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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO JÉSSICA TEIXEIRA MAGALHÃES LE PREMIER HOMME, DE ALBERT CAMUS: A MEMÓRIA DO SILÊNCIO. RIO DE JANEIRO 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

JÉSSICA TEIXEIRA MAGALHÃES

LE PREMIER HOMME, DE ALBERT CAMUS: A MEMÓRIA DO SILÊNCIO.

RIO DE JANEIRO

2015

LE PREMIER HOMME, DE ALBERT CAMUS: A MEMÓRIA DO SILÊNCIO

Jéssica Teixeira Magalhães

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de mestre em Letras Neolatinas (Literaturas de Língua Francesa).

Orientador: Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes.

Rio de Janeiro 2015

Magalhães, Jéssica Teixeira. Le Premier homme, de Albert Camus: a memória do silêncio./ Jéssica Teixeira Magalhães. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2015.

96f; 30cm Orientador: Marcelo Jacques de Moraes. Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Letras/ Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2015. Referências Bibliográficas: f.91-96.

1. A literatura entre a ficção e a história. 2. Memória individual e memória coletiva. I. Moraes, Marcelo Jacques de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. III. Título.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

Le Premier homme, de Albert Camus: a memória do silêncio Jéssica Teixeira Magalhães

Orientador: Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes.

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de mestre em Letras Neolatinas (Literaturas de Língua Francesa). Examinada por: ____________________________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes ____________________________________________________________________ Profa. Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri ____________________________________________________________________ Profa. Doutora Euridice Figueiredo ____________________________________________________________________ Prof. Doutor Edson Rosa da Silva, Suplente ____________________________________________________________________ Prof. Doutor João Camillo Penna, Suplente

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

RESUMO

Magalhães, Jéssica Teixeira. Le Premier homme, de Albert Camus: a memória do silêncio. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, 2015. Análise do romance póstumo camusiano Le Premier homme (1994) a partir das relações que nele se estabelecem entre literatura, memória e história. Para tanto, considera-se o contexto político vivido pelo autor na década de 1950, momento de produção do manuscrito, assim como o material anexado à publicação, como os rascunhos, notas e plano feito para a obra. Discute-se o vínculo estabelecido entre literatura e realidade, além das aproximações e distanciamentos entre a narrativa literária e a histórica, tendo em vista as reflexões de Paul Ricoeur e Michel De Certeau. Reflete-se sobre a escrita de si ao considerar o termo romance autobiográfico como possível classificação para o romance. Tal reflexão é desenvolvida a partir da discussão de Philippe Lejeune e dos estudos sobre a memória empreendidos principalmente por Ricoeur e Maurice Halbwachs.Considera-se a presença da memória individual e coletiva como possibilidade de fonte histórica e de conhecimento do outro. Palavras-chave: Camus, memória, história.

RÉSUMÉ

Magalhães, Jéssica Teixeira. Le Premier homme, de Albert Camus: a memória do silêncio. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, 2015. L’analyse du roman posthume d’Albert Camus, Le Premier homme (1994), à partir de la relation entre littérature, mémoire et histoire qui s’y établit. À cette fin, on considère le contexte politique de l’auteur dans les années 1950, période de production des manuscrits, ainsi que les paratextes annexés au roman : ses feuillets, ses notes et le plan prévu pour le roman. On discute des liens entre la littérature et la réalité, aussi bien que des rapprochements et des distinctions entre le récit littéraire et l’historique, ayant pour référence les études de Paul Ricoeur et de Michel De Certeau. On réfléchit sur l’écriture de soi en considérant le terme roman autobiographique à partir de la discussion proposée par Philippe Lejeune et des études de Ricoeur et celles de Maurice Halbwachs sur la mémoire. On prend en compte la présence de la mémoire individuelle et collective dans le roman en tant que possibilité de source historique et de connaissance d’autrui. Mots-clés : Camus, mémoire, histoire.

ABSTRACT

Magalhães, Jéssica Teixeira. Le Premier homme, de Albert Camus: a memória do silêncio. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, 2015.

This dissertation presents an analysis of Albert Camus’s posthumous novel, Le Premier homme (1994), regarding the relationship it sets between literature, memory and history. The analysis takes into account the author’s political context in the 1950s, period of production of the manuscript, as well as the paratexts appended to the book: drafts, notes and plan made by Camus for his novel. The dissertation includes a discussion about the links established between literature and reality, in addition to the similarities and differences between literary and historical narrative, based on the studies of Paul Ricoeur and Michel De Certeau. It also ponders on the literature of the self through the investigation of the term autobiographical novel, which is often applied to this book. This reflection is developed from Philippe Lejeune's argument and the studies about memory carried out by Ricoeur and Maurice Halbwachs. In this analysis of the novel, the individual and collective memories are considered as historical sources and a possibility of knowledge of the others.

Keywords: Camus, memory, history.

AGRADECIMENTOS

Em dois anos de pesquisa no mestrado o tempo passou, por vezes, muito lentamente, mas correu depressa, em outras tantas ocasiões. Mas, ao longo de todo esse tempo, pude contar com a atenção, a paciência, os conselhos, as sugestões e a companhia de tantas pessoas queridas. Por isso, agradeço especialmente:

A Deus pelo tempo a mim concedido para a realização deste trabalho.

Ao meu amado marido, André, com quem divido todo o meu tempo, por toda a sua dedicação.

Aos meus pais, Luiz e Carla, e à minha querida irmã, Gisele, que me sustentaram por todo o tempo.

Ao meu orientador, prof. Dr. Marcelo Jacques de Moraes, que dedicou seu tempo, trabalho e enorme atenção ao meu projeto e a mim.

Aos tantos amigos que fizeram o tempo passar mais rápido enquanto ele caminhava lentamente.

À amiga Maria Sertã Padilha, que doou seu tempo para fazer uma leitura atenta do meu trabalho e cujos comentários foram muito importantes.

Finalmente, agradeço à Capes pela bolsa de pesquisa a mim concedida ao longo do mestrado.

Muito obrigada.

Maman. La vérité est que, malgré tout mon amour, je n’avais pas pu vivre au niveau de cette patience aveugle, sans phrases, sans projets. Je n’avais pas pu vivre de sa vie ignorante. Et j’avais couru le monde, édifié, créé, brûlé les êtres. Mes jours avaient été remplis à déborder – mais rien ne m’avait rempli le coeur comme...

Albert Camus

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11

1 A literatura entre a ficção e a história. .................................................................... 16

1.1 Narrativa histórica e narrativa ficcional ........................................................... 16

1.2 A posição de Camus: do debate francês ao silêncio argelino .......................... 30

1.3 Percepções do tempo ....................................................................................... 39

2 Memória individual e memória coletiva. ................................................................ 47

2.1 Um romance autobiográfico? ........................................................................... 48

2.2 A memória individual: a visita à infância ........................................................ 58

2.3 A descoberta de um povo ................................................................................. 73

CONCLUSÃO ................................................................................................................ 87

Referências Bibliográficas .............................................................................................. 91

11

INTRODUÇÃO

No ano de 1960, morre o escritor Albert Camus. No momento em que ocorreu o

acidente de carro que culminou em sua morte, ele carregava o manuscrito de um

romance ainda não concluído, intitulado Le Premier Homme. O texto acaba por ser

publicado trinta e quatro anos após o acidente, juntamente com notas, cartas pessoais e o

plano do romance, que fornece ao leitor a informação de que este estaria dividido em

três partes, das quais apenas uma estava completa. Logo no primeiro capítulo o leitor é

introduzido em meio a uma viagem de mudança da família Cormery, durante a qual

nasce Jacques, o protagonista. A segunda parte recebe o nome dado posteriormente ao

próprio romance, Le Premier Homme, e nela encontramos, sobretudo, lembranças da

infância da personagem principal. A última e terceira parte, não escrita, se chamaria La

mère e trataria dos amores e compromissos assumidos por Cormery ao longo de sua

vida.

A divisão em três seções planejada pelo escritor nos esclarece que em um

primeiro momento estaríamos diante da busca, em seguida, da memória, e finalmente,

do amor. A organização tripartite é também frequentemente usada para ordenar a obra

de Albert Camus. Esta é conhecidamente constituída do ciclo do “absurdo”, composto

pelo ensaio Le mythe de Sisyphe, os dois dramas Caligula e Le Malentendu, e o

romance L’Étranger; do ciclo da “revolta”, explorado especialmente no ensaio

L’Homme révolté, nos romances Les Justes e La Peste, e no drama L’état de siège; e de

um terceiro, o da culpa ou o do “amor”, no qual podemos identificar La Chute, L’Exil et

le royaume, Noces e o romance Le Premier Homme. Na realidade, esse último livro

aborda muitos temas evocados pelo escritor ao longo de sua carreira, e Camus tinha, de

fato, grande pretensão com o romance que deixara inacabado. Dizia que ele seria o seu

Guerra e Paz.

Albert Camus trabalha em seu manuscrito no final da década de 50, retirado em

sua casa em Lourmarin no sul da França. Seu recolhimento no período reflete sua

posição no cenário literário e intelectual francês da época. Camus recebeu muitas

críticas por sua falta de posicionamento diante da guerra de independência argelina, que

eclodira em 1954. Enquanto grande parte dos intelectuais franceses de visibilidade,

12

como Jean-Paul Sartre, apoiavam a causa nacionalista e a revolução argelina, Camus

condenou o terrorismo e não tomou qualquer partido. A escolha pelo silêncio retirou-o

ainda mais da vida pública, principalmente após sua participação na cerimônia do

prêmio Nobel em 1957, ocasião em que defendera a verdade e a liberdade como metas

do escritor e não colocara a justiça a cima de tudo, deixando de defender a

independência da Argélia em detrimento da vida de sua mãe.

A escolha pelo silêncio e pela reclusão, fruto da pressão que sofria e da tristeza

pela guerra na Argélia, não significou a inatividade do escritor. O tempo era empregado

na escrita do romance, que não poderia ter outro tema que não fosse o próprio país.

Escritor cuja obra fora marcada pelas paisagens argelinas, Camus não poderia, naquele

momento histórico, escrever sobre outra coisa. Assim, é escrevendo sobre a Argélia que

“se impõe então a única esperança”1 como afirmou o biógrafo argelino Alain

Vircondelet. O que não quer dizer que Le Premier Homme trouxesse uma solução

política para o confronto, mas também não era um exemplar da nostalgia de um franco-

argelino que já não via soluções para o país em guerra. O romance apresenta uma trama

complexa política e socialmente, passando por episódios do período de conquista da

Argélia pelos franceses e chegando até os conflitos de independência, já na década de

cinquenta, quando se desenrola a trajetória central do protagonista. Para Camus, levar

em conta tamanha complexidade, fruto da sociedade heterogênea em que nasceu, é uma

tentativa de dar sentido ao confronto franco-argelino, e pode ter sido a razão pela qual

ele se encontrou impossibilitado de decidir por qualquer um dos lados no conflito. De

certa forma, a literatura diz aquilo que calava o homem público Albert Camus.

Le Premier Homme relaciona-se, dessa maneira, com o contexto histórico de sua

própria produção e também com a história argelina. O diálogo estabelecido entre o texto

ficcional e a história solidifica-se ainda mais ao tematizar a tentativa de construir uma

narrativa histórica. Jacques Cormery, o protagonista franco-argelino, sai da França em

direção à terra natal, a Argélia, com o objetivo de encontrar fontes que lhe

possibilitassem conhecer o passado de seu pai. No entanto, as informações que encontra

em solo argelino são muito escassas, faltam documentos que permitam reconstruir a

vida paterna em uma narrativa cronológica. Jacques recorre às fontes orais buscando

1 “L’écriture, liée à l’Algérie, s’impose alors comme la seule espérance”. (2010, p. 71)

13

relatos da época em que o pai estava vivo. Contudo, as pessoas que encontra são

marcadas pelo esquecimento e não o ajudam a reconstituir a trajetória paterna. A

personagem depara-se assim, com a impossibilidade de narrar sua história devido à

ausência de rastros no que chamou a “terra do esquecimento”.

A primeira parte do livro – “A procura do pai” – conclui-se, justamente, com tal

impossibilidade de narrar a história paterna. Porém, o reencontro com a morte do pai

que, primeiramente, motiva Jacques a conhecer Henry Cormery, em seguida descortina

diante dele a possibilidade de retorno às origens, à sua terra e a si mesmo. E, por isso, a

segunda parte do romance – “O filho ou o primeiro homem” – é marcada pelas

lembranças de sua infância. Através da memória de Jacques evocada a partir do espaço

onde vivera quando criança e das histórias contadas pela família, o leitor conhece o

percurso da personagem, mas também a história do povo franco-argelino pobre que

vivia na colônia. Isso porque os eventos rememorados ocorrem em um bairro específico,

o de Belcourt; em ambientes determinados: a escola da metrópole, a casa pobre, a loja

do árabe, a praia; e dentro de uma sociedade particular, entre colonos que viviam com

poucos recursos, árabes que ocupavam um espaço urbano separado, professores que

vinham da metrópole para ensinar filhos de famílias ricas. Dessa maneira, pode-se dizer

que a história se traça não como uma história linear e cronológica, mas como uma

narrativa da memória, com movimentos de idas e vindas, entre o presente e o passado.

Assim sendo, consideramos que Le Premier Homme enquanto texto ficcional

constrói uma história livre de fontes documentais e alicerçada na memória pessoal e

coletiva, própria da comunidade de europeus que foram colonizar a Argélia. A memória

desse grupo representa uma alternativa à história conhecida na metrópole, que era

defendida por alguns e contra a qual outros se ergueram no final dos anos cinquenta.

Albert Camus, sem defesa ou ataque, opta pela literatura e faz coincidir história e

memória na narrativa de Jacques Cormery.

A relação desse romance incompleto com a vida do autor é ainda fortalecida

pelo fato de a narrativa ficcional mobilizar referências da trajetória de Albert Camus. Os

traços temáticos que podem também ser identificados na vida de Camus foram

elementos que levaram alguns críticos a considerar Le Premier Homme como um

romance autobiográfico. A perspectiva autobiográfica nos insere novamente na fronteira

14

entre ficção e história e, introduz, fortemente, a dimensão memorialística. É interessante

notar que nos rascunhos de Camus observamos comentários sobre sua vida na Argélia,

sua infância, o relacionamento com a mãe, por exemplo. Todos esses elementos

estiveram presentes para o autor no momento de produção do texto. No entanto, vale

lembrar que o romance não apresenta características que o leitor esperaria encontrar em

uma autobiografia, como um narrador personagem ou uma narrativa cronológica

organizada em torno de eventos marcantes na vida do protagonista. A discussão em

torno da autobiografia dá-se exclusivamente a partir de traços temáticos. Nas notas do

escritor encontram-se referências que fizeram parte do processo de escrita do romance e

que aparecem na narrativa, mas consideramos ainda mais central para a obra o papel

dado ao próprio ato de rememoração. Dessa maneira, entendemos que o tema da

memória é muito relevante e a ele dedicaremos parte desse trabalho.

Com o intuito de analisar a relação existente entre o romance e a história, o

primeiro capítulo desta dissertação estará organizado em torno dessa temática.

Primeiramente, faremos um breve histórico do vínculo estabelecido entre obra literária e

experiência da realidade, tendo em vista, especialmente, o contraste entre os séculos

XIX e XX. Em seguida, discutiremos as fronteiras entre narrativa de ficção e narrativa

histórica, considerando, já a partir do século XX, que ambas são construções

discursivas. Na sequência, traçaremos o contexto político-social no qual fora escrito Le

Premier Homme, já que consideramos a hipótese de o romance encarnar uma possível

explicação para a posição de Camus em sua época. E, por fim, abordaremos duas

maneiras diferentes de perceber o tempo que estão relacionadas às tradições e práticas

culturais e que influenciam na forma de construir uma narrativa, já que o tempo é um

elemento narrativo elementar.

Na segunda parte, discutiremos o papel da memória na constituição da

personagem e na construção da história. Inicialmente, dando sequência à primeira parte,

trataremos da memória da figura do escritor a partir da discussão sobre os traços

autobiográficos presentes no romance. Nesse momento, estaremos interessados

especialmente na relação estabelecida entre memória individual e escrita de ficção e

faremos referência aos rascunhos e às notas do autor que foram publicados juntamente

com o romance, em anexo. A seguir, ressaltaremos a importância da memória da

infância para a formação da personagem adulta. Finalmente, mostraremos o vínculo

15

entre a memória individual e a memória coletiva a partir da narrativa de Jacques

Cormery, destacando a relevância desse processo de rememoração como fonte de

conhecimento do outro e como possibilidade de narrar uma outra e nova história.

Sendo assim, a presente dissertação analisará o romance póstumo de Albert

Camus, Le Premier Homme, considerando-o relevante para o diálogo entre literatura e

história, escrita e memória. Procuraremos demonstrar de que maneira o romance se

apresenta como uma possibilidade de conhecimento de um povo a partir da valorização

da memória.

16

1 A literatura entre a ficção e a história.

“Le matin, l’Algérie m’obsède. Trop tard, trop tard...Ma terre perdue, je ne vaudrais plus rien » (OC, IV, p.1284)

Neste capítulo nos interessa refletir sobre a proximidade entre os campos da

história e da literatura, considerando seu conteúdo referencial e a sua forma narrativa.

Por esse motivo, nos debruçaremos inicialmente sobre a reflexão cara aos estudos dos

romances do século XIX, a saber, a relação que a literatura estabelece com a realidade.

A comparação com o século XX permitirá entender em que sentido a obra camusiana

pode ser introduzida nessa discussão. Após essa reflexão abriremos espaço para a

contextualização da década de 1950 e a situação política na qual se encontrava Albert

Camus quando iniciara seu trabalho escrevendo Le Premier homme em 1957.

A partir do cenário político apresentado, abordaremos o romance inacabado de

Camus considerando, nesse primeiro momento, sua relevância histórica dentro do

contexto franco-argelino. Trataremos da centralidade das fontes históricas e da tradição

oral para a construção de uma narrativa histórica. E, nesse sentido, da forma como a

literatura se propõe como possibilidade de romper o silêncio de uma comunidade que

não deixara traços, por não possuir a tradição de construir uma memória documentada.

A falta de registros em determinado grupo e a sua existência em outros evidenciam e

fazem contrastar, de certo modo, formas diferentes de perceber o tempo, tema abordado

ao final deste capítulo.

1.1 Narrativa histórica e narrativa ficcional

A relação entre ficção e realidade é uma constante na obra camusiana, como se

pode descobrir na leitura de Les justes, La peste e La chute, por exemplo, obras nas

quais são sensíveis as referências à guerra, à violência, ao momento pós-guerra mundial.

O acontecimento da Segunda Guerra Mundial era incontornável para os escritores de

seu tempo, o que faz com que a referência à realidade histórica que os envolvia seja

visível nas obras de Malraux, Sartre e tantos outros. A participação da realidade na obra

17

de arte faz parte da própria concepção artística de Camus, que considerava ser próprio

da arte restituir ao leitor experiências ou fatos que pudessem ter desaparecido. É na

função de preservar que ela se liga à realidade, não permitindo que uma experiência caia

no esquecimento, como aponta o filósofo argentino Juan Blanco Ilari no artigo “Albert

Camus: El arte como transfiguración de la experiência”: “A arte apresenta-se a Camus

como o modo mais eficiente de manter viva uma experiência, de protegê-la de certo

pensamento alienante, de resgatar toda a sua dimensão e torná-la sempre presente”.2

(ILARI). Dessa maneira, Camus adere à escrita romanesca de seu tempo, na qual o

homem, com sua razão e seus afetos, ocupa o centro, já que ele é por excelência o

sujeito que experimenta.

O elo estabelecido entre literatura e realidade se concretizou ao longo da história

da literatura de diferentes maneiras, fiquemos neste momento com a diferença operada

entre o século XIX e o XX. Ao considerarmos tal relação, não poderíamos deixar de

pensar em Honoré de Balzac, Victor Hugo ou Émile Zola, autores que, cada um à sua

maneira, fortaleceram essa ligação ao buscarem a fidelidade ao real, procurando

produzir uma transparência na narração de modo que o leitor pudesse ter acesso à vida

bruta. É claro que o desejo desses escritores estava muito aquém da real possibilidade

de atingir uma objetividade, mas de todo modo, suas narrativas criavam o que Roland

Barthes chamou de “efeito de real” (1982). Uma das estratégias que contribuíram para

tal efeito foi o excesso dos detalhes que permearam os romances do século XIX, como,

por exemplo, a presença das datas que, frequentemente, iniciavam o primeiro capítulo

de tais obras. Para exemplificar, lembremos-nos do narrador balzaquiano em Le Père

Goriot, um dos romances que compõem La Comédie Humaine, e de suas descrições

minuciosas de uma pensão situada na Paris do século XIX, especificamente, na rua

Neuve-Sainte-Geneviève, e de seus moradores. Não à toa o romance é dedicado ao

zoologista Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, já que Balzac pretende manter a precisão de

um cientista na descrição da fauna para caracterizar o ambiente onde se passa a

narrativa e seus personagens.

2 Ao longo dessa dissertação, as citações de teóricos e críticos de língua estrangeira serão por mim traduzidas no corpo do texto e a versão original aparecerá nas notas. “El arte se le presenta a Camus como el modo más efectivo de mantener viva una experiência, de ponerla al abrigo de cierto pensamiento alienante, de rescatar toda su diménsion y hacerla siempre presente”. (ILARI, 2013, p. 95).

18

Esses romances, filhos de seu tempo, refletem a importância que tinha a história

enquanto ciência positiva na época e estabelecem forte vínculo com a realidade, pois,

assim como essa ciência, consideram a veracidade como princípio. Partindo dessa ideia,

o narrador procurará certificar os leitores de que “foi assim que aconteceu”, ou seja, de

que sua história equivale à realidade. O compromisso com a realidade esteve também

presente nas narrativas de caráter autobiográfico, justamente porque nelas pressupõe-se

que autor e personagem são atores coincidentes e que, ao escrever sobre sua própria

vida, o autor narra uma história sobre a qual tem pleno conhecimento. Os gêneros de

escrita de si como as confissões, as memórias, as autobiografias e, posteriormente, os

romances autobiográficos e as autoficções, tinham o compromisso com a verdade em

sua concepção de princípio. Isso porque a tradição do gênero está ligada ao ato da

confissão que, dentro de um contexto religioso, pressupõe a verdade. Em Confissões,

Agostinho assume a postura de quem confessa dirigindo-se ao interlocutor e pedindo

que ele o escute e ajude a falar de sua vida de modo que possa conhecer a si mesmo e

conhecer a verdade de todas as coisas (reflete então sobre o tempo, a memória, a vida

religiosa, etc). O compromisso que ele estabelece com a verdade está no diálogo com

seu próprio interlocutor, Deus, quem possui a Verdade.

Eu te confesso, Senhor dos céus e da terra, louvando-te por meus princípios e por minha infância, de que não tenho memória, mas que, por tua graça o homem pode conjecturar de si pelos outros, crendo em muitas coisas, ainda que confiado na autoridade de humildes mulheres. (AGOSTINHO, 2001, p. 35).

Assim, mesmo que Agostinho não se lembre de sua infância, ele pode narrá-la em toda

a sua verdade pela graça divina, que possibilita a manutenção das histórias na memória

das mães, que, por sua vez, as contarão a seus filhos.

O engajamento com a verdade aparecerá ainda em Rousseau, no preâmbulo de

sua célebre obra, Les Confessions, já no século XVIII – “Eu quero mostrar aos meus

semelhantes um homem em toda a verdade da natureza; e esse homem serei eu” (Livro

I). Aqui, não é mais Deus o interlocutor da confissão, mas os próprios leitores. A obra é

uma referência do gênero biográfico, considerada por Phillipe Lejeune a primeira

autobiografia francesa, e foi, portanto, modelo para tantos outros autores que se

seguiram, como Chateaubriand e Stendhal. Dessa maneira, Rousseau estabeleceu o

primado da verdade dentro do gênero biográfico e, assim, determinou uma relação

direta entre vida e narrativa ou, de outro modo, entre realidade e literatura. Tal vínculo

19

será modificado ao longo da história, possibilitando inclusive toda a variedade de textos

dentro do gênero de escritas de si, como é o caso, por exemplo, do aparecimento da

autoficção, no século XX, com Serge Doubrovsky, e da complexa trama estabelecida

entre autor, personagem e narrador.

