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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ MARIA ISABEL DA SILVEIRA BORDINI A PRESENÇA DO HOLOCAUSTO NO ROMANCE JERUSALÉM, DE GONÇALO M. TAVARES CURITIBA 2013

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ MARIA ISABEL DA … · Palavras-chave: Holocausto, Totalitarismo, Gonçalo M. Tavares ABSTRACT This work analyzes the representation of the Holocaust

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

MARIA ISABEL DA SILVEIRA BORDINI

A PRESENÇA DO HOLOCAUSTO NO ROMANCE JERUSALÉM, DE GONÇALO M. TAVARES

CURITIBA 2013

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MARIA ISABEL DA SILVEIRA BORDINI

A PRESENÇA DO HOLOCAUSTO NO ROMANCE JERUSALÉM, DE GONÇALO M. TAVARES

Monografia apresentada ao curso de Letras, do Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Letras Português, com ênfase em Estudos Literários. Orientador: Prof. Dr. Paulo Astor Soethe

CURITIBA 2013

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TERMO DE APROVAÇÃO

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RESUMO

O presente trabalho analisa a representação do Holocausto no romance Jerusalém, do autor português contemporâneo Gonçalo M. Tavares. Procurei apontar como este tema se encontra presente não de maneira referencial, isto é, não retratado em moldes realistas, mas como pano de fundo histórico e extraliterário que, no entanto, possui inserção temática e formal no romance. Essa inserção se dá através da referência ao Holocausto presente no título do romance, quando lido em associação ao salmo bíblico 137, que é citado no texto literário; pela figuração do campo de concentração, associada à figuração do hospital psiquiátrico; pelas referências ao Horror, termo empregado pela historiografia para se falar do Holocausto perpetrado pelo governo nazista; e pela intertextualidade com formulações de Hannah Arendt. A inserção do tema se revela ainda na trajetória do protagonista Theodor Busbeck, na qual estão presentes elementos vinculados às ideias e realizações do totalitarismo. Procurei analisar cada um desses indicadores da presença do Holocausto, tendo como pressuposto a ideia de que o texto literário está em constante e inevitável diálogo com outras produções discursivas acerca do tema, provenientes, por exemplo, da filosofia e da sociologia.

Palavras-chave: Holocausto, Totalitarismo, Gonçalo M. Tavares

ABSTRACT

This work analyzes the representation of the Holocaust in the novel Jerusalém, by the Portuguese contemporary writer Gonçalo M. Tavares. I have searched to point out how this subject is present not in a referential way, i. e., not pictured according to realistic frames, but as a historical and extra-literary scenery which, however, is thematically and formally inserted in the novel. This insertion is made through the reference to the Holocaust in the title of novel, associated to the biblical Psalm 137, which is quoted in the novel; by picturing a concentration camp in association with a psychiatric hospital; through the references to the Horror, a term used by historiography to talk about the Holocaust perpetrated by the Nazi government; and through the intertextuality with formulations made by Hannah Arendt. The insertion of the subject is also shown in the protagonist Theodor Busbeck’s trajectory, in which a settle of elements associated to the totalitarian ideas and achievements can be found. I have searched to analyze each one of these marks of the presence of the Holocaust, having as a presupposition the idea that the literary text holds a permanent and inevitable dialogue with other kinds of discursive productions about the subject, which come, for instance, from philosophy and sociology. Keywords: Holocaust, Totalitarianism, Gonçalo M. Tavares

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................6 1. JERUSALÉM E A TETRALOGIA O REINO..........................................................10 1.1 SOBRE O ENREDO.............................................................................................12 1.2 SOBRE O MAL.....................................................................................................14 2. CAMPO DE CONCENTRAÇÃO E HOSPITAL PSIQUIÁTRICO...........................22 2.1 O TESTEMUNHO EM EUROPA 02.....................................................................23 2.2 O TESTEMUNHO DOS LOUCOS........................................................................33 3. A CIÊNCIA E O HORROR.....................................................................................43 3.1 HANNAH ARENDT E A “IMAGEM DO INFERNO”..............................................43 3.2 THEODOR BUSBECK E O DOMÍNIO TOTALITÁRIO.........................................50 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................64 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................66 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA...............................................................................67

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INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é mapear, analisar e expor a presença do tema do

Holocausto no romance Jerusalém, do escritor português contemporâneo Gonçalo

M. Tavares. O Holocausto, o massacre de milhões de pessoas, principalmente

judeus, levado a cabo pelo governo nazista, não é, enquanto evento histórico,

abordado pelo romance em questão tendo em vista o aspecto da referencialidade.

Quer dizer, o romance não pretende retratar de maneira realista o evento histórico

do Holocausto. Este é, antes, uma espécie de pano de fundo histórico e extraliterário

para as alegorias e metáforas construídas em Jerusalém.

Jerusalém não é, portanto, um romance sobre o Holocausto e as atrocidades

cometidas pelos nazistas, mas apresenta este fato como um dado incontornável da

experiência histórica recente da humanidade. E ainda que o romance não tematize

diretamente esse dado, ele marca, no plano do enredo e dos recursos formais, a sua

por assim dizer “incontornabilidade”. Nesse sentido, Jerusalém é um romance que

problematiza a própria condição da escrita e do escritor no século XXI, na medida

em que alerta para o fato de que se deve escrever hoje em dia como quem tem a

experiência histórica do totalitarismo e sabe que um mal da magnitude do

Holocausto é possível.

A preocupação em estabelecer um diálogo com esses acontecimentos

históricos relativamente recentes foi ressaltada pelo próprio Gonçalo Tavares em

entrevistas que analisei e procurei expor e articular no presente trabalho.

Para tratar dos fenômenos do totalitarismo e do Holocausto, me ancorei em

formulações de autores da filosofia e da sociologia, notadamente das considerações

de Hannah Arendt e Giorgio Agamben.

O trabalho segue, então, a seguinte estruturação: no primeiro capítulo

procurei contextualizar o romance Jerusalém dentro da tetralogia à qual ele

pertence, denominada O Reino, cujo tema central é o potencial de destruição

contido em cada indivíduo e em cada conformação política e social (o comentário

recorrente da crítica tem sido o de que a série O Reino trata sobre “o Mal”). Ainda

neste primeiro capítulo busquei reconstituir brevemente o enredo de Jerusalém, a

fim de melhor localizar aqueles que não estão familiarizados com essa narrativa de

Tavares.

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No segundo capítulo me propus estabelecer um paralelo entre a figuração do

campo de concentração presente no capítulo XV, intitulado “Europa 02”, e a

figuração do hospital psiquiátrico realizada especialmente no capítulo IX, “Os

loucos”. A articulação entre esses dois momentos do romance me parece concentrar

formalmente as questões ligadas ao tema do Holocausto, das quais a narrativa

pretende tratar.

No terceiro capítulo, por fim, através da intertextualidade que Jerusalém

estabelece com as considerações de Hannah Arendt contidas em seu ensaio “A

imagem do inferno”, me dediquei a tratar da relação entre ciência e domínio

totalitário que está presente no romance. Para isso, me foquei na análise do

protagonista Theodor Busbeck, apontando, tanto na sua trajetória pessoal quanto na

investigação científica que ele empreende a respeito do horror, as ressonâncias das

teses e do modus operandi do movimento e regime totalitários.

Ao longo do trabalho fiz a opção por seguir utilizando o termo Holocausto,

apesar da controvérsia que este uso por vezes suscita. Em O que resta de

Auschwitz, Giorgio Agamben faz uma resumida retomada da história semântica do

termo1, a fim de explicar por que rejeita o seu uso. Diz ele que a utilização do termo

holocausto remonta ao início do cristianismo e à história dos martírios cristãos.

Holocaustum é a forma latina adaptada do grego holókaustos (ὁλόκαυστον = ὁλον

[todo] + καυστον [queimado]), adjetivo que significa “todo queimado” (o substantivo

grego correspondente é holokaústoma), e foi o termo empregado pela Vulgata para

traduzir o hebraico olah. O termo hebraico, por sua vez, está presente no Levítico,

onde são apresentadas quatro formas de sacrifícios dos hebreus: olah, hattat,

shelamin, minha. No início do cristianismo, os padres latinos passaram a usar o

termo holocaustum para indicar os sacrifícios dos hebreus em geral, referindo-se por

vezes a esses sacrifícios de forma pejorativa, por conta da sua “inutilidade”2. A

seguir, o termo passou a ser extensivo, como metáfora, aos martírios cristãos,

equiparando essas mortes a sacrifícios, a algo que honra e agrada à divindade. Por

1 Ver AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III).

Trad. de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 38-39. 2 Devemos, entretanto, lembrar (coisa que Agamben na verdade não procura ressaltar) que para a

doutrina cristã os antigos sacrifícios do povo hebreu eram apenas um símbolo, uma imagem imperfeita, do sacrifício por excelência, aquele que o próprio Deus realizou através da vinda e da morte do Cristo, visando a redenção do gênero humano. É nesse contexto que se dá a acusação de “inutilidade”, reportada por Agamben, feita pelos cristãos aos sacrifícios dos judeus. O sentido dessa acusação parece ser, portanto, mais religioso do que propriamente de discriminação de um povo.

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fim, o próprio sacrifício de Cristo passou a ser referido como holocaustum. Com isso,

o termo ganha o sentido vulgar e recorrente de “sacrifício, entrega total a causas

sagradas e superiores”. Contudo, o uso do termo com sentido polêmico contra os

judeus, como haviam feito os primeiros padres latinos, também parece ter certa

continuidade na sua história semântica: Agamben cita um cronista medieval inglês

que se refere a um pogrom como tal3, dando ao termo uma conotação violentamente

antissemita.

Diante disso, Agamben considera o termo holocausto potencialmente ofensivo

e repudia o seu uso sob a seguinte argumentação:

estabelecer uma vinculação, mesmo distante, entre Auschwitz e o olah bíblico, e entre a morte nas câmaras de gás e a ‘entrega total a causas sagradas e superiores’ não pode deixar de soar como uma zombaria. O termo não só supõe uma inaceitável equiparação entre fornos crematórios e altares, mas acolhe uma herança semântica que desde o início traz uma conotação antijudaica. Por isso, nunca faremos uso deste termo. Quem continua a fazê-lo, demonstra ignorância ou insensibilidade (ou uma e outra coisa ao mesmo tempo).

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De minha parte, sem tirar o mérito do posicionamento de Agamben, gostaria

apenas de ressalvar que o uso contemporâneo e largamente empregado do termo

não parece mais ter qualquer intenção discriminatória e nem ofensiva. Os próprios

espaços destinados à manutenção da memória deste acontecimento, muitos deles

organizados e mantidos pela própria comunidade judaica, frequentemente são

chamados de “Museu do Holocausto”. Diante disso, neste trabalho optei pelo uso de

Holocausto ao invés de Shoá (que em iídiche quer dizer “catástrofe”, “calamidade”

ou “devastação”) apenas por ser o primeiro termo mais amplamente conhecido do

que o segundo. Contudo, considero necessário ter em mente a história semântica do

termo, bem como estar ciente da potencial inadequação ética e política de seu uso.

No entanto, diante do seu emprego generalizado, penso que, em termos de

3 Em O que resta de Auschwitz, Agamben diz: “No decurso das minhas investigações sobre a

soberania, dei-me casualmente com uma passagem de um cronista medieval, que constitui a primeira acepção de por mim conhecida do termo ‘holocausto’, com referência a um massacre de judeus, mas, nesse caso, com uma conotação violentamente antissemita. Richard de Duizes testemunha que, no dia da coroação de Ricardo I (1189), os londrinos entregaram-se a um pogrom particularmente cruento: “No mesmo dia da coroação do rei, perto da hora em que o Filho havia sido imolado ao Pai, começou-se na cidade de Londres a imolar os judeus ao seu pai o demônio (incoeptum est in civitate Londoniae immolare judaeos patri suo diabolo); e a celebração deste mistério durou tanto que o holocausto não pôde ser completado antes do dia seguinte. (...)” AGAMBEN, G. Op. cit., p. 39-40. 4 Idem, p. 40.

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conscientização e de ação política, mais útil do que cercear o termo em um contexto

de tabu linguístico parece ser tomar posse dele em prol da manutenção da memória

e da dignidade das vítimas do massacre ao qual o termo se refere5.

Por fim, ressalto a necessidade de incorporação da literatura (e do romance

Jerusalém em específico) às reflexões ético-filosóficas, em geral, e aos debates

acerca de temas de política, em particular. Nesse contexto, acredito que o romance

Jerusalém (bem como tantas outras obras literárias de algum modo ligadas ao tema

do Holocausto) cumpre o fundamental papel de manter vivo o alerta já dado por

Hannah Arendt de que o totalitarismo, forma de governo surgida no século XX como

resultado de uma experiência específica da modernidade, tende a permanecer

conosco

como potencialidade e como risco sempre presente, (...) como ficaram, a despeito de derrotas passageiras, outras formas de governo surgidas em diferentes momentos históricos e baseadas em experiências fundamentais – monarquias, repúblicas, tiranias, ditaduras e despotismos.

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Que a presença do Holocausto em Jerusalém, de Gonçalo Tavares, não nos

deixe esquecer dessa potencialidade.

5 Esse mesmo movimento de apropriação e ressignificação de um termo por um grupo contra o qual o

termo é usado de forma discriminatória e ofensiva se verifica recentemente na organização da chamada “Marcha das Vadias”, evento realizado em várias cidades do mundo que tem por objetivo denunciar e combater a violência (especialmente a violência de cunho sexual) contra a mulher. O termo “vadia”, frequentemente empregado para condenar a mulher pela violência sexual de que ela é vítima – justificando e normalizando tal violência – foi apropriado por certos grupos que reivindicam maior liberdade e respeito à mulher. Ao se apropriar do termo “vadia”, esses grupos lhe dão uma conotação política e inserem a violência contra a mulher na agenda de discussões e reivindicações dos direitos humanos. 6 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das

Letras, 1989, p. 531.

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1. JERUSALÉM E A TETRALOGIA O REINO

O romance Jerusalém é o terceiro de uma tetralogia denominada O Reino,

série de romances articulados não por uma linha de continuidade entre os enredos,

que podem ser lidos de maneira independente uns dos outros, mas pelos temas,

pelos cenários e pelas circunstâncias que as histórias apresentam em comum. Os

romances em questão – Um homem: Klaus Klump, A máquina de Joseph Walser,

Jerusalém e Aprender a rezar na era da técnica – têm como cenário uma unidade

político-administrativa (uma cidade não nomeada) sem correspondente referencial

na geopolítica atual ou passada, mas que reúne elementos que caracterizam os

Estados-nação modernos, principalmente do contexto europeu. Dentre esses

elementos encontram-se: a centralidade do trabalho no quadro das relações sociais

(do trabalho desenvolvido no espaço industrial, principalmente – lembrar que o

império industrial de Leo Vast, cuja presença é determinante nos dois primeiros

romances da série, é um elemento que percorre a tetralogia); a centralidade da

ciência e da técnica na compreensão e na organização das vidas individuais

(iconizada nas trajetórias dos personagens Theodor Busbeck e Lenz Buchmann,

ambos médicos, protagonistas do terceiro e quarto romance da série,

respectivamente); e a tensão estabelecida no cerne das instituições políticas por

conta de uma crise de autoridade (ou uma crise dos fundamentos da autoridade,

uma vez que na modernidade já não contamos com algum plano eterno e imutável

da realidade onde essa autoridade possa se fundamentar).

As quatro narrativas que compõem O Reino possuem ainda, como um

elemento central comum, a guerra. Há um conflito armado que está ou em

desenvolvimento, ou em vias de acontecer, ou recém terminado em cada um dos

romances. Dá-se a indicação de que se trata da mesma guerra que atravessa cada

um dos quatro livros, uma vez que os enredos então sutilmente interligados por meio

de personagens e/ou elementos que fazem breves aparições (pequenas “pontas”,

por assim dizer) de um livro para outro7.

7 Por exemplo, o protagonista e personagem-título de A máquina de Joseph Walser aparece

momentaneamente em Aprender a rezar na era da técnica: é um paciente que causa tumulto no hospital onde Lenz Buchmann (por sua vez protagonista de Aprender a rezar) trabalha. Joseph Walser tem o dedo indicador direito amputado em decorrência de um acidente de trabalho – acidente que marcará sua trajetória de forma definitiva – e o médico Lenz Buchmann o repreende friamente pelo seu descontrole emocional, desdenhando-o em seguida: “Que importância tem um dedo? Um

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A guerra é, desse modo, um eixo temático que atravessa os quatro romances

e confere a eles uma certa unidade. Ao tratar das relações humanas no seu

momento mais crítico – a guerra – a tetralogia O Reino expõe e questiona os

fundamentos do estar-junto humano, da existência humana em comunidade,

apontando para a insustentabilidade de um certo conjunto de valores e de uma certa

concepção de mundo sobre os quais essa convivência humana se baseou até então

na sociedade ocidental. Nessa linha, O Reino se apropria das experiências

históricas talvez mais impactantes do século XX para a civilização ocidental: a

ascensão dos regimes totalitários, a implantação de campos de concentração e de

extermínio, o Holocausto levado a cabo pelo regime nazista. Esses dados históricos

são abordados não de forma documental e nem realista, mas sim tomados como

componentes de um conhecimento de mundo geral, como elementos da experiência

humana ocidental contemporânea que endossam, portanto, o imaginário coletivo. A

partir desses dados, que aparecem literariamente transfigurados na forma de

(chamemos assim por enquanto) alegorias, a obra de Gonçalo Tavares discute a

questão mais geral das relações humanas, sem, contudo, lhe conferir um tratamento

“universal” ou “universalista”, mas ancorando-a na materialidade das relações.

Ao mesmo tempo, no entanto, o discurso literário permite que se transcenda a

particularidade das situações históricas reais para se tratar da condição humana de

um modo mais abrangente. Concreta e formalmente, como se dá a apropriação e a

transfiguração literária desses fatos históricos pelo discurso literário? Em Jerusalém,

romance que me propus analisar neste trabalho, isso se dá: 1) pela referência ao

Holocausto presente no título; 2) pela figuração do campo de concentração nos

excertos de Europa 02, obra de ficção consultada pelo protagonista Theodor

Busbeck em meio à sua investigação a respeito da história do Horror; 3) pelas

referências ao Horror, termo utilizado pela historiografia para se falar do Holocausto

perpetrado pelo governo nazista; 4) pela inserção de trechos de um ensaio de

Hannah Arendt (“A imagem do inferno”) que trata sobre as “fábricas de morte” do

regime nazista e sobre o papel da cientificidade (ou pseudo-cientificidade) para a

legitimação do discurso nazista e para a instalação do terror. A análise de cada um

desses recursos é o que vou procurar fazer nos capítulos seguintes.

cobarde, pensou.” (TAVARES, Gonçalo M. Aprender a rezar na era da técnica: posição no mundo de Lenz Buchmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 50.)

