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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DELANO TEIXEIRA MENEZES A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBJETIVIDADE NO CONTEXTO ACADÊMICO DO INSTITUTO TECNOLÓGICO DA AERONÁUTICA FORTALEZA 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

DELANO TEIXEIRA MENEZES

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBJETIVIDADE NO CONTEXTO ACADÊMICO DO

INSTITUTO TECNOLÓGICO DA AERONÁUTICA

FORTALEZA 2007

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DELANO TEIXEIRA MENEZES

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBJETIVIDADE NO CONTEXTO ACADÊMICO DO INSTITUTO TECNOLÓGICO DA AERONÁUTICA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade

Federal do Ceará, para obtenção do grau de Mestre

em Sociologia.

Orientadora: Profª. Drª. Rejane Maria V. A. de Carvalho

Fortaleza 2007

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DELANO TEIXEIRA MENEZES

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBJETIVIDADE NO CONTEXTO ACADÊMICO DO INSTITUTO TECNOLÓGICO DA AERONÁUTICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Sociologia da Universidade Federal

do Ceará, como requisito final para a obtenção do

grau de Mestre em Sociologia.

Defesa em: 28/ 10/ 2007

Conceito: ___________________

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________ Profª. Drª. Rejane Maria V. A. de Carvalho – UFC

(Orientadora)

______________________________________________ Profª. Drª. Maria Neyara Oliveira de Araújo – UFC

_________________________________________

Prof. Dr. Josênio Camelo Parente – UECE

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A Deus, por ter me dado forças para recomeçar quando eu pensava que elas já tinham acabado e mais uma vez ter-me mostrado que viver é aprender a viver. Ao meu filho Demian, meu maior incentivador. Aos meus professores pela fidalguia e compreensão com que me trataram e pelo alargamento de conhecimentos que em mim produziram.

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AGRADECIMENTOS

A minha curta vivência no campo da sociologia confirmou a percepção que

tinha de que somos incapazes de produzir algo sozinhos. A nossa própria

criatividade é tributária da malha social em que estamos inseridos, pois é com

freqüência que somos auxiliados por outros sem percebermos. As idéias que temos,

por mais inéditas que sejam, estarão correlacionadas à realidade social em que

vivemos, ou para contestá-la, ou para confirmá-la. Por isso temo ser injusto ao

deixar escapar, por uma falha de memória, o nome de alguma pessoa que tenha

dedicado um lapso de sua atenção ao meu trabalho. Por outro lado me sentirei muito

bem em agradecer àquelas pessoas que lembro, uma vez que, sem a colaboração

delas este trabalho não seria possível de ser realizado.

Injusto seria se não começasse por agradecer ao Prof. Dr. Manuel Domingos

Neto, meu orientador nos primeiros momentos desse trabalho, que com sua

pertinácia e objetividade me mostrou os corretos caminhos do que é uma pesquisa

cientifica na área das Ciências Sociais. Não concluímos o percurso juntos, mas

juntos continuamos amigos na trilha das mesmas idéias.

Ao Prof. Dr. Josênio Parente, pela influência que em mim exerceu com sua

vasta cultura e visão ampliada com que criticou este trabalho, o que aumentou ainda

mais o respeito e a amizade que por ele já nutria.

À Profª. Drª. Mônica Martins, amiga incansável, pela atenção e críticas

altamente construtivas que fez em todos os textos que levei à sua apreciação.

À Profª. Drª. Rejane Maria de Carvalho Coordenadora do Programa de Pós-

Graduação em Sociologia pela paciência e cordialidade com que me conduziu no

final desse trabalho.

A todos os meus professores e professoras que ao longo dos 2 anos das

aulas de teoria me transmitiram os ensinamentos indispensáveis ao alargamento

dos meus conhecimentos para a realização deste trabalho. Agradeço especialmente

à Profª. Drª. Irlys Barreira que desde antes de meu ingresso no mestrado, ainda

como aluno ouvinte, prestou-me constante incentivo, apreço e auxílio para a

concretização do meu desejo de iniciar-me na Sociologia.

Apesar de ter pertencido à Força Aérea Brasileira por longos anos, as minhas

atividades profissionais não permitiram uma aproximação maior com o CTA/ ITA. De

forma que quando iniciei a minha pesquisa de campo estava entrando num “mundo

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novo” para mim e se não fosse o carinho e a atenção dos velhos companheiros Maj.

Brig.-do-Ar Adenir Siqueira Viana e o Maj. Brig-do-Ar Carlos Alberto Pires Rolla,

Diretores do Centro Técnico Aeroespacial (hoje Comando de Tecnologia da

Aeronáutica) que me deram um inestimável apoio logístico, a realização desse

trabalho teria sido muito difícil.

No ITA as longas conversas que tive com o reitor, o Ten.-Brig-Ar Reginaldo

dos Santos, meu antigo instrutor na Escola de Aeronáutica e um dos dezoito alunos

Summa Cum Laude nos 57 anos do ITA, foram de importância inestimável para a

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compreensão histórica dos fatos que me deparei quando da realização das

entrevistas.

Dedico um especial agradecimento ao Prof. Dr. Marco Antônio Guglielmo

Cecchini, primeiro reitor brasileiro do ITA, que em longa conversa que tivemos em

sua residência me relatou fatos assistidos por ele em sua vida no ITA,

indispensáveis à compreensão da realidade atual do Instituto.

Na Biblioteca Central do ITA encontrei a Srª. Marina Lima Dalle Mulle

receptiva, atenta – muito além do que se poderia esperar –, e com uma visível

competência profissional que me facilitou a reunião de informações preciosas e

inéditas que estão contidas nesse trabalho.

Na Divisão de Aluno, centro nevrálgico da vida dos estudantes, encontrei a

Profª. Maria Elisabeth Stafuzza Gonçalves, atenta e sempre disposta, muito querida

pelos alunos, foi a pessoa mais importante no meu acesso ao cotidiano dos alunos.

Os seguintes alunos não podem imaginar a minha gratidão pelos momentos

que estivemos juntos, os quais renovaram o meu espírito, e pelas informações que

me passaram da vida dos estudantes no campus:

− Thiago Henrique Vieira (Presidente do CASD);

− Danielle Aguiar de Araújo (Diretora do CASD-Vest.);

− Lysandra Golhath Knopp Alves (Diretora do CASSIS);

− Renato Alexandre Scott Filho (Vice-Diretor do CASSIS).

Agradeço também a atenção que me dedicaram todos aqueles alunos com

quem tive contato e que involuntariamente não recordo do nome.

Ao Major Aviador Marco Aurélio C. de Vasconcelos, comandante do CPOR

Aer., responsável por uma das mais importantes tarefas de formação e socialização

dos alunos, os agradecimentos pelas detalhadas e importantes informações que me

passou e que foram fundamental para uma análise mais profunda da socialização

por que passam os alunos do ITA.

Ao Major Aviador Mário Sérgio Rodrigues da Costa, secretário do reitor,

agradeço pela fidalguia e atenção com que me tratou e por ter facilitado o acesso a

documentos importantes à realização deste estudo.

Debito à deficiência de minha memória a indelicadeza de não citar

nominalmente todas aquelas pessoas que tornaram possível a realização desse

trabalho, a quem sou imensamente grato.

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“Ainda que as circunstâncias influam muito em vosso caráter,

a vontade pode modificá-lo a vosso favor.” (Stuart Mill)

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RESUMO

Em 1950, a Força Aérea Brasileira inaugurou em São José dos Campos-SP o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) com a intenção de formar quadros para atender as necessidades de desenvolvimento tecnológico no campo aeronáutico, tanto militar como civil. Atualmente o ITA – responsável também pela formação de outras especialidades no campo da engenharia correlacionadas com a aeronáutica de um modo geral – exerce uma importante função no processo de construção nacional. O trabalho busca analisar a especificidade da construção social da subjetividade no interior da estrutura acadêmica que forma os engenheiros do ITA, e ainda sugere de que modo ela atua na construção da subjetividade dos indivíduos, a partir da experiência social vivida por eles durante o curso. Inicialmente o autor se dedica à descrição histórica das origens e criação da instituição, apresentando os liames políticos e burocráticos tanto da estrutura militar vigente como das relações dos militares da aeronáutica como o poder político nacional no período Vargas. Com o objetivo situar o cotidiano dos alunos do ITA, o trabalho a um só tempo, mostra a lógica da socialização e os conteúdos disciplinares e históricos que conduzem os alunos na construção das subjetividades. Dessa forma, os conceitos de disciplina consciente, integração e família são usados como categorias de análise.

Palavras-chaves: Socialização; Organização Militar; Disciplina.

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ABSTRACT

In 1950, the Brazilian Air Force established in Sao Jose dos Campos (Sao Paulo State) the Aeronautics Technology Institute (ITA) in order to prepare human resources for the upcoming demands of technological development on Aeronautics, either military or civil. Nowadays, ITA, which is also responsible for other aeronautics related fields such as engineering, has an important role in the process of national construction (nation-making). The author research the peculiarities of the social construction of subjectiveness in the academic structure of ITA., and search on how the academic structure might affect on the construction of subjectiveness of individuals, starting from their social experiences during the graduate studies. Initially the author made a origins and historical description of the ITA creation, describe politics’ and burocratics of the national military and civil organizations and the military – civilian relationship during Vargas period. Therefore, concepts of conscious discipline, integration and family are used as categories of analysis. Key Words: Socialization; Military Organization; Discipline.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Reunião inicial da Direção do ITA com os calouros e seus pais. ............. 95

Figura 2 – Chegada dos calouros no hall da reitoria. ................................................ 96

Figura 3 – Aluno do ITA em treinamento militar no CPOR Aer. .............................. 105

Figura 4 – Alunos em disputa de natação nas competições esportivas da Semana da Asa. ......................................................................................................................... 106

Figura 5 – Partida de voleibol da Taça Eficiência do CPOR Aer. ............................ 108

Figura 6 – Alunos do ITA em exercício com arma no CPOR Aer. ........................... 108

Figura 7 – Alunas do ITA em exercício militar no CPOR Aer. ................................. 109

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AEITA – Associação dos Engenheiros do ITA

ANPOCS – Associação Nacional de Pós-Graduados em Ciências Sociais

CASD – Centro Acadêmico Santos Dumont

CASD-Vest. – Cursinho vestibular coordenado pelo Centro Acadêmico Santos

Dumont

CASSIS – Comissão de Assistência e Ação Social do ITA

COCTA – Comissão de Obras do CTA

CPOR Aer. – Centro de Preparação de Oficiais da Reserva da Aeronáutica

CTA – Centro Técnico Aeroespacial até o ano de 2002 – hoje chamado Comando de

Tecnologia Aeroespacial

DOO – Divisão de Orientação e Ordem do Centro Acadêmico.

EMBRAER – Empresa Brasileira de Aeronáutica

ETE – Escola Técnica do Exército (hoje IME)

FAB – Força Aérea Brasileira

H-8 – Número do prédio onde está situado os apartamentos dos estudantes dentro

do campus do CTA

IME – Instituto Militar de Engenharia

ITA – Instituto Tecnológico da Aeronáutica

JB – Jornal do Bixo

MEC – Ministério da Educação e Cultura

MIT – Massachusets Institute of Technology

ONG – Organização Não Governamental

RANCHO – Designação militar de refeitório

RUSD – Rádio Universitária Santos Dumont

UDN – Antigo partido político União Democrática Nacional

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 - AS ORIGENS DO CENTRO TÉCNICO DA AERONÁUTICA ............ 24

1.1 CONSTRUIR AVIÕES NO BRASIL: UMA AMBIÇÃO DOS MILITARES ................................... 27 1.2 AVIÃO: O NOVO INSTRUMENTO DO PROGRESSO ......................................................... 32 1.3 O ESTADO NOVO CRIA AS CONDIÇÕES ..................................................................... 33 1.4 AS BARREIRAS EXTERNAS ....................................................................................... 39 1.5 A AVIAÇÃO NA AGENDA POLÍTICA ............................................................................. 42 1.6 AS DEMANDAS DE CONHECIMENTO TECNOLÓGICO ..................................................... 46 1.7 PENSANDO NO FUTURO .......................................................................................... 51

CAPÍTULO 2 - FUNDAÇÃO DO INSTITUTO TECNOLÓGICO DA AERONÁUTICA 55

2.1 OS PERSONAGENS E AS IDÉIAS DIANTE DA ESTRUTURA BUROCRÁTICA DO ESTADO ....... 55 2.2 TRANSFORMANDO IDÉIAS EM REALIDADE .................................................................. 65 2.3 CASIMIRO MONTENEGRO FILHO: O ARTÍFICE DE UMA IDÉIA QUE VIROU REALIDADE ....... 68

CAPÍTULO 3 - A SIMILARIDADE E A DIVERSIDADE: O REGIONAL E O NACIONAL ................................................................................................................ 74

CAPÍTULO 4 - ENTRE O FILOSÓFICO E O PRAGMÁTICO: O MODELO EDUCACIONAL DO ITA ........................................................................................... 82

CAPÍTULO 5 - ORGANIZAÇÃO DAS GÊNESES ..................................................... 90

CAPÍTULO 6 - MITIGANDO AS DIFERENÇAS ........................................................ 94

CAPÍTULO 7 - A CONSTRUÇÃO DA ORDEM ....................................................... 100

7.1 OS CONTEÚDOS DISCIPLINARES NA CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE ....................... 100 7.2 CPOR AER. – DISCIPLINA E INSERÇÃO SOCIAL: A NACIONALIZAÇÃO DA DIVERSIDADE . 105 7.3 DISCIPLINA CONSCIENTE: UMA UTOPIA CRIANDO UM COMPROMISSO COLETIVO REALISTA ................................................................................................................................ 112

CAPÍTULO 8 - H-8 PARTICIPAÇÃO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL .......................... 117

CONCLUSÕES ....................................................................................................... 125

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 132

ANEXOS ...................................................................... Erro! Indicador não definido.

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INTRODUÇÃO

UMA VISÃO DO OBJETO

O Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) representa um grupo específico

no campo do ensino tecnológico superior no país, tanto pelo ineditismo de seu curso

principal (Engenharia Aeronáutica) quanto pela excelência da formação acadêmica,

e exerce um poder de influência sobre o campo da ciência e tecnologia no país e um

fascínio sobre estudantes que desejam iniciar-se no saber científico-tecnológico e na

pesquisa no campo da física, mecânica, computação, química e outros.

Para que se possa entender o papel e o funcionamento da atividade

acadêmica no contexto da construção da subjetividade de seus alunos, faz-se

necessário refletir sobre o fato de que o ITA ocupa um lugar específico no âmbito

das escolas de alto nível no país, com amplo reconhecimento internacional, que

precisa ela mesma reproduzir-se, construindo os mecanismos a partir dos quais se

torne um meio eficaz para a difusão do conhecimento científico.

A hipótese tratada aqui é de que o ITA ultrapassa o técnico e também

difunde os valores seculares necessários à construção da subjetividade. Dentre

esses mecanismos, destaca-se a socialização de seus acadêmicos no sentido de

assumirem uma postura moral e ética que propicie a reprodução de si mesmos no

âmbito das ciências exatas no Brasil como agentes do conhecimento científico.

Assim sendo, trabalho com a idéia de que a organização acadêmica do ITA ocupa

um lugar central nesse processo de socialização.

Os engenheiros do ITA são socializados formal e informalmente a partir de

certos mecanismos presentes tanto no programa de ensino como nas atividades

extracurriculares – como a autodisciplina, o ensino de disciplinas da área de

Ciências Humanas, o Centro Acadêmico, o exercícios militares no Centro de

Preparação de Oficiais da Reserva da Aeronáutica (CPOR Aer.), o trote, a

convivência diuturna em alojamento comum entre outros – que lhes direcionam a

práticas de ações e de formas específicas de classificação do mundo, com a

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pretensão de torná-los engenheiros competentes e líderes disciplinados. Esta

dissertação pretende explicitar os meandros deste processo de socialização, dando

prioridade ao problema da construção ou do modo específico de produzir a

subjetividade social a partir das técnicas e dos mecanismos de individualização

exercitadas no âmbito do ITA e como a construção da cidadania está imbricada

nesse processo.

Parto do pressuposto de que os sujeitos sociais não estão dados a priori e

que não são meros receptáculos de conteúdos significativos, mas sim, que eles são

inventados a partir de determinadas relações sociais. Preocupo-me em explicar os

mecanismos implicados no processo de subjetivação pelo qual passam aqueles

indivíduos que se entregam ao estudo científico profundo, muitas vezes com uma

expectativa predeterminada, e são “capturados” pelos mecanismos de socialização.

Além disso, trata-se de compreender como se dá a interação entre os processos

disciplinares e a construção social da subjetividade dos alunos. Ao se entender isso,

será possível entender as condições sociológicas que possibilitam a existência de

trajetórias profissionais voltadas e dispostas ao exercício da liderança científica.

No caso da criação do Centro Técnico da Aeronáutica (CTA), desde suas

origens, os militares da Aeronáutica, como agentes do Estado, funcionaram como

indutores da pesquisa científica aplicada. Entretanto, o tipo de relação do ensino e

pesquisa científica que se pretendia adotar no CTA/ ITA ainda era um modelo pouco

usual nos meios acadêmicos brasileiros e inédito no ensino militar. Ele exigiu um tipo

de relação peculiar dos militares com a pesquisa científica que se mostrou, de certa

forma, eficiente diante da reconhecida qualidade dos engenheiros formados. Assim,

a genealogia do ITA e desse processo fará parte desse estudo para compreender

sua especificidade.

Nas pesquisas exploratórias preliminares que realizei em conversas com

alunos e engenheiros formados no ITA, com o objetivo de traçar uma estratégia de

abordagem do tema que pretendia estudar, identifiquei nos alunos um tipo de

comportamento que os diferenciava dos demais alunos de curso superior de outras

faculdades brasileiras, e nos engenheiros, particularmente os civis, uma maneira de

expressar-se e uma visão de mundo incomum. A partir daí, pude perceber que a

compreensão da forma de se comportar dos alunos diante a realidade nacional

brasileira e o seu trato com a Ciência e Tecnologia requeria o entendimento da

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forma de socialização que ocorria através da estrutura acadêmica diferenciada do

ITA.

Consciente de que uma sociedade somente pode ser visualizada em seu

operar concreto, na imensa e complexa rede de comunicações que imbricam

instituições aparentemente tão díspares como a vida acadêmica no ITA e a vida

militar no CPOR Aer., e no campus do CTA, as quais instituem laços entre os

militares e civis. Esta rede forma um complexo mais amplo de socialização de tal

forma que as atividades específicas inseridas no cotidiano da vida acadêmica

respondem por seu papel na construção de um ethos próprio de todos que

compõem a instituição.

Dessa forma, procuro colocar alguma luz sobre o que se opera nas salas de

aula, nos laboratórios, no CPOR Aer. e, especialmente no âmbito do H-81, por meio

da relação bífida, feita de uma mistura de afinidades e antagonismos, que liga um

instituição acadêmica civil aos preceitos da vida militar. Enfim, esboçarei uma

reflexão sobre a iniciação de uma prática acadêmica da qual o aluno é ao mesmo

tempo o instrumento e o alvo. Isso quer dizer que não buscarei incriminar nem

desculpar essa ou aquela atitude tanto dos alunos como da direção do ITA, mas sim

sugerir o que a lógica imbricada nas relações do cotidiano, e sobretudo aquela

lógica da sua forma de ser inculcada, pode sugerir sobre a lógica de toda prática

acadêmica na construção da individualidade dos alunos.

O CONTEXTO TEÓRICO EM QUE SURGE ESTA DISSERTAÇÃO

A construção social da subjetividade dos alunos do Instituto Tecnológico de

Aeronáutica será abordado a partir de uma visão foucaultiana, tendo como eixo a

genealogia do sujeito e a sujeição à disciplina.

O método genealógico desenvolvido por Michel Foucault na maior parte das

suas obras aqui consideradas começa por analisar a consolidação das sociedades

modernas concomitantes à formação de uma sociedade disciplinar responsável,

1 Refiro-me ao número do prédio dentro do campus do CTA onde está localizado o alojamento dos alunos do ITA.

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ainda hoje, pelas mais importantes formas de sujeição nas sociedades. A partir dos

códigos de disciplina e de ética dos alunos do ITA podem se desenvolver formas

específicas de exercício de poder, capaz de criar subjetividades, “politicamente

dóceis e economicamente úteis” que conforme Foucault (2002, p. 27), são

praticadas em escolas, prisões, e outros. Para ele, a sociedade disciplinar é a

sociedade do controle social, da “ortopedia social”.

Por essa ótica os regimes disciplinar e escolar, assim como os deveres e

direitos dos alunos estabelecidos no regimento do instituto passam nessa

“sociedade disciplinar” por um circuito de poder baseado em técnicas de sujeição.

Para Foucault (op. cit., p. 152) “[...] além da simples interiorização de conteúdos

significativos e de formas de classificação do mundo ou de uma ordem social dada

[...]”, uma estrutura disciplinar seria capaz de “construir o próprio sujeito”. O autor

não aceita a existência de um sujeito humano universal sobre o qual se incutiria um

processo de socialização qualquer, entendido como simples constituição de um

universo simbólico específico. Foucault (op. cit., p. 152) admite que o processo de

poder inventa o próprio sujeito: “[...] as condições políticas, econômicas de

existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas

aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as

relações de verdade.”

As idéias de Foucault, que são analisadas como fontes teóricas, estão

contidas basicamente em dois de seus livros: Vigiar e Punir (2002) e Microfísica do

Poder (2003). O poder disciplinar como categoria, proposta por Foucault, oferece

uma segura contribuição teórica para a busca da compreensão das relações sociais,

o funcionamento das instituições, a inserção do ser humano no tecido social. Nessa

dissertação busco ampliar sua compreensão, ao mesmo tempo em que procuro

alcançar os seguintes objetivos:

– Caracterizar o poder disciplinar, a partir das idéias de Foucault, nas

práticas acadêmicas do ITA;

– Identificar se o universo simbólico e as classificações de natureza

partilhadas por todos no CTA/ ITA incorporam os princípios de autoridade,

de solidariedade e cooperação na construção da subjetividade dos alunos,

a partir da análise do comportamento disciplinar dos alunos do ITA, tendo

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como fonte as práticas no cotidiano da vida acadêmica e os códigos de

éticas e regulamentos disciplinares vigentes.

Portanto, é nas trilhas do pensamento de Foucault (2002; 2003) que a noção

do poder disciplinar é abordada. O poder será também visto como uma rede, um

feixe de relações, permeando todo o corpo acadêmico do ITA, caracterizado como

um grupo social. Este trabalho considera também o poder em sua natureza

relacional, tal como a idéia de cultura de Geertz (1989), que a concebe como uma

rede de relações que, tal qual o poder disciplinar, perpassa todo o corpo social,

atribuindo-lhe uma dinâmica, um movimento constante, um estar-presente bem mais

amplo do que concepções mais estanques de cultura.

Já no campo cognitivo a criação do CTA/ ITA era menos controversa –

quase todos tinham a percepção da necessidade da criação de um centro de

excelência de conhecimento aeronáutico e a idéia da criação de uma escola de

engenharia aeronáutica no país é bastante antiga – o próprio Alberto Santos Dumont

já a preconizava. Da mesma forma, construir aviões no Brasil é um desejo antigo. Os

insucessos anteriores estiveram ligados a fatores políticos, e estruturais burocráticos

detectáveis, mas a percepção deles esbarrava em paradigmas incrustados no

imaginário dos indivíduos da Força Aérea. Nesse sentido Mary Douglas (2004, p. 19)

nos oferece elementos teóricos de análise adequados quando diz:

Freqüentemente, quando uma nova descoberta é rejeitada e deixada inerte até mais tarde, é precisamente uma idéia que faltou a interligação formular com procedimentos normais de validação. A melhor hipótese de êxito é confrontar as principais preocupações públicas e explorar as principais analogias em que assenta o sistema sociocognitivo.

O trabalho da autora supracitada (Como Pensam as Instituições) apresenta

uma alternativa de análise bastante interessante. Usando os trabalhos de Durkheim

como base, Douglas (op. cit.) tenta explicar até que ponto o próprio pensamento

depende das instituições. Diferentes tipos de instituições permitem que os indivíduos

tenham diferentes tipos de pensamentos e respondam a emoções diferentes. Na

difícil tarefa de explicar como os indivíduos chegam a partilhar as categorias dos

pensamentos e como conseguem pôr de lado os seus interesses pessoais em nome

de um bem comum, Douglas (2004) chama atenção para o fato das instituições não

pensarem independentemente, nem terem propósitos, nem conseguirem construir a

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si mesmas. Na medida em que estamos construindo as nossas instituições vamos

moldando as idéias de cada um com uma forma comum de dar legitimidade a elas.

Entretanto, ela aconselha-nos a não nos sentirmos satisfeitos com o pensamento de

que os primitivos podem pensar através de instituições e que os modernos decidem

individualmente as questões importantes.

As características pessoais que Montenegro Filho2, voluntária ou

involuntariamente, impôs ao projeto, colam a sua figura a quase todos os atos da

criação do CTA/ ITA de tal forma que se torna difícil estudar as ações que se

desenvolveram através da burocracia estatal sem que se conheça, minimamente, a

sua carreira. Montenegro Filho conseguiu comprometer um número tão grande de

pessoas com o projeto de tal que forma que as suas idéias eram naturalizadas com

facilidade confundindo-se com a própria existência da instituição e fazendo com que

ela “assumisse a sua cara”. Para John Van Maanen (1977, 34), um estudioso de

carreiras:

[...] as organizações não podem ser entendidas a não ser que tenhamos uma concepção pelo menos rudimentar dos valores, crenças e estilos de comportamento das pessoas situadas em varias posições da organização. E esses valores, crenças e estilos de comportamento estão relacionados de forma muito clara com a formação e a carreira posterior dos indivíduos. Infelizmente, a preocupação com a carreira das pessoas – em particular, dos detentores do poder – é um traço essencial ausente de quase todos os estudos das organizações.

Nesse particular há uma semelhança com o que Douglas (2004, 18) pensa

sobre a ação dos indivíduos em relação ao bem público ao dizer que eles

[...] contribuem generosamente para o bem público, mesmo sem hesitar, sem óbvio auto-serviço. Procurar o significado do comportamento auto-servidor até que estejam incluídos todos os possíveis motivos desinteressantes, apenas torna a teoria vácua.

Fica evidente que a visão de Douglas (2004) é otimista, como também um

pouco incompleta quando posta diante da realidade na qual o interesse como

categoria está permanentemente por trás das decisões dos indivíduos, se

considerarmos o que pensa Bourdieu (2002) ao afirmar que não existe atitude

desinteressada dos indivíduos em sociedade.

2 Casimiro Montenegro Filho foi o Oficial da Força Aérea que idealizou e construiu o ITA/CTA.

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Entretanto, Emile Durkheim tinha outra maneira de pensar sobre o conflito

entre o individuo e a sociedade. Para ele, o erro inicial é negar as origens sociais do

pensamento individual. As classificações, as operações lógicas e as metáforas

guiadas são fornecidas pela sociedade. Inclusive o sentimento de que uma idéia

está certa ou errada a priori é visto como parte do ambiente social.

Parece-me que o pensamento de Durkheim é bastante apropriado neste

ponto, uma vez que ele acreditava que o utilitarismo nunca podia ser responsável

pela fundação da sociedade civil. Mas sempre esteve convencido de que o modelo

através do qual uma ordem social é produzida automaticamente fora das ações de

interesse pessoal de indivíduos racionais era demasiadamente limitado porque não

fornecia qualquer explicação sobre a solidariedade do grupo. Ele achava que a

reação, quando os juízos enraizados são desafiados, fosse uma resposta corajosa

correlacionada diretamente ao compromisso com o grupo social. De acordo com o

seu ponto de vista, o único meio de investigação que poderia explicar como um bem

coletivo é criado, seria trabalhar na epistemologia.

Max Weber (1999) definiu cuidadosamente os elementos característicos da

organização burocrática (e a autoridade legal-racional) em termos de carreiras:

ingresso por concurso, vitaliciedade, salários fixados em dinheiro e canais de

promoções identificados dentro da estrutura burocrática. De acordo com este autor,

a promoção depende das avaliações impessoais dos superiores hierárquicos. As

carreiras se vinculam às repartições, de modo que a lealdade está vinculada a essas

repartições e não a outros funcionários, e as relações burocráticas são canalizadas

através delas. A burocracia pura de Weber é obviamente um tipo ideal, mas muitas

burocracias se aproximam suficientemente desse modelo que o torna um quadro

analítico útil. Entretanto, quando observamos com uma visão abrangente, que os

padrões de carreira no serviço público brasileiro são fundamentalmente diferentes e

as repartições não são mais canais de lealdade e de relações, então a sua aplicação

é menos adequada. Mas, com um olhar mais acurado, os padrões da carreira dos

militares se distanciam da dos funcionários civis e se aproxima do tipo ideal de

Weber (1999) sem ainda completar o modelo. De qualquer modo o tipo ideal de

Weber (op. cit.) nos ajuda a destacar o elemento crítico – as carreiras – na

burocrática estatal.

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Mas, se o personalismo distancia o burocrata dos compromissos para com a

instituição e o mantém refém de opções que atendem normalmente interesses que

extrapolam os limites dela, quais são, então, as bases para as suas preferências?

Por que Montenegro Filho fez essa ou aquela escolha? Ele foi levado pelos

acontecimentos, ou elas foram conscientes? Ele não estava motivado unicamente

por interesses materiais imediatos, objetivos organizacionais, ou ideologias. Seguia

a sua carreira, mas mantinha distância de polêmicas internas da Força Aérea que o

colocava numa posição de observação privilegiada. A sua posição em relação a uma

determinada política dependia menos de onde ele estava no momento, do que para

onde ele queria chegar com o seu projeto.

Teoricamente o “tipo ideal” do burocrata que Max Weber (1999) nos

apresenta mostra que a personalidade e a socialização afetam as escolhas iniciais

da carreira de um burocrata, que internaliza os valores de sua carreira através da

socialização profissional. O burocrata, também, aprende desde cedo quais os tipos

de comportamento que levam às promoções na carreira e que estas são balizadas

por preferências internas (através da socialização), e externamente (através dos

sinais que os superiores mandam àqueles que querem avançar na carreira).

Observar estas práticas estabelecerem opções seletivas, que evidenciam alguns

tipos de acontecimentos e ocultam outros, será examinar a ordem social operando

sobre as mentes individuais. As intenções individuais para construir uma instituição

podem ser muito boas: os indivíduos podem firmar as suas próprias convicções e

tentar controlar as dos outros naturalizando-as.

Nesse caso, a argumentação científica, ou para não ser tão rigoroso, a

argumentação lógica fica suspensa. Entretanto, essa tendência dispersiva contribui

para o bem comum ao nível intelectual, assim como ao nível da colaboração social?

Assim, somos induzidos a indagar como uma analogia (naturalização) construída

ganha a outra? Como um sistema de ensino e pesquisa totalmente novo aparece e

se impõe? Como uma boa idéia compete com outra? – tudo isso num meio social

conservador, como o militar.

Não são poucos os estudos sobre a burocracia estatal brasileira, mas a

maioria não aborda em profundidade o segmento militar. Mesmo assim a leitura

dessa bibliografia se tornou importante para a minha compreensão do arcabouço

geral do universo simbólico partilhado, e as classificações da natureza que

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incorporam os princípios de autoridade e coordenação – uma vez que os indivíduos

que preenchem ambos os espaços (civil e militar no âmbito do CTA) são oriundos da

mesma sociedade.

Em período mais recente foram encontrados estudos que têm examinado a

carreira dos militares em vários contextos e como eles interferiram na burocracia.

Alfred Stepan (1975) examina com bastante propriedade o treinamento e as

carreiras de militares brasileiros, antes de 1964, para explicar porque assumiram o

poder e porque seguiram as políticas que escolheram. O estudo se limita a um

período específico da história do Exército Brasileiro, mas fornece reflexões sobre o

ethos da carreira militar no Brasil.

O trabalho clássico de Samuel P. Huntington, The Soldier and the State

(1957), ainda que trate da realidade das relações civil-militares na política norte-

americana, aponta muitos assuntos e idéias situando o militar na sociedade e

estabelece uma teoria das relações entre civis e militares numa sociedade

democrática, oferecendo alguns elementos teóricos para compreender e situar

Casimiro Montenegro Filho na sua trajetória pela burocracia civil e militar. Huntington

(op. cit.) combinou o tipo de ideologia predominante na sociedade, que contamina a

burocracia estatal, influência política e profissionalismo militar e cria alguns modelos

de análise que ajudam a compreender as relações civil-militares. Ainda que o

propósito de seu trabalho seja estudar o controle civil dos militares, ele oferece

alguns elementos de reflexão quando situa a classe militar na sociedade como um

todo.

Pesquisadores como Carlos Estevam Martins (1974) e Luciano Martins

(1968) desenvolveram trabalhos que apontam para uma preocupação direta com o

problema da formação do corpo de burocratas no Brasil e suas carreiras. Carlos

Martins (op. cit.) se aproxima mais do estudo de CTA/ ITA ao fazer uma análise da

tecnocracia e do capitalismo inerente à política dos técnicos no Brasil.

