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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA MESTRADO EM MÚSICA TRADIÇÃO E VANGUARDA NOS ARRANJOS DE ROGÉRIO DUPRAT PARA A TROPICÁLIA RODRIGO MARCONI DA COSTA RIO DE JANEIRO, 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA MESTRADO EM MÚSICA

TRADIÇÃO E VANGUARDA NOS ARRANJOS DE ROGÉRIO DUPRAT PARA A TROPICÁLIA

RODRIGO MARCONI DA COSTA

RIO DE JANEIRO, 2006

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TRADIÇÃO E VANGUARDA NOS ARRANJOS DE ROGÉRIO DUPRAT PARA A TROPICÁLIA

por

RODRIGO MARCONI DA COSTA

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre, sob a orientação do Professor Dr. Silvio Augusto Merhy.

Rio de Janeiro, 2006

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À Cesar, Fernanda, Rafael, Bruno

e Andréa por tudo.

Costa, Rodrigo Marconi da. M321 Tradição e vanguarda nos arranjos de Rogério Duprat para a Tropicália / Rodrigo Marconi da Costa, 2006. 160 f. Orientador: Silvio Augusto Merhy. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2006. 1. Duprat, Rogério, 1932-2006 – Apreciação. 2. Música popular – Brasil. 3. Arranjo (Música). 4. Musicologia. I. Merhy, Silvio Augusto. II. Universi- dade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Centro de Letras e Artes. Mestrado em Música. III. Título. CDD – 780.420981

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A Cesar, Fernanda, Rafael,

Bruno e Andréa

Por tudo.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço profundamente ao professor Dr. Silvio Merhy pelo carinho,

respeito e seriedade com que conduziu a minha orientação.

Aos compositores Vânia Dantas Leite e Tato Taborda pela presença

na minha banca de defesa e pelos toques fundamentais.

Aos professores Elizabeth Travassos, José Nunes, Carole Gubernikoff, Carlos Alberto

Figueiredo, Luiz Paulo Sampaio, Paulo Pinheiro e Martha Tupinanbá de Ulhôa que muito

me ensinaram em toda essa jornada.

A minha família pelo constante apoio.

E em especial ao professor Paulo Name que me contagiou com seu amor pela música.

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...encher de vãs palavras muitas páginas

e de mais confusão as prateleiras...

(Caetano Veloso, em Livros)

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COSTA, Rodrigo Marconi da. Tradição e vanguarda nos arranjos de Rogério Duprat para a Tropicália. 2006. Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO

Rogério Duprat foi um compositor extremamente atuante na música brasileira em suas mais diversas vertentes: compôs música erudita, fez arranjos para música popular, trilhas sonoras para cinema e jingles publicitários. Esta dissertação faz um recorte do trabalho de Duprat na sua atuação como principal arranjador do movimento Tropicália, tendo como objetivo principal detectar em seus arranjos a utilização de ferramentas composicionais tanto tradicionais como de vanguarda. Para tanto se viu necessário uma discussão sobre o termo arranjo e sua aplicação em música popular, além de uma definição para os termos tradição e vanguarda.

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ABSTRACT Rogério Dupart was a composer who widely acted in many trends of Brazilian music. He composed erudite songs, besides making arrangements for Brazilian popular songs, sound tracks and advertising jingles. This dissertation is a draft of Dupart's work and his performance as the most important musical arranger from the Tropicália movement. His main goal was to detect the usage of traditional and vanguard compositional tools in his arrangements. To accomplish this, a discussion about the word arrangement will be made and its application in popular music will also be discussed. Furthermore, this dissertation will also define the concept of traditional and vanguard arrangements.

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SUMÁRIO

LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS

INTRODUÇÃO 1 CAPÍTULO 1: DEFINIÇÕES E CONCEITOS 6 1.1 - Rápida e necessária consideração sobre o termo "arranjo"

1.1 - Em busca de uma definição para os termos “tradição” e “vanguarda” CAPÍTULO 2: ROGÉRIO DUPRAT E SUA ATUAÇÃO NA TROPICÁLIA 17

2.1 - Primeiro contato 2.2 – Os discos de Caetano Veloso e Gilberto Gil 2.3- O disco dos Mutantes 2.4 - O disco coletivo Panis et Circensis

2.5 - O disco de Rogério Duprat 2.6 - O show Vida, Paixão e Banana da Tropicália 2.7 - O disco de Nara Leão

2.8 - O III Festival Internacional da Canção – FIC 2.9 - O IV Festival da TV Record

2.10 - O LP de Gal Costa 2.11 - Os Mutantes no MIDEN 2.12 - O segundo disco dos Mutantes 2.13 - Os discos gravados em Salvador 2.14 – O LP A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado dos Mutantes

2.15 – O disco de Jorge Ben 2.16 - O segundo LP de Gal Costa 2.17 - O disco solo de Rita Lee 2.18 – Um compacto de Tom Zé 2.19 - O LP Araçá Azul de Caetano Veloso

2.20 – Coda

CAPÍTULO 3: PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS 69 3.1 - “Luzia, Luluza”

3.2 - “Caminhante Noturno” 3.3 - “Dom Quixote” 3.4 - “Acrilírico”

CONCLUSÃO 140

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 147

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LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS:

Figura 1. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 1 e 2)

Figura 2. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 7 ao 14)

Figura 3. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 15 ao 22)

Figura 4. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 23 ao 28)

Figura 5. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 27 ao 43)

Figura 6. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 41 ao 54)

Figura 7. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 55 ao 62)

Figura 8. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 63 ao 70)

Figura 9. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 71 ao 77)

Figura 10. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 76 ao 85)

Figura 11. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 85 ao 108)

Figura 12. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 1 ao 12)

Figura 13. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 13 ao 26)

Figura 14. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 27 ao 35)

Figura 15. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 35 ao 38)

Figura 16. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 39 ao 47)

Figura 17. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 48 ao 57)

Figura 18. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 58 ao 79)

Figura 19. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 80 ao 84)

Figura 20. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 100 ao 115)

Figura 21. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 116 ao 117)

Figura 22. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 1 ao 24)

Figura 23. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 25 ao 27)

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Figura 24. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 28 ao 55)

Figura 25. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 55 ao 70)

Figura 26. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 70 ao 75)

Figura 27. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 76 ao 94)

Figura 28. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 95)

Figura 29. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 96 ao 119)

Figura 30. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 120 e 121)

Figura 31. Arranjo de “Acrilírico” – introdução

Figura 32. Disposição da espacialização da gravação de “Acrilírico”

Figura 33. Disposição da espacialização da gravação de “Acrilírico”

Figura 34. Arranjo de “Acrilírico” – primeiro duo de flauta e fagote

Figura 35. Arranjo de “Acrilírico” – segundo duo de flauta e fagote

Figura 36. Disposição da espacialização da gravação de “Acrilírico”

Figura 37. Disposição da espacialização da gravação de “Acrilírico”

Figura 38. Arranjo de “Acrilírico” – orquestra de cordas

Figura 39. Disposição da espacialização da gravação de “Acrilírico”

Figura 40. Arranjo de “Acrilírico” – tutti orquestral

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INTRODUÇÃO

O ano de 1968 serve como “divisor de águas” no âmbito político, social e cultural

brasileiro, apontando para novas perspectivas em todos esses campos nos anos que se seguem,

levando o jornalista Zuenir Ventura (1988) a defini-lo, metaforicamente, como o “ano que não

terminou”.

No campo da Música Popular, em decorrência da grande aceitação das canções

"Alegria, Alegria" de Caetano Veloso e "Domingo no Parque" de Gilberto Gil no III Festival

de MPB da TV Record (outubro de 1967), aconteceu, em março de 1968, o lançamento dos

LPs individuais desses dois artistas. O LP de Caetano Veloso contou com os arranjos de Julio

Medaglia, Damiano Cozzella e Sandino Hohagen, enquanto o LP de Gilberto Gil - gravado

em 4 canais nos estúdios CBD (SP) no início de 1968 – contou com os arranjos e regência de

Rogério Duprat, além da participação especial dos Mutantes. Em junho aconteceu o

lançamento do LP dos Mutantes, grupo que acompanhou Gilberto Gil no festival e participou

da gravação do LP do compositor, e também contou com os arranjos de Rogério Duprat.

Esses três LPs alavancaram a produção de um álbum coletivo chamado Tropicália ou Panis et

Circensis, lançado em junho de 1968, e contou com a participação de Caetano Veloso,

Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão, Tom Zé, Os Mutantes e Rogério Duprat. Esse LP se

transformou no disco-manifesto de um novo movimento que surgiu na música popular

brasileira e ficou conhecido como Tropicália.

Em comum entre todas essas produções fonográficas tem-se a união entre

compositores de música popular e compositores de música erudita de vanguarda pertencentes

ao grupo Música Nova de São Paulo atuando como arranjadores, mais precisamente Rogério

Duprat que se tornou o arranjador mais significativo desse movimento.

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Acompanhando de perto essa nova forma de expressão musical, Augusto de Campos1

publicou uma série de artigos em jornais que detectavam essa contribuição mútua. Esses

artigos reunidos junto com outros de Julio Medaglia, Brasil Rocha Brito e Gilberto Mendes,

são publicados por Campos em seu livro Balanço da Bossa (de 1968). Dez anos mais tarde o

livro é ampliado e renomeado de Balanço da Bossa e outras Bossas.

O presente trabalho tem como objetivo principal detectar nos arranjos escritos por

Rogério Duprat para a Tropicália as ferramentas composicionais tradicionais e de vanguarda

utilizadas por ele. Para o seu desenvolvimento, este estudo baseou-se na busca das seguintes

metas:

1. Buscar uma definição apropriada para o termo arranjo e sua utilização em música

popular partindo dos verbetes dos principais dicionários de música;

2. Definir os termos tradição e vanguarda;

3. Fazer uma biografia da atuação de Rogério Duprat como arranjador e regente, em

inúmeras gravações e performances "ao vivo" tanto em festivais como em shows,

enfocando a sua contribuição para esse movimento musical;

4. Detectar nas canções as técnicas composicionais utilizadas por Rogério Duprat.

Para responder a tais questões, além do livro de Augusto de Campos, esse estudo

fundamentou-se nas seguintes obras:

Sonoridades Múltiplas, dissertação de mestrado apresentada na UNESP por Regiane

Gaúna (2002) e editado pela própria universidade, traça um perfil biográfico e artístico do

compositor, instrumentista e arranjador Rogério Duprat, enfatizando a sua relação com o

grupo Música Nova – movimento de vanguarda dentro da música erudita – e a Tropicália, um

marco da renovação da MPB, ambos durante a década de 60. Nesse livro, a autora analisa

três trabalhos do compositor: um arranjo (de Objeto semi-identificado – de Gilberto Gil), uma

1 poeta, tradutor, ensaísta, crítico de literatura e música, ligado diretamente aos movimentos de vanguarda que junto com seu irmão Haroldo de Campos e Décio Pignatari assinou o Manifesto da Poesia Concreta em 1952.

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composição erudita (Organismo – de 1961) e uma trilha sonora de cinema (do filme O Pica-

Pau Amarelo).

Música de Invenção, dissertação de mestrado de Tato Taborda (1998) apresentada no

Programa de Pós-Graduação em Música na Universidade do Rio de Janeiro (PPGM / UNI-

RIO), explora o território criativo que se situa na região fronteiriça entre a música popular e

erudita contemporânea.

A divina comédia dos mutantes, do jornalista Carlos Calado (1995), traça uma

biografia do conjunto Os Mutantes (formado inicialmente pelo trio Rita Lee e os irmãos

Sérgio Dias e Arnaldo Baptista) desde a sua criação, sua participação no movimento

Tropicália até o término do grupo em 1978, além de uma ampla discografia.

Tropicália: a história de uma revolução musical, também de Carlos Calado (1997),

traça um panorama histórico de todo o movimento e das participações dos artistas em

festivais, programas de TV, shows e discos.

Os artigos Da Bossa Nova ao Tropicalismo (que traça um panorama desses dois

movimentos musicais) e Abaixo o Orgasmo e Viva a Ereção (que desenvolve o tema

Tropicália) são parte integrante do livro Música Impopular de Júlio Medaglia (2003).

Medaglia na época era um jovem maestro que além de participar do grupo Música Nova foi o

responsável pelo arranjo da canção “Tropicália”, de autoria de Caetano Veloso (canção que

batizou o movimento).

Verdade Tropical, de Caetano Veloso (1997), é um grande apanhado histórico do

movimento pela ótica do compositor e cantor que, junto com Gilberto Gil, tornou-se um dos

artistas mais importantes da Tropicália.

Além dessas obras, foram utilizados também: o Manifesto Música Nova, publicado no

terceiro número da revista "Invenção" em junho de 1963 e assinado por Damiano Cozzella,

Rogério Duprat, Régis Duprat, Sandino Hohagen, Julio Medaglia, Gilberto Mendes, Willy

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Correia de Oliveira e Alexandre Pascoal; o Manifesto Música Viva, de 1º de Maio de 1944,

escrito pelo compositor Hans-Joachim Koellreutter e assinado por Aldo Parisot, Cláudio

Santoro, Guerra Peixe, Egídio de Castro e Silva, João Breitinger, Mirella Vita e Oriano de

Almeida e a sua Declaração de Princípios, de 1º de novembro de 1946 e assinado por Heitor

Alimonda, Egídio de Castro e Silva, Guerra Peixe, Eunice Katunda, Edino Krieger, Gení

Marcondes, Santino Parpinelli, Cláudio Santoro; e a Carta Aberta aos Músicos e Críticos do

Brasil que, redigida pelo compositor Camargo Guarnieri em 1950, ajudou na busca das

definições para os termos “tradição” e “vanguarda”, estabelecendo um elo com os arranjos

aqui analisados.

Quatro canções foram analisadas neste trabalho partindo das gravações e da partitura

manuscrita dos arranjos adquiridas com o próprio arranjador. São elas: “Luzia, Luluza”,

composta por Gilberto Gil para o seu primeiro LP de 1967; “Caminhante Noturno” e “Dom

Quixote”, dos Mutantes, que participaram respectivamente do III Festival Internacional da

Canção – FIC (que rendeu a Rogério Duprat o Troféu André Kostelanetz de melhor

arranjador) e do IV Festival da TV Record no dia 2 de dezembro de 1968 e que foram

gravadas no segundo disco do trio; e “Acrilírico”, poesia que Caetano recita em seu segundo

disco antes do exílio londrino.

Este trabalho baseou-se em pesquisas bibliográficas, análise das partituras e de suas

respectivas gravações, de toda discografia do movimento, além de entrevistas do arranjador

disponíveis na internet. Infelizmente, no período em que se desenvolveu essa pesquisa, Duprat

passou por sérios problemas de saúde e veio a falecer no dia 26 de outubro de 2006

impossibilitando um contato mais próximo.

Muito já se falou e escreveu sobre a Tropicália no que diz respeito à sua história, à

sua estética e à atuação de seus participantes, porém, nenhum estudo analítico aprofundado

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das canções em relação ao arranjo e as técnicas composicionais empregadas foi realizado,

fazendo que o estudo proposto venha a preencher essa lacuna.

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CAPÍTULO 1

DEFINIÇÕES DOS TERMOS

Este capítulo se propõe a discutir dois conceitos importantíssimos para o

desenvolvimento deste trabalho. A primeira parte busca uma definição satisfatória para a

utilização do termo “arranjo” em música popular, partindo dos verbetes de vários dicionários

de música.

A segunda parte busca definir os termos “tradição” e “vanguarda” partindo de três

importantes documentos da música brasileira: o Manifesto Música Viva, o Manifesto Música

Nova e a Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil. Esses termos encontram paralelos com

outros dois utilizados na Teoria da Informação - “informação” e “redundância” – que aqui

são apresentados com o objetivo de fundamentar sua significação.

1.1 - Uma rápida e necessária consideração sobre o termo “arranjo”

Para melhor desenvolvimento do trabalho, precisou-se, inicialmente, de uma definição

apropriada para o termo "arranjo" já que esta palavra pode ter diversos significados

provocando, assim, certa indefinição conceitual. Para esse propósito foi feita uma busca nos

verbetes de vários dicionários de música. O verbete escrito por Oneyda Alvarenga no

Dicionário Musical Brasileiro de Mário de Andrade define o termo da seguinte forma:

"arranjo: escritura de uma música para destinação instrumental ou vocal diversa da que foi

escrita" (Andrade, 1989, p.25).

Tal definição limita a pensar que arranjo é apenas uma adaptação ou “transcrição” de

uma obra a fim de torná-la acessível a outra categoria de executantes. Neste sentido a palavra

"arranjo" pode se confundir com outros termos como “redução” (quando é feita, por exemplo,

uma redução de uma sinfonia de Mozart para piano) ou “orquestração” (onde temos, por

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exemplo, a peça "Quadros de uma exposição" escrita inicialmente para piano pelo compositor

Mussorgsky e depois recebeu uma versão para orquestra de Ravel). No dicionário de Mário

de Andrade não foi encontrado o verbete “transcrição”.

Consultando o Dicionário Grove de Música Conciso encontra-se a mesma definição

de arranjo proposta por Mário de Andrade: "arranjo: a reelaboração ou adaptação de uma

composição, normalmente para uma combinação sonora diferente do original” (Sadie, 1994,

p.43). Vejamos então como o mesmo dicionário define o termo transcrição:

transcrição: termo que designa a cópia grafada de uma obra musical, envolvendo alguma modificação. Pode ser uma mudança de meio (significando com isso o mesmo que "arranjo"); ou pode significar que sua notação foi transformada (p.ex.: de tablatura para pauta) ou então a sua disposição (de partes cavadas para uma partitura). O termo também pode incluir o registro escrito de música executada ao vivo ou gravada, ou sua transferência de forma audível para forma gráfica, por meios elétricos ou mecânicos. (Sadie, 1994, p.957)

Nesse verbete o termo transcrição dá conta de várias outras interpretações: como

sendo sinônimo de arranjo; a transferência de uma forma de escrita musical para outra (como,

por exemplo, as várias transcrições escritas em notações neumáticas para a escrita

tradicional); partes cavadas2; ou ainda a feitura de uma partitura a partir da execução de uma

peça musical, sendo ela gravada ou executada ao vivo. Esse último significado do termo

transcrição é o que se aproxima mais das práticas de música popular no que diz respeito ao

registro de autoria e também em compêndios de partituras (como, por exemplo, os

songbooks).

Um terceiro verbete também foi analisado, o do Dicionário Oxford de Música:

arranjo (ou transcrição): adaptação de uma peça para um meio musical diferente daquele para que tinha sido originalmente composto. Por vezes transcrição significa reescrever a obra para o mesmo meio, mas num estilo de execução simplificado. Por vezes usa-se o termo "arranjo" para um tratamento

2 Partitura individual de cada instrumento constituinte da grade orquestral de uma música.

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livre do material e o termo transcrição para um tratamento mais fiel. No jazz "arranjo" tende a significar "orquestração" (Kennedy, 1994, p.41)

Aqui, o termo “arranjo” é apresentado realmente como sinônimo de “transcrição” já

no início do verbete. Ele reafirma a definição dos dois verbetes já citados (do Mário de

Andrade e do Grove) e acrescenta outras utilizações: uma versão facilitada para o mesmo

instrumento de uma obra com o intuito de ser executada por principiantes. Porém, esse

verbete nos acrescenta duas novas perspectivas para um aprofundamento do conceito da

palavra arranjo: o primeiro é a possibilidade do arranjo ter um tratamento mais livre do

material sonoro contrastando com a transcrição que tem como caráter um tratamento mais fiel

ao material sonoro apresentado pelo compositor. A segunda perspectiva é que no jazz - e aí se

entende uma divisão de música clássica (onde todos os verbetes se apoiavam) e de música

popular - arranjo é sinônimo de orquestração.

Agora será analisado o verbete que diz respeito ao termo transcrição neste mesmo

dicionário:

transcrição: (1) Arranjo de música composta para ser interpretada por um instrumento diferente do originalmente concebido, ou do mesmo instrumento mas num estilo mais elaborado.

(2) Conversão de uma composição de um sistema de notação para outro.( Kennedy, 1994, p. 739)

Inicialmente esse verbete dá ao significado de transcrição o mesmo dado em todos os

outros ao termo arranjo e acrescenta que pode ser uma maior elaboração de uma composição

para o mesmo instrumento causando uma segunda confusão conceitual: para esse autor

“arranjo” significa simplificação e “transcrição” significa elaboração. Uma segunda

interpretação para o termo reforça o conceito apresentado pelo dicionário Grove de

transferência de um sistema de notação para um outro.

Nessa confusão conceitual, Samuel Adler (1989), em seu livro The Study of

Orchestration, define os dois termos de uma forma bastante direta e elucidativa: "Transcrição

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é a transferência de uma obra previamente composta de um meio musical para outro"

enquanto que "Arranjo envolve em maior grau o processo composicional, pois o material pré-

existente pode ser apenas uma melodia - ou mesmo parte de uma - para a qual o arranjador

tem que criar uma harmonia, contracantos, e muitas vezes até ritmo, antes de pensar na

orquestração.” (Adler, 1989, p. 512)

Reforçando a definição de Adler temos a citação retirada da dissertação de Beatriz

Paes Leme (1999) intitulada "Guerra-Peixe e as 14 Canções do Guia Prático de Villa-Lobos:

Reflexões sobre a prática da transcrição" que irá nortear o conceito de arranjo utilizado neste

trabalho:

Fazer um arranjo pode envolver tarefas como concepção da forma, harmonização, composição de partes auxiliares - introdução, intermezzos, coda - criação de contracantos, etc, além, é claro, da instrumentação e da feitura de uma partitura, se isso se faz necessário. O arranjador, portanto, absorve grande parte do trabalho que, no contexto erudito, costuma ser atribuição do compositor - e desse ponto de vista não é exagero dizer que ele, muitas vezes, complementa o trabalho de composição. (Leme, 1999, p. 23)

1.2 - Em busca de uma definição para os termos “tradição” e “vanguarda”

O termo “vanguarda” (que vem do francês Avant Garde, "guarda avante") faz

referência ao batalhão militar que precede as tropas em ataque durante uma batalha. Tal

expressão, segundo Mendonça e Sá (1983), “foi estendido para dianteira em geral, frente,

liderança. A partir daí, passou-se para o campo do conhecimento, e principalmente da estética,

para situar novas tendências que estivessem em oposição às vigentes” (Mendonça e Sá, 1983,

p. 7) e, para esses mesmos autores, “a noção de arte de vanguarda traz novas implicações e na

sua problemática inclui-se o uso de novos materiais e novas técnicas, para produzir

informação no campo da estética” (Mendonça e Sá, 1983, p. 12). Tal declaração de Mendonça

e Sá nos faz crer que o termo vanguarda está relacionado diretamente a uma ruptura com um

padrão já existente, que nesse caso chamaremos de tradição.

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José Maria Neves (1981) aponta que na música brasileira existem duas frentes

completamente antagônicas: uma tradicionalista que busca “garantir a manutenção dos

elementos constitutivos da linguagem musical de um passado próximo;” (Neves, 1981, p. 9),

e uma vanguardista que tem como meta a “busca de novos recursos expressivos

independentes da herança tradicional” (Neves, 1981, p. 9).

Na música erudita brasileira foram dois os movimentos onde essa força inovadora

proposta por Neves teve papel fundamental: o grupo Música Viva e a sua Declaração de

Princípios, onde apoiava "tudo o que favorece o nascimento e o crescimento do novo" e o

manifesto do grupo Música Nova, que tinha como objetivo principal o "compromisso total

com o mundo contemporâneo".

Koellreutter e seus seguidores tinham como objetivo “a criação de novas formas

musicais que correspondam às idéias novas, expressas numa linguagem musical

contrapontístico-harmônica e baseada num cromatismo diatônico” (Mariz, 1996, p. 236), isto

é, o dodecafonismo. Tais propostas vinham de encontro aos ideais nacionalistas já decretados

por Mário de Andrade alguns anos antes. O compositor Camargo Guarnieri, em defesa da

música nacionalista, escreveu em 1950 a Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil no

qual defendia uma criação de cunho nacional baseada na música folclórica, “expressão viva

do nosso caráter nacional” (Neves, 1981, p. 121 - 124) dizendo que tais compositores “não se

deram ao cuidado elementar de estudar os tesouros da herança clássica, o desenvolvimento

autônomo da música brasileira e suas raízes populares e folclóricas” (ibidem) e que

pretendiam “despojar a música de seus elementos essenciais de comunicabilidade (...)

desfigurar-lhe o caráter nacional (...) e atingir o seu objetivo principal que é justificar uma

música sem pátria e inteiramente incompreensível para o povo” (ibidem). Como se vê,

Camargo Guarnieri defendia uma música brasileira, nacionalista, baseada na tradição,

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enquanto Koellreutter propunha uma música mais internacionalista, baseado nas novas formas

de expressão, de caráter vanguardista.

Augusto de Campos (1978) escreveu um artigo intitulado “Informação e redundância

na música popular”. Esses dois termos utilizado por Campos (informação e redundância)

baseiam-se na “Teoria da Informação”3. Essa teoria, criada por Claude E. Shannon (1916-

2001), foi a primeira a considerar comunicação como um problema matemático

rigorosamente embasado na estatística, tendo o termo sido utilizado pela primeira vez no

artigo “The Mathematical Theory of Communication”, publicado, em duas partes, no Bell

System Technical Journal em julho e outubro de 1948. Influenciados pela teoria da

informação e cibernética, Abraham Moles e Max Bense partiram do pressuposto de que a arte

já não deveria ser mais definida em termos de beleza ou verdade, mas em termos de

informações estéticas, mensuráveis matematicamente. Esse assunto é amplamente discutido

no livro Informação Linguagem Comunicação de Décio Pignatari, parceiro de Augusto e

Haroldo de Campos no manifesto da Poesia Concreta. Neste livro, Pignatari (1971) expõe e

explica esses dois termos:

a idéia de “informação” está ligada, mesmo intuitivamente, à idéia de surpresa, de inesperado, de originalidade. Quanto menos previsível, ou mais rara, uma mensagem, maior sua informação (Pignatari, 1971, p. 48).