Escritores contemporâneos a Camus já não tinham o critério da veracidade como

preocupação, não tinham a pretensão de “fazer história”, ou de descrever a sociedade de

uma época, pintando o tecido social, criticando a decadência de valores burgueses,

descrevendo a urbe. Eles preferiam dizer do e para o presente, de modo a problematizar

os fatos de sua época. Os escritores do século XX estavam menos convencidos de que

sua narração pudesse ser neutra, já não aspiravam a “deixar a história falar por si”, ou

escrever a história do presente, como o quisera o narrador balzaquiano ao descrever os

tipos sociais. A ligação estabelecida por eles com a realidade histórica é de outra

natureza, ocorre de uma forma mais particular, na qual o indivíduo assume uma postura

mais implicada. Seja tratando de questões políticas, e, assim, vê-se, por exemplo, o

movimento da literatura engajada e das vanguardas que fazem uso do manifesto, gênero

textual político, no âmbito literário; seja ao apresentar narrativas que resgatam

memórias, trazem testemunhos e exploram relatos de infância, valorizando o indivíduo.

E aqui se observa o crescimento da publicação de diários e da literatura de testemunho,

característica do momento pós Segunda Guerra Mundial. No romance La Chute, por

exemplo, temos a confissão de um típico personagem do pós-guerra, Jean-Baptiste

Clamence, dito culpado, sem esperança, cético, irônico. No romance, a personagem

confessa seus erros em um longo monólogo.

Je suis confus de vous recevoir couché. Ce n’est rien, un peu de fièvre que je soigne au genièvre. J’ai l’habitude de ces accès. Du paludisme, je crois, que j’ai contracté du temps que j’étais pape. Non, je ne plaisante qu’à moitié. Je sais ce que vous pensez : il est bien difficile de démêler le vrai du faux dans ce que je raconte. Je confesse que vous avez raison. [...] Qu’importe après tout? Les mensonges ne mettent-ils pas finalement sur la voie de la vérité ? Et mes histoires, vraies ou fausses, ne tendent-elles pas toutes à la même fin, n’ont-elles pas le même sens ? Alors, qu’importe qu’elles soient vraies ou fausses si, dans les deux cas, elles sont significatives de ce que j’ai été et de ce que je suis. On voit parfois plus clair dans celui qui ment que dans celui qui dit vrai. La vérité, comme la lumière, aveugle. Le mensonge, au contraire, est un beau crépuscule, qui met chaque objet en valeur. Enfin, prenez-le comme vous voudrez, mais j’ai été nommé pape dans un camps de prisonniers.3 (CAMUS, 1956, p. 129).

3 “Sinto-me sem jeito ao recebê-lo de cama. Não é nada, um pouco de febre, que trato com genièvre. Estou habituado a estes acessos. Malária, eu creio, que contraí no tempo em que era papa. Não, não é de todo uma brincadeira. Sei o que está pensando: é muito difícil distinguir o verdadeiro do falso no que

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Nas narrativas do século XX, constrói-se o efeito de que o sujeito que relata está

inteiramente envolvido na ação de narrar, sendo percebido mais em sua própria e

irredutível subjetividade do que como um indivíduo em um grupo, como participante de

uma coletividade ou como produto de um meio. É claro que a noção de indivíduo está

presente no romance do século XIX, aliás, como aponta Gérard Gengembre, ela é

indissociável da própria concepção de romance, já que é um gênero de leitura

individual, e que comumente apresenta o percurso narrativo de um indivíduo, descreve

seu ambiente, realiza a individualização das personagens. Porém, no século XIX, a

personagem era um “tipo” em sua sociedade, e estava mergulhada em uma história de

grandes heróis e feitos:

A definição da personagem do romance se anuncia então nesta perspectiva: ele está “sozinho”, mas em uma sociedade da qual ele se quer e se sabe membro, ou ainda da qual ele deseja tornar-se membro. Ele tem uma vida interior, frequentemente em contradição com suas exigências, com as limitações e convenções da sociedade – mas o romancista sabe que essa sociedade será a mais forte: é preciso se adaptar, se resignar ou morrer.4

Assim, a interioridade da personagem, mesmo que presente, não se sobrepõe ao

movimento da sociedade em que se encontra. De certa maneira, independentemente das

vontades ou do lugar que o indivíduo ocupa socialmente, há um destino histórico já

determinado para ele e para seu grupo. Isso porque a ordem é bem vista neste período, e

mesmo que a personagem passe por conflitos e mudanças, suas características lhe

conferem unidade, e esta se opõe ao ambiente social no qual se encontra.

O século XX, ao contrário, parece não predestinar ou apresentar um caminho

incontornável, oferecendo personagens repletas de limites e dotadas de características

múltiplas ou mesmo paradoxais. Nilson Adauto aponta tal aspecto ao resgatar a

conto. Confesso que tem razão. [...] Que importa, afinal ? As mentiras não conduzem finalmente ao caminho da verdade ? E minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tendem todas para o mesmo fim, não têm o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas se, em ambos os casos, são representativas do que fui e do que sou? Pode-se, às vezes, ver mais claro em quem mente do que em quem fala a verdade. A verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo, que valoriza cada objeto. Enfim, entenda como quiser, fui escolhido para ser papa em um campo de concentração”. (CAMUS, 1996, p. 93). 4 “La définition du personnage de roman s’énonce alors dans cette perspective : il est « seul », mais dans une société dont il se veut ou se sait membre, ou encore dont il veut devenir membre. Il a une vie intérieure, souvent en contradiction avec ses exigences, les contraintes, les conventions de la société – mais le romancier sait que cette société sera la plus forte : il lui faut s’adapter, s’incliner ou mourir”.(GENGEMBRE, 2006, p.19).

21

explicação dada por Jean-Paul Sartre em uma conferência em Nova York, em 1946,

posteriormente publicada pela revista americana Theatre Arts, vol. XXX:

Sartre explica então que, entre os jovens autores franceses, depois de 1940, a preocupação em pintar caracteres, demonstrar os mecanismos de uma paixão ou analisar um complexo é suplantada pela vontade de colocar os personagens em situações, confrontados com limites por todos os lados (ADAUTO, 2010, p. 250).

A compreensão de Sartre sobre as personagens posteriores aos anos 1940 vai ao

encontro das personagens camusianas. Podemos citar aqui a personagem mais célebre,

Meursault, de L’étranger, que é, sem dúvida, confrontada com limites por meio de

situações absurdas, como o assassinato do árabe motivado pela luz solar e o posterior

julgamento, no qual o principal argumento da acusação é sua insensibilidade diante da

morte da mãe. Não há unidade na caracterização da personagem, que oscila entre a

indiferença e o desejo. Para referir nosso objetivo de estudo, em Le Premier homme, o

protagonista Jacques Cormery também se distancia da caracterização feita por

Gengembre. Ele se encontra entre duas sociedades, não tem clareza quanto à sua

história, antes, está mergulhado na dificuldade de conhecê-la. Não há nada previamente

determinado, ele não se constitui como mais um membro do grupo e nem é determinado

socialmente, mas será, justamente, o primeiro homem. O primeiro porque desconhece o

passado de seu pai e, por isso, a ele é permitido (re)contar a sua história e a de seu povo.

Ele deseja tirar seu grupo do anonimato do qual saiu, valorizando propriamente essa

condição anônima enquanto fundadora de um povo – “Ele é o primeiro homem porque

não é mais anônimo, mas também porque quer homenagear esse anonimato fundador,

esse húmus”5. Assim, a personagem não é apenas mais uma em um grupo, mas marca o

início de uma nova história na medida em que pretende conhecer e narrar seu passado.

A vinculação entre literatura e realidade histórica se alterou igualmente

influenciada pela diferença no tratamento das referências históricas ocorrida de um

século para outro. A forma literária do século XIX segue a lógica da maneira de se

pensar a história na época. É o que aponta Roland Barthes ao afirmar que o realismo

literário, próprio dos séculos XVIII e XIX, foi contemporâneo do “reino da história

objetiva” (Cf.1982, p.81) e do desenvolvimento de técnicas e obras que buscavam

5 “Il est le premier homme parce qu’il n’est plus anonyme, mais aussi parce qu’il veut rendre hommage à cet anonymat fondateur, à ce terreau”. (FINKIELKRAUT, 2006, p. 54).

22

autenticar o “real”, como a fotografia e a reportagem, por exemplo. Da mesma forma, a

mudança de ponto de vista nas obras literárias no século XX ocorreu sob grande

influência do crescimento das ciências sociais, como a antropologia, por exemplo. A

própria história, que no século XIX buscava se firmar no âmbito científico dando

primazia às fontes escritas, à crítica de documentos, à reunião de fatos e à neutralidade

do historiador, começa a ser concebida no século seguinte como uma construção

discursiva. O que pode ser percebido, especialmente, com o início dos trabalhos de

Lucien Febvre e Marc Bloch, que buscavam, na década de 1920, combater a influência

do positivismo na prática historiográfica. E essa nova compreensão do que seria a

história e o trabalho do historiador teve reflexos na produção literária, aproximando,

inclusive, os dois campos do saber.

Os campos da literatura e da história voltam a se aproximar no século XX depois

da separação iniciada no século XVIII entre “ciência” e “letras”, período no qual o

princípio da neutralidade era almejado e a razão era muito valorizada. Essa separação se

consolida, finalmente, no século XIX, com a história de cunho positivista. Porém, o

processo histórico começa a ser refletido de outra maneira no século XX: bastante

influenciados pelos trabalhos de antropólogos e outros cientistas sociais, os

historiadores se veem impelidos a repensarem sua tarefa. O desenvolvimento de outras

áreas no campo das ciências sociais contribuiu para o surgimento da Escola dos Anais

(École des Annales), movimento que surge em oposição à hegemonia da história

política no campo historiográfico. E que, por isso, fomentou novos campos de interesse,

tais como a história local, econômica, cultural, ou a micro-história, por exemplo. Tais

novidades ampliaram o entendimento do trabalho do historiador, passando este a ser

compreendido como construção de um discurso portador de um sistema de significação

e que, portanto, pressupõe legitimação para que circule enquanto tal. Através desse

movimento de historiadores, os estudos da disciplina puderam se aproximar com maior

facilidade de diversas outras áreas do conhecimento:

Na altura dos anos 70, se não mesmo antes, era possível encontrar arqueólogos e economistas lendo Braudel a respeito de “cultura material”, pediatras discutindo os pontos de vista de Ariès sobre a história da infância, e folcloristas escandinavos debatendo lendas folclóricas com Le Roy Ladurie. Alguns historiadores da arte e críticos literários, especialmente nos Estados Unidos, citam também os historiadores dos Annales em seu próprio trabalho, que consideram como parte de um

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empreendimento comum, algumas vezes descrito como uma “antropologia literária” ou uma antropologia da “cultura visual”. (BURKE, 1990, p.134).6

O problema na história é, dessa maneira, (re)colocado, deixando de concentrar-se

apenas no objeto de estudo e ampliando-se também para o sujeito que toma a palavra,

para a enunciação. Como aponta Paul Ricoeur, a tese de Raymond Aron (publicada em

1938) discute a questão da objetividade histórica quando o autor proclama a dissolução

do objeto:

[…] na medida em que o historiador é implicado na compreensão e na explicação dos acontecimentos passados, um acontecimento absoluto não pode ser atestado pelo discurso histórico. A compreensão nunca é uma intuição direta, mas uma reconstrução.7

E uma vez que o discurso histórico afasta-se dos critérios de veracidade e é

caracterizado como uma reconstrução na qual o sujeito (historiador) está implicado, a

fronteira entre história e literatura torna-se ainda mais tênue. A distância entre ambas

diminui ao passarem a compartilhar as funções de produção de sentido daquilo que é

humano através da linguagem e da busca pela verossimilhança. Michel de Certeau

considera ainda a presença da ficção no próprio fazer histórico, o que aparece

essencialmente na dimensão da enunciação. Mesmo que a história se afirme por

oposição à ficção, ao se colocar na contramão do que é o falso e se autorizar a falar em

nome do real, ela realiza suposições, imagina situações possíveis, estabelece recortes a

partir de um interesse, seleciona personalidades e acontecimentos, ou seja, utiliza a

ficção nas suas hipóteses, e lida com ela em sua construção:

(...) ao vislumbrar a relação do discurso com quem o produz – ou seja, alternadamente, com uma instituição profissional e com uma metodologia científica –, é possível considerar a historiografia como uma mistura de ciência e de ficção, ou como um lugar em que se reintroduz o tempo. (DE CERTEAU, 2012, p.68).

Nesse sentido, o historiador, entendido como construtor de uma trama a partir de

documentos e testemunhos, trabalha com versões de um passado. E, portanto, ele se

aproxima mais da verossimilhança do que da veracidade, tão almejada no século XIX. E

6 Fernand Braudel foi um historiador francês da segunda geração dos Annales, realizou longo estudo sobre o mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Philippe II, também desenvolveu o conceito de “longa duração”. Emmanuel Le Roy Ladurie e Philippe Ariès foram historiadores franceses da terceira geração dos Annales, influenciados pela história das mentalidades. Ariès desenvolveu estudo sobre a infância no Antigo Regime. 7 “[...] dans la mesure où l’historien est impliqué dans la compréhension et l’explication des événements passés, un événement absolu ne peut être attesté par le discours historique. La compréhension [...] n’est jamais une intuition directe mais une reconstruction”. (RICOEUR, 1983, p. 175).

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é motivado pelo conhecimento completo e pela reestruturação do passado, mesmo que

isso não lhe seja possível. Ele acredita na possibilidade de reconstruí-lo, mesmo que o

que faça de fato seja construí-lo, partindo do pressuposto do passado “ter sido” de

alguma maneira, mesmo que no presente não exista mais. Sua atividade poderia ser

caracterizada pela vontade de atingi-lo pela narrativa, depois de ter passado pelas etapas

da seleção de documentos e da interpretação, na qual procura explicar e compreender os

rastros coletados (Cf. RICOEUR, Temps et récit Tome. III). Dessa forma, a escrita e a

construção de uma intriga fariam parte da própria epistemologia da história. E, assim, as

fronteiras entre história e ficção vão se tornando mais nebulosas à medida que uma

participa da construção da outra e que o subjetivo passa a ser admitido em ambas.

No romance La nausée, Sartre exemplifica a angústia do trabalho do historiador

através da dificuldade que encontra sua personagem, Antoine Roquentin, em escrever a

história do marquês de Rollebon de modo a concluir sua pesquisa historiográfica. O

episódio ilustra muito bem a incontornável presença do sujeito historiador na construção

da narrativa histórica e a exigência em seu trabalho da construção de uma intriga a partir

dos rastros por ele colhidos e interpretados. A personagem passa grande parte de seus

dias na biblioteca tentando escrever sobre o marquês e cercada de documentos: cartas,

fragmentos de memórias, relatórios secretos, arquivos da polícia. No entanto, apenas

esse material não lhe parece suficiente para traçar o passado de Rollebon. Por isso,

interroga-se sobre a produção de outros historiadores que analisaram os mesmos

documentos e sobre a qualidade de seu trabalho. E chega à seguinte conclusão:

il [o marquês] a pu faire tout ça, mais ce n’est pas prouvé : je commence à croire qu’on ne peut jamais rien prouver. Ce sont des hypothèses honnêtes et qui rendent compte des faits : mais je sens si bien qu’elles viennent de moi, qu’elles sont tout simplement une manière d’unifier mes connaissances. Pas une lueur ne vient du côté de Rollebon. Lents, paresseux, maussades, les faits s’accommodent à la rigueur de l’ordre que je veux leur donner mais il leur reste extérieur. J’ai l’impression de faire un travail de pure imagination. Encore suis-je bien sûr que des personnages de roman auraient l’air plus vrai, seraient, en tout cas, plus plaisants. (SARTRE, 1938, p. 28).8

8 “Ele pode ter feito tudo isso, mas não está provado: começo a acreditar que não podemos jamais provar nada. São hipóteses honestas e que dão conta dos fatos: mas eu sinto que elas vêm de mim, que elas são simplesmente uma maneira de unificar os meus conhecimentos. Nenhuma luz vem de Rollebon. Lentos, preguiçosos, taciturnos, os fatos se acomodam ao rigor da ordem que eu quero lhes dar, mas que permanece exterior a eles. Tenho a impressão de fazer um trabalho de pura imaginação. Eu ainda acredito que os personagens de romance pareceriam mais verdadeiros, seriam, em todo caso, mais agradáveis”. [tradução nossa].

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Tal reflexão, aqui presente através da figura da tarefa de Roquentin, só é

possível no contexto do século XX e exemplifica a redução da distância que ora

separava a narrativa de ficção da narrativa historiográfica. Para Roquentin, aquilo que

permanece de seu trabalho são a ordem e o encadeamento que ele mesmo estabelece ao

analisar os fatos, que parecem ficar de fora. Dessa forma, acredita que a imaginação é

um componente central em sua tarefa.

Ao considerar a querela existente entre história e ficção, Michel De Certeau

diferencia ambas de início para em seguida explorar pontos em que se relacionam. A

historiografia se distancia da ficção ao se colocar em oposição à “fabulação

genealógica, aos mitos e lendas da memória coletiva, às derivas da circulação oral” (DE

CERTEAU, 2011, p.45). Por meio dessa contraposição, ela busca sua legitimação

afastando-se do discurso ordinário. A ficção, por outro lado, em todas as formas que ela

pode assumir segundo De Certeau – mítica, literária ou científica –, configura o real sem

qualquer pretensão de representá-lo ou de ser por ele legitimada. Para o historiador, a

fronteira entre história e literatura se estabelece no trabalho de escrita e vai sendo

delimitada pelas organizações institucionais às quais os escritores estão ligados e que

possuem seus interesses. Quanto à escrita, que é o que nos interessa especialmente, De

Certeau defende a tese da literatura como possibilidade de um novo discurso teórico a

respeito dos processos históricos. Isso seria justificado pela possibilidade de criar e

desenvolver uma lógica própria. Ou seja, o historiador considera a expressão literária, e

mais especificamente, poderíamos dizer, a forma do romance, da narrativa em prosa,

como um lugar de desenvolvimento conceitual das sequências históricas.

Dessa maneira, para exemplificar sua tese, De Certeau cita o trabalho escrito de

Freud como exemplar desse processo, visto que o fundador da psicanálise prioriza o que

o historiador chama de “modelo de romance”, em detrimento dos quadros, notas e

esquemas científicos vigentes em seu domínio na época. Freud cria uma narrativa na

qual inclui os sintomas de seus pacientes, identificados no labor clínico, e os

acontecimentos relacionais que pudessem interferir na patologia, além do afeto e de

suas representações tal como emergem na enunciação da análise. E, assim, De Certeau

conclui, a partir da obra freudiana, que “o romance é a relação que a teoria estabelece

com a aparição factual de seus limites” (DE CERTEAU, 2012, p. 96). Com essa

exemplificação, o historiador defende sua tese na medida em que, diante de uma prática

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médica que apresenta dificuldades científicas, a forma do texto literário passa a ser uma

alternativa para teorizar a análise sem desconsiderar a subjetividade dos indivíduos ali

implicados. Recorda ainda que Freud citou, com frequência, em seus trabalhos, obras

literárias de Shakespeare, Goethe ou Schiller, por exemplo. Ou seja, sua produção

científica não deixava de considerar a literatura, afirmando a proximidade de seu

discurso com o de romancistas e poetas e se posicionando em uma perspectiva contrária

à positivista. Nas palavras de De Certeau:

(...) o texto literário, que é também um jogo, constitui um espaço igualmente teórico e protegido à maneira de um laboratório em que se formulam, se distinguem, se combinam e se experimentam as práticas astuciosas da relação com outrem. É o campo em que se exerce uma lógica do outro, aliás, aquela que havia sido rejeitada pelas ciências na medida em que elas praticavam uma lógica do mesmo. (DE CERTEAU, 2011, p.100).

E o texto literário pode ser esse lugar no qual se distinguem, combinam e

experimentam outras relações justamente porque possibilita ambigüidades, reviravoltas,

repetições, equívocos. Elementos que, para Freud, se revelavam igualmente na

experiência do sujeito através da análise psicanalítica. São esses elementos, justamente,

o que torna possível ao analista o conhecimento do sujeito, pois se evidenciam no

indivíduo quando este evoca acontecimentos, memórias, sonhos, repetições, máscaras e

representações, tornando presente o passado.

Segundo tal concepção, a história não é mais e não pode mais ser entendida de

maneira linear e progressiva, já que passado e presente estão imbricados um no outro e

não seguem um modelo de sucessividade como pretendia a historiografia metódica,

habituada a trabalhar, sobretudo, com a organização e a crítica dos fatos e com os

modelos de causa e efeito. Na mesma linha de Freud no que diz respeito à relação

empreendida entre história e ficção, De Certeau cita um segundo exemplo, a obra de

Michel Foucault. Esta propõe uma outra maneira de pensar a história contraposta àquele

que se organiza em períodos, segundo uma perspectiva do progresso para a qual haveria

o direcionamento rumo a uma posição final e a certeza de um presente. Foucault

valoriza as estruturas mentais e a linguagem em sua reflexão sobre a história e, por isso,

considera mais adequadas as categorias de descontinuidade e continuidade. A

descontinuidade surge na negação da sequência histórica, ao dar a pensar a

possibilidade de blocos mentais não sucessivos e tampouco bem definidos nos quais se

modificam as formas de pensar ao longo do tempo; a continuidade aparece ao

27

considerarmos a permanência da linguagem, mesmo que associada a diferentes ideias no

decorrer do tempo.

Foucault faz ver a continuidade precisamente onde era afirmada a ruptura, do mesmo modo que ele designava uma descontinuidade que destruía a homogeneidade de um devir ciência. [...] verifica-se uma permanência de superfície: aquela que, apesar dos deslizes do subsolo, mantém uma relação de identidade entre as palavras, os conceitos ou os temas simbólicos. Um exemplo simples: nos séculos XVII, XVIII e XIX, fala-se de “louco”, mas, na realidade, nessas diferentes épocas, “não se trata da mesma doença”. [...] Os mesmos objetos mentais “funcionam” de maneira diferente. (DE CERTEAU, 1990, p. 143).

Foucault realiza seu trabalho igualmente traçando narrativas – “Suas

‘narrativas’, como ele afirmava, relatam a maneira como aparecem e se instituem novas

problemáticas; muitas vezes elas têm a forma de surpresas, à semelhança dos romances

policiais” (DE CERTEAU, p. 120) –, as quais procuram evocar os inúmeros percursos

do pensamento humano na história, buscando refletir sobre uma arqueologia das

ciências humanas.

Sem qualquer pretensão de aprofundar os trabalhos de Freud ou de Foucault,

queremos aqui apenas tentar elucidar a tese defendida por De Certeau segundo a qual a

relação entre ficção e história é sustentada a partir dos trabalhos científicos do

psicanalista e do filósofo. Ambos valorizaram o uso de uma narrativa, que se aproxima

da literária, para desenvolver suas teorias. Assim, poderíamos voltar a colocar a

pergunta: o que, então, diferenciaria a narrativa de ficção de outra narrativa como a

histórica? Paul Ricoeur nos dá uma resposta bastante convincente em sua obra Temps et

Récit, e que poderia ser resumida na palavra liberdade: liberdade de que goza o autor de

ficção ao estabelecer uma temporalidade, ao caracterizar o espaço e ao misturar

personagens de seu imaginário a personagens históricos – “É preciso mesmo suspeitar

que, graças à sua maior liberdade frente aos acontecimentos efetivamente ocorridos no

passado, a ficção desenvolve, no que concerne à temporalidade, ferramentas de

investigação proibidas ao historiador”9. A potência criadora é muito maior em um texto

ficcional, pois, mesmo que considere a História, não possui os limites característicos ao

trabalho do historiador como fontes, datas e esquemas.

