. Manifestando-se contra a Lei do Ventro Livre (1871) tomava ele posição ao lado dos escravocratas, despertando a ira de grande contingente de pessoas que no país inteiro, consideravam a aprovação dessa lei uma questão de honra nacional. (FARACO, 2006, p. 18)

Sua obra é destinada para um público que já conhecia os primeiros romances indianistas do escritor. O próprio Alencar adverte o leitor em nota introdutória que as características apontadas por ele quanto à descrição indígena não é idealizada, mas resultado de um olhar que assim como em O Guarani procura dignificar os antigos habitantes do solo nacional.

Quem por desfastio percorrer estas páginas, se não tiver estudado com alma brasileira o berço de nossa nacionalidade, há de estranhar entre outras coisas a magnanimidade que há ressumbra no drama selvagem a formar-lhe o vigoroso relevo. (ALENCAR, 2005, p. 27)

Ubirajara é resultante desse outro momento na vida do escritor e no tecido social brasileiro. Em relação às três obras indianistas, o romance está mais próximo a Iracema (1865) do que a O guarani (1857). Contudo, esse afastamento temporal não significa uma ausência de pontos de encontro, ao contrário, os três textos formam juntos um passado mítico-poético da nação brasileira. Ubirajara é fruto do esforço consciente

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de elaboração de uma memória anterior à história do país, período em que a terra que seria colônia de Portugal era dominada pelas tribos indígenas. Imagens da natureza em Ubirajara

Assim como em O Guarani, a imagem do herói Ubirajara é composta por uma

idéia de integração relacionada à harmonia existente entre o homem e a natureza. Mas ao contrário do que ocorre com o primeiro romance indianista de Alencar, Ubirajara não é cristão, tampouco há o encontro ou convívio entre branco e índio, elemento narrativo explorado tanto em O guarani como em Iracema.

Por se referir a um passado anterior à história oficial da colônia, Ubirajara é um construto mítico, uma tentativa de elaboração de um herói que seria temporalmente semelhante ao do medievo europeu. Enquanto na Europa medieval o cavaleiro era símbolo de coragem e valentia, no que futuramente seria o Brasil, no mesmo período, o índio era senhor da terra, dono das várzeas e do litoral.

Jaguarê é um herói em construção. Ao longo da narrativa o caçador araguaia, se tornará Ubirajara, senhor da lança e, para disfarçar sua identidade, também será Jurandir, o que veio trazido da luz. Até o desfecho da narrativa, o herói estará em processo de identificação até que se complete com a criação de uma nova nação, surgida da união entre os arcos dos araguaias e dos tocantins.

Eu sou Jaguarê, filho de Camacã, chefe da valente nação dos araguaias, que vem de longe em busca da terra de seus maiores pais. Minha fama corre as tabas e tu já deves conhecer o maior caçador; ele quer um nome de guerra, que diga às nações a força de seu braço e faça tremer aos mais bravos. Se tua nação te aclamou forte entre os fortes, prepara-te para morrer; senão, passa teu caminho, guerreiro vil, para que o sangue do fraco não manche o tacape virgem de Jaguarê. (ALENCAR, 2005, p. 37)

Como mostra o trecho acima, desde o primeiro momento, o herói já se apresenta como um valente, digno de um posto de guerra. O que falta a Jaguarê é o nome, mas não qualquer um, falta-lhe um que o caracterize como um guerreiro. Ele precisa ultrapassar a fama de caçador para alcançar a honra de ser aclamado como um herói. Esta imagem só se completa com a vitória sobre Pojucã, filho da tribo tocantim. “Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, que venceu o primeiro guerreiro dos guerreiros de Tupã. Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro terrível que tem por arma uma serpente” (ALENCAR, 2005, p. 48). Nesse contexto, é importante esclarecer que o tecido humano que trafega pelas paisagens bucólicas da narrativa não deve ser confundido com o conceito de homem, sujeito civilizado. Os índios de Ubirajara são muito mais animais integrados ao meio ambiente que seres submetidos às regras sociais. O homem é uma metonímia da própria natureza. Ele é parte integrante de um todo maior e harmônico que é, no romance, a metáfora da terra brasileira.

