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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA DÉBORA RODRIGUES DE OLIVEIRA SERRA O PROCESSO DE TURISTIFICAÇÃO DO ESPAÇO EM SANTUÁRIOS E EVENTOS CATÓLICOS Uma análise sobre o Círio de Nazaré em Belém-PA BELÉM-PARÁ 2014

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE …repositorio.ufpa.br/jspui/bitstream/2011/8228/1/Dissertacao... · Por sua origem portuguesa, a devoção a Nossa Senhora de Nazaré disseminou-se

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

    DBORA RODRIGUES DE OLIVEIRA SERRA

    O PROCESSO DE TURISTIFICAO DO ESPAO

    EM SANTURIOS E EVENTOS CATLICOS

    Uma anlise sobre o Crio de Nazar em Belm-PA

    BELM-PAR

    2014

  • DBORA RODRIGUES DE OLIVEIRA SERRA

    O PROCESSO DE TURISTIFICAO DO ESPAO

    EM SANTURIOS E EVENTOS CATLICOS

    Uma anlise sobre o Crio de Nazar em Belm-PA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Geografia do Instituto de

    Filosofia e Cincias Humanas da Universidade

    Federal do Par (PPGEO/IFCH/UFPA), como

    requisito obteno do ttulo de Mestre em

    Geografia, sob orientao da Prof. Dr. Maria

    Goretti da Costa Tavares.

    BELM-PAR

    2014

  • DBORA RODRIGUES DE OLIVEIRA SERRA

    O PROCESSO DE TURISTIFICAO DO ESPAO

    EM SANTURIOS E EVENTOS CATLICOS

    Uma anlise sobre o Crio de Nazar em Belm-PA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Geografia do Instituto de

    Filosofia e Cincias Humanas da Universidade

    Federal do Par (PPGEO/IFCH/UFPA), como

    requisito obteno do ttulo de Mestre em

    Geografia, sob orientao da Prof. Dr. Maria

    Goretti da Costa Tavares.

    Data de Aprovao:

    Banca Examinadora:

    ___________________________________

    Prof. Dra. Maria Goretti da Costa Tavares

    (Orientadora PPGEO/UFPA)

    ____________________________________

    Prof. Dra. Janete Marlia Gentil Coimbra de Oliveira

    (PPGEO/UFPA)

    ____________________________________

    Prof. Dr. Raymundo Heraldo Maus

    (PPGCS/UFPA)

    ____________________________________

    Prof. Dr. Joo Baptista Ferreira de Mello

    (PPGEO/UERJ)

    __________________________________________________

    Prof. Dra. Maria da Graa Lopes da Silva Mouga Poas Santos

    (Instituto Politcnico de Leiria)

  • Ao maravilhoso Deus

  • AGRADECIMENTOS

    Como crist, agradeo a Deus, em sua trindade santa, pela vida, pelos ensinamentos e

    pela f, que tem me conduzido por tantos caminhos.

    Como catlica, reconheo o exemplo de Maria e agradeo tambm pela possibilidade

    de sentir nela o amparo materno.

    E no posso deixar de aproveitar essa oportunidade para agradecer a uma, felizmente,

    grande lista de pessoas importantssimas para mim, a comear pelos meus pais, Maria Tereza

    e Joo Batista, que pela diferena de suas concepes religiosas, me fizeram ter uma postura

    sempre reflexiva em relao f.

    Aos meus maravilhosos irmos: Elizabeth, Bruno, Monique (primeira revisora!),

    Cissa, Adriana, Jean Luck e Jean Michel.

    Ao Ronaldo, um bem preciosssimo em minha vida, que me mostra a cada dia o que

    amor e companheirismo.

    minha orientadora, Goretti Tavares, pela amizade e acompanhamento na

    continuidade da minha vida acadmica.

    s minhas famlias, que me adotaram em Belm, representadas pela Tia Clara e D.

    Rosa: S. Joo, Cleudon, Ronaldo Jr., S. Duca, Regina, Rosngela, Reginaldo, Doriane,

    Raimundo, Cilia, Csar, Jonas, Douglas, Regiane e meu afilhado Antnio.

    Aos amigos do GGEOTUR, pelos quais tenho um imenso carinho: Nabila, Luana,

    Elcivnia, Vanessa, Joo Paulo, Mrcio, Giordano, Marcos Andr, Charles, Casluym, Hugo,

    s minhas filhas Magaly e Marilya, ao Cleber (obrigada pelo presente de Portugal to

    fundamental para esse trabalho) e Alessandra, amiga que me apia desde a seleo.

    Aos demais amigos e colegas pelas palavras, oraes, aes e carinho: Tetezinha, Eli

    Regina, Telma, Leide Menezes, Las (Laig), Deiliany, Eliete Gomes, Cludia Neder, Mrcia

    Gabriel, Roselene Bastos, Ana Cludia, Maria Sousa, Ana Paula, Eugnia, Antnio Franco,

    ltimo Augusto, Mrcio Drumond, Rita Moreira, Maridalva, Heden, Regina Pereira, Renan

    Lima, Olenilson, Lucidea, e ao saudoso Paulo Almada.

    A Jacqueline Alves, Ariane Mathne e Carlos Figueira, da Paratur, que me ajudaram

    com informaes, compreenso e contatos.

    Luana Rodrigues, ao Victor do IBGE e ao Hlio do LAIG.

    A todos os entrevistados e aos membros da banca, especialmente pelas valiosas

    contribuies na qualificao.

  • RESUMO

    O Crio de Nazar em Belm do Par realizado desde o final do sculo XVIII e, ao longo

    dos anos, tornou-se um complexo de eventos sagrados e profanos, atraindo de modo crescente

    milhares de turistas para a cidade no ms de outubro. Observando a sua importncia para a

    atividade turstica, esse estudo visa analisar a turistificao de espaos em santurios e

    eventos catlicos, enfocando essa festividade a partir da atuao dos agentes envolvidos nesse

    processo. Tal objetivo se desdobra na identificao e anlise tanto de espaos turistificados

    durante a festividade, quanto dos agentes, os quais se apropriam de tais espaos, com

    interesses religiosos, polticos, econmicos e culturais (em sentido amplo). As pesquisas

    realizadas demonstram a diversidade de suas intenes, que historicamente convergem e

    divergem entre si, ocasionando conflitos de territorialidades, que os impelem a criar

    estratgias para manterem seus territrios, dentre elas as parcerias. Assim, a anlise desse

    processo possibilita a compreenso da importncia de cada agente e a necessidade de se

    buscar o entendimento entre eles de modo a democratizar os benefcios ocasionados pela

    atividade turstica em seu segmento cultural e, mais especificamente, religioso.

    Palavras-chave: Crio de Nazar. Turismo religioso. Turistificao de espaos. Territrio.

    Territorialidades.

  • RSUM

    Le Crio de Nazar Belm du Par est ralis depuis la fin du XVIIIe sicle, et au fil des ans,

    est devenu un complxe dvnements sacrs et profanes, en attirant de plus en plus des

    milliers de touristes la ville au mois doctobre. En observant son importance pour lactivit

    touristique, cette tude vise analyser la touristification despaces en sanctuaires et vnements

    catholiques, en se concentrant sur cette fte partir de laction des agents impliqus dans ce

    processus. Tel objectif se droule dans lidentification et lanalyse autant despaces touristifi

    pendant la fte, que des agents, auxquelles sapproprient de tels espaces, avec des intrts

    rligieux, politiques, conomiques et culturels (au sens large). Les recherches realises

    dmontrent la diversit de ses interactions, qui historiquement convergent et divergent entre

    si, provocant des conflits de territorialit, qui les poussent dvelopper des stratgies pour

    maintenir leurs territoires, dentre elles les partenariats. Ainsi, lanalyse de ce processus

    permet la comprhension de limportance de chaque agent et la necessit de rechercher

    lentendement entre eux de faon dmocratiser les privilges occasionns par lactivit

    touristique dans leur segment culturel et, plus spcifiquement, religieux.

    Mots-cls: Crio de Nazar. tourisme religieux. Touristification despaces. Territoire.

    Territorialit.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Bacias Hidrogrficas de Belm................................................................................ 22

    Figura 2 - Romaria Fluvial ....................................................................................................... 26

    Figura 3- Imagem Peregrina ..................................................................................................... 31

    Figura 4 - Procisso Principal ................................................................................................... 32

    Figura 5 - Auto do Crio ........................................................................................................... 32

    Figura 6 - Arrasto do Boi Pavulagem (Arrasto do Crio) ..................................................... 33

    Figura 7 - Trasladao .............................................................................................................. 34

    Figura 8 - Festa da Chiquita ..................................................................................................... 34

    Figura 9 - Brinquedos de miriti ................................................................................................ 35

    Figura 10 - Trajeto das Romarias do Crio de Nazar .............................................................. 38

    Figura 11 - Trajeto dos Cortejos do Crio de Nazar ............................................................... 39

    Figura 12 - Baslica Santurio de Nazar ................................................................................. 41

    Figura 13 - Largo de Nazareth [desenhado por J.L. Righini em meados do sculo XIX] ....... 43

    Figura 14 - Largo de Nazar (carto postal/sem data).............................................................. 43

    Figura 15 - Centro Arquitetnico de Nazar ............................................................................ 45

    Figura 16 - A mais antiga imagem do Crio ............................................................................ 46

    Figura 17 - Anncio de companhia area no jornal a Provncia do Par (1965) ...................... 49

    Figura 18 - Embalagem da empresa Sucos do Brasil S/A ........................................................ 50

    Figura 19- Ncleo da Berlinda ................................................................................................. 77

    Figura 20 - Croqui da Operao Crio 2013 realizada pela SEMOB ....................................... 79

    Figura 21 - Decorao da fachada de condomnio residencial (homenagem ao Crio) ............ 85

    Figura 22 - Santurio de Ftima ............................................................................................... 87

    Figura 23 - Baslica Santurio de Aparecida ............................................................................ 88

    Figura 24 - Santurio de Aparecida Praa de Alimentao ................................................... 88

    Figura 25 - Casa de Plcido ...................................................................................................... 90

    Figura 26 - Memria de Nazar ................................................................................................ 90

    Figura 27 - Arquibancadas na Av. Presidente Vargas .............................................................. 91

    Figura 28- Grfico das motivaes dos visitantes no Crio de Nazar 2012 ............................ 94

    Figura 29- Sede da ASAMAB ................................................................................................ 106

    Figura 30 - Artesanato no Ateli de Valdeli Alves ................................................................ 107

    Figura 31- Material Publicitrio do Hotel Crowne Plaza Belm............................................ 115

    Figura 32 - Panfleto divulgando pacote para a Romaria Fluvial ............................................ 116

  • Figura 33 - Crio Musical ....................................................................................................... 118

    Figura 34 - Cartaz da Festa dos Romeiros .............................................................................. 120

    Figura 35 - Gradil do altar da Praa Santurio com fitas do Crio ......................................... 122

    Figura 36 - Feira de Artesanato do Crio na Praa Waldemar Henrique ................................ 125