9 “Il faut même soupçonner que, grâce à sa liberté plus grande à l’égard des événements effectivement advenus dans le passé, la fiction déploie, concernant la temporalité, des ressources d’investigation interdites à l’historien”. (RICOEUR, 1983, p. 399).

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Se a relação da literatura com a história não foi negada pelos escritores, quando

tantas vezes referenciaram fatos históricos, através de personagens e momentos, ou até

mesmo quando pretenderam “deixar que a história falasse por ela mesma” explorando o

efeito realista que as descrições poderiam trazer, a história contemporânea cada vez

mais reconhece sua proximidade com a literatura, sobretudo em termos discursivos. E

se a literatura pode ser um discurso teórico utilizado pelas ciências humanas, tais como

a psicanálise e a história, como defendeu De Certeau, poderíamos considerar que

também a narrativa histórica pode contribuir com a literatura em sua forma de

representar o tempo passado, assumida muitas vezes no trabalho literário para refigurar

o tempo.

Identificada a aproximação e o distanciamento entre os campos da literatura e da

história, voltemos ao romance em questão. Le Premier homme estabelece forte vínculo

com a história, desde o contexto de produção do romance, a enunciação e a própria

trama. O romance começa a ser escrito no final dos anos 1950, época em que os

conflitos na Argélia tornavam-se mais intensos e a revolução era iminente. A narrativa,

que tem como protagonista um argelino transeunte no eixo França-Argélia, dialoga com

a época de escrita da obra ao fazer memória de um passado de guerra e da situação do

povo que habita a então colônia. E ao por em destaque uma realidade silenciosa e

marcada pela ignorância que já fora sinalizada pelo jovem Camus em obras anteriores,

como Les voix du quartier pauvre (1934) e L’Envers et l’endroit (1937). Com estas, o

escritor já anunciava que não pretendia se esquivar da existência e da vida no seu bairro

em Argel e de seu povo argelino. Tantos outros textos camusianos pintaram a paisagem

argelina, tinham a Argélia como cenário ou falaram do país de um ponto de vista social

e político. Textos de ficção como, por exemplo, Noces, L’Étranger, L’Envers et

l’endroit, L’exil et le royaume, e textos ensaísticos ou reportagens, como Actuelles III,

Chroniques Algériennes ou « La misère de la Kabylie » (1937, publicado em L’Alger

Républicain).

O país de origem do escritor aparece mais uma vez em sua obra com a escrita de

Le Premier homme. O romance retoma momentos históricos importantes para o país, e

especialmente para a comunidade argelina de origem europeia, como a chegada dos

europeus em 1848, a participação dos colonos do lado francês na Primeira Guerra

Mundial, os conflitos que se desenrolavam no país já na década de 50, por exemplo. Ao

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mencionar todos esses acontecimentos, o romance se estabelece em continuidade com o

campo da história, da mesma maneira que o faz ao precisar datas e lugares. No entanto,

dele se diferencia ao narrar a trajetória de personagens fictícios, ao transitar entre o

passado e o presente através da perspectiva da personagem, ao mudar de tempo e espaço

de forma sutil, na mesma passagem, sem que o narrador avise aos leitores, produzindo

efeitos como o do flashback e o da rememoração. Por esses motivos podemos dizer que

história e literatura dialogam fortemente em Le Premier homme.

Camus sempre manteve os olhos em seu país natal, permitindo que os leitores

pudessem conhecer a Argélia, tirando-a do desconhecido. O que seria seu último

romance exemplifica o elo que o escritor constituiu com essa terra e diz muito sobre a

ligação de sua escrita com a realidade na qual esteve envolvido.

Mas a grandiosa estratégia, que domina toda a existência de Camus, é o recurso à alquimia da arte, no caso, à escrita: ela transfigura pela estilização o efêmero em texto e restitui, assim, a todo leitor o que, ao contrário, teria desaparecido. [...] Logo, O Primeiro Homem é o monumento que Camus pretende erguer aos membros de sua tribo, os Franceses pobres da Argélia, e à sua família, que embora destruída pela história, não tem acesso a ela. Ele deseja “reencontrar” o “tempo perdido” deles.10

Assim, o romance instaura um ponto de vista sobre o que, de outra forma, segundo

Jeanyves Guérin, “teria desaparecido”: a história dos “franceses pobres da Argélia”.

Evidentemente, Camus traz à tona essa história talvez desconhecida através da ficção, já

que, mesmo que se baseie em documentos históricos para referir-se à trajetória dos

colonos na Argélia, cria uma narrativa de ficção, de modo a dar um passado a esse

povo. Dessa forma, deseja tirá-lo de um possível esquecimento, como é comentado no

prefácio ao romance publicado na edição da Pléiade:

O projeto de Camus reivindicava a ficção, de tanto que a imaginação se encontra nele profundamente inscrita. Não se trata de contar uma vida, mas de ver nascer um “primeiro homem”, e depois de situá-lo na sucessão dos “primeiros homens” cuja existência precisa ser reinventada a partir de uma documentação, necessariamente sem rosto (...).11

10 “Mais la stratégie royale, qui domine toute l’existence de Camus, est le recours à l’alchimie de l’art, en l’occurrence l’écriture : elle transfigure par la stylisation l’éphémère en écrit et restitue ainsi pour tout lecteur ce qui sinon aurait définitivement disparu. [...] Le Premier Homme est en somme le monument que Camus entend ériger aux membres de sa tribu, les Français d’Algérie pauvres, et à sa famille, qui bien que brûlée par l’histoire n’a pas accès à elle. Il entend ‘ retrouver’ leur ‘temps perdu’”. (GUÉRIN (org.), 2006, p. 531). 11 “Le projet de Camus appelait la fiction, tant l’imagination y est profondément inscrite. Il ne s’agit pas de raconter une vie mais de voir naître un ‘premier homme’ , puis de le situer dans la succession des

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Esse trabalho empreendido por Camus tem início em um momento delicado na

história da Argélia e da França, quando principiam os conflitos pela independência na

colônia e a metrópole envia tropas para conter os nacionalistas. Foram nove anos de

confronto em solo argelino e de muita discussão travada entre intelectuais, políticos,

soldados franceses, revolucionários, nacionalistas, argelinos muçulmanos pró-França,

franceses que viviam na Argélia. A diversidade dos grupos envolvidos na guerra elucida

a complexidade do confronto e a rara possibilidade de uma solução pacífica.

Considerando tal contexto e sabendo que a narrativa de Le Premier homme se passa na

Argélia e estabelece forte relação com a história dos colonos no país, faz-se necessário

refletir sobre esse momento de escrita do romance.

1.2 A posição de Camus: do debate francês ao silêncio argelino

O confronto entre França e Argélia atingiu o escritor, que, nos anos 1950, já se

encontrava em uma situação delicada no cenário intelectual francês. Na França, a

independência argelina estava sendo muito discutida pelos intelectuais engajados,

figura que aparece no período da Ocupação e goza então de prestígio no ambiente

francês. É caracterizada por uma atuação e/ou posicionamento públicos ao nível

estético, ideológico e, principalmente, político. Albert Camus e Jean-Paul Sartre eram

reconhecidos não apenas como escritores de literatura, mas como homens públicos

(ADAUTO, 2010) que atuavam também no campo filosófico e jornalístico. Ambos

dirigiram revistas de altas tiragens, como a revista Combat, coordenada por Camus, que

atuou na clandestinidade no período de ocupação da França pela Alemanha, e a

publicação Les Temps Modernes, dirigida por Sartre, e que foi palco para a discussão

entre os dois.

Em 1951, Camus publica o ensaio L’homme révolté, no qual denuncia regimes

totalitaristas, inclusive as ditaduras de esquerda. O escritor, que tinha sido membro do

Partido Comunista argelino entre os anos de 1935 e 1937 e também militado ativamente

no teatro dos trabalhadores em Argel e durante a Segunda Guerra Mundial, assume uma

posição contrária àquela defendida pelos representantes da esquerda da época. Seu

‘ premiers hommes’ dont il faut réinventer l’existence à partir d’une documentation, forcément sans visage (...)”. (OC, p. 1521).

31

ensaio foi lido a partir de um ponto de vista político mais do que estético e recebeu

duras críticas da imprensa de esquerda. O ensaio funcionou como motivo para o início

da querela entre o escritor e seu companheiro Sartre. Tal discussão, somada à recusa de

Camus em tomar partido em qualquer um dos lados na guerra, o “colocou em

quarentena”12 no cenário intelectual da época. A polêmica foi ainda reforçada pela frase

que teria sido proferida pelo escritor em 1957, quando questionado sobre a justiça da

luta pela independência: “Je crois à la justice, mais je défendrai ma mère avant la

justice”13 (OC, IV, p. 288). A resposta misteriosa e descontextualizada foi entendida de

maneira egoísta e contra a causa dos que defendiam a independência, aumentando ainda

mais as tensões em relação ao escritor franco-argelino.

Nesse mesmo ano, o FLN (Front de Libération Nationale) atacou Argel, e o

exército francês acirrou sua resposta dando origem à “bataille d’Alger” (STORA, 1997,

p. 48). Camus não tomou qualquer posição no conflito e não se pronunciou

publicamente sobre a questão nos anos seguintes. Em 1959, ele se retira em Lourmarin,

saindo da atmosfera tumultuada das discussões de Paris e de Argel. O silêncio é em

parte justificado por sua repulsa à violência exposta em tantos de seus textos: no próprio

ensaio L’homme révolté, em que critica governos totalitários, ou na mais famosa de suas

obras, L’étranger, na célebre cena do assassinato do árabe por Mersault. Também em Le

Premier homme, o tema não ficará esquecido: o menino Jacques experimenta toda a

angústia e a tristeza da vitória conquistada com violência. No episódio, ele vence uma

briga com o amigo Munoz e sente o peso de o ter ferido. Nesse evento, Camus expõe a

moral que talvez o tivesse impedido de ser a favor de qualquer um dos lados em uma

guerra:

Il voulait être content, il l’était quelque part dans sa vanité, et cependant, (...) une morne tristesse lui serra soudain le coeur (...). Et il connut ainsi que la guerre

12 “Camus meurt incompris de sa famille intellectuelle, qui l’a tenu en quarantaine, qui ne lui a pas pardonné son entêtement”. (WINOCK, 1997, p. 538). 13 “Eu acredito na justiça, mas defenderei minha mãe antes da justiça [trad. Nossa]./ A frase aparece no seguinte contexto : Interrogé à Stockholm sur son attitude à l’endroit de l’Algérie, il répond : ‘Je me suis tu depuis un an et huit mois, ce qui signifie pas que j’aie cessé d’agir. J’ai été et suis toujours partisan d’une Algérie juste, où les deux populations doivent vivre en paix et dans l’égalité. J’ai dit et répété qu’il fallait faire justice au peuple algérien et lui accorder un régime pleinement démocratique, jusqu’à ce que la haine de part de d’autre soit devenue telle qu’il appartenait plus à un intellectuel d’intervenir, ses déclarations risquant d’aggraver la terreur. (...) J’ai toujours condamné la terreur. Je dois condamner aussi un terrorisme qui s’exerce aveuglément, dans les rues d’Alger par exemple, et qui un jour peut frapper ma mère ou ma famille. Je crois à la justice, mais je défendrai ma mère avant la justice”. (WINOCK, 1997, p. 537).

32

n’est pas bonne, puisque vaincre un homme est aussi amer que d’en être vaincu. 14 (CAMUS, 1994, p. 146).

O conflito provoca dor e nenhum lado sai vencedor. Essa moral nunca fora

esquecida por Camus em seus posicionamentos como, por exemplo, sua posição

contrária à pena de morte ou ao terrorismo. E em defesa dessa moral universal, que

surge a preservação da vida, ele não aceita nenhum tipo de morte, mesmo que se deva a

uma justa e legítima condenação. Assim, se ele argumenta em favor da justiça ao povo

argelino (principalmente em seus artigos, reunidos em Actuelles III Chroniques

Algériennes), ele também considera que “a morte do inocente”15 (encarnado na pessoa

da mãe em sua declaração em 1957) não pode fazer justiça em nenhuma situação, ela é

a própria injustiça. Nesse sentido, ele acusa tanto as violências cometidas pelo exército

francês quanto as perpetradas pelo FLN, que chegou a receber ajuda de intelectuais

franceses.

Tendo em vista o contexto no qual o escritor estava imerso durante a escrita do

romance, a relação que seu projeto estabelece com a história se consolida no uso de seu

texto como possível refutação ao conflito que então se acirrava. Sozinho em sua

convicção sobre a situação na Argélia, Camus defendia um “régime de libre

association”, fundado na reconciliação nacional e na proporcionalidade parlamentar

(VIRCONDELET, 2010), que era, porém, irrealizável aos olhos dos intelectuais de

esquerda e de gaullistes (que apoiavam Charles de Gaulle). Ele, ao contrário, opta por

uma terceira via16, e faz da ficção sua forma de se posicionar. E essa escolha implica a

volta à terra natal17, a pesquisa por documentos históricos conservados na Argélia e a

rememoração de lembranças de sua infância e juventude.

14 “Queria ficar contente, e realmente estava, num certo aspecto de sua vaidade, e no entanto (...) uma morna tristeza apertou-lhe de repente o coração (...). E soube assim que a guerra não é boa, já que vencer um homem é tão amargo quanto ser vencido”. (CAMUS, p. 139). 15 “Quelles que soient les origines anciennes et profondes de la tragédie algérienne, un fait demeure : aucune cause ne justifie la mort de l’innocent”. (Cahier de l’Herne, 2013, p. 346) 16 Trecho do prefácio feito por Albert Camus em 1958 para Actuelles III Chroniques Algériennes: “Dans l’impossibilité de me joindre à aucun des camps extrêmes, devant la disparition progressive de ce troisième camp où l’on pouvait encore garder la tête froide (...) j’ai décidé de ne plus participer aux incessantes polémiques qui n’ont eu d’autre effet que de durcir en Algérie les intransigeances aux prises et de diviser un peu plus une France déjà empoisonnée par les haines et les sectes”. (Cahier de l’Herne, 2013, p. 351). 17 Camus esteve na Argélia no ano de 1959: “Ce n’est qu’en 1959 qu’une série de séjours à Lourmarin, ainsi qu’un court voyage en Algérie où il se documentera sur son passé familial, lui [Camus] permettront de travailler avec continuité à son manuscrit”. (REY, 2008, p. 19).

33

Para justificar tal silêncio, era preciso que Camus retomasse a história dos

antepassados, a relação complexa entre árabes, berberes e franceses, fossem estes

fellaghas, a favor da nação argelina, ou partisans (em defesa de um governo aliado à

França). Era preciso mostrar o passado de sua comunidade, talvez “ininteligível aos

leitores da metrópole” (Cf. REY, 2008, p.121). Na terceira parte prevista pelo escritor

para o romance, na qual concluiria sua obra, ele inclui a explicação por parte de seu

protagonista de questões como a relação com os árabes e a civilização crioula, por

exemplo. No entanto, esta parte não chegou a ser escrita: “Dans la dernière partie,

Jacques explique à sa mère la question arabe, la civilisation créole, le destin de

l’Occident. ‘Oui, dit-elle, oui’. Puis confession complète et fin”18 (CAMUS, 1994, p.

307). Nesse sentido, Le Premier Homme é parte de sua resposta franco-argelina diante

da guerra.

A ficção é, nesse sentido, a realização de uma terceira via. Isso porque, apesar de

ligada à realidade, como defende o próprio Camus, e mesmo sendo escrita a partir de

pesquisa historiográfica, ela é o espaço para dizer aquilo que não pertence à lógica

esperada, representada pela organização linear dos acontecimentos. Ela possibilita a

abertura para a construção de outra ordem. Assim, a partir da arte propõe-se uma

mudança, outro modo de olhar a experiência humana, como assinala Ilari (2013): “A

arte, diz Camus, transfigura a regularidade linear, fortalece o que já havia sido

enfraquecido”19. Além disso, permite que apareça o inesperado, que uma nova lógica

seja possível para pensar os acontecimentos, lógica pela qual a nova história começou a

se interessar. Ao contrário do que normalmente ocorre na realidade, na ficção, a pobreza

e os inimigos podem ser benéficos, belos e poéticos.

As notas de Camus, anexadas ao final do romance, evidenciam a busca do

escritor por documentos e textos sobre a história argelina e sua intenção de dar um

destino ao povo pobre que vivia na região, incluindo sua família. Há inúmeras

referências precisas sobre fatos da história, incluindo datas, cidades, funções militares,

nomes próprios, quantidade de mortos, além de alusões a obras, “Histoire de la

18 Esse trecho faz parte do plano da obra publicado em anexo junto ao romance: “Na última parte, Jacques explica a sua mãe a questão árabe, a civilização crioula, o destino do Ocidente. ‘Sim, diz ela, sim’. Depois confissão completa e fim”. 19 “El arte, dice Camus, transfigura la regularidad lineal, tonifica lo que se há ido debilitando”. (ILARI, 2013, p. 96).

34

colonisation de l’Algerie”, de historiadores como Bandicorn, a que ele se refere em suas

notas. No entanto, Camus escreve: “Les mairies d’Algérie n’ont pas d’archives la

plupart du temps”20 (CAMUS, 1994, p.268), o que abre espaço para seu trabalho

criativo. Suas anotações em páginas de caderno permitem que o leitor tenha uma ideia

de como ele pretendia organizar seu romance. Elas mostram o plano da obra, indicando

todas as partes temáticas que seriam ali incluídas: o nascimento da criança e o retorno

do adulto à Argélia 40 anos depois, a pesquisa pelo pai e a descoberta do primeiro

homem, a infância, a adolescência, a vida política, os amores, a mãe. Porém, mais do

que isso, essas notas apontam para a razão desse projeto literário: “Arracher cette

famille pauvre au destin des pauvres qui est de disparaître de l’histoire sans laisser des

traces. Les Muets. Ils étaient et ils sont plus grands que moi”.21 (CAMUS, 1994, p.

293).

Assim, introduz-se uma motivação histórica no princípio do processo de escrita,

e que parece completamente de acordo com o momento vivido pelo escritor em meio ao

conflito França-Argélia, dilema para ele nada simples de solucionar. O romance, que

aborda a história dos europeus chegados à Argélia a partir dos anos 1830, justifica o

silêncio público do escritor diante da questão de independência argelina na medida em

que torna complexa a relação existente entre os grupos que habitam o mesmo território,

escapando do dualismo entre franceses opressores versus argelinos oprimidos. Camus

teme o futuro de sua terra:

Camus acredita firmemente no renascimento de seu país, e adverte seus contemporâneos dos riscos trágicos que a independência acarretaria, tanto para os franceses, que logo seriam condenados a fugir, quanto para os árabes, que não poderiam governar um país mergulhado no caos das influências.

22

E, por isso, o escritor conta o passado repleto de miséria e sofrimento vivido por

colonos europeus em terra argelina, como a sua própria família, e expõe, dessa maneira,

a dificuldade de posicionar-se em defesa da nação argelina. A própria ideia de nação

está suspensa no romance, já que diz respeito ao compartilhamento de uma identidade e

20 “As prefeituras da Argélia não têm arquivos na maior parte das vezes”. 21 “Arrancar essa família pobre do destino dos pobres, que é desaparecer da história sem deixar traços. Os Mudos. Eles eram e são maiores do que eu”. 22 “Camus croit fermement à la renaissance de son pays, et avertit ses contemporains des risques tragiques qu’entraînerait l’indépendance, tant pour les Français, qui seraient alors condamnés à fuir, que pour les Arabes, qui ne sauraient gouverner un pays plongé dans le chaos des influences”. (VIRCONDELET, 2010, p. 58).

35

a uma organização política, o que sempre fora penoso devido à diferença entre os povos

e resultou em muitas guerras nessa terra – “Ele não pode aderir aos objetivos do FLN

porque nunca houve, em sua opinião, nação argelina”.23 Camus prefere a palavra pátria,

pois faz alusão a terra, ao espaço físico e geográfico habitado por uma coletividade, que

é diversa, heterogênea e formada por pessoas vindas de muitos outros lugares. Le

Premier homme se constrói no encontro de toda essa diferença – árabes, berberes,

descendentes de europeus, judeus – em meio à qual cresceu um povo.

O silêncio que foi vivido por Camus em seus últimos anos de vida aparece como

um dos temas que cruzam o romance, fazendo-se presente no passado e no presente da

trama. Ele está frequentemente associado à pobreza, como uma consequência dela. A

pobreza caracteriza a situação em que vivia a família de Jacques Cormery e a população

de seu bairro na cidade de Argel. Sobre essa temática, Bertrand Visage, em entrevista

concedida a Alain Finkielkraut, juntamente com Suzanne Julliard, e publicada na

seleção de entrevistas Ce que peut la littérature, afirma ser o romance uma meditação

sobre a miséria, na qual o escritor pinta a pobreza em todo o seu realismo e os valores

que dela podem surgir: “trata-se de uma pobreza sobre a qual não temos mais ideia,

vertiginosa e abissal, que torna os homens ferozes e, ao mesmo tempo, solidários e

afetuosos; uma pobreza também imóvel, rebelde a todo progresso, fora da história”.24

Essa imobilidade e o fato de produzir valores positivos absolutos, como a solidariedade

e o acolhimento, tornam essa pobreza universal e, de certa forma, difícil de ser inserida

no processo histórico, mesmo que dele faça parte. E, tendo em vista a concepção

histórica do progresso, ela está fora da história justamente porque não é entendida como

passível de desenvolvimento, como um elemento que poderia impulsionar a história

para frente. Jacques se defronta com ela e a entende como parte daquela terra, chegando

mesmo a produzir bons frutos como os citados acima.

Mas não foi nesse romance que o vínculo com a pobreza apareceu pela primeira

vez na obra de Albert Camus. O escritor explicita essa relação que com ela estabelece

no prefácio, escrito em 1958, para L’Envers et L’Endroit, anos depois da publicação

23 “Il ne peut pourtant adhérer aux objectifs du F.L.N parce qu’il n’y a jamais eu, à ses yeux, de nation algérienne”. (REY, 2008, p. 128). 24 “il s’agit d’une pauvreté dont on n’a plus idée, vertigineuse et abyssale, qui rend les hommes féroces et à la fois solidaires et chaleureux; une pauvreté immobile aussi, rebelle à tout progrès, hors de l’histoire (...)”.(FINKIELKRAUT, 2006, p.50).

36

desse que fora seu primeiro livro. A pobreza e a realidade argelina estão presentes

enquanto temáticas e cenário nas breves histórias que o compõem: “La pauvreté telle

que je l’ai vécue ne m’a (...) pas enseigné le ressentiment, mais une certaine fidélité, au

contraire, et la ténacité muette”.25 Esta fidelidade à sua pátria demonstrada pelo escritor

é evidenciada pela presença da Argélia em tantas de suas obras.

Tal lealdade se reflete igualmente no projeto de escrita do romance Le Premier

homme. É o que podemos ver na estima que demonstra por sua terra, o que aparece

retratada em diversos aspectos como a existência imperiosa dessa “pauvreté

chaleureuse”, a importância atribuída à personagem materna na narrativa, as referências

aos eventos históricos e a situação social dos habitantes da Argélia, especialmente

árabes e franceses. E apesar do contexto conflituoso, Camus não escreve uma narrativa

de ressentimento ou de lamúrias, ao contrário, o romance é repleto de lirismo, como se

pode ver no trecho a seguir:

Et lui [Cormery] qui avait voulu échapper au pays sans nom, à la foule et à une famille sans nom, mais en qui quelqu’un obstinément n’avait cessé de réclamer l’obscurité et l’anonymat, il faisait partie aussi de la tribu, marchant aveuglément dans la nuit (...) revoyant aussi avec une douceur et un chagrin qui lui tordaient le coeur le visage d’agonisante de sa mère lors de l’explosion, cheminant dans la nuit des années sur la terre de l’oubli où chacun était le premier homme26. (CAMUS, 1994, p.180).