Já Mary Douglas (2004) nos oferece o caminho da coerência cognitiva,

quando fornece elementos para a compreensão de como os indivíduos interagem

com e para a construção das instituições. Perece-nos válido aceitar que “[...] uma

teoria que vai ganhar um lugar permanente no repertório público de que é conhecido

vai precisar se ligar aos procedimentos que garantem outros tipos de teoria.”

(Ibidem, p. 105). Esta autora chama atenção, também, para o fato das instituições

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não pensarem independentemente, nem terem propósitos, nem conseguirem

construir-se a si mesmas. Ela destaca que à medida que construímos as instituições,

estamos, ao mesmo tempo, moldando as nossas idéias com uma forma comum de

pensar e agir para dar legitimidade a elas. Oferece elementos teóricos úteis à

compreensão da influência da instituição na construção da subjetividade dos

indivíduos.

AS RAZÕES E O MÉTODO

Fui seduzido por estudar a construção da subjetividade dos alunos do ITA

quando, ainda no serviço ativo da Força Aérea Brasileira, assisti debates acalorados

sobre os rumos das pesquisas no CTA: havia os que defendiam que a liberdade de

pesquisa científica não deveria ter limites e os que achavam que elas deveriam ser

direcionadas sempre para os interesses da Aeronáutica. Mas, por detrás de todos os

debates, estava dissimulada a aversão ao “à paisanamento” 3 do ITA e uma perda

de poder dos militares sobre a área de pesquisa que haviam concebido,

considerando tratar-se de uma instituição sustentada, dirigida e voltada para a

estrutura militar da aeronáutica. A possibilidade de total liberdade para a pesquisa

científica, provocava o temor, em um dos segmentos, de um possível

desvirtuamento dos objetivos para os quais o ITA fora criado. Esse debate se torna

um revelador das intenções dos militares quanto ao desenvolvimento do país, como

já foi explicitado anteriormente. Isto é, enquanto era necessário o apoio político para

a consolidação de um projeto que atendesse às necessidades de defesa nacional,

era aceito o compartilhamento com os civis, mas no momento em que as prioridades

de defesa são ameaçadas há uma rejeição às intenções destes.

Posteriormente, ao levantar dados para um trabalho sobre o CTA que foi

apresentado na 30ª Reunião Anual da ANPOCS, identifiquei nos alunos do ITA um

tipo de comportamento que os diferenciava dos demais alunos de cursos superiores

de outras faculdades brasileiras. Além disso, conversei com alguns engenheiros

formados em décadas anteriores, e já em atividade no mercado de trabalho, que se

3 Com o sentido do afrouxamento da rigidez do comportamento dos militares, ou militares com comportamento de civis.

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referiam ao seu tempo como alunos do ITA com muita nostalgia e se esforçavam

para, de alguma forma, manter contato com a instituição. A partir desse trabalho,

pude perceber que a compreensão da forma de se comportar dos alunos diante da

realidade nacional brasileira e o seu trato com a Ciência e Tecnologia requeria o

entendimento da forma de socialização que ocorria através da estrutura acadêmica

diferenciada do ITA. O que acontecia no cotidiano dos alunos do ITA, que os

tornavam indivíduos com visão de mundo semelhante?

A pesquisa foi realizada no ambiente acadêmico do Instituto Tecnológico da

Aeronáutica em São José dos Campos-SP. O ITA está situado no interior do CTA,

uma espécie de campus que abriga outros institutos dedicados a atividades

relacionadas à engenharia aeronáutica, infra-estrutura aeroportuária, mecânica e

computação, inclusive à pesquisa. Os alunos são selecionados através de um

exame vestibular nacional e recebem uma bolsa da Força Aérea, sendo-lhes

proporcionado ensino de alto nível, alimentação, alojamento e acesso aos recursos

do instituto, tais como biblioteca e centro de computação 24 horas, além de

tratamento médico e odontológico a preços módicos. O ITA, para fins de ensino e

pesquisa, possui um curso fundamental que se destina à elevação dos

conhecimentos fundamentais das ciências exatas que os alunos já devem possuir e

o ensino dos conhecimentos básicos gerais de engenharia que é ministrado em 2

anos, e um curso profissional que se destina à formação especializada de

engenheiros de Aeronáutica, Eletrônica, Mecânica Aeronáutica, Infra-Estrutura

Aeronáutica e Ciência da Computação.

Na primeira parte do trabalho são apresentados dados etnográficos e

históricos precisos e detalhados, produzidos pela observação direta e pela

participação, sobre um universo social que é tanto mal conhecido quanto mais

amplamente são difundidas as representações comuns de que ele é objeto. Ao

acompanhar o processo de socialização dos alunos do ITA, ao mesmo tempo em

que busco reconstituir a história da organização acadêmica daquela instituição no

contexto do ensino superior no Brasil, procuro construir uma conjugação

metodológica que responda às deficiências históricas, por vezes apresentadas pelo

trabalho etnográfico, e as deficiências do trabalho histórico quanto aos contextos de

interação organizados a partir de práticas acadêmicas e das relações interpessoais

concretas vividas pelos alunos.

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Pareceu-me que o recurso à história daria a terceira dimensão que explica

tantos aspectos da realidade observada em dado momento, e cuja ausência pode

comprometer as interpretações. A junção dessas categorias habitualmente

apartadas – sociologia, etnografia e história –, tem por finalidade facilitar a

percepção do que ocorre no cotidiano dos alunos do ITA.

Por isso, o trabalho é composto de três textos com prescrição e estilo

propositalmente díspares, que justapõem descrição etnográfica, análise sociológica

e evocação histórica, de modo a comunicar, ao mesmo tempo, as determinações

ocultas e as experiências vividas, os fatos externos e as sensações interiores que,

ao mesclarem-se, formam o mundo acadêmico do ITA. Em resumo, o trabalho se

propõe, a um só movimento, mostrar a lógica da socialização e os conteúdos

disciplinares e históricos que conduzem os alunos na construção das subjetividades.

Uma das minhas preocupações durante a pesquisa de campo foi a de não

ser identificado pelos alunos como sendo um militar da reserva da Força Aérea.

Combinei com todos os militares que me conheciam e com alguns professores que

fiquei conhecendo para que me chamassem de professor. A minha intenção, com

essa dissimulação, era a de não deixar que a minha participação como observador

das diversas atividades dos alunos contribuísse para algum tipo de constrangimento

que viesse a macular as informações que estava buscando.

Procurei também realizar as entrevistas com os alunos de uma maneira

semi-estruturada para que as perguntas me dessem bastante flexibilidade de refazê-

las de acordo com o que me ia sendo mostrado. Por ter agido assim, me pareceu

que foi mais fácil a obtenção de dados e informações muito além do que pude

imaginar. Quando já trabalhava o material coletado em campo, tentei conduzir a

pesquisa de uma forma qualitativa, buscando identificar as categorias que

conduziram o meu trabalho escrito. Dissolvido no conteúdo de todo material colhido

nas entrevistas e nos textos a que tive acesso, estão presentes com uma constante

regularidade a disciplina consciente, integração, família e respeito. Entretanto, como

pude constatar, elas pertencem, em outros termos, a um sistema particular de

discurso, a modos originais de expressão que identifica o grupo social dos iteanos4.

Diante disso, situei-me deliberadamente fora do campo tradicional da curiosidade e

da pesquisa, e foi como uma tentativa de exploração da forma como o imaginário 4 Forma como são chamados os alunos do ITA.

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dos alunos do ITA é construído que esta dissertação foi concebida e deve ser

compreendida.

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CAPÍTULO 1

AS ORIGENS DO CENTRO TÉCNICO DA AERONÁUTICA

Ao estudar a construção social da subjetividade dos alunos do Instituto

Tecnológico da Aeronáutica (ITA) não consegui abstrair as categorias do tempo,

espaço e causalidade. Se não fizesse um sobrevôo sobre elas poderia correr o risco

de mutilar a compreensão de muitos acontecimentos do cotidiano dos alunos e não

conseguiria explicar as razões históricas que consolidaram certas rotinas desse

cotidiano.

Nesse contexto, me parece que a forma de pensar dos indivíduos são

determinadas pelos fatos sociais do grupo a que pertencem, criando uma espécie de

estilo próprio de pensar, o qual estabelece os pré-requisitos de qualquer cognição,

determina o contexto, e estabelece os limites para qualquer juízo sobre a realidade

objetiva. Portanto, desprezar os fatos históricos que determinaram a realidade

presente do ITA seria como se assistíssemos a uma peça teatral sem um cenário.

Pensando assim, e antes de colocarmos o foco sobre a realidade presente

do ITA e do cotidiano de seus alunos, percorri seu passado através de pesquisa

bibliográfica, entrevistas e depoimentos gravados, para tentar capturar o nexus com

o presente. Nesse passeio tive a oportunidade de conhecer um pouco mais do

pensamento dos militares sobre a produção científica no país e o tipo de relações

políticas que se articulava na sociedade brasileira na década de 1940 – época da

criação do CTA/ ITA.

Foi fácil perceber que a idéia de industrialização do país polarizava as

iniciativas governamentais do Estado Novo na década de 30, mas faltavam pessoas

qualificadas em quantidade suficiente para sustentar, a longo prazo, tal projeto. “Era

um paradoxo o governo querer fazer engenharia sem engenheiros, medicina sem

médicos, ciência sem cientistas e pesquisa e tecnologia em geral sem técnicos

superiores nem de grau médio” (ITA, s/d, p. 386, v. 3) – disse o brigadeiro Joelmir

Campos de Araripe Macedo, quando era ministro da Aeronáutica do presidente

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Geisel, que pertencia a primeira turma de engenheiros Aeronáuticos formados na

antiga Escola Técnica do Exército (ETE), hoje Instituto Militar de Engenharia (IME).

Na área militar o ensino e a doutrina passavam por um período de revisão

diante das novas possibilidades tecnológicas que estavam sendo colocadas à

disposição do emprego militar. O avião, que teve a eficiência bélica comprovada na

Primeira Guerra Mundial, foi rapidamente aperfeiçoado durante a Segunda Guerra

Mundial. A Aviação Militar, sob o comando do general Eurico Gaspar Dutra, passava

por uma grande reestruturação, ascendendo ao status de Arma no Exército, ao lado

da Infantaria, Cavalaria, Artilharia e Engenharia de Combate, necessitando, assim,

de um aparato tecnológico mais sofisticado. A carência de engenheiros e técnicos

era enorme, particularmente em aeronáutica, metalurgia, mecânica e química, e o

mundo científico brasileiro ainda não oferecia profissionais dessas áreas em

quantidade suficiente.

A concepção e a criação do Centro Técnico de Aeronáutica (CTA) ocorreu

no período do Estado Novo e desenvolveu-se em paralelo ao projeto de

industrialização no Brasil, cujo pináculo mais alardeado foi a Companhia Siderúrgica

Nacional (CSN). Diferentemente de receber uma siderúrgica construída, a criação do

CTA significou a importação de uma forma totalmente nova de produzir

conhecimento. Enquanto uma indústria siderúrgica acabada produzia efeitos

materiais, práticos e imediatos ao processo industrializador, a criação de um centro

produtor de conhecimento significava algo incerto quanto aos resultados, porque

estes dependeriam de capacidades ainda pouco exploradas no Brasil – a vocação

tecnológica e a pesquisa científica. Enquanto o projeto de industrialização do

governo tinha o fulcro de enriquecimento material do país, os idealizadores do CTA

desejavam investir numa instituição acadêmica que transmitisse e reproduzisse uma

espécie de “capital cultural” para ser investido numa rede, a mais ampla possível, de

conhecimento aeronáutico.

Os militares desejavam criar uma “massa crítica”5 desse conhecimento para

que ela mesma produzisse, no futuro, pressão suficiente, no campo da tecnologia,

de forma a alavancar o desenvolvimento da construção de aviões no país. Ainda que

5 Expressão usada pelo Marechal do Ar, Casimiro Montenegro Filho, em seu depoimento fazendo analogia à quantidade mínima de partículas físseis do átomo, necessárias para sustentar uma reação em cadeia.

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essa idéia ganhasse força no contexto nacionalista do Estado Novo, a verdade é

que os militares já sonhavam com essa possibilidade há algum tempo – como será

explicitado mais adiante –, tendo em vista as necessidades estratégicas de defesa

nacional. Entretanto parece estar embutido no discurso da época, e que persistiu por

muito tempo no pensamento dos militares brasileiros, a idéia de que o Brasil só seria

forte militarmente se fosse forte nas áreas econômica e tecnológica – dois objetivos

perseguidos pelos presidentes militares depois de 1964.

Com essa visão de futuro foi criado o Curso de Engenharia Aeronáutica na

antiga Escola Técnica do Exército (hoje Instituto Militar de Engenharia) em 1939.

Entretanto, a ETE formou somente duas turmas de engenheiros aeronáuticos, num

total de quinze engenheiros. Com a criação do Ministério da Aeronáutica em 1941, a

atribuição de formação desses engenheiros passaria para o novo ministério,

interrompendo, assim, o curso na ETE em 1942. Mas, entre 1943 e 1947, quando

começou a funcionar precariamente no Rio de Janeiro o ITA, alguns poucos militares

e civis foram em busca do diploma de engenheiro aeronáutico no estrangeiro.

Por essa época a aviação encarnava um conjunto de tecnologias novas e

incipientes que careciam de desenvolvimento, e o avião como meio de transporte

disputava espaço com o trem e o navio. As possibilidades estratégicas e

econômicas da aeronáutica tinham sido reveladas entre as duas Guerras Mundiais,

mas, exceto o trabalho apresentado, em fevereiro de 1935, no Clube Militar, pelo

capitão aviador Militar Antônio Alves Cabral (SOUZA, 1944), não existia no Brasil

nenhum estudo com tal abrangência sobre o futuro da aviação no país e tampouco

sobre o modelo de transporte que suportaria a logística do desenvolvimento nacional

pretendido.

As tentativas anteriores de construção aeronáutica no país deixaram bem

claro que a dependência do exterior de uma série de materiais e de conhecimentos

necessários fragilizava qualquer iniciativa de se produzir aviões no país. Os militares

percebiam que essa fraqueza afetava a soberania e a defesa nacional, pois a

presença do Estado no interior do vasto território dependia tão somente de sua

própria capacidade de penetrar em regiões inóspitas e de orografia acidentada.

Nenhum setor da burocracia estatal estava suficientemente organizado e entre eles

articulados para levar adiante tal empreitada. As populações que viviam nos rincões

mais distantes precisavam ser assistidas e as fronteiras mais remotas serem

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defendidas. As instituições militares eram, de fato, as únicas que estavam

minimamente organizadas e articuladas para levar ao interior do país, tanto a função

assistencial do Estado quanto de defesa e o avião era o meio mais adequado para

fazê-lo. Mas esse ato soberano do Estado de promover a ocupação do território

nacional poderia ser enfraquecido por uma dependência excessiva do exterior –

como diziam os militares. Nesse sentido, a introdução do curso de engenharia

aeronáutica na Escola Técnica do Exército representou o primeiro passo na busca

de uma autonomia tecnológica nesse campo promissor.

Portanto, conhecer os pressupostos que embasaram a argumentação para

se criar um instituto de excelência científica que se mantém estável por mais de 50

anos, é a questão que se interpõe ao esforço para compreender a realidade atual do

ITA.

A vinda para o Brasil inicialmente de professores e cientistas do

Massachussetts Institute of Technology (MIT) para a “montagem” do Centro Técnico

de Aeronáutica fez parte de um momento favorável ao Brasil nas suas relações com

os Estados Unidos, resultante das artimanhas políticas de Vargas para aproveitar-se

das pretensões dos norte-americanos em usar bases no território brasileiro, como

ponto de apoio às estratégias aliadas na guerra contra os nazi-fascistas no norte da

África e no Atlântico Sul. Foi também o último ato de uma época em que as grandes

potências ainda não exerciam controle efetivo no fluxo do conhecimento, como

passou a ocorrer a partir da Guerra Fria.

1.1 CONSTRUIR AVIÕES NO BRASIL: UMA AMBIÇÃO DOS MILITARES

Na história nada acontece por acaso, há uma interdependência de fatos e

acontecimentos passados que se entrelaçam, se cruzam e criam a realidade

presente com uma identidade ímpar que só pode ser compreendida no quadro

referencial de todo conjunto. Não acredito que seja a soma de eventos que produza

um novo, nem me parece ser esta uma equação de resultado zero. Aliás, a

matemática não se presta a boas metáforas quando se trata de olhar o mundo de

uma perspectiva sociológica. A reunião em um determinado espaço, físico e de

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tempo, de habitus coletivos, de anseios, frustrações, entre outros, decorrem de

demandas reprimidas de determinados grupos sociais que encontram, ao mesmo

tempo, uma fissura nas estruturas arcaicas e as rompem. O momento dessa ruptura,

esse rito de passagem, a expansão desses “gases” comprimidos é capaz de criar

expectativas alucinadas e efêmeras. Os líderes dos grupos sociais, sensíveis às

mudanças ou às possibilidades que elas representam, certamente serão os que

projetarão e darão um caráter, no longo prazo, à satisfação ou insatisfação da

comunidade ou até de grupos de comunidades que compõem uma nação, conforme

as decisões funcionais que tomarem, em função das suas interpretações do mundo.

Nas ciências ocorre algo parecido. Muitos cientistas trabalham num mesmo

tipo de projeto, em vários lugares diferentes; há um elo informal de comunicação

entre eles através da linguagem científica, mas chegará primeiro ao invento

pretendido aquele que estiver imerso no “caldo” mais denso de circunstâncias que

sejam favoráveis ao objeto da investigação; mesmo assim, a possibilidade de

chegarem juntos é real, pois as ferramentas que a ciência lhes oferece são as

mesmas, por isso existem as lutas de reivindicação de invenções ou descobertas.

As minúcias que conferem, a um ou a outro, o galhardete da primazia é de somenos

importância para o curso da história. Só sobreviverá à “competição” o objeto que for

mais que uma teoria e puder atender anseios pessoais e estratégias que facilitem a

criação de um bem coletivo.

Aliás, citando Roberto Merton, Mary Douglas (2004, p. 97) salienta que “[...]

os problemas difíceis e as boas soluções andaram por aí aos solavancos durante

séculos e quando alguém faz a descoberta não deve ficar espantado que não foi o

primeiro.” O próprio Durkheim era enfático quanto às bases sociais do

conhecimento, atribuindo uma origem social às categorias do tempo, espaço e

causalidade. E a história tem mostrado que tudo tem um tempo certo para ser

criado, descoberto ou inventado, no campo das ciências. O avião é um exemplo real:

ainda que a vontade do homem de voar seja mitológica – e sempre foi tema dos

sonhos da humanidade –, por diversas razões não poderia ter sido inventado muito

tempo antes do que foi realmente. As condições tecnológicas e materiais, e o próprio

estágio de desenvolvimento das ciências, limitavam os cálculos dos engenheiros. A

maior parte das funções da engenharia não poderia ser desenvolvida antes que os

cálculos integrais e diferenciais, por exemplo, fossem demonstrados. Outros

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desenvolvimentos em diversas áreas do conhecimento que compõem a

complexidade da construção de uma aeronave ainda precisavam ser expandidos.

A invenção do avião se constituiu numa convergência de idéias e recursos

materiais e intelectuais cujo amadurecimento aconteceu entre os anos de 1900 e

1906, sobressaindo-se, em especial, os experimentos de Santos Dumont e dos

irmãos Wright. Mas, a verdade é que o avião seria inventado por aquela época de

qualquer maneira. Havia muitas outras pessoas com esse mesmo propósito. Se isso

não fosse verdade, durante aqueles anos, o Aeroclube de Paris não estaria

realizando competições para incentivar as atividades nessa área, com requisitos

crescentes de dificuldade técnica a cada concurso. Talvez a existência desses atos

públicos de exibição das conquistas de cada inventor (é como eram chamados os

pesquisadores naquela época) tenha criado as controvérsias quanto ao verdadeiro

“Pai da Aviação”. A única cláusula que separa os irmãos Wrigth de Santos Dumont é

a de que o aeroplano deveria ser capaz de “decolar por seus próprios meios”,

conforme estabelecia a Fédération Aeronautique Internationale, e a real falta de

comprovação do vôo realizado pelos norte-americanos em 1903. Fora esses dois

indivíduos, não se tem notícia de outro inventor que tenha conseguido colocar para

voar um veículo mais pesado que o ar.

Entretanto, Santos Dumont deixou escapar a propriedade do seu invento, ao

passo que os irmãos Wrigth em 1909 já haviam vendido o seu primeiro modelo, o

“A”, para o Corpo de Sinaleiros do Exército Americano e, em 1910, formaram a

Wrigth Company e começam a produzir aviões em série, agora sobre rodas, com

registro de patente de sua autoria. E, em seguida, desenvolveram diversos outros

modelos.

Fica claro que todos os processos e objetos “econômicos” que se criam

adquirem o seu cunho econômico através do sentido que a ação humana lhe dê

como objetivo, diria Max Weber (1999). A genialidade de Santos Dumont e os

recursos da família não foram capazes de se fundirem num projeto industrial. Ainda

que o seu sobrinho, Henrique Santos Dumont, tenha fundado a Empresa

Aeronáutica Ypiranga, em 1932, com o propósito de projetar, construir e vender

aeronaves, ela não conseguiu passar da construção de um protótipo de avião, o

EAY-201. As dificuldades de importação de motores e peças indispensáveis à

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construção dos aviões fizeram com que a empresa construísse apenas alguns

planadores e, em seguida, cessasse suas atividades (CTA, 1990).

Os efeitos da Revolução Industrial, no final do século XIX, dramatizaram e

deram visibilidade ao conflito de interesses entre inventores, empresas e

investidores sobre a questão do registro de patentes. E nos Estados Unidos, no

início do século XX, a corrida por registro de patentes produziu lances históricos de

apropriações desonestas. Por causa disso, os irmãos Wright faziam testes em sigilo.

Na concepção norte-americana a verdadeira paternidade ficava registrada na data

da patente e não propriamente na demonstração do invento. Santos Dumont preferia

a notoriedade e a posteridade; assim, não tinha motivos para trabalhar escondido da

mídia e da comunidade científica (GATAMBIDE, 1914). Além disso, ele estava

inserido na concepção francesa de cultura e trabalhava os seus inventos na Meca

(Paris) de uma concepção humanista da ciência, em que as questões monetárias

são subsidiárias ao alcance social do invento, no contexto do amplo processo

civilizador da humanidade.

“Construir aviões no Brasil” – esta era uma idéia que habitava os

pensamentos de muitos brasileiros; o próprio Santos Dumont já dizia:

É tempo, talvez, de se instalar uma escola de verdade em um campo adequado [...]. Os alunos precisam dormir junto à Escola, ainda que para isso seja necessário fazer instalações adequadas [...]. Penso que, sob todos os pontos de vista, é preferível trazer professores da Europa e dos Estados Unidos, em vez de para lá enviar alunos [...]. Meu mais intenso desejo é ver verdadeiras escolas de aviação no Brasil. Ver o aeroplano, hoje poderosa arma de guerra, amanhã meio ótimo de transporte, percorrendo as nossas imensas regiões, povoando nosso céu, para onde, primeiro levantou os olhos o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão. (CTA, s/d, v. 3, p. 379).

Mesmo que ainda não tivessem sido sistematizados os conhecimentos que

compunham o campo científico da aeronáutica, vários brasileiros se lançaram na

construção de aviões, num esforço individual que, não tardava, desvanecia.

O primeiro avião construído no Brasil, concepção, projeto e materiais

nacionais, foi obra do J. D’Alvear em 19146. O Sr. D’Alvear, apesar de não ser

engenheiro usou como guia para os seus cálculos fundamentais e aerodinâmicos o

tratado sobre aviação do francês Victor Tatin – Théorie et Pratique de l’Aviation – 6 De acordo com Souza (1944, p. 413), “[...] conforme os relatórios descritivos e desenhos depositados sob carta-patente nº 12572, trata-se de um novo tipo de monoplano, denominado “D’Alvear”, revestido de faia, idealizado e construído por J. d’Alvear.”

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que era um verdadeiro vade-mécum para quem se lançasse num projeto de

construção aeronáutica.

A D’Alvear seguiu-se o tenente de Infantaria Marcos Evangelista Vilela

Júnior que no período de 1911 a 1912 construiu dois aviões tipo “Bleriot”, um projeto

francês, que serviu de ensaio para construir um tipo de avião maior de sua

concepção, o “Alagoas”, apresentado oficialmente em 19187, o qual:

[...] tinha a célula de madeira nacional, e nela empregara a gameleira, a itapecerica, o jenipapo e a ingarana. Chegou mesmo a fazer o trem de aterragem de jenipapo. Acreditem ou não, o fato é que até 1924 ainda existiam uma das asas desse avião e o trem de pouso. Foram, também, construídas por ele, as hélices, a tela, sendo de sua composição até o verniz. (SOUZA, 1944, p. 427).

É interessante a aparente “simplicidade” da construção aeronáutica daquela

época, se comparada com apenas uns 20 anos mais adiante.

Em 1920 e 1922 os estaleiros de Henrique Lage construíram os aviões “Rio

de Janeiro” e “Independência”, em colaboração com o capitão francês Laffay8.

Entretanto, Lage disse que o seu esforço “[...] não fora correspondido pelos

governos daquela época [...]”9, mas, na década seguinte concluiu que “[...] os

propósitos do presidente Getúlio Vargas, de ajudar a quem trabalha, encorajam-me

novamente e por isso vamos meter mãos à obra!” (SOUZA, op. cit., p. 442). Em

1935 ele fundou a Companhia Nacional de Navegação Aérea que foi, de fato, a

primeira grande indústria de aviões no Brasil.

O invento de Santos Dumont despertou a vontade de construir aviões, mas

pouca atenção foi dada ao conjunto do seu pensamento de que a base do

desenvolvimento aeronáutico estaria na educação e na pesquisa tecnológica. O

Estado amparava uma estrutura acadêmica em que o ensino profissional e a

investigação científica atuavam isoladamente. Tampouco existiam canais que

unissem a pesquisa ao setor industrial e este era dependente do governo por não ter

7 Cf. Meio século de Navegação Aérea (Jornal do Brasil de 9 de abril de 1941). 8 “O capitão Etienne Lafay era componente da Missão Militar Francesa de Aviação que foi instrutor chefe da primeira turma de pilotos militares formados na Escola de Aviação Militar no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro.” (SOUZA, op. cit., p. 186). 9 É importante salientar que em 1921 Henrique Lage comprara na Inglaterra licença para fabricar no Brasil os aviões “Blackburn” e os motores Bristol e que toda a maquinaria adquirida ficou na Ilha do Viana, no Rio de Janeiro, de 1922 até 1935, quando criou a Companhia Nacional de Navegação Aérea.

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competência tecnológica para ir buscar mercados10. Além do mais, a indústria

aeronáutica, pela sua complexidade e interdisciplinaridade, é a ponta de toda uma

estrutura industrial que o país não dispunha ainda.

1.2 AVIÃO: O NOVO INSTRUMENTO DO PROGRESSO

Até 1941 identificamos duas fases dessa trajetória de “construir aviões”. A

primeira vai desde a materialização do invento até o final da Primeira Guerra

Mundial. A esse período pode ser chamado o da interação homem/máquina, pois o

homem precisava dominar o objeto que criara. Já era possível voar, mas ao mesmo

tempo, o homem iria se deparar com novas excitações sensoriais que até então

estavam encapsuladas no limitado conhecimento teórico. As habilidades motoras

seriam forçadas a contrariar o senso comum de equilíbrio e coordenação. A noção

fisiológica de orientação espacial do homem tomava outra dimensão, a interpretação

das condições atmosféricas passava a ter outro significado, além de se saber se ia

chover ou não. Mas o homem demorou a perceber a complexidade da prática de

voar e o desprendimento aventureiro passou a cobrar com vidas os erros que o

pioneirismo forçava. “Voar é o único esporte popular em que a pena incorrida por

erro grave é a morte” diria Richard Bach em seu livro “O Dom de Voar” (1980).

Os aeroplanos não se comportavam todos do mesmo modo, cada modelo

tinha reações diferentes, cada vôo era um aprendizado e muitas mortes

aconteceram. Voar era uma atividade cercada de tantos riscos e acidentes que

acabava por criar uma aura de heroísmo e coragem em torno da imagem dos

aviadores. Era comum ler na imprensa referências aos aviadores como: “O

destemido aviador”, entre outras. Eles eram os cavalheiros arrojados e valentes que

se lançavam ao espaço! Essa foi, portanto, a época romântica, “shakespeareana” da

aviação;

O avião era algo místico, que atuava no espírito humano: levava ao pânico, pela agressividade indefensável que representava, como nas operações de bombardeio; levava ao divertimento com emoções fortes, quando dos barnstormings, pela perícia e coragem dos atores aéreos, que traziam milhares de pessoas aos campos de demonstrações; levava ao alegre

10 Para saber mais sobre o assunto ver Shwartzman (2001).

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entusiasmo, pela vitória das tripulações pioneiras, como nas aplaudidas recepções aos reides. (HGAB, ICAer, 1990ª, p. 177).

Com todos os custos em vidas e acidentes, a fase anterior transmitiu à

seguinte a necessidade de o homem exercer um controle mais efetivo sobre a

máquina, torná-la mais segura. Agora não era somente voar, mas sim construir a

máquina mais fantástica, construir aviões cada vez mais seguros. Aconteceu como

que a passagem de uma fase mecânica de voar para uma fase de “mentalização”,

de racionalização do vôo, numa tentativa de melhorar a integração homem-máquina.

Aqueles pilotos que sobreviviam aos acidentes traziam ensinamentos preciosos para

o aperfeiçoamento dos aeroplanos.

Entretanto, as melhorias, que nesse momento acompanharam a evolução

tecnológica do avião, eram executadas com empirismo romântico, as limitações da

matemática estreitavam os cálculos de engenharia, os materiais utilizados na

construção (madeira, cabos de aço, tintas, resinas, tecidos, e outros) estavam

disponíveis e eram de uso generalizado, não eram específicos para a construção

aeronáutica. Não existiam engenheiros de vôo e nem pilotos de prova com formação

científica adequada para viabilizar, com um mínimo de risco, as necessidades

operacionais dos pilotos para realizarem vôos seguros.

Esta fase coincide com o período do Estado Novo e vale a pena apontar

nossa atenção para alguns acontecimentos políticos dessa época, para que se

possa compreender melhor as opções e o rumo que certos acontecimentos tomaram

durante a criação do CTA/ ITA, como será visto mais adiante.

1.3 O ESTADO NOVO CRIA AS CONDIÇÕES

O presidente Getúlio Vargas era um aficionado pela a aviação, teve seu

nome inscrito em troféus da aviação militar dos Estados Unidos, recebeu o título de

“Amigo da Aviação” do Aero Clube do Brasil e reconhecia “[...] o valor da força aérea

nos destinos do mundo.” (SOUZA, 1944, p. 3).

Movido por essa convicção, a influência de oficiais-aviadores que o

cercavam e dos empresários do setor aeronáutico, fez com que criasse o Ministério

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da Aeronáutica em 1941. O novo ministério reuniu o acervo material e humano das

aviações da Marinha e do Exército para constituir a parte militar – a Força Aérea

Brasileira, e o Departamento de Aviação Civil, do Ministério de Viação e Obras

Públicas – para regular as atividades dos aeroclubes e das empresas aéreas, bem

como da infra-estrutura aeronáutica.

A primeira parte do período Vargas que vai da chegada ao poder em 1930,

até a instalação do Estado Novo, chamado por ele de Estado Nacional, foi um

período rico em acontecimentos políticos, no cenário nacional e internacional, os

quais ajudarão a compreender o ambiente em que germinou a idéia de se construir

no Brasil um centro de excelência de ensino e pesquisa aeronáutica.

As dificuldades econômicas mundiais (colapso de Bolsa de Valores de Nova

York de 24 a 29 de outubro de 1929) ainda influíam no ambiente brasileiro: greves e

reivindicações operárias marcaram os primeiros dias do novo regime. O movimento

comunista ganhava força e, em abril de 1930, é publicado no Diário Nacional de São

Paulo o Manifesto Comunista de Luiz Carlos Prestes. Ao mesmo tempo crescia o

movimento integralista cujo ideário era do nacional-socialismo de inspiração fascista.

O nacionalismo integralista se contrapunha ao internacionalismo comunista e o

presidente Vargas 11 – que havia se submetido aos princípios do Tenentismo e com

ele formou nos primeiros momentos –, manifestava claramente simpatia pelo

primeiro movimento. Essa opção anticomunista do presidente fica mais clara ainda

quando, em 1937, dá suporte a sua argumentação para ganhar poderes

excepcionais em cima de chamado Plano Cohen (FROTA, 2000), que denunciava

supostas atividades comunistas no país e que, em seguida, foi desmascarado como

sendo um estudo integralista feito pelo então capitão Olímpio Mourão Filho, sem

nenhuma comprovação dos fatos nele relatados.