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1.1 SOBRE O ENREDO

Considero importante retomar brevemente o enredo do romance para que se

possa discutir a presença do Holocausto em Jerusalém. Creio que essa retomada se

faz necessária para melhor localizarmos as questões que pretendo destacar no

âmbito formal e temático, especialmente tendo em vista que se trata de um romance

recentemente publicado e de um autor cuja obra ainda está em processo de

acolhimento por parte dos estudos acadêmicos.

O médico Theodor Busbeck, protagonista do romance, é um renomado

psiquiatra e investigador que se interessa pela presença e recorrência do horror (o

massacre aparentemente imotivado de um povo mais fraco por um povo mais forte8

– não o confronto por defesa e nem visando a conquista ou a expansão) na história

da humanidade. Busbeck pretende desenvolver uma pesquisa que identifique a

“curva do horror na história” (se está aumentando, diminuindo ou se ele se repete

em ciclos, criando um quadro estável) e que permita estabelecer uma fórmula que

possibilite calcular e prever os acontecimentos futuros.

Theodor Busbeck casa-se com Mylia, uma paciente sua consideravelmente

mais jovem que sofre de esquizofrenia (segundo ela própria diagnostica) e que diz

que pode ver a alma. Não sabendo lidar com a doença da mulher, Busbeck interna-a

no hospital psiquiátrico Georg Rosenberg, aos cuidados do médico-diretor Gomperz.

O hospital segue um regime de gestão e vigilância em algum nível concentracionário

e o diretor Gomperz procura acompanhar até mesmo os pensamentos dos internos

(uma das perguntas mais frequentes e temidas do dr. Gomperz aos doentes é “no

que estás a pensar, meu caro?”).

No hospital, Mylia conhece Ernst Spengler, outro interno, que se torna o seu,

por assim dizer, namorado e com quem ela tem um filho, Kaas. Ao saber do

incidente, Busbeck se divorcia da mulher, não sem antes cuidar para que ela seja,

de alguma forma, punida: exige que fique isolada do convívio dos demais por um

tempo e, depois, assume a paternidade do filho e a guarda dele, tirando-o do

convívio e do contato com a mãe. Mylia é então, não se sabe se por determinação

8 Diz Theodor Busbeck, ao apresentar o resultado da sua pesquisa de longos anos: “(...) ‘não me

interessou o confronto de duas forças, por mais desiguais que fossem, interessou-me apenas a Força quando se defronta com a fraqueza’; definindo Busbeck a Força como ‘matéria com energia para pôr em perigo outra matéria’ e a fraqueza como ‘matéria com energia vazia’, ou seja: ‘sem possibilidades de colocar em situação de perigo uma matéria próxima’.” TAVARES, G. M. Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 191.

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do ex-marido ou da própria direção do hospital, esterilizada, e a operação deixa

como sequela uma doença (algo no seu interior que “se desenvolve de uma maneira

errada”) cujo prognóstico é matá-la, a não ser que haja a intervenção de um milagre,

“um acontecimento espiritual e não terapêutico”9.

O filho de Mylia e Ernst, Kaas Busbeck (que recebe o sobrenome do pai

adotivo), possui um defeito físico nas pernas e tem dificuldades na articulação da

fala. Theodor o cria como se fosse seu filho e como se assumir este fardo (o cuidado

de uma criança deficiente) fosse melhor do que assumir a sua vergonha (a traição

da esposa).

O enredo apresenta, de forma não linear, diversos planos temporais, expondo

fases diferentes do relacionamento de Theodor e Mylia. O plano temporal mais

avançado, que é aquele com que o romance se abre e o que predomina na

narrativa, alterna-se entre os movimentos de Theodor e Mylia, então já separados.

Theodor sai à noite em busca de sexo pago, deixando o filho Kaas sozinho, e

encontra-se com a prostituta Hanna, mulher de olhar inquietante, olhar “em que

coincidiam a perversão ilimitada e a inteligência racional”, um “olhar de cientista”, “de

quem está a experimentar, de quem está de fora a ver o que sucede às coisas”10, e

que possui uns modos eficazes, um certo jeito de cirurgiã, na observação de

Theodor. Hanna é, por assim dizer, a noiva de Hinnerk Obst, um ex-combatente da

guerra (a qual, neste romance, é apenas vagamente referida) que sempre carrega

consigo uma pistola escondida debaixo da camisa. Hinnerk é um sujeito de

aparência sinistra, cara de assassino, de quem as crianças zombam e ao mesmo

tempo têm medo. Hinnerk carrega também uma constante sensação de medo, um

medo que, “sendo algo que não saía, era já como um dado físico concreto: como um

nariz mais ou menos torto, como um olho cego, como alguém que coxeia”11. É com

essa figura sombria e assustadora, com esse Hinnerk que sente despertar em si um

apetite e uma violência inéditos, que o fazem sentir que “seria capaz de comer carne

humana”12, é com este sujeito que o rapaz Kaas, então com 12 anos de idade, vai se

9 TAVARES, G. M. Op. cit., p. 181.

10

Idem, p. 26. 11

Idem, p. 59. 12

“Mas o que o excitava, agora, no momento em que curvado cheirava o punho da arma, era o seu

próprio cheiro, o cheiro das suas mãos. Para as sensações que conseguia perceber, algo, para ele,

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deparar nesta mesma noite. Ressentido por ter sido deixado só (e ao mesmo tempo

não imune de agir, ele próprio, por egoísmo e por maldade), Kaas sai em busca de

seu pai adotivo, Theodor Busbeck, sem ter a aptidão física e nem a experiência

necessária para evitar perigos do tipo que Hinnerk representa.

Do outro lado da cidade, nesta mesma madrugada, Mylia sente uma dor forte

e constante no ventre, sintoma da doença que os médicos dizem que irá matá-la.

Ela sai em busca de uma igreja (“Estar doente era uma forma de exercitar a

resistência à dor ou a apetência para se aproximar de um deus qualquer”13), mas de

madrugada as igrejas estão fechadas. De um telefone público ela chama Ernst, seu

antigo namorado e companheiro no hospício Georg Rosenberg, que estava prestes

a cometer suicídio, e ambos acabam se encontrando. Nesse momento os demais

fios narrativos dessa noite se cruzam num desfecho perturbador e surpreendente.

1.2 SOBRE O MAL

A respeito da série O Reino (também conhecida como a série dos Livros

Pretos14), da qual Jerusalém faz parte, uma das considerações mais frequentes tem

sido a de que a obra discute a questão do Mal – sua presença nas ações humanas,

individuais ou coletivas. “O mal surge em qualquer momento, em qualquer lugar, em

qualquer pessoa”, afirma o próprio autor, em entrevista concedida ao jornal O

Estado de S. Paulo, em 200615. Nesse mesmo sentido, do mal como tema central de

O Reino, se pronuncia Maria Margarida de Araújo e Mendes em sua dissertação de

Mestrado sobre a tetralogia:

ganhara força desde alguns anos: Hinnerk seria capaz de comer carne humana.” TAVARES, Op. cit., p. 89. 13

Idem, p. 7. 14

É frequente o comentário de que a obra de Gonçalo Tavares se funda em duas séries, O Bairro, uma espécie de homenagem a escritores que constituem referências importantes ao autor – inclui os livros O senhor Brecht e O senhor Valéry – e na qual se privilegia o tom lúdico e onírico; e O Reino, cujos livros tratam sobre a maldade. Ver, nesse sentido, a seguinte matéria e entrevista com Tavares: VICTOR, Fabio. Português Gonçalo M. Tavares fala sobre maldade, Saramago e o Brasil. Folha de S. Paulo. São Paulo, 17 jul. 2010, Caderno Ilustrada. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ ilustrada/767901-portugues-goncalo-m-tavares-fala-sobre-maldade-saramago-e-o-brasil.shtml. Acesso: nov. 2013. 15

Apud FILHO, Antonio Gonçalves. Jerusalém e a presença do mal. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 17 de setembro de 2006, Caderno Cultura, p. D11.

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Encaramos O Reino como o retrato de uma sociedade doente onde impera o mal. O mal assume formas várias: a guerra, o ódio, a vingança, a dor, a doença física, a doença mental, a violação de direitos, a solidão, o sofrimento, a raiva. O mal está em todas as pessoas e em todo o lado se respira o mal. E a humanidade ressente-se do mal. Para acabar com o mal as respostas multiplicam-se no interior das personagens e no que elas produzem de palpável para o reduzir. Mas a sociedade enferma sobretudo de indiferença e passividade.

16

Para além (ou aquém) das considerações metafísicas acerca do tema,

acredito ser possível abordar o mal a partir do aspecto da sua materialidade

histórica, isto é, como acontecimento concreto, social e historicamente falando, que

se caracteriza pela profunda crise das estruturas – bem como dos valores que as

fundamentam, ao mesmo tempo em que são por elas constituídos – que possibilitam

a convivência humana, o estar-junto. Como consequência desse abalo, tem-se que

a existência humana, tanto individual quanto coletiva, vê-se ameaçada. A

consciência histórica17 dessa realidade do mal transparece na literatura de Gonçalo

Tavares, e de forma bastante aguda na tetralogia O Reino. Referências ao

Holocausto, por exemplo, podem ser expressamente localizadas, a começar pelo

título do romance que aqui me propus abordar: Jerusalém. Ao lado disso, encontra-

se a figuração do campo de concentração no capítulo XV, “Europa 02”, bem como a

citação de um trecho do salmo 137 (“Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que seque

a minha mão direita” – único momento, aliás, em que se faz menção direta ao título

do livro). Este salmo expressa o lamento dos judeus por ocasião do exílio forçado

para a Babilônia e o título do romance evoca o Holocausto apenas quando lido em

associação a ele. A passagem em que o salmo é citado, conforme veremos adiante,

remete não apenas ao Holocausto, mas a toda situação de perseguição e

tratamento aviltante que um grupo de pessoas tenha sofrido.

Outro dado que pode ser incorporado nessa associação do título com o

evento histórico do Holocausto, embora talvez não de maneira tão direta, é o fato de

16

MARQUES, Maria Margarida de Araújo e. A (des)aprendizagem do humano em O Reino de Gonçalo M. Tavares. Coimbra, 2010, 118 f. Dissertação, p. 41. 17

“Mais que estilo, Gonçalo M. Tavares tem consciência histórica. Não faz de Jerusalém apenas uma parábola bíblica sobre o pecado de se esquecer a própria história (o título do livro faz menção ao salmo 137, “Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que se resseque a minha mão direita”). Transforma a alegoria em uma rapsódia em que cada um dos cantos é representado por dramas individuais ligados pela instituição do hospício, representação metafórica da cidade santa a que se refere o salmo.” (Grifo nosso) FILHO, Antonio Gonçalves. Jerusalém e a presença do mal. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 17 de setembro de 2006, Caderno Cultura, p. D11.

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16

que tanto a cidade quanto o nome Jerusalém já foram intimamente associados aos

crimes do Holocausto por ocasião da análise feita por Hannah Arendt do julgamento

de Adolf Eichmann, que a filósofa publicou sob o título de Eichmann em Jerusalém.

(Adolf Eichmann, após escapar das condenações promovidas nos julgamentos de

Nuremberg, foi viver secretamente na Argentina. Lá foi sequestrado por agentes do

Estado de Israel, em 1960, e levado para Jerusalém, onde foi julgado por crimes

contra o povo judeu e contra a humanidade.)

A referência a esse acontecimento específico, o Holocausto, foi comentada

por Gonçalo Tavares, na entrevista a’O Estado de S. Paulo acima citada, nos

seguintes termos: “A geração que hoje tem 20 anos tem uma relação distante com a

tragédia [do Holocausto]. Acredito que nossa responsabilidade, como jornalistas e

escritores, é fazer com que as pessoas não esqueçam dessa tragédia.”18

A questão da maldade ou do mal como tema de O Reino, e

consequentemente de Jerusalém, pode ser vista, portanto, como um alerta para a

potencialidade de violência e agressão (de insustentabilidade das relações, portanto)

que jaz em qualquer ser humano e em qualquer circunstância histórica. É nesse

sentido que Jerusalém não é um romance que tematiza exclusiva e nem

referencialmente o Holocausto, mas que o tem como dado inolvidável da experiência

humana que se deseja refletir na literatura.

Acerca da ideia do mal como tema ou elemento fundamental em Jerusalém,

gostaria de tecer algumas considerações a partir daquilo que o próprio Gonçalo

Tavares comenta. Em entrevista concedida ao caderno “Ilustrada” do jornal Folha de

S. Paulo19, em 2010, o autor afirma que seu objetivo na tetralogia O Reino foi

estudar o comportamento do ser humano em situações extremas ou limite. Essa

ideia ou intuito foi motivada, segundo Tavares, pelas condições históricas e sociais

que marcam o século XX e XXI. O autor considera que acontecimentos do porte do

Holocausto nazista constituem uma marca indelével na história da humanidade, a

qual não pode ser olvidada nas manifestações artísticas e culturais que surgem

desde então. Diz Tavares:

18

Idem, ibidem.

19 VICTOR, Fabio. Português Gonçalo M. Tavares fala sobre maldade, Saramago e o Brasil. Folha de S. Paulo. São Paulo, 17 jul. 2010, Caderno Ilustrada. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ ilustrada/767901-portugues-goncalo-m-tavares-fala-sobre-maldade-saramago-e-o-brasil.shtml. Acesso: nov. 2013.

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17

Acho que precisamente o que marca o século 20 – a Segunda Guerra, o Holocausto – são coisas muito fortes, que têm uma dupla marca, a da racionalidade e a da inteligência. Os campos de extermínio foram claramente consequência de atos da inteligência e da racionalidade; havia arquitetos, químicos envolvidos, todas as grandes ciências trabalharam em comum para construir os campos de extermínio. Isso é tão marcante em relação ao século 20 e é tão marcante que a inteligência humana seja aproveitada para essa brutalidade extrema que me parece que depois disso não podemos escrever livros ingênuos e inocentes.

20

O que o autor está dizendo aqui parece vir ao encontro de algumas reflexões

da filósofa política Hannah Arendt a respeito do ineditismo das formas de violência

perpetradas pelo governo nazista. Em seu livro Eichmann em Jerusalém, publicado

pela primeira vez em 1963, Arendt cunha o famoso e polêmico conceito de

banalidade do mal (expressão que inclusive compõe o subtítulo do referido livro:

“Um relato sobre a banalidade do mal”). Tal conceito se refere àquilo que a filósofa

alemã considera uma atitude moral especificamente forjada pelas condições

particulares da sociedade nazista: uma atitude que resulta da combinação da

capacidade destrutiva com a burocratização extrema da vida pública. É através do

conceito de banalidade do mal que Hannah Arendt procura entender como foi

possível levar a cabo a monumentalidade (qualitativa e quantitativa) dos crimes

nazistas, isto é, como foi possível a destruição sistemática, eficaz e total de milhões

de pessoas. Para tanto, Arendt analisa um caso particular do nazismo, a atuação de

Adolf Eichmann, burocrata do Partido Nacional Socialista, empregado do Escritório

Central da Segurança do Reich (o Reichssicherheitshauptamt, RSHA), lotado no

Bureau IV como chefe da seção B-4, cuja responsabilidade era organizar o

transporte de todos os judeus da Europa até os campos de concentração e

extermínio. Eichmann era o responsável mais imediato pela gestão da logística

daquilo que se denominou Solução Final, a política nazista de extermínio dos judeus

europeus.

O que Hannah Arendt faz em seu livro tão polêmico quanto inovador, escrito a

partir de suas considerações sobre o julgamento de Adolf Eichmann, que Arendt

acompanhou em 1961 como correspondente da revista The New Yorker, é

apresentar Eichmann não como um monstro, um ser demoníaco, mas antes de tudo

como um carreirista medíocre para quem o nazismo significou a oportunidade de

“ser alguém”. Arendt descreve Eichmann como alguém incapaz de pensar e de

julgar por conta própria, porque incapaz de pensar do ponto de vista de outra

20

Idem, ibidem.

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18

pessoa. A incapacidade de pensar do ponto de vista de outra pessoa compromete a

capacidade de reflexão e de julgamento porque obscurece uma parte da realidade –

e uma parte fundamental, dado que a pluralidade e a constituição dialógica do

pensamento são dados inalienáveis da condição humana. Arendt relata que, tanto

no interrogatório policial, quanto no julgamento que o sucedeu, Eichmann

frequentemente se expressava por clichês, compondo o que os seus juízes disseram

ser uma “conversa vazia”. Os juízes acreditaram, entretanto, que esse

comportamento era fingido e calculado, e que Eichmann, com a sua “conversa

vazia”, estava procurando encobrir suas intenções e pensamentos mais genuínos,

hediondos sim, mas não vazios. Arendt sugere que aquilo que os juízes esperavam

(e gostariam) era que Eichmann manifestasse ter tido não apenas consciência, mas

autonomia e poder de deliberação em relação aos atos que cometera. Arendt,

porém, apresenta uma outra versão do acusado: “Quanto mais se ouvia Eichmann,

mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada

com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra

pessoa.”21 Ou seja, a consciência e o poder de deliberação, tal como os juízes

esperavam e entendiam que Eichmann deveria ter, eram-lhe impossíveis porque ele

tinha radicalmente aberto mão do seu poder de reflexão em prol do seu empenho

em obter progressos pessoais, empenho que ele realizou através do seguimento à

risca das leis do 3º Reich. Tal coisa, no entanto, não anula ou exclui a punibilidade

de seus crimes, pelo contrário. Pois, como diz Arendt, ao formular aquilo que, no seu

entender, os juízes deveriam ter dito (mas não disseram) a Eichmann em Jerusalém:

“culpa e inocência diante da lei são de natureza objetiva, e mesmo que 8 milhões de

alemães tivessem feito o que você fez, isso não seria desculpa para você.”22

A aura de sistemática hipocrisia que constituía a atmosfera geral do 3° Reich

é que teria contribuído para criar essa incapacidade de refletir, em Eichmann e em

tantos outros. Pensando e se expressando por clichês, Eichmann definia-se como

um respeitador das leis acima de tudo, o que na prática significou, para ele, a

adesão irrestrita a Hitler, uma vez que, como o oficial mesmo explicou em

julgamento, “as palavras do Führer tinham força de lei”. A incapacidade de uma

reflexão ética pessoal foi, no entanto, voluntariamente adquirida por Eichmann,

21

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 62. 22

Idem, p. 301.

