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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO PEDAGÓGICO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DÓRIS REIS DE MAGALHÃES CONCEPÇÕES CRENÇAS E ATITUDES DOS EDUCADORES TUPINIKIM FRENTE À MATEMÁTICA VITÓRIA 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO PEDAGÓGICO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

DÓRIS REIS DE MAGALHÃES

CONCEPÇÕES CRENÇAS E ATITUDES DOS EDUCADORES TUPINIKIM FRENTE À MATEMÁTICA

VITÓRIA 2007

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DÓRIS REIS DE MAGALHÃES

CONCEPÇÕES CRENÇAS E ATITUDES DOS EDUCADORES TUPINIKIM FRENTE À MATEMÁTICA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação na linha de pesquisa Educação Matemática, sob orientação da Profª Drª Circe Mary Silva da Silva Dynnikov.

VITÓRIA 2007

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UNIVERSIDADE F

CENTPROGRAMA DE PÓ

Dados Internaciona(Biblioteca Central da Univ

Magalhães, Dóris ReiM188c Concepções, cren

matemática / Dóris R 224 f. : il. Orientadora: Circ Dissertação (mes

Centro de Educação. 1. Matemática - F

Tupinikim. I. DynnikFederal do Espírito S

EDERAL DO ESPÍRITO SANTO

RO PEDAGÓGICO S-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

is de Catalogação-na-publicação (CIP) ersidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

s de, 1954- ças e atitudes dos educadores tupinikim frente à eis de Magalhães. – 2007.

e Mary Silva da Silva Dynnikov. trado) – Universidade Federal do Espírito Santo,

ormação de professores. 2. Cultura. 3. Índios ov, Circe Mary Silva da Silva. II. Universidade anto. Centro de Educação. III. Título.

CDU: 37

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Dedico este trabalho à Nação Tupinikim

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Agradecimentos

Expresso os meus sinceros agradecimentos a todos, os que mediante o seu empenho e

colaboração, permitiram que a realização do presente estudo fosse possível.

À minha professora de graduação, Dra. Helena Noronha Cury, quem me mostrou pela

primeira vez, o quão importante é poder percorrer o caminho acadêmico da Educação

Matemática.

À minha orientadora, Dra. Circe Mary Silva da Silva Dynnikov, pelo interesse, carinho,

disponibilidade e incentivo pessoal que sempre me dispensou, ao longo das diferentes

fases de elaboração deste trabalho.

Aos professores Dra. Vânia Maria dos Santos-Wagner, Dra. Lígia Arantes Sad e Dr.

Antônio Henrique Pinto que contribuíram com sugestões que vieram a melhorar o

projeto inicial.

Quero naturalmente agradecer à comunidade Tupinikim, assim como todos os

educadores indígenas, em especial aos dois de Matemática, que ao aceitarem participar

neste estudo o tornou possível a partir de suas disponibilidades demonstradas.

Às minhas colegas e amigas de trabalho, em especial ao incentivo de Ravenna B.

Negromonte de Almeida e à Ms. Maria Lúcia Gomes Tedoldi, coordenadora do Curso

de Pedagogia em que leciono.

Agradecimentos especiais às considerações, elogios e palavras de carinho do professor

Dr. Ubiratan D’Ambrosio à produção deste trabalho.

Uma palavra de especial agradecimento e carinhos ao meu marido Ricardo Bublitz de

Magalhães e aos nossos filhos, Fabrício Reis de Magalhães e Fabíola Reis de

Magalhães, pela compreensão e apoio em todas as fases da realização deste trabalho.

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A “essência” do ser humano não se revela mediante o estudo comparativo entre diferentes culturas, tomadas como objeto de investigação, na busca do identificar aspectos comuns entre elas. O conhecimento do ser humano pode ser desenvolvido, sim, na medida em que pessoas e grupos de culturas diferentes entram em relação, na busca de compreender os sentidos que suas ações assumem no contexto de seus respectivos padrões culturais. Pois compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir sua particularidade. (...) Isso os torna acessíveis e torna possível conversar com eles.

Clifford Geetz

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LISTA DE FIGURAS Figura 1 Foto de satélite da aldeia de Comboios...................................... 16Figura 2 Imagem de satélite das aldeias Tupinikim................................. 61Figura 3 Projeção do município de Aracruz............................................. 62Figura 4 Imagem de satélite da aldeia de Caieiras Velha......................... 63Figura 5 O mapa de Caieiras Velha.......................................................... 63Figura 6 Cabana de reuniões em Caieiras Velha...................................... 64Figura 7 Foto de satélite da aldeia de Comboios...................................... 64Figura 8 Aldeia de Comboios por um aluno da 6ª série........................... 65Figura 9 Aldeia de Comboios ao fundo.................................................... 65Figura 10 Rua central de Comboios........................................................... 66Figura 11 Foto de satélite da aldeia de Irajá............................................... 66Figura 12 Aldeia de Irajá por alguns alunos da 5ª série............................. 67Figura 13 Espaço de reuniões na aldeia de Irajá......................................... 67Figura 14 Imagem de satélite da aldeia de Pau-Brasil................................ 68Figura 15 Parte do mapa da aldeia de Pau-Brasil ..................................... 68Figura 16 Vista da rua principal da aldeia de Pau-Brasil. ......................... 69Figura 17 Caderno de uma aluna da 4ª série ............................................. 72Figura 18 Cartaz na parede em uma das salas de aula .............................. 73Figura 19 Moradia nas aldeias Tupinikim.................................................. 76Figura 20 Moradia nas aldeias Tupinikim.................................................. 76Figura 21 Moradia nas aldeias Tupinikim.................................................. 76Figura 22 Moradia nas aldeias Tupinikim.................................................. 76Figura 23 Moradia nas aldeias Tupinikim.................................................. 77Figura 24 Moradia nas aldeias Tupinikim.................................................. 77Figura 25 Moradia nas aldeias Tupinikim.................................................. 77Figura 26 Moradia nas aldeias Tupinikim.................................................. 77Figura 27 Referente à alimentação dosTupinikim...................................... 81Figura 28 Referente à alimentação dosTupinikim...................................... 81Figura 29 Referente à alimentação dos Tupinikim..................................... 81Figura 30 Referente à alimentação dos Tupinikim..................................... 81Figura 31 Referente à alimentação dos Tupinikim..................................... 81Figura 32 Referente à alimentação dos Tupinikim..................................... 81Figura 33 Referente à alimentação dos Tupinikim..................................... 82Figura 34 Referente à alimentação dos Tupinikim..................................... 82Figura 35 Referente à alimentação dos Tupinikim..................................... 82Figura 36 Referente à alimentação dos Tupinikim..................................... 82Figura 37 Referente à religião dos Tupinikim..................................... 84Figura 38 Referente à religião dos Tupinikim............................................. 84Figura 39 Referente à religião dos Tupinikim............................................. 84Figura 40 Referente à religião dos Tupinikim............................................. 84Figura 41 Referente à religião dos Tupinikim............................................. 84Figura 42 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 88Figura 43 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 88Figura 44 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 89Figura 45 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 89Figura 46 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 89Figura 47 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 89Figura 48 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 89Figura 49 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 89

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Figura 50 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 90Figura 51 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 90Figura 52 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 90Figura 53 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 90Figura 54 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 90Figura 55 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 90Figura 56 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 91Figura 57 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 91Figura 58 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 91Figura 59 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 91Figura 60 Referente ao artesanato nas aldeias Tupinikim........................... 91Figura 61 Foto ilustrativa de um evento anual............................................. 95Figura 62 Foto do Pajé Alexandre Cezenando ........................................... 95Figura 63 Deusdéia (Yara-Tupã), à esquerda.............................................. 98Figura 64 Jonas do Rosário, Cacique da aldeia de Irajá............................. 98Figura 65 Quadro informativo da política indígena.................................... 100Figura 66 Transcrição do quadro ao lado................................................... 100Figura 67 Uma menina índia Tupinikim de Pau-Brasil.............................. 101Figura 68 Crianças Tupinikim ................................................................... 104Figura 69 O Urucum................................................................................... 108Figura 70 Exemplos de pinturas corporais................................................. 109Figura 71 Alguns instrumentos utilizados pela banda de congo................ 110Figura 72 Meninas Tupinikim.................................................................... 111Figura 73 No interior do Quitungo............................................................. 112Figura 74 No Quitungo: a quarta................................................................ 112Figura 75 Medida meia alqueire................................................................. 113Figura 76 A cigarrinha................................................................................ 115Figura 77 O movimento da pesquisa ......................................................... 120Figura 78 Ilustração de alunos aprendendo frações.................................... 127Figura 79 O desenho que representa o problema........................................ 129Figura 80 O desenho que representa a resolução do problema................... 129Figura 81 Um dos grupos de educadores elaborando o planejamento........ 143Figura 82 Outro grupo de educadores cumprindo a mesma tarefa............. 143Figura 83 Um dos educadores produzindo uma ilustração......................... 148Figura 84 O Quebra-cabeça........................................................................ 148Figura 85 Viveiro de plantas nativas na aldeia de Pau-Brasil..................... 152Figura 86 Tangram ..................................................................................... 153Figura 87 Variação de Tangram.................................................................. 153Figura 88 Jogo de Memória......................................................................... 154Figura 89 Jogo de Memória......................................................................... 154Figura 90 O Tangram que o professor colocou na lousa............................. 155Figura 91 Figura que os alunos receberam.................................................. 156Figura 92 O que A11 mostrou em sua carteira.............................................. 158Figura 93 O educador registra no quadro..................................................... 159Figura 94 Alguns alunos desenharam seu próprio Tangram no caderno..... 160Figura 95 Mapa de contornos...................................................................... 164Figura 96 Alguns alunos de uma 6ª série..................................................... 168Figura 97 Cartaz com as reportagens........................................................... 169Figura 98 Cartaz: A matemática no dia-a-dia.............................................. 171Figura 99 Um dos cartazes colado na parede da escola............................... 172

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 .......................................................................................................... 133Quadro 2 .......................................................................................................... 178Quadro 3 .......................................................................................................... 180Quadro 4 .......................................................................................................... 184Quadro 5 .......................................................................................................... 189Quadro 6 .......................................................................................................... 192Quadro 7 .......................................................................................................... 194Quadro 8 .......................................................................................................... 196Quadro 9 .......................................................................................................... 198Quadro 10 .......................................................................................................... 200Quadro 11 .......................................................................................................... 206Quadro 12 .......................................................................................................... 208Quadro 13 .......................................................................................................... 209Quadro 14 .......................................................................................................... 212Quadro 15 .......................................................................................................... 214Quadro 16 .......................................................................................................... 215Quadro 17 .......................................................................................................... 217

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................... 14CAPÍTULO I

Contexto da Pesquisa.................................................................................. 17Justificativa..................................................................................... 17Razões da Pesquisa......................................................................... 27Problema/Pergunta.......................................................................... 27Questões.......................................................................................... 27

CAPÍTULO II Fundamentos Teóricos, Metodologia e Revisão de Literatura................... 31

Os Constructos................................................................................ 33As Crenças e Concepções................................................... 38As Atitudes.......................................................................... 41

CAPÍTULO III Os Tupinikim.............................................................................................. 60

Localização..................................................................................... 61Linguagem...................................................................................... 69Habitação......................................................................................... 73Alimentação.................................................................................... 78Religião.......................................................................................... 83Artesanato....................................................................................... 86Saúde.............................................................................................. 93Política........................................................................................... 97Vestuário........................................................................................ 103Lendas e Costumes......................................................................... 105Brincadeiras..................................................................................... 114

CAPÍTULO IV O Movimento da Pesquisa.......................................................................... 120A Formação Continuada em 2005.............................................................. 121A Formação Continuada em 2006.............................................................. 132

Encontros de Formação Continuada de Matemática para todos os educadores indígenas..................................................................... 132

Algumas Considerações Para Elaboração Desses Recursos Didáticos.............................................................. 151Os Recursos Didáticos na sala de aula................................ 154

Formação Específica: Uma dinâmica para dois educadores de Matemática...................................................................................... 163

Vivência da Dinâmica em Sala de Aula – 6ª série.............. 167Apresentações do trabalho – 6ª série................................... 168

Análise dos Instrumentos............................................................................ 177Instrumento I....................................................................... 178Instrumento II..................................................................... 197

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 221REFERÊNCIAS...................................................................................................... 230APÊNDICE............................................................................................................. 237

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RESUMO Este trabalho mostra uma investigação realizada com o objetivo de verificar se os recursos didáticos dos educadores nativos Tupinikim das escolas indígenas municipais de Aracruz (Espírito Santo) desvelam suas concepções, crenças e atitudes frente à matemática. É uma pesquisa qualitativa exploratória de cunho etnográfico, que se fundamenta na História Cultural (Geertz e Vygotsky). A revisão de literatura centra-se, principalmente, em D’Ambrosio, Fiorentini, Ponte, Matos e Chacón. Essa investigação, partindo da mediação semiótica de Vygotsky, tenta estabelecer, por meio de recursos didáticos produzidos por aqueles educadores durante um curso de formação de professores, um diálogo entre sua cultura e a concepção que eles têm da matemática. Verifica também se a matemática da sua cultura indígena é abordada no ensino fundamental (5ª e 6ª séries) das escolas das aldeias onde esses educadores atuam. Os dados para este trabalho foram colhidos por meio de questionários estruturados e semi-estruturados, gravações em áudio e observações. Esses instrumentos foram utilizados nas aldeias Tupinikim durante o curso de formação de professores indígenas, em salas de aula de matemática durante a atuação de dois educadores de matemática de etnia Tupinikim – nossos sujeitos de pesquisa – junto a seus alunos, com os índios da comunidade e em conversas com anciãos das aldeias. Vimos que a natureza e o conteúdo do pensamento dos professores influenciam o contexto organizativo cultural e curricular nos quais os professores trabalham e dele sofrem influência, assim como ocorre nos cursos de formação continuada que freqüentam. O interesse em investigar junto à educação indígena Tupinikim vem da vontade de conhecer a matemática sob a perspectiva de outros olhares e de outras culturas; o tema vem de algumas questões surgidas a partir da observação e da prática diária como educadora de matemática em um curso de Pedagogia. Esse curso de formação para os professores indígenas de Aracruz foi financiado pelo Ministério de Educação – MEC com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE. É mais uma produção do Programa de Formação de Formadores de Educação de Base, um Projeto de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, em parceria com a organização não-governamental Instituto de Pesquisa em Educação – IPE, com a Secretaria Municipal de Educação de Aracruz – SEMED e com a Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo – SEDU. Palavras–chave: matemática – formação de professores – cultura – índios Tupinikim

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ABSTRACT This work presents an investigation made with the aim of checking out whether the didactic resources of Tupinikim native educators of indigenous schools of Aracruz (Espírito Santo) show their conceptions, beliefs and attitudes before mathematics. It is an exploratory and qualitative ethnographic research, which is based upon Cultural History (Geertz and Vygotsky), the literary review being mainly focused on D’Ambrozio, Fiorentini, Ponte, Matos and Chacón. This research, according to Vygotsky’s semiotic mediation, tries to establish, through didactic resources produced by those educators during a formative course for teachers, a dialog between their own culture and their conception of mathematics. It also verifies whether their culture’s mathematics is approached during elementary school (5th and 6th grades) at schools of the indigenous settlements, where those educators work. The data for this work were obtained through structured and semi-structured questionnaires, audio recordings and observation. Those instruments were used in Tupinikim settlements in a formative course for native teachers, during the performance of two educators – the subjects of our research – in mathematics classes, with community natives and in talks with ancients from the settlements. It was observed that the nature and the content of the teachers’ thinking influence cultural and curricular organizational context in which those teachers work and are influenced by it, as well as it occurs at the courses of continuing formation to which they attend. The interest to investigate the culture of Tupinikim natives comes from the wish to know mathematics under others views and other cultures; the topic was brought up by some questions raised out of observation and daily practice as mathematics educator in a pedagogic course. That formation course for indigenous teachers from Aracruz was afforded by Ministério da Educação – MEC, with resources from Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE. It is another production of Programa de Formação de Formadores de Educação de Base, an Extension Project of Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, in partnership with non-governmental organization Instituto de Pesquisa em Educação – IPE, with Secretaria Municipal de Educação de Aracruz – SEMED and with Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo – SEDU. Key-words: mathematics – formation of teachers – culture - Tupinikim natives.

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INTRODUÇÃO

Avistam-se os dois lados das margens do rio Comboios. A cena me traz a lembrança um

clássico exercício de matemática e, sobre o rio, vislumbro um triângulo retângulo

imaginário inscrito entre suas margens. Estaciono e faço soar a buzina do carro do lado

de cá. É assim que os índios, que residem do outro lado do rio, da aldeia Tupinikim de

Comboios, ficam sabendo que alguém está interessado em estar com eles.

A uns cento e cinqüenta metros, do outro lado da margem, o índio encarregado da

travessia aparece no seu barco e acena com a mão. Vem me buscar. É minha primeira

visita a essa aldeia inserida neste cenário pitoresco.

Ali estava, num outro distrito do município de Aracruz, como já havia estado nas suas

outras três aldeias Tupinikim, Caieiras Velha, Irajá e Pau-Brasil. Meu objetivo era claro.

Estava interessada em visitar a escola, em especial, o educador de Matemática, das 5ª e

6ª série do Ensino Fundamental, e seus alunos. O cacique da aldeia também me

esperava para uma entrevista.

Queria conhecer as concepções, crenças e atitudes dos educadores Tupinikim frente à

Matemática. Entendia que, para investigar a relação que eles têm com a matemática,

teria que transcender o espaço escolar, indo além, na direção do entendimento da

formação cultural, como fator de mediação. Já que são as mediações que podem

permitir localizar e interpretar os sentidos, e os significados, que os sujeitos atribuem às

relações que estabelecem com seus meios.

Sentada no barquinho, guiada pelo índio de pouca fala, que se limitou a um breve

cumprimento, pensava nas minhas raízes culturais gaúchas, nos meus primeiros passos

na matemática, na minha formação. Pensava também que há oito anos residia no estado

do Espírito Santo e ainda descobria coisas da cultura capixaba que me eram

desconhecidas.

Então me perguntava se estaria preparada para o desafio em adentrar na cultura indígena

Tupinikim. Como é sentida a Matemática por esses educadores de matemática? Como é

sentida por seus alunos? Aspectos de sua cultura contribuiriam para o entendimento dos

conteúdos matemáticos em sala de aula? Desenvolver uma dissertação com esse foco

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poderia, de fato, contribuir para a melhoria do ensino e da aprendizagem de matemática

nas salas de aula neste universo?

Este estudo qualitativo, de cunho etnográfico, com aporte teórico em trabalhos

acadêmicos relevantes ao tema, com referencial teórico principal centrado nas teorias de

Vygotsky e de Geertz, seria uma novidade para todos nós. O desafio estava posto.

Nas aldeias Tupinikim de Pau-Brasil e de Caieiras Velha eu já fizera alguns amigos,

entre os educadores, com algumas famílias e com algumas lideranças. Com alguns

moradores da aldeia de Irajá eu já havia estado, assim como já havia estado com os dois

educadores de matemática das escolas de Caieira Velha e de Comboios, durante um

curso de formação continuada para professores indígenas de Aracruz. Iria rever um

deles, durante sua atuação profissional. Mas queria conhecê-los cada vez melhor, vê-los

atuando em sala de aula, tentar fazer parte do contexto. Que isso pudesse ser

concomitante aos meus estudos e às leituras pertinentes, no afã da inquietação, da

responsabilidade e do entusiasmo de desenvolver tal trabalho. Agora, com a permissão

de seu cacique, chegara à vez da minha primeira ida à aldeia e à escola de Comboios. O

lugar é lindo.

Segundo registros que veiculam, tanto academicamente como na mídia, os únicos povos

remanescentes da nação Tupinikim são os que residem no município de Aracruz. E,

segundo informações dadas por algumas lideranças das quatro aldeias, Caieiras Velha,

Comboios, Irajá e Pau-Brasil, esses Tupinikim sempre habitaram essa região.

No mesmo município, fazendo vizinhança aos Tupinikim, residem outros povos de etnia

Guarani, em outras três aldeias. A relação entre os povos das duas nações é amigável.

Eles percorrem juntos no caminho na defesa de seus direitos, no fortalecimento de suas

específicas culturas. Os Tupinikim, assim como os Guarani, que residem em Aracruz,

são aculturados, resultado da proximidade geográfica com as civilizações não-índias

desde o descobrimento do Brasil. Atualmente, estão defendendo suas terras, estão em

conflito com a empresa Aracruz Celulose e as informações deste conflito estão sendo

veiculadas pelas mídias nacional e internacional. Esses índios reivindicam seus 11

009ha de terras.

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A mobilização e a organização política, a demarcação das terras indígenas, a retomada

do crescimento populacional, a valorização das tradições culturais e a preocupação com

uma escola, que trate de suas especificidades, são alguns dos aspectos atuais da questão

indígena provocar perguntas, buscar soluções, abrir novas perspectivas de reflexões

sobre o lugar social dos índios no Brasil.

Os caminhos abertos pela confluência entre a Antropologia e a História que tratem de

estudos dos aspectos indígenas nas relações entre os índios e os não índios da sociedade

brasileira, podem recuperar o passado para pensá-lo no presente, e refletir sobre o futuro

dos povos indígenas em nosso país. E este trabalho poderá, talvez, ser mais um aporte

para isso.

Assim, para dar conta da proposta de lançar um olhar sobre as concepções, crenças e

atitudes frente à Matemática dos dois educadores Tupinikim que atuam nas 5ª e 6ª série

do Ensino Fundamental, nas escolas de Caieiras Velha e de Comboios, e das inter-

relações que existem entre os conteúdos escolares e sua cultura, há de se estar envolvida

neste universo.

Chegamos à outra margem do rio. Estamos na aldeia de Comboios. Que Tupã me

acompanhe!

Figura 1 - Foto de satélite da aldeia de Comboios Fonte: Google

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CAPÍTULO I

O CONTEXTO DA PESQUISA

Justificativa

A educação indígena no Brasil é regida por leis e decretos específicos. Acreditávamos

que, para desenvolvermos uma dissertação no universo da educação indígena

precisávamos conhecer alguns detalhes importantes de sua construção, e de como ocorre

atualmente essa educação diferenciada no Brasil, especificamente, no estado do Espírito

Santo. Assim, fizemos um passeio nestes aspectos como mostramos a seguir.

A Constituição Federal Brasileira, promulgada em 1988, traz referências para uma

educação diferenciada ao povo brasileiro, aponta para um discurso educacional

democrático veemente, com proposta de uma educação igualitária para todos os seus

cidadãos. Essa constituição foi considerada mais progressista do que as anteriores, para

alguns segmentos da sociedade brasileira, em particular, pelos indigenistas, no trato das

questões educacionais.

Os indigenistas, antes da referida promulgação, encaminharam propostas a alguns

setores específicos governamentais, com a finalidade de pressionarem e sensibilizarem a

assembléia constituinte de Brasília, das necessidades educacionais indígenas. Para isso,

contaram com apoio de organizações não governamentais (ONGs) e de algumas

associações científicas.

Essa constituinte explicitou, pela primeira vez também, o direito à continuidade de

etnias indígenas e os direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas,

como podemos ler no artigo de uma de suas leis a seguir.

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (Constituição Federal, 1998, p.150).

Anterior a esta promulgação as crianças indígenas se mantinham inseridas no ensino

oficial regular, numa sociedade majoritária e diferente da sua. Isso ainda acontece, e

esforços para a ampliação de uma educação específica, que atenda a várias etnias no

território nacional, estão se intensificando.

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Antes mesmo da promulgação da Constituinte de 1988, os índios reiteravam a vontade

de manterem vivas suas tradições de conhecimentos, de seus costumes, de sua

linguagem, seus rituais, sua religião, sua música, sua arte. Um dos meios para tais

vivências, reflexões e discussões, poderia ser em uma escola diferenciada própria.

Nesse sentido, o governo brasileiro oficialmente, no artigo duzentos e dez, parágrafo

dois, promulgou na mesma Constituição Federal de 1988, o reconhecimento e o direito

do índio brasileiro à sua pluralidade cultural. Isto é, o governo brasileiro deixou de ter a

preocupação em inserir o índio à civilização nacional, para realmente respeitar a sua

especificidade étnica, como mostrado no artigo a seguir:

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 2.º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

Então, a partir de 1988, observou-se não apenas uma diferença, quanto aos objetivos das

medidas políticas adotadas pela União em relação aos índios, mas também uma divisão

das ações entre os diversos órgãos públicos, uma vez que até esta data, os assuntos

relativos aos povos indígenas eram tratados exclusivamente pela Fundação Nacional do

Índio (FUNAI).

Esta descentralização é bastante clara referente à educação e, por isso, fez-se necessária

uma série de outras leis, decretos e portarias para regulamentar a nova situação política

estabelecida pela Constituição Federal, focando ações específicas para um sistema

educacional indígena a ser desenvolvido. Relativo ao que se quer tratar aqui é

interessante citar dois desses decretos.

Decreto presidencial n° 26 de 04/02/1991: passa a ser da competência do MEC tanto a integração da educação escolar indígena aos sistemas de ensino regular, quanto à coordenação das ações referentes às escolas indígenas em todos os níveis e modalidades de ensino. Cabendo a execução das ações às secretarias em nível estadual e municipal.

Complementando esse decreto n° 26, a Portaria Interministerial n° 559/91 define as

ações e as novas funções do MEC, além de prever a criação do Comitê de Educação

Escolar Indígena, a fim de prestar a este ministério apoio técnico.

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Decreto n° 1904/96: determina que o Programa Nacional de Direitos Humanos estabelece como meta a formulação de uma política de proteção e promoção dos direitos das populações indígenas, em substituição às políticas assimilacionistas e assistencialistas, assegurando às sociedades indígenas uma educação escolar diferenciada, respeitando seu universo sociocultural.

Atendendo às demandas de caráter progressista, a nova lei de Diretrizes de Base da

Educação (LDB) de 1996, artigo 78, propôs o fomento de programas integrados, de

ensino e pesquisa, para que fosse possível a oferta de educação bilíngüe e intercultural,

aos povos indígenas com a pretensão de:

...recuperar a memória histórica, contribuir para reafirmar as identidades étnicas, a valorização da língua e ciências desses povos, ao mesmo tempo garantir o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não índias (pág. 23).

A mesma LDB, por meio do artigo 79 (pág. 24) reitera que as responsabilidades pelos

programas integrados de ensino e pesquisa devem ser compartilhadas entre a União e os

diversos sistemas de ensino, cujos objetivos desses programas de ensino sejam para: 1)

fortalecer as práticas socioculturais e a língua materna de cada comunidade indígena; 2)

manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar

nas comunidades indígenas; 3) desenvolver currículos e programas específicos, neles

incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades; 4)

elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado. Nesse

sentido Cota, em sua dissertação de mestrado, critica:

Mas quais as reais condições para a implantação desta política educacional “progressista” proposta pela LDB? Quando se analisa a questão da educação escolar indígena por este prisma constata-se que esta é uma proposta bastante autoritária, ditada de cima para baixo, uma imposição política do Ministério de Educação e Cultura (MEC) aos estados e municípios, que nega os princípios democráticos, em outras palavras, foi passada aos estados e municípios a responsabilidade pelo desenvolvimento da educação indígena, quando na prática pode se constatar que estes não apresentam a mínima condição para isto, [...]. Ter o direito garantido a uma educação diferenciada em nível federal não é tudo. Há um longo caminho ainda até os estados e municípios (Cota, 2000, p.65).

Reiterando, os índios há muito vinham demonstrando necessidades de uma nova

maneira de relacionar-se com o Estado e com as sociedades não governamentais que os

acompanhavam. Então, essa promulgação da Constituinte de 1988, associadas às essas

leis da LDB de 1996, foi considerada um avanço nas suas lutas políticas e sociais,

apesar de ditada de cima para baixo, como apontou Cota.

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Mesmo com essa controvérsia, a educação indígena começou a tomar vulto no território

nacional a partir das políticas públicas adotadas. Nesse sentido, algumas ações foram, e

muitas sendo executadas, em várias comunidades indígenas. Sabemos que ainda há

muito por fazer, pois nem todos os povos indígenas no país possuem uma escola

diferenciada em suas aldeias, encontrando-se em processo de conquista, assim como de

outros aspectos.

A partir deste marco, em particular, no estado do Espírito Santo, junto aos índios

Tupinikim e Guarani do município de Aracruz,

a fim de oportunizar uma educação voltada para o resgate dos valores e da cultura indígena, no período de 1996 a 1999, foi realizado um projeto para a formação de educadores para os índios visando suprir as escolas com educadores indígenas. O projeto formou 32 educadores, 23 professoras e 9 professores. Em 1999, a prefeitura de Aracruz, proponente do projeto, realizou o primeiro concurso público diferenciado para os indígenas para suprir os cargos de professores nas aldeias indígenas. Em 2001 eles foram nomeados (Silva da Silva, 2005, p.4).

Paralelamente à ação desse curso de formação inicial de educadores indígenas, o

Instituto de Pesquisa e Educação (IPE)1, a Secretaria de Educação do Espírito Santo

(SEDU-ES), a Secretaria Municipal de Educação de Aracruz (SEMED) e as

Comunidades Indígenas de Aracruz acompanhavam o seu desenvolvimento.

Nesse contexto, em encontros periódicos com os futuros educadores, essas instituições davam suporte para a criação e definição de um currículo diferenciado para a educação indígena de Aracruz, e também, orientação teórico-metodológica para o planejamento e execução das atividades, das dinâmicas em sala de aula.. O curso teve duração de três anos e seus egressos foram então habilitados, a ensinar nas escolas municipais de 1a. a 4a. série que se situam, geograficamente, nas aldeias (Silva da Silva , 2005, p. 4).

Atualmente, as mesmas instituições, a Secretaria Estadual de Educação (SEDU), a

Secretaria Municipal de Educação de Aracruz (SEMED), o Instituto de Pesquisa e

Educação (IPE) e as Comunidades Indígenas de Aracruz, em parceria, oferecem

formação continuada para esses educadores indígenas, vinculados a atividades de

Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) denominado “Formação

Continuada de Educadores Indígenas Tupinikim e Guarani”. O intuito é de dar apoio: à

1 IPE – é, desde 2003, o novo nome do Instituto de Desenvolvimento de Educação de Adultos – IDEA, uma Organização não-governamental (Ong).

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conquista de autonomia sócio-cultural desses povos indígenas, contextualizada na

recuperação de suas memórias históricas, levando em conta suas crenças, esperanças,

angústias, ansiedades e experiências; para o estudo e valorização de sua própria ciência;

fortalecer acessos às informações aos conhecimentos técnicos e científicos da sociedade

civil majoritária, e ainda, no contato cultural com outras sociedades.

Assim, os cursos de formação continuada para esses educadores, estimulam debates

para formação superior, principalmente em licenciaturas. Muitos dos educadores,

embora já tenham concluído cursos no ensino superior, têm em mente uma outra

formação universitária, em licenciaturas, como em Educação Física, Matemática, Física,

Química e Biologia. O IPE decidiu implementar esforços para tornar realidade tais

aspirações e negocia, junto a Universidade Federal do Espírito Santo, visando encontrar

caminhos institucionais que permitam o ingresso dos educadores indígenas nesses

cursos, e em outros, de graduação. Os educadores entendem que precisam se preparar

para suas futuras atuações educacionais – a ampliação das séries está acontecendo, ano a

ano, em algumas escolas da aldeia para atender as demandas. Querem estar preparados

também para debaterem sobre um currículo escolar diferenciado para essas séries a

serem implementadas.

No curso de formação continuada, os próprios educadores construíram os seus

currículos escolares de 1ª a 4ª séries. E essa proposta curricular inclui, bimestralmente,

uma problemática a ser vivenciada nas escolas indígenas de Aracruz, em todas as séries

da 1ª à 4ª. Os objetivos, tanto dos formadores, quanto dos atores envolvidos nesse

universo educacional indígena (das instituições governamentais ou não), residem em

atender às solicitações desses educadores, ajudando-os, na elaboração de seus

planejamentos para suas ações pedagógicas e para suas práticas, propiciando também

contextualizações de suas problemáticas, em sala de aula. O que no projeto do curso de

formação de educadores indígenas de Aracruz recebe o nome de problemáticas, no

Referencial Curricular Indígena (RCNEI) recebe o nome de temas transversais.

Os professores formadores, da parceria IPE/UFES, comparecem no curso de formação

continuada em datas pré-definidas consensualmente, pelos educadores indígenas e pela

parceria. Geralmente, os encontros para essa formação acontecem em uma das escolas

das aldeias, ou nas dependências da SEMED de Aracruz. Como esse projeto está

vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da UFES estão engajados, naturalmente,

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professores formadores e alunos do curso de Mestrado em Educação e participam os

alunos desse curso de mestrado que têm interesse em temas nessas paragens indígenas.

Comumente, os orientadores desses alunos do Mestrado e Doutorado em Educação da

UFES são também, os professores formadores dos educadores indígenas.

É pertinente observar que todo aluno de mestrado, ou pesquisador de qualquer natureza,

que queira valer-se do universo indígena para desenvolvimento de um trabalho junto

aos índios, estão condicionados: ao consentimento do cacique da tribo da qual pretende

conhecer; da concordância dos educadores indígenas e dos parceiros, para poderem

ampliar seus conhecimentos in loco, na busca de respostas para suas inquietações.

Nesse sentido, esta dissertação é uma das diversas sub-pesquisas que compõem o

projeto de parceria institucional para formação de educadores indígenas de Aracruz.

Atualmente os professores, alunos de mestrado e doutorado engajados neste contexto,

acompanham discussões referentes ao currículo.

As seleções dos conteúdos curriculares, e das problemáticas inseridas nas escolas

indígenas, partiram de decisões dos educadores indígenas, resultados de discussões

durante os cursos de formação. Os educadores consideraram, para a construção dessas

seleções, os aconselhamentos dos formadores, os estudos do Referencial Curricular

Nacional para as escolas indígenas (MEC, 1998), as relações que têm com outras

culturas e sua vontade de uma educação diferenciada própria.

Os currículos dessas escolas indígenas são muito semelhantes aos currículos da SEMED

de Aracruz, se diferenciando pelas abordagens específicas, intrínsecas as suas culturas.

Assim são pedagogicamente vivenciadas as problemáticas com caráter interdisciplinar

em um projeto intercultural e bilíngüe que são: os povos Tupinikim e Guarani e a luta

pela terra no contexto nacional; os povos Tupinikim e Guarani em seus aspectos sócio-

político-econômico, no contexto local, regional, nacional e mundial; os povos

Tupinikim e Guarani em suas relações com outros povos indígenas e com a sociedade

regional, nacional e mundial; a interação Tupinikim e Guarani com o meio ambiente da

aldeia.

Com o apoio desses cursos de formação continuada, com o apoio de outras pesquisas

acadêmicas que estão sendo desenvolvidas junto a essa educação diferenciada, no

contexto das parcerias institucionais, os educadores estão ressignificando suas práticas

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educativas, na busca constante de melhor adequação de ensino e aprendizagem,

atendendo às demandas. Mas ainda se conhece pouco sobre concepções, crenças e

atitudes dos educadores indígenas frente às disciplinas que trabalham. Embora haja

alguns registros de como eles observam a importância de algumas disciplinas de seu

currículo.

No que tange à disciplina de Matemática, segundo Documento dos Educadores

Indígenas: um currículo para as aldeias Tupinikim (1999, não publicado, acervo do

IPE), há o seguinte registro:

A matemática é de suma importância para nós índios Tupinikim, pois sempre a utilizamos no nosso dia-a-dia. Os nossos antepassados que viviam aqui antes da chegada dos portugueses utilizavam a matemática para a confecção de artesanatos, na distribuição da caça e da pesca (quando coletiva), nas construções de casas, na agricultura e em outras atividades que faziam parte do cotidiano. Porém, até então, não tinham conhecimento científico da matemática.

Cumpridas as exigências formais para particicipar da formação dos educadores

indígenas de Aracruz, nosso primeiro encontro foi em 18 de junho de 2005, nas

dependências da SEMED do município de Aracruz, com os professores de 5ª série do

ensino fundamental.

Foi a partir deste encontro que intensificaram-se nossos esforços em compreender e

colaborar para que os educadores indígenas e seus alunos, de 5ª e de 6ª série do ensino

fundamental, pudessem conjeturar acerca do significado que eles atribuem à

Matemática, e verificar, se e como, essas concepções, crenças e atitudes refletem nas

suas ações pedagógicas.

A opção por desenvolver essa pesquisa, que trata das concepções, crenças e atitudes,

frente à Matemática, especificamente, junto a educadores matemáticos indígenas

Tupinikim, nasceu da acolhida do convite proposto pela orientadora desse trabalho, Dra.

Circe Mary Silva da Silva Dynnikov, que faz parte do grupo de professores formadores

do Curso de Formação Continuada de Educadores Indígenas de Aracruz – ES.

No nosso primeiro encontro com os educadores, que já tinham manifestado vontade de

refletirem sobre o uso recursos didáticos para o ensino da matemática, a proposta foi de

discutirmos, especificamente nesse dia, como poderiam usar os mapas de suas aldeias

em sala de aula, em como esse material poderia auxiliar na construção de conceitos

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geométricos. Então falamos sobre escala, área, comprimento e a importância de se

discutir sobre localização espacial com os alunos. Isso veio contribuir com o tema

vivenciado da atual problemática do currículo, a luta pela terra.

Terminado este encontro de formação, os dois educadores manifestaram o interesse em

melhorem seu trabalho voltados às atividades interdisciplinares e interculturais, no

âmbito deste currículo.

Os educadores estavam interessados em discutir o papel da matemática para o resgate

de sua história e como a produção, e uso de recursos didáticos, poderiam auxiliar na

transposição didática da matemática em suas salas de aula. Assim, a vontade desses

educadores conhecerem outros recursos didáticos para o ensino da matemática originou

o título desta dissertação, partindo-se do pressuposto que a matemática é também uma

ciência modelada pelas raízes culturais e históricas de uma sociedade. Então fomos em

busca de literatura mais atualizada para o desenvolvimento dos nossos trabalhos como

mostraremos a seguir.

Dessas leituras, vimos então, que nos últimos anos, tem havido esforços, por parte de

um número cada vez maior de educadores e pesquisadores, em valorizar a

aprendizagem matemática, envolvendo domínios como o cognitivo, o social, atitudes,

crenças e valores, trazendo à luz, pelos sujeitos envolvidos, esses atributos “sentidos”

durante a interação entre eles, na relação didática com a matemática.

Essa tendência reflete a necessidade de um movimento de mudança pelo qual tem

passado a filosofia e a epistemologia matemáticas e tais pesquisadores, como McLoad

(1990), Thompsom (1992), Ponte (1994), Chacón (2003), Gusmàn (1993), Cury (2002),

Brito (2001), Matos (1992), entre outros, mostram em suas publicações, a interferência

de fatores que facilitam o ensino e a aprendizagem da matemática. Os resultados de

pesquisas com esse tipo de foco, procuram contribuir para a aprendizagem tácita da

matemática. Investigar tais atributos é importante, pois

enquanto não tivermos uma idéia mais clara de como os professores modificam e reorganizam as suas crenças na presença das exigências e problemas de sala de aula e, inversamente, como é sua prática influenciada pelas suas concepções relativamente à Matemática, não podemos afirmar compreender a relação com as práticas (Thompson, 1992, p. 21).

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Sabemos que existe uma série de aspectos a serem considerados em estudos de

concepções dos professores, sobre o ensino e aprendizagem da matemática, o que inclui

o papel da própria escola, que perpassa pela cultura onde está inserida, pela formação de

professores e de suas abordagens pedagógicas. Ainda, acreditamos que refletir, e

interferir nesses aspectos, propicia transformações positivas no processo educativo, pois

a matemática é um assunto acerca do qual é difícil não ter concepção. É uma ciência muito antiga, que faz parte do conjunto das matérias escolares desde há séculos, é ensinada com caráter obrigatório durante largos anos de escolaridade e tem sido chamada a um importante papel de selecção social. Possui por tudo isso, uma imagem forte, suscitando medos e admirações (Ponte, 1992, p. 186).

Segundo Chacón (2003), em geral, os educadores e pesquisadores buscam, na

integração cognitivo-afetivo, a possibilidade de recriar de forma efetiva o cotidiano

pedagógico, uma vez que essa integração conduz a compreensões do sucesso de

normalmente poucos alunos, e do fracasso de muitos, que muitas vezes não

correspondem aos seus desenvolvimentos cognitivos.

Buscando-se tornar o ensino da matemática mais significativo para os alunos, discute-se

novas metodologias em pesquisas recentes na Educação Matemática. Estas sugerem que

a aplicação destas metodologias permite também o desenvolvimento da capacidade

exploratória e inquiridora dos alunos, o que contribui para o despertar cognitivo, como

observada nas falas dos professores Hassane Squalli e Olive Chapmam2.

Chapmam (2005) acredita que reflexões acerca de concepções, crenças e atitudes frente

à matemática, podem servir de referências para construção de críticas quanto a certos

métodos de ensino-aprendizagem. Essas reflexões podem ser consideradas como

determinantes na qualidade de aprendizagem. Acreditamos que o uso de alguns recursos

didáticos específicos pode lançar uma luz sobre algumas estratégias de intervenção no

ensino, que devem ser utilizadas para a construção de uma comunidade matemática em

sala de aula.

Chapman (2005), em um de seus estudos realizados sobre as concepções de Matemática

de educadores e de seus alunos, em um curso de formação para esses atores, observou

“o gostar” da disciplina das crianças, diante de recursos didáticos, a partir de propostas

2 Palestras oferecidas pelo PPGE – UFES em 27/10/2005 e em 24/05/2005 respectivamente pelos educadores citados

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de investigações de alguns conceitos, no âmbito da linguagem matemática. Por

exemplo, investigaram o significado do sinal de igualdade, de algumas figuras

geométricas, como ângulos e quadriláteros, e perceberam a construção de polinômios.

Além de um local de aprendizagem e ensino, a escola e os cursos de formação para os

educadores, mais precisamente as salas de aula, pode ser um contexto ideal para a

organização e reflexões do desenvolvimento de concepções, crenças e atitudes dos

agentes envolvidos frente à matemática. Reflexões que podem gerar ressignificações

que, segundo Fiorentini e Carneiro de Castro (Fiorentini (org.), 2003, p.127), “A

ressignificação diz respeito ao processo criativo de atribuir novos significados a partir

do já conhecido, validando um novo olhar sobre o contexto em que o sujeito está

imerso.”

Partindo-se do que aqui está posto e, considerando ainda, que a matemática está

intimamente ligada à interação social e ao contexto cultural, entendemos que seria

interessante, durante um curso de formação continuada para dois educadores indígenas

Tuipinikim, de 5ª e 6ª séries do ensino fundamental, tratarmos acerca da dimensão

afetiva desses educadores, e de seus alunos, frente à matemática. Assim, focando suas

concepções, crenças e atitudes, também a partir de observações, no processo ensino-

aprendizagem da disciplina, em um currículo que contempla suas problemáticas.

Atendemos também à curiosidade em sabermos se essas escolas indígenas se

preocupam em trazer para o seu cotidiano, a matemática de seus ancestrais.

Para o levantamento desses significados usamos como aporte, ou mediação, a

elaboração de recursos didáticos, que foram desenvolvidos pelos educadores nos

encontros de formação continuada. Assim, num segundo plano, além de coletar os

dados através de instrumentos de pesquisa, para sabermos quais os significados que

esses educadores e seus alunos deram à matemática, procuramos entender como foram

utilizados os recursos didáticos por eles produzidos, se é algo que faz parte de sua

específica cultura, e como se oportunizaram de tais significados. Tudo isso, na

observância e no acompanhamento do trabalho diário desses educadores, neste contexto

específico, nas escolas das comunidades indígenas Tupinikim de Aracruz – ES.

Neste trabalho adotamos uma definição vygotskyana para recurso didático, que por sua

vez, alargam o domínio da linguagem matemática, já que “[...] são alguns dos meios

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pelos quais as crianças entram em contato com os conteúdos culturalmente construídos

e, por meio deles também, se apropriam desses conteúdos.” (Neves, 2005, p. 4). Isto é,

os recursos didáticos formam, junto com o mecanismo de comunicação, o núcleo pelos quais são colocados em contato o agente de ensino e os agentes de aprendizagem. São, portanto, elementos em que as duas partes que intervêm na ação didática outorgam valores e funções específicas nem sempre coincidentes (Chacón, 2003, p. 188).

As Razões da Pesquisa

Problema/Pergunta

Sabe-se que alguns educadores, tendo ou não cursos de formação continuada,

apresentam os conteúdos matemáticos como um conjunto de temas misteriosos,

desconectado da realidade, que os alunos não entendem e, normalmente, não percebem

nenhuma aplicação real e prática. Isso acontece, paradoxalmente, em uma sociedade

cada vez mais matematizada, num momento em que a matemática está cada vez menos

visível aos olhos humanos, escondida por trás da máscara da tecnologia.

Nossa proposta foi então de possibilitar discussões e reflexões para esses dois

educadores indígenas, sobre suas ações em sala de aula, sobre suas experiências diárias,

na condução de sua atividade, na abordagem de conteúdos matemáticos para seus

alunos. Assim, esse trabalho objetivou uma busca de respostas para a pergunta central:

Em que aspectos a oportunidade de elaborar e aplicar recursos didáticos no

ensino-aprendizagem de Matemática dentro de uma formação continuada para

educadores indígenas, torna visíveis concepções, crenças e atitudes desses

educadores frente à Matemática?

Questões

Para melhor vislumbrarmos respostas à pergunta central, tentando não nos afastarmos

da definição adotada para recursos didáticos, entendemos que as respostas da questão

central poderiam ser conduzidas por cinco questões específicas, pertinentes nos aspectos

da teoria, no campo sócio-histórico-cultural e na prática. Assim, questionamos

inicialmente:

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1. A elaboração de recursos didáticos de matemática, durante um curso de

formação para os educadores indígenas, propicia a identificação de

concepções, crenças e atitudes suas e de seus alunos sobre a matemática?

Para que essa pergunta fosse respondida tivemos necessidades de clareza dos

significados desses construtos, uma vez que observamos mais de uma interpretação para

concepções, crenças e atitudes na bibliografia já existente, no campo teórico-conceitual.

Para nortear nossas respostas optamos por questionar, num segundo momento, por

existir um interesse explícito ao resgate da cultura:

2. A elaboração de recursos didáticos de matemática, durante um curso de

formação para os educadores indígenas, propicia reflexões por parte dos

educadores acerca de sua formação e do conhecimento da matemática de

seus ancestrais? Quais?

Sabemos que os índios constroem ocas, canoas, armas de caça, de pesca, utensílios de

barro, pintam o corpo, etc. Logo, essa arte trás consigo alguns conceitos matemáticos

imbricados em sua cultura, apesar de que, quando adentramos nas aldeias indígenas de

Aracruz, encontramos os índios ou as índias vestidos de calças ou saias jeans, camisetas

ou blusas e vestidos da moda, ao mesmo tempo em que estão com os braços ou pernas

pintados, seguindo suas tradições. Podemos ver as crianças usando brinquedos

industrializados assim como artesanais, como chocalhos, ou usando jogos com

sementes, com regras de sua cultura. Os utensílios domésticos, como geladeira, fogão a

gás, televisão, panelas e talheres de alumínio se misturam ao uso do artesanato advindo

de costumes ancestrais, ou de subsistência.

No contato intercultural entre esses índios surge o resgate do bilingüismo, o que mostra

que permanece vivo entre eles a vontade de um resgate sócio-histórico-cultural próprio.

Citamos o fato da disciplina de Tupi fazer parte do currículo escolar em suas escolas.

Assim, as comunidades indígenas locais, discutem sua maneira específica de viver e a

importância de que alguns costumes ainda façam parte de suas vidas. Nessa linha de

pensamento, verificamos se as informações dadas pelos índios mais velhos, de como era

vivenciada a matemática de seus ancestrais, ou como é utilizada em sua cultura até os

dias atuais, são usadas enquanto recursos didáticos, quando da abordagem da

matemática em sala de aula. Verificamos se tais procedimentos, na atribuição do uso de

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recursos didáticos, geram reflexões por parte dos educadores, e dos educandos, em sala

de aula, focando-se no entendimento de suas problemáticas, o que justifica a terceira

questão:

3. A elaboração de recursos didáticos oportuniza caminhos que possam

interligar os estudos das problemáticas presentes no currículo indígena?

Para responder as três questões citadas objetivou-se com os educadores indígenas um

trabalho de reflexão acerca de suas concepções, crenças e atitudes frente à Matemática a

partir da elaboração de recursos didáticos para o ensino. Se o uso desses recursos na sala

de aula suscitou essas reflexões também por parte de seus alunos. Para tanto, fizemos

uma coleta de dados através de dinâmicas e questionários, tanto nos encontros de

formação continuada, como nas observações de seu trabalho com os alunos na sala de

aula, assim como, junto a dois anciãos residentes em cada uma das quatro das aldeias

Tupinikim no intuito de verificarmos:

4.a Que concepções, crenças e atitudes frente à Matemática os anciãos das

aldeias Tupinikim demonstram em sua fala?

4.b As concepções, crenças e atitudes frente à Matemática dos educadores e dos

alunos indígenas se assemelham ou se diferenciam com as dos anciãos?

Não é incomum encontrarmos professores de matemática, em muitas escolas brasileiras,

que trabalham, a partir das primeiras séries da segunda fase do ensino fundamental, sem

formação específica em Licenciatura de Matemática. No entanto, desempenham tal

trabalho. Os nossos sujeitos de pesquisa, que lecionam matemática nas 5ª e 6ª séries, são

exemplos deste fato. Ambos têm formação acadêmica em Ciências Contábeis, que tem

em sua grade curricular disciplinas de matemática.

Independente de diferentes tipos de formação acadêmica que os educadores possam ter

tido ou têm, sabemos que existem possibilidades, durante seus ensinamentos de

matemática, de imitarem àqueles que lhes ensinaram outrora, durante sua formação

inicial.

O fato de terem essa formação, tanto inicial quanto acadêmica, talvez seja um dos

motivos de interesse desses dois educadores, em freqüentarem, para melhoria de seu

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trabalho em sala de aula, os cursos de Formação Continuada para Educadores Indígenas,

lugar onde também se discute o uso de diferentes recursos didáticos para o ensino e

aprendizagem da matemática. Posto isso, lançamos nossa última questão:

5. A elaboração de recursos didáticos oportuniza, para o educador Tupinikim,

reflexões acerca das relações entre sua formação inicial e seu conhecimento

matemático?

Para que a pergunta central fosse respondida, a partir dessas cinco questões, foi

necessário um entendimento dos aspectos cognitivos, que estão por detrás do que

questionamos que recai no entendimento dos aspectos culturais, sendo bem-vindos

assim os aportes teóricos, principalmente de Vygotsky e de Geertz.

Entendemos que as observações junto a esses aspectos, nos levaram a refletir que essa

última questão poderia ser mais um apoio para desvelarmos nosso objeto de pesquisa.

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CAPÍTULO II

FUNDAMENTOS TEÓRICOS, METODOLOGIA E REVISÃO DE LITERATURA

Nossa intenção inicial neste trabalho era desenvolver uma pesquisa qualitativa de cunho

participante. Mas, nos nossos primeiros contatos com as comunidades indígenas

Tupinikim, se estabeleceu uma aceitação interpessoal de empatia. No decorrer da

pesquisa, essa relação ficou ainda mais estreita. As pessoas com quem tivemos mais

aproximação nos acompanharam, e nos apresentaram, para alguns dos nossos sujeitos

de pesquisa, pessoas da comunidade, que vivem nas quatro aldeias indígenas. Foi assim

que visitamos muitas famílias, sentamos às suas mesas, desfrutamos de saborosas

refeições, compartilhamos momentos agradáveis de longas conversas, durantes muitas

tardes. E, por vezes, aceitamos convites para jantar. Conversamos sobre seus problemas,

seus sucessos e insucessos, como vivem no seu cotidiano, sobre suas expectativas e

esperanças de uma vida melhor para seu povo. Nas escolas, junto aos educadores, essa

reciprocidade não foi diferente. Essa relação agradável iniciou em junho de 2005,

quando do início dos trabalhos, e nos acompanha até os dias de hoje.

Apesar de termos discutido um cronograma inicial para o desenvolvimento da pesquisa,

pré-estabelecendo as datas das nossas idas às aldeias, no mínimo, essas triplicaram, por

conta da amizade e fraternidade que ia se fundamentando durante nossa caminhada na

investigação. Então, algumas vezes, o objetivo das nossas idas ia para além dos

objetivos iniciais propostos para o trabalho. Era também para visitarmos e estarmos na

companhia dos novos amigos, num encontro informal e festivo.

O receptivo foi tão formidável, e favorável, que nos permitiu mudar nossa perspectiva

metodológica, recaindo no desenvolvimento de um trabalho do tipo etnográfico que,

segundo Mugrabi e Doxey (2003), pretende descrever de forma holística, detalhada e

sistemática, os elementos, atributos, contexto, condições, tendências de um fenômeno

ou área de interesse.

Associamos o entendimento de etnografia desses autores às constatações de Geertz

(1989) para esta metodologia. Essa associação nos ajudou no desenvolvimento das

análises dos instrumentos, e das nossas observações, mais à frente exposto. Ele afirma

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que a descrição etnográfica possui três características – e aponta uma quarta, de caráter

mais pessoal. Assim, para Geertz (1989), a etnografia

é interpretativa; o que ela interpreta é o fluxo do discurso social e a interpretação envolvida consiste em salvar o “dito” num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis[...]. Há ainda, um aditamento, uma quarta característica de tal descrição, pelo menos como eu a pratico: ela é microscópica (Geertz, 1989, p. 15).

Geertz (1989) esclarece alguns detalhes da etnografia e nos diz que a descrição

etnográfica depende das qualidades de observação, de sensibilidade ao outro, do

conhecimento sobre o contexto estudado, da obtenção de uma descrição densa, a mais

completa possível sobre o que um grupo particular de pessoas faz e o significado das

perspectivas imediatas que eles têm, do que eles fazem. O objeto da etnografia é esse

conjunto de significantes em termos, dos quais, os eventos, fatos, ações, contextos, são

produzidos, percebidos e interpretados, sem os quais não existiriam como categoria

cultural. Isso nos levou a lançarmos mais um capítulo, onde registramos a atual

condição dos Tupinikim em Aracruz segundo sua linguagem, sua religião, sua moradia,

seus hábitos e costumes.

Nos preocupamos, desde o início dos nossos trabalhos, em termos uma visão holística

ou dialética desta cultura indígena, seja em introduzirmos os atores sociais e seu

cotidiano na pesquisa, com uma participação ativa e dinâmica, seja em registrarmos

nossas experiências ao longo do caminho.