Enquanto que:

A redundância pode ser entendida simplesmente como repetição; é causada por um excesso de regras que confere à comunicação um certo coeficiente de segurança, ou seja, comunica a mesma informação mais do que uma única vez e, eventualmente, de modos diferentes. De outro lado, quanto maior a redundância, maior a previsibilidade, isto é, sinal redundante é sinal previsível (Pignatari, 1971, p. 49).

3 O presente trabalho não se propõe a discutir a fundo a “Teoria da Informação” nem a sua aplicação no âmbito musical. Aqui ele é apenas sugerido com o intuito de buscar uma definição para os termos tradição e vanguarda.

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Partindo desse pressuposto, Pignatari atribui à “informação” um compromisso com o

novo e com a quebra de previsibilidade, diretamente ligado ao significado do termo

vanguarda por Mendonça e Sá, enquanto a “redundância” se propõe a repetir fórmulas

consagradas fazendo com que o discurso tenha um maior grau de previsibilidade, diretamente

ligada com a tradição.

Umberto Eco, em seu livro Obra Aberta (1976), dedica uma parte dos seus escritos

sobre a “Teoria da Informação” aplicada ao discurso musical:

uma sonata clássica representa um sistema de probabilidades em cujo âmbito é fácil predizer a sucessão e a superposição dos temas; o sistema tonal estabelece outras regras de probabilidade com base nas quais meu prazer e minha atenção de ouvinte são dados justamente pela expectativa de determinadas resoluções do desenvolvimento musical sobre a tônica. No interior desses sistemas está claro que o artista introduz contínuas rupturas do esquema probabilístico e varia infinitamente o esquema mais elementar, que é representado pela sucessão em escalas de todos os sons. O sistema dodecafônico é no fundo outro sistema de probabilidades (Eco, 1976, p. 125 - 126).

Enquanto que:

Quando, ao contrário, numa composição serial contemporânea, o músico escolhe uma constelação de sons a ser relacionada de modos múltiplos, ele quebra a ordem banal da probabilidade tonal e institui uma certa desordem que, em relação a ordem de partida, é altíssima: introduz, contudo, novos módulos de organização que, opondo-se aos velhos, provocam uma ampla disponibilidade de mensagens, portanto uma grande informação, e permitem todavia a organização de novos tipos de discurso, por conseguinte, de novos significados. (Eco, 1976, p. 126)

Eco aponta que, partindo do exemplo de uma sonata clássica (que se pode estender às

formas concerto, sinfonia, entre outras), as propostas tradicionais refletem uma série de

estruturas, tanto formais, escalares, cadenciais, modulatórias que fazem parte de regras

composicionais que funcionam dentro de um sistema restrito, estendendo tais parâmetros à

música dodecafônica que mesmo utilizando outras propostas estruturais, acaba criando um

sistema também restrito. Fazendo um contraponto com essas propostas, Eco, partindo da

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composição serial contemporânea, apresenta o outro lado da moeda, numa forma musical

onde a surpresa e a quebra do discurso previsível criam um amplo material informativo aos

ouvintes.

Augusto de Campos analisa agora a aplicação da “Teoria da Informação” em dois

campos bastante diferentes: a música popular e a música erudita.

É certo que a música erudita, sendo o domínio por excelência da pesquisa, da especulação em laboratório, independente da consideração dos problemas de consumo imediato, tem experimentado – muito mais intensamente que a popular – a explosão das contradições informacionais entre artista e público. A música de vanguarda, em especial, caracteriza-se por trabalhar com uma taxa mínima de redundância e uma alta porcentagem de imprevisibilidade: é natural, portanto, que se afigure, a princípio, “ininteligível” para a maioria dos ouvintes (Campos, 1978, p. 182 - 183).

E faz uma crítica feroz sobre a música popular:

Condicionada fundamentalmente pelos veículos de massa, que a coagem a respeito o “código” de convenções do ouvinte, a música popular não apresenta, senão em grau atenuado, o contraditório entre informação e redundância, produção e consumo. Desse modo, ela se encaminha para o que Umberto Eco denomina de “música gastronômica”: um produto industrial que não persegue nenhum objetivo artístico, mas, ao contrário, tende a satisfazer as exigências do mercado, e que tem, como característica principal, não acrescentar nada de novo, redizendo sempre aquilo que o auditório já sabe e espera ansiosamente ver repetido. Em suma: o servilismo ao “código” apriorístico – assegurando a comunicação imediata com o público – é o critério básico de sua confecção. “A mesma praça. O mesmo banco. As mesmas flores, o mesmo jardim”. O mesmismo. Todo mundo fica satisfeito. O público. A TV. Os anunciantes. As casas de disco. A crítica. E, obviamente, o autor. Alguns ganham com isso (financeiramente falando). Só o ouvinte-receptor não “ganha” nada. Seu repertório de informação permanece, mesmissimamente, o mesmo (Campos, 1974, p. 183 - 184).

A música erudita, desvinculada com o compromisso do consumo de massa, torna-se

um campo fértil de experimentação e de pesquisa, onde a música de vanguarda,

especialmente, assume uma postura de quebra de paradigma, acrescentando uma taxa

significativa de informação ao seu discurso. O mesmo não acontece no âmbito da música

popular onde, antes de tudo, é um produto industrial, e o interesse maior é o consumo. A

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crítica de Campos é que todos os envolvidos nesse sistema de produção lucram

financeiramente enquanto o ouvinte fica restrito a um sistema redundante e estagnado no

âmbito da percepção de novas formas de expressão. Para Campos, a dicotomia redundância /

informação na produção musical está diretamente ligada a interesses mercadológicos e por

conseqüência, financeiros.

No âmbito da música popular, segundo Augusto de Campos, os movimentos que mais

valorizaram a ruptura (e acrescentando mais informação à mensagem) foram a Bossa-Nova

em 1958, e dez anos mais tarde, a Tropicália.

Com o manifesto musical de Desafinado a dissonância foi introduzida na música popular brasileira. Abriu-se uma brecha na harmonia tradicional, à qual ainda se apegava – e se apega – grande parte da canção popular do Ocidente (Campos, 1978, p. 271).

Fazendo uma associação da declaração de Campos (1978) com o texto de Julio

Medaglia (2003), chamado Da Bossa Nova ao Tropicalismo4, os músicos da Bossa Nova

"dominavam uma rica concepção harmônica, a qual veio substituir os famosos quatro acordes

ou 'posições' do violão (1a, 2a, 'preparação', 3a), que acompanhava praticamente todas as

melodias tradicionais" (Medaglia, 2003, p. 174) e "passou a ser comum o uso de acordes

'alterados', ou seja, repletos de notas estranhas à harmonia tradicional, nela consideradas

'dissonantes'" (ibidem). Os dois autores deixam bastante explicitados a quebra com a

produção tradicional em voga naquele período para uma nova perspectiva de informação na

utilização de harmonias dissonantes.

Com o passar do tempo, a Bossa-Nova deixou de ser informativa para se tornar

redundante. Caetano Veloso propõe em seu artigo "Que Caminho Seguir na Música Popular

Brasileira?"5 uma "retomada da linha evolutiva" partindo da obra de João Gilberto, isto é,

4 Esse texto faz parte do livro Música Impopular de Júlio Medaglia. 5 Essa declaração foi publicada na Revista Civilização Brasileira em 1966.

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acrescentando mais informação à evolução da MPB. Campos expõe em entrevista que a

Tropicália ultrapassa "a fase dissonância x consonância (Debussy, Jazz, BN [Bossa – Nova])"

(Campos, 1978, p. 271) para ingressar "no estágio mais avançado da evolução da música

moderna, o do conflito ruído x som (Varèse, Cage, música concreta e eletrônica, happening,

música pop), o da metalinguagem (crítica via música) e o do "prodossumo" (ruptura dos

limites entre música erudita e popular)" (Campos, 1978, p. 271).

Em seu livro Artigos Musicais, Livio Tragtenberg (1991) oferece a seguinte

declaração:

a tropicália (...) não objetivava ir além da bossa-nova; pelo contrário, ela retomou o Brasil pré-bossa nova: Ary Barroso, carnaval, Carmem Miranda etc., e iniciou o Brasil eletrônico. Portanto a Tropicália não realizou uma superação no sentido linear, mas uma reavaliação da cultura brasileira de forma geral, introduzindo a música popular no mundo visual do show business da época. A presença de Rogério Duprat com seus inovadores arranjos foi de uma criatividade inesperada e inovadora no âmbito da música popular, ao contrário da bossa nova que em termos de linguagem musical utilizou um repertório mais ou menos fixo de acordes, soluções harmônicas, arquétipos melódicos e de instrumentação, já familiares à música popular norte-americana (Tragtemberg, 1991, p. 30).

Tragtemberg aponta em seu artigo que houve no tropicalismo um retorno a padrões

anteriores a Bossa Nova, que remetem a mensagens redundantes, porém adicionou a esse

discurso, por intermédio dos arranjos de Rogério Duprat, um alto grau de informação

equilibrando esses dois conceitos numa mesma canção.

Esse estudo vai tomar como ponto de partida o movimento Bossa-Nova. O que

realmente contribuiu para a "linha evolutiva” proposta por Caetano terá uma conexão direta

com a informação e aqui denominada de “vanguarda”. O que tiver de retorno a técnicas

anteriores à Bossa Nova, relacionado às mensagens redundantes, denominaremos de

“tradição”.

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Capítulo 2

ROGÉRIO DUPRAT E SUA ATUAÇÃO

PARA A CRIAÇÃO DA TROPICÁLIA

Esse capítulo tem como objetivo principal analisar a participação do arranjador

Rogério Duprat na música brasileira e de sua contribuição para a criação de um movimento

musical que ficou conhecido como Tropicália.

O capítulo foi dividido partindo de suas duas principais atuações: como arranjador

e/ou regente nas gravações dos discos, ou ainda nas apresentações ao vivo tanto nos shows

como nos festivais e foram dispostas, na medida do possível, em ordem cronológica.

2.1 - Primeiro contato

Em meados dos anos 60, mais precisamente em 1965, as emissoras de TV começaram

a produzir vários festivais de música, onde se revelaram vários compositores e intérpretes da

nossa MPB.

O 1º Festival de Música Popular Brasileira foi produzido pela TV Excelsior de São

Paulo. As inscrições eram feitas através das partituras (uma prática não usual em música

popular) e contou com uma seleção prévia feita por Amilton Godoy (do Zimbo Trio),

Augusto de Campos, Décio Pignatari, Damiano Cozzella e Walter Silva. Foram organizadas

três eliminatórias para classificar 12 canções para a grande final marcada para o dia 6 de abril

de 1965. Os arranjos ficaram a cargo de Mário Tavares, Severino Filho, Radamés Gnattali,

entre outros, e foram executados pelo Trio Tamba ou pela orquestra Excelsior regida por

Silvio Mazzuca. O júri, que contou com os jornalistas Franco Paulino, Lenita Miranda de

Figueiredo, Sergio Cabral, Nestor de Holanda, Everaldo Guillon, Silvio Túlio Cardoso, o

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novelista Roberto Freire, o radialista Roberto Corte Real e os músicos Erlon Chaves e Eumir

Deodato, elegeu, em segundo lugar a composição intitulada "Valsa do Amor que não vem" de

Baden e Vinicius e com interpretação de Elizeth Cardoso e em primeiro lugar a composição

"Arrastão", de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, interpretada por Elis Regina apontando para

uma nova perspectiva para a música brasileira, como salienta Zuza Homem de Mello:

Não era uma ruptura com a bossa nova, nem uma corrente contrária, e sim uma decorrência da estrutura harmônica da bossa nova. "Arrastão" passou a ser divisor de águas, provocando o surgimento de uma música popular moderna, abreviada na sigla MPM (Mello, 2003, p. 67).

Em junho de 1966 aconteceu o Festival Nacional da Música Popular, que promoveu

cinco eliminatórias em cidades diferentes (Guarujá, Porto Alegre, Recife, Ouro Preto e Rio de

Janeiro) e a final em São Paulo. Foram escalados para o acompanhamento das músicas os

grupos de Pedrinho Mattar, Trios Três D (do pianista e compositor Antonio Adolfo), grupo

Barra Três, além da Orquestra da TV Excelsior regida por Sílvio Mazzuca. O júri composto

pelo poeta Paulo Mendes Campos, o crítico Lucio Rangel, o cronista Rubem Braga e os

maestros Guerra Peixe, Radamés Gnattali, Diogo Pacheco e Eduardo de Guarnieri premiou,

em primeiro lugar, a música "Porta-estandarte", de Geraldo Vandré e Fernando Lona

interpretada por Tuca e Airto Moreira e em segundo a música "Inaê" de Vera Brasil e

Maricene Costa. A composição intitulada "Boa Palavra", de Caetano Veloso, interpretada por

Maria Odete e arranjada por Antônio Adolfo ficou classificada em quinto lugar.

Porém, com o primeiro lugar de Geraldo Vandré, foi criada uma fórmula e uma

postura estética por este compositor para os festivais seguintes:

Seu desejo de fazer canções identificadas com os anseios e valores culturais do povo de seu país passou a ser viável e, principalmente, reconhecido. A vitória foi uma injeção de ânimo como ele nunca sentira antes. Vandré passou a se dedicar sozinho a uma obra que se alinhava com uma nova forma de arte no Brasil, as músicas de festival. Em suma, Vandré passou a encarnar, por um período, o compositor dos festivais, aquele que dizia o que as torcidas queriam ouvir. Vandré cantou e o povo cantou com ele (Mello, 2003, p. 92).

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Em outubro de 1966 foi realizado, após três eliminatórias, a final do 2º Festival de

Música Popular Brasileira, produzido pela TV Record, e disputado no teatro da emissora. A

pré-seleção das músicas foram feitas por Júlio Medaglia, Raul Duarte, o produtor Roberto

Corte Real, o jornalista Roberto Freire e Cesar Camargo Mariano (que tocou ao piano as

2.635 músicas inscritas para escolherem 36 participantes) que, juntos com os jornalistas Sílvio

Túlio Cardoso, Luiz Guedes, Franco Paulino, Alberto Medauar, Denis Brean e os

compositores Mário Lago e Paulo Vanzolini, formaram o grupo de jurados do festival. As

composições "A Banda", composta por Chico Buarque e interpretada pelo próprio e Nara

Leão, e "Disparada", de Geraldo Vandré e Theo de Barros ficaram empatadas em primeiro

lugar enquanto a canção de Gilberto Gil interpretada por Elis Regina, "Ensaio Geral", se

classificou em quinto lugar. Caetano Veloso ganhou o prêmio de melhor letra do festival com

a canção "Um dia", interpretada por Maria Odete.

Em maio deste mesmo ano, Caetano publicou na edição número 7 da Revista

Civilização Brasileira um artigo intitulado "Que Caminho Seguir na Música Popular

Brasileira?" onde defendeu a "retomada da linha evolutiva" tendo como parâmetro a obra de

João Gilberto que, para o autor "a informação da modernidade musical utilizada na recriação,

na renovação, no dar um passo à frente da música popular brasileira, deverá ser feita na

medida em que João Gilberto fez" (apud Favaretto, 2000, p. 40). Esse artigo junto com a boa

aceitação de suas composições nos festivais, chamou a atenção de Augusto de Campos que

publicou um estudo no Correio da Manhã do dia 14 de outubro de 1966 com o título de "Boa

Palavra Sobre a Música Popular” 6. Campos elogia o compositor "... é preciso saudar Caetano

Veloso e sua oportuna rebelião contra a 'ordem do passo atrás'" (Campos, 1978, p. 64) e fez

uma análise da sua composição "Boa Palavra" citando também a canção "Um dia":

6 Esse estudo junto com vários outros artigos publicados em jornais por Augusto de Campos foi editado em seu livro Balanço da Bossa, publicado em 1968. Em 1978 esse livro foi ampliado e recebeu um novo título: Balanço da Bossa e outras bossas.

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Nesta melodia, como também em Um Dia, apresentada no recentíssimo Festival do Canal 7, Caetano Veloso revela uma inquietação criativa que só pode ser fecunda, extraindo novos efeitos do uso de largos intervalos musicais e da permanente alternância de graves e agudos num amplo registro vocal. A complexidade melódica de suas músicas, que exige muito do cantor - e Caetano encontrou em Maria Odete uma intérprete de bons recursos, embora um tanto contagiada por certas afetações expressionísticas em voga - não fere a beleza de suas canções, que têm obtido imediata ressonância junto ao público, desmentindo as previsões de "impopularidade" dos que julgam que é preciso simplificar e "quadratizar" tudo para ser entendido e aceito pelas audiências brasileiras. (Campos, 1978, p. 64)

Augusto de Campos detectou nas primeiras composições de Caetano uma proposta de

mudança e de ruptura com a estética composicional vigente nos festivais. Mesmo partindo de

uma interpretação tradicional por parte da cantora Maria Odete, o compositor acrescentou

novas informações musicais ao seu discurso, conseguindo uma boa aceitação do público.

Campos finalizou o seu artigo num tom quase profético antecipando propostas que apontarão

novos caminhos nos anos subseqüentes:

Caetano Veloso, entre outros jovens compositores de sua geração, mostra que é possível fazer música popular, e inclusive de protesto e de Nordeste quando preciso, sem renunciar à "linha evolutiva" impressa à nossa música popular pelo histórico e irreversível movimento da bossa-nova. Não cabe aos críticos apontar caminhos, senão observar e compreender. Eles - os compositores - é que indicarão com suas músicas futuras esses caminhos e dirão, sobre o debate que hoje se trava em torno da música popular brasileira, a palavra final. Que - é licito esperar - há de ser, como a posição e a da composição de Caetano Veloso, uma "boa palavra" (Campos, 1978, p. 64 - 65).

No mesmo mês a TV Rio promoveu também o 1º Festival Internacional da Canção

(FIC) realizado no Maracanãzinho e contou com uma fase nacional e uma internacional

(canções interpretadas por artistas convidados concorrendo com a vencedora brasileira). O

júri foi composto pelas cantoras Elizeth Cardoso e Eliana Printes, os críticos Juvenal Portela,

João Maurício Nabuco, Sílvio Túlio Cardoso, Ilmar Carvalho e Mauro Ivan, os jornalistas

Sandro Moreira, Justino Martins, Luiz Fernando Guedes, Hugo Dupin e Arnaldo Niskier, a

colunista Gilka Serzedelo Machado, os compositores Hermínio Bello de Carvalho, Roberto

Menescal e Chico Buarque, o radialista Almirante, os musicólogos Edgard Alencar, Mozart

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de Araújo e Aloísio de Alencar Pinto, Ricardo Cravo Albin, o apresentador Flávio Cavalcanti

e o escritor Henrique Pongetti.

Na final nacional, na noite do dia 24 de outubro, o júri premiou em primeiro lugar a

canção "Saveiros" de Dori Caymmi e Nelson Motta, interpretada por Nana Caymmi, o

segundo lugar ficou com "O Cavaleiro" de Tuca ao violão e arranjo de Radamés Gnattali e em

terceiro lugar "Dia das Rosas" com a interpretação de Maysa. A canção "Minha Senhora", de

Gilberto Gil e Torquato Neto com arranjo de Francis Hime e interpretada por Gal Costa não

chegou a ser classificada, porém, sua bela interpretação abriu-lhe as portas para que seu

primeiro disco junto com Caetano Veloso, chamado Domingo, fosse gravado.

Em outubro de 1967 foi realizada a final do III Festival de MPB da TV Record de São

Paulo. A pré-seleção das 36 músicas selecionadas para o festival foi feita na casa do pai do

maestro Júlio Medaglia na Lapa, junto com Sandino Hohagen, os pianistas Amilton Godoy e

Cesar Camargo Mariano, o poeta Ferreira Gullar, Roberto Corte Real e Raul Duarte. Nesse

festival, grande parte dos compositores se transformou em intérpretes de suas próprias

canções (como Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Sidney Miller, entre outros). Outro

fato inédito foi a produção de três LPs com as 36 músicas que fariam parte do festival; a

produção desde disco ficou dividida entre Armando Pittgliani, que produziria os artistas do

Rio e Manuel Barenbein que produziria os artistas de São Paulo. Este último tornar-se-ia

mais tarde o produtor dos discos mais importantes do tropicalismo.

Após três eliminatórias foi para a grande final 12 canções. "Ponteio", de Edu Lobo e

Capinan ganharam o primeiro lugar, seguida da canção de Gilberto Gil intitulada "Domingo

no Parque". Chico Buarque ficou em terceiro lugar com a sua composição “Roda Viva”

seguido de Caetano Veloso com sua canção "Alegria, Alegria".

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Para o Correio da Manhã do dia 26 de outubro de 19677 Augusto de Campos escreveu

um artigo intitulado Festival de Viola e Violência onde faz um panorama do festival, critica a

premiação em dinheiro oferecida acreditando que tal prêmio “possa conduzir a uma

deformação da mentalidade do compositor levando-o a compor músicas ‘para ganhar

festival’” e defende as composições de Caetano e Gil como sendo as melhores:

Inovação mesmo, e corajosa, no sentido de desprovincianizar a música brasileira, tal como já fizera um grande baiano, João Gilberto, é essa que os novos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil apresentaram no Festival, com Alegria, Alegria e Domingo no Parque, lutando contra barreiras e preconceitos do público, do júri, dos companheiros de música popular, e superando-se a si próprios (Campos, 1978, p. 131).

Essa inovação observada por Augusto de Campos é apresentada tanto nas letras como

nos arranjos das canções. Caetano executou a sua composição "Alegria, Alegria" (que

segundo o próprio compositor, o título era um bordão utilizado pelo animador de TV

Chacrinha, que, por sua vez, tomara emprestado do cantor de samba-jazz Wilson Simonal)

acompanhado do conjunto Beat Boys. Esse encontro é descrito pelo próprio compositor:

A casa noturna paulista O Beco, de Abelardo Figueiredo, um velho conhecido de Guilherme [Araújo, produtor musical], tinha sob contrato um grupo de rock argentino chamado de Beat Boys, composto de jovens músicos portenhos muito talentosos e conhecedores da obra dos Beatles e do que mais houvesse. Guilherme, que os ouvira casualmente numa ida ao Beco, me sugeriu que fosse conferir. Ao vê-los e ouvi-los soube que aquilo era a coisa certa. O aspecto do grupo de rapazes de cabelos muito longos portando guitarras maciças e coloridas representava de modo gritante tudo os que os nacionalistas da MPB mais odiavam e temiam. O som típico do neo-rock’n’roll inglês – que eles reproduziam com segurança – entraria como um último retoque da composição (Veloso, 1997, p. 168-169).

Essa declaração de Caetano apontou várias perspectivas de ruptura com a MPB: a

utilização dos instrumentos eletrônicos como guitarras e contrabaixo elétrico, comum nos

conjuntos de rock ingleses e americanos, vinham de encontro com as propostas nacionalistas

de alguns compositores como Geraldo Vandré, Edu Lobo e a intérprete Elis Regina.

7 Esse artigo também faz parte do livro Balanço da Bossa e outras bossas de Augusto de Campos.

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Essa ruptura também é apresentada na poesia da canção. Augusto de Campos faz uma

interessante análise:

Furando a maré redundante de violas e marias, a letra de Alegria, Alegria traz o imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada, isomorficamente, através de uma linguagem nova, também fragmentária, onde predominam substantivos-estilhaços da “implosão informativa” moderna: crimes, espaçonaves, guerrilhas, cardinales, caras de presidentes, beijo, dentes, pernas, bandeiras, bombas ou Brigitte Bardot. É o mundo das “bancas de revistas”, o mundo de “tantas notícias”, isto é, o mundo da comunicação rápida, do “mosaico informativo” de que fala Marshall McLuhan (Campos, 1978, p. 153).

Campos, em seu artigo, contrapôs a quantidade de citações do nome Maria contido nos

títulos das canções ("Maria, carnaval e cinzas", de Luiz Carlos Paraná e interpretado por

Roberto Carlos e O Grupo, "Samba de Maria", de Francis Hime e Vinicius de Moraes,

interpretado por Jair Rodrigues, "Dadá Maria" de Renato Teixeira interpretado por Gal Costa

e Silvio Cesar) e as constantes citações de "violas" contidas nas canções "Roda Viva" de

Chico Buarque e "Ponteio" de Edu Lobo e Capinan que refletem os temas tradicionais

brasileiros, interioranos, com a canção de Caetano, de caráter mais universalista, ligada

diretamente a pesquisas sobre a sociedade contemporânea proposta por Marshall McLuhan.

A canção "Domingo no Parque" de Gilberto Gil, seguiu essa nova estética: a utilização

de uma banda de rock, batizada de "Os Mutantes", que contava com instrumentos eletrônicos

como guitarra e contrabaixo elétrico (considerados como uma heresia entre os defensores

radicais da música popular brasileira) um toque de berimbau e uma orquestra arranjada por

Rogério Duprat. Tal ruptura mexeu com a percepção dos ouvidos mais tradicionais da música

popular brasileira, rendendo, inclusive, um artigo no Jornal da Tarde, 4 de outubro de 19678

intitulado Gil espera tranqüilo outra vaia onde o autor defende essa nova proposta estética:

Na música pop de hoje, os Beatles passam a utilizar todos os tipos de música e de instrumentação eruditas que não pertenciam ao que chamavam iê-iê-iê.

8 Artigo extraído da página da internet: www.uol.com.br/tropicalia

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Estão evoluindo sempre, enquanto no Brasil a própria música chamada jovem se torna conservadora. E na música popular brasileira o conservadorismo é muito pior. Se pensássemos sempre assim, estaríamos tocando nossas músicas com instrumentos indígenas. É preciso pensar em termos universais. O mundo hoje é muito pequeno, não há razões para regionalismos. Se amanhã formos a Marte e se lá houver música, a Terra talvez se una e proteste: "Não toquem esta música, ela é estrangeira".

Esta declaração de Gil, juntamente com a de Caetano, reforça suas influências da obra

dos Beatles, que neste mesmo ano haviam lançado o álbum Sergent Pepper's Lonely Hearts

Club Band, um marco na obra deste conjunto pelo grande teor de experimentalismo.