É importante conhecer-se a opção político-ideológica do presidente para

compreender as circunstâncias que facilitaram a vinda de professores dos Estados

Unidos para a criação do CTA/ ITA na década de1940, já no Estado Novo. As

ligações do presidente com aquele país eram mais próximas do que se tem

noticiado. O seu filho, Getúlio Vargas Filho, estudou e graduou-se na John Hopkins

University, entre 1935 e 1939. Getúlio Vargas foi muito homenageado na Feira

11 Getúlio Vargas era filho do general Manoel Vargas, tendo desde jovem bastante contato com os militares.

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Internacional de Nova York em 1940 quando foi instituído troféu President Vargas

que seria entregue a unidades aéreas do Exército, da Marinha ou do Corpo de

Fuzileiros Navais dos Estados Unidos que obtivesse anualmente a melhor

performance e incrementasse a política de boa vizinhança nas Américas. Além

disso, ele recebeu o título de “Amigo da Aviação” da imprensa norte-americana

(SOUZA, 1944) e brasileira. Esse tipo de homenagem estava no contexto de

reaproximação das relações Brasil – Estados Unidos que, a partir da instalação do

Estado Novo em 1938, começaram a mudar com a preparação de um programa de

cooperação de largo espectro (SEITENFUS, 2003).

Os regimes ditatoriais nazi-fascistas que ascenderam ao poder na Europa

com um Executivo forte, um Estado onipresente e corporativo, um partido único e a

existência de um líder carismático, inspiraram os princípios do Estrado Novo. Por

causa dessas características, o regime brasileiro, além das relações com os países

do Eixo, criava desconfiança no governo dos Estados Unidos. Entretanto, uma série

de circunstâncias irá transformar o distanciamento do Brasil com relação aos

Estados Unidos em uma forte aliança. Dentro do governo o próprio ministro das

Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, durante vários anos, isolado no governo em

razão de suas simpatias, “[...] pratica uma política pró-norte-americana nitidamente

diferenciada da do chefe de Estado.” (Ibidem, p. 185). Entretanto “[...] a posição dos

Estados Unidos quanto a um eventual armamento brasileiro, e latino-americano em

geral, é ambígua e desconfortável.” (Ibidem, p. 185). Ao contrário, a “América Latina

visa obter a maior ajuda material possível, e empenha-se o menos possível nos

projetos de defesa continental” (Ibidem, p. 186) e particularmente o Brasil:

[...] sobretudo no que diz respeito à cessão de bases militares para a defesa continental, exige um tratamento especial que vai muito além dos compromissos previstos pelas conferências pan-americanas e das intenções dos Estados Unidos. (Ibidem, p. 186).

A compreensão dessa tensão criada por um dilema interno, de preferência

ideológica, definida e a crise internacional permite perceber que se vivia uma época,

tanto marcada por nuances, como por acontecimentos significativos, que conduzira

a construção de um tipo de cooperação Brasil-Estados Unidos que veio a facilitar os

intercâmbios durante a criação do CTA/ ITA.

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No rastro dessa política de aproximação com os Estados Unidos, Getúlio

Vargas deu entrevista à escritora e jornalista norte-americana Alice Hager, em 1941,

em que deixa bem claro o seu conhecimento e desejo de fazer progredir a

aeronáutica no país. Entre as várias respostas dadas pelo presidente, a narrativa a

seguir é bastante significativa para a compreensão do grau de seu interesse pela

aeronáutica e a intenção de inseri-la no seu projeto desenvolvimentista:

[O presidente] Indicou-me uma cadeira ao lado de sua escrivaninha e afastou-se um pouco para me dar toda sua atenção. Ouviu-me gravemente enquanto eu agradecia a honra do convite que nos fizera para visitar o seu país. Disse-lhe que sentia haver muitas coisas de comum entre os nossos países, sob o ponto de vista aeronáutico, posto que nós nos Estados Unidos já havíamos enfrentado muito dos problemas que agora o Brasil experimentava, embora nós não tivéssemos a mesma necessidade premente que o Brasil tem em romper o impasse das comunicações que somente pode ser resolvida por aviação. Disse-lhe que havia grande interesse por parte dos Estados Unidos em auxiliar o Brasil a construir sua própria indústria aérea.

O presidente pareceu compreender que eu falava com toda sinceridade. Seus olhos escuros, profundos, brilharam com entusiasmo, e respondeu-me que muito o alegrava ouvir esses conceitos, por isso que estava ansioso por obter nossa cooperação e desejoso de oferecer oportunidades convidativas à assistência das companhias e dos engenheiros americanos. (SOUZA, 1944, p. 75).

É interessante notar que a entrevista foi concedida em 1941 quando o

presidente dificilmente teria se manifestado publicamente de maneira tão

cooperativa com os Estados Unidos, ainda que o ministro Osvaldo Aranha, desde

1939, mantenha estreitos contatos com Washington. O governo já estava

empenhado em atrair os Estados Unidos para cooperar no seu projeto

desenvolvimentista, mas tinha declarado moratória aos credores norte-americanos,

fato que, inclusive, estava dificultando o projeto da siderúrgica. A mudança da

política externa de Vargas, depois da crise com os países do Eixo, e a vontade

política de obter vantagens para o país, parecem ter influído no novo papel que o

presidente vai assumir nas relações com os Estados Unidos. Fica patente, nessa

entrevista, o esforço que ele faz, no seu discurso, para impressionar a interlocutora.

Sra. Hager: Estou inteiramente informada do que tem feito V. Ex.ª para desenvolver a aviação no Brasil. Pouco, porém, tem sido conhecido, fora do seu país, sobre o que V. Ex.ª planeja para o futuro. Com os tempos tormentosos que atravessa o mundo, há, sem dúvida, grande interesse em conhecer esse plano [...].

Vargas: Do ponto de vista material temos que assinalar o grande progresso realizado pela Aviação Naval e Militar.

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A Aviação, criada há vinte anos, é hoje um baluarte da defesa nacional.

É de tal importância que engendrou a necessidade da criação de um Ministério – o Ministério da Aeronáutica 12. (SOUZA, 1944, p. 44).

O presidente prossegue respondendo com dados estatísticos das Aviações

Militar, Naval e Civil e se refere as grandes distâncias do território nacional, ao

transporte de carga e de pessoas e termina dizendo:

Esse é, porém, o estágio inicial. Agora que começamos nossa indústria de aço; agora que estamos construindo uma grande fábrica de aviões em Minas Gerais 13 e nós estamos preparando para a manufatura de motores de avião no Estado do Rio 14, já estamos no direito de pensar em dar à Aviação um desenvolvimento adequado às necessidades nacionais, quer sob o ponto de vista de defesa, quer sob o de transporte rápido e barato. Precisamos do auxílio técnico e da experiência norte-americana. Precisamos de suas máquinas, e de suas missões de técnicos para iniciar nossos engenheiros e trabalhadores. Enviamos grande número de estudantes brasileiros a vosso país aprenderem vossos métodos, e continuaremos a observar essa política.

Uma das grandes preocupações do nosso governo tem sido formar uma mentalidade aeronáutica entre os cidadãos e estimular o preparo de pilotos da reserva civil. Queremos fazer nossos próprios aviões, mas estamos dispostos a aceitar a cooperação das companhias norte-americanas. Não queremos fazer para o governo o monopólio desta indústria; receberemos com a maior satisfação o emprego de capitais americanos. Podeis dizer aos vossos fabricantes que o Brasil é um imenso campo aberto para o desenvolvimento da Aviação e que estamos dispostos a garantir os direitos dos que nos auxiliarem nessa empresa. (SOUZA, op. cit., p. 72).

É importante ressaltar que essa entrevista foi dada antes do ataque a Pearl

Harbor e o Brasil ainda mantinha uma neutralidade indecisa em relação uma

eminente necessidade de adesão a um dos lados em conflito; mas, de toda forma,

as palavras de Vargas representavam um prognóstico importante para as futuras

relações do Brasil com os Estados Unidos.

Interessante se torna, também, ver como o Brasil era visto de uma

perspectiva norte-americana. Sobre isso, o trabalho de Annete Baker Fox (The

Politics of Atraction, 1977) fornece importantes referências. A autora estudou as

relações dos Estados Unidos com quatro países de médio porte, a saber: Canadá,

Austrália, México e Brasil, e inicia dizendo que estes países são suficientemente 12 Nessa época os Estados Unidos ainda não possuíam uma Força Aérea com organização independente, fato que só ocorreu depois da guerra. 13 Refere-se à Fábrica Nacional de Aviões de Lagoa Santa, construída pelo governo federal mais tarde adjudicada à empresa concessionária Construções Aeronáuticas S.A. de um pool de empresários brasileiros. 14 Refere-se à Fábrica Nacional de Motores (FNM), empreendimento estatal localizado na Baixada Fluminense-RJ, que tinha como programa construir motores para aviões e tratores.

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significativos para os Estados Unidos para que colocasse em risco as boas relações

com eles, e diz a autora: “Por isso existe uma atração exercida em ambas as

direções.” (p. 19). Ela descreve o Brasil como sendo uma sociedade formada por

diversas etnias e culturas e reconhece que essa diversidade torna mais difíceis os

objetivos do governo brasileiro e, por isso, os Estados Unidos consideram o Brasil

um país singular na América Latina.

Fox (1977) destaca que no início do século XX, o Barão do Rio Branco

atrelou a política externa do Brasil aos Estados Unidos, e que nos anos de 1920,

enquanto o México liderava os países hispânicos da América Latina para se

contrapor à política dos Estados Unidos, o Brasil criava as bases para uma aliança

não escrita. Mas, durante o período que antecedeu o rompimento das relações do

Brasil com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), o país era olhado com

preocupação e os Estados Unidos procuravam adotar ações preventivas para evitar

que a política interna do Brasil não facilitasse a infiltração de agentes nazi-fascistas

no continente. A autora ainda reconhece a aversão ideológica de Getúlio aos

Estados Unidos, mas destaca que essa aversão estava longe da genuína hostilidade

dos líderes mexicanos. O presidente Vargas estava em posição de tirar vantagens

econômicas da rivalidade entre a Alemanha e os Estados Unidos.

De fato, a guerra deu a Vargas uma rara oportunidade de implementar seu

projeto de industrialização. Fox (op. cit.) afirma que o Brasil ocupou uma posição

estratégica, tanto militar como diplomática, e a colaboração com o Brasil na época

da guerra não foi uma questão somente de alta prioridade política, mas também

produziu uma burocracia trivial com diversas agências do governo dos Estados

Unidos.

A correspondência do embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Carlos

Martins Pereira e Souza, para o ministro Osvaldo Aranha, era muito intensa no que

diz respeito à preocupação do governo norte-americano quanto as atividades dos

alemães no continente, principalmente na Argentina e no México, e às reclamações

do sub-secretário de Estado Summer Wells sobre artigos publicados pela imprensa

brasileira atacando o governo norte-americano que ele considera “[...] malévolas,

grosseiras e ultrajantes, contrárias, portanto à política de aproximação dos dois

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governos.” 15 Uma série de outras informações, contidas nessa correspondência, dá

conta da dimensão que tomava as relações do Brasil com os Estados Unidos e

também nos indicam que a relevância delas estava diretamente relacionada aos

interesses norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial.

Nos anos de 1940 e 1941 o Exército dos Estados Unidos investiu no Brasil,

através da Panamerican Airways, 12 milhões de dólares para a melhoria das pistas

de aviação no norte e nordeste do Brasil para apoiar os deslocamentos dos aviões

fabricados nos Estados Unidos destinados às forças inglesas na África 16.

Ainda que o assunto predominante na correspondência diplomática entre os

dois países fosse relativo à segurança continental, não é difícil perceber que a

política externa dos Estados Unidos começava a plantar as sua base

intervencionista que daí em diante não recuou mais 17 e, na época, abriu espaço

para satisfazer os interesses brasileiros em trazer para o Brasil cientistas do

Massachusets Institute of Technology (MIT). Vale ressaltar que o professor Richard

Harbert Smith, como veremos no próximo capítulo, era assessor do governo dos

Estados Unidos (Departamento de Defesa) além de chefe do departamento de

Aeronáutica do MIT, antes de vir para o Brasil para participar do projeto de

construção do CTA/ ITA.

1.4 AS BARREIRAS EXTERNAS

Particularmente três atos do governo norte-americano nessa época

produziram efeitos no projeto brasileiro de construir aviões, sem incluir outros

projetos de construção de material bélico no país. O Lend Lease Act 18 aprovado

pelo congresso norte-americano “decretava” a dependência militar brasileira ao

material bélico daquele país. A lei autorizava o governo dos Estados Unidos a ceder, 15 Ofício nº 600/844.42 de 16 set. 1940 (Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro). 16 Ofício nº 595/900.1 de 21 ago. 1941 (Ibidem). 17 No ofício nº 569/900.1 de 11 ago. 1941, do embaixador do Brasil para o ministro da Relações Exteriores dava conta do embate entre dois grupos de intelectuais e políticos que desejavam influir nos rumos da política externa dos Estados Unidos – os pacifistas, voltados para os problemas domésticos, partidários de uma política isolacionista e os internacionalistas, partidários de uma política intervencionista (Ibidem). 18 O teor do Lend Lease Act consta no ofício nº 591/524.2 de 16 ago. 1941, do embaixador do Brasil nos Estados Unidos para o MRE (Ibidem).

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por arrendamento, qualquer tipo de material bélico que fosse necessário para os

países americanos que cooperassem com a defesa continental. Era um

arrendamento aparentemente fictício, pois não se tem notícia de como ele era pago.

Entretanto, o uso e o destino desse material estavam condicionados à aprovação

norte-americana e era periodicamente inspecionado por militares daquele país.

Em outras palavras, o Brasil podia usar em treinamento e na defesa externa

do continente americano contra forças do Eixo, mas não poderia usá-los com outros

fins bélicos ou vendê-los para terceiros sem autorização dos Estados Unidos. Esse

acordo, somado a um decreto do presidente norte-americano de 1940 19, impondo

autorização prévia do governo para cessão ou remessa de planos, licenças,

desenhos ou especificações relativas à construção ou operação de motores de

aviação ou qualquer aparelhamento ligado à indústria de construção de aviões para

o exterior, influiu decisivamente no comportamento dos militares brasileiros com

relação à soberania nacional, particularmente no que diz respeito ao uso de material

bélico pelas forças armadas e nos destinos da nascente indústria aeronáutica

brasileira. Entretanto, esse ato restritivo do governo norte-americano não se refere à

saída de cientistas ou acadêmicos do território dos Estados Unidos, e nem limita o

grau de cooperação na área científica.

O Lend Lease Act teve influência restritiva nos projetos de construção

aeronáutica porque facilitou a remessa para o Brasil de uma quantidade significativa

de aviões militares (os mais modernos da época) e todo aparato para operá-los, que

aqui permaneceram até se tornarem obsoletos ou se deteriorarem pelo uso até a

década de 1960. Ao final da guerra, foram colocados à venda na Base Aérea de

Natal, pelo governo dos Estados Unidos, mais de mil aviões DC-3 e outros tipos de

aviões de transporte20. O preço desses aviões era atraente, e várias companhias

aéreas e a FAB os utilizaram no transporte doméstico por muitos anos (praticamente

até meados dos anos 1960). Esses “excedentes de guerra”, como eram chamados,

inundaram o mercado de aviões no mundo todo, tornando economicamente inviável

construir no Brasil aviões maiores do que os que eram utilizados para formação de

pilotos. O segundo ato, que diz respeito à autorização prévia do governo norte-

19 O teor desse decreto está no ofício nº 600/844.42 de 16 set. 1940 (Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro). 20 Histórico da Base Aérea de Natal.

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americano 21 para cessão ou venda de qualquer material relativo a indústria de

construção de aviões, fechou a última opção de importação desse tipo de material e

serviu para conduzir com mais vigor o pensamento, particularmente dos militares, de

que esse tipo de indústria era algo tão estratégico que, se não fosse desenvolvido

pelo próprio país, a autonomia de seus atos soberanos no campo das relações

internacionais, ditada pela dependência tecnológica, poderia ser comprometida no

futuro (MONTENEGRO FILHO, 2006).

A terceira questão está ligada à velha disputa entre Argentina e Brasil. Em

outubro de 1927, a Argentina inaugurou a primeira fábrica de aviões da América

Latina, a Fábrica Militar de Aviones, em Córdoba, e em 1º de outubro de 1928, o

primeiro avião ali construído, cujo projeto era inglês, o Avro 504 Gosport, fazia o seu

vôo de estréia. Durante a Segunda Guerra Mundial, ante a impossibilidade de a

Argentina conseguir comprar aviões no exterior, foram desenvolvidos diversos

modelos de aviões de treinamento e um de guerra, baseado no modelo Mosquito

inglês, o IA-27 Calqui. Com o desenvolvimento da construção aeronáutica no país,

impulsionada pelas vantagens econômicas obtidas pela Argentina com a guerra, os

militares trabalharam no sentido de ampliar o número de engenheiros e técnicos em

construção aeronáutica. Até então, o corpo técnico era composto, quase que

totalmente, por engenheiros europeus em fuga da guerra, particularmente alguns

franceses que haviam servido ao governo de Vichy. Em 1943 foi criado o Instituto

Aerotécnico (I.Ae.) que se encarregaria dos projetos e programas de construção

aeronáutica (CICALESI; RIVAS, 2004). A criação desse Instituto fez com que os

argentinos tentassem contratar professores e técnicos nos Estados Unidos 22, uma

vez que o recrudescimento da guerra na Europa e o controle de emigração mais

forte impediam a continuidade da vinda de europeus.

Essas atividades na Argentina passaram a ser objeto de observação dos

militares brasileiros (MONTENEGRO FILHO, op. cit.) que já acompanhavam com

preocupação a evolução política do país vizinho. A situação culminou com a

deposição do presidente Ramon Castillo em 1943, da qual o coronel Juan Perón

tomou parte e passou e exercer forte influência no governo militar como ministro da 21 Ofício nº 600/844.42 de 16 set. 1940, do embaixador do Brasil em Washington ao MRE (Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro). 22 O ofício nº 763/620 de 27 out. 1941, do embaixador do Brasil em Washington informa o MRE da ida para a Argentina de técnicos e instrutores de aviação e relata outras atividades dos argentinos nos Estados Unidos relativas ao assunto (Ibidem).

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Fazenda. Nessa oportunidade os militares brasileiros interceptaram uma

correspondência do professor Richard Smith, chefe do Departamento de

Aeronáutica do Massachusets Institute of Technology (MIT) de Boston, para

autoridades argentinas, com o projeto de uma escola de engenharia aeronáutica

semelhante ao que estava sendo gestado no Brasil pelo Ten.-Cel.-Aviador Casimiro

Montenegro Filho.

1.5 A AVIAÇÃO NA AGENDA POLÍTICA

Já na segunda metade dos anos 30 os aviadores militares e navais 23, bem

como alguns aviadores civis, debatiam acaloradamente a criação de um ministério

que reunisse todos os meios aeronáuticos, destacando a necessidade de uma

regulamentação que coordenasse a crescente atividade aérea no país. Entre os

aviadores militares a discussão girava em torno do sub-aproveitamento da

capacidade estratégica do avião, enquanto elemento complementar às ações da

guerra na superfície. Para os ministros da Marinha e do Exército, o avião

representava a terceira dimensão da batalha e, portanto, um elemento importante e

indispensável para as táticas de combate na superfície. Todavia, a maioria dos

aviadores militares e navais percebia o avião como a terceira dimensão da guerra 24,

num sentido bem mais amplo, devido ao grande potencial estratégico que ele

representava na condução de um conflito.

A aviação civil passava também por um expressivo desenvolvimento, mas

estava subordinada ao Ministério da Viação e Obras Públicas. A categoria de pilotos

comerciais era constituída por estrangeiros 25; dos poucos pilotos brasileiros, muitos

eram militares que voavam em linhas aéreas, além de suas atividades peculiares à

23 Aviadores militares eram os oficiais e sargentos do Exército que pilotavam aviões, e pilotos navais eram os oficiais de Marinha que também pilotavam aviões; ambos deixaram de existir com a criação do Ministério da Aeronáutica em 1941. A Marinha do Brasil manteve os seus pilotos navais, mesmo após a criação do Ministério da Aeronáutica, mas estes só podiam pilotar helicópteros. O Exército voltou a ter pilotos quando comprou helicópteros na década de 1990. 24 Na segunda metade da década de 20 e toda a década de 1930 a obra O Domínio do Ar (escrita em 1921) do general italiano Giulio Douhet, influenciou profundamente todos os que imaginavam a aviação como uma Força Armada independente. 25 Portaria do diretor do Departamento da Aeronáutica Civil assinada pelo ministro da Viação e Obras Públicas de 21 de outubro de 1931 fixa o prazo de 2 anos para que as aeronaves nacionais sejam tripuladas com aeronautas brasileiros.

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carreira. Mesmo com a intervenção do governo, as companhias de navegação aérea

resistiam à política de substituir os pilotos estrangeiros por brasileiros. Essa questão,

ainda que eu não tenha encontrado referências explícitas, pode ter reforçado a idéia

de incorporar a aviação civil, junto com as militares no novo Ministério do Ar 26.

De fato, causou grande impacto a conferência que o então capitão Antônio

Alves Cabral proferiu no Clube Militar, em 20 de fevereiro de 1935, sobre a política

aérea brasileira, porque ela introduzia novos paradigmas no discurso dos militares

ante a sociedade, como será explicitado mais adiante. O evento contou com a

presença de importantes autoridades da República, como o general Pantaleão

Pessoa (chefe da Casa Militar da Presidência da República); o general Pedro Aurélio

de Góes Monteiro (ministro da Guerra); o general Leitão Carvalho (comandante da

Escola de Estado-Maior do Exército); o general Eurico Gaspar Dutra (diretor da

Aviação Militar); o general Olímpio da Silveira (chefe do Estado-Maior do Exército);

Dr. Gabriel Passos (procurador Geral da República); o general João Gomes

(comandante da 1ª Região Militar); coronel Newton Braga (comandante do 1.º

Regimento de Aviação); coronel Amílcar Sérgio Veloso Pederneiras (comandante da

Escola de Aviação Militar); coronel Vasco Alves Secco (professor da Escola de

Estado-Maior do Exército – em 1955 foi ministro da Aeronáutica), Vítor de Carvalho

e Silva (comandante da Aviação Naval); o major Frederico Rondon, e outros

militares.

Além desses, estavam presentes vinte deputados federais, o diretor da

Aeronáutica Civil, Dr. César Silveira Grillo e diversas outras pessoas do DAC e de

outros órgãos federais da capital. Chama a atenção de como a questão aeronáutica

estava em evidência, naquele momento, tanto no meio militar como no político. Um

simples capitão conseguiu mobilizar um número grande de pessoas influentes da

República e o tema da conferência foi assunto dos jornais do Rio de Janeiro no dia

seguinte (SOUZA, 1944).

O eixo central do trabalho do capitão Alves Cabral repousava sobre a

necessidade, que já se sentia no Brasil, de uma política aérea e que isso só seria

possível com a criação do Ministério do Ar a exemplo do que já ocorria em diversos

outros países. Dentro das linhas da política que sugere está a questão da

26 Os jornais que, na época, noticiavam o debate sobre a criação do novo ministério, se referiam a ele como Ministério do Ar.

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construção aeronáutica. Ele apresenta dados sobre a realidade aeronáutica, civil 27 e

militar do país:

Durante 8 anos de atividade aérea, cada vez mais intensa, o Brasil recebeu do estrangeiro cerca de 554 aviões. Neste período, as nossas necessidades aéreas, em período calmo 28, anualmente já atinge 100 aviões e 133 motores. Diante dos fatos que apresenta, coloca, entre outras, as seguintes indagações: “[...] onde estão a nossa massa de técnicos, a nossa indústria aeronáutica, [...] as redes de aeroportos, para atender a eventualidade de uma guerra em qualquer das nossas fronteiras”, e sugere um “rumo a seguir em nossa organização aeronáutica [...]. Para o Brasil acompanhar o progresso vertiginoso da guerra aérea tem que:

[...]

c) Criar campos experimentais para tudo que se empregar na Aviação militar e civil.

d) Organizar várias Escolas de aprendizagem e especialização aeronáutica.

O rendimento do material e a eficiência de uma aviação estão no alto grau de instrução do seu pessoal, cuja mentalidade deve ser formada em escolas.

Escola civil de engenharia aeronáutica, possuindo um curso complementar para engenheiros de aeronáutica militar. (SOUZA, 1944, p. 53).

É importante destacar que a partir dessa conferência é introduzida no

discurso dos militares, nas questões ligadas à aeronáutica, uma conexão das

necessidades subsidiárias à área militar com os projetos úteis à área civil, nunca ao

contrário. Soa como um recurso de convencimento, dando reforço político a todos os

projetos que daí em diante serão implantados, inclusive no caso da criação do CTA/

ITA, como está explicitado na maioria dos documentos examinados. Procuram dar

uma idéia magnânima aos seus projetos que transcenderiam às necessidades

militares, como se estas não tivessem força de argumento suficiente para se

imporem por si só. Mais tarde, com a criação do Ministério da Aeronáutica, esse

apelo político foi profundamente incorporado ao discurso dos militares da

Aeronáutica para justificar a obtenção de recursos e outras prioridades aos seus

projetos.

O trabalho apresentado pelo capitão Alves Cabral foi fruto de um debate

intelectual que o mesmo travou com a Revista Defesa Nacional, a qual publicou em

sua edição de outubro de 1928 um edital afrontando a idéia de ser criado um

27 Entende-se por aeronáutica civil todas as aeronaves e a burocracia dos aeroclubes e as aeronaves privadas sem fins comerciais, e por aeronáutica comercial todos os meios aéreos e a burocracia relativa às atividades comerciais de transporte aéreo. 28 “Período calmo” significa período de paz, o contrário do período de guerra.

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Ministério do Ar, e o mesmo se constituiu num marco da História da Aeronáutica

Brasileiro por ser o primeiro trabalho favorável à criação do novo Ministério

apresentado em público. O teor da conferência foi mandado imprimir pelo general

Góis Monteiro, ministro da Guerra, que o prefaciou com as seguintes palavras:

De tudo o que viu e observou o Cap. Cabral, colheu dados e idéias com que justifica feliz adaptação ao caso brasileiro. Entre esses, destaca-se, pelo seu largo alcance, unificação das aviações militares e civil com a criação do Ministério do Ar, importante órgão da administração pública que coordenará e desenvolverá todos os recursos da aviação nacional com vistas à técnica, à indústria e à defesa aérea.

Por tudo isto, aconselho às autoridades e aos camaradas do Exército em geral, a leitura da conferência em apreço por ser trabalho merecedor de estudo e encarar abundante matéria de reflexão. (SOUZA, 1944, p. 45).

Ainda dentro desse tema, outra contribuição à melhor compreensão do

ambiente em que estavam em gestação as idéias de “construir aviões” é a de que no

conceito utilitário para a área civil, embutido nos projetos militares, residia a

originalidade do trabalho do capitão Alves Cabral, porque a estrutura aeronáutica

dos três países, que o estudo usa como referência (Itália, Inglaterra e Estados

Unidos), não possuía as aviações militares e civil tão intimamente correlacionadas

como no caso que ele sugeria para o Brasil. A idéia era que se criasse uma

burocracia única para a aeronáutica brasileira, deslocando da esfera exclusiva militar

para a esfera política parte significativa dos problemas inerentes a aviação geral,

tornando-as politicamente condicionadas, não escapando, desse modo, ao

pensamento de Max Weber (1999) de que esse tipo de arquitetura organizacional

aparece “[...] sempre que se tem em mente que interesses de distribuição,

conservação ou deslocamento de poder são decisivos para a solução daquela

questão.” É do mesmo autor a idéia de que a “[...] burocracia foi e é um instrumento

de poder de primeira ordem – para quem controla o aparato burocrático”, o que pode

tornar tema de outras reflexões saber se o controle que os militares exerceram sobre

a burocracia da aviação civil foi benéfica ou não, ou quais foram as conseqüências

dessa concentração de poder.

Comparando o estudo apresentado pelo capitão Alves Cabral em 1931 com

o Plano de Criação do CTA (Recommendations for the CTA law) apresentado pelo

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professor Richard H. Smith em 194629 pode-se observar uma importante

similaridade, tanto nos fatores considerados como nas projeções para o futuro.

1.6 AS DEMANDAS DE CONHECIMENTO TECNOLÓGICO

As idéias e sugestões contidas no trabalho do capitão Alves Cabral, que teve

ampla divulgação nos meios oficiais, não escapavam da grande discussão em

algumas áreas do governo que se ocupavam com as questões do transporte

nacional. No início da década de 30, o avião já era apontado como importante meio

de transporte do futuro. Desde bastante tempo o transporte aéreo era secundário em

relação ao transporte marítimo e ferroviário, o que se justificava pela baixa

capacidade de transportar carga e pessoas.

É em 1927 que surgem as primeiras companhias de transporte aéreo

brasileiras, começando pela Sociedade Anônima Empresa de Viação Aérea Rio

Grandense (VARIG), em 7 de maio daquele ano. Em novembro se estabelecia no

Brasil a Compagnie Générale d’Entreprises Aéronautiques – Lignes Latécoère, com

linhas aéreas entre a França e a Argentina, com escalas no Brasil. Em 1929 é

fundada a Panair do Brasil, uma subsidiária da Pan American Airways Inc., dos

Estados Unidos, e na década de 1930 foram criadas a Transportes Aéreos Aerovias

Brasil, a VASP e outras.

Quase todos os vôos originados na Europa para a América Latina eram

obrigados a pousar em território brasileiro devido à curta autonomia dos aviões da

época, o que produzia um movimento no espaço aéreo brasileiro diferenciado dos

demais países na América Latina; mesmo assim, os serviços civis de navegação

aérea eram ainda regulados por um decreto de 1925 30 quando ainda não existiam

linhas aéreas intercontinentais.

29 O original em inglês encontra-se no Histórico Analítico do CTA (s/d, p. 573, v. 3). 30 Decreto nº 16983 de 22 de julho de 1925 (INCAER, 1990).

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A década de 1920 foi marcada também pelos reides31 internacionais que

tinham o Brasil como rota. Começando em 1920 com reide Rio-Buenos Aires e

culminando com a chegada ao Rio de Janeiro em 1930 do Graff Zeppelin, foram ao

todo vinte e quatro reides passando pelo Brasil nesses 10 anos (INCAER, 1990ª).

Foi um período de verdadeiro frenesi aéreo em todo o país e a necessidade de

serviços técnicos era crescente.

Após a Revolução de 1930, tentando ampliar o limitado espaço aéreo do

Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, a Aviação Militar do Exército cria o Serviço

Postal Aéreo Militar, passando logo depois a chamar-se Correio Aéreo Militar (CAM).

A primeira linha do CAM, ligando o Rio de Janeiro a São Paulo, foi feita no dia 12 de

junho de 1931 pelos tenentes Nelson Freire Lavanère-Wanderley e Casimiro

Montenegro Filho, este, mais tarde, foi o líder da implantação do CTA/ ITA 32 como já

me referi anteriormente. Ao mesmo tempo em que serviu para encorajar o uso do

avião como um meio de melhorar as comunicações com o interior do país, mudou a

concepção tática e passou-se a perceber o valor estratégico do avião. A partir daí

foram sendo criadas linhas para os mais distantes lugares do território nacional,

unindo comunidades isoladas cujo acesso só era possível por transporte rudimentar

de superfície.

De fato, é no período do Estado Novo que são efetivadas medidas concretas

com o sentido de regulamentar a atividade aeronáutica sobre o território brasileiro,

permitindo a sua expansão de uma maneira continuada e rápida. Como

conseqüência, passou-se a demandar, cada vez mais, por pessoas com capacitação

científica e técnica.

Em abril de 1931, foi criado o Departamento de Aeronáutica Civil, vinculado

ao Ministério de Viação e Obras Públicas e em janeiro de 1932, um decreto-lei,

regula os serviços aeronáuticos civis. Vários outros atos reguladores foram

promulgados pelo governo nesse período, culminando com a publicação do decreto-

lei nº 483 de 8 de junho de 1938 do Código Brasileiro do Ar que vinha sendo

31 È um anglicismos originado da palavra raid que significa uma rápida incursão em território inimigo ou invasão. Esse termo era muito usado quando se referia a incursões aéreas por rotas desconhecidas. 32 A descrição desse vôo esta gravada em vídeo como Depoimento Autobiográfico do Marechal Casimiro Montenegro Filho e faz parte do acervo da Biblioteca Central do ITA.

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discutido desde 1931 (SOUZA, 1944). Este é o mais importante diploma legal sobre

as relações jurídicas criadas pela navegação aérea em território brasileiro.

A Aviação Militar também passou por grandes transformações na década de

1930 com fatos significativos que geraram demanda por capacitação técnica. Como

a mais nova Arma do Exército foi profundamente reestruturada pelo decreto de

março de 193333. Sob a Direção do general Eurico Gaspar Dutra foi ativado o

Parque Central de Aviação, o Depósito Central de Aviação 34 e o Serviço Técnico de

Aviação, em 1934. Este último órgão tinha por missão coordenar o desenvolvimento

técnico da aviação, além de acompanhar e orientar a homologação de novos aviões

construídos no Brasil ou importados e controlar a qualidade do equipamento e

material de emprego aeronáutico. O seu primeiro diretor foi o ten. cel. aviador-

engenheiro Antônio Guedes Muniz que fora graduado pela École Nationale

Superièure D’Aeronautique da França. O Serviço Técnico de Aviação, que

funcionava no Rio de Janeiro, possuía equipamentos e laboratórios de ensaio, e

prestou cooperação à indústria para a produção de componentes para a aviação,

particularmente no período da guerra quando as importações se tornaram difíceis.

