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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO O LIRISMO ACOLHEDOR DA POESIA DE ANA MARTINS MARQUES Daniel Aparecido Veneri Rio de Janeiro 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

O LIRISMO ACOLHEDOR DA POESIA DE ANA MARTINS MARQUES

Daniel Aparecido Veneri

Rio de Janeiro

2019

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O LIRISMO ACOLHEDOR DA POESIA DE ANA MARTINS MARQUES

Daniel Aparecido Veneri

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do

Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura

Brasileira).

Orientadora: Professora Doutora Maria Lucia

Guimarães de Faria

Coorientador: Professor Doutor Eduardo dos

Santos Coelho

Rio de Janeiro

2019

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O LIRISMO ACOLHEDOR DA POESIA DE ANA MARTINS MARQUES

Daniel Aparecido Veneri

Orientadora: Professora Doutora Maria Lucia Guimarães de Faria

Coorientador: Professor Doutor Eduardo dos Santos Coelho

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas

(Literatura Brasileira).

Examinada por:

______________________________________________________________________

Presidenta – Profa. Dra. Maria Lucia Guimarães de Faria – PPGLEV – UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Celia de Moraes Rego Pedrosa – POSLIT – UFF

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Martha Alkimin de Araújo Vieira – PPGCL – UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Laíse Ribas Bastos – Letras Vernáculas – UFRJ – Suplente

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Thaís Seabra Leite – Colégio de Aplicação da UFRJ – Suplente

Rio de Janeiro

2019

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Veneri, Daniel Aparecido.

O lirismo acolhedor da poesia de Ana Martins Marques / Daniel

Aparecido Veneri. Rio de Janeiro: UFRJ / FL – 2019.

84 f.

Orientadora: Maria Lucia Guimarães de Faria.

Coorientador: Eduardo dos Santos Coelho.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas, 2019.

1. Poesia Brasileira Contemporânea 2. Ana Martins Marques. 3.

Lirismo Acolhedor. I. Faria, Maria Lucia Guimarães de, orient. /

Santos, Eduardo Coelho dos, coorient. II. Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas. III. Título.

.

1. Mário de Sá-Carneiro. 2. Literatura Portuguesa. I. Veneri, Daniel Aparecido. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2016. III. Título.

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Dedicatória

Ainda que não te fossem dedicadas

todas as palavras nos livros

pareciam escritas para você

O livro das Semelhanças, Ana Martins Marques

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Agradeço

Aos meus pais e irmãos, que sempre me apoiaram nos estudos mesmo diante de

tantas adversidades que enfrentamos.

A minha orientadora, Maluh, eterna rainha da Faculdade de Letras, da Literatura

Brasileira e do meu coração.

Ao meu coorientador, Eduardo Coelho, que me ensinou a olhar a poesia de uma

forma única e irreparável.

A Christine Nicolaides, pela amizade, conselhos, puxões de orelha e

acolhimento. Sem você eu não teria percebido “que a vida não é só isso que se vê / é um

pouco mais...”.

A todos os meus professores, pelo incentivo e apoio incondicional, já que sem a

roda de leitura compartilhada da Tia Cassinha, sem os projetos de escrita e poesia da

professora Sílvia Oliveira, nada disso aqui seria possível.

A Dona Fernanda Margarida Galvão Cintra, in memoriam, por ter transformado

muitas vidas inclusive a minha e de minha família.

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas por se manter em pé

mesmo diante de tantos retrocessos e cortes de investimentos em Ciências Humanas no

Brasil.

A Roberta, pois sem sua amizade eu já teria me lançado nos trilhos do trem.

A Carla, companheira de todos os instantes irreparáveis da minha vida.

A Quezia Fortunato, por todo companheirismo e por ser minha irmã aqui do RJ.

A Paula Rangel, uma amizade que nunca me abandonou.

A Luana, rainha dos memes e das risadas que me fizeram prosseguir com mais

leveza.

Ao Marcos Matheus Diniz, grande poeta e meu companheiro de madrugadas

afora.

Ao Jason Leonardo, por sempre acreditar em mim e me fazer um rapaz mais

elegante e corajoso.

Aos meus amigos, Roberto Carlos Guize, Agostine Braga e Vitor Santos, sem

vocês na travessia eu certamente teria me afogado.

Aos meus amigos, João Mercadante e Victor Schlude, meus irmãos de luta.

As meninas Leites de Niterói, por me alimentarem de tanto amor e ao Daniel

Cadilhe, responsável por efetivar minha matrícula da graduação na UFRJ.

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À CAPES, pelo seis meses de bolsa de estudo que me possibilitou seguir adiante

com a pesquisa.

Ao Eduardo Coutinho, meu primeiro orientador e grande mestre da Literatura

Comparada.

A Monica Amim, pelo afeto e apoio desde o meu terceiro período da graduação.

Ao Colégio São Miguel Arcanjo, junto de seus professores, funcionários e

alunos que me acolheram de uma forma indescritível.

À Residência Estudantil da UFRJ pela habitação durante cinco anos. O que seria

de um menino pobre e do interior de SP no RJ sem o Alojamento Universitário?

Ao Restaurante Universitário da UFRJ que me alimentou e alimenta até o dia de

hoje, dia da minha defesa.

Ao MARP (Movimento de Ação Rural do Bairro do Pantaleão) e à Associação

Guarda Mirim de Amparo, duas entidades que me formaram enquanto “gente” e cujos

aprendizados levarei comigo por toda eternidade.

A Thainá Felix, eterna gratidão por tantos gestos de delicadeza para comigo.

A Naitan e ao João, dois amigos, duas doçuras de gente.

Ao Thiago Gonzalez, peixe azul, da minha vida submarina.

Ao Fábio Silva, por estar comigo a cada instante mesmo quando tudo parecia

desabar.

Ao meu eterno amor, Eduardo Mooney, cujos olhos – não há nada, neste mundo,

que possa descrevê-los, nem os poetas em quem tanto confio.

A minha eterna e única namorada, Sarah Jean Johnson, por sempre me ensinar o

que amar quer dizer.

Ao governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelos projetos de

expansão e incentivo à educação em seus diversos níveis, por ter transformado a vida de

muitos, assim como a minha.

Aos amigos, que me ajudaram a chegar até aqui!

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Que lugar e papel tem a poesia de Ana em nosso tempo?

Creio haver nela uma articulação rara entre a captação de experiências sensíveis essenciais

que se apresentam como súmulas de uma poética; uma sensibilização aguda nas experiências

cotidianas, que imediatamente se abrem ao campo da investigação; uma configuração muito

pessoal de um sujeito que prefere a força da insinuação à definição de uma presença; uma

discreta ironia que se instala entre uma percepção definida das coisas e uma sombra dela

projetada em abismo; um compromisso com a exposição do fazer poético no interior mesmo da

experiência revelada. Em suma, a autoria madura de quem encontrou seu lugar de sujeito entre

os desafios da massificação e da impessoalidade que regem nosso tempo.

Alcides Villaça

A caneta marca AMM / é à prova d’água, por isso / não precisa de diques, nada / e vai fundo,

para o que der e vier. / É única, não é feita em série / e só funciona na mão dela. / Neste envoi,

escrevo com a minha / e firmo: como é bom ter de novo / uma poeta chamada Ana.

Canetas emprestadas, Armando Freitas Filho

Uma cultura viva dará sem dúvida grande importância à poesia pois estará apta a respeitar a

invenção de novas possibilidades de significação (e de vida).

Não é a cultura que precisa da poesia, para se enriquecer, é a poesia que precisa de

uma cultura que a permita, isto é, que aceite que há em cada homem a potencialidade

de se relacionar com os outros pela afirmação da sua dissemelhança, a sua maneira

única de participar do mundo. Para que a poesia continue a ser possível, para que o

humano não se esgote na eficácia, é preciso uma intervenção política que dê primazia à

educação, à preparação para construir um mundo em que possam existir falas-

aventuras, falas que abram caminho através do desconhecido. Ser responsável perante

o que vem (através da construção do mundo que se deixa em herança) implica a

responsabilidade pela poesia – a defesa de que nada é certo. A Cultura precisa da

poesia. Precisa de falas atentas ao princípio – incondicionalmente atentas.

Silvina Rodrigues Lopes

Ser contemporâneo é criar o próprio tempo e não só refleti-lo. Refleti-lo, sim, mas não como

um espelho, antes como um escudo.

Marina Tsvetaeva

O verdadeiro leitor deve ser o autor ampliado.

Novalis

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VENERI, Daniel Aparecido. O lirismo acolhedor da poesia de Ana Martins Marques.

Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da

UFRJ, 2019.

Resumo

No poema “Trapézio” de A vida submarina, primeiro livro de Ana Martins Marques, o

sujeito lírico afirma: “Todos os poemas são de amor”. Em outro momento, em um de

seus poemas-epígrafe, que abre a seção que dá título ao seu segundo livro, Da arte das

armadilhas, se indaga: “A linguagem / sem cessar / arma / armadilhas // O amor / sem

cessar / arma armadilhas // resta saber / se as armadilhas / são as mesmas // Mas como

sabê-lo / se somos nós as presas?”. Por fim, n’O livro das semelhanças, se diz, no

poema “Dedicatória”: “Ainda que não te fossem dedicadas / todas as palavras nos livros

/ pareciam escritas para você”. Nos três livros de poesia da autora, irradia-se a temática

lírico-amorosa, endereçada na maioria das vezes à própria linguagem, que é convocada

como modus operandi para um desvelamento, o despertar de algo. A poeta se depara

com a linguagem que é, por excelência, mistério e cesura, mas, ao mesmo tempo,

espaço para conversão num gesto ontológico de criação, assim como a rota cartográfica

do amor que o sujeito lírico está disposto a percorrer por meio dos versos para o alcance

de um “você”. Partindo de uma estrutura altamente rigorosa no modo de construção,

que atinge o ápice com O livro das semelhanças, a lírica de Marques oferece o alto

nível metapoético do que podemos chamar de metalivro. A temática lírico-amorosa está

a serviço do que, ao modo de Maria Lucia Guimarães de Faria, se pode conceber como

“tirar lição poética de tudo”. Alcançar a palavra exata, devolver à palavra sua potência,

até então despercebida, é de certa maneira alcançar o amor. Na poesia de Ana, todas as

partes convergem para um todo, no qual até mesmo os objetos da casa, do cotidiano,

figuram a própria poesia, já que para a poeta, dotada de um lirismo altamente acolhedor,

a poesia é a “forma de prestar atenção nas coisas”, conforme declarou em uma

entrevista à revista Ciência Hoje.

Palavras-chave: Ana Martins Marques; Lirismo Acolhedor; Poesia Brasileira

Contemporânea.

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VENERI, Daniel Aparecido. O lirismo acolhedor da poesia de Ana Martins Marques.

Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da

UFRJ, 2019.

ABSTRACT

In the poem “Trapeze”, of Submarine Life, first book published by Ana Martins

Marques, the poetic persona says: “All poems are love poems”. In one of her poems-

epigraphs, which opens the section that shares the title of her second book, On the Art of

Traps, the lyric self asks: “Language / incessantly / lays / traps. // Love / incessantly /

lays traps // it remains to know / whether the traps / are the same. // But how to find out

/ if we are the preys?” Finally, in The Book of Similarities, her third book, the poem

“Dedication” announces: “Even if they were not dedicated to you / all the words in the

books / seemed written to you”. In the three books, the lyric-love theme spreads out,

mostly addressing language itself, which is summoned as the modus operandi for an

unveiling, the awakening of something. The poet faces language that, par excellence, is

mystery and caesura, but, at the same time, the place for a conversion into the

ontological gesture of creation, such as the cartographical love route which the lyric self

is willing to traverse, by means of the verses, in search of a “you”. Taking as its starting

point a highly rigorous structure in the mode of construction, whose summit is The Book

of Similarities, Marques’ lyric offers the high metapoetic level of what can be called

“metabook”. Her lyric-love theme serves the purpose of, as Maria Lucia Guimarães de

Faria put it, “extracting a poetic lesson of everything”. Reaching the exact word, giving

back to the word its so far neglected potency, is a way of attaining love. In Ana’s

poetry, all parts converge to a whole, in which the very objects of the house, of

everyday life, figure poetry, since for her, whose lyricism is deeply hospitable, poetry is

the “way of paying attention to the things”, as she declared in an interview to the

periodic Science Today.

Keywords: Ana Martins Marques; Hospitable Lyricism; Contemporary Brazilian

Poetry.

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Sumário

Introdução ................................................................................................................................. 12

Carta ao leitor ........................................................................................................................... 15

Retrato da artista ....................................................................................................................... 16

1. A vida submarina ou o abismo é luminoso ........................................................................... 19

2. Da arte das armadilhas ou nau, naufrágio .......................................................................... 32

3. O livro das semelhanças ou chão, estilhaço......................................................................... 50

O fim é o começo...................................................................................................................... 70

Referências ............................................................................................................................... 78

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Introdução

Da podridão

As sereias

Anunciarão as searas.

Oswald de Andrade

Nunca me esqueço de um texto que o professor Eduardo Coelho me indicou

durante as aulas do mestrado. O artigo era “Pós-Modernismo e volta do sublime na

poesia brasileira” de autoria do professor Italo Moriconi. Nele o crítico traçava um

panorama da poesia desde a geração dos anos 70 para então analisar a cena poética

contemporânea em que estava inserido. O texto foi apresentado no seminário, “Poesia

hoje”, realizado em 1997 na UFF e ainda traz consigo ares de atualidade. Entretanto, o

que eu gostaria de destacar para esse início de conversa é um trecho em que o autor

assinalava em forma de minimanifesto o que estaria faltando na poesia brasileira de seu

tempo. Diz ele:

No momento atual, talvez o que esteja faltando na poesia brasileira seja o uso de uma

linguagem mais solta, a busca de maior dramaticidade na linguagem, a volta ao

coloquial e ao verso livre como estratégias dessublimadoras e de reimersão da poesia na

experiência, na vida e – por que não? – no espaço público, onde as falas que contam se

cruzam. Quem sabe uma volta culturalizada aos princípios mais básicos da revolução

contracultural. (...) Trata-se porém de dar força à pura e simples vontade de trocar

suspiros poéticos, saudades, águas de cheiro, pela convulsão da beleza, pela beleza

convulsionada, convulsiva. A busca da beleza, a busca da beleza, nossa corruptora.

(MORICONI: 1997, p. 23-24)

Acho que os deuses não só escutaram as preces de Moriconi como atenderam a

seus pedidos já que a poesia de Ana Martins Marques traz consigo todas essas

características elencadas no minimanifesto, e ainda mais, conforme pretendo mostrar nas

páginas que se seguem. O objetivo principal desta dissertação de mestrado, que se

vincula à linha de pesquisa “Estudos da poesia brasileira”, é perscrutar o trabalho da

poeta mineira AMM, por meio de um estudo aprimorado do corpo dos seus livros e dos

seus poemas, na maioria das vezes metapoéticos, cujas tramas, recolhidas a partir da

observação da vida, são trabalhadas na engenhosidade profunda dos poemas e

constroem uma elaborada dimensão temática lírico-amorosa destinada à linguagem, à

alteridade e à beleza num ritmo prosaico e acolhedor que convidam o leitor a uma

fruição intensa e visceral.

Tudo partiu da provocação causada pelos poemas d’O livro das Semelhanças,

primeiro livro que li da autora, obra que parece estar sempre aberta às novidades e

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possibilidades da experiência que a linguagem proporciona, e por isso mesmo dela exala

uma rajada de vento novo, permeada de beleza e consciência, imbricando lirismo e

antilirismo. Como Manuel Bandeira, que nunca se prendeu a fisionomias de formas

vigentes de seu tempo, mas foi absorvendo todas elas e ressignificando-as, nossa autora

não cessa de buscar o diálogo com a tradição poética e no mesmo compasso com as

poéticas de seu tempo alcançando assim em seus poemas uma universalidade e uma

comunhão criativa das formas.

Interessante destacar ainda que ambos alcançam em suas poéticas, em que

pesem as diferenças, uma dicção própria e inovadora que encanta pela aparente

simplicidade, mas é dotada sempre de uma aguda sofisticação no ato permanente de

investigação poética, unindo tradição e inovação, brindando e brandindo a pluralidade

da linguagem, “acendendo um poema em outro poema / como quem acende um cigarro

no outro”, para citar a poeta, que chega a montar um livro de poemas com o leitor

permitindo sempre a relação entre poesia e realidade mesmo que muitas vezes elas não

se cruzem. Os princípios de delicadeza não se dissipam em suas poéticas, e os poetas

aproveitam as novidades passadas ou presentes do leque literário, manuseando-as,

libertando-as e dando-lhes altos índices de luminosidade, chegando ao momento em que

a poesia ultrapassa a si mesma e atinge em cheio a vida, suas mazelas, vicissitudes e

alegrias.

Embora tomemos como foco principal de investigação O livro das semelhanças,

nossa pesquisa estabelece parceria com outras obras da autora, uma vez que a repetição

e a recorrência de certas imagens, temas e motivos criam uma unidade de conjunto e

uma forte noção de continuidade de obra a obra. Vale, para o total da obra de Ana, a

observação de Kayser (1970: p. 209): “na viva obra de arte não há isolamento de partes

separadas: todas as formas se transcendem sempre a si próprias e atuam

conjuntamente”.

É uma poesia corajosa a de Ana por resgatar, mas sem cair no clichê, grandes

temas universais, a que tantos poetas se dedicaram e dedicam, como o amor, o cotidiano

e a escrita. Palmilhando crítico-amorosamente a obra de Ana, nossa pesquisa busca

contribuir para a fortuna crítica da poesia brasileira contemporânea em seu pleno voo,

no qual várias formas poéticas parecem se tocar, buscando uma comunhão, mas antes de

tudo, uma comunicação e a escuta participante de seus leitores, além de servir como

ponte para o que poderíamos vir a chamar de lírica da contemporaneidade.

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Um dos grandes impulsos para o estudo da poesia contemporânea brasileira me

veio da leitura de uma das conferências do teórico francês Didi-Huberman intitulada

Que emoção! Que emoção?, em particular da passagem em que ele lucidamente afirma:

É fácil esperar que uma coisa esteja morta para dizer o que é. Isso se chama metafísica.

Não é o meu negócio, eu prefiro que Sócrates continue vivo, que a borboleta continue

voando, mesmo que eu não possa pregá-la em um pedaço de cortiça para dizer que a

borboleta “é” – decididamente – azul. Prefiro não ver completamente a borboleta,

prefiro que ela continue viva: essa é minha atitude quanto ao saber. Eu a vejo aparecer e

tento pôr meu olhar em palavras, em frases. Mas esse é um olhar tão frágil e furtivo

quanto são as minhas frases; se elas forem impressas, elas durarão, para o bem e para o

mal. Seja como for, é inevitável que a borboleta desapareça, já que é livre para ir onde

bem quiser, e não precisa de mim para viver sua liberdade. Ao menos eu terei apanhado

em pleno voo, sem guardar apenas para mim, um pouco de sua beleza. (DIDI-

HUBERMAN: 2016, p. 62)

A cada página lida da poesia de AMM eu queria guardar um pouco dessa beleza

em pleno voo de que fala Didi-Huberman com tanta verdade e singeleza. Assim nasceu

esta pesquisa e a investigação do lirismo de uma poeta complexa e artisticamente bem

dotada na atualidade. Com ela não aprendi somente sobre poesia. Verifiquei que, por

trás de uma linguagem aparentemente simples, na verdade, se camufla uma

autenticidade rigorosa, pois é nela que reside a verdadeira originalidade dos grandes

poetas de que fala Paz (2017: p. 36), e que está presente de ponta a ponta na obra da

poeta que mesmo em meio a tanta podridão de nosso tempo ainda consegue cantar,

como as sereias de Oswald de Andrade, o anúncio das searas.