O estreitamento amigável nas relações interpessoais dos Tupinikim conosco, que foram

sendo conquistadas durante esse processo, sem dúvida, leva o mérito da possibilidade

do método. Essa convivência social abriu portas para o nosso entendimento do tipo de

vida cotidiana que os Tupinikim têm nas suas aldeias. As inúmeras conversas nos

auxiliaram na elaboração de novos questionamentos de investigação, principalmente no

momento de nossas entrevistas semi-estruturadas junto aos anciãos, gravadas em áudio.

O bom relacionamento contribuiu também, para o esclarecimento das análises dos

instrumentos estruturados, respondidos pelos educadores e pelos seus alunos, além de

enriquecer o momento da triangulação das análises individuais dos instrumentos, de

forma mais consistente. Finalmente, nos permitiu uma visão holística também dos

momentos de observações, nas salas de aulas de matemática, durante o curso de

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formação assim como no que tangia as escolhas e elaboração de recursos didáticos e na

sua aplicação para as crianças. E observamos que isso poderia desenvolver a

reflexividade desses atores quanto ao seu ensino de matemática, na ação do seu trabalho

em sala de aula, considerando sua ética organizativa social. Dialeticamente, cruzamos as

informações dos sujeitos da pesquisa.

Essa metodologia implicou na tentativa constante de entendermos as pessoas, não suas

personalidades, mas as pessoas como seres embutidos em redes de significados.

Tínhamos que pensar nas pessoas como elas se identificam.

Por último, o estreitamento das nossas relações interpessoais com esses educadores foi

igualmente favorável, para o tratamento das interpretações que perfizeram as nossas

análises, das suas concepções, crenças e atitudes de matemática. Essas ocorrências

foram associadas ao nosso interesse na verificação, se as concepções, crenças e atitudes

frente á matemática, dos educadores e de seus alunos, pudessem ser relacionadas às

notícias dos mesmos aspectos, provenientes da comunidade de anciãos, informações

que algumas vezes foram colhidas naturalmente, sem a existência de questionamentos,

embutidas, naturalmente, em conversas amigáveis.

Os Construtos

Durante nossas conversas, foi dada relevância às considerações para os construtos de

crença, concepções e atitudes frente à matemática. Mas, qual o significado desses

construtos na visão de alguns pesquisadores? E como esses estudos estão contribuindo

para o melhor entendimento e avanço da Educação Matemática, principalmente nos

cursos de formação de professores para o ensino e aprendizagem da Matemática? Para

percebermos tais relevâncias, e entendê-las melhor, inicialmente, pontuamos algumas

características da importância de cursos de formação de professores, visto que é a

formação que mais pode contribuir para o processo de elaboração desses construtos,

segundo os estudos de muitos pesquisadores elencados na nossa bibliografia.

O pesquisador português João Pedro da Ponte é um dos autores que se debruça sobre

questões de concepções, crenças e atitudes dos professores relativas à Matemática, num

cunho epistemológico sobre a natureza do saber matemático, e de seus saberes

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profissionais, no seu processo de ensino-aprendizagem na disciplina. Esses aspectos são

mostrados em várias de suas publicações de artigos científicos – alguns, publicados na

Revista Quadrante, com mais freqüência, no ano de 2004. Em um desses artigos,

Práticas profissionais dos professores de Matemática, Ponte (2004) esclarece no texto:

Os estudos considerados mostram que as práticas actuais dos professores são ainda predominantemente marcadas por um estilo de ensino expositivo, baseado na resolução de exercícios e que pouco recorre a materiais para além do quadro, giz e manual, prevalecendo uma comunicação unidireccional, uma preocupação somativa na avaliação, o estilo de trabalho individualista e a formação desligada das práticas lectivas. No entanto, evidenciam-se sinais de novas práticas, envolvendo uma diversificação de tarefas, uma comunicação mais partilhada, uma maior atenção aos aspectos formativos da avaliação e um reconhecimento do interesse da colaboração profissional, aspectos que são, de resto, bem visíveis em alguns dos estudos naturalísticos realizados. O artigo conclui pela necessidade de se realizarem novos estudos, que permitam traçar um quadro mais nítido da situação e compreender quais os factores que para ela contribuem e que podem ou não facilitar a respectiva mudança (Ponte, J. P. & Serrazina, Quadrante, 13(2), p. 51).

Neste contexto, Ponte (1992, p. 191) comenta da importância de se discutir tais

aspectos, em Cursos de Formação para Professores, para tratar-se das concepções,

crenças e atitudes dos educadores. Em um outro texto, o mesmo autor revela a

importância da discussão prévia sobre as três escolas de pensamento no que se refere à

natureza do conhecimento de visão: empirista – que vai se formando através da

experiência; inatista – estruturas geneticamente pré-programadas; e construtivista –

cujos aspectos fundamentais do conhecimento não vêem pré-formados nos genes, nem

são diretamente adquiridos do mundo exterior, mas que são antes construídos pelo

próprio indivíduo. Explicando como cada uma das abordagens tem os seus méritos e as

suas insuficiências, prefere adotar uma perspectiva mais eclética para o

desenvolvimento de seu estudo, no foco das concepções e crenças dos professores de

matemática.

Ponte (1992) propõe então, um discernimento do significado de conhecimento, do ponto

de vista macro e micro. Para ele, para se conhecer as concepções dos professores, é

necessário antes, que se estabeleçam as diferentes naturezas de alguns saberes. Assim,

do ponto de vista macro, com características distintas, Ponte aconselha que os

professores devam ter bem presentes os significados de saber e os pontua: o saber

científico, o saber profissional e o saber comum.

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Partindo da conjuntura de que a atividade científica é o esforço da racionalização, pela

argumentação lógica e pelo confronto da realidade empírica, cita Hawkins et al.(1982):

O conhecimento científico não pode prescindir de se apoiar ele próprio em crenças (no sentido de proposições não demonstradas, muitas delas não demonstráveis). Mas deve realizar-se na consciência de que se realiza com este apoio e estar pronto a rever seus pressupostos e quadros de referência, se tal for indispensável (Ponte, 1992, p. 194).

Para o saber profissional, Ponte (1992, p. 194) comenta: “a atividade profissional3 é

marcada pela acumulação duma grande experiência prática num dado domínio, que

será tanto mais eficaz quanto mais se puder se referir a conhecimentos de ordem

científica”. Ponte aponta Schoon (1991), que “caracteriza o conhecimento profissional

como artístico que se baseia, por um lado do conhecimento científico, e por outro,

numa dimensão tácita e intuitiva que se desenvolve através da prática e de várias

formas de reflexão sobre a prática”.

Já o conhecimento comum, é entre os demais, o menos exigente. Esclarece que os

conhecimentos comuns vão se articulando com a interpretação das experiências de

natureza mais imediata. Na sua construção tem papel decisivo nos processos de

socialização, portanto na cultura.

No universo do ponto de vista “micro”, Ponte (1992) distingue quatro tipos de

conhecimento, intimamente relacionados: o descritivo, envolvendo conceitos e imagens;

o proposicional ou argumentativo, envolvendo cadeias de raciocínio; o ativo e

processual, o saber fazer, as regras de ação e, por último, o controle e a reflexão.

Por fim, em relação ao conhecimento matemático, enuncia e distingue quatro elementos

constitutivos do saber matemático, de acordo com sua função e nível de complexidade:

as competências elementares; intermediárias e complexas e, por último, os saberes de

ordem geral, isto é:

As competências elementares implicam processos de simples memorização e execução. As competências intermédias implicam certo grau de complexidade, mas não exigem muita criatividade. As competências complexas implicam uma capacidade significativa de lidar com situações novas. Finalmente, os saberes de ordem geral incluem os meta-saberes, ou seja, saberes com influência nos

3 Profissionais são de acordo com Everet, pessoas cuja atividade envolve um conhecimento extraordinário em matéria de grande importância humana (Shoon, 1987, p.32, apud Ponte, 1992, p. 194).

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próprios saberes e nas concepções. Enquanto os três primeiros níveis representam uma progressão em termos de complexidade natural, o quarto desempenha um papel essencialmente regulador (Ponte, 1992, p. 202).

Assim, se alicerça nesses aspectos e em pesquisas anteriores, para o desenvolvimento de

sua investigação relativa às concepções dos professores sobre o ensino e aprendizagem

matemática, salientando:

Uma boa parte da investigação que tem sido realizada em matéria de concepções e conhecimentos profissionais pressupõe, pelo menos implicitamente, que se tratam de matérias essencialmente do foro individual. Trata-se duma perspectiva altamente limitadora, que exclui o contributo dos fatores sociais, [...] Mas o conhecimento tem também uma importante dimensão pessoal. É fundamental distinguir entre o saber que é imposto ao indivíduo pelo contexto social e cultural e com o qual ele não se identifica e aquele que por ele é desenvolvido ou apropriado4 como seu. Perante a um dado saber é pertinente perguntar: Permite à pessoa fazer o quê? Para ela que significado tem? É ou não gerador de novas dimensões de compreensão e acção? Essa dimensão individual, em termos de pertença e apropriação, é tão decisiva como a dimensão social (Ponte, 1992, p. 198).

Dar importância à cultura para a construção do saber, ou supor que as concepções e os

saberes têm um importante caráter coletivo para Ponte, equivale a assumir que eles

encontram a sua origem nas estruturas organizativas, nas relações institucionais, e nas

dinâmicas funcionais em que estão integrados os seres humanos. “Geram-se nas

interacções inter-individuais e a sua evolução é muito marcada pelas dinâmicas

colectivas” (Ponte, 1992, p. 198).

O ensino e a aprendizagem da matemática durante a formação inicial, ou em formação

continuada de professores, está se firmando cada vez mais, como lugar de área de

pesquisa para a busca de melhoria de ensino. Sabemos que têm sido exigidas

competências do professor, para as quais nem sempre está apto, pois sua formação

inicial não lhe deu, e a continuada, quando existe, nem sempre aborda essas questões

com a profundidade necessária para àqueles que buscam a formação.

Apesar disso, os Cursos de Formação Continuada estão sendo vistos como relevantes

para a melhoria do ensino e da aprendizagem da matemática no Brasil. Alguns

resultados positivos já são descritos em recentes publicações, como no livro de

Fiorentini et al (2005), por exemplo. 4 A apropriação de uma idéia ou de um instrumento poderá ser vista como consistindo em seu domínio progressivo, criando cada vez mais oportunidade de pensamento, acção e criação (Ponte, 1992, p. 198).

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Esta obra propõe reflexões acerca das situações do cotidiano profissional dos

educadores. Num momento, aponta que estes, quando são questionados ou quando se

deparam diante de dilemas que suscitam dúvidas, promovem argumentação, gerando

processos e produtores, criando situações e sujeitos que fazem história.

Lopes (2005, In Fiorentini, 2005, p.118) cita que educadores que freqüentam cursos de

formação, em geral, talvez por influência de estudos que esses cursos propõem,

estabelecem objetivos claros para suas aulas, levando em conta o respeito, aos saberes

que as crianças trazem para a escola, associando seu conhecimento profissional

referente ao currículo, proveniente de resultados de discussões nas classes de formação.

Lopes (2005), no mesmo artigo, aborda um estudo de caso inserido num curso de

formação de professores de séries iniciais. Relata a constatação da interdependência

entre as educadoras participantes do grupo com a investigadora-formadora. Ao mesmo

tempo em que se desenvolveu a independência de cada educador e da pesquisadora. Que

os fundamentos disso podem estar nos afetos interpessoais e nos afetos pela matemática.

Nesse sentido, a autora, evidenciando o potencial do trabalho colaborativo, aponta:

A realização de projetos colaborativos, envolvendo docentes e pesquisadores pode contribuir de maneira decisiva para o desenvolvimento profissional dos professores que deles participem. Pode constituir, igualmente, um contexto favorável à ampliação do conhecimento do pesquisado, uma vez que proporciona situações construtoras de informações mais férteis que as centradas apenas em entrevistas ou observações distanciadas (Lopes, 2005, p. 118).

Chacón (2003) tratando especificamente, do estado emocional de quem resolve os

problemas matemáticos, explica as duas estruturas de afeto no sujeito, a local e a global.

Tem como afeto local os estados de mudança de sentimento ou reações emocionais

durante a resolução de problemas. Enfatiza que para conhecer-se e compreender a

dimensão afetiva do estudante em relação à matemática é necessário, para uma melhor

apreciação de resultados, que sejam consideradas em cenários mais complexos, que

chama de aspecto global, que permitam contextualizar as reações emocionais na

realidade social que as produz, isto é,

O afeto global é entendido como o resultado das rotas seguidas (no indivíduo) no afeto local, estabelecidas com o sistema cognitivo, que vão contribuindo para

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a construção de estruturas gerais do conceito em si mesmo5 e para as crenças sobre a matemática e sua aprendizagem. É importante conhecer e compreender o sistema de valores, idéias e práticas do contexto (da cultura), pois estes cumprem a função de estabelecer a ordem que permite o indivíduo orientar-se e proporciona-lhe um código de comunicação. Portanto parece conveniente que, ao trabalhar a dimensão afetiva e a matemática, duas estruturas de afeto sejam trabalhadas: a local e a global. Essa última implica ver a pessoa em situação, conhecendo os sistemas de crenças do individuo (crenças como aprendiz de matemática, crenças sobre a matemática, crenças sobre o contexto escolar), as representações sociais e o processo de construção da identidade social do sujeito (Chacón, 2003, p. 55).

Neste contexto, para efeito de nossas análises, neste trabalho, adotamos os construtos de

concepções de Ponte e Pajares (1992), atitudes de Matos (1992) e de crenças, de Chacón

(2003), descritos a seguir. A partir dessa escolha foi que construímos e refinamos o

nosso processo de análises dos resultados dos levantamentos realizados, acerca das

concepções, crenças e atitudes, frente à Matemática dos educadores indígenas de 5ª e 6ª

séries do Ensino Fundamental, de duas escolas indígenas das aldeias Tupinikim de

Aracruz. Partimos da idéia básica de que os fenômenos educativos são os que

determinam os procedimentos metodológicos e não o contrário.

As Crenças e as Concepções

Nem todos os autores concordam com o mesmo significado de crença. Para (Pajares,

1992, apud Chacón, 2003, p. 62), crenças são as verdades pessoais indiscutivelmente

sustentadas por cada um dos sujeitos, derivadas da experiência e da fantasia, que tem

um forte componente afetivo e avaliativo. Pajares justifica que as crenças se

manifestam através de declarações verbais e de ações. Para ele, as concepções são

esquemas implícitos de organização de conceitos, que tem essencialmente natureza

cognitiva. Crenças e concepções são parte do conhecimento.

Ponte (1992) afirma que em todo conhecimento intervêm necessariamente crenças, pois

sem elas o ser humano ficaria paralisado, sem ser capaz de determinar cursos de ação.

Nesse sentido, aponta o discernimento de Alba Thompson (1992):

5 A crença em si mesmo como bom (ou mau) resolvedor de problemas; a expectativa de sucesso ou fracasso diante de um problema matemático, e a antecipação de sentimentos, emoções ao começar, no decorrer ou ao finalizar a atividade matemática, a identidade social, etc

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Alba Thompson (1992) distingue conhecimento e crença, associando o primeiro a critérios de validade, inexistentes para o segundo. No entanto, o conhecimento pode ser visto em termos de uma correspondência com o mundo material ou com práticas sociais, sendo sua validade indicada em termos de “eficiência”, “operacionalidade” e não em termos de “certo” ou “errado”. Nesta perspectiva não há que opor crenças e conhecimento. As crenças não têm suporte empírico que as valide – são criações livres da imaginação humana (individual ou coletiva). Constituem apenas uma forma primitiva de saber (Ponte, 1992, p. 195).

Ponte, seguindo Pajares, distingue crença de concepção, situando as crenças em um

domínio metacognitivo e as concepções num cognitivo, embora admita a freqüente

justaposição desses domínios, entendendo por muitas vezes como não vazia, a

intersecção entre crenças e concepções. Acredita que nessas condições, não há

necessidade de distinguir como incompatível, as crenças e o conhecimento, e

[...] as crenças podem ser vistas como uma parte do conhecimento relativamente “pouco elaborada”, em vez de os ver em dois domínios disjuntos. Nas crenças predominaria a elaboração mais ou menos fantasista e a falta de confrontação com a realidade empírica. No conhecimento mais elaborado de natureza prática predominariam os aspectos experienciais. No conhecimento de natureza teórica predominaria a argumentação racional (Ponte, 1992, p. 195 – 196).

Para Ponte (1992) concepções são os marcos organizadores implícitos de conceitos,

com natureza essencialmente cognitiva e que condicionam a forma como enfrentamos

as tarefas. No entanto, para Thompson (1992) tanto as concepções como as crenças têm

um componente cognitivo, a distinção entre ambas reside em que as primeiras são

mantidas com plena convicção, são consensuais e têm procedimentos para avaliar e

julgar sua validade, já as segundas não.

Em consenso, os dois autores afirmam que as concepções podem influenciar as práticas,

apontar caminhos fundamentando decisões. Ao mesmo tempo em que as práticas são

condicionadas por uma série de fatores e, num caminho contrário dessas reflexões,

geram ressignificações constantes, já que as concepções não constituem uma entidade

estática.

Concordamos com Chacón (2003), quando diz que as crenças podem produzir impactos,

produzir movimentos, evoluções, no ensino da matemática. Assim como a autora,

consideramos o professorado como elemento crucial, na produção de mudanças em

didática da matemática e nas reformas educativas. Entendemos que os avanços, em

grande parte, dependem, essencialmente, das mudanças produzidas no professor, como

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indivíduo social, em sua aproximação ao ensino e à aprendizagem da matemática. E,

que isso, pode ocorrer a partir de discussões sobre suas crenças diante da matemática.

Chacón (2003, p. 64).

Para a autora, as práticas de ensino da matemática dependem, em grande parte, de uma

série de elementos-chave, destacando como mais significativos: os esquemas mentais,

os sistemas de crenças do professor referente ao ensino e à aprendizagem matemática; o

contexto social da situação de ensino ou o contexto social no qual o aluno chega ao

conhecimento e, por último, o nível de processos de pensamento e de reflexão do

professor.

Explica que esses elementos-chaves determinam a autonomia do professor e incidem

nas propostas de inovação. Apesar de nos esquemas mentais estarem embutidos, os

conhecimentos de matemática e as crenças, que os conhecimentos matemáticos são

importantes, os fatos demonstram que as diferenças significativas produzidas nas

atuações do professor estão marcadas pelas crenças sobre a matemática, e sua

aprendizagem.

Nesse sentido, é provável que a formação inicial do professor possa ser fundamental no

seu processo geral de formação, uma vez que o professor pode levar consigo seu

repertório de idéias, ou conceitos, sobre o ensino e aprendizagem da matemática, o seu

significado de educação, de escola, de mundo, herdados neste contexto.

Ponte (1992) assume dificuldades para desvelar as reais concepções dos professores

frente à matemática e nos diz que, pesquisas como essas se deparam com sérios

problemas, pois as pessoas raramente estão à vontade para exporem as partes mais

íntimas do seu ser. Sabe-se que elas têm de um modo geral, dificuldades em

expressarem as suas concepções, naqueles assuntos em que habitualmente não pensam

de forma muito reflexiva. Portanto, a identificação das concepções, exige uma

abordagem especialmente imaginativa. E aconselha, para se chegar a essas

identificações, que se usem entrevistas, propostas de tarefas, situações e questões

indiretas selecionadas, de modo que possam ser reveladoras, que possam ajudar as

concepções a evidenciarem-se. E afirma:

O refúgio ao “senso comum” profissional estabelecido, dizendo as coisas que parecem socialmente mais aceitáveis, pelo menos em termos de seu grupo de

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referência, é a estratégia mais previsível por parte dos participantes nestes estudos. Para ir mais além é indispensável estabelecer com eles uma relação que ajude a quebrar as barreiras da convencionalidade, e que estabeleça uma cumplicidade num esforço comum de descoberta (Ponte 1992, p. 231).

O autor entende que compreender as realidades do mundo dos que vivem o dia-a-dia das

escolas é uma condição indispensável pra as transformações de realidades, não cabendo

aos pesquisadores traçar as linhas normativas do que deverá ser a função docente ou a

nova cultura profissional dos professores. Mas de seu esforço de compreensão,

desenvolvido de forma cooperativa e articulada com os próprios interessados, pois isso

poderá ter importantes conseqüências na evolução do sistema educativo.

As Atitudes

Para João Filipe Matos (1992) os conceitos de concepções e atitudes têm diferentes

origens e seus significados não são consensuais.

O autor mostra os conceitos de atitude em oposição, uma como perspectiva de raiz

claramente behaviorista em que a atitude é considerada como uma resposta das pessoas

a estímulos exteriores e outra, oposta, é uma conceituação de natureza construtivista em

que as atitudes são consideradas como parte integrante da construção pessoal dos

objetos, pessoas e situações. Considera que nessa última linha de pensamento surgem

ainda diversas conceituações que tornam mais relevantes e salientes por um lado os

aspectos afetivos, e em particular, os estados emocionais, e por outro a influência da

interação social na construção das atitudes. Preferencialmente, considerar-se-á o

segundo conceito para o desenvolvimento deste trabalho.

Monteiro (1992) com arrimo nos estudos de Ponte, traz à luz as práticas – atitudes – dos

professores para identificar concepções e justifica:

Ao dizer que concepção é um extrato cognitivo, em evolução, nem sempre consciente e racionalizado pelo indivíduo, condicionando, no entanto as suas acções dá-lhe um sentido algo indefinido e, portanto completamente distinto das práticas. Na verdade ao abordar a relação entre concepções e práticas, retomando a eterna questão se são as concepções que determinam as práticas ou se são essas que condicionam as concepções, parece-me não ter excluído a relação dialética entre ambas. Parece ainda assim haver tendência de se crer, até pelos exemplos que deu de investigações levadas a cabo neste domínio, que são

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as concepções que determinam mais fortemente o modo como o professor age na sua prática pedagógica e não o contrário (Monteiro, 1992, p. 242).

Com esse aporte literário que nos aproximamos dos nossos sujeitos de pesquisa que

destacamos a seguir.

Sujeitos: • Dois educadores Tupinikim de Matemática de 5ª e 6ª séries do Ensino

Fundamental;

• Oito anciões, dois de cada uma das aldeias Tupinikim, Caieiras Velha,

Comboios, Irajá e Pau Brasil.

• Todos os 146 alunos indígenas que freqüentam as 5as e 6as séries das escolas

indígenas de Aracruz.

Depois de fazermos esse passeio pela revisão de literatura, que permeia nosso objeto de

pesquisa, elencamos os tópicos das ações que vivenciamos efetivamente, durante o

processo de desenvolvimento deste trabalho e onde ocorreram os fatos:

• Como formadora: acompanhamento dos trabalhos na metodologia de resolução

de problemas, com o conteúdo de divisão no domínio dos números naturais e de

frações, no universo dos números racionais junto aos 2 educadores indígenas da

5ª série, num curso de formação continuada de matemática, que já estava em

vigência na SEMED de Aracruz: 4 encontros6.

• Percepção e captação das necessidades dos educadores, de discussão de temas

relevantes da Matemática, a serem discutidos para um novo Curso de Formação

para Educadores Indígenas na SEMED de Aracruz : 1 encontro.

• Participação na construção e implementação de um Curso de Formação

Continuada para Educadores Indígenas de Aracruz. Este curso foi mais uma

ação do Projeto de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

em parceria com o Instituto de Pesquisa em Educação (IPE), financiado pelo

Ministério de Educação (MEC), com recursos do Fundo Nacional de

Desenvolvimento da Educação (FNDE). Com duração total de 120h/a, se

6 Esclarecemos que os encontros têm diferentes tempos: cada encontro durante o curso de formação continuada teve 4h/a; cada encontro, em sala de aula, teve duração de 2h/a; cada encontro em outros aspectos possui, no mínimo de três horas.

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constituiu de 5 disciplinas, cada uma, com 24h/a: Fundamentos da Educação,

Ciências Sociais, Ciências Naturais, Linguagem e Matemática. Teve como

professores formadores alunos de cursos de Mestrado em Educação da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PUC –SP) e da UFES. Este curso de

formação teve como foco central, discussões sobre atividades interdisciplinares e

interculturais na escola, oportunizando aos educadores reflexões de tais

significados, nos caminhos que levam a prática à teoria, assim como a teoria à

prática.

As disciplinas e os conteúdos abordados neste Curso de Formação Continuada para

todos Educadores Indígenas de Aracruz, originaram-se, como de costume, a partir das

discussões em reuniões, com datas pré-definidas, entre todos os atores envolvidos no

projeto: educadores, formadores, coordenação pedagógica, representações das parcerias.

As discussões sobre esses aspectos foram vivenciadas em reuniões, que ocorreram

principalmente nas dependências do IPE, e nas dependências da SEMED de Aracruz. A

responsabilidade da formação da disciplina de Matemática ficou a meu cargo, sob

orientação da Dra. Circe Silva da Silva Dynnikov. Elencamos aqui as ações que foram

tomadas antes, durante e depois da formação da disciplina de Matemática:

• Os planos das aulas (24h/a) ministradas foram desenvolvidos na companhia da

colega, mestre em Educação pela UFES, Ozirlei Teresa Marcilino sob orientação

da professora Dra. Circe Mary Silva da Silva Dinnikov: 6 encontros.

• Formação em Matemática para todos os educadores indígenas de 5ª e 6ª séries,

sendo 5 encontros na Escola Municipal de Caieira Velha e 1 encontro para

avaliação dos trabalhos, no IPE: 6 encontros (24h/a).

o Aplicação dos instrumentos individuais, dois questionários estruturados,

para todos os 17 educadores de 5ª e 6ª séries, alunos do Curso de

Formação aqui descrito: 1º encontro.

o Leitura e reflexão de textos, autoria de Ubiratan D’Ambrosio, com foco

na interdisciplinaridade e interculturalidade. 1º e 2º encontro.

o Dinâmica que propõe o reconhecimento da interdisciplinaridade, para

todos os educadores, a partir de seus relatos, vivenciadas em sala de aula.

2º e 3º encontro.

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o Oficina de Elaboração de Recursos Didáticos, para todos os educadores

indígenas, durante o mesmo Curso de Formação: 4º e 5º encontro.

• Oficina específica, de Elaboração de Recursos Didáticos para o ensino da

Matemática, para os dois educadores de Matemática, para fortalecermos

informações desses nossos únicos sujeitos de pesquisa, de 5ª e 6ª séries do

ensino Fundamental – posterior ao término do Curso de Formação, no qual

também fizeram parte aqui já mencionado: 2 encontros (8h/a).

• Entrevistas gravadas em áudio com oito anciões, dois de cada uma das quatro

aldeias Tupinikim: Caeiras Velha, Comboios, Irajá e Pau-Brasil, com o objetivo

de conhecermos, se possível, a matemática desses ancestrais: 8 encontros (36h).

• Visita ao viveiro de plantas em Pau-Brasil.

• Visita à casa de farinha em Pau-Brasil.

• Observações das aulas de matemática em sala de aula, nas turmas de 5ª e 6ª

séries. As observações foram feitas antes, durante, e depois da aplicação dos

recursos didáticos produzidos pelos educadores, tanto na Escola Municipal de

Caieira Velha, na aldeia de Caieiras Velha, assim como na Escola Municipal

Pluridocente Indígena Dorvelina Coutinho, na aldeia de Comboios. As últimas

observações, em um dos encontros, foram referentes às apresentações orais em

grupos de 4 alunos, de duas turmas de 6as séries, de trabalhos propostos pelos

educadores. Assim, tivemos 3 tipos de encontros em cada turma perfazendo um

total de 12 encontros (24h/a).

Utilizamos assim, para fins das análises, entrevista estruturada, semi-estruturadas,

gravações em áudio e observações. As entrevistas estruturadas do Instrumento I e II

foram aplicadas a todos os educadores indígenas antes do Curso de Formação

Continuada.

Algumas das entrevistas semi-estruturadas, cujas respostas colhemos no momento de

visitas às casas dos anciões, e às algumas lideranças nas aldeias Tupinikim, foram

gravadas em áudio e outras não. Segundo dois anciões, a não permissão de gravações, e

até mesmo o impedimento de anotações, estaria no fato de eles terem vergonha de que

suas palavras fossem gravadas, ou por se sentirem constrangidos diante de aparatos

tecnológicos. Assim, recorremos a anotações escritas logo após a essas visitas e, no uso

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de nossa memória, relatamos e gravamos em áudio o que ouvimos. A seguir, ampliamos

informações dos instrumentos utilizados:

• Instrumento I, um questionário estruturado, com 6 questões. Algumas questões

deste Instrumento, também com a finalidade de perceber concepções, crenças e

atitudes frente à Matemática, foram aplicadas aos alunos da disciplina de

Tópicos de Matemática I, ministrado pela professora Dra. Vânia Maria dos

Santos – Wagner, no primeiro semestre de 2005, no Curso de Mestrado em

Educação da UFES. Outras questões, do mesmo instrumento, já foram

respondidas em pesquisas anteriores, desenvolvidas pela professora Dra. Olive

Chapman, também pesquisadora em Formação de Professores de Matemática

(2005) em uma universidade do Canadá. Assim, as nossas questões do

Instrumento I foram adaptadas às questões dos instrumentos utilizados por essas

autoras.

• O Instrumento II é também um questionário estruturado. Este foi adaptado da

mesma forma que o Instrumento I, a partir do questionário proposto pelo

pesquisador Dr. Wolfgang Münzinger.

Acreditamos que o uso de entrevistas estruturadas colabora para a construção das

análises. Durkin (1994), por exemplo, afirma que o uso de entrevistas estruturadas pode

ser interessante para os resultados de uma pesquisa, pois mantém o foco do problema a

ser resolvido de uma forma dirigida. Aponta a vantagem da sua utilização porque pode

fornecer informações detalhadas, permitindo relações estruturadas entre os conceitos, no

momento de análises das respostas.

Apesar da importância do uso em nossa pesquisa de entrevistas estruturadas, é a

observação o elemento fundamental do nosso processo investigativo. E, segundo Puente

(2004), a observação é uma técnica que consiste em observar atenciosamente o

fenômeno (fato ou caso), tomar informações e registrá-las para posterior análise.

Portanto, é nela que o pesquisador deve se apoiar para obter o maior número de dados.

Assim, no uso das atribuições das observações é que pudemos determinar os espaços

sociais nos quais se realizou as observações, do porquê em observar, a forma de

registrarmos os dados – a partir de cada observação cuidadosa e crítica. Finalmente,

usar as observações contribuiu para interpretação mais criteriosa no momento das

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análises, confirmando o pensamento de Puente (2004), que alguns tipos de dados só

poderiam ser coletados mesmo, mediante observações.

As observações in loco da cultura local nos acompanharam em todo o processo da

pesquisa, gerando enriquecimento ao nosso trabalho, amparando as informações no

capítulo que descreve a cultura Tupinikim. Essas observações permearam também:

• os momentos da oficina de elaborações de recursos didáticos para o ensino de

matemática para todos os educadores, com foco na interdisciplinaridade e

interculturalidade;

• os momentos de salas de aula junto aos educadores e alunos de matemática,

durante algumas aulas na 5ª e 6ª séries com foco na matemática de sua cultura;

• as apresentações de trabalhos de matemática, em sala de aula, pelos alunos da 5as

e 6as séries - foram associadas às gravações em áudio;

• uma dinâmica, com o objetivo de suscitar idéias para elaboração de outros

recursos didáticos, específica aos dois educadores indígenas de matemática;

• Observação da atuação dos educadores de matemática e dos alunos nas 5as e 6as

séries em sala de aula no uso de recursos didáticos;

• mais apresentações de trabalhos de matemática pelos alunos;

Foi no bojo dessas ações, de aprendizagem para todos nós, que percebemos o interesse

desses educadores, e da comunidade, em contribuírem para o desenvolvimento deste

trabalho imbricado na sociedade cultural dos Tupinikim.

Afinal, se sabe que as sociedades aprendem para se adaptarem, e se reajustam às

mudanças, promovendo outras mudanças e evoluções, assumindo as relações

interpessoais e intrapessoais como relevantes, papel determinante no pensamento e na

ação do indivíduo. Acompanhando essa evolução, algumas pesquisas na área de

fronteira entre a Educação Matemática e a Psicologia estão sendo desenvolvidas há,

aproximadamente, três décadas.

Esse tempo de estudos com esse foco, nos mostra que, assim como o meio social, as

relações interpessoais e a mediação, e as culturas, também podem interferir,

intrinsecamente, nas crenças, concepções e atitudes tanto dos professores (mediadores

do ensino) como dos alunos as quais vimos em nossas experiências realizadas durante

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nossa pesquisa. Mas nem sempre, as relações interpessoais trazendo consigo a cultura,

as concepções e emoções dos indivíduos foram relevantes em estudos científicos.

Sendo motivo de aquecidos debates envolvendo grandes filósofos, que ora valorizavam

os conflitos existentes entre razão e sentimentos, ora a dicotomia, ou o papel superior de

um aspecto sobre o outro, de um modo geral, o que se evidencia nos escritos dos

filósofos da Grécia antiga até a modernidade, é uma concepção dissociada, na qual a

razão quase sempre tem status superior em relação aos sentimentos.

Descartes sob a perspectiva de um dualismo entre razão e emoção assentou seus

fundamentos para o estudo científico da vida emocional. Para ele, as paixões ou

emoções eram, essencialmente, um produto da interação da mente com o corpo, embora

as paixões e as emoções fossem causadas por estímulos externos, que produziriam tanto

repercussões psíquicas, como fisiológicas. Assim, a mente humana era separada, não

apenas de sua própria natureza fisiológica – do cérebro e do corpo, mas separada do

restante do reino animal e as emoções, para ele, eram as paixões da alma.

Para ele todas as sensações eram dependentes dos nervos, os quais eram “como

pequenos fios ou tubos vindos do cérebro e contendo, como o próprio cérebro, certo ar

ou vento sutil que é chamado de ‘espíritos animais’” (Descartes, 1649/1985, p. 330).

Descartes explicou que os chamados espíritos são, na verdade, corpos extremamente

pequenos que se movem muito rapidamente, “como as chispas do fogo de uma tocha”.

Quando uma pessoa percebe um objeto assustador ou alarmante, os espíritos animais nos órgãos dos sentidos movem-se pelos nervos até o cérebro, onde a glândula pineal interage com a alma. A glândula pineal, que é a sede principal da alma, pode ser movida pelos espíritos animais “de tantas maneiras quantas são as diferenças perceptíveis nos objetos. Mas também pode ser movida de várias maneiras diferentes pela alma” (Descartes, 1649/1985, p. 341). A alma pode mover a glândula pineal, o que faz os espíritos animais moverem-se na direção dos músculos e outras partes do corpo, produzindo desta forma os processos corporais geralmente ligados a uma emoção (Valsiner, 1996, p. 380).

Esse pensamento de Descartes contribuiu para o retardamento de estudos para a futura

psicologia, selando-os, com os problemas impossíveis da interação mente-corpo a partir

de sua visão, perdendo sua relação com a biologia indicadas por Aristóteles. Apesar

disso, foram suas idéias que impulsionaram em grande parte o desenvolvimento da

psicologia durante os séculos imediatamente seguintes, produzindo críticas e reflexões

de estudiosos até nossos dias, como podemos ver em Damásio (1996):

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A separação cartesiana pode estar também subjacente ao modo de pensar de neurocientistas que insistem em que a mente pode ser perfeitamente explicada em termos de fenômenos cerebrais, deixando de lado o resto do organismo e o meio ambiente físico-social – e, por conseguinte, excluindo o fato de parte do próprio meio ambiente ser também um produto das ações anteriores do organismo. Protesto contra essa restrição, não porque a mente não esteja diretamente relacionada com a atividade cerebral, pois obviamente está, mas porque essa formulação restrita é forçosamente incompleta e insatisfatória em termos humanos. É fato incontestável que o pensamento provém do cérebro, mas prefiro qualificar essa afirmação e considerar as razões porque os neurônios conseguem pensar tão bem. Essa é, de fato, a questão principal. [...] A divisão cartesiana domina tanto a investigação como a prática médica [...] (Damásio, 19996, p. 281 – 282).

Ao longo do século XX, com a afirmação da Psicologia como ciência, as concepções

relativas à infância, ao indivíduo e sua cultura, a relação entre aprendizagem e

desenvolvimento infantil, a relação afetividade–cognição vão tomando espaço no

interesse também da Pedagogia. Principalmente depois da década de sessenta, que a

Pedagogia foi sendo modificada em função dos resultados obtidos nas pesquisas,

algumas alicerçadas em Damásio, Wallon e Maturana.

Vygotsky, ao escrever sobre a Teoria das Emoções, conjeturou inicialmente o tema, a

partir de uma análise do aspecto centrípeto da teoria de Descartes comparando com a

teoria da emoção de Willian James e Carl Lange. Para Vygotsky, tanto a teoria de

Descartes como a de James-Lange, apontam para a mesma idéia. É a alma que irá

“perceber” ou “sentir” as mudanças corporais. Para Descartes

a alma é representada, portanto como um receptor último e passivo dos movimentos da glândula pineal. Para James e Lange era a consciência ou sentimento de mudanças viscerais. James afirmou, que “as mudanças corporais seguem-se diretamente à percepção do fato existente e nosso sentimento dessas mudanças quando elas ocorrem é a emoção.”. Isso significa que para a (parte aferente da) teoria de Descartes como para a teoria de James-Lange a emoção é equivalente a uma percepção (sentimento) passiva de mudanças corporais (Valsiner, 1996, p. 381).

O fato é que estamos no século XXI e o dualismo razão-emoção segue sobre o prisma

da cognição e afetividade, e implicações da articulação dialética entre os aspectos

afetivos, cognitivos e sociais, que compõe a subjetividade, estão sendo desveladas em

novos paradigmas.

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Nesse sentido, estabeleceu-se a superação de rupturas clássicas e apresentou-se um novo

trajeto, com imbricações na filosofia, na psicologia, na educação, na pedagogia e os

afetos vão sendo incluídos plenamente no âmbito escolar.

Os educadores comentam geralmente, distantes de bases teóricas, que os afetos são

problemáticos para o conhecimento, o que leva a concluir que pelo menos seria uma

ingenuidade ignorá-los. Isso indica também a necessidade e importância de temas como

esse serem oportunos em cursos de formação para educadores, uma vez que contribui

para reflexões e superação desses possíveis obstáculos produzidos pela afetividade, das

emoções e das crenças, na relação ensino-aprendizagem.

Enquanto isso, a psicologia educacional tem acumulado diversos estudos e pesquisas

sobre o desenvolvimento, aprendizagem humana na interação cognição-afeto-professor-

conteúdo-aluno e esses estudos têm servido para elaboração de propostas pedagógicas

nas diversas disciplinas escolares, em distintas culturas.

Para o psicólogo Vygotsky o aprendizado é essencial para o desenvolvimento do ser

humano e acontece, sobretudo, pela interação social. Aponta que antes de dominar sua

própria conduta a criança começa dominar seu entorno com a ajuda da linguagem.

el momento más significativo en el curso del desarrollo intelectual, que da luz las formas más puramente humanas de la inteligência práctica y abstrata, es quando el linguaje y la actividade práctica, dos líneas de desarrollo antes completamente independientes, convergem (Vygotsky, 1979, p. 47).

Vygotsky defende que, concomitante a aparição da linguagem, surge o emprego dos

signos que se incorpora a cada ação, se transforma e se organiza de acordo com direções

totalmente novas. O uso especificamente humano das ferramentas se realiza, pois, desse

modo, avançando além do uso limitado de instrumentos entre os animais superiores.

Afirma que isso possibilita novas relações com o entorno, além de produzir uma nova

organização, de sua própria conduta e: “La creación de estas formas de conducta

essencialmente humanas produce más adelante el intelecto, convertiéndo-se, después,

en la base del trabajo productivo: la forma especificamente humana de utilizar las

herramientas” (Vygotsky, 1979, p. 48).

Assim, o campo de atenção da criança abarca, não só um, mas sim todos os campos

perceptivos potenciais que formam estruturas dinâmicas e sucessivas. Diz ainda que a

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possibilidade de combinar elementos de campos visuais presentes e passados (por

exemplo, ferramenta e objetivo) num só campo de atuação conduz a uma reconstrução

de uma outra função vital: a memória, que acaba se convertendo em “um nuevo método

de unir elementos de la experiencia pasada com el presente” (Vygotsky, 1979, p. 48).

Neste contexto, o uso dos signos conduz os indivíduos a uma estrutura específica de

conduta que surge do desenvolvimento biológico e cria novas formas de um processo

psicológico culturalmente estabelecido. Segundo o psicólogo,

a criança nasce dotada apenas de funções psicológicas elementares, como os reflexos e a atenção involuntária, vontade impulsiva presentes em todos os animais mais desenvolvidos. Com o aprendizado cultural, no entanto, parte dessas funções básicas transforma-se em funções psicológicas superiores, que pode ser observada sob dois aspectos: nos processos de domínio de meios externos do desenvolvimento cultural e do pensamento: linguagem, desenho, escrita e cálculo ou sob o ponto de vista de processos de desenvolvimento das funções psíquicas superiores especiais: atenção voluntária, memória, lógica e formação de conceitos, isto é, produtos da consciência, do planejamento, características exclusivas do homem. Os dois aspectos tomados em conjunto, formam o que é o processo de desenvolvimento das formas superiores de conduta da criança (Vygotsky, 1983, p. 29).

Ou seja, a consciência passa a ser percebida como uma forma de organização dinâmica

de nossas funções mentais superiores, de nosso comportamento, tal como expresso na

citação anterior, onde é implicitamente definida como um sistema organizativo de

significados em que o afetivo (intrínseco ao ser sócio-cultural) e o dinâmico

(interpessoal e intrapessoal) se unem. Seu desenvolvimento, determinado culturalmente

segundo Vygotsky, pode ser explicado na verdade, por possuir como elemento

mediador entre indivíduo e influências do mundo exterior, a linguagem, as operações

com signos, o sistema de representações que substitui o real, fornecidos por dada cultura

aos indivíduos que a constituem.

Assim, a linguagem, esse sistema simbólico de mediação entre o sujeito e o objeto –

que além do intercâmbio social presta-se, principalmente, à função de contribuir para a

construção do pensamento generalizante –, acontece a partir da generalização das

experiências em categorias conceituais. Isto é, classes de objetos com atributos em

comum, selecionados sob a óptica de um grupo cultural, se consubstanciam em

instrumentos de organização do conhecimento, de ordenação do mundo real e, assim

sendo, torna-se um importante fator desencadeante da construção da própria consciência

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humana. Esta consciência a qual Vygotsky confere papel central na concepção que

possui das relações entre afeto e intelecto.

As considerações de Vygotsky sobre o processo de formação de conceitos ligam-se às

relações entre pensamento e linguagem, à questão cultural no processo de construção de

significados pelos indivíduos, ao processo de internalização e ao papel da escola na

transmissão de conhecimento, que é de natureza diferente daqueles aprendidos na vida

cotidiana.

Um conceito é mais do que a soma de certos vínculos associativos formados pela memória, é mais do que um simples hábito mental; é um ato real e complexo de pensamento que não pode ser aprendido por meio de simples memorização, só podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento mental da criança já houver atingido o seu nível mais elevado. A investigação nos ensina que em qualquer nível do seu desenvolvimento, o conceito é, em termos psicológicos, um ato de generalização (Vigotski7, 2000, p. 246).

Daí o importante papel que Vygotsky atribui à intervenção escolar, como agente de ação

coletiva, uma alternativa pedagógica capaz de provocar aprendizagem e,

conseqüentemente, gerar o desenvolvimento dos alunos. E comenta em uma parte de

uma de suas investigações:

[...] a investigação mostrou que a passagem dos pré-conceitos (cujo exemplo típico é o conceito aritmético do aluno escolar) para os verdadeiros conceitos do adolescente (cujo exemplo típico são os conceitos algébricos) se dá pela via da generalização das matérias anteriormente generalizadas. [...] Isto se manifesta nitidamente no fato de que, paralelamente ao aumento das generalizações algébricas, ocorre o aumento da liberdade de operações. [...] A explicação do aumento da liberdade proporcional ao aumento das generalizações algébricas está na possibilidade de um movimento inverso do estágio superior para o inferior, contido na generalização superior: a operação inferior já é vista como caso particular da superior (Vigotski, 2001, p. 372).

É interessante enfatizar que uma idéia central para a compreensão das concepções de

Vygotsky sobre o desenvolvimento humano, como processo sócio histórico, é a

mediação: enquanto sujeito do conhecimento, o homem não tem acesso direto aos

objetos, mas acesso mediado por meio de recortes do real, operados pelos sistemas

simbólicos de que dispõe. A construção do conhecimento é uma interação mediada por

várias relações. O conhecimento não deve ser visto como uma ação do sujeito sobre a

realidade e sim pela mediação feita por outros sujeitos. Assim, o outro social pode

7 Algumas editoras brasileiras adotam o nome Vigotski no lugar de Vygotsky.

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apresentar-se por meio de objetos, da organização do ambiente, do mundo cultural que

rodeia o indivíduo (Vygotsky, 1979, p. 191 – 192).

Nesse sentido, Vygotsky aponta dois níveis de desenvolvimento, o real, já adquirido,

que determina o que a criança já é capaz de fazer por si mesma, e o potencial, que é a

capacidade de aprender com outra pessoa. Ainda, a aprendizagem interage com o

desenvolvimento produzindo uma abertura nas zonas de desenvolvimento proximal, que

é a distância entre aquilo que a criança faz sozinha e o que ela é capaz de fazer com a

intervenção de um adulto ou com outro mais capaz, ou ainda, distância entre o nível de

desenvolvimento real e o potencial. Um exemplo é o trabalhar conceitos matemáticos

com as crianças, que normalmente exige um conhecimento anterior por parte dessas

crianças (Vygotsky, p. 131 – 140).

Assim, afirma Vygotsky, o desenvolvimento cognitivo é produzido pelo processo de

internalização da interação social com elementos fornecidos pela cultura, o processo se

constrói de fora para dentro. O processo de internalização é fundamental para o

desenvolvimento do funcionamento psicológico humano. A internalização envolve uma

atividade externa que deve ser modificada pra tornar-se atividade interna, é interpessoal

e se torna intrapessoal, que permite a formação de conhecimentos e da própria

consciência (Vygotsky, 1979, p. 93 – 94).

Vygotsky se reporta muitas vezes ao papel do professor como mediador e sugere, em

alguns exemplos dados, novas posturas. Isto é, o professor deixa de ser visto como

agente exclusivo de informação e formação dos alunos, uma vez que as interações com

os alunos, e com os objetos do conhecimento, propiciam os avanços do seu próprio

desenvolvimento. Salienta a importância da figura do professor no contexto escolar e de

sua responsabilidade em intervir “nas zonas de desenvolvimento proximal” dos alunos.

O professor tem experiência, informação e incumbência de mediar o patrimônio cultural

com seus alunos. Na cultura indígena, focando a disciplina de matemática,

muitas lideranças, professores e alunos afirmam que a matemática é importante para a conquista da autonomia dos povos indígenas, ou seja, para a promoção da auto-sustentação dos povos e o estabelecimento de relações igualitárias com a sociedade brasileira mais ampla (RCNEI8, 1998, p. 160).

8 Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas.

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Partindo-se da premissa que todos os indivíduos estão em processo constante de

aprendizagem por meio da interação social e cultural, é relevante assinalar a

necessidade desta formação continuada de professores a partir dessa perspectiva. Isso

pode possibilitar crescimento educacional, a partir de reestruturação e ampliação do

conhecimento dos professores e dos agentes envolvidos.

Da mesma forma que os alunos, os professores têm idéias, dúvidas, hipóteses, valores,

princípios explicativos que, desvelados em um curso de formação de professores,

podem oferecer pistas para novos modos de ação. Assim, os que trabalham na área de

formação de professores não podem esperar que por si só, esses professores possam

progredir com seus alunos, sem lhes dar a oportunidade de expor suas crenças,

concepções e conhecer suas atitudes frente ao que, e como, ele ensina. Isso poderá

ajudar na construção de suas ressignificações. Logo, os que trabalham na área de

formação de professores precisam incidir também na sua zona de desenvolvimento

proximal. É preciso também partir do que os professores sabem. E é nessa interação que

os que trabalham com formação de professores também vão tendo novas

ressignificações, entranhadas no processo educativo- histórico-cultural.

Em outro contexto, retomando as questões da temática da afetividade, Rego (2002,

p.120 – 123) aponta que no pensamento vygotskyniano, assim como a motivação,

percepção e a memória, as emoções compõem o quadro de nossas funções psicológicas

e, assim como as primeiras, apresenta uma dimensão social que a determina. Cognição e

afeto não se encontram dissociadas no ser humano, pelo contrário, se inter-relacionam,

sendo impossível compreendê-las separadamente. Sendo, pois, um fenômeno psico-

social, a afetividade e as emoções dependem de uma consciência social fornecida pela

cultura que dite as diretrizes para o sentimento, no tocante a quando, onde e o que

sentir; e que estas estabeleçam, enfim, códigos legais, morais e sociais que as sustentam.

Em particular, fazendo referência ao aspecto cultural matemático dos povos indígenas, o

RCNEI (1998) assinala que o trabalho na escola indígena deve valorizar a transmissão e

atualização do seu conhecimento tradicional, que os estudos na escola podem

reconstruir a matemática da cultura indígena. Isto é, o documento aconselha que a

matemática se ocupe também na escola, da transposição do conhecimento matemático

desde o conhecimento matemático de seus ancestrais indígenas até a atualidade, como

do histórico de confecções de artesanato e artefatos indígenas.

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Por exemplo, os padrões geométricos de suas tecelagens ou pintura corporal, a

aritmética na ornamentação da cestaria ou as diferentes maneiras de delimitar ou medir

a passagem do tempo. Algumas dessas ações, associadas às outras áreas do

conhecimento, podem contribuir para a conquista da autonomia e auto-sustentação de

nações indígenas (RCNEI, 1998, p. 161).

Como aponta Vygotsky (1979) é importante observar-se a internalização do

conhecimento do indivíduo, de sua emoção, como ele se estabelece culturalmente,

permeado de diferentes concepções, crenças e atitudes.

Borges (2006, p. 42) esclarece que para distintas nações da cultura indígena, a maneira

como é considerado o tempo, ora concebido como mecânico-linear, uniforme, regular,

repetitivo e reversível, espécie de fluxo contínuo e objetivo; ora é concebido como

irregular, não-casual, multiforme e irreversível, na forma de um conjunto complexo de

relações, normalmente considerado por meio da relação intrínseca entre natureza e

sociedade.

O mesmo autor noticia que no significado de tempo, sob o ponto de vista de uma nação

indígena, os ciclos anuais são baseados na alteração dos ventos originários, relacionados

ao inverno, e os ventos novos, relacionados ao período de florescimento.

É possível observar-se a presença de uma dupla determinação temporal, mediante a qual

o mito combina o tempo objetivo (as mudanças exteriores à sociedade: dia/noite,

sol/lua, constelações, fases da lua, cheias/vazantes, ventos, migração de animais,

floração/frutificação, etc.) com o tempo social (rituais, cosmologia). O tempo do mito

estende-se em uma espécie de síntese entre o passado e o presente. O mito se situa entre

o tempo ritual e histórico, rejeitando o tempo cronológico, já que este não consegue dar

conta da abrangência temporal do relato mítico que, mais apropriadamente, reporta-se

há um tempo zero do evento que narra. Assim, o tempo do mito para alguns índios,

transcorre na memória social como o tempo presente, que ao mesmo tempo, liga

passado e futuro, que também pode ser medido em termos de rituais como por meio da

dança.

O exemplo citado ilustra o pensamento vigotskyano relativo à cultura, que fornece ao

indivíduo os sistemas simbólicos de representação da realidade, ou seja, o universo de

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significações é que permite construir a interpretação do mundo real. É a cultura que

oferta o local de negociação, no qual os seus membros estão em constante processo de

recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significações. Num sentido mais

amplo,

[...] significa que todo lo cultural es social. Justamente la cultura es um producto de la vida social y la actividad social del ser humano; por ello, el propio planteamiento del problema del desarrollo cultural de la conducta nos lleva directamente al plano social del desarrollo (Vygotsky, 1995, p.151).

Vygotsky mostra que intrínseca à cultura

[...] cada idéia contém uma atitude afetiva transmutada com relação ao fragmento de realidade ao qual se refere. Permite ainda seguir a trajetória que vai das necessidades e impulsos de uma pessoa até a direção específica tomada por seus pensamentos, e o caminho inverso, a partir de seus pensamentos até o comportamento e a sua atividade (Rego, 2002, p. 121).

Nesse sentido, buscamos também aportes em Geertz (1989) para o significado de

cultura. A preocupação inicial de Geertz (1989, p. 4) reside na falta de padronização do

conceito de cultura, uma vez que para ele esse conceito se mostra um tanto comprimido,

numa espécie de difusão teórica, eclético. O autor defende o conceito de cultura como

essencialmente semiótico e, partindo do mesmo pressuposto de Max Weber, que o

homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, Geertz

entende que deve assumir a cultura como sendo essas teias e a sua análise, como uma

ciência interpretativa à procura de significados e afirma: “A cultura é pública porque o

significado o é” (1989, p. 9).

Geertz (1989) faz um passeio na perspectiva tradicional das relações entre o avanço

biológico e cultural do homem, mostrando que a cultura foi em princípio, separada do

homem, que o biológico teria se completado primeiro para todos os intentos e

propósitos, antes que o cultural iniciasse. Isto é, o ser físico do homem evoluiu até o

ponto como o conhecemos hoje. Só então começou o desenvolvimento cultural.

Completa que, em algum estágio particular da sua história filogenética, uma mudança

de genética marginal, de alguma espécie, tornou-o capaz de produzir cultura e, neste

instante sua forma de resposta adaptativa às pressões ambientais foi muito mais

exclusivamente cultural do que genética. O homem vestia peles de animais nos climas

frios e talvez nada nos climas quentes, fabricou armas para aumentar sua natureza

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predatória e com o fogo, cozinhava alguns alimentos para torná-los digestivos. O

homem se tornou homem capaz de transmitir “conhecimento, crença, lei, moral,

costume”9 a seus descendentes e vizinhos por meio do aprendizado. Assim, o avanço

dos hominídios dependeu quase que exclusivamente da acumulação cultural e não da

mudança física como outrora.

A última perspectiva remete ao fato de que a cultura, em vez de ser acrescentada a um

animal acabado, foi um elemento relevante na produção desse mesmo animal. A Era

Glacial alterou de fato o equilíbrio das pressões seletivas para o Homo em evolução.

O aperfeiçoamento das ferramentas, a adoção da caça organizada e as práticas de reunião, o início da verdadeira organização familiar, a descoberta do fogo e, o mais importante, embora seja ainda muito difícil identificá-la em detalhe, o apoio cada vez maior sobre os sistemas dos símbolos significantes (linguagem, arte, mito, ritual) para a orientação, a comunicação e o autocontrole, tudo isso criou para o homem um novo ambiente ao qual ele foi obrigado a adaptar-se. [...] Entre o padrão cultural, o corpo e o cérebro foi criado um sistema de realimentação (feedback) positiva, no qual cada um modelava o progresso do outro[...]. Submetendo-se ao governo de programas simbolicamente mediados para a produção de artefatos, organizando a vida social ou expressando emoções, o homem determinou, embora inconscientemente, os estágios culminantes do seu próprio destino biológico. Literalmente, embora inadvertidamente, ele próprio se criou.[..] Grosso modo, isso sugere não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura (Geertz, 1989, p. 34 – 35).