A personagem se reconhece como parte de sua terra natal, mesmo que pareça

dividida e admita que dela tenha tentado escapar. A mistura de sentimentos evidenciada

pelas oposições “tribu”/ “anonymat” e “douceur”/ “chagrin” mostra que a pobreza, ao

mesmo tempo triste e doce que Jacques vislumbra, conserva uma positividade. Pierre-

Louis Rey, em ensaio sobre esse romance, assinala tal aspecto da obra em oposição a

outro texto camusiano, L’Envers et l’Endroit: “Enquanto Le premier homme se refere às

mesmas realidades pessoais e sociais que L’Envers et l’endroit, nele não se revela

nenhum traço de amargura ou de pessimismo”.27 A ausência de pessimismo se dá à

medida que a narrativa retira do anonimato a tribo de Cormery, incluindo informações

25 “A pobreza tal como eu a vivi não me ensinou o ressentimento, mas uma certa fidelidade, ao contrário, e a tenacidade muda” (AUDI, 2013, p. 32) 26 “E ele [Cormery] que quisera escapar do país sem nome, da multidão e da família sem nome, mas em quem algo nunca havia deixado de reivindicar obstinadamente a obscuridade e o anonimato, ele também fazia parte da tribo, caminhando cegamente na noite (...) revendo também com uma doçura e um pesar que lhe partiam o coração o rosto agonizante de sua mãe no dia da explosão, caminhando na noite dos anos nessa terra de esquecimento onde cada um era o primeiro homem”. (CAMUS, 1994). 27 “Alors que Le Premier Homme se réfère aux mêmes réalités personnelles et sociales que L’Envers et l’Endroit, on n’y révèle nulle trace d’amertume ou de pessimisme”. (REY, 2008, p.101).

37

sobre o povoamento da Argélia recém-conquistada pelo exército francês entre os anos

de 1830 e 1847. Dessa forma, impede que seu grupo seja esquecido, e tenta, assim,

superar o anonimato atribuindo-lhes uma história. Por isso, não é pessimista, já que a

narrativa busca precisamente dar um rosto à comunidade de Cormery. Comunidade esta

que era plural, formada por franceses provenientes da Alsácia-Lorena, anexada pela

Alemanha, e por espanhóis e italianos da costa mediterrânea.

Dessa forma, o romance se constitui também como uma homenagem endereçada

aos seus, à medida que retoma a memória da comunidade construindo sua história. O

retorno de Jacques Cormery às terras da Argélia demonstra seu desejo de busca pelo

passado paterno, de encontro com a história de seu povo, mas também sinaliza o

remorso de um homem dividido, que cresceu naquelas terras e foi para a metrópole, sem

quase nunca retornar. A conversa com a mãe, no capítulo 5, realça a distância mantida

pela personagem ao longo do tempo que esteve fora: “Mon fils, disait-elle [a mãe], tu

étais loin” (CAMUS, 1994, p. 58). Jacques volta com a intenção de recuperar o passado

e talvez um tempo perdido, impulsionado pelo choque sofrido no cemitério de Saint-

Brieuc ao descobrir que Henri Cormery, morto na guerra, não chegara a completar a sua

idade atual. Esse acontecimento produz em Jacques um sentimento de injustiça e de

remorso que serve como legitimação, no projeto da obra, para a pretensão de Camus de

criar uma personagem monstruosa. A caracterização está explicitada nos anexos da

publicação do romance – “Je vais raconter l’histoire d’un monstre” (CAMUS, 1994, p.

300). Um monstro que não se aproxima de seus ascendentes em sua monstruosidade:

Je veux écrire ici l’histoire d’un couple lié par un même sang et toutes les différences. Elle semblable à ce que la terre porte de meilleur, et lui tranquillement monstrueux. Lui jeté dans toutes les folies de notre histoire ; elle traversant la même histoire comme si elle était celle de tous les temps. Elle silencieuse la plupart du temps et disposant à peine de quelques mots pour s’exprimer ; lui parlant sans cesse et incapable de trouver à travers des milliers de mots ce qu’elle pouvait dire à travers un seul de ses silences...La mère et le fils.28 (CAMUS, 1994, p. 308).

28 “Quero escrever aqui a história de um casal ligado pelo mesmo sangue e todas as diferenças. Ela, semelhante ao que a terra tem de melhor, e ele, tranquilamente monstruoso. Ele, lançado em todas as loucuras de nossa história; ela, atravessando a mesma história como se fosse a de todos os tempos. Ela, silenciosa a maior parte do tempo e mal dispondo de algumas palavras para se expressar; ele, falando sem parar e incapaz de encontrar por meio de milhares de palavras aquilo que ela podia dizer apenas com um de seus silêncios...A mãe e o filho”. (CAMUS, 1994, p. 291).

38

A figura do monstro é vista como repulsiva e é resultado do remorso, ela está

aqui associada ao exagero das palavras, à “participação” nos loucos acontecimentos

históricos, à incapacidade de conseguir se expressar. Nesse sentido, a personagem

contrasta com a figura da mãe, que é capaz de se comunicar através do silêncio, é

indiferente à história, mas carrega serenidade. Na mãe, o silêncio comunica mais do que

todas as ações do filho ao longo do curso da história.

Esse silêncio atravessará todo o romance, na postura da mãe diante do filho, mas

também nos diálogos que Jacques travará com outras personagens dos arredores de

Argel. E ele será apresentado como uma resposta dada à pobreza e à dor da vida sofrida

no bairro, argumentos que justificarão a perda da tradição oral no âmbito familiar e

comunitário, impondo a primazia do silêncio. Tem-se, nesse contexto, a falta daquilo

que Walter Benjamin chamou de “experiência comunicante” (Experiência e Pobreza,

1933), identificada como própria da modernidade, quando o silenciamento impera sobre

o narrar. Benjamin relaciona esse comportamento a um processo de transformações

éticas relativas à perda da capacidade de comunicar uma experiência. Isso teria ficado

mais evidente ao final da primeira guerra, mas iniciou-se ainda anteriormente e

continuou a se desenvolver. Tal comportamento está frequentemente relacionado aos

choques muito intensos, à vivência de realidades muito sofridas como a guerra, a fome,

a miséria – “No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do

campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável”

(BENJAMIN, 1994, p. 198).

Assim sendo, a figura do “contador”, responsável pela transmissão das histórias

do imaginário popular que compõem a identidade de um grupo, cede espaço para a do

silenciado, desinteressado em narrar, cujo calar produzirá o esquecimento e o

empobrecimento da experiência coletiva. Benjamin aponta para a necessidade de um

narrador que resgate a narrativa sem necessidade de explicações e aberta à reflexão.

Uma narrativa que tenha utilidade prática ou moral, que possa narrar sofrimentos e

eventos anônimos que se encontraria fora da história “oficial”, mas que comunicaria a

memória de um grupo, de maneira que nada seja relegado ao esquecimento.

Considerando o conceito de “experiência comunicante” e a figura do “contador”

apresentados por Benjamin, poderíamos pensar a busca pelo passado e o desejo de

39

narrá-lo de Jacques como o revigoramento dessa experiência, uma vez que pretendem

tornar conhecida uma tradição, a origem de um povo. Camus realiza o mesmo ao

resgatar uma realidade que, de seu ponto de vista, parecia ter sido esquecida no contexto

político francês de sua época: a história dos franco-argelinos. Dessa forma, tanto

Jacques quanto Camus constituem-se como desbravadores, porque realizam uma busca

no passado desconhecido e/ou silenciado. E, assim, possibilitam o conhecimento dessa

“ilha na sociedade” (Cf. REY, 2008), escondida, que é o mundo dos pobres, fechado em

si mesmo, separado dos outros. Mundo em que os perigos são o silêncio e a ignorância.

1.3 Percepções do tempo

Seguindo a reflexão de Benjamin, identificamos que o teórico aponta a

experiência da morte como central para a manutenção da narrativa oral. O indivíduo que

se aproxima da morte atinge o ponto máximo da sabedoria de sua vida e transmite suas

histórias deixando, portanto, um legado. A morte, em Le Premier homme, representa

igualmente a origem de uma narrativa, na medida em que é diante do absurdo da morte

do pai que Jacques buscará a sua história. No entanto, o narrador tradicional

apresentado por Benjamin, que se encontra em seu leito de morte, é dono de sua

narrativa, e quem o escuta tem uma postura passiva ao receber essa herança. Jacques,

pelo contrário, diante da morte assume uma postura ativa, pois ao invés de encontrar

uma herança narrativa, depara-se com a sua ausência. Diante do túmulo de seu pai ele

descobre o caos, a falta de ordem, e não algum encadeamento narrativo que pudesse lhe

oferecer sentido: “(...) quelque chose ici n’était pas dans l’ordre naturel et, à vrai dire, il

n’y avait pas d’ordre mais seulement folie et chaos là où le fils était plus âgé que le

père”. 29 (CAMUS, 1994, p.30). Por essa razão, Pierre-Louis Rey assinala a organização

“caótica” da narrativa, isto é, constituída de idas e vindas:

A descoberta de Jacques Cormery de que seu pai era mais novo quando morreu do que ele mesmo hoje determina aparentemente a ordem caótica da narrativa: “Quando, próximo à sepultura de seu pai, ele sente o tempo se deslocar – essa nova

29 “E a onda de ternura e pena que subitamente lhe encheu o coração não era o movimento da alma que leva o filho à lembrança do pai desaparecido, mas a compaixão perturbada que o homem feito sente diante da criança injustamente assassinada – alguma coisa ali não seguia a ordem natural, e na verdade não há ordem, mas somente loucura e caos quando o filho é mais velho que o pai”. (CAMUS, 1994, p.26).

40

ordem do tempo é a ordem do livro” (“Notas e planos’, Apêndices de O Primeiro homem)30.

Mas aqui vale ressaltar o caráter inacabado do romance, pois também a ordem

cronológica é utilizada por Camus no manuscrito. O que acontece, principalmente, na

vida infantil, na narrativa do nascimento e do percurso escolar. Portanto, ainda há, no

romance, uma hesitação na organização temporal como nota igualmente Rey: “Essas

hesitações se referem, em todo caso, ao plano do livro, à exposição dos acontecimentos;

elas não são jamais uma tentativa de restituição da ordem real do surgimento das

lembranças”31.

De qualquer forma, o choque temporal percebido pela personagem é a motivação

para que Jacques retorne à Argélia a fim de restabelecer a ordem, de conhecer um

passado que, até então, ignorava. Assim, mesmo que esteja de volta à terra natal,

Jacques assume a figura do recém-chegado, do desbravador, daquela personagem que

vinda de outro espaço, possibilita o estranhamento, a desconstrução e a reconstrução de

outro significado. Tal figura acompanha a obra de Camus, encarnada notadamente na

personagem do estrangeiro, capaz de olhar tudo de maneira nova e diversa. Segundo

Ilari, em artigo publicado na revista Criação e Crítica, essa característica é própria da

estética camusiana: “Olhar o mundo com os olhos de um recém-chegado, essa é a

proposta estética camusiana”.32

Jacques sai da França e aporta em Argel, cidade onde passou a infância e

juventude e onde sua mãe ainda vive. Parte de sua educação se realizou na metrópole,

onde construiu a vida profissional. Assim, suas ideias já não se assemelham tanto às dos

autóctones, visto que esteve imerso em ambiente culturalmente distinto e fortemente

intelectualizado. Por essa razão, possui ideias e visões divergentes em relação às que

encontrará em sua viagem, particularmente no que diz respeito à percepção do tempo.

Diretamente ligada à organização da narrativa histórica, a consciência temporal é um

ponto de dessemelhança entre o protagonista e os árabes e franco-argelinos com quem

30 “La découverte par Jacques Cormery que son père était plus jeune quand il est mort que lui-même ne l’est aujourd’hui détermine apparement l’ordre chaotique du récit : ‘Quand, près de la tombe de son père, il sent le temps se disloquer – ce nouvel l’ordre du temps est celui du livre’ (‘Notes et plans’, Appendices du Premier Homme dans OE.C., t. IV, p. 943)”. (REY, 2009, p. 122). 31 “Ces hésitations concernent en tout cas le plan du livre, l’exposé des événements; elles ne sont jamais une tentative de restitution de l’ordre réel du surgissement des souvenirs”. (REY, 2009, p. 122). 32 “Mirar el mundo con los ojos del recién llegado, esa es la propuesta estética [camusiana]” (ILARI, 2013, p. 96).

41

ele conversa. Sendo assim, observam-se no romance duas formas de perceber e

construir o tempo e que estruturam a própria história na relação estabelecida entre

passado e presente.

Apesar da origem argelina e de seu reconhecimento enquanto membro da

comunidade de sua cidade natal, Jacques carrega costumes e maneiras de pensar

franceses que o influenciaram em sua vida adulta. A mentalidade de um país que

valoriza o passado faz com que a personagem chegue à Argélia sem ter previsto os

possíveis obstáculos para acessar a história de seu pai. No episódio em que Jacques

chega ao cemitério de Saint-Brieuc, por exemplo, dirige-se a um funcionário e pede um

documento no qual poderia achar indícios sobre o seu pai: “Le voyageur demanda le

carré des morts de la guerre de 1914” (CAMUS, 1994, p. 27)33. O funcionário o

direciona ao local e o informa que a instituição francesa responsável pela memória do

país cuida da manutenção dos documentos referentes aos soldados que lutaram na

guerra pela França há quarenta anos, ou seja, trata-se de uma memória conservada pelo

Estado.

Ils étaient arrivés devant un carré entouré de petites bornes de pierre grise réunies par une grosse chaîne peinte en noir. Les pierres, nombreuses, étaient toutes semblables, de simples rectangles gravés, placés à intervalles réguliers par rangées successives. Toutes étaient ornées d’un petit bouquet de fleurs fraîches. ‘C’est le Souvenir français qui se charge de l’entretien depuis quarante ans. Tenez, il est là’”.34 (CAMUS, 1994, p. 29).

Cormery encontra-se dentro de uma perspectiva em que o presente é indissociável

do passado e possui estreita relação com o futuro. Sua compreensão temporal está

associada à imagem da linha, do progresso, para a qual a história tende a ser cumulativa

(Cf. LÉVI-STRAUSS, 1952). Ou seja, as técnicas e os conhecimentos adquiridos ao

longo da linha do tempo crescem em direção ao futuro. Neste sentido, a história é

organizada por categorias como anterior/posterior, características do pensamento

moderno, no qual há uma tendência ao distanciamento entre o homem e a natureza e ao

estabelecimento de uma relação sujeito/objeto para com ela, possibilitando a análise dos

processos que acontecem no ambiente.

33 “O viajante perguntou pela quadra os mortos da guerra de 1914”. (CAMUS, 1994). 34 “Tinham chegado a uma quadra cercada de pequenos marcos de pedra cinzenta unidos por uma grossa corrente pintada de preto. As lápides, numerosas, eram todas semelhantes, simples retângulos gravados, colocados a intervalos regulares em fileiras sucessivas. Todas estavam enfeitadas com um pequeno buquê de flores frescas. “ ̶ A Souvenir francesa cuida da manutenção há quarenta anos. Veja, ele está ali”. (CAMUS, 1994, p. 25).

42

No capítulo 7 do romance, intitulado “Mondovi: La colonisation et le père”,

Jacques encontra um francês e um árabe da região de Mondovi (atual Dréan), onde o

protagonista nascera e para onde se dirige à procura de informações sobre Henri

Cormery, seu pai. Diferentemente do que o leitor espera, o diálogo entre as três

personagens não será enriquecedor para a pesquisa de Jacques, não acrescentando

qualquer novidade sobre seu pai. Ao contrário, o encontro resultará no abandono da

tentativa de coletar informações sobre o passado paterno. Jacques descobrirá mais sobre

a sua pátria e sobre seu pai indiretamente, ao conhecer o povo que a constitui.

A busca da identidade do pai se revela decepcionante. Pobre e pouco falante, Henri Cormery não podia contar com sua esposa para perpetuar sua memória. Esta decepção é relativizada, contudo, à medida que Jacques busca menos os rastros da pessoa de Henri do que os das gerações que conheceram sofrimentos parecidos com os seus. A individualidade do pai se funde, sem prejuízos, entre os combatentes da guerra do Marrocos (1905) sobre a qual o Sr. Levesque dá testemunho, ou entre todos aqueles franceses da Argélia que conheceram a metrópole, em 1914, somente para ali serem mortos.35

No entanto, a conversa estabelecida entre eles introduz para Jacques Cormery uma

nova compreensão do tempo, oposta à sua, e marcada pela ruptura e pelo recomeço. A

fragilidade das questões políticas na região produz períodos: a terra pertence a

determinada família até que venha a guerra, uma ordem de evacuação pelos superiores,

uma disputa entre povos. Em seguida, é preciso que tudo se reinicie, posto que não

restam herança, ruínas, resquícios. Dessa maneira, o presente e o futuro são valorizados

em detrimento do passado, frequentemente apagado.

No trecho abaixo, o fazendeiro francês explica a saída de seus pais da fazenda

devido aos conflitos ocasionados pelas lutas de resistência à colonização francesa, em

defesa da independência. O prefeito pediu que evacuassem a região. Seu pai ficara

irritado, pois perderia terras onde cultivava uva e decidiu mudar-se para Marselha. Ele,

no entanto, continuara na terra da família:

− Et vous?

35 “La quête de l’identité du père se révèle décevante. Pauvre et peu bavard, Henri Cormery ne pouvait pas compter sur son épouse pour perpétuer sa mémoire.Cette déception se relativise pourtant à mesure que Jacques cherche moins la trace de la personne d’Henri que des générations qui ont connu des souffrances pareilles aux siennes. L’individualité du père se fond sans dommages parmi les combattants de la guerre du Maroc (1905), dont M. Levesque porte témoignage, ou parmi tous ces Français d’Algérie qui n’ont découvert la métropole, en 1914, que pour s’y faire tuer”. (REY, 2009, p.127).

43

− Oh, moi, je reste, et jusqu’au bout. Quoi qu’il arrive, je resterai. J’ai envoyé ma famille à Alger et je crèverai ici. On ne comprend pas ça à Paris. À part nous, vous savez ceux qui sont seuls à pouvoir comprendre ? − Les Arabes. − Tout juste. On est fait pour s’entendre. Aussi bêtes et brutes que nous, mais le même sang d’homme. On va encore un peu se tuer, se couper les couilles et se torturer un brin. Et puis on recommencera à vivre entre hommes.36 (CAMUS, 1994 : 168).

Ironicamente, a decisão do francês em ficar na terra da família é entendida apenas

pelos árabes, os únicos que seriam capazes de compreendê-lo. O uso da ironia,

enriquecedor no texto ficcional mas excluído da narrativa histórica, surge nessa

passagem aproximando dois povos que seriam a princípio considerados inimigos, seja

pelo sofrimento, seja pelo trato da violência. Além disso, absolve qualquer um deles de

culpa da guerra, já que a terra é a própria culpada do conflito.

Ainda que os pais tenham partido e a situação da região tenha sofrido uma

modificação com a ordem do prefeito, a fala da personagem permite entrever que

sempre fora assim, ou seja, a mudança garante a manutenção de um sistema e não sua

ruptura. A justificativa de que é a terra que “quer que seja assim” pressupõe que essa

seja a maneira pela qual os acontecimentos se apresentam. As alterações frequentes na

vida das pessoas dessa comunidade não sinalizam a superação de modelos, mas o fim

ou o início de um ciclo que um dia terminará. Tem-se, nesse caso, uma história

estacionária, pois o que prevalece é a ideia de conservação. Evidentemente, tal

caracterização é feita a partir do ponto de vista de Jacques, recém-chegado da França,

onde o passado possui grande importância e a história é “mais cumulativa”37.

36 “− E o senhor? − Ah, eu? Eu fico, e até o fim. Aconteça o que acontecer, vou ficar. Mandei minha família para Argel e vou morrer aqui. Ninguém compreende isso em Paris. Além de nós mesmos sabem quem são os únicos que podem compreender? − Os árabes. − Isso. Fomos feitos para nos entendermos. Tão estúpidos e broncos como nós, mas o mesmo tipo de homens. Ainda vamos nos matar um pouco uns aos outros, cortar testículos, torturar mais um pouquinho. E depois recomeçaremos a viver como homens. É essa terra que quer que isso seja assim”. (CAMUS, 1994, p. 162). 37 “Sobre a questão da classificação em história estacionária ou cumulativa, Claude Lévi-Strauss assinala a importância da relevância do ponto de vista de quem observa: “A historicidade ou, para ser mais exato, a riqueza em acontecimentos de uma cultura ou de um processo cultural, são função, não de suas propriedade intrínsecas, mas da situação em que nos encontramos em relação a elas, do número e da diversidade de nossos interesses, que nelas empenhamos” (LÉVI-STRAUSS, 1952, p. 345) / “[...] é preciso introduzir uma nova limitação, senão à validade, ao menos ao rigor da distinção entre história estacionária e história cumulativa. Não apenas esta distinção é relativa a nossos interesses, como já mostramos, mas ela nunca consegue ser clara. No caso das invenções técnicas, é bem certo que nenhum

44

Nesse sentido, poderíamos dizer que essa organização do tempo em ciclos

diferencia-se da concepção linear de Jacques anteriormente apresentada. Ao contrário,

aquela está associada a rupturas e é marcada pelo término e o recomeço de um ciclo.

Assim, as referências são o fim ou o início de determinado período da história. A

ausência de referências temporais, como as datas, para narrar um acontecimento

ocorrido na região faz com que se recorra às marcações espaciais (a terra, a fazenda) e

pessoais (os pais, os avós, o trabalhador árabe) para falar sobre um tempo passado. E,

portanto, Jacques, acostumado à maneira de construir a história a partir de datas e

grandes acontecimentos, terá dificuldade para conhecer e traçar a história paterna.

A maneira de perceber o tempo como algo cíclico e a narração da história baseada

na oralidade remetem, no romance, à terra argelina. Elas estão relacionadas ao mundo

mediterrâneo ao qual Camus se identifica e que influenciou sua obra através da cultura

grega e da cultura mediterrânea, na admiração e contemplação da natureza, do corpo,

dos sentidos e do mar. E que se contrapõe à visão moderna de história ligada ao

território francês, na qual a ideia de processo histórico é relacionada à valorização da

sequência temporal. Dessa forma, tal percepção não se aproxima da concepção da

história como um repertório de exemplos ou a guardiã da tradição, que seriam

característicos da oralidade, visto que esta opera na repetição e na transmissão,

conservando aquilo que é um valor a ser preservado e permanecer no seio de uma

comunidade. Ao sair da esfera mediterrânea, Jacques insere-se em uma cultura de

aprovação do passado em detrimento do presente, onde o documento escrito é mais

significativo do que a cultura oral. O seu retorno à terra natal sensibilizará a personagem

para as diferenças entre tais concepções.

Jacques experimenta certa angústia com a presença onipotente do presente, do

“imediato”, já que está em busca do passado. Ele, que se sentiu impelido por um “dever

de memória” em honra do pai e daqueles que morreram injustamente, depara-se com a

impossibilidade de conhecer, pois não há nomes nem registros. E, portanto, é preciso

começar de novo, seguir o projeto do presente: Jacques é o “primeiro homem” e inicia

período, nenhuma cultura, é absolutamente estacionário. Todos os povos possuem e transformam, melhoram e esquecem técnicas suficientemente complexas para permitir-lhes dominar seu meio; sem o que já teriam desaparecido há muito tempo. Portanto, a diferença nunca é entre história cumulativa e história não-cumulativa; toda história é cumulativa com diferentes graus” (LÉVI-STRAUSS, p. 357).

45

um novo ciclo. Um início em que está sozinho, diante da dura história de seu tempo, e

em que reconhece, enfim, que pertence mesmo à terra do esquecimento.

(...) il songeait aux tombes usées et verdies qu’il venait de quitter, acceptant avec une sorte d’étrange joie que la mort le ramène dans sa vraie patrie et recouvre à son tour de son immense oubli le souvenir de l’homme monstrueux et [banal] qui avait grandi, édifié sans aide et sans secours, dans la pauvreté, sur un rivage heureux et sous la lumière des premiers matins du monde, pour aborder ensuite, seul, sans mémoire et sans foi, le monde des hommes de son temps et son affreuse et exaltante histoire.38 (CAMUS, 1994, p. 182).