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CARTA AO LEITOR

Aprender a poesia com Ana Martins Marques1

“Eu não sei falar / as palavras certas / não sei demonstrar /

teoremas / não sei traçar / mapas, diagramas / não sei

interpretar / sonhos ou cartas / e só posso te dedicar / este

desenho / que ainda não existe.” (MARQUES: 2009, p. 118).

Ao analisar um poema sempre percebo que tenho mais entusiasmo que talento

para tal feito assim como a personagem principal do filme Frances Ha (se não assistiu,

assista, por favor) e sua relação, até certo momento, desastrosa com a dança. Então, meu

querido leitor, não fique bravo se as interpretações estiverem longe de serem

consistentes interpretações, apenas foque na coreografia em linguagem que os poemas

de Ana Martins Marques suscitam e os sonhos que eles evocam. Sempre quis uma

dissertação que se comunicasse efetivamente com todo tipo de leitor, assim como as

poesias contemporâneas – e também não – que leio sempre o fazem. Nunca quis

distância, apenas aproximação entre escrita e leitor. Não sei se vou conseguir, mas

tentarei até o fim, assim como diz a canção “aprender a ler / pra ensinar meus

camaradas”. Não se chateie também leitor se em certos momentos eu citar referências

de filmes, livros, canções, se as cito, é só porque elas me constituem enquanto ser vivo e

leitor do mundo – se elas não me tocassem profundamente não estariam aqui.

Não é fácil escrever e nem analisar poemas. Sempre me lembro de Clarice

Lispector em A hora da estrela quando está criando a personagem que nem o nome

ainda sabe: “Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e

lascas como aços espelhados” (1977: p. 19). Clarice, sempre certeira. É realmente

difícil, ainda mais quando se trata da pesquisa de uma poeta que é trapezista da

linguagem e que não tem medo algum da queda grandiosa que pode ser a escrita / a

literatura. Os poemas de AMM são verdadeiros palimpsestos e um “lugar para pensar”

como diz o título de um de seus poemas, por isso, neles encontrei abrigo,

despenhadeiros e o lirismo acolhedor que todo leitor procura. Por isso, sempre afirmo

que a poesia de Marques, além de limpar os nossos olhos do habitual e nos fazer rever a

vida e a linguagem, é também terreno fértil, úmido e flamejante. Dela tudo brota, flui e

incendeia, pois a poesia assim como o amor é uma força da natureza. Espero leitor, que

encontre essa mesma força ao ler estas páginas.

Daniel Veneri

1 Título inspirado no artigo “Aprender a poesia com Ruy Belo” de Manuel Gusmão no livro Tatuagem e

Palimpsesto da poesia em alguns poetas e poemas, 2010.

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Retrato da Artista

Ana Martins Marques (1977) é mineira, graduada em letras, mestre em literatura

brasileira e doutora em literatura comparada pela UFMG, além de ser autora dos livros

de poesia A vida submarina (Scriptum 2009), seu livro de estreia, que recebeu duas

vezes o prêmio Cidade de Belo Horizonte de Literatura (2007-2008), Da arte das

armadilhas (Companhia das Letras, 2011), prêmio Biblioteca Nacional 2012, O livro

das semelhanças (Companhia das Letras, 2015), prêmio Oceanos 2016, e Duas janelas

(Luna Parque, 2016), em parceria com o crítico e poeta Marcos Siscar, Como se fosse a

casa (Relicário Edições, 2017), em parceria com o poeta Eduardo Jorge e, por fim, O

livro dos jardins (Quelônio, 2019). Seus poemas já foram traduzidos para o inglês,

francês, espanhol, entre outros idiomas e acaba de sair em Portugal, uma antologia com

seus poemas, pela editora Douda Correria intitulada Linha de rebentação.

Dentro do panorama da literatura brasileira contemporânea do século XXI, a

poeta parece desenhar uma nova cartografia com sua dicção aparentemente simples,

lírica e altamente trabalhada, o que nos faz lembrar o trabalho poético de Manuel

Bandeira dentro da tradição da literatura moderna brasileira, apesar de todas as

diferenças e semelhanças entre a poética de ambos. Se “todo poema autêntico é uma

aventura – uma aventura planificada”, no dizer de Décio Pignatari, Ana Martins

Marques parece mergulhar dos pés à cabeça, ou seja, mergulhar inteiramente nessa

aventura, na qual a paixão pela escrita poética e pela experiência da linguagem é levada

às últimas consequências, como bem notam Marcos Siscar e os seus leitores, que

percebem que, de simples, seus versos não têm nada, por tratarem de temas tão

complexos como a própria linguagem e o amor que devotamos a ela ou a outrem.

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Ana Martins Marques

por Yasmin Nigri*

Ana anda quebrando copos

porque não tem panelas

Ana não largaria tudo

por um grande amor

Ana esquece de responder às pessoas

mas no coração ela responde

e isso é o mais importante

Ana não gosta de arroz

e é alérgica a frutos do mar

Certa vez Ana foi a um jantar

onde serviram risoto de camarão

Ana não se desfaz

de nenhum livro que ganha

Ana achou bonito o meu enquadramento

embaixo das folhas de caule espinhoso

Enquanto fumávamos na varanda

pediu cuidado com os espinhos

Disse que daria uma linda fotografia

mas não tirou a fotografia

Ana não gosta de aparecer

em fotografias

Ana gosta de quem não faz alarde

e me pediu em casamento

quando cozinhei pra ela

Ana gosta do que faz

Ana me deixa bilhetes

em cima da mesa

e também alguns livros

Leio enquanto tomo café

imaginando que sejam pra mim

Ana acha difícil falar

e mais ainda escrever

Ana me dedicou um livro

agradecendo minha amizade

Ana é discreta

e tem muito senso de humor

Ana sorri mais

muito mais do que eu supunha

E mesmo quando dança

não é feliz

*Yasmin Nigri, poeta e artista visual, é mestre em filosofia pela Universidade Federal

Fluminense e colaboradora da revista Caliban.

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CAPÍTULO

1

Os amantes submarinos

Murilo Mendes

Esta noite eu te encontro nas solidões de coral

Onde a força da vida nos trouxe pela mão.

No cume dos redondos lustres em concha

Uma dançarina se desfolha.

Os sonhos da tua infância

Desenrolam-se da boca das sereias.

A grande borboleta verde do fundo do mar

Que só nasce de mil em mil anos

Adeja em torno a ti para te servir,

Apresentando-te o espelho em que água se mira,

E os finos peixes amarelos e azuis

Circulando nos teus cabelos

Trazem pronto o líquido para adormecer o escafandrista.

Mergulhamos sem pavor

Nestas fundas regiões onde dorme o veleiro,

À espera que o irreal não se levante em aurora

Sobre os nossos corpos que retornam às águas do paraíso.

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A vida submarina ou o abismo é luminoso

Se abríssemos as pessoas encontraríamos paisagens, mas se

abrissem a mim encontrariam praias.

Agnès Varda

...recolho do mar infinito / a sede infinita.

(MARQUES: 2009, p. 132)

O livro de estreia A vida submarina (Scriptum, 2009), célula inaugural da obra

da poeta mineira, emerge diante de nós como barcos de papel que percorrem a

ribanceira sem medo do que irão encontrar pela frente e, talvez por isso, encontrem

muitas coisas. Seus poemas desenham nesse caminho uma arquitetura de interiores que

se mostram do lado avesso (e como é grandioso ver pelo lado avesso) à procura sempre

d’a outra noite (o espaço literário que perseguiu Blanchot e parece perseguir a referida

poeta na travessia da escrita) na qual episteme & epiderme se entrelaçam até que seus

limites se esfumem para logo desembocarem em longos exercícios para a noite e o dia

no caderno de caligrafia (a escrita) em que submerge a vida submarina.

O mundo em que se vive essa vida submarina, quando se mergulha fundo nele,

apresenta um maduro sistema de pensamento e organização armado em volta do poema.

Dele, o poema, tudo irradia e assim como o amor ele é uma grande questão, afinal, “...

por que / em geral se acredita que o poema / não é lugar para pensar”, indaga fortemente

o poema “Lugar para pensar”. Dos 18 poemas apresentados na primeira seção barcos de

papel a palavra poema é citada literalmente pela poeta 19 vezes, todavia, se levarmos

em consideração citações indiretas relacionadas a palavra poema por meio de remissões

às outras palavras como verso, poeta e poesia, somam-se no total 22 ocorrências.

Esse pendor metapoético, da poesia que se diz a si mesma e sobre si própria, é

sempre retomado pelo trabalho artístico da poeta que faz de seus poemas uma operação

híbrida que contempla todas as formas literárias. A poesia de AMM não se prende, nem

prende o leitor, numa saturação intelectualista e distanciada do real. A vida submarina é

antes de tudo um trabalho e uma aventura de exploração em busca contínua do

arejamento do real, daí a variedade de formas para comportar a variedade de temas

possíveis: as questões cotidianas, os impasses e os anseios de toda a gente. De versos

leves e encantados a versos laboriosos e melancólicos, a poeta d’a vida submarina se

instaura como uma das principais vozes da lírica da contemporaneidade capaz de não

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apenas transfigurar a linguagem literária, mas transcendê-la e continuamente reinventá-

la.

Bachelard (s/d: p.115) nunca esteve tão certo ao afirmar que “subir e descer nas

próprias palavras é a vida do poeta”. Não é à toa que a poesia de Ana Martins Marques,

que vê a linguagem como um corpo de possibilidades está sempre a construir e

desconstruir, ou melhor, a poesia de Marques está sempre a emergir e submergir nas

próprias palavras, está sempre a costurar e descosturar as infinitas possibilidades da

linguagem. Munida dos fios, assim como Penélope, uma das figuras centrais de seus

versos, Ana tece seus 106 poemas de estreia na urdidura do dia e da noite entre peixes,

corais, sargaços, conchas e mariscos, além de trazer para a sua poética imagens

frequentes como sol, o mar, o sal, as praias e a areia, mas também o silêncio, a solidão,

a separação, o desejo e o amor.

A poesia de AMM como já explicitado é incessantemente metapoética, a palavra

poema é a mais recorrente em sua obra e está sempre a serviço do que o crítico literário

Murilo Marcondes de Moura, na orelha do livro A vida submarina, pontua como “a

disposição para o mundo [que] é simultânea ao pendor para a auto-observação, o que

confere profundidade ao vivido”. Essa profundidade já está marcada e inaugurada no

primeiro poema, intitulado “Âncora”, na seção barcos de papel:

O sol percorre

toda extensão de um muro

Riscos na paisagem

escrita a lápis

A rua começa desde a escrita –

esta em que te sigo

Este poema é uma âncora:

é para que você fique sempre aqui

Mas fogem as horas sem carícias

Horas que são como um tanque de peixes sem peixes

A minha mão cobre a sua

com sua sombra

Este poema, pesado, afunda.

(MARQUES: 2009, p. 13)

Interessante notar que há um movimento cinematográfico lento do início ao fim

do poema assim como um navio que soçobra, o que não significa que o poema deixe de

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alcançar uma profundidade completamente rápida e infinita em sua queda nos versos

finais “Este poema, pesado, afunda”. O poema é econômico em sua construção, mas as

palavras utilizadas vão ganhando peso assim como uma âncora nas retinas do leitor. O

leitor sente, lentamente, o sol se infiltrar por “toda a extensão” do muro que vai se

acendendo na visão do sujeito lírico que parece percorrer a rua como um transeunte

atento não ao que se passa fora e dentro de si, mas atento aos “riscos na paisagem /

escrita a lápis”. A utilização da palavra “riscos” não é inocente: não seria o poema um

risco já que segundo os versos da própria poeta ele “aprende com o mar / a colocar os

corpos em perigo”?

Se Proust está em busca do tempo perdido, o sujeito lírico do poema parece estar

em busca do poema ausente, porque é no poema ausente que reside um “você”, esse

endereçado anônimo, que não necessariamente precisa ser um humano, porém que só se

funda pela escrita e pode estar a salvo nela, por isso, “a rua começa desde a escrita –

esta em que te sigo”. Há uma estabilidade no eixo central da arquitetura do poema com

os versos que fremem como a luminosidade do ferro em um dia de sol: “Este poema é

uma âncora: / é para que você fique sempre aqui”, mas logo o poema de amor titubeia e

se agrava com a ausência – “as horas sem carícias”, “horas que são como um tanque de

peixes sem peixes” – que lhe dá uma dimensão além de lírica, altamente trágica e

solitária: “A minha mão cobre a sua / com sua sombra”. A instabilidade se introduz com

a adversativa “mas” que bruscamente opera uma guinada no leme. O poema-âncora,

pesado, afunda. É como se o poema nos advertisse de que a própria escrita do poema e o

amor não salvam, porque atrás deles está somente a ausência que é imageticamente

intensificada por “horas em carícias” e “um tanque de peixe sem peixes”. Diz Octavio

Paz em seu preciso e precioso ensaio “Poesia de solidão e poesia de comunhão”:

A poesia é a revelação da inocência que respira em cada homem e em cada

mulher e que todos podemos recobrar tão logo o amor ilumine nossos olhos e

nos devolva o assombro e a fertilidade. Ela revela que a consciência pode

encarnar em tudo que a rodeia e que, para que isso ocorra, basta não negá-la, e

sim mergulhar com ela nas águas puras do amor. Seu testemunho é mais que um

simples testemunho: é a revelação de uma experiência da qual todos os homens

e seres participam, só que está oculta pela rotina e a amargura diária. Os poetas

foram os primeiros a revelar que a eternidade e o absoluto não estão além dos

nossos sentidos, e sim neles mesmos. Essa eternidade e essa reconciliação com

o mundo se dão no tempo, dentro do tempo, e em nossa vida mortal, pois o

amor e a poesia não nos oferecem a imortalidade e a salvação. Já dizia

Nietzsche: “Não a vida eterna, mas a eterna viva vivacidade: eis o que importa”.

Mostrar essa condição perecível talvez possa ser trágico; de fato, é, porém

encontro nesse elemento o verdadeiro valor, no sentido de valioso e de valoroso,

da poesia, pois ela resgata o cotidiano da vulgaridade e unge o instante com o

irreparável. (PAZ: 2017, p. 24-25) (grifos nosso)

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É por meio de uma catábase, uma descida à profundidade íntima, que se fará a

revelação ocultada pela “amargura diária” desse sujeito lírico que está em trânsito –

“Este poema, pesado, afunda” – é nesse instante irreparável que a mão da presença

pode cobrir a mão da ausência – “A minha mão cobre a sua / com sua sombra” – na qual

os instintos de amor e morte se fundem e a poesia, outrora de solidão, se urde poesia de

comunhão: “Este poema é uma âncora: / é para que você fique sempre aqui”. Todos os

riscos são assumidos pelo poema e pelo amante submarino que salta e submerge junto à

“sombra” (do que ainda restou) para o abismo onde o fim parece ser o começo, onde a

escrita funda o amor e a âncora o afunda ainda mais, onde o profundo é luminoso,

mesmo sem a imortalidade ou a salvação.

As inúmeras e contraditórias possibilidades do amor talvez estejam assinaladas

nos dissílabos de sentido ambíguo e instável no poema. “A rua começa desde a escrita –

/ esta em que te sigo” – rua ou escrita? Em que espaço se inscreve o seguir? A escrita

que começa a rua acolhe e projeta o seguir. “Este poema é uma âncora: / é para que

você fique sempre aqui”. Onde? No poema? Espaço mais certo que os arredores vagos

do sujeito lírico, o poema abriga a permanência. “A minha mão cobre a sua / com sua

sombra”. De quem? Sombra da mão do eu que fala, sombra daquele a quem se fala? E

será deste reservatório de sombra que, pesado, afunda o poema? E com ele o amor?

Ainda na seção barcos de papel nos deparamos com um poema apenas de dois

versos, mas cuja densidade faz dele uma “Fogueira” que ele mesmo rejeita ser. Dizem

os versos: “Quem me dera fazer com o poema / uma fogueira que ardesse só para ti”.

Mais uma vez o sujeito lírico questiona e reflete sobre a impossibilidade de alcançar o

poema, ou seja, alcançar a escrita de um poema que arda com toda vibratilidade para um

“você”, que pode ser o próprio leitor nesse volteio metapoético, que o sujeito lírico está

sempre a perseguir.

Assim como no poema “Âncora”, há certa melancolia no poema “Fogueira”,

uma impossibilidade de escrita para alcançar um “você” que é a seta principal do sujeito

lírico que busca diálogo, busca o encontro, a revelação da linguagem, porém não

podemos nos esquecer de que há também um movimento erótico presente nos dois

pequenos versos, principalmente no substantivo feminino “fogueira” e na intensidade do

verbo “ardesse” que nos dá a ideia de uma pulsão incessante do desejo por esse “você”.

Logo depois de algumas páginas encontraremos o sujeito lírico afirmando no poema “O

desejo” na seção a outra noite: “o sexo arde / como uma caixa de abelhas / lacrada. / O

desejo acende-me / como uma casa incendiada; / o desejo me deixa / sem mais nada”.

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Os versos libidinosos não nos deixam dúvidas – tudo arde, tudo se debate rapidamente e

repetidamente dentro de uma caixa lacrada. O encontro consonantal da palavra lacrada e

o ponto final no final do verso só aguçam ainda mais o aprisionamento daquilo que não

pode escorrer. O desejo acende o ápice: sexo, abelha, caixa, casa tudo é incendiado até

explodir e deixar o sujeito lírico “sem mais nada”. Nesse instante o desejo atinge o céu,

por isso, conforme Bataille (2013: p. 48) em O erotismo: “a poesia conduz ao mesmo

ponto que cada forma do erotismo, à indistinção, à confusão de objetos distintos. Ela

nos conduz à eternidade, nos conduz à morte e, pela morte, à continuidade: a poesia é a

eternidade. É o mar partido com o sol”.

Todavia, é só por meio da escrita, no ato de persegui-la permanentemente, que o

sujeito lírico consegue ser leitor de si e do outro, e, por que não dizer, do mundo. Essa

perseguição incessante pelo poema na escrita de Ana Martins Marques, que alcançaria

esse “você”, que é um “você” em anonimato, é uma das notas mais acolhedoras em sua

escrita, pois provoca uma forte emoção no leitor, que, ao receber o poema, se vê em

idêntica situação interior na perseguição de um “você” ainda informe. Para o teórico

Georges Didi-Huberman essa emoção:

não seria uma e-moção, quer dizer, uma moção, um movimento que consiste em

nos pôr para fora (e-, ex) de nós mesmos? Mas se a emoção é um movimento,

ela é, portanto, uma ação: algo como um gesto ao mesmo tempo exterior e

interior, pois, quando a emoção nos atravessa, nossa alma se move, treme, se

agita, e o nosso corpo faz uma série de coisas que nem sequer imaginamos.