    Figura 37 - Feira do Miriti na Praa D. Pedro II .................................................................... 126

    Figura 38 - Cartaz do Crio 2003 (Rainha da Amaznia)....................................................... 130

    Figura 39 - Placa instalada na Praa Santurio de Nazar ..................................................... 134

    Figura 40 - Smbolo do manto na Praa Santurio de Nazar ................................................ 134

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1- Elementos representativos do Crio de Nazar conforme IPHAN (2006) .............. 30

    Quadro 2 - Expectativas e tendncias dos agentes sociais produtores do turismo ................... 70

    Quadro 3- Agentes de mercado na turistificao de espaos ................................................... 95

    Quadro 4 - Composio da Diretoria da Festa ....................................................................... 101

    Quadro 5- Aes recentes do Estado na turistificao do Crio de Nazar ............................ 114

    Quadro 6 - Eventos relacionados ao Crio no 2 final de semana de outubro ........................ 120

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1- Romarias Nazarenas / Estimativas de Participantes Crio/2011 ........................... 28

    Tabela 2- Estimativas da participao e gastos de turistas no Crio de Nazar em Belm (2004

    - 2013) ...................................................................................................................................... 51

    Tabela 3- Turistas nos Crios 2011 e 2012 ............................................................................... 93

    Tabela 4 - Motivaes dos visitantes no Crio de Nazar 2013 ............................................... 94

  • LISTA DE SIGLAS E ABREVIAES

    ABAV Associao Brasileira de Agncias de Viagens

    ABIH Associao Brasileira da Indstria de Hotis

    ASAMAB Associao dos Artesos do Municpio de Abaetetuba

    BELEMTUR Coordenadoria Municipal de Turismo

    DIEESE Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos

    FUMBEL Fundao Cultural do Municpio de Belm

    IAP Instituto de Artes do Par

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro

    IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    MIRITONG Associao Arte Miriti de Abaetetuba

    N. S. Nossa Senhora

    PARATUR Companhia Paraense de Turismo

    PRODEPA Processamento de Dados do Estado do Par

    SEBRAE Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas

    SECULT Secretaria de Estado de Cultura

    SETUR Secretaria de Estado de Turismo

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a

    Cultura

  • SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 13

    1. O CRIO DE NAZAR EM BELM-PA: AS ORIGENS E A EXPANSO DE UM COMPLEXO DE EVENTOS E SUA IMPORTNCIA PARA O TURISMO ................ 20

    1.2. A DIMENSO RIBEIRINHA DO CRIO DE NAZAR EM BELM: DAS ORIGENS DA DEVOO SUA EXPANSO TERRITORIAL ................................... 20

    1.2. UM COMPLEXO DE EVENTOS EM EXPANSO: AS ESTATSTICAS, A

    CRIAO DE NOVAS ROMARIAS E CORTEJOS E A DIFUSO PELO BRASIL ..... 27

    1.3. PARA ALM DO CARTER RELIGIOSO: A POLTICA, A ECONOMIA, A POPULARIDADE E A CULTURA NO CRIO DE NAZAR EM BELM E SUA

    RELAO COM O TURISMO .......................................................................................... 42

    2. O ESPAO E SUA TURISTIFICAO EM SANTURIOS E EVENTOS CATLICOS: CONTRIBUIES TERICO-EMPRICAS PARA UMA ANLISE

    SOBRE O CRIO DE NAZAR ........................................................................................... 54

    2.1. O ESPAO GEOGRFICO E O PROCESSO DE SUA TURISTIFICAO ........... 54

    2.2. SANTURIOS E EVENTOS CATLICOS: A APROPRIAO DE ESPAOS

    SAGRADOS E PROFANOS NOS SEGMENTOS DO TURISMO RELIGIOSO E

    CULTURAL ......................................................................................................................... 72

    3. A TURISTIFICAO DO ESPAO NO CRIO DE NAZAR:

    PARTICULARIDADES DOS AGENTES E ESTRATGIAS PARA A MANUTENO

    DE SUAS TERRITORIALIDADES ..................................................................................... 92

    3.1. OS AGENTES DA TURISTIFICAO DO ESPAO NO CRIO DE NAZAR:

    PARTICULARIDADES E DIVERSIDADE DE INTENES ......................................... 92

    3.2. ESPAOS TURISTIFICADOS NO CRIO DE NAZAR A PARTIR DA ATUAO DOS AGENTES ............................................................................................ 109

    3.3. PARCERIAS, CONFLITOS E ESTRATGIAS PARA A MANUTENO DAS TERRITORIALIDADES DOS AGENTES DE TURISTIFICAO DO ESPAO NO

    CRIO DE NAZAR .......................................................................................................... 123

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 137

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 144

    ANEXOS ............................................................................................................................... 153

    APNDICES ......................................................................................................................... 156

  • 13

    INTRODUO

    Por sua origem portuguesa, a devoo a Nossa Senhora de Nazar disseminou-se por

    suas colnias, dentre elas, o Brasil, onde h relatos de que os primeiros cultos foram

    realizados no municpio de Saquarema, no Rio de Janeiro, no sculo XVII.

    Todavia, tal devoo se destaca no Estado do Par, tanto por tambm ter se iniciado no

    sculo XVII, em Vigia, quanto pela quantidade de festas em sua homenagem, em diversos

    municpios paraenses, os Crios de Nazar.

    Em Belm, essa festividade adquiriu maior expresso nacional e internacional.

    realizada desde 1793 (IPHAN, 2006) e tornou-se uma das maiores manifestaes catlicas do

    mundo por reunir milhes de pessoas na principal procisso. Quanto s estatsticas, diversos

    meios de comunicao afirmam que seriam mais de dois milhes de participantes, porm, de

    acordo com Pantoja (2006, p. 42) as estimativas oferecem uma srie de incoerncias.

    As primeiras procisses tinham como percurso o caminho que ligava a ermida da

    santa, onde atualmente encontra-se a Baslica Santurio de Nazar, e o Palcio dos

    Governadores, atual Museu Histrico do Estado do Par, na parte central da cidade.

    Entretanto, nas ltimas dcadas, novas romarias foram criadas, expandindo-se o

    territrio dessa festividade para um dos distritos de Belm e envolvendo os municpios de

    Ananindeua e Marituba, localizados na Regio Metropolitana.

    Em Belm, o Crio de Nazar pode referir-se tanto festividade, que tem seu pice no

    ms de outubro, englobando mais que os quinze dias da chamada quadra nazarena, como

    procisso que ocorre no segundo domingo do referido ms, que nesse estudo ser chamada de

    procisso principal do Crio, termo utilizado pelo IPHAN no processo de registro desse

    complexo de eventos como Patrimnio Cultural de Natureza Imaterial.

    Ao carter religioso do Crio de Nazar incluem-se os aspectos polticos, culturais

    profanos, sociais e econmicos, visto que ele se tornou smbolo tanto para a cidade de Belm,

    quanto para o Estado do Par. O perodo marcado pela confraternizao, o que, somado ao

    aumento do nmero de pessoas que visitam a cidade, por ocasio da festividade, movimenta

    consideravelmente a economia.

    Conforme IPHAN (2006), o Crio de Nazar em Belm est relacionado a aspectos

    religiosos, polticos e econmicos desde sua origem, visto que a primeira procisso registrada

    ocorreu quase cem anos aps o incio da devoo na cidade, tendo sido convocada por um

  • 14

    governador com o propsito tambm de realizar uma feira de produtos regionais junto ao

    evento, atraindo pessoas do interior da provncia.

    O carter religioso do Crio relaciona-se, em grande parte, organizao realizada pela

    Diretoria da Festa. Entretanto, o sagrado e o profano se complementam e nota-se a tentativa

    da Igreja de exercer o controle tambm sobre as festas profanas (PANTOJA, 2006).

    O envolvimento do poder pblico sofreu alteraes, porm, tanto a Prefeitura

    Municipal de Belm, quanto o Governo do Estado do Par continuam sendo consideradas

    entidades realizadoras da festividade.

    Em relao economia, observa-se que ela dinamizada nesse perodo inclusive com

    o uso da marca Crio de Nazar por empresas, com o objetivo de aumentar a venda de seus

    produtos e servios (PANTOJA, 2006).

    Deve-se destacar o carter popular de tais manifestaes, nas quais os fiis nem

    sempre se subordinam ao poder da Igreja e, dessa forma, tal instituio e os demais agentes

    devem consider-los no planejamento e organizao desse evento.

    Observa-se tambm, que no perodo de realizao do Crio ocorre um significativo

    aumento no fluxo de visitantes, que diversas manifestaes da cultura paraense se evidenciam

    e que os agentes de Estado e do mercado alteram os espaos e se apropriam de elementos

    culturais da festa (CASTRO & SERRA, 2011) buscando-se ampliar a atratividade turstica da

    festividade.

    O evento altera territorialidades habituais da cidade durante a sua realizao, visto que

    alm do uso de espaos considerados sagrados durante todo o ano, a exemplo da Baslica

    Santurio de Nazar, determinados objetos espaciais como praas e ruas so apropriados

    durante as procisses e demais eventos sagrados ou profanos, modificando-se, assim, suas

    funes. As alteraes decorrem tambm do significativo aumento no nmero de visitantes, o

    que se comprova com as elevadas taxas de ocupao dos meios de hospedagem nesse perodo,

    alm do acolhimento em casas de moradores de Belm, pois, conforme pesquisas dos rgos

    estaduais de turismo, a maioria se hospeda em casas de parentes e amigos.

    A transformao de eventos religiosos e santurios em componentes da oferta turstica

    realizada por agentes com intenes diversas, relacionadas a questes religiosas, polticas e

    econmicas, entre outras. Nesse sentido, a tendncia para manifestaes catlicas no Brasil e

    em outros pases tem sido ampliar a relao com a atividade turstica, reconfigurando-se

    territrios em busca da satisfao dos visitantes, a exemplo das alteraes ocorridas nos

    Santurios de Aparecida, em So Paulo, e de Ftima, em Portugal, conforme Oliveira (2004) e

    Maria da Graa Santos (2006).

  • 15

    Ressalta-se que o fluxo de turistas motivados pela devoo a N. S. de Nazar

    expressivo no perodo de realizao do Crio, o que no se observa no restante do ano,

    diferenciando-se do que ocorre em diversos santurios catlicos (COSTA et al, s/d).

    Todavia, as transformaes ocorridas no antigo Arraial de Nazar com a construo do

    Complexo Arquitetnico de Nazar (CAN), incluindo-se ainda, um memorial referente

    festividade, revelam o interesse de parte dos agentes de turistificao em tornar esse espao

    atrativo durante o ano, alm de aumentar o nmero de turistas durante o Crio.

    Tais consideraes conduzem aos questionamentos que norteiam essa pesquisa, os

    quais se referem a como tem se dado o processo de turistificao do espao no Crio de

    Nazar em Belm-PA e que se desdobram nas seguintes indagaes:

    Quais os agentes envolvidos no processo de turistificao de espaos no Crio

    de Nazar, suas intenes e possveis conflitos de territorialidades?