A palmeira é formosa quando se colore de flores e o vento agita as suas folhas verdes que murmuram; mais formosa, porém, é quando as flores se mudam em frutos, e ela se enfeita com seus cachos vermelhos. Araci também ficará mais formosa quando de seu sorriso saírem os frutos do amor: e quando o leite encher seus peitos mimosos, para que ela suspenda ao colo os filhos de Ubirajara. (ALENCAR, 2005, p. 95)

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No exemplo acima, nota-se a presença da natureza como uma metáfora da vida indígena. Esse processo de descrição do solo nacional não é incidental, mas predominante na obra. Além das metáforas, as comparações também são bastante recorrentes. “Quando Araci ouviu estas palavras cobriu-se de sorrisos, como o guajeru se cobre de suas flores alvas e perfumadas, com os orvalhos da manhã” (ALENCAR, 2005, p. 78). Esse fenômeno de compreensão da vida como reflexo da dinâmica da natureza não ocorre somente no que se refere às relações entre os personagens. Também a noção de tempo é apreendida pelo movimento dos astros, pelo comportamento dos animais e pelas sombras projetadas nas árvores, e, não por uma divisão cronológica como ocorre em O guarani.

Mas o sol três vezes guiou o passo rápido do caçador através das campinas, e três vezes como agora deitou-se além das montanhas da Aratuba, sem mostrar-lhe um inimigo digno de seu valor. A sombra vai descendo a serra pelo vale e a tristeza cai na fronte sobre a face de Jaguarê. (ALENCAR, 2005, p. 33)

Ao se referir a passagem dos três dias pelo movimento do sol, o narrador se

coloca numa posição que apreende a noção de tempo dos indígenas como se ele próprio fosse um índio. Todas essas descrições, metáforas e comparações se encaminham para uma imagem da natureza subordinada aos atributos dos personagens. Ubirajara é a narrativa de um período em que o conflito homem-natureza é superado pela força do valoroso guerreiro que habita as terras brasileiras.

Em O guarani a natureza desafia o herói, testa-lhe a coragem, superando-o pelo seu caráter descomunal, monstruoso. A primeira aparição de Peri na narrativa é na luta contra a onça. Em sua primeira aparição, Jaguarê rejeita a luta contra o jaguar (onça-pintada), pois já está cansado de vencê-lo. No primeiro romance indianista do escritor, a onça é desafiadora, é forte e perigosa. No último, ela foge espavorida diante do herói.

Os veados saltam das moitas de ubaia e vêm retouçar na grama zombando do caçador. Jaguarê não vê o tímido campeiro, seus olhos buscam um inimigo capaz de resistir-lhe ao braço robusto. O rugido do jaguar abala a floresta; mas o caçador também despreza o jaguar, que já cansou de vencer. Ele chama-se Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta; os outros fogem espavoridos quando de longe o pressentem. (ALENCAR, 2005, p. 31)

Além de ser dominada pelo guerreiro, a natureza não gera temor ou pavor,

excetuando a descrição dos tapuais, inimigos do herói. Mas diferentemente do que ocorre em O guarani, o inimigo é derrotado pela força e destreza do guerreiro araguaia, predominando mais uma vez a bravura do índio sobre a força da tribo contrária.

A imagem de subordinada ao herói é ligada à condição feminina dentro das relações entre os indígenas. A natureza, na verdade, é como a mãe que cuida do filho. Nutrindo-o para o combate. “Frutos de várias espécies, pencas douradas de bananas, cachos roscas de açaí, os rubros croás e os fragrantes abacaxis, enchiam o jirau no meio do terreno” (ALENCAR, 2005, p.70).

Ao construir um romance de domínio do índio sobre as adversidades da vida selvagem, Alencar dignifica o indígena, colocando-o em uma posição de destaque. Ele não é só nobre de espírito, mas possui a força de domínio ausente no homem branco que diante da natureza entra ou em um estado contemplativo, ou em um estado de espanto, pavor. A fauna e flora brasileira nunca serão dominadas pelo branco, pois reconhece

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nele um estrangeiro. Com Ubirajara, Alencar elabora um povo que é “o berço de nossa nacionalidade” (2005, p. 27), aqueles que verdadeiramente estão na origem da formação da identidade guerreira do homem brasileiro.