Desde então, outros filósofos quiseram se dedicar a descrever o gesto da

emoção. Por exemplo, Jean-Paul Sartre dirá que, ao contrário de nos afastar do

mundo “a emoção é uma maneira de perceber o mundo”. Mais tarde, Maurice

Merleau-Ponty dirá que o evento afetivo da emoção é uma abertura afetiva –

uma abertura: o contrário de um impasse, portanto –, um tipo de conhecimento

sensível e de transformação ativa de nosso mundo. (DIDI-HUBERMAN: 2016,

p. 24-26)

A e-moção como movimento, ação, de que fala Didi-Huberman, é um casamento

perfeito para refletirmos os poemas lírico-amorosos de Ana Martins Marques, pois neles

(e em todos os poemas da poeta, poderíamos dizer) reside o que Marcos Siscar (2016)

chama de “humanismo acolhedor”. Entendo esse “humanismo acolhedor” como uma

abertura afetiva, um canal que atinge o leitor, e, por isso mesmo, ele se emociona, é

atravessado, ou melhor, afetado pela poesia de Marques. A sensação que sempre fica

depois da leitura dos poemas, tomemos como exemplo, aqui, o próprio poema

“Âncora”, é a sensação de querer reiterar: eu também compartilho de seus sentimentos,

eu também habito o corpo do seu poema a procura de um vazio que ainda não sei o que

é. É como se a poesia de Ana Martins Marques nos tomasse pelas mãos à procura da

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poesia, à procura desse “você” que ainda é um “poema em branco” para citar a poeta, à

procura, enfim, d’a outra noite, o espaço literário, que só é possível alcançar, segundo

Blanchot (2011: p. 192), no fascínio e movimento de escrever. E, assim como o

movimento do escrever, a poesia de AMM faz o leitor enfrentar a página em branco e

ler a si próprio. Diz Manuel Gusmão (2010: p. 453), em um de seus mais belos artigos,

“Aprender a poesia com Ruy Belo”:

A poesia é algo a que o poeta se dedica ou entrega, no sentido em que lhe dedica a vida;

o poema é um modo de se dedicar como quem procura uma forma para o seu destino

(...) construir partes de um mundo e de uma vida em palavras, partilhar uma solidão e

uma singularidade é a maneira desta poesia nos convocar à nossa própria singularidade.

(GUSMÃO: 2010, p. 453)

A poesia de Marques tem essa potência motriz que convoca não somente o

poeta, mas o leitor à própria singularidade de que fala Gusmão. Poeta, poema e leitor

coexistem corpo a corpo – por meio de uma escrita erótica – como se fosse a descoberta

do mundo, como se fosse a descoberta do amor, elemento fundamental da poesia de Ana

como já abordado.

No poema “Como o alpinista”, logo abaixo, o sujeito lírico em tom prosaico,

uma das características da poesia da Ana, sabe perfeitamente o que amar quer dizer para

cada uma das profissões que elenca. Em todas admira a incondicionalidade do amor

com que cada amante de sua profissão se lança a ela. Percebe a fundo o ponto fulcral de

cada arrebatamento em jogo. Amar o vazio, o silêncio, a monstruosidade, o segredo, a

rispidez, a resistência – é possível amar nesta extremidade? Quer amar identicamente

ao alpinista, ao jardineiro, ao marinheiro... Mas três impedimentos travam o amor,

fazem medroso o amante e com eles o sujeito lírico encerra o poema: o tumulto, a

derrisão, o medo.

Como o alpinista ama o vazio das grandes aventuras

e o mergulhador ama o silêncio da profundidade

e inveja nos peixes abissais

a monstruosidade escura da vida

como o taquígrafo ama a velocidade do sentido

e o seu segredo

e o jardineiro ama a demora ríspida das orquídeas

como o fotógrafo ama o claro e o escuro do mundo

o boxeador ama o encontro

da exatidão e da força

como o tipógrafo ama o peso mudo das letras

e o filólogo o ninho quente das palavras

e o gramático o fulgor cego das exceções

e o alfaiate a resistência branca do linho

e a manicure a cor justa

e o tintureiro a cor justa

como o biólogo ama a multiplicidade muda do mundo

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e o marinheiro ama o regime do céu e das águas,

que ecoa a decisão repetida de partir,

como o tatuador ama a página imperfeita da pele

e o joalheiro ama o que as pérolas sabem

da espera

assim eu desejaria te amar

não fosse este tumulto, e esta derrisão

e o medo.

(MARQUES: 2009, p. 63)

É impossível não se lembrar do que diz Paz pensando nessa relação poema /

amor:

O amor é um estado de reunião e participação aberto aos homens: no ato

amoroso a consciência é como a onda que, superado o obstáculo, antes de

desabar se levanta numa plenitude que tudo – forma e movimento, impulso para

cima e força de gravidade – forma um equilíbrio sem apoio, sustentado em si

mesmo. Quietude do movimento. E assim como através de um corpo amado

entrevemos uma vida mais plena, mais vida que a vida, através do poema

entrevemos o raio fixo da poesia. Esse instante contém todos os instantes. Sem

deixar de fluir, o tempo se detém, repleto de si. (PAZ: 2012, p. 33) (grifo nosso)

Em “Trapézio” a poeta narra: “Uma vez vendo um número de circo / apenas

razoável / à noite / numa praça do interior / (tédio e susto, álcoois fortes, lua baça) / foi

que eu me dei conta de que / nunca houve um trapezista / que não estivesse apaixonado

// Todos os poemas são de amor.” Ao trazer a figura do trapezista apaixonado, o sujeito

lírico do poema logo chega à conclusão de que “todos os poemas são de amor”. As

conexões não são óbvias. O que leva a poeta a concluir que todo trapezista é

apaixonado? O necessário risco a que a sua atividade o expõe? A loucura que há por trás

de um assim lançar-se ao nada? O arriscado exibir-se numa mera praça de interior para

uma plateia meio alheia e entediada? Menos óbvia ainda, e totalmente inopinada, é a

conclusão seguinte e final: “Todos os poemas são de amor”. Não era disso

aparentemente que se estava falando. Ou era? A maior trapezista aqui parece ser a

própria poeta que dá saltos inesperados e surpreendentes nos elos que engata, cujos

encadeamentos deixa a cargo do leitor. Podemos pensar, aproveitando a lição de

Octavio Paz, que o trapezista é aquele que se lança (corre o risco) assim como a

linguagem ao encontro da alteridade e que “antes de desabar se levanta em uma

plenitude em que tudo – forma e movimento, impulso para cima e força de gravidade –

forma um equilíbrio sem apoio, sustentado em si mesmo”, para logo em seguida quedar

silenciosamente e desencadear a claridade de que o poeta ainda não tinha se dado conta.

Por isso, Paz adverte que “no ato amoroso a consciência é como a onda que, superado o

obstáculo, antes de desabar se levanta numa plenitude”, ou seja, no ato amoroso, assim

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como na poesia, tudo é plenitude, tudo é risco e silêncio, mas alguns instantes “contêm

todos os instantes”. Um trapezista do interior é um poema e todos os poemas são de

amor para quem se relaciona liricamente com a vida e a vive como um ato poético.

Dando eu mesmo um salto aqui, penso nos versos da Ana (2017: p. 34) que

indaga: “A cura está no tempo, dizem, / mas, ela pensa, por que não / no espaço?” e em

contrapartida penso na trapezista Marion (Solweig Dommartin) do filme Asas do Desejo

do diretor alemão Wim Wenders, seus pensamentos, sua beleza e a sua consideração

intimidadora e também indagatória sobre o tempo: “o tempo curará tudo, mas e se o

tempo for a doença?”. E se o tempo formos nós no espaço? No enredo do filme o anjo

Damien (Bruno Ganz) que perambula pela Berlim pós-guerra ouvindo os pensamentos

das pessoas se apaixona pela bela trapezista Marion. Seduzido, se arrisca e torna-se

mortal para viver um grande amor ao lado dela. É uma história de amor, mas também

sobre o risco. Ambos se arriscam para viverem a plenitude e a escrita de um novo

poema de amor e mais uma vez o espaço se abre como o lugar do lançar-se.

she loves you

Jorge Fonseca

@labirintodeamor

Por outro lado, todo poema de amor se depara com o desassossego, que não

implica apenas os impasses do amor, mas todo o existir e sua cobrança feroz, conforme

nos sinaliza o poema “Seda”, da terceira seção a outra noite do referido livro:

É tão difícil amar

neste mundo imperfeito

é difícil dizer alguma coisa

que não seja um equívoco

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é difícil encontrar

o peso correto

das coisas

saber nosso próprio tamanho

olhar alguns bichos nos olhos

pensar com doçura

aproveitar adequadamente a luz

desejar para o pássaro um destino de pássaro,

para a seda, um destino de seda.

(MARQUES: 2009, p. 61)

A leveza da palavra seda que ela evidencia logo de início no título do poema vai

se tornando pesada ao constatarmos nos dois primeiros versos o desencanto com o amor

e o mundo – “É tão difícil amar / neste mundo imperfeito”. Além da dificuldade de

amar há também a dificuldade de dizer as palavras certas, mas também quais seriam? O

sujeito lírico perdido nos fios de seda que brilham, mas não reluzem, não consegue

medir o equilíbrio, não consegue se projetar como humano a não ser em sua pequenez,

não consegue entrar em contato com a natureza que faz parte dele e vice-versa, perdeu o

“pensar com doçura”, está trancafiado em si, por isso, não encontra a medida adequada

da luz, é escuro, por isso, não consegue nem desejar mais para um pássaro a liberdade,

seu único destino, pois já é tarde e os fios da seda degolaram seus pensamentos com um

ponto final perante a sua imobilidade e divagação.

Com o desencanto, a separação também se torna inevitável e como diria a

canção de Tom Jobim “o amor é a coisa mais triste / quando se desfaz”. A vida

submarina é um livro sobre silêncio, solidão e separação. Se separar de alguém que

amamos é como enfrentarmos um “Jardim de inverno”:

I keep thinking of you – which is ridiculous.

These years between us like a sea.

Edwin Morgan, The divide

Mesmo as xícaras

que você nunca lavava

agora me lembram você

O pequeno jardim de inverno

está morto

como uma estúpida metáfora

uma metáfora ressequida

que triste destino para um jardim

(você possivelmente diria)

fico tentando adivinhar

suas frases, os dias são longos diálogos de um

- é tão patético

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o primeiro beijo

longe da sua boca

me deu vontade de rir

de gargalhar

e quando ele finalmente

me toca, estou quase tão seca

quanto o jardim

nos dias mais tristes

escrevo para você

nos dias mais alegres

seria capaz de te enviar

estas linhas

acompanhadas talvez de uma folha

de um desses arbustos que só você

conhecia pelo nome

o síndico pergunta por você,

depois me olha como se o divórcio

acabasse de ser inventado

nós riríamos disso juntos

e que não possamos fazê-lo

é o mais triste

entre tudo

é realmente ridículo que eu

ainda pense tanto em você

o pensamento é estúpido

como um síndico

às vezes me pergunto

porque as pessoas instalam em casa

um quadrado de coisas que morrem.

(MARQUES: 2009, p. 68-69)

Por que é tão difícil nos separarmos daqueles que amamos? Por que no final

parece que tudo morre? Há um eu sem um você? Por que tudo que olhamos nos remete

ao ser amado? Por que tudo fica impregnado da lembrança do outro e termina em uma

fotografia muda e morta? O monólogo em versos do sujeito lírico quase no final do

poema se dá conta de que “o pensamento é estúpido / como um síndico”, pois, assim

como o síndico, muitas vezes ele é inconveniente e impregna tudo de um mal-estar. Não

há escapatória – tudo na vida tem um fim. E o silêncio e a solidão, à noite, crescem e

tomam o quarto, engolem a gente. Nossos próprios fantasmas têm medo de nós e a

outra noite nunca chega e, sem ela, a “Insônia”:

As noites lúcidas se passam assim

às claras

com os olhos lavados e as mãos cheias de sal.

Tocas com a boca o contorno exato das horas

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e sentes o baque surdo do coração em viagem.

Regressas, no entanto, para a cidade vislumbrada em

sonho

e seus brinquedos de silêncio e água.

Regressas para a espera e para a escrita

Como em todas as noites sem ninguém.

E acordas tarde,

o dia alto te saúda sem ênfase

como te saúdam os espelhos.

(MARQUES: 2009, p. 78)

Não há ninguém no silêncio do quarto para o sujeito lírico partilhar sua odisseia

da espera. Não há ninguém no silêncio do quarto para pelo menos o sujeito lírico

dividir sua dor de tecer em solidão as tramas de um fio cuja possibilidade de cerzir não

é crível, já que habita essa trama: toda a dor de uma vida se contorce frente a um

espelho que nenhuma resposta lhe dá. Lembro-me de Drummond no poema “A flor e a

náusea” quando afirma: “Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase”. Penso eu

que tristes são os dias em que se acorda e ninguém, nem mesmo o dia, lhe saúda. Penso

que a insônia é um mal-estar contemporâneo.

O que escrever depois de um poema desses que parece infinitamente dirigido ao

nosso tempo? Recorro à própria poeta d’A vida submarina em uma das mais felizes

conferências sobre poesia promovida pelo “Ciclo UFMG, 90 – Desafios

Contemporâneos”, pois ela nunca deixa de apontar caminhos:

o poema é um modo de aproximação das coisas e das palavras, um modo de

atenção, um tipo de pensamento muito atento às palavras e as imagens que o

configuram. Um jeito de estar na linguagem que convida a uma espécie muito

singular de conhecimento, mas também é uma espécie de não saber que ensina a

não esperar explicações.

Por que sempre esperamos uma explicação de tudo mesmo quando não há? O

não saber também não pode ser uma resposta?

Toda vez que abro algum livro da Ana parece que estou lendo seus poemas num

instante agora/original mesmo que já os tenha lido em outras circunstâncias. A poesia

da Ana parece se infiltrar no agora de seus leitores por meio de imagens cotidianas que

não cessam de saltar de seus versos e a que na correria dos dias não conseguimos dar

forma nem expressão, só sentimos. É uma poesia tão simples, e ao mesmo tempo tão

complexa; tão imediata, da existência compartilhada de todos, mas é também da

distância, daquela distância de quem meditou sobre o que viveu e que nos convida a esta

distância, distância que se trilha em linguagem. Deste intercâmbio de linguagem e vida,

nasce esta poesia singular, que, à moda de Penélope, trama a linguagem ao traçar a vida,

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enleando-as em delicadas sonoridades e imagens inesperadas, que, de susto e espanto,

nos deparam a nossa própria vida como se ela fosse de outrem, ou a de outrem, como se

fosse a nossa mesma. Livro a livro, Ana Martins Marques vai-se especializando nesta

sua poesia do achado – achado de linguagem, de imagem, achado de vida – e

requintando esta sua jornada inextricavelmente metapoética e existencial. Prontos ao

baque e responsivos ao risco, deixemo-nos enredar em suas próximas armadilhas.

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CAPÍTULO

2

Rio por dentro.

Moro e morro aqui

pisando nesta terra

deitado neste chão

às vezes mar.

Uma gaivota passa feita a lápis.

E escrevo na areia para ir longe

Fechado numa garrafa

céu ante céu, oceano afora.

A praia comovida por tudo isso

cuida das ondas.

Não ou nau? Adeus. E tanto sol.

Armando Freitas Filho

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Da arte das armadilhas ou nau, naufrágio

Sempre cheguei às coisas depois de encontrá-las nos livros.

Jorge Luis Borges

Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011, Prêmio Biblioteca

Nacional em 2012) é um livro urdido “entre a casa / e o acaso // entre a jura / e os jogos

// entre a volta / e as voltas // a morada / e o mar // penélopes / e circes // entre a ilha / e

o ir-se” nas palavras do próprio poema-epígrafe que abre alas ao segundo livro da poeta

Ana Martins Marques. Desde o princípio do livro a poeta evoca por entre esses “entres”

anafóricos do poema duas figuras femininas do imaginário mítico no plural – Penelópes

e Circes – como se convidasse todas as deusas da espera e do tecer e todas as deusas da

feitiçaria e das armadilhas para uma comunhão em sua nau literária cheia de artimanhas

no armar e desarmar a linguagem até sermos tragados por ela e nela sucumbirmos.

É antes de tudo um livro de amor, por excelência, mas também de rastros e

restos da experiência que ele proporciona. Não há escapatória: estamos presos à

linguagem, estamos presos ao amor. Ambos nos acolhem e desamparam, afinal esse é o

jogo – “somos nós / as presas?”, se indaga o sujeito lírico que abre a seção “Da arte das

armadilhas”. Dividido em duas seções intituladas “Interiores” e “Da arte das

armadilhas”, respectivamente, ambas com poemas-epígrafes, células inaugurais, no

início de cada seção, o livro Da arte das armadilhas se instaura por meio de uma

construção rigorosa, mas aberta a todas as possibilidades de experiências em linguagem

e como um acontecimento no que podemos chamar de pendor imagístico, metapoético,

de endereçamento e de reinvenção mitopoética, que já estavam visivelmente

prenunciados no livro de estreia da poeta A vida submarina.