    Quais seriam os espaos turistificados ou em processo de turistificao no

    Crio de Nazar?

    Quais as estratgias dos agentes para a manuteno de suas territorialidades?

    Assim, prope-se nesse trabalho analisar o processo de turistificao do espao na

    festividade do Crio de Nazar em Belm - PA, considerando-se seus agentes e os possveis

    conflitos de territorialidades entre eles. Tal propsito se subdivide nos seguintes objetivos

    especficos:

    Identificar e analisar os principais agentes envolvidos no processo de

    turistificao de espaos no Crio de Nazar, suas intenes e os possveis conflitos de

    territorialidades que podem ocorrer entre eles;

    Identificar espaos turistificados ou em processo de turistificao no Crio de

    Nazar em Belm-PA, analisando-os e considerando os principais eventos sagrados e

    profanos realizados na quadra nazarena;

    Investigar, junto aos principais agentes identificados, as estratgias utilizadas

    por eles para a manuteno de suas territorialidades.

    Pretende-se, com esse estudo, trazer uma nova discusso para o Programa de Ps-

    Graduao em Geografia da UFPA, considerando-se que o tema bastante relevante por sua

    dinmica que reconfigura territrios, onde relaes econmicas, sociais e culturais tm se

    constitudo a partir de uma manifestao religiosa.

    O desenvolvimento da pesquisa se deu a partir de uma abordagem dialtica, a qual

    parte da anlise crtica do objeto e tem entre suas categorias metodolgicas a contradio, que

  • 16

    gera as mudanas, e a totalidade, que considera que o todo formado pela interao e

    conexo entre as partes e predomina sobre elas (WACHOWICZ, 2001; CARVALHO, 2007).

    Considerando que o Crio um fenmeno complexo, concorda-se com Gnter (2006)

    em sua discusso sobre as vantagens e desvantagens das abordagens qualitativa e quantitativa,

    ao afirmar que o mtodo deve se adequar ao objeto de estudo e, nesse sentido, a coleta de

    dados pode incluir perguntas fechadas e abertas e procedimentos qualitativos e quantitativos.

    No presente estudo, observa-se a predominncia da natureza qualitativa da pesquisa, embora

    tenham sido utilizados dados quantitativos secundrios em relao aos visitantes de Belm

    durante a festividade.

    Assim, foram utilizadas as seguintes tcnicas de investigao:

    Levantamento e reviso bibliogrfica de material j publicado referente ao

    Crio de Nazar, s categorias espao e territrio, turistificao do espao e ao turismo

    cultural e religioso, visando um melhor embasamento para o tema a ser trabalhado;

    Levantamento e anlise documental, considerando-se o documento de forma

    ampla por ir alm dos textos escritos. Desta forma, so analisados documentos pblicos

    produzidos pelas esferas municipal, estadual e federal, vdeos e matrias publicadas em

    diversos meios de comunicao, tais como jornais e revistas, referentes atividade turstica

    ligada a essa festividade;

    Aplicao de questionrios com carter de sondagem, utilizando perguntas

    abertas e fechadas, as quais foram direcionadas a 25 (vinte e cinco) turistas e 31 (trinta e um)

    moradores de Belm, no Crio 2012, especificamente em trs procisses (Romaria Fluvial,

    Trasladao e na Procisso Principal) e em trs eventos de carter profano (Auto do Crio,

    Arrasto do Crio e Festa da Chiquita).

    Realizao de entrevistas individuais que, para Gaskell (2008) visam uma

    maior profundidade e detalhamento do tema a ser pesquisado. Considerando-se os diversos

    agentes relacionados ao processo de turistificao do Crio de Nazar, as entrevistas tiveram

    carter qualitativo e foram semi-estruturadas, direcionadas a turistas, agentes de mercado,

    representantes do Estado, da Igreja e de manifestaes culturais, alm da populao residente,

    conforme detalhamento a seguir:

    Turistas: As entrevistas foram realizadas durante a festividade no ano

    de 2013, em alguns meios de hospedagem da cidade: hotis localizados na Av.

    Presidente Vargas, que faz parte do percurso das principais procisses; casas de

    parentes e amigos, e a Casa de Plcido (lugar de acolhida pertencente Parquia de

  • 17

    Nazar), com o objetivo de verificar a existncia de diversos perfis de visitantes, suas

    motivaes e opinies.

    Agentes culturais, de mercado, do Estado e da Igreja: as entrevistas

    tiveram carter qualitativo e semi-estruturadas, visando obteno de respostas mais

    detalhadas e profundas. Assim, as questes no foram fechadas, permitindo a

    formulao de outras e possibilitando respostas subjetivas. Os agentes selecionados

    para a pesquisa foram:

    - Culturais: representantes do Auto do Crio, Arrasto do Pavulagem, da Festa

    da Chiquita e dos artesos de brinquedos de miriti (no municpio de Abaetetuba);

    - Mercado: representante da Associao Brasileira das Agncias de Viagens -

    ABAV e da Associao Brasileira da Indstria de Hotis ABIH;

    - Estado: representante do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico

    Nacional (IPHAN) e de rgos de turismo e cultura em nveis estadual e federal

    (Secretaria de Estado de Turismo - SETUR, Companhia Paraense de Turismo -

    PARATUR, Secretaria de Estado de Cultura SECULT, Coordenadoria Municipal de

    Turismo BELEMTUR e Fundao Cultural do Municpio de Belm - FUMBEL),

    alm da Capitania dos Portos, tratando-se da Romaria Fluvial;

    - Igreja: diretores-coordenadores da Diretoria da Festa dos perodos de 2012 a

    2013 e de 2014 a 2015, e representantes das pastorais do Turismo e da Acolhida, a

    qual tambm responsvel pelo espao Memria de Nazar.

    Populao residente: as entrevistas se subdividiram entre moradores e

    usurios do bairro de Nazar e a representante da Associao Cidade Velha Cidade

    Viva CIVVIVA, visto que os referidos bairros concentram a maior parte das

    manifestaes sagradas e profanas; representantes de trabalhadores informais no

    agenciamento da Romaria Fluvial, e participantes das Romarias Fluviais em

    embarcaes no comerciais (da PARATUR/SETUR e de empresrio local).

    Observao sistemtica em campo que, de acordo com Marsiglia

    (2006), requer a sua preparao por meio do projeto (para que ela seja realizada de

    modo amplo) e o registro detalhado do que foi observado. Para esse estudo, a

    observao teve como principal objetivo a realizao de registros fotogrficos

    referentes s alteraes espaciais e aes realizadas pelos agentes de turistificao do

    espao.

    Como recorte espao-temporal, enfocou-se, principalmente, os eventos sagrados e

    profanos relacionados ao Crio de Nazar em Belm que ocorrem no segundo final de semana

  • 18

    de outubro, de sexta a domingo, incluindo-se alm da sede do municpio, a sua Regio

    Metropolitana. O Crio tem durao de quinze dias, a chamada quadra nazarena, sendo que a

    escolha por esse perodo de trs dias justifica-se por ele ser considerado o que mais atrai

    visitantes, devido concentrao de suas principais romarias e cortejos.

    Dentre os procedimentos metodolgicos elencados, destacam-se as entrevistas com os

    citados agentes de turistificao do Crio de Nazar, visto que, a partir dessas informaes, foi

    possvel responder aos questionamentos propostos nesse estudo, para os quais foram

    levantadas as seguintes hipteses:

    Os agentes do processo de turistificao seriam o Estado, a Igreja Catlica, os

    agentes de mercado, os agentes culturais, os turistas e a populao local. As intenes dos trs

    primeiros, possivelmente os hegemnicos, podem estar na ampliao do seu poder

    econmico, poltico e religioso. Os possveis conflitos estariam relacionados a algumas

    manifestaes profanas que se tornaram atrativos tursticos, mas que so pouco ou no

    toleradas pela igreja catlica;

    Considerando-se os principais eventos religiosos e culturais ligados ao Crio de

    Nazar, os espaos turistificados nessa festividade seriam tanto os utilizados para as romarias

    e programaes religiosas, como aqueles em que se realizam os eventos de carter profano;

    As estratgias para a manuteno das territorialidades podem estar baseadas na

    parceria principalmente entre o Estado, a Igreja e os agentes culturais e de mercado.

    Visando contemplar os objetivos descritos, esse estudo est dividido em trs captulos

    tericos e empricos, voltados para o evento religioso e cultural em sentido amplo, ao qual se

    pretende investigar.

    O primeiro captulo apresenta a festividade do Crio de Nazar desde suas origens,

    relacionadas s caractersticas ribeirinhas do municpio, at sua transformao em um

    complexo de eventos que tem se expandido territorialmente e atrado milhares de turistas para

    Belm. Discute, ainda, a relao do Crio com aspectos religiosos, polticos, econmicos e

    culturais e sua importncia para o turismo. As principais fontes consultadas so Maus

    (2009), Pantoja (2006) e Iphan (2006), Costa et al (s/d) e Matos (2010).

    O turismo ocasiona alteraes espaciais diversas, fazendo-se necessrio o

    aprofundamento das noes sobre o espao geogrfico e suas categorias, bem como a

    identificao e anlise dos agentes produtores desta atividade.

    Dessa forma, o segundo captulo faz consideraes sobre o espao como objeto de

    estudo da Geografia, discute algumas de suas categorias de anlise e a sua relao com o

    turismo, alm de abordar a turistificao do espao e apresentar os agentes desse processo, os

  • 19

    quais expressam relaes que envolvem apropriao e poder, caractersticas pertinentes a

    territrios e territorialidades, tendo-se a abordagem territorial como norteadora das anlises do

    presente estudo. Para tanto, so utilizados como base os estudos de Correa (2003), Milton

    Santos (2006), Haesbaert (2009), Souza (2001), Cruz, R. (2007), Rodrigues, A. (1997),

    Castro, N. (2006) e Fatucci (2007, 2008). Aborda-se, ainda, o turismo religioso a partir das

    discusses sobre os espaos sagrados e profanos para o catolicismo; de aspectos conceituais

    para o turismo cultural e religioso e as implicaes espaciais da atividade turstica em

    santurios e eventos catlicos. Observa-se que os visitantes possuem motivaes diversas para

    frequentarem tais espaos, o que os diferencia entre o que alguns estudiosos classificam como

    turistas e peregrinos, tendo como base tambm a complexidade do segmento do turismo

    cultural que pode ou no incluir motivaes religiosas. Destacam-se entre as fontes

    consultadas Barreto (2000), Brasil (2010), Figueiredo (2005), Rosendahl (2002) e Maria da

    Graa Santos (2006).

    No terceiro captulo so apresentados os agentes de turistificao no Crio de Nazar,

    bem como os espaos identificados, durante as pesquisas, como turistificados ou em processo

    de turistificao. A atuao dos referidos agentes analisada utilizando-se, principalmente, os

    resultados das entrevistas, nas quais se buscou verificar as suas intenes e os possveis

    conflitos entre eles, alm das estratgias para a manuteno de suas territorialidades.