Enquanto a Jovem Guarda (movimento encabeçado por Roberto e Erasmo Carlos) refletiam a

primeira fase deste grupo (alguns pesquisadores acreditam que o termo iê-iê-iê é a versão

brasileira do famoso refrão dos Beatles: "Shes loves you, yeah, yeah"), Caetano e Gil se

inspiravam nesta segunda fase, mais experimental, como declarou Caetano em seu livro:

o experimentalismo ostensivo de Sergent Pepper's Lonely Hearts Club Band estava próximo não só do que fazíamos, como dos grandes artistas que eu admirava, fossem eles Godard, Oswald, Augusto de Campos, João Cabral, Joyce, Lewis Carroll ou e. e. cummings (Veloso, 1997, p. 271 - 272).

Caetano indica duas propostas fundamentais para a criação de uma canção: a música -

tendo como referência o experimentalismo dos Beatles e por conseqüência a produção erudita

contemporânea - e a poesia de vanguarda - que serviu de alicerce aos poetas concretos. Essa

união vem de encontro às propostas estéticas dos poetas e compositores paulistas de

vanguarda que logo se aliaram aos novos compositores/intérpretes baianos.

Gil pretendia, então, conseguir um arranjador que refletisse a estética dos arranjos que

George Martin fazia para os Beatles. Inicialmente esse papel foi destinado à Júlio Medaglia,

mas como este passou a fazer parte da organização do festival, indicou o compositor Rogério

Duprat para esse trabalho. O próprio Duprat expôs todo esse processo:

E aconteceu que, então, nesse ano de 67, o Júlio Medaglia, que estava lá no júri de seleção da Record, aí por acaso, ele, conversando com o Gil, ele viu que o Gil estava meio malcontente, não estava satisfeito de fazer só com orquestra;

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como todo mundo fazia aquele negócio de festival; ele queria botar pra quebrar também. Ele e Caetano já estavam pensando que tinha que chegar à música pop. Era a última palavra, aquela coisa que estava misturando, comportamento diferente, não mais só musiquinha. Então, o Gil, conversando com o Júlio, perguntou quem ele achava que podia ajudar no arranjo de "Domingo do Parque". E ele me apresentou ao Gil. Aí, Gil disse: "veja, o que você quer fazer?" "Eu acho que o negócio é partir para o pau mesmo, botar rock, misturar com essa coisa baiana de vocês, e mandar o pau". E ele: "Está bom, você conhece alguém?". E eu disse: "eu vou trazer as únicas pessoas que servem pra você… Dá um tempo, um dia ou dois…". Então, peguei Os Mutantes, porque eu já estava "mamado" neles, porque eles eram um grupo de uma pureza sensacional, aquela coisa das primeiras músicas deles. Nenhum deles, nenhum desses grupos tinham aquela ingenuidade gostosa, agradável, aquela encenações que a Rita já fazia, e eles também, os meninos... (Rosa e Matias [s.d.])9

Duprat expôs nesta declaração o interesse de Gil em buscar novas sonoridades,

quebrando as já rotineiras apresentações apenas com orquestra. A mistura do rock com a

música baiana foi proposta do próprio arranjador que apresentou a Gil o conjunto “Os

Mutantes” com quem já tinha trabalhado no disco do cantor Ronnie Von naquele mesmo ano.

Gil, em entrevista a Augusto de Campos, descreveu como se deu a relação de trabalho

entre o compositor / intérprete e o arranjador da canção:

Eu mostrei a Rogério a música e as idéias que eu já tinha e ele as enriqueceu com os dados técnicos que ele manuseia e eu não: a orquestração, o conhecimento da instrumentação. Mas a decupagem do arranjo, a determinação de que climas funcionariam em determinadas partes, que tipos de instrumento, que tipos de emoção, todas essas coisas foram planejadas por mim e pelo Rogério. Inclusive, o arranjo foi feito gradativamente. Nós nos sentamos, durante 4 ou 5 dias, em tardes consecutivas, e fomos discutindo, formulamos, reformulamos e até no estúdio ainda fizemos modificações em função das sonoridades que resultavam. Foi um trabalho realmente feito em conjunto (Campos, 1978, p. 196).

Gil deixou claro a atuação de Duprat no arranjo da canção. O arranjador trabalhou em

parceria com o compositor na construção das idéias musicais atuando mais diretamente na

orquestração e instrumentação, metier mais ligado ao trabalho do arranjador.

9 Entrevista disponível no site: http://www.senhorf.com.br

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A utilização da guitarra elétrica nas duas canções, bastante questionada pelos

nacionalistas (como Edu Lobo, Elis Regina), já era uma proposta timbrística utilizada pelos

compositores eruditos nessa mesma época. Inclusive, Stockhausen a utilizou na orquestração

de "Gruppen". Rogério Duprat estava em total sintonia com essas propostas estéticas, tanto

musicais como comportamentais, e assim declarou numa entrevista para a revista Manchete:

Nós sentíamos que o uso da guitarra não era um negócio puramente musical e sim um novo tipo de comportamento pop que vinha envolvendo o mundo desde 1960. Decidimos incluir em nossas atividades musicais os elementos desse novo comportamento. Não usamos a guitarra simplesmente para chatear Elis Regina, Edu Lobo ou qualquer um que pertencesse à ortodoxia musical brasileira. Queríamos mudar as coisas (apud Favaretto, 2000, p. 46).

A apresentação de "Domingo no Parque" obteve grande aceitação. Por isso, os

membros do júri criaram uma categoria para premiar o melhor arranjo concedendo o prêmio a

Rogério Duprat.

O artigo de Augusto de Campos chega ao fim:

E aqui deve ser lembrada a contribuição do arranjador, Rogério Duprat, no caso, essencial e em si mesma um marco para a música popular brasileira. Marco de uma colaboração que muitos julgariam impossível entre um compositor de música popular e um compositor de vanguarda (embora Rogério não goste de ser chamado assim, seus conhecimentos e suas práticas de alta cultura musical contemporâneas não suportam outra classificação). Esse encontro tão bem sucedido, mostra que já não há barreiras intransponíveis entre a música popular e a erudita (Campos, 1978, p. 154).

Campos (1978) detectou que em "Domingo no Parque" existiu uma colaboração mútua

entre um compositor de vanguarda, que não abriu mão de seus valores estéticos, e um

compositor de canção popular tornando-se um marco referencial, onde a linha que divide a

produção musical erudita da popular se atenua consideravelmente. No Brasil grandes

compositores eruditos trabalharam como arranjadores e regentes na produção de música

popular (podemos aqui citar, apenas como exemplo, Guerra-Peixe e Radamés Gnatalli e seus

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trabalhos nas rádios durante os anos 50), porém, nesta canção, o arranjo assume papel

fundamental que complementa a melodia e a letra composta por Gil.

Essa nova proposta de Caetano e Gil começou a receber algumas classificações:

Gilberto Mendes, em seu artigo chamado "De Como a MPB Perdeu a Direção e Continuou na

Vanguarda" publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo em 11 de

novembro de 1967 – a menos de um mês do final do festival, realizado no dia 21 de outubro

de 1967 - já chamava essa nova proposta de "som universal". Esse mesmo termo foi utilizado

por Augusto de Campos em seu artigo publicado no jornal Estado de São Paulo em 25 de

novembro de 1967 denominado "A Explosão de Alegria, Alegria". Nota-se que esses dois

críticos atribuíram ao termo "som universal" um contraste à estética nacionalista, comum nos

festivais.

2.2 - Os discos de Caetano Veloso e Gilberto Gil

Em março de 1968 são lançados os discos individuais de Caetano Veloso e Gilberto

Gil. Gil dá continuidade ao seu trabalho com Rogério Duprat enquanto Caetano convida os

compositores Júlio Medaglia, Damiano Cozzella e Sandino Hohagen para escreverem seus

arranjos.

Esses quatro compositores, junto com Willy Correia de Oliveira, Gilberto Mendes,

Régis Duprat e Alexandre Pascoal faziam parte de um grupo chamado Música Nova. Tinham

em comum a mesma formação estética - estudaram em 1962 nos cursos de férias de

Darmstadt (um curso que a partir da década de 50 compositores e estudantes se reuniam para

debater a música de seu tempo) com Henri Posseur, Pierre Boulez e Karlhein Stockhausen,

onde, segundo Duprat "... fui "mamar" nas vacas sagradas: Boulez, Stockhausen, aquele

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pessoal da música de vanguarda européia" (Rosa e Matias [s.d.])10 - e em 1963 assinaram o

manifesto Música Nova.

Esse manifesto, entre outras coisas, já previa uma "quebra de barreiras" entre a

produção artística e a comercial, como será visto a seguir:

elaboração de uma 'teoria dos afetos' (semântica musical) em face das novas condições do binômio criação-consumo (música no rádio, na televisão, no teatro literário, no cinema, no 'jingle' de propaganda, no 'stand' de feira, no estério doméstico, na vida cotidiana do homem) tendo em vista um equilíbrio informação semântica - informação estética. ação sôbre o real como 'bloco': por uma arte participante.

Esse interesse recíproco entre os compositores de vanguarda de música impopular e

compositores de música popular (diretamente ligada à indústria cultural) - o que Décio

Pignatari denominou de prodossumo (produto + consumo) - se realiza num âmbito mundial a

partir de 1967 com o disco dos Beatles Sergent Pepper's Lonely Hearts Club Band. Segundo

Paul Griffiths (1998):

Tornou-se possível inclusive a realização de concertos conjuntos de grupos eletrônicos e de música pop, e isto sem qualquer incongruência, pois já agora a distinção era apenas uma questão de formação, origem, público e marca de disco (Griffiths, 1998, p. 154).

O guitarrista americano Jimmy Hendrix aliou o sprechgesang (canto falado comum

nas peças de Schoenberg) ao ruído e a distorção; Frank Zappa e seu grupo Mothers of

Invention realizou cruzamentos entre a música pop e a experimental; o grupo Pink Floyd

lançava seus discos mais experimentais utilizando técnicas da música eletroacústica; o

compositor francês Pierre Henry, que junto com o compositor Pierre Schaeffer compôs a

Symphonie pour un Homme Seul (1949 - 50), uma das primeiras obras eletrônicas a serem

apresentadas em execução pública, lançou o disco Ceremony, em parceria com o grupo pop

inglês Spooky Tooth; o compositor eletroacústico Bernard Parmegiani fez experiências de

10 Entrevista disponível no site: http://www.senhorf.com.br

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fusão de elementos de Jazz com a eletroacústica (peças para quinteto de jazz e fita magnética)

Emerson, Lake e Palmer fazem uma versão de “Quadros de uma Exposição”, do compositor

russo Mussorgsky para uma banda de rock em 1972.

Augusto de Campos aponta, em seu livro Balanço da Bossa, um elo entre os baianos e

os compositores da Música Nova: se para Caetano, João Gilberto representa o "passo a frente"

da música popular, o mesmo se pode dizer de Webern para a música erudita. A busca de

novos caminhos expressivos, cada qual em sua área, representa interesses comuns. Campos

(1978) diz:

Aquilo que foi e é o João Gilberto pra vocês é o Webern para a música erudita moderna. Foi chegando um momento em que o estilo serial pontilhista pós-weberniano, antes altamente informativo, foi se tornando redundante. Então os nossos músicos - Willy Corrêa de Oliveira, Gilberto Mendes, Rogério Duprat, Damiano Cozzella - partiram para aquilo que Décio Pignatari chamou de "luta pelo avesso" (Campos, 1978, p. 203).

Para o LP de Caetano Veloso, Júlio Medaglia fez os arranjos das músicas "Tropicália"

(Caetano Veloso), "Clarice" (Caetano e Capinan) e "Onde Andarás" (Caetano e Ferreira

Gullar). Damiano Cozzella arranjou "Paisagem útil" (Caetano Veloso) enquanto Sandino

Hohagen fez os arranjos de "Anunciação" (Caetano e Rogério Duarte), "Clara" (Caetano) -

essas duas com a participação do grupo Musikantiga - e "Ave Maria" (Caetano). Participaram

ainda os Beat Boys em "Alegria, Alegria" (Caetano), "No dia em que eu vim-me embora"

(Caetano e Gil) e em "Soy Loco por ti, América" (Gil e Capinan). Os Mutantes participaram

na canção "Eles" (Caetano e Gil) e o RC-7 em "Superbacana" (Caetano). O disco teve ainda a

direção de produção de Manoel Barenbein, capa de Rogério Duarte e fotos de David Drew

Zing.

O LP de Gilberto Gil (no LP 765024) foi gravado em 4 canais nos estúdios CBD (SP)

no início de 1968 e lançado pela gravadora Philips. Contou com os arranjos e a regência de

Rogério Duprat em quase todas as faixas e a participação especial dos Mutantes. No

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repertório constavam as canções "Frevo Rasgado", de Gil e Bruno Ferreira; "Coragem pra

suportar", de Gilberto Gil (embora o crédito do disco indique que todos os arranjos foram

compostos por Rogério Duprat, o arranjo desta canção foi feito pelo próprio compositor com

os Mutantes na hora de gravar, segundo entrevista dada pelo compositor a Augusto de

Campos11); o iê-iê-iê "Domingou", parceria de Gil e Torquato Neto; o baião "Marginália II",

outra parceria de Gil e Torquato Neto, onde Duprat faz uso de acordes dissonantes e da

citação do "Hino dos Fuzileiros Navais".

Partindo da orientação do técnico de áudio: “Atenção bicões, gravando!”, "Pega a

voga, cabeludo", canção do folclore amazonense recolhida por Juan Arcon, foi adaptada por

Gil e executada num ritmo de iê-iê-iê, onde baixo, guitarra, bateria, palmas e um coro do

grupo Os Mutantes fazem o acompanhamento instrumental. Adaptaram a melodia do refrão

de “Pobre Menina”, sucesso da Jovem Guarda na voz de Leno e Lílian, com o intuito de gozar

o produtor Manuel Barenbein (“eh Manuel, pára de encher!”) além de um solo de guitarra de

Sérgio Dias (“Serginho, cabeludo danado... quem foi que disse que você toca bem guitarra...

bicão!”) e de um discurso do percussionista Dirceu que diz em sotaque nordestino: “Esse som

psicodélico é redondo que nem uma gota!”. No meio da gravação, glissandos vocais,

imitações de carneiros, assovios, são executados, terminando a faixa com uma salva de

palmas.

Em “Ele falava nisso todo dia”, de Gilberto Gil, Duprat utiliza as sonoridades de uma

banda de rock e de orquestra; "Luzia Luluza", de Gilberto Gil, está analisada no capítulo

seguinte. O disco tem ainda as canções "Procissão" (Gil), "Pé de Roseira" (Gil) e a já citada

"Domingo no Parque".

O LP como um todo apresenta, timidamente, novas propostas estéticas na MPB que

aparecerão mais radicalmente expostos nos próximos discos: a utilização da música concreta,

11 Essa entrevista está no livro Balanço da Bossa e outras Bossas, de Augusto de Campos, no capítulo Conversa com Gilberto Gil - p. 196.

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happening, a mistura da sonoridade orquestral com os instrumentos eletrônicos, o cruzamento

de culturas, entre outras coisas.

Seguindo a fórmula do arranjo de "Domingo no Parque", todas as outras músicas do

LP foram feitas em parceria. Carlos Calado (1997), em seu livro Tropicália: a história de

uma revolução musical dá uma interessante declaração:

Ao contrário dos arranjadores tradicionais, que costumam chegar no estúdio com as partituras prontas, Duprat fazia questão de ouvir as idéias de Gil - no caso de Domingo no Parque, foi o próprio compositor que sugeriu os ruídos de um parque de diversões, que aparecem na gravação. Só depois de discutirem muito, Duprat colocava em prática seus conhecimentos técnicos de orquestração e harmonia, para escrever a partitura. Na volta ao estúdio, os dois ainda faziam modificações, até chegar à forma final (Calado, 1997, p.170).

Calado descreveu a relação de trabalho entre o compositor e o arranjador que vem de

encontro a outro tópico do Manifesto Música Nova (1963) no que diz respeito à produção

musical. Esse tópico defende o conceito de execução e criação coletiva tanto na produção

como no consumo. Mais uma vez Duprat estava em sintonia com seus preceitos.

“Tropicália” era o nome de uma instalação do artista plástico Helio Oiticica e foi

sugerido pelo fotógrafo do Cinema Novo e hoje um dos maiores produtores cinematográficos

brasileiro Luiz Carlos Barreto para título da canção de Caetano Veloso. No dia 5 de fevereiro

de 1968, o jornalista Nelson Motta publicou um artigo no jornal “Última Hora” intitulado “A

Cruzada Tropicalista”, que sugeriu uma festa tropical no Copacabana Palace com direito a

“música baseada em samba-canção da década de 50”. Em entrevista a Augusto de Campos no

dia 6 de abril de 196812 Torquato Neto já propunha a feitura de um disco-manifesto,

nomeando-o de “Grupo Baiano”, porém o grupo acabou sendo conhecido realmente com o

nome de Tropicália.

12 A entrevista se encontra no livro Balanço da Bossa e outras Bossas no capítulo “Conversa com Gilberto Gil”, onde há intervenções de Augusto de Campos e Torquato Neto (p. 189 - 198).

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2.3 - O disco dos Mutantes

No final de junho de 1968 foi lançado o primeiro LP dos Mutantes pela Polydor (n°

LPNG 44.018). Arnaldo Dias Baptista tocou teclado, contrabaixo elétrico, Rita Lee tocou

flauta e percussão e Sergio Dias Baptista, guitarra. Os três, em momentos distintos, também

cantavam. O LP contou com a participação de Jorge Ben (hoje Jorge Benjor) cantando e

tocando violão na faixa de sua autoria “Minha Menina” e do baterista Dirceu. Rogério Duprat

escreveu os arranjos. Estavam no repertório do LP:

"Panis et Circencis", canção com letra de Caetano Veloso e música de Gilberto Gil,

abre o disco começando com a citação da música de abertura do programa de TV Repórter

Esso. A segunda estrofe é cantada acompanhada contrapontisticamente por um solo de

trompete que lembra o arranjo de "Penny Lane" dos Beatles. Na terceira apresentação do

refrão - "Mas as pessoas na sala de jantar / São ocupadas em nascer e morrer" - sobre a

palavra "morrer", a rotação da música é reduzida, chegando a zero, provocando um efeito

eletroacústico de um glissando descendente a notas gravíssimas. Logo após, o refrão é

repetido inúmeras vezes aumentando gradativamente o andamento da música, seguido por um

corte súbito. Um som de "copo quebrando" seguido pela valsa "Danúbio Azul" e sons de

talheres e copos, sugere uma ambiência de pessoas jantando. Calado (1995) descreveu como

foi executada essa parte da canção:

Para a gravação de Panis et Circensis (...) todo o pessoal do estúdio foi convocado para simular a ambientação do jantar que encerra a faixa. É a voz do próprio Barenbein [produtor do disco] que aparece pedindo pão e salada entre ruídos de talheres, pratos e copos, com a cafona valsa Danúbio Azul de fundo musical (Calado, 1995, p. 115).

Um happening, produzido por Duprat e perceptível apenas de forma audível (pois se

trata de uma gravação para um LP) encerra a gravação da canção que oferece um resumo

bastante significativo das propostas estéticas dos arranjos tropicalistas: a utilização, dentro de

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uma canção popular, de técnicas composicionais de vanguarda, como o já citado happening, a

música eletrônica e concreta e as citações musicais.

Em "Bat Macumba", canção de Gilberto Gil e Caetano Veloso que apresenta

cruzamentos entre a indústria cultural (representada pelo Batman) e a cultura brasileira

(macumba) aproxima as propostas antropofágicas de Oswald de Andrade à poesia concreta. O

arranjo mistura a sonoridade de uma banda de rock com a percussão brasileira. O guitarrista

Sérgio Dias utilizou um efeito em sua guitarra criado pelo seu irmão Cláudio César Dias que

acoplou um potenciômetro a um motor de máquina de costura, transformando, através de um

capacitor, o som da guitarra, gerando harmônicos inovadores.

Na canção "Le Premier Bonheur du Jour" (Jean Renard / Frank Gerald), numa

ambiência próxima da sonoridade indiana (são utilizados em seu arranjo instrumentos de

percussão e de cítaras), uma bomba de Flit (um inseticida bastante popular) substitui o som do

chimbau da bateria. Sobre este episódio, Calado (1995) relatou:

O maestro Rogério Duprat não só adorou a proposta, como sugeriu encher a bomba com água, em vez de usá-la vazia, porque dessa forma o som poderia ficar mais encorpado. Acabaram descobrindo que a água também alterava a sonoridade do inusitado instrumento – o som ideal era mesmo produzido com a bomba cheia de inseticida. Difícil foi ficar no estúdio após a seção de dedetização sonora (Calado, 1995, p. 115).

Esse relato demonstrou toda a preocupação e critério do conjunto e do arranjador em

busca de novas sonoridades e de novos timbres.

"Ave Gengis Khan", de Sergio Dias, Arnaldo Baptista e Rita Lee, começa com sons

próximos a uma risada e aplausos de público, além da manipulação de sons processados

eletroacusticamente: a leitura "ao contrário" da fita magnética da voz de César Baptista, pai de

Sergio e Arnaldo. Segundo Calado (1995): "Em Ave Gengis Khan o doutor César Baptista

parece estar cantando em russo, já que a fita gravada com seus vocais foi reproduzida de trás

para frente" (Calado, 1995, p. 117).

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Sons de ventos, pássaros e de um coral caracterizam a introdução de "Adeus Maria

Fulô" de Humberto Teixeira e Sivuca, que tem como tema a seca do sertão, mas que aqui

recebe um acompanhamento de samba, com direito a cuíca e surdo além de um xilofone.

O disco contava ainda com as canções "A Minha Menina", de Jorge Ben, que apesar

de não estar incluído na ficha técnica, cantou, tocou violão e ainda imitou Chacrinha

precedendo o início da música: "Tosse! Todo mundo tossindo!"; "O Relógio" (Os Mutantes);

"Baby", de Caetano Veloso. "Trem Fantasma" de Caetano Veloso e Os Mutantes. "Tempo no

Tempo" de J. Phillis com versão dos Mutantes fecha o disco com uma sonoridade próxima

das músicas litúrgicas com direito a coro e órgão, além de um solo de sinos no final da

canção.

Durante o curso em Darmstadt, em 1962, Duprat teve contato com os alunos

americanos, entre eles Frank Zappa, e foi apresentado à obra de John Cage e sua estética,

utilizando o acaso, o aleatório e o happening como uma proposta musical, tornando-se

radicalmente um “cagista”.

Após o curso, estagiou durante um mês no laboratório da Radio Television Française

(ORTF) em Paris, na época dirigido por Pierre Schaeffer, onde teve oportunidade de entrar

em contato com todo o aparato da música concreta. Durante esse período, Duprat trabalhou

com pianos preparados e aprendeu algumas técnicas de manipulações sonoras por intermédio

de edições em fitas magnéticas, processos de montagem, filtragens e alterações de

freqüências, além de gravações experimentais de materiais concretos. De volta ao Brasil, em

parceria com Cozzella, compõem no ano seguinte, a obra eletroacústica Klavibm, utilizando

um computador IBM 1620 que pertencia à Escola Politécnica da USP.

Toda essa bagagem cultural se reflete em seu trabalho como arranjador: primeiramente

o disco de Gilberto Gil e, posteriormente, o disco dos Mutantes apresentam novas propostas

no campo do experimentalismo tanto nos parâmetros conceituais e nas pesquisas de novas

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ferramentas composicionais como a música eletroacústica, concreta, happening e pesquisa

timbrística. A revista "Mojo" (uma conceituada revista musical britânica) classifica este disco

dos Mutantes como 12o lugar numa lista dos 50 discos mais experimentais de todos os

tempos, na frente de Beatles, Pink Floyd e Frank Zappa13.

2.4 - O disco coletivo Panis et Circensis

Gravado em maio de 1968, nos estúdio RGE em São Paulo e lançado em julho deste

mesmo ano pela gravadora Philips, o álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circensis (no R

765.040L), com Caetano, Gil, Gal, Os Mutantes, Tom Zé e Nara Leão, arranjos e regência de

Duprat. A intenção de fazer um disco coletivo e de reforçar o movimento é assim descrita por

Caetano:

Eu acreditava - e não creio que estivesse errado - que a feitura do disco coletivo seria uma excelente oportunidade de somar as forças dos componentes do grupo para atingir resultados mais precisos (Veloso, 1997, p. 273).

O disco abre com a canção "Miserere Nobis" de Gilberto Gil e Capinan. Na

introdução, Duprat utilizou um órgão (sonoridade típica da música sacra). O tema é

acompanhado partindo de uma base rítmica tocada por um violão (referência à música

profana). A faixa termina com sons de tiros de canhão.

Para a canção "Coração Materno", do compositor e cantor Vicente Celestino, segunda

faixa do LP, Duprat escreveu, para a interpretação de Caetano, um arranjo para orquestra de

cordas e violão. Caetano faz uma breve análise do arranjo e tece um elogio ao arranjador:

O arranjo que Rogério Duprat fez para esta canção é uma das maiores vitórias do tropicalismo. Excelente orquestrador, Duprat criou uma atmosfera de ópera séria (sem, no entanto, deixar de lembrar trilhas de filmes de Hollywood), restituindo dignidade e conferindo solenidade à canção execrável, o que fazia ressaltar minha interpretação assustadoramente sincera e sóbria (Veloso, 1997, p. 294 - 295).

13 Informação do site www.bbcbrasil.com

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O arranjo descreve instrumentalmente, junto com os versos da música, toda a ação

sugerida por Celestino do rapaz que mata a própria mãe como prova de amor à sua amada.

"Panis et Circensis" (Caetano Veloso e Gilberto Gil) mantém a mesma gravação do

disco dos Mutantes.

O bolero "Lindonéia", de Caetano Veloso e Gilberto Gil, recebeu uma pequena citação

do ritmo de iê-iê-iê sobre os versos "nas paradas de sucesso". É a música com o menor

número de informação de todo o disco.