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19

quando ele se recusou a pensar acerca dos acontecimentos que então se

desencadeavam e optou por privilegiar o cumprimento da lei acima de qualquer

outra coisa – tendo em vista o seu ganho pessoal.

Essa postura de Eichmann – incapacidade de reflexão e obediência cega à lei

– foi não apenas privilegiada mas, em certo sentido, imposta pelo sistema político e

jurídico do totalitarismo nazista. Quer dizer, o totalitarismo foi responsável por

transformar uma atitude moral, a da recusa (e consequente incapacidade) à reflexão

e a colocar-se no lugar de outro em prol do cumprimento da lei, em um padrão de

conduta, e no padrão de conduta por excelência do regime nazista. É esse

fenômeno que Arendt chama de banalidade do mal. O que ela quer dizer é que o

mal, nessa situação, não resulta de uma determinação grandiosa e consciente, não

é algo extra-humano ou sobre-humano, mas está incrustrado e latente nas formas

com que organizamos a sociedade. E, no contexto do totalitarismo (e, antes disso,

no contexto mais geral da modernidade, no qual surgem as condições que

possibilitam o totalitarismo), o mal está muito conectado com a predominância da

técnica – que, no âmbito da atividade política, assume a forma da burocracia – sobre

outras faculdades humanas, como o pensar, o julgar e o agir. A respeito do indivíduo

Adolf Eichmann, diz Arendt, já no final de suas considerações:

Ele não era burro. Foi pura irreflexão – algo de maneira nenhuma idêntico à burrice – que o predispôs a se tornar um dos grandes criminosos desta época. E se isso é “banal” e até engraçado, se nem com a maior boa vontade do mundo se pode extrair qualquer profundidade diabólica ou demoníaca de Eichmann, isso está longe de se chamar lugar-comum. (...) Essa distância da realidade e esse desapego podem gerar mais devastação do que todos os maus instintos juntos – talvez inerentes ao homem; essa é, de fato, a lição que se pode aprender com o julgamento de Jerusalém. Mas foi uma lição, não uma explicação do fenômeno, nem uma teoria sobre

ele.23

Acredito que pode se estabelecer um paralelo entre o fenômeno descrito por

Arendt, o da banalidade do mal, e o mal que Tavares diz abordar nos romances da

tetralogia O Reino. Pois nessas obras o que se tematiza é a potencialidade universal

para o mal. Universal na medida em que se encontra presente não apenas em todo

indivíduo, mas também nas estruturas sociais que criamos, quando tais estruturas,

23

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Tradução: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 311.

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20

ao invés de refrear esse potencial, favorece-o. Na entrevista mencionada, Tavares

afirma o seguinte:

O que talvez tenha este "Reino" a dizer um pouco é que nenhum de nós está fora do barco da maldade, da potencial maldade. O ser humano é potencialmente uma máquina da maldade. Mas é também uma máquina da bondade. Temos quase dois motores em funcionamento, o de fazer atos maldosos e um para fazer atos bondosos. E o que eu gostaria é que esses livros servissem para que os leitores percebessem melhor o funcionamento dos seus motores, soubessem como é que se pode reduzir a velocidade do motor da maldade que nós temos, como é que se pode travá-lo, como é que se pode desviar a aplicação da sua força.

24

No caso de Jerusalém, especificamente, o tratamento dessa questão da

potência para o mal está embalado pelos acontecimentos históricos vinculados ao

Holocausto. O tema da violência, da destruição do outro, é aqui abordado

principalmente através da criação de metáforas e do estabelecimento de paralelos

entre a realidade ficcional e histórica. Nesse sentido, o livro de ficção Europa 02 que

Theodor Busbeck lê e que discorre sobre as práticas de um campo de concentração

fictício, ao lado do Hospital Georg Rosenberg25, instituição psiquiátrica onde Mylia é

internada sob um regime concentracionário (o diretor do hospital, doutor Gomperz,

vigia até mesmo os pensamentos dos doentes), introduzem na narrativa a realidade

dos campos de concentração, levando ao estabelecimento de um paralelo com um

dado pertencente à realidade empírica, a Segunda Guerra Mundial (mas também

encontrado em outros momentos da História, como o regime stalinista com seus

gulags). Além disso, a aproximação entre as trajetórias de Busbeck, cientista que

24

VICTOR, F. Op. cit. 25

À propósito do nome da instituição psiquiátrica, a ressonância aqui do nome de Alfred Rosenberg, autor de O mito do século XX (livro que propõe uma “teoria das raças”) e principal ideólogo do nacional-socialismo alemão, disponibiliza, acredito, outra referência histórica ao nazismo. Outra ocorrência histórica importante do nome Rosenberg está presente no caso de Julius e Ethel Rosenberg, casal de judeus norte-americanos ligados ao Partido Comunista dos EUA que, em 1953, foram executados pelo governo americano após serem julgados e condenados por espionagem (as acusações eram em relação à transmissão de informações sobre a bomba atômica para a então União Soviética). Foi a primeira execução de civis por espionagem na história dos EUA e o caso, na época, atraiu grande atenção da mídia e provocou significativa agitação mundial. Diversas personalidades (dentre elas Sartre, Brecht, Albert Einstein, Pablo Picasso, Diego Riviera, Frida Kahlo e o Papa Pio XII) se manifestaram contra a execução e intercederam em favor do casal, mas a justiça americana foi intransigente. Penso que tanto a histeria desse momento de perseguições políticas (o Macartismo), do qual o caso dos Rosenbergs se tornou emblemático, quanto a loucura do ideário nacional-socialista, representado pela figura de Alfred Rosenberg, podem encontrar, em Jerusalém, guarida simbólica no nome e no espaço do hospital psiquiátrico Georg Rosenberg.

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estuda o horror, e Hinnerk, ex-combatente que experimentou o horror (ou algo

próximo a ele) na guerra, abre espaço para pensar numa metaforização do horror

histórico operada no plano dos percursos individuais. A violência que, no contexto

dos massacres históricos, ocorre numa escala macroestrutural, estaria representada

aqui pela violência interindividual, em escala microestrutural, cometida

principalmente pelos personagens Hinnerk e Busbeck (mas também por outros

personagens, inclusive por aqueles que parecem ser os mais vulneráveis, como

Kaas, criança com defeitos físicos, mas que também manifesta uma sede de

violência notável, ao cometer, por divertimento, pequenos atos agressivos contra a

avó, e um individualismo considerável, quando se ressente pelo pai o ter deixado

só). Ambos os personagens, Hinnerk e Busbeck, sinalizam para a relação

inversamente proporcional existente entre a capacidade de estabelecer consensos –

o que, segundo Hannah Arendt, é a origem do poder legítimo – e o exercício da

violência26.

No capítulo seguinte pretendo analisar como a figuração do campo de

concentração em Europa 02, livro de ficção examinado por Busbeck, bem como a

representação do hospital psiquiátrico podem ser postas em diálogo com a realidade

histórica dos campos de concentração nazistas.

26

Ver ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução: André Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

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22

2. HOSPITAL PSIQUIÁTRICO E CAMPO DE CONCENTRAÇÃO

Pode-se pensar, em Jerusalém, num possível paralelo, formalmente marcado,

entre a representação do hospício e a representação do campo de concentração. O

capítulo IX, “Os loucos”, e o capítulo XV, “Europa 02”, possuem inclusive uma

estrutura narrativa semelhante. Ambos são compostos por fragmentos de

testemunhos. O capítulo “Os loucos” apresenta uma sucessão de diferentes vozes

com marcas discursivas que denotam uma racionalidade que se distancia da

racionalidade convencional. Essas vozes falam em primeira pessoa, se apresentam

e narram algo (são trechos bem curtos) sobre a sua estada no hospício Georg

Rosenberg. O capítulo “Europa 02”, por sua vez, apresenta descrições de rotinas de

um espaço em que pessoas estão submetidas a um regime concentracionário, isto

é, de controle total. “Europa 02” é o nome da obra de ficção que o médico e

investigador Busbeck folheia em meio à sua pesquisa sobre a história do horror. São

apresentados nove excertos, trechos que fazem parte dessa obra, cada um

contendo os seguintes títulos dispostos verticalmente na margem esquerda da

página: I) Excluídos; II) Registo; III) Lei; IV) Exame Médico; V) Instrumentos; VI)

Exame Médico; VII) Deslocamentos; VIII) Doenças; IX) Tortura. A obra em questão

foi posta à disposição de Busbeck pelo bibliotecário, que por algum motivo, acreditou

que aquilo poderia interessá-lo. Ou seja, por mais que não se explicite, aquilo que

está descrito nesse livro tem alguma ligação com o horror que Busbeck pesquisa e

as práticas aí descritas se aproximam das práticas de que temos relato terem sido

feitas nos campos de concentração nazistas.

O interessante é que Busbeck parece relutante em examinar essa obra

(“Começou a lê-lo numa página ao acaso e assim continuou: folheando, saltando

páginas, voltando atrás.”27) e, após examiná-la, fica irritado (“Theodor Busbeck

fechou o livro Europa 02, irritado. Afastou-o para o fundo da mesa e puxou para si os

documentos que previra consultar naquela manhã”28). Essa irritação aparentemente

se deve ao fato de Busbeck julgar que a obra de ficção é pouco útil à sua pesquisa,

tanto que ele logo se volta à análise de documentos, isto é, de fatos. Contudo, a

semelhança estrutural entre os trechos de “Europa 02” e o capítulo dos loucos

27

TAVARES, G. M. Jerusalém, p. 115. 28

Idem, p. 126.

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23

estabelece uma ligação entre o espaço do hospital psiquiátrico e o espaço onde se

praticam atos de horror e de controle total, os campos de concentração. A atitude de

Busbeck leva a entender que essa é uma ligação que ele prefere ignorar, talvez por

conta da sua própria história pessoal, isto é, por ter internado a mulher em um

hospício.

A relação entre esses dois espaços pode ser ainda indicada pela quebra de

ritmo e de tom que esses dois capítulos, “Os loucos” e “Europa 02”, produzem no

conjunto da narrativa. Os dois criam momentos de desestabilização porque passam

a falar de acontecimentos sem relação direta com a trama (quais sejam: a história

pessoal de cada louco, paciente do Georg Rosenberg, contada de forma “irracional”

por ele mesmo e as práticas de horror em um espaço fictício, cuja crueldade não

parece ser passível de ser comportada pela realidade29). Os dois espaços se

relacionam, por fim, porque funcionam segundo uma lógica que se choca com a

convencionalidade. Seja a convencionalidade da estrutura narrativa, no nível formal

do romance, seja a das relações sociais aí retratadas, no nível temático.

Desejo refletir agora, mais detidamente, sobre a questão do testemunho,

tema presente nesses dois momentos de Jerusalém, uma vez que é concedida a

enunciação em primeira pessoa tanto aos internos do Georg Rosenberg quanto ao

narrador de Europa 02.

2.1 O TESTEMUNHO EM EUROPA 02

Em O que resta de Auschwitz, Giorgio Agamben afirma que pretende

discorrer sobre o testemunho dos sobreviventes do genocídio promovido pelo

regime nazista e, especialmente, sobre a lacuna que é parte essencial desse

testemunho. Essa lacuna provém do fato de que os sobreviventes de Auschwitz

(Agamben usa o termo Auschwitz para se referir ao Holocausto em geral) davam

testemunho de algo que não podia ser testemunhado. Pois embora os fatos por eles

vivenciados lhes parecessem como a “única coisa verdadeira”, eram também

29

A respeito da dificuldade que o mundo dito normal possui para entender a extensão e a realidade do horror praticado pelos regimes totalitários, Hannah Arendt afirma: “O motivo pelo qual os regimes totalitários podem ir tão longe na realização de um mundo invertido e fictício é que o mundo exterior não-totalitário também só acredita naquilo que quer e foge à realidade ante a verdadeira loucura (...)”. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 487.

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24

inimagináveis, irredutíveis “aos elementos reais que a constituem”30. “Trata-se”, diz

ele, “de fatos tão reais que, comparativamente, nada é mais verdadeiro; uma

realidade que excede necessariamente os seus elementos factuais: é esta a aporia

de Auschwitz.”31 O que Agamben parece estar querendo dizer é que não existia (e

talvez ainda não exista) uma base imagética (formas, conceitos e categorias) na

nossa tradição cultural e em nossa experiência ocidental para explicar o que foi o

Holocausto. Daí a necessária lacuna em todos os testemunhos acerca desse

evento.

Pensando nessas questões, nos limites do testemunho – e especialmente na

situação do Holocausto, em que o ineditismo e as dimensões do acontecimento

parecem ultrapassar as possibilidades de transmissão da experiência –, é

interessante refletir sobre o significado das interpolações feitas no capítulo XV de

Jerusalém, o capítulo “Europa 02”. Trata-se, como mencionado, de uma obra de

ficção, a única do gênero dentre todo o material que Busbeck examina na sua

pesquisa sobre o horror. Por qual razão o testemunho em primeira pessoa acerca do

horror é enunciado justamente numa obra (fictícia) de ficção? Em um romance

dentro do romance, em que o distanciamento ficcional se vê explicitado, na estrutura

narrativa mise-en-abîme? Talvez porque a elaboração ficcional sobre a experiência

do horror seja capaz de iluminar em alguns pontos aquela lacuna que Agamben diz

ser parte essencial do testemunho. Isto é, o texto ficcional, e o texto literário em

geral, converte experiências subjetivas e até certo ponto incomunicáveis em forma,

quer dizer, em algo que se pode mediar como unidade sígnica apreensível graças à

lógica da figuração e comunicação literárias. A experiência se torna realidade

objetiva, socialmente dada em processos de significação, e, portanto, partilhável. Ou

seja, a literatura comporta uma possibilidade exclusiva ou pelo menos muito própria,

qual seja, a possibilidade do compartilhamento, numa esfera plural e objetiva, de

experiências individuais e subjetivas. Isto é, a possibilidade de compartilhar, de se

expressar de forma objetiva dirigindo-se a uma coletividade, a apreensão individual

e subjetiva das experiências humanas. Daí uma possível (e insubstituível, eu diria)

contribuição da literatura para se pensar e se falar da “aporia de Auschwitz”. A

escolha de Tavares de problematizar tal questão com o recurso à narrativa mise-en-

30

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha, p. 20. 31

Idem, ibidem.

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25

abîme evidencia seu modo literário de comunicar, de posicionar-se em um debate

sobre a questão, sem recorrer à dicção lógico-argumentativa em sentido estrito. Ele

se utiliza, como escritor, de dimensões da linguagem justamente negligenciadas nos

debates sociais dominados pela dicção lógico-argumentativa, e também ajuda a

explicar, dessa maneira propriamente literária, processos de exclusão e silêncio de

quem se vê impossibilitado de manifestar-se.

No capítulo “Europa 02” de Jerusalém, temos a narração de procedimentos e

da rotina daquilo que parece ser um campo de concentração, embora não seja

explicitamente identificado como tal. Na verdade, há procedimentos que não

correspondem a nada que seja plenamente factível na realidade empírica. Quer

dizer, o espaço apresentado de Europa 02 não guarda uma verossimilhança

externa, mas evoca, pelas imagens e situações criadas, a realidade do campo de

concentração (e das situações de privação de liberdade e de tratamento desumano

em geral). O excerto (I), intitulado “Excluídos”, por exemplo, apresenta uma situação

que, tal como literalmente descrita, não pode ser associada a algo que se identifique

no mundo referencial como uma prática punitiva conhecida. Tal excerto relata:

Quem comete um erro é excluído; é fechado dentro de uma caixa. Quem está fora vê apenas a caixa. Mas quem está fechado, excluído, consegue ver cá para fora. Vê tudo, vê-nos a todos. (...) As caixas são tantas que ninguém lhes dá importância. Pode estar lá uma pessoa, até a que amas, mas nem olhas. Já não produzem efeito. Passas por elas centenas de vezes.

32

Através dessa imagem não verossímil, podemos ser levados a pensar, tendo

em vista o contexto e as demais referências contidas em Jerusalém, na realidade de

alguns dos mais radicalmente excluídos da história, aqueles a quem se negou, com

uma eficácia inédita, a inserção na comunidade política: os detentos dos campos de

concentração. Em É isto um homem?, o escritor italiano Primo Levi, ex-prisioneiro e

sobrevivente de um campo de concentração em Auschwitz-Birkenau (o campo de

Monowitz, construído para fornecer trabalho escravo para a fábrica de borracha

sintética Buna-Werke), descreve o estado de absoluta privação dos detentos nos

campos, espaço onde o objetivo do regime totalitário – objetivo de controle absoluto

sobre a vida das pessoas e de supressão total da sua capacidade de ação política –

esteve mais perto de se concretizar completa e absolutamente. Diz Levi:

32

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 116.

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26

Imagine-se, agora, um homem privado não apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte, sem qualquer sentimento de afinidade humana, na melhor das hipóteses considerando puros critérios de conveniência. Ficará claro, então, o duplo significado da expressão “Campo de extermínio”, bem como o que desejo expressar quando digo: chegar no fundo.”

33

A transformação de seres humanos em seres de “pura carência”, seres a

quem falta tudo (“não-seres”, poderíamos pensar) é o intuito final do sistema

totalitário. O meio para isso é a instalação do horror, o conjunto de procedimentos –

tais como aprisionamento, tortura, trabalhos forçados e extermínio – através dos

quais se exclui o ser humano da comunidade política e se destrói a sua dignidade,

cuja efetivação depende do reconhecimento dessa comunidade.

Dando seguimento à análise dos excertos de “Europa 02”, vejamos como, no

item (III), “Lei”, há uma referência à predominância da lei em detrimento da razão ou

da moral. O excerto diz:

Podes cumprir as regras com exactidão mas, num determinado momento, eles apresentam um pequeno documento-lei, e então percebes: vais ser morto. O que fazem é aleatório, mas nunca ilegal. Primeiro mostram a lei, o documento que determina a acção. Ninguém resiste. As pessoas aceitam a lei. Se não, seria pior.

34

Essa referência à predominância da lei parece estar em consonância com o

conjunto de referências ao Holocausto nazista, tendo em vista que a justificativa

empregada por muitos dos executores desses crimes (os burocratas e gestores dos

campos de concentração) foi a de que estavam simplesmente cumprindo ordens e

leis. Eichmann inclusive, talvez o burocrata nazista mais conhecido e cuja história se

tornou emblemática, durante o julgamento a que foi submetido em Jerusalém

afirmou, através de seu advogado Robert Servatius, que se sentia culpado perante

Deus, mas não frente à lei35. Num regime totalitário, cujo fundamento é a repressão

33

LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução: Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 25. 34

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 118.