    Finalmente, considerando-se que os agentes hegemnicos dos processos de

    turistificao do espao tm sido o Estado e o mercado, conforme Cruz, R. (2007), ressalta- se

    que esse estudo buscou abordar tambm os demais agentes envolvidos nos referidos processos

    em relao ao Crio de Nazar em Belm - PA, possibilitando-se, assim, contribuir com

    subsdios para projetos ligados ao turismo religioso e cultural que atendam s expectativas de

    cada grupo ou pelo menos da maioria deles.

  • 20

    1. O CRIO DE NAZAR EM BELM-PA: AS ORIGENS E A EXPANSO DE UM COMPLEXO DE EVENTOS E SUA IMPORTNCIA PARA O TURISMO

    Nessa seo apresentam-se as origens do Crio de Nazar e sua expanso territorial

    pela Regio Metropolitana de Belm, ambos relacionados ao carter ribeirinho da cidade.

    Discute-se, ainda, a relao dessa festividade com aspectos religiosos, polticos, econmicos e

    culturais e sua importncia para o turismo.

    1.2. A DIMENSO RIBEIRINHA DO CRIO DE NAZAR EM BELM: DAS

    ORIGENS DA DEVOO SUA EXPANSO TERRITORIAL

    A histria da devoo a Nossa Senhora de Nazar iniciou em Portugal, onde se conta

    que, sculos depois de ter sido esculpida por So Jos, pintada por So Lucas e passado pelas

    mos de So Jernimo e de Santo Agostinho, a imagem original foi abandonada em uma gruta

    na Pennsula Ibrica por um rei dos visigodos e encontrada posteriormente por pastores. O

    culto santa, todavia, se fortaleceu no sculo XII, quando o fidalgo portugus Dom Fuas

    Roupinho foi salvo de cair num abismo, atribuindo-lhe o milagre e difundindo essa f em seu

    pas (IPHAN, 2006).

    A devoo santa disseminou-se pelas colnias portuguesas. No Brasil, a cidade de

    Saquarema, no Rio de Janeiro, considerada a primeira a reverenci-la. Contudo, o Par

    merece destaque, tanto porque, tal como na referida cidade fluminense, o culto tambm

    iniciou durante o sculo XVII, em Vigia, quanto pela dimenso que a festividade adquiriu na

    capital.

    Conforme Maus (2009), Vigia considerado o primeiro municpio paraense a cultuar

    a santa, ainda no sculo XVII, provavelmente a partir do seu donatrio ou pelos colonos

    trazidos por ele. Tendo como uma das fontes a crnica do padre jesuta Joo Felipe

    Bettendorf, publicada na revista IHGB em 1909, ele afirma que ao final do referido sculo, a

    devoo j estava estabelecida naquela vila.

    O autor destaca que, de acordo com o historiador paraense Geraldo Coelho, os colonos

    que habitavam Vigia eram possivelmente provenientes dos Aores ou do Algarve e eram,

    portanto, culturalmente ligados ao mar, apontando, ainda, a relao entre o culto a Nossa

    Senhora de Nazar, nas referidas regies portuguesas, e os navegantes:

    H claramente, no culto a Nossa Senhora de Nazar, uma associao entre [a Santa]

    e os mareantes, j sinalizada, em Portugal, na segunda metade do Quatrocentos. O

    arquiplago dos Aores, ponto obrigatrio de passagem e paragem nas viagens

  • 21

    sadas de Lisboa para o Brasil, no foi apenas um lugar de fluxo e de trnsito das

    naus lusitanas, mas tambm da religiosidade, das devoes populares dos

    marinheiros que integravam as equipagens (COELHO, 1998 apud MAUS, 2009,

    p. 10).

    Em Belm, as origens da devoo, segundo Pantoja (2006), sugerem que aos fatos

    histricos so somados os mitos que, solidrios entre si, quase no se reconhece os limites

    entre ambos (p. 31). Dentre os mitos destacam-se as fugas da imagem da santa, achada em

    1700 por Plcido Jos dos Santos, s margens do igarap Murutucu, nas proximidades da

    atual Baslica Santurio de Nazar. As narrativas relatam que Plcido levou a imagem para

    casa e no dia seguinte, no a localizando, voltou ao lugar do achado e a encontrou. Essa

    situao teria ocorrido diversas vezes, chamando a ateno de um governador que a levou

    para o palcio do governo e, mesmo vigiada por soldados, retornou para as margens do

    igarap. Tais fugas levaram Plcido a construir uma pequena ermida no local, e grande parte

    da populao, ao saber dos milagres atribudos santa se tornou devota (IPHAN, 2006).

    Assim, enquanto em Portugal a devoo a Nossa Senhora de Nazar remete ao mar,

    em Belm, a origem da devoo est relacionada sua condio geogrfica de cidade

    ribeirinha, formada por bacias hidrogrficas que envolvem diversos rios e igaraps, alm de

    ser margeada pela Baa do Guajar e pelo Rio Guam, conforme Figura 1.

  • 22

    Figura 1 - Bacias Hidrogrficas de Belm

    Fonte: LAIG/UFPA, 2001. Adaptado pela autora.

  • 23

    A caracterstica ribeirinha em Belm revela-se em todo o seu processo de formao

    scio-espacial. A rea escolhida para a fundao da cidade, em 1616, localizava-se em frente

    referida baa e permitia o controle do acesso ao rio Amazonas. Era, portanto, estratgica

    para a consolidao da posse do norte da colnia pelos portugueses. Segundo Trindade Jr. et

    al (2005), alm da sua gnese, o carter ribeirinho se d ainda por que:

    Por mais de trs sculos o rio representou a principal via de integrao regional e

    nacional da cidade. Pode-se, ento, compreender a histria e a geografia desta cidade

    atravs da fora que os cursos fluviais imprimiram em seu desenvolvimento

    econmico e cultural: ndios, portugueses, drogas do serto, cabanos, borracha,

    castanha, juta, mandioca, aa; tudo e todos chegavam e partiam de Belm pelo rio.

    (TRINDADE JR. et al, 2005, p. 20).

    Ressalta-se que alm da poro continental, onde se localiza a sede, o municpio de

    Belm formado por 39 (trinta e nove) ilhas, que juntas correspondem a mais de 65% dos

    seus mais de cinqenta mil, seiscentos e cinqenta hectares de rea terrestre. (BELM, 2012).

    O uso dos rios para o transporte de passageiros e cargas no Par e principalmente em

    Belm ainda intenso, destacando-se dos demais estados da regio Norte, conforme aponta o

    estudo da Agncia Nacional de Transportes Aquavirios, realizado entre os anos de 2011 e

    2012, no qual:

    [...] foi levantado um total de 106 terminais de passageiros na Amaznia, sendo 64

    no estado do Par [vinte e nove desses em Belm], 30 no estado do Amazonas, 11

    no estado do Amap e 01 no estado de Rondnia. A pesquisa indica que o estado do

    Par tem maior quantidade de terminais/portos hidrovirios na regio amaznica.

    (BRASIL, 2013, p. 27).

    Belm desenvolveu-se seguindo as margens da Baa do Guajar. Inicialmente, as reas

    mais altas foram ocupadas, formando os bairros da Cidade atualmente Cidade Velha e

    Campina. Conforme a necessidade de expanso, parte das reas alagveis foram ocupadas

    pelas populaes de baixa renda, enquanto outras passaram por processos de drenagem e

    aterramento. Houve tambm a canalizao de igaraps, causando diversas consequncias

    negativas, como aponta Rodrigues, E. (1996).

    Nas proximidades do igarap Murutucu, onde a imagem teria sido achada, a ocupao

    deu-se inicialmente com as chamadas rocinhas, que eram "o todo que formava a pequena

    propriedade rural: o campo, o pomar, a floresta e, enfim, a casa. (TOCANTINS, 1952, p. 175

    apud PENTEADO, 1968, p. 111). poca, esta era uma rea de floresta e estava ligada aos

    primeiros ncleos de Belm pela estrada do Utinga, posteriormente estrada de Nazar, pela

    qual era possvel seguir para o municpio de Vigia ou para So Lus, no Maranho. Com o

    incio do processo de urbanizao na segunda metade do sculo XIX, durante o ciclo da

  • 24

    borracha, a cidade recebeu diversos servios urbanos, tais como iluminao pblica,

    calamento de vias, bonde eltrico, entre outros. Porm, a execuo de tais servios exigiu,

    segundo Pimentel et al (2012), o aterramento do igarap Murutucu, ignorando a sua

    importncia religiosa, o que foi tambm apontado por Maus (2009).

    Em referncia a Plcido, Maus (2009, p. 47) refora a necessidade da igreja catlica e

    da populao o reconhecerem como um dos mais importantes cidados paraenses, cuja

    dedicao a seu santurio proporcionou a nosso estado uma das manifestaes religiosas e

    culturais mais importantes [...]. Tal observao deve-se forma preconceituosa como

    Plcido tem sido retratado: caboclo humilde, caador intrpido, reforando-se sua cor

    parda. Em uma comparao entre as obras do historiador Arthur Vianna (1904) e do

    jornalista Carlos Rocque (1981), o autor observa em Vianna o preconceito comum aos

    intelectuais brasileiros e paraenses do final do sculo XIX e incio do sculo XX, referindo-se

    quele que encontrou a imagem como inculto, modesto devoto, morador de uma pobre

    palhoa com um tosco santurio. Por sua vez, Rocque aborda as origens da devoo em

    Belm de modo a valorizar Plcido.

    Com o aumento do nmero de fiis, a devoo popular santa atraiu a ateno de

    representantes eclesisticos, que passaram a incentiv-la e posteriormente a providenciar sua

    oficializao, dada em 1793, mesmo ano em que o presidente da Provncia do Par, Francisco

    Coutinho, realizou a primeira procisso, como pagamento de uma promessa, alm de uma

    feira de produtos regionais em frente ermida (IPHAN, 2006).

    Em relao feira, Cruz, E. (1973), com base em Vianna (1904), afirma que Francisco

    Coutinho enviou um documento aos diretores de vilas e povoaes do interior do Par

    ordenando que fossem escolhidos naquelas localidades homens e mulheres (inclusive

    indgenas) para participarem do evento e comercializarem seus produtos. A dimenso

    ribeirinha se revela nessa feira quando se observa que naquela poca as vias de acesso a

    Belm eram fluviais e, tanto a capital como o interior do estado possuam (e ainda possuem)

    uma intensa relao com os rios. Dentre os produtos comercializados havia o peixe-boi e o

    pirarucu, encontrados em rios da regio amaznica.