"Parque Industrial", composição de Tom Zé, e interpretada por Gil, Caetano, Gal,

Mutantes e pelo próprio compositor, começa com os metais fazendo referências às bandas de

coretos do interior somados a sons de burburinhos de crianças, dando a impressão de um

parque de diversões encorpando o discurso poético da canção. Sobre o refrão "porque é made

made made... made in Brazil" Duprat cita, no trombone, os primeiros compassos do Hino

Nacional Brasileiro além do jingle do analgésico Melhoral. A música termina com uma

grande ovação popular.

Para Caetano a canção "Geléia Geral", de Gilberto Gil e Torquato Neto, era a "letra -

manifesto do movimento" (Veloso, 1997, p. 295). As citações, tanto musicais como poéticas

de vários autores são a tônica desta canção. A começar pelo título: o termo foi cunhado por

Décio Pignatari em um texto publicado na revista Invenção ("na geléia geral brasileira,

alguém tem que exercer as funções de medula e de osso"). Faz uma citação direta do

Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade ("a alegria é a prova dos nove" e do

Matriarcado de Pindorama, que para os autores é o "país do futuro") e de seu livro Serafim

Ponte Grande (Brutalidade jardim). Ainda cita referências à vida brasileira como o Jornal do

Brasil, a Miss Brasil, a Carolina, personagem da canção de Chico Buarque, além de fazer

uma aproximação da cultura americana -o iê-iê-iê - com o bumba-meu-boi - dança dramática

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brasileira - no refrão da canção: "Ê, bumba-iê-iê-boi / Ano que vem, mês que foi/ Ê, bumba-

iê-iê-iê / É a mesma dança, meu boi". Torquato inclusive, no texto de contracapa do LP

apresentado em forma de roteiro cinematográfico, questionou o entendimento do famoso

folclorista: "Será que o Câmara Cascudo vai pensar que nós estamos querendo dizer que

bumba-meu-boi e iê-iê-iê são a mesma dança?". Duprat desenvolveu o seu arranjo partindo da

mistura do baião com o iê-iê-iê. Isso já fica claro na harmonia proposta da canção: o

acompanhamento é baseado em acordes maiores com sétima menor, que caracteriza o modo

mixolídio, comum tanto no blues americano como no baião nordestino. A esse

acompanhamento, Duprat superpôs várias citações melódicas: acoplou trechos da ópera "O

Guarani" de Carlos Gomes com a música "All the Way", de James Van Heusen e Sammy

Cahn, gravada por Frank Sinatra, quando o nome do mesmo é citado na letra da canção, uma

bateria de escola de samba (quando a letra cita "Três destaques da Portela") além de "Pata

Pata", hit da cantora sul-africana Miriam Makeba. Duprat termina a canção com a citação da

introdução de "Disparada", de Geraldo Vandré. Como pode ser observado, o caráter

antropofágico da poesia também se apresenta no arranjo da canção: desde os acordes do

acompanhamento e as várias citações representando culturas completamente distintas.

Na canção "Baby", de Caetano Veloso, já gravada no disco dos Mutantes, na última

apresentação do refrão, uma citação da música "Diana" (balada rock, sucesso dos anos 50), é

cantada por Caetano Veloso em contraponto com a voz de Gal.

O mambo "Três Caravelas" (Las tres carabelas), de A.Algueró Jr.e G.Moreu, com

versão de João de Barro, onde a letra faz referência ao descobrimento do Brasil, recebe um

arranjo bem próximo ao mambo tradicional.

"Enquanto Seu Lobo Não Vem", de Caetano Veloso, faz um paralelo entre a história

de Chapeuzinho Vermelho e a ditadura militar. Rogério Duprat desenvolveu o seu arranjo

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acrescentando aos poucos os instrumentos: começa com um padrão rítmico no agogô,

acrescenta a clave, depois o violão (que alterna um acorde de “dó maior com sexta e nona” e

um “fá com sexta”; essa harmonia junto com a estruturação da melodia caracteriza a canção

no modo jônico) e em seguida o contrabaixo. Tal padrão rítmico forma a base de toda a

canção. Sobre esse acompanhamento, além de "comentários" de instrumentos de sopros como

flautas e trompetes, Duprat superpôs várias citações: um trecho da "Internacional", o hino

comunista após os versos "Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil / Vamos passear

escondidos" e, na repetição do mesmo verso, o Hino à Bandeira. Há ainda a repetição

exaustiva dos versos "os clarins da banda militar", uma citação da canção "Dora" de Dorival

Caymmi e cantada aqui por Gal Costa, causando uma dupla interpretação.

"Mamãe Coragem", de Caetano Veloso e Torquato Neto, e interpretada por Gal Costa,

começa com um som de sirene de fábrica, comumente usado nas periferias para a chamada

dos funcionários ao trabalho. Duprat utilizou ainda fragmentos do ritmo baião nos

instrumentos de percussão e valorizou os timbres das madeiras.

"Bat Macumba", de Gilberto Gil e Caetano Veloso, ganhou uma versão diferente da

gravação do disco dos Mutantes: a guitarra apresenta uma sonoridade mais limpa, sem a

utilização de distorcedores, mantendo os princípios da primeira gravação.

A última faixa, o "Hino do Senhor do Bonfim" de João Antonio Wanderley, ganhou

uma orquestração solene com instrumentos característicos da banda de música. A canção

termina com um longo acorde seguido de várias vozes superpostas fazendo glissandos

aleatórios e sons de tiros.

Esse disco se caracteriza pelas inúmeras citações musicais apresentadas pelo

arranjador no decorrer de cada canção: as citações instrumentais do "Hino Nacional

Brasileiro", do "Hino à Bandeira" e do "Hino Comunista" (Internacional), da ópera "O

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Guarani" de Carlos Gomes, do jazz norte-americano, "All the Way", gravada por Frank

Sinatra, de "Pata Pata", da cantora sul-africana Miriam Makeba, de "Disparada", de Geraldo

Vandré, do jingle do analgésico “melhoral”, além das citações vocais de "Diana", balada de

sucesso nos anos 50 e "Dora" de Dorival Caymmi. A utilização de citações é bastante comum

nas obras de vários compositores de vanguarda. Podemos citar, como exemplo, a peça

Hymnen (1966-67) de Stockhausen, onde o compositor se utiliza de vários hinos de todas as

partes do mundo; o terceiro movimento da Sinfonia (1968) de Berio, onde, segundo Paul

Griffiths, "a orquestra alinha excertos de vários compositores em torno do scherzo da

Segunda Sinfonia de Mahler, enquanto oito cantores se encarregam de mais alusões,

centradas em The Unnamable, de Beckett" (Griffiths, 1998, p. 184). Duprat, de uma forma

pessoal, alia a seus arranjos esse novo conceito composicional estando em sintonia com a

produção erudita de sua época.

Sobre o trabalho em conjunto e a confecção dos arranjos, Duprat declara:

A partir do disco Tropicália a gente realmente se juntou pra valer. A gente trabalhava num sistema pouco convencional - em termos da relação compositor-cantor-arranjador.(...) Eu não era um arranjador ao qual eles chegavam com a música pronta, nem eu chegava com o arranjo pronto no estúdio pra gravar. A gente se reunia, pensava muito em cada música, o que convém e o que não convém fazer, e tal. Já ouvi muita gente dizer: "Não, o mérito é seu, você é que fez os arranjos, não sei o quê. Se não fosse você pôr as coisas, e tudo mais...” Isso não é verdade, estou cansado de dizer e faço questão de insistir. Eu tinha uma experiência, não só de escriba musical - quer dizer, do cara que senta e sabe fazer bolinhas no papel - mas experiência de música erudita de vanguarda, esse negócio todo (apud Favaretto, 2000, p. 43)14.

Segundo o próprio arranjador, a sua relação de trabalho com os compositores das

canções era de contribuição mútua, quebrando o procedimento habitual, porém, sua

experiência no campo da música de vanguarda contribuiu enormemente para a ruptura com a

produção musical vigente, apontando para novos caminhos estéticos.

14 Essa declaração dada por Rogério Duprat se encontra na “História da música popular brasileira”, fascículo 30 páginas 7 e 8.

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2.5 - O disco de Rogério Duprat

Duprat lançou em agosto de 68, o seu LP A Banda Tropicalista do Duprat.

Os Mutantes participaram das faixas "Canção para Inglês Ver / Chiquita Bacana", de

Lamartine Babo, João de Barro e Alberto Ribeiro (apresentadas em um medley15), cantado,

segundo o próprio Duprat, "num inglês macarrônico"16 sobre um acompanhamento de uma

jazz band. "The Rain, the Park and Other Things", de Kornefeld e Dukoff , e sucesso do grupo

The Cowsills começa e termina com sons incidentais de um temporal (chuvas, trovões).

"Lady Madona" (Lennon e McCartney) dos Beatles é executado apenas com instrumentos de

uma banda de rock, onde chama a atenção os solos de guitarra distorcida de Sergio Dias.

As já conhecidas canções tropicalistas "Baby" (de Caetano Veloso), e um medley "Ele

Falava Nisso Todo Dia / Bat Macumba / Frevo Rasgado" (de Gilberto Gil e Caetano Veloso)

foram gravadas em versão instrumental, juntas com "Judy in Disguise" (Fred, Bernard e

Wessle), "Honey / Summer Rain" (B. Russell / J. P. Hendricks), "Flying" (Lennon e

McCartney), "Cinderella Rockefella" (M. Williams);

As brasileiras "Canto Chorado / Bom Tempo / Lapinha" de Billy Blanco, Chico

Buarque e Baden Powel e P. C. Pinheiro apresentadas num medley foram, respectivamente,

quarto, segundo e primeiro lugares na I Bienal do Samba - festival promovido pela TV

Record e Revista Intervalo, apresentado no Teatro Record Centro, em São Paulo entre maio e

junho de 1968.

"Chega de Saudade" (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), ganha um novo arranjo

orquestral: a introdução composta por Jobim é mantida seguida por um solo de trompete com

surdina abrindo e fechando soando com certo grau de ironia. Sobre a última frase da canção

("vamos deixar desse negócio de você viver sem mim") a música se transforma num rock.

15 Medley é a reunião de duas ou mais canções numa mesma faixa. 16 entrevista no site www.uol.com.br/tropicalia

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Fechando o disco, Duprat apresenta a sua versão para a canção "Quem Será?", de Jair

Amorim e Evaldo Govêia.

O maestro Rogério Duprat ficou insatisfeito com o trabalho, desde a escolha do

repertório à arte da capa do disco:

É, eu não gosto muito daquilo. Na verdade, eles forçaram muito. Para começar, aquela foto… O pai do Edu Lobo era produtor - já falecido, Deus o tenha em bom lugar - mas eles não entendiam as coisas. Dentro da gravadora, eles não entendiam bem as coisas. Então, forçaram a barra, me fizeram subir em cima da mesa para bater fotografia... Coisa tão boba, ingênua, cretina, mas enfim, acabei fazendo porque queria fazer o disco, tem umas coisas que eu gosto. Mas ele sofreu um pouco do efeito desse negócio do repertório, de me forçarem um pouco algum repertório da música internacional, que era um pouquinho mais comercializada. (Rosa e Matias [s.d.])17

Nota-se nesta declaração a preocupação da gravadora em não fazer um disco apenas

experimental, afastando os ouvintes. Uma busca pelo equilíbrio na escolha de músicas mais

comerciais, calçado num repertório internacional popular, foi imposto pelo produtor para que

o disco ficasse mais vendável.

2.6 - O show Vida, Paixão e Banana da Tropicália

No dia 23 de agosto, os tropicalistas gravaram, na boate Som de Cristal em São Paulo,

o show-piloto: “Vida, paixão e banana da Tropicália” (ou “Panis et circensis”). O espetáculo

contou com, além dos artistas tropicalistas (Nara Leão, Mutantes, Gil, Tom Zé, Gal Costa,

Caetano, Rogério Duprat, Maria Bethânia e Jorge Bem) a participação especial de Aracy de

Almeida, Dircinha e Linda Batista, Dalva de Oliveira e Chacrinha. Vicente Celestino, o

compositor reverenciado pelos tropicalistas que regravaram "Coração Materno" e também

convidado especial, faleceu logo depois do ensaio da tarde no hotel que estava hospedado.

Duprat faz um comentário deste show e de como recebeu a notícia de morte de Celestino:

17 Entrevista disponível no site: http://www.senhorf.com.br

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Esse show fazia parte da intenção tropicalista de retomar coisas antigas da música popular brasileira. Vicente Celestino era o homem da tragédia. Foi isso que o atraiu ao evento na Som de Cristal, um ambiente dancing cafona, com dançarinas profissionais. A cada dança, os cavalheiros tinham os seus cartões perfurados, pra pagar na saída. O cafonismo era outra forma de manifestação tropicalista. Com todas as Ângelas Marias da vida, o cafonismo enraizou-se nos corações brasileiros. Contratamos a Som de Cristal para o show, e lá estavam as dançarinas também, a postos pra trabalhar normalmente. Vicente Celestino chegou a mim e disse: "Maestro, estão todos loucos aqui!" Ficou tão chocado que de noite não voltou. Morreu na hora do jantar. (Oliveira, 1999)18

Essa "loucura" presenciada por Celestino era que além de tudo isso, partindo da

direção teatral de José Celso Martinez Correa, Gilberto Gil, cantando a canção "Miserere

Nobis", simulava o papel de Jesus Cristo sentado numa mesa cheia de abacaxis e bananas

parodiando o quadro Santa Ceia de Leonardo da Vinci.

O repertório deste show era composto de praticamente todas as faixas do LP Panis et

Circenses onde Rogério Duprat regia a orquestra, alternando os números com o

acompanhamento dos Mutantes.

2.7 - O disco de Nara Leão

Nara Leão já era uma artista reconhecida antes de se juntar aos tropicalistas: iniciou

sua carreira em 1963, integrando o elenco do musical Pobre menina rica, de Vinicius de

Moraes e Carlos Lyra e participou da trilha sonora de Ganga Zumba, rei dos Palmares, filme

de Cacá Diegues. Em 1964, lançou, pela Philips, seus dois primeiros LPs - Nara e Opinião de

Nara - gravando obras de compositores da bossa nova e do samba como Carlos Lyra,

Vinicius de Moraes, Zé Kéti, Edu Lobo, Cartola, Nélson Cavaquinho, Baden Powell, entre

outros. Ainda neste ano integrou, ao lado de Zé Kéti e João do Vale, o elenco do histórico

espetáculo Opinião, de autoria de Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes,

com direção de Augusto Boal.

18 Essa entrevista foi concedida por Rogério Duprat à jornalista Ana Oliveira em 20 de outubro de 1999 e disponível no site: www.uol.com.br/tropicalia

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Em 1965, lançou o LP O canto livre de Nara, atuou no espetáculo Liberdade

liberdade, de Flávio Rangel e Millôr Fernandes, que gerou disco homônimo. Ainda em 1965,

apresentou-se, ao lado de Edu Lobo e do Tamba Trio, na Boate Zum Zum (RJ) e no Teatro

Paramount (SP), onde o show, Cinco na bossa. Nara Leão, Edu Lobo e Tamba Trio, foi

gravado ao vivo e lançado em LP.

Em 1966 gravou o LP Nara pede passagem, lançando os compositores Sidney Miller e

Chico Buarque. Também participou do II Festival da Música Popular Brasileira (TV Record),

interpretando "A Banda" (Chico Buarque), canção que dividiu a primeira premiação com

"Disparada" (Geraldo Vandré), defendida por Jair Rodrigues. A canção de Chico Buarque foi

registrada em seu LP Manhã de liberdade.

Em 1967, gravou o LP Vento de maio, contendo canções de Chico Buarque, Sidney

Miller, Dorival Caymmi, Ary Barroso e Vinicius de Moraes. A canção-título do disco foi

composta por Gilberto Gil e Torquato Neto, já apontando alguma aproximação com os

compositores tropicalistas. Participou também do III Festival da Música Popular Brasileira

(TV Record), interpretando "A estrada e o violeiro", ao lado do autor da música, Sidney

Miller, além de apresentar-se com Chico Buarque no programa semanal da TV Record Pra

ver a banda passar. Ainda em 1967, lançou o LP Nara LP, que contou com os arranjos e

violão de Oscar Castro Neves.

Depois de sua participação no disco coletivo Panis et Circensis, foi lançado, no final

de agosto de 1968, o disco chamado Nara Leão (LP R765.051) com arranjos de Rogério

Duprat. O LP contém o seguinte repertório:

"Lindonéia" de Caetano Veloso abre o LP com a mesma gravação do disco Panis et

circensis.

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A segunda faixa, "Quem É", de Custódio Mesquita e Joracy Camargo composta em

1937, foi gravada num ritmo de iê-iê-iê, com utilização de uma jazz band. Uma citação da

música "Nunca vi fazer tanta exigência" funciona como uma ponte para um solo de flauta.

"Donzela, por Piedade, Não Perturbes", de J. S. Arvelos (que viveu aproximada-mente

entre os anos de 1820 a 1890), um dos mais famosos compositores de música popular do

Segundo Reinado, ganha um arranjo para um conjunto de câmara utilizando cravo, flautas,

violão e violoncelo.

"Mamãe Coragem", de Caetano Veloso e Torquato Neto, já gravada no LP Panis et

Circenses ganha um novo arranjo: substituindo a sirene de fábrica da primeira versão, por

trompetes com surdina tocando acordes dissonantes na introdução da canção.

No samba "Anoiteceu", de Francis Hime e Vinicius de Moraes, Duprat utiliza uma

harmonia tipicamente bossanovística, com acompanhamento orquestral.

Composta em 1926 por Villa-Lobos com letra de Manuel Bandeira, “Modinha”,

canção dedicada a Catullo Cearence, ganhou uma versão orquestral (a versão original é para

canto e piano) escrita por Rogério Duprat.

Composta no mesmo ano de "O teu cabelo não nega" - 1932 - "Infelizmente", de

Lamartine Babo e Ary Pavão ganhou um arranjo para jazz band.

O tango-brasileiro "Um Chorinho Chamado Odeon", de Ernesto Nazareth recebe uma

letra encomendada pela própria Nara Leão a Vinicius de Moraes.

O fox de Custódio Mesquita e Sady Cabral, "Mulher", composta em 1940, foi

arranjada para uma jazz band. No meio da música a melodia é apresentada num tutti

orquestral que lembra os arranjos das orquestras jazzísticas de Glenn Miller.

"Medroso de Amor", composta em 1894 por Alberto Napomuceno com letra de

Juvenal Galeno, apresenta vários elementos nacionalistas como a utilização de síncopas no

acompanhamento pianístico. Sua estréia foi realizada no dia 4 de agosto de 1895, no Instituto

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Nacional de Música, Rio de Janeiro, na voz de Leopoldo Noronha, tendo Nepomuceno ao

piano. Uma versão orquestral da canção foi realizada em 1894, mas só foi executada em 1921,

após a morte do compositor, sob a regência de Villa-Lobos. Na versão de Nara o arranjo

recebeu nova orquestração de Rogério Duprat que valoriza os sons das cordas e das madeiras.

"Deus Vos Salve Esta Casa Santa", de Caetano Veloso e Torquato Neto, que, segundo

Calado foi "inspirado em um tema folclórico baiano" (Calado, 1997, p.213).

Sobre um violão arpejado, Nara ora canta, ora recita, os versos de Tema de "Os

Inconfidentes", poemas que Chico Buarque musicou de Cecília Meireles (Romanceiro da

Inconfidência) para o espetáculo Os Inconfidentes.

Segundo Calado, um dos pontos chaves do disco é a orquestração de Rogério Duprat:

"Outra marcante presença no disco, que também remetia à Tropicália, era Rogério Duprat.

Responsável por todos os arranjos, o maestro deu um verdadeiro show de orquestração e

instrumentação” (Calado, 1997, p. 213).

Calado expôs na declaração acima que o elo entre o disco da Nara e a tropicália é o

arranjador Rogério Duprat. Porém, esteticamente, o disco pouco se aproxima das idéias

tropicalistas no âmbito da pesquisa e do experimentalismo. Muito pelo contrário, é um disco

com tendências tradicionalistas baseado nas diversas manifestações da música brasileira. O

repertório do LP é um grande recorte da produção musical brasileira através do tempo,

partindo das modinhas imperiais de J. S. Arvelos, passando pelos compositores eruditos

nacionalistas como Alberto Nepomuceno e Villa-Lobos, compositores populares como

Ernesto Nazareth, Custódio Mesquita e os bossanovistas Francis Hime e Vinicius de Moraes e

terminando nos seus contemporâneos Caetano Veloso e Torquato Neto. Em relação à

orquestração e instrumentação o disco é muito rico em sonoridades e combinações

timbrísticas.

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2.8 - O III Festival Internacional da Canção - FIC

Renato Corrêa de Castro, Roberto Freire, Geraldo Casé, Francisco de Assis e os

maestros Erlon Chaves e Rogério Duprat foram os responsáveis pela seleção de 24 músicas

dentre as 1.008 inscritas para a realização do III FIC que aconteceu em meados de setembro

de 1968.

Dentre as 24 músicas selecionadas estavam: "Questão de Ordem", composta e

interpretada por Gilberto Gil, com acompanhamento dos Beat Boys, "É Proibido Proibir",

composta e interpretada por Caetano, acompanhado pelos Mutantes e "Caminhante Noturno"

com Os Mutantes.

Os primeiros a se apresentarem foram os Mutantes com sua canção Caminhante

Noturno com arranjos de Rogério Duprat. Segundo Zuza Homem de Mello (2003):

O arranjo de Rogério Duprat, um antropofágico nato, capacitado, despudorado e coerente, tinha intervenções orquestrais calcadas nos recentes discos dos Beatles: a abertura, como no final de "Good Morning"; o dueto de trompetes ao passar para o rallentando, como em "Magic Mistery Tour"; ruídos, contrabaixo e guitarra, mudanças rítmicas e um final semi-apoteótico. O que faltava era uma melodia como as de Paul McCartney (Mello, 2003, p. 274).

Mello detectou no arranjo de Duprat forte influência dos arranjos dos Beatles, porém o

que lhe faltou foi um material melódico mais requintado.

A canção de Gilberto Gil foi eliminada na segunda semifinal paulista, enquanto que a

canção de Caetano Veloso foi classificada para a final de São Paulo. As vaias do público na

apresentação no final do festival irritaram Caetano que promoveu um dos happinings mais

famosos da Música Popular Brasileira. Na análise do próprio compositor:

"É proibido proibir" se transformou, com a ajuda dos Mutantes e de Rogério Duprat (que, sem escrever um arranjo para orquestra, orientou a introdução atonal com sabor de música concreta e eletrônica executada pelo grupo), numa peça de grande poder de escândalo (Veloso, 1997, p. 299).

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Com a canção "Caminhante Noturno", os Mutantes ganharam o prêmio de melhor

interpretação, enquanto Duprat recebe o Troféu André Kostelanetz de melhor arranjador do

festival.

2.9 - O IV Festival da TV Record

Augusto de Campos, Julio Medaglia, Raul Duarte e Amilton Godoy foram os

responsáveis pela triagem das 36 semifinalistas dentre mais de mil músicas inscritas para este

festival que aconteceu em novembro e dezembro de 1968. Essa IV edição propunha,

inclusive, duas premiações distintas: uma oficial - partindo das notas dos jurados - e outra

popular - partindo da participação do ouvinte.

Na canção "2001", composta por Gilberto Gil e apresentada neste festival, foi utilizado

um theremin construído por Claudio César Batista, irmão de Arnaldo e Sergio. Esse

instrumento foi criado por Léon Thérémin em 1924, e utilizados dois exemplares por Edgard

Varèse em sua peça "Ecuatorial" de 1934. No Brasil, o precursor do theremin na música

eletroacústica foi Jorge Antunes que construiu o seu primeiro exemplar em 1964. Antunes,

dois meses antes, apresentou o instrumento em um baile. Segundo Theofilo Augusto Pinto em

seu artigo Jorge Antunes: o precursor e construtor de instrumentos eletrônicos no Brasil:

O descobridor carioca de novos sons era muito convocado também pela música popular. Em setembro de 1968 Antunes foi convidado por um conjunto de baile, chamado Hit Parade, para se apresentar como a grande atração de um baile no subúrbio carioca de Sampaio. Também coube a Jorge Antunes o pioneirismo de usar sons eletrônicos pré-gravados na MPB: esses sons foram usados em Cavaleiro Andante, a canção em que usou também um theremin ao vivo (Pinto, in Antunes, 2002, p. 91).

É interessante ressaltar que duas canções utilizaram o instrumento no mesmo festival:

Os Mutantes, em "2001" na primeira eliminatória no dia 18 de novembro de 1968 e Jorge

Antunes na segunda eliminatória, na canção "Cavaleiro Andante" de Edmundo Souto e

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Arnoldo Medeiros da Fonseca e interpretada por Beth Carvalho e Eduardo Conde, no dia 25

de novembro de 1968.

Na terceira eliminatória, que aconteceu no dia 2 de dezembro de 1968, foi apresentada

a canção "Dom Quixote", também dos Mutantes que contou ainda com a participação do

grupo Anteontem 53 e 1/2 (nome escolhido para gozar grupos como Canto 4, Momento 4) e

arranjo de Rogério Duprat. Calado (1995) dá sua declaração sobre a performance de Rogério

Duprat como regente da orquestra durante a apresentação:

Duprat também aprontou das suas. Na partitura de Dom Quixote, o maestro fez questão de escrever uma pausa com duração de oito compassos (o que significa quase 20 segundos de silêncio dos músicos). Apesar de o maestro continuar regendo a orquestra durante essa passagem, o público e, principalmente, os telespectadores pensaram que os microfones do palco tinham pifado (Calado, 1995, p. 149).

As canções vencedoras foram: em primeiro lugar "São, São Paulo, Meu Amor",

composta e defendida por Tom Zé, com participação de Flavio Teixeira, Roni Júlio e do

conjunto os Brasões com arranjo de Damiano Cozzella; em terceiro lugar, "Divino,

Maravilhoso" de Caetano e Gil e interpretado por Gal Costa, acompanhada pelo conjunto Los

Bichos, com os vocais das irmãs Ivete e Arlete e arranjo do próprio Gilberto Gil; "2001" é

classificada em quarto lugar.