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total da espontaneidade da ação através da burocratização extrema da vida pública,

a lei é o critério máximo que orienta as condutas. Obedecer à lei é tudo o que, em

última análise, se deve fazer, segundo a lógica do totalitarismo.

Os excertos (IV) (V) e (VI), respectivamente “Exame médico”, “Instrumentos”

e, novamente, “Exame médico”, apresentam uma rotina médica aparentemente

absurda, isto é, sem propósito, à qual o sujeito que testemunha (aquele que produz

o relato) e seus companheiros são submetidos. As cenas descritas são, novamente,

pouco verossímeis, quer dizer, evitam no leitor a ilusão representacional. Isto é, o

leitor interpreta essas cenas numa chave predominantemente “figurada”, a qual

parece evidenciar-se pela informação de que “Europa 02” é um livro de ficção. A

título de exemplificação, vejamos o que é dito neste excerto a respeito dos exames

médicos:

Os exames médicos são feitos em sítios públicos. Estás sentado. De repente, tocam-te no ombro, e dizem: Exame Médico. De imediato levantas-te, encostas-te à parede, e despes-te por completo. A cada Exame Médico marcam uma cruz nas costas da mão. Há pessoas que já fizeram dezenas. E todas as pessoas sabem que as doenças surgem com os exames médicos.

36

O contexto dessas cenas não é explicado, temos apenas a informação de que

estão contidas no livro, uma obra de ficção, que Theodor Busbeck lê. Mas talvez não

as associemos imediatamente a nenhuma realidade do mundo empírico porque a

falta de propósito ou utilidade desses exames a princípio contradiz os princípios de

racionalidade e pragmatismo segundo os quais acreditamos que o nosso mundo

está organizado. Essas cenas, entretanto, surgem em meio a uma pesquisa sobre a

história do horror, de modo que, apesar do tom pouco verossímil daquilo que é

descrito, pode-se ver aqui uma referência aos experimentos médicos a que eram

submetidos os detentos dos campos de concentração nazistas, experimentos de

cujos detalhes não tivemos totalmente notícia, uma vez que boa parte dos

documentos que relatavam esses detalhes foi destruída. O próprio tom de

inverossimilhança pode ser interpretado como uma tentativa de representar o horror

dessas experiências e o fato de que elas são muitas vezes irredutíveis ao relato. O

35

Apud AGAMBEN, G. Op. cit., p. 32. 36

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 119.

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livro “Europa 02” como um todo parece captar a realidade daquela lacuna que

Agamben afirma compor essencialmente os testemunhos (ou, rigorosamente, a

ausência de um autêntico testemunho) dos sobreviventes dos campos de

concentração.

A descrição desses exames médicos pode ser lida, ainda, como um elemento

de ligação com o espaço do hospital psiquiátrico Georg Rosenberg, onde os internos

também têm seus corpos invadidos e manipulados a contrapelo da sua vontade –

vide a operação “para fechar filhos” à qual Mylia é submetida sem ser sequer

informada e sem que ela estivesse em condições de autorizar tal intervenção.

A respeito da doença, tema que também se conecta com o tipo de controle

operado no Georg Rosenberg, o excerto (VIII), “Doenças”, traz as seguintes

formulações:

Perseguem as doenças estranhas. Perseguem os doentes estranhos. Quem tem uma doença estranha deixa de ser doente, entra na categoria do criminoso. Ter uma doença normal significa que se obedeceu e se foi exacto nas funções. Uma doença estranha revela uma falha: faltou-se à higiene ou à verdade.

37

A sobreposição entre as categorias de doente e criminoso é algo que subjaz à

política de tratamento do hospício Georg Rosenberg, conforme veremos no item a

seguir. O doutor Gomperz, médico-diretor do hospital, vê uma aproximação entre a

doença mental e o crime na medida em que enxerga, nas duas coisas, uma falha

moral, derivada, por sua vez, da incapacidade de agir em conformidade com o

mundo que se compartilha com os demais. O crime e a doença – a loucura pode ser

interpretada como essa “doença estranha” mencionada no excerto (VIII) – possuem

em comum a consequência do isolamento, isto é, da inaptidão do indivíduo para o

convívio. Um desdobramento dessa questão, que parece estar sugerido no trecho

acima citado, está em pensar o isolamento radical operado nos campos de

concentração a partir dessa mesma justificativa para o isolamento decorrente do

crime e da doença. Quer dizer, as pessoas retiradas da vida comum, da vida em

sociedade, e levadas para esses campos eram de certa forma vistas e tratadas

como criminosos ou doentes que, pela sua condição, estavam incapacitadas de

partilhar a existência coletiva da nação.

37

Idem, p. 123.

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29

Contudo, essa incapacitação não se devia a algo que tivessem feito, a alguma

falta que tivessem cometido. Em seu famoso relato, Primo Levi, ao comparar a

situação dos judeus com a dos eventuais trabalhadores alemães que por vezes

passavam um período como prisioneiros no campo, em punição a alguma falta por

eles cometida, diz: “Para nós [judeus], o Campo não é uma punição; para nós não

está previsto um prazo; o Campo é apenas o gênero de existência que nos foi

atribuído, sem limites de tempo, dentro da estrutura social alemã”38. Tal

consideração me parece captar muito bem a singularidade da situação dos detidos

no campo de concentração: diferentemente dos trabalhadores alemães, presos

“comuns”, os demais prisioneiros estão aí não para expiar uma falta, mas para

serem completamente controlados e esmagados pelo que são, não pelo que

fizeram.

Por fim, o excerto (IX), em que se fala sobre a tortura, introduz uma discussão

interessante sobre as condições singulares de atribuição de responsabilidade sob as

quais se encontravam os prisioneiros dos campos de concentração nazistas. Primo

Levi fala que no campo se cria algo inédito, uma situação refratária a qualquer

identificação de responsabilidade ética, situação que ele chama de “zona cinzenta”.

Ele afirma que se forma uma “‘longa cadeia de conjunção entre vítimas e algozes’,

em que o oprimido se torna opressor e o carrasco, por sua vez, aparece como

vítima.”39 A figura extrema dessa “zona cinzenta” é o Sonderkommando (“Esquadrão

Especial”), o grupo de prisioneiros encarregado da gestão das câmaras de gás e dos

fornos crematórios. Eles preparavam e conduziam os selecionados para morrer

(crianças, anciãos e doentes, em geral) até as câmaras de gás, depois retiravam os

corpos, recolhiam o ouro que as vítimas tivessem em obturações dentárias e os

levavam aos fornos crematórios. Ocupações no mínimo repulsivas e altamente

degradantes. Esses grupos tinham alguns privilégios em relação aos demais

prisioneiros e eram mantidos isolados – para que houvesse certo sigilo quanto às

operações de extermínio –, mas seus componentes eram eliminados e substituídos

de tempos e tempos, provavelmente para evitar que os encarregados de uma tarefa

tão repugnante, do ponto de vista ético e mesmo físico (lidavam com cadáveres...),

38

LEVI, P. Op. cit., p. 83. 39

LEVI, P. Apud AGAMBEN, G. Op. cit., p. 30.

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30

se insurgissem contra essas condições40, e também porque os nazistas queriam

evitar que algum membro dos Sonderkommandos eventualmente viesse a revelar

para o mundo exterior a realidade dos extermínios.

O excerto “Tortura”, de “Europa 02”, expõe uma situação análoga:

Quando te dizem: Tortura, não sabes se te chamam para torturar ou para ser torturado. Depois de dizerem essa palavra, tens de os seguir. Não há uma terceira alternativa: ansiarás por torturar. As torturas são executadas no compartimento daquele que escolheram como carrasco. Por isso, quando vês que se dirigem para o teu compartimento não consegues evitar a alegria: cerras os punhos, dás um urro de satisfação. Só quando entrares no teu compartimento é que verás quem vai ser torturado por ti. Pode ser um desconhecido, mas também pode também ser um amigo ou alguém que ames. Nessa altura sentirás nojo, não tanto pelo acto de tortura, a que és obrigado, mas pela alegria sentida, momentos atrás, quando percebeste que não irias ser a vítima; uma alegria instintiva que não respondeu a nenhuma ordem e que, por isso mesmo, te enojará durante algum tempo.

41

O trecho acima de Gonçalo M. Tavares como que ilustra a situação ética

sobre a qual Primo Levi discorre em seu relato, a situação da “zona cinzenta”, da

dificuldade e talvez impossibilidade de atribuição de responsabilidade – jurídica e

moral – para determinados indivíduos que têm a sua capacidade de auto-

determinação drasticamente reduzida, senão completamente abolida. É claro que há

uma escala do cerceamento da auto-determinação nos diferentes níveis e espaços

do regime nazista. Um prisioneiro designado para compor o Sonderkommando não

teria escolha senão obedecer ou então ser morto (ou cometer suicídio para se livrar

da tarefa). Já Eichmann (e outros burocratas do alto escalão do governo nazista)

teria, e efetivamente teve, mais dificuldade para afirmar que sua liberdade pessoal

esteve constrangida a ponto de ele não ter tido alternativa senão cumprir as ordens

que lhe eram dadas. O fato é que, por mais que o regime totalitário nazista

impusesse limitações à liberdade até mesmo dos cidadãos alemães adeptos e

40

Por se encontrarem em melhores condições que os demais detentos (tinham melhores alojamentos, melhor comida etc.), os membros dos Sonderkommandos também tinham mais possibilidade de se organizarem numa insurreição, como de fato aconteceu em Auschwitz em outubro de 1944, quando uma rebelião de prisioneiros do Sonderkommando destruiu parte de um dos fornos crematórios e atacou membros da SS. 41

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 124-125.

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simpatizantes do regime, o campo de concentração é o espaço por excelência do

cerceamento da liberdade, é onde ele acontece de forma mais radical, onde a

margem para a atuação da consciência e para a auto-determinação (atividades que

estão na base do julgamento ético, por meio do qual, a todo momento, tomamos

decisões) está quase que extinta.

A ânsia por torturar ao invés de ser torturado que aparece no excerto

transcrito acima não pode ser avaliada segundo os mesmos parâmetros éticos que

se aplicam aos indivíduos que estão no inteiro gozo de sua liberdade (pode-se

questionar se essa situação, a da plena capacidade de auto-determinação, alguma

vez existiu em qualquer sociedade, mas tal reflexão já extrapola os objetivos desse

trabalho). Contudo, o critério ético “ideal”, isto é, aquele que condiz com a

capacidade humana de auto-determinação, permanece latente e aflora no nojo que

o narrador desse relato diz experimentar diante da alegria que ele percebe que

sente às custas do sofrimento de outro.

Primo Levi também se pronuncia sobre esse fôlego mínimo da consciência

que pode ainda se manifestar em meio à constrição quase absoluta do eu. Ele diz

que experimentou esse fôlego (e viu como também ocorria em outros prisioneiros)

na ocasião da sua passagem pelo “Ka-Be”, sigla para Krankenbau, a enfermaria. Lá,

afastado por alguns dias do trabalho esgotante e dos sofrimentos físicos mais

pesados, Levi diz que os prisioneiros eram capazes de pensar e falar sobre a sua

própria condição, o que redespertava, ainda que brevemente, a sua capacidade de

valoração ética das coisas que vivenciavam:

O Ka-Be [Krankenbau, a enfermaria] é o Campo livre do sofrimento físico. Por isso, quem ainda possui um germe de consciência, recupera essa consciência; por isso, nos eternos dias vazios, a gente não fala apenas de fome e de trabalho; chegamos a considerar como nos transformaram, o quanto nos tiraram, o que é a nossa vida. Neste Ka-Be, parêntese de relativa paz, aprendemos que a nossa personalidade corre maior perigo que a própria vida. Os antigos sábios, em vez de exortar: “Lembra-te que vais morrer”, deveriam ter recordado este outro maior perigo que nos ameaça. Se, do interior do Campo, uma mensagem tivesse podido filtrar até os homens livres, deveria ter sido esta: procurem não aceitar em seus lares o que aqui nos é imposto.

42

Penso que a inserção dos trechos de “Europa 02” também pode ter um efeito

semelhante a esse dentro do romance Jerusalém, o efeito de uma retomada de

42

LEVI, P. Op. cit., p. 54.

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fôlego da consciência diante do horror, o qual é tema da pesquisa de Busbeck e

também um dos temas principais do próprio romance. A forma de relato ou

testemunho que esses trechos apresentam, mesmo que enunciados como ficção (ou

talvez justamente por isso), contribui para que esse reacendimento da consciência

seja mais incisivo, uma vez que as situações são apresentadas não de maneira

genérica, mas como uma experiência pessoal. E a exposição de uma experiência

pessoal convida a um posicionamento também pessoal, isto é, convida ao exercício

da consciência e da apreciação ética.

Interessante é notar que Theodor Busbeck recusa-se a realizar esse

exercício, recusa-se a fazer um juízo pessoal e a dar uma significação ética para os

fatos que ele estuda. Tal recusa está simbolicamente grafada no momento em que o

personagem afasta de si o livro de ficção “Europa 02” e volta ao exame dos

documentos, textos que tratam de fatos do mundo empírico, em oposição ao texto

de ficção rejeitado: “Theodor Busbeck fechou o livro Europa 02, irritado. Afastou-o

para o fundo da mesa e puxou para si os documentos que previra consultar naquela

manhã.”43 Esse movimento indica, a meu ver, o significado mais global (isto é, mais

integrado, em termos de conteúdo e forma, ao romance como um todo) do livro

“Europa 02”: trata-se de uma sugestão, isto é, de um gatilho para a reflexão sobre o

papel da literatura para a formação da consciência pessoal.

A sugestão configurada no romance pode talvez parecer muito discreta ou

encoberta (pois a menção ao fato de que “Europa 02” é um livro de ficção é feita

apenas uma vez), mas, uma vez percebida, ela se conecta perfeitamente com o

tema mais explícito da violência e do horror. Quer dizer, a sugestão de que a

literatura pode se converter num espaço propício e privilegiado para a reflexão ética

vai ao encontro da discussão que Jerusalém pretende instaurar em torno da

necessidade de se assumir que a violência é uma forma recorrente de relação entre

os seres humanos, diante da qual há que se buscar caminhos para contorná-la ou

contê-la. À literatura parece caber a tarefa de expressar, de trazer ao nível da

consciência essa necessidade, bem como de apontar possíveis soluções. Não que a

literatura deva (ao menos não necessariamente) veicular princípios éticos

específicos ou aplicáveis para cada situação retratada, mas ela pode conferir

destaque a tais problemas e dar uma forma, aí sim, a diversas situações e questões

43

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 126.

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da experiência humana de modo que elas sejam apreendidas pelas consciências

individuais e postas em discussão na coletividade. Ela pode ajudar a suprir a lacuna

que, conforme diz Agamben, está presente nos testemunhos dos sobreviventes de

“Auschwitz”.

2.2 O TESTEMUNHO DOS LOUCOS

O Hospício Georg Rosenberg, lugar onde se encontram as vozes que dão seu

testemunho no capítulo IX, “Os loucos”, deve ser encarado não como um espaço

isolado (o espaço da anormalidade, da loucura que nada tem a ver com as demais

relações humanas representadas no livro), mas justamente como um espaço que

está em comunicação com a questão central que se discute no romance: o horror.

Esse espaço procura impor uma padronização às pessoas que nele habitam. É uma

padronização radical, que abrange não só os comportamentos, mas estende-se aos

pensamentos dos internos.

Havia no Georg Rosenberg uma preocupação moral que estava longe de parar nas acções de cada indivíduo considerado louco. Perceber aquilo em que eles pensavam era também um objectivo; existia uma atenção excepcional em redor daquilo que nunca se vê: o interior da cabeça.

44

Essa padronização atua no sentido de extrair coisas da personalidade de

alguém, coisas que o prejudicam, talvez, mas que são constitutivas da sua

identidade e, não obstante, são consideradas de fora (isto é, pelo médico) como

“resíduos perigosos” que se devem descartar:

O que era atirado para o caixote de lixo de cada indivíduo não era, pois, seleccionado pelo próprio, mas sim pela terapêutica. E a dificuldade desta não estava no acto de atirar para o lixo, de uma única vez, algo que, pertencendo à personalidade de alguém, o prejudicava, o difícil era que a caixa de resíduos perigosos – assim eram considerados – de uma determinada existência fosse esquecida.

45

O Hospício parece estar a serviço da racionalidade, isto é, quer instalar a

racionalidade na mente dos doentes e extrair aquilo que é irracional. No entanto, o

44

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 93. 45

Idem, ibidem.

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34

que não fica totalmente claro, mas está subentendido, é que boa parte daquilo que

se considera racional, e que portanto se pratica no hospital Georg Rosenberg, é na

verdade meramente convencional. O exemplo mais drástico de como esses dois

campos, razão e convenção, podem se opor é o isolamento ao qual Mylia é

submetida. O médico-gestor Gomperz acata a exigência de Theodor Busbeck de

deixar Mylia em “afastamento social temporário” não porque essa medida fosse

necessária ou benéfica ao tratamento da interna, mas apenas porque era

conveniente como punição. Quer dizer, era conveniente ao dr. Gomperz e ao

hospital atender às demandas do renomado e “bem-pagante” dr. Busbeck. O

isolamento de Mylia, no entanto, não possui uma função terapêutica, mas apenas

satisfaz uma convenção de punição (o marido traído deseja punir a esposa) – e

pode-se inclusive questionar a racionalidade dessa punição enquanto tal, quer dizer,

questionar se a punição em si já não possui um grande componente de

irracionalidade.

Tratar a convenção como racionalidade e encarar aqueles que não a seguem

como irracionais (isto é, loucos) ou criminosos é uma forma de exercer domínio, é

um modo de fazer valer a sua força sobre alguém. Em outras palavras, é um

exercício de violência. Aliás, a aproximação entre crime e loucura é realizada pelo

próprio dr. Gomperz, que vê como ponto comum entre os dois uma falha moral. Quer

dizer, a loucura é por ele equiparada ao crime porque nela não se trata apenas de

ausência de racionalidade, mas trata-se também (ou em primeiro lugar) da não

adequação a um padrão, isto é, a uma convenção (de comportamentos e de ideias)

necessária à convivência com os demais.

No criminoso e no idiota mental que nada percebe via Gomperz os dois tipos de loucura e, por consequência, de imoralidade: a loucura instalada nos atos do criminoso e a loucura instalada no pensamento do homem que não percebe minimamente o mundo onde deverá agir. O agir deste louco que não percebe era, então, também, um agir criminoso, mesmo que não fizesse mal a ninguém, pois era um agir efeito de um não-entendimento, de uma ignorância; e sendo neutro ou tendo mesmo efeitos positivos, seria sempre um acto imoral porque não consciente. A inconsciência é imoral – dizia Gomperz –, é criminosa.