Geertz faz uso do bicondicional quando relaciona a interação entre a existência do

homem com a existência da cultura: “Sem os homens certamente não haveria cultura,

mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria

homens.” (Geertz, 1989, p.36)

Cultura ⇔ Homem

O autor, partindo da premissa que o homem é o animal mais emocional além de ser o

mais racional preocupa-se também com a afetividade, compreende a necessidade de um

controle cultural muito cuidadoso dos estímulos de medo, raiva, sugestões, etc., para o

impedimento de uma instabilidade afetiva continuada, uma oscilação constante entre os

extremos da paixão. Enfatiza que a existência de recursos culturais, de um sistema 9 Itens da definição clássica de cultura de Sir Edwuard Tylor usados aqui por Geertz.

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adequado de símbolos públicos, é tão essencial para essa espécie de processo como o é

para o raciocínio orientador.

Assim sendo, o desenvolvimento, a manutenção e a dissolução de “humores”, “atitudes”, “sentimentos”, e assim por diante – que são “percepções” no sentido de estado ou condição, não sensações ou motivos – constituem tanto uma atividade basicamente privada dos seres humanos quanto o “pensamento” orientador. [...] Uma criança conta pelos dedos antes de contar “na sua cabeça”; ela sente o amor na sua pele antes de senti-lo no “seu coração”. Não apenas as idéias, mas as próprias emoções são, no homem, artefatos culturais10 (Geertz, 1989, p. 59).

Já Ubiratan D’ambrósio (1996), em sua obra Educação matemática: da teoria à Prática

afirma que o homem tem seu comportamento alimentado pela aquisição do

conhecimento, de fazer(es) e de saber(es) que lhe permite sobreviver e transcender por

meio de maneiras, modos, técnicas e artes (techné ou tica), de explicar, de conhecer,

entender (matema) com a realidade natural e sócio-cultural (etno). Assim D’ambrósio

conceitua, etimologicamente, etnomatemática, já que o conhecimento se dá em todos os

tempos, por necessidade de resposta e está subordinado a um contexto natural, social e

cultural. Afirma que as relações intraculturais e, sobretudo, as interculturais representam

o potencial criativo da espécie. A diversidade cultural representa o potencial criativo da

humanidade.

O autor propõe como deve ser um novo programa para a educação matemática, num

novo paradigma para a educação com enfoque holístico, tendo como foco o homem,

como indivíduo integrado e em permanente [inter]ação com seu meio ambiente natural e

sócio cultural. Define conhecimento como o substrato da ação comportamental, ou

simplesmente comportamento (essência de estar vivo) no ciclo vital incessante: “...→

Realidade informa indivíduo que processa e executa uma ação que modifica a

realidade que informa o indivíduo →...”, o que permite a qualquer ser vivo interagir

com o seu meio ambiente.

Para D’Ambrósio (1996), este ciclo vital, que caracteriza o conhecimento (saber/fazer)

impulsionado pela consciência, se realiza em várias dimensões, a saber: sensorial,

10 As espécies de símbolos culturais que servem aos lados intelectual e afetivo da mentalidade humana tendem a diferir – de um lado, uma linguagem discursiva, rotinas experimentais, matemática e assim por diante; de outro, mitos, rituais e arte. Mas esse contraste não deve ser traçado de modo muito acentuado: a matemática tem seus usos afetivos, a poesia é intelectual e a diferença, em qualquer caso, é apenas funcional, não substancial.

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intuitiva, emocional e racional (mais reconhecidas e interpretadas), não dicotomizadas

nem hierarquizadas. O ciclo é vivenciado por todos os indivíduos, logo enriquecido pelo

intercâmbio entre eles (comunicação social) considerando-se o livre arbítrio de cada um,

constituindo aquilo que se chama cultura, que vai permitir a vida em sociedade,

manifestado por um grupo de indivíduos (de mesma cultura).

O autor então define:

Cultura é o substrato dos conhecimentos, dos saberes/fazeres e do comportamento resultante, compartilhado por um grupo, comunidade ou povo. Cultura é o que vai permitir a vida em sociedade (D’Ambrósio 1996, p. 25).

Analogamente, explica que, quando grupos de diferentes culturas se expõem

mutuamente, estão sujeitos a uma dinâmica de interação que produz a

interculturalidade, que vem se intensificando ao longo da história da humanidade. O

resultado é a formação de uma nova cultura.

O histórico de uma nova cultura, tanto mencionada por Geertz (1989) ou por

D’Ambrósio (1996), foi o que constatamos nas nossas andanças pelas aldeias Tupinikim

provenientes da interculturalidade, que surgem: por meio do acesso irrestrito que esses

Tupinikim têm da mídia, por sua convivência com os Guarani, ou com os não-índios

residentes na região, por contato com familiares que vivem fora das comunidades e que

visitam seus familiares nas aldeias periodicamente, nas suas saídas das aldeias para

estudos e trabalhos, em viagens que porventura fazem, pelas notícias do tipo de vida

que os estudantes Tupinikim levam, naturais de uma das aldeias, que porventura vivem

ou estudam, em outros estados ou em outros países – como no caso da filha de

Senhorzinho, de Pau-Brasil, que reside e cursa Medicina em Cuba, entre outros fatores.

Daí que refletir, e interferir nesses aspectos, pode propiciar transformações positivas no

processo educativo, pois

as matemáticas são como um fenômeno cultural que só tem valor se os diferentes valores culturais da sociedade também o tiverem. O racionalismo e o objetivismo são ideologias gêmeas das matemáticas. O controle e o progresso são valores atitudinais que dirigem o desenvolvimento matemático (Marcilino, 2005, p. 20).

Ou, como bem disse a educadora Tupinikim Leidiane Pêgo de Souza, que recém teve

êxito em um processo seletivo para cursar Mestrado em Educação, em uma

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Universidade da Colômbia: “ [...]. É necessário que os brancos reconheçam que não

andamos nus, mas somos índios pois temos uma cultura” (Mugrabi, 1999, p. 203).

Assim, para dar maior sustentação de entendimento do nosso trabalho, acreditamos ser

fundamental que se conheça, e se reconheça os Tupinikim, razão do capítulo a seguir,

que mostram alguns aspetos do cotidiano cultural dos Tupinikim, no olhar dos próprios

Tupinikim.

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CAPÍTULO III

OS TUPINIKIM

É difícil encontrarmos publicações que contemplem a caracterização do povo

Tupinikim. É provável que essa literatura seja escassa pelo fato dos Tupinikim serem

considerados, socialmente, aculturados.

Segundo Porto Alegre (2006), até a década de 50 do século XX, a conclusão de que os

grupos indígenas, em contato intensivo com os não-índios, estavam fadados à extinção

estava profundamente arraigado, e não somente no senso comum, mas no indigenismo

oficial e na historiografia. A Antropologia também colaborou para reforçar essa teoria,

com as tipologias da aculturação.

Entretanto, a mesma autora chama atenção para uma resistência dos povos indígenas à

incorporação em outras sociedades. Explica-nos que essa resistência dá visibilidade ao

índio, fazendo com que a sociedade como um todo se dê conta de sua existência

concreta e da sua identificação social no Brasil. Ainda, sendo a cultura pública no

sentido enfatizado por Geertz (1989), a etnicidade é um campo onde se pode confirmar

claramente que o simbólico é pragmático, submete-se à ação, sendo a cultura, no tempo,

a síntese da reprodução e da variação.

Neste contexto, o debate atual sobre o lugar dos índios na sociedade brasileira

permanece aceso no campo intelectual e científico. São os povos indígenas

contemporâneos, são eles mesmo que, ao mostrarem sua capacidade de sobrevivência e

resistência, a vitalidade de suas culturas, a diversidade de suas sociedades, pressionam

indiretamente, os teóricos, os políticos e os cientistas a reverem posições, ainda que

alguns possam ser classificados como aculturados. Mas que não deixam, por isso, de

serem índios.

Isso posto, justificamos trazer à luz de nosso trabalho, a seguir, alguns aspetos desta

cultura, na voz dos próprios Tupinikim de Aracruz, agraciando os ditos de Geertz

(1989) numa visão vygotskyana.

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Segundo os relatos que colhemos dos caciques das aldeias Tupinikim, Caieiras Velha,

Comboios, Irajá e Pau-Brasil, no município de Aracruz, no estado do Espírito Santo,

esses Tupinikim sempre habitaram essas terras, como já foi mencionado. Na verdade,

todos os Tupinikim, com que tivemos contato, desconhecem fatos de terem vindo de

qualquer outro lugar.

Localização

O estado brasileiro do Espírito Santo situa-se na região sudeste do Brasil. Faz divisa ao

sul com os estado do Rio de Janeiro, a oeste, com o estado de Minas Gerais, ao norte

com o estado da Bahia e, a leste, com o Oceano Atlântico. O Espírito Santo tem 77

municípios e sua capital é Vitória, que se situa a leste, no estado.

As aldeias indígenas Tupinikim se localizam no município de Aracruz, litoral norte do

estado do Espírito Santo, cerca de 70 km de Vitória e formam um conjunto de quatro

aldeias: Caieiras Velha, Irajá, Pau Brasil e Comboios, como mostra a imagem de satélite

abaixo.

Figura 2 -Imagem de satélite das aldeias Tupinikim Fonte: Google

Vive nessas aldeias cerca de 2.500 índios, o que representa 0,06% da população do

Estado do Espírito Santo. Desses, segundo dados da FUNAI, existem 2330 Tupinikim

habitando as aldeias Caieiras Velha, Comboios, Irajá e Pau Brasil.

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MAPA DO MUNICÍPIO DE ARACRUZ

MAPA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

MAPA DO BRASIL

Figura 3 – Em foco: as aldeias indígenas Tupinikim Projeção do município de Aracruz a partir do mapa do Brasil Fonte: IBGE

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Figura 4 - Imagem de satélite da aldeia de Caieiras Velha Fonte: Google

Figura 5 - O mapa de Caieiras Velha

Fonte: Educador Rafael Bof

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Figura 6 - Cabana de reuniões em Caieiras Velha Fonte: foto da investigadora

Figura 7 - Foto de satélite da aldeia de Comboios Fonte: Google

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Figura 8 – Parte do mapa da aldeia de Comboios por um aluno da 6ª série. Fonte: foto da investigadora

Figura 9 - Aldeia de Comboios ao fundo, do outro lado do Rio dos Comboios. Fonte: foto da investigadora

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Figura 10 - Rua central de Comboios. À esquerda, em azul, vista parcial

da escola. Fonte: foto da investigadora

Figura 11 - Foto de satélite da aldeia de Irajá Fonte: Google

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Figura 12 – Parte do mapa da aldeia de Irajá por alguns alunos da 5ª série. Fonte: foto da investigadora

Figura 13 - Espaço de reuniões na aldeia de Irajá. Fonte: foto da investigadora

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Figura 14 - Imagem de satélite da aldeia de Pau-Brasil Fonte: Google

Figura 15 – Parte do mapa da aldeia de Pau-Brasil Fonte: Educador Rafael Bof

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Figura 16 - Vista da rua principal da aldeia de Pau-Brasil. Na foto: a igreja católica e a escola, que oferece ensino da Educação Infantil à 4ª série do Ensino Fundamental. Fonte: foto da investigadora

Embora não apareça nas imagens, é interessante observar que cada uma das quatro

aldeias Tupinikim possui uma edificação para suas reuniões sociais, um posto de saúde,

igrejas de três vertentes distintas, roças comunitárias, um campo de futebol e uma

escola. Nas aldeias de Irajá e Pau-Brasil há educação regular da Educação Infantil até a

4ª série. Nas aldeias, de Caieiras Velha e de Comboios, essa educação se amplia ano a

ano e, em 2006 ofereceu desde a Educação Infantil até a 6ª série do Ensino

Fundamental. São nessas últimas os principais cenários onde desenvolvemos nosso

trabalho. Tanto nas escolas como nas comunidades, quando fomos em busca de

conhecimentos dessa cultura, o que todos mencionaram foi a perda de sua linguagem,

que acarreta uma grande frustração para os Tupinikim, como mostraremos com mais

detalhes a seguir.

Linguagem

Em uma manhã de novembro fomos visitar a família Coutinho, na aldeia Tupinikim de

Caieiras Velha. O casal ancião de anfitriões colaborou com muitas informações para o

desenvolvimento deste trabalho. Quando focamos em nossa conversa o tema sobre sua

linguagem nos relataram:

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Minha bisavó nunca conseguiu aprender falar o português. Só falava em tupi mesmo. Dizia

que não conseguia aprender o português. Mas quando ela escutava os outros falarem em

Português entendia algumas coisas. A filha dela, minha avó, e os irmãos da minha avó, todos

falavam nas duas línguas, em tupi e em português. Toda nossa família guardava o segredo

que minha bisavó só falava em Tupi. Tínhamos muito medo que ‘eles’ matassem minha

bisavó porque ela não conseguia aprender a falar o português. Isso era ruim. Tínhamos que

falar nas duas línguas, principalmente só o português mesmo, diziam nossos parentes, os mais

velhos. Os mais velhos até nos aconselhavam que fizéssemos esforços para esquecer a língua

tupi. Eles diziam que Deus achava bonito só o Português mesmo. A gente achava que minha

bisavó podia ser castigada pelos homens e por Deus porque não conseguia falar em Português

(Antônio Coutinho, nov. 2006).

Por meio de registros históricos sabemos que até o final do século XVII, a língua

“oficial” do Brasil era o Tupi-guarani concomitante ao Português. Existem registros que

mencionam que, de cada três brasileiros, dois falavam Tupi-guarani. Mas que em 1759,

sobre influência do Marquês do Pombal, o governo português baixou um decreto

proibindo o uso do idioma “híbrido”, sob a acusação de que isso estava prejudicando as

comunicações nas negociações com sua colônia brasileira.

O governo português impôs até mesmo punições para quem não usasse o idioma

português. Isto é, à força, o tupi-guarani foi tirado de circulação ao longo do tempo. É

provável que, se não houvesse essa medida do governo português, o Brasil seria um país

bilíngüe e sua população usaria o português e o tupi-guarani, tal como hoje ocorre no

Paraguai onde, em muitos lugares desse país, o povo se expressa em Espanhol e em

Guarani.

Registros históricos acrescentam que o Tupi-guarani não formava uma língua uniforme.

Os índios desse mesmo tronco étnico, os primeiros a serem contatados pelos

portugueses que chegaram ao Brasil, falavam inúmeros dialetos. Ainda que fossem de

uma mesma nação, como a dos tupinambás, dos guaranis ou dos Tupinikim, por

exemplo, falavam em linguagens diferentes, em dialetos muito próximos, que

caracterizava a mesma nação, e uma explicação disso podia estar na distância

geográfica entre aldeias de mesmos povos.

Então, é muito provável que, com o passar dos anos, e no convívio do povo Tupinikim

das aldeias de Aracruz com os não índios que povoavam o mesmo distrito, a bisavó de

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Antônio já não falasse nem sequer o dialeto de seus ancestrais, por conta da influência

desses contatos interculturais. Isso é descrito por Helena a seguir, quando se refere ao

seu tempo de infância, algumas décadas depois das experiências vividas por Antônio

com sua bisavó:

Nós não falamos na língua do nosso povo. Os antigos do nosso povo não queriam que a gente

falasse do nosso jeito, porque os que não eram índios faziam muita caçoada da gente. Isso

acontecia, principalmente, quando íamos à Vila do Riacho, quando íamos comprar algumas

coisas por lá, ou no domingo, quando íamos à missa. Quando eu era criança, até o padre

ficava bravo comigo se eu falasse em Tupi. Então, meu bisavô, meu avô, diziam: “Tem que

falar certo, tem que falar certo, tem que falar igual a eles”. Então a gente falava em Português,

como eles. Por causa disso, nós fomos deixando de falar em tupi, porque assim aprendemos

com os mais velhos que tínhamos que fazer. Na verdade, a gente falava só algumas frases na

nossa língua e, com o tempo, fomos esquecendo o pouco que falávamos em Tupi. Quando eu

já tinha meus doze anos, eu e meus irmãos, só falávamos em Português mesmo. Eu me criei

assim. Nos dias de hoje, os Tupinikim das escolas daqui, estão fazendo estudos da língua

Tupi. Minha netinha, a Juliana, está aprendendo tupi na escola com um deles, a falar, a ler e a

escrever. Estou muito contente de ver as crianças da nossa aldeia falando em Tupi, e elas

estão gostando muito (risos) (Helena Coutinho, nov. 2006).

Nas escolas das aldeias Tupinikim, em Caieiras Velhas, em Comboios, em Pau-Brasil e

em Irajá, as crianças aprendem sua linguagem por meio da disciplina Tupi, que faz parte

do currículo escolar. Esses educadores, que lecionam Tupi nessas escolas,

eventualmente, freqüentam cursos de formação continuada da disciplina com um

formador que vem do estado da Paraíba, para após, passarem os conteúdos discutidos na

escola, quando ministram a disciplina aos seus alunos. Cada uma dessas escolas tem um

professor responsável pelo seu ensinamento.

Assim como Helena e Antônio, os outros Tupinikim mais velhos gostam de saber que

esta matéria é lecionada em suas escolas. Se sentem orgulhosos. O mesmo acontece

com as crianças matriculadas nas escolas de Ensino Fundamental, as dos ciclos iniciais,

que mostram apreço por essa aprendizagem.

Entretanto, em conversa com alguns adolescentes da 5ª e 6ª série, principalmente alguns

da última, vimos que questionam a utilidade do Tupi, assim como questionam a

utilidade de aprenderem outras disciplinas. Entendem que é muito complicada a

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aprendizagem do Tupi, principalmente sua escrita, que é preciso dispensar muito tempo

para aprendê-la em detrimento das outras disciplinas. Eles se perguntam qual a

importância de saberem falar ou, principalmente, de se escrever em Tupi, e que

utilidade real, ou que benefício essa aprendizagem pode proporcionar em suas vidas no

momento atual, assim como em momentos futuros.

Figura 17 - Caderno de uma aluna da 4ª série Escola Municipal de

Ensino Fundamental de Pau-Brasil Fonte: foto da investigadora

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Figura 18 - Cartaz na parede em uma das salas de aula na Escola Municipal de Ensino Fundamental de Caieira Velha Fonte: foto da investigadora

As fotos ilustram a aprendizagem do Tupi em sala de aula. Os alunos também aprendem

a cantar em Tupi e, em festejos sociais mais recentes, já demonstram publicamente sua

nova aprendizagem, aos cuidados dos educadores das escolas.

Habitação

Conversamos com alguns Tupinikim a respeito de sua maneira de morar e, igualmente

aos primeiros, gentilmente nos atenderam. Descreveram como eram, e como são

construídas suas residências, como e quando houve algumas transformações em sua

forma de morar e qual a visão que eles têm hoje deste aspecto, como poderemos

constatar nos relatos a seguir.

A casa da minha filha é de estuque e a casa do pessoal mais antigo era assim, paredes com

juçaras e com masseiras de barro. E o telhado, com feixe de palha de nayhá. Depois que

fomos conhecendo mais gente, isso foi mudando. Acho que o índio ia ficando com vergonha

de ficar assim, junto com aquelas pessoas que moravam em casas de lajotas, querendo

também trabalhar para ter esse tipo de casa. Acho que, também por causa disso, foi indo

embora essa nossa tradição. Fomos mudando nosso jeito de morar. Agora, para nós, está

difícil retomar essa tradição porque, se vamos para o meio do mato, e se a gente tira madeira,

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o IBAMA já não deixa, e dizem que estamos destruindo a natureza. Antes íamos buscar

madeira no mato sem medo. Antes era bem mais fácil. Hoje temos que comprar as coisas.

Agora, ‘eles’ dizem que não podemos fazer isso, porque se formos, não sei quantos anos de

cadeia podemos pegar (Yby-Membyra, Caieiras Velhas, set. de 2006).

A influência de outra cultura fica claro nas palavras da nossa anfitriã. Como bem nos

disse Yby-Membyra, as residências das aldeias Tupinikim são construídas de alvenaria

ou de estuque, também conhecido por taipa. Para as de estuque os telhados são feitos

usando feixes de nayhá ou de taboa, tramadas, embora possamos ver algumas dessas, já

com telhados cobertos com telhas industrializadas, por preferência. Dizem que, se

usarem telhas industrializadas, provavelmente, as casas terão menos problemas futuros,

e não terão necessidade de reparos constantes.

Eventualmente, próximo às casas, seja de alvenaria ou de estuque, encontra-se uma

pequena construção, tipo varanda à parte, com uma cozinha alternativa, com fogão

artesanal à lenha, que se localiza, geralmente, nos fundos das residências, à saída da

cozinha interna. Os móveis, o conforto e a presença de eletrodomésticos nas casas são

tais como conhecemos. Em algumas delas, nas de estuque, é ausente a presença de

utensílios modernos, com uma única cozinha interna à casa, com o fogão artesanal, com

um único banheiro externo, como a casa de Santa em Pau-Brasil.

Principalmente as casas de alvenaria, são compostas de sala, copa-cozinha ampla, três

quartos e um banheiro interno e, em muitas casas, há um segundo banheiro e uma

segunda cozinha na parte externa. Na casa de alguns dos educadores, além do que já

descrevemos, encontramos também um escritório, ou um espaço próprio para estudos.

As casas de estuque ou taipa, geralmente, têm dois quartos e uma sala-cozinha,

conjugadas e banheiro externo. As aldeias possuem rede de luz e de água, canalizada de

fonte natural.

Sabemos que o estuque tem nobreza histórica. Segundo Miranda (2006), as reforçadas

casas e igrejas coloniais brasileiras foram feitas de taipa de pilão. A taipa tem mais de

nove mil anos e serviu a construções no Egito, na Mesopotâmia, assim como à muralha

da China, no séc. XII.

A casa de estuque nasce no chão, vem da natureza, é construída com o material que está

ali, a terra e as árvores. Considerada uma estratégia milenar de abrigo, são preservadas

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em aldeias indígenas e nos sertões brasileiros, especialmente pelas mulheres, assim

como acontece com os Tupinikim.

Das casas que estão sendo construídas, podemos ver uma preferência pequena pelas de

alvenaria em relação às de estuque. Em conversa com algumas famílias, foi reiterado

que esse último sistema de construção minimiza, o que anteriormente eliminava, a

compra de material, o custo monetário de transporte, o crédito bancário e, socialmente,

permite o mutirão, portanto educa. A técnica pode ser usada aonde não se tem acesso ao

material industrializado. Apontam que os especialistas dizem que uma boa e simples

caiação evita a umidade e que basta fechar bem as frestas, onde o barbeiro gosta de

fazer seu ninho, para que a casa não ofereça perigos à saúde para quem a freqüenta.

Essa modalidade de construção, também segundo informações colhidas nas aldeias

Tupinikim, integra as famílias, as mulheres e as crianças, e integra o grupo na sociedade

quando em regime de mutirão. Sem desperdício de material e nem agressão ecológica, a

madeira usada na construção é, em quantidade, cinco vezes menor, do que a necessária

para a queima de tijolos para uma parede de alvenaria de mesmas dimensões.

As construções das casas de alvenaria, geralmente, também são feitas em mutirão, entre

àqueles que já dominam essa técnica de construção. Também nos informaram que,

independente de suas escolhas, ao construírem, sejam casas de alvenaria ou sejam de

estuque, para a aquisição do material para construção precisam recorrer ao comércio,

sem possibilidades de colherem todo o material nas matas como faziam, principalmente,

até pouco tempo atrás, próximo dos anos 80, no séc. XX.

Para as casas de estuque não existe proibição para a busca de feixes de juçaras no mato,

para a construção de suas paredes ou de palha de nayhá, ou de taboa11 para seu telhado.

Talvez porque, para retirarem as juçaras, não precisem cortar, de forma definitiva, as

palmeiras. Tomam apenas seus galhos, retiram suas folhas e juntam seus pecíolos para,

a cada 25 deles, formarem um feixe. Para as paredes, entre as juçaras, colocadas

sobrepostas em ângulos de 90º, usam as masseiras de barro que fazem e, para isso,

também não têm restrições legais.

11 Tipo touceira de capim. Planta que se assemelha ao que se conhece como capim-cidreira. É também com a taboa que fazem suas esteiras e suas tangas (saias).

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Assim, a restrição do IBAMA fica por conta mesmo das poucas toras de madeira que

precisam, tanto para os telhados, quanto para as quinas das casas, tendo que recorrerem

ao comércio para adquiri-las. Assim, as construções de residências em estuque têm

custo ínfimo, se comparada às de alvenaria, o que pode justificar, provavelmente, a

preferência ainda atual, por alguns, por esse tipo de construção, como vimos nas aldeias.

Socialmente, é interessante destacarmos que não existe delimitação de terreno, por

muros ou cercas, onde estão localizadas as residências. Segundo informações dos

Tupinikim, os cercados existentes, são os construídos na volta das hortas, para que o

plantio das hortaliças fique protegido da entrada de animais domésticos, que circulam

livremente nas aldeias.

19. Nayhá, cujos feixes secos são usados para a cobertura das casas.

20. Taboa, que pode substituir os feixes de Nayhá, para telhados, que são colocados secos e tramados.

21. Casa de estuque em construção, com telha de amianto, a espera de masseiras de barro para fechar as paredes, que já estão sustentadas por jussaras (esqueletos de paredes).

22. Casa de estuque com telhado de taboa.

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23. Moradia de estuque (ou taipa) com telhado de telhas coloniais. Residência anterior da família de um dos educadores.

24. Moradia de alvenaria. Ao fundo, um banheiro auxiliar. Residência atual da família do educador, muito próxima à moradia anterior – a da foto à esquerda.

25. A residência de estuque que será substituída pela casa ao lado, de alvenaria, em construção.

26. O forno artesanal à lenha, externo, nos fundos de uma das casas de alvenaria, na aldeia Pau-Brasil.

Figuras 19 a 26 – Fotos referentes à moradia nas aldeias Tupinikim ao longo de 2006. Fonte: Fotos da investigadora.

Entretanto, quando falamos com o Cacique da aldeia de Comboios, João Mateus, nos

informou:

Meus avós me contaram, que ouviram de seus avós, que sempre moramos aqui. Os avós de

meus avós também contaram que existia na nossa aldeia, tanto casas de estuque, como casas

inteiramente feitas de palha. As de palha eram maioria. Essas casas eram feitas com rodado

de palha de guriri e telhado de sapê. Eu soube que eles não conheciam como se fazia

masseiras de barro para paredes. Também me disseram que aqui em Comboios custou muito

mais tempo, do que nas outras aldeias, para todos trocarem para casas de estuque. Inclusive

quando eu era criança, ainda tinha alguns vestígios de ocas com rodado de guriri

abandonadas. No entanto, hoje já está mudado outra vez e as casa de estuque já estão

sumindo e cada vez se vê mais casa de alvenaria com piso frio, com cozinhas e banheiros

internos. Meus avós, meus bisavós, ou os avós de meus avós, nunca iam pensar que ia chegar

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o dia da gente poder usar um banheiro ou fazer fogo para fazer comida dentro de casa, ainda

com luz, com água e até televisão, imagine! (Pindaguaçu – João Mateus, Cacique da aldeia

de Comboios, out. 2006).

As imagens nas fotos e os depoimentos ilustram os movimentos culturais para moradia,

pelos quais passaram e estão passando os índios Tupinikim, resultados das relações

interculturais.

Alimentação

Originalmente, os Tupinikim viviam da caça, da pesca, da coleta de caranguejos em

manguezais, da coleta de ostras e mariscos. Posteriormente, também da colheita do

plantio dos seus roçados. Para caçarem usavam armadilhas ou arco e flecha. Caçavam

anta, macaco, onça pintada, tamanduá, lagarto, capivara, veado, pássaros em geral, etc.

Segundo Jonas, cacique de Irajá:

Fomos criados comendo peixes de água doce, carne de caça, passarinhos, frutas do mato,

marisco de mangue e caranguejo, além dos produtos que vinham do roçado, como cana-de-

açúcar, café, mandioca, abóbora, feijão de vagem, feijão güando, entre outros produtos, que

agora não lembro. Todos nós tínhamos algumas galinhas de criação e, quem tinha criação de

porco cedia para outras famílias um pouco de banha. De uns tempos pra cá que temos horta,

cada família a sua, com cebola, alho, cebolinha. Tomates são poucos que plantam, porque

não é da nossa cultura consumirmos tomates. Não é mais como já foi um dia. Os

tempos são outros (Jonas, Cacique da aldeia de Irajá, nov. de 2006).

Atualmente, não raro, podemos observar que a pesca no rio Piraquê-Açu ainda é feita

com linha de palha de Tucum ou de Pita. Com a linha confeccionam o puçá (rede de

linha de tucum) ou por meio de inúmeras armadilhas artesanalmente produzidas, sendo

as mais comuns, o quitambu (um cercado de espinhos) e o jequiá (cesto de varas

flexíveis, afunilado), pescam as espécies de peixes disponíveis nos períodos permitidos

pelo IBAMA.

Segundo Helena Pereira Coutinho e seu marido Antônio Coutinho, ambos Tupinikim

residentes na aldeia de Caieiras Velha, para efeito de conservação desses alimentos,

depois que retalhavam as carnes provenientes de caça, cozinhavam com alho e coentro.

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Após, fritavam na banha de porco, produzida na aldeia. Limpavam os peixes, os

salgavam, colocavam coentro e os envolviam com folhas, que podia ser de abóbora.

Envolviam igualmente as carnes da caça, com a finalidade de protegerem de pousos de

insetos. Posteriormente, as carnes embrulhadas eram guardadas dentro de um

amontoado de pedras, no chão, próximo do fogão artesanal à lenha com nome de três-

marias. Se o fogão fosse suspenso, as carnes eram acondicionadas debaixo do fogão. Os

peixes eram colocados em samburás e pendurados na cozinha. Assim, de acordo com a

necessidade, iam se servindo das carnes armazenadas.

Segundo o Pajé que reside em Caieiras Velha, Alexandre Cezenando, e sua esposa

Maria da Penha Cezenando, algumas famílias usavam e usam saladas, apenas

temperadas com sal, que antes era produzido por eles da seguinte maneira: à beira de

uma praia, na areia, cerca de 10m da água do mar, colocavam três pedras de formato

chato no chão, na areia. Entre o vão dessas pedras faziam um buraco e ali colocavam

lenha para queimar. A esse fogão artesanal davam o nome de três-marias. Sobre as

pedras, equilibravam uma vasilha de barro rasa. Dentro da vasilha colocavam água do

mar, que não podia ser colhida da beirada da orla. Entravam na água e só recolhiam a

água que distasse um pouco da orla, pelo menos, de uma altura que passasse de sua

cintura, por conter menos areia. Colocavam a água retirada do mar na vasilha que

fervia até evaporar totalmente. O que restava da vasilha era o sal. Assim, passavam

horas repetindo o processo até obterem uma quantidade desejada de sal.

As saladas, folhas de algumas plantas, eram dispostas em maços, algumas refogadas no

sal, outras ao natural, sobre uma esteira de taboa e, enquanto a carne ia assando no fogo,

essas famílias Tupinikim conversavam e comiam essas verduras do mato, normalmente

das plantas: serraia amargosa, capiçoba, jiquiri, serraia do veado (que não é amargosa),

serraia almeirão do mato, erva moura, melão, taboa (a mesma para fazer esteiras), broto

de imbaúba (semelhante ao quiabo), caruru de onça e folha de batata caratinga. Essas,

quando encontradas no mato, são consumidas até os dias de hoje.

Atualmente, nos plantios roçados, geralmente comuns às famílias Tupinikim, encontra-

se principalmente milho, alguns diferentes tipos de feijão e mandioca, cana-de-açúcar,

batata (doce, cará, inglesa, caratinga) e café. Em geral, cada tronco familiar tem sua

horta com alface, tomate, agrião, hortelã, cebola, cebolinha, alho, couve, coentro e salsa.

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Nas aldeias podemos encontrar muitas árvores frutíferas. As mais freqüentes são de

acerola, urucum, pitanga, goiaba, abacate, araçá, coco, manga, jaca, limão, banana e

mamão. Das frutas rasteiras, melão, melancia e abóbora. Essas últimas são normalmente

comercializadas.

Cotidianamente, pela manhã, é comum os Tupinikim se alimentarem de café

acompanhado de batatas. Ao meio-dia, feijão güando ou fava (feijão de corda),

acompanhado de arroz, milho ou macarrão, carne com osso, ou peixe e farinha de

mandioca. As saladas em geral são de alface e de tomates. No preparo do molho das

carnes não é usado tomate, conforme a tradição. O feijão e a farinha, normalmente são

indispensáveis. Da sua alimentação, alguns produtos alimentares são colhidos nos

roçados, produzidos pelos Tupinikim, encontrados nas matas enquanto outros são

adquiridos no comércio, produtos industrializados. As carnes, como de galinha, são

provenientes da criação doméstica, não confinados. Os peixes, na maioria das vezes,

vêm da pesca. À tarde se servem das frutas colhidas no pé ou tomam café, leite

acompanhado de pão, manteiga, geléia, queijo ou mel. O mel é produzido e

comercializado por uma família Tupinikim da aldeia Pau-Brasil. À noite, têm o hábito

de jantarem. Os chás plantados e colhidos, ou ainda encontrados no mato, são

consumidos em quaisquer momentos do dia com o intuito de prevenirem-se de doenças

ou para a cura de algum mal-estar.

Para os Tupinikim, assim como foi para seus ancestrais, é importante terem em casa a

coaba, para fazerem um brinde na família ou oferecerem às suas visitas. A coaba é

preparada com coin (aipim, mandioca branca) cozido e socado. Após, coloca-se num

cocho, ou gamela, até fermentar. Quando fermentado – a fermentação em geral acontece

umas 72 horas depois de ter sido colocado na gamela –, consideram a coaba pronta para

o consumo. Ensinam que, se for colocado ao coin socado três grãos de milho, acelera a

fermentação. Àqueles que não têm opção religiosa, que proíbe tal consumo por ser

considerado alcoólico, tomam a coaba com gosto, satisfação e, normalmente, com

moderação. Alguns fazem questão de bebê-la na casca do cuité12, pequena vasilha feita

com o fruto da cueira (ou cuitezeira), espécie de cuia. Dizem que assim fica mais

gostoso.

12 Curiosidade: o cuité é um fruto parecido com coco, o mesmo usado para a confecção dos berimbaus, instrumento musical da cultura africana.

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27. Antônio Coutinho, Tupinikim de Caieiras Velha, 96 anos, ajuda no preparo da refeição para sua família (set/2006). O fogão é artesanal, à lenha, comumente encontrado em várias casas dos Tupinikim. Na panela, o feijão güando. Em algumas casas, verificamos uma segunda cozinha, externa à casa, como essa da foto.

28. No cercado da horta da família de Antônio e de Helena, um dos galos da criação (a criação de animais domésticos é não confinada).

29 e 30. Aqui focamos o broto comestível da imbaúba, considerado uma iguaria pelos Tupinikim. À esquerda, podemos ver este mesmo pé de imbaúba, na estrada entre a Aldeia de Irajá e o distrito de Coqueiral.

31. Vagem do feijão güando.

32. Pé de feijão guando no pátio da casa de um dos educadores.

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33. Coité (kuie´te – ´kuia (cuia) + e´te (verdadeiro)), utilizados pela família Coutinho para tomarem coaba.

34. Helena Coutinho explicando a importância de cuidarem dos cueiros, ou coitezeiros, para manterem a tradição de alimentarem-se, usando o coité como prato. Preferencialmente usado como recipiente para o consumo da coaba.

35. O mel produzido na Aldeia Pau-Brasil.

36. A Coaba preparada por Santa da aldeia Pau-Brasil.

Figuras 27 a 36 – Fotos referentes à alimentação nas aldeias Tupinikim. Fonte: Fotos da investigadora.

Fomos convidados, junto a um dos educadores, para tomarmos a coaba, bebida de sabor

adocicado, preparada por Santa, de Pau-Brasil. Em um dos nossos almoços, na casa de

Jocélia, comemos feijão güando. O sabor do feijão güando, para nossa memória, ficou

entre o gosto de pinhão e de feijão preto. Periodicamente, compramos e trouxemos para

casa o mel produzido na aldeia Pau-Brasil, desde o início dos nossos primeiros contatos.

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Religião

A gente sempre acreditou em Deus e na natureza como sendo a mesma coisa. Sabemos que os

mais antigos pensavam que a natureza era o próprio Deus porque foi ele mesmo quem a

criou. Então Ele poderia estar em qualquer coisa ou lugar da natureza. Sabemos também que

Deus criou o homem e a mulher e deu alguns dons para alguns homens, como o dom dado

aos Pajés, que curam muitas das nossas doenças até hoje. Eles têm o dom da reza. Nós

acreditamos nas rezas do Pajé como um dom concedido por Deus. Acreditamos também que

os índios do nosso povo, que já morreram, olham por nós. Acreditamos que Deus iluminou

algumas espécies de animais, como a kauan, uma ave do tamanho de um sabiá, que nos avisa

com seu canto alto, uns 15 dias antes, que alguém da aldeia, próximo de onde ela canta, vai

falecer. Eu nunca soube de um caso onde a kauan tenham cantado e, na região onde ela tenha

cantado, numa casa das redondezas não tenha morrido alguém. Ouvimos muito mais o canto

dessa ave do que a avistamos. É raro vê-la, mas se a vimos jamais a caçamos, porque ela, para

nós, é não comestível. Eu acredito na kauan e acho que todos nós acreditamos. Do mesmo

jeito que muitos de nós acreditamos nos ensinamentos dos padres e dos pastores, das igrejas

que estão nas aldeias. As igrejas católicas foram construídas há muito tempo e as outras, de

outro tipo, vieram depois, por volta dos anos 70, 80. Alguns de nós freqüentávamos templos

católicos e não católicos na Vila do Riacho. Para não caminharmos tanto, algumas dessas

igrejas se instalaram aqui, com o consentimento nosso e dos caciques. Como Deus está em

todo lugar, então está em todas as igrejas e também, para as curas, junto da alma do Pajé, ou

no canto desse pássaro. Deus está em toda a natureza e na natureza de cada um dos seus seres.

Aqui, nas nossas aldeias, nós podemos escolher em qual das igrejas queremos ir ou, até

mesmo, irmos a outras, fora das aldeias, da mesma forma que podemos escolher não

freqüentar nenhuma, como acontece com alguns de nós (Deusdéia de Souza Pego Silva,

aldeia de Pau Brasil, nov. 2006).

No depoimento a aculturação é evidenciada pela escolha em seguir uma religião, que

pode ser distante de seus pressupostos culturais, segundo suas palavras. Salienta que

estar na mata tem o mesmo valor emocional que ouvir as palavras do pastor de sua

religião atual.

Nas aldeias indígenas existem templos de três vertentes religiosas: Católica, Assembléia

de Deus e Deus é Amor. O número maior de adeptos é da Igreja Católica. Segundo

alguns Tupinikim, essa escolha pode ser entendida, por ter sido a religião que seus

antepassados também seguiram, a partir da chegada dos portugueses. Para alguns, ser

católico significa seguir as tradições de seus antepassados.

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37. Igreja Católica em Comboios.

38. Igreja Católica em Pau-Brasil.

39. Igreja Assembléia de Deus em Pau-Brasil. 40. Igreja Católica em Irajá.

41. Igreja Católica em Caieiras Velhas.

Figuras 37 a 41 – Fotos referentes à religião nas aldeias Tupinikim. Fonte: Fotos da investigadora.

Até a década de setenta, em cada aldeia, existiam apenas as igrejas católicas. A mais

antiga é a de São Benedito, em Caieiras Velha. Na década de setenta se instalaram,

também em cada aldeia um templo da igreja da Assembléia de Deus, com

consentimento de cada cacique e de cada comunidade. Já por volta dos finais dos anos

oitenta, com o mesmo tipo de consentimento, houve as instalações das igrejas Deus é

Amor. Apesar de freqüentarem os templos, muitos dos Tupinikim consideram a

natureza também, como um templo divino, como podemos constatar na fala a seguir.

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Eu freqüento um dos templos religiosos edificados em nossa aldeia e creio nas palavras da

Bíblia e nos ensinamentos do pastor. Apesar de eu sentir muita satisfação e respeito por

minha escolha religiosa, penso que, muito provavelmente, seja evangélica porque não tive o

privilégio de conhecer a nossa reza. Acho que nossa reza era muito mais do que isso que

temos e sabemos hoje. Acho que nossa crença em Deus tem algo a ver com algumas lendas

que conhecemos até hoje, e em que muitos de nós acreditamos como sendo verdade. Não sei.

O que sei é que, quando sinto dificuldades, eu vou para a mata sozinha, sempre com os pés

descalços e converso com as plantas, com a natureza. É ali que choro, que canto, que

converso ou rio. Não me sinto sozinha porque faço parte do lugar. Quando as folhas das

árvores me abanam tenho a sensação de que estou sendo valorizada, como se as árvores

batessem palmas para mim. A mata me valoriza porque sabe que eu a valorizo. Faço parte da

mata, como cada árvore, cada planta, como a terra que ampara a mata, entende? Eu não sei o

que acontece comigo quando estou na mata. Minha alma fica leve. Sei e sinto que faço parte

daquela natureza ao meu redor. Não me sinto superior a uma folha sequer. Espiritualmente,

sinto alegria e paz interior, próxima de Deus porque a natureza é Deus. É ali que faço as

minhas reflexões pessoais e falo com a natureza, que é o mesmo que falar com Ele. Têm

vezes que vou triste ou estressada para a mata e, quando saio, me sinto renovada. A mata,

para mim, é também um templo religioso. E não sou só eu que se sente assim. Muitos de nós

Tupinikim sentem e dizem a mesma coisa. Pode perguntar por aí! (Irmã de um dos

educadores, aldeia de Pau-Brasil, set. 2006).

C

Q im e solicitamos que nos falassem a respeito

de suas escolhas religiosas, a mata, vista como templo espiritual, foi uma escolha quase

de muitos tempos atrás. Entretanto, alguns nos

disseram que as lendas, principalmente as que são acreditadas por muitos, como

omo vimos, é veemente o depoimento que vincula a natureza à espiritualidade.

uando conversamos com vários Tupinik

unânime. Até mesmo os Tupinikim, que optam por não freqüentarem nenhuma das três

religiões ou outras, entendem a natureza, especificamente rios, cachoeiras ou matas,

como possuidores de seus corpos e de seus espíritos, assim como seus corpos e espíritos

a possuem, porque natureza é Deus.

Nenhum daqueles com quem falamos soube nos dizer a respeito de preceitos religiosos

específicos de ancestrais Tupinikim,

verdades até os dias de hoje, como a do Saci (Mugrabi et al (org.), 1999), da Mãe

D’água (Mugrabi et al (org.), 1999), assim como a presença de parteiras, de Pajés, das

danças, das pinturas corporais, entre outras coisas, poderiam ser rastros de um legado

cultural religioso, se fosse considerado que, desde muito, esses conhecimentos tenham

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sido passados cada vez mais incompletos, por meio de oralidades. Alguns Tupinikim

acreditam que alguns desses fatores talvez tivessem feito parte dos caminhos, que os

Tupinikim percorriam para estarem próximos de algum único Deus, ou de Deuses. Não

se sabe.

Artesanato

artesanato era confeccionado exclusivamente para uso doméstico. Atualmente, é

também uma das fontes de renda das comunidades indígenas, resultado das ações

organização das mulheres Tupinikim, com apoio da Pastoral da Igreja

O

conjunta da

Católica, de outras igrejas e têm autorização da Prefeitura de Aracruz para seu

comércio. O ponto de vendas é na Rodoviária da mesma cidade, segundo a líder junto às

mulheres da aldeia de Pau-Brasil, Deusdéia de Souza Pêgo Silva.

Muitas mulheres diziam que precisavam trabalhar para ajudarem seus maridos com a renda

familiar. Antes, podíamos caçar e não faltava carne à mesa. Agora somos proibidos dessa

prática. Mesmo que pudéssemos, com a instalação da Aracruz Celulose, ficamos sem matas e

sem onde caçarmos. Nossa criação de porcos foi proibida também. A compra de carne,

principalmente, não é barata para nós. Então entendemos que as mulheres, que se preocupam

muito com a alimentação dos seus filhos e querem mais conforto em casa, precisam ajudar no

orçamento das suas famílias. Nós entendemos e discutimos isso tempos atrás. Então veio a

idéia de produção cooperada do artesanato feminino indígena. Conversamos com o Secretário

de Turismo e de Cultura, da Prefeitura de Aracruz, e tivemos total apoio. Criamos oficinas

para isso. As igrejas também ajudaram muito. Ajudamos sempre uns aos outros. As mulheres

se organizaram e estão muito contentes com o sucesso das vendas de seus produtos na

Rodoviária (Cacique Jonas da aldeia de Irajá, dez. 2006).

Em

m aldeias, expõe seus anseios, suas

necessidades e discute propostas de ações para solucionar seus problemas mais

cada aldeia Tupinikim existe uma liderança feminina, que representa o grupo de

ulheres que, em reuniões com outras lideranças das

urgentes. Uma dessas ações, como solução para a discussão da vontade e da necessidade

de trabalho remunerado para as mulheres Tupinikim, originou a criação de uma oficina

de artesanato em cada aldeia e, posteriormente, à conquista de um ponto de vendas que

fosse interessante para oferecer a produção de todas, Caieiras Velhas, Comboios, Pau-

Brasil e Irajá.

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Inicialmente, a mobilização da Pastoral da Igreja Católica para essa criação, resultou em

doações de tecidos, tintas, colas de tecido, pincéis, máquinas de costura e outros

produtos que possibilitassem o início da produção do artesanato indígena Tupinikim.

Contaram também, e contam até hoje, com a ajuda das outras igrejas da própria

e buscam nas matas cabaças, vagens de sementes não

comestíveis, ou sementes caídas ao chão, para produzirem pulseiras e colares, palha de

comunidade, de outras igrejas de distritos vizinhos, assim como com a ajuda de alguns

comerciantes de Aracruz e com outras instituições, como a do apoio fundamental, da

própria Prefeitura de Aracruz.

Nas oficinas onde produzem os artesanatos, muitas mulheres se reúnem à tardinha e à

noite, onde armazenam a matéria-prima dos produtos que criam. Contam com a ajuda

dos homens e das crianças, qu

milho, etc. Alguns homens, em casa, se ocupam de confeccionarem arcos e flechas,

samburás, peneiras, panelinhas de barro, para o aumento da produção, para ajudarem,

uma vez que as vendas têm tido sucesso.

Muitos dos nossos artesanatos usamos de fato no nosso cotidiano, como as peneiras, o tipiti, o

jequiá, o samburá, o pilão, a cabaça - para colocarmos mantimentos ou lavarmos arroz,

cabacinha como concha, gamela para temperarmos uma carne ou acondicionarmos a coaba e

muitos outros. Mas, para fins de produção comercial, nós estamos achando ótimo podermos

vender nossos produtos de artesanato de forma organizada. A ajuda da prefeitura de Aracruz

foi muito importante. Das Igrejas também. Vendendo na Rodoviária, ganhamos muito mais

do que quando vendíamos isoladamente. Nada impede que alguns pensem diferente e que

produzam e vendam particularmente, embora a maioria prefira mesmo a produção cooperada.

O trabalho em cooperação para nós mulheres, é fundamental. Uma dá entusiasmo à outra.

Vamos conversando e trabalhando, discutimos novas possibilidades de produtos, seus custos,

quanto poderemos cobrar. Enquanto produzimos nosso artesanato vamos discutindo os

problemas de nossa comunidade mesmo, principalmente as mobilizações de nosso povo, e

dos Guarani, na Luta pela Terra. O que mais queremos é nosso lugar e paz para nossos filhos.

Queremos carne à mesa para nossos filhos. Falando nas crianças, conversamos muito a

respeito delas, como estão indo na escola, se estão cumprindo com suas tarefas.

Confeccionamos nossos artesanatos assim, aconselhando umas às outras, tanto na própria

produção, como em nossas vidas. Falamos dos nossos problemas financeiros e da vontade em

adquirirmos coisas novas para a nossa casa, na vontade de nossos filhos terem mais conforto

e uma vida futura melhor que a nossa. Essas coisas. Às vezes, trabalhamos e cantamos. Na

realidade, neste cotidiano conversamos pouco, porque em geral, somos de falar pouco.

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Ficamos por horas em silêncio total. Nos entendemos bem e, se por acaso temos opiniões

diferentes sobre alguma coisa, discutimos amigavelmente. Acho que nossas reuniões de

trabalho na oficina são educativas e exemplo para nossos filhos. Fazer esse trabalho aumenta

nossa auto-estima. Estamos nos sentindo capazes até de nos superarmos! (risos). Ficamos

muito contentes quando conseguimos criar novos produtos artesanais acompanhando o que

está na moda. Mas primeiro fizemos sempre os produtos que retratam nossa tradição e, para a

produção, não deixamos de nos preocuparmos com o meio-ambiente. Atualmente, estou indo

em algumas casas, para pedir a outros que também façam produtos artesanais, porque

queremos atender às demandas (Deusdéia, liderança feminina de Pau-Brasil, set. 2006).

O

d

u ancas

ou de novas matérias-primas, que possam precisar para a criação de novos produtos. A

retorno financeiro é proporcional à produção de cada um. Ao final das vendas, antes

e repartirem entre si o lucro proporcional da produção, que inclui os homens, separam

m capital para a compra de reposições de materiais, como tecidos e camisetas br

produção é organizada, discutida e combinada anteriormente entre todas, originadas

pelo bom-senso de cada grupo, de cada aldeia, que se combinam entre si, o quê e como

vão repartir as tarefas de produção, de acordo com a disponibilidade de cada um, e para

terem certeza da diversificação dos produtos que serão dispostos no seu comércio.

42. Camiseta pintada à mão. Ilustração: cocar.

43. Bonequinha índia confeccionada com tecido de algodão cru, pintada à mão. Os braços e a cabeça, de resina. Na blusa e na cestinha de bambu, sementinhas de pau-brasil.

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44. Bolsa de tecido, com aplicação de pintura à mão, tambores. As sementes são costuradas.

45. Camiseta pintada à mão. Ilustração: menina índia segurando uma espiga de milho.

46. Colares confeccionados com diversas sementes.

47. Arcos e flechas ornamentais.

48. Bonequinhos: à esquerda, confeccionado com algodão cru e aplicação de fitas de sedas. O do centro e o da direita, confeccionados com palha de milho.

49. Atividade na oficina. Algumas mulheres trabalham durante o dia e outras, à noite. As idas à noite na oficina podem ser consideradas, para algumas poucas mulheres, mais uma jornada de trabalho, para àquelas que trabalham, regularmente, em outros lugares durante o dia.

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50. Alguns materiais disponíveis na oficina.

51. Mulheres em atividade na oficina de artesanato.

52. Colocando elástico, em uma saia de algodão, barrada com renda de bilro, que será pintada à mão com ilustração de alguma planta nativa indígena.

53. Bolsa com aplicação de um pequeno painel de motivo indígena, pintado à mão.

54. Na foto podemos ver um pilão, panela de barro, uma cesta, o samburá e algumas cabaças e o fogão artesanal, um espaço externo à residência.

55. Jonas do Rosário, cacique da aldeia de Irajá segurando o jequiá, uma armadilha artesanal para peixes.

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56. O educador Jeferson segurando o pindaíba, artefato que serve para a caça de peixes ou para abater animais.

57. O café pilado e não pilado. Santa, de Pau Brasil, acondiciona o café em suas peneiras confeccionadas por ela.

58. Santa, em sua cozinha, demonstrando o uso do pilão.

59. O cacique Jonas do Rosário com o tipiti, que serve para espremer a mandioca para a produção de sua farinha. Também é comercializado.

60. À esquerda, a Pita, uma das plantas de onde é retirada a linha para a pesca ou para confeccionar rede de pesca, o puçá. Confecção da linha: Colher folhas de Pita e machucá-las batendo sobre elas, com pedras. Colocar as folhas machucadas em um tanque raso com água, que cobre todas as folhas. Deixar por alguns dias, para que a polpa da folha apodreça. Retirar a polpa apodrecida. Assim, retira suas linhas – fibras das folhas, que poderão ser emendadas. Machucar as folhas com as pedras apenas acelera o processo da retirada da polpa. Sua resistência é respeitada no universo indígena.

Figuras 42 a 60 – Fotos referentes ao artesanato nas aldeias Tupinikim. Fonte: Fotos da investigadora.

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As fotos mostram alguns exemplos da produção do artesanato indígena Tupinikim. E,

como pudemos ver, alguns são feitos de penas coloridas, sementes e madeira. Com

autorização e submetidos às leis que protegem o meio ambiente, os Tupinikim não têm

problemas com a fiscalização do IBAMA. Ao contrário, esses índios se preocupam

muito em não ferir o meio ambiente, são conscientes das leis brasileiras que o protege.

Assim toda sua produção artesanal é autorizada por esse órgão público.

A parte ornamental dos arcos e as zarabatanas, por exemplo, não são feitos com o

mesmo material, como de fato são feitos àqueles para caça. Para fins comerciais de

artesanato são feitos de tajibibuia (ou tabebuia), planta da família das bignoniáceas,

notável pela leveza de seu lenho, encontrada nos brejos em grande quantidade, que se

reproduz em abundância. Os chocalhos são feitos de cabaça, ou de coco verde. As

sementes, utilizadas para pulseiras, brincos e colares, são aquelas que são encontradas

com facilidade e que têm também em abundância na região. Algumas sementes quando

estão escassas nas aldeias são adquiridas no comércio. As penas utilizadas são de

galináceos, tingidas. Os Tupinikim não escondem de quem compra seus produtos, que

as penas são de galináceos, embora não gostem disso. Eles gostariam de usar penas de

outras aves e algumas ações estão sendo tomadas para isso.

Deusdéia nos relatou, que representantes do Projeto Sereias13, que dá apoio à produção

do artesanato indígena de Aracruz, estariam negociando essa questão com o IBAMA,

explicando que, de tempos em tempos, as aves, como periquitos, sabiás, e alguns tipos

de papagaios, trocam suas penas na região das aldeias indígenas de Aracruz. Que, em

uma determinada época do ano, se pode observar essa ocorrência e indica onde ela

ocorre com mais freqüência. A partir da informação, solicitou que algum funcionário do

IBAMA fosse ao local designado para confirmar esses fatos. E, por último, se

constatada a ocorrência, solicita com antecedência, solicita permissão legal para que os

índios de Aracruz possam juntá-las do chão, para uso na produção de alguns de seus

produtos artesanais, como cocares, arcos e flechas, zarabatanas, chocalhos, entre outros

e que isso deixaria os artesãos mais contentes, porque alguns produtos teriam

características mais originais, segundo sua tradição. Apesar de que os produtos que

13 Projeto Sereias: projeto instalado na Barra do Sahy voltado para as questões ambientais e preservação de animais silvestres.