    Quanto procisso, considerada como o primeiro Crio de Nazar em Belm, ocorrida

    em setembro daquele ano, afirma-se que ela foi acompanhado por quase dois mil soldados,

    alm da populao civil de Belm e do interior da provncia. Participavam ainda do cortejo,

    alm do presidente da provncia, os vereadores da Cmara e o vigrio geral, substituindo o

    bispo, que viajara para Portugal (IPHAN, 2006, p. 16). Estima-se que cerca de dez mil

    pessoas participaram dessa manifestao, que foi finalizada na ermida da santa com a

  • 25

    realizao de uma missa e com o lanamento da pedra fundamental da igreja que substituiria a

    referida ermida. Tais aes tornam evidente, portanto, a busca da Igreja e do Estado pelo

    controle da devoo.

    O termo crio tem sua origem do latim cereus significando grande vela de cera,

    em aluso s romarias realizadas em Portugal para o Santurio de Nossa Senhora de Nazar,

    na qual os fiis levavam velas de cera, passando-se dessa forma a denominarem tais

    procisses como crios (IPHAN, 2006).

    At o final do sculo XIX o percurso do Crio se iniciava no palcio do governo e

    seguia at a ermida da santa. Porm, na vspera, outra procisso conduzia a imagem pelo

    caminho inverso, originando-se a chamada Trasladao. Tais percursos, de ida e de volta

    relembram o mito das fugas.

    Dessa forma, apenas duas romarias compunham o Crio de Nazar inicialmente e,

    excetuando-se a Procisso do Recrio, originada em 1859, a partir da dcada de 1980 houve

    uma expanso das manifestaes em relao ocupao de diversos espaos (incluindo-se

    dois municpios da Regio Metropolitana de Belm), s estatsticas e diversidade.

    A primeira romaria criada nesse perodo remete-se dimenso ribeirinha da cidade de

    Belm e do prprio Crio. Trata-se da Romaria Fluvial (Figura 2), na qual, segundo Matos

    (2010, p. 223): [...] os mitos de origem e narrativas milagrosas associadas s guas, desde os

    mares de Portugal aos grandes rios do Par, vm tona para justificar o vnculo do evento

    com as caractersticas culturais da regio. Ela foi criada em 1986 pela Companhia Paraense

    de Turismo PARATUR, na poca, nico rgo de turismo na esfera estadual. Sobre sua

    origem, Bonna (1993, p. 59-60) afirma que era turstica a inteno do seu criador, o

    historiador Carlos Rocque, ento presidente do referido rgo. Gerou-se, assim, um novo

    atrativo que possibilitou aos turistas uma atividade a ser realizada na manh do sbado que

    antecede procisso principal do Crio.

  • 26

    Figura 2 - Romaria Fluvial

    Foto: Ronaldo Farias, 2013.

    Apesar de o evento fazer parte da programao oficial do Crio e muitos moradores de

    Belm e das ilhas prximas participarem tanto por motivos religiosos quanto profanos, a

    PARATUR atua divulgando e oportunizando s agncias de turismo mais um elemento a ser

    includo nos pacotes tursticos do Crio, alm de realizar o Concurso de Ornamentao de

    Embarcaes desde as primeiras edies da Romaria Fluvial.

    Na primeira edio, Bonna (1993) relata que a imagem foi transportada de nibus da

    sede do municpio at o trapiche de Icoaraci, reformado pela Prefeitura Municipal para essa

    finalidade. De l, ela seguiu a bordo de uma corveta da Marinha do Brasil at o cais do porto

    de Belm, a Escadinha do Porto, acompanhada de autoridades do Estado e de,

    aproximadamente, trinta embarcaes. Hoje, este nmero tem se ampliado para centenas, com

    iates, lanchas, balsas, embarcaes regionais, etc.

    Na relao dos belenenses com as guas, a Romaria Fluvial despertou o interesse de

    remadores esportistas que desde 1997 realizam a Remaria, procisso com cerca de setenta

    caiaques, mas ainda pouco divulgada, que se se inicia em Icoaraci, antes da referida romaria, e

    segue para a sede de Belm, finalizando na Vila da Barca (SETUR..., 2013).

    A Romaria Fluvial est tambm relacionada expanso territorial do Crio,

    considerando-se que ela foi o primeiro evento a ser realizado fora da sede de Belm e que o

    percurso at o distrito de Icoaraci (onde ela se inicia) possibilitou a criao da Romaria

    Rodoviria, em 1989, e do Traslado para os municpios de Ananindeua e Marituba, em 1992 e

    2002, respectivamente.

  • 27

    1.2. UM COMPLEXO DE EVENTOS EM EXPANSO: AS ESTATSTICAS, A

    CRIAO DE NOVAS ROMARIAS E CORTEJOS E A DIFUSO PELO BRASIL

    Alm da expanso pela Regio Metropolitana de Belm, o perodo entre a dcada de

    1980 e incio da dcada de 1990 apresenta um aumento acentuado no nmero de participantes

    na festividade do Crio de Nazar. Conforme IPHAN (2006), em 1980 as estimativas eram de

    oitocentos mil na procisso principal, chegando a dois milhes em 1992.

    Atualmente, ainda estima-se que participem da referida procisso cerca de dois

    milhes de pessoas, entre visitantes e populao local, nmero que a tornou uma das maiores

    manifestaes catlicas do mundo. Porm, de acordo com Pantoja (2006, p. 42) as

    estimativas oferecem uma srie de incoerncias. Primeiro porque so realizadas por

    instituies que participam do processo de organizao do Crio, a exemplo da Polcia Militar;

    segundo, porque no se tm dados estatsticos regulares ao longo da devoo.

    A reflexo sobre o argumento da autora torna-se necessria considerando-se que em

    eventos de grandes propores costuma-se inflar o nmero de participantes para torn-los

    mais importantes, a exemplo da Parada Gay, em So Paulo, a qual era atribuda quatro

    milhes de pessoas. Conforme Bergamim Junior (2011), os nmeros dessa manifestao

    foram contestados em 2011 pelo instituto de pesquisas Datafolha, utilizando-se como base o

    manual de clculo de multides do Centro de Estudos e Pesquisas de Desastres, da Prefeitura

    do Rio de Janeiro, no qual se considera a quantidade de pessoas por metro quadrado. Apesar

    das possveis falhas desse mtodo, a capacidade mxima do evento seria de um milho e

    quinhentas pessoas.

    Em 2012, segundo Azevedo (2012), o referido instituto realizou pela primeira vez uma

    medio cientfica, que considera tambm o pblico flutuante e o resultado ficou em cerca

    duzentos e setenta mil, nmero considerado baixo quando comparado aos milhes divulgados

    em todos os anos.

    Quanto ao Crio de Nazar, o Coordenador de Estatsticas e Informaes da Secretaria

    de Estado de Turismo do Par, Admilson Alcntara, relatou, em entrevista1, que a Companhia

    Paraense de Turismo (PARATUR) estima a quantidade de turistas que participa do evento h

    cerca de dez anos, em trabalho conjunto com o Departamento Intersindical de Estatstica e

    Estudos Socioeconmicos (DIEESE). A medio do pblico total feita utilizando o mtodo

    da quantidade de pessoas por metro quadrado e o resultado do clculo o de

    aproximadamente dois milhes de pessoas na procisso principal.

    1 Entrevista concedida autora em 9 jan. 2013.

  • 28

    Ressalta-se que a populao do municpio de Belm, de acordo com o censo de 2010

    do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE, de 1.393.399 (um milho,

    trezentos e noventa e trs mil, trezentos e noventa e nove) habitantes, o que torna a procisso

    principal um momento em que comum se ouvir que a populao quase dobra.

    Conforme a Tabela 1, referente s romarias oficializadas pela Diretoria da Festa -

    grupo responsvel pelo conjunto de eventos mais associados aos aspectos sagrados dessa

    festividade em 2011, a maior concentrao de pblico, entre romeiros e turistas, ocorreu na

    procisso principal do Crio (dois milhes de pessoas) e na Trasladao (um milho e

    trezentas mil pessoas), que, como visto, so as mais antigas, realizadas desde 1793.

    Tabela 1- Romarias Nazarenas / Estimativas de Participantes Crio/2011

    Evento Estimativas de participaes de romeiros e turistas

    Traslado (Ananindeua) 1.100.000

    Romaria Rodoviria 200.000

    Romaria Fluvial 50.000

    Moto Romaria 35.000

    Trasladao 1.300.000

    Crio de Nazar 2.000.000

    Ciclo Romaria 5.000

    Romaria da Juventude 20.000

    Romaria das Crianas 300.000

    Procisso da Festa 5.000

    Recrio 50.000

    Total estimado: 5.065.000

    Fonte: PAR, 2012b. Adaptada pela autora.

    Na referida tabela observa-se a existncia de onze romarias que, junto quelas no

    oficializadas, organizadas por grupos como proprietrios de buggys, policiais militares,

    bombeiros, entre outros, evidenciam o quanto o Crio de Nazar em Belm tem se expandido.

    Nesse sentido, o atual Diretor Coordenador da Diretoria da Festa, Jorge Xerfan,

    afirmou, em entrevista2, que a entidade est aberta anlise da oficializao de novas

    procisses, mas dever ser criteriosa devido grande quantidade das j oficializadas.

    Assim, o Crio de Nazar sofreu diversas alteraes e se expandiu, podendo-se

    consider-lo um complexo de eventos, realizados antes e durante a quadra nazarena,

    envolvendo alm de Belm, dois outros municpios.

    2 Entrevista concedida autora em 21 mar. 2014.

  • 29

    Alves, I. (2005) refere-se festividade como um complexo ritual, por envolver as

    "dimenses sacralizadas e devocionais com aquelas carnavalizadoras, informais e

    comunitrias" (p. 316), observando que s vrias procisses somam-se prticas mais

    informais, destacando-se o Arraial, onde acontecia a feira de produtos regionais nos primeiros

    anos do evento, e o almoo do Crio, realizado por grande parte das famlias aps a procisso

    principal.

    Nessa complexidade podem ser includos diversos outros eventos religiosos ou no,

    tais como as romarias ainda no oficializadas, a exemplo do transporte dos carros do Crio

    para a Companhia Docas do Par, organizada pela Diretoria da Festa; do Auto do Crio, da

    Festa da Chiquita e das festas de aparelhagem direcionadas aos romeiros.

    No que se refere aos aspectos religiosos da festividade, Henrique (2011) afirma que:

    Motivados pela amplitude alcanada por esta celebrao religiosa, quatro entidades

    de Belm solicitaram ao Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    (IPHAN), em dezembro de 2001, o registro do Crio de Nazar de Belm do Par,

    como patrimnio cultural imaterial brasileiro. Foram elas: Arquidiocese de Belm,

    Diretoria da Festividade de Nossa Senhora de Nazar, Obras Sociais da Parquia de

    Nazar e Sindicato dos Arrumadores do Estado do Par (HENRIQUE, 2011, p. 328).

    O autor participou de todo o processo que possibilitou o referido registro, que se

    iniciava com o inventrio para identificar e sistematizar os bens culturais referentes ao Crio,

    finalizando-se com a elaborao de um dossi. O objetivo foi demonstrar que esse complexo

    de eventos rene elementos importantes na formao da identidade brasileira e para tanto, foi

    necessrio considerar no apenas os aspectos religiosos, mas os culturais de forma mais

    ampla.