46

Ao ver a loucura como imoral, e com isso equipará-la ao crime, o dr.

Gomperz, e o Hospício Georg Rosenberg por extensão, demonstra que sua

46

Idem, p. 96.

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preocupação não é exclusivamente com a oposição entre racional e irracional. Sua

preocupação principal é o estabelecimento do controle, é o domínio exercido sobre

as pessoas sob a sua responsabilidade. E este domínio está pautado e é exercido

não pela razão, e nem propriamente pela moral, mas pela convenção. Não que não

haja racionalidade ou moralidade na convenção, mas esta pode se afastar

perfeitamente daqueles dois termos e ainda assim manter a sua força.

Essa força da convenção, agora em confronto explícito com a razão e a

moral, também está presente nas práticas descritas no livro Europa 02, conforme

apontei ao comentar a referência que lá se fazia ao predomínio absoluto da lei.

Também aqui, no hospital psiquiátrico, tal como em Europa 02, há um processo de

imposição de uma determinada convencionalidade como se esta fosse racional, ou

melhor, como se esta fosse a verdade, uma instância total da qual não se pode

escapar. É este o mecanismo dos campos de concentração, qual seja, impor uma

convenção de forma tão absoluta que as pessoas agem em relação a ela como se

convenção não fosse, mas racionalidade e verdade. De modo que os que não agem

em conformidade com ela podem ser, apenas por isso, condenados como

criminosos.

O testemunho dos loucos, por sua vez, é uma espécie de janela para um

outro mundo, que escapa ao mundo dessa convencionalidade imposta. Dar voz a

esses indivíduos significa deixar falar uma parte da realidade que a princípio seria

negada e condenada à não-existência, assim como (coisa que já mencionei antes)

os vários relatos de ex-prisioneiros dos campos de concentração nazista possuem o

propósito ou ao menos o efeito de trazer à existência (isto é, de trazer à consciência

dos demais) as vidas de indivíduos que o regime totalitário pretendia excluir da

história. A necessidade de trazer para a consciência e para a história humana as

vidas daqueles que sucumbiram no horror totalitário (os “submersos”, na

terminologia de Primo Levi) desponta como uma preocupação central de É isto um

homem?. Levi destaca, em seu relato, a figura do “muçulmano”, o Muselmann47 –

termo que, na linguagem dos prisioneiros dos campos, sobretudo em Auschwitz,

47

O termo, a princípio, não possui nenhuma conotação étnica ou religiosa, e sua etimologia não foi univocamente e nem claramente explicada. Na apresentação incluída na edição brasileira de O que resta de Auschwitz, de Agamben, Jeanne Marie Gagnebin afirma não conseguir deixar de ouvir, “em todas laboriosas explicações [para a etimologia do termo], como que uma certa desforra de caráter racista na boca das vítimas do antissemitismo”. (AGAMBEN, G. Op. cit., p. 13, nota 11) É uma questão interessante e uma reflexão por se realizar.

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designava o indivíduo à beira do completo definhamento – e dedica a esse sujeito,

espécie de ícone da devastação a que os campos de concentração nazistas

reduziam o ser humano, as seguintes palavras:

A história – ou melhor, a não-história – de todos os “muçulmanos” que vão para o gás, é sempre a mesma: simplesmente, acompanharam a descida até o fim, como os arroios que vão até o mar. Uma vez dentro do Campo, ou por causa da sua intrínseca incapacidade, ou por azar, ou por um banal acidente qualquer, eles foram esmagados antes de conseguir adaptar-se; ficaram para trás, nem começaram a aprender o alemão e a perceber alguma coisa no emaranhado infernal de leis e proibições, a não ser quando seu corpo já desmoronara e nada mais poderia salvá-los da seleção ou da morte por esgotamento. A sua vida é curta, mas seu número é imenso; são eles, os “muçulmanos”, os submersos, são eles a força do Campo: a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não-homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar “morte” à sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la. Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria essa imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento.”

48

Agamben comenta que a contribuição fundamental das considerações de

Primo Levi a respeito do “muçulmano” está em que elas apontam para o fato de que

a realidade dos campos de concentração impossibilita a distinção entre o homem e o

não-homem, inaugurando com isso uma “nova matéria ética”49. Agamben depreende

do relato que Levi faz sobre os “muçulmanos” o fato de que o poder totalitário,

exercido de modo inédito e cabal no campo de concentração, impõe a todos, mesmo

aos que resistem e sobrevivem, a condição de não-homem. Em síntese: todos os

detentos do campo veem seu próprio reflexo nessa figura de morto-vivo que é o

“muçulmano” (e por isso essa figura é tão frequentemente desprezada,

desconsiderada e de certo modo temida pelos companheiros, pois ela corporifica

aquilo que o domínio totalitário está a fazer a todos). O que Agamben está dizendo é

que testemunhas como Levi, que expõem a figura dos submersos e falam no lugar

deles (falam no lugar dos que não podem falar – os quais, por serem as vítimas mais

cabais do horror, é que deveriam ser as verdadeiras testemunhas – e, portanto,

devem levar em conta que o essencial no seu testemunho é justamente “aquilo que

48

LEVI, P. Op. cit., p. 90-91. 49

AGAMBEN, G. Op. cit., p. 55.

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nele falta”50), essas testemunhas atestam que “o umbral extremo entre a vida e a

morte, entre o humano e o inumano, em que habitava o muçulmano”51 pode ter um

significado político. Esse significado se refere ao fato de que o poder, quando impõe

a destruição ao outro, coloca fim à relação de dominação e, de certa forma, se auto-

suprime. Mas quando o poder submete o outro a um tal estado de degradação que

ainda não é a morte, mas que dificilmente se pode chamar de vida (pela

precariedade extrema das funções biológicas e, consequentemente, de todas as

demais funções humanas: sociais, políticas, espirituais), ele cria como que um

terceiro reino entre a vida e a morte, onde pode ser exercido de maneira absoluta.

“Também o muçulmano, como o amontoado de cadáveres, atesta o seu completo

triunfo [do poder absoluto ou totalitário] sobre a humanidade do homem: mesmo que

se mantenha ainda vivo, aquele homem é uma figura sem nome. Ao impor tal

condição, o regime encontra o próprio cumprimento...”52

A visão dos muçulmanos, como mostram fugazmente as películas que os

ingleses filmaram no campo de Bergen-Belsen em abril de 1945, por ocasião da sua

libertação, é algo talvez mais chocante e insuportável do que a visão dos milhares

de cadáveres. E é também um cenário inédito em comparação ao amontoado de

cadáveres, “espetáculo antigo”53, pois é a materialização de uma forma de

dominação também inédita – a dominação totalitária.

Penso que, salvas as diferenças, algo das condições a que os doentes

mentais de Jerusalém encontram-se submetidos pode ser comparado às condições

de existência do “muçulmano”. E, especialmente, o significado ético e político das

duas situações pode ser aproximado.

A relação entre o que acontece no Hospício Georg Rosenberg, em Jerusalém,

e aquilo que aconteceu nos campos de concentração nazistas encontra-se indireta

porém textualmente sugerida pela citação, no romance, de um trecho do salmo 137

(136 na numeração da Septuaginta), salmo que expressa a lamentação do povo

judeu no exílio que se seguiu à conquista de Jerusalém pelos babilônios, em 586 a.

C. O salmo manifesta ainda a indignação do povo judeu diante da destruição da

50

Idem, p. 43. 51

Idem, p. 55. 52

SOFSKY, W. Apud AGAMBEN, G. Op. cit., ibidem. 53

AGAMBEN, G. Idem, p. 59.

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cidade santa, da profanação do templo efetuada pelo invasor estrangeiro e da sua

deportação forçada para a Babilônia. O poema ou salmo, cuja autoria é atribuída ao

profeta Jeremias, começa com uma descrição da tristeza dos israelitas que,

exortados pelos seus deportadores a cantarem os “cânticos de Sião”, se recusam a

fazê-lo numa terra estrangeira, pendurando suas harpas nas árvores. A seguir o

poema exorta o próprio povo judeu a não se esquecer de Jerusalém, a cidade santa

aviltada, e termina com uma predição ou um rogo de vingança violenta contra

aqueles que causam tanto sofrimento. O salmo expressa, fundamentalmente, dor,

trata-se de um lamento, mas também exorta à resistência e clama por justiça na

forma de retribuição: “ditoso quem te der a paga do mal que nos causastes!”54.

Em Jerusalém temos a citação do quinto verso desse salmo: “Se eu me

esquecer de ti, Jerusalém, que seque a minha mão direita” (na tradução empregada

no romance). Ocorre quando Mylia, sentindo fortes dores que decorrem da doença

que a acomete, sai de casa de madrugada em busca de uma igreja. Depois que a

entrada em uma lhe é vedada por causa do horário inadequado para visitas, ela se

sente piorar e, quase desfalecendo de dor e de fome, telefona de um aparelho

público para Ernst Spengler, ex-interno, como ela, do Georg Rosenberg, também

seu ex-namorado e pai de seu filho Kaas. Ernst, que estava a ponto de cometer

suicídio, vai imediatamente em busca de Mylia. Quando se encontram, o narrador

nos diz: “Mas o rosto nervoso de Ernst mostrava até que ponto aqueles anos não o

haviam modificado. Tranquilizada, Mylia recordou a frase: ‘Se eu me esquecer de ti,

Jerusalém, que seque a minha mão direita.’ Os dois abraçaram-se.”55

Numa associação ao contexto do salmo 137, pode-se ver aí uma referência

aos sofrimentos que os dois personagens experimentaram juntos no hospital

psiquiátrico. E parece sugerir-se que aquilo de que eles não devem se esquecer, a

pátria da qual devem se lembrar no exílio que representou o período de

internamento (mas também no exílio em que a vida pós-hospício de cada um deles

54

Salmo 137/136: “Junto aos rios da Babilônia sentamo-nos a chorar, lembrados de Sião./ Nos álamos, ali perto, suspendemos nossas harpas./ Então nossos deportadores pediam cânticos; nossos verdugos, alegria: “Cantai para nós cânticos de Sião!”/ Como entoar um cântico do Senhor em terra estrangeira?/ Se me esquecer de ti, Jerusalém, que se paralise minha mão direita!/ Pegue-se minha língua ao paladar, se me esquecer de ti, se não puser Jerusalém no auge de minhas alegrias!/ Senhor, lembra aos filhos de Edom aquele dia de Jerusalém, em que diziam: “Arrasai-a, arrasai-a até os alicerces!”/ Filha da Babilônia, que serás devastada, ditoso quem te der a paga do mal que nos causastes!/ Ditoso quem agarrar teus filhinhos e os esmagar contra o rochedo!” Bíblia Sagrada. Tradução de Luís Stadelmann et ali. 33 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes e Editora Santuário, 1982. 55

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 154.

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se transformou), é a união dos dois personagens. A pátria de Mylia e Ernst, a sua

Jerusalém perdida e que deve ser lembrada a fim de que suas vidas tenham um

sentido, parece ser o laço que os uniu no infortúnio. É uma leitura possível – tocante

e de certo modo otimista – mas não acho que ela se sustente inteiramente, ou que

se sustente sozinha. Acredito, na verdade, que haja uma sobreposição de

significados, a sobreposição entre uma memória positiva (a união entre Mylia e

Ernst) e outra negativa (o sofrimento vivido no Georg Rosenberg) e que portanto a

Jerusalém aqui evocada possa ter também um outro significado, mais sombrio. E

isso me parece estar indicado pela segunda menção que se faz ao salmo 137.

Essa segunda menção, que se dá na forma de uma versão por assim dizer

herética do mesmo verso do salmo, acontece quando Mylia, após descobrir que a

sua doença é consequência da cirurgia esterilizadora que nela fizeram sem seu

consentimento no Georg Rosenberg, e depois de passar por quatro operações para

tentar conter o avanço da doença, é desenganada pelo médico:

(...) no máximo ela viveria dois anos. Mais do que isto seria um milagre. Nas suas palavras, seria um acontecimento espiritual e não terapêutico. Mylia de imediato recordou as teorias de Theodor Busbeck, o ex-marido. Reconheceu-as na boca desse médico: o espírito, a procura de Deus. A terceira parte da saúde. Quando a matéria falha. Nessa mesma tarde murmurou para si própria, pela primeira vez, aquela heresia que lhe parecia, ao mesmo tempo, uma profecia negra e o único destino que valeria a pena combater: Se eu me esquecer de ti, Georg Rosenberg, que seque a minha mão direita.

56 (Negrito meu.)

O que deve ser recordado aqui, segundo a nova exortação formulada por

Mylia, não é a pátria perdida – cuja recordação serviria para manter a unidade e a

identidade do povo judeu –, mas é o próprio sofrimento, a própria perda. O

Holocausto surge inevitavelmente no horizonte de referências não apenas pela

primeira citação do salmo que evoca a história dos sofrimentos do povo judeu, mas,

especialmente, por essa segunda citação, que está associada à irreparabilidade da

perda de Mylia. A passagem pelo Georg Rosenberg é algo que Mylia não pode e

nem deseja esquecer. E a impossibilidade do esquecimento se confirma pelo fato de

a doença inexplicavelmente (milagrosamente, como dissera o médico) não a matar,

apesar de a constante dor no ventre de Mylia se manter, como uma espécie de

lembrete para que ela não esqueça o que se passou no seu tempo de internamento.

56

Idem, p. 181.

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40

“E, de facto, era impossível Mylia esquecer-se. A minha mão direita não secou,

pensava por vezes, ao mesmo tempo que acariciava o próprio pescoço.”57

Entendo que, por causa da carga simbólica que o Hospício Georg Rosenberg

carrega devido à alusão ao Holocausto que é trazida à tona pela leitura desse

espaço em articulação com a figuração do espaço do campo de concentração em

“Europa 02”, a impossibilidade de esquecimento de Mylia associa-se a ou, pode-se

mesmo dizer, representa a impossibilidade de se esquecer o Holocausto. Ou, antes

disso, a necessidade de recordação desse acontecimento. (Já que as coisas se

passam de modo como se Mylia fosse mantida viva justamente para recordar.)

Tal interpretação se coaduna com o dado extratextual que temos, de que

Gonçalo Tavares, como mencionado na entrevista com o autor citada anteriormente,

pretende com os romances da tetralogia O Reino contribuir para a manutenção da

consciência histórica acerca da nossa capacidade destrutiva, especialmente diante

dos eventos de violência inédita (quantitativa e qualitativamente falando) do último

século.

Gostaria de voltar agora à questão do testemunho presente no capítulo IX,

“Os loucos”. Como já mencionado, o que temos aqui é uma sequência de breves

testemunhos, nos quais sobressai a enunciação em primeira pessoa, dos internos

do Hospício Georg Rosenberg. Em cada um dos testemunhos o louco é apresentado

pelo nome (ou ele mesmo se apresenta) e algo da sua história, em geral o dado (ou

a mania) predominante no seu mundo particular de louco, é manifestado. O

interessante é que a realidade de cada louco, o seu mundo particular, não é

apresentado com demérito ou ressalvas quanto à sua consistência. Mas é, sim,

dada uma certa legitimidade a essa outra realidade. Pois é dado reconhecimento à

existência do pensamento e do discurso dos loucos, isto e, é dada a eles, aos

loucos, a possibilidade de se inserir de algum modo na comunidade humana, pois

lhes é dada a possibilidade de comunicar. Isso é significativo para o diálogo que

tenho procurado estabelecer entre o romance e o tema do Holocausto, na medida

em que esse movimento de dar voz a indivíduos excluídos da esfera do discurso e

da ação é o mesmo movimento presente no relato de alguns dos sobreviventes dos

campos de concentração, que se preocupam em dar uma forma à experiência

daqueles que sucumbiram e que não podem mais fazer isso (dar forma à sua

57

Idem, p. 224.

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41

experiência) por si mesmos. O interessante dado comum, compartilhado tanto pelos

que sucumbiram nos campos quanto pelos loucos, é o de que a imersão em ambas

as experiências incapacita os submersos a exporem, de maneira compreensível e

organizada, a sua vivência pessoal dessa experiência aos outros que dela não

compartilharam. No caso das pessoas que foram destruídas pelo horror nazista,

essa incapacidade é permanente. No caso dos loucos, ela pode ser transitória ou

superada por indivíduos com características pessoais de certa forma extraordinárias

(isto é, que fogem ao comum) – vide o paradigmático caso Schreber58.

Penso que o capítulo “Os loucos” introduz em Jerusalém a questão da

importância do discurso para a inserção da pessoa numa comunidade. Em A

Condição Humana, Hannah Arendt defende que nos inserimos no mundo humano –

e nossa existência se torna, de fato, humana – através da ação e do discurso, pois

estes são os modos fundamentais pelos quais nos manifestamos uns aos outros não

como meros objetos físicos, mas como seres humanos propriamente. “A vida sem

discurso e sem ação (...) está literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma

vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens.”59 Arendt considera que

o principal instrumento da ação é o discurso, através do qual o agente revela quem é

e o seu ato se torna então relevante: “Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação,

pois não haveria ator; e o ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo

58

Daniel Paul Schreber (1842-1911) foi um iminente jurista do antigo reino da Saxônia que, pouco depois de ter sido nomeado para o cargo de presidente da Corte Superior de Apelação, em Dresden, e antes de assumir a função, foi acometido por uma grave doença mental, diagnosticada como paranoia. Schreber passou então nove anos em tratamento, tendo sido internado em três instituições diferentes. Nos últimos anos de internamento, escreveu uma autobiografia em que expõe de maneira franca e detalhada os pormenores da sua doença. Publicou o livro em 1903, sob o título Memórias de um Doente Mental. O caso se celebrizou em decorrência do estudo realizado por Freud a partir dos escritos de Schreber, estudo publicado em 1911, com o título Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranoia. O caso de Schreber se tornou paradigmático para a Psiquiatria e a Psicologia em decorrência da importância que o relato do próprio doente mental passou a ter, via o estudo realizado por Freud, para a compreensão da doença (antes disso, antes que Freud examinasse a complexa e minuciosa dissertação autobiográfica de Schreber, a “salada de palavras” que esse tipo de paciente costuma produzir era considerada, pelos médicos em geral, como algo inútil e cansativo, e pouca atenção se dava às manifestações discursivas dos pacientes). O aspecto talvez mais curioso do caso e o mais largamente analisado pela psicanálise encontra-se no principal delírio descrito por Schreber: o de que Deus o transformara em mulher e podia manter relações sexuais com ele, das quais seria gerada uma raça humana melhor e mais saudável, depois que o mundo fosse destruído por um dilúvio. 59

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 189.