Assim termina a primeira parte do romance, com a constatação da positividade

que a terra natal carrega, em sua pobreza e luz, e até mesmo em seu esquecimento, já

que ele permite que as lembranças de um homem monstruoso sejam escondidas. Esse

homem é o próprio Jacques que se culpa, de certa maneira, de falta de cuidado para a

sua gente, já que fora embora para a metrópole.

No entanto, ao propor a ordem cíclica como benéfica e a pobreza como

acolhedora, introduz-se uma ambiguidade na narrativa, resultado da condição

intermediária de Jacques, entre dois mundos. Ao mesmo tempo em que a compreensão

do tempo em ciclos permite a renovação, o recomeço, o que seria positivo se

considerarmos um contexto de guerra e destruição, ela permite o esquecimento e o

término, que são a causa do drama do romance, cujo centro pode ser identificado no

anonimato e na falta de narrativa. A mesma lógica é válida para a pobreza39: do mesmo

modo que é acolhedora e identificada como produtora de bons sentimentos e propósitos,

também é motivo para incentivar a fuga e a manutenção da ignorância. Como aponta

Maurice Weyembergh, em Albert Camus et la mémoire des origines, a pobreza traz

valores positivos que a tornam quase atemporais, mas que ao mesmo tempo retiram os

pobres do curso da história:

De modo geral, os pobres encarnam um modo de vida elementar, retirado da história, vivendo, na realidade, ao nível das sensações, em

38 “E sonhava com os túmulos gastos e esverdeados que acabara de deixar, aceitando com uma espécie de estranha alegria que a morte pudesse vir um dia trazê-lo de volta à sua verdadeira pátria e encobrir mais uma vez com seu imenso esquecimento a lembrança do homem monstruoso e [banal] que crescera e construíra sem ajuda e sem apoio, na pobreza, num litoral venturoso e sob a luz das primeiras manhãs do mundo, para alcançar depois, sozinho, sem memória e sem fé, o mundo dos homens de seu tempo e sua terrível e grandiosa história”. (CAMUS, 1994, p. 176). 39 A ideia da pobreza como elemento positivo na construção de uma pessoa ou de uma obra é igualmente apreciada pelo escritor argelino contemporâneo Abdelkader Djemai, como demonstrou em palestra realizada no Rio de Janeiro, na Faculdade de Letras da UFRJ no dia 28 de abril de 2014: “Parfois la pauvreté est un luxe, elle n’est pas donnée à tout le monde”.

46

um quase silêncio, pleno de uma sabedoria, de uma alegria e de um sofrimento quase intemporais, posto que de todos os tempos.40

Finalmente, resta uma hesitação quanto aos valores atribuídos pela personagem à

organização temporal e à situação social em que vive seu grupo. A ambiguidade sinaliza

a complexidade da relação estabelecida entre os dois países e a posição da personagem,

que encarna a visão do recém-chegado, do estrangeiro, e que, portanto, encontra-se no

choque entre culturas.

As concepções de tempo linear e cíclico, que influenciaram diretamente a forma

de conceber e organizar a relação presente-passado e a narrativa histórica estão

presentes no romance e revelam a lógica de Camus frente a um problema de ordem

política vivido no final de sua vida. Ele, que sempre esteve entre ambas as ordens

temporais, reafirma sua posição intermediária ao escrever o manuscrito e expor, por um

lado, essa dessemelhança na maneira de pensar entre as então metrópole e colônia, por

outro, a vida sofrida de colonos europeus e de árabes que são os únicos a se

compreender, pois se reconhecem reciprocamente, em certa medida, como fruto da

mesma terra. O posicionamento do escritor entre um país e outro, no meio, no

Mediterrâneo, permite a manutenção do olhar estrangeiro, aquele que guarda,

simultaneamente, a distância e a curiosidade.

40 Plus largement, les pauvres incarnent un mode de vie élémentaire, soustrait à l’histoire, vivant en somme au ras des sensations, dans un presque silence, lourd d’une sagesse, d’un bonheur et d’une souffrance quasi intemporels, car de tous les temps. (WEYEMBERGH,1998, p. 13).

47

2 Memória individual e memória coletiva.

(...) j’ai le même sentiment à revenir vers l’Algérie qu’à regarder le visage d’un enfant.

(CAMUS, Carnets IV, 1943).

Este segundo capítulo trata da memória enquanto fonte para falar de si mesmo e

do outro. A primeira seção será dedicada à reflexão sobre o gênero autobiográfico, no

qual a memória é evocada e usada como fonte de conteúdo referencial ou possibilidade

de criação. Concentraremos a discussão em torno da classificação comumente usada

para o romance Le Premier homme – romance autobiográfico –, procurando identificar

em que medida o romance camusiano pode ser lido sob o viés autobiográfico e de que

maneira essa leitura o aproxima da “realidade” do autor.

Na sequência, nos debruçaremos propriamente sobre o tema da memória,

entendendo-o como relevante na obra camusiana. Identificaremos a presença da

memória individual em diversos trechos do romance e mostraremos como sua evocação

é a possibilidade de conhecimento de si através do retorno à infância e da percepção de

si como “primeiro homem”. Nesse sentido, apontaremos reflexões sobre a infância na

literatura e, desse período da vida em sua importância na consolidação das memórias e

na construção da identidade.

Na última seção deste capítulo, ampliaremos as discussões sobre a memória para

o âmbito social, passaremos a considerar a memória coletiva. Entendemos que a

memória de um indivíduo depende, em certa medida, da memória do grupo no qual está

inserido. E, portanto, o conjunto de memórias que se mantém vivo em uma comunidade

formam a memória coletiva, que influencia as lembranças de seus membros. Dessa

forma, quando um indivíduo rememora, traz consigo uma história do passado que,

provavelmente, não pertence apenas a ele. Assim, a memória do grupo ao qual pertence

um indivíduo pode ser vista como uma possibilidade de conhecimento do passado de

determinada comunidade. No caso de Le Premier homme, da comunidade franco-

argelina na Argélia entre 1848 a 1954.

48

2.1 Um romance autobiográfico?

No capítulo anterior, ao discutirmos a relação que comumente se estabelece

entre literatura e real, citamos o gênero autobiográfico como um exemplo no qual ela

parece mais evidente. Isso porque ao ler uma autobiografia, o leitor espera que o autor e

protagonista assuma um compromisso com a veracidade da história de vida que irá

contar. Citamos o caso de Rousseau para exemplificar o engajamento que,

supostamente, o filósofo assume para com o leitor de suas Confessions. Desse ponto de

vista, poderíamos questionar o uso de matéria ficcional nesse texto, supondo sua

intenção de narrar acontecimentos, se não fosse a quantidade de autobiografias ou textos

de caráter autobiográfico, sobretudo entre os que foram publicados ao longo do século

XX, a partir dos quais colocou-se a questão da “ficcionalização” do eu. Hélène

Jaccomard, em Lecteur et lecture dans l’autobiographie française contemporaine,

aponta que o gênero é próprio de uma época, e que a autobiografia foi enormemente

publicada na França nos anos 90: “trezentas e cinquenta autobiografias fizeram a

fortuna de editores em 1990 na França, autores célebres e desconhecidos misturados”41.

Nos anos 1980, principalmente sob a influência da filosofia e da psicanálise,

considerou-se a impossibilidade de narrar sobre si mesmo tendo a veracidade como

critério, já que a própria identidade do sujeito construía-se na narrativa, através da

linguagem – “é o eu quem acaba sendo construído pelo texto”42. Daí a célebre

autobiografia de Roland Barthes – Roland Barthes par Roland Barthes –, repleta de

imagens de sua infância e juventude e na qual o autor reivindica a ficcionalidade da

obra, distanciando-se criticamente do critério de veracidade. Nesse sentido, não seria

possível eliminar o caráter ficcional do gênero autobiográfico. É o que aponta Jean-Paul

Sartre ao comparar seu romance autobiográfico Les mots (1964) com outras de suas

obras:

Penso que Les mots não é mais verdadeiro do que La nausée ou Les chemins de la liberté. Não que os fatos aí narrados não sejam verdadeiros, mas Les mots é

41 “(...) trois cent cinquante autobiographies ont fait la fortune des éditeurs en 1990 en France, auteurs célèbres et obscurs confondus” (JACCOMARD, 1993, p. 22). 42 “(...) es el yo quien resulta construído por el texto” (POZUELO YVANCOS, 2006, p. 31).

49

também uma espécie de romance, um romance no qual eu acredito, mas que se mantém, apesar de tudo, um romance.43

Mesmo que Sartre faça referência a fatos de sua vida, o autor considera a autobiografia

da mesma maneira que qualquer outro de seus romances.

A compreensão do eu como identidade construída pelo próprio texto permitiu

que o gênero se expandisse e viesse a apresentar outras formas. Fato que resultou em

uma profusão de termos e classificações para tratar os textos de escrita de si em que

cada vez mais se misturavam as dimensões da ficção e do real. Vimos surgir a

autoficção com Serge Doubrovsky no final dos anos 1970, o romance autobiográfico e,

mais recentemente, a autonarração em estudos que tentaram abarcar uma diversidade de

textos, diferenciando-os e aprofundando o conceito de autoficção (BURGELIN,

GRELL, ROCHE, 2008). Não nos interessa aqui diferenciar teoricamente todas essas

categorias, mas apontar para a complexidade do tema e para a pluralidade do gênero

autobiográfico, posto que o adjetivo “autobiográfico” tem sido usado pela crítica ao se

referir à Le Premier Homme, mesmo que Camus tenha nomeado o manuscrito apenas

como romance. Para citar alguns exemplos: Bernard Fauconnier, em artigo publicado na

revista Le Magazine littéraire, afirmou ser o romance um projeto de caráter

autobiográfico com fortes referências à vida de Camus : “vasto projeto com fortes

ressonâncias autobiográficas”44, “em Le Premier homme, Camus aceitava, enfim,

enfrentar a realidade de sua própria vida, de sua infância, do mundo argelino confuso e

brutal que era o seu”45; o adjetivo foi usado também por Yves Baudelle e Christian

Morewski na apresentação da revista Roman 20-50 no27 : “Essa história autobiográfica

e poética”46; e por Schoentjes em artigo da revista Europe : “Em Camus [...] lidamos

com um romance autobiográfico”47.

43 “Je pense que « Les Mots » n’est pas plus vrai que « La Nausée » ou « Les Chemins de la liberté ». Non pas que les faits que j’y rapporte ne soient vrais, mais Les Mots est une espèce de roman aussi, un roman auquel je crois, mais qui reste malgré tout un roman”. (IDT, 1996, p. 163). 44 “[...] vaste projet aux fortes résonances autobiographiques”. (FAUCONNIER, Magazine littéraire No 453, mai 2006). 45 “[...] dans Le Premier homme, Camus acceptait enfin de se colleter avec la réalité de sa propre vie, de son enfance, du monde algérois grouillant et brutal qui était le sien”. (FAUCONNIER, Magazine littéraire No 453, mai 2006). 46 “Ce récit autobiographique et poétique […] ” (BAUDELLE, MOREWSKI, Roman 20-50 Revue d’étude du roman du XXe siècle. No 27 juin 1999). 47 “Chez Camus [...] nous avons affaire à un roman autobiographique”. (SCHOENTJES, Europe No 846, out. 1999).

50

Porém, em seu verbete “autofiction”, o Dictionnaire Albert Camus descarta a

possibilidade de escrita de caráter autobiográfico na obra do escritor:

Em nenhuma parte da obra de Camus encontra-se o desejo deliberado de misturar dois gêneros, e de propor abertamente uma obra de dimensão autobiográfica sob o nome de romance, com a intenção de se beneficiar, simultaneamente, dos dois pactos. Essa atitude parece mesmo impossível no meio de uma obra que guarda o sentido agudo da responsabilidade.48 (GUÉRIN, 2009).

Guérin menciona dois pactos de leitura que podem ser estabelecidos entre

narrador e leitor no texto: o autobiográfico e o ficcional. De acordo com Philippe

Lejeune, no pacto autobiográfico identifica-se o eu textual ao eu autoral, deixando claro

para o leitor o caráter individual e introspectivo da narrativa que se seguirá, e

fortalecendo o caráter verídico da história, mesmo que seja uma narrativa ficcional. Ora,

Guérin não identifica na obra camusiana a presença desse contrato de leitura, ou seja,

trata-se sempre de um pacto ficcional, no qual o leitor entende que aquilo que lerá é

uma criação sem qualquer compromisso com a vida de um indivíduo real. Além disso, o

verbete supracitado opõe autoficção a um senso de responsabilidade justamente por se

tratar de uma narrativa ficcional. Poderíamos questionar o termo “responsabilidade” já

que aí aparece sem qualquer complemento. Trata-se de uma responsabilidade moral,

ética, política? Em relação à veracidade dos acontecimentos, à literatura?

De qualquer maneira, se houve a preocupação de opor a obra camusiana à

literatura de caráter autobiográfico, é porque tal aproximação já foi feita, como

mostramos acima. Procuraremos entender aqui em que medida Le Premier Homme

pode ser identificado como texto autobiográfico, já que consideramos que o texto de

escrita de si permite a construção de um vínculo peculiar com a realidade histórica,

estabelecido a partir de um contexto privado e de uma narrativa introspectiva

direcionada pela vida de um sujeito. E, nesse sentido, tem a liberdade de tecer uma

história independente de fontes e baseada em memórias.

Considerando o estudo empreendido por Philippe Lejeune sobre o gênero

autobiográfico, assume-se que se trata de uma narração em prosa, sobre a história de um

48 “[...] nulle part dans l’oeuvre de Camus ne se trouve le désir délibéré de mélanger deux genres, et de proposer ouvertement une oeuvre de dimension autobiographique sous l’appellation roman, avec l’intention de bénéficier à la fois des deux pactes. Ce procédé paraît même impossible au coeur d’une oeuvre habitée par un sens aigu de la responsabilité”. (GUÉRIN (dir.), 2009) .

51

indivíduo, sobretudo de sua infância e juventude, sobre a sua personalidade, e cujo traço

fundamental é a identidade onomástica estabelecida entre autor, narrador e personagem.

Daí a famosa igualdade: A=N=P. Ao instaurar tal igualdade, o autor estabelece um

contrato de leitura com seu leitor, o chamado “pacto autobiográfico”, a partir do qual o

autor se compromete a seguir uma narrativa verossímil. De acordo com Lejeune, o texto

autobiográfico é percebido enquanto tal justamente pelo contrato de leitura estabelecido

entre autor e leitor, e não por sua estrutura textual, que poderia ser semelhante à de um

romance.

No entanto, o pacto autobiográfico que seria o fundamento de toda autobiografia

torna-se difícil de sustentar quando Lejeune passa a analisar textos de escrita de si em

terceira pessoa em sua obra Je est un autre (1980), passando assim a considerar a

construção da identidade a partir da narrativa. O teórico precisa três maneiras pelas

quais o texto remete ao autor, na tentativa de entender como a obra poderia ser lida de

modo referencial, e que seriam: o emprego de uma perífrase adotada, sobretudo, no

prefácio – “aquele que escreve essas linhas”; o uso de um “ele” sem referência explícita,

o que chamou de “enunciação figurada”, e a adoção do nome próprio igual ao do autor.

Assim, o autor utilizaria o paratexto para possibilitar que seu leitor lesse a obra de um

ponto de vista autobiográfico: “Se o texto é escrito inteiramente em terceira pessoa,

resta apenas o título (ou um prefácio) para impor uma leitura autobiográfica”49.

O manuscrito deixado por Camus não foi escrito em primeira pessoa, não

apresentando a igualdade própria do pacto autobiográfico de Lejeune, e também não

possui as características propostas pelo teórico na análise da autobiografia em terceira

pessoa. Assim, coloca-se a questão do uso do adjetivo “autobiográfico” para o romance

Le Premier Homme. Ao comparar a autobiografia com o romance autobiográfico,

Philippe Lejeune afirmou que não existiria diferença interna à narrativa entre ambos,

mas sim externa, já que o primeiro gênero de escrita de si estabelece o pacto

autobiográfico, enquanto o segundo não o faz. O contrato de leitura firmado entre autor

e leitor de um romance autobiográfico seria o que Lejeune chamou de “pacte

fantasmatique” (LEJEUNE, 1975), a partir do qual o leitor é convidado a ler o texto de

ficção como uma revelação da vida de um indivíduo. Nesse sentido, afirmou que o

49 “Si le texte est entièrement écrit à la troisième personne, il ne reste que le titre (ou une préface) pour imposer une lecture autobiographique”. (LEJEUNE, 1980, p. 47).

52

romance autobiográfico “se define no nível de seu conteúdo”50. E qual seria o conteúdo

que possibilitaria o uso do termo “autobiográfico” para um romance?

Para responder a essa pergunta, voltemos à definição de ordem semântica dada

por Lejeune quando define a autobiografia: versa sobre a história de um indivíduo,

considerando, especialmente, sua infância e juventude, e sobre a sua personalidade.

Com relação à característica semântica da autobiografia, Lejeune afirmou em

L’autobiographie en France (2003):

Ela [a autobiografia] não é simplesmente uma narrativa na qual predominam lembranças íntimas, ela implica um esforço para ordenar essas lembranças e delas fazer uma história da personalidade do autor. O desenvolvimento da autobiografia no final do século XVIII corresponde à descoberta do valor da pessoa, mas também a uma determinada concepção de pessoa: a pessoa se explica por sua história e, em particular, por sua gênese na infância e adolescência.51

No entanto, é evidentemente que não bastaria apenas abordar acontecimentos de

uma infância, pois também é preciso que esses acontecimentos tenham alguma relação

com a vida de um adulto e que o leitor possa associar a narrativa ficcional a um

conteúdo referencial.

E, afinal, de onde poderia vir o caráter referencial se, no caso de Le Premier

homme, não há identidade onomástica e nem uma enunciação figurativizada, mas sim

um texto de ficção? Neste ponto, vale retomar o termo “paratexto”, referido acima e

ainda não explorado, mas que a nosso ver, justificaria o uso do adjetivo

“autobiográfico” para o romance em questão. Gérard Genette, em Seuils (1987), define

a paratextualidade como aquilo que faz com que um texto se torne livro e se proponha

enquanto tal ao público. Esse conceito implica a relevância do contexto de publicação

do livro e sua recepção; o paratexto cerca o texto principal e mantém com ele uma

relação de continuidade contribuindo para apresentá-lo. Ele constitui-se de título,

subtítulos, notas, comentários, dedicatórias, epígrafes, ilustrações, etc. Genette afirma

que o texto é ampliado por esses elementos que estão em suas margens e que possuem

grande importância na medida em que lhe conferem sua própria existência. Eles não são

em sua maioria de responsabilidade do autor, mas em grande parte do editor, dos 50 “Le roman autobiographique se définit au niveau de son contenu”. (LEJEUNE, 1975, p. 25). 51 “Elle [l’autobiographie] n’est pas simplement un récit dans lequel prédominent les souvenirs intimes, elle implique un effort pour ordonner ces souvenirs et en faire une histoire de la personnalité de l’auteur. Le développement de l’autobiographie à la fin du XVIIIe siècle correspond à la découverte de la valeur de la personne, mais aussi à une certaine conception de la personne : la personne s’explique par son histoire et en particulier par sa genèse dans l’enfance et l’adolescence”. (LEJEUNE, 2003, p. 13).

53

críticos, por exemplo. Entretanto, permitem descobertas, estranhamentos, e novas

entradas para a leitura do texto. Na análise dos paratextos editoriais, Genette propõe

uma diferenciação entre dois tipos: o peritexto e o epitexto. O primeiro encontra-se no

próprio espaço da obra, tais como títulos, subdivisões, capa, ilustrações. O segundo

estaria espacialmente mais distante do texto e teria uma dimensão pública, como

entrevistas com o autor, debates, resenhas, mas também diários, rascunhos e

correspondências publicadas.

Dessa maneira, propomos uma pequena descrição do livro Le Premier Homme

tal como foi publicado pela edição Gallimard, sem perder de vista o status de

manuscrito inacabado da obra. A publicação possui na capa uma foto em preto e branco

na qual figura Albert Camus menino em destaque. Ela é o sétimo volume da coleção

Cahiers Albert Camus. Em nota, a editora, Catherine Camus, explica o contexto em que

o manuscrito fora encontrado após o acidente de carro no qual faleceu o escritor, e

também justifica a publicação dos rascunhos anexos, dizendo que se encontravam junto

ao manuscrito. Anuncia ainda o acréscimo de duas cartas pessoais que Camus trocara

com seu professor, Louis Germain, e informa ao leitor que a pontuação foi restabelecida

e que as palavras de grafia duvidosa foram substituídas por um espaço em branco entre

colchetes. Após a página com o título do primeiro capítulo, há um fac-símile de uma

página do manuscrito, repleto de notas e rabiscos de Albert Camus; mais dois deles

aparecem em meio ao romance. Nos anexos constam os cadernos de rascunho, um plano

da obra e notas, além das duas cartas pessoais.

Todos os elementos listados no parágrafo anterior fazem parte daquilo que

Genette chamou de paratexto e, como tal, contribuem para a leitura do romance

camusiano. Esses textos e a ilustração remetem para um conteúdo referencial

determinado: a vida de Albert Camus, seja na mocidade, como aponta a foto, seja

enquanto escritor, como mostram todas as notas e a explicação da editora. Contudo, será

que essas escolhas editoriais justificariam a classificação do romance como

autobiográfico? Provavelmente contribuem muito nessa direção ou, pelo menos, abrem

essa entrada de leitura do texto. Na nota e plano da obra, observamos o seguinte trecho,

no qual o escritor reflete sobre a vida de seu pai, presente que sua família teria dado à

França: “Mobilisation. Quand mon père fut appelé sous les drapeaux, il n’avait jamais

vu la France. Il la vit et fut tué. (Ce qu’une humble famille comme la mienne a donné à

54

la France)”52 (CAMUS, 1994, p. 278). A publicação das notas pessoais com os

comentários do escritor juntamente com o romance guiam, de certo modo, a recepção da

obra.

Ao observarmos o plano da obra, no qual Camus ordena a totalidade de seu

romance e apresenta o modo como pretendia organizá-lo, identificamos as seguintes

temáticas: cidades da Argélia, jogos de infância, a morte do pai, a família, a escola, a

colonização, o liceu, a adolescência (Cf. CAMUS, 1994, Feuillet III, p. 270-271). Esses

temas são caros às narrativas autobiográficas, como apontou Lejeune, e, na narrativa do

romance, reaparecem para o protagonista enquanto memória de sua infância na Argélia.

O leitor que, em 1994, terá contato com a narrativa de Jacques Cormery ao ler

Le Premier Homme já conhece bem o escritor Albert Camus, ganhador do Nobel em

1957, morto em 1960, jornalista, ensaísta, romancista. Àquela altura até mesmo

biografias já haviam sido publicadas sobre Camus: Roger Grenier publica a famosa

biografia Albert Camus, soleil et ombre em 1987. Assim sendo, além da própria edição

de Le Premier Homme, o conhecimento do leitor sobre a vida de Camus permite que

este estabeleça analogias entre personagem e autor. Essa aproximação foi muito mal

vista, principalmente, depois dos estudos estruturalistas, das gramáticas narrativas, nas

quais a personagem interessava mais enquanto “actante”, agente de uma ação, do que

em seus predicados.

Como conteúdo narrativo, ele [a personagem] não se beneficiou da expansão dos estudos narrativos. Além disso, as lógicas ou gramáticas narrativas (Greimas, Todorov, Bremond) elaboradas na linha de Propp, pouco acrescentaram ao estudo da personagem. Como o traduz sua denominação de “lógica”, de “gramática ou de “sintaxe”, essas teorias se afastaram, deliberadamente, da personagem como efeito discursivo. Seu objetivo comum é chegar a atingir uma estrutura profunda universal, formalizável em um modelo dedutivo. Mais do que as personagens efetivas, são as ações, os actantes, seus predicados e sua concatenação que constituem o objeto dessas gramáticas da narrativa. Quando a personagem não é puramente e simplesmente excluída da análise, é considerada como um suporte de ações e de actantes, não gozando de nenhuma autonomia.53

52 “Mobilização. Quando meu pai foi convocado para o exército, ele nunca tinha visto a França. Ele a viu e foi morto. (Aquilo que uma família humilde como a minha deu à França)”. (CAMUS, 1994, p.266).