No primeiro quesito, pendor imagístico, a poeta se lança à operação de dar o

significado no cume do poema e desfiar imagens contrárias a ele, como se penetrasse na

intimidade das coisas e firmasse aliança com elas, já que a “coisa” não teria uma

linguagem para si, sulcando a pluralidade de sentidos que as imagens evocam como

ponte de intermédio para revelação de si e do outro, desvelando assim sua origem

primigênia. São muitos os poemas de forte carga imagística que formam um arco

prodigioso em toda a obra da poeta, o que para o poeta e crítico literário Marcos Siscar

(2016) é “um dos traços distintivos mais evidentes da poesia de Marques”. Tomemos

como exemplos os poemas “AÇUCAREIRO”, “CADEIRA” e “TORNEIRA” que

abaixo transcrevo:

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Açucareiro

De amargo

basta

o amor

Agridoce,

ela disse

Mas a mim

pareceu

amargo

Cadeira

I

Repetes

diariamente

os gestos

do primeiro homem

que se sentou

numa tarde quente

olhando as savanas

II

Pouso

de gigantescos pássaros

cansados

Torneira

Quem abre a torneira

convida a entrar

o lago

o rio

o mar

(MARQUES: 2011, p. 13-14-18)

Antes de tudo há de se convir que os poemas, “AÇUCAREIRO”, “CADEIRA” e

“TORNEIRA” são magistrais tanto pelas novas imagens que suscitam na retina do leitor

quanto pelo corte dos versos curtos que desnudam e transcendem o sentido habitual dos

objetos evocados. Como disse um rapaz em uma das conferências proferidas pela poeta

na UFMG: “Abrir uma torneira nunca foi tão legal...”. E é exatamente essa sensação que

a poesia de AMM provoca, com ela passamos a prestar atenção nas coisas que antes

nada nos diziam, é como se os objetos nos fossem apresentados pela primeira vez. É

uma técnica – prestar atenção nas coisas – muito parecida com a de Sophia Mello

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Breyner Andresen de quem a poeta é leitora assídua. Paz, analisando o objeto “cadeira”

em um de seus mais vertiginosos ensaios intitulado “A imagem” no livro O arco e a

lira, nos ajuda a pensar esse rico recurso – a imagem – na obra de Marques que está

sempre a fundar e fundir um novo “real” por meio de imagens que recriam a gestação

do homem e do mundo:

No poema a cadeira é uma presença instantânea e total, que de repente fere a

nossa atenção. O poeta não descreve a cadeira: coloca-a na nossa frente. Tal

como no momento da percepção, a cadeira nos é dada com todas as suas

qualidades contrárias e, no cume, o significado. Assim, a imagem reproduz o

momento da percepção e obriga o leitor a suscitar dentro de si o objeto um dia

percebido. O verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, acorda, recria. Ou como

dizia Antonio Machado: não representa, apresenta. Recria, revive a nossa

experiência do real. Não é necessário assinalar que essas ressurreições não são

apenas as da nossa experiência cotidiana, mas também as da nossa vida mais

obscura e remota. O poema nos faz lembrar o que esquecemos: o que somos

realmente. (PAZ: 2012, p. 115)

Para Paz (2012: p. 116) “a imagem não é meio, sustentada em si mesma, ela é

seu próprio sentido. Acaba nela e começa nela. O sentido do poema é o poema em si. As

imagens são irredutíveis a qualquer interpretação”. A transubstanciação da linguagem

em imagem, a magia, encenada no próprio corpo do poema, é também fundadora de um

impulso genesíaco que constrói um todo inaugural, retomando o trabalho da criação. A

poeta ao promover uma captura primigênia desses objetos “faz algo mais que dizer a

verdade; (...) cria realidades possuidoras de uma verdade: as da sua própria existência

(...) as suas imagens nos dizem algo sobre o mundo e sobre nós mesmos e (...) esse algo,

embora pareça um disparate, nos revela o que somos de verdade” (2012: p. 113).

Poderíamos dizer então que Ana Martins é uma verdadeira “produtora” do real.

O poema “Cadeira” encanta pelo frêmito de antiguidade que o percorre. Com

gestos breves e rápidos, ele alia num mesmo ato aqueles que até hoje repetem o

movimento simples de sentar e o primeiro homem que o fez, “numa tarde quente,

olhando as savanas”. Quem, a partir da surpresa grata e espantada da cadeira que Ana

planta no real, doravante sentar-se estará em comunhão com este homem das savanas, e

à sua cadeira também acorrerão “gigantescos pássaros cansados” em busca de pouso.

Boa parte da força e da magia deste curto poema decorre da simplicidade quase

fulminante com que ele realiza encontros e mutações vertiginosas. Os poucos versos da

primeira parte nos transportam a um passado remoto, embora seja ainda da cadeira,

objeto cotidiano onde sentamos, que se trate. O familiar divulga um plus, um extra, um

outro, preservando, contudo, a sua familiaridade. Os ainda mais exíguos versos da

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segunda parte, no entanto, expandem tão amplamente o alcance e o modo de ser da

cadeira, que, pasmos, nos emocionamos. Pouso de pássaros – a aliteração colabora para

o acolher – a cadeira tem agora assento cósmico e se faz morada de seres alados. É

ainda do descansar que se fala. A escala, todavia, foi infinitamente majorada. E chama a

atenção na estrofe o contraste entre os versos inicial e final de apenas uma palavra e o

verso central composto por três, um monossílabo, um polissílabo e um trissílabo. Até

em seu traçado visual a estrofe mimetiza o giro vasto dos pássaros que vêm encontrar

repouso no espaldar desta cadeira. Quanto não abriga e oculta o real – uma simples

cadeira – que não vemos e que os versos de Ana nos vêm acordar...

A mesma ampliação se verifica nos poemas “Açucareiro” e “Torneira”. O

primeiro, de utilitário doméstico, se expande em “teste” de verificação do amor e seus

cambiantes sabores. No segundo, a expansão é mais extrema. No simples abrir de uma

torneira, toda a água do planeta tem acesso franqueado à boca restrita que escorre para

dentro de uma pia, um tanque, uma banheira, uma casa. O volume de água é crescente.

Primeiro entra o lago, depois o rio, por fim o mar. E a residência fechada e circunscrita

de alguém de repente se situa no centro do cosmos, e as fronteiras entre o interior e o

exterior se perdem.

Uma vez indagada na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP-2013) na

mesa intitulada “O dia a dia debaixo d’água” sobre o desencanto da linguagem e

presença abundante do mar como ponto de fuga em sua poética, a poeta mineira que

vive longe do litoral, respondeu:

Até por viver longe do litoral... O mar tem essa espécie de fascínio, assim, ele

nunca é muito compreensível, muito íntimo. Ele também tem essa questão de

uma diferença entre, ao mesmo tempo, uma superfície muito inteligível e uma

profundidade um pouco informe. E aí eu acho que dá pra pensar assim como

uma espécie de metáfora de imagem da criação poética assim como o poema é

aquilo que vem à tona. Ele dá forma aquele informe que está submerso. Um tipo

de iceberg.

Em relação às desconfianças com as palavras, eu acho que está muito presente

nos meus textos, como se a gente estivesse sempre batendo a cabeça no limite

da linguagem, mas sabendo que é meio sem escapatória. A imagem da

armadilha tem um pouco a ver com isso. A linguagem é a armadilha e você está

dentro e não consegue muito, os limites do seu mundo estão ali colocados pela

língua, pela linguagem e você vai se movendo naqueles limites... a armadilha

tem um pouco a ver com isso.

Ana Martins Marques por meio da linguagem recupera a natureza original desses

objetos, pois quando nomeamos um objeto nós o perdemos, por isso é preciso voltar ao

objeto e olhá-lo de novo, sonhá-lo para além de seu nome, antes de sua nomeação, num

percurso adâmico, e, para isso, necessariamente, devemos descer às origens deles como

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se fôssemos buscar Eurídice, pois assim como Paz (2012: p. 34) a poeta também parece

ter consciência de que “o poema é via de acesso ao tempo puro, imersão nas águas

originais da existência”. O poema como uma das mais antigas formas artísticas sempre

recusou codificações e comporta a reivindicação de “encontrar uma língua”, como dizia

Rimbaud, para suplantar os limites da linguagem, alcançar o inaudito e assim reinventar

as possibilidades do dizer poético. Bem por isso ele nos ensina a tatear o desconhecido e

o diferente por meio da imagem, que segundo Paz, “é um recurso desesperado contra o

silêncio que nos invade toda vez que tentamos exprimir a experiência daquilo que nos

rodeia e de nós mesmos” (2012: p. 117). Não seria assim a imagem poética um

correlato objetivo da alma humana e a lírica de AMM uma das formas mais autênticas

de expressá-la?

No segundo quesito, o vigor metapoético de sua poesia, a poeta tem consciência

do caráter metalinguístico como manobra para potencialização da linguagem e do

próprio ato poético. Seus livros são altamente organizados, cosidos, estruturados, e esta

não deixa de ser também uma manifestação metapoética. Sempre me lembro de um

aluno que escreveu em uma de minhas avaliações sobre poesia o seguinte verso: “Sou

uma prosa / que há muito aprendeu / a voar...”. Em certo sentido, os poemas da Ana são

assim prosas que aprenderam a voar. Palavras que aprenderam a se desprender das

margens contínuas de uma folha de papel e alçaram voo ao céu de uma maneira leve,

mas também insidiosa. Contudo, a poeta também se depara com a impossibilidade das

palavras que é arma e ao mesmo passo armadilha. Estas dificuldades e experiências são

continuamente tematizadas metapoeticamente, como enleios de escrita e como

embaraços de vida. É o que fica evidente nos poemas “A queda” e “A descoberta do

mundo”:

A queda

As palavras

faltam

quando mais

se precisa

delas

são apenas

a sombrinha

do equilibrista

ajudam

talvez

mas não salvam

faltam

quando mais

se precisa delas

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se você cair

de uma grande altura

por mais bonita

que seja a sua sombrinha

não conte com ela

pra amortecer

a queda

A descoberta do mundo

Procuro alcançar-te

com palavras

com palavras

conhecer-te

como quem

com uma lanterna e um mapa

crê empreender

a descoberta do mundo

levanto-me

estou sozinha no escuro

com os dois pés

no cimento frio

(onde estás

no que escrevi?)

(MARQUES: 2011, p. 43-34)

O poema “A queda” flutua aos olhos do leitor, mas em nenhum momento ele

amortece a queda. Independentemente da beleza da sombrinha, a queda é inevitável,

porque “a linguagem / sem cessar / arma / armadilhas”, conforme sinaliza um dos

poemas do referido livro. Entretanto, não residiria também nessa queda, ainda que por

um átimo, “o instante com o irreparável” de que fala Paz? Outra nota comovente da

poética da Ana que tem o poema como “lugar para pensar”, como já foi dito, talvez, seja

a descoberta trágica da impossibilidade das palavras de nos salvar de nossas quedas

cotidianas, por isso, nos adverte o poema: “por mais bonita / que seja a sua sombrinha /

não conte com ela / para amortecer a queda”. O poema está ali, mas é só o poema

intacto, assistindo estrelas despencando do céu, nada mais do que isso, porém nele

também reside a sedução, a brecha que enche nossos olhos de encantamento e que Ícaro

ao lançar-se ao céu quis tocar. Por isso, viver o poema apesar da queda faz com que

tencionemos, ainda que pouco, uma “viva vivacidade”, como dizia Nietzsche, perdida

no recôndito da rotina. “A queda” é um poema em queda livre, sua verticalidade mal o

sustenta, ele bamboleia nos versos desiguais, os mais longos ameaçam desequilibrá-lo,

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ele se arrisca com sua sombrinha – “que seja a sua sombrinha” é seu verso mais extenso

– mas seu destino final é mesmo a queda, última palavra do poema. “As palavras”, que

o abrem, – e talvez o maior perigo seja mesmo lidar com elas – têm aqui destinação de

abismo.

Ainda sobre as fraturas e impossibilidades da linguagem gosto também de

pensar sobre a serventia da poesia de que sempre nós que a estudamos somos

indagados. Sempre que penso nessa questão lembro-me de uma poeta portuguesa

chamada Ana Luísa Amaral que aos poucos venho conhecendo. Diz ela em uma

entrevista concedida ao Jornal Português Expresso:

A poesia de facto não serve para nada, não tem uma aplicação prática. Com uma

poesia não se faz uma mesa, não se constrói uma casa. Mas ela é absolutamente

fundamental, porque, como toda a arte, assiste-lhe não o pragmatismo, mas o

simbólico, e nós humanos, precisamos do simbólico, que passa sempre pela

nossa relação com os outros. Precisamos dele como precisamos de comer ou de

dormir. Porque é a sua dimensão estética, mesmo quando fala do horror ou da

crueldade. A poesia, tal como eu a concebo, faz-nos, acredito, melhores

pessoas, porque nos move (podendo fazer-nos agir) – e nos comove.

Depois que lemos o que a poeta Ana Luísa Amaral escreveu parece que a poesia

mesmo sendo abismo – e que bom que ela seja – retoma seu posto assim como os

pássaros em suas árvores preferidas. Sabemos que a poesia não serve para nada, mas ao

mesmo tempo ela é tudo. Quem não gostaria de entrar em um “Canteiro” (2011: p. 18)

“Onde a casa cresce / sem projetos / ao sabor do sol / das sombras / e atenta / ao

noticiário / das nuvens”? Ler AMM nos move, nos comove, nos faz querer enfrentar um

braço de mar.

Já no poema “A descoberta do mundo” os versos fruem em ausência porque do

outro lado da palavra ela também impera. A solidão – “levanto-me / estou sozinha no

escuro” – e o choque da realidade – “com os dois pés / no cimento frio” – perturbam a

viagem nas palavras que o sujeito poético “crê empreender”. Contudo, é preciso

persistir. – “Procuro alcançar-te / com palavras / com palavras / conhecer-te” – já que

segundo Blanchot “escrever é fazer-se eco daquilo que não pode cessar de falar”.

Todavia, ao mesmo tempo em que a poeta ou sujeito poético tem a palavra poética ele

também tem nela a ausência que repousa sobre o nada, por isso, o sujeito poético se

indaga ao final do poema: “(onde estás / no que escrevi?)”. Pode o poema criar uma

presença onde reside a ausência? Seria a palavra poética uma arma contra sua própria

impossibilidade ou seria a palavra poética uma ilusão, uma armadilha, possuída de

encantamento? Na busca, talvez, desta presença outra, deste “tu”, o poema cria um

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notável efeito de ressonância mediante a repetição do som /kon/, que simula um eco da

preposição de companhia, “com”: com palavras, com palavras, conhecer-te, como quem,

com uma lanterna, com os dois pés. A disfarçada procura deste com já insinua a dor da

pergunta que fecha o poema em parênteses: “(onde estás / no que escrevi?)”. Fora do

aconchego dos parênteses, talvez o “tu” esteja neste “com”, que só obliquamente se

encontra. Ou na insistência vã das palavras, na dupla locução emparelhada “com

palavras / com palavras”, que falham no procurar e no conhecer.

No terceiro quesito, endereçamento, a poeta se mune de um “você” ou um “tu”

como se quisesse abrir uma ponte de diálogo, de aproximação e de escuta junto ao

leitor, já que esse “você” ou “tu” é um destinatário anônimo em suspensão, ou melhor,

dizendo “um poema em branco”. Em um depoimento no site da Companhia das Letras

AMM homenageou Ana Cristina Cesar com alguns dizeres bastante reveladores sobre o

endereçamento em sua própria poesia, técnica que aprendeu com uma de suas

referências literárias, Ana C.:

Comecei a ler Ana Cristina Cesar na adolescência, naquele pequeno volume

rosa (vermelho?) da editora Brasiliense que reunia três livros seus, com o título

de A teus pés. Saí de cada leitura desse livro com a impressão de ter sido

lançada em cheio numa intimidade estranha, que ao mesmo tempo me

interpelava e me mantinha à distância. Como quem descobre por acaso as cartas

de amor de um desconhecido. Ou chega sem ser convidado a uma festa e, em

trânsito pela sala, capta o burburinho das conversas já começadas. Essa

sensação era produzida sobretudo pelo flerte com a correspondência (o diário, o

bilhete, o lembrete, a anotação pessoal), e pela força ambígua dos dêiticos

quando usados fora de uma situação enunciativa particular: é para você que

escrevo, você. Sempre saí da leitura dos poemas da Ana me perguntando menos

sobre aquela que no texto diz ‘eu’ do que sobre aquele/aquela em que me via

transformada pela força dessa interpelação. Aprendia aí alguma coisa sobre a

poesia, alguma coisa que tem a ver com destinação, desejo e drama. Ou com

cena, segredo e sereias. Ou com texto, tesão e teatro. Ou com corpo, conversa e

corte. Foi ainda a essa solicitação ambígua que procurei responder, muitos anos

depois, com um poema-carta (Self safári (Carta para Ana C.)) que publiquei no

meu primeiro livro, endereçado simultaneamente a ela e a você, sim, você.

(grifos nosso)

Podemos presenciar esse “você” ou “tu” em quase todos os poemas da autora

como se ela quisesse por meio do poema criar uma presença para suprir uma ausência

que está dentro e fora de si. No poema “Três Postais”, na parte, transcrita abaixo, cujo

subtítulo é “São Paulo”, podemos verificar o sujeito lírico, voz da experiência, em ritmo

prosaico procurar uma interlocução de escuta “Depois de um tempo...” para narrar um

tempo que já passou, mas que ainda se faz presente por causa desse “você”, esse

“outro”:

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São Paulo

Depois de um tempo

todas as coisas ficam marcadas

como se estivessem

impregnadas de veneno

Há um tempo em que os lugares

são limpos e novos

abertos como clareiras

mas já não é este o tempo

Sobre cada lugar se sobrepõe

a experiência do lugar

como um selo

num cartão-postal

Por exemplo

hoje sempre que sobrevoo

São Paulo

penso que em algum apartamento

desta cidade interminável

você

fumando

de óculos

exerce seu direito

inalienável

de não mais pensar

em mim

(MARQUES: 2011, p. 60)

A presença desse “você” que nos faz perguntar quem é o interlocutor move o

poema e mobiliza quem o lê. É nesse instante que o leitor, mobilizado e afetado,

encontra a fissura para se apropriar desse poema pesado, já que esse “você” é sem

destinatário e caberia a qualquer coração partido rememorando a experiência do que foi

e não é mais. Ana Martins Marques parece não ter medo de entrar em cena para

renegociar e resgatar o sentido poético do coração depois de tanta saturação na lírica

romântica e seu relegado esquecimento. A poesia de AMM é uma poesia do coração,

não um coração elevado, ilusório e metafísico, mas um coração “real” que pulsa os

anseios de toda gente diante da vida e do amor. Diz María Zambrano no livro A

metáfora do coração e outros escritos:

O coração é o símbolo e representação máxima de todas as entranhas da vida, a

entranha onde todas encontram a sua unidade definitiva e a sua nobreza [...] O

coração é a víscera mais nobre porque leva consigo a imagem de um espaço, de

um dentro obscuro secreto e misterioso que, em algumas ocasiões, se abre. Este

abrir-se é a sua maior nobreza, a ação mais heroica e inesperada de uma

entranha que parece de imediato não ser senão vibração, um sentir puramente

passivo. (ZAMBRANO: 2000, p. 23)

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Assim como o coração, a poesia de Marques se abre, e é nesse instante fugidio

que a partilha e a magia do poema se realizam nas mãos do leitor que é transportado

para fora de si. O poema oferece, assim, espaço para a alteridade como no caso do

poema “Medição”:

O coração

da baleia-azul

é do tamanho

de uma pequena casa

o primeiro coração

artificial

media o mesmo

que um fogão a gás

não muda nada

e no entanto

me agrada que caiba

em minhas mãos

o teu

e o meu

nas tuas

(MARQUES: 2011, p. 70)

Com muita simplicidade, o poema oferece uma imagem de forte

compartilhamento e aconchego em seus últimos versos. A curta “medida” dos versos

ensina a “medição” que o poema anuncia: nem uma casa nem um fogão, mas o espaço

restrito e acolhedor de quatro mãos que se correspondem.

Por fim, não menos importante, o quesito reinvenção mitopoética, mediante o

qual a poeta explora o tempo mítico por meio de figuras como Penélope, que já está

presente lá no livro de estreia, tramando, destecendo e sustentando os fios das tramas

assim como um poeta diante do livro. Sem Penélope qual seria o sentido da aventura de

Ulisses? A repetição de poemas com o título Penélope não cessa porque o sujeito

poético ainda não disse tudo sobre a odisseia da espera. O livro A vida submarina se

finda com o poema “Penélope (VI)” que realiza uma inversão de papel na figura do

narrador: “E então se sentam / lado a lado / para que ela lhe narre / a odisseia da

espera.” Ela precisa continuar narrando para recuperar o tempo fio a fio, enfim para

recuperar a si. Ana Martins Marques em uma entrevista cedida ao Suplemento

Pernambuco intitulada “Como montar uma armadilha para os amantes” esclarece:

Fala-se muito de Ulisses como protótipo do narrador, mas para mim é Penélope,

destecendo de noite o que tece de dia, que pode ser tomada como figuração da

escrita. (...). Acho que o que me atrai na figura de Penélope é a revelação de que

a espera também é um trabalho, cotidianamente feito e desfeito. Isso tem a ver

com a espera amorosa – no livro Fragmentos de um discurso amoroso, Barthes

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define o enamorado como aquele que espera –, mas tem também a ver com a

leitura e com a escrita, com o texto como uma viagem em repouso.