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tempo, o autor das palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada através

de palavras.”60

O capítulo dos loucos, ao expressar a possibilidade de produção de discurso

por parte daqueles que a princípio estão excluídos da esfera normal de convivência

humana, parece trazer a tona a situação de tantos outros indivíduos que, por

motivos outros, encontram-se privados da palavra e, consequentemente, da ação. A

privação mais drástica nesse sentido que a nossa época conheceu parece ser a das

vítimas do horror, reduzidas ao mais completo estado de despersonalização, uma

vez que foram espoliadas não só da sua capacidade futura de ação, mas também da

capacidade de enunciação acerca do seu passado, isto é, foram espoliadas da sua

história. Não permitir que alguém expresse discursivamente a sua história equivale a

excluí-lo da esfera pública, a esfera da coexistência humana.

60

ARENDT, H. Op. cit., p. 191.

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3. A CIÊNCIA E O HORROR

Neste último capítulo pretendo analisar a presença textual do tema do

Holocausto no romance Jerusalém, examinando, para isso, a intertextualidade aí

operada com o pensamento da filósofa Hannah Arendt. Essa intertextualidade se

revela pela inserção de um trecho de um ensaio de Arendt acerca dos campos de

concentração e extermínio nazistas, bem como pela constituição e pela trajetória do

personagem Theodor Busbeck, estudioso da história do horror.

3.1 HANNAH ARENDT E A “IMAGEM DO INFERNO”

A citação de um fragmento de autoria de Hannah Arendt sugere e

disponibiliza todo um conjunto de ideias (um sistema de pensamento mesmo, eu

diria) que dizem respeito não apenas ao fato histórico do Holocausto, mas às

relações de poder e violência em geral, e especialmente à configuração que essas

relações assumem na era moderna. A era moderna se caracteriza

fundamentalmente, segundo o pensamento arendtiano, pelo predomínio da técnica,

da capacidade de fazer, sobre as outras capacidades humanas, especialmente

sobre o agir, o pensar e o julgar. É esse quadro, segundo Arendt, que possibilita a

redução do ser humano ao aspecto biológico da sua existência. Isto é, o predomínio

da técnica sobre outros aspectos da condição humana leva à prevalência de uma

lógica de instrumentalidade nas relações humanas, bem como na forma como

produzimos e administramos a realidade material que é o suporte das nossas

existências biológicas – a essa realidade material, conjunto dos artifícios, dos

produtos criados pelo homem, Arendt chama de mundo; é o mundo que confere

permanência e durabilidade à existência humana, para além das existências

individuais. Essa lógica de instrumentalidade conduz a uma desvalorização do

mundo, que é então afetado na sua missão de conferir permanência e estabilidade à

vida humana. Essa desvalorização impede ou dificulta, consequentemente, a

constituição de uma esfera pública, isto é, de um espaço de ação e de discurso onde

a pluralidade, aspecto inalienável da condição humana, possa se manifestar. A

consequência da supressão ou do atrofiamento da esfera pública é, grosso modo,

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uma profunda crise nas formas de organização e gestão da nossa existência em

comum, ou seja, uma profunda crise política, da qual o totalitarismo foi, segundo

Arendt, a sua manifestação mais aguda.

Resumidamente, a tese de Arendt (que aparece principalmente em Origens

do totalitarismo61) é a de que a destruição do terreno da política, em decorrência da

crise e da decadência da tradição ocidental de pensamento e de ação política,

produz uma espécie de regime sem precedentes que faz do terror o modo

fundamental de relacionamento entre o Estado (a esfera institucional do poder) e os

cidadãos. Trata-se do regime totalitário, o qual, segundo Hannah Arendt, encarna-se

em dois momentos no século XX, o nazismo, na Alemanha, e o stalinismo, na União

Soviética. Acredito que se pode falar ainda na existência de traços totalitários em

outros regimes políticos ao longo do século XX, tais como o franquismo na Espanha

e o salazarismo em Portugal (mas esta é uma ideia que, por falta de espaço e

pertinência mais direta ao tema deste trabalho, não pretendo desenvolver aqui).

Minha análise do horror, enquanto tema do romance Jerusalém, se dá à luz

das considerações filosóficas de Hannah Arendt acerca desse fenômeno e das

condições que o trouxeram à luz nos nossos tempos. A presença textual de parte

das considerações de Arendt na trama do próprio romance me autoriza, creio, a me

valer de suas análises e reflexões como pano de fundo ou como referência teórica

extra-literária para pensar a figuração literária dos fenômenos na obra em questão.

Fica evidente, pela remissão direta a Hannah Arendt no corpo do texto, que o

romance entende-se integrado a um discurso (um debate social) do qual também o

texto de Arendt participa como uma das principais referências comuns no espaço

público cultural e acadêmico desde a década de 1950.

O momento de intertextualidade explícita, ao qual me referi antes, que o

romance Jerusalém estabelece com as ideias de Hannah Arendt a respeito do

Holocausto e do totalitarismo encontra-se na passagem em que, durante sua

pesquisa sobre a presença e a recorrência do horror na história, Theodor Busbeck

depara-se, primeiro, com uma citação de David Rousset62 (a indicação da autoria

não é dada no romance): “Os homens normais não sabem que tudo é possível”.

61

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia

das Letras, 1989. 62

Militante socialista francês que sobreviveu ao campo de concentração nazista em Buchenwald. Autor das seguintes obras de referência sobre os campos de concentração: L’univers concentrationnaire e Le jours de notre mort.

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Essa citação corresponde a uma das epígrafes utilizadas por Hannah Arendt em

Origens do Totalitarismo63 (1951), seu primeiro “grande trabalho”, que a inseriu no

cenário internacional do pensamento ocidental contemporâneo. Logo em seguida,

Busbeck lê um trecho que foi retirado, ipsis literis, de um ensaio de Hannah Arendt

chamado “A imagem do inferno” (a autoria, novamente, não é indicada). Reproduzo

aqui o trecho do romance Jerusalém em que aparece o excerto do texto de Hannah

Arendt:

Theodor Busbeck pegou num dos livros que tinha à sua frente e leu: “[...] seis milhões de seres humanos foram arrastados para a morte sem terem a possibilidade de se defender e, mais ainda, na maior parte dos casos, sem suspeitarem do que lhe estava a acontecer. O método utilizado foi a intensificação do terror. Houve, de começo, a negligência calculada, as privações e a humilhação [...]. Veio a seguir a fome, à qual se acrescentava o trabalho forçado: as pessoas morriam aos milhares, mas a um ritmo diferente, segundo a resistência de cada um. Depois, foi a vez das fábricas de morte e todos passaram a morrer juntos: jovens e velhos, fracos e fortes, doentes ou saudáveis; morriam não na qualidade de indivíduos, quer dizer, de homens e de mulheres, de crianças ou de adultos, de rapazes ou de raparigas, bons ou maus, bonitos ou feios, mas reduzidos ao mínimo denominador comum da vida orgânica, mergulhados no abismo mais sombrio e mais profundo da igualdade primeira: morriam como gado, como coisas que não tivessem corpo nem alma, ou sequer um rosto que a morte marcasse com o seu selo.” ... “É nesta igualdade monstruosa, sem fraternidade nem humanidade – uma igualdade que poderia ter sido partilhada pelos cães e pelos gatos – que se vê, como se nela se reflectisse, a imagem do Inferno.” ... “Depois da entrada nas fábricas da morte, tudo se tornava acidental e escapava por completo ao controlo tanto dos que infligiam o sofrimento como dos que o suportavam. E foram muitos os casos em que aqueles que um dia infligiam o sofrimento se transformavam em vítimas no dia

seguinte.”64

O ensaio “A imagem do inferno”, do qual procedem os trechos entre aspas

que aparecem na citação acima, trata dos campos de concentração e extermínio

nazistas e do papel do discurso pseudo-científico para a legitimação do terror

naquele contexto. Hannah Arendt destaca como uma característica distintiva do

terror contemporâneo o fato de que “ele aparece invariavelmente sob os traços de

uma conclusão lógica inevitável, extraída de alguma teoria ou ideologia”65. Essa

63

A citação aparece como epígrafe na abertura da terceira e última parte do livro, intitulada, justamente, “Totalitarismo” (as outras duas partes são “Antissemitismo” e “Imperialismo”). 64

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 128.

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“cientificidade” seria um traço comum a qualquer regime totalitário e sua função seria

atribuir uma sanção superior e supra-humana a um poder (o totalitário) que é

meramente humano. No totalitarismo nazista essa sanção é atribuída pela natureza,

e portanto Arendt considera a vertente nazista do poder totalitário mais eficaz e atroz

que a marxista-stalinista, em que o poder está sancionado pela história, pois a fonte

da história continua a ser o homem, enquanto que as leis naturais, tais como

interpretadas pelos nazistas, possuem um funcionamento autônomo. Coisa que

justificaria, conforme o raciocínio falso e tautológico por eles empregado, matar os

fracos, uma vez que segundo as leis da natureza os fracos tendem mesmo a morrer

e os fortes a viver.

No mesmo ensaio cujo trecho encontra-se reproduzido em Jerusalém,

Hannah Arendt segue explicando de que modo operavam a atmosfera e o discurso

supostamente científico a fim de legitimar o regime nazista e contribuir para a

disseminação do terror como mecanismo de controle social absoluto e manutenção

do poder. Diz ela, em passagem que vem adiante, depois daquela que se encontra

citada no romance de Tavares:

Uma importante consequência lateral desse tipo de raciocínio [de que matar os fracos é apenas obedecer às ordens da natureza] é que ele retira a vitória e a derrota das mãos humanas e torna supérflua, por definição, qualquer oposição aos veredictos da realidade, pois não se luta mais contra o homem, e sim contra a História ou a Natureza – dessa maneira, à realidade do poder se acrescenta uma crença religiosa na eternidade desse poder. Era dessa atmosfera geral de ‘cientificidade’, ao lado de uma tecnologia moderna e eficiente, que os nazistas precisavam para as suas fábricas de morte – e não da ciência em si. Os mais úteis para as finalidades nazistas eram os charlatães que acreditavam sinceramente que a vontade da natureza era a vontade de Deus e sentiam-se pessoalmente aliados às irresistíveis forças sobre-humanas – e não os verdadeiros intelectuais, por mais covardes que tenham sido e por maior que fosse a atração que sentiram por Hitler.

66

Note-se que, segundo a análise de Arendt nesse ensaio, a ciência, ou melhor,

a pseudo-ciência assume, enquanto legitimadora do poder totalitário, um papel de

instância absoluta, da qual emanam os fundamentos e a estrutura da realidade tal

como concebida pela perspectiva totalitária. Quer dizer, acredita-se e segue-se o

65

ARENDT, Hannah. “A imagem do inferno”, In: Compreender: Formação, exílio e totalitarismo – ensaios. Trad. de Denise Bottman. São Paulo: Cia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 232. 66

ARENDT, H. Op. cit., p. 233.

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poder totalitário como se ele fosse a consequência lógica e necessária de um

aspecto não só fundamental, mas de certo modo fundante da realidade – no caso do

nazismo, este aspecto é a Natureza. Isso faz com que se crie uma espécie de

crença ou devoção religiosa dirigida ao poder totalitário. Crença ou devoção que se

encontra embasada, por seu turno, por uma falsa ciência – falsa porque não

corresponde a uma investigação que toma, como dado primeiro e independente, a

própria realidade, mas que se encontra previamente comprometida com um sistema

de ideias que pretende já haver explicado totalmente a realidade. A pseudo-ciência

que afirma ser uma lei da natureza o fato de que os fracos devem perecer para que

os fortes sobrevivam e perpetuem a espécie está calcada não na observação da

realidade, mas numa ideologia racista que advoga existirem diferentes “raças”, umas

superiores às outras, entre a espécie humana. Como já foi amplamente discutido, e

sobre isso felizmente não é mais necessário determo-nos, tal concepção não possui

qualquer base verdadeiramente científica, tendo sido forjada tão-somente para

justificar as mais diversas formas de opressão que um grupo humano exerce sobre

outro.

Gostaria agora de refletir sobre o significado da relação de intertextualidade

que Jerusalém mantém com o pensamento de Hannah Arendt. A percepção de tal

intertextualidade não é, rigorosamente falando, indispensável para a leitura e a

interpretação desse romance, quer dizer, é perfeitamente possível levantar os temas

da violência, em geral, e do Holocausto, em particular, enquanto questões centrais

no texto literário sem ter a referência ou o recurso ao pensamento arendtiano. No

entanto, a análise desses temas, bem como a discussão que dela decorre, ganham

mais fôlego se feitas em contraponto com algumas formulações teóricas a respeito

das realidades retratadas. E não seria prudente negar que, no caso da teoria de

Hannah Arendt, há um nível imediato e evidente de sua inserção formal no texto,

tendo em vista o excerto citado, ainda que sem indicação da autoria.

Partindo da ideia de que a literatura de ficção é uma forma específica de

discurso, com propriedades características, mas que de todo modo também fala do

mundo referencial e integra nele debates sociais amplos sobre questões a que se

dedica, parece-me interessante colocar em diálogo (e também, eventualmente, em

contraposição) o texto literário com outras formas de manifestação discursiva acerca

de um determinado aspecto da realidade que se encontre literariamente figurado em

nosso objeto de estudo, o romance. Em outras palavras, julgo proveitoso (inclusive,

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e não de modo secundário, aos próprios estudos literários) tomar a literatura como

uma manifestação discursiva que pode e deve contribuir aos mais diversos debates

contemporâneos, devendo, a fim de ser incorporado ao calor da praça pública,

buscar o diálogo direto com as mais diversas áreas e, especialmente, com as das

ciências humanas.

Nesse sentido, gostaria de citar algumas considerações do pesquisador Paulo

Soethe, às quais em boa parte devo as reflexões sobre o fenômeno literário que

busquei sintetizar acima. Em sua tese67 a respeito de como a conformação do

espaço em Grande sertão: veredas e A montanha mágica possibilita a proposição e

a discussão de temas éticos presentes nesses romances, Soethe apresenta um

panorama dos estudos acerca das relações entre literatura e filosofia, campo que

interessa particularmente ao tipo de análise que procurei desenvolver no presente

trabalho. Uma das vertentes desse diálogo entre literatura e filosofia toma o texto

literário como um “suplemento necessário”68, isto é, como uma manifestação

intelectual e cultural incontornável para a reflexão ética. Isso se deve ao fato de que

os textos literários narrativos concentram, por conta dos meios de expressão que lhe

são próprios, tanto a subjetividade das experiências individuais quanto a objetividade

da linguagem e da forma, que são, ambas (essa subjetividade e essa objetividade),

fundamentais à reflexão ética. Afirma Paulo Soethe:

Ora, a literatura é um dado empírico efetivo que apresenta experiências sem abandonar a subjetividade a um âmbito irracionalista e secundário. A análise da literatura permite ao filósofo (ou ao teólogo) depreender daí situações e modelos éticos que, embora concebidos pela ficção com finalidades estéticas, não perdem por isso seu valor objetivo, já que estão inseridos em um contexto sócio-cultural próprio e ligado a convenções discursivas partilhadas por produtores e receptores do texto.

69

Depreende-se daí a ideia, que me é cara e subjaz a toda a minha

interpretação e leitura do romance de Gonçalo Tavares, de que a literatura, e

especialmente a narrativa de ficção (cuja forma atualmente predominante é o

romance), por ser capaz de ilustrar de maneira comunicável e objetiva os mais

67

SOETHE, Paulo Astor. Ethos, corpo e entorno: sentido ético da conformação do espaço em Der Zauberberg e Grande sertão: veredas. São Paulo, 1999, 217 f. Tese (para obtenção do grau de Doutor) – Pós-graduação em Literatura Alemã, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 68

SOETHE, P. A. Op. cit., p. 36. 69

Idem, p. 37.

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diversos tipos de experiências individuais, pode e deve ser levada em consideração

pelo pensamento e pelo debate em torno de questões éticas. Pois a ética, ao menos

como hoje a entendemos, tem como questão central a atuação do indivíduo, isto é, o

significado, o alcance e os limites das escolhas individuais, especialmente quanto ao

impacto que essas escolhas têm na coletividade. Sendo assim, o texto literário

narrativo que hoje predominantemente temos, ao privilegiar a representação da

experiência individual, disponibiliza formas para pensarmos sobre essa experiência.

Isto é, a experiência individual extrapola o âmbito da subjetividade e, por ter

adquirido uma forma imagética, é capaz de integrar uma tradição de pensamento.

Tradição a partir da qual podemos pensar as diversas questões éticas que nos

tocam, à nossa sociedade e à nossa época. É esta, a meu ver, uma das principais

contribuições da literatura e, para que tal contribuição se efetive, fazem-se

necessários o estudo e a análise do texto literário nos seus mais diversos aspectos

formais e temáticos, bem como nas suas relações com o contexto histórico e social

no qual é produzido. Daí a importância e o papel dos estudos literários.

A relação de intertextualidade com o pensamento de Hannah Arendt presente

em Jerusalém possui, assim, um significado que extrapola a mera elaboração formal

do romance. Quer dizer, essa intertextualidade insere explicitamente o texto literário

em questão no quadro mais geral da produção e da reflexão intelectual, bem como,

devido ao tema específico de que o romance trata, no quadro do pensamento e da

discussão sobre problemas éticos, especialmente sobre os problemas que

concernem à violência e às formas de organização do poder. Quer dizer, não que o

texto literário não se insira por si só nessa discussão, mas penso que o recurso da

intertextualidade sinaliza formalmente (e, num certo nível, programaticamente, talvez

se pudesse dizer) para essa inserção.

Do ponto de vista formal, enfim (para voltarmos ao tipo de questão do qual

estamos mais acostumados a tratar), a inserção do excerto do texto de Hannah

Arendt, bem como a citação de David Rousset, concorrem para a conformação do

tema do horror como elemento da realidade referencial literariamente figurado.