Neste mesmo mês, pela gravadora Rozenblit, Tom Zé lança o seu primeiro LP.

Gravado no Estúdio Gazeta, em São Paulo, produzido por João Araújo e arranjado por

Damiano Cozzella e Sandino Hohagen.

2.10 - O LP de Gal Costa

Gal Costa, em 1965, lançou um compacto contendo as canções Eu vim da Bahia, de

Gilberto Gil e Sim, foi você, de Caetano Veloso. Em 1967 divide o LP Domingo com Caetano

Veloso arranjado por Dori Caymmi, Roberto Menescal e Francis Hime. O LP solo de Gal

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Costa foi lançado pela Philips no inicio de 1969. Foi produzido por Manoel Barenbein,

gravado nos estúdios Scatena e Reunidos e contou com os arranjos de Gilberto Gil, Lanny

Godin e Rogério Duprat. Coube a Duprat a direção musical do LP e os arranjos das canções

"Lost in the Paradise" de Caetano Veloso, que recebeu um arranjo orquestral; "Saudosismo",

uma canção de Caetano Veloso que reverencia João Gilberto e a Bossa-Nova, onde a melodia

é baseada em "Fotografia" de Tom Jobim, ganhou um arranjo de Duprat bem bossanovístico,

com direito a orquestra, violão, contrabaixo e bateria. No final da canção, onde a letra diz "É

que aprendemos sempre com João a ser desafinados..." acordes extremamente dissonantes são

executados pela orquestra; e "Namorinho de Portão", de Tom Zé, canção já gravada pelos

Mutantes em seu primeiro disco, começa com um longo grito. Contracantos de assovios e

vocais nada convencionais de Gilberto Gil é o que chama a atenção nesta versão de Gal Costa.

2.11 – Os Mutantes no MIDEN

Em janeiro de 1969, depois de receberem o Troféu Imprensa como o melhor conjunto

musical de 1968, os Mutantes, junto com Chico Buarque, Edu Lobo, Elis Regina e Gilberto

Gil, foram convidados pela gravadora Philips a se apresentarem no “Mercado Internacional de

Disco e Editores Musicais” – MIDEM – em Cannes na França.

No dia 20 de janeiro foi agendado o pequeno show dos Mutantes. Estavam no

repertório "Caminhante Noturno", "Bat Macumba" e "Dom Quixote". O impacto dos arranjos

de Duprat é comentado por Calado (1995):

Os músicos da orquestra que acompanhou o conjunto brasileiro – entediados de tocar as mesmas baladinhas e canções românticas de sempre – quase não acreditaram ao se depararem com as partituras dos irreverentes arranjos de Duprat (Calado, 1995, p. 164).

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Após o show, Duprat, Solano Ribeiro e os Mutantes fizeram um pequeno passeio pela

Europa. Retornando ao Brasil, Duprat encontra o mercado brasileiro completamente abalado,

reflexo da ditadura militar instaurada no país:

E, quando voltamos, no começo de 1969, todos, inclusive Gal Costa e Nara Leão, tínhamos perdido o emprego, porque as gravadoras multinacionais não queriam se comprometer com a situação política do país. Tive que radicalizar a minha produção de jingles, e os outros aos poucos foram sobrevivendo de shows. (Oliveira, 1999)19

Com a prisão de Caetano e Gil e a demissão de Gal Costa e Nara Leão das gravadoras,

o movimento tropicalista se enfraquece, obrigando o arranjador a buscar novas perspectivas

de trabalho aumentando sua produção de música para publicidade.

2.12 - O segundo disco dos Mutantes

Lançado no final de fevereiro de 1969 pela gravadora Polydor, o segundo disco dos

Mutantes contou com a produção de Manoel Barenbein, a participação do baterista Dinho

(Ronaldo Leme) e do contrabaixista Liminha, que no disco tocou viola. Os arranjos são de

Rogério Duprat.

O LP começa com a canção "Dom Quixote", de Arnaldo Baptista e Rita Lee que está

analisada com maior profundidade no próximo capítulo.

A segunda faixa "Não Vá Se Perder por Aí", de Raphael Thadeu Villardi da Silva e

Roberto Lafayete Loyola é um country-rock americano com direito a solo de violino e de

banjo. Vozes alteradas eletronicamente são utilizadas no arranjo.

19 Essa entrevista foi concedida por Rogério Duprat à jornalista Ana Oliveira em 20 de outubro de 1999 e disponível no site: www.uol.com.br/tropicalia

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Em "Dia 36", dos Mutantes com parceria de Johnny Dandurand, Sergio Dias utilizou

um wooh-wooh, uma variação do pedal de efeito waah-waah para guitarra muito utilizado e

difundido por Jimi Hendrix, criado por seu irmão Cláudio Batista, onde os sons graves do

instrumento são mais alterados.

O violão em terças paralelas, os instrumentos de percussão e o canto característico em

dueto aproxima a canção "2001" de Rita Lee e Tom Zé, às duplas sertanejas tradicionais.

Alternando a sonoridade sertaneja com o ritmo de rock, os Mutantes apresentam na mesma

canção dois universos bastante distantes falando sobre o mesmo tema: astronautas, galáxias e

o mundo moderno. Sons de pratos, vozes, solos de teclados com a utilização de ondas

quadradas, apresentados alterados e aleatórios e ruído branco sugerem uma sonoridade

espacial.

"Algo Mais", de Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias, é um jingle composto pelo

trio para a campanha da Shell. Na contracapa do LP, um texto de Nelson Motta defende essa

atitude ousada:

Com raro sentido de invenção e liberdade eles compuseram um jingle para a Shell. É preciso ter coragem de ouvir claro e saber com certeza que aquele som é novo, limpo, inventivo e livre. Mas ainda há gente que tem arrepios ao ouvir falar da palavra jingle e se horroriza com a idéia de ganhar dinheiro com música, embora ganhe muito dinheiro com música. Quem vive numa sociedade de consumo tem duas alternativas: ou participa ou é devorado por ela. Não há saída fora dessa opção. O jingle dos Mutantes, que prefiro chamar simplesmente de 'música', é melhor, infinitamente melhor, que a maioria das canções que andam pelas praças e paradas. Por que não gravá-las em disco? (Calado, 1995, p. 153).

A ousadia de se gravar um jingle em um disco aproxima, como já foi dito antes, o

manifesto Música Nova à música popular, que prega o binômio criação-consumo.

Em "Banho de Lua" (Tintarella di Luna), de B. de Fillipi e F. Migliacci, com versão

para o português de Fred Jorge, sucesso na voz de Celly Campelo, os Mutantes também

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utilizaram o theremin de Cláudio César na introdução além de uma citação de "Satisfaction",

dos Rolling Stones.

Com harmonia inspirada em "Ob La Di Ob La Da" dos Beatles, a canção "Rita Lee",

composta por Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sergio Dias, sons de assovios e risadas foram

acrescidas no final da gravação.

Em "Mágica", uma ciranda com sonoridade rock dos Mutantes, que inclusive

participou do "Festival Nacional da Música Popular Brasileira", onde Rogério Duprat, além

de escrever o arranjo, executou violoncelo no dia da apresentação, a canção "Satisfaction",

dos Rolling Stones, é novamente citada.

Arnaldo Batista, em "Qualquer Bobagem" de Tom Zé e Mutantes, canta gaguejando.

A execução do refrão ganhou contracantos executados por um trompete que lembra "Penny

Lane" dos Beatles.

A última canção do disco, "Caminhante Noturno", de Arnaldo Baptista e Rita Lee, que

está analisada mais profundamente no próximo capitulo, "fecha o disco misturando vaias, a

voz distorcida de um aparente robô ("Perigo! Perigo! Rota de colisão! É proibido proibir!) e o

coro de uma platéia (a do FIC) aos berros de "bicha! bicha!" (Calado, 1995, p. 156) propondo

uma sonoridade eletrônica. O disco conta ainda com a canção "Fuga n° II", de Rita Lee,

Arnaldo Baptista e Sergio Dias.

O disco inteiro segue os princípios estéticos já sugeridos no primeiro LP do trio: a

mistura do rock com experimentalismos no campo da música concreta, eletrônica e de

pesquisa de novas sonoridades.

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2.13 - Os discos gravados em Salvador

Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos logo após o Natal de 1968 ficando detidos

no quartel da Policia do Exército no Rio de Janeiro. Depois de dois meses no Rio passaram

por um período de cinco meses em regime de prisão domiciliar em Salvador antes do exílio

em Londres em 27 de julho de 1969. Em Salvador, Caetano e Gil gravaram um novo disco. O

próprio Caetano (1997) faz um relato dessa gravação:

Gil e eu fizemos, cada um de nós, um disco nesse meio tempo. Como não podíamos ir ao Rio ou a São Paulo, fizemos as gravações num estúdio pequeno em Salvador (acho que se chamava Estúdio J.S.), apenas com violão. As fitas foram enviadas para São Paulo ou Rio para que Rogério Duprat adicionasse baixo, bateria e orquestra. Gil tocou violão em todas as faixas do meu disco (Veloso, 1997, p. 417).

Como o estúdio não dispunha de um equipamento de qualidade, todo o processo de

feitura do disco foi invertido. Geralmente gravam-se os instrumentos primeiro para que, por

último, se coloque a voz. Nesse caso Caetano e Gil gravaram, com o auxílio de um

metrônomo, as vozes e um violão para que, posteriormente, Duprat acrescentasse os

instrumentos adicionais de seus arranjos às composições.

Os discos de Caetano e Gil contaram com a produção de Manoel Barenbein e direção

musical e arranjos de Rogério Duprat. As vozes e o violão foram gravados no estúdio JS em

Salvador e o acompanhamento instrumental foi gravado nos estúdios Scatena, em São Paulo e

Philips, no Rio de Janeiro entre abril e maio de 1969. Os músicos que participaram das

gravações foram, além do violão de Gilberto Gil, Lanny Gordin na guitarra elétrica, Sergio

Barroso no baixo elétrico, Wilson das Neves na bateria, Chiquinho de Moraes no piano e no

órgão e Tião Motorista no ritmo.

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O disco de Caetano Veloso, que tem como título o seu próprio nome, contou com o

seguinte repertório:

"Irene", única canção composta por Caetano Veloso na cadeia onde relembra as

gargalhadas de sua irmã, abre o disco. Caetano começa cantando sozinho, acompanhado por

violão, percussão, contrabaixo elétrico, guitarra elétrica e instrumentos de sopro, e conta com

a participação de Gil fazendo coro no refrão da canção. Como este esquece de cantar (Pode-se

ouvir a voz de Gil dizendo "esqueci" e de Caetano "eu vi que você estava com cara de quem

não ia cantar" e Gil responde: "eu tava esquecido, rapaz... quando eu me lembrei já estava em

cima da hora... Ah meu Deus! Vá!”) a música começa novamente. Tal fato foi aproveitado por

Duprat no arranjo. Ouvindo a gravação nota-se que a intenção do arranjador foi de valorizar o

erro, soando, sobre o diálogo dos dois cantores, intervenções aleatórias de guitarra elétrica e

do violão.

Adaptado por Caetano Veloso, "Marinheiro Só" é um samba de roda do recôncavo

baiano com repetição de um refrão curto no final de cada verso por um coro de vozes infantis

interpretada de uma forma bastante espontânea - que segundo Mario de Andrade é usado,

principalmente no Nordeste (Andrade, 1987) - se agrega aos sons de uma banda de rock, que

evidencia o som da guitarra elétrica distorcida e alterada pelos efeitos do pedal waah-waah,

executada por Lany Gordin que improvisa sobre os versos cantados por Caetano e seu coro.

Mais uma vez, numa atitude antropofágica, o folclore se une ao rock (linguagem da indústria

cultural) próxima às idéias oswaldianas já apresentadas em Batmacumba.

"Atrás do Trio Elétrico", um frevo de Caetano Veloso, começa com um solo de

guitarra distorcida que remete à sonoridade da guitarra baiana (ou pau elétrico), criada por

Dodô e Osmar, os inventores do trio elétrico. Sons concretos de pessoas andando atrás do trio

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elétrico (como vozes, gritos, assovios, palmas, buzina de bicicleta, entre outros) são

acrescentados ao som dos instrumentos na segunda parte da canção.

O fado "Os Argonautas", de Caetano Veloso, que reverencia Fernando Pessoa, recebeu

um arranjo bem tradicional do cancioneiro português, com direito a acompanhamento de

violão e de duas guitarras portuguesas, que executa contrapontos à melodia cantada por

Caetano.

Sobre acordes sincopados, Caetano começa a cantar os versos de "Carolina", canção

de Chico Buarque. Instrumentos de percussão fazem pequenas intervenções, enquanto que a

orquestra só aparece na metade da última exposição do refrão, reforçando tanto no timbre

como na textura, os últimos compassos da canção.

O tango "Cambalache", de E. S. Discépolo, é cantado por Caetano com

acompanhamento orquestral bastante característico desse ritmo. A canção termina com um

longo acorde de dominante que não resolve na tônica.

O iê-iê-iê "Não Identificado", de Caetano Veloso, começa com um ruído branco

seguido por um solo de guitarra servindo de introdução para que Caetano apresente o tema. A

faixa termina com intervenções da guitarra que mistura sons distorcidos com efeitos de waah-

waah.

"Acrilírico" de Caetano Veloso e Rogério Duprat é um poema recitado onde o

arranjador introduziu uma série de intervenções sonoras. Essa canção está analisada no

capítulo seguinte.

O disco termina com "Alfômega" de Gilberto Gil, onde o acompanhamento serve

como base para a apresentação da poesia, que utiliza uma série de técnicas da poesia concreta.

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Segundo Augusto de Campos: "técnicas tméticas, de partição e reaglutinação de palavras, são

usadas por Gil nos textos de Alfômega e Objeto Sim: 'o analf(omega)betismo', 'os

identifi(signifi)cados'" (Campos, 1978, p. 291). O disco ainda conta com as canções "The

Empty Boat" e "Lost in the Paradise" de Caetano Veloso, e uma interpretação de "Chuvas de

Verão", do compositor e produtor Fernando Lobo.

O disco de Gilberto Gil, que também tem o seu nome como título, contêm as canções:

O rock "Cérebro Eletrônico" de Gilberto Gil tem uma introdução calçada em sons de

guitarra distorcida, baixo, bateria e teclado. Clusters executados no teclado superposto aos

solos de guitarra propiciam um arranjo denso de informações sonoras e de textura.

"Futurível" (Gilberto Gil) começa com violão, glissandos vocais, sons processados

eletroacusticamente e de um naipe de metais, servindo de introdução a entrada da voz de Gil.

Intervenções eletroacústicas aparecem em toda faixa.

"Objeto Semi-Identificado" de Rogério Duarte, Rogério Duprat e Gilberto Gil, é uma

poesia recitada como em "Acrilirico" do disco de Caetano. Várias intervenções diferentes

foram adicionadas sonorizando a récita. Sons concretos, eletrônicos, citações de outra música

de Gil, um trecho que Duprat classifica como um estilo próximo de Corelli, jingle, entre

outros20.

Ainda fazem parte do disco o blues "Volkswagen Blues" letra em inglês de Gilberto

Gil, o samba de breque "Aquele Abraço", de Gilberto Gil, que foi a última canção gravada

pelo compositor antes do exílio em Londres, "Vitrines" (Gilberto Gil), "17 Léguas & Meia",

20 Esse arranjo foi profundamente analisado por Regiane Gaúna em seu livro Rogério Duprat: sonoridades múltiplas - Editora UNESP, 2002.

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de Humberto Teixeira e Carlos Barroso, "A Voz do Vivo", de Caetano Veloso e a regravação

de "2001", canção de Rita Lee Jones e Tom Zé.

A parceria de Duprat com os dois principais compositores tropicalistas nesses LPs

aparece de uma forma mais clara. Inúmeras técnicas composicionais como as utilizadas na

música concreta e eletrônica, o cruzamento entre a música brasileira e o rock americano, as

orquestrações arrojadas utilizadas por Duprat fazem desses dois discos grandes referências no

âmbito do experimentalismo tanto musical como poético.

2.14 – O LP A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado dos Mutantes

Após terem participado e se classificado em décimo lugar com a canção "Ando meio

desligado" no IV Festival Internacional da Canção – FIC realizado em setembro de 1969, os

Mutantes lançaram o álbum A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, gravado no estúdio

Scatena pela gravadora Polydor em 1970. Os arranjos foram feitos por Rogério Duprat.

Na canção "Ando Meio Desligado", de Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias é

utilizada uma guitarra com waah-waah, solos com distorção além de glissandos vocais.

A segunda faixa "Quem Tem Medo de Brincar de Amor", de Arnaldo Baptista e Rita

Lee, sons caóticos de várias vozes e apitos são utilizados em seu arranjo.

"Ave, Lúcifer", de Arnaldo Baptista, Rita Lee e Élcio Decário, se caracteriza por uma

série de efeitos eletrônicos inseridos no meio do acompanhamento instrumental.

"Desculpe, Babe", de Arnaldo Baptista e Rita Lee, começa com contrabaixo e sons

eletrônicos. Segundo Calado:

"Na linha das experimentações dos discos anteriores, Desculpe, Babe também trazia um estranho efeito doméstico. Na segunda parte da canção, Sérgio distorceu sua voz com o auxílio de uma mangueira conectada a uma lata de

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Nescau, que tinha um alto-falante de 8 polegadas em seu interior. O que veio se chamar mais tarde de Voice Box (Calado, 1995, p.202 e 203).

Mais uma vez a pesquisa de novos timbres se torna uma referência importantíssima na

estética tropicalista dos Mutantes.

O blues "Meu Refrigerador Não Funciona", de Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio

Dias, possui solos vocais que misturam cantos e gritos, além da utilização de reverb tanto na

voz como no solo de trompete.

"Hey boy", de Arnaldo Baptista e Élcio Decário, possui arranjos vocais característicos

do rock`n`roll dos anos 50. A faixa termina com o som de um carro acelerando e batendo.

Uma gravação de "Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo", dos dois principais

compositores da Jovem Guarda Roberto Carlos e Erasmo Carlos, ganha uma nova versão com

guitarras alteradas eletronicamente, teclado e contrabaixo.

Em "Chão de Estrelas", de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, a primeira parte da canção

é cantada por Arnaldo Baptista imitando a impostação vocal comum nas serestas brasileiras,

acompanhado pelo violão de Raphael Vilardi reproduzindo todos os contracantos no baixo

comum desse estilo musical. Porém, a segunda parte da música é executada por uma dixieland

jazz acrescida de uma série de citações concretas como motor de avião, bandinha de música,

relógio-cuco, galo cocoricando, panos rasgados, tiros, vaias de festival. Segundo Calado, “o

debochado arranjo para a clássica Chão de Estrelas (...), assinado pelo conjunto e Rogério

Duprat, foi o verdadeiro responsável pelas consideráveis doses de polêmica e escândalo que o

disco provocou” (Calado, 1995, p.218 - 219).

"Jogo de Calçada", de Arnaldo Baptista, Wandler Cunha e Ilton Oliveira é a música

que menos contribui com novas informações do disco.

"Haleluia" de Arnaldo Baptista começa com um som de órgão e um coro de vozes

masculinas, nos remetendo à música litúrgica. Os sons de guitarra, piano e contrabaixo são

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acrescidos a esse coro, propondo um cruzamento da música litúrgica com a profana. O tema

religioso com acompanhamento de uma banda de rock sugere uma sonoridade bem próxima

aos coros do canto gospel nos negros protestantes norte-americanos.

A última canção, "Oh! Mulher Infiel", de Arnaldo Baptista, começa com um solo de

bateria somado a gritos de pessoas, seguida de um solo de guitarra distorcida e dissonante.

Uma coda é apresentada pela banda inteira, utilizando microfonias e solos de guitarra que

evidenciam vários harmônicos.

A contribuição de Rogério Duprat diminuiu sensivelmente nesse novo disco. O trio

estava se transformando em uma banda de rock progressivo e os arranjos orquestrais já não se

adaptavam mais a essa sonoridade, porém as intervenções eletrônicas e novas timbragens

instrumentais foram mais desenvolvidas e evidenciadas.

2.15 - O disco de Jorge Ben

Jorge Ben já era um compositor com vários discos gravados quando começou a

contribuir com Os Mutantes. Antes de participar do primeiro disco do trio (de 1968), tocando

violão e cantando, e do show Vida, Paixão e Banana da Tropicália, Jorge Ben já havia

lançado, pela Universal Music os discos Samba esquema novo, de 1963, Sacundin Ben samba

e Bem é samba bom, ambos de 1964, Big Ben, de 1965 e O bidú – silêncio no Brooklin, pela

Movieplay, de 1967.

Em 1969, Jorge Ben retornou à Universal Music lançando um disco que leva o seu

nome que contou com a direção de produção de Manoel Barenbein e com os arranjos de José

Briamonte nas canções "Criola", "Domingas", "Cadê Tereza", "País Tropical", "Take it easy,

my brother Charles", "Bebete vãobora", "Quem foi que roubou a sopeira de porcelana chinesa

que a vovó ganhou da baronesa?", "Que pena" e "Charles Anjo 45". Rogério Duprat

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contribuiu com o disco arranjando as canções "Descobri que sou um anjo" e "Barbarella". O

disco foi gravado nos estúdios Scatena, em São Paulo e C.B.D., no Rio de Janeiro.

"Descobri que sou um anjo" é um samba que alterna partes faladas com um refrão

cantado. Sons eletrônicos próximos de um theremin e glissandos ascendentes na harpa

sugerem um vôo de um anjo.

"Barbarella" também é um samba com acompanhamento orquestral. Acordes densos

produzidos pela orquestra junto com glissandos na harpa produzem um som espacial que se

relaciona ao tema da canção.

Embora não seja um disco considerado tropicalista, Duprat adicionou aos sambas de

Jorge Ben arranjos que fundem sons de orquestra com sons eletrônicos e efeitos instrumentais

fora do convencional, deixando seu estilo bastante personalista na produção deste LP.

2.16 – O segundo LP de Gal Costa

O segundo LP de Gal Costa, que recebeu o título de Gal, foi lançado pela Philips em

1969. Teve direção musical de Rogério Duprat e direção de produção de Manoel Barenbein.

As seguintes canções constam no LP:

"Cinema Olympia" de Caetano Veloso abre o disco com um solo de guitarra distorcida

de Lanny Gordin. Contrastes de dinâmica são muito evidenciados nessa gravação.

Em "Tuareg" de Jorge Ben, um solo de guitarra com bastante reverb e instrumentos de

percussão abrem a faixa seguido de uma melodia na voz de Gal numa ambiência de música

árabe.

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Sons eletrônicos como microfonias, guitarras com waah-waah e distorcida

caracterizam a introdução da canção "Cultura e Civilização" de Gilberto Gil.

"País Tropical" de Jorge Ben conta com a participação de próprio compositor da

canção, cantando.

"Meu Nome é Gal" de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, recebe um arranjo orquestral

de Duprat.

Em "Com Medo, com Pedro", de Gilberto Gil, Duprat utiliza na voz de Gal uma série

de efeitos gerando sonoridades bastante peculiares.

"The Empty Boat", canção de Caetano Veloso e já gravada pelo próprio no disco

anterior ao seu exílio, começa com uma sonoridade de música eletrônica antecedendo a

entrada da voz da cantora. Uma guitarra distorcida desenvolve contrapontos com a melodia

cantada por Gal.

Em "Objeto Sim, Objeto Não" de Gilberto Gil, começa com curtas intervenções de

vozes, gritos e instrumentos que recebem manipulações eletroacústicas como eco e mudança

de rotação criando uma ambiência caótica. É uma das canções mais radicais do LP.

"Pulsars e Quasars", de Macalé e Capinam, começa com sons eletrônicos e acústicos

como pratos de bateria e sonoridades vocais e microfonias. Gal canta com uma impostação

vocal bem parecida com Janis Joplin.

O disco tem uma sonoridade bastante roqueira, chamando a atenção para os sons de

guitarra nada convencional de Lanny Gordin, que explora diversos recursos timbrísticos com

auxílio de efeitos eletrônicos do seu instrumento. Duprat praticamente não utiliza orquestra

nos arranjos desse LP (com exceção de "Meu Nome é Gal") valorizando a sonoridade dos

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instrumentos eletrônicos como guitarras, baixo e bateria e de manipulações eletroacústicas

bastante ousadas para produção de música popular.

2.17 - O disco solo de Rita Lee

Lançado em 1970 pela gravadora Polydor o primeiro disco solo de Rita Lee tinha o

título de Build up.

Estavam no repertório do LP as seguintes canções: "Sucesso, aqui vou eu (Build Up)"

de Rita Lee e Arnaldo Baptista, onde o arranjo sugere uma sonoridade orquestral bem

próximo aos musicais de Hollywood; "Calma" de Arnaldo Baptista, utiliza citações rítmicas

próxima do tango e de divisões rítmicas irregulares; "Viagem ao fundo de mim", de Rita Lee;

o blues "Precisamos de irmãos", de Élcio Decário; "Macarrão com lingüiça e pimentão", de

Rita Lee e Arnaldo Baptista; "José", versão de Nara Leão para a canção de de G. Moustaki,

que começa com um solo de órgão próximo as sonoridades litúrgicas, além uma orquestra de

cordas e um coral; "Hulla-Hulla", de Rita Lee e Élcio Decário, em que se utiliza o som de

guitarra havaiana, solo de sax e de um slide – guitar que caracterizam o tema da canção (uma

dança havaiana); "Tempo nublado", de Rita Lee e Élcio Decário; o tango "Prisioneira do

amor", de Élcio Decário, que utiliza em sua instrumentação um bandoneon; "Eu vou me

salvar", de Rita Lee e Élcio Decário, onde o arranjo é baseado na sonoridade da música

gospel da igreja protestante dos negros americanos, com direito a coro e um

acompanhamento vigoroso; o disco ainda tem uma versão de "And I love him" da dupla

Lennon e McCartney.