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usam as penas tingidas têm tido muito sucesso de vendas. Por encomenda, também

fazem cocares, tangas de taboa, samburás, etc.

Saúde Eu tive meus onze filhos sempre com muita saúde. Nunca pisaram num hospital. A

alimentação era saudável, como já lhe contei. Mesmo assim em algumas vezes, poucas vezes,

tiveram dores. Dores de cabeça mesmo eles nunca tiveram. Todos meus onze filhos

nasceram na mão das parteiras daqui. E tudo ocorreu bem. Meus filhos iam crescendo sem

nenhum problema grave de saúde. Se por acaso um deles se queixava de sentirem algum mal

estar, ou se eu via que estavam com febre, eu os levava imediatamente na casa da Dona

Jandira ou no Pajé Alexandre. O Pajé Alexandre é o nosso Pajé aqui de Caieiras até hoje, e

tem 91 anos. Eu, muitas vezes não levava o filho doente no Pajé. Ia até a casa dele e dizia

quem e o quê estava sentindo, descrevia para ele que tipo de mal estar meu filho estava

sentindo. Então, ele fazia uma de suas rezas e, algumas vezes ele me dizia que quando eu

chegasse de volta na minha casa, meu filho já estaria curado. E era sempre como ele dizia. O

nosso Pajé sabe de todas as doenças que temos. Mas se é doença venérea ele não trata – agora

é que sabemos esse nome, ‘venérea’. Se tivesse alguém com esse tipo de doença, que a gente

chamava de doença de homem, ou doença de mulher, tinha que ir ao hospital. O Pajé

mandava e tinha que ir. Muitas vezes o Pajé também dava remédio, que ele mesmo preparava,

e eu trazia pra casa. Medicava meu filho doente, sempre obedecendo, exatamente como o

Pajé ensinava. E dava tudo certo. Outras vezes, eu ia à casa de Dona Jandira, que era

‘rezadeira’ e dava certo também. Eu nunca tinha ido ao médico. Fui pela primeira vez, aos 52

anos, porque me disseram no Posto de Saúde que eu corria risco de ficar grávida, porque para

algumas mulheres isso podia acontecer no início da menopausa, que era perigoso. Então

resolvi ir tratar com o médico a minha menopausa. Algumas vezes vou visitar o médico para

saber se está tudo bem comigo. Minhas filhas, que já estão grandes, vão consultar de vez em

quando no Posto, mas meus filhos nunca. Acho que homem não gosta muito de ir ao médico.

De qualquer forma, todos nós acreditamos e tomamos até hoje os remédios do Pajé e

acreditamos no dom dos dois, do Pajé e da Dona Jandira. Acho que os médicos não se

importam de que façamos assim, na maioria das vezes. A única coisa que eles pedem é que

tomemos os remédios que eles nos dão também (Helena Coutinho, aldeia Caieiras Velha, dez.

2005).

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Em cada aldeia tem um Posto de Saúde. A infra-estrutura destes postos é simples onde

está instalada a única linha telefônica convencional da aldeia. Possui uma sala de espera

e um único consultório. Nestes postos é oferecido o pré-natal, vacinação, pequenas

suturas e consultas emergenciais.

Periodicamente, fazendo uma política de medicina preventiva, representantes dos postos

de saúde visitam as escolas. Dão palestras sobre a importância de cuidados com a

higiene, tanto pessoal como de alimentos, contam histórias das doenças e ensinam como

identificá-las e como preveni-las, fazem aplicação de flúor nos dentes das crianças.

Anualmente, numa grande festa, alguns funcionários dos postos, convidam especialistas

e, junto aos educadores e alunos promovem um evento voltado para a importância da

saúde. Neste dia convidam outros especialistas como por exemplo, sanitaristas,

nutricionistas e dentistas para proferirem palestras.

A presença de médico nestes postos ocorre periodicamente, no cumprimento de um

calendário pré-definido e todos da aldeia sabem os dias em que o médico está presente.

A prática das parteiras foi proibida há alguns anos. Assim, as índias Tupinikim que

ficam grávidas, têm sua gestação estreitamente acompanhada por cuidados médicos e

cumprem seu pré-natal à risca. Entretanto, como suas ancestrais, as índias fazem

questão de terem seus filhos de cócoras e isso tem sido respeitado pelos médicos dos

hospitais da vizinhança. Após o parto têm o hábito de lavarem seus corpos com

determinadas ervas, com as mesmas de suas ancestrais, que evitam infecções nas

suturas. Quem lhes dá a receita dessas misturas normalmente é o Pajé. E cada aldeia tem

o seu Pajé. Nas aldeias de Irajá e Comboios os Pajés são os próprios atuais caciques.

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Figura 61 - Foto ilustrativa de um evento anual promovido pela Equipe de Saúde na aldeia Pau-Brasil em dez. 2006. Na placa: “A Equipe de Saúde acolhe a comunidade indígena” Fonte: foto da investigadora

Figura 62 - Foto do Pajé Alexandre Cezenando, da aldeia de Caieiras Velha, procurado até os dias de hoje, para resolver os problemas de saúde de seu povo. Fonte: foto da investigadora

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Meu pai era curandeiro e meu tio também. Eles nunca me ensinaram nada disso. Mas quando

eu tinha 12 anos, um índio adulto aqui na aldeia, se aproximou de mim, e me pediu que eu

rezasse ele porque ele estava com uma dor de dentes insuportável. Em seguida que ele me

pediu, me senti arrepiado e, sem saber de nada disso, fiz uma oração para ele. Em seguida me

senti aliviado porque tive certeza que Deus ia retirar aquele mal, aquele sofrimento dele.

Depois contei para o meu pai o que havia acontecido. Meu pai me disse que eu também tinha

o dom e a vidência da cura. Daquele dia em diante, nunca mais parei. Tenho 91 anos e até

hoje rezo para dores nas costas, dores de dentes, dores de estômago. Rezo para qualquer

doença, tudo que posso compreender. Doenças venéreas eu não curo, não compreendo (Pajé

Alexandre Cezenando, aldeia Caieiras Velha, out. 2006).

Em Pau-Brasil Jocélia nos informou que sabe de memória algumas receitas, como um

xarope que nos ensinou que, segundo sua cultura, cura até pneumonia. O xarope

consiste em uma fervura de algumas folhas das plantas: pitanga, saião, pé-de-galinha,

acerola e assa-peixe. Ferver todas juntas com água e mel. Após a fervura, colocar banha,

que de preferência, seja de capivara.

Mencionar a banha de capivara fez com que Jocélia lembrasse em nos dizer que banha

de lagarto, assim como banha de urutau, é muito bom para curar inflamação, eficientes

para o alívio de dores de ouvido. Lembrou, outra vez, da banha de capivara, e nos disse

que é muito eficaz contra bronquite.

O Pajé Alexandre nos contou que ele mesmo prepara alguns remédios. E justificou

dizendo que, como conhece as ervas que curam, as colhe em cada ida ao mato. Muitos

não têm essa habilidade, ou não sabem onde encontrá-las, ou não sabem reconhecer as

ervas para a composição dos remédios que precisam. Alexandre, quando recebe alguém

que reconhece as ervas que compõe um medicamento próprio para àquela doença,

ensina misturar e não se importa que essas pessoas as preparem. Para doenças mais

comuns quase todos já sabem o que tomar e como preparar as misturas. Mas

dependendo do caso, para rezar, só ele mesmo ou, se não fosse tão grave, os indígenas

de Pau-Brasil podiam procurar Jandira, que também rezava. Isso explica as

informações detalhadas do preparo do remédio contra a pneumonia que nos foi passada

por Jocélia.

Por último, antes de nos despedirmos do Pajé Alexandre, ele fez questão de que

soubéssemos que em casos mais graves, os doentes são encaminhados aos especialistas

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do hospital mais próximo. E que, dependendo do caso da enfermidade, os indígenas são

encaminhados para a capital, geralmente para o Hospital de Clínicas de Vitória.

Política

Todos com quem tivemos contato têm consciência de como funciona a hierarquia de

cargos e as funções de cada cargo, de todas as lideranças que os representam. A

proximidade dos índios com suas lideranças, em uma convivência diária, faz com que,

se captado algum problema, o tema em questão é imediatamente levado para discussão

entre as lideranças. E esses se empenham em encontrar a solução para esse problema.

Toda a vida a gente existiu aqui nessas aldeias e acho que sempre tivemos lideranças. Não

sei. O que sei é que antes tínhamos, primeiramente, só o Capitão do Tambor e o Pajé. O

Capitão do Tambor era responsável pela aldeia, dirigia tudo e, era ele quem organizava até

nossas festas. Quando alguém precisava alguma coisa, como plantar em alguma roça, era com

ele que tinha que se falar e pedir autorização. Então, o Pajé cuidava da nossa saúde e o

Capitão do Tambor resolvia todos os outros problemas da aldeia. O Capitão começou a ficar

muito atarefado porque foi nascendo muitos indiozinhos, as crianças iam ficando grandes,

iam casando e poucos iam embora da aldeia por isso foi necessário se pensar em outra

liderança – eu mesma tive onze filhos. Foi quando surgiu o Cacique, como nós queríamos.

Então o Capitão do Tambor ficou só dirigindo a parte cultural da comunidade ficando a cargo

do Cacique, cuidar dos outros problemas. O Pajé é liderança e cuida da saúde. Mas o cacique

não pode sozinho resolver tudo, por isso nós temos lideranças que ajudam o nosso Cacique a

pensar, e agir melhor. O cacique nós escolhemos por meio do voto e ele escolhe as lideranças,

cada uma responsável por uma coisa, levando em consideração quem luta pelas causas da

nossa comunidade, pessoas que normalmente nós todos gostamos muito. Em duas aldeias,

uma Tupinikim e outra Guarani, o Cacique tem mandato de dois anos e, nas outras, ele pode

ficar até o resto da vida, se fizer tudo direitinho. As atitudes do Cacique têm que agradar toda

a comunidade. Se não agradar, escolhemos outro e pedimos para ele deixar o cargo. Isso já

aconteceu e não tivemos nenhum problema durante essa troca (Dovegílio Alexandre, aldeia

de Pau-Brasil, set. 2006).

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Figura 63 - Deusdéia (Yara-Tupã), à esquerda, trabalha no Posto de Saúde e é liderança junto ao cacique de sua aldeia, Pau-Brasil. Representa as mulheres Tupinikim da aldeia e coordena a produção de artesanatos. Fonte: foto da investigadora

Figura 64 - Jonas do Rosário, Cacique da aldeia de Irajá. Fez um breve relato dos afazeres de um Cacique Tupinikim. Fonte: foto da investigadora

O cacique da aldeia de Irajá, Jonas do Rosário, nos esclareceu algumas das atribuições

de um Cacique Tupinikim:

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Nós, que temos a condição de caciques, porque nossa comunidade deseja, temos muitas

tarefas e compromissos. Estamos sempre presentes em todas as coisas que acontecem nas

aldeias, nas coisas mais simples às mais complexas. Tudo que se refere ao bem estar do índio

interessa ao Cacique e às lideranças, desde a vida pessoal até o bem estar de toda

comunidade. Seja na educação das crianças, ou em levar alguém para um hospital, em

socorrer alguma família com dificuldades ou representarmos a vontade das pessoas de nossas

aldeias junto às autoridades. Estamos sempre buscando uma forma de melhorar a nossa vida e

lutando pelos nossos direitos como está na Constituição Federal. Nossa maior luta agora é

essa, com a indústria de papel Aracruz Celulose. No jornal, a notícia dizia que nós invadimos

a indústria, pacificamente, em protesto à presença da fábrica. Daí lhe pergunto, por que

pensam que invadimos? Não seria o contrário? Que a indústria invadiu nossas terras? Afinal a

demarcação é reconhecida pelos órgãos federais. Então, nesse sentido, foi a Aracruz Celulose

quem invadiu nossas terras, não é mesmo? Nós estamos num lugar onde sempre estivemos.

Vamos seguir nessa luta incansavelmente, até que o governo federal tome uma posição em

relação à presença dessa fábrica. A plantação de eucaliptos é intensa e acho que se pode

caminhar por dentro da plantação de eucaliptos das nossas aldeias até a cidade de Colatina.

Onde tem eucalipto não tem vida. Os pássaros não gostam de eucaliptos. Os animais não

gostam de eucaliptos. Não existe vida, biodiversidade, no interior dessa monocultura. Além

disso, as raízes dos eucaliptos são profundas e podem secar os leitos dos rios que passam por

aqui. É uma agressão à natureza! E isso não podemos permitir que siga acontecendo, porque

queremos nossa diversidade natural e nosso espaço de volta. Vamos pensar que tudo dê certo

para nós e que consigamos nossa terra de volta. Quanto tempo teremos de investir para

deixarmos esse lugar como era, antes da vinda dessa indústria? Estamos desde 1979 com os

Guarani nessa luta brava! Mas nos envolvemos também com problemas mais pessoais, como

disse no início, nos envolvemos com outras coisas. Por exemplo, se uma família não quiser

mais morar na aldeia, tem que comunicar às lideranças da aldeia, que vai autorizar essa saída.

Do mesmo jeito que, se alguém quiser casar com pessoas não índias, e seguir morando na

aldeia, agora com essa pessoa de outra cultura, tem que ser comunicado e autorizado.

Famílias de Tupinikim que moram na cidade e resolvem voltar a morarem na aldeia, só

voltarão se forem autorizados pelas vontades das pessoas da comunidade, pelas lideranças, e

pelo cacique. Se por acaso um membro da família trás problemas para a comunidade,

chamamos essa pessoa e vamos lhe dando oportunidades de mudar para melhor. Se isso não

acontecer num prazo combinado, depois de muita conversa com a pessoa e muitas chances de

mudanças, nós votamos e expulsamos esse tipo de pessoa da nossa aldeia. E essas pessoas

saem, vão viver e causar problemas em outros lugares. Que outras autoridades se ocupem

com o comportamento dessas pessoas. Os índios têm que respeitarem os outros índios,

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respeitarem as mulheres e as crianças índias, uns respeitarem os outros e aceitarem as

vontades da maioria sempre com paz, pois é meu povo que assim deseja e a vontade do povo

tem que ser sempre maior que a vontade de poucos. Por isso, muitas vezes, retomamos

votações com mesmo tema para termos certeza que estamos atingindo a vontade da maioria

do nosso povo (Jonas do Rosário, Cacique de Irajá, dez. 2006).

Nas escolas, em uma dinâmica de história, as crianças têm a tarefa de informarem-se

dos significados das representações dessas lideranças junto à comunidade. Discutem

com a professora sobre a coleta de informações que obtiveram e, por último, produzem

cartazes que são expostos nas paredes de suas salas de aula. Assim, em uma de nossas

visitas em uma das escolas encontramos alguns desses quadros em algumas salas de

aula, que descreve a hierarquia de seu movimento político, de como acontecem as

escolhas de seus líderes. Um desses cartazes é mostrado a seguir, com cópia na íntegra

(sem nos preocuparmos com correção do Português).

Figura 65 - Quadro informativo da política indígena institucionalizada nas aldeias, presentes em algumas salas de aula da Escola Municipal de Caieira Velha.

Figura 66 - Transcrição do quadro ao lado

A Organização Política da Aldeia A Aldeia Caieiras Velha e as outras aldeias Tupinikim e Guarani tem como organização política o cacicado. Cada aldeia tem um cacique, um vice-cacique e dez lideranças. O cacique é o representante da aldeia, mas não é ele que decide por ela e sim a comunidade. A Eleição é feita por voto secreto. O candidato que fica em segundo lugar será o vice-cacique. Nas aldeias de Caieiras Velha e Três Palmeiras o mandato do cacique é de 2 anos. Nas outras aldeias, o mandato é por tempo indeterminado. As lideranças são escolhidas pelo cacique e apresentadas para a comunidade que aprova ou não. Essas lideranças têm objetivos específicos dentro da comunidade na área da educação, saúde, agricultura, etc.

Fonte: foto e transcrição da investigadora

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Como podemos ler no quadro, cada aldeia pode ter uma maneira própria de estabelecer

seus representantes. O fato de aparecerem aqui informações também dos Guarani é que,

desde 1966, alguns povos da nação Guarani se estabeleceram na região e foram

acolhidos por todos os Tupinikim. Os primeiros Guaranis se estabeleceram na aldeia

Tupinikim Caieiras Velha – estavam em busca da terra sem males. As duas etnias se

relacionam bem, têm os mesmos preceitos políticos, e juntos, fazem parte das mesmas

lutas. Os Guarani vivem em três outras aldeias próximas às quatro aldeias Tupinikim,

que são: Três Palmeiras, Piraquê-açu e Boa Esperança.

Figura 67 - Uma menina índia Tupinikim de Pau-Brasil nos mostra sua habilidade com o arco e a flecha. Fonte: foto da investigadora

Essa foto ilustra um pouco as palavras do Cacique Jonas da aldeia de Irajá. Um dos

educadores teve o consentimento para casar-se com uma mulher não índia, que já tinha

uma filha do seu primeiro relacionamento. Elas tiveram o consentimento também, das

lideranças de Pau-Brasil para morarem nessa aldeia, onde sempre residiu o educador.

Deste casamento, nasceram mais duas meninas, Jenifer e Maira. Lavínia, a da foto, veio

morar na aldeia com dois anos de idade. É uma aluna dedicada, tem orgulho, e gosta de

ser índia. Chamou-nos atenção a frustração que Lavínia tem em relação aos seus cabelos

lisos, o fato de ser loira a incomodar. Seu sonho, quando crescer, é pintar os cabelos de

preto para que todos que a encontrar possam ter certeza imediata de que ela é índia.

Quando Lavínia visita grandes centros e noticia que é índia, as pessoas não acreditam e

ela se sente incomodada por isso, porque sabe que não está mentindo. Nos disse:

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Gosto muito da minha família, da minha escola, da minha professora, do cacique, da minha

aldeia, conheço e gosto de todas as lideranças. Sei o que cada um deles faz. Gosto da nossa

linguagem, reconheço o que plantamos, sei de cada cantinho da nossa horta. Sei ir sozinha

nas roças. Reconheço muitos pés de frutas no mato e nos quintais sei todos. Conheço e sei

fazer chá para algumas doenças. Sei manejar o tipiti, o jequiá, aprendi a fazer tanga de taboa.

Sei atirar de arco e flecha, quase como meu pai. Sei até em cantar em Tupi! Só por dois anos

é que não nasci aqui. Ora, tenho que saber tudo isso. Sou índia! (Lavínia, aldeia Pau-Brasil,

dez. 2005).

Souza (2003), seguindo Geertz (1989), pressupõe que existe uma suave linha de

separação entre sociedade e cultura. Que, em relação à sociedade, podemos dizer que

uma pessoa pertence a ela ou não. Já em relação à cultura, isso seria errôneo, porque é o

indivíduo que a manifesta, pois a cultura é constituída do comportamento das pessoas.

Sendo assim, concordamos com Lavínia. Apesar de ter uma pele tão clara, e possuir

cabelos tão loiros, ela é uma índia como o pai!

Nesse sentido, a própria política adotada pelos Tupinikim, na aceitação de indivíduos de

outras sociedades culturais promove a interculturalidade. Segundo sua mãe, Lavínia

absorveu para si a cultura indígena. Este é seu lugar. Entretanto sua mãe, que pertencia a

uma outra cultura, se envolveu nas redes de significados da interculturalidade num

sentido mais estreito, o que mostra que a cultura não é um sistema definido e estático.

E, quando se observa um contato entre indivíduos de uma mesma cultura, ou até mesmo

entre indivíduos de uma subcultura participante de uma mesma cultura – como a

chegada e convivência com os Guarani – o conteúdo é sempre ressignificado pelos

indivíduos que a absorvem, promovendo assim, o aparecimento de uma outra cultura,

que por vezes pode atingir o patamar da aculturação, quando uma sociedade é

influenciada por uma cultura de sociedade dominante, ainda que retenha, mesmo de

maneira discreta, suas características culturais.

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Vestuário

Os índios Tupinikim no seu cotidiano usam roupas tais como conhecemos e usamos.

Conversamos com várias pessoas em todas as quatro comunidades indígenas para

sabermos se algumas delas poderiam nos informar se sabiam como se vestiam os

indígenas Tupinikim tempos atrás. Nas informações vimos que os índios

historicamente, nem sempre se vestiram assim, como os não-índios, como podemos ler

no relato a seguir.

Há muito tempo usamos roupas de não-índios, principalmente se precisássemos sair dos

limites de nossas aldeias, como ir para a igreja – nós, de Comboios, íamos à Vila do Riacho e,

quem vivia em Caieiras Velha, ia para Santa Cruz. Quando eu era criança, tanto meus primos

como eu, e todas as crianças da aldeia andávamos nus mesmo, até nossos 11, 12 anos de

idade. A partir dessa idade nossos pais nos vestiam como se fôssemos uniformizados. Nossa

roupa, do dia-a-dia na aldeia era a mesma, como foi um dia a dos nossos antepassados, sacos

de estopa, de algodão. Era só fazer um buraco para cada uma das mangas e a roupa estava

pronta. Era tipo uma camisola. Cada um de nós tinha umas três ou quatro. Para sairmos da

aldeia nem todos nós tínhamos roupas de não-índios. Então o jeito era pedir emprestado

nessas horas. Quem quisesse personalizar sua vestimenta, sua camisola, pintava,

principalmente com urucum, ou desenhava alguma figura, como do arco e da flecha, ou outro

artefato da nossa cultura, ou um pássaro ou uma planta que gostasse. O colorido vinha das

polpas de frutas amassadas que mancham e não saem mais, assim como do urucum. Os meus

avós me diziam que eles andavam nus mesmo e, quando se vestiam, era com sacos como já

falei, mas não existiam camisolas brancas como eu usei e que meus pais também usaram.

Eles disseram que era marrom, cor de terra. Na aldeia mesmo, geralmente andavam nus e sua

vestimenta era a pintura no corpo, o cocar, ou uma fita na cabeça para segurar os cabelos –

quando era comprido. Era para não atrapalhar na hora da caça ou da pesca. Os muitos colares

de dentes de animais e de sementes faziam parte da vestimenta, assim como brincos, pulseiras

ou tornozeleiras. Usavam para se enfeitarem. Quando matavam algum animal importante

guardavam seus dentes, como a onça pintada, para fazerem colares. Era como se fosse uma

espécie de trunfo. Ah, por falar em caça... Na minha infância mesmo, como não usávamos

roupas íntimas, e para não sermos molestados pelos ventos, que podia nos atrapalhar na hora

da caça ou da pesca, ou na hora de nos atirarmos no rio Comboios, fazíamos cintos de cipó

para colocarmos na cintura. Brincávamos e competíamos para sabermos quem fazia o nó

melhor ou mais bonito, mais difícil ou interessante. Como nossos ancestrais, pintávamos os

braços, pintura para pele de índio mesmo. Quem tivesse muita altura a camisola ficava curta

e, para algumas crianças ia até os pés, porque o tamanho era único. Quem era mais alto e se

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incomodava com isso, tramava o algodão fazendo com dois sacos uma única camisola.

Quando nós éramos adolescentes, meus primos e eu usávamos o mesmo saco como se fosse

uma saia (tipo tanga) e não como camisola. A gente usava assim para podermos pintar o

nosso corpo, peito e costas, para nos sentirmos mais adultos. Isso eu mesmo vivi (João

Mateus, Cacique de Comboios, set. 2006).

Assim como João Mateus nos explicou, outras pessoas com quem falamos como com o

ex-cacique de Pau-Brasil, Santa, Antônio dos Santos, seu filho Senhorzinho, entre

outros, nos fizeram relatos semelhantes.

Figura 68 - Crianças Tupinikim da Escola Municipal de Caieira Velha, depois de um ensaio com o Grupo da Banda de Congo (dez. 2006). Fonte: foto da investigadora

Nos dias de hoje os Tupinikim não podem representar suas tradições em festas,

dançando nus como deveriam fazer seus ancestrais, por isso usam tangas de taboa.

Alguns acreditam que, para guerrearem com outros povos, suas lideranças ancestrais se

paramentavam usando esse tipo de vestimenta. Assim, numa multidão de índios,

poderiam ser reconhecidos pelo tipo de cocar e pela tanga. Mas não têm certeza de que

eles fizessem uso de tangas de taboa.

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Lendas e Costumes

Os Tupinikim entendem que as lendas são uma forte e presente característica de sua

cultura. Na maioria das residências que estivemos pelo menos uma lenda nos foi

relatada. A seguir mostramos um exemplo de uma das que ouvimos.

A lenda do Urutau

Era uma vez um homem encantado que conheceu uma mulher índia Tupinikim e com ela se

casou. Um dia ele disse que tinha fome e que gostaria muito de comer capiçoba. Então ela foi

ao mato colher capiçoba. Em casa, quando ele viu a quantidade de capiçoba ficou muito

satisfeito. Ele saiu e ela foi dar conta do preparo do alimento. Ele, com muita fome, quando

chegou de volta, olhou incrédulo para seu prato e perguntou:

– Por que essa quantidade? Onde está toda aquela capiçoba que você colheu?

No que a índia respondeu:

– Murchou!

Com muita raiva, acreditando que a índia estava mentindo, a matou.

O homem encantado, refletindo sobre sua ação, imaginou que talvez estivesse feito errado.

Depois pensou que estaria certo. E assim se passaram os dias e o homem encantado tinha

dúvidas.

Então, um dia, para ter certeza, ele mesmo foi colher uma quantidade enorme de capiçoba e

foi prepará-la, conforme haviam ensinado a ele como se fazia. Em seguida do preparo viu que

a capiçoba havia murchado. E muito!

Arrependido gritava, mas gritava muito alto:

– Matei minha mulher à toa! Matei minha mulher à toa!

Como ele era encantado se transformou num passarinho chamado Urutau. E, como

passarinho, grita muito alto, até hoje, nas matas das aldeias indígenas:

Matei minha mulher.... à toa... à toa.... à toa...

Contado por: Maria da Penha Coutinho. Aldeia Caieiras Velha, out. 2006.

Curiosidade: Até hoje a banha do urutau é usada para o alívio de dores de ouvido.

Essa lenda contada por Maria da Penha pode ser um pequeno recorte que descreve a

cultura dos Tupinikim. Muitas outras permeiam a cultura indígena. Algumas dessas

histórias (lendas, mitos e contos) fazem parte de uma obra organizada por Edivanda

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Mugrabi e educadores indígenas, uma coletânea extraída do cotidiano dos Tupinikim e

dos Guarani de Aracruz14. Os autores das histórias foram, na maioria, os próprios

educadores locais. Outras foram contadas pelos índios das aldeias Tupinikim e Guarani.

A contribuição dos Tupinikim conta com a maioria das histórias, porque os Guarani

estavam, na ocasião, preparando uma outra publicação em sua linguagem materna.

Quiçá os Tupinikim possam um dia fazer a mesma coisa. Segundo Mugrabi et al (1999),

os Tupinikim alimentam o sonho da volta às origens por meio da recuperação da língua

de seus antepassados. Esses educadores, com o apoio da comunidade, desempenharam

um papel essencial durante a construção da obra, justamente, por ser essa também uma

possibilidade de sua recuperação cultural.

Algumas dessas histórias, contidas na obra apontada, podem ser consideradas como

mitos, que até hoje, principalmente para alguns mais velhos, têm como verdade. É o

caso do Saci, da Mãe D’água e do Gavião.

Saindo do cenário das lendas, dos mitos e contos, a realidade nos mostra alguns

costumes. Como os Tupinikim lidam com o tempo é um deles. Para os não-índios esse

costume era visto como algo incompreensível, não era visto como um elemento cultural

e muitos não-índios os percebiam como indivíduos que fizessem parte de uma

sociedade ociosa. É entendível porque nas sociedades ocidentais o tempo é um dos

protagonistas, visto como principal elemento, de regulação.

Entretanto, desde algum tempo, essa questão tempo é observada como uma

característica de um povo, que tem outro ritmo, um olhar próprio sobre o trabalho, à

produção, ao salário. É uma outra cultura. Os índios Tupinikim, apesar de apropriarem-

se de elementos culturais dos não-índios, em determinados aspectos seguem ainda

caminhos trilhados por seus mitos, por suas crenças, imbricados em sua sociedade, à sua

cultura, como vimos, quando se relacionam com o tempo.

Um exemplo disso está na maneira em como lidam diante de suas roças comunitárias.

Não é estabelecido entre àqueles que são responsáveis pelas roças, períodos de trabalho

a serem cumpridos, para o sucesso da produção, como a conhecemos. Cada um deles

14 MUGRABI, Edvanda e educadores tupinikim e guarani(org). Os tupinikim e guarani contam...Vitória, 1999.

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trabalha nas roças quando, pessoalmente, sentem vontade e necessidade para fazê-lo. E

isso é entendido por todos. Fica no nível da consciência de cada um, alicerçada numa

sociedade de cooperação. Entendem que uns trabalham mais do que outros porque cada

um tem seu próprio ritmo, sua própria natureza. Então uns gostam de ir para as roças,

bem cedinho, no início do dia, enquanto outros a freqüentam em outros horários das

tardes, ao mesmo tempo em que existem dias, que nenhum deles a freqüenta. Os que

trabalham mais não se sentem usados pelos que trabalham menos, assim como àqueles

que trabalham menos, não se sentem usando pelos que trabalham mais. Em outros

momentos dessa cooperação, em outras tarefas sociais, esses papéis poderão inverter-se.

Para compreendermos essas questões temos de nos despojar dos elementos de nossa

própria cultura e tentarmos nos colocar no lugar deles. Apesar dos Tupinikim há muito

conviverem com os não-índios, frente ao elemento cultural tempo, não vivem muito

diferentemente de seus ancestrais. Evidentemente, que existem Tupinikim que estão

estabelecidos em trabalhos em distritos visinhos e cumprem horários regidos pela

sociedade ocidental. Mas àquilo, que diz respeito ao trabalho e produção em sua aldeia,

têm por costume, um olhar muito mais próximo de seus ancestrais do que da cultura

ocidental.

Um outro costume, que reside na sua arte, é a pintura corporal. Um costume ancestral

que até hoje estão carregados com os mesmos significados e é por meio da cor escolhida

que as comunicações são feitas. Segundo relatos colhidos, se estão pintados com a cor

preta, extraída do jenipapo, significa que estão apropriados para comemorações festivas,

cujos elementos a serem destacados são a paz e a alegria. A cor vermelha, extraída do

urucum, é usada para a guerra e demonstra descontentamento e discordância. E, as duas

juntas, significam que alguma coisa está em negociação. Assim, se estiverem com suas

peles pintadas de preto e também de vermelho, demonstram que estão abertos às

negociações, ficando sempre os desenhos nos seus corpos, que geralmente são

simétricos, ao critério e gosto daquele que se pinta.

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Figura 69 - O Urucum é um dos responsáveis pela coloração vermelha nas pinturas corporais. Fonte: foto da investigadora

Durante alguns dos nossos encontros com os educadores, alguns deles, ao mesmo tempo

em que interagiam conosco, pintavam seus corpos, principalmente braços e pulsos, com

jenipapo – que amassavam num pequeno pilão.

Ao pintarem-se com o jenipapo, no momento em que riscavam a pele com um

pedacinho de pau, vimos que o risco que tinham feito ficava invisível. Entretanto, o

domínio e a habilidade, faziam com que eles percebessem a continuidade do desenho e

seguiam riscando as linhas que não se mostravam. Depois de algumas horas é que

tomava a coloração preta e ficava visível. O resultado da pintura, sua simetria, é

surpreendente. É como se fosse um presente aos olhos. É uma arte!

Sousa (2003), seguindo Geertz (1989) nos diz que é na arte que, nos seus mais variados

processos de comunicar o mundo, nas relações de sensibilidades que inaugura, e de

onde podem surgir os novos eus, que parece estar, em última instância, os objetivos da

cultura enquanto manifestação artística. É na arte que encontraremos não uma forma de

ser pronta, mas uma gama diversificada de possibilidades que estão em oposição direta

ao sistema capitalista e suas formas de individualizar os valores, para depois

compartilhar esses ideais, de forma a materializar sua substância como parte do real.

Nesse sentido, talvez a forma como os Tupinikim agraciem o tempo pode ser uma arte.

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Ainda sobre a pintura corporal, os índios nos disseram que, quanto mais pintados

estivessem no passado ancestral, mais facilmente poderiam esconder-se dos seus

inimigos nas matas, podendo chegar até bem próximos deles, sem serem percebidos ou

identificados, sendo confundidos com a flora. Que vários outros povos indígenas se

caracterizam por esse mesmo costume. Eram os homens se confundindo com a natureza,

trazendo a natureza, no seu olhar, pintada nos seus corpos.

Outro c

dos cho

colhem

que os

empres

associa

danças,

Guerrei

Figura 70 – Exemplos de desenhos de pinturas corporais

Fonte: Arabiõ, educador Tupinikim

ostume são as danças, corpos que se movem sincronizados sob o som da casaca,

calhos, dos tambores. Ao som da banda de congo. O congo, segundo o que

os de nossas conversas nas aldeias, foi proveniente das relações interculturais

Tupinikim tiveram com as tribos quilombolas, e foram dos negros que tomaram

tado o costume do som do congo. Da interculturalidade, sua coreografia

da a esse som emprestado dos negros, deu harmonia a uma de suas mais antigas

considerada pelos índios de Aracruz, dentre as mais populares, a Dança do

ro.

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Figura 71 - Alguns instrumentos utilizados pela banda de congo. Na foto, três tambores e duas casacas, da banda de congo, da aldeia de Comboios. Fonte: foto da investigadora

É no dia de São Benedito que os festejos atingem seu ápice. Os Tupinikim também

fazem comemorações no dia 19 de abril, Dia do Índio, institucionalizado pelo governo

federal brasileiro desde o ano de 1943, pelo então presidente Getúlio Vargas. Os índios

de Aracruz incorporaram a data para comemorarem sua existência. Até alguns anos

atrás comemoravam outros dias de santos católicos, que foram cassados pelo Papa e,

por isso algumas dessas festas não existem mais. As festas de junho e julho são

importantes para os Tupinikim. Os dias mais importantes são as festas católicas de São

João, de Santo Antônio e de São Pedro.

Todos aqueles que se chamam Antônio, no dia de Santo Antônio, em 12 de junho, ou todos

aqueles que se chamam João, no dia de São João, 24 de junho, fazem fogueiras em suas casas

para receberem os amigos para festejarem com eles, o dia nacional do santo. Quando a

fogueira estiver em brasas, duas pessoas que estão na festa podem combinar entre si para

serem compadres ou comadres. Cada um então toma um pau de lenha em brasa numa das

extremidades e cruzam sobre a fogueira. E dizem palavras que fazem parte de nossa cultura,

parte de nossa tradição. Por exemplo, dois deles em uma festa de Santo Antônio, por volta da

meia-noite, com os pedaços de paus de lenha em brasa cruzados na fogueira, um diz e outro

repete: “Santo Antônio mandou dizer...”, “Na noite dele...” para nós sermos comadre...” , “e

compadre...”, “Viva Santo Antônio!”, “Viva São João!”, “Viva São Pedro!”, “Viva Santa

Ana!”, “E viva nós também comadre (ou compadre)!”. Depois disso, nos apertamos as mãos

e nos abraçamos, nos tornamos compadres (ou comadres), e isso vale por todas nossas vidas.

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Isso faz com que tenhamos compromissos um com a família do outro e geralmente, se temos

algum problema, comentamos primeiro com o compadre ou com a comadre. Nessas festas

dançamos as nossas ao som da nossa banda de congo. No dia dessas festas, as crianças

gostam mesmo é da Dança do Guerreiro e ensaiam seus passos, desde o nascer desse dia

(Helena Coutinho, aldeia de Caieiras Velha, set. 2006).

Figura 72 - Meninas Tupinikim nos demonstram a Dança do Guerreiro. Aldeia Pau-Brasil, set. 2006. Fonte: foto da investigadora

Da caça e da pesca já fizemos comentários no item alimentos, costumes importantes dos

Tupinikim, quando mostramos algumas ilustrações, tanto dos artefatos usados para isso,

no item artesanato, assim como do preparo de alguns alimentos, provenientes dessas

práticas culturais.

Um dos alimentos que mencionamos foi a farinha de mandioca, como um dos alimentos

indispensáveis do consumo cotidiano dos Tupinikim, que é produzida num lugar

apropriado nas aldeias, conhecido como Quitungo, que significa Casa de Farinha. A

produção dessa farinha é artesanal. Em tempos atrás as raízes de mandioca, depois de

raladas, eram colocadas no tipiti para ser espremida e, em seguida, colocada ao sol para

secar. Algumas raras famílias ainda usam esse processo, embora sequem a farinha numa

frigideira no calor do fogo. Mas a maioria prefere adquirir o produto comprando no

quitungo, que nos dias de hoje, produz a farinha ainda artesanalmente, mas por meio

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mecânico. O caldo que sai do tipiti ou do espremedor mecânico, ainda tem a mesma

finalidade ancestral, serve para matar formigueiro e algumas pragas da lavoura.

Figura 73 - No interior do Quitungo, Dovegílio e Jeferson nos explicam como a farinha é produzida e comercializada. Na foto, a farinha está sendo ralada. Fonte: foto da investigadora

Figura 74 - No Quitungo: a medida que representa a quarta (caixa de madeira). Fonte: foto da investigadora

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Na foto podemos ver uma caixa de madeira repartida em duas partes iguais. O interior

de toda esta caixa corresponde a uma medida chamada quarta. Dovegílio comercializa

principalmente, meia quarta de farinha de mandioca, razão de a caixa estar dividida em

duas partes iguais.

A quarta é uma medida derivada do alqueire. O alqueire, segundo Lopes (2003), era

uma medida já conhecida nos países peninsulares no séc. X e foi difundida para outros.

Ao longo da história de Portugal, o alqueire correspondeu institucionalmente, a várias

medidas de litros. Por exemplo, em 1755, em Lisboa, um alqueire tinha capacidade de

13,9 litros. Desde a Idade Média o alqueire foi também unidade de superfície.

Normalmente, um alqueire de superfície era a área de terreno que se semeava com um

alqueire de semente.

Meia Alqueire Figura 75 - Medida Padrão de líquidos e secos de D. João VI. 1819

Fonte: <http://www.ipq.pt/museu/frmuseu1.html>

Segundo Mori (1999) e site oficial da prefeitura de Aracruz, Dom Pedro II, em 1860,

quando pernoitou em Santa Cruz, região mais antiga de Aracruz, quando até inaugurou

o chafariz público, deixou como lembrança de sua passagem pesos de quartas, seis

medidas para líquidos feitas de bronze.

No Brasil colonial, quando o alqueire foi convertido de medida de secos para medida de

área, primeiro foi subdividido em quatro partes ou quartas (quartas de chão) e depois,

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em unidades menores, convertendo-as em litros, já com vistas à adoção do sistema

métrico. Entretanto, uma quarta correspondia de 12, 5 a 13,8 litros.

O alqueire é uma medida de superfície ainda utilizada no Brasil que varia de região para

região. E, sua derivação para os Tupinikim, a quarta, corresponde a 10 litros, medida

que usam na comercialização da farinha de mandioca no Quitungo, como mostrado na

foto 74. É muito provável que o uso dessa medida tenha sido resultado das inter-

relações que outrora tiveram com os portugueses, ou com pessoas da região, que a

adotaram no passado.

Outros costumes fazem parte do cotidiano dos Tupinikim. Aqui citamos os mais

evidentes, lembrando que a arte se apresenta como elemento fundamental para a

elabora ão do existir na cultura.

Brinca

Em vá

nossas

lembra

Interes

relatar

A maio

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geralm

criança

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Um ex

crianç

pião. D

semen

ç

deiras

rias visitas que fizemos às residências de famílias Tupinikim, um dos focos das

observações foi verificar, principalmente entre as falas dos mais velhos,

nças de brincadeiras, ou de algum jogo, que tenha feito parte de suas infâncias.

sava-nos saber se essas brincadeiras tinham nomes específicos, se eles pudessem

detalhes, caso conhecessem algo sobre isso.

ria das brincadeiras que nos relataram é tal como conhecemos: como jogavam

omo brincavam de bonecas ou com carrinhos – advindos do comércio,

ente presenteados pela Pastoral Indigenista. No seu faz-de-conta, assim como as

s improvisavam carrinhos – tipo automóvel, ônibus ou caminhão, com

nentes da natureza da aldeia, improvisavam outros brinquedos, como o pião de

porque seus pais não tinham dinheiro para adquirirem no comércio. Brincavam

ar e nadar. Na água tinham brincadeiras específicas.

emplo dos resultados interculturais é o brinquedo que conhecemos como pião. As

as Tupinikim colhiam um coco de certa espécie, que tem no seu interior um formato de

o coco que estava já caído no chão retiravam a casca e todas as fibras, até alcançar a

te com forma de pião. Raspavam a semente com facão para retirarem bem as fibras. O

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pião era chamado de cigarrinha. A fieira era feita de embira branca enrolada. O impulso do

rodopio vinha da ajuda de um bastão, com um furo em uma das extremidades, que podia ser

feito de qualquer madeira. O nome cigarrinha é justificado pelo furo natural da semente ou

feito de ferro quente. Esse furo possibilitava o ruído similar de uma cigarra. Em grupo, cada

criança com sua cigarrinha, criavam alternativas de brincadeira, para saberem qual rodopiava

por mais tempo, qual cantava mais alto ou, traçavam no chão, uma barca, dois círculos de

tamanhos diferentes. O do centro era bem menor (tipo alvo). Cada criança jogava na sua vez.

Se sua cigarrinha não permanecesse dentro do círculo maior, perdia a rodada, podendo

retornar se houvesse uma próxima. Quem conseguisse fazer com que sua cigarrinha ficasse

no interior do círculo menor ou mais próximo dele era o primeiro a jogar (Arabiõ - Rafael

Francisco Bof , aldeia Pau – Brasil, nov. 2006).

Figura 76 - A cigarrinha

Fonte: Arabiõ, educador Tupinikim

Embora muitas crianças Tupinikim tivessem piões industrializados, que lhes eram

presenteados por representantes da igreja católica, preferiam construir os seus, que

geralmente os personalizavam com pinturas.

Chamou-nos atenção um outro relato de uma brincadeira, que promovia a habilidade de

confecção de seus artefatos. Por exemplo, se a confecção fosse de uma peneira. Um

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grupo de crianças se dividia em duplas ou em trios. Cada duas (ou três) das crianças que

quisessem brincar ficava com a responsabilidade (no limite de dois dias) de fazer uma

peneira isoladamente dos outros, sem poder mostrar ou comentar. Era combinado

previamente, onde, e em que momento, o grupo envolvido na brincadeira se encontraria,

e cada dupla (ou três) tinha que trazer para o encontro sua peneira pronta.

Se a peneira não estivesse finalizada não tinha importância, tinham que comparecer do

mesmo jeito e trazer o que já haviam feito. No dia e no momento marcado para se

reunirem, cada dupla (ou trio) de crianças, tinha que explicar para os demais, os

detalhes da construção de sua peneira, desde onde foram colher material, para quê ela

servia e dizer até o porquê era bonita. A dupla (ou trio) que não tivesse terminado,

também precisaria explicar o porquê. Por fim, depois de todas as apresentações,

colocavam as peneiras umas juntas às outras no chão, e todos de pé, em roda delas,

batiam os pés no chão e as palmas das mãos para se aplaudirem. Ainda nos foi dito que,

se por acaso alguma das crianças notasse a presença de um adulto por perto, na hora da

apresentação, se sentiam envergonhados e, se isso ocorresse, na mesma hora,

combinavam um outro lugar para apresentarem seus produtos, garantindo que só eles

estivessem presentes. Depois da brincadeira resolviam entre si quem levaria, da dupla

ou do trio, a peneira para casa para uso doméstico.

É importante observar que essa brincadeira promove a colaboração, a solidariedade. No

aspecto cognitivo, mostra a possibilidade da construção de novos conhecimentos e

procedimentos, de descobrir erros e de imaginar formas de superá-los, dentre outros

desafios. No que diz respeito ao afetivo, essa brincadeira ajuda os componentes a

subordinarem-se às regras, a abrir-se para o outro, para o imprevisível. As regras ou

etapas, vistas como tarefa ou obrigação lhe confere um valor ético, num encontro à

liberdade, à criatividade e ao entendimento de pensamentos divergentes.

Do ponto de vista de alguns autores, essa brincadeira poderia ser vista como um jogo.

Nessa direção, Elkonin (1980, p.17) cita uma parte dos escritos de Vygotsky, que ele

mesmo lhe enviou. Vygotsky enfatiza que ‘a imaginação nasce do jogo’ é

absolutamente certo, convincente e central por seu significado: “antes do jogo não há

imaginação”.

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Brincavam também de fazerem trilha no mato. Um grupo de crianças, de preferência de

número par, se dividia em dois grupos. O primeiro grupo ficava responsável por fazer

uma trilha no mato, e o segundo grupo, de encontrar o caminho. O primeiro grupo

mostrava para o segundo um conjunto de coisas – geralmente era um conjunto de

algumas cabaças, de diferentes tamanhos. O segundo grupo prestava atenção na

quantidade e nos tamanhos das cabaças. Então, o primeiro grupo se embrenhava no

mato, entrava marcando uma trilha, colocando as cabaças a cada cinco, dez metros umas

das outras, enquanto o segundo grupo aguardava onde tinha ficado a primeira cabaça. A

primeira era a única que ficava numa distância maior em relação à segunda. A

brincadeira findava quando o segundo grupo juntava todas as cabaças e mostrava para o

primeiro, o caminho que tinha trilhado, para saberem as semelhanças e diferenças do

caminho que percorreram em relação àquele, definido pelo primeiro grupo. Em relação

a jogos, observemos o relato a seguir.

Vou explicar em detalhes como se jogavam o jogo que mais brinquei na minha infância, que

nós mesmos construíamos para jogar.

Milho Queimado: Tomávamos 6 grãos de milho e, com a ponta de um pauzinho resistente –

que podia ser de cedro, bem fininho, em brasa, marcávamos o lado mais macio de cada grão.

Assim, cada grão ficava com um lado marcado (queimadinho) com um ponto preto e, no

outro, o mais duro e brilhoso, ficava tal como era. De um jeito que, no lado brilhoso, não

pudesse transparecer o ponto marcado do outro. Assim, cada criança tomava posse de seus

seis grãos marcados. Sentávamos no chão em forma de roda e combinávamos quem

começaria o jogo. Com cada das mãos em forma de concha, juntas e entrelaçadas,

sacudíamos as 6 pecinhas que ficavam ali dentro. Então, próximo do chão largávamos, cada

um de nós, ao mesmo tempo, as peças. Contávamos as peças de cada um, que estavam no

chão, mas somente as que tinham o ponto preto para cima. Àquele que tinha menos peças

com pontos pretos saía do jogo. Por exemplo, se dois componentes tivesse dois pontos pretos

para cima e todos os outros mais que isso, os dois com dois pontos pretos saiam do jogo, os

outros continuavam. E assim continuávamos até surgir o vencedor. Jogávamos várias rodadas

no mesmo dia com as mesmas peças. No fim do dia nos livrávamos delas. Se fôssemos jogar

num outro dia, tínhamos que construir novas peças. Não podíamos pensar em manter as peças

para outro dia. Acreditávamos que o maior vencedor do dia tinha sempre a sorte de ter tido os

melhores grãos. Então, se fôssemos jogar num outro dia, cada um que quisesse jogar, tinha

que partir da escolha de novos seis grãos de milho. Esse é um jogo muito antigo, meus pais,

meus avós, meus bisavós já jogavam. Meus bisavôs contaram que os bisavôs deles jogavam

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isso. Desse mesmo jeito que expliquei. Esse jogo não tinha nome. O nome para ele eu disse

agora para responder sua pergunta e não sei a razão desse jogo ter 6 grãos. Mas as coisas vão

mudando. Mais tarde, na minha adolescência, brincávamos com esse mesmo jogo, mas

sentados à volta de uma mesa, e as peças dentro de um copo. Não vejo, atualmente, nenhuma

criança jogando isso. Acho que elas não conhecem esse jogo. Eu mesmo só estou lembrando

de falar disso para responder se conheço alguma brincadeira do meu tempo de infância. Com

certeza, todos os mais velhos das aldeias Tupinikim conhecem esse jogo (Dovegílio

Alexandre, aldeia de Pau-Brasil, jul. de 2006).

É surpreendente como as transformações culturais acontecem e aparecerem de repente.

Como pudemos ler, foi nesse encontro com Dovegílio que surgiu, pela primeira vez, o

nome-título para o jogo que nos descreveu. Parece-nos que em nenhum momento até

aqui, houve preocupações por parte dos Tupinikim, que jogaram esse jogo por tantos

anos, em lhe atribuir um nome específico. Mas, no momento que nós questionamos o

seu nome, por meio de uma breve e imediata reflexão do Dovegílio, o nome-título

surgiu. No final de nossa conversa se disse surpreso por não ter pensado, jamais, num

título ou nome para esse jogo.

Como a nossa pergunta inicial sugeria respostas para títulos de jogos, por sabermos que

na nossa cultura, comumente, os jogos têm títulos, Dovegílio se sentiu com necessidade

de criar um nome para o jogo, e o título foi a novidade no contexto. Esse ato mostra que

a relação, entre as diferentes culturas, promove transformações – que no contexto poder-

se- ia dizer irrelevante ou despercebida. E essa vivência pode ser um exemplo de como

podem ocorrer esses acontecimentos promovidos pela interculturalidade. Ao invés de

Dovegílio nos dizer que esse jogo não tinha título e que nunca teve, preferiu criar um

título para o jogo, influenciado pela pergunta que, doravante, poderá ser, opcionalmente,

incorporado pela cultura Tupinikim com o título.

Despedimos-nos de Dovegílio e na nossa bagagem, tínhamos todos esses recortes da

cultura atual dos Tupinikim, tal como descrevemos legitimados em narrações na voz

dos atores, com características de fazedores da própria história.

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Considerações ao capítulo:

Não podíamos nos permitir adentrar na educação escolar sem dar ouvidos aos nossos

dois referenciais teóricos, Vygotsky e Geertz, que nos dizem que o homem se faz sujeito

no seio de sua cultura. Nesse seio talvez agora pudéssemos reconhecer melhor os alunos

dessas escolas indígenas, assim como os dois educadores de matemática.

Assim, ora estávamos em casa de algumas famílias, passeando em sua companhia por

seus pátios, vendo o brotar de suas lavouras, conhecendo seu cotidiano no seio de suas

famílias, ora nas escolas, com os educadores, com seus alunos, tratando de

ressignificações de conceitos, como de interculturalidade e interdisciplinaridade, nos

cursos de formação, assim como tratando de elaboração de recursos didáticos de

matemática. Experimentar e refletir sobre todas essas informações nos auxiliou na

construção das nossas inquietações, em atingir o objetivo do nosso trabalho.

Além disso, o registro atual de recortes da cultura atual dos Tupinikim pode contribuir,

para que seus netos ou bisnetos, no futuro, não aumentem a frustração, por não saberem

de seu passado, tal como já aconteceu, de perderem sua linguagem materna. Foi nessa

linha de pensamento que também desenvolvemos a descrição desses aspectos atuais

dessa cultura. É interessante observar que as transcrições dos relatos foram corrigidas

por alguns educadores, os que têm parentesco com os depoentes, por entenderem que

assim poderão ser melhores compreendidos por leitores Tupinikim no futuro.

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CAPÍTULO IV

O MOVIMENTO DA PESQUISA

No decorrer deste trabalho nos envolvemos em diversas ações que buscaram respostas para nosso trabalho conforme aqui descrevemos. No primeiro momento mostramos um quadro-resumo dessas ações que leva o mesmo título deste capítulo.

Figura 77 – O Movimento da Pesquisa

O Movimento da Pesquisa

Interculturalidade Interdisciplinaridade

Curso de Formação Continuada dos Educadores / em andamento

AMBIENTAÇÃO / COLETA INICIAL DE DADOS/ 2005

Grupo de Estudos de Implementação do Curso de

Formação para todos educadores indígenas

2006

Conversas com os anciãos

Curso de Formação: Elaboração e Criação dos Recursos Didáticos

COLETA ESTRUTURADA DE DADOS 2006

Aplicação dos recursos didáticos em sala de aula de matemática

2006

Oficina de Recursos Didáticos com os educadores de matemática

2006

Observações em sala de

aula

Conversas com os anciãos

Conversas com os anciãos

Fonte: Dóris Reis de Magalhães e Eduardo Gáudio

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A FORMAÇÃO CONTINUADA EM 2005

Em 18 de junho de 2005, na SEMED de Aracruz, fizemos nosso primeiro contato com

os dois educadores Tupinikim de Matemática. Um deles, na ocasião, atuava na 5ª série

da Escola Municipal Pluridocente Indígena Dorvalina Coutinho, na aldeia de Comboios

e o outro, na mesma série, na Escola Municipal Indígena de Caieira Velha, na aldeia de

Caieiras Velha. Uma das razões desse nosso encontro era convidá-los para participarem

efetivamente da nossa investigação.

Com o intuito de nos familiarizarmos nesse universo, antes desse encontro,

freqüentamos algumas reuniões do IPE/UFES, algumas com professores formadores do

Curso de Formação de Educadores Indígenas Tupinikim e Guarani e outras que

contaram com formadores e alguns educadores, representantes institucionais da

Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo, e igualmente, do município de

Aracruz, da pastoral Indigenista, da parceria IPE/UFES, assim como alunas do mestrado

e uma aluna de doutorado em educação da UFES, envolvidas em desenvolvimento de

dissertação ou tese nesse cenário, ou que pretendiam desenvolver – nosso caso.

Essas reuniões consistiam, ora em se discutir a construção dos relatórios finais de

estudos dessa educação indígena para 1ª à 4ª série, no período de 2000 a 2004, ora em

construir planejamentos para os próximos encontros de formação, nos contextos das

problemáticas, respeitando as necessidades dos educadores que eram sempre

previamente elencadas. O relatório de matemática estava sendo produzido pela

professora Dra. Circe Mary Silva da Silva Dinnikov.

Entendíamos que precisávamos estreitar nossos conhecimentos com esse novo universo

e, como já foi dito, nos debruçamos às informações e aos conhecimentos do que os

educadores indígenas já haviam conquistado, ou produzido para a matemática, dentro da

sua proposta de sua educação diferenciada. Como resultado de um curso de formação15

entre 1996 e 1998, nos dois primeiros anos de cursos de formação, os educadores

produziram um texto intitulado Apreciando a matemática na cultura Tupinikim e

Guarani.

15 Numa parceria entre o IDEA (atual IPE), o CIMI (Conselho Indigenista Missionário a SEDU (Secretaria de Educação do Estado), a Pastoral Indigenista e a Prefeitura Municipal de Aracruz).