53 “Comme contenu narratif, il n’a donc pas profité de l’essor des études narratives. Aussi bien, les logiques ou les grammaires narratives (Greimas, Todorov, Bremond) élaborées dans le sillage de Propp, ont peu apporté quant à l’étude du personnage. Comme le traduit leur dénomination de « logique », de « grammaire » ou de « syntaxe », ces théories se sont délibérément détournées du personnage comme effet discursif. Leur but commun est d’arriver à atteindre une structure profonde universelle, formalisable dans un modèle déductif. Plus que les personnages effectifs, ce sont les actions, les actants, leurs prédicats

55

Vincent Colonna, em sua tese de doutorado sobre a autoficção (1989), discute

justamente a pouca relevância dada aos estudos sobre a personagem que não fossem de

cunho sintático, sobre seu papel no encadeamento da narrativa. Procurando resgatar o

valor dos estudos sobre a personagem, ele afirma o seguinte:

Na literatura ocidental, a personagem goza de um privilégio importante, por vezes exorbitante. Para a leitura, todas as personagens são, por assim dizer, umbilicais, a partir dos quais se elaboram a decodificação, a compreensão, a construção e a apropriação de um texto. Quando a personagem possui, além disso, a função de encarnar uma figura autoral, de representar, de alguma forma, o seu criador, sua importância “natural” na narrativa só pode ser multiplicada.54

Nesse sentido, o teórico propõe três classes de traços que envolvem a constituição da

personagem: traços temáticos, actanciais e metadiegéticos. A primeira classe refere-se à

relação estabelecida pelo autor entre seu personagem e ele mesmo, podendo configurar

um distanciamento ou harmonia, semelhança ou dessemelhança, consonância ou

dissonância. A segunda diz respeito à importância de que goza a personagem para o

desenvolvimento da narrativa. E a terceira, à sua posição na narrativa, sua presença em

narrativas secundárias, por exemplo.

Interessa-nos aqui especialmente o primeiro traço evocado por Colonna,

comumente constituído pelas informações do paratexto. A analogia entre autor e

personagem, estabelecida pelo leitor, dá-se a partir das representações que possui sobre

o autor, e é, ao mesmo tempo, um efeito construído na própria leitura tanto do romance

quanto dos textos que o cercam. Em Le Premier Homme, uma analogia parcial pode ser

estabelecida entre Camus e Jacques Cormery, o protagonista do romance, se refletirmos

sobre parâmetros da personalidade – idade, profissão, nacionalidade – e do universo do

escritor – época, lugar, situação vivida – que determinam um perfil temático de relação

entre ambos. Tanto o escritor quanto a personagem compartilham os predicados

seguintes: são franco-argelinos, órfãos de pai, habitantes da França do início do século

XX, viveram uma infância pobre em Argel, com uma avó cruel e uma mãe surda. Nesse

sentido, a edição do livro acima descrita sugere a confirmação de tal analogia. Colonna

et leur concanécation qui constituent l’objet de ces grammaires du récit. Quand le personnage n’est pas purement et simplement exclu de l’analyse, il est considéré comme un support d’actions et d’actants, n’ayant aucune autonomie”. (COLONNA, 1989, p. 131). 54 “Dans la littérature ocidentale, le personnage jouit d’un privilège important, parfois exorbitant. Pour la lecture, tous les personnages sont pour ainsi dire des ombilics, au travers duquel s’élaborent le déchiffrement, la compréhension, la construction et l’appropriation du texte. Quand un personnage a en plus la fonction d’incarner une figure auctoriale, de représenter en quelque sorte son créateur, son importance « naturelle » dans le récit ne peut-être que multipliée”. (COLONNA, 1989, p. 132).

56

reintroduz a possibilidade de estudo dos predicados da personagem no contexto de

escrita de si, pensando especialmente na autoficção, e propõe um novo olhar para se

pensar a aproximação entre autor e personagem:

Trata-se de reintegrar um aspecto do dispositivo autoficcional que fora deliberadamente ignorado: seu aspecto semântico. Ele é, frequentemente, negligenciado para as obras de ficção. Sob o pretexto de ser indevidamente hegemônico e pouco fundamentado, é ignorado. Fazemos como se fosse sempre absurdo e ingênuo procurar semelhanças entre a ficção e a realidade. Tal concepção proíbe, no entanto, a compreensão do funcionamento do romance pessoal, do roman à clef ou do romance histórico.55

Assim, Colonna recoloca a aproximação feita entre ficção e realidade como

possibilidade de leitura de uma obra, em especial, dos gêneros por ele citados, mas,

acrescentaríamos a estes, as próprias escritas de si.

Ainda nos rascunhos anexados ao romance, principalmente no Feuillet II (p.

267-269), encontramos inúmeras referências a eventos da história da Argélia e a textos

de historiadores (Histoire de la colonisation de l’Algérie) que serviram como fonte para

Albert Camus durante a escrita de Le Premier Homme. Isso nos mostra o interesse do

escritor em fazer referência à história de seu país natal através de um ambiente familiar

no qual se encontra o protagonista Jacques. Assim, a narrativa versa sobre um pequeno

grupo – Jacques, a família – e, por isso, ganha um tom privado, acentuado pelas

memórias que serão relembradas ao longo do texto. No entanto, a história desse

pequeno núcleo está, ao mesmo tempo, completamente inserida na história do povo

argelino e, por isso, ao tratar do ambiente pessoal fala-se do outro, que pode ser o

vizinho, o árabe, o fazendeiro.

Dessa forma, narrar um cenário privado, memórias, eventos familiares tem valor

quando se relaciona com um contexto mais amplo, com uma comunidade, com a

alteridade. Jeanne-Marie Gagnebin, no artigo “Entre moi et moi-même” publicado no

55 “(...) il s’agit de réintégrer un aspect du dispositif autofictif qui avait été délibérément ignoré : son aspect sémantique. Il est trop souvent négligé pour les ouvrages de fiction. Sous prétexte qu’il est indûment hégémonique et peu fondé, on l’ignore. On fait comme s’il était toujours absurde et naïf de chercher des similitudes entre la fiction et le réel. Une telle conception interdit pourtant de comprendre le fonctionnement du roman personnel, du roman à clefs ou du roman historique”. (COLONNA, 1989, p. 134).

57

livro Em primeira pessoa, ressalta a relevância que podem ter textos autobiográficos

quando extrapolam a esfera do particular:

(...) essa escrita que parece, à primeira vista, irremediavelmente encerrada em sua particularidade, só adquire seu verdadeiro sentido quando consegue elaborar, pelo desvio da história de um si singular –, a experiência da alteridade, isto é, a experiência dos outros, em particular dos mortos, e também, seguindo a reflexão de Walter Benjamin, de um outro, a experiência de um passado que poderia ter sido diferente, e, portanto, de outras possibilidades no presente. (GAGNEBIN, 2009, p. 134).

Em Le Premier Homme identificamos justamente a narrativa sobre um sujeito

singular – Jacques Cormery – que, ao buscar descobrir o passado de seu pai e revisitar

suas memórias para conhecer sua própria identidade, se reconhece membro de uma

comunidade. Assim, lembrar sua infância passa a ser falar sobre a vida dessa

comunidade que fora esquecida pela história.

Dar voz a uma comunidade esquecida pode ser, no contexto de Le Premier

homme, outro aspecto que fortalece a aproximação entre personagem e autor, pois, no

período de escrita do manuscrito, Camus assumia uma posição que se legitimaria pela

história. Ele chegou a defender uma solução diferente daquela apresentada por

nacionalistas argelinos, intelectuais franceses e governo da França para o conflito entre

a Argélia e a França. Não se aliando a essas grandes opiniões, Camus procurou ser fiel

ao seu olhar que considerava ambos os países, que permitia vislumbrar o problema de

maneira diversa, mais complexa, como mostramos no capítulo anterior. Ponto de vista

esse que não fora entendido na época. A literatura, o romance Le Premier Homme,

figura como o espaço ideal para que o escritor apresente toda a complexidade por ele

percebida em relação ao tema. Podendo, dessa forma, valorizar a comunidade franco-

argelina e os seus mortos, os que foram esquecidos, talvez silenciados – les muets.

Enfim, podemos entender a atribuição do adjetivo “autobiográfico” ao romance

Le Premier homme, narrativa de busca que culmina com a descoberta de uma

identidade, quando consideramos a justificativa da analogia entre autor e personagem.

Isso se torna possível tendo em vista os aspetos mencionados nesta seção, tais como, o

perfil temático, o paratexto que envolve o romance e sua publicação, e os temas que

perpassam a obra. Como tema relevante, sublinhamos especialmente a infância, que é

evocada a partir das memórias individuais da personagem, o que discutiremos em

seguida.

58

2.2 A memória individual: a visita à infância

Como acabamos de ver, os textos de escrita de si estabelecem uma relação direta

com a memória, sendo esta um material produtivo para a criação ou mesmo uma fonte

histórica usada em uma narrativa autobiográfica. Le Premier Homme encena o tema da

memória ao explorar acontecimentos da infância do protagonista e ao referenciar

acontecimentos importantes do passado colonial argelino. Maurice Weyembergh, em

Albert Camus ou la mémoire des origines (1998), defende que o apelo à memória está

no centro da obra de Albert Camus, não apenas em seus romances, mas também em

seus ensaios políticos. Weyembergh cita alguns exemplos, como a valorização das

relações entre memória e conhecimento em La Peste, a partir das experiências de Rieux

no contexto do “jogo da peste e da vida”:

Mais lui, Rieux, qu’avait-il gagné? Il avait seulement gagné d’avoir connu la peste et de s’en souvenir, d’avoir connu l’amitié et de s’en souvenir, de connaître la tendresse et de devoir un jour s’en souvenir. Tout ce que l’homme pouvait gagner au jeu de la peste et de la vie, c’était la connaissance et la mémoire. (CAMUS, OC T.I, p. 1459)56.

O tema da memória também figura com força em La Chute, obra construída em

forma de diálogo no qual a personagem Jean-Baptiste Clamence narra seu passado,

baseado em lembranças, a um interlocutor que não tem voz; o que faz com que o texto

se transforme em um grande monólogo de caráter confessional. Através do ato de

rememoração, o narrador expõe opiniões e ideais, além de confessar seus erros, culpas e

vícios do passado. Nessa obra, a memória é excesso, é material para a própria narrativa.

Em L’homme révolté, seu ensaio mais famoso, a memória aparece como constituinte da

revolta genuína, já que é a sua manutenção o que permite o contínuo retorno às origens

da revolta. E, finalmente, embora de modo um pouco menos evidente, a referência à

memória em L’étranger: “J’ai fini par ne plus m’ennuyer du tout à partir de l’instant où

j’appris à me souvenir”57 (CAMUS, OC T. I, p. 1181).

56 “Mas ele, Rieux, o que tinha ganhado? Ele tinha ganhado apenas o fato de ter conhecido a peste e dela se lembrar, de ter conhecido a amizade e dela se lembrar, de conhecer a ternura e de ter que um dia dela se lembrar. Tudo aquilo que o homem podia ganhar no jogo da peste e da vida, era o conhecimento e a memória”. 57 “Acabei por não me entediar mais a partir do instante em que aprendi a me lembrar”.

59

Weyembergh não cita Le Premier Homme como exemplo para comprovar sua

tese, no entanto, consideramos que, no manuscrito deixado por Camus, a memória

individual está presente em todo o texto a partir dos acontecimentos da infância e

juventude rememorados ao longo da narrativa. E por que a infância e temas a ela

relacionados, como a escola, as brincadeiras, o bairro, a família, são recorrentes no

romance? Justamente pelo fato de que, para Jacques Cormery, retornar à Argélia é

revisitar a sua infância e adolescência, pois foi na cidade de Argel que ele passou essa

etapa de sua vida. A vida do menino Jacques está ligada a esse espaço argelino e, por

isso, as lembranças que serão evocadas pelos objetos, lugares, palavras e pessoas que aí

encontrará serão, enfim, a grande referência ao tempo passado. O tema da memória

perpassa a narrativa principalmente quando há o deslocamento de interesse da

personagem, inicialmente empenhada em conhecer o pai e, em um segundo momento,

voltada para sua própria identidade. Nos anexos da edição Gallimard, encontramos a

seguinte observação feita por Camus: “Finalement, il ne sait pas qui est son père. Mais

lui-même qui est-il ? »58 (CAMUS, 1994, p. 317).

Ao final da primeira parte do manuscrito, Cormery dá-se conta de que, naquela

terra, todos eram “o primeiro homem”, na medida em que o fato de não ter um passado

constituído enquanto narrativa fazia com que cada indivíduo tivesse que construir a sua

história, reconhecendo-se dela protagonista: “(...) cheminant dans la nuit des années sur

la terre de l’oubli où chacun était le premier homme, où lui-même avait dû s’élever seul,

sans père”59 (CAMUS, 1994, p. 181). A conclusão a que chega a personagem

encaminha a narrativa para sua segunda parte, intitulada Le fils ou le premier homme.

Em ambas as partes, identificamos referências à infância de Jacques. Ao compará-las,

porém, notamos a seguinte diferença: enquanto na primeira, a presença de Cormery

adulto faz com que a narrativa opere em idas e vindas, entre passado e presente, por

meio de flashbacks e da rememoração de eventos passados, na segunda, a personagem

de Cormery adulto desaparece, dando lugar ao Jacques menino. E nessa transição, a

narrativa torna-se mais linear. A linearidade é uma característica frequentemente

percebida em biografias e relatos históricos, pois estes tendem a respeitar a ordem

cronológica dos acontecimentos passados. E na segunda parte há uma narrativa da

58 “Finalmente, ele não sabe quem é seu pai. Mas, ele mesmo, quem é?” 59 “(...) caminhando na noite dos anos nessa terra de esquecimento onde cada um era o primeiro homem, onde ele próprio precisara educar-se sozinho, sem pai”. (CAMUS, 1994, p. 174).

60

infância que respeita a cronologia, o que percebemos, principalmente, por meio do

tratamento dado ao percurso escolar do menino Jacques.

Os eventos da infância presentes especialmente através da memória individual

ganham espaço na narrativa enquanto possibilidade de acesso ao passado. Em um texto

em primeira pessoa, o narrador manipula facilmente as lembranças individuais,

caminhando espontaneamente do espaço de sua lembrança para a realidade da narrativa,

e passando do tempo passado ao presente. Porém, em um romance em terceira pessoa,

como a memória individual pode ser evocada? As lembranças são introduzidas a partir

de algo que é externo ao sujeito: um objeto, um elemento da natureza, uma palavra, uma

sensação. O início do capítulo quatro é um exemplo de como isso é operado na narrativa

em questão. Cormery está no navio prestes a aportar em Argel. Faz um calor forte,

típico da região, e os passageiros vão tirar a sesta. Esse simples fato faz com que o

narrador evoque um momento da vida do pequeno Jacques, em que era obrigado a fazer

a sesta com sua avó:

Mais il faisait trop chaud sur le pont; après le déjeuner, des passagers abrutis de mangeaille s’étaient abattus sur les transatlantiques du pont couvert ou avaient fui dans les coursives à l’heure de la sieste. Jacques n’aimait pas faire la sieste. « A benidor », pensait-il avec rancune et c’était l’expression bizarre de sa grand-mère lorsqu’il était enfant à Alger et qu’elle l’obligeait à l’accompagner dans sa sieste.60 (CAMUS, 1994, p. 41).

Nesse episódio o narrador descreve a seguinte cena: Jacques Cormery se

encontra no navio, juntamente com outros passageiros que, tomados pelo calor e logo

após o almoço, sentem a necessidade de fazer a sesta. No entanto, informa em seguida

que Cormery não gostava da sesta e a explicação encontrava-se em um evento de sua

infância: lembra-se da expressão – “A benidor” – usada pela avó que o obrigava a

acompanhá-la em seu repouso. Na sequência narrativa, o leitor será transportado do

convés do navio à casa da infância de Jacques. Mas antes de nos determos nela, valeria

a pena observar como o narrador constrói anteriormente a aproximação com a

personagem, até conseguir chegar à imagem do espaço da infância.

Ele descreve a presença de Cormery no navio através de seus sentidos,

explorando sensações como o calor que a personagem sentia no convés, sobre o modo 60 “Mas fazia calor demais no convés; depois do almoço, os passageiros, enfastiados pela comida, tinham-se atirado nas espreguiçadeiras da coberta ou fugido para as cabinas para fazer a sesta. Jacques não gostava de fazer a sesta. ‘A benidor’, pensava com rancor, lembrando da expressão bizarra que sua avó usava quando ele era criança em Argel, para obrigá-lo a acompanhá-la na sesta”. (CAMUS, 1994).

61

como escutava o barulho nesse ambiente, ou como percebia a rigidez da

espreguiçadeira. E utiliza-se mesmo do discurso indireto livre para se aproximar ao

máximo da perspectiva do protagonista: “Il se leva d’un bond pour couper le ventilateur

qui séchait la sueur dans ses pores avant même qu’elle commence à couler sur son torse,

il vaut mieux transpirer, et il se laissa aller sur sa couchette (...)”61. Colado às

percepções de Jacques Cormery o texto passa quase imperceptivelmente do espaço do

navio para a casa da infância. Como observamos na sequência do trecho abaixo:

Les trois pièces du petit appartement d’un faubourg d’Alger étaient plongées dans l’ombre zébrée des persiennes soigneusement fermées. La chaleur cuisait au-dehors les rues sèches et poussiéreuses, et, dans la pénombre des pièces, une ou deux grosses mouches énergiques cherchaient infatigablement une issue avec un vrombissement d’avion. Il faisait trop chaud pour descendre dans la rue rejoindre les camarades, eux-mêmes retenus de force chez eux.62 (CAMUS, 1994, p. 41-42).

A passagem de um cenário presente – o presente na narrativa, do protagonista

adulto – para outro do passado é uma estratégia frequente ao longo da obra. Para citar

mais um exemplo dessa construção de aproximação temporal realizada a partir da

proximidade entre narrador e personagem, tomemos um trecho do último capítulo da

primeira parte do romance. Nele, Jacques está no avião de volta a Argel, tinha

conversado com moradores da região na qual nascera pouco antes de embarcar e

guardava, ainda com certo frescor, todas as histórias lá entendidas.

Jacques maintenant respirait mieux. La première obscurité s’était décantée, avait reflué comme une marée laissant derrière elle une nuée d’étoiles, et le ciel était maintenant rempli d’étoiles. Seul le bruit assourdissant des moteurs sous lui l’entêtait encore. Il essayait de revoir le vieux marchand de caroubes et de fourrage qui, lui, avait connu son père, s’en souvenait vaguement et répétait sans cesse : « Pas causant, il était pas causant. » Mais le bruit l’abrutissait, le plongeait dans une sorte de torpeur mauvaise où il essayait en vain de revoir, d’imaginer son père qui disparaissait derrière ce pays immense et hostile, fondait dans l’histoire anonyme de ce village et de cette plaine. Des détails sortis de leur conversation chez le docteur revenaient vers lui du même mouvement que ces péniches qui, selon le docteur, avaient amené les colons parisiens à Solferino. Du même mouvement, et il n’y avait pas de train à l’époque, non, non, si mais il n’allait que jusqu’à Lyon. Alors, six péniches traînées par des chevaux de halage avec Marseillaise et Chant du départ, bien sûr, par l’harmonie municipale, et bénédiction du clergé sur les rives de la Seine avec drapeau où était brodé le nom du village encore inexistant mais que les passagers allaient créer par enchantement. La péniche dérivait déjà, Paris glissait,

61 “Levantou-se de um pulo para desligar o ventilador que secava o suor em seus poros antes mesmo que começasse a lhe escorrer pelo tronco, era melhor transpirar, e deixou-se cair sobre o beliche (...)”. (CAMUS, 1994). 62“As três peças do pequeno apartamento de um bairro afastado de Argel estavam mergulhadas na sombra zebrada das venezianas cuidadosamente fechadas. Lá fora, o calor assava as ruas secas e poeirentas e, na penumbra dos cômodos, uma ou duas grandes moscas cheias de energia procuravam incansáveis uma saída com um zumbido de avião. Fazia calor demais para descer à rua e encontrar os amigos, também eles obrigados a ficar em casa”. (CAMUS, 1994).

62

devenait fluide, allait disparaître, que la bénédiction divine soit sur votre entreprise, et même les esprits forts, les durs des barricades, se taisaient, le coeur serré, leurs femmes apeurées tout contre leur force, et dans la cale il fallait coucher sur des paillasses avec le bruit soyeux et l’eau sale à hauteur de la tête, mais d’abord les femmes se déshabillaient derrières des draps de lit qu’elles tenaient les unes après les autres. Où était son père en tout ceci ?63 (CAMUS, 1994, p. 172).

No avião, Jacques relembra a história que lhe fora contada sobre a saída dos

colonos da França em direção à terra prometida, a Argélia. Mais uma vez, o narrador

explora os sentidos do protagonista, explorando principalmente a audição. O barulho do

motor ouvido por Jacques o induzirá a um estado de letargia propício para o

aparecimento das lembranças. A dinâmica na qual as imagens aparecem para Jacques é

associada ao movimento das péniches, embarcações utilizadas pelos colonos na década

de 1848 para chegar a Argel. Dessa forma, tanto o barulho do motor, quanto o

movimento das embarcações levarão à associação entre presente e passado.

Nesse mesmo trecho, além do deslocamento presente/passado, identificamos

também o uso do discurso indireto livre como estratégia do narrador para produzir o

efeito de proximidade da personagem. O discurso ouvido por Jacques em Solferino é,

no trecho acima, lembrado por ele. Essas falas foram por ele apropriadas e, por isso, são

narradas em discurso indireto livre, como se ele se lembrasse daquilo que dissera o

médico – “non, non, si mais il n’allait que jusqu’à Lyon”; “bien sûr”. O narrador está

tão próximo do protagonista que a pergunta final evidencia um questionamento de

Jacques, já que é ele quem está em busca do pai. E, aqui, novamente, a memória de

Jacques Cormery aparece através da narração possibilitando o acesso à história do povo

63 “Jacques agora respirava melhor. A escuridão inicial tinha-se decantado, refluíra como uma maré, deixando atrás de si uma nuvem de estrelas, e o seu estava agora cheio delas. Apenas o ruído ensurdecedor dos motores abaixo dele o deixava tonto. Tentava rever o velho comerciante de alfarroba e forragem que, este sim, conhecera seu pai, lembrava-se vagamente dele e repetia sem parar: “Muito calado, ele era muito calado”. Mas o ruído o atordoava, mergulhava-o numa espécie de torpor desagradável em que ele tentava em vão rever, imaginar seu pai, que desaparecia por trás dessa região imensa e hostil, misturava-se à história anônima dessa cidadezinha e dessa planície. Alguns detalhes saídos da conversa deles na casa do médico voltavam-lhe à memória com o mesmo movimento daquelas chalupas que, segundo o doutor, tinham trazido os colonos parisienses para Solferino. Seguindo o mesmo movimento, e não havia trem na época, não, não, havia sim, mas só ia até Lyon. Então, seis chalupas movidas por cavalos rebocadores, com a Marseillaise e o Chant du Départ, é claro, tocados pela fanfarra municipal, e a bênção dada pelo clero às margens do Sena, com a bandeira em que tinha sido bordado o nome da cidade ainda inexistente, mas que os passageiros iriam criar por encanto. A chalupa já ia à deriva, Paris deslizava, tornava-se fluida, ia desaparecer, que a bênção divina caía sobre a sua empreitada, e até os espíritos fortes, os homens rijos das barricadas, calavam-se, o coração apertado, as mulheres amedrontadas apoiando-se em sua força, e no porão do barco era preciso dormir sobre as enxergas com o barulho sedoso e a água suja à altura da cabeça, mas primeiro as mulheres se despiam atrás de lençóis que elas seguravam umas para as outras. Onde estava seu pai nisso tudo?” (CAMUS, 1994, p. 166).

63

argelino, mesmo que isso aconteça de forma inverossímil, já que Henri Cormery não

podia estar no meio dos colonos que chegaram à Argélia em 1848.