Em 1931 o capitão Casimiro Montenegro Filho começa a trabalhar no que

viria a ser o Parque de Aeronáutica de São Paulo, onde foi inaugurada em 1935 a

Oficina Wright para revisar os motores dos aviões do Correio Aéreo Militar com

auxilio da Fábrica Wright em Patterson, Estados Unidos. Em seguida esse tipo de

motor foi escolhido para ser fabricado na Fábrica Nacional de Motores (FNM) na

Baixada Fluminense-RJ. Inaugurada por volta de 1934 tinha no seu programa de

produção fabricar motores de avião e de tratores.

O surto industrializador do Estado Novo também alcançou a fabricação de

aviões e componentes no país. Velhos projetos e iniciativas abortadas por industriais

no final da década de 1920 e início da de 1930 foram retomados.

Henrique Lage, industrial da construção naval do Rio de Janeiro, havia

construído em 1922, em colaboração com o capitão Laffay35, dois aviões e se

33 Decreto nº 22.591 de 29 de março de 1933 (INCAER, 1990). 34 Parque, no jargão militar, significa instalações semi-industriais onde são feitos grandes serviços de reparo e de revisão geral em material de guerra, neste caso os aviões. Depósito central é o local são armazenadas as peças de aviação, novas ou revisadas, antes de serem distribuídas às Unidades Aéreas; é o principal elo da cadeia logística. 35 O capitão René Lafay foi instrutor chefe de aviação da Missão Francesa de Aviação junto ao Exército Brasileiro.

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propunha a instalar uma fábrica com esse fim, mas queixava-se que os governos

daquela época não manifestaram nenhum tipo de apoio, o que o fez abandonar o

projeto. Em 1935, Henrique Lage afirma que “[...] os propósitos do presidente Getúlio

Vargas, de ajudar a quem trabalha, encorajam-me novamente e, por isso, vamos

meter mãos à obra!” (SOUZA, 1944, p. 442). A iniciativa de Henrique Lage insere a

aeronáutica no surto industrializador do Estado Novo com a construção de uma

grande fábrica de aviões na Ilha do Engenho no Rio de Janeiro, tendo como diretor

técnico o coronel aviador-engenheiro Antônio Guedez Muniz, autor do projeto de

dois tipos de aviões (o M-7 e o M-8) que haviam sido fabricados nas instalações

industriais da família Lage na década de 1920. Esta fábrica chegou a ter uma linha

de produção significativa e manteve muita relação com o Instituto de Pesquisas

Tecnológicas de São Paulo.

O Instituto de Pesquisas Tecnológicas se originou de um laboratório de

ensaios de material anexo à Escola Politécnica de São Paulo e, em 1934, foi

transformado em instituto. Mais tarde, criou-se a Seção de Aeronáutica, sendo a

única instituição no país que fazia pesquisas de materiais para a aviação chegando

a criar um planador bastante avançado para a época. Era uma instituição do

governo do Estado de São Paulo, mas que também recebia contribuições de

importantes empresas privadas, como as Indústrias Reunidas F. Matarazzo, Cia.

Brasileira de Cimento Portland, Ligth & Power, Fábrica Votorantim e outras

(INCAER, 1990).

Um projeto de iniciativa pessoal de Getúlio Vargas foi a construção da

Fábrica Nacional de Aviões, em Lagoa Santa-MG. Em 1933, já com uma comissão

designada especialmente para tratar do assunto, o próprio presidente conversou

com o engenheiro francês René Couzinet, que passava pelo Brasil em avião da

Companhia Latécoère em vôo para Buenos Aires, convidando-o a apresentar um

projeto específico para a nova fábrica. Devido a compromissos de Couzinet 36 na

França ele declina ao convite, mas prometeu que logo que fossem resolvidas as

suas pendências na Europa ele retornaria ao Brasil para se integrar ao esforço de

governo na construção aeronáutica. Mais tarde, o presidente Vargas solicita ao

36 Couzinet havia projetado o avião que Jean Mermoz fez a rota inaugural da empresa francesa Latecoère de Paris a Buenos Aires. Mais tarde ele foi professor no curso de Engenharia Aeronáutica na Escola Técnica do Exército.

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embaixador do Brasil em Paris, para conseguir facilidades junto ao governo de Vichy

para a vinda ao Brasil de René Couzinet 37.

Em 1935, Couzinet juntamente com uma equipe de técnicos, regressa em

definitivo ao Brasil e colabora na construção da fábrica de Lagoa Santa. Era um

projeto arrojado, de concepção arquitetônica moderna38, mas que a burocracia

estatal retardava a sua implantação. Em 1939, o governo não consegue resolver as

questões relativas à construção da fábrica e resolve abrir concorrência para

adjudicá-la à iniciativa privada e, sem abrir mão da participação estatal, dá uma

concessão de 20 anos a empresa vencedora 39 que deveria ser nacional e todo o

pessoal empregado na indústria deveria ser nacionalizado progressivamente para,

em 4 anos, atingir 85%.

Esse modelo de aproveitamento de recursos humanos era por demais

otimista devido às possibilidades nacionais de capacitação tecnológica. De qualquer

forma, a eclosão da Segunda Guerra Mundial, mesmo com a determinação do

presidente de que “[...] a fabricação de aviões em Lagoa Santa deve ter prioridade

sobre qualquer outra que se pretenda realizar” (SOUZA, 1944), acabou por selar o

malogro do projeto. A importação da Europa de alguns componentes e de motores

que já haviam sido suspensas e o ato do governo norte-americano, citado

anteriormente, eliminou quase que definitivamente a possibilidade do projeto ser

levado à diante. Entretanto, a partir de 1941, ela passou a construir, sob licença, os

aviões norte-americanos North American T-6 que foram usados pela Força Aérea

Brasileira até a década de 1970. A não autorização para a produção de outro tipo de

avião acabou por retirar a iniciativa privada do empreendimento e a fábrica foi

transformada no Parque de Aeronáutica de Lagoa Santa da FAB.

37 Correspondência do embaixador Souza Dantas (Arquivo Histórico do Itamaraty). 38 Chegou a ser considerado um dos maiores estabelecimentos fabris do mundo, com pavilhões de 300m x 50m de vão inteiramente livres, sem nenhuma coluna (SOUZA, 1944). 39 Venceu a concorrência a Empresa Construções Aeronáuticas S. A. de São Paulo (INCAER, 1990a, p. 552).

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1.7 PENSANDO NO FUTURO

As necessidades de competência técnico-científica, no período de 1930 a

1945 que foi de grande desenvolvimento aeronáutico no país, eram supridas com

mais facilidade pela Europa, mas a guerra perturbou esse canal de comunicação e a

construção aeronáutica estagnou. Entretanto, as aeronaves que voavam no Brasil

continuavam precisando de reparos e peças de reposição e a Força Aérea Brasileira

não podia parar de voar, em virtude da guerra no Atlântico Sul.

A Segunda Guerra Mundial começava a mostrar que o projeto de “construir

aviões” no Brasil possuía tanto fragilidade econômica, quanto dependência do

exterior em termos de conhecimento e competência tecnológica. Esta dependência

foi se agravando no final e nos anos subseqüentes à guerra. O campo de batalha

estava mostrando que a surpresa tecnológica era um elemento estratégico decisivo

para a vitória; mais do que isso, dava poder ao Estado que a controlasse. Assim foi

com a tecnologia nuclear, com as dos mísseis e a dos aviões a jato, nos anos após

a Segunda Guerra.

Um pouco antes do armistício, em maio de 1945, já começara a busca aos

cientistas da Alemanha nazista em plena erosão. O novo desenho geopolítico

mundial, iniciado com a Guerra Fria, intensificou essa verdadeira “caça aos

talentos”. A guerra estava pondo em evidência que conhecimento é poder e

apontava a necessidade de o Estado controlá-lo. Do ponto de vista estratégico

militar, o problema para as potências mundiais era manter equilíbrio entre tornar

público conhecimento de menos – posição que suscitava os rumores mais

exagerados –, e dar conhecimento demais – o que incentivava Estados periféricos a

se tornarem ameaça. No âmbito interno o dilema era o mesmo, pois possibilitava

que pessoas comuns se pronunciassem sobre questões de Estado. O tema tomou

tal proporção nos Estados Unidos que o cidadão que facilitasse o acesso a

conhecimento científico para outro país, poderia ser julgado por traição.

A entrada dos Estados Unidos na guerra fez com que aumentassem os atos

restritivos à saída de facilidades industriais do seu território e colocou a atenção do

governo sobre outros territórios que poderiam se transformar em ameaça através de

alianças. Entretanto, especialmente com relação ao Brasil, parece não ter havido

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bloqueios aos intercâmbios na área acadêmica. O trânsito de brasileiros pelo meio

acadêmico norte-americano não se alterou, deixando aí, talvez, a única brecha por

onde o Brasil pudesse dar continuidade ao seu projeto aeronáutico. De imediato,

surge a seguinte questão: teria sido possível traçar esse caminho se não tivesse

acontecido a Segunda Guerra Mundial? Ou, em outras palavras, teriam sido as

restrições de acesso ao conhecimento e as de ordem material que levaram os

militares a traçarem esse caminho?

Antes mesmo que a guerra produzisse seus efeitos sobre o projeto de

construir aviões no Brasil, o crescimento expressivo das atividades aeronáuticas no

país colocou a necessidade de conhecimento tecnológico à frente das possibilidades

de apoiá-las.

Mesmo com a criação do curso de Engenharia Aeronáutica na Escola

Técnica do Exército em 1938, não havia tempo para ser criada a “massa crítica” de

inteligentia científico-tecnológica suficiente para atender a demanda já existente. A

primeira turma desse curso, só graduou-se em 1942 e foram somente 7 militares e 4

civis. Os militares eram capitães-aviadores militares que começaram o curso como

oficiais do Exército e o terminaram como oficiais da Força Aérea por opção. Entre

eles estavam Casimiro Montenegro Filho, que em seguida se engajou na criação de

uma escola de engenharia aeronáutica para o novo ministério e Joelmir Campos de

Araripe Macedo que foi ministro da Aeronáutica na década de 1970, no período dos

presidentes militares.

Em 1941, no novo Ministério da Aeronáutica existiam somente 10 oficiais-

aviadores engenheiros, todos formado no exterior, desse total 8 estudaram na

França. Com a diplomação da turma da ETE a Aeronáutica passou a contar com

mais sete oficiais engenheiros, número absolutamente insuficiente para atender as

necessidades do próprio ministério (ITA, s/d, v. 3). Em outras atividades

aeronáuticas, existiam no Brasil um engenheiro aeronáutico formado no MIT e

menos de uma dúzia de engenheiros, civil ou mecânico, que exerciam atividades no

setor de aviação no IPT, na Fábrica de Henrique Lage e em empresas de transporte

aéreo, além de meia dúzia de engenheiros estrangeiros junto à Panair do Brasil,

Sindicato Condor (VARIG) e VASP.

Quando aconteceu a criação do Ministério da Aeronáutica (1941), as

iniciativas para superar as lacunas de conhecimento aeronáutico já haviam

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começado. O curso de Engenharia Aeronáutica foi mantido na ETE, mas sob a

coordenação do recém-criado Ministério da Aeronáutica.

Entretanto, nenhuma ação concreta para que essa formação passasse para

o novo ministério foi tomada por causa do torpedeamento de navios mercantes

brasileiros por forças navais nazistas. Estes fatos colocaram o Brasil em estado de

guerra contra a Alemanha, e a Força Aérea Brasileira engajou-se totalmente no

patrulhamento do Atlântico Sul; todos os recursos materiais e humanos voltaram-se

para essa questão, e as providências quanto à criação do CTA/ ITA foram

momentaneamente suspensas.

Mesmo assim, o Ten.-Cel. Aviador-Engenheiro Casimiro Montenegro Filho

assume a subdiretoria de Técnica Aeronáutica e começa a elaborar, com a

assistência de outros oficiais, os estudos iniciais para a criação de uma escola de

engenharia aeronáutica diferenciada dos padrões existentes na rede oficial de

escolas superiores. De posse desse plano conseguiu cooptar o professor Richard

Smith, que era chefe do Departamento de Engenharia Aeronáutica do MIT, para que

viesse ao Brasil colaborar na implantação.

Em 1945, com um novo plano – dessa vez, ampliado e detalhado pelo

professor Smith – o Ministério da Aeronáutica iniciava a construção do Instituto

Tecnológico da Aeronáutica em São José dos Campos-SP. Logo em seguida

integraram-se os outros Institutos ao complexo do Centro Técnico da Aeronáutica:

– Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE) que faz pesquisa no campo

aeroespacial que inclui materiais, foguetes de sondagem, sistemas

bélicos, sistemas aeronáuticos, ciências atmosféricas, ensaios em vôo e

ensaios de componentes aeroespaciais;

– Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) que ministra a educação e o

ensino, necessários à formação de profissionais de nível superior nos

setores da Ciência e da Tecnologia, nas especialidades de interesse da

aviação em geral e da aviação militar, em particular; o instituto mantém

cursos de graduação, de especialização e extensão universitária e de pós-

graduação;

– Instituto de Estudos Avançados (IEAV) que desenvolve estudos e

pesquisas em diversas áreas da ciência, pura e aplicada, tais como: física

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de alta energia, física nuclear, física de plasma, física molecular e atômica,

física óptica, laser, desenvolvimento de softwares e eletrônica digital;

– Instituto de Fomento e Coordenação Industrial (IFI) que atua em

programas de apoio e de infra-estrutura industrial, para melhoria da

qualidade e capacitação da indústria brasileira. Esse instituto responde

pela homologação e certificação dos produtos da indústria aeronáutica,

cuidando de programas de padronização, metrologia, qualidade industrial

e de transferência de tecnologia, além de estar credenciado a fornecer às

indústrias o certificado ISO 9000.

O fato inovador, e possivelmente uma das razões do sucesso da iniciativa,

foi a criação no Brasil de um ambiente em que o ensino, a pesquisa científica e o

desenvolvimento industrial foram integrados com um objetivo bem definido: a

construção de aviões neste país e, além disso, reunidos num espaço geográfico

único.

Esta experiência demonstra, sobretudo, que a idéia de construir aviões vem

de longe. Várias iniciativas promissoras existiram e se extinguiram, mas a realidade

só foi modificada quando ocorreu a transformação da educação e quando a trilogia

ensino, pesquisa e desenvolvimento foram integrados e atuaram coordenadamente

sob a orientação do Centro Técnico da Aeronáutica.

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CAPÍTULO 2

FUNDAÇÃO DO INSTITUTO TECNOLÓGICO DA AERONÁUTICA

2.1 OS PERSONAGENS E AS IDÉIAS DIANTE DA ESTRUTURA BUROCRÁTICA DO ESTADO

Quando foi criado Ministério da Aeronáutica em 1941 por Getúlio

Vargas, foram enclausuradas duas forças no âmbito da burocracia do novo

ministério: a dos que desejavam uma instituição cujo profissionalismo militar

fosse preponderante, sem atribuições civis; e a dos que imaginavam que a

aviação no Brasil somente seria viável se fosse integrada em um único órgão,

sendo a parte militar supervisora da aviação civil, a qual passaria a ser reserva

da militar. Todos os meios de apoio e infra-estrutura seriam integrados,

acrescentando a vantagem de ser mais econômica. O defensor mais destacado

dessa posição foi o capitão Alves Cabral com o apoio do ministro da Guerra

general Pedro Aurélio de Góis Monteiro, quando proferiu uma conferência

sobre o assunto em 20 de fevereiro de 1935, no Clube Militar no Rio de Janeiro

(SOUZA, 1944). A história confirma que esta corrente se impôs e o novo

Ministério da Aeronáutica, criado em 1941 foi estruturado com uma burocracia

híbrida, com nítidos conflitos de superposição civil-militar.

A minha experiência pessoal comprovou a constante luta dessas duas

formas de idealização. Os mecanismos de poder implicados no processo de

subjetivação pelo qual passaram os indivíduos da Força Aérea influenciaram

na definição do modelo acadêmico implantado por Montenegro Filho no ITA,

pois o mesmo encontrou resistências inclusive de oficiais que eram partidários

do modelo híbrido adotado para a estrutura burocrática do Ministério da

Aeronáutica. Houve uma reprodução dessa disputa de concepções diferentes

de organização burocrática no âmbito do ITA. O modelo que se impôs não foi

diferente da concepção híbrida da burocracia vigente no Ministério da

Aeronáutica, mas nem por isso deixaram de ser conflituosas as relações de

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poder civil-militares no campo acadêmico do ITA. Entretanto, o modelo

burocrático concebido para o funcionamento acadêmico do ITA que criou

tantas oposições, conseguiu se manter por mais de 50 anos.

É comum encontrar em análises sobre o desenvolvimento dirigido pelo

Estado a descrição de um emaranhado de decisões e batalhas políticas em

que participam muitos funcionários que circulam pela burocracia estatal.

Entretanto, pouco se tem a ler sobre o funcionamento dos mecanismos que

operam no universo da burocracia, e/ou por detrás dele, os quais incentivam,

coordenam e facilitam esta miríade de decisões e os fatores que determinam

quem (no âmbito da política burocrática) se sai vencedor no processo de

construção das instituições nacionais. Uma passada de olhos sobre a

implantação do sistema acadêmico do Instituto Tecnológico da Aeronáutica

(ITA) dentro do Centro Técnico da Aeronáutica (CTA) me permitiu analisar

como ocorreu a luta entre as forças políticas e as amarras institucionais que

atuaram encobertas pela burocracia estatal militar do novel Ministério da

Aeronáutica, criado por Getúlio Vargas em 1941, para procurar compreender

que tipo de habitus se implantou no campus do CTA, para então conhecer

melhor o ambiente onde é construída a subjetividade dos estudantes do ITA.

É importante ressaltar que não estudo a burocracia acadêmica em si,

mas procuro entender como as forças que operam através dela, e se valendo

dela, conseguem se impor num ambiente militar. Entendo que o Estado e sua

burocracia (sistemas de controles) é um instrumento específico de um sistema

de poderes que não estão exatamente nele instalado, mas que o ultrapassam e

complementam pela ação de seus agentes como indivíduos portadores de

vontades, ambições e ideais.

O Brasil foi relativamente bem-sucedido no período de industrialização

do pós-guerra empreendido pelo Estado, a partir das reformas promovidas por

Getúlio Vargas. Apesar das diversas crises internas e internacionais o país teve

um crescimento expressivo entre os anos de 1945 e 1980, saltando de 40ª

para 8ª maior economia do mundo capitalista (IBGE, 1990). Os recursos

naturais abundantes e diversos outros componentes naturais favoráveis, como

clima, solo fértil, aliados a uma cultura política de poucos ressentimentos que

atenuam os efeitos danosos das polarizações de classe, raça e ideologia

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contribuíram para essa escalada. O ambiente internacional, pelo menos até a

década de 1980, também se mostrou bastante receptivo para um país em vias

de desenvolvimento. Entretanto, a enorme demanda de técnicos, cientistas,

pesquisadores, gestores, e outros, criada pela nova dinâmica da economia

nacional, se manteve à frente da capacidade de formação de recursos

humanos pelo sistema de ensino superior do país. Apesar disso, a indústria

aeronáutica de alta tecnologia conseguiu passar por todas as turbulências que

a economia viveu depois de 1980, e hoje ocupa posição privilegiada no

mercado mundial.

O projeto mais realçado e tido como marco da industrialização do Brasil

e símbolo do desenvolvimentismo da era Vargas foi a construção da

Companhia Siderúrgica Nacional, que não deixou de ser mais do que a

importação de uma planta industrial acabada e com resultados materiais

conhecidos. Mas, diferentemente da construção de uma usina siderúrgica, a

criação do CTA significou a importação de uma forma totalmente nova de

produzir conhecimento científico e tecnológico.

Com um projeto na cabeça o tenente-coronel aviador Casimiro

Montenegro Filho visitou o Massachussett Institute of Technology (MIT) em

Boston, em 1941 e viu como a pesquisa científica de ponta estava sendo

tratada. As diferenças estruturais eram imensas e não se adequavam à

burocracia estatal brasileira. A única possibilidade de realização de um modelo

acadêmico tão diferente era a construção de um “casulo” de excelência de

ensino e pesquisa fora das amarras do MEC, mesmo sem o reconhecimento do

mesmo, “[...] isso era assunto para ser resolvido depois.” (MONTENEGRO

FILHO, 2006).

Os fatores que facilitaram e condicionaram o processo de

industrialização do país, por si só não conseguiram dirigir ou orquestrar

diretamente o desenvolvimento da educação e da pesquisa científica e nesse

particular foi a visível mão do Estado que a realizou. Planejamento minucioso,

recursos abundantes e empreendedorismo do setor privado possivelmente

teriam talhado algum modelo de pesquisa e ensino no país. Porém, de fato, o

ensino superior e a pesquisa científica e tecnológica no Brasil são muito mais

resultado de uma intervenção estatal consciente e deliberada. As questões de

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como e porque alguns empreendimentos estatais, gestados na mesma época

num mesmo ambiente político, sob a égide da mesma burocracia, uns dão

certo e outros são tão distorcidos ao longo do tempo que se descaracterizam,

são deveras intrigantes. Quais as forças que se moveram por detrás da

burocracia que produziram resultados tão diferentes? Compreender isso

permite que se tenha um foco mais nítido do ambiente onde os estudantes do

ITA constroem suas subjetividades.

Observando a criação do CTA/ ITA sob a perspectiva da burocracia

militar na Força Aérea Brasileira sem se deter nela especificamente, pois seria

uma tarefa difícil estudar a execução de projeto tão grandioso sem imaginá-lo

inserido em um universo de leis e controles estatais caracterizado pela

burocracia. Mais do que isso, no decurso da concepção, planejamento e

construção do CTA/ ITA, me interessou saber como foram sendo vencidas as

contingências burocráticas e alguns paradigmas que fizeram parte, e ainda

fazem, do imaginário dos militares que compunham o Ministério da Aeronáutica

nos seus primórdios. Nesse contexto, inserem-se os aspectos inovadores do

projeto acadêmico do ITA que não se enquadravam nas normas estabelecidas

pelo Estado para o ensino superior no Brasil e a estrutura burocrático-

administrativa proposta por Montenegro Filho privilegiava mais a face civil do

que a militar. No entanto, seria tarefa com limites tão largos que não caberiam

nesse momento, se estendêssemos a pesquisa para todas as fases de

implantação do projeto, por isso me deterei na instituição acadêmica (ITA) que

foi implantada dentro do CTA.

Parece-me justificável estudar os conflitos gerados pela tangência

entre as burocracias civil e militar que houve no ITA, contornados pela ação de

Casimiro Montenegro Filho, pois certamente isso poderá nos colocar diante de

paradigmas que ainda sobrevivem no âmbito da Aeronáutica. Estes conflitos

continuam criando, ainda hoje, alguns conflitos de identidade quanto à

destinação da aeronáutica militar brasileira: continuar como tutora da aviação

civil e, portanto, continuar com uma estrutura burocrática dual que atenda às

responsabilidades civis e militares, ou livrar-se definitivamente da gestão da

aviação civil e partir para uma estrutura profissional militar. Qual o tipo de

relação que Montenegro Filho desejava que existisse entre civis e militares na

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área do ensino e da pesquisa em São José dos Campos, que fazia com que os

seus colegas de farda chamassem o CTA (com certo desdém) de “a fazenda

do Montenegro Filho”, provocando oposições ferozes ou indiferença

desprezível entre a oficialidade? Apesar desse conflito de interpretação, o

projeto do CTA/ ITA conseguiu se manter quase integralmente como havia sido

planejado, mesmo com a oposição de ministro com prestígio na área política

como o brigadeiro Eduardo Gomes.

Durante os 37 anos de minha carreira como militar da Força Aérea

sempre observei um constante conflito de interesses entre as atribuições

militares e civis no Ministério da Aeronáutica. Já é antiga a luta entre aqueles

que desejam uma instituição com características puramente militares que

busque constantemente um profissionalismo ascendente e aqueles que vêem

na estrutura híbrida um meio de tirar vantagens de um orçamento que muitas

vezes não é claro na destinação interna de recursos, beneficiando ora a área

militar, ora as atribuições civis, mas, por causa disso, podendo contar com

recursos alternativos mais abundantes. Esse tipo de estrutura mista produziu

alguns modelos economicamente bem-sucedidos como é o caso do controle do

espaço aéreo, e outros que estão sendo postos em questão, como a aviação

civil. Diante dessas situações, surgiram as seguintes questões: a produção

científica e a excelência acadêmica do CTA/ ITA teriam a mesma qualidade

não fosse a estrutura híbrida civil-militar do Ministério da Aeronáutica? Essa

mesma estrutura teria contribuído para garantir longevidade à organização

acadêmica? Foi ela que deu agilidade burocrática para a implantação bem-

sucedida do projeto?

Quando analiso as estratégias de desenvolvimento dirigidas pelo

Estado me dedico, na verdade, a estudar um complexo entrelaçar de decisões

e batalhas políticas, como foi o caso da criação do CTA, em que participaram

centenas de funcionários públicos – particularmente militares. No entanto, um

dos aspectos freqüentemente negligenciados nesse tipo de pesquisa são os

mecanismos que incentivam, coordenam e facilitam a tecelagem da

enormidade de decisões e fatos que determinam quem se impõem no processo

de construção das instituições e funções assumidas pelo Estado.

Normalmente, depois de instituídos e consagrados os antigos paradigmas e

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entraves burocráticos superados, não são mais lembrados e o objeto

construído entra para a história com uma leveza didática.

Por outro lado, constatei com certa freqüência em estudos e trabalhos

científicos, que os pesquisadores normalmente estão perseguindo ligações

entre medidas (o que o governo faz) e resultados (como a sociedade

responde). Foi de fato um resultado – a influência que a estrutura acadêmica

do ITA exerce na construção da subjetividade de seus alunos – que inspirou

este estudo. Esta ligação causal, porém não é a questão empírica central

dessa pesquisa.

O CTA foi um dos exemplos mais bem-sucedidos no campo da

pesquisa e ensino científico nascido no período do Estado Novo sob a tutela

dos militares da novel Aeronáutica, e como tal oferece um manancial de

elementos de pesquisa que são promissores para o estudo empírico e analítico

dos efeitos construtivos e erosivos que a burocracia estatal pode produzir

quando cria as suas instituições. De fato, foi no Estado Novo que a burocracia

estatal brasileira começou a ganhar um aparato institucional e um corpo

jurídico formal de modo a tornar acessível à grande parte da população os

instrumentos indispensáveis ao desenvolvimento social e econômico do país.

No período republicano (que antecede o Estado Novo), a fragmentação

da burocracia daria a impressão de frustrar qualquer política de incremento ao

desenvolvimento até mesmo de uma política mínima de coordenação e

coerência que sustentasse as pequenas iniciativas que surgiam.

No caso da pesquisa tecnológica aeronáutica no Brasil não foi o setor

privado com seu desejo de construir aviões, nem as “facilidades” criadas pela

Segunda Guerra, com o desvio da atenção das potências centrais para outras

prioridades, que dirigiram ou orquestraram a criação do CTA e que

desembocou na pujante indústria aeronáutica brasileira. De fato, foi a

onipresente mão do Estado, altamente visível na era Vargas, que o criou.

Outros fatores econômicos e opções políticas poderiam ter criado um modelo

diferente de ensino e pesquisa tecnológica para a aeronáutica, mas os

resultados dos conflitos entre os dois tipos de burocracia mesclados e “cozidos”

por Montenegro Filho em São José dos Campos acabaram por gestar um tipo

de burocracia híbrida, ainda com conflitos visíveis atualmente, mas que acima

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de tudo o resultado de uma intervenção estatal consciente e deliberada

destinando recursos nem sempre com oportunidade, mas que geriu uma

política externa favorável e contou com o espírito empreendedor de Casimiro

Montenegro Filho.

Entretanto, as articulações institucionais e políticas do novo Ministério

da Aeronáutica não eram suficientes para, por si só, vencer as estruturas

burocráticas vigentes que não tinham agilidade para atender as exigências de

um projeto de tal expressão, num país com pouca tradição em pesquisa

científica. A confrontação da burocracia estatal civil e militar operou e

conseguiu alguns resultados de êxito no caso da criação do CTA, visto que, em

uma análise superficial do material pesquisado foram observados diversos

acontecimentos, pode-se dizer, “informais” que serviram para distender as

burocracias vigentes.

Contudo, o que é de menor compreensão é como projetos como o da

criação do CTA, com diretrizes que não foram totalmente elaboradas nos altos

escalões, com fraca aceitação dos demais seguimentos da Força Aérea, num

momento em que as prioridades políticas para a estruturação do novo

ministério estavam voltadas para outras ações, como a da participação na

Segunda Guerra Mundial, com uma burocracia estatal ainda fragmentada, se

transformaram em realidade.

Está aí a ambigüidade, apesar das condições adversas freqüentemente

criadas nos altos escalões da burocracia da Força Aérea e do Estado.

Montenegro Filho, inicialmente num terceiro escalão e depois no segundo,

juntamente com sua equipe, conseguiu levar a termo o que parecia impossível

– implantar o ensino e a pesquisa tecnológica avançada com propósito

definido, fazendo conviver uma burocracia acadêmica civil com a burocracia

hierarquizada militar, não sem conflitos, mas gerando resultados satisfatórios

para o país.

O desenvolvimento do projeto sobreviveu a mais de uma

administração, com a queda de Getúlio Vargas em 1945, resistindo às disputas

de poder que ocorrem em todas as esferas da administração pública, como

sempre acontece nessas ocasiões, e o assédio daqueles que eram contra o

projeto, ou ao modelo que se implantava.

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Estudos abordam o desenvolvimentismo que inspirou alguns líderes

políticos, tanto civis como militares e o ambiente político que criaram as razões

que favoreceram o desenvolvimento promovido pelo Estado na Era Vargas.

Não tem sido clara a compreensão de como diretrizes elaboradas no alto

escalão se transformam apenas em uma questão parcial e secundária de

implementação em alguns casos 40, e outras mesmo elaboradas no segundo

escalão permanecem como referência em todo processo de elaboração. A

existência da vontade política no topo da administração pública parece ser a

primeira condição necessária para a realização de qualquer projeto estatal,

mas também não deixa de ser necessário a existência da vontade e da

capacidade proporcional de funcionários nos segundos e terceiros escalões da

burocracia que decidirão quais os rumos que qualquer projeto deve tomar.

Grande parte das teorias de organização e administração pública

explica porque não deveria funcionar uma burocracia afligida pelo personalismo

e pela fragmentação. Mas a burocracia híbrida, no caso do ITA, talvez tenha

favorecido o projeto pela sua própria característica personalista. Montenegro

Filho parece ter tirado proveito dela em favor de sua causa, abordando a

burocracia pelos flancos, evitando confrontações irreversíveis e não

dispensando a persuasão pessoal direta. Compreender o percurso da carreira

de Casimiro Montenegro Filho na construção do CTA/ ITA, e do seu

permanente compromisso de ser o mediador dos conflitos que a tangência das

duas burocracias não parava de gerar, credenciou a minha percepção a ver

com mais clareza o funcionamento da instituição militar e, de certa forma, o

comportamento dos militares no meio político do país, na época da criação do

CTA/ ITA.

Percebi que a volatilidade dos cargos no segundo e terceiro escalões

da estrutura burocrática da Força Aérea, na época, enfraqueciam os

compromissos da organização com o projeto de Montenegro Filho, e

aumentavam a dependência de laços pessoais da burocracia civil incrustada na

dependência militar do CTA para com ele, um fator que debilitava mais ainda a

burocracia formal o qual, na realidade, era responsável pela gestão legal das

40 Como foi o caso da criação da Universidade do Brasil idealizada por Gustavo Capanema e que nunca foi completada. (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000).

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atividades daquela organização. Seria fácil argumentar que Montenegro Filho

buscava unicamente verbas, renda, prestígio, poder ou fins ideológicos, pois

estes são os desejos da maioria das pessoas que as perseguem quando e

como podem. O argumento de que Montenegro Filho poderia estar empenhado

em uma carreira não significa dizer que a sua verdadeira obsessão em criar o

CTA/ ITA estava totalmente ligada a esse desejo. Por outro lado, poucas

carreiras exigem dedicação total como a militar e o sacrifício de algumas

oportunidades de convívio familiar e de lazer, não é suficiente para destacá-lo

como um “carreirista”. Mas a miríade de escolhas diárias necessárias para

progredir na carreira fez o que era preciso para progredir.

A própria maneira como ele enfrentava as adversidades, sem uma

confrontação frontal e sem uma “batalha” decisiva com as autoridades,

confunde os seus anseios pessoais de progressão na carreira com os objetivos

impessoais do bem comum que se propunha a criar. Nesse caso há uma

aproximação do pensamento de Max Weber sobre a posição do funcionário na

burocracia, em que “[...] a lealdade moderna é dedicada a finalidades

impessoais e funcionais.” Entretanto, o personalismo que Montenegro Filho

imprimiu em sua administração à frente do CTA pode de fato melhorar o

desempenho burocrático porque os laços pessoais mais fortes abriram canais

de comunicação alternativos e criou uma espécie de blindagem aos ataques

dos opositores, canalizando para si a responsabilidade pelos insucessos,

isolava os subordinados do mundo externo adverso.