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As atividades apresentadas na obra foram planejadas pelas educadoras, que já haviam

trabalhado com as crianças de 1ª a 4ª séries nas escolas das aldeias, associadas a outras,

planejadas durante o curso. O texto de 67 páginas é apresentado em duas partes

distintas: na Parte I estão registradas algumas atividades desenvolvidas nas aldeias pelos

índios Tupinikim e Guarani e, na Parte II, apresenta problemas com as quatro operações

fundamentais da matemática. Em particular, também apresentam alguns problemas de

percentagem.

Este texto, de circulação interna nas aldeias indígenas de Aracruz, veio ao encontro de

nossas expectativas, pois tínhamos em mente percebermos a cultura Tupinikim e trazer

à luz de nosso trabalho essa cultura, associando um olhar específico para matemática, na

busca de nossos objetivos. Como as atividades dessa obra foram todas ilustradas e

contextualizadas, com textos relatados pelos próprios educadores, voltados para a

situação do cotidiano dos Guarani e dos Tupinikim, essa leitura fortaleceu essa nossa

vontade.

Uma das justificativas da criação da obra está no antecedente, que os povos Tupinikim e

Guarani não utilizavam a matemática escrita, embora compreendessem a matemática,

mostrado em alguns dos relatos de vivências até os dias hoje, das atividades de sua

cultura. Pelo reconhecimento de seus direitos a uma educação diferenciada, voltado para

a sua realidade, o texto propõe revelar nas suas atividades propostas, a sua importância

da matemática, como na fabricação da farinha de mandioca, no artesanato, no plantio,

entre outras. Por último, os autores afirmam que a matemática pode beneficiar o

planejamento, a pesquisa e a elaboração de projetos no seu universo e que, perceber as

ferramentas de algumas atividades, pode possibilitar compreenderem sua sociedade,

para o fortalecimento à conquista de sua autonomia. A finalidade curricular da obra é

atender aos trabalhos realizados em sala de aula, da 1ª a 4ª série do ensino fundamental.

Depois dessa leitura nos preocupamos em lermos uma outra obra intitulada O ensino-

aprendizagem da matemática e a pedagogia do texto publicada em 2004 de autoria de

Circe Mary Silva da Silva, Simone Torres Lourenço e Ana Maria Côgo, destinada a

cursos de formações de professores, igualmente para as séries iniciais do ensino

fundamental. Apoiada na pedagogia do texto, a obra orienta o ensino-aprendizagem da

matemática a partir do texto matemático, com objetivo de torná-lo significativo. As

autoras, cientes das dificuldades da relação ensino-aprendizagem da matemática,

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justificam que o livro didático deve apresentar os conceitos básicos dentro de sua

historicidade e, portanto, propõe uso de texto narrativo para a assimilação dos conceitos.

Acreditam que trazer a matemática para mais próximo do aluno significa mostrar que

ela é aplicável na sua vida, que aquilo que ele aprende na escola tem relação com seu

dia-a-dia. Cada capítulo orienta os educadores para tipos de atividades que podem ser

realizadas no contexto de sala de aula.

Escolhemos essa leitura porque é fundamentada em textos que provocam reflexões para

as relações interculturais. Por exemplo, quando mostram os aspectos de semelhança e de

simetria, observavam alguns detalhes importantes da construção das pirâmides do Egito,

assim como a relação entre a pintura corporal e a simetria, usada pelos índios, ou

utilizadas pelas bordadeiras de Aimorés, em Minas Gerais. No capítulo 7 – tabelas e

gráficos, o texto refere-se a situação atual na terra indígena de Comboios e no capítulo

8-medidas, o texto está voltado a auto-demarcação das nossas terras – feita pelos

Tupinikim e Guarani em Aracruz. Numa visão vygotskyana, além de provocar reflexões

das relações interculturais, é sugerido pelas autoras, a partir de textos apresentados,

dinâmicas que podem ser trabalhadas interdisciplinarmente. Um deles é o texto

matematizável intitulado Os pecados do Brasil, no capítulo 3, destinado aos sistemas de

numeração.

As autoras chamam atenção também para as relações intraculturais, como quando

sugerem que dar voz ao aluno faz emergir na sala de aula os saberes e concepções que

ele traz de sua vivência familiar e suas interações de mundo. Suscita e incita o confronto

do diálogo entre os saberes escolares com os ditos saberes ‘mudos’, de que os alunos

são portadores.

Os conteúdos são apresentados dentro de um contexto próprio, justificados pela

necessidade dos conhecimentos para a humanidade e propõem o reconhecimento dos

conteúdos nas coisas do mundo, como mostrado na origem do pentágono. Dar conta

dessa obra poderia nos aproximar da educação indígena dos Tupinikim porque tínhamos

notícias, de que os educadores da 5ª série possuíam o livro, e o utilizavam para seu

trabalho em sala de aula. Sem dúvida, essas duas leituras voltadas aos conteúdos de

matemática, foi uma parte importante na nossa bagagem para desenvolvermos nosso

trabalho.

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Tivemos outras informações. Neste mês de junho de 2005, no nosso primeiro encontro,

soubemos que os educadores indígenas freqüentavam dois cursos de formação

continuada, um em parceria institucional já explicada, e outro, exclusivamente da

SEMED de Aracruz. Algumas vezes as formações ocorriam durante os momentos de

suas aulas. Seus alunos eram dispensados nesses dias e tinham que cumprir tarefas

extra-escolares. Outras vezes, os momentos de formação, ocorriam em horários não

compatíveis com as aulas. As formações, às vezes, eram para todos os educadores

juntos. Em alguns momentos, específicas para àqueles que ministravam aulas na

Educação Infantil; ou para os de 1ª à 4ª série; ou ainda, somente para os da 5ª série.

Naquele dia a formação era para todos os educadores. Esse primeiro encontro foi nas

dependências da SEMED de Aracruz.

Os encontros dessa formação de parceria ofereciam dois momentos distintos. No

primeiro momento os educadores se interavam de inúmeras ações que estavam sendo

tomadas no seu universo sócio-político-cultural e, no segundo, vivenciavam a formação

de educadores propriamente dita, porque a parceria entende que essas vivências não

ocorrem isoladas. Para um melhor entendimento desses significados descrevemos o

primeiro encontro abrangendo os temas de pauta. Dos demais encontros, descrevemos

especificamente às ações que se referem à formação propriamente dita.

Naquele nosso primeiro dia, o primeiro momento da formação, as discussões foram

referentes às políticas públicas de ações afirmativas para os índios, especificamente, da

posição que poderia ser tomada pela Universidade Federal do Espírito Santo, para o

sistema de cotas de vagas para seus cursos de graduação – os educadores reiteravam

seus anseios para cursarem, principalmente, as licenciaturas. Discutiram também o

andamento de algumas publicações para sua educação, com que estavam envolvidos.

Definiram representantes para estarem presentes em um encontro nacional e outro

regional, com foco na divulgação da arte e da cultura indígena. Por último, comentaram

sobre alguns aspectos relevantes para a consolidação do processo de sua educação

diferenciada, especificamente a daquele bimestre, a luta pela terra, quando alguns

relataram como está o andamento do processo de demarcação de suas terras, junto ao

governo federal. Terminada as discussões de pauta, os representantes institucionais se

retiraram. A formação foi feita na segunda metade daquela manhã e em todo período da

tarde.

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Observamos que o projeto de formação desempenha papel catalisador das demandas e

da busca de soluções para os problemas do cotidiano dessas comunidades indígenas,

ultrapassando os limites de um ensino diferenciado. Um desdobramento disso é a

distribuição de poder, que acontece à medida que os educadores passam a constituir

novas lideranças em suas comunidades.

Antes da reunião dos educadores para a formação, nos acercamos dos dois educadores

de matemática. Explicamos nossa presença e falamos das nossas intenções para

sabermos se eles poderiam ser nossos sujeitos de pesquisa. Eles concordaram e se

propuseram a contribuir.

Na segunda parte do encontro, apenas entre formadores e educadores, discutimos sobre

alguns temas relevantes para os desdobramentos dos conteúdos escolares, na busca de

novas estratégias para serem usadas em sala de aula, para contribuir para o

entendimento da problemática, a luta pela terra. Em pauta, o foco central da formação: a

Rosa dos Ventos. A razão desse encontro era dar continuidade a uma formação que

estava sendo vivenciada pelos formadores do IPE/UFES com esses educadores. A

proposta do dia era trabalhar a localização espacial.

Nesse sentido, a formadora Graça Cota com o auxílio dos mapas das aldeias, expedidos

por um projeto de estudo etnoecológico da Petrobrás, refletiu com os educadores sobre a

importância de nos localizarmos a partir da rosa dos ventos. Os educadores com a posse

dos mapas, vivenciaram algumas dinâmicas com a formadora considerando a

localização dos pontos cardeais, refletiram e discutiram sobre idéias de outras dinâmicas

que poderiam levar para seus alunos, quando da abordagem desse conteúdo em suas

salas de aula.

Depois da colaboração dessa formadora, pudemos falar no âmbito da matemática, da

importância da construção de escalas, de distâncias de pontos geográficos usando as

convenções contidas nos mapas, como havíamos planejado. Os educadores foram

convidados, em grupo de 4, a perceberem a construção de escalas nos mapas, um mapa

para cada grupo. Vimos como ampliá-los e como reduzi-los. Num segundo momento,

vivenciamos uma outra dinâmica, como descobrir a distância real entre as aldeias, a

partir de um caminho por eles definido nos mapas, delimitação das superfícies que

correspondessem ao seu plantio, de café, de feijão, ou outras culturas que quisessem

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para cálculos de suas áreas. A formação teve impacto positivo e colhemos comentários

como:

“Gostei muito das atividades propostas hoje. Não somente por estar diante de

um mapa tão bonito da minha própria aldeia, mas por poder utilizar algumas

informações das convenções e fazer cálculos. Eu sempre pensei que

as convenções eram somente para entendermos o desenho do mapa. Nunca

pensei que poderíamos interagir com essas informações. Muito bom!” (uma das educadoras

das séries iniciais do ensino fundamental).

À tarde do mesmo dia, foi proposto uma reunião por disciplina. Foi quando os

educadores de matemática solicitaram o nosso auxílio para discutirmos as operações

com frações, pois alguns de seus alunos apresentavam dificuldades de entenderem a

construção do resultado das contas com as quatro operações.

Aconselhamos a leitura do capítulo 6 do livro O ensino-aprendizagem da matemática e

a pedagogia do texto e propomos que, à medida que a leitura avançasse seria

interessante identificarmos em que momento, especificamente, os alunos tinham

mostrado dificuldades. Comentamos as dinâmicas propostas pelas autoras, que podiam

ser aplicadas a partir de uma contextualização intrínsecas a cultura Tupinikim, até

mesmo a partir do seu plantio, ou na construção de canteiros nos pátios das residências,

na horta comunitária, que se assemelhassem às propostas das atividades das autoras, já

que estava sendo trabalhada a problemática, a luta pela terra. Comentamos sobre a

forma como nos comunicamos em sala de aula, que seria interessante dar espaço para

que os alunos conversassem matemática entre si, e que talvez fosse conveniente manter

os alunos sentados em sala, em grupos de 4, para que uns conversassem com outros,

sobre como estão fazendo suas atividades. Por último, discutimos sobre os recursos da

geometria para o entendimento das frações, sobre a existência do material manipulável,

falamos sobre a possibilidade de jogos, como uma estratégia para o entendimento do

conteúdo e do frac-soma, que contém 235 peças de madeira, 30 barras, de 1/1 a 1/30.

Nesse sentido, orientamos que talvez os alunos, juntos aos educadores, poderiam

construir esse material em cartolina colorida ou a colorir. Utilizar esse material em sala

de aula poderia auxiliar na superação de obstáculos diante da identificação de frações

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equivalentes, das representações de razões, do aspecto ordinal, de medição, de

cardinalidade, das operações entre as frações.

Figura 78 - Ilustração de alunos aprendendo frações com o auxílio do Frac-Soma 235. Fonte: Colégio de Aplicação – UFRGS.

No segundo encontro compareceu apenas um dos educadores de matemática. Informou-

nos que seus alunos já não apresentavam tantas dificuldades com as operações de

frações como tinham anteriormente, que seus alunos participaram de dinâmicas como

havíamos sugerido no encontro anterior – operações com frações ilustradas pela

geometria e que não teriam construído o frac-soma.

O educador estava interessado em discutir sobre as possibilidades de construção de uma

lista de resoluções de problemas, voltados para sua cultura, que considerasse as

operações entre frações para busca de solução. Querendo contribuir para que esses

educadores fossem reflexivos e investigadores de suas próprias práticas, propomos uma

reflexão sobre a acepção de resolução de problemas, como uma metodologia para o

ensino da matemática. Refletimos sobre as diferentes concepções de educadores de

matemática do significado de exercício, assim como do significado de problema e, a

seguir, verificamos esses significados segundo o referencial teórico de Polya (1978), a

partir de algumas anotações pessoais que contínhamos. Posto isso, o educador nos disse

que ia propor para seus alunos essa mesma reflexão e que, a partir disso, ia sugerir que

eles contextualizassem problemas em sala de aula que envolvesse operações entre as

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frações. Que cada grupo de 4 poderia construir uma lista de seis problemas ou

exercícios e que deveriam trocar entre si os desafios.

A seguir mostramos uma lista de exercícios (ou problemas) clássicos – alguns

contemplavam o conteúdo de frações – que poderia auxiliar nas suas práticas, contida

no livro de Rosa Neto (1998), que poderia desafiar e intrigar seus alunos, ao mesmo

tempo que poderia ser uma forma atraente de apresentar para eles, alguns problemas de

frações que estavam contidos na nossa lista.

A lista continha vários exercícios (ou problemas) como: Se um tijolo pesa um quilo mais

meio tijolo, quanto pesa um tijolo e meio?; São noves lápis iguais, sendo que um deles é um

pouco mais leve que os outros. Como descobrir qual o mais leve com apenas duas pesagens

numa balança de pratos?; Alberto vai empacotar 416 palitos. Em cada caixa cabe 1/8 desses

palitos. Quantas caixas encherá?

A sugestão era de entregar uma cópia dessa lista aos alunos e os educadores não

deveriam ter pressa em comentar as resoluções. A lista poderia ser dada para os alunos

levarem para casa, para brincarem com seus familiares, com seus amigos na

comunidade. O educador, concordando conosco, disse que essa vivência era

interessante e que, ocasionalmente, em sala de aula, resolveria um ou dois problemas da

sua escolha, dos 38 da lista, de forma aleatória, não seguindo sua ordem de

apresentação, deixando os alunos sempre na expectativa da resolução dos demais.

A atividade proposta pelo educador, de seus alunos criarem problemas, assim como

convidar os alunos a refletirem sobre a resolução dos problemas da lista que

propusemos, vem ao encontro do que acreditamos, em concordância com os autores

Allevato e Onuchic (2004): quanto mais damos condições aos nossos alunos, para

pensarem e testarem uma idéia emergente, maior poderá ser a chance de que essa idéia

possa ser formada corretamente e integrada numa rica teia de idéias e de compreensão

relacional. E foi nessa ótica que conversamos também no nosso último encontro de

2005 com esse educador (o outro educador esteve ausente outra vez), quando soubemos

que seus alunos estavam muito intrigados, se sentindo ainda desafiados com os

problemas contidos na lista.

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O educador comentou que alguns exercícios da lista para ele mesmo, eram realmente

problemas. Relatou-nos que ficara pensando muito tempo em como resolver alguns

deles, por exemplo: Se um tijolo pesa um quilo mais meio tijolo, quanto pesa um tijolo e

meio? (entender peso=massa). Disse-nos que havia encontrado respostas distintas para

esse desafio em várias tentativas, como 1,5 kg, 2 Kg e 1,750 kg. Mas desconfiou de

todos seus resultados. Sentiu-se curioso e teve muita vontade de buscar solução para

esse problema. Pelo fato de poder propor esse desafio aos seus alunos, que

desconheciam cálculos algébricos, se imaginou no lugar de uma dessas crianças

tentando resolvê-lo. Leu mais uma vez o enunciado e percebeu que conhecia todos os

elementos descritos, o tijolo, o peso de 1 Kg e a balança de pratos e que assim, de

repente, imaginou um desenho que representasse o fato proposto.

1 Kg

Figura 79 – O desenho que representa o problema. Fonte: desenho da investigadora

Imediatamente, o educador vislumbrou que a balança continuaria em equilíbrio, se ele

levantasse meio tijolo de cada prato:

1 Kg

Figura 80 – O desenho que representa a resolução do problema. Fonte: desenho da investigadora

O que garantiria que um tijolo e meio, por corresponder a três metades de tijolos, teriam

exatamente 3 kg.

129

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Chamamos atenção para este enunciado porque o educador se inspirou nesta proposta

específica para se manifestar, pela primeira vez em nossa companhia, sobre sua

formação inicial, apontando para algumas reflexões à nossa 5ª questão.

“Eu jamais, quando freqüentei a escola vivi propostas como essa! Por que os

professores não nos ofertavam esse tipo de possibilidade de raciocínio? Eu

fiquei ‘preso’ no que aprendi um dia. O fato de ter me sentido intrigado

foi que me levou a me colocar no lugar de uma criança, de um aluno meu e

pensar, como ele resolveria isso sem a álgebra? Fiquei preso no que aprendi no passado,

quis fazer do jeito que aprendi a resolver, recorri a minha memória de fazer contas, usei

regra de três, multipliquei valores. Não refleti sobre a proposta, tomei as informações e

iniciei as contas a partir dos valores dados, imediatamente. Como eu fazia lá nas minhas

séries iniciais... Não me dei por conta nem em pensar no que já aprendi aqui, nos cursos de

formação que tenho freqüentado. Senti-me muito bem quando vi o resultado no recurso do

desenho. Perguntei-me porque não pensei em apelar para esse recurso desde o primeiro

momento. A resposta estava ali, diante de mim, nos próprios fatos. Além dos fatos era preciso

saber que a balança mede a partir de seu equilíbrio, mais nada! Gostei!”(um dos educadores

de matemática da 5ª série).

Essa não era a primeira vez que testemunhávamos essa forma de resolução para esse

mesmo problema. Buscar a solução no recurso do desenho, como nos relatou o

educador mostra que comunicar uma solução requer selecionar entre os conhecimentos

adquiridos, os que são mais idôneos para serem compreendidos, e os sistemas

simbólicos escolhidos nem sempre são aqueles que alguns educadores oferecem.

Comentamos ainda com o educador que, segundo Polya (1978), se quisermos trilhar o

caminho de que matemática é resolver problemas, e refletir sobre eles, é preciso ter

como objetivo específico desse ensino, o desenvolvimento de certas competências e

atitudes nos alunos. Em princípio é importante que os alunos assumam que resolver um

problema não é uma tarefa fácil e que implica buscar, provar, decidir, rejeitar,

recomeçar, etc.; têm que saber que podem decidir, pois são essas as expectativas dos

educadores, entre usar materiais, desenhos, representações mentais (tal como usou o

educador), cálculos memorizados, etc.; que é importante explicar, comparar, discutir e

validar os diferentes procedimentos que possam ter surgido.

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Enquanto isso, a atitude docente deve permitir tolerar a diversidade e a instabilidade dos

saberes de seus alunos, dando-lhes diversas oportunidades de voltar a enfrentarem as

situações onde foram criadas as dificuldades para eles, ao mesmo tempo em que se deve

incentivar e estimular a empreenderem uma busca pessoal, diante de um problema novo.

Em suma, trabalhar nesse enfoque exige conhecer os saberes anteriores, incentivar a

busca de novas estratégias, que podem estar nas analogias contextualizadas em sua

cultura indígena. Se possível, as crianças podem imaginar como os ancestrais sem

conhecimento escolar resolveriam tal situação, buscar a colaboração na comunidade,

criar recursos didáticos próprios. Temos o comprometimento com as tarefas de ensinar,

mas não podemos nos esquecer de nosso próprio prazer em aprender, tal como vimos

nas palavras do educador quando concluiu com ‘gostei!’.

Despedimos-nos do educador nesse último dia de formação em 2005 com a promessa de

retornarmos no ano seguinte. A volta para casa silenciosa foi acompanhada das

lembranças de embates já vividos neste contexto, diante das dificuldades nas

demonstrações complexas de alguns teoremas matemáticos, assim como do tempo gasto

para descobrir, “dos nove lápis, como descobrir o único mais leve com a apenas duas

pesagens numa balança de pratos?” Aprender por meio do auto-desafio? Um prazer!

Entre essas nossas idas e vindas para a formação, ao encontro dos educadores na

SEMED de Aracruz, nossas reuniões entre os formadores, alguns educadores e

representantes das parcerias no IPE se intensificavam. As reuniões tinham como foco a

discussão sobre as ações para o próximo curso de formação para todos os educadores

indígenas, de 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental, que seria implementado no ano de

2006.

Uma das fortes e urgentes expectativas, de todos esses educadores indígenas, para o

curso de formação para 2006 eram as possibilidades de discussões para a elaboração de

um currículo diferenciado, principalmente para a segunda fase do seu ensino

fundamental, de 5ª a 8ª série. A 5ª série estava ocorrendo em 2005 e a 6ª série seria

implementada no próximo ano letivo, em 2006.

Pensavam também em atualizar o seu currículo, já diferenciado, de 1ª a 4ª série, pois o

relatório dos estudos deste currículo, pelos pesquisadores do IPE, para o período de

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2000 a 2004 estava em fase final, e apontava para possíveis reflexões de mudanças.

Como exemplo, mudanças para os conteúdos, de matemática principalmente, que em

relação às outras escolas do município de Aracruz, apresentavam lacunas.

No momento, os currículos das escolas indígenas eram baseados nos da SEMED de

Aracruz, para todas as séries. Como já dissemos o currículo de 1ª a 4ª séries, se

diferenciavam pelas suas problemáticas aí inseridas.

Assim estavam institucionalizados apenas os currículos de 1ª a 4ª séries, como currículo

diferenciado. Os educadores almejavam em construir os seus currículos de 5ª a 8ª séries

e outro para a Educação Infantil.

Diante disso foi que se consagrou um Curso de Formação para os Educadores Indígenas

de Aracruz para ser ministrado no ano letivo de 2006, não para discussões propriamente

ditas de currículos diferenciados, mas com propostas de discussões sobre alguns

elementos importantes, que os educadores entendiam que precisavam dar conta

inicialmente, para cumprirem tal tarefa.

A FORMAÇÃO CONTINUADA EM 2006

Este Curso de Formação, já mencionado no capítulo que trata da nossa metodologia,

teve cinco encontros para a disciplina de Matemática, perfazendo um total de 24 horas

aulas, voltado especificamente para os educadores de 5ª e de 6ª séries.

Então, os caminhos nos levaram a refletirmos juntos aos educadores, para este próximo

curso de formação a ser implementado, sobre os significados de interdisciplinaridade e

interculturalidade, incluindo construções de recursos didáticos para serem trabalhados

na escola, a partir de vertentes teóricas.

Encontros de Formação Continuada de Matemática para todos os educadores indígenas

As aulas da disciplina de Matemática foram planejadas na companhia da colega Ozirlei

Tereza Marcilino, sob orientação da professora Dra. Circe Mary Silva da Silva

Dynnikov. Os contextos dos planejamentos foram centrados nos dois tópicos:

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• Interculturalidade:

o A matemática e a interculturalidade, uma reflexão; o Reflexão de um currículo diferenciado.

• Interdisciplinaridade: o Relato de experiência de dinâmica interdisciplinar em sala de aula; o Conceituação de interdisciplinaridade; o Produção de recurso didático.

Assim, definimos um cronograma de cinco encontros, que contemplasse cada um o

tema a ser discutido, focando os objetivos a serem alcançados, como mostrado no

quadro a seguir.

Data Tema Objetivos

26/05/2006 Interculturalidade

• Promover discussões e reflexões sobre a importância da matemática na cultura e na interculturalidade;

• Promover discussões sobre a importância das relações dialógicas e democráticas entre pessoas e grupos que pertencem a universos culturais diferentes como processo inacabado;

• Discutir o papel da educação escolar e os desafios a serem enfrentados na promoção de processos educativos informados pela perspectiva intercultural;

• Discutir a questão da interculturalidade como categoria constitutiva de uma escola indígena.

10/07/2006 Interdisciplinaridade

• Promover discussões e reflexões sobre concepções de interdisciplinaridade a partir de conceitos elaborados por autores.

25/07/2006 Interdisciplinaridade

• Identificar a presença ou não da interdisciplinaridade nas práticas relatadas pelos educadores.

• Possibilitar que essas discussões possam permitir ou revisar e, sobretudo, repensar os cenários que têm guiado nossa atuação, de forma tal que possamos, talvez, vislumbrar criativas práticas pedagógicas no uso da interdisciplinaridade.

24/08/2006 Interculturalidade e Interdisciplinaridade

• Construir em grupo recursos didáticos com foco na interculturalidade e interdisciplinaridade (Oficina).

25/08/2006 Interculturalidade e Interdisciplinaridade

• Apresentar os recursos didáticos produzidos e o planejamento das atividades.

Quadro 1

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1º encontro:

Antes de darmos início à formação aos 17 educadores presentes, solicitamos que eles

respondessem os instrumentos I e II da nossa investigação. No momento da entrega,

alguns complementaram com comentários, que foram aproveitados no momento das

análises.

A priori, na formação, refletimos sobre o significado de discussão segundo (Quaranta e

Wolman, 2006), que esclarecem:

Os momentos de discussão conformam uma das modalidades que adquire a interação entre pares na sala de aula: trata-se de um intercâmbio entre todos os alunos da turma orientado pelo professor. De nenhuma maneira são ‘eventos naturais’ da vida da aula: as discussões não podem ficar restritas às contingências de uma classe ou à espontaneidade dos alunos. Pelo contrário, devem ser organizadas intencional e sistematicamente pelo professor, a quem cabe um papel central e insubstituível no seu desenvolvimento: ‘Tudo isso não se realiza espontaneamente, a intervenção do professor é decisiva e, justamente, organizar com êxito o momento do confronto é uma das maiores dificuldades dos professores’ (Saiz, 1995)” segundo (Quaranta e Wolman, 2006, apud Panizza, 2006, p.111).

Após, lemos dois textos, uma resenha do livro D’Ambrosio (1996), Educação

matemática: da teoria à prática e o outro, do mesmo autor, intitulado Sociedade,

cultura, matemática e seu ensino onde enfatiza que uma cultura é identificada pelos

seus sistemas de explicações, filosofias, teorias, e ações, pelos comportamentos

cotidianos. Que tudo isso se apóia em processos de comunicação, de representações, de

classificação, de comparação, de quantificação, de contagem, de medição, de

inferências. Esses processos se dão de maneiras diferentes nas diversas culturas e se

transformam ao longo do tempo, revelando as influências do meio, se organizando

segundo uma lógica interna, codificando e se formalizando, o que faz nascer o

conhecimento. A partir dessa premissa, D’Ambrosio nos fala das relações interpessoais

e interculturais, tal como mostramos no nosso referencial teórico. No final de seu texto

o autor defende um conceito peculiar de currículo, baseado nos instrumentos

comunicativos.

Alguns educadores trouxeram nossas leituras para o âmbito da matemática,

exemplificando os diferentes sistemas de numeração em culturas diferentes: dos

egípcios, dos árabes, dos romanos e que, por conta das relações interculturais, o sistema

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de numeração decimal é atualmente utilizado pela maioria dos povos do mundo. E, pela

mesma razão, conhecemos os outros sistemas de contagem.

Durante nossa reflexão citamos Fleuri (2003) - que segue Geertz (1989), pois acredita

que na maioria das vezes, quando discutimos as relações interculturais, essas relações

são consideradas a partir de uma lógica binária, índio x branco, centro x periferia,

dominador x dominado, sul x norte, homem x mulher, criança x adulto, etc.. Essa lógica

simplista não permite compreender a complexidade dos agentes e das relações

subtendidas em cada pólo, nem a reciprocidade das inter-relações, nem a pluralidade e a

variabilidade dos significados produzidos nessas relações, para além de uma simples

divisão e classificação binária da existência humana. A interculturalidade deve ser um

espaço de negociação que introduz a reinvenção criativa da existência, fundada num

profundo desejo de solidariedade social: a busca do encontro.

Nesse sentido, observamos a educação intercultural como um conceito que envolve uma

formação sistemática que tem como objetivos desenvolver, quer nos grupos

majoritários, quer nos grupos minoritários: uma maior compreensão das culturas das

sociedades modernas; uma maior sintonia entre pessoas de culturas diferentes; uma

maior capacidade para participar na interação social, sendo criadora de identidades e de

reconhecimento de pertença comum à humanidade.

Isto é, entendemos que o interculturalismo pode estabelecer uma relação dialética entre

as diversas culturas particulares, em que cada cultura contribui para a construção de

uma cultura universal, é pública, patrimônio de todos, ao mesmo tempo em que as

culturas particulares podem ver para além de si próprias, por meio do sentido que a

relação estabelece com a cultura universal.

A partir disso, retomamos o texto de Ubiratam D’Ambrosio e construímos juntos

algumas considerações sobre uma educação intercultural que deve: reconhecer os

valores de culturas diferentes, de uma forma que não dissimule as relações de domínio,

mas realce o prestígio de sua cultura; repensar os critérios de avaliação que se baseiam

nos preceitos sociais e no etnocentrismo; introduzir a aproximação intercultural em

todos os setores de organização de vida da escola; desenvolver a solidariedade e a

aceitação mútuas na comunidade viva da escola; reconhecer e apreciar o papel

simbólico da presença de línguas maternas na escola; promover uma aproximação

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pluralista de aquisição do saber; reconhecer que as artes permitem aprender a apreciar

culturas diferentes; promover atividades interculturais entre os alunos, reconhecendo

que depende da qualidade de cooperação no seio do corpo docente; promover a

comunicação entre as escolas, as famílias, o meio social no qual vivem as crianças;

desenvolver nos professores aptidões que permitirão a esses princípios tornarem-se uma

realidade prática. Inclui-se aqui a dimensão interna à prática de sala de aula, associada a

uma relação com a comunidade, com papel privilegiado das artes, na divulgação da

interculturalidade.

Utilizamos o termo intercultural para nos referirmos às relações entre culturas, no

objetivo de práticas educativas na perspectiva da multiculturalidade, denotando

múltiplas culturas sem referir-se a sua dimensão relacional.

Nesse sentido, mencionamos o texto de matemática produzido pelos educadores

indígenas, que cativam os alunos a refletirem os conteúdos escolares por dar ênfase à

intraculturalidade caracterizada pelos textos, enquanto que o livro de Dynnikov (et al.

2004) propunha reflexões interculturais, sugerindo nesse caso, que a prática pedagógica

deve se apoiar, algumas vezes, em atividades de trabalho em grupo e de projeto.

Solicitamos aos educadores que fizessem uma avaliação oral do nosso encontro. De

suas palavras resumimos que, nos contextos de suas problemáticas a relação

intercultural era bem presente, uma vez que todas elas apontavam para as relações

interpessoais entre indivíduos de diferentes povos, entre os Tupinikim e Guarani, entre

Guarani e os não índios, entre os Tupinikim e os não índios, dentro de aspectos

históricos, regionais, nacionais e internacionais até os dias atuais, situando a cultura

indígena local como uma cultura resultante dos movimentos entre essas culturas.

Assim, a discussão nos permitiu revisar e, sobretudo, repensar os cenários que têm

guiado a atuação do educador indígena em sala de aula, ao mesmo tempo, em que

vislumbramos uma prática mais criativa para a abordagem das problemáticas, por meio

de recursos didáticos, a serem elaborados em encontro futuro.

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2º encontro:

Após o consenso de um roteiro de aula acordamos que leríamos dois textos. Após

ouviríamos relatos de dois educadores, o primeiro de Matemática e o segundo de Artes,

cada um na tentativa de justificar a existência da interdisciplinaridade em uma

experiência vivenciada em sala de aula com seus alunos.

Assim, os educadores foram convidados a ler e refletir sobre um breve texto de três

páginas, de autoria de Thereza Cristina Bordoni, intitulado Uma postura

interdisciplinar. Neste texto, a autora faz um passeio sobre a importância da

interdisciplinaridade, e nos diz que é onde podemos encontrar implícitas mudanças de

atitudes em busca da unidade de pensamento, como uma nova postura diante do

conhecimento. Para a autora a interdisciplinaridade é como o estudo do

desenvolvimento de um processo dinâmico, integrador e, sobretudo, dialógico, apoiada

pelos preceitos teóricos de Fazenda (1993), que caracteriza a interdisciplinaridade

pela intensidade das trocas entre os especialistas e pela integração das disciplinas num mesmo projeto de pesquisa.(...) Em termos de interdisciplinaridade ter-se-ia uma relação de reciprocidade, de mutualidade, ou, melhor dizendo, um regime de co-propriedade, de interação, que irá possibilitar o diálogo entre os interessados. A interdisciplinaridade depende então, basicamente, de uma mudança de atitude perante o problema do conhecimento, da substituição de uma concepção fragmentária pela unitária do ser humano (Fazenda, 1993, p. 31).

O segundo texto lido foi da autoria de Humberto Calloni, intitulado Breve ensaio sobre

o conceito de interdisciplinaridade e a noção de "totalidade" em Paulo Freire. O autor

inicia seu texto chamando a atenção do leitor para a complexidade do tema, que não se

pretende conclusivo, sugerindo uma diretriz para seu ensaio a partir de uma frase

retirada de uma manifestação de fala, apresentada no início do texto, de Paulo Freire:

“O Real é, enquanto Real, uma totalidade transdisciplinar”.

À medida que íamos lendo alguns parágrafos dos textos, os educadores faziam pausas, e

conversavam sobre seu entendimento da leitura.

Após a leitura do segundo texto, que dá ênfase à interdisciplinaridade no olhar de Paulo

Freire, alguns educadores se manifestaram satisfeitos porque muitos concordavam com

o pensamento do autor.

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Por fim, estabelecemos uma discussão do que é interdisciplinaridade. Alguns

apresentavam as definições já editadas, como a de Paulo Freire. Outros preferiram

construir o significado pessoal a partir de suas próprias palavras.

Os educadores não se furtaram em informar ao grupo que essas teorias já tinham sido

trabalhadas em outras ocasiões e que o conceito de interdisciplinaridade, para eles,

estava claro. Eles afirmaram saber aplicar esse conhecimento, principalmente quando

tratavam de elaborarem projetos a serem vivenciados na escola, junto aos temas de suas

problemáticas.

Diante disso, propomos que vivenciássemos a segunda etapa daquele nosso encontro e

os convidamos a relatarem uma experiência interdisciplinar – segundo sua concepção –

vivenciada na escola, com seus alunos. Cada um dos educadores teria que justificar a

interdisciplinaridade no seu relato. Em seguida, os outros educadores poderiam

contribuir com o orador, numa manifestação justificada de concordância ou não. Para

ilustrar esse encontro, vamos fazer um recorte e trazer à luz desse trabalho, apenas a

atuação do primeiro educador, responsável pela Matemática.

Relatou que numa manhã, recebeu um palestrante em sala de aula. A razão dessa

palestra era conscientizar os alunos da importância da higiene para a prevenção de

verminoses. O palestrante fez referências às incidências de casos de crianças que

estavam fazendo tratamento médico para verminoses, dos diferentes vermes que

acometem às crianças das aldeias e que estão registrados no Posto de Saúde local; quais

as verminoses mais freqüentes; da preocupação e das conseqüências de outras doenças

causadas por verminoses, justificando como prevenção a higiene pessoal, cuidado com

o lixo nas aldeias, a importância de se lavar as mãos com sabão neutro, manter as unhas

das mãos e dos pés limpos, manterem-se calçados, etc.

Quando o palestrante deixou a sala, o educador de matemática propôs uma tarefa aos

seus alunos, que fossem ao Posto de Saúde local e trouxessem para a sala de aula o

nome científico - e popular - das verminoses e os números exatos registrados no Posto

de Saúde local da aldeia, de todos esses atendimentos, no período anual. De posse

desses dados, o educador comentou com seus alunos sobre a importância de se possuir a

habilidade da leitura de gráficos estatísticos. Assim, mostrou alguns gráficos

estatísticos, discutiu com seus alunos como era feita sua leitura; solicitou aos alunos que

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construíssem alguns gráficos em diferentes contextos e, por último, solicitou a

construção, em grupo, de um gráfico estatístico que representasse os casos de

verminose, usando as informações que eles haviam colhido no Posto de Saúde. Com os

gráficos concluídos o educador reiterou as palavras do palestrante. O educador havia

solicitado também aos alunos que pesquisassem a respeito da vida desses vermes, sobre

o mal que eles fazem aos seres humanos e por fim, solicitou aos alunos que fizessem um

relatório da atividade.

O educador concluiu que se tratava de uma tarefa interdisciplinar entre Ciências

Naturais, Matemática e Português. Ciências Naturais porque o tema estava vinculado à

saúde, Matemática porque o entendimento do contexto aconteceria pela habilidade de

leitura dos gráficos estatísticos e Português pela construção do relatório. O educador

ainda nos disse entender que, se ele tivesse pedido aos alunos os dados registrados de

verminoses ao Posto de Saúde, de anos anteriores, poderia incluir a História como mais

uma disciplina a ser figurada na tarefa, porque com esses dados poderia ter trabalhado a

comparação das incidências entre os períodos.

Neste nosso encontro, depois do relato do educador, os demais colegas foram

convidados à discussão para identificar a presença ou não da interdisciplinaridade.

Alguns entenderam como sendo uma tarefa interdisciplinar e outros disseram que a

proposta era não interdisciplinar. Esses últimos disseram que se tratava de uma

dinâmica multidisciplinar.

Àqueles que disseram que não foi interdisciplinar pontuaram: que o educador não

entrou em contato com o educador de Ciências, nem com o educador de Português, que

não se envolveu com os colegas para corrigir os relatos dos alunos; que seria

interdisciplinar se tivesse aprofundamento das disciplinas na dinâmica; enfatizaram de

que o educador simplesmente aproveitou a palestra para introduzir um conteúdo de

matemática (gráficos estatísticos); que os alunos para construírem um gráfico estatístico

não precisavam, necessariamente, conhecer aspectos de verminoses locais; que a

estatística é uma das ferramentas que pode ser utilizadas para traduzir os dados; a

presença de gráficos estatísticos não define a matemática numa contribuição

interdisciplinar; que para entenderem do tema da palestra não seria necessário a

construção de gráficos.

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Outros entenderam como uma tarefa interdisciplinar, pois a proposta da dinâmica foi

bastante clara – a construção e leitura de gráficos estatísticos – e que não se pode pensar

em construir gráficos sem o alicerce de um outro conhecimento; neste caso, para esses

educadores, a interdisciplinaridade se fez presente a partir da proposta do educador e, se

o professor soubesse a metodologia de construção de relatório, ele mesmo poderia

corrigi-los, que não seria necessária a presença do especialista em Português para

corrigir ou formatar o relatório.

Então, se estabeleceu uma discussão do que é, de fato, interdisciplinaridade. Isso os

levava de volta às leituras de trechos de um dos textos para esclarecer o significado do

termo. Observou-se que as interpretações de uma mesma leitura eram totalmente

diferentes e, por vezes, ambíguas.

Nós, na condição de formadores, não nos sentimos à vontade para interferirmos nas

discussões que foram se estabelecendo porque tínhamos combinado inicialmente, no

nosso contrato pedagógico que a interferência da formação seria depois que todos

tivessem relatado suas experiências. Apenas anotávamos as diferentes justificativas, a

partir de nossas observações. Evidentemente, nossa intervenção viria de fato, após a

última apresentação entre os educadores, que estava previsto para o encontro seguinte,

como havíamos estabelecido no início de nosso trabalho.

Talvez por isso, antes do término desse encontro, a formação desse dia foi vista como

geradora de confusões para alguns deles. Afinal eles acreditavam que já sabiam qual o

significado de interdisciplinaridade e a dinâmica havia promovido o contrário e gerado

inseguranças.

Os educadores concluíram que precisavam amadurecer seus conceitos, lerem mais a

respeito, discutirem mais e definirem para suas escolas, um único conceito do que é

interdisciplinaridade, para esta educação indígena, para que todos os educadores

falassem uma só voz a respeito deste significado.

No final, os educadores foram convidados a fazerem uma avaliação, por escrito, do

encontro, registrando suas impressões a respeito e sugestões para o nosso próximo

encontro. Houve solicitação de continuação dos relatos e construção de recursos

didáticos para um trabalho interdisciplinar em sala de aula.

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Os educadores se mostraram satisfeitos com o encontro. Um deles escreveu:

“O encontro de hoje foi melhor que o primeiro, já que o primeiro foi muito

teórico (leitura) não dando oportunidade para o grupo se expor. Quanto aos

relatos das experiências foram bons, já que os mesmos proporcionaram o

diálogo entre o grupo. Mas poderia ter sido melhor, se tivessem avisado

aos educadores para, com antecedência, pudessem preparar-se. No próximo encontro, quando

outros colegas falarem, gostaria também de ouvir a sua opinião, se envolve ou não a

interdisciplinaridade na aula relatada”

3º encontro:

Esse encontro foi uma continuação do encontro passado. Compareceram ao encontro 13

educadores. A formadora Rosalina esteve presente, responsável pela formação de

Português, no intuito de aquecer e colaborar para o debate do grupo, quanto ao

significado de interdisciplinaridade. A idéia de construírem um único conceito de

interdisciplinaridade, para ser adotado no seu currículo indígena se fortaleceu entre os

educadores, em relação ao encontro anterior. Na concepção do grupo várias visões desse

significado poderiam gerar transtornos, diante de suas construções pedagógicas de

projetos interdisciplinares que queriam propor para suas escolas.

Fazenda (2001), que estuda a utilização da interdisciplinaridade há mais de trinta anos,

comenta a complexidade de vivências nas escolas em projetos pedagógicos

interdisciplinares. Ressalta que, geralmente, esses projetos contemplam muito mais a

multidisciplinaridade, e não a interdisciplinaridade, como muitas vezes acreditam os

educadores que elaboraram os projetos.

Salienta que é muito importante que os educadores refletissem juntos, e discutissem

inúmeras vezes, sobre o conceito de interdisciplinaridade, uma vez que implementar tal

proposta nas escolas não é tarefa fácil. Comenta ainda que os educadores geralmente

são órfãos de teorias e de conhecimentos metodológicos científicos, e que muitos os

rejeitam.

Evidentemente, que estabelecer discussões sobre suas práticas, em cursos de formação,

é relevante para a melhoria de sua atuação em sala de aula, mas se queremos atender os

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pressupostos do PCN, as escolas devem promover o cidadão crítico e atuante na

sociedade, e os trabalhos interdisciplinares, sem dúvida, poderão colaborar para que isso

aconteça, além de trazer um olhar para a importância de adquirirmos conhecimentos

específicos.

Nesse sentido é que demos seqüência aos nossos trabalhos, tentando desvelar esse

significado num caminho inverso, colaborar para a identificação desse conceito, a partir

de uma prática vivenciada em sala de aula, a partir da fala de cada um dos educadores.

Com alicerce nas teorias, como de Fazenda (2001), interferimos no final das exposições,

a partir dos diferentes olhares para construção de projetos de interdisciplinaridade na

escola. Sugerimos que o conceito de interdisciplinaridade poderia ser mais discutido

entre eles e, se adotassem um conceito definitivo, provavelmente, fechariam

possibilidades para um maior entendimento desse significado tão complexo.

Na segunda parte do encontro, em grupo, cada um composto com educadores

responsáveis por diferentes disciplinas, foram convidados para elaborarem um projeto,

que usasse um recurso didático de sua escolha com foco na matemática, que colaborasse

com alguma prática interdisciplinar para sua sala de aula, voltado para suas

problemáticas. Acreditávamos que a dinâmica poderia auxiliar no amadurecimento do

conceito de interdisciplinaridade para cada um dos educadores. Ao mesmo tempo

poderíamos observar se, por meio dessa dinâmica, iriam desvelar-se concepções,

crenças e atitudes que esses educadores têm diante da matemática.

Para a escolha e entendimento de alguns dos recursos didáticos, os educadores foram

orientados também por meio de leituras, utilizando sugestões de diversos autores, como

Bairral, Emerique, Rosa Neto, Sampaio, Silva da Silva, entre outros, enquanto nós

observávamos se essa construção poderia desvelar as concepções, crenças e atitudes que

esses educadores têm diante da matemática, nosso objeto de investigação.

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Figura 81 – Um dos grupos de educadores elaborando o planejamento de um recurso didático, durante o curso de formação. Fonte: foto da investigadora

Figura 82 - Outro grupo de educadores cumprindo a mesma tarefa.

Fonte: foto da investigadora

No final, cada grupo nos entregou uma lista de material que precisariam para a

construção dos recursos didáticos. Comprometemos-nos em adquirir e trazermos para o

nosso próximo encontro.

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4º encontro:

De posse do material solicitado, os grupos iniciaram a elaboração de recursos didáticos,

dando continuidade aos nossos trabalhos.

Registramos a presença de quatro grupos, entre os 13 educadores que participaram da

oficina. Os recursos que elaboraram foram: Tangram, quebra-cabeças artístico,

atividade com foco no sistema financeiro e jogo da memória e os grupos fizeram alguns

registros para a vivência desses recursos tais como a seguir.

Polígono Tangram

Um dos componentes deste grupo de educadores leu e registrou a

história do Tangran, segundo Zazlavsky (2000, p.114). O grupo

confeccionou geometricamente, o quadrado, e duas variações do

Tangram, triângulo eqüilátero e retângulo. À frente dos quadrados

ilustraram a figura de um índio. À frente dos triângulos, uma flor (rosa). À frente dos

retângulos, dinossauro. Atrás das três diferentes figuras, cor branca. Depois de

recortadas, foram forradas com papel contact.

Em seguida criaram a seguinte lista de expectativas de trabalho em sala de aula com o

Tangram (e suas derivações):

• Raciocínio lógico: quebra-cabeças na construção de diferentes figuras usando todas

as peças;

• História e origem chinesa do Tangram;

• Conceitos de figuras geométricas regulares planas;

• Comparação de polígonos; estudo preliminar dos ângulos;

• Estudo das frações;

• Diferentes formas usando a composição do Tangram; que poderá ser proposta às

crianças, a construção oral, por escrito ou teatral de uma história ilustrando com

tangrans (a exemplo da publicação de Ann Tompert: O avô conta à neta sobre as

fadas raposas que podem mudar sua forma para não serem capturadas).

Objetivando a ilustração concluíram que junto aos seus alunos poderiam focar:

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Jogo da Memória

• A história dos dinossauros e a evolução da espécie animal;

• O dia-a-dia de sobrevivência do índio comparado com o dia-a-dia do homem não

índio na história;

• O uso medicinal das plantas no olhar do índio da região;

• A presença da flora nativa, onde a rosa naturalmente não figura. De onde ela vem?

• A presença dos eucaliptos na região;

• A biodiversidade;

• Camadas terrestres;

• A luta pela terra;

• Outros temas.

Cada um composto de 11 pares de cartelas retangulares de mesma

medida. Assim 11 cartelas foram confeccionado em papel paraná com

desenhos do artefato indígena pintados com lápis de cor e canetas

(hidrocor), revestido de papel contact. As outras 11 trazem, por escrito, informações

sobre o artefato, como por exemplo, para que serve, com que material foi feito e sua

forma geométrica. Para a construção do par é preciso juntar uma cartela que contém

um desenho de um artefato indígena, com uma outra cartela, que trás registrado por

escrito, o significado desse artefato para a cultura indígena local.

Por exemplo; A cartela que contém a figura do ‘pau de chuva’ deverá juntar-se com a

cartela que contém o registro “confeccionado de imbaúba e conchinhas; de forma

cilíndrica”. Ou ainda, a cartela que contém a figura da ‘casaca’ deverá juntar-se com

a cartela que contém o registro “instrumento musical; feito de tajibibuia; barriga feita

de taquara com cavas”.

A finalidade inicial desses educadores, por meio do uso desse jogo, será trabalhar

com seus alunos os aspectos:

• Afetivo: como regular o ciúme, a inveja e a frustração, adiar o prazer imediato,

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subordinar-se a regras;

• Social: a necessidade da linguagem, de códigos, da cooperação, da solidariedade,

das relações interpessoais;

• Cognitivo: necessidade e possibilidade de construção de novos conhecimentos e

procedimentos, de descobrir erros e de imaginar forma de superá-los, dentre outros

desafios.

Por meio do jogo da memória, considerando as ilustrações e as informações sobre o

significado das ilustrações, foi proposto por este grupo de educadores trabalharem

com seus alunos, nas suas sala de aula, no aspecto cultural:

• Perceber se os alunos conhecem os artefatos de sua cultura e seu uso;

• Investigar na comunidade, junto aos seus parentes mais velhos, quais os artefatos

que seus avós, e que seus bisavós construíam e para quê os utilizavam;

• Investigar o uso das madeiras que os índios destinam para confecção de seus

artefatos, assim como o uso dado para suas edificações e comparar com as

informações colhidas dos mais velhos, e se isso trás prejuízos ou não ás suas questões

ambientais;

• Refletir sobre importância do artesanato como subsistência;

• Criar oficinas para confecção de alguns destes artefatos;

• Propiciar o entendimento do uso das diferentes formas e conceitos geométricos,

presentes nos artefatos e nas edificações indígenas como nas casas de estuque e nos

canteiros do viveiro de plantas em Pau-Brasil;

• Identificar os artefatos e a presença das madeiras das árvores com que são

produzidos presentes nas lendas indígenas;

• Conhecer alguns conceitos da Botânica;

• Reconhecer a utilização integral, do tronco ou caule, das árvores e arbustos, folhas

e frutos (caso tiverem) como remédio e na culinária;

• Discutir sobre a presença dos eucaliptos em suas terras.

• Produzir textos

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Quebra-cabeças

Nas aulas de Artes, será feita uma reflexão sobre as formas das figuras

geométricas objetivando o estudo dos ângulos dessas figuras. O

educador de Artes vai propor, a cada grupo de alunos, que façam um

desenho em um quarto de folha de cartolina, retratando o índio no seu

dia-a-dia na visão do grupo. Às costas do desenho, um retângulo, os alunos deverão

desenhar figuras geométricas planas, como triângulos eqüiláteros, isósceles, escaleno,

quadrados, trapézios, retângulos, paralelogramos, polígonos com lados comuns, sem

sobreposição das figuras, até preencherem o quadro, com o objetivo de confeccionar,

cada grupo, o seu quebra-cabeças. Após o recorte das figuras irão trocar os seus

quebra-cabeças. Assim, cada grupo deverá compor a figura do quebra-cabeça que foi

feito por um outro.

O grupo apresentou como proposta de trabalho em sala de aula, que os alunos

poderão:

• Construir uma tabela classificatória com a quantidade das diferentes variações de

formas de figuras planas e construírem a definição de cada uma das figuras mostrado

no quebra-cabeça que montaram;

• Fazer analogias das figuras do quebra-cabeça com as diferentes formas de objetos

no seu meio natural nas aldeias e com as coisas que conhecem de outras culturas,

classificando em duas categorias, o que está presente na cultura indígena e o que é

externo a ela;

• Perceber a sobreposição dos ângulos das figuras que compõe o quebra-cabeça;

• Assimilar a definição de ângulos e de semelhança de ângulos;

• Discutir a importância do conhecimento de ângulos para a edificação de casas de

estuque.

• Produzir textos, relatórios, das dinâmicas.

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Figura 83 - Um dos educadores produzindo uma ilustração de um dos quebra-cabeças. Fonte: foto da investigadora

Figura 84 – O quebra-cabeça Fonte: foto da investigadora

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Sistema Financeiro

Os educadores deste grupo, no intuito de vivenciarem em sala de aula,

inicialmente, um dinâmica intitulada ‘brincando de armazém’,

confeccionaram:

√ Cédulas de dinheiro correspondente aos valores de cédulas e moedas que circulam

no território nacional;

√ Cartelas contendo os preços informativos de alguns alimentos advindos do

comércio local, como óleo de soja, feijão, café, macarrão, frango, leite, pó de café,

farinha, fubá, arroz, entre outros.

A proposta para esta dinâmica vai para além do domínio do sistema financeiro

nacional. Os educadores pensam em refletir com seus alunos o que é mais

compensador economicamente, se produzir seu próprio feijão em suas terras ou

comprar no armazém, por exemplo.

Depois da prática com o sistema financeiro, a proposta é que cada grupo de alunos se

ocupe com estudos sobre um dos alimentos. Por meio dessa proposta esses

educadores entendem que podem-se desenvolver ou introduzir vários temas como:

• Tipos de solo;

• Tempo de plantar e de colher;

• Área e perímetro;

• Como plantar, como saber distanciamento entre as mudas;

• Sistema de medidas;

• Números decimais;

• Custo do quilo do alimento na própria produção comparado com o industrializado;

• A importância de uma alimentação balanceada;

• Estudo do custo de diferentes receitas da culinária indígena;

• Outros.

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Nesse dia, os educadores conversaram sobre os recursos didáticos que estavam

produzindo entre si o tempo todo, ora interagiam com colegas de seu grupo, ora com os

colegas de outros grupos. Participaram da dinâmica e fizeram comentários favoráveis a

esse tipo de encontro, pois no olhar da maioria, dinâmicas como essas no Curso de

Formação contribui efetivamente com o seu trabalho. Ao final do encontro, os

educadores entregaram por escrito, individualmente, uma avaliação do encontro. Uma

delas registrou:

No final do encontro um dos educadores sugeriu que não fossem aplicados todos esses

recursos em sala de aula isoladamente, pois no próximo ano letivo, poderiam discutir

tais propostas para colocarem no currículo, para num momento específico das

problemáticas todos se envolverem ao mesmo tempo com essas questões lúdicas, que

poderia ser previsto em calendário. Eles se propuseram a amadurecerem esses aspectos.

Para efeito do desenvolvimento dessa dissertação, solicitamos aos educadores de

matemática que escolhessem uma das atividades desenvolvidas para levarem como uma

prática em sala de aula ainda no semestre letivo vigente para que pudéssemos juntos

ilustrar este trabalho.

“Quando a aula é voltada para a prática, e tem objetivo, fica muito mais

interessante. Não que para suas aulas anteriores não houvesse objetivos,

muito pelo contrário; mas essa elaboração de materiais didáticos envolveu

disciplinas - não exatamente a Matemática, é lógico que ela é foco, mas todas as outras áreas deram contribuição.A elaboração é demorada, demanda tempo, mas foi

proveitosa. No início a formadora se mostrou insegura, pois nos trouxe vários conceitos de

interdisciplinaridade e, quanto às práticas indisciplinares, nos deixando confusos. Então a

formadora perdeu muito tempo discutindo também esses assuntos, assim como os outros

formadores. Faz tempo que nossas escolas trabalham a interculturalidade e a

interdisciplinaridade. A formadora teve uma ótima atuação e demonstrou muito

conhecimento, simpática, principalmente de Matemática”.