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CONCLUSÕES

José de Alencar soube compreender as mudanças culturais que o advento da

independência do país proporcionaria. Sua deve ser interpretada como a tentativa consciente de elaboração de um discurso nacional que representasse no nível literário a libertação dos laços com o reino português. A produção indianista do autor é o resultado desse posicionamento político: havia uma nação, faltava construir um povo. O índio alencariano é um ideal que o escritor constrói para demarcar no tecido narrativo um herói nacional. Peri e Jaguaré se aproximam pelo caráter representativo que alcançam dentro da literatura romântica. Ambos simbolizam a nação brasileira, mas de formas diferentes. O primeiro é um índio com alma de cavaleiro cristão, fruto do processo de catequização por que passava o Brasil. O segundo é o índio senhor da floresta, o elemento humano que estava na raiz da formação nacional.

Ubirajara é o herói da narrativa mítica homônima. Ao seu lado, disputando o seu amor, estão a filha araguaia, Jandira e a filha tocantim, Araci. Esse conflito amoroso é solucionado de maneira inusitada. Indo contra a corrente romântica monogamista, Alencar elabora um guerreiro que, ao contrário do esteriótipo medieval, mantém um triângulo amoroso com as duas índias, como uma simbologia da união entre as tribos araguaia e tocantim. Diferentemente do que ocorre com O Guarani, onde duas imagens dialogam, em Ubirajara não há o sentimento de afastamento, que no primeiro romance indianista, é conseqüência do olhar europeu. Há no último romance indianista uma harmonia entre homem e a natureza, harmonia que é afetada pela própria dinâmica interna de disputas culturais entre as tribos.

Já em O guarani essa mesma natureza não possui apenas uma face, mas duas. Assim como o deus grego Jano, a paisagem natural de O Guarani, incluindo o elemento indígena, é a união de duas imagens opostas e complementares. Peri, índio civilizado, ou melhor, que passou pelo processo civilizador através da catequese, e os aimorés, inimigos inflamados pelo sentimento de vingança, compõem juntos a figura ambivalente desse deus de dupla face. Ao longo da obra, o diálogo ou negociação entre as duas fronteiras culturais permanece. De um lado o mundo civilizado de Ceci, do outro o mundo bárbaro de Peri.

Neste sentido, é interessante notar que, acerca do desfecho da narrativa, a imagem da civilização, do estrangeiro, uma das faces da ambivalência defendida ao longo deste trabalho, rende-se à incivilidade, à barbárie das terras brasileiras, unindo novamente as duas faces. Este é o símbolo que está como pano de fundo no momento da entrega de Ceci a Peri. Ao decidir viver sob os cuidados do índio na tribo guarani, a heroína não só renega sua condição de civilizada, como também a própria união ao indígena é a marca da junção da visão estrangeira (Ceci) à nacional (Peri). Em suas palavras, ela afirma sua condição de brasileira, posto que criada no Brasil, e declara o seu amor à nação tupiniquim. “Eu também sou filha desta terra; também me criei no seio desta natureza. Amo este belo país!...” (ALENCAR, 2006, p. 289).

Esta afirmação de Ceci oferece uma dimensão do que significa para Alencar a natureza na obra. A heroína é brasileira por ser filha do solo e da natureza brasileiros. Emerge a imagem da natureza como mãe dadivosa, que tudo supre. Contudo, a aparente harmonia do reconhecimento é abalada pela presença monstruosa da enchente do rio Paraíba, que assim como a decisão da jovem demarca um destino incerto para o recém-casal. Arrastados pela “torrente impetuosa” (ALENCAR, 2006, p. 296), Peri e Ceci

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somem no horizonte. Sobreviverão à enchente? Ela viverá junta ao amado na tribo deste? Como será a vida dela, jovem branca, em meio aos selvagens?

Ao suprimir da narrativa o encontro entre a estrangeira e os nativos, Alencar não dá respostas a estas questões. Talvez o escritor tivesse a noção de que semelhante situação soaria inapropriada para a cultura civilizada da burguesia, principal público leitor de seus romances. O epílogo de O Guarani deixa evidente que a nacionalidade, resultante do diálogo permanente entre as duas fronteiras culturais, não tem uma conclusão. O que o rosto de Jano explica em última análise é que a nação não está pronta, mas em processo de construção. Peri e Ceci formam a face do deus grego que avança para o futuro civilizado no reconhecimento e valorização do passado incivilizado, perdendo suas origens nos mitos do tempo e unindo nação e narração em um mesmo tecido (BHABHA, 2000, p. 211).

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