O primeiro LP solo de Rita Lee contém uma irreverência comum a todos os outros

discos dos Mutantes, porém é um disco muito mais tradicional, uma mudança estética radical,

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onde a pesquisa e a utilização de novas fontes sonoras dos discos anteriores são substituídas

por arranjos bem comportados de Duprat.

2.18 - Um compacto de Tom Zé

Tom Zé lançou em 1971 um compacto simples contendo duas músicas: "Jimmy,

Renda-se", de Tom Zé e Valdez, e uma nova versão de "Irene", de Caetano Veloso com

arranjos de Rogério Duprat.

Esse arranjo foi gravado pelos músicos Lanny Godin (guitarra), Norival (bateria),

Cláudio (contrabaixo), Guilherme Franco (percussão), além do próprio Duprat que tocou

piano preparado com borrachas entre as cordas. É interessante ressaltar que essa não foi a

primeira vez que se utilizou o piano preparado pelos tropicalistas: Sandino Hohagen já o

havia empregado nos arranjos de "Anunciação" e de "Ave Maria" no primeiro disco de

Caetano.

A faixa começa com toques de caixa de bateria e piano preparado servindo de

introdução para que Tom Zé apresente o tema se utilizando da técnica do canto falado criado

por Schoenberg (sprechgesang). Nesse arranjo, Duprat conecta duas propostas de dois

grandes compositores do século XX: o canto falado do alemão Schoemberg e o piano

preparado do americano John Cage tudo isso dentro de uma proposta de música popular.

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2.19 – O LP Araçá Azul de Caetano Veloso

Nesse disco de Caetano, um dos mais experimentais (um disco para "entendidos"

sugerindo uma dupla interpretação deste termo: pode significar uma pessoa que tem

conhecimentos profundos de um determinado assunto ou relacionado a homossexuais) o

compositor, que também trabalhou como diretor de produção, gravou, no Estúdio Eldorado,

em São Paulo, as seguintes canções: "Viola, meu bem” (Anônimo), “De conversa / Cravo e

canela” (Caetano Veloso, Milton Nascimento e Ronaldo Bastos), “Tu me acostumbraste” (F.

Dominguez), “Gilberto Misterioso” (Caetano Veloso e Souzândrade), o poema concreto

dedicado a Augusto de Campos “De palavra em palavra” (Caetano Veloso), “De cara / Eu

quero essa mulher” (Caetano Veloso, Monsueto Menezes, Lanny e José Batista), “Sugar cane

fields forever” (Caetano Veloso e Souzândrade), outra canção inspirada na poesia concreta

"Julia / Moreno” (Caetano Veloso), “Épico” (Caetano Veloso) e “Araçá blue” (Caetano

Veloso). Os arranjos foram escritos pelo próprio compositor e por Perinho Albuquerque,

cabendo apenas a Rogério Duprat o arranjo de "Épico", sua última parceria com o compositor

baiano.

Como o próprio nome da canção sugere, a introdução proporciona uma sonoridade

épica e grandiosa utilizando metais e tímpanos numa sonoridade próxima a peça “Assim falou

Zarathustra” de Strauss. Caetano começa a cantar uma melodia baseada na escala mixolídia

com quarta aumentada, bastante comum na música nordestina, gravada na Rua São Luiz, em

São Paulo, onde se ouve, ao fundo, sons concretos de transito e buzinas. Sons de instrumentos

de sopro e percussão fazem interferências a essa melodia. A introdução é novamente

executada para o término da canção.

Esse LP, pela proposta altamente experimental, rendeu a Caetano a marca do disco

mais devolvido...

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2.20 - Coda:

Duprat arranjou nesse mesmo período (entre 1968 e 1972) vários outros discos como o

de Jair Rodrigues, chamado Jair e de Claudete Soares, chamado de Gil-Chico-Veloso. Voltou

a contribuir com Nara Leão no LP Dez Anos Depois, de 1971, lançado pela gravadora

CBD/Polydor com produção de Roberto Menescal. As canções foram “Minha Namorada” e

“Primavera”, ambas de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes. Arranjou o disco dos artistas

nordestinos Alceu Valença & Geraldo Azevedo em 1972.

A canção “Épico” foi a última grande contribuição de Duprat como arranjador para os

compositores baianos. Gilberto Gil gravou o disco Expresso 2222, que marca o retorno do

compositor ao Brasil depois do exílio londrino, porém, a direção musical ficou por conta do

próprio Gil. Um disco gravado ao vivo no teatro de Vila Velha no verão de 1974 do show

coletivo de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa chamado Temporada de Verão - ao vivo

na Bahia, teve arranjos de Gil e Perinho Albuquerque (esse último fez os arranjos do disco

posterior de Caetano chamado Jóia, de 1975). O terceiro disco de Gal Costa, LeGal, de 1970,

contou com os arranjos de base de Lanny Godin e Jards Macalé, além de arranjos para

orquestra de Chiquinho de Moraes, mas Duprat voltou a contribuir com a cantora no disco

Índia, de 1973, fazendo o arranjo da canção homônima, composição de José A. Flores,

Manuel O. Guerrero e José Fortuna. Neste mesmo ano dividiu com Luiz Eça os arranjos do

LP de João Bosco, gravado pela RCA tendo como produtor Rildo Hora.

Duprat continuou escrevendo arranjos em música popular: em 1974 arranjou o disco

Brasil com "S” - produção de Gutemberg Guarabira; no ano seguinte fez arranjos para o LP

Música pop do Rio Grande do Sul, produzido por Marcus Pereira, além do LP Criaturas da

Noite da banda de rock progressivo “O Terço”. Em 1977 fez arranjos para a dupla Sá &

Guarabyra no LP Pirão de Peixe com Pimenta.

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Em 1978 arranjou quatro LPs da Coleção “Três Séculos de Música Brasileira”,

organizado por Marcus Pereira. São eles: Valsas e Polcas, Maxixes, A bela época e Dobrados.

Neste mesmo ano, arranjou Mudança de tempo, segundo LP do “O Terço”.

Em 1979 arranjou o disco do grupo mineiro 14 Bis e do segundo LP de Sá e

Guarabyra, intitulado Quatro.

Em 1980 foi lançado o segundo disco do conjunto “14 bis” e faz arranjos

instrumentais para o LP Evocação IV – Anacleto de Medeiros, produzido por Aluízio Falcão

e Antônio de Vicenzo.

O primeiro disco solo do mutante Arnaldo Baptista, chamado Loki?, gravado pela

Polygram em 1983, teve como produtores Roberto Menescal e Mazzola. Duprat arranjou as

canções “Uma Pessoa Só” e “Cê Tá Pensando Que Eu Sou Loki?”.

Seus últimos trabalhos foram os arranjos da canção "Tempo / Espaço contínuo" do

Compact disc de Lulu Santos chamado Liga Lá de 1997, que lhe rendeu o Premio Sharp de

Música como melhor arranjo e, no ano seguinte, "O gosto do azedo" para o Acústico de Rita

Lee.

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Capítulo 3

PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

A partir dos fonogramas e das partituras originais e manuscritas dos arranjos das

canções Luzia, Luluza, de Gilberto Gil, Caminhante Noturno e Dom Quixote, dos Mutantes e

Acrilírico, de Caetano Veloso e Rogério Duprat, esse capítulo se propõe a detectar a aplicação

de procedimentos composicionais utilizadas pelo arranjador. Os parâmetros a serem

observados serão:

1. Instrumentação: será observada a formação instrumental e/ou vocal da canção,

levando em consideração parâmetros como tessitura, escalas, utilização de

manipulação eletroacústica e performance. Tais parâmetros basear-se-ão nos tratados

La tecnica de la orquestra contemporanea de Alfredo Casella e Virgilio Mortari

(1950) para os instrumentos da orquestra; "Arranjo" de Carlos Almada servirá de

referência para a escrita de instrumentos de música popular, como guitarra elétrica,

contrabaixo elétrico e bateria (utilizado apenas na canção “Luzia, Luluza") e de sua

performance tendo como referência os fonogramas das canções; os sons processados

eletroacusticamente, que serão detectados a partir dos fonogramas, terão como base o

texto Esclarecimentos Técnicos21 de Henri Pousseur.

2. Técnica composicional: serão analisados parâmetros como textura (monofônica,

homofônica e polifônica); tratamento do material temático (utilização de seqüências,

retrogrado, inversão, retrogrado da inversão), compasso, simetria e assimetria,

acentuação; tonalidade e harmonia - análise do centro tonal e os tipos de tonalidade

21 Esse texto, com o título original Eclaircissements techniques foi extraído do livro de Henri Pousseur chamado Fragments théoriques I sur la musique expérimentale, editado pelo Instituto de Sociologia da Universidade Livre de Bruxelas em 1970 e disponível, com adendos de Flo Menezes em seu livro Música Eletroacústica: História e Estética. São Paulo: Edusp, 1996.

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(modal, diatônica, quartal, dodecafônica, etc), tendo como referência o tratado de

Vincent Persichetti A harmonia do século XX.

Contudo, não foram aprofundados nessas análises parâmetros como forma e fraseologia

visto que tal material já é fornecido ao arranjador pelo compositor da canção. A divisão em

blocos da partitura auxiliará nas observações referentes ao arranjo. Visto que tal divisão não

respeitou a fraseologia e a estruturação de partes da composição optou-se por chamar tais

blocos de “trecho” com o intuito de evitar conflito com nomenclaturas usuais em análise

musical.

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3.1 – “Luzia, Luluza” Esta canção foi gravada para o LP de Gilberto Gil, que leva o nome do compositor. O

disco foi produzido por Manoel Barenbein e contou com os arranjos e a regência de Rogério

Duprat. O manuscrito do arranjo data de 26 de janeiro de 1968 e o disco foi gravado em 4

canais nos estúdios CBD em São Paulo (SP) no início de 1968 (informações tiradas do LP

original) e lançado em março deste mesmo ano.

Duprat usou neste arranjo a seguinte formação instrumental: guitarra e contrabaixo

elétrico, bateria e instrumentos de percussão (triângulo, pratos), vibrafone, uma flauta, um

clarinete, dois trompetes, dois trombones, além de violinos, violas e violoncelos. Os

instrumentos transpositores utilizados nesse arranjo – o clarinete e os trompetes – estão

escritos em som real para facilitar as análises, embora na partitura original a escrita obedeça a

transcrição. Guitarra e contrabaixo elétrico são instrumentos transpositores de oitavas, porém

não foram aqui transpostos evitando linhas suplementares que possam dificultar a leitura.

O próprio compositor faz um breve resumo da temática poética de sua canção:

"Essa é uma viagem linda, um delírio, uma fantasia sobre um casal de jovens, ambos pobres, gente comum trazida para o estrelato do romance. Ela tem que trabalhar na bilheteria de um cinema, ele está num curso de teatro. O cinema idealizado por mim fica na Avenida São João (em São Paulo); é o Comodoro ou um daqueles. Ela está na cabine. Ele sai de táxi, da Nestor Pestana, onde ensaiava, pra ir vê-la, e pega um engarrafamento 'brabo'. Essa a visão que eu tinha. (Gil, 1996, p. 96)

Para evidenciar esse engarrafamento 'brabo' que Gil sugere na letra de sua canção,

Duprat começa seu arranjo com sons de carros e buzinas gravados, seguido (depois de,

aproximadamente, 5 segundos) pela introdução instrumental.

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3.1.1 – Trecho 1 (introdução)

Figura 1. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 1 e 2)

Analisando esse pequeno trecho - que é repetido 3 vezes, fazendo com que a

introdução dure 6 compassos – Duprat apresenta pequenos motivos melódicos que são

repetidos, e pela ausência de variações proporciona um certo grau monotonia. O movimento

melódico apresentado em cordas duplas no contrabaixo dá a entender que Duprat propõe um

acorde de Mi no estado fundamental seguido de um acorde de Lá com a quinta no baixo

(segunda inversão), porém, a ausência da terça nos dois acordes impede a identificação do

modo da canção.

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3.1.2 – Trecho 2

"Passei toda a tarde ensaiando, ensaiando Essa vontade de ser ator acaba me matando"

Figura 2. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 7 ao 14)

A partir do compasso 7, Gil começa a apresentar a melodia de sua canção que foi

construída a partir da tonalidade de mi maior. Os primeiros versos apresentam o personagem

masculino: "Passei toda a tarde ensaiando, ensaiando / Essa vontade de ser ator acaba me

matando". O vibrafone a partir de agora começa a movimentar-se melodicamente quebrando

um pouco a monotonia, enquanto o contrabaixo, a guitarra e a bateria repetem padrões já

apresentados na introdução. O aparecimento do ré natural na linha melódica do baixo no

compasso 14 propõe o aparecimento de um acorde de dominante incompleto, com a terça

omitida.

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3.1.3 – Trecho 3

"São quase oito horas da noite, e eu nesse táxi Que trânsito horrível, meu Deus

E Luzia, e Luzia, e Luzia?"

Figura 3. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 15 ao 22)

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A monotonia da introdução é justificada agora pela letra da canção. O personagem

aspirante a ator quer encontrar Luzia, sua namorada, e o engarrafamento atrasa cada vez mais

esse encontro. A preocupação com a hora, "São quase oito horas da noite, e eu nesse táxi /

Que trânsito horrível, meu Deus / E Luzia, e Luzia, e Luzia?", é representada pela constante

execução de semínimas pela guitarra elétrica que simula a contagem dos segundos de um

relógio.

Esse trecho se caracteriza pela mudança da progressão harmônica, que é apresentada

de uma forma muito mais explicita através da utilização de acordes completos, que está

representada no gráfico abaixo:

C#m F#/C# C#m F#/C# C#m F#7(9) B7(sus4) B7

Os violinos são responsáveis pela condução harmônica de toda essa parte. Duprat faz

uso de um dominante secundário (F# - dominante da dominante V7/V7 – nos compassos 16,

18 e 20), que resolve no compasso 21 no dominante primário do tom.

No último tempo do compasso 20, Duprat antecipa um pequeno motivo na flauta que

será cantado no primeiro tempo do compasso seguinte, caracterizando uma imitação por

movimento direto. Esse pequeno motivo é baseado numa célula melódica de três tempos, que,

somados ao agrupamento rítmico também de três tempos no vibrafone e no triângulo

proporciona uma pequena mudança para o compasso ternário.

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3.2.4 – Trecho 4

"Estou tão cansado, mas disse que ia Luzia Luluza está lá me esperando"

Figura 4. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 23 ao 28)

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Duprat conclui o ponto de vista do personagem masculino ("Estou tão cansado, mas

disse que ia / Luzia Luluza está lá me esperando") numa progressão harmônica baseada nas

funções básicas da harmonia tonal, os acordes de tônica (I grau), subdominante (IV grau) e

dominante (V grau).

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3.2.5 – Trecho 5

"Mais duas entradas, uma inteira, uma meia São quase oito horas, a sala está cheia Essa sessão das oito vai ficar lotada"

Figura 5. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 27 ao 43)

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Esse trecho caracteriza-se pelo retorno do acompanhamento proposto por Duprat na

introdução da canção alternando os acordes de mi maior (nos compassos ímpares) e o de lá

maior na segunda inversão (nos compassos pares). Duprat soma a esse acompanhamento uma

“melodia de acordes” ou "harmonia paralela" nas cordas. Para Persichetti, a harmonia paralela

acontece "Quando todas as vozes em uma sucessão de acordes se movem na mesma direção"

(Persichetti, 1961, p.200). Esses acordes adicionam ao acorde de mi maior, além das notas da

tríade, notas de tensão como a sétima maior (ré#), nona maior (fá#) e décima terceira (do#); e

sobre o acorde de lá maior na segunda inversão, além das notas da tríade, as tensões sétima

maior (sol#), nona maior (si), décima terceira (fá#). Esses acordes não foram formados a

partir de superposição de terças, e sim de segundas adjacentes, caracterizando o uso de

clusters formados exclusivamente pelas notas diatônicas do tom de mi maior.

Persichetti salienta que em um movimento muito extenso, a melodia paralela pode

causar monotonia, porém, uma das formas de se quebrar essa monotonia é utilizando

ornamentações e dispersão de oitava. Esse artifício é utilizado por Duprat em seu arranjo.

A partir do compasso 31 a melodia e a letra da canção são novamente expostas: "Mais

duas entradas, uma inteira, uma meia / São quase oito horas, a sala está cheia /

Essa sessão das oito vai ficar lotada". Agora a canção reflete os pensamentos de Luzia, que se

encontra no outro lado da cidade. Ela se encontra na mesma monotonia que o personagem

masculino e conta as horas para encontrá-lo.

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3.2.6 – Trecho 6

"Terceira semana em cartaz James Bond / Melhor pra Luzia não fica parada Quando não vem gente, ela fica abandonada"

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Figura 6. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 41 ao 54)

A partir do compasso 41, Duprat antecipa a temática do próximo verso, que começa a

ser cantado no último tempo do compasso 46, que diz: "Terceira semana em cartaz James

Bond / Melhor pra Luzia não fica parada / Quando não vem gente, ela fica abandonada". Esse

trecho reflete o clichê de música de filmes de aventura, mais precisamente do espião James

Bond (ou 007) que é exibido no cinema que Luzia trabalha. Duprat desenvolve esse clichê nos

apresentando eventos sonoros superpostos. As cordas executam a seguinte condução

harmônica: E - F#m7 - G#m7 - F#m7 (respectivamente I - IIm7 – IIIm7 – IIm7 graus da

escala) onde praticamente todas as vozes caminham em movimento direto e executadas em

colcheia adicionam mais velocidade e movimento à esse trecho.

É comum nesses filmes a utilização de instrumentos de metais executando o tema que

foi construído a partir da escala pentatônica (com exceção da nota re# apresentada no

contratempo do quarto tempo do compasso 44) onde se alterna movimentos melódicos em

uníssono e em oitavas (como nos compassos 43, 44 primeiro e segundo tempo do compasso

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45, terceiro e quarto tempo do compasso 48, 49, 51, 52, 53, 54) e harmônicos, onde os

acordes são gerados utilizando todas as notas da escala pentatônica (no terceiro e quarto

tempo do compasso 45, 46, 47, primeiro, segundo tempo do compasso 48 e 50).

A partir do compasso 46 o vibrafone em uníssono com os violinos executam um

motivo baseado em intervalo de quinta justa (si - fa#) acrescentando mais movimento à cena.

Mas nada disso quebra a monotonia e o anseio de encontrar o namorado: o baixo se encontra

repetitivo, monótono e o contar dos segundos (representados pelas semínimas na guitarra)

continuam soando.

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3.2.7 – Trecho 7

"Naquela cabine do Cine Avenida Revistas, bordados, um rádio de pilha

Na cela da morte do Cine Avenida, a me esperar"

Figura 7. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 55 ao 62)

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A partir do compasso 55 a melodia é calçada nos seguintes versos: "Naquela cabine do

Cine Avenida / Revistas, bordados, um rádio de pilha / Na cela da morte do Cine Avenida, a

me esperar". Gil nos oferece uma explicação sobre esses versos da canção:

“Naquela cabine, a rotina, o tédio, a falta de sentido de um trabalho escravo num cubículo com um vidrão parecendo uma cela da morte mesmo. Ali ela morria um pouco a cada dia, morriam suas forças, sentada horas e horas dentro de um espaço exíguo, sem movimentos e quase sem ar para respirar” (Gil, 1996, p. 96).

Duprat utiliza então uma orquestração baseada em repetições de acordes tensos,

valorizando as notas agudas do violino, numa sonoridade que lembra os clichês de trilhas

sonoras de filme de suspense. Além disso, ouve-se sobreposto ao arranjo orquestral, a voz de

um locutor de um programa rádio, passando a ambiência do local de trabalho de Luzia.

Para esse trecho da canção foi utilizado a mesma progressão harmônica da parte B

(compasso 15 ao 22), porém são adicionados aos acordes notas de tensão, como nonas,

décimas primeiras e décimas terceiras para realizar tal efeito. Teremos então a seguinte

condução harmônica:

C#m(9, 11) F#7(9, 13)/C# C#m(9, 11) F#7(9, 13)/C# C#m(6,9, 11)

F#7(9, 13)/C# B7(sus4) B7

Gil continua sua explicação: “Ali, ela, já meio agoniada porque ele não chega; e no

carro, ele, preso no trânsito, agoniado pra chegar porque ela está à espera." (Gil, 1996, p. 96).

Essa agonia continua sendo representada pela monotonia (na voz do contrabaixo) e a espera

do encontro relacionado ao fator tempo (guitarra em semínimas).

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3.2.8 – Trecho 8

"No próximo ano nós vamos casar No próximo filme nós vamos casar"

Figura 8. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 63 ao 70)

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Do compasso 63 ao 70 o personagem masculino expõe seus pensamentos e planos

futuros "No próximo ano nós vamos casar / No próximo filme nós vamos casar". As propostas

de acompanhamento já foram apresentadas no baixo, na bateria, no contrabaixo e na guitarra

na primeira frase (compasso 7 ao 14), porém as cordas aparecem a partir do compasso 65

acrescentando tensão de sétima e nona maior ao acorde de Mi maior (compassos 65, 67, 69) e

tensões de sexta maior, e sétima maior ao acorde de lá maior (compassos 66, 68), além de

uma melodia na flauta baseada na escala pentatônica (o aparecimento de uma nota ‘lá’ no

compasso 67 quebra a estrutura pentatônica). Essa melodia é um motivo recorrente do tema

da canção: é cantada por Gil nos compassos 57 ao 59 e é apresentada pela flauta contraída

ritmicamente.

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3.2.9 – Trecho 9

Luzia, Luluza, eu vou ficar famoso Vou fazer um filme de ator principal

No filme eu me caso com você, Luluza, no carnaval

Figura 9. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 71 ao 77)

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Um retorno à harmonia proposta na parte B é repetida sobre o terceiro trecho da parte

E (compasso 71 ao 75) onde Gil canta os seguintes versos “Luzia, Luluza, eu vou ficar

famoso / Vou fazer um filme de ator principal / No filme eu me caso com você, Luluza, no

carnaval” e que serve de ponte para o trecho seguinte.

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3.2.10 – Trecho 10

Eu desço do táxi, feliz, mascarado Você me esperando na bilheteria Sua fantasia é de papel crepom

Figura 10. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 76 ao 85)

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O desejo de se casar no carnaval é aqui representado pela execução efetiva de uma

banda carnavalesca com direito a base rítmica (que Duprat indica na partitura da bateria para

que o instrumentista execute) sobre um acompanhamento nos instrumentos sopro, onde o

trombone executa uma linha de baixo, seguido por um acompanhamento de acordes nos

trompetes e no clarinete sobre uma série de trinados executados na flauta. A partir da anacruse

do compasso 80 e 81, o trompete executa uma melodia em terças paralelas sobre um

acompanhamento rítmico dos trombones e dos clarinetes que junto com as antecipações

rítmicas proporcionam um swing bastante característico desse tipo de música. Esse trecho

representa o desejo do personagem masculino numa cena tipicamente cinematográfica: “Eu

desço do táxi, feliz, mascarado / Você me esperando na bilheteria / Sua fantasia é de papel

crepom”.

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3.2.11 – Trecho 11

Eu pego você pelas mãos como um raio / E saio com você descendo a avenida A avenida é comprida, é comprida, é comprida...

E termina na areia, na beira do mar / E a gente se casa na areia, Luluza Na beira do mar... / Na beira do mar...

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Figura 11. Arranjo de “Luzia, Luluza” (comp. 85 ao 108)

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A última parte da canção caracteriza-se pela realização do desejo (e do sonho, pois lá

está aquele baixo monótono e aquela guitarra repetida sistematicamente lembrando a vontade

de se encontrar com sua amada) do personagem masculino em se casar com Luzia,

descrevendo, novamente, uma cena de um filme romântico: “Eu pego você pelas mãos como

um raio / E saio com você descendo a avenida / A avenida é comprida, é comprida, é

comprida... / E termina na areia, na beira do mar / E a gente se casa na areia, Luluza / Na beira

do mar... / Na beira do mar...”. O retorno ao acompanhamento com alternância do acorde de

mi maior e lá maior, proposto desde a introdução da canção é acrescentada, nos compassos 85

e 86, a uma melodia de acordes, porém agora baseadas em tríades. Sobre a palavra 'raio', no

compasso 88, uma passagem descendente e rápida em uníssono na flauta, violino, viola e

oitava abaixo no violoncelo é executado simulando o som de uma queda de um raio.

A partir do contratempo do terceiro tempo do compasso 92, uma voz feminina dobra

um motivo de três tempos cantado por Gil e repete esse motivo até o fim da canção. Como o

motivo tem duração de três tempos sobre um compasso quaternário, acontece, durante todo o

trecho, mudanças de acentuação. Gil explica a repetição constante desse motivo melódico: "E

ele sonha, e chega, e os dois saem correndo pela avenida (e a São João é comprida mesmo, vai

lá pra Lapa, por aquele corredor ela vaaaai...)" (Gil, 1996, p. 96).

Outra característica interessante é a alternância de “crescendos” e “decrescendos” nos

violinos implicando na intensidade da execução e da repetição da mesma célula, que junto

com a sonoplastia de ondas quebrando no mar nos remete aos sons típicos de uma praia.

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3.1.8 - Conclusão

Numa canção que conta uma história de amor entre um candidato a ator e uma

bilheteira de cinema, onde ele sai de um ensaio e vai buscá-la no trabalho com o sonho de se

casarem na beira do mar é descrito de uma forma cinematográfica, onde Duprat se utiliza

vários clichês recorrentes em trilhas sonoras de cinema para compor o seu arranjo: é utilizada

a música de suspense (compasso 55 ao 62), a música de aventura (compassos 41 ao 54), a

citação romântica na flauta (compasso65 ao 67), além de uma marcha de carnaval (compasso

76 ao 84). Essa descrição das cenas é reforçada com o auxílio de várias sonoplastias como

sons de transito, rádio de pilha e ondas do mar que ajudam a incorporar ao discurso a

localização espacial de cada personagem, criando um “cenário sonoro”, onde o arranjo

mistura a música acústica com a música concreta.