As descrições dos episódios do passado são feitas com grandes detalhes quanto

ao espaço, aos acontecimentos, e à percepção do menino, quando se trata de um

acontecimento relacionado à infância. No exemplo da chegada a Argel, verificamos dois

elementos que aproximam presente e passado, o calor e a sesta, e a partir deles a

lembrança do acontecimento que Jacques viveu com a avó é evocado. O calor e a sesta

juntos trazem ao presente os episódios das sestas vividos na infância, a sensação

provada pelo garoto. Esse processo de rememoração se assemelha àquele da famosa

Recherche du temps perdu, de Proust, na qual uma sensação presente guarda a

possibilidade de fazer ressurgir uma experiência passada, e tudo acontece ao acaso –

“tout d’un coup, par hasard”. É o caso do célebre episódio da “madeleine” quando,

através do paladar, do gosto do bolinho embebido no chá, o narrador se recorda da tia e

de Combray.

Il en est ainsi de notre passé. C’est peine perdue que nous cherchions à l’évoquer, tous les efforts de notre intelligence sont inutiles. Il est caché hors de son domaine et de sa portée, en quelque objet matériel (en la sensation que nous donnerait cet objet matériel), que nous ne soupçonnons pas. Cet objet, il dépend du hasard que nous le rencontrions avant de mourir, ou que nous ne le rencontrions pas.64 (PROUST, M. Du côté de chez Swann 1992, p. 23).

Assim, essa lembrança surge involuntariamente no navio, em direção a Argel, e

repousa justamente na semelhança entre dois momentos, duas sensações, a antiga e a

atual (DELEUZE, 1974), que possuem uma identidade comum e que, por isso, se ligam

de certa maneira na memória do indivíduo.

Apesar do exemplo citado acima, no qual a lembrança é evocada sem que

Jacques a buscasse deliberadamente, a postura da personagem ao longo do romance é

ativa e voluntária com relação ao conhecimento da memória. Quer dizer, mesmo que

haja lembranças que apareçam devido à relação estabelecida entre um objeto presente e

sua presença no passado, ou seja, de modo involuntário, a personagem deseja conhecer

o passado, ter acesso a ele através da memória. Tal atitude se opõe àquela do narrador

proustiano, para quem o conhecimento do passado se dá casualmente, depende de

64 “É assim o nosso passado. É tempo perdido que procuremos evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós não suspeitamos. E depende do acaso que nós o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos”.

64

encontrar ou não determinado objeto. Jacques Cormery, ao contrário, vai em busca do

passado. E é justamente o desejo de conhecê-lo que o motiva a retornar a Argel e

encontrar pessoas que pudessem ter tido contato com sua família. Pierre-Louis Rey bem

sinalizou tal diferença entre ambas as personagens:

[...] o narrador da Recherche limita sua investigação à sua própria existência: em nenhum momento, por exemplo, ele está preocupado com aquilo que seu pai ou sua mãe foram antes de seu nascimento, e se o romance oferece raras imersões no passado, esse passado poético e distante serve apenas para coroar com seu prestígio os nomes da aristocracia. [...] O procedimento do Premier Homme é , ao contrário, de uma ponta à outra, voluntário, os tempos são fortemente aí provocados por um dever de memória, e é em função dessa resolução que a ordem dos tempos é sabiamente abalada no romance.65

A junção do calor com a sesta dos viajantes implica a lembrança de uma

expressão característica da infância de Jacques – A benidor –, a qual, por sua vez,

provoca repulsão e faz emergir a imagem da avó autoritária obrigando-o a dormir. Tal

hábito ficara tão associado a essa circunstância que, mesmo adulto, não conseguia

deitar-se após o almoço. Adriana Kanzepolsky, observa, ao discorrer no artigo “O fundo

da língua”, publicado no livro Em primeira pessoa, sobre a importância da linguagem

nas memórias de infância, o papel fundamental das marcas linguísticas e das palavras no

discurso sobre a infância. Elas são, inúmeras vezes, incorporadas da fala do outro, das

várias vozes que pertencem ao tecido traçado pelo adulto sobre sua infância.

[...] a infância não se expande como seda, mas conta-se na textura dessas vozes recuperadas do passado, e digo vozes no sentido de sons, mas também no sentido de chamados. E quando digo textura penso na relação que essas palavras trazidas da oralidade estabelecem com a escrita atual [...] (KANZEPOLSKY, 2009).

Nesse caso, a fala da avó está de tal modo incorporada às memórias de Jacques

que suas palavras, recuperadas do passado, provocam desconforto quando lembradas

pelo adulto. Nesse caso, observamos que a memória individual é formada não apenas

pelas impressões do sujeito, mas também pelo discurso do outro, pelas palavras do outro

que são incorporadas às imagens que o sujeito constrói. Assim, mesmo que essa

65 “[...] le narrateur de la Recherche borne son enquête à sa propre existence : à aucun moment, par exemple, il ne s’inquiète de ce que son père et sa mère ont été avant sa naissance, et si le roman offre des rares plongées dans le passé, ce passé poétique et lointain ne sert qu’à auréoler de son prestige les noms de l’aristocracie. La démarche du Premier Homme, à l’inverse, est d’un bout à l’autre volontaire, les temps forts y sont provoqués par un dévoir de mémoire, et c’est en fonction de cette résolution que l’ordre du temps y est savamment bouleversé”. (REY, 2009, 121).

65

memória seja própria de um eu, ela toma forma dentro de um grupo, nas relações

estabelecidas com o outro.

Por isso é tão comum confundir uma lembrança da infância com a recordação de

uma história de nossa infância que nos foi narrada. Sigmund Freud, em artigo sobre

recordação de infância, cita um relato de Goethe sobre sua vida de infância. A partir

dele, o escritor desenvolve uma reflexão sobre aquilo que seria história a nós contada e

o que propriamente seriam as nossas lembranças: “Se tentamos recordar-nos do que nos

aconteceu nos primeiros anos da infância, muitas vezes confundimos aquilo que

ouvimos de outros, com o que realmente nos pertence e que provém daquilo que nós

próprios testemunhamos” (FREUD, 2006, p. 159). Assim, podemos afirmar que a

memória individual é formada por impressões pessoais, mas também pela seleção de

histórias, de expressões e hábitos que ouvimos e vemos ao longo da vida.

A lembrança da sesta não parece a princípio positiva aos olhos do adulto, tanto

que esse hábito é repudiado. Isso porque esse tempo vivido com a avó está relacionado

aos sentimentos de falta de liberdade e de contrariedade experimentados pelo menino.

No entanto, ao lado do autoritarismo da avó e do desagrado que a sesta representava

para Jacques, é interessante notar que, ligado a essa experiência, há também, ao mesmo

tempo, algo de positivo e leve:

L’enfant, pris entre les deux déserts de l’ombre et du soleil, se mettait à tourner autour de la table sans trêve, du même pas précipité, en répétant comme une litanie : ‘Je m’ennuie ! Je m’ennuie !’ Il s’ennuyait, mais en même temps il y avait un jeu, une joie, une sorte de jouissance dans cet ennui, car la fureur le prenait en entendant le ‘A benidor’ de la grand-mère enfin revenue.66 (CAMUS, 1994, p. 43).

Essa percepção dupla introduzida pelo narrador e que coloca em simultaneidade

aspectos positivos e negativos (como a contrariedade e a alegria, neste caso) espalha-se

por toda a narrativa e é responsável pelo lirismo que atravessa a obra, justamente porque

confere sensibilidade e leveza em um contexto de sofrimento e pobreza que

caracterizaram a infância de Cormery e a vida da comunidade franco-argelina.

66 “O menino, preso entre os dois desertos da penumbra e do sol, ficava girando sem parar em volta da mesa, sempre com o mesmo passo acelerado, repetindo, como uma ladainha: Estou me chateando! Estou me chateando! Chateava-se, mas ao mesmo tempo havia uma sensação de brincadeira, uma alegria, uma espécie de prazer nessa chateação, pois se enfurecia ao escutar o A benidor da avó que finalmente estava de volta”. (CAMUS, 1994, p. 38).

66

E é a presença desses aspectos positivos que possibilitará a identificação da

infância como um espaço de esperança, onde, mesmo na adversidade, repousava uma

felicidade e uma fonte de vida. Dessa forma, as lembranças da infância constituem um

universo seguro, no qual Jacques identifica-se como protagonista e do qual se recorda

enquanto ponto central de sua existência, de sua origem, pois, nessa fase, relacionava-se

de modo primitivo e sensível com o mundo.

Mais il s’était évadé, il respirait, sur le grand dos de la mer, il respirait par vagues, sous le grand balancement du soleil, il pouvait enfin dormir et revenir à l’enfance dont il n’avait jamais guéri, à ce secret de lumière, de pauvreté chalereuse qui l’avait aidé à vivre et à tout vaincre. (CAMUS, 1994, p. 44)67.

Na segunda parte do manuscrito, a infância torna-se uma temática ainda mais

central. No primeiro capítulo, a narrativa é, de fato, uma história da infância, e a

personagem principal passa a ser o menino Jacques Cormery, sempre acompanhado de

seu amigo Pierre. Os espaços se restringem à escola e ao bairro de Belcourt. Esse

primeiro capítulo está dividido em três partes, todas referentes a episódios e a ambientes

próprios da vida da criança: Lycée, Le poulailler et l’égorgement de la poule e Jeudis et

vacances. O capítulo seguinte já é o final do manuscrito, e não foi concluído. Com o

título Obscur à soi-même, ele possui um tom mais reflexivo, volta a tratar de questões

políticas e faz reaparecer a personagem adulta. Seu início já estabelece uma distância

em relação ao menino Jacques presente nos capítulos anteriores, evidenciada pelo uso

do mais-que-perfeito:

Oh! oui, c’était ainsi, la vie de cet enfant avait été ainsi, la vie avait été ainsi dans l’île pauvre du quartier, liée par la nécessité toute nue, au milieu d’une famille infirme et ignorante [...]. Se préparant même à force de pauvreté à être capable un jour de recevoir l’argent sans jamais l’avoir demandé et sans jamais lui être soumis, tel qu’il était maintenant, lui, Jacques, à quarante ans, régnant sur tant de choses et si certain cependant d’être moins que le plus humble, et rien en tout cas auprès de sa mère.68 (CAMUS, 1994, p. 255).

A escola é o ambiente que habita a memória de Jacques Cormery. Esse espaço

representou a fuga da casa pobre, na qual vivia com a mãe silenciosa e a avó autoritária,

67 “Mas ele tinha fugido, ele respirava sobre o grande dorso do mar, respirava em ondas, sob o grande balanço do sol, finalmente podia dormir e voltar à infância da qual jamais se curara, a esse segredo de luz, de pobreza calorosa que o tinha ajudado a viver e a tudo vencer”. (CAMUS, 1994,p. 40). 68 “Ah! era assim mesmo, a vida desse menino tinha sido assim, a vida tinha sido assim na ilha pobre do bairro, determinada pela necessidade crua, no meio de uma família doente e ignorante [...] Preparando-se mesmo à custa da pobreza para ser capaz um dia de receber dinheiro sem nunca ter pedido e sem jamais ser submisso a ele, tal como era agora, Jacques, com quarenta anos, reinando sobre tantas coisas e, no entanto certo de ser menos do que o mais humilde dos homens, e, sobretudo nada diante de sua mãe”. (CAMUS, 1994, p.245).

67

e ao mesmo tempo o lugar do encontro com o outro, com o diferente. Ela possui, dessa

forma, uma relação ambígua com a personagem: representou a possibilidade de deixar o

anonimato e a comunidade esquecida e, ao mesmo tempo, fomentou em Jacques o

desejo de conhecer o mundo, o outro, o que provocou o distanciamento para com os

seus e o futuro distanciamento de sua terra. Jacques frequentou a escola primária em sua

comunidade, como a maioria de seus amigos. No entanto, motivado pelo professor

Bernard, com quem estabeleceu um grande vínculo afetivo, prosseguiu os seus estudos

no liceu, o que era menos comum entre os meninos pobres de seu bairro.

Monsieur Bernard69 representou para Jacques a figura paterna ausente em sua

infância. O professor demonstrava uma preferência pelo aluno, pois ele era um “Pupille

de la Nation”, quer dizer, um órfão de guerra. M.Bernard conhecera seu pai no campo

de batalha. A figura do mestre é para o menino o oposto do autoritarismo da avó com o

qual convivia em casa. No relacionamento com o professor, Jacques experimentou a

liberdade e o gosto pelo conhecimento e pela leitura. E, por esses motivos, o ambiente

escolar tornou-se um espaço de prazer e alegria, repleto de poesia, a “poésie de l’école”.

Ces récits [histórias dos livros e contadas pelo professor] faisaient partie pour lui de la puissante poésie de l’école, qui s’alimentait aussi de l’odeur de vernis de règles et des plumiers, de la saveur délicieuse de la bretelle de son cartable qu’il mâchouillait longuement en peinant sur son travail, de l’odeur amère et rêche de l’encre violette, surtout lorsque son tour était venu d’emplir les encriers [...] Seule l’école donnait à Jacques et à Pierre ces joies. (CAMUS, 1994, p. 137).70

A insistência do professor junto à família de Jacques para que ele continuasse

seu percurso escolar contribuiu para que o menino se sentisse acolhido por essa figura

paterna e para que o adulto guardasse lembranças positivas do ambiente escolar. A

pesquisadora Cristina Martins, em artigo sobre a infância – Le récit d’enfance chez

Albert Camus et Vergílio Ferreira –, observa que a persistência na trajetória escolar

representa uma mudança significativa na vida do menino e marca, inclusive, uma

ruptura na própria estrutura do romance:

69 A personagem de M. Bernard muda o nome para M. Germain em algumas partes do romance. Germain fora o nome do professor de Albert Camus na escola primária, com quem o escritor trocou confidências através de muitas cartas até o final da vida. 70 “Para ele esses relatos [histórias dos livros e do professor] faziam parte da intensa poesia do colégio, que também se alimentava do cheiro do verniz das réguas e dos tinteiros, do sabor delicioso das alças de sua pasta de colégio, que mastigava longamente, esforçando-se em suas tarefas, do cheiro amargo e áspero da tinta roxa, sobretudo quando chegava sua vez de encher os tinteiros [...] A escola dava a Jacques e a Pierre essas alegrias”. (CAMUS, 1994)

68

É preciso notar que, no livro de Camus, o capítulo dedicado a seu professor é o último da primeira parte, intitulada “À procura do pai” e após a conquista da bolsa de estudos graças à dedicação do mestre, Jacques não busca mais, não se procura mais, ele torna-se o filho ou O primeiro homem e aí começa a segunda parte do romance. Se até então ele tinha buscado suas raízes e as de seus antepassados, ele igualmente percebeu que eles não deixaram nenhum rastro e que a partir daquele momento ele poderia intervir em seu próprio destino.71

Jacques encontra a si mesmo na escola, e, nesse espaço, vive uma infância feliz.

Assim, ao se voltar para sua própria identidade, surgem as lembranças da infância na

escola. Lembranças estas que mostram a escola como um lugar de contato com o outro,

com a diversidade, com o exótico – aquilo que lhe era alheio, como os costumes da

metrópole que entravam na sala de aula através dos livros, o que possibilita ao menino o

desenvolvimento de sua imaginação e a descoberta de outros hábitos e culturas. Na

segunda parte do romance, os episódios vividos pelo menino Jacques no liceu serão

narrados com grandes detalhes quanto ao alunado, à localização da escola na geografia

da cidade, ao relacionamento entre escola e família. Como mencionado anteriormente, a

presença do adulto nesse momento da narrativa é apagada, o que impossibilita o

movimento acima descrito entre passado e presente através da memória. E, dessa forma,

perguntamo-nos o que faz com que o leitor possa entender essas histórias de infância

como parte da memória individual do protagonista Jacques Cormery.

Ainda que nessa segunda parte do romance notemos uma maior distância

separando narrador e personagem, verificamos na narrativa a percepção de uma criança,

a presença do olhar de um menino. Ora, se o narrador heterodiegético não deixa nenhum

indício de que seria ele mesmo uma criança, de quem mais seria tal inteligência infantil

senão do menino Jacques? Exemplifiquemos com o seguinte trecho: “La grande

différence avec l’école communale était la multiplicité des maîtres. M. Bernard savait

tout et enseignait tout ce qu’il savait de la même manière. Au lycée, les maîtres

changeaient avec les matières (...)”.72 (CAMUS, 1994, p. 203). Jacques, que acabara de

ingressar no liceu, observava todas as novidades daquele ambiente e as comparava com

71 “Il faut noter que, dans le livre de Camus, ce chapitre dédié à son instituteur est le dernier de la première partie intitulée ‘À la recherche du père’ et après l’obtention de la bourse grâce au dévouement du maître, Jacques ne recherche plus, ne se cherche plus, il devient le fils ou Le premier homme et ici commence la deuxième partie du roman. Si jusqu’ici, il avait cherché ses racines et celles de ses aïeux, il s’est également aperçu qu’ils n’ont laissé aucune trace et qu’il peut désormais intervenir sur son propre destin”. (MARTINS, 2007). 72 “A grande diferença da escola comunal era a multiplicidade dos professores. M. Bernard sabia tudo e ensinava tudo o que sabia da mesma maneira. No ginásio, os professores mudavam com as matérias (...)”. (CAMUS, 1994, p. 196).

69

a experiência escolar que havia tido anteriormente, como costumam fazer todas as

crianças. A comparação leva em consideração a variedade de professores do liceu e é

feita a partir da ingenuidade da criança que não reflete sobre a diversidade do currículo,

seu avanço no percurso escolar ou a complexidade crescente dos estudos. Assim, a

grande diferença entre a escola anterior e o liceu era o fato de mudar o professor ao

mudar a disciplina, choque frequentemente percebido pelas próprias crianças, mas que

dificilmente seria a primeira transformação a ser notada do ponto de vista de um adulto.

O olhar infantil estará também presente em outras passagens desse capítulo

sobre o liceu, como quando o narrador descreve a ida para a escola no bonde que

cruzava a cidade ou quando faz referência ao dinheiro que a família Cormery recebia do

Tesouro público devido à morte de Henri Cormery na guerra.

Il y avait le ‘petit jeune sympathique’, qui avait une tête de jeune premier et des épaules fragiles ; l’ours brun, un grand et fort Arabe aux traits épais, le regard toujours fixé devant lui ; l’ami des bêtes, un vieil Italien au visage terne et aux yeux clairs, tout courbé au-dessus de sa manivelle, et qui devait son surnom au fait qu’il avait presque arrêté son tram pour éviter un chien distrait et une autre fois un chien sans gêne qui posait sa crotte entre les rails ; et Zorro, une grande saucisse qui avait le visage et la petite moustache de Douglas Fairbanks.73 (CAMUS, 1994, p. 194-195).

Caracterizar os adultos utilizando apelidos como “l’ours brun” é próprio da visão

infantil, mesmo que aqui o narrador não se utilize da própria linguagem da criança para

construir o seu texto. Da mesma forma são a referência à renda da família e a percepção,

para a criança, do que seria o Tesouro público: “un endroit mythique aux ressources

inépuisables où leur mère était admise à puiser, de loin en loin, de faibles quantités

d’argent”74 (CAMUS, 1994, p. 189).

Dessa maneira, ainda que não haja na segunda parte do romance a construção do

processo de rememoração, como identificamos na primeira, consideramos que a

memória individual se faz presente quando a percepção de uma criança é identificada na

narração de um adulto. Isso é evidenciado no vocabulário utilizado e em certas reflexões

73 “Havia o “moço baixinho simpático”, que tinha uma cara de jovem galã e ombros frágeis; o urso marrom , um árabe grande e forte de traços grossos, o olhar sempre fixo à frente; o amigo dos animais, um velho italiano de rosto descorado e olhos claros, todo curvado sobre sua manivela, e que recebera esse apelido porque quase parara seu bonde para não atropelar um cachorro distraído e, uma outra vez, um cachorro sem-vergonha que depositava seu cocô entre os trilhos; e Zorro, um compridão que tinha o rosto e o bigodinho de Douglas Fairbanks”. (CAMUS, 1994, p. 188) 74 “(...) um lugar mitológico com recursos inesgotáveis de onde sua mãe fora autorizada a retirar, de tempos em tempos, pequenas quantidades de dinheiro”. (CAMUS, 1994, p. 183).

70

desenvolvidas, como naquela citada acima. O fato de a memória individual ser a

memória de infância se justifica por dois motivos: o primeiro deles, mais evidente, é

que o período no qual a personagem Jacques Cormery viveu em Argel coincide com a

etapa da infância; o segundo diz respeito a ser a infância o momento de consolidação do

eu, período no qual o indivíduo se constrói na linguagem e pode inaugurar um discurso

individual e singular. Ora, a decisão de Jacques Cormery ao final da primeira parte do

livro, é identificar-se como “primeiro homem” de sua história, já que não encontra entre

os membros de sua família uma narrativa consolidada sobre o seu passado. Para isso,

era preciso que o protagonista saísse da “mudez”, ultrapassasse o ambiente silencioso,

sem rastros, sem fontes e encontrasse a sua linguagem, a sua narrativa. Nesse sentido, a

infância é a etapa essencial de passagem na qual o “primeiro homem” entra no campo

do discurso e pode construir a sua história.

Essa divisão na estrutura do romance é representativa da mudança de postura de

Jacques Cormery. A primeira parte do romance pode ser representada pela escuta e,

logo, pelo silêncio. Este é evidenciado não apenas pela mãe silenciosa, distraída,

monossilábica, mas também pelo próprio Jacques, que assume a postura do ouvinte, já

que deseja descobrir o passado ouvindo as lembranças dos outros.

“̶ Papa? Elle le regardait et devenait attentive. ̶ Oui. ̶ Il s’appelait Henri et puis quoi? ̶ Je ne sais pas. ̶ Il n’avait pas d’autres noms ? ̶ Je crois, mais je souviens pas. [...] ̶ En quelle année il est né ? ̶ Je ne sais pas. Moi, j’avais quatre ans de plus que lui. ̶ Et toi, en quelle année ? ̶ Je ne sais pas. Regarde de livret de famille”.75 (CAMUS, 1994, p. 62).

Já a segunda parte, em oposição à anterior, representa o ingresso na fala pela

presença mais intensa das lembranças de infância de Jacques. Quando ele se declara

“primeiro”, é preciso que retome as suas próprias experiências vividas em Argel, e trata-

se de vivências infantis em sua maior parte. Ao voltar para a vida de criança e

75 “̶ Papai ? Ela olhava para ele e ficava atenta. ̶ Chama-se Henri de quê ? ̶ Ele tinha sobrenome? ̶ Acho que sim, mas não lembro. [...] ̶ Em que ano nasceu? ̶ Não sei. Eu tinha quatro anos mais que ele. ̶ E você, nasceu em que ano? ̶ Não sei. Olhe no livro de registro da família”. (CAMUS, 1994, p. 58)

71

reconhecer uma origem, a narrativa torna-se mais linear, aproximando-se, nesse ponto,

da narrativa histórica. E, nesse sentido, a origem é identificada pessoalmente quando a

personagem decide olhar para seu próprio eu diante da impossibilidade de conhecer o

passado de outra maneira (fontes, relatos, traços).

E aqui a ideia de origem não coincide com origem cronológica, com o

nascimento, por exemplo, mas refere-se a uma experiência originária, como aquela

proposta por Giorgio Agamben em Infância e história. O filósofo a nomeia “in-fância”,

quer dizer, aquilo que está, no sujeito, antes da própria fala:

Uma experiência originária, portanto, longe de ser algo subjetivo, não poderia ser nada além daquilo que, no homem, está antes do sujeito, vale dizer, antes da linguagem: uma experiência “muda” no sentido literal do termo, uma in-fância do homem, da qual a linguagem deveria, precisamente, assinalar o limite. (AGAMBEN, 2014, p. 58).

Tal experiência não é propriamente datada, mas opera em uma relação de coexistência

com a linguagem. Portanto, não é, necessariamente, relativa à criança.