Assim, como Weber não reduz burocratas a autômatos confinados em

estruturas rígidas, a abordagem que farei da carreira de Montenegro Filho

também não permite considerar um quadro de total voluntarismo da parte dele,

uma vez que assim ele estaria livre para seguir quaisquer fins ideais que

pudesse ter. A abordagem que farei da carreira de Montenegro Filho situará o

voluntarismo dentro de limites que os dados que coletei e as testemunhas que

entrevistei me oferecem e as oportunidades aproveitadas por ele dentro da

estrutura burocrática vigente.

O desenvolvimento de uma idéia está sempre condicionado ao que se

espera dela em sua intervenção na vida prática, fato meramente subjetivo no

caso da idéia de se criar um centro de pesquisas tecnológicas na Aeronáutica

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devido ao ineditismo da iniciativa. O questionamento de sua genealogia era o

argumento mais forte daqueles interessados em contestar a criação de uma

escola nos moldes pretendidos para o ITA, argumentavam que não havia no

Brasil nenhuma experiência semelhante que pudesse validar o que Montenegro

Filho afirmava e que o Ministério da Aeronáutica era muito novo para suportar

projeto de tal magnitude. Deve-se, também, levar em consideração que o

próprio aparecimento de debates acalorados em torno da idéia de Montenegro

Filho contribuiu para a ampliação da percepção, no âmbito da Força Aérea, do

percurso, digamos “civilizador”, que a Aeronáutica precisava trilhar no Brasil.

Essa dinâmica social nos coloca diante do que Norbert Elias fala em sua obra

O Processo Civilizador (1993, p. 194):

Planos, ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se entrelaçam de modo amistoso ou hostil. Esse tecido básico, resultante de muitos planos e ações isoladas, pode dar origem a mudanças e modelos que nenhuma pessoa isolada planejou ou criou. Dessa interdependência de pessoas surge uma ordem sui generis, uma ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem. É essa ordem de impulsos e anelos humanos entrelaçados, essa ordem social, que determina o curso da mudança histórica, e que subjaz ao processo civilizador.

O intervalo de tempo em que se desenvolveu o projeto de criação do

CTA mais intenso em disputas políticas e ideológicas, resistências a novos

paradigmas e, também, consensos, foi o período do Estado Novo, quando três

grupos diferenciados de burocratas ou tipos sociais interagiram e

desenvolveram visões distintas sobre a política tecnológica pretendida por

Montenegro Filho para a Aeronáutica. Os políticos que tratam com naturalidade

as nomeações executivas promovem políticas que podem auxiliá-los

eleitoralmente e que sejam úteis para a formação de coalizões que lhes dêem

projeção nacional. Os militares, que geralmente preferem políticas capazes de

responder às suas preocupações com a segurança, não são normalmente

flexíveis quando envolvidos em discussões políticas. Os técnicos, que

normalmente são exigentes quanto aos critérios de eficiência. E o de técnicos-

políticos, com características especiais capazes de intermediar e balancear as

exigências políticas sem aviltar o rigor dos técnicos. Montenegro Filho pode ser

enquadrado neste último grupo. Querendo dizer que tanto os políticos como os

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militares tendem a agregar políticas corporativas para a formulação de políticas

públicas, os técnicos resistem com a racionalidade técnica e os técnicos-

políticos podem dar preferência a uma ou a outra atitude, ou até mesmo

combiná-las, dependendo da ocasião.

No caso da criação do CTA, desde suas origens, os militares, como

agentes do Estado, funcionaram como indutores da pesquisa científica

aplicada. Entretanto, o tipo de relação ensino e pesquisa científica que se

pretendia adotar no CTA/ ITA ainda era um modelo inédito nos meios

acadêmicos brasileiros e no ensino militar clássico – o que exigiu um tipo de

relação peculiar dos militares com a pesquisa científica e a burocracia estatal

do ensino superior no Brasil. Esta última relação mostrou-se de certa forma

eficiente, no caso do CTA/ ITA, e a sua genealogia fará parte do eixo desse

estudo, o qual pretende demonstrar também que é possível nascer no seio de

uma burocracia estatal personalista instituições profissionais eficientes, no mais

puro modelo weberiano, desde que mediadas por um líder técnico-político

competente.

2.2 TRANSFORMANDO IDÉIAS EM REALIDADE

Na esteira da política de aproximação dos Estados Unidos com o

Brasil, em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, o ministro Salgado Filho,

do recém-criado Ministério da Aeronáutica, é convidado a visitar instalações

das Forças Aéreas do Exército dos Estados Unidos. O ministro fica

particularmente impressionado com a base de Wright Fields, local onde eram

ensaiados e testados os aviões e outros equipamentos de aeronáutica

produzidos na indústria norte-americana com fins militares. O que foi visto pelo

ministro, certamente movido pela busca de iniciativas inéditas que

fortalecessem o ministério que chefiava, impressionou-o de tal maneira que, ao

regressar ao Brasil, determinou que o tenente-coronel aviador engenheiro

Casimiro Montenegro Filho, do Serviço Técnico de Aeronáutica, fosse visitar

aquelas instalações.

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Nos Estados Unidos, depois de ter visitado Wright Fields, percebe que

aquele tipo de instalação não preenchia todo o espectro do que estava

idealizando e entra em contato com o major Osvaldo Nascimento Leal, que

estava cursando Engenharia Aeronáutica no MIT, em Boston, para que este

intermediasse um encontro com o professor Richard Smith, chefe do

Departamento de Aeronáutica daquele instituto. No diálogo entre os dois, Leal

levanta a questão de que talvez fosse mais fácil enviar estudantes para

fazerem o curso lá em Massachussetts; não acreditava que um projeto como

aquele fosse possível de ser concretizado no Brasil. Mas Montenegro Filho

(Entrevista 2006) insistiu: “Eu vou fazer lá. Eu quero ser apresentado ao

professor Smith. Eu vou com você lá no MIT. Vou a Boston.” Daí iniciou-se uma

negociação totalmente à margem da burocracia, quase de uma forma pessoal,

entre Montenegro Filho e o professor Smith. Depois de cooptá-lo a vir ao Brasil

para se integrar ao projeto de construção de um centro de tecnologia

aeronáutica, Montenegro Filho retorna ao país e consegue pessoalmente com

o ministro Salgado Filho permissão para que o professor Smith venha por 6

meses auxiliá-lo a desenvolver “um projeto” para a Aeronáutica.

Entretanto, já nesse contato com o ministro, Montenegro Filho

começou a deparar-se com oposições que às vezes eram veladas, outras

frontais, ambas na verdade, ecos de disputas internas do ministério recém-

criado e que abrigava vontades distintas sobre a questão da formação de

engenheiros aeronáuticos no Brasil. Existiam os partidários da escola francesa

(predominantemente os oficiais oriundos do Exército) e os partidários da escola

norte-americana (predominantemente os oficiais oriundos da Marinha), e

existiam aqueles que propunham que a formação de engenheiros e técnicos de

nível superior fosse feita no exterior e até achavam desnecessária a construção

de um centro de tecnologia aeronáutica no país, pelo menos naquela época.

Por fim, a burocracia estatal militar do Ministério da Aeronáutica ora tolhia a

agilidade necessária à implantação de um projeto que envolvia estrangeiros,

ora era usada com propósitos ideológicos e por correntes opostas que

desejavam obstaculizá-lo.

Inabalável, Casimiro Montenegro Filho, tendo à sua retaguarda uma

equipe de planejadores brasileiros chefiada pelo professor Smith, persistiu e

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teceu uma rede de contatos nos governos municipal, estadual e federal, no

Congresso Nacional, e em outros órgãos de planejamento e controle da

burocracia estatal. Conseguiu, inclusive, fazer com que o Centro Tecnológico

da Aeronáutica fizesse parte do orçamento do ministério antes mesmo que

qualquer programa ou projeto tivesse sido aprovado. A desenvoltura com que

Montenegro Filho circulava entre órgãos do governo e entre políticos,

independentemente de suas características pessoais, era conseqüência dos

laços de família e à própria vocação dela. O seu pai foi o primeiro prefeito e

último intendente de Fortaleza, capital do Ceará, e tinha muitas ligações com

políticos em todo Brasil. Juracy Magalhães, ex-interventor na Bahia, influente

Deputado Federal pela antiga União Democrática Nacional (UDN) era seu

primo e o socorreu muitas vezes na área política.

Em 1946, após 4 anos de planejar e fazer política, o coronel

Montenegro Filho, à frente da Comissão de Construção do Centro Tecnológico

da Aeronáutica (COCTA), começa a construção das edificações em São José

dos Campos-SP. Tinha a ousada pretensão de formar engenheiros

aeronáuticos e realizar pesquisas no campo aeronáutico por meio de um

modelo acadêmico, inédito no país, que incorporava adaptações ao padrão

norte-americano do MIT. Em 1950, tendo o professor Smith como primeiro

Reitor, começa a funcionar o primeiro curso de engenharia nas novas

instalações. Ao mesmo tempo em que a turma dos primeiros engenheiros

formados ainda nas instalações provisórias, inicialmente cheios de incertezas

quanto a sua inserção no mercado de trabalho, passam a ser objeto de cobiça

das grandes empresas multinacionais, em especial das indústrias

automobilísticas que começavam a ser instaladas no Brasil, particularmente as

do Vale do Paraíba entre Rio de Janeiro e São Paulo.

Aliás, o mercado de trabalho reconheceu o diploma dos engenheiros

recém-formados antes mesmo do MEC tê-lo feito, fato que, na visão de

Montenegro Filho se constituía apenas num ato burocrático do Estado, pois

acreditava que a qualidade do engenheiro que fosse formado no ITA se imporia

a qualquer restrição formal. Na década seguinte, os demais institutos, já

citados no capítulo anterior, foram se consolidando no campus do CTA e a

produção científica criou projetos viáveis, como foi o caso do avião

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Bandeirante, desembocando na criação da Empresa Brasileira de Aeronáutica

(EMBRAER), que não parou mais de crescer. No final do século XX, e início do

século XXI, a EMBRAER já era a 4ª maior empresa construtora de aviões no

mundo e uma das mais importantes na pauta de exportações do Brasil.

2.3 CASIMIRO MONTENEGRO FILHO: O ARTÍFICE DE UMA IDÉIA QUE VIROU REALIDADE

Em uma organização me parece que é verdadeiro e lícito que os

indivíduos tenham diferentes tipos de pensamento e respondam a emoções

diferentes. Daí ser tão correto como difícil explicar como indivíduos chegam a

partilhar as mesmas categorias de pensamento, mas somente alguns

conseguem pôr de lado os seus interesses pessoais em nome de um bem

comum. Por isso, seria muito difícil estudar o Instituto Tecnológico da

Aeronáutica (ITA) sem que se dedique um espaço de análise à figura do hoje

Marechal do Ar, Casimiro Montenegro Filho, pois, como disse anteriormente,

ela está “colada” na história da própria instituição.

Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, de assistir depoimentos

gravados por ele e de ler vasta bibliografia sobre sua pessoa e suas

realizações. De fato, em todos esses encontros e documentos se percebe que

há um eito que dá coerência e sintonia ao homem com sua obra. É perceptível

que Casimiro Montenegro Filho conseguiu imprimir traços de seu caráter na

obra que criou. Ainda hoje se ouvem histórias de Montenegro Filho no campus

do CTA, algumas até se confundem com lendas. Por isso começo citando uma

sentença dita por ele que define bem a sua própria pessoa. Imagem

confirmada por todos aqueles que o conheceram:

Em toda minha vida profissional, jamais acreditei em messianismo, estrelismo, concentração de poder e do mérito em um só indivíduo. Sempre trabalhei em equipe. E se algum mérito tenho, é o de ter sabido despertar em meus companheiros o entusiasmo, delegar-lhes

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autoridade com responsabilidade, exortá-los ao pleno uso de suas potencialidades e qualidades, em proveito do povo brasileiro 41.

Casimiro Montenegro Filho na cidade de Fortaleza, em 1904, e estudou

no Colégio Estadual Liceu do Ceará, onde já demonstrava pretensões de se

tornar engenheiro. Mas como no Ceará não existia Faculdade de Engenharia,

Casimiro partiu para a carreira militar e, em 1923, aos 19 anos, ingressou na

Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro. Formou-se na primeira turma de

aviadores militares do Exército em 1928 em um grupo de apenas sete oficiais

que sonhavam com as imensas possibilidades ainda inexploradas da

aeronáutica no Brasil. Em 1930 alinhou-se ao movimento tenentista que

apresentava como objetivo a construção de um país moderno à moda

ocidental, criando os suportes indispensáveis para a industrialização do país.

Naquele momento, Montenegro evadiu-se do Rio de Janeiro para Belo

Horizonte a fim de participar como único componente da Aviação

Revolucionária. Finda a revolta, ele estava do lado vitorioso, mas voltou à sua

carreira militar. Participou em 1931 do primeiro vôo do Correio Aéreo Militar

inaugurando a linha Rio-São Paulo como o tenente Lavanére Wanderley.

Quando foi criado o curso de Engenharia Aeronáutica na Escola

Técnica do Exército (hoje o Instituto Militar de Engenharia) em 1938, os

militares mais bem classificados no concurso para a ETE ainda eram enviados

ao exterior para realizar o mesmo curso; Montenegro Filho obteve essa

condição, mas preferiu fazê-lo no Brasil.

Terminou o curso na primeira turma de engenheiros Aeronáuticos

formados no Brasil em 1941, no posto de major, já como oficial da Aeronáutica

do recém-criado ministério, por opção. Nesse momento, diante da crescente

demanda de pessoal especializado que aumentava vertiginosamente com o

crescimento da aviação no Brasil, os militares debatiam a continuidade do

curso no país: trazer para cá professores estrangeiros ou mandar alunos

estudarem no exterior. Montenegro era ardoroso defensor da primeira opção

porque pensava que assim poderia beneficiar um maior número de

interessados, além de trazer outros benefícios para o país. Desde o período

41 Depoimento gravado em DVD, disponível na Biblioteca Central do ITA.

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que cursava a ETE, Montenegro já alimentava a idéia de se implantar uma

escola especializada no Brasil, contra a opinião de muitos dos seus colegas de

farda, que iriam se opor a ele por muito tempo, mesmo depois que o ITA já era

uma realidade.

Devido às pretensões arrojadas do projeto, Montenegro ganhou

opositores em diversos níveis da burocracia estatal. Paulo Ernesto Tolle,

advogado do Ministério da Aeronáutica, posicionou-se incisivamente contra as

pretensões de Montenegro, em virtude das leis e regulamentos em vigor.

Eu dei um parecer [...]. Não, rascunhei um despacho da Divisão de Pessoal Civil para o brigadeiro João Mascarenhas. Diretor de Pessoal, espinafrando uma proposta de contratação de professores estrangeiros completamente fora da realidade.

Dei esse parecer furioso, citando o Código Civil de 1903, a legislação vigente e tudo o mais. Entre outros itens que eu considerava absurdos, estavam, remuneração em dólar, que o nosso Código Comercial não permitia, o tal “Reitor” teria poderes para nomear pessoal, selecionar professores ao seu critério (imagina!...), e permitia a rescisão de contratos seu e dos professores, com todos os direitos, no momento em que ele considerasse que o nível estivesse baixo [...].(SILVA; FISCHETTI, 2006, p. 78) .

O brigadeiro Mascaranhas chamou o assessor e perguntou-lhe

– O senhor já conversou com o coronel Montenegro Filho sobre isso? – Eu nem o conheço! – respondeu Tolle. Converse com ele, antes do senhor fazer o seu parecer definitivo. (SILVA; FISCHETTI, 2006, p. 78).

Depois de conhecer Montenegro, conhecer os detalhes do plano e ter

se “apaixonado pela idéia” tornou-se inteiramente favorável. Posteriormente

integrou-se à equipe de Montenegro Filho tornando-se seu fiel auxiliar até

aposentar-se – foi um dos primeiros professores brasileiros do ITA.

O poder de persuasão e audácia responsável de Montenegro

impressionava os seus interlocutores e estava presente em todos os atos

decisivos da construção do ITA. Os entraves burocráticos e político-ideológicos

que enfrentou em todos os períodos de implantação acabaram por criar o que

todos passaram a chamar de “estilo Montenegro Filho” de liderança.

Em janeiro de 1947 foi apresentado o resultado da comissão técnica

que julgou os projetos que concorreram para a construção civil das instalações

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do campus. O anteprojeto vencedor foi o de Oscar Niemeyer. Logo veio a

polêmica derivada dos primeiros embates da Guerra Fria: “Oscar Niemeyer é

comunista!” – disseram a Montenegro Filho. “Não vejo qualquer problema

nisso, o anteprojeto dele foi o melhor, estamos criando uma escola para

privilegiar a competência, e competência não tem ideologia.” (Histórico, v.4).

Mas mesmo assim a liberação de recursos foi bloqueada pelo

presidente Dutra que não admitia que o projeto de um comunista fosse

perpetrado num empreendimento de tal monta. Montenegro Filho resolveu o

impasse sem nenhuma confrontação: solicitou ao Instituto de Arquitetos do

Brasil a indicação de um arquiteto para executar o projeto. Foi contratado

Fernando Geraldo Saturnino de Brito para executar o projeto. O escritório de

Niemeyer continuou acompanhando as obras. Mas o capataz das obras, sem

saber da “manobra” reclamava com Montenegro Filho a presença do

engenheiro Resendo Santos Mourão do escritório de Niemeyer como o

contratou para evitar novas querelas. O engenheiro Mourão vive até hoje em

São José dos Campos e assim se refere a Montenegro Filho:

O brigadeiro era fabuloso, resolvia tudo sem demora e tinha sempre a melhor solução. E ainda era humilde, não gostava de aparecer. Muitas vezes quando havia visitas de pessoas importantes, ele me mandava representá-lo explicando tudo, o que ele certamente faria muito melhor. Nunca inaugurou uma obra! Ficava pronto? Ótimo, vamos usar! Por isso, nós todos o respeitávamos e admirávamos demais. Não existem mais líderes assim. (SILVA, FISCHETTI, 2006, p. 85).

Esse testemunho foi recorrente nas declarações de todas as pessoas

com que conversei e que conheceram Montenegro Filho. Elas realçam algumas

características de seu caráter como a discrição e a entrega desinteressada

para aquilo que idealizara. Talvez com a cautela de não causar ciúmes nas

autoridades que visitavam as obras, para não pensarem que aquilo fosse

objeto de promoção pessoal, ele procurava não estar presente nesses

momentos. Assim como resolveu a questão da execução do projeto de

Niemeyer sem uma confrontação com as autoridades no âmbito político e a

contratação do engenheiro do escritório de Niemeyer eliminou um conflito no

âmbito executivo.

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Muitos outros pequenos casos que Montenegro Filho resolvia com

sabedoria e paciência, foram aos poucos tornando a marca do criador em sua

criatura.

Casos como o do ar-condicionado e o de serrar as pernas de um

professor, transmitiam intuitivamente aos seus subordinados a determinação

de levar a cabo o projeto e sugeria iniciativa e criatividade dos mesmo,

mostrando que os obstáculos não iriam fazer com que mudasse o rumo

desejado.

Os professores recebiam uma casa mobiliada cujo projeto era de

autoria de Niemeyer. Um professor com 2m de altura reclamou do tamanho da

cama, pois ficava com os pés para fora. Esse pedido chegou à mesa de

Montenegro Filho com o despacho dos diversos setores da administração

envolvidos, dando a saber da impossibilidade de resolver tal questão, pois os

móveis foram objeto de edital de concorrência e não poderiam ser trocados.

Diante disso, Montenegro dá seu despacho no processo dirigindo-se ao chefe

do Serviço Médico do COCTA: “Ao Dr. Castello, para a única solução viável:

serrar as pernas do grande professor Dubois”, e os subordinados entendendo o

recado construíram uma cama maior para a casa do professor.

Em 1963, o professor Rogério César Cerqueira Leite trouxe da Europa

os primeiros equipamentos geradores de laser, eram equipamentos caros e

exigiam a instalação de dois aparelhos de ar-condicionado no laboratório onde

seriam instalados para pesquisas imediatas. O setor responsável informou que

não havia verba para a compra daquele tipo de equipamento e que só seria

possível fazê-lo no ano seguinte. Era uma época de clima quente do ano, e as

pesquisas não podiam parar. O caso foi parar na mesa de Montenegro, o qual

apontou para o ar-condicionado de sua sala e falou para o assistente: “Por

favor, mande retirar este aparelho e colocar na Divisão de Eletrônica

imediatamente. Caso você não se incomode, faça o mesmo com o aparelho de

sua sala”, assim o Laboratório de Pesquisa Laser começou a funcionar e algum

tempo depois apareceu um aparelho em sua sala.

Com esse estilo de administrar Montenegro ia impondo aos seus

subordinados uma forma otimista e determinada de ver o mundo exigindo-lhes

iniciativa e determinação. Este homem possuía visão precisa do projeto que

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executava e da amplitude de seu alcance. Em preleção aos candidatos

aprovados na primeira turma que começou o curso nas novas instalações em

São José dos Campos ele disse:

Vocês me perguntam: Será que o Ministério da Aeronáutica manterá o ITA, pelo menos até nos formarmos? Será que depois do curso teremos emprego? Serão reconhecidos nossos diplomas? Respondo: primeiro, a liderança da FAB está convicta que o pequeno resultado das anteriores tentativas de implantação de uma indústria aeronáutica brasileira, deveu-se à escassez de engenheiros brasileiros competentes neste setor; por isso é que vocês vêm preparar-se para participar de tal liderança, estou convicto de que o plano será realizado. Segundo, ainda que dentro de 5, 10 ou mais anos, continuemos na dependência de equipamentos estrangeiros para a aviação, vocês irão criar, nas variadas indústrias do país, a infra-estrutura sobre a qual se apoiará e desenvolverá a indústria aeronáutica. (Histórico, s/d, v. 3).

Não caberiam nos limites deste trabalho todas as outras citações sobre

a vida e a obra de Casimiro Montenegro Filho. Aqui coloquei apenas algumas

referências para situar esse personagem e sua obra, mas os dois documentos

nos Anexos H e I completam a imagem deste grande homem: o primeiro é o

discurso que proferiu na formatura da primeira turma a completar o curso

integralmente na sede atual do ITA em São José dos Campos, da qual foi

paraninfo; o outro se trata de um artigo de Augusto Frederico Schmidt ex-

assessor especial do presidente Juscelino Kubistcheck e articulista do jornal

Correio da Manhã do Rio de Janeiro, publicado em 26 de junho de 1955.

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CAPÍTULO 3

A SIMILARIDADE E A DIVERSIDADE: O REGIONAL E O NACIONAL

O vestibular para ingresso no ITA é feito em dezessete capitais e em

sete grandes cidades de todo país, mas não há uma distribuição homogênea

de aprovação pelo território nacional, há uma preponderância de São Paulo e

Rio de Janeiro, e em seguida, mas distante dos demais Estados, vem o Ceará.

Analisando-se por região a origem dos alunos nos últimos 5 anos fica evidente

o predomínio da região sudeste com 56% sobre o nordeste com 25%, o norte

com 5% e o sudoeste com 5,5% e o sul com 8,5% 42. O ITA nesse aspecto é a

única instituição de ensino superior no Brasil, não considerando as escolas

militares, em que os alunos fazem o vestibular fora da sede da universidade.

Seria essa desproporção, aliada ao fato de estar o ITA sediado no

sudeste, capaz de servir para ampliar ressentimentos que conspirem contra a

formação de um sentimento nacional nos alunos oriundos das outras regiões,

ou para confirmar a idéia estereotipada que cada um tem das demais regiões

do país? O processo de socialização que se inicia com o trote nos calouros e

passa pelas atividades militares do CPOR Aer. parece criar, desde o primeiro

momento, um vínculo entre os alunos, que os conduz a uma vida de interesses

e objetivos comuns, não importando a origem de cada um.

Os candidatos aprovados chegam a São José dos Campos

teoricamente com a mesma capacidade intelectual, mas com cargas

diferenciadas de cultura e costumes que os separam e identificam. Entretanto,

não parece ser uma separação por segregação, mas uma separação por

estranhamento e que a própria curiosidade produz uma aproximação natural

entre todos. A curiosidade em saber se as diferenças são geradoras de

conflitos que possam criar uma força centrípeta ao sentimento da

nacionalidade me conduz a uma breve reflexão sobre esse aspecto, mesmo

42 Ver Anexo A.

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que isso signifique um afastamento do objeto deste estudo. Imagino que, assim

fazendo, estarei ampliando a visão sobre o tema para então melhorar a

compreensão do mesmo.

Padrões culturais e estruturais ou fatores ambientais têm

conseqüências culturais e comportamentais para indivíduos, conforme afirma

Patterson (2002). Por isso a diversidade, tanto cultural como regional, dos

alunos do ITA nos remete à matriz causal sugerida por ele:

(A) modelos culturais herdados de gerações anteriores; (B) modelos culturais modificados como resultado de mudanças nos

modelos herdados devido a erros de transmissão durante o processo de ensinamento e imitação, assim como a ajustes a novas estratégias para fazer face ao ambiente aprendidas por tentativa e erro;

(C) o conjunto atual de contingência ambientais, especialmente estruturais;

(D) as conseqüências comportamentais que queremos explicar.

Interpretando a matriz de Patterson (op. cit.) percebe-se que a

interação destas quatro categorias atua sobre o indivíduo modificando o

comportamento dos alunos. Parece-nos que as pressões geradas nas fases (B)

e (C) quando atuando da mesma forma sobre diversos indivíduos pode ser

capaz de criar uma forma específica de subjetivação e comportamental.

Há que se atentar, também, para o fato de que uma dada sociedade

está assentada em um ambiente físico que com ela interage. Pressupõe-se que

a trama social é afetada pela forma como o indivíduo intervém nesse meio

DETERMINANTES SOCIOCULTURAIS

CONSEQÜÊNCIAS INDIVIDUAIS

Modelos A Culturais Transmitidos

Ambiente C Estrutural

B Modelos Culturais

Modificados

D Conseqüências Comportamentais

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físico para extrair riqueza e sobrevivência. Assim, é de se supor que no espaço

físico de um Estado-nação com grandes dimensões e variedade geográficas e

climáticas formar-se-ão grupos humanos com características distintas. Não se

pode esquecer dos fluxos imigratórios que se concentram mais em

determinadas áreas do que em outras, introduzindo o fator cultural que, da

mesma forma que o meio físico, tem seu peso na socialização dos grupos

humanos. Estes componentes, associados a outros, consubstanciam as

características que distinguem uma região da outra no território nacional.

Parece evidente que o elemento humano que se forma em cada região

de um país, é o mais importante componente do caráter regional, pois é ele

que, interagindo com o meio e com outros grupos humanos de diferentes

origens (autóctones, colonizadores e imigrantes) criam a cultura da região. Otto

Bauer (2000:45) mesmo diz que “[...] nenhuma nação adota elementos

estrangeiros sem alterá-los; cada uma os adapta a seu ser inteiro e, no

processo de adoção, de digestão mental, os submete a mudanças.”

De forma análoga, as condições geográficas em que vivem os

brasileiros de cada região do país são muito variadas – diferentes para os

moradores de regiões montanhosas, do litoral, da selva e das planícies. As

diferentes condições de vida produziram então, nesses variados grupos

humanos peculiaridades distintas onde estão mesclados valores e crenças

partilhadas, atividades organizadas nas rotinas diárias da vida e experiências

de interação com significados emocionais distintos em cada região do país.

Mas a geografia, física e humana, não dá conta adequadamente para explicar

os extraordinários contrastes entre as diversas regiões do Brasil e, por isso, o

poder potencial da cultura assume tamanha relevância como Jared Diamond

(2002, p. 30) destaca:

Fatores e influências culturais [...] avultam [...] características culturais humanas variam amplamente mundo a fora. Algumas dessas variações culturais são, sem dúvida, produto da variação ambiental [...], mas uma questão importante diz respeito ao possível significado de fatores culturais locais sem relação com o ambiente. Um pequeno fator cultural pode surgir por razões locais banais e temporárias, tornar-se fixo, e depois predispor a sociedade a opções culturais mais importantes [...].

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Entretanto, existem algumas teorias sobre a história da formação do

Brasil, como será visto mais adiante, que tentam demonstrar que esse sistema

de diferenciação tem sido contrariado por um processo inverso que inviabilizou

a fragmentação do Brasil como a que ocorreu com a América hispânica.

As desigualdades sociais criam também um descompasso histórico

entre o que já é real em uma região e que chega de forma fragmentária,

incompleta em outra. Mas, ainda que persistam os olhares desconfiados e

preconceituosos e a grande desigualdade socioeconômica entre os habitantes

das diversas regiões do Brasil, parece não ter crescido nenhum ressentimento

forte entre elas a ponto de criar uma força centrípeta. Existe um elemento

comum que as une e que Otto Bauer (2000) chama de sentimento nacional.

Esse sentimento, de fato, parece estar presente em todas as regiões do país,

ainda que ele seja construído com percepções estereotipadas da forma

semelhante como o Brasil se resume ao futebol e carnaval na visão do

estrangeiro. As informações das características de cada região e seus

habitantes chegam aos indivíduos de outra através de terceiros, como

televisão, jornal, outros tipos de leitura e informações de viajantes. De um

modo geral não há o testemunho visual, afinal a maioria não vive viajando.

É na consciência, ou inconsciência, desses desencontros e confrontos

de realidades múltiplas que ganha corpo o “método” interpretativo de uma nova

realidade em permanente construção entre os alunos do ITA; o qual está

presente tanto nos procedimentos escolares, nas atividades do Centro

Acadêmico, na preparação militar exercitada no CPOR Aer., na construção de

suas tradições, quanto na socialização espontânea que o convívio no H-8

proporciona aos alunos. Entretanto, conforme Weber (1999), nem sempre o

fato de algumas pessoas terem em comum determinadas qualidades, ou

determinado comportamento, ou se encontrarem na mesma situação implica

uma relação comunitária. Ele mesmo diz que:

[...] somente quando, em virtude desse sentimento, as pessoas começam de alguma forma a orientar seu comportamento pelo das outras, nasce entre elas uma relação social – que não é apenas uma relação entre cada indivíduo e o mundo circundante –, e só na medida em que nela se manifesta o sentimento de pertencer ao mesmo grupo existe uma “relação comunitária”. (WEBER, 1999, p.83).

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Nesses termos, o sentimento comunitário entre os iteanos é bastante

visível, percebi em todos com quem tive contato uma espécie de satisfação de

estarem ali; e todos com quem falei, alunos e ex-alunos, referem-se ao ITA

como sendo a sua segunda família. Nesse caso, está configurada uma família

como as características definidas por Pinto (1980, p. 3), como sendo “[...] o

quadro onde se desenrolam todas ou quase todas as atividades sociais, e que

determinam, fundamentalmente, o status da pessoa.”

A Associação dos Engenheiros do ITA (AEITA), que ocupa uma sala no

prédio principal, pública anualmente uma espécie de almanaque que se chama

Histórias para Contar – Amigos para Encontrar. O título é evocativo ao dia do

encontro anual dos engenheiros iteanos chamado de “Sábado das Origens”,

em uma alusão de que amigos sempre têm histórias para contar. São,

aproximadamente, 5 mil engenheiros formados ao longo dos 57 anos de

existência do ITA e há uma grande afluência deles de todas as partes do Brasil

para esse encontro anual, na qual as diversas gerações se confraternizam,

trocam experiências e se ajudam mutuamente e, em alguns casos, se

mobilizam para prestar assistência a algum companheiro em dificuldade. Esse

evento se constitui numa verdadeira confraria, ou irmandade, que se

assemelha um pouco a uma maçonaria em que de uma forma recalcitrante, os

códigos de honra e disciplina, e os laços de fraternidade são evocados. O

momento é lembrado como uma “volta às origens” num refluxo de um mundo

ideal sobre outro real que é o dia-a-dia de cada um.

Em depoimento da aluna que preside o CASD-Vest. (uma organização

fundada e dirigida voluntariamente por alunos do ITA) que ministra curso pré-

vestibular para pessoas carentes, disse que em seu trabalho de buscar

recursos e todo tipo de ajuda para o funcionamento do curso, por vezes e

inesperadamente, bate em porta de ex-iteano: “Aí as coisas mudam, chegamos

a nos sentir lisonjeados pela forma como somos tratados [...] as portas se

abrem.”

Além do almanaque Histórias para Contar - Amigos para Encontrar a

AEITA publica o jornal O Suplemento, com notícias diversas sobre as

atividades de iteanos, alunos e ex-alunos, a cujos nomes está sempre apensa

a identificação da turma a que pertence (T77, T66, T07, etc.). O seu texto é

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impregnado de uma densidade social em que a dimensão coletiva não é

negada e com ela tudo aquilo que os textos corporativos implicam de conteúdo

passional, tudo aquilo que os carrega desse peso por vezes tão denso de

esperanças, de recordações, de fidelidades e de sucessos. Mas em todas as

notícias há também um forte orgulho nacional de pertencer a um grupo de

engenheiros de um segmento industrial do país que é “[...] o terceiro maior

produtor de aviões do mundo” (O SUPLEMENTO, 2007, p. 12) e um dos

maiores geradores de divisas para o país.