    Em relao ao registro, faz-se necessrio observar que ele diferencia-se do

    tombamento por este estar relacionado proteo de bens materiais, enquanto aquele se refere

    aos imateriais, tais como as celebraes, a gastronomia, as msicas e as danas. Telles (2010),

    todavia, ressalta que:

    [...] a dicotomia entre patrimnio cultural material e patrimnio cultural imaterial,

    em tese, utilizada e s assim deve ser - como recurso didtico [...]. Ambas

    dimenses, portanto, coexistem num mesmo bem cultural (TELLES, 2010, p. 27).

    O patrimnio imaterial apresenta como principais caractersticas a sua dinamizao e

    a intangibilidade (TELLES, 2007), e desta forma, o modo jurdico para a sua proteo deve

    ser mais flexvel, pois, enquanto os bens tombados devem ser preservados sem alteraes em

    sua forma, os bens registrados sofrem alteraes conforme a dinmica da sociedade.

    Entretanto, o referido autor aponta que a continuidade histrica do bem imaterial essencial

    para o seu processo de registro, e assim a legislao prev a revalidao do ttulo, que deve

  • 30

    ocorrer no mnimo a cada dez anos, e em caso de sua negao, o bem fica apenas registrado

    como referncia cultural daquele perodo.

    A continuidade histrica necessria ao ttulo de patrimnio imaterial prev que o bem

    mantenha seu significado, embora apresente caractersticas diferentes de tempos pretritos,

    quando se originou, e que sofra transformaes no futuro, pois as alteraes acompanham o

    movimento da sociedade. Registra-se a realidade de uma manifestao de modo abrangente,

    mas ele refere-se a um determinado momento.

    O Crio de Nazar em Belm foi registrado em 2004 pelo IPHAN como Patrimnio

    Cultural de Natureza Imaterial, sendo o nico no chamado Livro de Registro de Celebraes.

    No dossi, que resultou no registro e foi publicado em 2006, so elencados os

    elementos da festividade considerados essenciais, seja por sua sacralizao, simbolismo,

    antiguidade ou notvel afluncia popular (IPHAN, 2006).

    O Quadro 1, elaborado por Castro e Serra (2011) com base em IPHAN (2006), ilustra

    a grandiosidade e complexidade do Crio por listar grande parte de seus elementos, sendo que

    os classificados como "demais elementos" podem tornar-se "essenciais" na perspectiva do

    IPHAN no decorrer dos anos. Conforme Henrique (2011), essa nova classificao poder

    ocorrer em uma nova pesquisa a ser realizada pelo referido rgo aps dez anos do registro,

    conforme estabelecido na legislao.

    Quadro 1- Elementos representativos do Crio de Nazar conforme IPHAN (2006)

    ELEMENTOS

    ESSENCIAIS

    Procisso Principal, Imagens (original e peregrina), Trasladao,

    Berlinda, Corda, Recrio, Arraial, Almoo do Crio, Alegorias,

    Brinquedos de Miriti.

    DEMAIS

    ELEMENTOS

    Missa do Mandato, Visitas da Santa aos Fiis, Traslado para

    Ananindeua e Marituba, Romaria Rodoviria, Romaria Fluvial,

    Moto e a Ciclo Romaria, Descida e Subida da Imagem, Romarias

    da Juventude e das Crianas, Procisso da Festa, Auto do Crio,

    Arrasto do Boi Pavulagem, Festa da Chiquita.

    Fonte: CASTRO & SERRA, 2011.

    Iniciando a festividade nazarena tem-se a Missa do Mandato, no ms de agosto, onde

    diversas imagens so abenoadas para realizarem, em setembro, as visitas s casas dos fiis.

    No ms de outubro se concentra a maior parte das manifestaes, em geral, com a presena da

    imagem peregrina (Figura 3), visto que a imagem original fica constantemente na Baslica

    Santurio de Nazar.

  • 31

    Figura 3- Imagem Peregrina

    Foto: Ariane Mathne, 2013.

    A imagem original participava das procisses at 1969, quando foi criada a imagem

    peregrina, por motivos de segurana, diferenciando-se da primeira por apresentar traos mais

    comuns s mulheres amaznicas.

    A procisso principal (Figura 4) realizada no segundo domingo de outubro, mas ela

    antecedida por diversos eventos ocorridos desde a sexta-feira, como o Traslado que leva a

    imagem da Baslica Santurio de Nazar para os municpios de Marituba e Ananindeua, e o

    Auto do Crio (Figura 5), cortejo cultural realizado por artistas locais retratando o sagrado e o

    profano da festividade.

  • 32

    Figura 4 - Procisso Principal

    Foto: Eliseu Dias/GEPA3.

    Figura 5 - Auto do Crio

    Foto: Ronaldo Farias, 2013.

    A maior parte dos eventos ocorre no sbado, iniciando-se com a Romaria Rodoviria,

    que parte da Igreja Matriz de Ananindeua e leva a imagem at o distrito de Icoaraci, onde se

    realiza uma missa, dando incio Romaria Fluvial que leva a imagem de volta para a sede de

    Belm.

    Chegando Escadinha do Porto, prximo Estao das Docas, bairro da Campina,

    iniciam-se dois eventos concomitantes: o Arrasto do Boi Pavulagem (Figura 6), de carter

    3 Disponvel em: . Acesso em:

    2 jul. 2014.

    http://fotospublicas.com/imagens-aereas-procissao-cirio-senhora-nazare-belem/

  • 33

    profano, mais conhecido como Arrasto do Crio, e a Moto Romaria, com aspecto e

    motivao mais religiosos.

    Figura 6 - Arrasto do Boi Pavulagem (Arrasto do Crio)

    Foto: Instituto Arraial do Pavulagem

    4

    O arrasto do Crio segue para a Praa do Carmo passando pelo Mercado do Ver-o-

    Peso. A Moto Romaria conduz a imagem at o Colgio Gentil Bittencourt, no bairro de

    Nazar, de onde ela segue no fim da tarde para a Igreja da S, na Trasladao (Figura 7), a

    qual, aps passar pela Praa da Repblica, d incio Festa da Chiquita (Figura 8), que

    marcada principalmente pela presena de homossexuais e simpatizantes que se divertem ao

    som de msicas de vrios estilos. L se realizam tambm premiaes como a Rainha do

    Crio e o Veado de Ouro. Essa manifestao no tolerada pela Diretoria da Festa e pelas

    autoridades da Igreja. No mesmo dia ocorre na Baslica de Nazar a cerimnia da Descida da

    Imagem, em que a imagem original retirada do espao reservado para ela no altar mor e fica

    mais prxima dos fiis (CASTRO & SERRA, 2011).

    4 Disponvel em: . Acesso em: 2 jul. 2014.

    http://www.facebook.com/institutoarraialdopavulagem/photos/pb.360420523970840.-2207520000.1406662095./688763091136580/?type=3&theaterhttp://www.facebook.com/institutoarraialdopavulagem/photos/pb.360420523970840.-2207520000.1406662095./688763091136580/?type=3&theater

  • 34

    Figura 7 - Trasladao

    Foto: Ronaldo Farias, 2013.

    Figura 8 - Festa da Chiquita

    Fonte: Babados e Badalados (Facebook)

    5

    No domingo ocorre a principal procisso, chamada de Crio, levando a imagem da S,

    no bairro da Cidade Velha, Baslica, em Nazar, tendo como importantes elementos, assim

    como na Trasladao, a berlinda, a corda, as alegorias e os brinquedos de miriti.

    O miriti tambm chamado de buriti em outros estados e, sobretudo no municpio de

    Abaetetuba, utiliza-se o caule para a produo de brinquedos, os quais so vendidos em

    diversos espaos da festividade, chamando ateno pelo seu colorido (Figura 9).

    5 Disponvel em:

    . Acesso em: 30 abr. 2014.

    https://www.facebook.com/BabadosBadalados/photos/at.375141092617308.1073741862.314531962011555.100001554620064/375142422617175/?type=1&theaterhttps://www.facebook.com/BabadosBadalados/photos/at.375141092617308.1073741862.314531962011555.100001554620064/375142422617175/?type=1&theater

  • 35

    Figura 9 - Brinquedos de miriti

    Foto: Ronaldo Farias, 2013.

    Aps a procisso principal, ao seguirem para casa, os fiis tradicionalmente se renem

    em famlia para o almoo do Crio. Porm, ao contrrio da maioria das festas de santos, a

    referida procisso no finaliza a festividade, que se estende por quinze dias, nos quais so

    realizadas a Ciclo Romaria, as romarias das Crianas e da Juventude, a Subida da Imagem, e a

    Procisso da Festa. Quinze dias aps a procisso principal, ocorre a ltima procisso, o

    Recrio, que conduz a imagem peregrina da Baslica de volta para o Colgio Gentil

    Bittencourt, onde ficar at o ano seguinte (CASTRO & SERRA, 2011). Ressalta-se que a

    maior parte das manifestaes se concentra no segundo final de semana do ms de outubro.

    Tratando-se da dimenso espacial do evento, nota-se que as primeiras procisses

    Trasladao e procisso principal do Crio percorriam o caminho que ligava a ermida da

    santa, onde atualmente encontra-se a Baslica de Nazar, e o Palcio dos Governadores, atual

    Museu Histrico do Estado do Par. Conforme IPHAN (2006), aps o fechamento da capela

    do Palcio devido posse dos republicanos, o ponto de partida da procisso principal foi

    alterado para a Igreja de Santo Alexandre, em 1891, e depois para a Igreja da S. A mudana

    j era desejada pelo Bispo Dom Macedo Costa, o qual defendia o fim do regime do padroado.

    Em seu estudo sobre a viso geo-social do Crio, Moreira (1971) afirma que

    inicialmente a principal procisso provocava um intenso deslocamento de Belm para fora da

    cidade, considerando-se que o local onde atualmente se encontra a Baslica era considerado

    zona rural at meados do sculo XIX. Com a expanso da cidade, a procisso tornou-se

    completamente urbana e o movimento cidade-interior se inverte com o aumento do nmero de

  • 36

    fiis vindos do interior do Estado para Belm. Ele destaca a presena dos devotos interioranos

    na procisso principal afirmando que:

    [...] O Crio um reflexo da presena do interior no ambiente urbano, convindo

    salientar que sem essa presena le no seria o que , a comear porque o devoto

    interiorano mais compenetrado e representativo. A trasladao e o Recrio so

    belemenses, mas o Crio paraense (MOREIRA, 1971, p. 07).

    Tal observao permanece adequada atualidade, pois, embora no haja dados

    recentes e precisos quanto quantidade de visitantes provenientes do interior do estado,

    observa-se que a presena deles continua acentuada, especialmente na procisso principal, a

    qual o referido autor denomina apenas Crio.