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5º encontro:

Cada grupo apresentou sua proposta de recurso didático tal como recém descremos no

4º encontro e, na lousa, iam registrando as pretensões de suas atividades. Os outros, por

já terem interagido com o grupo no encontro anterior, embora tivessem a oportunidade

de refletirem e fazerem outras sugestões ou considerações, para o enriquecimento do

aproveitamento do material, apenas assistiram as conclusões dos colegas, por não terem

mais nada a acrescentar.

Mais uma vez os educadores reiteraram sua preferência por encontros mais dinâmicos,

voltado para a confecção de recursos didáticos. Ao final do encontro, os alunos

entregaram por escrito, individualmente, uma avaliação do encontro. Uma delas disse:

Algumas considerações para elaboração desses recursos didáticos

Segundo Zaslavsky (2000) o quebra-cabeças quadrado Tangram foi mencionado na

China, pela primeira vez, há 200 anos. Consiste de 7 peças, polígonos, chamadas tans.

Há 5 triângulos de 3 tamanhos diferentes, 1 quadrado e 1 paralelogramo. Com uma boa

dose de imaginação podem-se formar centenas de figuras com esses polígonos.

Partindo da necessidade do conhecimento de figuras regulares planas, de ângulos e

áreas, além do desenvolvimento do raciocínio lógico, a escolha do Tangram por um dos

grupos de educadores, recaiu na vontade de propiciar aos seus alunos reflexões

interculturais e discussões sócio-político-econômicas atuais, problemas políticos que

esses povos enfrentam referentes à posse de suas terras – políticas de enfrentamento nas

negociações com o governo, para a saída definitiva da empresa Aracruz Celulose/SA de

suas terras.

As aulas de matemática se pode aproveitar melhor, nos dois últimos dias na

elaboração, discussão e apresentação dos recursos didáticos. Os recursos

didáticos foram bons, pois se pode envolver as diversas disciplinas

presentes, coisa também que eu acredito, que pode ser feito com os alunos. Enfim, as duas últimas aulas pode-se dizer que foram ótimas, mas nas outras penso que

‘perdeu-se’ muito tempo com a teoria.

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Estes educadores explicaram que o conhecimento de ângulos e áreas planas regulares,

introduzido pelo Tangram pode ser mais interessante do que algumas práticas sugeridas

em alguns livros didáticos, pois além de lúdico, os alunos poderão conhecer uma das

lendas do povo chinês, comparar com as suas, como a do Gavião que captura as

crianças índias de suas aldeias ao entardecer. No uso da semelhança entre suas figuras, e

por meio da proporcionalidade, os alunos poderão ter uma idéia mais clara da

quantidade de terras, que figuram nos documentos, que seus povos estão reivindicando

ao governo brasileiro; o conhecimento de frações e ângulos, que pode também ser

sugerido pelo Tangram, pode ajudá-los a entender suas construções civis, a construção

dos canteiros de plantas de seu viveiro16.

Os educadores acreditam que essa dinâmica gerará necessidades de discussão sobre

outros conhecimentos de Matemática paralelos aos de Geografia, de História e de

Ciências Naturais principalmente; que poderão ainda, sugerir aos seus alunos a criarem

outras atividades e dinâmicas interdisciplinares e interculturais a partir deste mesmo

material manipulável.

Figura 85 - Alguns educadores nos levam para visitar o viveiro de plantas nativas na aldeia de Pau-Brasil. Fonte: foto da investigadora

16 O viveiro de plantas em questão está sendo construído na aldeia Tupinikim Pau-Brasil para preservação da flora local.

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Com esses pressupostos, os educadores indígenas confeccionaram o Tangram chinês,

atribuindo à sua plástica a sua própria cultura (Fig.83), um índio-sol, que segundo eles,

pode imediatamente suscitar algumas indagações criativas por parte dos alunos, assim

como propiciar discussão da plantação em suas terras, da perpetuação de seus alimentos

e dos seus movimentos culturais, paralelos às suas necessidades de conhecimentos

matemáticos.

Propuseram também uma variação do Tangram, como já abordamos, em forma de

triângulo eqüilátero (Fig.84), com 8 peças: 3 trapézios, 2 triângulos, 1 losango, 1

paralelogramo e 1 hexágono, com a figura de uma rosa. O desenho da rosa procura

destacar a interculturalidade referente à flora local, para estudarem algumas plantas que

são originárias do solo brasileiro e outras, provenientes de outras culturas – como

surgiram, historicamente, no nosso solo.

Fonte: fotos da investigadora

Outro recurso elaborado pelos educadores foi o jogo da memória, um clássico jogo de

origem desconhecida, formado por peças de quantidade total par. Para começar o jogo,

as peças são postas com as figuras voltadas para baixo, para que não possam ser vistas.

Cada participante deve, na sua vez, desvirar duas peças e deixar que todos as vejam.

Caso o participante tenha desvirado duas peças, desde que uma delas seja a figura do

artefato indígena e a outra peça, com informações sobre o artefato, o participante deve

juntar consigo esse par. Se forem peças que não se relacionam dessa forma, estas devem

ser viradas novamente e mantidas na mesma posição inicial, para a vez do outro

Fig. 86 Fig. 87

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participante. Ganha o jogo quem tiver descoberto mais pares, quando não houver mais

pares a serem descobertos (Fig.85 e Fig. 86).

Fig. 88

Fig. 89

Fonte: fotos da investigadora A finalidade do jogo é, além de trabalhar a percepção e atenção dos alunos e exercitar a

leitura, propiciar a eles discussão histórica e atual de alguns artefatos de sua cultura.

Estudar a confecção desses artefatos é conhecer os métodos matemáticos de construção

de seus ancestrais, que podem recair em diferentes conteúdos (alguns modelos)

matemáticos; reconhecer os materiais para confeccionar os artefatos, e conhecer seu uso

específico, é dar conta da História, da Geografia e de Ciências Naturais.

Entendemos que a Matemática, na perspectiva holística, ocupa-se da articulação de

categorias, como: beleza, harmonia, leveza e paz. E, quando os eixos temáticos da

Matemática, tal como foram abordados, focalizando o tratamento da informação como

um tema a ser valorizado e considerando seu contexto cotidiano sócio-político-cultural,

possibilitou aos educadores estabelecerem novas relações em que a Matemática

promove uma visão crítica de certos problemas que discutem.

Os Recursos Didáticos na sala de aula

Assistimos algumas dinâmicas em sala de aulas, propostas pelos dois únicos educadores

de matemática das escolas indígenas de Aracruz, na aldeia de Comboios e de Caieiras

Velha, onde estão localizadas as únicas escolas das aldeias Tupinikim e Guarani, onde

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ocorrem as 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental. Para a ilustração do trabalho vamos

apresentar aquelas que mais evidenciaram as concepções, crenças e atitudes desses

educadores.

Na aldeia de Comboios e de Caieiras Velhas, tanto nas 5as quanto na 6as séries do ensino

fundamental, assistimos várias dinâmicas. Entre elas, a dinâmica em sala de aula na 5ª

série em Combios, quando o Tangram foi apresentado aos alunos. Esses alunos já

reconheciam algumas figuras geométricas planas como o quadrado, retângulo, triângulo,

losango e paralelogramo. O educador estava trabalhando com o conteúdo de operações

com frações, mais precisamente a diferença, por meio de exercícios e por meio de

resoluções de problemas. Seus alunos tinham sido orientados para apresentarem os

resultados tantos das operações com frações, como nas resoluções de problemas, por

meio da aritmética e por meio de figuras repartidas em partes iguais, grifando as partes

que correspondiam às suas decisões.

O objetivo desse dia era trabalhar com uma figura plana, dividida em partes distintas,

para possibilitar aos alunos a verificarem que as figuras geométricas, nem sempre,

precisavam estar divididas em partes iguais para representarem frações referentes ao

inteiro. Os alunos deveriam observar as diferentes partes e tentarem perceber a

representação fracionária de cada uma delas referente ao inteiro. O professor colou na

lousa, o Tangram.

Como esse encontro foi gravado em áudio, resolvemos transcrever alguns momentos

desses diálogos. Nesse sentido, representamos por E o educador e por Ai com i={1, 2,

3,...22}, os alunos.

Figura 90 – O Tangram que o professor colocou na lousa.

Fonte: foto da investigadora

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Figura 91 – Figura que os alunos receberam.

Fonte: foto da investigadora

O educador compartilhou com seus alunos as informações sobre o

Tangram, enquanto fazia a distribuição, lhes falou sobre sua origem e

relatou a breve lenda, a história do avô de Tang, segundo Zaslavsky

(2000).

Assim que o educador comentou sobre as fadas-raposas mudarem de forma, as

crianças, que já tinham recebido o material, imediatamente foram comparando as

E: – Vocês conhecem essa figura?

A2: – Eu conheço. Um dia, quando eu estava na 3ª série, abri um livro

que estava na sala da direção aqui da escola, e vi esse desenho num

livro de matemática. Mas eu só vi, não sei o nome dele.

E: – Alguém conhece o nome dessa figura?

A7: – Eu acho que ele não tem nome porque eu estou vendo um quadrado e muitos

triângulos. O grande, por fora é quadrado, e dentro tem figuras que nem é quadrado.

Tem muitas figuras e cada uma tem um nome. Mas a figura toda mesmo eu acho que

essa, não dá pra ter nome.

E: – Eu vou dar uma figura como esta que está na lousa, já recortada, uma para cada

um de vocês e, enquanto vocês examinam o que estão recebendo, eu vou contar para

vocês qual o significado dessa figura para uma outra cultura e já, já, vou dizer se ela

tem nome.

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palavras que tinham terminado de ouvir e, com o seu material que tinham recebido,

imediatamente, foram construindo algumas possibilidades, de diferentes formas com

o tangram, ora usando apenas algumas peças, ora usando todas. Uma das crianças

(A11) disse com entusiasmo na voz que, se não usassem todas as peças, a fada-raposa

estaria escondida pela metade (risos). Os outros, considerando a informação do

colega, procuravam usar todas as peças para comporem figuras, assim como são

mostradas nos livros que conhecemos, como barco, casa, homem, pato, entre outras.

Foram mostrando, uns aos outros, o que, e como estavam fazendo. Quando o

educador terminou de distribuir o material, ouviu de um de seus alunos:

A5: – Mas se o material é de uma lenda chinesa porque esse que está colado na lousa

tem desenho de um índio?

E: – Por quê?

A12: – Para a gente poder lembrar das nossas lendas. E essa figura aí tem em livros

brasileiros. Eu já vi. Então acho que a gente pode estudar ele. O índio aparece aí

porque a nossa escola é indígena.

E: – Isso mesmo. Mas vocês querem falar especificamente sobre a cultura ou sobre a

matemática? (a maioria preferiu que o professor focasse a matemática. Se mostravam

atentos e curiosos). Logo, o educador questionou:

E: – E o que tem a ver essa figura com a matemática?

A11: – Eu acho que podemos aprender melhor as frações com esse material.

A7: – Eu acho que não, porque a figura não está repartida em partes iguais.

E: – Levantem a mão: Quem acha que pode? (apenas A11 levanta a mão); Quem acha

que não pode? (Todos os outros se manifestam positivamente).

E: – A11 você poderia nos explicar a sua afirmação?

A11: – Bom, eu não sei se está certo professor, eu to vendo assim...eu aprendi aqui

mesmo, quando desenhamos as barrinhas de chocolate. Tá vendo aqueles dois

triângulos maiores? Então...eles cabem 4 vezes dentro do quadrado grande, assim

ó...(toma emprestado algumas peças dos colegas para compor e mostrar sua idéia).

A11 juntou os quatro triângulos e mostrou o quadrado, sobre sua carteira, tal como

havia explicado. Afirmou que cada parte do maior triângulo do Tangram correspondia

a ¼ do todo. O professor o convidou para fazer o desenho de sua reflexão na lousa.

Ele se disse envergonhado. Então o professor perguntou se poderia desenhar por ele,

para que os demais pudessem enxergar o que ele havia feito.

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A m

voz

(fig.

prof

respostas,com o pr

A7: – Hummm...A

visto por quatro

triângulos. As part

as partes. Acho qu

Os alunos olhavam

para o desenho.

A21: – Ah! Então,

(alguns risos).

A6 cohicha com A

A21: – O que eu qu

As outras figuras

frações?

O professor repres

E: – Estamos?

A11: – Ah...estamo

Figura 92 – O que A11 mostrou em sua carteira Fonte: desenho da investigadora

aioria dos alunos replicou em concordância, manifestando-se em

alta, quase em coro: “Ah! Entendi!” quando viu o desenho na lousa

89). Entretanto alguns deles, como A7, pediram explicações ao

essor porque não estavam entendendo. A partir de perguntas e

ofessor devolvendo as perguntas, o aluno entendeu, e concluiu:

gora eu entendi. Eu pensava que os ¼ de um quadrado teria que ser

quadrados iguais. Não sabia que podia dividir o quadrado em

es têm que ser iguais, mas não importa a figura que se escolhe para

e agora entendi!

com atenção para a lousa, alguns cochichando entre si, apontando

professor, se cada um deles tem ¼, a metade do Tangram tem ½.

8: – Você já viu metade que não seja 1/2? (A21 escuta).

is dizer é que a metade do Tangram são os dois triângulos maiores.

juntas será a outra metade. Professor, nós estamos somando as

entou na lousa as palavras de A21.

s mesmo! Eu acho que já sei o resto todo. Acho que é só colocar

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Figura 93 - O educador registra no quadro o que estava sendo dito pelas crianças.

Fonte: foto da investigadora

umas figuras sobre as outras...nem precisamos fazer contas! Alguém me empresta um

triângulo médio, quem puder, cor de laranja?

A9: – Acho que também entendi. Aulinha boa, né? (risos). Como é mesmo o nome

dessa figura? (com o paralelogramo na mão).

A21: – Acho que é pará...como é mesmo? Esqueci...Acho que essa figura vai ser

difícil de resolver.

E: – Calma, calma! Prestem atenção e vejam se conseguem dizer quanto vale cada

uma das figuras, que fração representa do todo.

A11: – Professor, se no ¼ do Tangram cabem dois triângulos cor de laranja então,

cada um, cor de laranja, valerá 1/8 porque 1/8 + 1/8 são 2/8 e 2/8 é ¼. Acertei?

A partir da sobreposição os alunos foram fazendo as representações

fracionárias e as anotações eram feitas na lousa, à medida que

deduziam novas frações. A11 foi o primeiro a terminar, seguido de A9 e

A7.

A7: – Sabe de uma coisa professor? Só hoje aprendi frações! Eu pensei que eu era

burro para matemática. Não gostava. E hoje entendi e até ajudei meus colegas na

aula!

E: – Nunca mais quero ouvir você pensar que é burro. Ninguém é burro. Uns sabem

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Figura 94 - Os alunos desenharam sistematicamente seu próprio Tangram no caderno. Fonte: foto da investigadora

mais umas coisas e outros sabem mais outras. O que temos que fazer é aceitar os

desafios que aparecem na nossa vida, no nosso cotidiano. O que temos que fazer

sempre é perguntar. Quando temos dúvidas precisamos perguntar. É por meio de

perguntas e respostas que aprendemos. Fico muito satisfeito que está gostando desta

aula.

A7: – Mas professor... eu não pergunto porque não sei fazer a pergunta que preciso.

Não sei dizer a pergunta.

A15: – Eu continuo achando complicado. Só de ver essa figura hoje, quando começou

a aula, senti medo. Mas acho que entendi o que disseram. Não fui eu quem pensou.

No começo da aula, eu nem sabia o que era para pensar. Fiquei só ouvindo. Em casa,

vou tentar fazer sozinha. Alguns meninos, principalmente A11, pensam muito rápido!

Ele é muito inteligente, é um gênio!

O professor solicitou aos alunos que colassem seus Tangrans nos

cadernos. Avisou que na sua próxima aula, eles iriam estudar algumas

variações de Tangrans, com a mesma proposta, quando foi questionado,

mais uma vez, porque o Tangram da lousa era um índio-sol. Esclareceu que depois do

próximo encontro, faria uma atividade em grupo com eles, quando cada grupo

poderia construir uma história para àquele índio-sol, ou, se quisessem, poderiam

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À guisa de considerações para o encontro que assistimos, foi o educador que,

inicialmente, regulou o material, colocando na lousa o quebra-cabeças Tangram

montado. Nesse sentido, o intuito foi de oportunizar um outro caminho para a

construção do saber fazer as operações de frações, assim como mostrar uma novidade

para aqueles que, supostamente, já teriam incorporado esse conhecimento, já que sua

proposta era retomar o conteúdo para ‘nivelar’ a turma. Assim, com esse material, tinha

a intenção de não ser repetitivo quanto aos recursos didáticos utilizados em sala de aula,

para não desestimular àqueles que já sabiam. Tinha expectativa de que seus alunos

pudessem fazer inferências e perceberem as diferentes figuras que compõe o Tangram e

que fizessem relações com o conteúdo de frações, especificamente operações

fundamentais que já estavam aprendendo.

Ao mesmo tempo, o educador tinha expectativa de (re)introduzir o conteúdo de frações

para àqueles que ainda não tinham entendido esse conceito Alguns alunos, imitando os

algoritmos da aritmética construíam corretamente as continhas que se poderia pensar

que haviam entendido. Entretanto, alguns desses alunos não conseguiam fazer analogias

da sua construção cognitiva com as ‘barrinhas de chocolate’. Então, o Tangram poderia

apresentar uma nova possibilidade de entendimento do conteúdo para esses, e para

àqueles que apresentavam dificuldades ainda maiores e mais complexas.

Vimos que o educador, com a proposta da contextualização cultural na figura do índio-

sol, e com as analogias interculturais de lendas a serem trabalhadas em momento futuro

que a figura provocava, estimulou os alunos a participarem como foi evidenciado na

fala de um deles:

construir um outro Tangram artístico para refletirem sobre a realidade dos Tupinikim.

Se não desse tempo para trabalharem tudo isso ainda este ano, que na 6ª série

retomariam tais tarefas juntos.

“Eu estava com muito sono, mas quando vi o professor montar aquele índio

no quadro até perdi meu sono... Fiquei contente porque gosto quando ele

ensina matemática na nossa cultura”.

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Quando iniciamos nossa conversa com o educador depois desta aula, ouvimos tal

comentário:

Em conversa, o educador nos disse que lamenta por não ter tido uma educação

semelhante, com essas perspectivas, em sua formação inicial. Relatou que se dedica

para construir aulas interessantes para que seus alunos possam perceber a importância

dos conhecimentos matemáticos, mas que buscar esses recursos, às vezes, era um

transtorno por não ter recursos tecnológicos na escola - não tem nem telefone - e nem

uma biblioteca à sua disposição, que pudesse dar suporte à melhoria significativa de

suas práticas. Por isso, aproveitava o máximo de seus encontros com os formadores no

curso de formação, em buscas de subsídios de melhorias para atuação profissional. Por

outro lado, também comentou que algumas vezes se deparava com sugestões de aulas

que talvez pudessem contribuir com a aprendizagem de seus alunos mas, consciente e

reflexivo, identifica algumas atividades como complexas que, embora supostamente

divertidas, não saberia avaliar se seria um benefício para seus alunos, porque existem

‘coisas’ por detrás de alguns conteúdos que por vezes geram dúvidas, que teria que

discutir com mais cautela e responsabilidade com seus pares, razão de ter levado alguns

desses tipo de questionamentos durante as formações.

Disse-nos que sua formação inicial ainda atrapalha um pouco quando está ensinando

matemática. Que tem tendências de ensinar como aprendeu outrora, mas que não

aceitava se limitar a isso e que os cursos de formação lhe ajuda a “abrir a mente”.

Assim como o outro educador, quando está diante de um desafio pessoal, para resolver

algo que envolva algum conteúdo de matemática sua mente o leva, ‘automaticamente’, à

sua precária -segundo ele- formação inicial. Na escola, as resoluções de problemas eram

sugeridas por meio de imitação como um único caminho para levar a uma única

resposta. Na condição de educador, paradoxalmente, estimula seus alunos a criarem

várias possibilidades de representações, segundo seus esquemas mentais pessoais para

“Mas a proposta não reside em apenas agradar aos alunos e sim possibilitar

a investigação, a problematização, a exploração, a aprendizagem, a inclusão

e, principalmente, a participação ativa dos educandos em seu processo

educacional, levando em consideração a nossa cultura”.

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resolverem exercícios, problemas, ou diferentes dinâmicas de matemática, que poderão

levar a um mesmo resultado.

Quanto à lista de conteúdos de matemática a serem trabalhados em sala de aula, tal

como aparece no currículo, tem dificuldade de seu cumprimento, pois suas aulas

atendem a preocupação, por parte de sua educação específica igualmente imbuída no

currículo, em contextualizar os conteúdos, em abordar sua cultura, sempre que possível.

Além disso, alguns alunos têm muitas dificuldades. Pensa que seja correto tratar da

matemática intrínseca à sua cultura, já que a proposta da educação indígena é tratar,

fundamentalmente, de suas especificidades. É ciente que precisa estar sempre em

contato com os mais velhos para saber do que brincavam na sua infância e (re)viver o

lúdico de seus ancestrais também, além de (re)viver àquela matemática de

sobrevivência. Diante das justificativas elencadas pelo educador, que esclarecem suas

concepções e crenças frente à matemática entendemos que tem atitudes positivas em

relação ao seu ensino.

Após assistir a atuação desse educador e termos conversado com ele na escola de

Comboios, na vontade de enriquecermos esse nosso trabalho, o convidamos, para um

encontro, que seria exclusivo aos educadores de matemática, para participar de uma

dinâmica - o educador de Caieiras já havia sido avisado - para dali a uma semana.

Despedimos-nos.

Formação Específica: Uma dinâmica para dois educadores de matemática

Com o objetivo de suscitar idéias para elaboração de recursos didáticos, oferecemos aos

dois, e únicos educadores indígenas de matemática, da 5ª e 6ª séries, uma formação

específica.

Nesse encontro apresentamos, aos dois educadores de matemática, três mapas com

apenas os contornos: o primeiro, do Brasil; o segundo, do Estado do Espírito Santo; e o

terceiro e último, do Município de Aracruz. A dinâmica foi orientada da seguinte

maneira: num primeiro momento, somente diante do mapa do contorno do Brasil, os

educadores tiveram que identificar a localização do estado do Espírito Santo,

desenhando o seu contorno. Trocando de mapa e diante do segundo, do contorno do

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Espírito Santo, os dois educadores foram convidados a desenharem o contorno do

Município de Aracruz. Finalmente, diante do terceiro mapa, do contorno do município

de Aracruz, solicitamos que eles localizassem, geográfica e espacialmente, as quatro

aldeias Tupinikim de Aracruz.

Figura 95: Mapa de contornos: Brasil, Espírito Santo e Aracruz Fonte: IBGE, com arte final da investigadora Depois de atingido o sucesso na dinâmica solicitamos aos dois que fizessem

comentários e críticas da proposta vivenciada. Em seguida perguntamos a eles que tipo

de planejamento de aula eles poderiam elaborar para seus alunos, a partir de inspirações

provocadas pela dinâmica proposta, desde que se sentissem realmente provocados por

ela.

A escolha recaiu para ambos, em solicitar aos seus alunos de 6ª série, uma dinâmica em

grupo. Cada educador elencou algumas atividades para os grupos. Por último,

solicitamos que fizessem um planejamento de aula, escolhendo uma das atividades que

estivesse em sua lista.

Ambos apresentaram planejamentos de aulas com propostas

similares, embora tivessem construído individualmente. Diante da

constatação de semelhanças, resolveram discutir entre si e criaram

um único planejamento cujos detalhes descrevemos a seguir:

O objetivo foi de oportunizar aos alunos das 6ª séries, reflexões e discussões da

importância do entendimento de preceitos matemáticos a partir de interpretações de

textos jornalísticos, além de identificarem semelhanças e diferenças com o contexto

cultural indígena. Resolveram que a atividade seria interessante se abordada para

grupos de quatro alunos da 6ª série.

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Assim, juntos criaram o seguinte roteiro para a atividade:

Selecionar reportagens (máximo: 5; mínimo: 3); em dois jornais de maior circulação

no Estado, editados no último mês (novembro de 2006) com informações que

enalteçam os conhecimentos de matemática, segundo suas opiniões pessoais

• construir um cartaz com as reportagens recortadas e coladas em papel cenário;

• ler mais uma vez, com atenção, as reportagens selecionadas e coladas, discutir

entre os componentes do grupo, justificando o porquê de suas escolhas;

• fazer considerações como a matemática está apresentada nos contextos dos

textos escolhidos, se contempla ou não conteúdos já trabalhados em sala de aula

na 6ª série, ou em séries anteriores;

• criar um título próprio, escrever o título acima das reportagens, desde que

associado à importância da matemática, segundo suas concepções de matemática

referentes aos textos escolhidos;

• apresentar o cartaz para a turma. Oralmente, cada componente deverá identificar

onde e porquê a matemática aparece nos textos escolhidos por eles, segundo suas

percepções;

• comparar as notícias das reportagens fazendo críticas interculturais;

• suscitar perguntas dos colegas e do professor e tentar responder, se

questionados;

• ouvir as críticas e colaborações do professor e dos colegas ouvintes.

Os educadores, questionados sobre a origem da idéia de trabalharem com textos de

reportagens de jornais, nos informaram que os mapas, os fizeram lembrar da violência

que ocorre no mundo capitalista. Para os dois educadores os mapas contornados os

levaram às lembranças da quantidade e diversidade de coisas que aconteciam no país, na

região e, especificamente, em seu município, referentes às suas questões da luta pela

terra: ‘O Brasil figura na mídia internacional como um país violento e impune, tudo ali, dentro

daqueles contornos...foi a primeira coisa que pensei’, disse um deles.

Esse pensamento, associado com lembranças de um curso anterior de formação na

disciplina de matemática, então ministrada pela Dra. Circe Mary Silva da Silva

Dynnikov, quando aprenderam sobre os significados de textos matemáticos e de textos

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matematizáveis, suscitou a vontade de trabalharem com notícias veiculadas na mídia

escrita em sala de aula.

Também nos disseram que a 6ª série poderia ser um cenário ideal para esse tipo de

trabalho, por causa da idade dos alunos, que esses já se mostravam mais críticos e

atuantes diante de tarefas que solicitassem seu entendimento por meio de manifestações

orais. Já terem trabalhado com possibilidades de levarem textos ou reportagens de

jornais para a sala de aula em um curso de formação, fazia com que os educadores se

sentissem mais confiantes diante da proposta por eles criada, a ser vivenciada em sala

de aula.

Ainda, segundo eles, se auto-observarem, durante suas próprias manifestações durante o

momento de uma avaliação subjetiva de seus alunos, quando da apresentação dos

trabalhos por eles a serem apresentados, poderia ser um desafio proveitoso. Pretendiam

avaliar observando a participação do aluno, considerando seu comprometimento com o

cumprimento da tarefa.

Os educadores também nos informaram que, enquanto estiveram diante dos mapas,

pensaram em medidas como escalas - razão, proporção, distâncias e áreas, em

construção de maquetes, em localização espacial dos rios, das aldeias, das suas roças,

assim como havíamos trabalhado juntos numa formação em 2005, já descrita neste

trabalho.

Assim, diante do dilema político em que se encontram em relação à demarcação de suas

terras, optaram por trazerem as notícias da mídia escrita para a sala de aula, para

oportunizar os alunos, numa dinâmica diferenciada das de costume, a refletirem sobre a

importância de se saberem matemática para um melhor entendimento de determinadas

notícias veiculadas na mídia escrita. Ao mesmo tempo, poderiam refletir sobre aquelas

informações do mundo, do Brasil, do Estado, e que talvez as notícias pudessem ser

comparadas aos acontecimentos na sua cultura local.

Esperavam também que seus alunos selecionassem algumas notícias que utilizassem

conteúdos de matemática, que eles ainda não dessem conta. A intenção era de que isso

pudesse criar expectativas positivas para uma aprendizagem de conteúdos futuros de

matemática.

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A vivência da dinâmica em sala de aula – 6ª série.

Tal como haviam planejado, os educadores levaram para as suas turmas de 6ª séries,

exemplares de dois diários de maior veiculação no estado, todos do mês vigente, com

diferentes datas de publicação. O educador explicou os procedimentos:

Posto o contrato didático oralmente, o educador elencou na lousa, a ordem dos

procedimentos usando palavras-chaves.

Logo em seguida, observamos que os alunos iam à mesa do educador pegavam o

material e saiam da sala de aula. Questionamos o procedimento dos alunos com o

educador e ficamos sabendo que tal procedimento é uma prática nessas escolas

indígenas. Os trabalhos em grupo podem ser feitos em sala de aula assim como nas

dependências do refeitório da escola. Às vezes, nesse último espaço, encontram colegas

de outras classes da escola, fazendo outros trabalhos em grupo, e interagem entre si.

Vocês deverão formar grupos de 4 componentes. Um componente do grupo

deverá vir à minha mesa para buscar dois diários, papel cenário, tesoura e

cola. O grupo deverá folhear cada diário com atenção para selecionar

reportagens que, ao seu critério, contenha informações que identifique a

importância de se saber matemática para entendê-las. Cada componente deverá selecionar,

depois de lida, uma reportagem. As reportagens selecionadas deverão ser coladas no papel

cenário. A seguir, observando a composição de suas escolhas, criem um título apropriado e

coloquem no cabeçalho do cartaz. Deverão refletir e discutir, como apontarão a matemática

que aparece nos textos, elaborar suas justificativas mostrando a importância de se saber

matemática, comparar o contexto da notícia com a nossa realidade na aldeia. Por último,

combinar como e quem por ordem de fala, irá fazer a apresentação oral para os colegas.

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Figura 96 - Alguns alunos de uma 6ª série fazendo o trabalho em grupo no refeitório da escola. Fonte: foto da investigadora

As apresentações dos trabalhos – 6ª série

Um grupo trouxe uma reportagem sobre logística de importação e

exportação, que descrevia numericamente em tabelas, os movimentos

da balança comercial do Brasil para determinados produtos. Esses

alunos leram e não entenderam a mensagem do texto. Mesmo assim

colaram em seu cartaz a reportagem, comentando não terem entendido, mas que a

presença dos números tabulados e a apresentação dos gráficos lhes dava a certeza de

que a matemática era muito importante para o seu entendimento. Assim, convidaram

os colegas ouvintes, àqueles que entendessem daquelas tabelas, para explicarem para

todos. Diante da ausência desse ator, o educador, que tem formação em Ciências

Contábeis, fez uma breve explanação daqueles significados, atendendo as

expectativas de seus alunos, explicando que o autor que construiu aquelas tabelas,

certamente deveria ter formação específica em Economia, já que a reportagem trazia

resultados dos estudos do autor no tema. Isso alcançou uma das expectativas dos

educadores, como já comentamos quando do planejamento para essa dinâmica.

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Figura 97 - Cartaz com as reportagens escolhidas pelo grupo Fonte: foto da investigadora

Os alunos explicaram que essas tabelas e gráficos podiam ser comparadas com àquelas

que eram elaboradas nas associações das aldeias, que tratavam de sua economia, da

produção e comercialização de seus produtos. Afirmaram que, na sua realidade, as

anotações feitas nas associações não eram assim complicadas e que, provavelmente, as

pessoas que eram responsáveis por essa elaboração, não lidavam com conhecimentos

tão complexos e que, talvez, nem conhecessem. No entanto, para eles, poderia ser que

os gráficos mais simples fossem utilizados na associação, para efeitos comparativos de

movimento, tanto de sua produção como na sua comercialização, em diferentes

períodos. Como os alunos nada sabiam a respeito, o educador solicitou a esse grupo,

que entrevistasse as pessoas que têm essas responsabilidades nas aldeias, para

verificarem se fazem ou não utilização de gráficos.

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Um outro grupo apresentou uma reportagem que nos chamou atenção com a manchete:

“Menino de 12 mata menina de 14 na Serra”. A reportagem esclarecia que uma

adolescente, de 14 anos de idade, usuária de drogas, estava devendo uma quantia em

dinheiro a um traficante e já tinha sido cobrada da dívida. Em resposta à dívida, por

diversas vezes, a adolescente se propunha em saldar o seu débito em ocasião futura,

adiando sempre o pagamento. O cobrador da dívida, um menino de 12 anos, naquele

dia, por ordens do traficante, traria o dinheiro ou mataria a menina. O prazo estava

encerrado. A menina não pagou sua conta e o menino a matou.

“Vimos que aqui a matemática aparece de leve, nas idades, numa diferença

de dois anos só. Está nas idades também porque se vê que os dois da

reportagem estão no início de suas vidas, porque hoje em dia as

pessoas morrem com 80 90 anos, bem velhinhos...Também aparece no

sistema monetário porque é dinheiro que ela deve, e a coisa de comprar e vender também é

da matemática,assim como no tempo e nos prazos, não é? A matemática que aparece aqui

nós já conhecemos.”

A colega completou:

“Escolhemos essa reportagem para comparar os jeitos que as pessoas vivem

lá fora com o jeito de a gente viver aqui na nossa aldeia. Temos medo de sair

da nossa aldeia. Temos medo porque lá fora a vida não vale mais nada

para uma quantidade cada vez maior de pessoas Acho que essas coisas. jamais vão acontecer aqui, porque com 12 ou com 14 anos precisamos obedecer aos nossos

pais, temos que fazer nossas tarefas escolares e ajudar com as tarefas da casa, cuidando de

nossas coisas, enquanto nossos pais, familiares, amigos, lideranças e os caciques cuidam de

nós, em todos os dias temos tempo para brincarmos, pelo menos um pouco. Aqui na nossa

aldeia nos sentimos protegidos dessas coisas.

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Figura 98 – A matemática no dia-a-dia. Os alunos da 6ª série apresentando trabalho em sala de aula. Fonte: foto da investigadora

Ao final de todas as apresentações o educador agradeceu aos alunos pelo seu

envolvimento com a atividade, comentou sobre a importância do hábito de leituras, de

jornais, revistas ou livros. Além disso, afirmou que a leitura pode acrescentar outros

conhecimentos, que enquanto estivessem lendo: refletissem sobre o que liam com o que

já aprenderam, assim como, com o que não sabem ainda, com as coisas que aprenderam

fora ou dentro da escola. E sugeriu que, se eles quisessem questionar mais sobre o que

porventura estivessem lendo, que trouxessem para a escola para poderem refletir junto

aos colegas e aos professores. Por último solicitou aos alunos que guardassem o

material, organizassem a sala e colassem seus cartazes produzidos em aula nas paredes

da escola. Depois de colarem os cartazes no corredor o educador parabenizou os alunos

mais uma vez, agradeceu pelo cumprimento da tarefa e despediu-se.

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Figura 99 - Um dos cartazes colado na parede da escola. Fonte: foto da investigadora

Na observação dessa dinâmica, vimos que os alunos se manifestaram sobre a

importância do saber matemático para outras sociedades e para a sua, quando apontaram

as tabelas que desconheciam, atingindo um dos objetivos iniciais dos educadores. A

dinâmica também promoveu outras reflexões subjetivas, como a auto-estima e

afetividade quando disseram que se sentem protegidos e cuidados no seio de sua

sociedade organizada.

Depois das apresentações conversamos no pátio da escola com alguns alunos, no

intuito de que eles nos dissessem como se sentiram diante da dinâmica e como se

sentem diante da matemática. Embora tenhamos colhido 16 depoimentos gravados em

áudio, escolhemos àqueles que se mostraram mais enriquecedores para responder as

nossas questões:

“Eu nunca tinha notado que tinha tanta matemática nas reportagens de

jornais. Já trabalhamos outras vezes com esse tipo de material aqui na

escola. Muitos professores trazem jornais e revistas, mas foi só agora que

vi que tem muita matemática De repente, parecia que todas as

reportagens traziam algumas coisas de matemática. Era só prestar atenção nelas. A porcentagem

apareceu em muitas. Eu entendo pouco de porcentagem. Só por causa das notícias fiquei

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com vontade de aprender mais sobre porcentagem para poder entender o que vou ler.

Fiquei com vontade de gostar de matemática porque gosto de escrever. Se eu quiser ser

repórter de jornal, descobri que vou precisar saber de matemática para escrever bem

algumas notícias. Eu pensava que para ser jornalista não precisava saber matemática. Hoje

mudei de idéia. Vou ter que estudar mais matemática e fazer todas as tarefas de hoje em

diante.”

A dinâmica, embora não tratasse de um conteúdo matemático específico mostrou a

aplicação da matemática no cotidiano jornalístico. Suas palavras demonstraram que até

então, tinha a convicção de não necessitar de matemática para alcançar as expectativas

de ser escritor ou jornalista. Nesse sentido, a dinâmica provocou neste aluno

(re)significações, de suas atitudes diante da matemática, que passaram a ser positivas.

Esse depoimento traduz atitudes positivas em relação à matemática. O interesse do

aluno pela disciplina foi despertado a partir do conhecimento matemático aplicado à sua

cultura, fortalecendo a sua identidade de ser índio, quando lhe foi proposto estudar a

matemática a partir da importância de alguns dos antigos costumes de sua comunidade

indígena, que ainda acontecem no seu cotidiano atual.

“O professor sempre nos disse que temos que aprender matemática porque é

importante para nosso dia-a dia, que ajuda a entendermos o que acontece na

nossa cultura. Mas eu não entendia porque ele dizia essas coisas.

Naquele outro dia, tivemos que fazer exercícios de litros comparando com a

quarta: se 10 litros é uma quarta quantas quartas têm 12, 20 ou 23 litros? Essas coisas... a

senhora estava conosco, lembra? Eu sempre pensei que a matemática aparecia pouco nas

coisas. Depois que resolvemos esses exercícios de quarta e também uns outros, que eram

problemas em como se faz para plantar nos canteiros do nosso viveiro, quando fizemos

contas para descobrir quantos feixes de palha precisa para fazer uma cobertura, que uma

‘mão’ de palha tem 4 palhas e que um feixe tem 25 palhas, que eu comecei a gostar de

matemática. Assim como na nossa cultura, ‘no jornal’ tem muita matemática. Ela serve para

muita coisa mesmo. Depois que fizemos alguns exercícios com a quarta comecei a prestar

mais atenção nas aulas e me dedicar mais porque tenho orgulho da nossa cultura. Não sei o

porquê, mas achei que a matemática ficou até mais fácil para mim – não tive mais problema

com a matemática – por isso mesmo, gostei da aula de hoje”.

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Chacón (2003) assinala que o autoconceito do aluno, como aprendiz de matemática,

deve conceber-se com uma subestrutura derivada da estrutura de crenças, que é um dos

descritores básicos do domínio afetivo de matemática, que tem uma estreita relação com

as emoções, com as atitudes, com as atribuições, com as motivações e com as

expectativas pessoais. Nesse sentido, neste depoimento, constamos que as crenças do

aluno frente à matemática se estabelecem a partir do seu autoconceito, advindas de

fatores externos e afetivos. Embora suas atitudes tenham sido alteradas frente à

matemática, sua crença de que o não gostar da matemática, como sendo uma das

características de sua família, denotando quase como fator genético, ainda permanece

viva.

Sua crença frente à matemática somente estava, inicialmente, vinculada às experiências

de sua mãe com a matemática e, por ser filho dela, acreditava ter o mesmo sentimento

que ela pela disciplina. E foi o mesmo fator externo e afetivo que oportunizou a

(re)visão de sua atitude, quando o aluno passou a gostar de matemática a partir do

momento que o educador lhe permitiu conhecer um pouco mais sobre uma das

atividades de seu pai, aplicando os conhecimentos da matemática na cultura local. Isso o

motivou a ter atitudes positivas frente à matemática, se auto identificando como alguém

diferente das pessoas de sua família. Suas atitudes foram alteradas mas sua crença não.

O fato de ele ter atuais atitudes positivas diante da matemática o faz crer que apenas não

‘tenha herdado esses fatores genéticos’ familiares. O gostar da matemática, para ele, é

um característica de herança genética familiar. As concepções, crenças e atitudes diante

“A minha mãe sempre disse que não foi mais na escola por causa da

matemática. Ela achava matemática ruim e dizia que era muito difícil. Ela

estudou a 4ª série porque ela não conseguia aprender. Comigo quase

aconteceu a mesma coisa porque sou filho dela. Acho que ‘a minha família

não nasceu para aprender matemática’. Ninguém gostava disso na minha casa. No fim da

minha 4ª série a professora nos levou para os manguezais, porque a gente estava estudando

os caranguejos. Como meu pai caça caranguejos, eu queria aprender bem todas aquelas

aulas. Então a professora fez contas de dividir com problemas de caranguejo e só então eu

aprendi a dividir e não desisti de estudar. Nunca mais tive medo da matemática e, da minha

família, sou o único que gosto. Para a matemática não herdei as coisas da minha família. Eu

gostei muito da aula de hoje” .

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da matemática podem ter outras justificativas. Uma delas aparece no depoimento a

seguir.

A fala nos mostra atitude negativa frente à matemática, quando diz que não gosta e

quando diz que a matemática é difícil. Pareceu-nos que o manifesto, de essa aula ter

sido mais interessante que as anteriores, por ser mais parecida com Português ou com

História, poderia nos revelar sua preferência por essas disciplinas, ao mesmo tempo em

que reiterava seu não apreço pela Matemática.

Segundo Matos (1992), as atitudes frente à matemática se referem à valorização, ao

apreço pela disciplina, ao interesse, à sua aprendizagem. Nesse sentido, sobressai mais a

componente afetiva do que a cognitiva. Embora o aluno não tenha justificado o seu não

gostar de matemática, nossas leituras nos levaram a algumas conjeturas.

Neste contexto, atendendo ao estilo atribucional do sujeito, a representação e avaliação

de si mesmo e os padrões atribucionais de êxito ou fracasso, com que os alunos se

enfrentam na aprendizagem da matemática, são alguns dos principais aspectos que

determinam a dimensão afetiva e emocional da aprendizagem escolar, segundo Chacón

(2003). Para a autora, o padrão atribucional mais favorável frente à aprendizagem é

quando o aluno atribui tanto seus êxitos quanto seus fracassos a causas internas,

variáveis controláveis, como esforço pessoal, planejamento e organização de trabalho.

A autora esclarece que, em geral, os alunos atribuem seus êxitos a fatores externos e

incontroláveis, como ‘sorte’, e seus fracassos a sua escassa capacidade (fator interno,

estável e incontrolável), diminuindo sua motivação e rendimento. Ao perceberem-se

com baixa capacidade e sem possibilidades de modificar ou controlar as causas que

“Eu não gosto de matemática, mas gostei muito da aula de hoje porque foi

mais parecida com o Português, com História. Nós não abrimos nossos

cadernos de matemática hoje e não fizemos contas e nem tivemos que resolver

problemas. De fazer contas eu até gosto, mas não de todas Não gosto de

dividir e não gosto de resolver problemas. Não entendo os problemas. Tenho sempre que

perguntar para alguém que conta tem que fazer para poder resolver os problemas. Não tenho

sorte na matemática. A matemática é muito difícil”.

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atribuiem aos seus resultados, reduzem suas expectativas futuras e provocam

sentimentos de baixa autoestima e atitudes negativas diante a aprendizagem como

vimos no último depoimento.

Depois de termos estado com esses alunos, da mesma forma que já havíamos

conversado com o educador de matemática de Comboios, conversamos nessa ocasião

com o educador de Caieiras Velhas.

Questionamos esse educador para sabermos se aquela prática em sala de aula havia

contribuído para a aprendizagem de matemática na sua concepção. Ele respondeu que

de certa forma sim, porque esse tipo de atividade pode fazer com que alguns de seus

alunos se interessem mais pelas aulas de matemática verificando como ela pode ser

utilizada. Disse-nos que pretendia explorar mais, se os alunos tivessem escolhido

reportagens mais consistentes. Nesse sentido, mencionou os alunos que trouxeram

gráficos de linha, quando aproveitou para questionar alguns dados pertinentes, indo para

além da notícia. Esse fato foi interessante, os alunos terem trazido ‘coisas da

matemática’ que não haviam aprendido.

Disse-nos que alguns alunos apresentavam dificuldades em matemática e que esses são

recebidos na escola por ele, em horário extra-classe, para fazerem outras atividades que

ajudassem a resolver esse problema – o mesmo acontece na escola de Comboios.

Acredita que a Matemática é importante tanto na visão cultural Tupinikim como numa

visão de poder. Entende que as famílias indígenas são numerosas, que a população

Tupinikim cresce e que será ainda mais difícil, num futuro próximo, poder-se

sobreviver nas aldeias, por uma série de razões, sendo a mais veemente o impasse na

luta pela terra, estabelecido, entre a Aracruz Celulose e os indígenas. Prevê que, se isso

não os levar a uma solução breve, que alguns Tupinikim deverão, no futuro, optar por

trabalharem fora das aldeias, assim como já acontece para alguns, retornando todos os

dias às aldeias apenas para dormirem, tendo que competirem num mercado de não-

índios. Acredita que o sucesso, principalmente para esses que trabalham fora das

aldeias, está intimamente ligado com conhecimentos matemáticos já que os

conhecimentos matemáticos dão maiores chances para alguma atuação profissional.

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Acredita que os trabalhos interdisciplinares, ou outras atividades holísticas, poderão

contribuir para a formação da criticidade dos alunos. Mas ressaltou que alguns

conteúdos da matemática nem sempre permitem tais condições. Que em alguns

momentos seria preciso privilegiar os conteúdos, pois isso possibilitaria maiores

chances de competirem às oportunidades, de ascensão e poder, concursos públicos, por

exemplo – ‘quem não está preparado não entra’. Acredita que a matemática é fator

preponderante nestes aspectos: ‘Nesse sentido, teremos chances?’, justificou. E

completou: “Nós, Tupinikim, devemos nos unir aos Guarani para termos um currículo

diferenciado, mas que isso não traga prejuízos aos nossos conteúdos, comparando com os

conteúdos dos não-índios”, reiterando que dar conta de conteúdos matemáticos é

importante porque acredita, entre outros fatores, que isso é responsável por ascensões

sócio-econômicas de muitos brasileiros. Ideologicamente, pensa que precisam de

matemáticos e de cientistas para se inserirem no caminho do avanço e da ciência, e para

que um Tupinikim alcance isso, é preciso que haja esforços e dedicação nos estudos.

Acredita que precisam elaborar recursos didáticos que provoquem reflexões complexas

aos conteúdos matemáticos. Está sempre prestando atenção nisso e cada vez que vê um

recurso novo, ou cria, àqueles que propiciam perceberem a complexidade da

matemática, deseja compartilhar com seus alunos. Defende trabalhos interculturais e

interdisciplinares, assim como seu currículo diferenciado. Paralelamente a essas

atividades, defende a utilização da metodologia de resolução de problemas, “com ‘p’

maiúsculo”, porque as possibilidades de desafios de ler, reler, ler outra vez, pensar,

pensar, refletir – “é um mosquito que incomoda, mas sempre podemos nos livrar dele... ” –,

é viver a possibilidade da matemática pela matemática, que pode provocar mais que as

outras atividades, a real aprendizagem pela matemática.

Análise dos Instrumentos

Não raro, quando trabalhamos na formação de professores, esses não se furtam em

evidenciar seu “enlace” com a matemática. Com poucas exceções, o que ouvimos é uma

sucessão de desabafos a respeito dos medos e traumas relacionados às experiências

matemáticas escolares. Esse despejar de frustrações e dilemas com a matemática ou

com seus porta-vozes, no entanto, parece-nos um veículo limitado para identificar ou

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problematizar as concepções que os educadores têm sobre essa disciplina e que

subsidiam sua prática pedagógica.

Segundo Ponte (1989), se queremos saber as concepções, crenças e atitudes de

educadores em um curso de formação, o conveniente é abrir espaços para que essas

manifestações sejam colhidas desde os primeiros contatos. Nessa proposta tentamos

criar oportunidades para que tais concepções ou crenças emergissem em suportes não

menos explícitos, mas que fugissem às formas de expressões comuns nesse tipo de

sondagem. Por termos utilizado uma padronização dos modos de interlocução própria,

não corremos o risco de deixar falar sempre as mesmas vozes e silenciar outras tantas,

que por certo dariam conformações diferentes ao discurso. No uso da metáfora, na nossa

primeira abordagem, acreditávamos que poderíamos ter mais chances de ampliar o

espaço para tematizar essas concepções a partir de um posicionamento mais autêntico,

ainda que permeado por interdiscursos. Nesse sentido, apresentamos as respostas e

nossas considerações por meio dos dois instrumentos a seguir.

INSTRUMENTO I Questão 1 Se a matemática pudesse ser comparada com um animal, com qual animal você a compararia? Justifique sua resposta.

Todos os 17 educadores responderam essa questão fazendo uma associação da

Matemática com um animal. Entre os animais mencionados, encontram-se

quantitativamente os animais escolhidos, conforme o quadro:

Nome do animal Quantidade de educadores que fizeram essa associação

águia 1 cachorro 2 cavalo 1 elefante 1 gato 2 gavião 1 leão 4 macaco 1 mosquito 1 onça 2 ser humano 1

Quadro 2

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O homem sempre conviveu com os animais. Tanto que alguns estudiosos se ocuparam

em descrever essa relação. Charles Darwin, por exemplo, acreditava que o ser humano

pudesse ser comparado aos animais, em relação às expressões e emoções, pois assim

como o homem de todos os continentes, os animais são dotados de emoções e

expressões corporais. Assim, Darwin publicou em 1872, com metodologia empirista, a

obra A expressão das emoções no homem e nos animais. Neste estudo descreveu as

atitudes corpóreas do homem, principalmente as da face, associadas às emoções

observadas por ele em alguns animais, como gato, cachorro, cavalo, macaco e nas

relações desses animais com o homem: alegria, medo, raiva, afeição. Nesse sentido,

traçou um paralelo entre a postura emocional do homem e a dos animais.

Recentemente, Tatiana Menkaiká (2005), em seu artigo Os animais de poder na cultura

nativa brasileira, chama a atenção para os animais que foram, através dos tempos,

considerados sagrados em quase todas as culturas humanas, em seus anseios por

compreenderem a si mesmo e ao mundo em sua volta. O ser humano buscou na

observação do animal, conceitos de comportamentos similares aos seus e aos ideais

desejáveis à sua cultura. Assim encontramos animais significando valores e poderes,

aos quais o ser humano poderia espelhar-se ou parecer-se.

Pelas lendas e narrativas de indígenas brasileiros podemos encontrar relações com os

animais de poder de nosso continente, o que nos traz uma maior compreensão de suas

crenças anímicas, onde divisamos sua essência mística na relação entre eles e seus

deuses, espíritos ancestrais, seres encantados e animais de poder.

Efetuarmos a ligação com um animal de poder através de sua sabedoria, comportamento

ou maestria, é efetuarmos a ligação com nossa própria natureza essencial e nossas

qualidades instintivas. Assim, compreender a essência do animal é ativar nossa própria

essência e modo de conhecer o mundo através de nosso lado inconsciente.

Nestas associações anímicas encontramos entre os Guaranis, em seu mito da criação,

estreita relação entre a serpente e a coluna vertebral humana considerada o sustentáculo

do corpo material e espiritual.17 O Ñamandu, manifestando-se na forma de um colibri,

capaz de ver a totalidade a partir do sutil mundo do espírito. A coruja também foi outra

17 Entre os hindus é chamada de Kundalini

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forma de sua manifestação. Como Coruja, o Pai-Mãe Criador na Noite Cósmica criou a

Sabedoria.

Para os Panará: os antepassados, chamados de “os de antes”(suankyiara), são uma

combinação de ser humano com animal, eles são os responsáveis por dar nome as coisas

e aos homens.

Para os Yanomami: todo ser humano tem como seu duplo um animal de poder com

quem se identifica. Os animais também podem ser espíritos de ancestrais que vivem na

floresta como animais. Temos também no folclore brasileiro, várias descrições de

animais com poderes especiais (o boto, o uirapuru, a sereia ou iara, o muiraquitã, a

cobra grande, o boitatá, a mula sem cabeça, etc.), humanos que podem assumir formas

animais, amuletos, danças que imitam movimentos e sons de animais. Tudo isso

compondo um grande universo místico além das fronteiras antropológicas e históricas.

É bastante interessante constatar a diversidade de animais escolhidos, tanto aqueles que

fazem parte de seu universo, entre eles, os animais domésticos e selvagens, assim como

aqueles que não são encontrados em nosso território. Agrupamos as justificativas de

todos18, conforme apresentado no quadro:

E1: Apesar de ser uma disciplina complexa, se não fosse ela o mundo não teria a estrutura que tem hoje. Em qualquer avanço tecnológico a matemática sempre estará inserida.

E2: Pois o cachorro, se você o conhece se dará bem, ele irá gostar de você e vice-versa. Mas se ele não te conhece, terá medo. E3: (Pit-bull). Ele assusta, mas se soubermos domá-lo pode ter certeza que conseguiremos.

E4: Porque no começo é difícil domá-lo, mas depois se torna agradável de se conviver.

18 Um educador não justificou porque escolheu o leão.

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E5: Porque este animal alegra todas as pessoas, mas quando pensamos em seu tamanho, assusta todas as pessoas.

E6: Porque é muito astucioso, ao mesmo tempo que vem de mansinho, pode em determinados momentos te trair se não tiver um raciocínio lógico. A matemática está presente em todos os momentos de nossas vida, mas quando paramos para fazer matemática, “aí o bicho pega”. E7: Porque além do gato ser carinhoso e tranqüilo, ele possui o famoso “pulo do gato”. Assim é a matemática. Temos que ter paciência, tempo, vontade própria e prática, agilidade para desenvolvê-la, pois é complicada, mas não impossível de aperfeiçoá-la cada dia.

E8: Por ser uma disciplina que sempre nos fez ficar preocupados em relação às suas novidades e ataques. O gavião também tem garras afiadas e olhos que vêem longe. É belo e propicia grandes espetáculos.

E9: Pessoalmente eu comparo a matemática com um leão. Pois é um animal difícil, que dá medo de encarar. Portanto não acontece só a mim, mas com outras pessoas que se deparam com ela. E10: Porque eu tenho pavor da Matemática. E11: Pois a matemática me assusta, não tenho muita afinidade e muita das vezes tenho dificuldades com ela. Comecei a gostar da mesma a partir do Curso de Formação do IDEA.

E12: Talvez porque ele se mostre muito inteligente pelo simples ato que faz: saltar ou pular de galho em galho. Tente imaginar um ser humano fazendo isto. É necessário que se tenha conhecimento de distância, de tempo para que o indivíduo saiba qual a intensidade e a força do pulo, para que a pessoa não caia e possa se machucar

E13: A matemática está presente em todos os sentidos e em qualquer lugar, então comparo a um mosquito.

E14: Devido ao medo, pois a mesma intimida qualquer pessoa que não tem afinidade com ela. E15: Porque eu acho a matemática muito difícil. Não sei o porquê, mas eu não consigo gostar de matemática. É tão difícil como ter um contato com uma onça brava.