Mas a categoria que mais me impressionou como reveladora da

transição do regional para o nacional é a linguagem, são nos códigos do

discurso que se encapsulam a miscigenação e a integração. Num tom

alegórico as palavras e expressões reúnem o imaginário de diversas regiões e

criam nova terminologia numa linguagem própria que, em alguns casos, são

verdadeiros códigos de expressão dos iteanos.

O Jornal do Bixo é extremamente rico dessa reveladora linguagem

cifrada e de exemplos da miscigenação a que me referi, como é flagrante nas

citações que se seguem. A coluna “As Bixetes pelas Bixetes” 43 comenta a vida

das companheiras de quarto:

102 F – Lia – Para uma guria sulista que houve metal, não haveria companheira de quarto melhor que uma “muié”, cearense que é fã de carteirinha do Zezé de Camargo e Luciano, de forró e do Buneco (não é esse boneco que vocês estão pensando). Adora uma rapadura e agora trouxe uma rede bizurada para ficar bem no caminho da porta do apê. (JORNAL DO BIXO, 2003).

Estão aí misturados termos do sul (guria), com expressões nordestinas

(muié, buneco), e costumes (rede, rapadura). Expressões que muito dizem da

integração que ocorre na sociologia espontânea do H-8, dando uma idéia do

que pode acontecer na convivência íntima durante 5 anos de uma cearense

com uma gaúcha que, em muitos casos, nunca viu uma rede e que rapadura é

um doce raras vezes desfrutado.

Na coluna “Dicionário Iteano” também se pode encontrar

manifestações interessantes dessa miscigenação:

43 “Bixetes” são as calouras.

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– Associação dos Barangueiros do ITA (ABITA) – “é o efeito laranja na

prática”. Barangueiro é um termo sabidamente nordestino que é

incorporado à linguagem iteana. “Efeito Laranja” é definido como

aquilo que “os homens sofrem ao cursar o ITA: passam a achar as

mulheres zelóides e as bixetes bonitinhas”, numa referência aos

efeitos de um grande período de enclausuramento por que passam

os rapazes;

– Arataca – são as pessoas gente boa, o povo que veio do norte-

nordeste brasileiro para melhorar o ITA;

– Buneco – pergunte a um cearense, não tem como se definir;

– Cancerizar – fazer as coisas na maior cautela; caprichar; abaitolar;

– Abaitolar é a mais autêntica expressão nordestina para designar um

homossexual, nesse caso ela está introduzida num neologismo

criado pelos alunos;

– Melar termo usado na região nordeste do Brasil, e é definido pelos

iteanos como “o ato de adiar, ou cancelar determinada coisa”.

Este dicionário traduz, também, expressão tipicamente carioca como

safo, que é definido como “pessoa que se acha melhor que as outras e quer

levar vantagem em tudo.”

Outros textos do Jornal do Bixo explicitam, sempre em tom jocoso, os

estereótipos de cada região do país, como o “Teste de Marrentice” (de marra,

um tipo “exibido”) ou O Quanto Você é Carioca, ou quando fala da

“Bunecolândia” se referindo a um determinado local no H-8 “onde o buneco

corre solto” e exige os seguintes “pré-requisitos”: “Ser Arataca original ou

honorário”, “Saber o que é o Buneco”, “Saber o que é Babado Novo” e “Rezar

para que o Buneco não morra nunca”.

O uso de expressões regionais por indivíduos de outra região começa

com um tom de chacota e quase como uma provocação, e são tão repetidas

que acabam se integrando ao linguajar dos estudantes e, muitas vezes, com o

significado ampliado ou até modificado. Nesse caso, passam a representar um

código que só os iteanos entendem. Por exemplo, “baitola” é uma expressão

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tipicamente nordestina que significa homossexual, mas entre os alunos pode

ser entendido também como uma pessoa que “faz as coisas com a maior

cautela”, ou ranchers que vem de rancho (refeitório), mas que se transforma

num anglicismo, ou tenta lembrar os rangers do inglês que é um tipo de polícia

montada norte-americana ou canadense, mas que entre os alunos significa

“aqueles que nunca perdem o rancho” ou aqueles que “patrulham” o rancho.

Outras como “bixetes” que “são TODOS os seres do sexo feminino que

estudam no ITA” – neologismo criado pelos alunos numa alusão às meninas

que animavam o programa, de alcance nacional, de uma apresentadora de

televisão.

A televisão tende a homogeneizar as formas de expressão dos

brasileiros, mostrando e misturando regionalismos, desmistificando os

regionalismos e contribuindo para a unidade nacional, mas que na maioria das

vezes introduz elementos da cultura de uma região em outra de uma forma

fragmentada e estranha à cultura local. Assim, em nome de uma “cultura

nacional” as culturas regionais vão sendo “engolidas” por um único sumidouro

chamado “comunicação de massa”. No micro universo do grupo social dos

alunos do ITA isso ocorre de uma maneira diferente, visto que há o contato

pessoal entre os indivíduos das diversas regiões do Brasil, e há entre eles a

linguagem comum da ciência e dos saberes locais, o que possibilita que o

gaúcho se mantenha gaúcho, o arataca, arataca, até mesmo por estarem

movidos pela vontade de terem uma identidade própria dentro do grupo, mas

são derrubados os preconceitos que poderiam existir anteriormente.

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CAPÍTULO 4

ENTRE O FILOSÓFICO E O PRAGMÁTICO: O MODELO EDUCACIONAL DO ITA

Do ponto de vista institucional, o ITA representa o marco de uma

inflexão na história da universidade no Brasil em diversos aspectos. Em

primeiro lugar o virtual monopólio do MEC sobre o ensino superior foi posto à

prova. Em segundo lugar, assistimos ao surgimento dos currículos flexíveis e o

fim da cátedra, além de ações que gestaram o instituto da pesquisa vinculada

ao ensino e ao pesquisador profissional.

Quando as primeiras idéias sobre a criação de uma escola superior de

engenharia aeronáutica já ocupavam os pensamentos de Montenegro Filho, as

pretensões que foram levantadas por um deslumbramento do ministro Salgado

Filho ao voltar de uma visita às instalações das Forças Aéreas do Exército dos

Estados Unidos e a posterior visita de Montenegro Filho à base de Wright Field

e ao Massachusetts Institute of Techinology (MIT) em Boston, em 1943, a

profissão de engenheiro aeronáutico nem era regulamentada no Brasil. Foi

somente em 1946 que o Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura

concedeu o “registro profissional de “engenheiro Aeronáutico (modalidade de

construção de aeronaves, ou modalidade de “construção de motores” ou

ambas), “engenheiro de Manutenção Aeronáutica” e “engenheiro de Produção

Aeronáutica”, aos diplomados por estabelecimentos de ensino aeronáutico de

grau superior do Brasil ou do estrangeiro” 44, quando os engenheiros desta área

nem eram formados no Brasil. Entretanto, o registro “dos diplomados pelas

Escolas da União ou equivalentes, será precedido do registro do diploma no

Ministério da Aeronáutica.”

Na verdade essa resolução, por interveniência da Aeronáutica,

antecipava a entrada no mercado de trabalho da primeira turma de

engenheiros (1950) formados pela novel escola de Engenharia Aeronáutica do 44 Fac-símile da Resolução n° 58 de 6 de agosto de 1945 do CONFEA (ITA, s/d, p. 520, v. 3).

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país, o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), do Ministério da

Aeronáutica, e abria espaço para interpretações sobre a legitimidade do próprio

ministério formar os seus engenheiros em um sistema de ensino dissociado do

Ministério da Educação e Cultura (MEC).

À época da ativação do ITA, e antes mesmo, na fase de planejamento

do seu plano de implantação, havia uma forte tendência centralizadora na

burocracia estatal brasileira que limitava a autonomia administrativa e

econômico-financeira dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assim

como criava leis e regulamentos genéricos sobre os aspectos didáticos dos

cursos – regime de trabalho dos professores, currículos, duração dos cursos,

critérios de graus, regime do corpo discente, entre outros –, criando um

conjunto de restrições inibidoras de avanços progressistas e modernizadores

do ensino superior. Admitia-se como indiscutível que as universidades

deveriam concentrar-se na transmissão do conhecimento, e não na sua

descoberta. Os currículos eram mais ou menos fixos. As universidades

brasileiras sofriam do que já foi chamado de “inércia institucional”, mantendo

suas tradições corporativas, como a intangibilidade da cátedra, ao preço do

isolamento em relação às novas tendências45.

Todos esses aspectos foram levantados nos estudos preliminares

feitos pela Comissão de Implantação do Centro Técnico da Aeronáutica

(COCTA), cuja figura principal era o professor Richard H. Smith, ex-chefe do

Departamento de Aeronáutica do MIT, contratado pelo Ministério da

Aeronáutica por solicitação de Casimiro Montenegro Filho. Os mesmos estudos

acolhiam, também, apelos do setor industrial que reclamava do fato de que “[...]

as escolas técnicas de nível superior não se preocuparem com os problemas

de produção que se apresentavam à indústria brasileira.” (ITA, s/d, p. 42, v. 4).

As conclusões da Comissão apontavam para um modelo acadêmico totalmente

distinto daquele que era praticado nas universidades brasileiras. A Aeronáutica

(livre das amarras do MEC) teve o seu modelo aprovado pelo presidente da

República. Entretanto, a nova instituição não foi aceita com facilidade pelo meio

acadêmico brasileiro: 45 Informações contidas na palestra “A Reforma Universitária” proferida no ITA pelo professor Oliveira Junior, E.L. em 1951, Biblioteca Central do ITA. Para ampliar o conhecimento sobre o tema ler “Tempos de Capanema”(Bibliografia)

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O primeiro problema que tivemos foi com o Ministério da Educação, que não entendia como uma escola de Engenharia pudesse estar fora da sua supervisão. E eu era o encarregado das negociações com o Ministério. Um dos primeiros objetivos constituiu em criar uma escola de Engenharia moldada nos padrões americanos, isto é, uma escola destinada a formar engenheiros práticos, e não teóricos. A Politécnica sofria uma forte influência francesa, e a Politécnica da França era mais uma escola de ciências de que uma escola de Engenharia. (SCHWARTZMAN, 2001, p. 264).

Por outro lado, a resistência do MEC não foi suficiente para bloquear a

iniciativa. Sobre esse fato não aprofundei a pesquisa o suficiente para saber se

a inadimplência do MEC foi por razões políticas para não criar um

enfrentamento com os militares, ou se essa atitude escondia a curiosidade de

deixar acontecer para ver os resultados; deixar que a idéia se desenvolvesse

como se ela estivesse em um laboratório de testes. O fato é que não foi difícil

para Montenegro Filho “aliciar” alguns dos melhores professores da USP para

o seu projeto. Ele mesmo, com um pensamento liberal, acreditava que quem

iria validar o diploma dos engenheiros do ITA seria o próprio mercado.

O tempo e a execução criteriosa do projeto conspiravam a favor, de tal

forma, que “[...] na década de 1950, o ITA tornou-se conhecido como a melhor

escola de Engenharia do Brasil.” (Ibidem, p. 263). Em outras palavras, os

militares da Aeronáutica criaram um cluster de ensino tecnológico, com a

concepção pragmática americana, em um ambiente no qual a formação

acadêmica no país se fundava no padrão filosófico-cultural clássico francês46

com o sentido estático de “saber o que” e não o de “saber como”. Os

programas curriculares eram engessados por uma burocracia em que o

catedrático era o escudeiro da imutabilidade. Apresentava-se realmente um

desafio, pois estava sendo transplantado um tipo de relação aluno-professor-

escola baseado no mérito, na co-responsabilidade e na autodisciplina. Criava-

se um novo tipo de socialização como será visto mais adiante, levando-se em

consideração o fato de que “[...] as formas de sociabilidade tinham – e ainda

têm – influência sobre a distribuição e até mesmo sobre a produção do

conhecimento.” (BURKE, 2003, p. 57).

É na concepção dos currículos e no regime acadêmico dos diversos

cursos que se pode encontrar as marcas dessa peculiar socialização. 46 Para ampliar o conhecimento do tema ver “Tempos de Capanema”

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O fato inovador e talvez o mais curioso seja a existência de disciplinas

(que são chamadas de “matérias” no catálogo do curso de graduação em

Engenharia do ITA47) da área de Humanidades, como Ética, Temas de

Psicologia Social, Psicologia, Dinâmica de Grupo, Formação Histórica do

Mundo Globalizado, História da Ciência e Tecnologia no Brasil, Cultura

Brasileira, Noções de Direito, Teoria Política, Subjetividade e

Contemporaneidade, Aspectos Sociais da Organização da Produção, além de

seminários temáticos de humanidades, no currículo de um curso tecnológico.

Existem também, aulas de leitura, expressão oral e escrita de português, inglês

instrumental e prática de inglês oral.

Montenegro Filho (1996) que se inspirava no modelo do MIT, já dizia

que “[...] dificilmente será um bom engenheiro aeronáutico aquele que não

possuir conhecimentos gerais.” Conhecimentos gerais se tornam necessários

para a “[...] conexão entre as coisas e a interdependência das noções, de tal

forma que uma parte do saber lança luz sobre as outras.” (BARROW, 2003, p.

81).

Conforme Burke (2003) – que analisa sociologicamente a história do

conhecimento nas mais importantes e antigas universidades do mundo –, a

existência e relativa importância atribuída às “humanidades” num curso de

engenharia insinua que o ensino dessas disciplinas deva gerar uma identidade

comum entre os professores e alunos, e o aparecimento de uma identidade

coletiva. O autor percebeu ainda, que o uso crescente da palavra “humanista”

em determinadas universidades ajudou a construir um tipo de tradição que

comprometia alunos-professores-universidade com a geração do

conhecimento. Seria esse ciclo virtuoso, que poucas universidades no mundo

conseguiram construir e manter em constante realimentação o seu alto

conceito, responsável pela tradição e o respeito que se criou em torno dessas

instituições? Estudando as práticas acadêmicas do ITA e a socialização de

seus alunos, poderemos avaliar se dessa perspectiva o ensino de

humanidades também é tributário da construção social da subjetividade dos

alunos.

47 O conteúdo do catálogo pode ser encontrado na internet no site do ITA, Disponível em: <http://www.ita.br>.

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A qualidade da produção científica faz parte dos valores comuns dos

cientistas que constroem uma consciência comum e atuam no indivíduo como

um sentimento de classe. Ter a produção científica e tecnológica, ou uma parte

dela, reconhecida pela comunidade científica internacional seria o mesmo que

subir ao pódio em um número crescente de modalidades esportivas em uma

olimpíada. A visualização desses indivíduos excepcionais carregando os

valores de uma instituição de renome num ambiente internacional leva todos,

intuitivamente, a se ver ali como “nós” em relação aos outros, como se cada

um estivesse no pódio encarnando a sua categoria de iteano, tomado pela

“consciência classe”.

O próprio conteúdo de algumas disciplinas das humanidades como

História da Ciência e Tecnologia no Brasil e Cultura Brasileira remete a um

conjunto de conhecimentos que conecta o indivíduo aos símbolos e valores da

nação. Estas disciplinas associadas a aulas de Símbolos Nacionais ministradas

no CPOR Aer. situam os alunos numa rede de convenções e conhecimentos

que projeta e dão consistência à sua formação como engenheiros e cidadãos

brasileiros.

A rotina acadêmica se faz normalmente com aulas teóricas pela

manhã, laboratório na parte da tarde e a noite é livre para o estudo individual.

A grade curricular dos cursos é estabelecida anualmente pela

Congregação que é um órgão constituído pelo vice-reitor, diretor de ensino,

chefes das Divisões de Ensino (ensino fundamental, Engenharia Aeronáutica,

Engenharia Eletrônica, Engenharia Mecânica-Aeronáutica, Engenharia de Infra-

Estrutura Aeronáutica, Ciência da Computação e de pós-graduação) e os

chefes de departamento 48 como membros efetivos e mais um professor titular

de cada Divisão de Ensino e um professor assistente de cada divisão como

membros representativos (ITA, 2006). A dinâmica que atribui flexibilidade

atuarial aos currículos está caracterizada no fato de que as

[...] respectivas Divisões, a Comissão de Currículo da Congregação, atuando em seu nome, poderá alterar, mediante proposta, o que está

48 Os Departamentos são partes das Divisões. Assim, a Divisão de Engenharia Aeronáutica, por exemplo, tem os Departamentos de Aerodinâmica, de Mecânica do Vôo, de Propulsão, de Estruturas, e de Projetos. Existem vinte e quatro Departamentos distribuídos pelas seis Divisões.

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aqui disposto, desde que tais modificações não impliquem em mudança substancial do que foi aprovado em plenário. (ITA, 2006).

O sistema de avaliação acadêmico49 é de certa forma flexível quanto à

execução pelo aluno, e rigoroso quanto aos resultados exigidos. Assim, se

determinada turma achar que não está suficientemente preparada para realizar

a prova na data marcada, o representante da turma solicita a transferência de

data sem nenhum problema, num ato de respeito e confiança que regem as

relações aluno-professor-escola. Por outro lado o aluno não poderá ter mais de

um grau insuficiente por ano letivo, ou seja, só poderá ter cinco graus

insuficientes ao longo dos cinco anos de curso. A avaliação é conceitual, os

valores numéricos da nota atribuída são agrupados em conceitos (D)

deficiente, (I) insuficiente, ® regular, (B) bom, (MB) muito bom, (L) louvor. A

diferenciação numérica entre os conceitos é de um ponto. Mostra a espessura

da malha de avaliação e o rigor do detalhamento aplicado. Este sistema

qualitativo de avaliação incide sobre os trabalhos individuais, que são

resolução de problemas que exigem pesquisa, nos exames de final de período

e, excepcionalmente, nos exames de segunda época50.

Por mais que se tente isentar um sistema de avaliação, ou de medição

de desempenho, de estar sujeito a uma estrutura de poder, mais nos

aproximamos das formas dissimuladas de poder que atuam sobre o indivíduo.

Assim, a própria forma como o sistema é concebido pelo ITA tem implicações

na esfera do comportamento. Esse sistema qualitativo de avaliação de

desempenho acadêmico apresenta um número de implicações que são muito

menos abstratas. Uma delas é que a avaliação qualitativa do ITA não pretende

transformar diferenças concretas em semelhanças abstratas, uma vez que os

alunos são classificados por faixa de desempenho e não por valores numéricos

absolutos. Outra é que também não tem a pretensão de localizar competências

idênticas disfarçadas sob conceitos diferentes, pois distribui as competências

por segmentos conceituais, respeitando e avalizando a relatividade das

competências individuais. Uma terceira implicação é que sejam quais forem as

49 Ver Anexo H – Verificação e Avaliação Acadêmica 50 Exame de segunda época é prova realizada fora da época normal dos exames de avaliação para alunos que não tenham obtido o grau suficiente nestes, ou que por uma outra razão não os tenham realizado. No ITA os exames de segunda época também são usados como punição.

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conclusões a que se chegue nesse sistema de avaliação, estas servem como

referência para o gerenciamento da diferença e não a sua eliminação. É a esse

poder imaginativo, construtivo ou interpretativo, um poder que tem suas raízes

nos recursos coletivos do aprendizado e não na capacidade isolada de

indivíduos que o sistema de avaliação de desempenho acadêmico do ITA dá

atenção.

Já Foucault (2002, p. 151) percebe a avaliação de desempenho como

um tipo de punição porque

[...] a qualificação dos comportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e do mal; em vez de simples separação do proibido, como é feito pela justiça, temos uma distribuição entre pólo positivo e pólo negativo; todo comportamento cai no campo das boas e das más notas.

A avaliação vista assim, como uma punição,

[...] não passa de um elemento de um sistema duplo: gratificação-sanção. E é esse sistema que se torna operante no processo de treinamento e de correção. [...] E pelo jogo dessa quantificação, graças ao cálculo permanente das notas a mais ou a menos, os aparelhos disciplinares hierarquizam, numa relação mútua, os “bons” e os “maus” indivíduos. Através dessa micro economia de uma penalidade perpétua, opera-se uma diferenciação que não é a do ato, mas dos próprios indivíduos, de sua natureza, de suas virtualidades, de seu nível ou valor, [...] a penalidade que ela põe em execução se integra no ciclo de conhecimento dos indivíduos. (FOUCAULT, 2002, p. 150-151).

Entretanto, a direção do ITA não visa simplesmente punir, nem

classificar os bons e maus alunos, mas ordená-los numa escala de

competências.

Ainda que ela supostamente penalize a incompetência e não o aluno,

alegando que a ele são dadas todas as oportunidades e condições para darem

de si o melhor, ela atinge o indivíduo no seu amor próprio e abala o seu status

numa coletividade que valoriza e realça a competência.

O píncaro da competência acadêmica é atingido por poucos. O título

Suma Cum Laude é outorgado aos alunos que obtiveram, ao longo dos 5 anos

de curso, média geral igual ou superior a 9,5 em todas as matérias (conceito

“L”, de louvor). Ao longo dos quase 60 anos de existência do ITA somente 18

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formandos atingiram essa marca 51. Mas os alunos podem concluir o curso com

as menções honrosas de Magna Cum Laude, quando 50% de seus conceitos

forem “L” ou “Cum Laude” quando nenhum conceito ao logo dos 3 anos

profissionalizantes for inferior a “MB”.

51 Ver o site do ITA, disponível em: <http//:www.ita.br>.

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CAPÍTULO 5

ORGANIZAÇÃO DAS GÊNESES

A reunião de pessoas de diferentes lugares do território nacional num

mesmo local por um tempo considerável, passando por experiências iguais

seria um dos fatores contribuintes para a construção da unidade nacional? De

acordo com Carvalho (2003) sim, ele defende que o fato das elites intelectuais

de todos os rincões do Brasil, em sua grande maioria, ter estudado em uma

única universidade, a de Coimbra, teria concorrido para a preservação da

unidade da América portuguesa, ao contrário do que ocorreu com a América

hispânica em que suas elites estudavam em Santo Domingos, Cidade do

México, ou Lima. Aproveitando elementos dessa teoria para apoiar o nosso

raciocínio, nos parece viável imaginar que o ITA cumpre um papel semelhante

ao de Coimbra na construção da consciência cidadã de seus alunos e se torna

um elemento ativo na construção social das subjetividades.

De uma forma semelhante ao que ocorre com as Escolas Militares, em

que os alunos são arregimentados em todo o território nacional, o ingresso no

ITA é feito através de vestibular nacional que seleciona, em média, 130

candidatos a cada ano. Assim como Coimbra representou o ponto de encontro

das elites brasileiras no século XIX (CARVALHO, op. cit.), nas devidas

proporções, e claro sem a convivência no estrangeiro, esses brasileiros entram

em contato com os costumes e problemas de cada região do país ao se

encontrarem em São José dos Campos com o mesmo propósito.

Os aprovados no vestibular, depois de realizarem exames médicos 52,

são convocados para uma reunião inicial com o reitor, diretor do CTA e com os

coordenadores das diversas atividades que os ocupará durante os próximos 5

anos. Esta reunião é cercada de certa formalidade e os pais dos alunos são

52 Os candidatos aprovados fazem exames médicos porque irão prestar o serviço militar no CPOR Aer. Mesmo os que forem considerados incapazes para aquele serviço são obrigados a prestar exames médicos para controle do estado de saúde.

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convidados. Mas, de fato, a socialização dos novos alunos começa quando são

recepcionados pelos veteranos e são distribuídos pelos apartamentos onde

irão residir por muito tempo. Na distribuição os alunos são misturados conforme

a sua origem. A comissão de alojamento do Centro Acadêmico, que faz a

distribuição, procura evitar ao máximo a concentração de alunos do mesmo

Estado ou região em um mesmo apartamento. Posteriormente os calouros são

“entregues” à comissão de recepção, dando início às brincadeiras de

integração.

O trote ou ritos de integração – como os alunos mesmos proclamam, e

que eu arrisco a chamar de ritos de iniciação ou de socialização – começam

por criar instintivamente um espírito de união entre os calouros como que para

se protegerem dos veteranos. Os calouros estão em constante posição

defensiva, pois são frequentemente perturbados pelos veteranos, mas não

podem perturbar ninguém. Partindo da pressuposição de que os calouros não

“sabem” nada da escola e da vida em comum que estão iniciando, os

veteranos tratam todos com o mesmo “rigor”. Na verdade, dar trote não é

permitido, é transgressão disciplinar, por isso a palavra é pouco pronunciada e

as “brincadeiras” com os calouros são coletivas e organizadas pela comissão

de recepção do CASD.

É na tomada de consciência desses desencontros e confrontos que

ganha forma a unidade corporativa entre os alunos. Começam a distinguir o

“nosso grupo” (dos calouros) do “deles” (veteranos), a compartilharem planos e

estratégias para se esquivarem do trote, a perceber o caráter de cada veterano

e assim aproximá-los como possíveis amigos ou futuros “desafetos”. Sim,

porque no ato de perpetrar um trote o veterano expõe o seu caráter e o dos

propósitos hierarquizantes de uma estrutura de micro poder de todo o corpo de

alunos, numa espécie de teatro do status. Se os alunos mais novos têm de

sofrer sob o domínio dos mais velhos, eles sabem, no entanto, que daí a uns 2

anos eles próprios serão os “veteranos”. Na lógica dos veteranos está

subjacente também a intenção de instalar nos calouros a noção de estrita

obediência, para que eles próprios possam um dia liderar, ou dar uma voz de

comando a um novo calouro, e de que a tradição do trote seja mantida.

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A ritualização do trote somada às atividades militares no CPOR Aer.,

como veremos mais adiante, submetem os calouros a um mecanismo

altamente formalizado de coação social, os quais lhes impõem algumas

privações e, no entanto, ao mesmo tempo, lhes promete um proporcional

abono de regalias. O trote não se constitui num mero conjunto de atividades

lúdicas e ocasionais, mas sim num sistema terminológico distinto, delimitado e

internamente muito expressivo. Assim os calouros são persuadidos a acreditar

que os sacrifícios que estão passando e as frustrações que esperam enfrentar

têm algum significado. Entretanto, boa parte dos calouros não conhece ou não

entende qual seja esse significado, mas estão convencidos que tudo isso faz

sentido, como será visto mais adiante, mesmo sem ter muito claro ainda qual é

esse sentido. Talvez isso ocorra porque pode ser frustrante ter de admitir que

as privações que estão suportando não têm realmente qualquer propósito,

exceto a manutenção ou aumento do poder do grupo a que pertencem, e serve

como símbolo de status superior da própria pessoa em relação às outras. Pois

se um indivíduo despendeu um grande esforço pessoal para obter

qualificações como as exigidas pelos exames do vestibular a que se

submeteram e pelas árduas provas militares de campo do CPOR Aer., então

parece razoável supor que os sacrifícios e as frustrações pelas quais eles

passam são significativos e necessários, porque a opinião comum de todos do

corpo de alunos assim os julgam.

“Integração” é o termo mais usado, tanto por calouros como pelos

veteranos – para justificar o trote. É um sentimento que parece estar conectado

mais à tradição do que a uma lógica coerente, pois até os mais antigos, já

formados e em atividade no mercado de trabalho, acreditam nesse efeito e

ainda reforçam dizendo que estas práticas fornecem histórias hilárias que são

sempre reconstituídas nos encontros de turma, funcionando como um elo

comum entre todos que viveram aqueles momentos.

De fato as manifestações de pertença estão por todas as partes. No

Jornal do Bixo existe uma seção chamada de “Obituário” onde estão

relacionados todos os ex-futuros calouros que apesar de terem sido aprovados

no vestibular desistiram de ser matriculados; e lá está escrito “Esta seção é

para os que nem vieram se apresentar ao ITA ou resolveram desistir. Vocês

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não sabem o que perderam e ainda vão perder!” Esta foi a declaração que ouvi

de um estudante que me disse: “[...] o ITA não me dá somente o estudo [...] o

ITA me integra na sociedade.”

Esse sentimento de união é mais intenso no primeiro ano em que todos

juntos passam pelas mesmas experiências. A própria rotina do CPOR Aer., o

trote e as atividades acadêmicas os mantém unidos num corpo só. Eles ainda

não são identificados pela especialidade de engenharia que irão cursar, pois o

primeiro é o ano fundamental em que todos têm a obrigatoriedade de assistir

aulas das mesmas disciplinas. Por isso, são frequentemente “usados” em

massa pelos veteranos para atividades extracurriculares como o trote

beneficente, na qual são convocados a recolher alimentos e agasalhos pelas

vilas residenciais dos oficiais, professores e demais militares dentro do campus

do CTA, para serem distribuídos a entidades da assistência social de São José

dos Campos.

O trote, que é definido por eles mesmos como “atividade para integrar

os bixos” 53, os submetem a diversas situações em que todos são tratados da

mesma forma, independentemente das suas origens. Os indivíduos perdem a

sua identidade e ganham outra, são todos bichos, são todos iguais.

A relação intensa desse primeiro ano de vida comum cria outros tipos

de relações que são concorrentes à integração nacional. Por exemplo, durante

as “semaninhas” 54 é comum e freqüente estudantes que são de regiões

distantes do sudeste do Brasil aproveitarem o recesso na casa de algum

colega e muitas vezes nas férias escolares alunos da região sudeste vão para

outras regiões, tendo algum colega por anfitrião.

Esse intercâmbio espontâneo, nascido de relações de amizade

fecundadas no convívio no ITA, contribui para a ampliação do conhecimento e

da própria desmistificação dos costumes regionais. Em muitos casos esta é a

primeira vez que o estudante deixa o seu Estado ou região de nascimento.

53 Jornal do Bixo, 2007 (Anexo B). 54 “Semaninha” é o período de mais ou menos uma semana de recesso que se segue a cada período de aproximadamente 4 meses de atividade escolar.

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CAPÍTULO 6

MITIGANDO AS DIFERENÇAS

As diferenças começam a ser aplacadas pela convivência “forçada”

pelo trote, justamente na desengonçada e caricatural junção da diversidade

cultural que os calouros carregam de suas regiões, justapondo culturas

diferentes. No processo de socialização que se inicia já no primeiro contato dos

novos alunos com a instituição, eles passam a ser vítimas de uma dupla

controvérsia: de um lado, o da confusão entre o coletivo, o corporativo e o

individual; de outro a confusão entre o real e o imaginário. Sem defesa, eles

são capturados pelo imaginário e se entregam a uma nova vida.

Até a chegada dos alunos para iniciar o curso no ITA as experiências

de vida em equipe ou integradas a algum grupo humano foram parcamente

exercitadas na escola, sem que houvesse uma convivência diuturna. Antes, a

maioria sentia-se segura pelo aconchego do lar e a certeza da existência de

uns poucos amigos, ou no mínimo obrigados a tomarem decisões no

isolamento de seus pensamentos sem ter com quem compartilhar as idéias.

Não tinham com quem compartilhar vitórias, mas também não tinha nenhuma

responsabilidade coletiva pelos fracassos – isso era real. O ingresso no ITA se

apresentava como uma experiência individual inédita que só estava construída

no imaginário de cada um. A idealização desse novo mundo ainda precisava

ser vivida para se tornar “real”.

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Figura 1 – Reunião inicial da Direção do ITA com os calouros e seus pais.

A reunião inicial dos novos alunos, juntamente com seus pais, com a

direção do CTA, o reitor do ITA e alguns professores, se constitui num

momento que se reveste de um simbolismo implícito. A direção informa a eles

sobre tudo o que acontecerá nos próximos 5 anos de vida acadêmica, as

obrigações e os direitos de cada um, a rotina, o curso, as atividades extra-

curriculares, a “vida” na cidade, as atividades do CPOR Aer., entre outros

aspectos. Aos pais é mostrada a importância de cada atividade para a

formação não só do engenheiro, mas do cidadão. Há como que um rito de

entrega do individual para o coletivo, do “eu” para o “nós”. A passagem da vida

privada para a convivência coletiva. Os novos alunos ganham uma identidade

coletiva: turma 07, 08, 09, e assim por diante. As turmas são identificadas pelo

ano em que se formarão. Tratando-se de um curso seqüencial, tirando os

casos excepcionais de trancamento de matrícula, os alunos permanecem

juntos na mesma turma até a data da formatura. Nesse momento ritualizado

por um formalismo simbólico é descortinado um novo mundo de experiências e

conhecimentos que serão vividos. Começa a construção de um ambiente onde

as fendas que separam o indivíduo do coletivo e as experiências que são de

uma esfera e de outra, serão cimentadas pelo imaginário coletivo que ali se

inicia.

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Figura 2 – Chegada dos calouros no hall da reitoria.

O ITA oferece hospedagem para os alunos a um preço simbólico.

Mesmo sendo opcional a moradia dentro do campus, todos os alunos residem

no H-8, inclusive os que possuem família em São José dos Campos. Quando

os calouros são distribuídos nos apartamentos pelos veteranos, assim como

em todas as outras ocasiões em que são divididos em grupos, como nas

atividades do CPOR Aer., há a preocupação de mesclar os indivíduos das

diversas regiões do país.