No âmbito da técnica composicional, Duprat utiliza uma série de ferramentas, como a

harmonia pentatônica, melodia de acordes, clusters, acordes com diversas notas de tensão

adicionadas, intervenções vocais, uma infinidade de texturas diferentes, além de inúmeras

combinações orquestrais, onde a escolha timbrística dos instrumentos reforça a letra da

canção, fazendo com que ela não sobreviva sem o arranjo.

Duprat demonstra um profundo conhecimento de orquestração e de instrumentação,

das principais técnicas de cada instrumento inclusive os dos utilizados em música popular,

como guitarra e contrabaixo. A guitarra alterna notas escritas com execução de cifras, porém é

pouco comum escrever todas as notas que o contrabaixo elétrico deve executar, as cifras são

mais utilizadas deixando o executante livre para criar as sua linha. O arranjador deixa bastante

explicito que tipo de desenho melódico busca, escrevendo em toda partitura que tipo de

melodia deseja.

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3.2 – “Caminhante Noturno”

A canção "Caminhante Noturno" foi composta por Arnaldo Baptista e Rita Lee e

executada pela primeira vez no III Festival Internacional da canção - FIC, que aconteceu em

meados de setembro de 1968. Com essa canção Os Mutantes ganharam o prêmio de melhor

interpretação, enquanto Duprat ganha o Troféu André Kostelanetz de melhor arranjador do

festival. No dia 20 de janeiro de 1969 “Caminhante Noturno” também fez parte do repertório

do show do trio no Mercado Internacional de Disco e Editores Musicais – MIDEM – em

Cannes na França. E acabou sendo gravada como a última faixa do segundo disco dos

Mutantes, lançado no final de fevereiro de 1969, pela gravadora Polydor.

Para esse arranjo Duprat utilizou a seguinte formação orquestral: 2 trompas, 2

trompetes, 2 trombones, 1 sax alto, violinos, violas e violoncelos, além dos instrumentos que

os componentes dos Mutantes tocavam como bateria, guitarra e contrabaixo elétrico. Para

maior facilidade analítica, os instrumentos transpositores, como as trompas e os trompetes,

estão escritos em som real.

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3.2.1 – Trecho 1 (introdução)

Figura 12. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 1 ao 12)

A introdução é dividida em duas partes: a primeira começa no compasso 1 e termina

no compasso 12; a segunda parte começa no compasso 13 e termina no compasso 26.

A primeira parte caracteriza-se pela textura polifônica, onde Duprat, gradativamente,

superpõe uma série de melodias com características particulares: o trompete 1 foi construída a

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partir das notas da tríade de si bemol maior; o trompete 2 (a partir do compasso 3) executa

uma melodia baseada na escala de mi maior (a relação entre essas duas melodias propõe uma

politonalidade, onde os dois tons guardam uma relação de trítono, a mesma relação utilizada

por Stravinski em "Petruska"); a trompa 1 (do compasso 5 ao 8) executa um motivo cromático

ascendente; enquanto a trompa 2 (compassos 7 e 8), executa um motivo baseado em

intervalos de quinta justa (do - sol) utilizando quiáltera, aumentando a polirritmia desse

trecho. Ao mesmo tempo, os trombones em oitava repetem uma nota pedal com duração de 1

1/2 tempo propondo um compasso binário composto (6/8).

Do compasso 10 ao 12, com a entrada do saxofone alto, os instrumentos subitamente

executam um padrão monorítmico e a textura altamente dissonante, ocasionada pela

superposição das melodias, repentinamente se transforma numa tríade de ré maior. Embora a

escrita esteja no compasso quaternário, a indicação de acento de três em três notas já propõe

uma mudança de compasso para um para binário composto, compasso utilizado na primeira

parte da canção.

Figura 13. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 13 ao 26)

A segunda parte da introdução se caracteriza pela textura homofônica e pela mudança

de timbre: os instrumentos de sopros são substituídos pela guitarra e pelo contrabaixo elétrico,

que alternam os acordes de D4 (ré com quarta) e D (ré maior). A partir do compasso 23 a

trompa volta a aparecer, executando um arpejo do acorde de ré maior, antecipando, numa

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compressão rítmica, a melodia da primeira parte da canção que é executada a seguir.

3.2.2 - Trecho 2

“No chão de asfalto Ecos, um sapato”

Figura 14. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 27 ao 35)

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Sobre a base no acorde de ré maior já apresentada pela guitarra e pelo contrabaixo na

introdução, Arnaldo Baptista nos apresenta a melodia da sua canção a partir do compasso 27,

que nesta primeira parte é toda baseada nas notas do arpejo do acorde do acompanhamento. A

partir do compasso 29 somam-se ao acompanhamento instrumentos de percussão como

castanholas e triângulo.

Duprat manipula eletroacusticamente a palavra "eco" no compasso 31, adicionando

delays proporcionando, literalmente, eco.

Nos compassos 33 e 34 os instrumentos de sopro ressurgem no arranjo, reforçando a

harmonia no sax alto, trompete e trombone, seguido de uma imitação comprimida

ritmicamente nas trompas do intervalo cantado no compasso 33 (quarta justa ascendente)

reforçando o efeito de eco.

Notas de passagem descendentes no segundo tempo do compasso 34 são executadas

pelos trombones, partindo da fundamental do acorde de ré maior e chegando a fundamental do

acorde de lá menor. A utilização do acorde de lá menor – dominante menor – e da nota dó

natural no trombone caracterizam o uso do modo ré mixolídio.

3.2.3 - Trecho 3

“Pisa o silêncio caminhante noturno”

Figura 15. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 35 ao 38)

Do compasso 35 ao 38 o acompanhamento fica a cargo da guitarra (que executa os

acordes cifrados em arpejos) e do contrabaixo, marcando apenas a fundamental dos acordes.

Essa progressão harmônica é característica do modo de ré mixolídio, porém, no compasso 38,

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há uma modulação para o tom da dominante menor (lá menor) a partir da execução de seu

acorde de dominante.

3.2.4 - Trecho 4

“Fúria de ter, nas suas mãos dedos finos de alguém

A apertar... a beijar...”

Figura 16. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 39 ao 47)

Nesse trecho (do compasso 39 ao 47), Duprat utiliza as cordas para compor o

acompanhamento, acrescentando nova proposta timbrística. Do compasso 39 ao 41, é

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executado uma tríade de lá menor no estado fundamental, e a partir do compasso 40, as

trompas, em uníssono com a voz mais grave dos segundos violinos, adicionam, partindo de

um movimento cromático descendente, respectivamente, a sétima maior (compasso 40),

sétima menor (compasso 41) no acorde de lá menor transformando as tríades em tétrades,

aumentando o grau de tensão.

No compasso 42 as cordas deixam de executar a harmonia da canção e passam a

dobrar a melodia do coro, enquanto a trompa executa a sexta maior do acorde de lá menor. No

compasso seguinte, a harmonia muda para o acorde de fá com sétima maior (F7M), sexto grau

do tom de lá menor.

No compasso 44, as cordas novamente dobram as vozes do coro e retornam para o

acorde de lá menor. O aparecimento do acorde de si com sétima na primeira inversão - B7/D#

- no compasso 45, um dominante secundário (dominante da dominante) resolve no compasso

seguinte num E7(sus4), onde o retardo da quarta pela terça é resolvido no compasso 47

formando um acorde de dominante (E7).

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3.2.5 - Trecho 5 (refrão)

"Vai caminhante, antes do dia nascer Vai caminhante, antes da noite morrer

Vai caminhante..."

Figura 17. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 48 ao 57)

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O acorde de mi com sétima no compasso 47 é resolvido no compasso 48 num acorde

de lá maior: tonalidade homônima à anterior.

Sobre um baixo pedal em 'lá' executado pelo violoncelo e pelo trombone, há uma

alternância dos acordes de lá maior (compassos 48 e 49, 52 e 53, 56 e 57) com o acorde de sol

maior (nos compassos 50 e 51, 54 e 55) caracterizando esse período no modo de lá mixolídio.

Os metais também executam a harmonia em questão num tutti.

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3.2.6 - Trecho 6

“Luzes câmera / Canção que horas são Sombras na esquina / Alguém, Maria”

Figura 18. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 58 ao 79)

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O início dessa quinta parte (compasso 58 ao 79) é caracterizado pela mudança do

compasso binário composto (6/8) para o binário simples (2/4).

Duprat, gradativamente, vai adicionando notas nos metais ao acompanhamento de

baixo e bateria, chegando, no seu ponto mais tenso nos compassos 62 e 63 num acorde

formado a partir de uma escala sintética de sete notas advinda da escala simétrica diminuta

(escala formada pela alternância de intervalos de segunda menor e segunda maior). Esse

acorde é repetido, ora apenas nos metais (compassos. 66, 67 e 70, 71), ora apenas nas cordas,

(compassos 72, 73) e, num tutti (compassos 68, 69), proporcionando um interessante jogo

timbrístico.

Nos compassos 74 e 75, Duprat nos apresenta um acorde de três sons formados a partir

de intervalos de quartas justas superpostas (mi – lá - ré), caracterizando assim uma harmonia

quartal.

Uma tríade de sol maior nos é apresentado nos compassos 76 e 77 resolvendo na tríade

de ré maior nos compassos 78 e 79, caracterizando uma cadência plagal (resolução dos

acordes IV - I, ambos no estado fundamental). A partir do compasso 78 existe uma nova

mudança de compasso, que passa do binário para o quaternário.

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3.2.7 - Trecho 7 (intermezzo)

Figura 19. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 80 ao 84)

Um intermezzo começa no compasso 80 e termina no compasso 84, onde o

acompanhamento, disposto nas cordas, é formado pela alternância do acorde de ré maior (D) e

de dó maior (C), caracterizando o retorno ao modo de ré mixolídio. Duprat indica na partitura

que as cordas devem ser executadas com o 'talão' do arco, isto é, com a parte do arco mais

próxima da mão do executante, que para Casella "serve para os sons energéticos, rudes"

(Cozella, 1950, p. 153). Os trompetes executam uma melodia, no modo de ré mixolídio, em

intervalos de sextas paralelas. Duprat ainda indica que o som dos trompetes deve ser emitido

vibrando, que segundo Casella: “O resultado é penetrante, sensual, tendendo a voz humana"

(Casella, 1950, p. 84).

Do compasso 85 ao 95 um solo de guitarra distorcida é executado com

acompanhamento de baixo e bateria sobre a condução harmônica do intermezzo.

Do compasso 96 ao 99 é repetido a mesma harmonia e melodia dos compasaos 35 ao

38, porém com a substituição da letra para: “Sente a pulsar um amor musculoso”.

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3.2.8 - Trecho 8

“Vai encontrar, esta noite o amor sem pagar, sem falar, a sonhar”

Figura 20. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 100 ao 115)

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A re-exposição da melodia apresentada nos compassos 39 a 47 é executada com

inúmeras mudanças no acompanhamento instrumental, a começar pela mudança da fórmula

de compasso: 3/8 (a primeira exposição estava em 6/8).

Do compasso 100 ao 105, 108 e 109, 112 e 113, sobre um baixo executado pelo

violoncelo em uníssono com o trombone mais grave, as trompas e os trompetes executam um

cluster de quatro notas em intervalos de segunda menor trazendo mais tensão ao

acompanhamento. Essa proposta rítmica foi apresentada na primeira execução. A melodia é

dobrada pelo violino II em toda parte, sendo acompanhado, uma terça acima, pelo violino I.

Nos compassos 106 - 107 e 110 - 111, as vozes do coro são dobradas pelo violoncelo em

uníssono com o trombone mais grave em intervalos de terças paralelas com a viola em

uníssono com as trompas.

A melodia cromática descendente executada pela trompa na primeira execução é agora

executada pelo sax em oitavas com o trombone mais agudo.

A partir do compasso 114, há o retorno ao compasso 6/8 e a execução de um E7(sus4)

seguido de um E7 no compasso seguinte, preparando o retorno ao refrão. Como no compasso

47, um arpejo descendente do acorde de E7 é executado pelo violoncelo, que dessa vez ganha

o reforço dos trombones em intervalos de oitava.

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3.2.9 - Trecho 9 (coda)

Figura 21. Arranjo de “Caminhante Noturno” (comp. 116 ao 117)

Para essa coda, Duprat propõe um acorde com alto grau de tensão, que somados com

uma série de bordaduras apresentadas nas cordas, movimentos de quartas paralelas nos

trompetes, superposição de quiálteras e semicolcheias, além de guitarra, contrabaixo elétrico,

bateria gera uma grande polirritmia. Sobre essa massa sonora é sobreposto sons concretos de

vaias, gritos e uma voz como a de um robô dizendo: "Perigo! Perigo! Rota de colisão! É

proibido proibir!" e o coro da platéia do FIC aos berros de "bicha! bicha!" proporcionando um

fim caótico para a canção.

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3.2.10 - Conclusão:

Duprat conecta, brilhantemente em seu arranjo, texturas polifônicas extremamente

densas como proposto na introdução da canção (compasso 1 ao 9), com texturas homofônicas

menos densas, baseadas em tríades.

Os movimentos de terças e sextas paralelas, comum na expressão musical tanto

folclórica como popular brasileira, são executadas ao mesmo tempo que clusters altamente

dissonantes.

A alternância dos modos 'ré mixolídio' e 'lá mixolídio', que para o Padre José Geraldo

de Souza e o compositor José Siqueira é um dos modos mais importantes da música folclórica

brasileira (in Paz, 2002), produz o que Vincent Persichetti chamou de "intercambio modal".

Duprat faz uso também de harmonia tonal em lá menor, com utilização freqüente de tétrades

advindas tanto da escala natural, harmônica e melódica e de dominante secundários, além de

uma seção onde utiliza uma escala sintética baseada na escala diminuta.

Manipulações eletroacústicas são utilizadas também nesse arranjo, como delays na

palavra "eco" sons concretos na coda da canção.

Mudança de fórmula de compasso, incomum em música popular, é constantemente

utilizado nessa canção.

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3.3 - “Dom Quixote”

A canção “Dom Quixote”, de Arnaldo Baptista e Rita Lee, teve sua primeira exibição

pública no IV Festival da TV Record no dia 2 de dezembro de 1968, fez parte do repertório do

grupo no show no “Mercado Internacional de Disco e Editores Musicais” – MIDEM – em

Cannes na França no dia 20 de janeiro de 1969 e é a primeira facha do segundo disco dos

Mutantes lançado no final de fevereiro de 1969, pela gravadora Polydor e contou com a

produção de Manoel Barenbein além da participação do baterista Dinho (Ronaldo Leme) e do

contrabaixista Liminha.

Rogério Duprat utilizou para compor o seu arranjo, além dos instrumentos do grupo

como guitarra, baixo elétrico, bateria e teclados, 2 trompas, 2 trompetes, 4 trombones,

violinos, violas e violoncelos.

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3.3.1 - Trecho 1 (introdução)

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Figura 22. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 1 ao 24)

A introdução dessa canção está dividida em duas partes: a primeira começa no

compasso 1 e termina no 24. Já a segunda parte começa no compasso 25 e termina no

compasso 27.

Sobre sons concretos de ovação popular, aplausos e gritos, que se estende por toda

essa parte é introduzido, através de um fade in a melodia da “Marcha Egípcia” da ópera

"Aída" de Verdi. Essa ópera conta o conflito de amor entre o líder do exército egípcio

Radamés e a prisioneira-escrava Aída, e a paixão da princesa, herdeira do trono, Amneris por

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Radamés. A “Marcha Egípcia” é executada quando o guerreiro Radamés e a tropa egípcia

vencem a batalha defendendo sua Pátria e desfilam diante do rei ao som de trombetas. Dom

Quixote de La Mancha, um ingênuo fidalgo espanhol que decide se tornar um cavaleiro

medieval e honrar a sua dama, a lavradora Dulcinéia, gira em torno do mesmo tema que a

ópera de Verdi.

Essa marcha, composta originalmente em lá bemol maior é apresentada por Duprat em

modo menor (no tom de dó menor), a melodia é executada pelos trompetes dobrados oitava

abaixo pelas trompas. No compasso 7 é executado pelos metais um acorde de ré maior que

funciona como dominante secundário para a re-exposição da melodia no tom da dominante

(sol menor). A partir da anacruse do compasso 10 o tema é apresentado no tom de sol menor

pelos violinos com a viola reforçando a melodia oitava abaixo. Os metais executam

contrapontos com a melodia principal em intervalos de quarta justas paralelas no modo

dórico, sugerindo uma ambientação de música medieval.

No compasso 22 ao 24 é executado um acorde mi maior, que funciona como

dominante da canção.

No compasso 25 acontece uma mudança radical na textura da composição: o acorde denso

da orquestra é substituído por duas flautas em oitavas executando o motivo melódico da

primeira parte da canção. Existe também uma mudança de compasso: a canção é apresentada

em 6/8.

Figura 23. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 25 ao 27)

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3.3.2 – Trecho 2 (apresentação do tema)

Figura 24. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 28 ao 55)

O tema da canção é apresentado em duas partes: a primeira começa no compasso 28 e

termina no 46, enquanto a segunda parte começa no 47 e termina no 55. Essas duas partes são

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extremamente contrastantes: enquanto a primeira é baseada no compasso binário composto e

sua harmonia se baseia nas funções básicas da harmonia tonal (Duprat utiliza o I, IV e V

graus do tom de lá maior e sol maior) sendo executada pelo teclado, a segunda parte se

caracteriza pela constante mudança de compassos e uma harmonia baseada em acordes

maiores que não guardam nenhuma relação tonal entre si, além do aparecimento da bateria e

da guitarra distorcida executando o acompanhamento propondo novos timbres.

No compasso 49 o compasso quaternário é estabelecido e uma sonoplastia de ovação

popular, que chega a ficar em primeiro plano no compasso seguinte, dificulta o entendimento

da letra e da melodia da canção. No compasso 52 o andamento da canção cai para

aproximadamente m.m. 72 e uma guitarra com waah-waah executa a harmonia proposta.

A canção repete a primeira parte, retornando ao compasso 29 até o compasso 43, porém

num andamento mais rápido que a primeira exposição: semínima pontuada,

aproximadamente, metrônomo 142.

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3.3.3 - Trecho 3 (intermezzo)

Figura 25. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 55 ao 70)

Um “duelo” entre as trompas e trompetes acontece nos primeiros quatro compassos

desse intermezzo. Do compasso 59 até o 61 cadências perfeitas com uma resolução V7 - I (F7

resolvendo em Bb, ambos no estado fundamental) é apresentado em tutti intermediado por

solos de bateria a partir do compasso 60.

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No compasso 62 e 63 um acorde de mi maior é executado nos metais numa variação

do movimento melódico apresentado nos compasso 20 ao 23 da introdução, seguido por uma

harmonia baseada no acorde de sol maior (compasso 69), chegando no compasso seguinte

num acorde de mi bemol maior.

É interessante salientar que na gravação do LP o primeiro compasso da figura 21 foi

retirado.

3.3.4 - Trecho 4 (solo de guitarra)

Figura 26. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 70 ao 75)

Sergio Dias improvisa um solo de guitarra distorcida sobre uma harmonia baseada nos

acordes de Eb (compassos 70 e 71) e de Ab (compasso 72 ao 75) respectivamente I e IV grau

do tom de mi bemol maior.

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3.3.5 – Trecho 5 (segunda parte do tema)

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Figura 27. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 76 ao 94)

O acorde de lá bemol (apresentado nos compassos 72 ao 75 da figura 22) funciona

como dominante para o acorde C#m (apresentados no compasso 76). Do compasso 78 ao 81 a

melodia é acompanhada por arpejos executados na guitarra, contrabaixo e bateria.

Ainda sobre esse trecho (compasso 76 ao 81) nota-se um glissando ascendente

executado por um theremin.

No compasso 82 as trompas executam bordaduras de quartas paralelas, num motivo já

apresentado na introdução da canção (nos compassos 20 ao 23 da figura 18).

Acordes com notas de tensão aparecem nesse trecho: no compasso 84 é executado nos

metais acorde de fá sustenido maior com sétima e décima terceira [F#7(13)] e o acorde de si

com sétima e nona [B7(9)] é apresentado no compasso 86. Sobre os compassos 85 e 86

novamente é acrescentado ao arranjo uma sonoplastia de aplausos.

A partir do compasso 92, onde Dom Quixote vai “cantar pra subir”, as cordas

executam a escala ascendente de mi maior, começando pelos violoncelos, passando pelas

violas e terminando nos violinos, enquanto os metais apresentam um acorde formado pela

superposição de quintas justas, resolvendo no compasso seguinte (94) no acorde de mi bemol

maior com sétima menor e nona [Eb7(9)].

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No compasso 95, apenas uma buzina é executada (figura 30) numa referência ao

apresentador Chacrinha, partindo para a coda da canção.

Figura 28. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 95)

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3.3.6 - Trecho 6 (coda)

Figura 29. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 96 ao 119)

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Após a buzina, começa a ser executada a coda da canção a partir do compasso 96, onde

Duprat apresenta a melodia do tema nas cordas em estacato no tom de lá maior, e o

acompanhamento nos trombones. Do compasso 100 ao 103 as trompas tocam o tema em

terças paralelas no tom de sol maior enquanto as cordas executam o acompanhamento.

A volta ao tom de lá maior se caracteriza pela execução do motivo do tema ampliado para

uma quiáltera de 3 notas para dois tempos no compasso 104 nos trompetes acompanhado

moniritmicamente pelos trombones. O motivo é novamente ampliado nos compassos 109 ao

111, terminando esse trecho no compasso 119 sobre o acorde de lá maior.

Uma citação do tema da canção “Disparada”, de Geraldo Vandré, encerra a faixa.

Figura 30. Arranjo de “Dom Quixote” (comp. 120 e 121)

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3.3.7 - Conclusão:

Essa canção caracteriza-se pela alternância da sonoridade da orquestra e da banda de

rock e das diversas ferramentas composicionais utilizadas pelo compositor. Em relação à

harmonia, Duprat, evidencia os pilares da música tonal na primeira parte da canção (onde

utiliza os acordes de tônica, subdominante e dominante), desenvolve uma condução

harmônica com acordes maiores sem relações entre si e uma série de modulações para tons

afastados da tonalidade principal, utiliza acordes de quatro, cinco e seis sons, além da

utilização de um acorde formado por superposição de quintas. O modo dórico também é

utilizado na introdução

A utilização de sons concretos como de “ovação popular”, “aplausos”, que por duas

vezes ficam em primeiro plano e de uma buzina, referência ao apresentador Chacrinha, além

do som eletrônico de um theremin, são acrescentadas aos sons acústicos dos instrumentos.

A citação também se faz presente nessa canção: a introdução é a abertura da ópera

“Aída”, de Verdi em tom menor e a música termina com a citação da música “Disparada” de

Geraldo Vandré. Outra característica é a constante mudança de andamentos e de fórmulas de

compassos, incomum em música popular.

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3.4 – “Acrilírico”

Esta composição faz parte do disco Caetano Veloso (disco Philips R765 086L,1969)

gravado em 1969 antes de seu exílio londrino. É uma poesia recitada, onde Duprat, livre de

uma estrutura melódica e aprisionadora no sentido funcional e harmônico, introduz junto da

récita uma série de intervenções musicais. Essa mesma proposta de poesia recitada também

acontece no disco de Gilberto Gil gravado ao mesmo tempo do disco do Caetano. O poema de

Gil em parceria com Rogério Duarte chama-se "Objeto semi-identificado". Como essas

músicas não "sobrevivem" sem o arranjo, Duprat assina a parceria junto aos compositores.

Como já foi dito no capítulo anterior, essa faixa, como todas as outras dos dois discos, foram

gravadas primeiro as vozes num estúdio da Bahia e as intervenções musicais gravadas a

posteriori num estúdio em São Paulo. A partitura original do arranjo é datada de 14 de junho

de 1969.

Essas duas poesias utilizam técnicas da "poesia concreta", manifesto cunhado por

Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos em 1952. Essa associação entre poesia

concreta e música de vanguarda já era realizado pelos compositores próximos do Duprat que

posteriormente formariam com ele o grupo "Música Viva" como aponta José Maria Neves

(1981):

Algumas das primeiras manifestações de compositores que formariam o "Música Viva" mostram o trabalho comum realizado com os poetas concretos: em janeiro de 1954, por ocasião do V Curso Internacional de Férias Pró Arte de Teresópolis, dirigido por Koellreutter, foram realizadas oralizações de poemas da série "Poetamenos", por Décio Pgnatari e pelos compositores Damiano Cozzella e Luiz Carlos Vinholes; no ano seguinte, comemorando o primeiro aniversário da criação do "Movimento Ars Nova" de São Paulo, eram apresentadas oralizações da mesma série "Poetamenos" (de Augusto de Campos) e trechos de "Noigandres", com a participação dos compositores Damiano Cozzella e Ernest Mahle e do regente e compositor Julio Medaglia. (Neves, 1981, p.162)

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Rogério Duprat, inclusive, já havia musicado o poema concreto de Décio Pignatari

chamado "Organismos" (composição de 1961) para uma formação instrumental formada por

flauta, oboé, corne inglês, clarinete-baixo, fagote, celesta, vibrafone, violino, viola, violoncelo

e contrabaixo, cinco vozes solistas (soprano, contralto, tenor, baixo e voz infantil) e

instrumentos de percussão (crótalos, agogô e matraca), que, para José Maria Neves, "é a

primeira experiência (fora as oralizações dos anos anteriores) de composição musical sobre

poesia concreta" (Neves, 1981, p.162). Sobre a técnica musical empregada nesta composição,

Regiane Gaúna (2002) apresenta um síntese deste processo:

Organismo faz parte de uma etapa intermediária na trajetória composicional de Duprat e pode ser vista como uma ponte entre sua prática serial (via Schöenberg e, posteriormente, Boulez), a música eletrônica e o happening. Segundo Duprat, por ter sido composta basicamente sob a influência da composição Structures I (1952) de Pierre Boulez, Organismo é sua peça mais complexa do ponto de vista estrutural. Essa obra reflete seus estudos relativos á música serial da escola de Darmstadt. Assim como Boulez, Stockhousen e Goeyvaerts, Duprat se vale de técnicas que vieram expandir o dodecafonismo de Schöenberg (1874 - 1951) e Webern (1883 - 1945). (Gaúna, 2002, p. 115)

Para “Acrilírico”, Duprat utilizou uma orquestra de cordas (violinos I e II, viola,

violoncelo e contrabaixo), uma flauta e um fagote como formação instrumental além de uma

série de sons concretos e eletrônicos que funcionam como intervenção sonora à oralização da

poesia por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jussara Moraes.