E16: Sabemos que existem vários tipos de animais sendo destes animais racionais que são capazes de pensar através do raciocínio lógico, como o ser humano e outros animais irracionais que não são capazes de ter um raciocínio lógico. Há, entretanto alguns animais que desenvolve a oralidade, mas só repetem o que lhes é ensinado como o papagaio.

Quadro 3 (E indica educador)

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Analisando as associações feitas pelos educadores, podemos perceber três grandes

categorias: aqueles que têm uma atitude positiva em relação à matemática, aqueles que

se encontram numa posição intermediária entre gostar e temer, e aqueles que têm uma

atitude negativa em relação à matemática.

Assim, verificamos que 7 assumem uma atitude positiva, 4 assumem uma atitude

intermediária e 6 assumem uma atitude negativa. Estamos considerando uma atitude

intermediária àqueles que manifestam uma certa ambigüidade entre gostar e temer. Por

exemplo, na justificativa de escolha do cachorro, quando diz: ‘Ele assusta mas se

soubermos domá-lo pode ter certeza que conseguiremos’. A matemática se for

dominada é como um animal doméstico, está na esfera daqueles animais que podem ser

domados, ou seja, uma disciplina que mesmo sendo considerada “assustadora” pode ser

compreendida se assim o desejarmos. Vemos também, que a afetividade está presente

nessas manifestações, com animais que gostamos, por exemplo, o cachorro e animais

que tememos como a onça. Vemos, entre aqueles que manifestam sentir dificuldades em

matemática, uma relação afetiva pouco prazerosa com a matemática. Se eu gosto de

uma disciplina é porque não tenho dificuldades, aprendi a “domar” esse saber e então

ele está no rol das coisas agradáveis e amigáveis para mim.

Além da onça, associada com o medo e das dificuldades em enfrentá-la, outro felino

apontado foi o gato. Este é associado com astúcia e com o “chegar devagarzinho”.

Interessante é a menção do “pulo do gato” que interpretamos como o “insight” da

intuição repentina que o matemático possui. A aprendizagem matemática está muito

bem caracterizada na associação com este animal e a justificativa explicitada. Para

aprender matemática precisa-se de “tempo”, “paciência”, “vontade própria”, “prática” e

“agilidade”.

As lendas das culturas guarani e Tupinikim19 trazem animais como temas: “o bicho

homem”, “o macaquinho e o leão”, o “enorme gavião”, “o cachorro e o macaco”, “o

gavião e o caborê”, “a cobra encantada”, “o caracará e o urubu”, “a mulher e a cobra” e

“a festa das aves no céu”.

19 Conforme o livro “Os Tupinikim e Guarani contam...”

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Percebe-se que os animais têm muitos significados para os indígenas. A lenda do gavião

mostra um animal que provoca medo, pois aterroriza e faz maldades, no entanto, com

astúcia e espírito de cooperação, a comunidade consegue sair vitoriosa no enfretamento

com esse animal. Isso pode ser trazido para a metáfora do animal, quando um educador

escreve: ‘Por ser uma disciplina que sempre nos fez ficar preocupados em relação às suas

novidades e ataques’, está mostrando a relação entre animal e matemática – ambos trazem

preocupações, ambos atacam. Mas, o final da lenda é otimista, assim como a visão deste

educador quando afirma ‘E também tem garras afiadas e olhos que vêem longe. É belo e

propicia grandes espetáculos’. Percebe-se que vê a matemática como ampla e bela. Com

“olhos de grande alcance” podemos enxergar longe, exatamente como percebemos a

matemática, quando temos uma visão mais ampla dela.

Muito informativo para a nossa análise, é o relato Tupinikim da lenda “o bicho

homem”, que diz respeito à interculturalidade. Ela aborda as dificuldades de

subsistência da família indígena, o confronto com a cultura do “branco”, a necessidade

de busca de alternativas para sobreviver e comparação do homem branco com o animal.

O otimismo revelado nessa lenda aponta uma sobrevivência saudável na natureza por

meio da lógica do indígena. Vemos, nas metáforas, uma curiosa associação da

matemática com o animal ser humano. Este é visto como um particular “bicho”, que se

distingue dos demais pela sua racionalidade, apesar de que alguns se comportarem

como papagaios – desenvolvem a oralidade, mas são meros repetidores.

Um outro ponto a ser destacado quanto às escolhas dos animais é a lembrança de alguns

que não existem na nossa região, mas que a interculturalidade provoca, de tal sorte, que

esses animais são mencionados também em suas lendas, como o leão, por exemplo.

Conta uma lenda guarani, intitulada “O macaquinho e o leão”, que o leão com fome

engole o macaquinho. E o macaquinho mais esperto, embora supostamente horrorizado

pelo leão, consegue escapar de sua barriga. O leão foi o animal mais mencionado por

esses educadores, associando-o à matemática, revelando medo, pavor e dificuldades.

Assim, concordamos com Ponte (1992), quando diz que os educadores precisam discutir

aspectos, definições, conceitos e conteúdos matemáticos em sala de aula, de tal sorte

que dar significados aos conteúdos matemáticos possa provocar transformações nas

crenças, nas atitudes e nas concepções frente à Matemática, que propicie um

aprofundamento por meio dessas considerações, na busca de um maior entendimento de

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como é o ‘fazer’ matemático. Que as crenças, concepções e atitudes devem ser

discutidas e desveladas também pelas crianças, que essas possam se manifestar por

meio de sua própria cultura, que os educadores estejam abertos à interculturalidade,

vivenciando-se também neste universo, a real mediação do ensino-aprendizagem no

olhar de Vygotsky.

A mediação provoca, naquele que ensina e naquele que aprende, a dinâmica constante

entre as relações interpessoal e intrapessoal diante de novas informações, o que explica

o fato da aprendizagem ter caráter pessoal. Assim, criamos as crenças do que sabemos,

lembrando que essa dinâmica define também nossas atitudes diante do novo, em relação

ao que aprendemos. Assim ficamos munidos de nossas maneiras, de expressarmos um

pensamento próprio, como sugere as respostas diferenciadas para uma mesma questão,

como, por exemplo, as respostas dadas para a questão seguinte.

Questão 2 Você conhece alguém que goste muito de Matemática? Se sim, explique as razões que levam você a pensar que essa pessoa goste de matemática.

Essa questão levou todos educadores a uma resposta afirmativa. Entretanto, alguns

preferiram dar uma resposta generalizada, explicando os motivos que leva qualquer

pessoa a gostar muito de matemática. Outros, no momento de explicarem sobre as

razões que levam o seu conhecido a gostar de matemática, lembraram-se de ex-

professores. Ainda houve respostas que dizem não saberem explicar o porquê desse

gosto e uma das respostas não justifica sua escolha, como do educador E15, por isso,

excluído do quadro abaixo. Um dos educadores disse não ter certeza de fato, se a pessoa

citada gosta ou não de matemática, sendo esse gostar uma crença deste educador,

mediante sua observação. Assim no quadro abaixo, estratificando as explicações dos 16

respondentes, temos:

Associa a ex-professor

E8: Minha ex-professora Maruska, ela gostava tanto que na sala de aula ela contava os sonhos que ela tinha, resolvendo os cálculos. Ela dava sustos no marido, quando conseguia resolvê-los no sonho. E14: Porque ela tinha vontade de ensinar e fazia questão de que as pessoas aprendessem. E17: Meu ex-professor Alex José. Ele dizia que a matemática é essencial na vida das pessoas. Ele ensinava a matemática de uma forma dinâmica que os alunos aprendiam. Só sei que o cara é fera na Matemática.

Generalização E3: Há cada qual com sua doidice. E10: Porque sem a matemática ninguém vive pois necessitamos da própria

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para quase tudo na vida, ela circula em torno de nós.

Influência exterior

E4: Penso que essa pessoa gosta da disciplina matemática por causa do meio onde mora. Devido ao incentivo do pai para cursar engenharia, matemática, contabilidade...

Afinidade

E1: Deve ser por afinidade mesmo. E5: O motivo realmente não sei explicar, eu sei que essa pessoa era praticamente o melhor de sua turma; os números, as fórmulas entravam em sua cabeça como se fosse uma música. Essa pessoa era super tranqüila, sem estresse e gostava da vida. E6: Porque ela sempre pensa e diz com todas as letras que a matemática é desafiadora e apaixonante. E7: O que faz eu pensar que essa pessoa goste de matemática é o fato de ela querer fazer um curso que envolve muitos cálculos e fórmulas, a Física. E9: Eu acho que ela gostava da complicação, de achar a solução para uma coisa, que a maioria dos alunos achava insolúvel. E13: Elas acham desafiador resolver cálculos, resolver cálculos, problemas, etc..Se sentem motivadas de sempre quererem acertar. E11: Não tenho muito a certeza se essa pessoa gosta, só sei que a mesma possui um raciocínio matemático muito lógico e preciso. E16: Acredito que é pela afinidade com que essa pessoa lida com o conteúdo.

Auto-identificação

E2: Eu! Na matemática existem muitos desafios e gosto de testar meus conhecimentos muitas vezes através de consultas ou pesquisa. E12: Eu. Eu sempre gostei muito de números, cálculos. Uma das coisas interessantes que posso destacar é o fato de achar interessante, por exemplo, um vidro de maionese, tudo é feito na medida certa, entre outras coisas. A matemática é muito importante.

Quadro 4

Após o preenchimento do instrumento, foram lidas em voz alta para o grupo, todas as

respostas desta questão, em busca de uma reflexão dessas respostas a partir de uma

conversa. Neste instante foi confirmado o fato de que, todos os 17 educadores,

associaram o gostar de matemática exclusivamente, com o gostar da matemática que se

ensina na escola. Assim, nenhuma das respostas para esta questão contempla a

lembrança de alguém que talvez não tenha sequer sentado nas carteiras escolares,

alguém de sua etnia, que use a matemática para a construção de seus artefatos, suas

construções civis, ou mesmo a matemática usada na agricultura das aldeias. Ou seja,

nenhum dos educadores se reportou a alguém que use a matemática socialmente, em sua

comunidade, da matemática usada para sua sobrevivência econômica ou cultural, que

utilize esse conhecimento, como na casa de farinha (quitungo), em que as medidas são

necessárias para a produção e comercialização da farinha.

Entendemos que a matemática pode ser vista como um tipo particular de atividades,

assim como pode ser considerada como uma forma de conhecimento. Isso significa que

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pode ser aprendida e usada fora da escola e fora daquilo que é definido como

matemática. A matemática pode não ser só uma disciplina, mas pode ser uma forma de

pensar, pode ser vista como algo ao alcance de todos. Na escola aprendemos certas

formas de conhecimento matemático, e ficamos, normalmente, incapacitados de ver a

importância de outras, que não são aprendidas escolarmente, que podem ser considerada

como invisíveis.

A matemática social, fora da escola, intrínseca de uma cultura pode ser invisível por

vezes, até mesmo aos olhos de quem a vivencia. A complexa inter-relação entre o meio

social e cultural e a construção social da matemática é particularmente relevante para

contextos não escolares, onde os problemas matemáticos e suas soluções estão,

continuamente, sendo gerados em muitos níveis de operações, não significando que

todos os que lidam com esses problemas os reconheçam como sendo problemas

matemáticos.

Neste contexto, nem sequer a leitura da resposta de E10 no grupo, que diz ‘Porque sem a

matemática ninguém vive pois necessitamos da própria para quase tudo na vida, ela circula em

torno de nós’, para o grupo, originou esse tipo de lembrança para o grupo. O comentário

para esta resposta os reportou para a necessidade futura de sobrevivência econômica de

seus alunos. Pois, se eles souberem e gostarem de Matemática desde hoje: poderão num

futuro, conquistar bons empregos; que serão, provavelmente, bem classificados em

concursos públicos; discernirão melhor seu entendimento diante de documentos, como

diante dos documentos do processo jurídico, junto às questões que discutem com a

empresa Aracruz Celulose. Acreditam que saber, gostar e dominar a matemática poderá

ajudá-los a se defenderem de abusos dos não-índios. Ainda, têm expectativas de que

seus alunos possam tomar o gosto pela matemática para serem futuros engenheiros,

trabalharem em setores financeiros de empresas ou, se quiserem, trabalharem no seio

das comunidades indígenas depois de formados, a ponto de pensarem em contribuir com

os avanços e progresso de seus povos, entre outras justificativas.

Entretanto, em encontros anteriores com o mesmo grupo, em conversa sobre o papel da

matemática, os educadores indígenas salientaram a importância desse conhecimento

para a vida das pessoas de sua comunidade. Durante esses encontros, quase todos os

educadores se manifestaram, e foram unânimes, defendendo a importância de existirem

discussões constantes, em suas salas de aula, sobre os conhecimentos da matemática

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que levariam seus alunos a refletirem sobre a matemática na sua cultura, sobre a

contribuição da matemática para a construção de sua história cultural. Além disso, que a

matemática abordada em sala de aula não fosse indiferente à matemática usada do

cotidiano nas aldeias, que ainda traz resquícios do passado, que ajudou e ajuda na

construção de sua cultura. Que também por meio da matemática pudessem conhecer e

entender melhor a vida que seus ancestrais tiveram, que pudessem refletir sobre a

importância da matemática do tempo presente e do passado.

Isso viria ao encontro dos aconselhamentos do RCNEI (1998, p.161) que assinala que o

trabalho na escola indígena deve valorizar a transmissão e atualização do seu

conhecimento tradicional, e que os estudos na escola, podem reconstruir a matemática

da cultura indígena. Isto é, o documento aconselha que a matemática se ocupe também

na escola, da transposição do conhecimento matemático indígena até a atualidade, desde

o conhecimento matemático de seus ancestrais.

Ainda, nas discussões pedagógicas realizadas durante os encontros de formação

anteriores, quando demonstraram interesse por abordarem a matemática em sala de aula,

sempre que possível com foco em sua cultura e história, os educadores apontaram

também para algumas expectativas que têm em relação à construção de seu currículo

diferenciado, a partir de propostas interdisciplinares e interculturais. Defenderam que,

com esse tipo de prática, as crianças poderiam entender melhor a matemática, que a

perceberiam nas suas necessidades históricas e atuais, muito específicas até, de sua

etnia.

Assim, pela experiência das conversas anteriores à aplicação do instrumento, esperava-

se que algumas das respostas para essa questão fizessem alusões pertinentes a alguns

aspectos históricos de alguém de seu povo, que contemplassem conhecimentos

empíricos da matemática já que esses educadores defendem, com veemência, sua

cultura, que caminha lado a lado com sua história, cultura como “um sistema de

concepções herdadas, expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens se

comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à

vida” (Geertz, 1989, p. 103).

A resposta do educador E12, por mostrar a influência da interculturalidade chama a

atenção porque associa a matemática à forma de um vidro de maionese, não se

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lembrando de recorrer a um dos artefatos de sua cultura. A memória desse educador

também nos leva a fazermos conjeturas a respeito da formação inicial desses

educadores. Exceto o Curso de Magistério, relativo à sua formação, esses educadores

freqüentaram o ensino fundamental regular, com professores não-índios, nas escolas

municipais de Aracruz. Logo freqüentaram uma educação inicial sem a abordagem da

cultura indígena. O fato de se lembrarem, na condição de alunos de uma escola não-

indígena, pode ter sido um fator determinante para a lembrança do vidro de maionese,

pois se estava inserido naquela cultura, se reporta a ela também por meio dos objetos

que fazem parte dela, ao invés de se lembrarem do formato de um arco, flecha ou de

outro artefato de sua cultura específica.

É interessante também observarmos que a cultura deve dar respostas aos problemas dos

indivíduos e ao grupo, pois a sociedade sofre algumas necessidades para sua

manutenção e continuidade. E, segundo Souza,

[...] os estímulos podem partir de conteúdos próprios de uma cultura, como também podem ser inseridos por (objetos simbólicos) uma cultura diferente – o problema é a possibilidade de reflexão ou ressignificação sobre estes estímulos. Esse processamento de significados não deve receber de nenhuma forma algum referencial de valor, pois quando isso acontece o que se opera é bem mais ideologia (hegemonia) do que estímulo cultural. A isso podemos classificar (em determinadas situações de contato cultural) de aculturação. [...] aculturação é o movimento de mudança em uma sociedade que é influenciada por uma cultura de uma sociedade dominante. Esse fenômeno se caracteriza por uma movimentação de ajustamento ou conformidade a ideologias e padrões culturais de uma ou de outra sociedade (Souza, 2003, p.1).

Sem considerarmos a dominação de uma cultura sobre a outra, Geertz (1989) nos diz

que a interação com outras culturas parece ser essencial para a evolução da própria

cultura, configurando-se num intercruzamento até paradoxal sob muitas perspectivas e,

por isso mesmo, constituindo-se dinâmica, e por vezes até conflitivamente. O autor

acredita que a compreensão dos padrões culturais, assim como de suas inter-relações, só

evolui com base no estudo atento e minucioso dos significados que cada ato e cada

relação, de cada sujeito, vão assumindo num determinado contexto, e aconselha, para

uma melhor compreensão desse aspecto:

Temos que descer aos detalhes, além das etiquetas enganadoras, além dos tipos metafísicos, além das similaridades vazias, para aprender corretamente o caráter essencial, não apenas das várias culturas, mas também dos vários tipos de indivíduos dentro de cada cultura, se é que desejamos encontrar a humanidade face à face. (Geertz, 1989, p.65)

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Para tentarmos estabelecer vínculos da cultura indígena com a educação matemática

convidamos os educadores a responderem outras questões, como essa a seguir.

Questão 3 A sua melhor memória enquanto aluno de matemática:

As 17 respostas dadas para esta questão podem ser estratificadas em duas categorias:

• Na identificação com conteúdos: sujeitos que entenderam que a questão sugeria

lembranças de conteúdos de matemática.

• Sucesso pessoal, êxito associado às notas ou que retratam lembranças de alguém

que lhes proporcionou uma experiência boa em Matemática, ou ainda,

salientando a força da intervenção do professor.

Assim, estabelecemos o próximo quadro com três quadros internos, o primeiro para

identificação de conteúdos e os outros dois para sucesso pessoal, a partir das respostas:

Na identificação de conteúdos E1: Como toda pessoa, ninguém lembra de tudo que estudou, mas se eu pesquisar consigo lembrar dos conteúdos. Sobre melhor memória não me lembro. E4: Equação, conjuntos, adição, subtração. E5: Recordo dos números primos, razões e proporções, estudo de frações, porcentagens, funções. E7: Foi quando comecei a aprender as equações de 1° grau. E16: Equação do 2° grau. Sucesso pessoal E3: Mesmo não gostando eu era boa aluna, eu até ajudava os outros alunos que tinham dificuldades. E13: Quando conseguia resolver algumas questões de matemáticas que eram propostas e ver que teria acertado ao fazer sozinha.

Êxito associado às notas

E2: Quando tirava nota máxima. E6: Quando consegui recuperar a nota de matemática que tirei zero (0). Tirei nota máxima!! E8: Quando eu estava na 5ª série eu conseguia fechar a prova, estudava em Coqueiral. Quando eu fazia o magistério eu conseguia tirar 7,0 numa prova, cujo valor era 7,0, foi a maior nota da sala. Foi a minha maior alegria pois na sala havia meninas ‘metidinhas, metidas a CDF’ - se é que você me entende. E10: A minha primeira nota 10 na prova de Matemática, porque eu percebi a necessidade de estudar e praticar a matemática para aprender. E12: Eu sempre tive as melhores notas, tanto em Matemática quanto em Física e, por isso, fui escolhida para fazer um passeio ao Parque Moscoso, a uma feira de física e isso foi muito importante e interessante. Isso foi no 3° ano.

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E17: Ter compreendido a matéria no 2° e 3° ano do Ensino Médio e ter passado de ano sem ficar pendente.

Êxito associado às intervenções no ensino

E9: A minha professora da 4ª série tentando enfiar na minha cabeça expressão numérica. Ela conseguiu, Graças a Deus! E11: A partir da 6ª série do Ensino Fundamental que eu fui aprendendo a ‘lidar’ com a matemática porque o professor dinamizava muito as aulas. Lembro-me que quando estava aprendendo números positivos e negativos o professor fez uma música (registra a letra da música). E14: Na 8ª série, pois foi o ano em que aprendi a gostar de matemática, porque o professor explicava tão bem que os alunos se interessavam pela aula. E15: É que depende muito do professor para que uma pessoa possa aprender a matemática. Portanto foi um ótimo professor que conheci. E17: Ter um professor que sempre me ajudava

Quadro 5

É interessante enfatizar que não houve leitura prévia do instrumento I no grupo, porque

entendemos que a interpretação da questão também é motivo de avaliação e de reflexão.

Assim, podemos observar que houve uma compreensão, por parte de alguns dos

respondentes, que teriam que reportar suas respostas, especificamente, para conteúdos

matemáticos.

Isso nos levou à reflexão de que talvez o termo melhor memória não tenha sido o termo

mais indicado para figurar na questão. Isto é, repensando este aspecto, se a palavra

memória fosse substituída por lembrança talvez os conteúdos matemáticos sem

justificativas não tivessem aparecido no rol de respostas. Supõe-se que o termo melhor

memória os tenha levado a elencar conteúdos matemáticos que mais lembraram de

terem estudado na escola. Como não justificaram suas respostas, entende-se que não

podemos fazer conjeturas a respeito. A falta de justificativa para as respostas nos faz

pensar que o termo melhor memória, associado a alguns conteúdos de matemática, pode

ter surgido por dois motivos pelo menos: pelo fato de estes educadores terem gostado de

estudarem esses conteúdos, ou simplesmente, por alguma razão, são os conteúdos que

estão mais presentes em sua memória de fato, independente de terem tido experiências

positivas ou negativas com eles, como mostrado nas respostas dos cinco educadores no

Quadro 5, referente à identificação de conteúdos.

No que tange ao sucesso pessoal aparecem termos de afetividade, como a solidariedade

- a ajuda ao outro, pelo educador E3, apesar do seu não gostar de matemática e alegria

em uma descoberta solitária, de ser capaz de encontrar resultados corretos, pelo

educador E13. A justificativa da resposta do educador E8 mostra que ter conseguido a

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melhor nota da sala, lhe assegurou auto-respeito diante dos colegas, estabelecendo um

aumento na sua auto-estima, diante do grupo do qual fazia parte, quando diz ‘Foi a

minha maior alegria pois na sala havia meninas metidinhas [...]’.

As emoções caracterizaram essas respostas, dando vida ao pensamento vigotskyano

quando afirma que as emoções integram-se ao funcionamento mental geral, tendo uma

participação ativa e efetiva em sua configuração.

Assim como o educador E8, um número significativo de outros educadores, para melhor

memória, se reportou ao momento de êxitos por meio de boas notas, demonstrando a

valorização social das avaliações.

As demais respostas nos convidam à reflexão sobre a importância da mediação, já que

esses educadores creditam seu sucesso com a matemática à postura de seu professor,

dando ênfase às intervenções que ele faz. Isso pode ser observado na concepção do

educador E17 que associa, a sua melhor memória enquanto aluno de matemática, ao

fato de ‘ter um professor que sempre me ajudava’.

De qualquer forma, todas as respostas lembram que, como aponta Vygotsky (1979), as

formas psicológicas mais sofisticadas, ou o desenvolvimento das funções psicológicas

superiores surgem na vida social, uma vez que o desenvolvimento social do sujeito é

proveniente das constantes interações com o meio social em que vive. Isto é, o

desenvolvimento do psiquismo humano é sempre mediado pelo outro, que indica,

atribui ou delimita significados à realidade e, quando internalizados, esses processos

começam a acontecer sem a intermediação do outro. Isso significa que as conquistas

individuais é resultado de um processo compartilhado, o que explica o nosso

entendimento do fazer sozinha com sucesso, do educador E13.

Assim, por meio de signos o homem pode ampliar sua capacidade de atenção, memória

e acúmulo de informações. O mais poderoso signo para Vygotsky (1979) é a linguagem,

que nos permite lidar com objetos, mesmo ausentes, que também nos levam a percorrer

caminhos de abstrações, dando um relevante papel para a memória, que a seguir, solicita

lembranças de momentos positivos e negativos em relação à sua escolha profissional.

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Questão 4 A sua melhor memória de matemática enquanto professor

Dos 17 educadores, 9 deles não responderam essa questão. Após o preenchimento do

instrumento os 9 educadores disseram que deixaram resposta em branco porque

entendiam que a questão deveria ser preenchida exclusivamente pelos colegas que

trabalham, ou já trabalharam, como professores específicos da disciplina de matemática.

Apesar de lhe ser oferecido o instrumento uma segunda vez para ser preenchido, esses

educadores preferiram não fazê-lo por não terem nada a declarar para essa questão.

Assim, apenas 8 dos educadores responderam essa questão, cujas respostas

apresentamos em dois grupos distintos, como mostra o quadro abaixo.

Interdisciplinaridade

E1: Quando eu trabalhei com tabelas e gráficos: fizemos uma pesquisa sobre população indígena do ES e foi muito proveitoso. E2: Pesquisas realizadas na comunidade onde trabalho, na qual os alunos tiveram maior facilidade em desenvolver a habilidade de construção de gráficos. (1ª série). E15: Eu acho que serve de complemento com outras disciplinas, apesar de muitos não gostarem. A matemática é muito importante para a vida pessoal, profissional de uma pessoa.

Aprendizagem e interesse do aluno

E6: Quando consegui fazer com que meus alunos conseguissem fazer relação, comparação, entre símbolo e quantidade. (Ed. Infantil). E7: Quando trabalhei na Ed. Infantil e os meus alunos chegaram de manhã e, sem saber, me falaram: ‘professor hoje queremos fazer matemática.’ Esses só sabiam que tinha a ver com números. E11: Tive um aluno que estava na 2ª série do ensino fundamental e, antes que eu falasse, de passar os exercícios, ele já dava a resposta oralmente. E13: Quando conseguia explicar determinado conteúdo (ex: subtração) e os alunos conseguiam entender. (para isso usava várias ferramentas).

Quadro 6

Entendemos que as respostas dadas para esta questão foram um tanto inesperadas.

Nenhuma das respostas dá detalhes, de fato, dos diferentes papéis que um professor

desempenha em sala de aula, em como desafia seus alunos, como avalia seu progresso,

como interage diante de dificuldades ou dilemas que a matemática provoca, de como

administra a matemática no apoio à sua cultura, como planeja sua aula, como é seu

saber-fazer matemática em sala de aula com seus alunos, como prioriza os conteúdos,

enfim, como (re)significa sua práxis. Isso mostra que devemos compreender sobre como

funcionam os sistemas de troca e mutualidade relativas à matemática, entre alunos e

professores, por meio de futuras observações em sala de aula, ou de outras questões, que

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poderiam contribuir mais eficazmente para análises mais colaborativas, já que essas

respostas são insipientes para isso.

Esse pensamento nos ocorre pois, desde 1996, esses mesmos educadores assumem para

si, a responsabilidade de sua formação continuada permanente, o que demonstra uma

busca de autonomia na produção de seu desenvolvimento profissional. Seus formadores

são profissionais da educação da SEMED de Aracruz, ou professores doutores,

doutorandos, mestres ou mestrandos da Universidade Federal do Espírito Santo –

UFES. Nossas expectativas de respostas estão apoiadas nas informações sobre os

conteúdos que já foram discutidos durante as formações e no tempo em que esses

educadores estão inseridos nesse processo contínuo e colaborativo. Embora

consideremos essa busca, do que são e do que fazem, como um processo longo e difícil

e, segundo Fiorentini (2005),

trata-se de um processo em que os professores se vão constituindo em pensamento, construindo saberes e compondo suas ações. E, assim, constituem-se como sujeitos únicos e singulares, pois, embora conectados por objetivos e ações comuns, são subjetivos o modo de caminhar, as significações, as emoções, a cadência, a história de vida (Fiorentini, 2005, p.149).

Sabemos que o currículo em discussão nessas escolas indígenas aponta para a

importância de práticas interdisciplinares com relevância à sua cultura, e dois dos

educadores, E1 e E2 fazem referências a isso, demonstrando contentamento, no uso de

gráficos estatísticos em propostas interdisciplinares, que estratifica a população de sua

cultura, mas não mencionam em que contexto foi proposta essa dinâmica. Lembramos

que esse tipo de resposta não apareceu na questão 2.

Observamos que a maioria dos respondentes se voltou para a aprendizagem do aluno e

as respostas dos educadores E6 e E13 demonstram a alegria na profissão, no momento

de êxito de aprendizagem de seus alunos a partir de seus empenhos, outra vez sem

detalhes que justificassem em como se empenharam. De qualquer forma podemos, a

partir disso, constatar que são educadores reflexivos. Será que esses comportamentos

têm alguma origem na sua formação inicial? Essa indagação poderia ser, talvez

respondida, a partir das próximas questões que foram propostas, como veremos a seguir.

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Questão 5 A sua pior memória enquanto aluno

A partir da leitura das 17 respostas dadas observamos que os educadores associaram à

questão a três lembranças:

• De um episódio; • Identificação de conteúdos com os quais tiveram mais dificuldades; • Avaliação

Assim, as respostas dadas, originaram o seguinte estrato:

Episódio

E3(I5): Quando chegava o dia que tinha matemática. E5(I5): Foi uma fase meio conturbada por alguns problemas no 2° e 3° ano do ensino médio quando tive um aproveitamento razoável. E14(I5): Na 2ª série, pois tive que aprender a tabuada obrigada. Meu irmão me batia muito se eu falasse o resultado errado.

Diferença Cultural

E11(I5): Quando eu saí da aldeia e fui fazer a 5ª série fora da mesma. A professora só escrevia no quadro, mal explicava e já passava exercícios; mal dava tempo de terminar de copiar, ela já passava as respostas no quadro.

Conteúdos

E4(I5): Logaritmos e cálculo integral. E7(I5): Quando se fala em logaritmos é o mesmo que falar grego, hebraico ou outros, menos em português. E16(I5): Equação diferencial.

Avaliação

E1(I5): Quando reprovei em matemática na 7ª série. “Eu não fazia nada!” E2(I5): Quando tirei nota mínima. E4(I5): Quando tirei zero (0) em uma prova da 5ª série. E8(I5): Não ter passado no CEFET; eu zerei as questões de matemática, ou seja, não acertei uma. E9(I5): Quando fiquei de prova final na 7ª série por apenas 2,0 pontos. E10(I5): Foi quando eu pensei que sabia matemática, mas na hora da prova me dei mal, tirei nota inferior, pois não tinha me dedicado a aprender. E12(I5): Foi durante uma prova no 3° ano, com questões de (trigonometria) Geometria. Eu não consegui aprender muito essa parte da matemática, talvez por causa da professora, não sei. Então o tempo de aula acabou e eu não consegui fazer essas questões e isso foi muito ruim porque eu não era acostumada a entregar provas em branco. Eu tirei nota zero e chorei. E13(I5): Quando, na escola, passava arrastando nessa disciplina. Na maioria das vezes tinha notas muito baixas. E15(I5): Às vezes quando ao pegar minha prova e eu avistar aquela nota “ZERO”. E17(I5): Ter repetido a 6ª série e ter ficado em dependência no 1° ano.

Quadro 7

Como podemos perceber, parte dos educadores acredita que o sucesso ou fracasso na

aprendizagem estão associados às notas. Em nenhum momento, apesar de serem

educadores, denunciam reflexões negativas quanto aos instrumentos aos quais foram

submetidos, talvez por não lembrarem de como eram esses instrumentos, nada se pode

afirmar, mas certamente, retiveram na memória os resultados frustrantes, como consta

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no quesito Avaliação. Neste contexto, é importante observar que o educador E10, numa

auto-reflexão, se responsabilizou pelo seu baixo rendimento quando diz ‘não tinha me

dedicado a aprender’, enquanto outro, E12, suspeita que seu baixo rendimento, está

associado às atitudes, outrora, de sua professora.

Três educadores mencionaram conteúdos com os quais tiveram maior dificuldade de

aprendizagem e, no momento da entrega do instrumento preenchido, embora não

tenham sido questionados, fizeram questão de complementar oralmente suas respostas.

Unanimemente informaram que, por conta de suas preocupações diante dessas

dificuldades no período, dormiam muito mal, suavam frio, sonhavam que não

conseguiam aprender e eram ‘perseguidos por pesadelos’.

O educador E3 demonstrou ojeriza pela matemática e não se sentia confortável em

simplesmente saber que tinha enfrentamentos com a disciplina de acordo com horário

escolar, enquanto o educador E14 relatou a decorrência de ameaça de castigo doméstico

físico, caso pronunciasse o ‘resultado errado’ para a tabuada.

Mas a resposta que mais nos chamou a atenção foi a do educador E11, que foi

qualificada como Diferença Cultural. Isso nos levou a refletir sobre alguns costumes

culturais. Esses povos indígenas, apesar de aculturados, não pertencem ao mundo

capitalista ocidental, onde o tempo é fator de rentabilidade na produção e na

produtividade. O tempo para uma nação indígena está voltado para o homem, como um

ser, simplesmente, inserido na natureza. Por exemplo, sabemos que os índios plantam e

sobrevivem da agricultura. Entretanto, não existe o compromisso diário de idas ao

campo, 6h por dia ou 8h por dia. Eles se dirigem ao campo se precisam ou têm vontade.

Eles agem de acordo com suas necessidades presentes. Se quiserem cozinhar milho e

tem milho à disposição na roça para colherem, por exemplo, é um bom motivo para

irem buscar.

Observando o comportamento desses educadores nos cursos de formação, notamos

como ‘o tempo’ tem outro significado para eles: eles não têm pressa, esperam

calmamente os alunos copiarem ou resolverem as questões. Eles não interrompem quem

está falando, escutam com calma aquilo que outro tem para dizer, para só após se

manifestarem.

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Isso não significa que sejam irresponsáveis, preguiçosos, ou indiferentes às suas

questões de progresso, simplesmente é uma forma, diferente da ocidental, de

perceberem o tempo. A compreensão e a aceitação dessas diferenças devem ser levadas

em consideração, lembrando que a aceitação não significa a desqualificação de uma

cultura em relação à outra.

E, segundo Geertz (1989, p.15), que se orienta por um conceito de cultura

essencialmente semiótico: “acreditando [...] que o homem é um animal amarrado a

teias de significados que ele mesmo teceu, assumo cultura como sendo essas teias e

suas análises”, o que pode ajudar na compreensão da resposta do educador E11 para a

falta de adaptação ao tempo de uma professora, que não fazia parte de sua cultura,

quando desabafa como pior memória enquanto aluno: ‘Quando eu saí da aldeia e fui fazer

a 5ª série fora da mesma. A professora só escrevia no quadro, mal explicava e já passava

exercícios; mal dava tempo de terminar de copiar, ela já passava as respostas no quadro’.

Questão 6 A sua pior memória de matemática enquanto professor

Dos 17 educadores, 10 não responderam esta questão. Dos 7 que responderam um deles

- E16 apenas preencheu a resposta com as palavras regra de três e outro, E3, mostrou

em sua resposta uma interpretação peculiar, uma resposta inesperada, razão pela qual

ambos estão excluídos do quadro abaixo:

Aprendizagem do aluno

E1(I6): Quanto a aprendizagem do aluno. Se eles não entendem a matéria é um momento angustiante para mim, pois todos os professores têm o objetivo de que seus alunos aprendam e saibam. E13(I6): Quando tentava de todas as maneiras passar determinado conteúdo e não conseguia fazer com que o aluno entendesse.

Ensino

E7(I6): Tive alguns alunos que não aprendiam de jeito nenhum os conteúdos e eu fiquei de pés e mãos atados por não saber outros métodos senão o convencional. E11(I6): Trabalhar com frações. Talvez pelo fato ‘de eu’ não dominar este conteúdo. E2(I6): Um jogo com crianças de 3ª série, quando dois alunos se bateram de frente.

Quadro 8

Feita as inferências, ficamos com 5 das respostas. Das quais destacamos, a angústia

demonstrada quando não ocorre a aprendizagem, ou a constatação de dificuldades de

aprendizagem dos alunos, já que o segundo educador E1 ‘todos os professores têm o

objetivo de que seus alunos aprendam e saibam’. A resposta do educador E11 trás para si a

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responsabilidade do provável insucesso de seus alunos, por não ter domínio adequado

do conteúdo. Por meio desta resposta o educador reflete sobre um momento seu, durante

uma frustrada experiência em sua prática de professor, revelando sua preocupação com

seu desempenho positivo, no uso de uma auto-avaliação, que pode ser uma experiência

que poderá ser revertida pois

Experiência é o que nos passa, nos transpassa, nos leva a nosso próprio interior, nos coloca em estado de inquirição com o modo de ação e, pela permanente transmutação, provoca transformações formativas, nos faz evoluir, caminhando por espaços intersticiais, a deixar o novo brotar (Guérios, 2002, p.179, apud Fiorentini, 2005)

Observamos que nenhum dos respondentes apresentou qualquer comparação com os

educadores que foram outrora seus professores ou com eles próprios como educadores,

o que poderia contribuir, com mais detalhes, em responder a uma de nossas questões,

que pretende verificar se as suas práticas atuais são influenciadas por sua formação

inicial. Talvez isso possa aparecer em outro instrumento de pesquisa, durante nossas

observações ou conversas.

INSTRUMENTO II

Sobre a importância da matemática

Questão 1 As pessoas sempre dizem que a matemática é importante. Você conhece razões que o convenceriam que estudar matemática é importante?

Dos 17 educadores, 15 responderam que sim e dois disseram que não sabem. Assim,

após os educadores escolherem entre sim, não e não sei como resposta, a mesma

questão ainda solicitava:

Se você respondeu que sim, escreva três razões para isso.

Aqui, 3 educadores deixaram a questão em branco e 3 deram respostas generalistas. As

respostas generalistas foram ‘estamos rodeados por matemática’, ‘a matemática está

presente no cotidiano’, ‘é essencial para a vida, em tudo tem matemática’. Essas

respostas estão ausentes da tabela a seguir, apesar de estarmos cientes que essas

informações são importantes. Nossa justificativa recai no fato de que as demais

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respostas podem contribuir melhor para a verificação das concepções, crenças e atitudes

desses educadores frente à matemática e à educação matemática. Isso posto,

apresentamos a tabela das demais razões que surgiram, que convencem à importância de

estudar matemática, na visão dos educadores.

Operações Fundamentais E9: Dominar as quatro operações. E10: Adicionar objetos, pinturas, etc.. E14: Multiplicação; soma; subtrair e dividir.

Econômico-financeiras

E1: Comercialização, juros, etc.. E2: Compreensão da economia como um todo. E5: Acordos financeiros. E8: Calcular o custo de uma construção. E11: Vivemos em um mundo capitalista: compramos, vendemos, trocamos... E12: Fazer qualquer tipo de compra.

Sociais

E2: Analisar o que é viável, e o que não é, para tomada de decisão. E4: Para não ser ‘enrolado’ por outra pessoa. E5: Estudo de alguns fatos de forma cronológico, medidas; análise de tempo. E8: Nos comunicarmos com o mundo; vencer desafios, como concursos, universidades, etc.. E10: Conhecimento social. E12: Conhecer o mundo. E16: Conhecimento teórico.

Outros

E9: Solução de problemas. E10: Sinais. E12: Poder ler as horas. E16: Desenvolvimento prático de problemas.

Quadro 9

Algumas respostas caracterizam as impressões que os educadores têm a respeito da

importância de adquirirmos conhecimentos de matemática. Alguns mostram essa

importância associada a uma valorização social relacionada com o futuro dos alunos, no

sentido de que, conhecer matemática, pode auxiliar para se conseguir melhores

oportunidades na vida. Enquanto outros relacionam essa importância para necessidade

cotidiana. Para um melhor entendimento disso, alçaremos em seguida, algumas

respostas que ilustrem essas impressões.

Os educadores E9, E10 e E14 reconhecem a importância da aprendizagem da

matemática por meio da aquisição do conhecimento de ferramentas, de procedimentos

básicos, como podemos ver em suas respostas: ‘Dominar as quatro operações’, ‘Adicionar

objetos, pinturas, etc.’ e ‘Multiplicação; soma; subtrair e dividir’ ou ainda nas respostas dos

educadores E1 e E12 quando dizem ‘Comercialização...’ e ‘Poder ler as horas’.

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Outras respostas ilustram atitudes mais abrangentes em comunicações sócio-

econômicas, pois aqueles que conhecerem matemática poderão ‘Analisar o que é viável, e

o que não é, para tomada de decisão’, assim como poderão discutir ‘Acordos financeiros’ ou

“Para não ser ‘enrolado’ por outra pessoa”.

Nesse sentido, os educadores indígenas mostram-se muito preocupados com

interpretações de acordos e documentos que circulam entre eles e as autoridades, ou

àqueles publicados oficialmente ou veiculados na mídia. São documentos ou manifestos

que normalmente trazem informações a respeito de verbas, vantagens e desvantagens

econômicas para eles. Assim entendem que se souberem matemática poderão perceber,

discutir e argumentar melhor sobre possíveis propostas, e que isso muito os auxiliará

para tomada de decisões.

‘Calcular o custo de uma construção’ mostra, igualmente, uma atitude positiva diante da

matemática, numa valorização consciente de sua utilidade cotidiana. Isso é reiterado

pelos educadores E9 e E16, que salientam a importância de se aprender matemática para

alcançar ‘Solução de problemas’ ou para ‘Desenvolvimento prático de problemas’.

Para o educador E8, conhecer matemática pode ser um meio para alcançar uma meta,

como habilidade para progredir na vida, quando afirma que aprender matemática é

importante para: ‘Nos comunicarmos com o mundo; vencer desafios, como concursos,

universidades, etc.’, enquanto o educador E5 apresenta uma visão um tanto holística da

matemática quando diz que essa mesma aprendizagem pode ser importante para ‘Estudo

de alguns fatos de forma cronológico, medidas; análise de tempo’, ambos com respostas que

levam para além da matemática.

Após a aplicação do instrumento, o educador E5 oralmente ampliou sua resposta.

Informou sobre o seu interesse em solicitar aos seus alunos que conversem com os

anciões de sua aldeia. Os alunos deverão verificar, a partir de entrevistas com os mais

velhos, se eles conhecem a história do “cacicado” Tupinikim. Sua finalidade é obter

registros para produção de material didático de história. Pensou em iniciar esse trabalho

pela história, construindo uma linha de tempo de cacicado, com objetivo de resgate da

cultura Tupinikim. Assim, entende que o conhecimento da funcionalidade do tempo ou

algum outro conhecimento de matemática pode auxiliar seus alunos na tarefa, como na

construção de categorias de respostas que irão obter.

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Questão 2 Para você há alguma diferença entre matemática e cálculos? Justifique sua resposta.

Para responder a essa pergunta foi disponibilizado o preenchimento dos campos para

Sim, Não e Não Sei. Dos 17 educadores, 3 optaram por Não Sei, 8 por Não, 4 por Sim e

um dos educadores deixou em branco a questão. Logo, próximo da metade dos

educadores que se manifestaram, não diferenciam cálculo da matemática. Dois

educadores não justificaram. Para as respostas criamos as seguintes categorias.

Respostas Afirmativas

Cultura e sociedade

E1: Se você interpretar alguma situação já é matemática e não cálculo. Cálculos são números. E8: Matemática é tudo: escola, casa, mundo. Cálculos são os números em si (matéria específica). E11: Uma das justificativas seria alguns aspectos da etnomatemática: para se fazer peneira não se faz cálculo mas tem matemática; também a pintura corporal

Ensino-aprendizagem E15: Porque a matemática dá os conceitos básicos para se entender as matérias. Cálculo é a matéria, os conteúdos dados.

Respostas Negativas

Presença de números

E4: Porque os dois envolvem números. E10: Porque matemática e cálculos dependem de números e de raciocínio lógico. E12: Os dois são números, um está ligado ao outro

Igualdade ou inter-relação

E5: Matemática e cálculo sempre co-existiram. E7: Para mim tudo é cálculo. E14: Penso que um está inserido no outro. E16: É tudo igual, o que muda é o grau de dificuldade. E17: O cálculo é uma matemática

Respostas dos que não sabem

Igualdade ou inter-relação

E2: Mais ou menos, um está inserido no outro. E9: Para mim os dois são iguais. E13: Acho que não. Para mim é a mesma coisa pois o que mais se faz na matemática é cálculo

Quadro 10

Antes de iniciarmos os comentários a partir das respostas dadas, apresentamos os

significados de cálculo e matemática, segundo um dicionário de matemática.

Cálculo: procedimento que leva ao resultado de uma operação. O significado mais antigo de cálculo é pedra, pedregulho. Esse significado nos recorda que, para efetuar cálculos matemáticos, usaram-se pedrinhas, às vezes as do ábaco, durante séculos e séculos (Imenes & Lellis, 2004, p. 48).

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Matemática: palavra de origem grega que significa ‘aquilo que se pode aprender’ (a palavra mathema quer dizer ‘aprendizagem’). Não é fácil dar uma idéia do que vem a ser matemática, e os dicionários dão definições bastante diversas. Uma possibilidade é considerá-la como a ciência que estuda quantidades e formas. A matemática tem vários ramos ou divisões, sendo aritmética, álgebra, geometria, medidas e estatística os ramos estudados no ensino fundamental (Imenes & Lellis, 2004, p. 185-186).

Mendes (2004) ressalta que a matemática, no decorrer da história aparece como um

instrumento que nos auxilia a compreender, descrever e modificar a realidade social,

evidenciando principalmente sua faceta utilitária, quando utilizada para comunicar

informações produzidas por outras áreas da ciência.

Apesar da contribuição dos autores é interessante esclarecermos que não fazia parte das

nossas expectativas que os respondentes tivessem conhecimento científico desses

significados. Estar diante desses significados dados pelos autores poderá nos ajudar a

entendermos melhor as respostas dos educadores.

O educador E11, que parece melhor reconhecer que a matemática é intrínseca à sua

cultura, lembrou-se que alguns de sua etnia confeccionam peneiras, até hoje muito

usadas na colheita do feijão na aldeia. Segundo o educador, alguns Tupinikim anciões,

que jamais freqüentaram os bancos escolares, se ocupam na confecção de peneiras. Para

isso, não usam medidas do Sistema Internacional. Medem a circunferência que querem

do seu produto final, normalmente, por experiência anterior, ou usando a cintura do seu

corpo para ter uma idéia, ou apenas ‘no olho’.

Entretanto, empiricamente, usam suas medidas. O mesmo ocorre para a quantidade de

palha para a trama que cobre o interior da peneira. O fazem por experiência anterior e

seus cálculos são feitos ‘Porque sabemos, temos idéia. Desde criança víamos os mais velhos

fazendo peneiras e a gente ia aprendendo. Então vou vendo que tipo de material preciso buscar

no mato, vejo os tamanhos...A gente sabe o que precisa, pega e faz. Eu faço, e algumas vezes

até tenho vendido, porque me pedem, querem comprar. Minhas peneiras duram muito. A gente

daqui gosta delas’ (Santa, 74 anos de idade, aldeia Pau-Brasil).

Quando Santa foi questionada se usava matemática, nos disse que uma de suas netas

teria, há muito tempo, tentado ensinar algumas coisas para ela, mas que ela não

aprendera. E, como não havia freqüentado a escola, acreditava não saber nada de

matemática. Que não teve oportunidades como essas que existem hoje para seus netos.

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Não existiam escolas nas aldeias e seus pais não se preocupavam com a escolaridade de

seus filhos. Aprender para os seus pais, significava aprender tudo com os Tupinikim

mais velhos, a partir de conversa com eles ou por simples observações de como eles

faziam algo.

Outra vez surgiu a idéia de que matemática é uma coisa que se aprende apenas na

escola. Os conhecimentos matemáticos de Santa e o uso que ela faz disso são

reconhecidos, como matemática, por pessoas que conhecem conceitos matemáticos.

Mais uma vez temos a presença da matemática, que entendemos por matemática

invisível.

Isso é mostrado pelo educador E11, que não entende como cálculo os procedimentos de

Santa. No entanto os identifica como procedimentos matemáticos, quando diz ‘Uma das

justificativas seria alguns aspectos da etnomatemática: para se fazer peneira não se faz cálculo

mas tem matemática; também a pintura corporal’.

Já na pintura corporal, os índios Tupinikim dividem uma parte de seu corpo, ou do

rosto, com uma linha central imaginária (eixo de simetria) que pode ser vertical

(normalmente), longitudinal e, a cada risco feito de um lado, se preocupam em repeti-lo,

o mais simetricamente possível, do outro. Isto é, pelo menos na imaginação, se o eixo

fosse dobrável, as figuras pintadas poderiam ser superpostas. Assim, tanto a confecção

de peneiras como a pintura corporal pode ser entendido como conhecimentos

matemáticos cotidianos.

Para Mendes (2004), o conhecimento cotidiano é implícito, intuitivo, surge

costumeiramente das necessidades suscitadas no contexto sócio-cultural e desempenha

um papel importante na organização do conhecimento escolar e do científico.

Ainda, dentro do contexto Cultura e Sociedade, para o educador E8, ‘matemática é tudo:

escola, casa, mundo.[...]’ pode ser visto segundo a visão de Gómez-Granel (1997), que

admite que o caráter cotidiano da matemática se remete, diretamente, aos seus processos

construtivos no contexto sociocultural. Isso implica dizer que esse aspecto desempenha

um papel fundamental na compreensão da realidade e na ação das pessoas em contextos

específicos de suas atividades.

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Neste contexto, embora a matemática cotidiana seja produzida e costumeiramente

consumida nos contextos socioculturais em que ela é gerada, é por meio da escola que

ocorre a sua oficialização e difusão. Entendemos que nesse sentido, a matemática

escolar deve dialogar com a matemática cotidiana, de modo compatível e explícito,

baseando-se muito mais na estratégia matemática do pensamento, isto é, naquilo que

está implícito.

A identificação da presença da matemática na cultura indígena, como nos disse o

educador E11, nos leva a refletir sobre a realização de um bom ensino de matemática,

que necessita de um conhecimento que vá além de um domínio técnico ou formal do

conteúdo matemático. É interessante que o professor conheça uma matemática

diferente, que domine aspectos que valorize costumes e práticas culturais. Isso pode

contribuir para a melhoria da transposição didática da disciplina e, nos aspectos

afetivos, pode elevar a auto-estima de seus alunos, no fortalecimento de sua identidade

Relativo ao que categorizamos como ensino-aprendizagem no Quadro 9, o educador

E15, acredita que matemática difere de cálculo, e justifica com a frase “porque a

matemática dá os conceitos básicos para se entender as matérias. Cálculo é a matéria, os

conteúdos básicos.”

A justificativa deste educador evidencia a sua vivência escolar já que suas atividades

educacionais estão vinculadas às primeiras séries do ensino fundamental. Fazendo um

recorte interpretativo de sua resposta, refletindo dentro de sua realidade, é provável que

seu entendimento sobre o que é matemática, pode estar associado aos seus momentos de

explicações em sala de aula, em consensos com seus alunos, de significados básicos

matemáticos, quanto a conceitos e definições. Ou, num outro momento, para adquirir

conhecimentos mais avançados da matemática, como aporte para conquistar

conhecimentos de outras matérias.

Assim, tomando-se o primeiro recorte, poderíamos supor que, quando esse educador

atinge esse patamar de discussão com suas crianças, como por exemplo, o que é

número, o que é ordenação, o que é um quadrado ou um retângulo, algoritmo da soma,

etc., estaria ‘fazendo’ com seus alunos, matemática. E, numa vinculação decorrente diz

que ‘[...] cálculo é matéria, os conteúdos básicos’, que poderia, talvez ser, tarefas após as

explicações, como listas de exercícios.

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Vimos que 6 dos respondentes associou suas respostas à ‘número’ : o educador E1

afirmou ‘[...] Cálculos são números’; o educador E8 disse que ‘[...] cálculos são os números

em si (matéria específica)’; o educador E4, que cálculo e matemática não são iguais

embora ‘[...] os dois envolvem números’; o educador E10 nos informou que matemática

difere de cálculo mas que ‘[...] matemática e cálculo dependem de números’ e, por último, o

educador E12, percebe uma inter-relação entre cálculo e matemática e afirmou: ‘os dois

são números, um está ligado no outro’.

Em um aspecto formal tradicional, o ensino da matemática geralmente começa com os

números naturais. No ensino tradicional se afirma que se deva ensinar os números

naturais aos poucos, um a um, ordenados. Não se pode pensar em apresentar o 4, sem

antes, ter-se falado do 3. Deve-se falar em dezena e apresentar o 10 simultaneamente.

A aprendizagem é um processo cumulativo, como somatória de doses de saber

adquirido. A forma mais eficaz de ensinar é a partir do treinamento, por meio de ações

repetitivas e da memorização das crianças. Assim, a concepção de aprendizagem é

postulada.

No ensino dos anos 70, com a reforma de ensino institucionalizada, os números naturais

são apresentados a partir da teoria dos conjuntos, o número é uma propriedade dos

conjuntos, classes de equivalência. Isto é, um conjunto de 5 flores tem a mesma

equivalência de um conjunto de 5 crianças e a correspondência de termos, um a um,

garante isso. As crianças poderiam perceber o número por meio de conjuntos de objetos

ou de imagens de objetos, a partir da propriedade numérica entre os elementos de

conjuntos – um a um. Mas como as crianças compreenderiam um número grande como

2 850 000, se nunca vimos ou contamos, 2 850 000 coisas dentro de um conjunto ou

fora dele? É confuso. Em uma interpretação Constance Kamii (1984) questiona isso.

Mas o que tem a ver os dois parágrafos acima com a resposta dos educadores? Os cinco

educadores associaram a palavra número à matemática ou a cálculo e, em conversa

posterior, durante o curso de formação, reiteraram suas respostas dizendo que

lembraram, no momento de responderem essa questão, de suas primeiras aulas de

matemática, quando ouviram pela primeira vez suas professoras afirmarem ‘hoje vamos

aprender matemática’ ou ‘hoje vamos saber o que é matemática’.

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Dois deles aprenderam os números e ‘as continhas’ a partir do modelo tradicional e três,

através da teoria dos conjuntos. Então, para entendermos melhor como a matemática foi

apresentada a esses educadores, mencionamos superficialmente, os dois modelos, na

intenção de uma interpretação mais responsável de suas respostas.

É interessante enfatizar que nenhum desses 5 educadores é responsável pela disciplina

de matemática para 5ª ou 6ª séries do ensino fundamental. Ministram outras disciplinas

como Geografia, Português, História e Tupi. Esses educadores já concluíram uma

graduação ou estão cursando e, eventualmente, trabalham com a interdisciplinaridade e

interculturalidade no cotidiano de suas práticas escolares, o que poderia contribuir para

significações mais atualizadas desses substantivos.

Entretanto, responderam essa questão, segundo eles, a partir das lembranças de seus

primeiros contatos com a matemática na escola. Assim, cálculo, matemática e número

estão ainda associados às suas primeiras perspectivas de entendimentos desses

significados, em suas formações iniciais, sendo cálculo interpretado como a

aprendizagem de suas primeiras continhas. Isso mostra a força que tem para alguns, as

primeiras oportunidades de reflexões que fazemos de alguma coisa. Isso deve ser

verdade, tanto que circula na cultura ocidental o clichê “a primeira impressão é a que

fica” de autor desconhecido.