Esses elementos intertextuais se combinam à experiência do personagem Theodor

Busbeck (tendo em vista que estão relacionados à pesquisa que este desenvolve) e

com isso aportam, na constituição do personagem, os dados do nazismo e do

Holocausto. Com efeito, o papel legitimador do discurso pseudo-científico no

contexto do nazismo, tal como exposto por Hannah Arendt no ensaio cujo trecho é

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citado no romance, encontra ressonâncias no comportamento e nas pretensões de

Theodor Busbeck. Assim como o poder totalitário, supostamente embasado pela

ciência, chega a ocupar uma instância antes ocupada pelo próprio Deus (pois a

confiança no poder totalitário é análoga à confiança numa instância eterna e

absoluta), do mesmo modo Busbeck desenvolve a pretensão de, por meio da sua

investigação científica, adquirir uma capacidade sobre-humana e de certo modo

divina: a de prever os rumos da História e, consequentemente, controlá-los.

A publicação da obra que resulta da longa pesquisa sobre o horror

empreendida por Busbeck provoca reações inflamadas de repulsa por parte da

comunidade científica que o considera louco ou, ao menos, imbuído de

pressupostos de natureza não científica, mas religiosa, insustentáveis no âmbito da

comunidade científica, portanto. Esse furor se deve principalmente ao fato de

Busbeck apresentar uma tabela que contém, nominalmente, os países que irão

participar de massacres no futuro, seja como vítimas, seja como carrascos. A

respeito do trabalho de Busbeck, o narrador nos informa: “Havia, de facto, em

Theodor Busbeck, uma convicção enorme na sua teoria; crença que tocava o

místico, o não racionalizável; teoria sentida como explicação universal, ‘sem

excepções’”70. Os seus eventuais simpatizantes consideram que é justamente nesse

elemento que “toca o místico” que reside a grandiosidade da teoria de Busbeck, já

os seus detratores identificam aí, pelo contrário, a sua loucura. É a respeito da

pesquisa de Busbeck e das aproximações que o personagem revela, em sua

constituição pessoal e no seu empreendimento científico, com o domínio totalitário

que vou discorrer no item seguinte.

3.2 THEODOR BUSBECK E O DOMÍNIO TOTALITÁRIO

A pretensão do personagem Busbeck de ser capaz de prever e controlar os

futuros acontecimentos da História pode ser posta em paralelo, conforme afirmei

acima, com a intenção de domínio totalitário do regime nazista. Na verdade o

personagem poderia ser aproximado, mais concretamente, no que se refere às suas

disposições e conformação psicológica, aos membros dos escalões mais altos da

70

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 196.

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hierarquia totalitária. Em Origens do totalitarismo, ao analisar a formação do

movimento totalitário nazista, Hannah Arendt expõe como Hitler procurou dividir as

massas em duas categorias: os simpatizantes (a maioria) e os membros do Partido

(a minoria). Tal divisão se baseava na ideia de que a maior parte das pessoas é

demasiado preguiçosa e covarde para qualquer ato que ultrapasse o simples

conhecimento teórico. Contudo, as organizações de simpatizantes eram tão

essenciais ao funcionamento do movimento quanto os verdadeiros membros. A

organização dos simpatizantes do movimento em grupos de vanguarda fez com que

o movimento e sua propaganda fossem mais facilmente aceitos pelo mundo externo.

“As organizações de vanguarda funcionam nas duas direções: como fachada do

movimento totalitário para o mundo não-totalitário, e como fachada deste mundo

para a hierarquia interna do movimento”71, diz Arendt. O movimento totalitário,

prossegue Arendt em sua análise, ataca o statu quo mais radicalmente do que

qualquer antigo partido revolucionário, e isso (que a princípio parece tão inadequado

para organizações de massa) se deve à sua organização que, por meio dos grupos

de vanguarda dos simpatizantes, proporciona um substituto temporário para a vida

comum, não-política, que o totalitarismo pretende abolir.

Já os membros do Partido, propriamente, possuem um papel inteiramente

diferente na conformação do movimento totalitário. Dentre os membros comuns (que

já se diferenciam dos meros simpatizantes) destacam-se as formações de elite, os

grupos paramilitares, cuja função, afirma Arendt,

é exatamente oposta àquela das organizações de vanguarda: enquanto as últimas emprestam ao movimento um ar de respeitabilidade e inspiram confiança, as primeiras, disseminando a cumplicidade, fazem com que cada membro do Partido sinta que abandonou para sempre o mundo normal onde o assassinato é colocado fora da lei, e que será responsabilizado por todos os crimes da elite.

72

Acima das formações de elite encontra-se o círculo interno de iniciados que

rodeia o Líder, centro e motor do movimento totalitário, o qual, conforme pensa

Arendt, deve a liderança mais à sua capacidade de administrar e manipular as lutas

internas do Partido do que às suas qualidades demagógicas ou burocrático-

organizacionais.

71

ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 416. 72

ARENDT, H. Op. cit., p. 422.

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O principal papel dessa estrutura organizacional deriva da sua significativa

capacidade de estabelecer e proteger um mundo fictício (o mundo da ficção do

triunfo da dominação totalitária) por meio de constantes mentiras. A dinâmica entre

credulidade e cinismo funciona da seguinte forma dentro do movimento totalitário:

quanto mais alto o posto nos escalões do movimento, mais o cinismo tende a

prevalecer sobre a credulidade. Na realidade, o único grupo que deve acreditar leal

e textualmente nas palavras do Líder são os simpatizantes. Arendt sintetiza:

O resultado desse sistema é que a credulidade dos simpatizantes torna as mentiras aceitáveis para o mundo exterior, enquanto, ao mesmo tempo, o gradual cinismo dos membros e das formações de elite afasta o perigo de que o Líder venha a ser forçado, pelo peso da sua própria propaganda, a legitimar as próprias declarações e o próprio simulacro de respeitabilidade.

73

Dessa forma, os mais altos escalões da hierarquia totalitária estão

dispensados de crer literalmente na verdade dos chavões ideológicos, e é

justamente a capacidade de distinguir entre a verdade e a mentira, mantida pelos

membros do Partido, que permite ao movimento totalitário partir para a realização

prática da ficção que ele pretende implantar. O alto escalão se caracteriza, assim,

por uma certa liberdade em relação ao conteúdo da sua própria ideologia, o que faz

com que os seus membros passem a ver “a tudo e a todos em termos de

organização, inclusive o Líder que, para eles, (...) é necessário não como pessoa,

mas como função, e como tal é indispensável ao movimento”74.

É nesse sentido que entendo que o personagem Theodor Busbeck pode ser

comparado aos membros do mais alto escalão da hierarquia totalitária, o séquito do

Líder. O que parece haver em comum entre esses homens e o personagem em

questão é a sua crença na onipotência humana e o cinismo moral que disso resulta.

Hannah Arendt afirma que os membros do séquito do Líder, apesar de não estarem

enganados pelas mentiras ideológicas que sustentam o movimento, encontram-se

iludidos pela ideia de que se pode fazer tudo e de que tudo o que consiste num

obstáculo à expansão do movimento há de ser inevitavelmente vencido pela

organização superior deste. De forma muito percuciente, Arendt assim analisa a

constituição psicológica e a atuação desses membros: “O que caracteriza a sua

lealdade não é a crença na infalibilidade do Líder, mas a convicção de que pode

73

Idem, p. 434. 74

Idem, p. 437.

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tornar-se infalível qualquer pessoa que comande os instrumentos de violência com

os métodos superiores da organização totalitária.”75

Há ressonâncias dessa mesma disposição de espírito e visão de mundo na

personagem Theodor Busbeck. A visão completa que ele pretende ter da história do

horror, buscando compreender não só o passado, como também o futuro, remete à

crença totalitária na possibilidade do domínio absoluto a partir da organização.

Theodor Busbeck conta, para que o seu intento seja possível, com as suas

habilidades investigativas, isto é, com o método próprio da atividade científica que

ele, como cientista, desenvolveu, bem como com a sua capacidade organizativa

própria de um investigador formado segundo os critérios estritos do método

científico.

A exaltação que Theodor Busbeck faz da sua capacidade científica de

compreender as coisas encontra-se largamente manifestada quando ele expõe a

Mylia, então sua esposa, os objetivos do seu exaustivo estudo. Theodor revela que

pretende compor um “gráfico do horror distribuído pelo tempo”76, para então, daí,

obter uma fórmula. “Uma fórmula que permita prever, que permita agir e não apenas

contemplar ou lamentar.”77 A intenção de Busbeck é reduzir os acontecimentos

históricos a uma fórmula que não é meramente explicativa, mas que confere ao seu

detentor um poder de prever o futuro e de agir em conformidade com isso. Essa

intenção está calcada na firme crença que o personagem possui na sua formação

científica e domínio do método. Tal crença é demonstrada pelas passagens (talvez

um tanto longas) que reproduzo abaixo (e que dão continuidade ao diálogo com

Mylia mencionado acima):

E acredito que é possível chegar a essa fórmula. Sou médico, sou um homem formado na ciência, no chão duro e compacto; não sou adepto de voos ou de saltos, sou adepto da consulta, do estudo, da comparação, dos pequenos cálculos sucessivos, da progressão, do respeito pela lentidão, pelo processo, pelos métodos, pelo progresso. (...) Chegarei a uma conclusão sem precipitações, sem gritos, sem sentimentalismos inúteis. Chegarei lá racionalmente, com ponderação, lógica, sequência. Nada será criativo, espontâneo ou improvisado. Eu sou médico, tenho instrumentos, aprendi a pensar de uma forma, tenho um plano, já to disse: primeiro recolher toda a documentação possível de modo

75

Idem, p. 438. 76

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 46. 77

Idem, ibidem.

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a chegar ao gráfico da distribuição do horror ao longo dos séculos; não sei que resultados encontrarei, mas há algo que me faz prever uma regularidade distribuída por curvas que se repetem como num eletrocardiograma humano, isso mesmo, como no percurso do coração de uma pessoa normal, é essa distribuição de curvas que espero encontrar, a regularidade do coração da História, como se fosse o outro lado da regularidade do coração de um homem, ambos os gráficos, com os seus picos, com as suas quedas, mas acima de tudo com as suas repetições, com as suas previsibilidades, com a sua normalidade. A história do horror é a substância determinante da História; e qualquer História tem uma normalidade, nada existe sem normalidade. (...) Com esse gráfico perceberei por fim o que tantos quiseram perceber, isto, simplesmente: se a História está doente ou saudável, se a História caminha no bom sentido ou no mau, se há progresso no estado clínico, deixa-me falar assim, ou se, pelo contrário, o estado do mundo piora, se degrada, desenvolve infecções, fraquezas; se a História, enfim, está ou não moribunda, se nos encontramos à beira de um novo começo, de uma segunda História, do início de um segundo eletrocardiograma na História humana.

78 (Grifo meu)

Note-se a comparação que o personagem realiza entre a atividade médica e o

modo como pretende empreender o seu estudo (ele inclusive repete duas vezes que

sua profissão original é a medicina, como se quisesse demarcar claramente o

terreno rigoroso e científico do qual provém). A História é encarada como um corpo

a ser examinado e do qual se deve extrair um diagnóstico. Um corpo, portanto, que

dá sinais de que não se encontra bem, de não ser saudável, ou, pelo menos, de ser

vulnerável à doença. A insistência numa regularidade, num padrão que se pode

depreender dos dados históricos levantados, acena para essa visão cientificista e

racionalista que assinalei estar presente nas concepções do personagem Busbeck.

O anseio dele não é simplesmente compreender, é antes organizar e organizar para,

de algum modo, agir. A sua sede por conhecer o mecanismo de funcionamento da

História possui, inicialmente (ou ao menos segundo o personagem afirma), um

propósito de intervenção positiva. Busbeck afirma querer ser capaz de salvar não

apenas os indivíduos de quem ele trata enquanto médico, mas todos os indivíduos,

mesmo aqueles que ele nem chegaria a conhecer. Contudo, esse ímpeto de

salvação se converte na sequência num ímpeto de dominação, como se pode ver na

passagem transcrita abaixo (quiçá, novamente, um tanto longa, mas cuja citação é

oportuna para que se possa acompanhar o raciocínio do personagem enunciado

pela voz narrativa numa espécie de discurso indireto livre79):

78

Idem, p. 46-48.

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55

Como médico poderia salvar indivíduos da sua geração, indivíduos com quem materialmente a sua existência se cruzava; mas com o seu projecto, utópico, de perceber o funcionamento da máquina da História, Theodor ansiava poder salvar, e de salvar se tratava – tratava-se de evitar a morte e os grandes sofrimentos e não apenas de aumentar o conforto como os inventores de determinadas máquinas conseguiam –, ansiava, pois, poder salvar indivíduos que nunca chegaria a conhecer. Como se de facto não quisesse ser médico, mas sim santo, como uma vez provocara Mylia; um santo capaz de perceber a cabeça da sua mulher, Mylia, e ainda a cabeça de todos os Homens, como conjunto, um santo inteligente capaz de perceber os miolos da História, capaz de captar o raciocínio ou, pelo menos, a forma – gráfica – de a História raciocinar. Se percebesse como a História pensava, se a encarasse como um organismo com cérebro, e se chegasse por via da documentação e da investigação a gráficos e fórmulas que explicassem os acontecimentos dos séculos, Theodor chegaria ao que milhares de homens – pequenos e grandes, violentos ou pacíficos – haviam tentado: dominar a História. Passava então do pequeno para o grande, utilizando a experiência de médico habituado a tratar de loucos: sabia que perceber os hábitos de pensamento do louco é normalizá-lo, é prever o seu comportamento, é, enfim, controlá-lo enquanto indivíduo. Sempre fora essa a sua tarefa, aprendida ao longo de anos de estudo da medicina mental. No percurso dos séculos ele procurava exactamente o mesmo: perceber como pensa a História para formular uma normalidade, e assim a poder controlar.

80 (Grifos meus)

O anseio de dominação e controle por parte de Busbeck está ligado, ainda, a

um misto de receio e atração que o personagem sente diante daquilo em que ele

próprio pode se transformar após ter, como ele pretende, uma compreensão tão

profunda do Horror, o qual ele acredita ser o motor da História:

Mas, de certo modo, Theodor receava aquilo que mais o excitava: como se veria a si próprio se chegasse ao ponto de perceber o raciocínio – e assim o considerar normal – que está na base de um campo de concentração, do extermínio de milhares de pessoas: crianças, velhos, homens mulheres? (...) Se chegar a perceber a parte louca da História, se conseguir entrar na cabeça do Horror e com esta conseguir dialogar, o que farei a seguir?

81

Não pretendo, por falta de espaço, analisar de maneira mais acurada os

recursos narrativos empregados em Jerusalém. Mas cabe assinalar que o narrador

frequentemente aproxima sua perspectiva à do personagem Theodor Busbeck e

enuncia seus pensamentos e discursos numa forma que em vários pontos se

aproxima daquilo que chamamos de discurso indireto livre, como se pode perceber

na passagem do uso de terceira para primeira pessoal, ao final do trecho acima

citado. Esse recurso narrativo expõe os meandros do raciocínio e da personalidade

de Busbeck sem que se formule um juízo moral a respeito do personagem por parte

80

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 53. 81

Idem, p. 54.

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da instância narrativa (deixando a formulação de tal juízo, talvez, a cargo do leitor).

A chave para explicar o ímpeto de domínio que Busbeck revela encontra-se

justamente nessa insinuação de identificação com a lógica do extermínio e com o

espírito totalitário. E, no final das contas, a sua própria trajetória, no plano pessoal,

se mostra compatível com essa ânsia de domínio, na medida em que o personagem

demonstra ser radicalmente incapaz de ter empatia pelas pessoas, inclusive pelas

que lhe são mais próximas, como sua ex-mulher Mylia. Busbeck acaba, de certa

forma, incorporando e reproduzindo seu objeto de estudo, o horror, na sua própria

vida. Ele concretiza o horror de modo pessoal, principalmente no tratamento que

dispensa à sua mulher esquizofrênica, sobre a qual, inclusive, Busbeck já tivera

pretensões de domínio com base no seu poder e autoridade enquanto médico. Ora,

Mylia foi sua paciente e Busbeck se casou com ela surpreendendo e contrariando a

todos do seu círculo – contrariando inclusive as recomendações da própria Mylia –

apenas para demonstrar e reafirmar a sua capacidade médica de contornar a

doença mental da mulher. Theodor se mostra bastante arrogante nesse ponto e não

esconde a sua intenção de controlar, de tomar posse da doença e da saúde de

Mylia:

- Vais casar com uma esquizofrénica?, que bom! – era a própria [Mylia] que falava assim para Theodor. Theodor não parava de lhe tentar mostrar que ela não tinha razão. - O médico sou eu, não te esqueças. Eu é que determino quando é que as pessoas estão saudáveis ou doentes. No limite sou eu – como médico – que determino quem está morto. Fui eu que aprendi durante anos com professores e manuais – sou eu que conheço a cabeça de um doente e a cabeça de alguém com saúde. Sou eu que devo dizer se és ou não uma mulher saudável.

82 (Grifo meu)

Depois dessa clara manifestação de prepotência e de crença no próprio poder

de controlar a situação, Busbeck age de forma progressivamente mesquinha e não-

empática com a mulher, o que mostra que não se uniu a ela por abnegação ou

amor, mas, antes de tudo, pelo desejo de domínio. Ele então a interna num hospital

psiquiátrico que apresenta características de instituição concentracionária, conforme

vimos. A justificativa para tal internamento é a de que Mylia “começava a ser

perigosa para si própria”83. No entanto, temos também a informação de que

82

Idem, p. 43. 83

Idem, p. 58.

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Busbeck, “sendo médico, mais do que saudável (homem robusto e repleto de

energia) era ainda alguém que exigia a saúde ao seu lado (...). Ele queria – desejava

– a saúde ao seu lado, à volta, encostada a ele.”84 Ou seja, uma das causas

determinantes para o internamento de Mylia parece ser, no fim das contas, a

rejeição de Busbeck pela mulher que ele voluntária e voluntariosamente escolhera e

cuja doença pretendera dominar.

Mas a atitude de Busbeck para com Mylia se torna mesmo explicitamente

cruel quando ele, ao saber que ela o traiu, envolvendo-se com um dos internos do

hospital, procura se vingar dela. Primeiro lhe toma o filho Kaas, fruto desse adultério,

e o adota, dando-lhe seu sobrenome, não por caridade, mas para esconder a

vergonha de um filho ilegítimo. Em seguida pede (praticamente exige) à direção do

hospital que a mulher fique em regime de isolamento (sem contato com qualquer

outra pessoa) durante um ano. Além disso tudo, resta a possibilidade (hipótese que

o romance nos permite levantar) de que Busbeck seja também responsável pela

esterilização que é feita em Mylia contra a vontade dela. No mais, Busbeck também

pode ser responsabilizado, indireta e involuntariamente, pelo assassinato de Kaas,

uma vez que o garoto sai sozinho e fica à mercê de Hinnerk, seu assassino, apenas

porque foi abandonado pelo pai adotivo.