Salienta-se que todos os instrumentos escritos na partitura soam na altura real, com

exceção do contrabaixo, que é um instrumento transpositor de oitava (soando oitava abaixo do

que está escrito).

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3.4.1 - Trecho 1 (introdução)

Figura 31. Arranjo de “Acrilírico” – introdução

A introdução de “Acrilírico” se caracteriza pela variação de um motivo melódico

apresentado no compasso 1. No compasso 2 esse motivo é transposto uma terça menor acima

sendo acrescido de uma nota de passagem que altera ritmicamente o segundo grupo de

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colcheias para uma tercina (quiáltera). No compasso seguinte o motivo é apresentado na

forma retrógrada e diminuído ritmicamente (passa de colcheias para semicolcheias) seguido

pela execução em fusas da escala de lá menor melódica. No quarto compasso todas as vozes

ganham individualidade apresentando um acorde de Mi com sétima com nona menor

(dominante de lá menor). Melodicamente, uma apogiatura ascendente nas notas do acorde é

apresentado até o inicio do quinto compasso. Essa apogiatura é um fragmento do motivo

apresentado no primeiro compasso.

Uma pequena passagem cromática descendente na viola funciona como ponte para a

entrada da segunda parte da introdução que se caracteriza pela utilização de um ciclo de

dominantes. No compasso 6 o acorde de lá com sétima e nona menor [A7(b9)] é executado (a

melodia apresenta uma apogiatura da sexta menor para a quinta justa), no compasso seguinte,

um acorde de ré com sétima e nona menor [D7(b9)] (agora a apogiatura da quarta aumentada

pela terça do acorde). No compasso 8 um acorde de lá bemol com sétima, quinta aumentada e

nona menor [Ab7(#5, b9)] é executado. Esse acorde tem uma relação com o acorde anterior:

possuem o mesmo trítono, resolvendo no compasso seguinte (compasso 9) em outro acorde de

dominante, um dó sustenido com sétima e nona menor [C#7(b9)] retornando ao ciclo de

dominantes, que é finalmente interrompido no compasso 10 num acorde de fá sustenido

menor com nona e décima - primeira adicionadas [F#m(9, 11)] finalizando a introdução da

canção.

Esse trecho chama bastante a atenção pela constante troca de unidade de compasso

incomum em música popular.

Após essa introdução, Duprat, como indica a partitura, mixa ao fade out da fermata do

último acorde uma onda dente de serra partindo de um fade in. É interessante observar que,

enquanto ouvimos a orquestra de cordas no canal direito, a onda dente de serra aparece no

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canal esquerdo, fazendo com que a espacialização do som se torne mais um parâmetro a ser

percebido, como demonstra a figura 28:

Figura 32. Disposição da espacialização da gravação de “Acrilírico”22

Logo após a entrada da onda dente de serra, escuta-se a voz de Caetano recitando a

frase "Olhar colírico" seguido da voz de Jussara Moraes "Lírios plásticos do campo e do

contracampo / Telástico cinemascope". Após a palavra "cinemascope" a onda dente de serra

sofre um corte súbito, onde escuta-se, sem nenhuma interferência sonora, a frase "Teu

sorriso... tudo isso" na voz de Caetano. Palavras como “campo” e “contracampo”,

"cinemascope", diretamente ligada a “telástico” (tela + elástico) fazem parte da linguagem e

técnicas cinematográficas. É interessante salientar que enquanto a onda dente de serra está no

canal esquerdo, as vozes dos recitadores se encontram em ambos os canais. (vide figura 32).

22 Essa representação espectral foi realizada a partir do software Sound Forge 6.0

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Figura 33. Disposição da espacialização da gravação de “Acrilírico”

Agora Duprat nos apresenta uma série de sons concretos: um som de batida no canal

direito seguido de sons de queda de gelo dentro de um copo no canal esquerdo. Sobre esses

sons de gelo, Rogério Duarte declama mais uma parte do poema (sobre os dois canais): "Tudo

ido e lido e lindo e vindo do / Vivido na minha adolescidade / Idade de pedra e paz", seguido

pelo primeiro dueto de flauta e fagote executado no canal direito (figura 33).

3.4.2 - Trecho 2 (primeiro duo de Flauta e Fagote)

Figura 34. Arranjo de “Acrilírico” – primeiro duo de flauta e fagote

Analisando esse pequeno dueto nota-se que Duprat utilizou um intervalo de segunda

menor (tanto ascendente como descendente) como célula para a composição numa estrutura

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atonal livre e textura polifônica. Termina com a poesia: "Teu sorriso quieto no meu campo"

(voz 2) em ambos os canais.

3.4.3 - Trecho 3 (segundo duo de flauta e fagote)

Figura 35. Arranjo de “Acrilírico” – segundo duo de flauta e fagote

No segundo dueto a linha melódica do fagote complementa ritmicamente a linha da

flauta, proporcionando um "diálogo" contrapontístico atonal entre esses dois instrumentos que

ora executam intervalos consonantes, ora intervalos dissonantes.

Figura 36. Disposição da espacialização da gravação de “Acrilírico”

Após o segundo dueto disposto no canal esquerdo, mais um trecho da poesia é recitado

disposto em ambos os canais (figura 36). Esse trecho é recitado por Gil e Caetano com suas

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vozes defasadas, propondo uma idéia de imitação rítmica. Eis a parte da poesia: “ainda canto

o ido o tido o dito / o dado o consumido o consumado / Ato do amor morto motor da

saudade”. Nota-se que sobre a palavra “saudade” é adicionado reverb à voz de Caetano, uma

sutil manipulação eletroacústica.

Uma gravação de um “pum” de Duprat, executado no canal direito, seguido por sons

de transito (carros, buzinas...) no canal esquerdo e uma orquestra de cordas altamente tensa no

canal direito (figura 37), propõe uma quebra ao discurso poético até então estabelecido: a

adolescidade, associada a adolescência (idade de pedra e paz), cidade (interior, união) e a

idade (pureza) é substituída pela “grandicidade” associada a cidade grande, metrópole.

Figura 37. Disposição da espacialização da gravação de “Acrilírico”

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3.4.4 - Trecho 4 (orquestra de cordas)

Figura 38. Arranjo de “Acrilírico” – orquestra de cordas

Tomando como base a nota “mi” no contrabaixo, Duprat agrega a essa nota a terça

maior e a sétima menor nos violoncelos, a terça maior e a sétima menor nas violas, além da

terça menor na melodia gerando um acorde altamente dissonante.

Nos compassos 5, 6 e 7 uma série de acordes são executados nos violinos: o primeiro é

um acorde quartal formado por um intervalo de quarta justa (lab – reb) e uma quarta

aumentada (reb – sol); o segundo acorde é uma tríade de sol maior; o terceiro é a tríade de fá

maior com quinta aumentada [F(#5)]; último acorde do compasso 5 também é formado em

superposição de quartas: uma quarta aumentada seguida de uma quarta justa. Esse acorde é

transposto uma segunda maior abaixo no compasso seguinte. O segundo acorde do compasso

6 é a tríade de lá maior com quinta aumentada [A(#5)]; o terceiro acorde temos um mi maior

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com quinta diminuta na primeira inversão [E(b5)/G#], que somado ao ré bemol no último

tempo do compasso 6 transforma esse acorde numa tétrade de re bemol com sexta [Db6].Com

o aparecimento do dó natural na viola no segundo tempo do sétimo compasso, transforma o

acorde anterior num dó maior com sétima e quinta aumentada [C7(#5)] funcionando como

dominante para o próximo trecho.

Sobre essa intervenção instrumental, Caetano recita os seguintes versos: “Diluído na

grandicidade / Idade de pedra ainda / Canto quieto o que conheço”. Agora o poema seguido

pela voz de Jussara Moraes recitando: ”Quero o que não mereço / O começo / Quero canto de

vinda”.

3.4.5 – Trecho 5 (tutti Final)

Agora disposto em ambos os canais o tutti instrumental final é executado sobre a

poesia recitada por Caetano (também em ambos os canais – vide figura 39): “Divindade do

duro totem futuro total / Tal qual quero canto / Por enquanto apenas mino o campo ver-te /

Acre e lírico o sorvete / Acrilíco Santo Amargo da Putrificação”.

Figura 39. Disposição da espacialização da gravação de “Acrilírico”

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Figura 40. Arranjo de “Acrilírico” – tutti orquestral

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Agora a orquestra toda executa essa passagem num tutti. A melodia é apresentada pelo

o violino I, pela flauta em uníssono com o violino 2 e pelo fagote em três oitavas diferentes,

sobre o acompanhamento das violas, violoncelos e contrabaixo.

No compasso 1 é apresentado um acorde de fá com sexta e nona [F6(9)] seguido pelo

acode de ré bemol com sexta e nona [Db6(9)] no compasso seguinte. O fá com sexta e nona

[F6(9)] volta a ser executado no compasso 3. No compasso 4 um mi bemol com sexta e nona

[Eb6(9)] é executado retornando ao fá com sexta e nona [F6(9)] no compasso seguinte. Se

levarmos em consideração que estamos no tom de fá maior, consideramos o Db6(9) (sexto

grau de fá menor) e o Eb6(9) (subtônica de fá menor) como dois acorde de empréstimo

modal. Esses acordes também podem ser construídos a partir da escala pentatônica de cada

tônica em questão.

Nos compassos 6 e 7, num piano súbito, o acorde de sol com sétima, nona e décima

terceira [G7(9,13)] é apresentado num ritmo sincopado nos violoncelos, violas e segundo

violino. A melodia se encontra na flauta dobrada em uníssono nos primeiros violinos.

A partir do compasso 9 há uma mudança do compasso quaternário para o binário onde

um jogo rítmico entre contrabaixo somado ao fagote (que alternam a tônica e a quinta do

acorde) e violoncelos e violas (responsáveis pela terça e sétima do acorde) executam um fá

maior com sétima maior (F7M). Nos compassos 15 e 16 os violinos e a flauta executam uma

melodia em intervalos de terças paralelas no modo de fá lídio. A canção termina com uma

pausa exageradamente longa (como indica a partitura) sobre o intervalo de terça (sol – si) no

compasso 20 resolve com um movimento descendente da dominante para a tônica (do - fá) no

contrabaixo, violoncelo, fagote e viola.

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3.4.6 – Conclusão:

Mais uma vez, esse arranjo de Duprat sobre uma poesia recitada conecta uma série de

intervenções musicais das mais variadas origens: a Harmonia tonal modulante com textura

homofônica e desenvolvimento motívico da introdução com a textura contrapontística nos

duetos atonais de flauta e fagote juntamente com a música modal – construído sobre o modo

lídio e utilizando movimentos de terças paralelas - do tutti final. A música acústica orquestral

com a música eletroacústica, com referência a música concreta (sons de gelo batendo dentro

do copo, transito, "pum") e a música eletrônica (ondas dente de serra, referências de

espacialização, utilização de reverb).

Em relação à harmonia, Duprat utiliza uma série de possibilidades de construção de

acordes, como a harmonia quartal (acordes formados por superposição de quartas), acordes de

cinco sons advindos da escala pentatônica, acordes de quinta aumentada (formados a partir da

escala de tons inteiros) além de encadeamentos harmônicos utilizando acordes de empréstimo

modal na primeira parte da última intervenção sonora.

É notória a relação poesia e música nessa canção: na primeira parte, onde o poeta está

relacionado com a "adolescidade", que se associa a 'adolescência' (idade de pedra e paz),

'cidade' (interior, união) e 'idade' (pureza) Duprat utiliza de intervenções instrumentais e sons

concretos menos densos, mais líricos, um padrão mais contrapontístico de diálogo entre flauta

e fagote. Já a "grandicidade", que se associa a cidade grande, metrópole / dispersão,

desintegração, a idade de pedra, porém sem paz, um som denso de buzinas com acordes

dissonantes proporcionam enorme contraste com a parte anterior. A lembrança dos tempos de

criança aparece com uma citação de um tema modal -lídio - em terças paralelas, bem próximo

as sonoridades folclóricas no interior da Bahia, em Santo Amaro da Purificação.

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CONCLUSÃO

Rogério Duprat teve em sua formação contatos com diversas estéticas composicionais:

no período de 1949 a 1952 estudou com Oliver Toni, discípulo do compositor Mozart

Camargo Guarnieri, que lhe introduziu à estética nacionalista; a partir do final da década de

1950, Duprat começa a estudar composição com Claudio Santoro e logo adere à estética

composicional de seu professor que utiliza técnicas dodecafônicas dentro do espírito

nacionalista. Em julho de 1962, Duprat viaja para Alemanha para ter aulas com Henri

Poesseur, Pierre Boulez e Karlheins Stockhausen no curso de férias de Darmstadt. Nesse

mesmo curso estudaram os compositores Willy Correia de Oliveira, Gilberto Mendes, Julio

Medaglia (que juntos com Damiano Cozzella, Régis Duprat, Sandino Hohagen e Alexandre

Pascoal assinariam, no ano seguinte, o Manifesto Música Nova).

Desiludido com a música erudita - "chega desse negócio de coisinha da música erudita

enfiada só dentro do teatro, pra meia dúzia de milionários e tal. A gente tem é que sair para a

rua, fazer música na rua com os meios que houver; se forem bons ou maus, isso é outra coisa.

Mas fazer o que for possível" declarou (Rosa e Matias [s.d.]23) - , começou a trabalhar com

música popular. Porém, Duprat não traiu seus princípios estéticos quando passou a fazer os

arranjos dos tropicalistas, ao contrário, ampliou sua gama de ouvintes e aplicou praticamente

todos os tópicos do manifesto redigido por ele em 1963. O primeiro item do manifesto está

ligado a técnica musical:

desenvolvimento interno da linguagem musical (impressionismo, politonalismo, atonalismo, músicas experimentais, serialismo, processos fono-mecânicos e elétroacústicos em geral), com a contribuição de debussy, ravel, stravinsky, schoenberg, webern, varèse, messiaen, schaeffer, cage, boulez, stockhousen.

23 idem.

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Como se vê nas análises das canções nos capítulos anteriores, Duprat utilizou

referências de todos os compositores e processos composicionais citados no primeiro tópico

do manifesto: o experimentalismo acontece desde as pesquisas de novos timbres como a

substituição do som do chimbau da bateria pela bomba de inseticida na canção "Le Premier

Bonheur du Jour" dos Mutantes, a criação de novos processadores eletrônicos de som (e nesse

sentido deve-se creditar esses experimentos à contribuição do técnico de som Cláudio César

Baptista) como o efeito de guitarra wooh-woo e o Voice Box; com contribuição direta de Jonh

Cage, o happining foi utilizado em peças como “Panis et circenses” e “Pega a voga,

cabeludo”, além da utilização do piano preparado na versão de Tom Zé para a canção de

“Irene”, de Caetano Veloso.

Manipulação eletroacústica também foi bastante utilizada na produção das canções

tropicalistas como em "Cultura e Civilização" de Gilberto Gil (gravado no segundo disco de

Gal Costa) com utilização de microfonias; em "Objeto Sim, Objeto Não" de Gilberto Gil,

curtas intervenções de vozes, gritos manipulados eletroacusticamente com utilização de eco e

mudança de rotação; sons eletrônicos e acústicos como pratos de bateria e sonoridades vocais

e microfonias em "Pulsars e Quasars", de Macalé e Capinam; fita gravada com vocais foi

reproduzida de trás para a frente em "Ave Gengis Khan"; o theremin, foi também utilizado

nas canções "2001", “Dom Quixote” e "Banho de Lua" (Tintarella di Luna), de B. de Fillipi e

F. Migliacci, com versão para o português de Fred Jorge na gravação dos Mutantes. Ruído

branco foi utilizado em "Não Identificado", de Caetano Veloso, onda dente de serra e

espacialização em “Acrilírico”. Além das inúmeras citações e utilizações de sons concretos,

numa referência direta à Pierre Schaeffer em grande números de faixas das canções: nossas 4

análises Duprat utilizou sons concretos em “Acrilírico”, “Luzia, Luluza” e “Dom Quixote”.

O atonalismo livre e o serialismo foram pouco utilizados nos arranjos aqui estudados,

porém, sua aplicação se encontra nos dois duos de flauta e fagote de “Acrilírico”.

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A politonalidade é representada na introdução de “Caminhante Noturno” onde duas

melodias superpostas, que guardando um intervalo de trítonos entre as duas tonalidades, nos

remete ao artifício usado por Stravinsky em sua composição “Petruska”.

No campo harmônico, Duprat utiliza uma série de possibilidades na construção de

acordes, como os acordes quartais utilizado em “Acrilírico” e também por Anton Webern nas

suas “Variações para piano op.27”, no “Septeto” de Stravinsky e na “Sinfonia de Câmara op.

9” de Schoenberg; acordes de quinta aumentada, advindos da escala de tons inteiros e

utilizados por Duprat em “Acrilírico” é encontrado também nos “Prelúdios Vol. 1” de Claude

Debussy e no “Microcosmos”, de Béla Bartók; a escrita pentatônica e acordes gerados pela

escala, que aparece em “Acrilírico” e em “Luzia, Luluza” aparece em peças de Claude

Debussy, como nos “Prelúdios”, no volume III de “Microcosmos”de Béla Bartók e no “Trio

para violino, violoncelo e piano” de Maurice Ravel; freqüente uso de tétrades (acordes de

quatro sons), comum na harmonia bossanovistica, e suas possíveis notas de tensão como as

nonas, décimas primeira e décimas terceira, utilizadas em “Luzia, Luluza”, “Caminhante

Noturno” são comuns em obras de Maurice Ravel como nas “Valsas nobres e sentimentais” e

nas “Sonatas para piano” de Alexander Scriabine; os clusters, utilizados nas canções “Luzia,

Luluza”, “Caminhante Noturno” são ferramentas composicionais encontrados, por exemplo,

em peças como “Wozzeck”, de Alban Berg e “Ionisation”, de Edgard Varèse. Duprat utiliza

ainda uma escala sintética advinda da escala simétrica diminuta.

Em relação à interpretação vocal, o sprechgesang, canto falado utilizado na

composição “Pierrot Lunaire”, de Arnold Schoenberg, é um artifício utilizado por Tom Zé na

sua versão de "Irene" (Caetano Veloso), Campos (1978) ainda aponta que “assimilando a

abertura interpretativa de Jimi Hendrix e Janis Joplin, Gil e Gal rompem com a vocalização

tradicional brasileira, descobrindo novas áreas sonoras de aplicação para as cordas vocais: o

grito, o gemido, o murmúrio, glissandos e melismas inusitados: o ‘ruído’, antes desprezado,

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ou até então desconhecido, passa a ter vez na voz” (Campos, 1978, p. 290) fazendo um

paralelo com as obras vocais de Luciano Berio.

Com exceção de “Luzia, Luluza” as três outras canções analisadas no capitulo 3

utilizam-se de constante mudança de fórmula de compasso, bastante incomum em canções

populares.

Em outro tópico do manifesto, foi proposto uma “reformulação da questão estrutural:

ao edifício lógico-dedutivo da organização tradicional (micro-estrutura: célula, motivos, frase,

semi-período, período, tema; macro-estrutura: danças diversas, rondó, variações, invenção,

suíte, sonata, sinfonia, divertimento etc. ... os chamados "estilos" fugado, contrapontístico,

harmônico, assim com os conceitos e as regras que envolvem: cadência, modulação,

encadeamento, elipses, acentuação, rima, métricas, simetrias diversas, fraseio,

desenvolvimento, dinâmicas, durações, timbre, etc.)”. Como Duprat desenvolve um arranjo

baseado numa melodia pré-estabelecida pelos compositores das canções, que se baseiam

fundamentalmente numa elaboração melódica tonal ou modal (como a utilização do modo

mixolídio na canção “Caminhante Noturno”), fugir de estruturas formais e estruturais, onde a

criação de frases, que se relacionam diretamente com cadências, encadeamentos harmônicos,

desenvolvida muitas vezes dentro de formas tradicionais, se torna uma tarefa extremamente

difícil. As formas eruditas aqui citadas (danças diversas, rondó, variações, invenção, suíte,

sonata, sinfonia, divertimento) se transformam muitas vezes em formas livres (como as

canções aqui analisadas) ou utilizam a forma canção baseada nos ritmos populares brasileiros

como o frevo, o baião, samba, os ritmos latinos como o tango, a guajira, o mambo e os ritmos

americanos como o rock, o country, o jazz, o iê-iê-iê e o blues (bastante presente nas músicas

dos Mutantes) entre outros. Nesse sentido é pertinente a utilização de contrapontos tonais ou

modais, como os movimentos de terças e sextas paralelas, comum no cancioneiro brasileiro, o

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desenvolvimento motívico (como na introdução de “Acrilírico” ou na coda de “Dom

Quixote”), que remete a uma relação com a tradição.

Porém, nas canções tropicalistas, todos esses elementos se misturam, criando uma

nova forma de expressão na música brasileira. A música folclórica é recriada com elementos

da música de vanguarda, proporcionando cruzamento de signos até então desconectados,

como o samba de roda do recôncavo baiano e a banda de rock com guitarra elétrica distorcida

a la Hendrix em "Marinheiro Só"; ou como em "Pega a voga, Cabeludo", uma canção do

folclore maranhense recolhido por Juan Arcon que se alia ao happening de Gil e dos

Mutantes; em "Batmacumba", os toques percussivos da macumba em harmonia com o rock e

a poesia concreta; a canção "2001" alia o canto em terças paralelas, comum no folclore

brasileiro e na música sertaneja, aos solos de teclados com ondas quadradas, proporcionando

uma “sonoridade espacial” além do uso de um theremin.

A mesma proposta acontece com o cancioneiro popular, que ganha inovadíssimas

versões, como, por exemplo, "Adeus Maria Fulô" de Humberto Teixeira e Sivuca; "Coração

Materno", do compositor Vicente Celestino; "Quem Será?", uma canção de Jair Amorim e

Evaldo Govêia; "17 Léguas & Meia" (Humberto Teixeira & Carlos Barroso); a canção "Chão

de Estrelas", de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, recebe um novo arranjo acompanhada por

uma dixieland jazz, além de uma série de citações concretas.

As composições baseadas em ritmos brasileiros de Caetano e Gil ganham arranjos

onde o cruzamento de signos também se faz presente, como por exemplo, "Atrás do Trio

Elétrico", um frevo de Caetano Veloso, que utiliza guitarra elétrica distorcida, além de uma

série de sons concretos como vozes, gritos, assovios, palmas, buzina de bicicleta, entre outros.

O baião “Domingo no Parque” promove o encontro do berimbau com a guitarra elétrica e da

música eletroacústica. “Geléia geral” faz o cruzamento do blues americano e do baião

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brasileiro a partir dos acordes do acompanhamento e de uma série de citações que

representam culturas completamente distintas.

Os ritmos latinos, como o mambo "Três Caravelas" (Las tres carabelas), de A.Algueró

Jr.e G.Moreu, o tango "Cambalache", de E. S. Discépolo; além do fado português "Os

Argonautas", ganham arranjo baseados em seus respectivos clichês, sendo tratados de forma

tradicional.

Os ritmos americanos também são usados e recriados, com referência direta dos

Beatles, como por exemplo, na canção "Senhor F" (Os Mutantes), que ganha uma

instrumentação próxima das orquestras de jazz; “Canção para Inglês Ver / Chiquita Bacana",

de Lamartine Babo, João de Barro e Alberto Ribeiro é cantada "num inglês macarrônico"

sobre um acompanhamento de uma jazz band; "Não Vá Se Perder por Aí", de Raphael

Thadeu Villardi da Silva e Roberto Lafayete Loyola é baseado no ritmo de country-rock.

Em relação à música eletrônica, utilizada em várias canções aqui analisadas, teve seu

inicio no Brasil a partir das composições de Reginaldo de Carvalho e Jorge Antunes no final

dos anos cinqüenta. Em 1967, no Instituto Villa-Lobos, Antunes ministra o primeiro curso de

música eletrônica no Brasil, no mesmo período que Duprat passa a utilizá-la em seus arranjos

tropicalistas demonstrando a contemporaneidade do movimento. Enquanto os consumidores

brasileiros de música erudita do século XX se afastaram da produção contemporânea,

preferindo o retorno à escuta dos compositores clássicos e românticos, Duprat aproxima os

ouvintes de música popular, freqüentadores de festivais e de programas de TV os "conceitos"

da música de vanguarda.

Em todos esses arranjos, certos elementos como harmonia, introduções, intermezzos,

contracantos, se integram à melodia e poesia do compositor de tal forma que se torna parte

integrante da canção, onde sua identidade é dada pelo todo, aproximando a música popular do

conceito da música erudita.

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Duprat alia em seus arranjos o novo e o velho, a música modal, tonal e atonal, onde os

ideais de Koellreutter e de Camargo Guarnieri, tão dispares se integram, tradição e vanguarda,

polifonia e homofonia, informação e redundância, o nacional e o internacional, o popular e o

erudito, a música eletrônica e a acústica numa nova forma de expressão musical que ficou

conhecido como Tropicalismo.

Duprat compôs 26 obras de caráter erudito, 43 trilhas de cinema, mais de mil jingles

publicitários, diversas orquestrações como os “Prelúdios para piano” de Debussy, além de

arranjador de música popular dentro das mais diversas tendências, desde o sambista Jair

Rodrigues, passando pelos ícones da música nordestina como Geraldo Azevedo e Alceu

Valença, o rock rural do trio Sá, Rodrigues & Guarabira, o rock progressivo da banda mineira

“O Terço”, a música infantil do disco Arca de Noé do compositor Toquinho e o roqueiro pop

Lulu Santos. Esse trabalho é apenas um pequeno recorte desse compositor extremamente

atuante na música brasileira.

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