O Centro Acadêmico forma uma comissão para receber os calouros,

distribuí-los pelos apartamentos e organizar as brincadeiras para recepcioná-

los. Os calouros são “obrigados” a preparar uma apresentação teatral, no final

do primeiro semestre, sobre aquilo que viveram e viram na vida de “bicho” e

devem, também, editar um jornal, o Jornal do Bixo até a metade do primeiro

ano. Esta publicação é feita pelos calouros sem nenhuma interferência ou

participação dos veteranos ou da direção do ITA e a crítica e a gozação não

são censuradas, o que a torna interessante e nos dá uma idéia dos efeitos do

trote na socialização dos alunos. O edital da edição de agosto de 2003, feito

pela turma 07, é bem significativo e permite formular algumas considerações

sobre o tipo de socialização que acontece entre os alunos:

Será que a gente ainda se lembra? Aquela rotina do cursinho/ colégio, o tempo sobrando (ou não) pra fazer outras coisas que não o

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Gagá insano, alguns bons amigos, os parentes, enfim a distância de casa aumentou e a responsabilidade também. Está acontecendo com muitos de nós o que “A Cova Dela” nos dizia em suas entrelinhas faz tempo...

Estamos aqui há pouco mais de cinco meses (tá bom, a gente demorou, mas o JB saiu) e parece que tudo o que poderíamos saber, ou pelo menos ouvirmos falar do ITA e do H-8, já foi falado naqueles bostejos infinitos iluminados à luz da lua e ao som do chuá da “gélida, límpida, cristalina e desmineralizada água com pH=7” do Feijão 55, isto com aquele friozinho gostoso ampliado por abanadores de plantão. Temos para nós que isso é só uma falsa impressão, e que muita coisa nova ainda está por vir, principalmente se pensarmos que as coisas aqui funcionam de acordo com as gerações.

É nesse tom que começamos o JB07. A turma 07 chega completamente ingênua sendo parte de um estranho processo experimental de remodelação do trote, que nos permite que em grande parte dos bostejos, tão indispensáveis à nossa sobrevivência no H-8 (e no ITA), tenham sido realizados num ambiente mais ameno como o Dormitório B. A verdade é que isso causou grande polêmica, e até hoje alguns chacais mal conseguem esconder sua fome por carne de bixo, posto que algumas modalidades de trote foram, digamos, amortecidas ou até abolidas. Bem, se me derem licença, acho que a maioria de turma pensa em continuar com os trotes, mas sem aloprar e ainda mantendo a idéia de que “isso é para integração, bixão!”

Vale registrar, ainda dentro dessa linha, a empolgação do bixaral nas iniciativas do H-8: a participação maciça em, praticamente todas as iniciativas. Podemos citar os bixos no Aerodesign, promessas de continuidade assegurada por uma experiência precoce; a RUSD, a primeira rádio universitária do Brasil retorna ao funcionamento totalmente sob nossa iniciativa e responsabilidade, sem contar com a renovação ou enriquecimento dado às não menos importantes atividades do H-8, que nos proporcionam o desenvolvimento de faculdades não desenvolvidas em sala de aula. Poucos ainda sabem de pequenos projetos que alguns de nós vêm planejando ao objetivar a melhoria da apresentação do ITA no mundo exterior e da vida no H-8.

CPOR??? Apesar da sugação semanal, de cortar o cabelo, fazer a barba, deixar a farda no padrão, não podemos negar que ele foi extremamente importante na nossa própria interação, não apenas no início do ano como também atualmente. Aqui (ou ali) as turmas 1, 2, 3 e 4 permutam formando as turmas: AMX, que quebrou o tabu de 7 anos em último lugar no Troféu Eficiência ao sagrar-se campeã; TUCano, com nada de especial, a não ser o Cão marchando; XAVante, marcante pela grande quantidade de mocorongos e 01’s; e a XINgu, com o maior grito de “Brasil” no “fora de forma”, causando grande inveja às outras turmas, mas comoção entre os milicos mais graduados.

Quanto aos Infinitos Dias podemos dizer que mesmo tendo chegado ontem, a 07 realizou um churrasco que deixou pra trás o de muitos veteranos. Isso se deve não apenas pelas participações musicais, mas também pelos comes e bebes que não ficaram devendo. Agradecemos a todos que colaboraram para a realização desse evento e àqueles que estiveram prestigiando a nossa festa.

55 Feijão é a forma da piscina que existe na área de lazer do H-8.

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Tudo isso, acreditamos, nos coloca entre as gerações de empenho no ITA, sem jamais desmerecer qualquer outra turma ou dizer-se, pretensiosamente, a melhor de todas. (Anexo B)

Desse texto parece saltar um ato de entrega, o reconhecimento de uma

transformação onde o passado – “Será que a gente ainda se lembra?” – já está

no campo da memória e a curiosidade pelo novo, pelo porvir – “muita coisa

nova ainda está por vir” – passa para o campo real com a ansiedade dos

iniciandos. Começa um processo de credenciamento da individualização com a

percepção de que “a distância de casa aumentou e a responsabilidade

também”, a responsabilidade agora está baseada no fato de que passarão a

ser responsáveis pelos seus próprios atos, tomam consciência de que a partir

daquele momento passam a ser os únicos responsáveis pelos seus próprios

destinos. E a metamorfose dos comportamentos está no reconhecimento de

uma maneira comum de ser, “eternizada” nas Palavras do Profeta Acyr na

Cova dela56. O Profeta Acyr é um ente imaginário que encarna o alter ego dos

alunos veteranos na descrição de como eles se vêem a si próprios, para

demonstrar aos calouros como eles serão depois de totalmente socializados

naquele ambiente.

Já há o reconhecimento da predominância do coletivo sobre o

individual – “principalmente se pensarmos que as coisas aqui funcionam de

acordo com as gerações” – e de que o trote deve ser preservado, pois é “para

integração, bixão!” A própria ocasião do trote coletivo e a obrigatoriedade de

preservação dos “benefícios” recebidos pelo trote são entendidas como

ensejos favoráveis para a reafirmação dos laços de união entre os veteranos e

os calouros. Há uma nítida incorporação dos jargões que são verdadeiros

códigos de expressão dos alunos do ITA, como “bostejo” que se trata das

longas preleções que os veteranos fazem para os “bichos”, mas de um modo

geral é qualquer explanação muito longa e chata. As iniciativas do H-8 são

todas as atividades extracurriculares iniciadas por ação dos estudantes. Aliás,

quando é falado do H-8 é porque se trata de uma atividade criada, dirigida e

praticada somente pelos estudantes sem nenhuma interferência da direção ou

do corpo docente, ainda que estes possam participar como apoiadores ou

56 Ver Anexo C.

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colaboradores. Muitas delas se inserem no contexto de uma consciência

nacional, como é o caso do Centro Acadêmico Santos Dumont – Vestibulares

(CASD-Vest), que será mencionado mais adiante. Não deixam de fazer parte

de uma estratégia para “a melhoria da apresentação do ITA no mundo exterior

e da vida no H-8”, num deliberado e orquestrado esforço de “trabalhar” a

imagem da instituição no sentido de preservação de tradições.

As tradições e as estórias que as revigoram são lembradas e

“aumentadas” nos churrascos de confraternização. Tradicionalmente quando

faltam 100 dias para a colação de grau, os alunos do último ano comemoram a

aproximação do final do curso em um churrasco festivo em que a bebida

alimenta e enriquece as estórias e chacotas. Esse evento que inicialmente era

exclusivo dos alunos do último ano passou a ser realizado também pelos

alunos dos demais anos com um sentido de integração e com muito conteúdo

de socialização. Assim, os calouros realizam o churrasco dos “Infinitos Dias” e

depois o dos mil e quinhentos e dos mil dias, aí já nos anos seguintes. Estes

eventos não deixam de ser também uma constante lembrança de um objetivo a

alcançar, um ponto a atingir, como também a comemoração das etapas já

vencidas.

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CAPÍTULO 7

A CONSTRUÇÃO DA ORDEM

7.1 OS CONTEÚDOS DISCIPLINARES NA CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE

Conforme Michel Foucault (2002, p. 143) a disciplina “fabrica

indivíduos”, penetrando na subjetividade do indivíduo,

[...] ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos do Estado. E são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus processos.

O autor mostra como a disciplina é capaz de modificar as grandes

estruturas depois de introjetada nos indivíduos. E, do meu ponto de vista,

sendo o indivíduo o autor de sua própria história e protagonista da seqüência

de fatos sociais que compõem a história de uma instituição, na medida em que

cada ação individual é gradativamente influenciada pela ação do outro dentro

da mesma instituição, configurando com isso fatos sociais cada vez mais

amplos e complexos, essa malha de ações sociais parece que é capaz de fugir

ao controle e qualquer conjectura dos próprios indivíduos e ganhar identidade

própria.

Sob essa perspectiva, a disciplina me pareceu presente em todos os

cantos que estive durante a minha pesquisa de campo. Não sei se a própria

intensidade das atividades intelectuais exige dela uma ação que se propaga

pelas diversas formas de comportamento e por outras atividades. Pareceu-me,

entretanto, que a disciplina era tributária dos modos educados e cordiais de

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todos os alunos com quem conversei dando-me a impressão de que eles

estavam inseridos em um ambiente em que conheciam o seu espaço e tinham

consciência do que fazer ali. Já não era a disciplina de cada indivíduo que

disciplinava o ambiente, mas me parecia que todos estavam reféns de uma

estrutura disciplinada e sofriam influência dela.

Os procedimentos disciplinares me pareceram estar presentes em

quase todas as partes do cotidiano do estudante do ITA, atuando na

subjetividade de cada um nos mínimos detalhes.

A introdução do poder disciplinar começa no primeiro contato do aluno

com a instituição na reunião inicial, a que já me referi, quando assistem à

primeira “liturgia militar” ao ser anunciada a chegada do diretor do CTA e a do

reitor do ITA e que todos se levantam e assim se mantêm até que o diretor do

CTA tome o seu lugar e autorize os demais a sentarem-se. Nessa reunião

recebem informações detalhadas de seus direitos e deveres ao longo dos 5

anos do curso, as quais lhes dão a amplitude do espaço disciplinar que irão

ocupar onde a “[...] disciplina organiza um espaço analítico [...] marca lugares e

indica valores; garante a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor

economia do tempo e dos gestos” (FOUCAULT, 2002, p. 123) na medida em

que a administração chama para si uma série de encargos que organizam a

vida individual de cada um. Depois, todos são submetidos à disciplina militar no

estágio que fazem no CPOR Aer.

Como alunos do Curso de Preparação de Oficiais da Reserva da

Aeronáutica estão sujeitos literalmente aos regulamentos de disciplina militar,

inclusive com a privação da liberdade se necessário, são obrigados a obedecer

a todos os atos solenes e ritualizados da caserna onde o “[...] corpo, tornando-

se alvo dos novos mecanismos do poder, oferece-se a novas formas de saber.”

(Ibidem, p. 132). São declarados “praças especiais” e recebem um soldo.

Durante os períodos que ficam no CPOR Aer., durante todo o primeiro ano, é

exigido esmero na apresentação pessoal, como o corte de cabelo para os

homens e cabelo preso para as mulheres, os uniformes devem estar sempre

limpos e passados, devem falar com o superior hierárquico em posição

empertigada (posição de sentido), desfilar em formatura, executar os

movimentos com armas, em que “[...] o comportamento e suas exigências

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orgânicas vão pouco a pouco substituir a simples física do movimento”,

começando aí o que Foucault (op. cit., p. 132) chama de “a codificação

instrumental do corpo”.

Nas atividades acadêmicas estão presentes, também, nos conteúdos

disciplinares que atuam fortemente sobre os indivíduos. Por exemplo, a

assiduidade e a pontualidade são controladas rigorosamente através das listas

de chamada em que as presenças, faltas e impontualidades são anotadas

pelos professores. Caso o aluno, por qualquer razão, falte a alguma atividade

escolar, ele é obrigado a preencher uma ficha de “Justificativa de Falta”

alegando os motivos da falta. Nesta ficha 57 tem que constar o parecer do

conselheiro quanto ao comportamento e desempenho de seu “aconselhado”,

alegando razões que justifique ou não a falta.

O conselheiro é um professor que normalmente reside no campus, que

é designado para acompanhar 24 horas por dia todos os aspectos da vida

acadêmica, e até a particular, enquanto o aluno estiver cursando o ITA. Esse

sistema é bastante efetivo, em especial para os alunos que não são do Estado

de São Paulo. A distância de suas famílias priva-os da troca de confidências,

ou para mitigar dúvidas que assombram decisões de foro íntimo. Em todos os

casos ele é também efetivo para orientações de ordem acadêmica e de

relacionamento no âmbito do campus. De certa forma ele é também um

instrumento disciplinar efetivo e preventivo, pois se o aluno apresentar algum

desvio de conduta, por menor que ele seja, logo o conselheiro vai procurar

saber o que está ocorrendo e está provocando aquela mudança. A prevenção

ocorre nos encontros eventuais entre ambos, ocasiões em que são trocadas

idéias e são passados ensinamentos de uma maneira informal e

despretensiosa. O conselheiro substitui de certa forma a figura de um pai –

alguns jovens já acham que não precisam mais dele e outros ainda os

procuram para alguma orientação. Um aluno me confessou que é muito

importante manter uma aproximação com ele, pois a opinião dele sempre terá

peso nas ocasiões em que o estudante é avaliado tanto disciplinarmente como

academicamente. Particularmente, se um dia acontece do aluno ir ao

57 Ver Anexo D.

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“inferninho”58 para ser julgado por alguma falta ou se por acaso ficar em mais

de três segundas épocas em um semestre ou tiver grau insuficiente em alguma

disciplina, ou se tiver alguma falta a aulas sem justificativa, entre outros.

O regime disciplinar formal 59 prevê cinco tipos de punição numa escala

de gradação de acordo com a gravidade da falta cometida pelos alunos civis.

Os alunos militares, que são em minoria60, são punidos pelos regulamentos

disciplinares da Aeronáutica, além das seguintes punições que atingem

também os alunos civis:

– Advertência verbal – aplicada pelo chefe da Divisão de Alunos; que

nada mais é do que uma conversa informal, mas que fica anotado

nos assentamentos do aluno. Na verdade serve mais como um

aconselhamento dando ao aluno a oportunidade de refletir sobre o

seu comportamento. É uma punição que não tem caráter público,

portanto não visa a expiação;

– Repreensão por escrito – aplicada pelo chefe da Divisão de Alunos; é

uma punição de caráter público que procura a ação exemplar e

expõe publicamente o poder da instituição sobre o indivíduo;

– Segunda época compulsória em uma ou mais disciplinas ministradas

no período – aplicada pelo chefe da Divisão de Alunos; significa que

o aluno terá seu período de descanso para estudar para o exame de

uma disciplina que ele já havia passado. É uma punição pública que

evidencia a poder da instituição sobre o indivíduo, tem um caráter

exemplar e poderá até beneficiar o aluno;

– Segunda época compulsória em todas as disciplinas ministradas no

período e trancamento compulsório de matrícula – aplicado pelo pró-

reitor de graduação; é aplicada para faltas consideradas graves e é

imposta por autoridade hierarquicamente superior; é pública e

enfatiza a grandeza da falta;

58 “Inferninho” é como os estudantes chamam o Conselho de Orientação que é composto pelo diretor de ensino, diretor de alunos, coordenador do curso e o conselheiro do aluno. 59 Portaria CTA nº 65/ITA de 19/06/2007. Normas Reguladoras para o Curso de Graduação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica. 60 Os alunos militares são oficiais das Forças Armadas e os civis que no vestibular optaram pela carreira militar.

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– Trancamento compulsório de matrícula e desligamento – aplicado

pelo Reitor; é a punição mais alta que um aluno poderá sofrer.

As punições são aplicadas aos alunos no caso de desobediência ou

desrespeito a qualquer membro do corpo docente, enfatizando a autoridade

dos professores.

Em decorrência das obrigações acadêmicas os alunos poderão ser

punidos se faltarem ou chegarem atrasados a qualquer atividade escolar, não

executarem exercícios, trabalhos práticos ou outras tarefas escolares, ou não

serem pontuais em suas apresentações. Está aí a instituição se colocando na

posição do pai rigoroso que cobra de seus filhos o cumprimento das tarefas

escolares.

Finalmente, existem punições para atos que ferem a moral como a

improbidade na execução de trabalhos escolares ou por praticar ato desonesto

ou atentatório aos bons costumes, ou aqueles atos que perturbam a ordem

coletiva como a prática do trote, a perturbação da ordem ou provocar danos

propositais aos bens materiais públicos, os quais além da punição deverão ser

repostos.

A punição por danificar bens públicos conecta os alunos aos aspectos

de cidadania, a consciência da posição do indivíduo em relação ao coletivo, ao

que é público, é de todos – não devo quebrar aquilo que eu mesmo pago.

A direção do ITA incentiva os alunos a discutirem, participarem da

formulação e supervisão dos conteúdos disciplinares de qualquer aspecto da

vida no âmbito do CTA/ ITA, inclusive daqueles previstos nos regulamentos

internos. Esse comprometimento dos estudantes com as regras disciplinares

faz com que eles mudem o foco de suas ações – ouvi se falar pouco de

punição, ouvi mais o compromisso em cumprir as regras, “[...] assim a punição

vai-se tornando a parte mais velada do processo, provocando várias

conseqüências: deixa o campo da percepção quase diária entra no da

consciência abstrata.” (FOUCAULT, 2002, p. 13).

A eficácia do sistema me parece que pode ser atribuída mais ao

compromisso dos estudantes com as regras do que à persistência com que

elas são difundidas. É um sistema que busca deixar de atuar nos efeitos para

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corrigir as causa antes que elas aconteçam. Diminuindo a visibilidade dos

efeitos ele assume uma conotação preventiva.

7.2 CPOR AER. – DISCIPLINA E INSERÇÃO SOCIAL: A NACIONALIZAÇÃO DA DIVERSIDADE

É nas cinco primeiras semanas que as atividades de “ortopedia

social” 61 são mais intensas. Depois da reunião inicial que os pais dos alunos

participam todos, inclusive as mulheres, são matriculados no Centro de

Preparação de Oficiais da Reserva da Aeronáutica (CPOR Aer.), pois ao final

do curso serão declarados Oficiais engenheiros da Reserva da Aeronáutica. Aí

os alunos passam as cinco primeiras semanas, continuamente, até o carnaval,

recebendo instrução militar que implicam em aulas teóricas e práticas sobre

regulamentos militares, legislação militar, normas de conduta dos oficiais da

Aeronáutica, liderança, ética militar, expressão oral em público (prática de

plataforma), símbolos nacionais, entre outras, e fazem exercícios de tiro com

armas portáteis, fazem uma marcha de 12 quilômetros, com todo equipamento

de um soldado de infantaria, que termina em um acampamento, onde

pernoitam e praticam exercícios de fuga e evasão, o uso de explosivos,

granadas, iluminativos, e outros materiais.

Figura 3 – Aluno do ITA em treinamento militar no CPOR Aer.

61 Expressão utilizada por Michel Foucault para designar o ajustamento, quase forçado, dos indivíduos aos códigos sociais.

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De saída os novos alunos são caracterizados como militares; os

cabelos são cortados no padrão militar (as mulheres são obrigadas a mantê-los

amarrados ou trançados), vestem uma farda camuflada, recebem uma arma e

um soldo. Através da aplicação de um “sociograma” são divididos em grupos

que acolhem a maior diversidade possível, a qual leva em conta a

especialidade acadêmica, as habilidades desportivas e a região de origem dos

alunos. Os grupos ou equipes, como são chamados daí para frente, já com um

propósito de se criar uma solidariedade e identidade grupal e desenvolver o

apoio mútuo e o espírito de corpo entre os seus componentes, constituem as

equipes AMX, XINGU, XAVANTE e TUCANO 62 que participam de competições

de tiro e competições desportivas que fazem parte da disputa do Troféu

Eficiência. Além dessas modalidades são consideradas as notas das provas

teóricas do curso militar. Esse troféu é o pináculo de uma competição de

qualificação militar, destaca o aluno e a equipe que apresentou o melhor

rendimento militar, tanto teórico como prático, no período de instrução. O

curioso é que nem sempre o aluno vencedor do troféu individual optou pela

carreira militar, o que levanta a seguinte indagação: por que isso ocorre? Na

visão de Foucault (2002) se poderia dizer que ocorreu a “codificação

instrumental do corpo” em que a “[...] regulamentação imposta pelo poder é ao

mesmo tempo a lei da construção da operação” que, dessa forma, expõe o

caráter do poder disciplinar que de acordo com ele, “[...] tem uma função

menos de retirada que de síntese, menos de extorsão do produto que laço

coercitivo com o aparelho de produção.”

62 Os nomes dos grupos correspondem à designação de aviões de combate da Força Aérea Brasileira.

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Figura 4 – Alunos em disputa de natação nas competições esportivas da Semana da Asa.

O texto A maldição do Monstro Azul 63, divulgado no quadro de avisos

do H-8 traz uma amostra de quão profundo é esse poder disciplinar exercido

pelo CPOR Aer.; em certa parte do texto, o Monstro Azul, numa alusão à farda

azul da Força Aérea, diz: “Se quiseres entrar no ITA, terás de me servir”, como

que mostrando a determinação de posse e de poder, no momento em que vai

penetrando no corpo de cada um, como está esboçado no restante do texto.

Nele se vê presente, em forma de fábula, o pensamento de Foucault (2002,

PÁG), de como o corpo “[...] torna-se alvo dos novos mecanismos de poder,

oferece-se a novas formas de poder”. Para ele:

Corpo do exercício mais que da física especulativa; corpo manipulado pela autoridade mais que atravessado pelos espíritos animais; corpo do treinamento útil e não da mecânica racional, mas no qual por essa mesma razão se anunciará um certo número de exigências de natureza e de limitações funcionais. (Foucault 2002, p. 85).

Nessa visão foucaultiana o treinamento militar dado aos alunos do ITA

tem por objetivo, também, prepará-los para que possam fazer parte de uma

maquinaria de poder não simplesmente para que eles façam o que quiserem,

mas para que operem como se quer. É exatamente nessa “fabricação” que

Foucault (op. cit.) centra as suas reflexões, analisando o soldado como

“homem-máquina” sob o ângulo anátomo-metafísico, e pelo “técnico-político”,

63 Ver Anexo E.

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construído por um conjunto de regulamentos militares. Neste último caso, na

visão de Foucault (op. cit.), é criada uma disciplina diferente da escravidão, do

ascetismo do tipo monástico. A disciplina assim distribuída invade o corpo do

indivíduo e atua em qualquer situação, tornando-os úteis.

Figura 5 – Partida de voleibol da Taça Eficiência do CPOR Aer.

Figura 6 – Alunos do ITA em exercício com arma no CPOR Aer.

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Nos acampamentos, na fase prática do treinamento de infantaria no

campo, os alunos acabam se ressocializando por força do convívio, dos

sacrifícios e dificuldades impostas pelas condições precárias de “sobrevivência”

que são forçados a vivenciar, na tentativa de reconstituição, o mais real

possível, de uma situação de combate. Há aí, pois, um alargamento de

horizontes e de convivência. Nas marchas e acampamentos, o horizonte de

convivência é alargado depois de um período instável de sociabilidade que são

os primeiros contatos com o comportamento, de certa forma rude, dos

instrutores e monitores militares que instigam a competição entre os alunos na

superação de obstáculos físicos propositalmente interpostos a todos. Mas, ao

mesmo tempo, é produzido um retorno às estruturas fundamentais da vida em

família e da camaradagem de vizinhos, quando dividem e preparam o local de

dormir ou se auxiliam mutuamente na realização de tarefas de sobrevivência

em um ambiente agressivo.

Na ressocialização que se opera nas marchas e acampamentos, as

concepções tradicionais de vizinhança, solidariedade e outros relacionamentos

se revigoram, ganham um dinamismo inexistente antes dessa experiência.

Resulta desses exercícios uma sociedade nitidamente diferente, abrindo-se

para concepções mais largas de sociabilidade e, ao mesmo tempo,

fortalecendo as concepções ordenadoras da vida social provenientes da antiga

vida em família que cada um adquiriu antes de ingressar no ITA.

Figura 7 – Alunas do ITA em exercício militar no CPOR Aer.

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Nas práticas militares dos CPOR Aer., os alunos aprendem a reordenar

a estrutura hierárquica e solidária tradicionais das famílias conservadoras. Com

base no mesmo princípio de respeito hierárquico e solidário praticados entre os

membros de uma família tradicional e amigos do bairro, diversificam as

relações interpessoais, valorizam e revigoram a solidariedade e o

companheirismo, e começam a solidificar um nascente corporativismo baseado

nas experiências mutuas vividas na rudeza do exercício militar.

A experiência dos acampamentos e exercícios militares de campo

ensina-lhes formas de cooperação extra-familiares e de vizinhança, que dizem

mais respeito a uma nova forma de divisão do trabalho do que estritamente a

formas familiares de auxílio mútuo. De forma que justamente as agruras de um

exercício militar de campo acabam viabilizando, em proveito dos alunos,

formas tradicionais de organização da sociabilidade e da vida.

As dificuldades e habilidades exigidas são iguais para todos, não

importa as experiências e as condições de vida anteriores, pois cada um tem

de dar conta da sua parte em qualquer exercício; então o carioca, o

pernambucano, o cearense, o amazonense são todos iguais e o pobre e o rico

terão de preparar a própria comida a arrumar o seu abrigo para dormir. Nessa

hora também parece que há uma percepção generalizada de que todos têm as

mesmas necessidades básicas e que a astúcia ou habilidades especiais não

necessariamente estão com aqueles indivíduos dessa ou daquela região do

país. Ali há o encontro de seres humanos tentando superar dificuldades

comuns com o uso de seus instintos básicos e aprendem que se não buscarem

a solidariedade e a cooperação as chances de insucesso serão crescentes.

A experiência é tão intensa que eu não consegui nenhum depoimento

de insatisfação pelo convívio forçado de quase 2 meses no CPOR Aer. Muito

pelo contrário, em uma sala nas instalações do CPOR Aer. em que estavam

expostas nas paredes fotografias com grupo de alunos com as fardas sujas e

desalinhadas, todos com aparência de cansados mas, mesmo assim, com um

indisfarçável sorriso de satisfação estampados em seus rostos. As fotos foram

tiradas ao término do estágio intensivo de 2 meses de instrução militar da

turma de calouros de cada ano, no dia em que voltavam da marcha e do

acampamento. Neste local conversei com um aluno do terceiro ano que havia

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optado, no momento de sua matrícula após o vestibular, por seguir a carreira

militar como engenheiro da Força Aérea, depois de se formar.

Após esse treinamento inicial, somente no primeiro ano, todos os

alunos do primeiro ano, independentemente de terem optado ou não pela

carreira militar, freqüentam o CPOR Aer. um fim de semana a cada 15 dias

para receber instrução militar. Os alunos que não seguirão na carreira militar,

ao final do primeiro ano, deixam de usar farda e não freqüentam mais o CPOR

Aer. e aqueles que optaram pela carreira militar passam a usar farda e

freqüentar o CPOR Aer. de 15 em 15 dias até o ultimo ano, quando são

declarados segundo tenente-engenheiro da Força Aérea. Mas o aluno com

quem conversei havia desistido de seguir a carreira militar e não voltaria mais

ao CPOR Aer., então lhe perguntei qual era a turma dele e onde ele estava

naquela galeria de fotos. Nesse momento ele estampou um largo sorriso, olhou

para mim, e com um disfarçado orgulho apontou onde ele estava em uma das

fotos. Indaguei ainda se ele não achava inútil aquilo tudo para quem não iria

seguir carreira militar, ele disse que não, e que repetiria tudo de novo se fosse

preciso. Confessou que viveu momentos inesquecíveis e que ali realmente eles

“começaram a virar uma turma”, passaram a se conhecer de verdade e foi

onde os primeiros apelidos foram criados.

Tanto este como outros alunos quando se referiam aos colegas e à

vida que levavam no campus pronunciava a expressão “uma família”. Uma

família que poderia estar bem perto do que me arriscaria a chamar de uma

espécie de “ideologia” 64, pois diante dos depoimentos e documentos que colhi

nessa pesquisa e a minha própria experiência de vida como militar, me levaram

a concluir que os interesses de um grupo deixam seus membros sensíveis a

certos aspectos da vida social que são convergentes.

Além dessas atividades existem outras que põem os alunos em contato

com rituais de culto aos símbolos da nacionalidade como o hasteamento da

bandeira nacional com o canto do Hino Nacional ao início de cada período de

exercício, e a participação de alunos na guarda à Bandeira Nacional em dias

de solenidade. É-lhes ensinado que quando é tocado o Hino Nacional, todos

64 Ideologia com o sentido de ver o mundo de uma forma idealizada por todo aquele grupo social.

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devem levantar e tomar uma posição de respeito. Essas práticas, ainda que

simbólicas, são tão exaustivamente exigidas que um dos alunos me confessou

que “[...] agora eu não me sinto bem se não ficar de pé quando toca o Hino

Nacional, mesmo que não tenha ninguém me olhando.”

O CPOR Aer. é, também, uma escola de moralidade, no sentido

durkheimiano, isto é, uma máquina de fabricar o espírito de disciplina, a ligação

com o grupo, o respeito ao outro, assim como a si mesmo, e a autonomia da

vontade, todos indispensáveis ao desabrochar de uma nova individualidade.

Nesse sentido, o CPOR Aer. é o vetor de uma nova ordenação da vida

cotidiana, porque ele faz da rotina e da atividade física o meio de acesso a um

universo distinto, em que se misturam aventura, honra e prestígio. O caráter

espartano, quase monástico, do treinamento militar faz do aluno sua própria

arena de desafio e convida-o a descobrir a si mesmo, ou melhor, a produzir a si

mesmo.

É nele que são inculcadas as primeiras noções de “disciplina

consciente” colocando cada indivíduo num gradiente de responsabilidade na

escala de realizações do grupo, onde cada um se torna indispensável à ação

do outro.

Enfim o treinamento militar parece estar inserido nos “[...] métodos que

permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a

sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-

utilidade, são o que podemos chamar de ‘disciplina’.”(FOUCAULT, 2002, p.

119)

7.3 DISCIPLINA CONSCIENTE: UMA UTOPIA CRIANDO UM COMPROMISSO COLETIVO REALISTA

O regime disciplinar do ITA aparece sob duas faces: uma formal e

regulamentar e a outra informal e consentânea. A primeira não passa de

práticas estatutárias que se limitam, de uma forma objetiva, à aplicação de

sanções disciplinares específicas e altamente coercitivas, enquanto na outra,

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que ganhou a denominação de “disciplina consciente”, as regras tendem a ser

bastante gerais e vagas quanto à natureza dos valores, direitos e obrigações

que procura inculcar nos membros do corpo discente: lealdade, dever, as

regras do jogo, e o espírito escolar. Entretanto, na chamada “disciplina

consciente” há uma nítida noção de que as ações falam mais alto do que as

palavras e de que as “práticas” são uma unidade central na gradação das

sanções.

A primeira são infrações e sanções previstas no Regulamento do ITA já

referidas no capítulo anterior e se restringem quase que exclusivamente ao

desempenho escolar do aluno. Nessa categoria inscreve-se também os

regulamentos militares que atuam sobre aqueles que seguirão a carreira militar

ou enquanto estiverem cursando o CPOR Aer. Sem falar que todos estão sob

coação da legislação militar pelo fato de o campus (CTA) ser uma área que

está sob jurisdição militar.

A chamada “disciplina consciente” foi instituída em 1950 pelo professor

norte-americano Joseph Morgan Stokes, primeiro chefe da Divisão de Alunos e

posteriormente reitor do ITA entre 1951 e 1953. Nesse período não era grande

o número de alunos, cada um tinha um professor como orientador que servia

de conselheiro do aluno sob sua orientação inclusive para assuntos

particulares. Uma vez que os professores moravam em residências dentro do

campus o contato com o aluno ocorria em um longo período, inclusive à noite

se fosse necessário. Entretanto essa relação não deixava de se revestir de

certa formalidade, afinal não se perdia a noção hierárquica de aluno/ professor.

Mas a comunidade discente que convivia as 24 horas do dia como um grupo

autônomo precisava de ordem, as relações entre si não eram estatuídas

formalmente. Os alunos pretendiam um sistema disciplinar que ordenasse as

suas atividades, mas que prescindisse de qualquer forma de vigilância,

baseado na confiança e que tivesse foco no próprio aluno. Uma espécie de

código de honra que seria gerido pelos alunos através do Departamento de

Ordem e Orientação do Centro Acadêmico Santos Dumont (CASD) que é

composto por seis alunos, normalmente um de cada turma. O regime

disciplinar era baseado na confiança mútua e na honestidade de propósitos

que visavam à “[...] correção dos alunos no trato entre si e com quaisquer

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outras pessoas, no Instituto ou fora dele; honestidade na execução de

trabalhos escolares.” (ITA, 2000, p. 92).

Basicamente a “disciplina consciente” pretendia criar um compromisso

entre os alunos de forma que eles se auto-policiassem quanto aos problemas

relativos à cola, ao trote, ao uso das coisas alheias ou da coletividade, aos

compromissos com o CASD e o ITA, além de atrasos em aulas, faltas,

disciplina no H-8, relações com professores e funcionários, organização de

critérios de trabalhos, disciplina no ITA e no CTA. Ainda que ela não exista por

escrito e por isso o seu conteúdo e denominação “[...] foram sempre

controvertidos e imprecisos, que no obstante revelou eficácia.” (ITA, 2000, p.