Circe, sereias mudas, Ícaro também comparecem em sua poética reconfigurando

uma ressonância mítica reinventada. No poema “Ícaro (2)” presenciamos por meio de

apenas cinco breves versos a suspensão de Ícaro ao céu marcado no terceiro verso

“(pensou)” por meio do verbo no passado e os parênteses que o suspendem e

comprimem no exato instante do irreparável “tocar o sol”:

Ícaro (2)

Nesta altura

Dos acontecimentos

(pensou)

Só espero tocar o sol

Antes do solo

(MARQUES: 2011, p. 69)

O poema é sério-jocoso. A poeta brinca com a altura dos céus a que voou Ícaro,

evocando-a através da altura figurada da expressão batida “nesta altura dos

acontecimentos”. O próprio verbo pensar no centro do poema vagamente alude em tom

de pilhéria ao dito popular que sugere que se o passarinho pensasse na impossibilidade

que é o seu voo ele por certo cairia. Afinal, pensar e pesar compartilham o mesmo

étimo. O Ícaro que já antecipa o solo no alçar o voo é de certa forma um anti-Ícaro, um

herói que ironiza a si mesmo. O Ícaro mítico era só subida, desejo insensato e

exorbitante de ultrapassar, temor nenhum de cair. O Ícaro muito humano do poema

torce para que a força de gravidade não esmague prematuramente o seu voo. A ironia

maior do poema está na conjugação de dois termos fonética e graficamente aparentados

que atuam como perfeitos contrários: sol e solo. O efeito é ainda mais notável porque o

sintagma “o sol” já está inteiramente contido no vocábulo “solo”, de modo que o poema

cifradamente enuncia que este voo desde sempre foi queda, que não há a possibilidade

de desgarrar-se do solo e aspirar ao sol.

Mesmo assim, no entanto, sonhamos, e, como Ícaro, subimos, nos lançamos ao

mais. Eis o dado sério do poema. E como se adentrássemos a mente ficcional de Ícaro,

voamos junto ao desejo dele. A escrita tem esse poder? Todos sabemos que sim, apesar

da queda.

Sempre que escrevo sobre a poesia de Ana Martins Marques ou do meu poeta de

alma Mário de Sá-Carneiro me lembro dos versos do poeta Ricardo Domeneck me

alertando – “(...) é preciso / cruzar o oceano / para ousar / falar de água” – e já me quedo

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frustrado e sem fôlego no vasto mundo de Marques no qual tudo é matéria de poesia.

Entretanto, é preciso resistir no nado sincronizado dos braços, pois a beleza está sempre

a um palmo de nossas mãos, lá no recôndito, no campo do inefável. Em se tratando da

poesia de AMM, ela (a beleza) está bem próxima de nós, por isso, sucumbimos de

imediato diante dela. Diz a poeta em uma outra entrevista concedida ao Suplemento

Pernambuco cujo título “Para escalar e cair em versos montanhosos” faz jus a sua obra:

a escrita literária é um lugar de deslocamento, de invenção, de alteridade; me

interessa pensar a literatura como esse lugar instável em que as identidades são

colocadas em xeque, ou são expostas em toda a sua força de metamorfose – um

lugar em que a identidade não se “expressa”, mas se “inventa”, se “joga” –, e

sobretudo acredito que o poder e a radicalidade da literatura dependem de que

ela não seja redutível a um discurso, seja sociológico, seja filosófico ou moral;

de que ela não seja lida como mero veículo ou suporte de um discurso prévio,

por mais bem-intencionado que ele seja.

Um livro assim dotado de tantas experiências e metamorfoses com a linguagem

em suas formas múltiplas, de volteios metalinguísticos no corpo do poema como campo

de investigação e de releituras de outros poetas como Baudelaire, Bishop, e.e.

cummings, Anna Akmátova, Joan Brossa, Sophia de Mello Breyner entre outros, que

quando a gente lê entende tudo, mas não sabemos explicar, realiza o “parto de uma nova

claridade”, como diria Rilke. Podemos presenciá-lo efetivamente nos seguintes versos

do poema-epígrafe que abre a segunda seção “Da arte das Armadilhas”: “A linguagem /

sem cessar / arma / armadilhas // O amor / sem cessar / arma / armadilhas // Resta saber

/ se as armadilhas / são as mesmas // Mas como sabê-lo / se somos nós / as presas?”.

É interessante salientar que a estrutura dos versos do poema-epígrafe se repete

“A linguagem / sem cessar / arma / armadilhas // O amor / sem cessar / arma /

armadilhas” e a única mudança que ocorre é a substituição do sujeito “linguagem” pelo

sujeito “amor”, o que nos abre a porta para dizer que o modo de ser da linguagem se

equivale ao modo de ser do amor. Enquanto o sujeito poético tem dúvidas “se as

armadilhas / são as mesmas” porque nós somos as presas, também é possível dizer que

somos as presas porque estamos presos à linguagem e ao amor e, por isso, não

conseguimos ser de outra maneira a não ser pela linguagem e pelo amor.

Com a Ana não aprendemos somente poesia. Seus rastros nos poemas nos

transportam para diversos mundos possíveis já que a poeta convoca no corpo de seus

versos uma comunhão de todas as formas e artes. Tudo na poética de Marques é

chamado para falar: poesia, livro, teatro, cinema, fotografia etc. Não poderia deixar de

dar destaque, porém, para três artistas plásticos que comparecem nos livros da poeta. No

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primeiro livro A vida submarina a poeta dedica um poema para Mira Schendel –

desenhista, pintora e escultora – intitulado “Papel de arroz”:

Mira:

as coisas construídas oscilam

numa frágil arquitetura

(os papéis cultivados

em campos

guardarão sempre a memória seca

dos dias alagados).

Também as palavras revelam somente o que escondem:

eis a solução de uma questão

delicada.

(MARQUES: 2009, p. 111)

Mira fez do papel de arroz um dos suportes de seus trabalhos plásticos e obteve

efeitos fabulosos. O poema procura emular a leveza e delicadeza das obras de Mira –

não por acaso a última e destacada palavra do poema é “delicada” – inclusive na

ondulação dos versos de extensão cambiante. “Frágil arquitetura” é uma metáfora

extremamente oportuna para as monotipias de Schendel, sobretudo pela contradição

entre o adjetivo e o substantivo que traduzem o paradoxo de uma construção

arquitetônica que “oscila”. Ana Martins Marques captura não apenas a forma do

empreendimento plástico de Mira como também a inquietação temático-existencial que

a motiva. A “questão delicada” – que as artistas compartilham – da diferença entre a

vivência (“dias alagados”) e a sua representação (“a memória seca”) talvez se exprima

na fragilidade de uma construção que “se mantém” por sua “oscilação”. Assim também

com as palavras, que “revelam somente o que escondem”. O paradoxo é justamente a

“solução”. O curto poema “Papel de arroz” reúne todos os quesitos que temos mostrado

na poesia de Ana: o vigor metapoético, o endereçamento, o olhar amoroso, o extrair

lição de poesia de tudo, inclusive do fazer de outros artistas, e o convite insistente à

presença do leitor. O primeiro verso do poema é ambivalente, porque, do nome da

artista homenageada e convocada, a poeta faz um verbo que imperativamente dirige o

olhar do leitor, chamando-o para a dupla participação na obra plástica e na poética.

No segundo livro Da arte das armadilhas a poeta nem chega a dedicar o poema,

pois o título “Parangolé” já evoca Hélio Oiticica:

Entre

a casa

é sua

sua casa -

camisa

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suas vestes -

vestíbulos

saia -

sala

chão -

chapéu

entre

a casa

é sua

corredor

para o corpo

escada

para o êxtase

vestido

com vista

para o mar

(MARQUES: 2011, p. 54-55)

Nesse poema habitamos o corpo da palavra em movimento, habitamos o

parangolé e o êxtase. O poema é performático desde o início como se os cortes do verso

girassem ao som do movimento e da casa que se alevanta. Entrar na roupa, que é a

própria obra de arte, autoriza uma intimidade e um convívio sem precedentes entre

artista e espectador, e esta parceria é admirada e simulada no poema, que se faz roupa, e

obra, e dança, no seu desenho gráfico e em suas sonoridades. Afora as duas estrofes que

franqueiam o ingresso no texto-parangolé, reproduzindo o usual “Entre, a casa é sua”,

todas as demais fazem corresponder à parte da casa uma peça do vestuário, conjugando-

as pelo som – e assim fazendo música, ao som da qual se dança paramentado com o

parangolé – e ampliando, em cada passo, o alcance das palavras. Da camisa, se faz casa,

da veste vestíbulo, da saia sala, do chapéu chão (ou vice-versa), do corredor corpo, da

escada êxtase, do vestido vista – vista que abarca o mar. Ana não apenas homenageia o

artista plástico e aprende com ele a fazer texto-roupa que o leitor pode vestir, poema-

recinto onde o leitor pode entrar, mas interpreta a obra de Hélio Oiticica e abre-lhe

dimensões, que, confirmando a sua concretude-corpo, ao mesmo tempo a transcendem.

Por fim, um poema dedicado para Leonilson – pintor, desenhista e escultor –

cuja beleza, delicadeza e tristeza estremecem quem o lê, principalmente aqueles que

conhecem a trajetória do artista que via na arte a costura de sua própria vida:

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O perde-pérolas

Mãos de seda

coração de veludo

em navios de pano

ninguém escapa

beijos bordados

não são roubados

uma carta

para o corpo:

logo é tão

longe

(não o tempo

mas o sol

te arruinará

as asas)

o perde-pérolas

Penélope

és tu

(MARQUES: 2011, p. 47)

Esse poema-homenagem a Leonilson é um dos poemas da Ana que mais me

toca. Fiquei totalmente maravilhado pela trajetória e obras do artista quando o conheci

por meio do documentário – Leonilson, sob o Peso dos Meus Amores – de Carlos

Nader. Chamou-me atenção de imediato ao ler o poema como Ana, de um jeito simples,

delicado e belo, confeccionou o poema emulando a vida, os procedimentos e

ferramentas de que o artista se utilizava para compor suas obras, mas também lançou

mão de elementos tão caros à sua poética que já vinham sendo explorados desde seu

primeiro livro como, por exemplo, a figura de Penélope, os temas do coração e a

solidão.

Pesquisando um pouco mais descobri que o artista utilizava pedras, pérolas,

além de outros elementos para compor suas obras. Em uma obra chamada “O templo”,

estabelece oposição entre pérolas e abismo, oposição que podemos entender como

complementar, pois é preciso descer fundo ao abismo para buscar a delicadeza.

Contudo, seria apenas essa a explicação para essa oposição? Segundo o livro São tantas

as verdades de Lisette Lagnado “em 1991 Leonilson borda um coração em chamas com

pedras, acompanhado das inscrições: ‘O pescador de pérolas. Ruínas. Templos’. A

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palavra pérola é definitivamente investida de um valor moral e religioso”. Talvez, por

isso, no poema da Ana seja interessante ele perder-pérolas e não pescar-pérolas, pois só

assim ele se salvaria como artista deixando para trás toda uma carga simbólica que

somente o esmagava e o fazia se perder ainda mais.

Ao dizer que as mãos do Perde-pérolas são de seda e o coração, de veludo, a

poeta também insinua toda a delicadeza que perpassa a vida interior e as obras do artista

que fez da costura o ápice e a dor de sua arte. Os temas do coração são caros para ambos

os artistas. Lembremos aqui dos versos do poema “Seda”: “É tão difícil amar / neste

mundo imperfeito”. Dramas existenciais e amorosos retratados em panos ou em papeis

são advertência de fragilidade na certa, já que “em navios de pano / ninguém escapa”,

assim como ninguém escapa ao navegar em barcos de papel. “Beijos bordados”

sangram por dentro, são interiorizados. O complemento “não são roubados” é curioso e

pode ser lido como uma miséria ou benção. No primeiro caso, porque beijos bordados

não são efetivamente dados, não há como alguém sedutoramente roubar-lhe um beijo

apenas bordado. Por outro lado, um beijo bordado tem a garantia da permanência e

suplanta a volatilidade por via da sábia arte do tecer. Fruto da memória ou do desejo,

Um beijo bordado é ele mesmo o ponto de partida e chegada.

Uma carta para o corpo seria o prenúncio de ruína? O logo se assemelha ao

longe que também é o aqui. O tempo jamais arruinará a obra do artista, mas o sol

arruinará mais uma vez a vida de outro Ícaro. Todo artista é um perde-pérolas, mas

Leonilson é Penélope.

A maior iluminação para alcançar a obra de Leonilson e o poema que Ana lhe

dedica me veio de um poema de Rimbaud intitulado “Chanson de la plus haute tour”

traduzido por Augusto de Campos na obra Rimbaud Livre. A mera justaposição dos

textos já me parece eloquente. A combinação de perda e ganho, delicadeza e loucura,

paixão e encantamento parece a nota dominante em todos os casos:

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Oisive jeunesse

Inútil beleza

A tout asservie,

A tudo rendida,

Par délicatesse

Por delicadeza

J’ai perdu ma vie.

Perdi minha vida.

Ah! Que le temps vienne

Ah! que venha o instante

Où les coeurs s’éprennent!

Que as almas encante!

(RIMBAUD: 1993, p. 43)

E por que Leonilson, o perde-pérolas, é Penélope? Será sonoro-musical a

associação, na sequência ritmada dos /pe/? Ou porque perder pérolas é justamente o

cotidiano trabalho de um tecer que não cessa de se destecer, ou antes de um destecer

que é o modo próprio do tecer? Novamente justaponho um dos muitos poemas de Ana

intitulados “Penélope” como melhor maneira de tentar aclarar o “demônio da analogia”,

para citar Mallarmé:

O que o dia tece

a noite esquece.

O que o dia traça

a noite esgarça.

De dia, tramas,

De noite, traças.

De dia, sedas,

De noite, perdas.

De dia, malhas,

De noite, falhas.

(MARQUES: 2009, p. 89)

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CAPÍTULO

3

Futuros Amantes

Chico Buarque

Não se afobe, não

Que nada é pra já

O amor não tem pressa

Ele pode esperar em silêncio

Num fundo de armário

Na posta-restante

Milênios, milênios

No ar

E quem sabe, então

O Rio será

Alguma cidade submersa

Os escafandristas virão

Explorar sua casa

Seu quarto, suas coisas

Sua alma, desvãos

Sábios em vão

Tentarão decifrar

O eco de antigas palavras

Fragmentos de cartas, poemas

Mentiras, retratos

Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não

Que nada é pra já

Amores serão sempre amáveis

Futuros amantes, quiçá

Se amarão sem saber

Como o amor que eu um dia

Deixei pra você

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O livro das semelhanças ou chão, estilhaço

o mar é-se como o aberto de um livro / aberto e esse aberto é o

livro que ao mar / reverte e o mar converte pois de mar se /

trata do mar que bate sua nata de escuma / se eu disser que o

mar começa você / dirá que ele cessa se eu lhe disser que ele /

avança você dirá que ele cansa se eu lhe / disser que ele fala

você dirá que ele cala / e tudo será o mar e nada será o mar.

Haroldo de Campos

Construir um livro é ancorar a casa das palavras para que logo em seguida essas

próprias palavras possam emergir aos poucos garantindo assim forças para um

grandioso salto de peixe – que em movimentos delicados e ao mesmo tempo abruptos –

irradiariam partículas primigênias de água por todo o oceano e consequentemente ele

nunca mais seria o mesmo. Abrir O livro das semelhanças é se deparar com esse

grandioso salto de peixe em vida, força e linguagem. É como se pudéssemos ver em tom

e cor o sangue que alimenta as veias das palavras, mas antes de tudo as veias da vida. É

um livro Proteu, costumo dizer, que se metamorfoseia assim como o mar que se

movimenta a todo instante, sem deixar, precisamente, de metamorfosear quem o lê.

Conheci O livro das semelhanças por meio de uma resenha do crítico Marcos

Siscar cujo título se assemelha a um poema “Crítica: o humanismo acolhedor da poesia

de Ana Martins Marques” no site do jornal O Globo. Logo depois fui saber por uma

professora, que tinha destacado a resenha do jornal impresso no dia sete de novembro

de 2015, que a resenha saíra com o título de “Jogo de reflexos entre a palavra e o

mundo”, contudo o que permaneceu em mim foi o impacto do primeiro título e de como

ele fazia sentido quando terminei de ler o referido livro. Nessa resenha, em um espaço

curto de jornal, o poeta e crítico conseguiu suscitar no leitor um chamado para poesia de

AMM. Diz Marcos Siscar em “Crítica: o humanismo acolhedor de Ana Martins

Marques”:

O poeta é aquele que vive no mundo das palavras – ou seja, para ele, as palavras

não deixam de ser um mundo. Não um mundo à parte, especialmente ilusório ou

requintado, separado do nosso, mas um lugar muito próximo, que pode ser

habitado a partir de suas falhas, de seus vazios. As palavras não são reais apenas

por explicar a lógica do desejo que rege nossa relação com o “mundo real”; ao

serem pronunciadas, elas dão inclusive maior intensidade às nossas relações. A

palavra já é a “aventura”, como diz um poema. A linguagem é o real. (SISCAR:

2016, Jornal O Globo).

O mundo das palavras apresentado pela Ana é exatamente esse de que fala

Siscar, não é um mundo à parte, mas um lugar próximo que pode e deve ser habitado

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por todos. Como já mencionei anteriormente, a poesia de AMM sabe com elegância

colher lição de poesia de tudo e faz da linguagem um modo muito singular de desatar

fronteiras, pois sabe que a linguagem que está atrelada ao real tem mais intensidade em

nos fazer ver. Escrever poesia para Ana se assemelha ao ato de reger encontros por

entre as dobras das páginas do livro. É como se quisesse desemaranhar aquilo a que o

próprio poeta tem dificuldade de dar forma na cena da escrita para poder assim

compartilhar com o leitor tanto o lirismo acolhedor das palavras quanto sua doçura

rigorosa como nos lembra o termo cunhado por Alcides Villaça em uma crítica acerca

d’O livro das Semelhanças.

Dividida em quatro seções intituladas “Livro”, “Cartografias”, “Visitas ao lugar-

comum” e o “O livro das semelhanças”, que dá título ao livro, a obra explora o objeto

livro e sua composição, os limites e os jogos da linguagem, as questões cotidianas, a

dicção prosaica, o amor / humor e as ruínas em que somos constantemente lançados,

além de outros temas recorrentes da poética da Ana como o exercício constante da

metalinguagem, a leveza, os mapas do desejo, sem deixar de lado a tinta da melancolia

do nosso tempo, as impossibilidades da linguagem, enfim, sem deixar de lado nossos

desesperos e inquietações.