Mas a aproximação de Theodor Busbeck com as teses e o modus operandi

do domínio totalitário pode ser apontada, ainda, a partir dos resultados a que

Busbeck chega na sua investigação, bem como da sua postura frente a eles. O

personagem desenvolve a ideia de que o motor da História, aquilo que a faz

avançar, é o mal, isto é, a força que leva à destruição de um indivíduo ou grupo de

indivíduos por outro. Nesse sentido o personagem se aproxima daquele cinismo

moral que Hannah Arendt dizia caracterizar os membros dos escalões mais altos da

hierarquia totalitária. Esse cinismo se encontra no fato de Theodor Busbeck encarar

os massacres como uma espécie de “mal necessário” à evolução, ao progresso da

História. Vejamos como o personagem formula tais ideias:

(...) formulava Theodor a hipótese de que o bem e o mal têm origem na inactividade e no tédio, e que, portanto, a actividade concreta, especializada, dirigida individualmente, provocava, pelo contrário, uma atitude moralmente neutra em relação ao mundo; a actividade – o trabalho propriamente dito – poderia ser, então, a forma de evitar os grandes horrores, os grandes massacres da História, aceitando-se porém, ao

84

Idem, p. 52.

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mesmo tempo, que também assim desapareceriam as condições para o surgir de grandes acções e de homens santos. Sendo no entanto, para Theodor, de uma absoluta evidência a reduzida importância dos actos bons, quando considerados num tempo longo, ao contrário dos actos de maldade pura, que se haviam transformado no verdadeiro motor da História. E este termo motor associava os fatos a uma determinada velocidade, não existindo aqui qualquer consideração moral. Não há motores morais ou imorais – pensava Theodor –, há motores que funcionam e fazem avançar, e há outros que não funcionam. A santidade, historicamente, não funcionava, e tal era, para ele, naquele momento, uma descoberta importante. O progresso depende apenas da velocidade do mal e das respostas que este provoca, murmurava para si próprio.

85 (Grifos meus)

Esse cinismo moral de Theodor se completa ainda com uma atitude de

suposta neutralidade (outro valor caro ao raciocínio científico e à visão cientificista),

uma atitude de quem se coloca de fora dos acontecimentos, de quem pretende ser

mero observador e organizador das coisas86. Theodor, em suma, trata o horror, seu

objeto de estudo, menos como um dado da realidade humana (e que portanto lhe diz

respeito, uma vez que ele também faz parte da humanidade e em certa medida se

confunde ou se relaciona intrinsecamente com o seu objeto de estudo) e mais como

um fenômeno da natureza. Abre-se com isso todo um campo de discussão a

respeito da epistemologia da ciência moderna, especialmente das ciências

humanas, nas quais há uma simbiose incômoda e inevitável entre o objeto e o

sujeito do conhecimento. Não pretendo desenvolver aqui essa discussão e nem me

alongar sobre como ela se encontra sugerida e amparada pelo romance, gostaria

apenas de pontuar que a pretensão de neutralidade por parte de Busbeck se

coaduna com a sua extrema incapacidade de empatia, incapacidade na qual, por

sua vez, podemos identificar traços da postura totalitária.

A respeito dessa postura totalitária, vislumbrada ao menos em parte no

personagem, gostaria ainda de trazer rapidamente à cena algumas considerações

de Theodor Adorno que, num misto de análise sociológica e psicológica, descreveu

o papel daquilo que ele chama de “personalidade autoritária” na ascensão e

85

Idem, p. 149-150. 86

Interessante observar que essas características de investigador que se coloca à parte do objeto estudado também estão presentes na prostituta Hanna, personagem de Jerusalém com a qual Theodor brevemente se relaciona e por quem se sente atraído justamente por perceber nela esses traços em comum consigo próprio. A personagem é assim descrita: “Hanna era uma prostituta insólita, cujo maior excitante surgia no modo de olhar, em que coincidiam a perversão ilimitada e a inteligência racional. Tinha um olhar de quem está a experimentar, de quem está de fora a ver o que sucede às coisas; olhar de cientista. E esse olhar era exterior até em relação ao próprio corpo; Hanna via de fora o que lhe acontecia depois de o homem lhe passar o dinheiro e o dono da pensão a chave do quarto (...)” TAVARES, G. M. Op. cit., p. 26.

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constituição do regime totalitário nazista. A “personalidade autoritária” consiste num

determinado perfil psicológico e moral (político, portanto) que se mostrou

fundamental para a expansão do movimento totalitário nazista, bem como para a

sua institucionalização nas estruturas sociais e políticas. Adorno caracteriza esse

perfil como sendo dotado de um “caráter manipulativo”, o qual se manifesta

especialmente pela disposição de tratar os demais como massa amorfa e se

distingue “pela mania de organização, pela incapacidade de vivenciar experiências

humanas em geral, por certa espécie de falta de emotividade, pelo realismo

exagerado”87. O caráter manipulativo é um “tipo com consciente coisificado”, um

“consciente que rejeita tudo que é consequência, todo o conhecimento do próprio

condicionamento, e aceita incondicionalmente o que está dado”88. Essa espécie de

fatalismo, que abre mão da reflexão ética pessoal e se coloca a serviço da

realização de uma “força superior” (as leis da natureza, no caso do nazismo) e da

concretização de um movimento supostamente inevitável (a expansão totalitária), vai

ao encontro da descrição que Arendt faz dos membros do alto escalão da

organização totalitária, os quais acreditam que tudo é possível e, portanto, que tudo

é permitido quando se trabalha em prol da organização totalitária – uma vez que

essa organização, por seguir as leis de uma instância superior (a Natureza ou a

História), já é, na verdade, vitoriosa. Esse fatalismo e essa incapacidade

(voluntariamente adquirida) de reflexão ética também se coadunam com a descrição

que Hannah Arendt realizou do burocrata nazista Adolf Eichmann, conforme

mencionei anteriormente, no primeiro capítulo, ao comentar as formulações de

Arendt em seu livro Eichmann em Jerusalém.

Theodor Busbeck também se aproxima da “personalidade autoritária” descrita

por Adorno na medida em que, tanto na sua trajetória pessoal, quanto na sua

atividade científica, ele não é capaz de encarar as pessoas como um fim em si

mesmo, mas sempre como um meio para a realização do seu ímpeto de

organização e dominação. Busbeck coisifica as pessoas e coisifica toda a realidade

humana, inclusive o horror, ignorando todo o peso ético e político que esse

fenômeno possui. Busbeck pretende tratar o horror com absoluta neutralidade e

distanciamento científicos, e, ao mesmo tempo (o que soa paradoxal, de certa

87

ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In: _____. Sociologia. Gabriel Cohn (org.) São Paulo: Ática, 1986, p. 40. 88

Idem, ibidem.

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maneira), a partir de um pressuposto ou premissa que extrapola o raciocínio

científico e a observação empírica e se aproxima da crença. Trata-se do

pressuposto, que está na base de todas as conclusões de Busbeck, de que a

História se encaminha para que o sofrimento causado por cada povo se equilibre

com o sofrimento respectivamente recebido. “(...) a História só terminaria quando os

gráficos: ‘povo A/emissor de sofrimento’ e o mesmo ‘povo A/receptor de sofrimento’

estivessem equilibrados ‘com exactidão e ao pormenor: número de indivíduos de um

lado e do outro’”89, afirma Busbeck em um dos volumes nos quais publica os

resultados da sua investigação. A tendência em direção a esse equilíbrio é o que

movimenta a História e é nesse sentido que o investigador acredita que o Horror,

isto é, os massacres são o motor da História.

Esse pressuposto de Busbeck é o que desperta furor na comunidade

científica, isto combinado à tabela profética que o cientista elabora com base no

levantamento do “saldo de sofrimento” de cada povo. Tabela na qual ele anuncia,

explícita e nominalmente, os povos que serão vítimas e promotores de massacres

nos próximos séculos. A atitude de Busbeck, esse coroamento da sua investigação

que a tal tabela que acompanha a publicação do seu trabalho representa, é vista por

parte dos seus colegas cientistas como uma coisa brutal, desnecessária e mesmo

obscena. Essa hostilização se dirige, como apontei, ao misto de rigor científico, de

frieza e implacabilidade que se combinam ao pressuposto acerca do mecanismo da

História, pressuposto que é considerado irracional e insano. Busbeck é acusado de

loucura e de misticismo. Um cientista (cujo país está referenciado na tabela), que

publica um artigo refutando as formulações de Busbeck, se dirige a ele desta forma:

“(...) Vossa Excelência com este estudo e com as precipitadas conclusões que tirou

de uma vasta – meritória, nesse sentido – acumulação de números, mostrou que

não é verdadeiramente um cientista, mas sim, e desculpe dizê-lo publicamente, um

louco.”90 E assim conclui, após recomendar a Busbeck que busque tratamento junto

aos profissionais do Hospício Georg Rosenberg: “Com eles, estou certo, recuperará

também a consideração científica dos seus pares, perdida por completo com os

disparates religiosos que agora publicou.”91

89

TAVARES, G. M. Op. cit., p. 193. 90

Idem, p. 196. 91

Idem, p. 197.

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61

Essa combinação de rigor científico e organizativo com a crença numa

proposição não racionalizável encontra ecos, novamente, naquela descrição feita

por Arendt dos sujeitos mais diretamente empenhados na concretização do domínio

totalitário.

O romance como um todo, no entanto, acaba por inserir tanto Theodor

Busbeck quanto a sua investigação numa condição ambígua: o seu trabalho a

princípio parece que deve ser visto como um empreendimento de uma mente louca

e dominadora (pior, portanto, do que a mente “inocentemente louca” da mulher que

ele repudiou). Um trabalho, portanto, que não tem nenhuma contribuição relevante

ou positiva a dar à humanidade. Isso se confirma pelo fato de a sua obra já não

despertar nenhum interesse nos anos que se seguem à sua publicação. O narrador

nos relata, com certo deleite maldoso, que um ou outro dos cinco volumes da sua

monumental investigação podia ser encontrado, no futuro, “numa livraria de livros

antigos e baratos; livros que juntavam temas tecnológicos ultrapassados a receitas

gastronómicas já fora dos hábitos das pessoas e que, portanto, eram aquilo que o

próprio livreiro designava como “livros de outras gerações (...)”92. E conclui, num tom

algo triunfal: “Duas gerações depois de Busbeck, um volume da sua investigação

poderia ser comprado pelo preço de dois cafés.”93 As ideias de Busbeck, e

principalmente a sua polêmica proposição acerca do mecanismo que rege a História,

ao caírem no mais completo descaso, parecem não se confirmar. Parecem terem

sido desautorizadas pela própria narrativa.

Contudo, há uma ambiguidade quanto ao destino e à colocação da

investigação e das ambições de Busbeck que não se pode ignorar. Pois rejeitar e

relegar ao esquecimento as supostas previsões megalomaníacas de Theodor

Busbeck, sob a alegação de que sua investigação beira à loucura e se aproxima de

um fanatismo comparável ao fanatismo religioso, pode significar, por outro lado, não

querer encarar a possibilidade de que o Horror venha a se repetir na História. E

ignorar ou esquecer a própria história é também um passo em direção à loucura (na

medida em que significa deixar de compreender devidamente a realidade). A

necessidade da lembrança, da manutenção da memória, bem como os perigos do

esquecimento, ecoam na citação do trecho do salmo 137, “Se eu me esquecer de ti,

92

Idem, p. 198. 93

Idem, p. 199.

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Jerusalém, que seque a minha mão direita”, ressignificando, desse modo, o texto

proveniente da esfera religiosa. A necessidade da lembrança, aqui, deixa de ter a

natureza de um pacto com o divino (a Aliança de Deus com o povo eleito) e se torna

o pacto fundador de uma comunidade humana: o não-esquecimento da própria

história, e especialmente dos eventos traumáticos dessa história, se torna um

elemento fundamental para a manutenção e a sustentabilidade das relações sociais

contemporâneas. Daí a insistente preocupação moderna com a verdade histórica –

preocupação que ainda hoje ronda fortemente os estudos e discussões acerca do

genocídio provocado pelo nazismo –, pois tal verdade se torna indispensável para

orientarmos nossas ações futuras.

Por fim, gostaria apenas de ressaltar brevemente que a apropriação e a

ressignificação de elementos provenientes do contexto religioso – como é o caso do

salmo 137, que pode ser visto como uma espécie de leitmotiv do romance – é um

procedimento bastante marcante e recorrente em Jerusalém94, o que faz emergir

uma discussão acerca do estatuto das categorias éticas, filosóficas e religiosas que

empregamos, num contexto dito “dessacralizado”, para perceber e analisar certos

episódios e fenômenos da história contemporânea. Quer dizer, continuamos tendo a

necessidade de falar das coisas em termos de Bem e Mal (Hannah Arendt usa a

imagem do Inferno para falar dos campos de concentração, como vimos) e sentimos

a necessidade de buscar diretrizes éticas e morais que permitam a nossa existência

em comunidade. Mas, ao mesmo tempo, nos encontramos no impasse de perceber

essas coisas predominantemente sob o aspecto da sua materialidade e mutabilidade

históricas, aspecto segundo o qual não é possível falar nem de mal e bem, nem de

princípios morais, em termos absolutos.

94

Há várias outras referências a elementos do contexto religioso, cito algumas: 1) a teoria de

Theodor Busbeck de que a saúde se compõe de três aspectos: o físico, o mental e espiritual, de modo que “um homem que não procure Deus é louco. E um louco deve ser tratado” (TAVARES. Op. cit., p. 56); 2) a fome de Mylia, comparada à fome que Jesus sente após jejuar durante quarenta dias no deserto (segundo Mt 4,1, trecho que é citado na p. 208-9 – lembrar que Mylia tem quarenta anos de idade, e Jesus permaneceu quarenta dias no deserto, o que normalmente é indicado como um símbolo do êxodo de quarenta anos do povo hebreu); 3) a morte de Kaas, assassinado por Hinnerk, que pode ser posta em paralelo com o sacrifício de Cristo, o sacrifício perfeito da vítima perfeitamente inocente, bem como com toda a tradição sacrificial já presente na Antiguidade; 4) a figura de Kaas pode ainda ser posta em paralelo com a do menino Jesus “perdido e reencontrado no templo”: Jesus, aos 12 anos de idade, perde-se (propositalmente) de seus pais na viagem que eles fazem ao templo de Jerusalém, por ocasião da Páscoa; Kaas, também aos 12 anos, perde-se de seus pais, mas porque é abandonado por eles; porém, ao contrário de Cristo, Kaas não é a vítima perfeitamente inocente, pois nele apontam atitudes de egoísmo e violência.

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É esse impasse que a obra em geral de Gonçalo Tavares, e Jerusalém em

particular, coloca em cena. No caso do romance aqui analisado isso parece se dar

principalmente por meio do paralelo que se estabelece entre a fé e a loucura

(paralelo encarnado em Mylia) e, simultaneamente, entre a racionalização e a

loucura (paralelo encarnado em Busbeck). A associação da loucura tanto à fé

quanto ao pensamento racional parece que aponta para o fato de que nem a lógica

racional e cientificista, nem as categorias da nossa tradição de pensamento

metafísico e religioso conseguem dar conta, isoladamente, de pensar o mundo

contemporâneo e de definir as ações que devemos tomar nele. Esse mundo que,

após acontecimentos traumáticos do porte do Holocausto nazista, viu posta em

xeque a própria possibilidade da existência humana em comum.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste trabalho foi fornecer uma possível chave de leitura e

interpretação para o romance Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares, a partir da análise

do tema do Holocausto, que considero estar figurado nesta obra. Procurei analisar

como essa figuração se dá e relacioná-la a aspectos tanto formais quanto de

inserção discursiva do texto ficcional. A fortuna crítica acerca da obra de Gonçalo

Tavares ainda é consideravelmente reduzida e a presença do autor português no

âmbito acadêmico apenas começa a se dar. Diante disso, os comentários e análises

que consultei sobre Jerusalém (e sobre a produção de Tavares em geral) procedem,

muitos deles, da crítica jornalística que encontrei na forma de entrevistas com o

autor e resenhas de seus livros, bem como de manifestações do próprio autor

acerca da sua atividade literária. Não obstante, pesquisei e consultei também as

produções acadêmicas que começam a surgir. Esbocei assim um panorama (ainda

que não explicitamente exposto neste trabalho) da incipiente crítica acadêmica à

obra de Gonçalo Tavares.

Para a análise do tema do Holocausto, procedi a um estudo interdisciplinar,

trazendo à cena as formulações de autores da filosofia e da sociologia acerca desse

acontecimento histórico. Tomaram papel de destaque neste diálogo as formulações

da filósofa Hannah Arendt, devido à sua presença, por assim dizer, textual no

romance Jerusalém. Não pretendi tratar o romance de Gonçalo Tavares como se ele

apenas ilustrasse as teorias e concepções de Hannah Arendt acerca dos fenômenos

do totalitarismo e do Holocausto, mesmo porque, conforme ressaltei na introdução e

no primeiro capítulo deste trabalho, Jerusalém não tematiza exclusivamente e nem

de maneira estritamente referencial esses acontecimentos. O que ocorre, e foi essa

convergência que procurei captar, é que o fenômeno do totalitarismo e dos

massacres em grande escala, bem como os movimentos históricos de base,

característicos do mundo moderno, que possibilitaram tais fenômenos, podem ser

captados por diferentes registros ou discursos, no caso: o registro filosófico-político

das análises de Hannah Arendt e de outros autores, e o registro criativo-ficcional de

Gonçalo Tavares. O que me interessou foi perseguir como esses dois registros

convergem e conversam, isto é, como as mesmas realidades do mundo são

diferente e complementarmente abordadas nos dois. Ressalto, no entanto, que

minha análise teve por prioridade realizar o confronto com o texto literário, que é o

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objeto primeiro e direto deste trabalho, e que os textos e considerações de Hannah

Arendt e de outros pensadores me valeram apenas na medida em que por meio

deles é possível trazer à tona a realidade extra-literária cuja figuração operada no

romance de Tavares me interessou analisar.

Espero ter contribuído, mesmo que modestamente, para o mapeamento dos

temas e recursos formais presentes na ficção de Gonçalo Tavares, em particular no

romance Jerusalém, e assim ter minimamente colaborado com o desenvolvimento

da fortuna crítica a respeito do autor. Minha contribuição pretendeu estar calcada no

diálogo que o texto de Tavares estabelece com a realidade histórica e com debates

da área de teoria política, e também buscou propor a possibilidade (e a

necessidade) de integração do texto literário aos debates contemporâneos acerca

das formas de gestão do poder.

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