91). Devido ao seu caráter subjetivo e destituído de formalidade, alguns

preceitos foram sendo relativisados durante certo período até que o presidente

do CASD, na gestão 1963/1964, Sérgio Magalhães Bordeaux Rego,

juntamente com o aluno Luís Oscar de Mello Becker 65 apresentam um trabalho

empírico-teórico sobre a “disciplina consciente”, que foi aprovado em

Assembléia Geral do CASD, com o propósito de revigorá-la. Neste documento,

então, está assim definida:

a) A Autodisciplina implica na aceitação, por parte do indivíduo, do conjunto de normas existentes expressas pela própria sociedade ou a ela impostas. A ação individual se resume no exercício da vontade e um autocontrole, com o objetivo de agir segundo os cânones da comunidade.

b) A Disciplina Consciente corresponde a uma atitude crítica frente ao conjunto de normas existentes. Abrange a compreensão, crítica, aceitação ou tentativa de transformação das normas. As normas nunca serão infringidas; reconhecida sua inaceitabilidade ou impraticabilidade serão transformadas.

Com esse sentido, a disciplina ultrapassa as regras do Direito, tomando

muito mais forma de normas, ou de leis ditas naturais, do que das formalmente

estabelecidas nos regulamentos disciplinares. É, de certa forma, um

complemento útil a estes, mas não parte deles.

A aceitação tácita dessas normas informais e a confiança dos

professores e da reitoria criaram tal grau de confiança entre reitoria-professor-

alunos que não existe fiscal nas provas, a mudança da data das provas pode

65 Ver Anexo F.

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ser solicitada pelos alunos e é sempre acatada pelos professores. Os raros

comportamentos anti-sociais são resolvidos pelos estudantes conselheiros da

Divisão de Orientação e Ordem (DOO) do Centro Acadêmico. Qualquer que

seja a resolução da DOO em casos disciplinares ou faltas acadêmicas, é

incondicionalmente aceita pela reitoria. Essa aceitação inconteste cria uma

relação de confiança e enleia os componentes da DOO em laços de confiança,

atribuindo, de uma forma crescente, maior peso ao poder disciplinar da

coletividade, a cada vez que uma resolução é aceita.

Ouvi do reitor e de diversas outras pessoas (em todos os casos com o

sentido de realçar a seriedade com que o tema é tratado) o relato de que há

poucos anos atrás, um aluno que era presidente do Centro Acadêmico foi pego

colando por colegas. A DOO encaminhou o caso para o reitor sugerindo a

expulsão ao que o reitor acatou. Mais tarde, a direção do Centro Acadêmico

julgou ser tão grave aquele fato, por ter sido cometido pelo presidente do

CASD, que solicitou ao reitor que o nome daquele aluno fosse banido, para

sempre, de todos os assentamentos do ITA.

De fato, se trata de uma história interessante que pode servir para

reforçar o grau de comprometimento dos alunos com a “disciplina consciente”,

mas que também não pode ser confirmado pelo desaparecimento do nome do

aluno envolvido. De qualquer forma não deixa de ser um mito, criado ou não,

para sustentar prática que, sem antecedentes, “[...] tornaram necessária a

invenção de uma continuidade histórica, por exemplo, através da criação de um

passado que extrapole a continuidade histórica real, seja pela lenda ou pela

invenção.” (HOBSBAWN, 2002, p. 15).

Nos depoimentos que obtive sobre a “disciplina consciente” havia uma

referência constante de que ela “atua na pessoa” e como conseqüência na

disciplina em geral e faz a diferença “no caráter das pessoas”. Em alguns

depoimentos cheguei a ouvir: “Eu tenho certeza que quem passa por aqui sai

muito diferente.” 66 Daí, eu me arriscar a qualificá-los como um grupo social que

aceita os padrões de comportamento impostos pela “disciplina consciente” que

está mais enredada no tecido social que os une do que as frias normas

institucionais – aquilo que não poderiam recusar sem comprometer a sua 66 Entrevista com Lizandra Golhath Knopp Alves – presidente do CASSIS.

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sobrevivência –, mas rejeitam os padrões propostos, particularmente os que

não se apresentam com força não coercitiva, deixando margem mais larga à

opção pessoal de padrão disciplinar e estreitando os laços de integração

grupal.

A “disciplina consciente” é tão zelosamente cultuada que chama a

atenção de quem é de fora e se introduz nesse mundo particular de jovens que

vêem a disciplina como um sustentáculo dos laços comunitários. Na porta do

Centro Acadêmico Santos Dumont estão pintadas com letras grandes as

seguintes mensagens:

VISÃO – Ser reconhecido como o órgão representativo, legítimo e forte dos alunos do ITA, ter as áreas social, cultural, esportiva e acadêmica, parceiros e alunos supervisionados pelo Centro Acadêmico (CASD) gerando resultados com alto padrão de excelência e atitudes condizentes com a disciplina consciente.

MISSÃO – Representar com excelência os alunos do ITA, engrandecer o ITA e gerenciar os interesses e o convívio da comunidade, preservando a história, valores e tradições ITEANAS, em especial a disciplina consciente. (Grifos meus).

A visão e a missão do Centro Acadêmico estão centradas na “disciplina

consciente” para a execução de qualquer outra tarefa inerente às suas

atividades. A disciplina consciente é tratada como se ela fosse um legado a ser

preservado independente de qualquer coisa.

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CAPÍTULO 8

PARTICIPAÇÃO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL

Parece-me que não seria possível compreender a construção da

subjetividade dos alunos do ITA sem se estudar em detalhes a estrutura e o

funcionamento da organização que a sustenta, também não poderia elucidar o

significado e a fixação de valores no processo de socialização, sem examinar a

trama das relações sociais e simbólicas que se tecem no interior do H-8, a

“segunda casa” dos estudantes.

O H-8 é um espaço complexo e polissêmico, sobrecarregado de

funções e de representações que não são apreensíveis de imediato pelo

observador, mesmo que ele esteja avisado sobre a natureza do lugar, pois

aparentemente, o que há de mais banal e de mais evidente do que um

alojamento de estudantes?

Quase como um “santuário” 67, ele oferece um espaço protegido

(porque é respeitado por todos como um lugar somente dos alunos e está

açambarcado pela segurança de todo CTA), fechado, reservado, onde é

possível, entre seus membros, subtrair-se das regras do “mundo militar” do

campus e viver as suas próprias regras, dentro dos limites da “disciplina

consciente”. O H-8 é o vetor de uma desbanalização da vida cotidiana, porque

ele faz da rotina e da remodelagem do indivíduo o meio de acesso a uma nova

vida em que se misturam estudo e laser, disciplina e liberdade, lealdade e

dever. O caráter quase monástico da vida do estudante do ITA faz do indivíduo

sua própria arena de desafio que o induz a descobrir a si mesmo no processo

de construção da sua individualidade. É no H-8 que cada um encontra um

espaço para travar essa luta interior sem o “olhar esmiuçante” do poder

disciplinar das regras vigentes em todos os cantos do campus. Alguns afirmam:

“O que há de mais rico no ITA é a convivência no H-8.” 67 Devido à forma como se referem a ele as pessoas do campus que não são alunos – “o H-8 é um mundo à parte”; “Lá ninguém entra, só os alunos”; “É o mundo deles”, e assim por diante.

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Quando entrei no H-8, juntamente com o presidente do Centro

Acadêmico, percebi um prédio velho e necessitando de reparos, mas que não

escondia as linhas sempre atuais e elegantes de Oscar Niemayer 68. Cheguei a

comentar com o estudante que aquilo tudo estava precisando de uma boa

reforma, ao que ele respondeu num tom de “dono da casa”: “[...] mas mesmo

assim ele atende as nossas necessidades. A direção do CTA parece que já

está tomando providências.” 69

Ali estão os apartamentos com espaço para quatro estudantes,

distribuídos em três pavilhões térreos unidos na parte central e mais outros

pavilhões com outras dependências ligados a esse conjunto formando um “U”,

tendo ao centro um pátio com piscina (chamada pelos alunos de feijão por

causa de sua forma) e quadras de esportes, além de uma pequena

churrasqueira. É cobrada uma cota mensal de 45 reais que é revertida para a

manutenção da limpeza das instalações. É caro? – perguntei; “Não, é justo.” –

respondeu-me o presidente do CASD.

Os apartamentos estão distribuídos por turma que são conhecidas por

apelidos significativos, sendo que a dos calouros é a turma dos “Bichos”, a do

segundo ano é a dos “Chacais” (“que se alimentam do sangue dos bichos”), a

do terceiro é a dos “Mutantes”, a do quarto ano é a dos “Semi-Deuses” e a do

quinto ano é a turma dos “Deuses”, e são chamados ainda de “Titãns” os

alunos que se formam. Estando aí bem delimitada uma escala hierarquizante

de mérito que eles mesmos se auto-atribuem insinuando uma gradação de

valor individual daqueles que ascendem cada ano de estudos sinalizando,

também, o grau de dificuldade dessa conquista.

A professora Elizabeth da Divisão de Alunos informou que vivem em

harmonia no H-8, 630 alunos, os conflitos praticamente não existem e são

resolvidos por eles mesmos.

Nas instalações do H-8, além dos apartamentos existem as seguintes

dependências:

68 As instalações do CTA foram projetadas por Oscar Niemayer (ITA, s/d, v.3). 69 Mais tarde fique sabendo que houve algumas tentativas de reforma, mas os projetos foram embargados por tratar-se de patrimônio tombado.

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– Associação Atlética: que promove torneios esportivos e uma

olimpíada interna por ano na “Semana da Asa” 70;

– Aerodesign: onde os aficionados constroem aeromodelo e participam

de competições;

– Sala de Jogos de Salão: com damas, gamão, e outros jogos;

– Cine Clube: uma sala de projeções administrada pelo Departamento

Cultural do CASD;

– Laboratório de Eletrônica: local onde os “inventores” montam e

desmontam as mais variadas “geringonças”;

– Sala de Xadrez: onde são realizadas competições:

– Sala de Tatâmi: onde praticam aulas de dança e lutas;

– Sala de Musculação;

– Sala de Música;

– Biblioteca: com livros não-didáticos;

– Salas da Rádio Universitária: que no momento estava desativada;

– Sala do ITA Júnior: onde funciona uma “empresa” administrada por

alunos e que executa projetos e outros trabalhos em convênio com

empresas. É um local de conexão dos estudantes com o futuro

ambiente de trabalho;

– Salão de Estudos: que é um amplo espaço com ar-condicionado e

muito bem iluminado com amplas mesas e cadeiras para estudo,

onde o silêncio é rigorosamente respeitado;

– Sala da Rede CASD: local em que estão as roteadores de

distribuição da internet pelos quartos. Essa rede é administrada pelos

alunos e quem se beneficia dela paga uma cota de 10 reais por mês;

– Sala da diretoria do Centro Acadêmico Santos Dumont (CASD): é

constituído pelo presidente, vice-presidente, primeiro secretário,

tesoureiro, diretor de patrimônio, Departamento de Ordem e

70 É uma semana que coincide com o dia 23 de outubro, data que é comemorado o vôo do 14 Bis de Alberto Santos Dumont

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Orientação, Departamento Cultural, Departamento Esportivo e um

Conselho de Representantes das turmas;

– Sala da Comissão de Viagem: local onde se reúne e são tratados

assuntos relativos à viagem de final de curso dos estudantes.

Anualmente a turma que se forma faz uma viagem a alguma parte do

mundo para passeio e visita a alguma indústria ou instituto de

pesquisa importante ligada à indústria aeroespacial ou de defesa.

Essa comissão vinculada ao CASD, arrecada fundos e faz os

planejamentos e os contatos necessários. A reitoria, normalmente,

faz as ligações institucionais para a concretização das visitas;

– Sala da Comissão de Alimentação: também vinculada ao CASD é o

órgão interlocutor com a direção do refeitório com o objetivo de

reivindicar melhorias na alimentação e encaminhar reclamações;

– Sala da Comissão de Recepção: é o grupo de estudantes que zela

pala boa convivência no H-8, recebe os calouros, organiza os trotes

coletivos e promove palestras para os calouros com a participação

de ex-iteanos;

– Sala da Comissão de Habitação: é o grupo de estudantes que

fiscaliza a faxina das instalações, mantém as lavanderias, e

coordena a distribuição e as trocas dos apartamentos;

– Sala do Departamento Cultural do CASD: esse departamento é um

dos mais ativos e que proporciona atividades sociais e culturais “de

suma importância para quem só trabalha com números”. O evento

mais importante promovido pelo departamento é a Semana de Arte

Violeta Sofiarte 71, nesse período são promovidos encontros musicais

com a participação de artistas de renome nacional e também

apresentações de grupos musicais composto pelos próprios

estudantes, além de concursos literários e de poesias 72;

71 Violeta Sofiarte é o nome da aluna que idealizou o evento e que faleceu em 2001. Por resolução do CASD a Semana de Arte do ITA passou a ser designada pelo seu nome. Ver cartaz no Anexo G. 72 Ver Anexo G – Cartazes da Semana de Arte do ITA.

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– Sala do CASD-Vest. : é o local no H-8 onde se reúne um grupo de

estudantes que administra um cursinho de vestibular para pessoas

carentes;

– Sala da Comissão de Assistência e Ação Social do ITA (CASSIS):

órgão de assistência social, dirigido por estudante, que realiza

campanhas de ajuda à comunidades carentes, como a arrecadação

de alimentos e agasalhos.

Dentre essa miríade de atividades a obrigação bilateral, a participação,

é elemento integrante da sociabilidade dos estudantes que vivem no H-8 que,

dessa forma, adquirem consciência de unidade e convivência comum. Na

comunidade de estudantes do H-8 a sua manifestação mais importante está no

CASD-Vest. e na CASSIS.

O CASD-Vest 73 foi uma iniciativa dos alunos que surgiu na década de

1970 com o objetivo de alunos voluntários prepararem pessoas carentes para

prestarem vestibular. Na década seguinte o curso foi perdendo força por

diversas razões. Mas em 1996 com a ajuda do prefeito de São José dos

Campos, ex-iteano, o curso foi reaberto e mais tarde a prefeitura doou um

terreno onde foi construído um prédio com a ajuda de empresas, sendo

inaugurado em 2006. O “cursinho” hoje possui 450 alunos e conseguiu a

aprovação de 156 alunos em diversas faculdades do Estado de São Paulo e

chegou a colocar um aluno no ITA. Estes números revelam o grau de

aproveitamento e o nível de eficiência do curso.

Visitei o prédio, na cidade de São José dos Campos, com a estudante

que é a atual diretora do CASD-Vest. Na entrada já percebemos o entusiasmo

de todos os que estavam presentes e a organização e limpeza do lugar. Com

todas as salas cheias as aulas estavam acontecendo; 60 alunos do ITA atuam

como professores na parte da tarde e à noite. O terreno foi cedido pela

prefeitura de São José dos Campos e o prédio construído com recursos de

diversas empresas que continuam aportando recursos para a sua manutenção.

Existe uma biblioteca com livros didáticos e apostilas e um bibliotecário que é

remunerado por uma das empresas. Pelo número de colaboradores para a 73 Ver Anexo H: CASD-Vest. – Um Projeto Educacional Viável.

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sustentação desse empreendimento e a receptividade que Danielle disse

receber, pode-se avaliar o valor e o respeito que os alunos desfrutam na

comunidade.

É contagiante a empolgação dos “professores”, particularmente da

Danielle que me confessou que já conhecia o CASD-Vest. mesmo antes de

ingressar no ITA e que o seu sonho era participar dele assim que conseguisse

aprovação para o ITA. De origem de família pobre, ela demonstrava uma

grande sensibilidade quanto ao alcance daquele empreendimento. Disse-me

que “quanto mais gente chegar aonde a gente chegou o Brasil será melhor”,

por isso “devemos agir onde a gente consegue ver e tem meios para ajudar.”

A Comissão de Assistência e Ação Social do ITA (CASSIS) está

estruturada em três departamentos: de divulgação, de eventos e de projetos.

Na área de eventos, são feitas doações de sangue de duas a três vezes ao ano

(40 pessoas por vez), coleta de roupas (ininterrupto durante todo o ano) e de

alimentos (durante os trotes solidários, envolve em torno de 80 novos alunos e

10 veteranos na organização) e visitas a casas de repouso (15 a 20 pessoas

por visitação, com freqüência de uma vez a cada bimestre), e a comunidades

carentes (uma vez por mês, envolve em torno de 30 alunos). A área de projetos

surgiu no ano de 2006 e engloba o trabalho com ONGs e a proposta de

desenvolver atividades educativas nas comunidades, além de proporcionar aos

iteanos experiência e informação sobre o terceiro setor. A CASSIS também

organiza o trote solidário. Dentre as atividades realizadas estão a caça ao

tesouro, a blitz solidária e a coleta de alimentos dentro da área do CTA. “A

proposta é passar noções de consciência cidadã aos novos alunos” disse

Lysandra, aluna do terceiro ano dirigente do CASSIS, e completou:

Assumi a direção da CASSIS no meio do ano passado. Na época a CASSIS passava por um período de desânimo e contava com apenas 4 membros ativos. Não houve eleições, pois era a única que estava disposta a coordenar. Para modificar o ânimo do grupo, introduzimos uma nova frente de trabalho, que se transformou no departamento de projetos. No início fiquei pessoalmente responsável por ele. Visitei ONGs, fui a eventos sociais e levei essas experiências para o grupo. Decidimos trabalhar com a ONG Integrar Brasil. O trabalho da ONG é fazer a inclusão social de crianças e jovens através de aulas extra escolares, que ocorrem no sábado. A ONG atende 350 crianças. A instituição enfrentava problemas financeiros e nos propomos a ajudar (vendendo rifas, participando de festas para arrecadar fundos e buscando professores que se dispusessem a dar aulas). Quando

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assumi a diretoria, também não estava satisfeita com o trabalho e sabia que poderíamos fazer melhor. Por isso decidi encarar o desafio. Hoje a CASSIS conta com 11 membros ativos. Vamos promover um evento em outubro, o I Encontro ITA – ação social [...]. A direção do ITA/CTA apóia nossas ações, no entanto sofremos com a falta de condução. Todos os nossos pedidos de transporte externo para os alunos foram negados, de modo que ficamos dependendo de veículos particulares dos alunos que vão às visitas (e nem sempre há condução para todos).

Realmente, no momento em que assistimos a solidariedade ser

substituída pela competitividade e a identidade por individualismo e egoísmo,

todas essas iniciativas, particularmente as assistenciais, geram alternativas de

intervenção na realidade social no sentido de contribuir para a superação do

mito do “pensamento único” estereotipado na figura de um técnico de alto nível

como são vistos os alunos e engenheiros formados pelo ITA. Além disso, elas

estão inseridas naquilo que um estudante disse: “O ITA não me dá só o estudo,

o ITA me integra na sociedade”, o que, no mais puro pensamento durkheimiano

significa que “[...] à medida que participa da sociedade o indivíduo vai

naturalmente além de si mesmo, seja quando pensa, seja quando age.”

(Durkheim, 1999).

Estas intervenções na realidade social elevam, também, nos alunos o

sentimento de pertencerem a um país com tantos problemas sociais, mas que

merecem ser assistidos, mesmo à custa de preciosas horas de estudo.

Percebemos nesses atos de doação uma tomada de consciência nacional,

mesmo que os alunos que participam dessas ações não estejam

conscientemente trabalhando com esse propósito.

Com efeito, a nacionalidade do indivíduo é um dos meios pelos quais as forças sócio-históricas regem as decisões individuais. Mas ele só se conscientiza dessa determinação pela nacionalidade quando se reconhece como pertencente a uma nação. Só a consciência nacional faz da nacionalidade uma força motriz do comportamento humano. (BAUER, 2000, p. 67).

Nesses termos, Bauer (op. cit.) coloca a consciência nacional na

mesma classificação que Bourdieu deu à consciência de classe de Karl Max,

chamando-a mais de inconsciência nacional, pois os indivíduos decidem não o

destino da nação, mas apenas seu destino individual. Entretanto, pode-se

supor que o resultado dessas decisões individuais produz uma transformação

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na vida da nação inteira, mesmo que os indivíduos não tenham a percepção

muito clara disso.

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CONCLUSÕES

Ao concluir este trabalho exploratório me ficou a impressão de quão

modesto fui ao analisar os ricos dados que obtive durante a pesquisa e,

também, a satisfação de ter descortinado um mundo novo que poderá ser útil

para uma reflexão sobre as categorias que me propus estudar.

A primeira que, de imediato, se apresenta é a disciplina, a qual aparece

como um elemento fundante da construção social da subjetividade dos

estudantes do ITA. A disciplina nesse grupo social inserido em um ambiente

militarizado está colocada como algo subjacente à hierarquia. Parece-me que

nesse caso específico, a hierarquia está sustentada pela disciplina, uma vez

que ela, como os militares a vêem, atende a muitas outras finalidades que não

caberia discutir aqui, mas que para um civil que vive num ambiente militar

poderia ser relativizada. Mesmo a disciplina consciente, a autodisciplina, que

alguns autores denominam de autocoação, praticada pelo corpo discente do

ITA, está submetida a uma hierarquia, pois as resoluções do Departamento de

Orientação e Ordem do Centro Acadêmico podem ou não serem aceitas pelo

reitor, ainda que isso nunca tenha acontecido.

A submissão dos alunos às regras e regulamentos do ITA certamente

implica atitudes de renúncia no plano individual que só são suportadas diante

da perspectiva de alcançar um fim que compense os sacrifícios a que os

estudantes se submetem durante o período do trote e instrução militar que

ocorre no primeiro ano. No início, o processo de aceitação dos novos códigos

daquele grupo social poderia ser “doloroso”, porque tende a contrariar outros já

introjetados no indivíduo, mas na medida em que os objetivos individuais são

redefinidos, diminui o conflito entre aqueles objetivos idealizados antes do

ingresso no ITA com a realidade que começam a viver, esta nova realidade

acaba apontando para um objetivo compensador no futuro.

Mas os diferentes aspectos das culturas regionais que interagem na

socialização que ocorre no cotidiano dos alunos não poderiam ser um elemento

criador de conflitos? Não nesse caso. Mas, também, não consegui identificar

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outras causas possíveis de conflito, entretanto me pareceu que as forças de

coesão são mais fortes se vistas pela ótica de Coser (1967, p. 17): “[...] onde

quer que exista conflito ou ‘disrupción’ também haverá forças sociais que

pressionam até a implantação de algum novo tipo de equilíbrio.”

Por outro lado, William Filho (1966, p. 717) vai mais além e reforça a

minha compreensão do que ocorre no grupo social dos alunos do ITA: “[...] as

sociedades reais se mantém unidas pelo consenso, pela interdependência,

pela sociabilidade e pela coerção.”

No caso específico que estudei é muito forte a presença das duas

últimas categorias: sociabilidade e coerção. Esta está presente pela pressão

exercida através da disciplina consciente, instrumento coercitivo criado pelos

alunos para regular suas relações acadêmicas e o comportamento grupal. Ela

possui um conteúdo coercitivo mais acentuado por estar apoiada na

informalidade de suas regras. Pelo fato de não estarem escritas as regras

estão sujeitas a critérios abstratos de avaliação que muitas vezes podem não

ser claros para quem será punido, mas que, mesmo assim, são capazes de

expulsar um componente do grupo sem maiores explicações. Imbricado nas

regras subjetivas que estabelecem as punições existe um consenso ditado por

normas morais e éticas aceitas por todos. O consenso é o elemento de coesão

colado a um instrumento de coerção. Todos percebem o poder da coletividade

sobre os indivíduos e a consciência desse poder os mantém unidos e faz com

que optem pelo coletivo.

Já a sociabilidade vista como afabilidade, civilidade ou cordialidade,

para não escapar à interpretação de William (1966), do meu ponto de vista, é

resultado da socialização que se desenvolveu na convivência dos alunos no H-

8, no trote e nos exercícios militares do CPOR Aer.

Se for verdade, como afirma Pierre Bourdieu (2002, p. 41) alinhado

com o pensamento de Foucault, que nós “aprendemos pelo corpo”, e que “[...]

a ordem social inscreve-se no corpo por meio desse confronto permanente,

mais ou menos dramático, mas que sempre abre um grande espaço para a

afetividade.”, então os exercícios militares aplicados aos alunos do primeiro

ano e para os que optaram pela carreira militar, ao longo dos demais anos de

estudo contribuíram decisivamente para a construção da subjetividade dos

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estudantes. As formas de expressão também se constituem numa categoria

inserida no processo de socialização por que passam os estudantes do ITA. A

“nacionalização” das “culturas” regionais também se opera através da

linguagem. As expressões regionais tomam dimensão “nacional” ao serem

usadas por indivíduos de outras regiões no grupo social dos estudantes. A

transformação das formas de expressão dos estudantes ocorre de uma

maneira muito rápida durante o primeiro ano e adquirem uma dimensão

simbólica e homogênea entre eles com características de verdadeiros códigos

do grupo.

A forma intensa e rápida que ocorre isso se torna flagrante quando

conversamos com alunos dos diversos anos do curso. Os do primeiro ano

usam as expressões com certo deslumbramento, ao passo que os dos demais

anos já o fazem de uma maneira naturalizada, percebe-se a incorporação de

uma nova terminologia, a existência de um código de linguagem.

Se Coser (1967, p. 24) estiver certo quando afirma que “As mudanças

demasiado abruptas e rápidas do idioma desorientariam e deslocariam os

estilos mesmos de pensamento de uma comunidade, e interfeririam com seu

modo acostumado de estruturar o mundo da experiência”, então, de fato, na

comunidade dos estudantes do ITA se cria uma nova forma de percepção que

os caracterizam. Abre-se aí um novo jeito de pesquisa a ser explorado para

quem desejar identificá-la.

Vimos, também, que as categorias disciplina consciente e integração

estão presentes nos processos acadêmicos do ITA. Mas a disciplina é a

categoria mais desenvolvida nesse âmbito.

A pesquisa permitiu identificar quatro objetivos básicos previstos na Lei

de Diretrizes e Base do MEC 74 que o sistema educacional do ITA amplia e

pretende atingir com suas práticas:

• Formar para o mundo do trabalho;

74 Ver Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Site www.mec.gov.br

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• Formar para a cidadania crítica, isto é, formar indivíduos capazes

de interferir criticamente na realidade, para transformá-la e

reconhecer o significado individual e coletivo do trabalho;

• Preparar o aluno para a participação social, implicando no

desenvolvimento de competências sociais como relações grupais e

intergrupais, processos democráticos e eficazes de tomada de

decisões, capacidades sociocomunicativas, de iniciativa, de

liderança, de solução de problemas, outros;

• Formação ética, explicitando valores e atitudes.

No primeiro objetivo reside exatamente a característica do curso de

engenharia do ITA que o diferenciava dos demais cursos acadêmicos de

engenharia no Brasil e que são mantidas até hoje. As aulas são acompanhadas

por experiências em laboratório. Existe o “laboratório” de práticas empresariais

que se chama ITA-Júnior que permite aos estudantes terem um contato direto

com o mundo do trabalho no qual estarão mergulhados depois de formados. As

aulas da área de Humanidades vão mais além, coloca-os em contado com a

realidade da sociedade brasileira ampliando-lhes o sentimento de

nacionalidade e da relação interdisciplinar de sua profissão.

Além disso, no último ano são obrigados a participar de um estágio

assistido em estabelecimento público ou privado cujas atividades sejam

compatíveis com a especialidade de cada um. O tema do Trabalho de

Graduação (TG) daqueles que optaram pela carreira militar, deve ser relativo a

um problema técnico real da Força Aérea Brasileira, além disso, visitas e

estágios em estabelecimentos técnicos da FAB são obrigatórios.

O segundo objetivo pode ser alcançado quando a estrutura acadêmica

admite a participação dos estudantes no estabelecimento dos critérios

disciplinares, tanto formais como informais, na crítica aos conteúdos das

matérias ensinadas, na execução das provas, na administração do H-8, no

incentivo e apoio a iniciativas como a do CASD-Vest. e o CASSIS. O

reconhecimento do significado individual e coletivo do trabalho é alcançado nos

exercícios militares praticados no CPOR Aer.; e na própria importância que a

direção atribui à representação do Centro Acadêmico nas suas deliberações.

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O terceiro objetivo está presente nas diversas atividades

extracurriculares praticadas pelos estudantes como a do CASSIS, a do trote

beneficente além de todas aquelas existentes no âmbito do H-8, como visto no

decorrer deste trabalho. Nelas, também estão presentes os conteúdos relativos

ao sentimento de nacionalidade com mais intensidade, assim como os

ensinamentos de “amor à pátria” inculcados no CPOR Aer.

A formação ética está tauxiada em quase tudo do cotidiano dos

estudantes, a começar pela instrução militar, no primeiro ano, na qual os

valores da ética militar, tais como não mentir, ser leal, ser disciplinado, ser

obediente ao superior hierárquico, dar-se em proveito do grupo, entre outros,

são ensinados e praticados exaustivamente nesse período e, posteriormente,

mesmo aqueles que não seguirão a carreira militar – conseqüentemente não

freqüentarão mais o CPOR Aer. – estão constantemente em contato com o

ambiente militarizado do CTA. A própria gênesis da disciplina consciente está

inscrita na aceitação de princípios éticos reconhecidos pela comunidade

docente e discente do ITA. Nesse ponto me parece válido considerar que as

mudanças na relação entre coações sociais externas, nesse caso o ambiente

disciplinado de uma organização militar que determina uma forma de

comportamento que todos devem, no mínimo, respeitar, e as autocoações

individuais é que se estabelece o processo de subjetivação dos alunos,

considerando que a autocoação é dependente de uma coação externa que

ameace o indivíduo com punições ríspidas.

Ficou também muito claro que esse ambiente militarizado em que

vivem os alunos do ITA impõe valores e formas de comportamento aos

estudantes, em especial nos calouros, através de uma ordem hierarquizada

baseada na ascendência dos mais velhos, os quais são substituídos nas

posições de liderança e de “orientadores” dos calouros sempre por aqueles que

o seguem em antiguidade. Antiguidade porque, à semelhança dos militares, a

liderança é um pressuposto de tempo como estudante, que normalmente

corresponde a uma idade mais avançada que a dos calouros. Essa ordem

mantida pela “tradição” (“sempre foi assim”) cria uma estrutura de poder rígida

e, de certa forma implacável, mantida pelos mecanismos de coação do trote

que magnetiza tanto os mais velhos como os mais jovens.

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As demonstrações práticas de desprendimento exigidas dos calouros,

periodicamente reavivadas com os “bostejos” dos veteranos, mantêm todos

presos às regras da comunidade e servem também para apertar os laços de

camaradagem, afeição, cordialidade e lealdade. Bem ao estilo do treinamento

militar, todos fazem a mesma coisa regidos por um mesmo código de disciplina

que reforça o poder dos mais velhos e o poder de coação, de seqüestro, da

comunidade sobre os indivíduos. Cada aluno se transforma numa

representação viva da comunidade, diferenciados uns dos outros apenas pelas

especialidades que optaram cursar e fazem parte, também, de uma realidade

construída pelo poder específico que o conjunto exerce sobre cada um.

O fato dos estudantes estarem integrados a um grupo e zelarem por

suas tradições não é só por necessidade, uma vez que a maioria dos

estudantes está distante de suas famílias, mas por estarem sob o nome da

uma instituição que lhes atribui uma estirpe que os situa dentro de um conjunto

de pares em todo país cujas capacidades intelectuais estão incontestavelmente

acima da média.

Integração é também uma categoria proeminente no processo de

socialização e na construção das subjetividades dos estudantes. Há uma forte

visão de conjunto nas ações dos estudantes e todos são afetados diretamente

pela qualidade de confiança que os rodeia; parece que todos utilizam os

compromissos institucionais para pensarem da mesma maneira. Numa visão

durkheimiana as classificações, as operações lógicas e as metáforas guiadas

são fornecidas aos indivíduos pela sociedade em que vivem. Dessa forma,

Simmel (1986, p. 314) parece fornecer uma definição adequada à

compreensão das relações indivíduo-instituição:

Em general, la valoration del todo como superior a los destinos individuales, la tendência de las instituciones o al menos de las ideas hacia lo común, hacia lo que a todos comprende, y sobre todos manda, determinará la propensión a la organización de todos los trabajos em virtud de um plan racional de conjunto, que evite todo rozamiento entre los elementos, todo derroche de fuerzas por competencia, todo azar de iniciativas puramente personales.

A contribuição dos efeitos criados pelo sincretismo dos códigos sociais

de cada região do país ao surgimento de um sentimento nacional não é de todo

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explorado neste trabalho, pois achei suficiente, a exemplo do que foi

pesquisado por José Murilo de Carvalho sobre as elites brasileiras que

estudavam em Coimbra, circunscrever a pesquisa ao fato de que os estudantes

do ITA, provenientes das diversas regiões do Brasil, criados nas tradições de

códigos sociais diferentes, estarem reunidos no que se poderia chamar de

“república” (o H-8), sob um regime ímpar de disciplina, expostos a experiências

e a uma forma de vida que até então não lhes era acessível, tem um efeito

potencializador de um sentimento de unidade nacional. Assim agi porque

entendo que o surgimento de algum sentimento de nacionalidade, neste caso,

é somente uma categoria decorrente do processo de construção social da

subjetividade dos alunos do ITA. Ainda que se constitua um rico veio de

pesquisa no grupo social estudado o aprofundamento no tema significaria um

afastamento do objeto de pesquisa.

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Trabalho revisado e formatado por Mirna Juliana. E-mail: [email protected]