Ao abrirmos o livro nos deparamos com um poema-epígrafe “Ideias para um

livro” cujos pares de versos, enumerados em forma de algarismos romanos, assim como

nos capítulos de romances, parecem nos acenar um aparente percurso de como se dará a

construção do livro, ou seja, seu modus operandi, o que já indica de certa forma o rigor

construtivo ao mesmo passo que espontâneo do livro e a transparência no tracejar dos

versos do sujeito lírico que se enuncia e parece não querer ocultar nada do seu leitor,

mesmo que ele não atenda a todas as condições enumeradas:

I

Uma antologia de poemas escritos

por personagens de romance

II

Uma antologia de poemas-

-epitáfios

III

Uma antologia de poemas que citem

o nome dos poetas que os escreveram

IV

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Uma antologia de poemas

que atendam às condições II e III

V

Um livro de poemas

que sejam ideias para livros de poemas

VI

Este livro

de poemas

(MARQUES: 2015, p. 9)

O poema-epígrafe simula no título “Ideias para um livro” uma espécie de sessão

de brainstorm para o livro por vir e que apesar de já estar pronto e acabado não deixa de

ser porta de entrada, ou seja, um início para que o leitor possa palmilhar a feitura e

formulação dessa misteriosa e encantadora máquina do mundo que se chama livro.

Convoca para isso personagens de romances como se refutasse apenas um monólogo de

um grande astro chato e entediante, prefere assim a comunhão de escritos plurais, que

partam de diversas singularidades e perspectivas.

No par de versos II não deixa de evocar um canteiro de flores para a memória:

“uma antologia de poemas- / -epitáfios”. Seriam os poemas desse livro por vir

inscrições de futuras lápides ou uma evocação à memória daqueles que já foram e

permanecem inscritos em nossas vidas? No par de versos III o prenúncio de “uma

antologia de poemas que citem / o nome dos poetas que os escreveram”. Por que se

fariam tão necessários esses rastros na construção de um novo mundo? Seriam os poetas

citados a costura que emenda esse sujeito poético, por ora, em retalhos e que também se

inicia ali no escrever?

Por fim, um par de versos IV que atenderia “às condições II e III” de um livro,

porém se a escrita for considerada um jogo de uma imaginação lúdica como assegurar

isso? Então, para essa pergunta existiriam mais dois pares de versos, o V e o VI,

respectivamente: “Um livro de poemas / que sejam ideias para livros de poemas”, como

uma nascente que jorra água, assim como um nascer de livro, “Este livro / de poemas”,

que agora brota nas mãos do leitor e se lê.

A seção “Livro” é de uma beleza assombrosa, por isso lança-se o poema-

epígrafe antes como efeito de amenizar o impacto do que estaria por vir. É nela que o

livro, ou melhor, o metalivro vai se construindo em linguagem pelas mãos do sujeito

poético que se empreende nessa aventura. Todos os elementos que compõem o “Livro”

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são chamados para falar de uma forma singular: “Capa”, “Nome do autor”, “Título”,

“Dedicatória”, “Epígrafe” e assim por diante – cada um com seu espaço de destaque e

assombro – no grande teatro da palavra e do mundo.

No primeiro poema da seção “Livro” chamado “Capa” temos os seguintes

versos: “Um biombo / entre o mundo / e o livro”. Há um ditado que diz que se julga um

livro pela capa. A capa é o primeiro elemento que analisamos e apreciamos em um livro

e, como dizem os versos da Ana, “o leitor está à porta / não sabe ainda se entra”, pois há

atrás do leitor o mundo que o chama. Há um mundo lá fora, há um mundo dentro do

livro. Por que eles não haveriam de se cruzar? E se se cruzassem a grande questão seria:

como penetrar por entre as fissuras desse biombo que tudo e nada ao mesmo tempo

separa? Outra possibilidade de leitura para o poema seria folhear esse biombo que

emula a própria capa e como num passe de mágica – mundo e livro – entrariam em

nossa vida em um gesto só.

Em “Título” o sujeito-lírico por meio de uma associação inusitada acena com

um jogo de reflexo e luz entre o livro e o lustre. Veja: “Suspenso / sobre o livro / como

um lustre / num teatro”. Os versos-iluminação, surpreendentes à primeira vista,

funcionam como clarividência e despenhadeiro para os grandes dramas humanos. A

liquidez da marcante aliteração do /l/ em livro / lustre parece envolver e fundir os dois

termos – lustre livros –, eles, que carregam consigo o ilustre da vida. O parentesco

sonoro, acentuado pelo encontro consonantal a que responde em eco a palavra final

“teatro”, chama atenção em primeiro lugar. Mas “lustre” e “livro” se aproximam

também por seu potencial de luz e sua oferta de ilustração, tanto no sentido de

exemplificar – com “figuras”, inclusive – quanto na acepção de prodigalizar

ensinamento.

“Dedicatória” é um poema simples como um presente que recebemos de alguém

que amamos muito. Diz ele: “Ainda que não te fossem dedicadas / todas as palavras nos

livros / pareciam escritas para você”. Lembro de quando li esse poema e bem no

finalzinho dele me perguntei: Eu mesmo? Essa dedicatória é para mim? Obrigado, foi

uma das coisas mais bonitas que já li. Foi aí que descobri que estava diante do

humanismo acolhedor de que fala Siscar e do lirismo acolhedor de que tanto falo

quando leio os poemas da Ana. A linguagem poética ganhava ainda mais força depois

da leitura desse poema porque atrás desse “você” não existia apenas um “eu”, mas uma

alteridade pedindo escuta e participação “ainda que”.

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Já em “Epígrafe” nos deparamos com uma grande questão teórica em tantos

séculos de literatura: Afinal, poesia e realidade não se cruzam? Diz o poema:

Octavio Paz escreveu:

“A palavra pão, tocada pela palavra dia,

torna-se efetivamente um astro; e sol,

por sua vez, torna-se alimento

luminoso”

Paul de Man escreveu:

“Ninguém em seu perfeito juízo ficará à espera

de que as uvas em sua videira amadureçam

sob a luminosidade

da palavra dia”

(MARQUES: 2015, p. 17)

Nesse procedimento de corte e colagem na formulação do poema, assumem o

papel de epígrafes as falas contraditórias de dois autores conhecidos no universo das

Letras, suscitando reflexões críticas e abrindo margem para uma grande discussão entre

poesia e realidade. Octavio Paz seria um sonhador, um “sonhador de palavras” (um

rêveur de mots), à moda de Bachelard? Ou um louco, como Quixote, cuja loucura

brotou da leitura de livros? Mas quem é que precisa estar “em seu juízo perfeito”, como

diz Paul de Man, especialmente ao ler um poema? Em meu entusiasmo comovido de

leitor, a luminosidade da palavra dia não se acanha diante da luminosidade do dia. Sigo

o fauno de Mallarmé: “Assim, quando das uvas eu tiver sorvido a claridade / Para banir

uma dor por fingimento oculta / Ridente, elevo ao céu de verão a uva vazia / E,

soprando em sua pele luminosa, ávido / De embriaguez, até a noite miro através”2. O ato

real e a ação poética de sorver a uva estão inteiramente fundidos mediante a

“performance” luminosa da palavra “claridade” (clarté), que amplia infinitamente o

alcance do ato, possível e concreto, de mirar através da pele da fruta esvaziada, levando-

o a novos envios e dimensões. A palavra pão pronunciada não saciaria a fome de

alguém, mas por qual motivo então ela comoveria alguém de barriga vazia? Sempre me

lembro das aulas do professor Ronaldes quando dizia que a literatura é uma forma de

conhecimento que clarifica os aspectos obscuros da existência humana e que ela sabe

mais da gente do que nós próprios. Contudo, para que poesia em um tempo tão pobre

como já formulava Hölderlin? A realidade é que precisamos do pão assim como da

poesia, porém alguns não têm nem o pão, quem dirá livro de poesias?

2 Ainsi, quand des raisins j’ai sucé la clarté, / Pour bannir un regret par na feinte écarté, / Rieur, j’élève

au ciel d’été la grappe vide / Et soufflant dans ses peaux lumineuses, avide / D’ivresse, jusqu’au soir je

regarde au travers. Tradução livre.

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No “Primeiro poema” da mesma seção a grande discussão entre poesia e

realidade retorna de forma imagética e cotidiana:

O primeiro verso é o mais difícil

o leitor está à porta

não sabe ainda se entra

ou só espia

se se lança ao livro

ou finalmente encara

o dia

o dia: contas a pagar

correspondência atrasada

congestionamentos

xícaras sujas

aqui não encontrarás,

leitor,

xícaras sujas

(MARQUES: 2015, p. 18)

O primeiro verso, a primeira tela em branco, a primeira palavra que muda todas

as possibilidades de um papel – e do real. Iniciar nunca é fácil para um escritor que se

lança às incertezas. Brodsky (1994), poeta russo, exemplifica esse sentimento:

se você trabalha em um banco ou pilota um avião, sabe que, depois de adquirir

uma quantidade substancial de conhecimento especializado, tem mais ou menos

garantido o lucro, ou um pouso seguro. Já na profissão de escritor, o que se

acumula não é um conhecimento especializado, mas incertezas.

Entre o livro e o dia. Entre ficar e partir. Entre espiar ou se lançar. Incertezas.

Inseguranças. Essa é a vida do poeta. Essa é a vida de todo cidadão. Se não há um

enfrentamento diário, não há pão, se não há escrita dessa vida, não há poesia, não há

espaço para arte. O dia é cruel, pois nele as tarefas a serem realizadas não permitem o

erro, por isso, o sujeito lírico, com medo da não participação do leitor, adianta logo:

“aqui não encontrarás, / leitor, / xícaras sujas”, como se quisesse levar os dramas para os

bastidores como faz Manuel Bandeira, seduzindo e ganhando o leitor através de uma

coloquialidade simples e direta para depois arrastá-lo ao mundo das transposições

poéticas. Não há nada, porém, que garanta essa adesão do leitor, especialmente porque o

sujeito lírico sabe que a poesia não é apenas uma forma de escape para nossa rotina

amarga e tenebrosa, sabe que apesar de ser um alento nem mesmo os poemas escondem

as xícaras sujas.

“Índice remissivo” é um poema genial, pois nele encontramos as palavras que

mais se repetem e de certa forma estruturam o livro como um todo, além de “todas as

pequenas coisas entre as palavras / que não se encontram nos índices” conforme nos

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acenam os versos finais do referido poema. Em primeiro lugar temos a palavra “mão” e

suas variações no plural que comparecem nas páginas 21, 27, 29, 42, 44, 53, 68, 86, 90,

101, 102, 103, 104 e em segundo lugar as palavras “casa” e “mar” empatadas sendo que

ambas são as mais recorrentes em toda obra poética de Marques. O sujeito lírico sempre

empreende uma busca pelo desconhecido do mar e do conhecido da casa, projetando

reinvenções e dissipando aspectos puramente utilitários. É sempre do lugar do afeto que

se encenam os poemas da Ana.

Entretanto, não é à toa que a figura da mão seja a protagonista de um livro

metapoético, pois são as mãos que fundam o escrever, que manuseiam a massa ainda

informe, que transformam linguagem bruta em linguagem cultivada, que costuram e

desfiam o escrever dia e noite, por isso, em “Último poema” antes de “Índice remisso”

o sujeito lírico nos dá o passo a passo de um mudo convite:

Agora deixa o livro

volta os olhos

para a janela

a cidade

a rua

o chão

o corpo mais próximo

tuas próprias mãos:

aí também

se lê

(MARQUES: 2015, p. 29)

Somos todos leitores do mundo assim como somos leitores de nós mesmos,

porém é preciso – com vagar – voltarmos os olhos para aquilo que a rotina já soterrou,

ainda mais quando somos nós mesmos os sujeitos soterrados, porque é nas mãos – “tuas

próprias mãos” – que residem as linhas de construção de travessias, e toda travessia, por

menor que seja, altera o livro da vida. O poema convida o leitor a olhar para fora dele e

ler o mundo, a realidade. Entretanto, esse olhar que pausa a leitura e se volta “para a

janela / a cidade / a rua / o chão / o corpo mais próximo / tuas próprias mãos” o faz

agora motivado pela leitura do poema, do livro, de modo que a leitura da janela, da

cidade, da rua, do chão, do corpo, das mãos recebe um impacto de amplificação, de

aprofundamento, de agudeza inquisitiva, de emotividade pensante que apenas o poema

lhe poderia legar. O leitor “sai” do mundo e “entra” no poema. Quando de novo

“emerge” do poema, traz tantas ressonâncias e abalos que se tornam “mais próximos”

não só o corpo, mas também a janela, a rua, o chão, as mãos. A vida também é para ser

lida, já dizia Guimarães Rosa, e a poesia é a mais aguda das lentes para fazê-lo.

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As mãos também são seres alados que buscam o encontro quando não o

desencontro. Veja-se o poema “Mãos” que se configurou como seta estruturante da

poética de Ana no livro Da arte das armadilhas:

Separadas

pelo corpo

côncavas

cordatas

ásperas do contato

excessivo

com o mundo

agarram-se às coisas

soltas

agarram-se umas

às outras

*

Vagavam

vazias

vasculhando

vastas superfícies

ou esquecidas

sobre sítios

tristes

Até que chegaram

as suas

(MARQUES: 2011, p. 37)

As qualidades atribuídas às mãos – côncavas, cordatas, ásperas – modulam

diversamente o seu contato com o mundo. Côncavas, o recolhem, o abrigam, guardam-

no num casulo; cordatas, com-cor-dam, cordialmente afinam-se num mesmo diapasão,

com ele se comunicam de cor; ásperas, o repelem, enfadadas, mas agarram-se às coisas,

soltas (as mãos ou as coisas?), e travam outra forma de contato, que a ambiguidade

favorecedora e recusante do verbo travar pode exprimir. A segunda estrofe do poema é

quase uma homenagem ao famoso poema “Volúpia dos violões”, de Cruz e Sousa, que

se abre com o verso “Vozes veladas, veludosas vozes” e em que a repetição aliterativa

da fricativa percute toda uma quadra de versos. Em “Vagavam / vazias / vasculhando /

vastas superfícies”, a aliteração do “v” acentua o longo caminho solitário, áspero e

machucado percorrido pelas mãos. A distribuição dos vocábulos em versos separados,

quase todos isolados, dá concretude à solidão e ao vazio e alonga plástica e quase

sensualmente o gesto de busca, condensado em “vasculhando”, tanto pelo significado

do verbo, de procura sôfrega e devassante, quanto pela sua forma, um polissílabo no

gerúndio. A assonância da vogal “a” como que intensifica uma procura já cabisbaixa

com o consentimento de nada encontrar “até que...”. Os dois últimos versos assinalam o

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encontro de modo um tanto dúbio. O sentido imediato enuncia que outras mãos, de um

sujeito desejado, chegaram para unir-se às suas. Não está, contudo, descartada, apesar

da ausência da crase, a leitura que entende que as mãos do sujeito poético chegaram,

afinal, a outras, que poderiam mitigar sua solidão. As mãos pensam, constroem e

descontroem, porém estão sempre prontas para edificar o por vir, pois nelas reside a

força do padeiro, a força do escritor, a força do trabalhador rural, a força do pedreiro, a

força do artista.

Na seção “Cartografias” temos mais uma vez a sombra de uma presença que o

sujeito lírico endereça como um “você” anônimo que modifica toda a cartografia de

uma alma deserta e esquecida como um mapa sobre a mesa:

E então você chegou

como quem deixa cair

sobre um mapa

esquecido aberto sobre a mesa

um pouco de café uma gota de mel

cinzas de cigarro

preenchendo por descuido

um qualquer lugar até então

deserto

*

Você fez questão

de dobrar o mapa

de modo que nossas cidades

distantes uma da outra

exatos 1720 km

fizessem subitamente

fronteira

*

Você assinala no mapa

o lugar prometido do encontro

para o qual no dia seguinte me dirijo

com apenas café preto o bilhete só de ida do metrô a pressa feroz do desejo

deixando no entanto esquecido sobre a mesa o mapa que me levaria

onde?

*

Combinamos por fim de nos encontrar

na esquina das nossas ruas

que não se cruzam

*

Rasguei um pedaço do mapa

de modo que Grand Canyon continua

na minha mesa de trabalho

onde o mapa repousa

desde então minha mesa de trabalho

termina subitamente num abismo

(MARQUES: 2015, p. 37-38-39-40-41)

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Ao ler esses fragmentos sobre encontros, desencontros, aproximações e

distâncias não consigo pensar em outra frase senão a da personagem Francesca (Meryl

Streep) do filme As pontes de Madison: “As palavras ficaram dentro de mim... Fiquei

agradecida pelo silêncio daquela noite. Eu percebi que o amor não obedece a própria

expectativa. É um mistério puro e absoluto”. Nem o amor, nem a escrita obedecem a

própria expectativa, mas é em ambos que existe o encontro com o irreparável, que a

meu ver, está em jogo em “Cartografias”. Para AMM em entrevista ao Suplemento

Pernambuco em 2015:

os mapas das cidades são sempre assinalados com as marcas dos nossos afetos,

são sempre refeitos a partir dos nossos percursos, e a ideia das “Cartografias”

era explorar como os afetos formam e deformam nossa relação com os mapas e

lugares.

A seção “Cartografias” sempre me foi muito cara porque deixa incutido na gente

o sentimento que nos envolve quando nos deparamos com os lugares no qual

vivenciamos algo muito especial com alguém. Para Franscesca e Robert do filme que

citei logo acima as pontes de Madison tornaram-se parte deles simbolizando todo o

vigor da vida do que vivenciaram lá, mas também depois todo o vigor da morte se

espelhando feito cinzas pelo rio. As pontes assim como os lugares que conhecemos

ficam impregnados com as emoções e tristezas da gente, por isso é tão difícil passar em

um lugar em que laços foram cortados depois de anos de convivência no amor. Um

mapa parece tornar um encontro tão rápido, fácil e possível, ele sinaliza o milagre da

vizinhança dos longínquos com uma mera dobradura, ele promete convergências até de

ruas paralelas, mas, em realidade, as rotas potenciais e quiçá passíveis de realização que

traçam podem terminar – e tantas vezes terminam – “subitamente num abismo”. É que

um mapa nunca é pura geografia. Os borrões de café, as gotas de mel, as cinzas de

cigarro que nele caem o impregnam de vida, e a vida afinal é isso, encontros certos

incertos, certos desacertos no concerto previsto, esperanças, desejos, abismos.

Se repararmos nesses fragmentos que nos arrastam para essa rota que vai se

desenhando perceberemos que todos eles terminam em referências espaciais (deserto,

fronteira, onde, esquina, ruas, mesa de trabalho, abismo) e logo após quedam no vazio

da página em branco. Tocam o instante irreparável com poucas palavras, porém

decisivas palavras, e quedam no vazio que só poderá ser atenuado pela dobra que o

livro-mapa costura e as palavras podem realizar:

Quando enfim

fechássemos o mapa

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o mundo se dobraria sobre si mesmo

e o meio-dia

recostado sobre a meia-noite

iluminaria os lugares

mais secretos.