É provável que respostas como essas estejam contribuindo para as novas alternativas de

práticas profissionais relativas aos cuidados e atualizações para a abordagem ‘do quê e

como fazer’ matemática na educação infantil e nas séries iniciais. Publicações e estudos

têm-se intensificado no meio acadêmico com essa finalidade.

Observamos também que, apesar de alguns dizerem num primeiro momento que não

sabem, se existe diferença entre cálculo e matemática, no campo da justificativa, o

educador E9 toma posição afirmativa quando diz “para mim os dois são iguais”,

embora não tenha manifestado nenhum argumento para isso. Da mesma forma o

educador E13, agora numa posição negativa, acredita que a maior ocorrência em se

fazer matemática são os cálculos quando diz “Acho que não. Para mim é a mesma coisa

pois o que mais se faz na matemática é cálculo”.

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É evidente que todas as respostas aqui comentadas estão atravessadas pelas

subjetividades. A questão proposta remete aos saberes dos respondentes sobre esses

termos e não se pode esquecer que o conhecimento é pensado como sendo da ordem das

buscas das certezas, da ordem da racionalização, da tentativa de calar o inconsciente, enquanto o

saber é entendido como o que permite colocar em questionamento as certezas dos sujeitos; o

saber é da ordem do inconsciente (Cabral, p. 125).

Questão 3 Se concordamos que a matemática é importante, tente enumerar onde a matemática pode ser usada, se nós formos construir uma casa na aldeia.

Para esta questão foram disponibilizados 4 campos de preenchimento. Um dos

educadores, no momento de responder, questionou se existia a obrigatoriedade de

alguma ordenação em sua resposta. Foi esclarecido a todos que não precisavam

responder atendendo uma ordem de prioridade. Ainda, se quisessem escrever além dos 4

itens sugeridos no documento, poderiam escrever no verso da folha. Apenas um dos

educadores não respondeu a questão.

Relação comercial

E3: Na compra do material. E4: No orçamento da obra. E7: No orçamento de material a ser usado. E8: No custo da construção. E9: Na compra do material. E12: Comprando os materiais. E17: No orçamento de materiais.

Aspectos geométricos

E1: Altura dos esteios. E2: Comprimento, largura, área; portas, janelas, ripão para a cobertura. E3: Na medida da base. E4: Na área do terreno;no tamanho da casa. E5: Dimensão da casa. E7: Na medição do tamanho que vai ser. E8: Na medição do espaço onde será construído. E9: Na hora que fazer a base. E10: Na base;local (terreno). E11: Medir a área (tamanho). E12: Fazendo a massa; medindo os comprimentos da casa; colocando o telhado. E13: Para medir a área;para medir a altura;telhado. E14: Tamanho da casa;altura da casa e área da casa. E17: Nas medidas.

Etnomatemática

E1: Cobertura de palha; masseira de barro para fazer paredes (quantas); dúzias de juçaras. E2: Espaçamento da cobertura, feixe de palha; quantidade de juçaras a ser tirada. E5: Número de telhas ou quantidade de palha proporcional ao tamanho da casa.

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E10: Quantidade de madeira, água e barro. E11: Quantidade de juçaras e quantidade de palhas.

Aspectos Sociais

E4: Na quantidade de pessoas que vai ocupar a casa. E8: Quantidade pessoas na construção. E10: Quantidade de pessoas. E11: Quantidade de pessoas a ajudar.

Quadro 11

Para moradias, nas aldeias Tupinikim, como já mencionamos neste trabalho, podemos

encontrar casas de taipa (ou estuque) com freqüência, assim como algumas casas de

alvenaria. Atualmente, no momento da construção, ainda podemos ver a opção por

ambas. Encontramos na aldeia Pau-Brasil exemplos de ambas, casas que estão em plena

construção.

Referenciarem-se às questões comerciais, mostra que estão inseridos em uma sociedade

ocidental capitalista. Isso não indica que eles mesmos não construam suas próprias

casas. Indica apenas que muitos, já não buscam nas matas, a matéria prima que

necessitam para construí-la, mas no comércio. Nas aldeias já existem muitas casas de

alvenaria, que vão substituindo as velhas casas de taipa ou estuque. Ainda que

construam atualmente casas de estuque, recorrer ao comércio pode ser uma realidade.

Os feixes de juçaras, ou quantidades de juçaras, a quantidade de palha aparece como

respostas dadas por 4 educadores, E1, E2, E5 e E11 como vimos, como algo necessário

para a construção de uma casa.

Os educadores dão relevância aos conhecimentos de aspectos matemáticos geométricos,

aos espaços, para a construção de uma casa e isto está presente em 14 das respostas,

onde mencionam a necessidade de saberem comprimento, área e volume. Em suas

respostas não mencionam como mensuram, se usam o sistema internacional de medidas,

ou se usam medidas particulares de sua cultura.

Os aspectos sociais das respostas aparecem referenciando quantidades, tanto para

moradores para a futura casa, quanto para quantidades de índios que participarão do

mutirão para a construção. Afetivamente, fica clara a evidência da cultura do fazerem

juntos, da importância da ajuda mútua em sua sociedade, uma característica cultural que

existe até hoje. A família indígena Tupinikim não delega a construção de sua casa a

outros, faz parte do grupo que a constrói. Assim, a lembrança da matemática, numa

visão social afetiva, também se mostra presente, na visão do educador E11, quando diz

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que precisam saber a ‘quantidade de pessoas a ajudar’ para construírem uma casa na

aldeia.

Questão 4 Você conhece profissões em que a matemática é realmente necessária? Se você respondeu sim, quais são?

Todos os 17 educadores responderam afirmativamente a questão. Como na questão

anterior, foram sugeridos 4 campos para cada educador preencher, isto é, cada educador

poderia eleger 4 profissões distintas, o que nos daria 68 respostas no total, mas nem

todos os educadores preencheram todos os campos, originando 64 respostas como

mostra a tabela.

Profissões Quantidade Administrador 5 Advogado 1 Arquiteto 2 Bancário 1 Bibliotecário 1 Carpinteiro 1 Comerciante 3 Contador 8 Costureira 1 Dona-de-casa 2 Economista 2 Engenheiro 14 Físico 2 Geógrafo 1 Instrumentista de automação 1 Matemático 1 Mecânico 1 Médico 1 Oceanógrafo 1 Pedagogo 1 Pedreiro 3 Professor (licenciaturas) 6 Professor de Matemática 4 Químico 1

Quadro 12

Segundo a história indígena Tupinikim, a subsistência desse povo se dava,

originariamente, pela caça, pesca e agricultura rudimentar – como as roças de milho.

Durante o século XVI, com a vinda e convivência com os portugueses para o Brasil, os

índios Tupinikim se engajaram no aprimoramento da agricultura. Assim, caçar, pescar e

plantar são práticas de ‘fazeres’ que contam a sua história.

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Muitas pessoas no Brasil, a maioria, fazem de suas práticas de formação cotidiana sua

profissão. Algumas dessas profissões foram lembradas pelos educadores indígenas,

onde a matemática aparece, como costureira, mecânico, pedreiro, comerciante, dona-de-

casa e carpinteiro.

Concordamos com as respostas dos educadores. Em todas as profissões, por eles

apontadas, a matemática está presente, com diferentes intensidades e especificidades de

conteúdos. Entretanto, das 24 respostas distintas que apontaram, 16 delas, são

decorrentes de formação acadêmica universitária, o que mostra que esses educadores

responderam baseados na cultura dominante, resultados de conhecimentos que foram

adquiridos pelo contato com outras culturas não-indígenas ao longo se sua história.

A ausência das respostas como pescador, caçador ou agricultor, onde a matemática

também está presente, pode ser justificada porque caçar, pescar ou plantar são ações

vistas como ‘costumes’ de sua cultura de subsistência até hoje, e não como profissão.

Também está ausente a figura do artesão como profissional, apesar de ser uma das

vertentes de ganhos financeiros do povo Tupinikim no momento atual.

Questão 5 A matemática é importante porque toda criança deve saber sua idade, o número de sua casa e do telefone. Você concorda com essa afirmação? Justifique sua resposta.

Assim como em questões anteriores, os educadores puderam escolher inicialmente entre

Sim e Não. Dos 17 educadores, 6 concordaram com a afirmação e 9 discordaram.

Apesar de a questão não oferecer outra possibilidade além do Sim e Não, 2 dos

educadores responderam Não Sei.

Abaixo, o quadro das justificativas.

Respostas dos que não sabem, centrada

Na criança E6: Não é bem assim, pois deve saber isso para não se perderem, e para saber coisas ‘do mundo’ que as rodeiam.

Na matemática E12: Talvez porque a matemática não seja importante só por isso

Respostas afirmativas, centradas:

Na criança

E3: Porque através deste conhecimento, a criança não fica perdida. E10: A matemática é tida como disciplina complicada, por isso a criança pode começar a gostar desde pequeno para acostumar-se com números. E16: Todos devem saber coisas do dia-a-dia. Mesmo sabendo matemática

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ou não.

Na matemática

E5: Inicialmente, o dizer desta questão se refere ao conhecimento básico para todos. Mas é importante ir mais além, para a nossa própria evolução.

E13: Não só isso, mas muitos outros exemplos como fazer uma compra, pagar uma passagem, receber e conferir algum troco.

E15: Concordo porque a matemática está relacionada ao meio de sobrevivência.

Respostas negativas, centradas:

Na criança

E1: É importante que a criança saiba as 4 operações e desenvolva isso no seu dia-a-dia. E7: Não é isso que ela tem que saber e sim que a matemática está presente em tudo e em todos os lugares. E8: Não, pois a criança está inserida no mundo de letras e números. Ela não precisa saber apenas isso, o número da casa, telefone, etc. para que a matemática seja importante para ela. Isso não basta. A matemática tem que dar suporte para que a criança venha a vencer desafios com a mesma. E14: Porque não é isto que a criança deve saber, há vários conteúdos que ela deve saber. E17: Porque saber o número, qualquer pessoa sabe (conhece). A criança deve saber calcular. Esse tipo de número as pessoas decoram como uma palavra, ela olha e sabe o que é

Na matemática

E2: Não, porque nem todos têm acesso ao luxo de ter um telefone em casa. A matemática é mais importante que isso. E4: Porque a matemática está no nosso dia-a-dia. E9: A matemática não é só isso, é expressamente necessária para tudo. E11: A vida dos alunos (criança) não se baseia só na idade, em número de casa e telefone, até porque na aldeia estes dois últimos pontos não são presentes. Existe outras coisas importantes na matemática sem ser esses itens citados no questionamento

Quadro 13

Inicialmente vamos fazer aqui uma reflexão que justifica a importância da matemática

na questão proposta, por meio de um único exemplo, na identificação de alguns

números de alguns aspectos do cotidiano para a criança.

Nesse sentido, podemos observar que relativo ao conhecimento, é interessante

lembrarmos que os números podem aparecer em diversos contextos didáticos: como

memória de quantidade, memória de posição, códigos, para expressar grandezas ou

ainda, para prever resultados. A questão nos contempla com alguns desses aspectos,

como para expressar grandeza, a idade. E, na condição de códigos, o número da casa e

do telefone.

Reflexões feitas sobre esses aspectos, dentro de um contexto cultural em que vivem os

Tupinikim, são encontradas na resposta do educador E11, dizendo que ‘A vida dos alunos

(criança) não se baseia só na idade, em número de casa e telefone, até porque na aldeia estes

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dois últimos pontos não são presentes. Existem outras coisas importantes na matemática sem

ser esses itens citados no questionamento’. Uma outra resposta que dá relevância à

matemática, que se encaixaria diante da mesma realidade em que vivem, é a do

educador E2, afirma que ‘[...] nem todos têm acesso ao luxo de ter um telefone em casa. A

matemática é mais importante que isso’.

O educador E17, numa reflexão didática da matemática, explica que ‘[...] saber o

número, qualquer pessoa sabe (conhece). A criança deve saber calcular. Esse tipo de número

as pessoas decoram como uma palavra, ela olha e sabe o que é ‘, embora a idade seja uma

grandeza, como já vimos.

Relativo às respostas para essa questão como um todo, tínhamos expectativas de que

todos os educadores justificassem, no sentido de afirmarem a importância da

matemática, indo para além da informação dada na questão.

Para entender melhor nossas expectativas, observemos o enunciado da questão 3

anterior, deste mesmo instrumento, que diz: ‘Se concordamos que a matemática é

importante, tente enumerar onde a matemática pode ser usada se nós formos construir

uma casa na aldeia’. Neste momento, todos os educadores preencheram os campos de

respostas, o que significa que concordaram que realmente a matemática é importante.

Nossas expectativas eram de que todas as respostas deveriam centrar-se na justificativa

de explicarem a importância da matemática. De qualquer forma, as contribuições das

respostas foram interessantes. Atendendo nossas expectativas, vimos que

aproximadamente 6 dos educadores concordam plenamente com a afirmação de que a

matemática é importante. Assim, vão além dela, como no exemplo dos educadores: E5:

‘Inicialmente, o dizer desta questão se refere ao conhecimento básico para todos. Mas é

importante ir mais além, para a nossa própria evolução’; E13: ‘Não só isso, mas muitos outros

exemplos como fazer uma compra, pagar uma passagem, receber e conferir algum troco’ e

E15: ‘[...] porque a matemática está relacionada ao meio de sobrevivência’.

Duas das respostas podem ser vistas pelo aspecto social. O educador E3 volta sua

resposta para a criança, afirmando que ‘através deste conhecimento a criança não fica

perdida’. E o educador E10 diz que ‘a criança pode começar a gostar desde pequena para

acostumar-se com números’.. Aqui podemos constatar a presença da afetividade, pois

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ambos sugerem o conforto que alguns conhecimentos da matemática podem surtir na

vida das crianças.

Questão 6 Se uma expressão só pode ser verdadeira ou falsa, isso tem alguma coisa a ver com o pensamento lógico-matemático? Como você justifica isso?

Inicialmente, a questão propõe campos para assinalar, Sim e Não. Dois educadores não

preencheram esse campo. Isso justifica, como mostra o quadro abaixo, o campo dos que

‘não concordam nem discordam’. A indecisão está caracterizada em ambas as respostas.

Assim, dos 17 educadores, apenas 1 deu resposta negativa, 1 deixou a questão em

branco e 13 deles concordaram plenamente com o que a questão propõe. Vamos ao

quadro das justificativas.

Resposta Negativa:

E5: Para definir se uma expressão é falsa ou verdadeira dependerá de uma interpretação, no que se refere a comparação de palavra, conjunções. Às vezes, algumas conjunções dão idéia de matemática

Resposta Positiva:

E1: Matemática é uma ciência exata. E3: Ela é exata. E4: Se pensarmos numa expressão numérica e os números forem positivos, isso significa que é verdadeiro. E6: Sem justificativa é lógico. Ou melhor, ela é exata. E8: Se há expressão, se há algum resultado ali, tens o pensamento lógico-matemático. E9: A matemática é exata. E10: Porque ambos possuem uma justificativa lógica. Caso contrário, a resolução fica inválida. E11: Porque toda ou qualquer situação que se usa a razão, necessita-se de raciocínio lógico, ou é ou não é. E12: Se uma expressão é verdadeira ou falsa, significa que seu resultado é exato. Então é lógico-matemático. E13: Pois os cálculos são exatos. Não existe meio termo. E14: Porque só teria a opção lógica. E16: matemática é uma ciência exata. E17: Porque na matemática, ou é, ou não é. Em uma situação sempre uso a razão

Respostas dos que não concordam nem discordam

E2: Nem sempre, na maioria das vezes os alunos não querem pensar e isso faz com que eles chutem a resposta. E7: Depende da atividade

Quadro 14

Nossa expectativa era de que os educadores explicassem se o fato de uma expressão ser

verdadeira ou falsa tem a ver com o pensamento lógico-matemático. Observamos que

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nenhuma das respostas correspondeu às nossas expectativas. A interpretação do

enunciado da questão feita pelos educadores foi peculiar, concentrando-se no termo

expressão.

Primeiramente vamos averiguar como os educadores entenderam o termo ‘expressão’.

Parece-nos claro que o educador E5 interpretou como sendo alguma manifestação do

pensamento escrito ou falado na linguagem materna pois justifica sua resposta por meio

da linguagem usual quando diz ‘Para definir se uma expressão é falsa ou verdadeira

dependerá de uma interpretação, no que se refere a comparação de palavra, conjunções. Às

vezes, algumas conjunções dão idéia de matemática’. De todos, como podemos ver, foi o

único que interpretou dessa forma, mas não nos dá pistas sobre o fato de que essa

interpretação tem a ver ou não com o raciocínio lógico-matemático.

Os demais interpretaram o termo expressão como expressão matemática. As

manifestações espontâneas dos educadores, durante o preenchimento da justificativa

dessa questão nos levam a essa conjetura. Durante o preenchimento da questão, alguns

educadores manifestaram lembranças de sua memória, principalmente de conteúdos de

4ª ou 5ª série. Assim, ao responderem essa questão alguns deles, em voz alta, diziam

coisas do tipo: ‘eu somava primeiro porque foi essa conta que aprendi primeiro. Como foi isso

que aprendi primeiro, entendia que sempre tinha que começar somando tudo. Não conseguia

calcular o valor de uma expressão. Tive a maior dificuldade. Não suportava a 4ª e 5ª série por

causa disso’. E, como reposta ao colega, ouvimos ‘eu adorava calcular o valor de uma

expressão. Parecia um joguinho. Eu era uma das poucas em minha sala que resolvia tudo.

Resolvia antes dos outros e, na maioria das vezes, acertava. Eu gostava da 4ª e 5ª séries por

causa disso’. Então, é provável que essas falas tenham ajudado na convergência para a

mesma lembrança de outros que estivessem respondendo a questão. Essa afirmação se

confirmou por alguns comentários que foram feitos na hora em que entregaram o

instrumento preenchido. Um dos educadores chegou a dizer ‘até hoje tenho dificuldades

em calcular o valor de uma expressão’.

Nesse sentido, segundo dicionário de Imenes & Lellis (2004), temos que:

Expressão algébrica: seqüência de operações indicadas mas não efetuadas, envolvendo variáveis e números. As variáveis são representadas por letras. As expressões algébricas e as expressões numéricas são muito parecidas, com a diferença de que, nas primeiras, alguns números são representados por letras (p. 124).

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Expressão numérica: Seqüência de operações numéricas indicadas mas não efetuadas. Para obter-se o valor de uma expressão numérica, efetua-se os cálculos nesta ordem: 1°) potências; 2°) multiplicações ou divisões; 3°) adições ou subtrações. Nas expressões , podem ser usados alguns sinais que interferem na ordem dos cálculos: parênteses ( ), colchetes [ ] e chaves { }. Primeiro são feitos os cálculos entre os parênteses, depois entre os colchetes, depois entre chaves e, por fim, os demais (p.125).

Assim podemos entender quando os nove educadores dizem que ‘a matemática é exata’

ou como diz o educador E13, ‘[...] os cálculos são exatos. Não existe meio termo’. São

respostas que estão vinculadas à resolução de expressões numéricas e isso está presente

na fala do educador E2, que diz ‘[...] na maioria das vezes os alunos não querem pensar e

isso faz com que eles chutem a resposta’. Isso nos leva a concluir que, mais uma vez, a

matemática é interpretada como algo que se aprende na escola.

Ainda, num outro viés interpretativo, pode ser que eles associem a matemática à lógica,

ou que as duas sejam o mesmo para eles, que estejam pensando apenas na lógica

matemática.

Questão 7 Posicione-se em relação a seguinte afirmação: Se a gasolina acaba, o automóvel pára. A gasolina não acabou. Conclui-se que o automóvel não parou. Justifique sua resposta.

Dois dos 17 educadores não responderam essa questão, o E4 e E16. Por isso a ausência

de suas respostas na tabela a seguir.

Concordam

E10: Porque o carro precisa de um motorista e o mesmo precisa do carro. Ambos caminham juntos, assim é a matemática. E12: O carro só irá parar se acontecer outras coisas. Agora se formos olhar só para a frase a afirmação é verdadeira

Discordam

E1: O carro pode parar sem que a gasolina acabe. E2: O automóvel pode ter parado por motivo de falha mecânica ou chegado ao seu destino. E3: Porque mesmo tendo gasolina ele vai ter que parar, pois não vai continuar, andando a vida toda. E5: Mesmo a gasolina não acabando, não justifica que o carro não vai parar, poderá haver outros problemas para seu deslocamento. E8: Eu posso parar o automóvel na hora que eu quiser, se ele para isso não quer dizer que a gasolina acabou. E9: O automóvel vai parar quando alguém desligá-lo ou ele chegar no destino dele. E11: Porque se tiver a gasolina no carro você pode parar o carro no momento em que quiser, basta desligá-lo. E13: Pode parar por outros motivos, batidas, problemas elétricos, etc. E14: Porque pode ser que aconteceu algum problema com o carro.

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E15: Apesar de ambos depender um do outro o que vale é a situação que possa ocorrer. E17: Não porque eu tenho a chave e posso parar o carro a qualquer momento.

Não concordam e nem discordam

E6: Não sei, porque se a gasolina acaba ele para, mas se não acaba pode estar desligado ou outros problemas. E7: 1. Concordo se ele for somente a gasolina, mas discordo se ele estiver em uma ladeira. 2. Concordo que isso acontece se o motorista não tiver chegado no seu destino

Quadro 15

Essa questão oportunizou aos educadores a raciocinarem logicamente sobre o que diz no

seu enunciado. Assim, as interpretações foram bem pessoais convergindo para tornar o

enunciado verdadeiro para cada educador, como podemos ver em todas as respostas.

Isso nos mostra que, apesar de fazerem uso do raciocínio lógico-matemático para

responderem essa questão, não o identificam como raciocínio lógico-matemático. Caso

essa identificação fosse clara para eles, entendemos que poderiam ter respondido a

questão anterior, a questão 6, de outra forma. Assim, outra vez, temos a presença da

matemática invisível já que o raciocínio lógico-matemático é vivenciado mas não

identificado como tal.

Questão 8 Quantos litros dá 14kg de mandioca e 15 litros de água?

Três dos 17 educadores, E6, E15 e E16, não responderam à questão. Houve respostas

semelhantes e todos optaram por não poderem misturar os dois elementos do enunciado,

como mostrado no quadro a seguir.

Medidas Diferentes E1: Nenhum Kg (massa) / L (Líquido). E2, E4 e E5: São unidades de medidas diferentes. E7 e E12: 14 Kg de mandioca e 15 litros de água.

Resposta em litros E3, E10,E11 e E17: 15 litros E8 e E9: 15 litros de água.

Não sabem E13: Sabe que não sei? E14: não sei.

Quadro 16

Relacionando as medidas de capacidade, temos que 1 litro de água destilada a 4°C, ao

nível do mar, tem 1 quilograma. Grosso modo, munidos de uma balança, podemos

verificar que 6 quilos de farinha de mandioca corresponderiam à capacidade de 10 litros

de água da torneira, o que significaria dizer que 14kg de farinha corresponderiam a 23,

33 litros.

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Mas, segundo o dono do Quitungo (casa de farinha de mandioca), o Tupinikim

Dovegílio Alexandre, da aldeia Pau-Brasil, a farinha de mandioca na aldeia é medida

em quartas. Explica que uma quarta corresponde a 10 litros de farinha e que oito

quartas, 80 litros, tem a massa aproximada de 50kg (segundo nossas observações,

seriam 48kg).

Nesse sentido, respeitando as informações do dono do quitungo, numa relação

proporcional, poderemos inferir: Se 50 kg de farinha correspondem à capacidade de 80

litros, então 14kg de farinha corresponderiam a [(80 x 14)/ 50] litros. Isto é, 14 kg de

farinha corresponderiam a 22,4 litros. Somando os 22,4 litros de farinha aos 15 litros de

água do enunciado, teríamos a resposta de 37,4 litros no total.

Num encontro com os educadores, durante o curso de formação, semanas depois que

esse instrumento foi aplicado, fizemos comentários a respeito das unidades de medidas

usadas na aldeia, na sua cultura. Constatamos que todos os educadores conheciam a

relação de que 50 kg correspondiam à capacidade de 80 litros, como havia nos

informado o dono do quitungo.

Então por que nenhum deles apresentou essa relação em suas respostas, já que em seu

cotidiano vivenciam tal situação? Será que para eles a matemática da escola não se

aproxima da matemática de seu cotidiano? As respostas desses educadores nos dão

pistas para contribuições futuras, que deverão constar em conteúdos a serem trabalhados

com eles, em cursos de formação continuada.

Evidentemente que, para que isso fosse posto, os educadores teriam que relacionar a

mandioca do enunciado à farinha de mandioca, para depois fazerem as contas. É

provável que o resultado por meio de contas não tenha aparecido nas respostas porque

nenhum deles pensou na mandioca na condição de farinha. Se eles associaram a

mandioca do enunciado à condição de raiz, acreditamos que fazer essa conta seria

impossível para eles em tal conjuntura.

Questão 9

Você percebe alguma diferença entre as expressões a e b?

a) Meu pai tem o mesmo nariz que eu.

b) Meu pai tem o nariz igual ao meu.

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A noção de igualdade tem alguma coisa a ver com a matemática?

Justifique sua resposta.

Num primeiro momento, os educadores puderam escolher entre Sim e Não após a leitura

dos itens a e b. Em um outro momento, à segunda pergunta da questão, os educadores

apresentaram suas justificativas, como mostra no quadro que está classificado a partir de

suas primeiras respostas.

Responderam

afirmativamente

E1: Podemos representar diferentes situações com o mesmo resultado. E2: Quando há conjuntos iguais, ou números, significa que são paralelos e não há nada maior ou menor que dão idéia de antecessor e sucessor. E3: Sim, tanto como igualdade (=) ou como diferença (≠). E5: a) Ter o mesmo nariz significa igualdade. b) No que se refere ao mesmo tamanho, quantidade de certos objetos, a igualdade tem a ver com a matemática sim. E6: Porque os termos podem tanto serem usados na matemática como no português, com definições diferentes. E7: É relativo ao tamanho e as formas. E8: São expressões diferentes. E9: a) Quer dizer que os dois têm 1 nariz só. b) Que os dois tem o nariz parecido. E10: Porque na matemática, números geram números, pode haver números iguais, com funções iguais. E11: a) Nós temos um único nariz. b) Eu observo pelo lado na simetria. E12: Um diz que é semelhante outro diz que é igual, isso tem muito a ver com a matemática, pois há sempre questões onde elas dão resultados exatos e outros aproximados. E13: Já queimei o tico e teco e não consegui responder, deixa pra próxima. E15: Não sei como explicar, mas com relação a diferença entre as expressões, é que acontece com a resolução de um cálculo, chegando ao resultado, de alguma situação. E16: Sim. A expressão da igualdade. E17: a) Quer dizer que é um só nariz. b) Como se fosse um lado da simetria.

Respondeu negativamente

E14: Porque acho que o termo mesmo é igual, são as mesmas coisas.

Indecisos E4: Só na b) sim, o filho faz uma comparação do nariz do pai aplicando isso na matemática, os narizes são = (iguais).

Quadro 17

Considerando o desenvolvimento da matemática como um fato social, segundo Rosa

Neto (1998), durante todo o Paleolítico Inferior, que durou cerca de dois milhões de

anos, o homem viveu da caça e da coleta, competindo com os outros animais, utilizando

paus, pedras e, posteriormente, o fogo.

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Isto é, o homem era predador nômade, vivendo na dependência do que pudesse retirar

da natureza. Acreditamos que para isso ele necessitava apenas das noções de mais-

menos, maior-menor e de algumas formas de simetria no lascamento de pedras e na

confecção de porretes. A matemática vivenciada e necessária era adjetiva, já que era

uma matemática que dava qualidades aos objetos. O autor completa:

Se uma pedra cortava bem, então os homens lascavam outras tentando imitar àquela, pois adquirindo a mesma forma, teria a mesma função (é o surgimento da simpatia e da noção de igualdade). Os artefatos recebiam formas e ficavam retos-curvos, certos-tortos, simétricos, com interior. O homem produzia seus instrumentos antevendo seu uso, o que envolvia previsão: a pequena/grande diferença (Rosa Neto, 1998, p. 8).

O autor salienta que a matemática do homem do Paleolítico Inferior era produzida por

esquemas mentais, que possibilitava esse homem a alternar tamanhos, aumentar ou

diminuir quantidades e dar forma a paus e pedras que fossem de sua utilidade. É

provável que pudesse fazer alguma classificação e seriar atividades.

Em concordância com o autor, concluímos que a noção de igualdade foi uma das

primeiras manifestações da matemática na vida do homem, segundo sua necessidade de

sobrevivência. Se precisasse, sabia relacionar duas coisas entre si buscando uma

identidade entre elas, um máximo de semelhança, conformidade, paridade.

Numa linha temporal, muito mais tarde, com o advento do desenvolvimento de uma

matemática formal, Robert Record, matemático inglês, é apontado como o primeiro na

história da matemática a usar o sinal = (igual) para indicar igualdade em uma sentença

matemática, como mostrado em seu livro publicado em 1557 The Whetstone of Witte.

(<www.somatemtica.com.br>, ago. de 2006).

O conceito de igualdade pode ter interpretações peculiares. Ilustremos isso com a

seguinte reflexão, relativo a números significativos, por exemplo, o 2. Partimos aqui do

pressuposto que a criança durante esse processo esteja construindo a conservação de

número, no estágio pré-operatório.

Não é difícil encontrarmos informações por parte de educadores, que explicam o

significado do dois a partir de um entendimento que seus alunos, do que possivelmente

já saibam, por ter ouvido falar ou mesmo por já terem construído a partir de seu

cotidiano. Assim, alguns educadores usam algumas informações de significado ‘igual’ a

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dois. Como idéia de casal: a lembrança de casal, poderia ser interpretado como

qualidade (casal de pais das crianças), como quantidade (um pai e uma mãe). Do mesmo

modo, a idéia de par, como de sapatos, que também contém abstrações, como qualidade

(objetos), uma quantidade (dois objetos) e uma relação (semelhança). As noções de par,

casal, dupla, etc. poderia levar aos alunos à abstração do 2. Assim contextualizando,

querendo construir a noção de ‘igual a dois’ os educadores normalmente, tomam

também a idéia de par de partes do corpo humano, como dois olhos, duas orelhas, duas

pernas. Nesse sentido, paralelamente, os educadores contribuem para a construção da

noção do conceito de simetria, quando falam braços iguais, pernas iguais, olhos e

orelhas iguais.

Isso posto, vamos às respostas dos educadores. O educador E6 responde

afirmativamente, explicando que podemos usar o termo ‘igual’ ou ‘o mesmo’ tanto na

linguagem usual materna assim como na linguagem matemática, entretanto considera

que esses termos pode não ter o mesmo sentido para ambas e esclarece ‘Porque os termos

podem tanto serem usados na matemática como no português, com definições diferentes’.

Observemos que alguns educadores, cujas respostas foram afirmativas tiveram a

lembrança de palavras que ajudassem, na sua concepção, a explicarem a igualdade.

Assim surgiram as palavras que levam à idéia de quantificação ou medidas, como

justificou E5, ‘No que se refere ao mesmo tamanho, quantidade de certos objetos, a igualdade

tem a ver com a matemática sim’; E7 nos diz que a igualdade da matemática ‘É relativo ao

tamanho e as formas’. É provável que tenham lembrado destas palavras porque as

sentenças, a e b, fala de um único nariz. A palavra ‘nariz’ pode ter levado os educadores

a lembraram de tamanho e forma de nariz.

Associadas à idéia de igualdade, outros termos ou palavras surgiram como conjuntos

iguais, paralelos, único, semelhança e simetria. Nesse sentido, algumas respostas

peculiares fogem ao nosso entendimento como a do educador E2 que diz ‘Quando há

conjuntos iguais, ou números, significa que são paralelos e não há nada maior ou menor que

dão idéia de antecessor e sucessor’ e do educador E10 ‘Porque na matemática, números

geram números, pode haver números iguais, com funções iguais’.

Outros foram mais pontuais em suas respostas a partir dos itens propostos, segundo sua

concepção de igualdade, como a do educador E9 que nos diz ‘a) Quer dizer que os dois

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têm 1 nariz só e b) Que os dois têm o nariz parecido’. Entendemos que quando o educador

E9, para ‘o mesmo’ dá a interpretação de um único e quando se reporta à expressão

‘nariz igual ao meu’ percebe alguma semelhança, que o ‘igual’ aqui não é preciso, exato

como na matemática e usa o termo ‘parecido’. O mesmo ocorreu com os educadores:

E11, que diz ‘a) Nós temos um único nariz. b) Eu observo pelo lado na simetria’; E12

salienta que ‘Um diz que é semelhante outro diz que é igual, isso tem muito a ver com a

matemática, pois há sempre questões onde elas dão resultados exatos e outros aproximado’ e,

finalmente E17 justifica ‘a) Quer dizer que é um só nariz b) Como se fosse um lado da

simetria’. Talvez o educador tenha imaginado um pai ao lado de seu filho com um eixo

imaginário vertical entre os dois. Assim, a partir da simetria, poderia fazer tal

observação, do fato dos ‘narizes serem iguais’.

Entendemos que é bem provável que todos os educadores tenham consciência do

significado de igualdade embora nos pareça que muitos não tenham clareza em como

manifestarem este entendimento por meio da escrita. Isso foi observado por um dos

educadores no momento de entrega do instrumento que nos disse, enquanto colocava

preenchido sobre a mesa: ‘Que piada! Quem não sabe o que é igualdade? Todos sabemos!

Jamais pensei que fosse difícil escrever sobre o uso da igualdade no português, que para mim,

é a mesma igualdade da matemática. Mas como explicar isso?’. Essa dificuldade reiterada

foi registrada pelo educador E13 que afirma ‘Já ‘queimei o tico e teco' e não consegui

responder, deixa pra próxima’.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabemos que a matemática teve origem na necessidade de contar e medir, como

instrumento da ciência na investigação da natureza, do fenômeno físico, social e

econômico, ou ainda do mundo do trabalho e da vida real.

De uma pedagogia conservadora, limitada à exposição e recitação do professor, e a

passiva assistência e audição dos alunos, testemunhamos atualmente, esforços para o

florescer de uma outra pedagogia, que contempla atividades escolares, que prima pela

busca de saberes teóricos e práticos contextualizados, que propõe retirar o professor do

centro do processo didático e, no seu lugar, entrar com a ciência do instrumento, da

técnica, dos recursos didáticos, neles objetivando o conhecimento de todos, de

professores e de alunos.

Neste contexto, o aluno não tem mais a aula expositiva, modo de ensino primordial da

pedagogia tradicional, deixando a postura de assistente-ouvinte e assumindo o papel de

leitor e usuário de um material preparado pelo professor, onde o saber global tem seu

espaço, assim como o saber específico cultural é relevado.

Essa visão pedagógica, nas escolas indígenas de Aracruz, é proveniente de resultados

positivos dos Cursos de Formação Continuada para os Educadores Indígenas de

Aracruz, cujos formadores são professores de cursos de mestrado ou doutorado em

educação da UFES, ou alunos de mestrado ou doutorado, sob orientação desses

profissionais.

Apesar dos avanços conquistados nesses cursos de formação, desejávamos contribuir

para que esse ensino vislumbrasse uma ainda melhor qualificação dos educadores de

matemática. Assim, nesse trabalho, demos ênfase às concepções, crenças e atitudes

desses educadores frente à matemática, porque entendemos que é indispensável

conhecermos o nível de reflexão e dos processos de pensamento desses educadores.

Essas descobertas podem propiciar especial relevância para o desenvolvimento

profissional desses educadores, pois são esses fenômenos educativos, que podem ser os

que determinam os procedimentos metodológicos, o valor dos procedimentos

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(confiabilidade, validez) que se estabelece por referência ao estudo e a compreensão,

segundo Ponte (1992).

Nesse sentido, ficamos responsáveis por um curso de formação em matemática para

todos os educadores indígenas de Aracruz. O objetivo desse curso de formação foi de

discutir os conceitos de interculturalidade e de interdisciplinaridade paralelamente à

proposta de construção de recursos didáticos matemáticos, permeando essas

subjetividades.

Assim, nos oportunizamos em verificar as concepções, crenças e atitudes frente à

matemática de todos os educadores, embora nossos sujeitos de pesquisa fossem os dois

únicos educadores de matemática dessas escolas indígenas, ambos de etnia Tupinikim,

que lecionam matemática nas 5ª e 6ª séries do ensino fundamental. Entendíamos que

seria interessante, inicialmente, que todos se manifestassem, assim como os dois

educadores de matemática, pois a elaboração dos recursos didáticos seria uma proposta

a ser vivenciada em grupo, e os demais educadores faziam parte desse contexto no

início de nossos trabalhos. Além disso, como vivem propostas interdisciplinares em

suas escolas seria interessante que todos pudessem dar sua contribuição para

oportunizarem-se de refletir sobre suas respostas.

Ao colhermos suas respostas, vimos que muitos deles, inicialmente, embarcaram nos

jargões consagrados, que a matemática é importante, pois: “desenvolve o raciocínio”,

“seu uso é importante no nosso dia-a-dia”, “serve para tudo”, “faz parte da nossa

cultura”, “desenvolve a criatividade”. Entretanto, ao longo do curso de formação

reconheciam a necessidade de ampliarem discussões, principalmente quando estavam

elaborando os recursos didáticos, sobre as razões de se saber matemática, de se ensinar

matemática na escola, com extensão universal, sem perder de vista sua especificidade

cultural.

Assim, à medida que esses educadores foram elaborando os recursos didáticos

tornavam-se visíveis suas concepções, crenças e atitudes frente à matemática, pois

alguns desses recursos apresentavam situações instigantes e desafiadoras, no que se

referiam à sua dinâmica metodológica, que envolvia, para alguns, novos conceitos,

procedimentos e diferentes representações matemáticas das que conheciam. Exemplo

disso foi durante o estudo e construção do Tangram, assim como de suas variações, que

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um dos grupos de educadores tinha intuito de que fosse usado nas salas de aula de 5ª

séries, para propiciar aos alunos reflexões sobre o conceito de fração e operações

fundamentais de fração.

Nesse sentido, desde as escolhas dos recursos didáticos que foram construídos, os

educadores interagiram entre si, em uma perspectiva de atividade exploratória-

investigativa, para perceberem o quê àquele material poderia oferecer para atender ao

máximo suas expectativas com seus alunos. No ‘dar conta do material’ alguns deles,

segundo nossas observações, romperam com algumas concepções de matemática, que

tinham como padronizados - ficou mais claro no tema de frações.

Assim, alguns, agora com atitudes positivas diante da matemática, se permitiram

aprender, explorar e ampliar a sua capacidade de compreensão e reflexão sobre a

matemática, para que os recursos didáticos pudessem se tornar objetos de ensino de

relevância.

É interessante enfatizarmos que não devemos confundir as atitudes dos professores em

relação à matemática com suas concepções em relação a ela, aos seus tópicos ou seu

ensino-aprendizagem. Reiteramos que as atitudes estão no universo do que o educador

sente a respeito da matemática, como ele reage a ela, enquanto as concepções são o que

o educador pensa sobre a matemática, seu valor, sua utilidade, sua estrutura e seu

ensino. Como vimos no nosso referencial teórico, as atitudes normalmente, estão

enraizadas em nossas experiências como alunos, particularmente nos primeiros anos de

escolaridade, que por vezes se salientam afetivamente, como positivas ou negativas,

alicerçadas em fatores externos, por vezes estabelecendo crenças sobre a matemática. Já

as concepções têm uma natureza essencialmente cognitiva, portanto associada ao

pensar, que atuam como filtro, dando sentido às coisas ou atuando como um elemento

bloqueador para novas situações, segundo Ponte (1992).

Focando os dois educadores de matemática, nossos sujeitos de pesquisa, pensam a

matemática como um processo, como ciência muito antiga, não acabada. Entretanto,

enquanto um dos educadores tem uma visão externa, a matemática no âmago da

aplicabilidade, na sua cultura e na interculturalidade, já incorporada nas comunidades

ou nos currículos, o outro defende a relação ensino-aprendizagem numa visão interna,

reiterando que seria interessante preparar os alunos desde as séries iniciais, para além da

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aplicabilidade da matemática. O segundo tem expectativas de ajudar a produzir futuros

matemáticos, em colaborar para a ampliação da matemática pela matemática, pois

segundo ele, os países emergentes têm carência desse tipo de profissional e concebe

que, o saber matemático, promove posições econômicas de poder.

Ambos se disseram angustiados por não terem graduação em Licenciatura de

Matemática, que almejam um dia cursar. Acreditam que, se fizessem esse tipo de curso

poderiam definir alguns modelos matemáticos mais sofisticados, para algumas

construções de seus artefatos, que são construídos a partir de uma matemática empírica.

Entretanto, alguns recursos didáticos, que já tinham produzido ou esses que produziram

durante esse curso de formação, contemplam sua cultura, seus costumes, como o que

citamos referentes às suas medidas e quantidades - medida de linha pita para fazer rede

de pesca, feixes de juçaras, palhas de nayhá – o que mostra uma preocupação em

atribuir valor científico à cultura de seus ancestrais, às aulas de matemática. Ao mesmo

tempo, atribuem esforços para que a matemática contemple suas problemáticas - que

nos PCN se aproximam desse foco, sob o título de Temas Transversais.

São nessas problemáticas, intrínsecas ao seu currículo, como as inter-relações culturais

com os Guarani, a luta pela terra, biodiversidade, por exemplo, que os dois educadores

dão margem para alargarem a matemática ao contexto dessas atividades

interdisciplinares e interculturais, quando ampliam maiores esforços para seus saberes e

fazeres na matemática, junto aos seus colegas, educadores de outras disciplinas, e de

seus alunos, na produção de recursos didáticos. Logo, a elaboração de recursos didáticos

de matemática oportuniza caminhos que interligam os estudos das problemáticas,

presentes no currículo indígena. Todos os recursos didáticos produzidos pelos

educadores, neste curso de formação que vivenciamos, são exemplos disso. Citemos os

recursos didáticos referentes às suas questões ambientais, à sua biodiversidade, quando

propuseram reflexões matemáticas para solução de áreas dos canteiros de seu viveiro de

plantas, assim como de seu custo, como descrevemos no corpo desse trabalho.

No que tange à formação inicial dos dois educadores, vimos por meio de seus

depoimentos que, quando estão diante de desafios matemáticos têm tendências de

resolverem, em um primeiro momento, tal como aprenderam outrora, isto é, os

conhecimentos lembrados que poderiam ser usados na solução do desafio, são aqueles

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de sua formação inicial. Em seguida, lembram das informações, discussões e

(re)significações vivenciadas durante os cursos formação, o que lhes possibilita ‘abrir a

mente’ diante do que lhes é proposto.

Segundo eles, elaborarem recursos didáticos, entender esses recursos para o

compromisso de ensinarem matemática, é o que mais possibilita fazerem relações,

compararem seus entendimentos atuais com o que já sabiam de matemática, advindos

da sua formação inicial. Disseram que construir os recursos didáticos possibilita a

(re)aprenderem, reverem suas concepções, crenças e suas atitudes diante da matemática.

A cada curso de formação os dois educadores se surpreendem com as complexidades da

matemática e, por isso, se dedicam ao planejamento de suas aulas com seriedade,

conversando entre si, sempre que têm oportunidades, a respeito de seus saberes e

fazeres em sala de aula com seus alunos.

Vimos que apesar dos esforços dos educadores, existem crianças que têm atitudes

negativas diante da matemática, que não gostam da disciplina, o que provoca um

afastamento ainda maior da disciplina, ampliando dificuldades. A atitude positiva que

vimos por parte de algumas crianças, que gostam de matemática, apesar de se virem

com dificuldades para aprenderem, produz dedicação e persistência no enfrentamento

de suas dificuldades e isso faz com que superem os obstáculos. Entretanto, na fala de

algumas crianças, embora não expliquem, aparece existência da crença de que a

matemática é inacessível para si, consideram seus esforços inúteis e atribuem

inteligência e genialidade aos seus colegas e a quem domina a matemática, e que essa

inteligência é reforçada nas experiências escolares. Enquanto isso, os educadores

demonstraram preocupações em buscar novas maneiras de ensinar, com objetivo de

derrubar esses obstáculos, conscientes que eles mesmos precisam rever suas próprias

concepções frente à matemática.

Assim, para os dois educadores de matemática, os cursos de formação, que permite a

elaboração e conhecimento de novos recursos didáticos, têm contribuído para as

(re)significações de suas práticas, oportunizando o compartilhar dos saberes e fazeres,

saudavelmente exporem-se às críticas dos colegas assim como exporem as suas. Isso

está provocando mudanças positivas em suas concepções e atitudes diante do ensino-

aprendizagem de matemática. Estão alcançando flexibilidades nos planejamentos de

suas aulas, tentando contribuir para assegurar a máxima participação dos alunos e se

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ajustarem a seus vários ritmos – principalmente quanto ao tempo de aprendizagem de

cada um.

Com esses diferentes ritmos estão familiarizados, pois entendem o tempo como uma

arte. Nesse sentido, o segundo educador, salienta preocupações, na observância da

realidade, quando pensa na competitividade do mercado de trabalho e nas competências

que esse mercado exige. Esse educador, como já dissemos, reflete às vezes sobre essa

postura, porque dar oportunidades para que o aluno construa seu conhecimento tem

acarretado gastar mais tempo para a abordagem de alguns conteúdos, que pode ser visto

como um prejuízo no final do ano letivo, em relação ao cumprimento dos conteúdos de

matemática estabelecidos pelo currículo. Essa reflexão o faz pensar que precisa

aprender a administrar melhor seu tempo em sala de aula e provocar a aprendizagem

com novas e diferentes estratégias.

Assim como se preocupa com o cumprimento curricular dos conteúdos matemáticos,

entende que respeitar os ritmos de tempo de aprendizagem dos alunos pode contribuir

para um dos objetivos do ensino da matemática, na sua percepção. Para ele, os

educadores, principalmente os que tratam da matemática nos primeiros anos do ensino

fundamental, precisam ter atitudes positivas diante da disciplina. Explica que um dos

momentos mais importantes da aprendizagem da matemática está na formação inicial

dos alunos, que desde esse momento pode consistir em formar futuros professores,

assim como propiciar um contexto educativo que forneça aos alunos elementos teórico-

metodológicos para enfrentarem, no futuro, outras salas de aula de matemática.

Num outro contexto, a oportunidade de transitar nas aldeias Tupinikim foi relevante,

pois percebermos um pouco da sua cultura. Termos tido o prazer de conviver com as

pessoas das comunidades, e com vários anciões, nos possibilitou entender mais

estreitamente os educadores e seus alunos. Quando os educadores se expressavam e se

manifestavam durante o curso de formação, podíamos vislumbrar um pouco melhor do

que estavam falando: sejam suas expectativas de trabalho na escola referentes às suas

problemáticas, seja quando mencionavam os espaços físicos, seja quando citavam

alguma liderança de sua aldeia, seja quando listaram alguns objetivos com vistas à

interculturalidade nos recursos didáticos que produziam.

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Das notícias que tínhamos dos anciões, no curso de formação, retivemos

principalmente, àquelas que contemplavam o saber matemático empírico, contidos na

cultura Tupinikim, como na confecção de seus artefatos, na caça e na pesca, nos

artesanatos, na construção de suas residências, nas brincadeiras, nas suas roças, nas

receitas, nos seus costumes ancestrais.

Apenas duas das brincadeiras que nos foram relatadas pelos anciões, os educadores de

matemática desconheciam, assim como a maioria de seus alunos, o jogo com grãos de

milho e àquela que promove a habilidade de confecção de artefatos. Vimos também que

nenhum deles tinha conhecimentos da origem da medida de quarta. As outras notícias,

tais como descrevemos, eram de conhecimento dos educadores que, eventualmente,

figuravam em resolução de problemas de matemática, ou em investigações, que

propunham para os seus alunos fazerem na comunidade, para saberem como é a

confecção de um tipiti ou de um jequiá, tal como acreditam que eram construídos pelos

seus ancestrais, por exemplo.

Entretanto, os anciãos com quem falamos nos afirmaram não saber matemática – dos

matemáticos. Concebem a matemática como uma disciplina organizada que se aprende

apenas na escola. A maioria disse que no passado não era relevante freqüentarem a

escola. O importante mesmo era aprenderem sua cultura, ouvindo o que os mais velhos

lhes diziam ou observando as atitudes deles diante das coisas que faziam. Além disso,

não existiam escolas nas aldeias. De qualquer forma, segundo suas palavras, alguns

aprenderam apenas a “matemática do dinheiro”. Até mesmo o dono do quitungo que

comercializa farinha não percebe a matemática no seu cotidiano. Essa concepção de

matemática dos anciões vai de encontro às concepções de matemática, tanto dos

educadores, quanto de seus alunos, que estudam em sala de aula a matemática

contextualizada em sua cultura, por vezes por meio de recursos didáticos específicos,

como já dissemos.

Ao longo de nossa investigação, diversos processos proximais aconteceram, tanto para

os participantes da pesquisa, que ao falarem de suas experiências de vida, tiveram a

possibilidade de refletir sobre elas, assim como conosco, que estávamos investigando.

Ao interagir com as famílias e a comunidade onde vivem, conseguimos captar unidades,

de sentidos importantes, como auxílio para respondermos nossas inquietações, para

desenvolvermos novas possibilidades teóricas, para alterarmos nossa metodologia de

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trabalho e propiciar um capítulo do cotidiano Tupinikim. Esses processos proximais,

contudo, só se tornaram possíveis em decorrência de nossa inserção onde vivem as

famílias Tupinikim, na visão de Geertz e de Vygotsky.

Nos diferentes ambientes dos Tupinikim que estivemos, procuramos ter uma presença

significativa e estável, tentando nos aproximarmos conforme ele é experienciado pelos

Tupinikim. A reciprocidade nas relações interpessoais, que se estabeleceram ao longo

da pesquisa, serviu de base para que muitas das entrevistas ocorressem na forma de

conversa. Estivemos disponíveis para responder as perguntas dos participantes a

respeito de nossa pesquisa e da nossa presença nas aldeias. E, à medida que íamos

editando este trabalho, disponibilizávamos o material, para qualquer um dos Tupinikim,

que quisesse ler e conjeturar sobre ele.

Foram nesses processos proximais que se desvelaram com mais intensidade os fatores

afetivos como respeito, admiração e amizade. Isso nos levou a uma proximidade ainda

maior com algumas famílias Tupinikim, quando acabamos aprendendo algo sobre nós

mesmos, enquanto queríamos desvendar o cotidiano deles. Assim, colhemos mais

detalhes de seu cotidiano do que é mostrado nesse trabalho.

Registramos aqui uma seleção de recortes de nossa vivência, assim como mostramos

apenas análises de recortes de parte do material que colhemos, seja das avaliações por

escrito durante o curso de formação, sejam na criação e aplicações de recursos

didáticos, observações em salas de aula, seja das anotações e dos depoimentos das

nossas gravações em áudio, por entendermos nossas limitações humanas, de não sermos

capazes de capturarmos tudo o que acontece em nossa volta. Lembramos que as

atividades matemáticas vivenciadas na pesquisa foram de escolha dos próprios

educadores e não interferimos nelas, justamente para entendermos suas concepções

frente à matemática.

Mas retomemos as conjeturas iniciais em nossas considerações finais, dessa nova

postura de ensinar e aprender, uma realidade no universo das escolas indígenas de

Aracruz. Entendemos que, para transitarmos no futuro com maior eficiência nessa nova

pedagogia, que pretende construir um currículo específico de 5ª a 8ª série para essa

educação, que no âmago da matemática, seja relevante levar em consideração as

concepções, crenças e atitudes dos educadores, e de seus alunos, frente à Matemática.

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Sabemos, como aponta Chacon (2003), que as atitudes positivas dos alunos frente à

matemática vão diminuindo, à medida que avançam escolarmente.

Esperamos que essa contribuição possa possibilitar novas iniciativas de formação

docente, na consolidação dessa nova perspectiva pedagógica, que promove uma

mudança por sua abrangência, contempla a variedade de preocupações daqueles que

realmente almejam assumir uma ação com maior clareza de suas intenções, limitações e

possibilidades. Que nas iniciativas de trabalhos interculturais nas escolas não-indígenas

seja oportunizado aos alunos a percepção da matemática das nossas diferentes culturas

indígenas do nosso solo brasileiro como aparece aqui, a partir de algumas pistas que

registramos.

Ao mesmo tempo, esperamos que esse trabalho possa contribuir para que outros

educadores reflitam sobre suas concepções, crenças e atitudes frente à matemática, que

possam refletir desde o momento do seu planejamento de aula, assim como junto, e com

seus alunos, a respeito desses construtos. Entendemos que considerar de forma efetiva

os interesses e as necessidades dos alunos, de suas idéias prévias sobre os conceitos, as

definições e os algoritmos, e como estão sendo compreendidos, é uma prioridade no

processo de assimilação e entendimento da matemática.

Em 2005, iniciei essa caminhada e, no singular, pedi que Tupã me acompanhasse.

Depois de ter feito tantos amigos nessas comunidades indígenas e crescido

intelectualmente com esses e com aqueles que deram sugestões para melhoria do

trabalho, em especial a solidariedade e seriedade dos amigos, que foram também meus

sujeitos de pesquisa, me possibilita, agora no plural, desejar que, nas nossas próximas

caminhas, juntos ou não, de qualquer forma...

Que Tupã nos acompanhe! E, numa aclamação muito brasileira deixo aqui o registro de

um Muito Obrigada ao ‘meu’ povo Tupinikim!

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APÊNDICE

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE PARTICIPAÇÃO EM PESQUISA Prezado(a) cidadão(dã) ou educador(a) Tupinikim

Eu, Dóris Reis de Magalhães, mestranda do Programa de Pós-Graduação

em Educação da UFES, gostaria de convidá-lo(a) a participar de uma

pesquisa na linha de pesquisa em Educação Matemática.

Para tanto gostaria de solicitar a sua autorização para participar como

sujeito (ou colaborador(a)) de uma pesquisa em Educação Matemática que

estou iniciando. Essa pesquisa vai focalizar as concepções, crenças e

atitudes dos educadores Tupinikim frente à matemática no processo de

ensinar, aprender a matemática escolar. Ao longo do desenvolvimento da

pesquisa iremos nos encontrar para compartilhar os dados coletados e

analisados. Com esta prática, espero que possamos trabalhar de forma

colaborativa e compartilhar em todas as fases as informações editadas da

pesquisa. Em qualquer momento, o(a) educador(a) ou o(a) cidadão(dã)

poderá desistir de participar desta investigação. Além disso, informo que

os nomes e informações que possam identificá-lo só figurarão na pesquisa

se assim o desejar, pois entendemos a importância de que os dados pessoais

em uma pesquisa devem ser mantidos em sigilo.

Nome:

Local: Data:

Assinatura:

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