    Nesse sentido, os dados existentes que mais se aproximam do que percebido provm

    do estudo de Costa et al (s/d), no qual foram realizadas estimativas quanto aos visitantes de

    Belm no perodo do Crio at 2005. Os autores consideraram os nmeros referentes

    procisso principal, por constatarem que todos visitantes que tiveram como motivao essa

    festividade, participam da referida procisso. Para eles, aproximadamente 58% (cinquenta e

    oito por cento) dos participantes so da Mesorregio Metropolitana de Belm, enquanto 40%

    so de outras mesorregies, a maioria deles do nordeste paraense.

    Conforme mencionado, a maior parte das romarias realizadas atualmente foi criada a

    partir da dcada de 1980, quando se expandiu o territrio dessa festividade para o distrito de

    Icoaraci, em Belm, envolvendo-se posteriormente os municpios de Ananindeua e Marituba,

    localizados na |Regio Metropolitana.

    A partir de entrevistas com pessoas direta ou indiretamente ligadas Diretoria da

    Festa, Pantoja (2006) informa que esse aumento acentuado no nmero de procisses deve-se a

    motivos diversos, tais como a demanda dos devotos, a exemplo da Ciclo Romaria e da

    Romaria das Crianas; ou a criao de um novo atrativo turstico para a cidade, no caso da

    Romaria Fluvial.

    Em relao ao traslado para Ananindeua, a sua criao deu-se a partir da solicitao de

    um empresrio do municpio e a extenso at Marituba ocorreu em atendimento ao pedido de

    um proco (IPHAN, 2006).

    Houve tambm, de acordo com Pantoja (2006), o pedido do prefeito de Marituba para

    que a imagem pernoitasse nesse municpio, o que no foi aceito pela Diretoria da Festa. Em

    compensao, foi permitida a extenso do tempo de permanncia da imagem antes do seu

    retorno para Ananindeua.

  • 37

    As manifestaes realizadas no segundo final de semana de outubro podem ser

    observada nos mapas das Figuras 10 e 11, nos quais se apresentam os percursos de eventos

    religiosos (romarias) e profanos (cortejos) realizados nesse perodo.

  • 38

    Figura 10 - Trajeto das Romarias do Crio de Nazar

    Fonte: LAIG/UFPA, 2013. Organizado pela autora.

  • 39

    Figura 11 - Trajeto dos Cortejos do Crio de Nazar

    Fonte: LAIG/UFPA, 2013. Organizado pela autora.

  • 40

    Em relao Figura 10, o Traslado para Ananindeua tem incio na Baslica Santurio

    de Nazar. Foi criado em 1992 e seu prolongamento para o municpio de Marituba ocorreu

    em 2002 (IPHAN, 2006). Nesses municpios, a procisso percorre as parquias de alguns

    bairros, sendo considerada a mais longa, com cerca de cinquenta e cinco quilmetros de

    extenso e durao de aproximadamente doze horas (FILHO, 2012).

    Aps pernoitar na igreja matriz de Ananindeua, a imagem segue na Romaria

    Rodoviria at o distrito de Icoaraci para dar incio Romaria Fluvial, que segue pela Baa do

    Guajar at chegar Escadinha do Porto, prximo Estao das Docas, na sede de Belm. A

    partir desse ponto milhares de motociclistas conduzem a imagem para o Colgio Gentil

    Bittencourt, que l permanece at a Trasladao, procisso que a leva para a Igreja da S, de

    onde ela parte no dia seguinte, na procisso principal, chamada de Procisso do Crio, e

    finaliza-se na Baslica Santurio de Nazar.

    Quanto aos cortejos apresentados na Figura 11, a Praa do Carmo o espao onde se

    inicia o Auto do Crio e se finaliza o Arrasto do Crio. O referido auto segue at a Praa D.

    Pedro II, fazendo diversas paradas para encenaes. O Arrasto comea na Escadinha do

    Porto.

    Observa-se que parte dos espaos apropriados pelos organizadores do Crio durante a

    sua realizao so considerados atrativos tursticos. No distrito de Icoaraci, pertencente ao

    municpio de Belm, destaca-se o Trapiche, onde se realiza uma missa para em seguida se

    iniciar a Romaria Fluvial. localizado na Orla, espao estruturado com calado, bares,

    restaurantes e quiosques para a venda de artesanato, principalmente as cermicas marajoara e

    tapajnica.

    Na sede do municpio de Belm, os eventos concentram-se em trs bairros nos quais

    os espaos apropriados so considerados tursticos tanto pela sua relao com as festividades

    do Crio de Nazar, como principalmente por sua importncia na formao histrica e scio-

    espacial da cidade. Tem-se, dessa forma, a Baslica de Nazar (Figura 12) e o Colgio Gentil

    Bitencourt no bairro de Nazar; as Praas do Carmo e D. Pedro II e a Igreja da S, na Cidade

    Velha, e, finalmente, a Praa da Repblica e a Escadinha do Porto (onde se finaliza a Romaria

    Fluvial), localizados no bairro da Campina. Ainda no referido bairro destaca-se o Complexo

    do Ver-o-Peso como parte do percurso de algumas romarias e cortejos.

  • 41

    Figura 12 - Baslica Santurio de Nazar

    Foto: Marcos Costa, 2011.

    A devoo a Nossa Senhora de Nazar est presente em diversos municpios paraenses

    e em outros estados brasileiros. Devido influncia de paraenses que moram fora do Par e de

    peregrinaes da imagem, podemos encontrar tambm Crios de Nazar realizados no

    Maranho, Distrito Federal, Rio de Janeiro e So Paulo (COSTA et al, s/d)6.

    Em pesquisa em sites catlicos e de jornalismo, observou-se que as peregrinaes da

    imagem em diversas capitais brasileiras, na dcada de 1990, favoreceram a realizao do

    Crio de Nazar em So Lus; que no Rio de Janeiro, Niteri e Saquarema a festividade tem

    sido realizada desde o final da dcada de 2000 com a presena da imagem de Belm; e que

    em So Paulo e Braslia a festividade se d desde as dcadas de 1950 e 1960,

    respectivamente, inspirada pelos moradores paraenses.

    Assim, a expanso do Crio tanto pela Regio Metropolitana de Belm, como por

    outros municpios paraenses e de outros estados estimulada pela igreja catlica que busca

    ampliar seus territrios, ou seja, os espaos apropriados por ela nos quais ela poder exercer

    maior controle. Porm, somado a esse estmulo, a apropriao popular da festividade, como

    ser discutido a seguir, tambm contribui para ampliar o alcance dessa festividade.

    Nos sites pesquisados, percebeu-se que nas cidades de So Lus, Rio de Janeiro,

    Niteri, So Paulo e Braslia tambm se utilizam vrios elementos que fazem parte da

    manifestao realizada em Belm, tais como a corda, a valorizao da gastronomia paraense,

    a berlinda, o manto, alm do formato e dos nomes das procisses. A exceo seria a cidade de

    6 Ressalta-se que Dom Orani Joo Tempesta, arcebispo de Belm no perodo de 2004 a 2009, contribuiu para o

    processo de expanso da devoo, inclusive com as visitas da imagem peregrina ao Rio de Janeiro e

    Saquarema durante as festividades realizadas nas referidas cidades em homenagem santa.

  • 42

    Saquarema, que no apresenta tais caractersticas, mas realiza o Crio das guas, pela lagoa

    do municpio, e o Crio das Rodas, que rene bicicletas, carros e motos. Elas assemelham-se

    s romarias Fluvial, Rodoviria, e Moto e Ciclo Romaria.

    Observa-se, assim, que o Crio no pode ser considerado apenas como manifestao

    religiosa, pois ele envolve diversos outros aspectos culturais e, como ser abordado a seguir,

    relaciona-se com a poltica e a economia do estado, destacando-se ainda sua importncia

    como atrativo turstico.

    1.3. PARA ALM DO CARTER RELIGIOSO: A POLTICA, A ECONOMIA, A POPULARIDADE E A CULTURA NO CRIO DE NAZAR EM BELM E SUA

    RELAO COM O TURISMO

    Desde sua origem, o Crio de Nazar em Belm um evento ligado a aspectos

    religiosos, polticos e econmicos, considerando-se que apesar da devoo santa ter se

    iniciado por volta do ano de 1700, como abordado anteriormente, a primeira procisso

    registrada ocorreu quase cem anos mais tarde, convocada pelo governador Francisco

    Coutinho, que realizou durante a festa uma feira de produtos regionais, para a qual foram

    convidados os habitantes do interior da provncia (IPHAN, 2006).

    Essa relao com o poder pblico modificou-se com a posse dos republicanos, que

    transformariam oficialmente o Brasil em um Estado laico. Entretanto, os governos estadual e

    municipal continuaram a se envolver nesse evento de forma que atualmente a contribuio do

    poder pblico em nvel estadual e municipal, conforme Pantoja (2006, p. 65), considerada

    pela Diretoria da Festa no apenas como uma forma de parceria: Prefeitura e Governo do

    Estado so entendidos como entidades realizadoras.

    De acordo com Costa et al (2008), desde 2003, os governos estadual e municipal tm

    contribudo financeiramente com cerca de cinqenta por cento do oramento da festividade,

    no que se refere programao e aes executadas pela Igreja. Em busca da ampliao de

    recursos, a Diretoria da Festa tem realizado projetos voltados para os empresrios: o

    Patrocinador e o Apoiador Oficial do Crio, criados em 2003 e 2009, respectivamente, com

    cotas pr-estabelecidas, oferecendo-se como contrapartida a promoo das empresas em

    diversos meios de comunicao. Ressalta-se que em 2013 os investimentos totalizaram mais

    de dois milhes e oitocentos mil reais (DIRETORIA..., 2013).

    O carter religioso do Crio, conforme Pantoja (2006), est mais presente no momento

    das procisses, quando os catlicos tm em comum a devoo. Acrescenta-se, porm, os

    demais eventos religiosos que fazem parte do Crio, tais como missas e shows catlicos. A

  • 43

    dimenso religiosa, considerando-se os eventos sagrados, portanto, administrada pela Igreja

    por meio de instituies como a Diretoria da Festa. Entretanto, o sagrado e o profano se

    complementam e nota-se a tentativa da Igreja de exercer o controle tambm sobre as festas

    profanas, a exemplo da determinao do horrio de encerramento das atividades no arraial,

    conforme Pantoja (2006).

    Conforme as Figuras 13 e 14, o espao destinado ao arraial, onde se realizava a feira

    de produtos agrcolas desde o primeiro Crio, sofreu diversas transformaes, acompanhando

    as mudanas da cidade.

    Figura 13 - Largo de Nazareth [desenhado por J.L. Righini em meados do sculo XIX]

    Parte da srie de litografias Panorama do Par em doze vistas, publicado em 1867.

    Fonte: Centro de Memria da Amaznia (UFPA)7.

    Figura 14 - Largo de Nazar (carto postal/sem data)

    Ao fundo a Baslica de Nazar (arquitetura atual) e no largo a presena dos coretos desaparecidos.

    Fonte: Biblioteca do IBGE8.