(MARQUES: 2015, p. 47)

Na seção “Visitas ao lugar-comum” não encontramos nada de comum a não ser

algumas expressões que utilizamos com frequência no nosso cotidiano. Ana retoma

expressões “batidas” e amplifica seus sentidos até nos darmos conta de que essas

expressões são mais poderosas e expressivas do que imaginávamos e portam uma

concretude há muito esquecida. Esta operação transfiguradora se dá via poesia. Ana as

revisita e lhes consagra um novo lugar no panteão de um cotidiano vibrante e alegre,

driblando a repetição e o cansaço, e surpreendendo o próprio real, por arte pura e

simples das palavras. A banalidade, o automatismo e a desatenção são suplantados, e

um novo estranhamento, jocoso e brejeiro, se implanta no seio do mais-que-conhecido:

4

Perder a hora

e encontrá-la depois

num intervalo

de teatro

nos cantos empoeirados

do domingo

entre um telefonema e outro

dentro do táxi

8

Cortar relações

e depois voltar-se

verificar se o que restou

suporta

remendo

demorar-se

sobre a cicatriz

do corte

(MARQUES: 2015, p.52-54)

Já a leitura da seção “O livro das semelhanças” é mais densa e áspera. Nela se

encontram poemas que retratam os afastamentos, a memória, o envelhecimento, a

solidão, o amor, a ruína, as semelhanças e as diferenças. Contudo, antes de iniciarmos

as leituras dos poemas que foram tão difíceis de escolher já que todos dialogam com as

nossas cicatrizes, não posso deixar de destacar o rigor da consciência de AMM

enquanto poeta que sabe que toda delicadeza irradia também seus estilhaços e que

poemas podem ser ferozes, violentos. Os versos da própria poeta não me deixam mentir:

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“te amo com minhas garras e plumas / é o que eu diria se este fosse um poema de amor

/ este é um poema não de amor”. É de contrastes que se ergue a poesia e mesmo que

esses contrastes não se toquem eles coexistem assim como o amor e o ódio permeiam

todos os seres humanos.

Não posso também deixar de mencionar o rigor da construção e elaboração do

livro enquanto metalivro, já que todas as seções do livro se tocam e se harmonizam

promovendo assim uma unidade convergente. Essa característica já se percebe nos dois

outros livros da poeta, mas n’O livro das semelhanças atinge o que uma hipotética

análise conjunta de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto traria como resultado.

Os dois penderiam para lados contrários e logo após dariam um abraço, um rindo para o

outro. João Cabral certamente diria para podar um pouco mais o lirismo, já Manuel

Bandeira diria que é da pluralidade de focos que se faz poesia. Então, entrariam na

conversa Gilda e Antônio Candido, que não foram chamados, mas que diriam sem

medo: “do verso livre às harmonias tradicionais, da métrica erudita à síncope dos

coloquialismos mais singelos” assim se faz poesia. Então AMM, toda tímida, para se

justificar, diria:

Nunca pensei na literatura como lugar de conforto. A literatura, e a poesia em

particular, não vai nos dar respostas ou programas, nem vai nos dar acesso a

algum conhecimento sistemático sobre o mundo, mas ela pode dar forma à

nossa perplexidade, aos nossos medos, ao nosso desejo, aos nossos

desequilíbrios e aos desequilíbrios do mundo. A poeta Luiza Neto Jorge tem um

verso muito bonito que diz “O poema ensina a cair”. O poema, se for um bom

poema, vai nos ensinar a cair, vai gerar desconhecimento, dúvida, hesitação, vai

complicar a vida, nos tornar mais inquietos, mais desamparados, mas vai

também nos convidar a ver o mundo de uma forma mais complexa, a mudar a

compreensão que temos de nós mesmos e dos outros.

A partir desse dia em que a Ana se pronunciou aparentemente todas as forças se

complementaram e o modo de operar poesia nunca foi tão feliz e infeliz. Brincadeira à

parte, nos poemas que vamos ler a expressão doçura rigorosa do Alcides Villaça cai

como luva. Veja-se a força da memória que o poema sem título abaixo arrasta:

Pense em quantos anos foram necessários para chegarmos a este ano

quantas cidades para chegar a esta cidade

e quantas mães, todas mortas, até tua mãe

quantas línguas até que que a língua fosse esta

e quantos verões até precisamente este verão

este em que nos encontramos neste sítio

exato

à beira de um mar rigorosamente igual

a única coisa que não muda porque muda sempre

quantas tardes e praias vazias foram necessárias para chegarmos ao vazio

desta praia nesta tarde

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quantas palavras até esta palavra, esta

(MARQUES: 2015, p. 70)

Já no início do poema o sujeito lírico convida a alteridade para pensar junto:

“Pense...”. Há muitos quantos e quantas para se pensar e apenas um “eu” não vai dar

conta de tantas questões, por isso, se convoca o pensar em coletivo. É preciso uma

catábase coletiva para resgatar uma memória obscura de enfrentamentos cujas perdas

inomináveis se fazem sentir pelas entrelinhas do poema. Um poema dedicado ao nosso

intenso agora parece convergir fortemente com as indagações do documentário

Democracia em Vertigem da diretora Petra Costa:

Como lidar com a vertigem de ser lançado em um futuro que parece tão sombrio

quanto nosso passado mais obscuro? O que fazer quando a máscara da

civilidade cai e o que se revela é uma imagem ainda mais assustadora de nós

mesmos? De onde tirar forças para caminhar entre as ruínas e começar de novo?

O vazio é a cicatriz não só do nosso tempo, a instabilidade de tudo sempre foi a

cicatriz da nossa existência. O poema “circunscreve seu vazio”, assim como a vida e a

morte. Ana, em um poema do livro Como se fosse a casa (2017: p. 29), cita em versos

palavras da escritora Anne Carson: “Numa entrevista Anne Carson diz que / se a prosa é

uma casa / a poesia é um homem em chamas / correndo rapidamente através dela”. O

sujeito lírico do poema abaixo “Há estes dias...” é esse “homem em chamas / correndo

através...” dessa casa sem saída, pois o que impera nela e se pressente é apenas ruína e a

instabilidade de tudo.

Há estes dias em que pressentimos na casa

a ruína da casa

e no corpo

a morte do corpo

e no amor

o fim do amor

estes dias

em que tomar ônibus é no entanto perdê-lo

e chegar a tempo é já chegar demasiado tarde

não são coisas que se expliquem

apenas são dias em que de repente sabemos

o que sempre soubemos e todos sabem

que a madeira é apenas o que vem logo antes

da cinza

e por mais vidas que tenha

cada gato

é o cadáver de um gato

(MARQUES: 2015, p. 72)

“Justo quando nos sentimos mais seguros, vem um por de sol, a morte de um

amigo, um coro final de Eurípedes, e somos lançados novamente no Grande Talvez”.

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Este dito de Robert Browning, citado por Borges e traduzido por Carlito Azevedo, nos

escancara a efemeridade de tudo, mas não do amor:

Minas

Se eu encostasse

meu ouvido

no seu peito

ouviria o tumulto

do mar

o alarido estridente

dos banhistas

cegos de sol

o baque

das ondas

quando despencam

na praia

Vem

Escuta

no meu peito

o silêncio

elementar

dos metais

(MARQUES: 2015, p. 78)

Há duas maneiras de se ouvir o poema “Minas”: tumultuosamente ou

silenciosamente. Ambas as maneiras de ouvir habitam o corpo do poema e ambas as

formas circunscritas na primeira ou segunda estrofe convergem para voltarmos ao corpo

do poema e ficarmos infinitamente ouvindo esse poema de encanto e espanto, de mar e

metal. Lembro-me de Hilda Hilst: “Costuro o infinito / sobre o peito”, pois eu costuro

esse poema sobre o peito. Impossível não pensar no fascínio que o sujeito lírico tem

pelo mar, sol e praia, porém mais impossível ainda é não aceitarmos o seu declarado

convite: “Vem / escuta / no meu peito / o silêncio / elementar / dos metais”. Dos metais

também se ouve um mar de montanhas em surdina. Ambos os sons “o alarido estridente

/ dos banhistas” e “o silêncio / elementar / dos metais” coexistem no poema apesar de

suas diferenças ou até mesmo semelhanças.

É um poema aparentemente simples, contudo por trás dele existe experiência

vivenciada e trabalho refinado com a linguagem, além de uma sofisticação nos cortes

dos versos que nos deleita com cada instante ao sol e nos faz até mesmo gostar do

silêncio que ecoa do verso “Vem” que, suspenso e solitário, vibra algo quase inaudível

como um sopro de vida que vem da pedra após sua pronúncia. Ana, assim como um

garimpeiro, trabalha no escuro e consegue ver tudo, “lava o minério (que é a sua forma

de performar a linguagem) para isolar o metal fino”, como muito bem observaram Gilda

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e Antônio Cândido na poética de Bandeira que se assemelha muito ao trabalho poético

de Marques, já que em ambos imperam o cotidiano, o coloquialismo, a força plástica,

virtudes da forma, capacidade de síntese expressiva e a elipse, recursos que “condensam

a expressão” e realizam “a redução ao essencial” conforme também nos pontuam Gilda

e Cândido na introdução do livro Estrela da vida inteira do grande Manuel Bandeira.

Lendo as poesias de AMM sempre acabamos desaguando no mar. Um mar sujo,

mas que ainda assim “limpa” os nossos olhos. Uma vez na FLIP-2013 ela citou Virgílio

Ferreira – ficcionista português – quando explicava de onde vinha o seu fascínio pelo

mar. Nunca me esqueci. O poeta e romancista dizia o seguinte:

Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo em que traçam os limites do nosso

pensar e sentir. Da minha língua se vê o mar. Da minha língua ouve-se o seu

rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por

isso a voz do mar foi a da nossa inquietação.

Mar

Ela disse

mar

disse

às vezes vêm coisas improváveis

não apenas sacolas plásticas papelão madeira

garrafas vazias camisinhas latas de cerveja

também sombrinhas sapatos ventiladores

e um sofá

ela disse

é possível olhar

por muito tempo

é aqui que venho

limpar os olhos

ela disse

aqueles que nasceram longe

do mar

aqueles que nunca viram

o mar

que ideia farão

do ilimitado?

que ideia farão

do perigo?

Que ideia farão

de partir?

pensarão em tomar uma estrada longa

e não olhar para trás?

pensarão em rodovias

aeroportos

postos de fronteira?

quando disserem

quero me matar

pensarão em lâminas

revólveres

veneno?

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pois eu só penso

no mar

(MARQUES: 2015, p. 80-81)

Da língua da Ana não vemos só o mar como também somos constantemente

quebrados pelos caixotes que a poesia dela sempre traz. O mar fica ainda mais vivo e

exerce uma espécie de força tanto fascinante quanto abismática quando a lemos. No

início do poema percebemos um mar um tanto inusitado já que ele traz desde

quinquilharias muito pequenas como camisinhas a trastes um tanto grandes como um

sofá. É certo que o mar provocou grande fascínio sobre os nossos colonizadores.

Conforme nos explica o professor Secchin no artigo “Um mar à margem: O motivo

marinho na poesia brasileira do Romantismo”, “o mar que se celebra é o mar de partida,

cheio de fascínio e promessas diante do desconhecido”, enquanto que “o mar brasileiro

é um mar de chegada, marco de uma história alheia que nele semeou seus signos

opostos: a opulência vitoriosa do europeu e a degradação do escravo africano”. Seriam

essas quinquilharias do poema resquícios ainda das ruínas que nossos invasores

deixaram soçobrar no mar que ainda nos banha e nos afoga? Talvez seja viajar muito

longe pensar assim, pois segundo Gusmão (2010: p. 21) “o anjo da história não pode

<<acordar os mortos e reunir os vencidos>>, talvez a poesia possa gravar nas margens

da história – na areia das suas praias como entre as linhas da sua escrita – a esperança

que sobrevive a todos os seus desastres”.

Mas é certo que a poesia do mar de Ana se faz também com dejetos e sujeira, e

que as “coisas improváveis” que ele traz vêm junto com a sua grandeza de arrasto e não

se dissociam do “ilimitado” assustador e intimidante que ele é. O poema ainda abre

margem para “aqueles que só conheceram o mar pelo rumor que faz um livro / quando

tomba” citando os versos da própria poeta, mas que ao ler o poema sentem vontade

imensa de usufruírem das mesmas sensações que o sujeito lírico sentiu ou está a sentir

pela sua visão intermitente do mar: fascínio ou naufrágio?

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The Boy and The Sea

by Willy Verginer

Lindenwood / Acrylic Sculpture

Encaminho-me para o final do terceiro capítulo com a sensação de dever

cumprido e com um “gostinho” amargo de naufrágio já que a poesia da Ana abarca

tanta coisa e a gente sabe que no final de tudo não damos conta de quase nada. Contudo,

é preciso deixar ir, o poema, a dissertação e até mesmo o amor que nutrimos pelo texto

ou a outrem e isso só é possível porque amar o mundo implica que tudo que enumerei

está no mundo e se estou no mundo sou também beneficiário desse novo amor. O

poema funda o existir, a permanência assim como nunca deixa de se renovar. É o

iceberg de que fala Ana. É a fênix de que falo eu. O poema “Sim” que não entrou em

nenhum livro da Ana, por enquanto, nos acena esse deixar ir, o amor como forma de

estar no mundo – “o amor não subtrai do amor nem uma gota” – e que só se funda pelo

afeto e que a partir de agora passa a integrar o seu mundo:

Sim

Aprovo o beijo de outros nos teus lábios como se fossem meus

sim, aprovo

que te provem outros lábios

hoje é mais um dia em que não estamos mortos

sinto todo amor como meu

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não vou fazer o cerco

do teu corpo

não vou jogar o desejo contra

o desejo

não faz mal

o amor não subtrai do amor nem uma gota

há coisas como cachorros e paisagens

peixes luminosos o sol nos teus cabelos

eu poderia aceitar uma missa para o topo das árvores

para as colmeias os leões as escavadeiras

amar-te é como amar a língua

o modo de ser de certas palavras

mel e milagre

não vou deter a morte

com as mãos não vou

como uma criança

tourear o mar

Nas trocas de e-mail com Maluh, minha orientadora, uma vez ela me advertiu

precisamente: “Perca o recato e toque mesmo nos textos, como a carne macia e muito

apetitosa de um corpo voluptuoso e pronto para o amor”. Tinha medo de tocá-los e

estragá-los, mas depois pensei, mas é claro os poemas da Ana são corpos voluptuosos

em linguagem e estão sempre prontos para o amor, pois há sempre um convite para o

leitor se emaranhar neles. A Maluh sempre nos diz essas coisas bonitas. A Maluh é

poeta como a Ana. Elas gostam de remexer a linguagem, investigá-la a fundo, sempre

trazendo à tona uma nova aurora. Após esse conselho me aliei com a poesia da Ana e

encontrei meu “pouso de pássaro”. Descobri também o “mapa migratório” da

linguagem, do amor e até mesmo da solidão: ─ é dos solitários o amor, diz um verso da

Ana. ─ é dos solitários a escrita, retruco à Ana como se ela já não soubesse. Ela sabe

tanta coisa, sabe que a poesia é um modo de existir, de saber e não saber, de prestar

atenção nas coisas e afirmá-las e é exatamente por essas e outras que ela sempre estará

lá na extremidade de minhas máximas para citar Barthes. Terminar um texto é tão

difícil como começá-lo embora não seja tão difícil quando se tem um poema na manga.

Da poesia só pode brotar mais poesia. E foi isso que ocorreu com meu querido amigo,

parceiro e estudioso do Gullar, Marcos Matheus Diniz, que após leitura d’O livro das

Semelhanças escreveu um poema, “Depois d’O livro das semelhanças”, que nos acena

com uma granada, dentro da qual está guardado o nada – mas “Isso não é uma coisa

ruim”. Diz ele sobre o operar poético da Ana:

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essa moça escreve como quem recolhe

uma pedra no leito

de um rio e a lança como uma gra-

nada na gente – e a gente é pedra

enquanto voa, enxerga uma porrada de

coisa, talvez alguma

coisa importante e acha que o voo é

nosso, mas nosso mesmo é o outro

lado do rio: chão, trovão, estilhaço

Isso não é uma coisa ruim

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CAPÍTULO

FINAL

OU

O FIM

É

O COMEÇO

Noções de Linguística

Em breve a língua tomará conta dele

Ana Martins Marques

Seu filho hoje aprendeu uma palavra

seus ossos dormem crescendo

em breve andará com firmeza

saberá a ciência

do chão

em breve a língua tomará

conta dele

vai emudecer o mundo

moldar seus pequenos dentes

em breve a língua será a mãe

mais do que você é a mãe

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O fim é o começo

Cada leitor procura alguma coisa no poema. E não é nada estranho

que a encontre: já a tinha dentro de si.

(PAZ: 2012, p.32).

Alguns versos duram mais que um barco

e chegam a ir mais longe.

(MARQUES: 2009, p. 23)

Nasci em Amparo – uma cidade do interior de SP – e passei toda minha infância

e começo da adolescência no bairro rural do Pantaleão. Cresci rodeado pela natureza e

pelo rio que cortava ao meio a fazenda onde morávamos. Tínhamos um quintal grande

no qual papai – trabalhador rural – plantava verduras. Eu e meus irmãos ajudávamos

minha mãe nas tarefas de casa e os cachorros e gatos viviam calmamente o passar das

horas. A literatura já existia em minha vida, bem a modo Manoel de Barros, mas ainda

estava por ser escrita.

Na minha casa não havia livros, mas já havia antes mesmo de mim a invisível

escritura de uma natureza viva e das coisas simples de fazenda como, por exemplo, um

vizinho matar um porco e dividir as partes com seus pares da vizinhança. E é nesse ato

de dividir, compartilhar que quero terminar minha dissertação. Quando minha mãe nos

contava histórias estava compartilhando conosco o que ouvira de sua mãe, minha avó,

que ouvira de sua mãe, minha bisavó, e assim sucessivamente remontando toda uma

linha do tempo; por isso, sempre repito com muito orgulho, que meu primeiro contato

com a literatura foi pela voz da minha mãe, essa voz ancestral e mágica, pois “o

mistério subsiste além das águas”, citando Conceição Evaristo, voz que entoa os

“causos” que toda criança gosta de ouvir e jamais irá se esquecer.

Walter Benjamin percebe isso profundamente e diz em um de seus ensaios mais

conhecidos, “O narrador”, as seguintes palavras:

O conto maravilhoso, que ainda hoje é o primeiro conselheiro das crianças porque foi

outrora o primeiro da humanidade, continua a viver secretamente na narrativa. O

primeiro e verdadeiro narrador é e permanece sendo o narrador de contos maravilhosos.

É exatamente por isso que a voz da minha mãe vive e permanece na tessitura

desse texto como grande voz inauguradora da Literatura em minha vida. Dito isso, é

preciso frisar que se não existiam livros em casa existia a voz de minha mãe – que

“salpicava de estrelas nosso chão” – conforme a letra da canção de Sílvio Caldas.

Sempre quando a energia elétrica cessava lá em casa o que resistia era a vela, quando

tínhamos, e quando não, o que resistia era a voz da minha mãe, a escuridão e nossa

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imaginação mergulhando nas palavras que saíam de sua vasta memória. Hoje, quando

conto as histórias que aprendi com minha mãe para meus alunos no Colégio onde atuo

como professor, vejo nos olhos deles o poder de reverberação que uma história pode

causar. E esse poder de reverberação das histórias foi decisivo em minha trajetória, pois

quando cheguei à escola e tive meu primeiro contato com a materialidade dos livros foi

como se uma aliança tivesse ocorrido ali naquele instante.

As histórias que eu mais gostava de ler quando criança eram os contos de fadas

da Disney. Apesar de nunca me ver representado nas histórias de príncipes e princesas,

eu as transcrevia para meu caderno de tarefas da escola, pois só assim teria as narrativas

de finais felizes em casa, junto a mim, para relê-las. Nessa época também conheci os

contos de fadas coletados pelos Irmãos Grimm que me assustavam de tal maneira que

ficava estremecido assim como quando ouvia as histórias narradas por minha mãe. Foi

só em 2001 que fui apresentado aos diversos tipos de textos, inclusive a poesia, nas

aulas de leitura compartilhada da Tia Cassinha, segunda grande voz inauguradora da

Literatura em minha vida, que deixara por escrito – em uma das minhas avaliações de

fim de ano – os seguintes dizeres:

Daniel é um aluno educado, inteligente e muito responsável. Adora frequentar o

PROFIC IV (Programa de Formação Integral da Criança) e sua participação em todas as

atividades se faz sempre com muito interesse.

Estou trabalhando com diferentes tipos de textos na leitura compartilhada, momento

importante na construção de alguns conceitos, isto é, sobre a importância da escrita e o

que ela representa em nossas vidas. E o Daniel já percebeu este ‘ponto’ e, por isso,

realiza as propostas com ‘gosto’.

Daniel, você já me disse e avaliou o PROFIC IV comentando sobre as atividades

propostas no planejamento desse semestre e como os outros também demonstraram

maior interesse, no segundo semestre poderemos seguir a mesma linha. O que você

acha? Boas férias! Tia Cassinha.

Tia Cassinha me apresentou o mundo da leitura e escrita, além de me incentivar

a ler bastante e estudar para cursar faculdade, por isso, não posso e não devo deixar de

mencioná-la aqui nesse texto. Sem ela o sonho de entrar em uma universidade poderia

nem sequer ter existido. Assim como não posso esquecer-me de mencionar minha

professora de Português, Sílvia Oliveira, já que foi com ela que escrevi meu primeiro

poema intitulado “Sonhos de um poeta”:

Não tenho fama de poeta / Mas sonho em ter / Descobrir a cada dia a riqueza / E a

beleza da natureza. // Não gosto de sofrer / Mas sim, viver / A emoção dia após dia / Do

pôr do sol e o raiar do dia. // Os raios de sol / Caindo sobre o mar / Seus cabelos

dourados / Pela noite de luar // Agradeço ao Senhor / Pelo dom de enxergar / A beleza

da terra, do céu // Da mulher e do mar.

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O poema é ruinzinho, mas inscreve os sonhos de um menino que encontrou nas

palavras um porto de chegada e de partida. Com o incentivo da professora Silvia ganhei

três vezes o concurso de redação da Academia Amparense de Letras.

Sempre gostei de estudar, mas aos 15 anos precisava ajudar meu pai com as

despesas de casa já que nossa família era bem numerosa. Somos no total seis irmãos, na

época minha mãe mais meu pai. Sempre passamos por dificuldades, mas nunca faltaram

arroz e feijão em casa e mesmo quando não tinha ganhávamos ou emprestávamos dos

vizinhos que tinham. Aprendi desde cedo a comer de tudo. Minha mãe dizia que quem é

pobre não tem o direito de escolha, mas tem o dever de agradecer. Não tinha jeito para o

negócio de trabalhar na roça, apesar de várias tentativas fracassadas. Sempre fazia algo

errado e meu pai sem paciência dizia que eu parecia “viado” trabalhando. Não foi nem

um pouco fácil essa época, mas de uma coisa sempre tive certeza: queria continuar

estudando.

Foi nesta época que a Dona Fernanda, presidente do MARP (Movimento de

Ação Rural do Bairro do Pantaleão), onde estudei toda minha infância, me chamou para

atuar como voluntário da Biblioteca que tinha acabado de ser inaugurada no bairro.

Aceitei o convite e lá aprendi muita coisa sobre os livros e só aprofundei o meu amor

por eles, contudo eu não recebia nada por trabalhar, organizar os livros, contar histórias

para as crianças que um dia eu tinha sido. Para meu pai era uma ofensa trabalhar de

graça. Entretanto, foi lá atuando como voluntário que uma oportunidade, finalmente,

surgiu e minha vida se aclarou. Dona Fernanda falou comigo sobre a oportunidade de

ser “guardinha”. Aqui no RJ e em outros lugares chamam de “menor aprendiz”.

Porém, como ser menor aprendiz e trabalhar na cidade se havia apenas três

horários do ônibus que passava na roça para nos levar até a cidade? Um às 6 h da

manhã, outro às 12 h da tarde e o último às 17 h. O importante naquele momento não

era pensar nisso, mas sim em passar na prova de português, matemática e

conhecimentos gerais.

Minha mãe – me lembro como se fosse hoje – me levou até a Guardinha para

realizar a prova. No caminho me falava que só tinha ido uma vez lá, mas que havia

guardado o caminho na memória. Ela assim como eu não conhecia a cidade direito,

porém tudo que sabia trilhou junto comigo para eu aprender. Ensinou-me o único

caminho que sabia. Chegando lá fiz a prova e passei em segundo lugar. Como um

menino da roça que mal sabia falar direito alcançaria tal feito? Foi o que algumas

pessoas se indagaram.

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Pronto, havia sido classificado, mas como fazer para ir trabalhar? Na vida, para

tudo se dá um jeito – dizia mamãe – só não tinha jeito para a morte. Eu acordava todos

os dias às 5 h, tomava banho, saía de casa às 05h25min h e andava seis quilômetros para

chegar às 6 h no ponto de ônibus. Não quero que vocês pensem que isso é uma história

triste porque até hoje tenho belas pernas como podem conferir e não estou contando isso

para que tenham pena de mim, mas para que saibam como cheguei à literatura.

E é exatamente nessa fase que a literatura vai aflorar ainda mais em mim. Sabem

por quê? Porque encontrei na poesia uma forma de superar o medo. Sempre fui um

menino “cagão” como minha própria mãe falava e apesar de não parecer sou mesmo. O

medo e a insegurança sempre foram os meus grandes vilões e lembrem que eu havia

dito um instante atrás que saía muito cedo de casa para conseguir pegar o único ônibus

pela manhã. Pois então, quem mora na roça sabe que de madrugada é tudo muito escuro,

silencioso e barulhento ao mesmo tempo, já que os animais acordam cedo assim como

os trabalhadores rurais. Eu, como tinha muito medo de passar no escuro sozinho pelos

bambuzais, paineiras, que aterrorizavam meu imaginário devido as histórias

assombrosas que minha mãe contava, e para não ouvir os sons que irradiavam das matas

e me causavam medo e espanto, eu tapava os ouvidos e passava correndo, recitando

poesias com que tinha tido contato lá com a Tia Cassinha. Lembro que ficava com as

pernas bambas pelo medo e pelo esforço que fazia ao passar correndo. As duas poesias

que eu mais gostava de recitar eram “Dois e dois são quatro” de Ferreira Gullar (“Como

dois e dois são quatro / Sei que a vida vale a pena / Embora o pão seja caro / E a

liberdade pequena...”) e “Motivo” de Cecília Meireles (Eu canto porque o instante

existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta).

Ambos os poemas foram minha salvação e a única maneira de eu sentir menos

medo. Quem disse que poesia não salva? Pelo menos ela tentava me salvar do terror que

depois fui descobrir que não era tanto terror assim. Eu parecia um louco solitário

recitando pela estrada escura. Isso durou três anos da minha vida e só hoje não tenho

vergonha de contar. Trabalhava o dia todo, voltava para o Pantaleão e ia direto para a

escola rural do meu bairro e, graças a Deus, para voltar para casa tinha a “van” que nos

deixava em casa. Nas férias, era mais intenso, tinha que ir a pé e voltar para casa a pé.

“Vocês não sabem o quanto eu caminhei para chegar até aqui...”.

Não foi fácil essa época. Lembro que um dia tive de dormir no quintal da casa de

um amigo, o único que eu tinha na cidade, porque havia perdido o ônibus de volta para

casa e era perigoso pedir carona à noite. Tinha vergonha de bater na porta e pedir pouso.

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Caipira é assim, não gosta de incomodar. Naquela época ninguém tinha carro na

fazenda onde morávamos, apenas o patrão, mas em casa não havia telefone nem celular

para avisar o que havia ocorrido. Era muito difícil para nos comunicarmos. No dia

seguinte voltei para casa com o ônibus que ia para a fazenda às 5 h da madrugada e

quando cheguei em casa a sala estava cheia de “bitucas” de cigarro. Era a forma de a

minha mãe dizer que me amava e se preocupava comigo apesar de não dizer. Tomei

banho e voltei para o trabalho. O mais engraçado de tudo foi que o único dia que

cheguei atrasado à empresa foi esse dia e quando estava no ponto de ônibus rezando

para que alguém passasse e me desse uma carona, quem passou foi justamente um dos

donos da empresa, pois eles eram e são proprietários de duas fazendas no bairro do

Pantaleão. E, acreditem se quiser, ele me deu carona. Jamais iria contar o ocorrido para

ele. Nem sei o motivo de contar para vocês. Nessa noite passei muito frio e não

conseguia parar de pensar que teria o mesmo fim que a menina dos fósforos. E isso sem

exagero algum. Da minha boca escorria um líquido frio e eu tremia como uma vara.

Foi quando aos 17 anos fui contratado como funcionário da empresa. Lembro

que meu gerente me chamou na mesa e disse que eu era um garoto muito responsável,

esforçado e que me queria como funcionário de sua equipe. Minha mãe nunca tinha

entrado em uma empresa tão grande, mas entrou para assinar e autorizar minha

contratação. Lembro que ela estava muito orgulhosa assim como eu estava muito feliz.

Sempre ajudei em casa com as despesas e até podia dar presente para minha mãe no dia

de seu aniversário. Tudo começava a mudar aos poucos e o meu gosto pela escrita só

aumentava. Tive a oportunidade de publicar quatro artigos de minha autoria no jornal

“A Tribuna” de Amparo. Uma vez um professor pagou do próprio bolso para replicar

meu artigo já que considerava de grande relevância porque se tratava da precariedade na

educação.

Nessa época não tinha mais como eu continuar na fazenda, então decidi alugar

um quartinho na cidade em um Patronato de Freiras. Tinha que começar a conhecer o

mundo. Foi assim que aos 17 anos saí de casa e só voltava aos finais de semana para

visitar minha família. Aprendi muita coisa na Química Amparo, mais conhecida como

YPÊ, lá atuava como Auxiliar Fiscal Contábil, nunca foi minha área, mas a necessidade

faz o homem e há coisas na vida por que temos que passar e não adianta chorar,

espernear. O meu mundo sempre foi o das letras e meu mundo no trabalho era o dos

números. Um descompasso com o único intuito de me fazer crescer. Nessa época, lia

freneticamente livros de autoajuda. Foi neles que tive minhas primeiras alusões e

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alumbramentos literários. Neles conheci Aristóteles, Shakespeare e por assim adiante e

foi porque lia muito que passei na entrevista para atuar como “guardinha” aos 15 anos

na YPÊ. A coordenadora e o gerente que me entrevistaram ficaram loucos quando disse

que tinha lido “O monge e o executivo”. Lembro-me deles estupefatos.

Dos 17 aos 20 fui crescendo na empresa, absorvendo e aprendendo tudo o que eu

podia. Por volta dos 19 anos me ofereceram uma bolsa de estudos na área Contábil ou

Administração. Sempre quis cursar Letras, mas Letras não teria muita serventia para a

empresa, então optei por Administração que nunca foi o meu forte e desisti no terceiro

mês. Fui conversar com a analista de Recursos Humanos e não havia jeito:

Administração ou Contábeis. Foi quando a gerente de Trade Marketing me solicitou

para a gerente de RH, pois precisava de um assistente administrativo para sua área.

Então fui promovido para a área de Trade e a minha analista de RH me deixou cursar

um curso parecido com Letras segundo ela. O curso era Propaganda e MKT.

Iniciei o curso de Propaganda e MKT na UNIP-Campinas e percebi que não era

aquilo ainda, mas continuei. Eu precisava. Sempre me pegava pensando na tia Cassinha:

“Você pode estudar em uma universidade pública, ser professor...”. Antes de iniciar o

curso de Propaganda tinha conseguindo uma bolsa em um Pré-Vestibular, mas eu tinha

muitos déficits nos estudos já que minha escola, apesar de ter me apoiado em tudo,

também tinha suas dificuldades. Tentei o vestibular da UNICAMP e USP e não passei.

Fiquei triste, mas sempre fui muito otimista graças aos livros de autoajuda. Decidi então

fazer o ENEM mesmo já cursando Propaganda. Já estava no terceiro ano quando um dia

uma amiga da empresa me lembrou de que havia saído o resultado do ENEM e ao olhar

o resultado adivinhem quem estava na lista de aprovados: eu.

Sei que deve estar cansado leitor, mas esse dia foi o mais feliz da minha vida.

Meu coordenador na época perguntou: É isso que você quer? Pensei e respondi que sim,

do contrário continuaria para sempre lá na empresa e nunca poderia afirmar assim como

Fernando Pessoa “que o homem é do tamanho dos seus sonhos”. Todos da minha área

me ajudaram. Descobri que eu havia passado e na quarta já tinha de estar no RJ para

realizar a matrícula. Eles me ajudaram com tudo desde passagens a alguém para me

esperar no aeroporto Galeão e me deixar no Bloco A do Centro de Tecnologia (CT) para

efetivar a matrícula.

Quando plantei os pés na Faculdade de Letras depois de ter cumprimentado a

Tia dos Doces senti que ali era o meu mundo, ou melhor, a descoberta de um mundo

novo. Minha mãe nunca compreendeu os meus motivos para sair de lá do Pantaleão

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como diz o início da canção de Zezé Di Camargo e Luciano que coloquei para tocar no

dia da minha colação de grau para homenagear minha mãe. Ela não entendia que uma

universidade pública era bem melhor em todos os sentidos até porque, como ela me

dizia, eu já cursava faculdade. Lembro-me dela me ajudando a aprontar as malas e de

meu irmão menor chorando junto dela, que também chorava quando decidi vir embora.

Minha mãe nunca foi de chorar, mulher forte que era, por isso não me esqueço dessa

imagem que sempre me rasga o coração.

Estar longe de casa, recomeçar tudo de novo, sozinho, em uma cidade como o

Rio de Janeiro parecia algo irreal. Não posso dizer que foi tão difícil até porque estaria

mentindo já que fui muito bem acolhido por pessoas incríveis aqui, mas mesmo assim o

vazio e o medo mais uma vez imperavam em minha vida. Ah, ainda tinha uma questão

para ser resolvida... Passei para a UFRJ para o curso de Latim e não Literatura,

entretanto depois de ter tido aula com a Maluh, outra voz importante em minha vida no

que tange à Literatura, uma clarividência me ocorreu: eu sempre fui da literatura, eu

sempre fui da poesia e finalmente precisava migrar para esse mundo, e assim como o

sujeito lírico que percorre os versos à procura de um “você” eu tinha percorrido uma

vida inteira atrás daquilo que eu sempre pressenti amar apesar de não conhecê-la direito:

a literatura.

Passei na prova de mudança de curso e nunca mais parei de buscar os livros, os

poemas e a vida vibrante que eles me retornavam. No RJ tive acesso a um mundo novo:

teatro, cinema, exposições, livros, bibliotecas, museus... Eu parecia os meninos sem

nome do livro Vidas Secas de Graciliano Ramos tateando e se assustando com o novo.

Na UFRJ fui bolsista de Iniciação Científica do Centro de Estudos Afrânio Coutinho,

Bolsista Administrativo do Inglês sem Fronteiras, monitor de Literatura Brasileira, parte

integrante do Núcleo Poesia do PACC, pesquisei o poeta português Mário de Sá-

Carneiro durante a graduação junto da Maluh e aproveitei cada instante da minha

graduação. Pude viver o que de melhor a universidade nos oferece, sempre trabalhando

e estudando como aprendi logo cedo. É só dessa maneira que conquistamos algo na vida

como dizem as pessoas mais experientes que sempre respeitei muito.

Foi na aula de Teoria Literária no primeiro período da faculdade que li meu

primeiro livro cânone da literatura e ainda levei um puxão de orelha porque havia dito

que o personagem Gregor Samsa de A metamorfose de Franz Kafka era uma barata e o

professor retrucou: Em qual parte do livro se diz que ele é barata? Fiquei calado. Foi aí

que eu entendi que a literatura era uma forma de nos dar o chão, mas também retirá-lo.

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No interstício de tudo tive grandes ganhos e perdas também. Perdi minha mãe

que não teve acesso a nada disso que eu tive. Gostaria que um dia ela pudesse ter

usufruído de tudo isso assim como quero que tantas e tantas outras Marias ocupem esse

lugar que é a Universidade. Meus pais estudaram até o quarto ano primário.

Trabalharam desde muito cedo nas lavouras. Os calos nas mãos deles permitiram que eu

estivesse aqui na frente de vocês. Não poderia defender minha dissertação sem

compartilhar isso com vocês.

Caipira, pobre que viveu de bolsa família, homossexual, primeiro de uma

geração a se formar em uma universidade pública de qualidade, professor e poeta.

Tenho tudo para dar errado, mas tenho “todos os sonhos do mundo” para dar certo

porque o fim, às vezes, é apenas o começo. E a literatura, Daniel, já que te fez chegar

até aqui?

Não sei ao certo, leitor, mas continuará sendo para mim uma forma de enfrentar

o medo, o terror e a escuridão e mesmo que a própria literatura me leve para esses

lugares dos quais tenho medo sei que – assim com os versos de Eucanaã Ferraz em um

poema resposta para AMM –“são as palavras que botam / a gente no alto, onde é melhor

viver // de onde é melhor cair”.

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Filmes:

DEMOCRACIA em vertigem. Direção de Petra Costa. Brasil: Netflix, 2019. (123

min.)

DER Himmel über Berlin. Direção de Wim Wenders. Alemanha / França: Road Movies

/ Argos Films, 1987. (127 min.)

FRANCES Ha. Direção de Noah Baumbach. Estados Unidos: RT Features / Pine

District Pictures / Scott Rudin Productions, 2012. (94 min.)

LES PLAGES d’Agnès. Direção de Agnès Varda. França: The Cinema Guild, 2008.

(1h50min.)

THE BRIDGES of Madison County. Direção de Clint Eastwood. Estados Unidos:

Warner Bros., 1995. (135 min.)

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · A Quezia Fortunato, por todo companheirismo e por ser minha irmã aqui do RJ. A Paula Rangel, uma amizade que nunca me abandonou. ... As

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A poesia está na rua

Sophia de Mello Breyner Andresen