    7 Disponvel em: . Acesso em: 05 fev. 2013.

    8 Disponvel em:< http://biblioteca.ibge.gov.br/d_detalhes.php?id=42480>. Acesso em: 05 fev. 2013.

    http://www.ufpa.br/cma/imagenscma.htmlhttp://biblioteca.ibge.gov.br/d_detalhes.php?id=42480

  • 44

    Matos (2010) destaca as alteraes ocorridas entre meados do sculo XIX e incio do

    sculo XX, perodo conhecido como Belle poque, quando tambm ocorre a reforma da

    Igreja Catlica ou romanizao, a qual se estendeu at a dcada de 1960. Durante a Belle

    poque, Belm cresceu economicamente com a extrao e o comrcio da borracha e viveu um

    processo de modernizao.

    A autora ressalta esses dois eventos por serem propulsores de mudanas nos valores,

    cdigos e prticas da vida sociocultural da cidade, que se expressam em novas formas de

    festejar o Crio de Nazar. (MATOS, 2010, p. 70). Especificamente em relao ao arraial,

    nesse momento, observam-se a diferenciao de classes presentes naquele espao e a

    diversificao das atraes, em que os folguedos populares comuns nas festividades religiosas

    eram reprimidos, enquanto se importavam espetculos de outras cidades e pases.

    Ela observa que o referido espao, onde ocorriam as manifestaes profanas, sempre

    expressou as tenses e negociaes entre os catolicismos oficial e popular e ao longo de sua

    histria o arraial passou por inmeras intervenes por parte da diretoria da festa e das

    autoridades eclesisticas [...], preocupados em organizar esse espao segundo as concepes

    religiosas e morais vigentes (p. 231). Porm, a dcada de 1980 caracterizou-se por alteraes

    nas festividades populares, incluindo-se o Crio de Nazar, visando torn-los mais atrativos

    para turistas e investidores. Em 1982, houve a transferncia do arraial para uma rea lateral

    baslica, pertencente Igreja, e em seu lugar foi construdo o Centro Arquitetnico de Nazar

    CAN (Figura 15), com recursos da Unio. A praa pblica tornou-se um prolongamento da

    baslica, controlada pela Diretoria da Festa.

  • 45

    Figura 15 - Centro Arquitetnico de Nazar

    Ao centro, observa-se a estrutura para a exposio da imagem peregrina durante o Crio.

    Foto: Heden Franco, 2012.

    A autora ressalta, tambm, o risco de perda de fiis devido crescente diversidade

    religiosa, ocasionando profundas mudanas na igreja catlica a partir da dcada de 1960, e

    transformando o Crio [...] mais ainda em um instrumento canalizador de novos adeptos.

    (MATOS, 2010, p. 262).

    Ainda exemplificando as tentativas de controle da Igreja sobre as manifestaes

    profanas, pode-se destacar a sua tentativa de ingerncia no processo de registro do Crio de

    Nazar pelo IPHAN, em relao incluso da Festa da Chiquita no inventrio e no dossi.

    Para a Diretoria da Festa, tal manifestao era ofensiva e desvinculada do Crio. Entretanto,

    foi observada nos discursos de Eli Iglsias, principal organizador do evento, a constante

    associao entre o Crio, a confraternizao e o combate ao preconceito sexual (HENRIQUE,

    2011).

    O Crio de Nazar em Belm apresenta tambm um carter popular, no qual os fiis

    nem sempre se subordinam ao poder da Igreja. Um dos momentos considerados de

    insubordinao popular ocorreu no final do sculo XIX, quando o bispo Dom Macedo Costa,

    que liderava o processo de romanizao da igreja na regio amaznica, visando ajust-la aos

    preceitos da Santa S, em Roma, suspendeu as funes religiosas do Crio e fechou as portas

    da ermida ao ser provocado por uma denncia de que no arraial foram apresentados quadros

    com mulheres despidas. A reao do povo, estimulado pela Irmandade de Nazar, grupo que

    organizava o evento, foi de invadir a ermida, sendo realizados em 1878 e 1879 dois crios

    civis, ou seja, sem a participao do clero e de autoridades religiosas (IPHAN, 2006).

  • 46

    A Figura 16 representa esse momento, onde se observa esquerda e abaixo os frades

    repudiando a procisso com vaias e colocando a lngua para fora. considerada a mais antiga

    imagem do Crio, publicada na Revista Puraqu em 1878 (NASSAR, 2012).

    Figura 16 - A mais antiga imagem do Crio

    Elementos como a berlinda e alguns carros utilizados no Crio esto presentes na gravura.

    Fonte: Blog do Flvio Nassar9.

    A situao ficou conhecida como questo nazarena e s foi solucionada em 1880, a

    partir da mediao do ento presidente da provncia, Jos Coelho da Gama e Abreu, com a

    criao de uma comisso para organizar a festa, formada por confreiros e religiosos, nomeada

    pelo bispo. (IPHAN, 2006, p. 23), o que reduziu o poder da irmandade na organizao do

    evento.

    Dessa forma, pode-se afirmar que apesar da tentativa de controle por parte da Igreja e,

    em alguns momentos, do prprio poder pblico, o Crio de Nazar tem um carter

    eminentemente popular, no qual os agentes devem considerar, no ato do planejar esse

    complexo de eventos, as formas populares de devoo, a fim de reduzir os possveis conflitos,

    em geral, relacionados ao receio dos devotos quanto supresso de elementos considerados

    por eles como fundamentais procisso, mas que no so vistos do mesmo modo pelas

    autoridades eclesisticas.

    Nesse sentido destacam-se as questes relacionadas corda, que conforme IPHAN

    (2006), foi utilizada pela primeira vez em 1855, mas oficializada pela Igreja somente em

    1868. Maus e Maus (2005) afirmam que ela perdeu seu sentido original, sua necessidade,

    9 Disponvel em: . Acesso em: 03

    jan. 2013.

    http://blogdoflavionassar.blogspot.com.br/2012/10/o-cyrio-de-1878.html

  • 47

    que seria de tracionar o carro de bois que levava a berlinda. Porm, ela passou a ter um

    significado simblico extraordinrio, o lugar onde as pessoas fazem suas promessas [...]. Na

    cultura humana, o que conta, sobretudo, no so as necessidades prticas, mas os valores

    simblicos (p. 55). Apesar de essencial, considera-se que este elemento dificulta o fluxo da

    procisso, o que ocasiona polmicas frequentemente.

    De acordo com IPHAN (2006), no final da dcada de 1920 ocorreram as primeiras

    tentativas de supresso da corda, quando o arcebispo Dom Irineu Joffily introduziu mudanas

    no Crio baseadas no processo de romanizao do evento. A abolio da corda causou a

    reao dos fiis e de parte da imprensa, mas foi apoiada pelo ento governador, Dionzio

    Bentes, por meio do policiamento nas ruas durante a procisso. A soluo para a questo

    ocorreu em 1931, mediada pelo interventor populista Magalhes Barata.

    A polmica atual em relao corda refere-se ao seu corte pelos promesseiros antes do

    final da procisso principal, pois eles desejam levar os pedaos como lembrana. Tal atitude

    tem sido condenada pela Diretoria da Festa e pela Arquidiocese de Belm, que realizam desde

    2011, a campanha pelo No Corte da Corda, em rdios e televises, para evitar acidentes

    pela presena de armas brancas durante o evento. Os organizadores garantem que prximo ao

    final da procisso a corda cortada pela Guarda de Nazar10

    e entregue aos participantes (...,

    2012).

    O carter popular do Crio foi observado por Moreira (1971). Para ele, a romaria

    popular se imps pela sua prpria popularidade, predominando-se sobre as procisses e festas

    reais, impostas por lei. Ele compara o evento Cabanagem afirmando que esses so os dois

    maiores exemplos do poder afirmativo das massas na histria paraense. (p. 15).

    A popularidade do Crio verificada tambm em seus aspectos profanos, com a

    presena de diversas manifestaes culturais, visto que esse complexo de eventos

    considerado como parte da identidade cultural no apenas dos belenenses, como dos

    paraenses.

    Figueiredo (2005) afirma que:

    Nesse perodo, a cultura paraense manifesta-se em todos os bairros de Belm, na

    maioria das casas, quer pela culinria, quer pela msica, artes, etc. So realizados

    muitos eventos em funo do Crio, como feiras de artesanato, manifestaes da

    10

    A Guarda de Nazar foi criada em 1974, sendo considerada a primeira guarda catlica no Brasil. formada

    apenas por catlicos do sexo masculino, tendo como funes principais cuidar da berlinda, auxiliar na

    organizao das procisses, supervisionar a Praa Santurio durante os eventos, zelar pela baslica, e dar apoio

    a outras parquias.

  • 48

    cultura popular (bois, carimbs, etc.), exposies de arte, festas, festivais, entre

    outros (FIGUEIREDO, 2005, p. 26-27).

    Limitando-se aos elementos profanos selecionados pelo IPHAN, conforme Quadro 1

    (p. 28), pode-se exemplificar a diversidade das manifestaes culturais com a realizao dos

    cortejos do Auto e do Arrasto do Crio; da presena dos brinquedos de miriti (ou buriti),

    feitos do caule de sua palmeira, cuja produo destaca-se no municpio de Abaetetuba,

    prximo a Belm; bem como no almoo do Crio, realizado logo aps a procisso principal,

    cujos principais pratos so considerados tpicos paraenses, especialmente a manioba e o pato

    no tucupi ou suas variaes como o frango e o peru.

    Apesar de no incluso nos elementos selecionados pelo IPHAN, as festas populares,

    mais especificamente as chamadas festas de brega (atualmente, festas de aparelhagem), que

    so realizadas durante o ano, destacam-se no perodo do Crio. Costa, A. (2006) afirma que o

    circuito bregueiro:

    [...] se conecta aos grandes eventos, assumindo um papel de complementao dos

    festejos. A festa de brega permanece como uma opo importante de lazer para os

    romeiros e fiis do Crio. A atividade empresarial e a freqentao do circuito

    durante estes festejos no interrompida. Ao contrrio: ela enriquecida pelo

    esprito festivo que toma conta da cidade e, ao mesmo tempo, adapta-se a ele.

    (COSTA, A., 2006, p. 84).

    Com base em Magnani (1996, 2002), o autor utiliza a categoria circuito para se referir

    ao exerccio de uma prtica cultural ou a oferta de um servio qualquer, demarcados por

    estabelecimentos, equipamentos e espaos sem relao de contigidade entre si e

    reconhecidos em conjunto pelos seus usurios regulares (COSTA, 2003, p. 108). Assim, o

    circuito bregueiro em Belm apresenta elementos espalhados por diversos bairros,

    principalmente os de periferia, envolvendo as aparelhagens (empresas de sonorizao), as

    casas de festa e o pblico apreciador, alm de estdios de gravao, produtoras de CDs,

    artistas e rdios.

    Dessa forma, os aspectos religiosos, polticos, culturais (em sentido amplo) e a

    popularidade do Crio se entrelaam, permitindo-se inferir que os diversos agentes promotores

    da festividade tm se articulado