A ideia de uma infância como uma “substância psíquica” pré-subjetiva revela-se então um mito, como aquela de um sujeito pré-linguístico, e infância e linguagem parecem assim remeter uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância. Mas talvez seja justamente neste círculo que devemos procurar o lugar da experiência enquanto infância do homem. Pois a experiência, a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de existir para versar-se na palavra, não é um paraíso que, em um determinado momento, abandonamos para sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dela efetua, produzindo cada vez o homem como sujeito. (AGAMBEN, 2014, p. 69).

Assim, identificamos a infância como uma experiência que se estende no tempo e que

existe no nexo que estabelece com a linguagem e, portanto, também com a história.

Posto isso, observamos que o retorno de Jacques à infância, em Le Premier homme,

através da memória, permite a passagem do silêncio para a fala, do anonimato para a

história.

Em sua obra La poétique de la rêverie (1960), Bachelard também separa da

infância o aspecto cronológico, quando identifica a alma humana como o lugar no qual

haveria um núcleo de infância, uma infância não datada, mas constituinte do próprio

indivíduo. Esse centro é por ele reconhecido como aquilo de mais individual e particular

no ser humano. E, segundo ele, poderia ser resgatado através do devaneio e da atividade

poética – “Para forçar o passado, quando o esquecimento nos cerca, os poetas nos levam

72

a reimaginar a infância perdida. Eles nos ensinam ‘as audácias da memória”76 – pois,

em ambos, o indivíduo está livre da narração, do encadeamento temporal, e, assim,

evoca as imagens a partir das quais a lembrança é formada. A infância fixa e fora da

história analisada por Bachelard fortalece a ideia acima exposta da necessidade de

retomar a memória de infância com o objetivo de tratar da identidade do eu.

É claro, e não podemos ignorar, que Bachelard parte de uma perspectiva positiva

em relação à infância; l’enfance heureuse e cheia de histórias, para qual o indivíduo

deseja retornar, seja pela poesia, seja pelo devaneio. Esse aspecto deve ser mencionado,

pois a infância do menino Jacques é vivida na miséria e no silêncio. No entanto, em Le

Premier homme, mesmo em episódios de conflitos, pobreza e silêncios, a infância é

percebida em sua positividade. E é justamente por meio desse horizonte sobre a infância

que o lirismo é construído no romance. Como se pode ver na passagem que se segue, na

qual o simples hábito de dividir as batatas fritas com os colegas torna-se uma lembrança

que envolve companheirismo e apreciação da natureza, ao mesmo tempo em que

evidencia a pobreza do grupo:

Tous les jours, à la saison, un marchand de frites activait son fourneau. La plupart du temps, le petit groupe n’avait même pas l’argent d’un cornet. Si par hasard l’un d’entre eux avait la pièce nécessaire, il achetait son cornet, avançait gravement vers la plage, suivi du cortège respectueux des camarades et, devant la mer, à l’ombre d’une vieille barque démantibulée, plantant ses pieds dans le sable, il se laissait tomber sur les fesses, portant d’une main son cornet bien vertical et le couvrant de l’autre pour ne perdre aucun des gros flocons croustillant. L’usage était alors qu’il offrît une frite à chacun des camarades, qui savourait religieusement l’unique friandise chaude et parfumée d’huile forte qu’il leur laissait. (...) Ils en oubliaient même l’heure, courant de la plage à la mer, séchant sur le sable l’eau salée qui les faisait visqueux, puis lavant dans la mer le sable qui les habillait de gris. (...) Le ciel, vidé de la touffeur du jour, devenait plus pur puis verdissait, la lumière se détendait et, de l’autre côté du golfe, la courbe des maisons et de la ville, noyée jusque-là dans une sorte de brume, devenait plus distincte. Il faisait encore jour, mais les lampes s’allumaient déjà en prévision du rapide crépuscule d’Afrique.77 (CAMUS, 1994, p. 53, 55)

76 “Pour forcer le passé, quand l’oubli nous enserre, les poètes nous engagent à réimaginer l’enfance perdue. Ils nous apprennent ‘les audaces de la mémoire”. (BACHELARD, 1999, p. 94). 77 “Todos os dias, na temporada de praia, um vendedor de batatas fritas acendia seu fogareiro. Na maioria das vezes, o pequeno grupo não tinha dinheiro nem para um pacote. Se por acaso um deles tivesse a quantia necessária, comprava seu pacote, caminhava solenemente para a praia seguido do cortejo respeitoso dos companheiros e, diante do mar, à sombra de uma velha barca desmantelada, enfiando os pés na areia, deixava-se cair sobre o traseiro, segurando o pacote bem na vertical com uma das mãos e cobrindo-o com a outra para não perder nenhum dos grandes flocos crocantes. O costume era então que oferecesse uma batata frita a cada um dos companheiros, que saboreavam religiosamente a única gulodice quente e cheirando a óleo que ele lhes dava. (...) Chegavam a esquecer da hora, correndo da praia para o mar, secando na areia a água salgada que os tornava pegajosos, depois lavando no mar a areia que os vestia de uma cor cinzenta. (...) O céu, que se esvaziara do vapor do dia, tornava-se mais claro e depois esverdeava, a luz se distendia e, do outro lado da enseada, a curva das casas e da cidade, até então

73

Sendo assim, o encontro com essa infância atemporal e positiva é a possibilidade

para que o protagonista se descubra como o primeiro homem de sua história. No

entanto, é preciso observar que o olhar para si mesmo não faz surgir apenas narrativas

sobre o eu, mas também sobre o outro. Da mesma forma que também a história narrada

pelo outro faz com que o eu se lembre, o que é mais frequente na primeira parte do

romance. Ricoeur em sua obra A história, a memória e o esquecimento, analisou a

questão da atribuição da memória a partir da exposição de duas tradições de estudos

sobre o tema: uma delas sob a perspectiva do eu e da construção da subjetividade, a qual

chamou de “tradição do olhar interior” e na qual identifica filósofos como Agostinho,

Locke e Husserl; ao passo que a segunda propõe o ponto de vista da consciência

coletiva para os estudos da memória, cujo expoente seria Maurice Halbwachs em sua

obra sobre a memória coletiva. Seguindo o caminho de Ricoeur que se interessou pelas

duas possibilidades de considerar a memória, discutiremos na última seção deste

capítulo em que medida as lembranças individuais se relacionam com a memória do

grupo. Como apontou o filósofo da história, acreditamos que ambas as perspectivas

sobre a memória se encontram em determinado aspecto: “toda a tradição do olhar

interior se constrói como um impasse rumo à memória coletiva” (2007, p. 108).

2.3 A descoberta de um povo

Esta terceira parte do capítulo se estabelece como uma articulação entre a seção

anterior e a discussão sobre a ficção e a história desenvolvida no primeiro capítulo.

Naquele momento expusemos a ideia de que talvez Le Premier homme fosse uma

maneira de fazer história ao construir uma narrativa baseada na memória. E, assim, a

ficção seria a opção que permitiria a Camus fazer coincidir história e memória através

da narrativa de Cormery. Na seção anterior, identificamos a presença da memória

individual através de duas estratégias ao longo do romance: a memória involuntária, que

permite a evocação de lembranças a partir de um objeto do presente que instaura uma

simultaneidade entre presente e passado, e a narração de um fato passado pelo olhar da

antiga criança, ou através de um olhar in-fantil, conforme a referência a Agamben. Mas,

afogada numa espécie de bruma, tornava-se mais nítida. Era dia claro ainda, mas as luzes já se acendiam, prevendo o rápido crepúsculo da África”. (CAMUS, 1994, p. 49-50).

74

como essa memória tão íntima se relacionaria com a história, especialmente, com a

história da comunidade franco-argelina na qual nasceu Jacques Cormery – e Albert

Camus? Nesse momento, tentaremos entender de que maneira a busca por um único

homem, Henri Cormery, no início do romance faz com que Jacques desemboque em

uma multidão – “A busca pelo pai, não termina, para Jacques, em um só homem, mas

em uma multidão que é seu povo” 78 (CHABOT, 1999).

O estudo da memória coletiva ganha fôlego com a publicação da obra de

Maurice Halbwachs, A memória coletiva, em 1968. O sociólogo desvia o curso que

costumavam tomar os estudos sobre a memória, afirmando que não o interessava tanto

descobrir onde a memória é conservada, mas por que e como ela reaparece. Halbwachs

é bastante influenciado pela sociologia de Émile Durkheim, em cuja obra a noção de

“categoria” ocupava posição primordial, já que propunha interpretar socialmente

categorias como as de tempo, espaço, pessoa, número, etc. Percebemos o reflexo da

obra durkheimiana no uso feito por Halbwachs, em seu primeiro livro sobre a memória

– Les cadres sociaux de la mémoire (1925) –, do conceito de “quadros sociais” da

memória. Esses quadros seriam instrumentos dos quais se serve a memória para

construir uma imagem do passado a partir do pensamento de determinado grupo. Isso

por que considera que a maior parte das lembranças reaparece para o indivíduo no

contato com os outros membros da sociedade. Portanto, é dentro de um grupo que o

indivíduo as localiza e as legitima e, por isso, o pensamento do indivíduo se situa dentro

da perspectiva de um conjunto social no qual ele está inserido e em que se estabelece

um “quadro”.

Nessa primeira obra sobre o tema, Halbwachs apresenta a análise da memória da

família, da religião, das classes sociais, todas elas compostas de lembranças recorrentes

e legitimadas dentro de um ambiente social. Ele defende que o indivíduo se recorda

tomando o ponto de vista de um grupo, e que a memória coletiva do grupo se

manifestaria, então, através da memória individual. Assim, identifica o caráter

comunitário constitutivo da memória, pois para se lembrar é preciso do outro.

78 “La recherche du père, n’aboutit pas, pour Jacques, à un seul homme, mais à une foule qui est son

peuple”. (CHABOT, 1999).

75

Mais frequentemente, se eu me lembro é porque os outros me incitam a lembrar, a memória deles vem em socorro da minha e a minha se apoia na deles. Nesses casos ao menos, a recordação das lembranças não tem nada de misterioso. Não há porque procurar onde elas estão, onde se conservam, se no meu cérebro, ou em alguma parte de meu espírito a que somente eu teria acesso, já que elas me são recordadas do exterior e que os grupos dos quais eu faço parte me oferecem a cada instante os meios para reconstruí-las, contanto que eu me volte a eles e que adote, ao menos temporariamente, suas formas de pensar.79

Assim, para Halbwachs, é no próprio ato de recordação pessoal que foi

encontrada a marca do social. O grupo estimula determinada lembrança e não outra no

indivíduo, e este, por sua vez, enriquece a memória coletiva ao narrar a sua lembrança,

que influenciará outros membros da mesma comunidade. Dessa perspectiva, a memória

não seria apenas interior, mas teria forte relação com o exterior, visto que só se mantém

estando em um grupo: “Não há lembranças que reaparecem sem que de alguma forma

seja possível relacioná-las a um grupo” (HALBWACHS, 2011, p. 42). É através da

maneira de pensar partilhada pelo grupo com o qual se identifica que o indivíduo

percebe e compreende noções que lhe vêm do mundo exterior. O mesmo acontece

quando as lembranças são revisitadas e sobre elas se reflete – “cada vez que

percebemos, nós nos confrontamos com a lógica [do grupo]; ou seja, lemos os objetos

segundo essas leis que explicam as nossas lembranças” (HALBWACHS, 2011, p. 61).

Em seu entender, grande parte do processo de recordação seria uma reconstrução fruto

das interações sociais e uma parcela menor seria a evocação, propriamente dita, da

lembrança de um estado de consciência puramente individual, que ele chamou de

“intuição sensível” (2011, p. 43).

No episódio em que Jacques está no avião indo em direção a Solferino em busca

do médico que o trouxe ao mundo, observamos como a personagem se apropria de

lembranças que não são suas. Ele acabara de escutar histórias do fazendeiro de Saint-

Apôtre, terra onde nascera, e está quase dormindo em sua poltrona. Devido à influência

das lembranças contadas pelo fazendeiro, Jacques associa o momento vivido por ele

com a época do pai e é capaz de construir uma imagem desse passado. A narrativa

79 “Le plus souvent, si je me souviens, c’est que les autres m’incitent à me souvenir, que leur mémoire vient au secours de la mienne, que la mienne s’appuie sur la leur. Dans ces cas au moins, le rappel des souvenirs n’a rien de mystérieux. Il n’y a pas à chercher où ils sont, où ils se conservent, dans mon cerveau, ou dans quelque réduit de mon esprit où j’aurais seul accès, puisqu’ils me sont rappelés du dehors, et que les groupes dont je fais partie m’offrent à chaque instant les moyens de les reconstruire, à condition que je me tourne vers eux et que j’adopte au moins temporairement leurs façons de penser”. (HALBWACHS, 1994, p. 6).

76

também realiza tal aproximação de modo que as lembranças de outro tempo parecem

pertencer a Jacques. E assim, misturam presente e passado, impressões do grupo e

pessoais:

Jacques se retourna dans son fauteuil ; il dormait à moitié. Il voyait son père qu’il n’avait jamais vu, dont il ne connaissait même pas la taille, il le voyait sur ce quai de Bône parmi les émigrants, pendant que les palans descendaient les pauvres meubles qui avaient survécu au voyage et que les disputes éclataient à propos de ceux qui s’étaient perdus. Il était là, décidé, sombre, les dents serrées, et après tout n’était-ce pas la même route qu’il avait prise de Bône à Solferino, près de quarante ans plus tôt, à bord de la carriole, sous le même ciel d’automne ? Mais la route n’existait pas pour les émigrants, les femmes et les enfants entassés sur les prolonges de l’armée, les hommes à pied, coupant à vue de nez à travers la plaine marécageuse ou le maquis épineux, sous le regard hostile des Arabes groupés de loin en loin et se tenant à distance, accompagnés presque continuellement par la meute hurlante des chiens kabyles, jusqu’à ce qu’ils parviennent à la fin de la journée dans le même pays que son père quarante ans auparavant [...]80 (CAMUS, 1994, p. 174)

É devido ao aspecto social da memória que, segundo Halbwachs, o indivíduo

não possui lembranças de sua primeira infância, pois nesse período de sua vida ainda

não se percebe como um ser social, isto é, não identifica a pertença a um ou outro

grupo, e o “outro” se resume à figura materna. Assim, as narrativas de lembranças desse

período são claros exemplos da influência da narração do outro na construção da

memória e da potência da imaginação. Poderíamos pensar a infância aqui como a

origem, e ao considerarmos narrativas sobre a origem certamente nos depararemos com

a narrativa mítica que pretende, grosso modo, dar sentido a um momento sem memória,

do qual não há lembranças. Nesse sentido, vale pontuar o primeiro capítulo de Le

Premier homme, intitulado Les nomades, e que traz a narrativa do nascimento de

Jacques Cormery. Esse início do romance destoa do resto da narrativa na medida em

que cria uma esfera mítica que não é mantida na sequência da narração. Esse capítulo

não é datado, apresenta a narrativa de um nascimento, possui um conflito bem claro –

80 “Jacques virou-se em sua poltrona; estava meio dormindo. Via seu pai que nunca tinha visto, cuja altura nem mesmo sabia qual era, via-o nesse cais de Bône entre os emigrantes, enquanto os guindastes desciam os móveis pobres que tinham sobrevivido à viagem e explodiam discussões sobre os que tinham sido estragados. Ele estava lá, decidido, sombrio, trincando os dentes, e afinal de contas não tinha sido a mesma estrada que ele tomara de Bône a Solferino, quase quarenta anos antes, na carruagem, sob o mesmo céu de outono? Mas a estrada não existia para os emigrantes, as mulheres e crianças amontoadas em carros de munição do exército, os homens a pé, cortando imprecisamente a planície pantanosa ou o maquis espinhoso, sob o olhar hostil dos árabes agrupados de longe em longe e mantendo-se à distância, acompanhados quase continuamente pela matilha ululante dos cães de Cabília até que, no fim da jornada chegassem à mesma região à que seu pai tinha chegado quarenta anos antes [...]” (CAMUS, 1994, p. 168).

77

arrumar um lugar onde a mulher grávida pudesse dar à luz – e um desfecho vitorioso –

o nascimento do menino. O leitor é inserido na narrativa in media res e o início do texto

narra aspectos climáticos e geográficos encontrados no caminho das personagens, que

só aparecem posteriormente:

Au-dessus de la carriole qui roulait sur une route caillouteuse, de gros et épais nuages filaient vers l’est dans le crépuscule. Trois jours auparavant, ils s’étaient gonflés au-dessus de l’Atlantique, avaient attendu le vent d’ouest, puis s’étaient ébranlés, lentement d’abord et de plus en plus vite, avaient survolé les eaux phosphorescentes de l’automne, droit vers le continent, s’étaient effilochés aux crêtes marocaines, reformés en troupeaux sur les hauts plateaux d’Algérie, et maintenant, aux approches de la frontière tunisienne, essayaient de gagner la mer Tyrrhénienne pour s’y perdre. Après une course de milliers de kilomètres au-dessus de cette sorte d’île immense, défendue par la mer mouvante au nord et au sud par les flots figés des sables, passant sur ce pays sans nom à peine plus vite que ne l’avaient fait pendant des millénaires les empires et les peuples, leur élan s’exténuait et certains fondaient déjà en grosses et rares gouttes de pluie qui commençaient de résonner sur la capote de toile au-dessus des quatre voyageurs.81 (CAMUS, 1994, p. 11).

Jacques Cormery nasce entre um casal de nômades – les nomades – seu

nascimento não é marcado no tempo, visto que não há qualquer referência temporal, e

nem socialmente, quer dizer, ele não nasce em meio a uma comunidade, mas, ao

contrário, isolado. Nesse sentido, poderíamos dizer que o menino não possui um

nascimento histórico, mas antes, relacionado com o cosmos, ligado à terra. Por isso,

aponta Chabot em artigo sobre a memória dos pobres: “Il [Jacques C.] ne naît pas tout

de suite ‘premier homme’, il le deviendra, mais il est d’abord fils des nomades:

naissance d’un errant déraciné”82 (1999, p. 67). Ou seja, sua origem histórica deverá ser

por ele construída, posto que seu nascimento o liga ao universo como um todo sem

inseri-lo em uma narrativa histórica.

81 “Acima da carruagem, que rodava numa estrada pedregosa, grandes e espessas nuvens corriam para o leste na hora do crepúsculo. Três dias antes, elas tinham inchado sobre o Atlântico, esperado o vento oeste, depois se deslocaram, a princípio lentamente e depois cada vez mais depressa, tinham sobrevoado as águas fosforescentes do outono direto para o continente, se desfiado sobre as escarpas marroquinas, transformando-se em rebanho sobre os altos platôs da Argélia, e agora, nas proximidades da fronteira tunisiana, tentavam alcançar o mar Tirreno para nele se perderem. Depois de um percurso de milhares de quilômetros acima dessa espécie de ilha imensa, protegida pelo mar movediço, ao norte e ao sul, pelas ondas imóveis das areias, passando por essa região sem nome apenas um pouco mais rápido do que tinham feito, durante milênios, os impérios e os povos, seu impulso esgotava-se e algumas já se fundiam em grossas e raras gotas de chuva que começavam a ressoar sobre a capota de lona sobre os quatro viajantes”. (CAMUS, 1994, p. 5). 82 “Ele [Jacques] não nasce ‘primeiro homem’ imediatamente, ele vai se tornar, mas ele é, primeiramente, filho de nômades: nascimento de um errante sem raízes”.

78

E é por isso que a narração do outro assume importância central em Le Premier

homme. A narrativa do nascimento só poderia ser conhecida por outro que não o

nascituro, por algum familiar. E aqui ressaltamos que o primeiro capítulo é introduzido

pela palavra “intercesseur” seguida do nome próprio “Vve. Camus”. A ela é feita uma

dedicatória: “À toi qui ne pourras jamais lire ce livre”83 (CAMUS, 1994, p. 11), já que

tanto a mãe de Camus como a de Jacques não podiam ler, eram analfabetas. É claro que

o sobrenome Camus, nesse contexto, dialoga com a questão da autobiografia

anteriormente discutida. No entanto, gostaríamos de nos deter aqui na palavra

“intercesseur”, que remete a alguém que “intercede” pelo outro, que fala por ele. Ou

seja, na impossibilidade de contar sua origem natalícia, outra pessoa o fará, já que pode

dessa história se lembrar.

Esse primeiro capítulo estabelece uma oposição com seu subsequente intitulado

“Saint-Brieuc”, que se inicia da seguinte maneira: “Quarante ans plus tard, un homme,

dans le couloir du train de Saint-Brieuc, regardait d’un air désapprobateur défiler, sous

le pâle soleil d’un après-midi de printemps, ce pays étroit et plat couvert de villages et

de maisons laides, qui s’étend de Paris à la Manche”84 (CAMUS, 1994, p. 25).

Primeiramente, a diferença se dá em termos temporais, já que há aqui uma clara

referência temporal (“quarante ans après la naissance”), mas também porque desde o

título já situa o espaço (Saint-Brieuc, France) – e também, pois a personagem é

introduzida logo na primeira frase. A dessemelhança entre eles se estende igualmente

para a idade do protagonista: no primeiro capítulo há o bebê Jacques, que acaba de

chegar ao mundo, e no outro o adulto Cormery, que chega a Saint-Brieuc. A oposição

entre os capítulos expressa um conflito que aparece em outros momentos da narrativa:

de um lado, a falta de referências e lembranças, e, de outro, os dados temporais,

espaciais, sociais que possibilitam a construção histórica.

Esse contraste faz com que Jacques Chabot defenda a presença de dois mundos

simbolizados respectivamente pelas “tombes de Mondovi” e pelo “cemitière de Saint-

Brieuc” (p. 69). O primeiro representa a ausência de conservação, de memória, já que

Jacques Cormery encontra as sepulturas de um cemitério em Mondovi, cidade onde 83 “A você, que não poderá jamais ler esse livro”. (CAMUS, 1994, p. 5). 84 “Quarenta anos mais tarde, no corredor do trem de Saint-Brieuc, um homem olhava passar, com ar desaprovador, sob o sol pálido de uma tarde de primavera, essa região limitada e plana, coberta de vilarejos e casas feias que se estende de Paris à Mancha.” (CAMUS, 1994, p. 21).

79

nascera, pouco conservadas e sem cuidados. E o cemitério de Saint-Brieuc, ao contrário,

encena a memória histórica, pois é nele que a personagem encontrará documento escrito

sobre o passado, como o registro de nomes dos soldados que serviram a França na

guerra. Além disso, ali, as sepulturas ainda são organizadas e há um funcionário para

auxiliar os visitantes que desejem se informar sobre antepassados que ali foram

enterrados. Esses dois mundos reconhecidos por Chabot evidenciam, de certa forma, as

duas percepções temporais expostas no capítulo 1 desta dissertação: a concepção do

tempo de forma linear, que resultaria em uma história cumulativa, em oposição a uma

concepção cíclica, na qual a repetição é mais valorizada do que a conservação. Porém,

para Chabot a diferença entre os mundos é atribuída no romance à pobreza. E seria este

elemento a influenciar na formação da memória. Tal ponto de vista é exposto, por

exemplo, logo após o diálogo entre Jacques Cormery e sua mãe no qual ele não

consegue quase nenhuma informação sobre seu pai, já que a mãe não é capaz de se

recordar com precisão.

La mémoire des pauvres déjà est moins nourrie que celle des riches, elle a moins de repères dans l’espace puisqu’ils quittent rarement le lieu où ils vivent, moins de repères aussi dans le temps d’une vie uniforme et grise. Bien sûr, il y a la mémoire du coeur dont on dit qu’elle est la plus sûre, mais le coeur s’use à peine et au travail, il oublie plus vite sous le poids des fatigues. Le temps perdu ne se retrouve que chez les riches. Pour les pauvres, il marque seulement les traces vagues du chemin de la mort. (CAMUS, 1994, p. 79).85

A memória, sendo construída pelas narrativas dos outros e pelas lembranças

evocadas nos lugares revisitados, é menos abundante em um ambiente no qual impera o

silêncio e onde os lugares são menos conservados e visitados, como as sepulturas vistas

por Jacques, no cemitério de Mondovi assim descrito:

D’un côté, les constructions neuves et hideuses de la dernière mode funéraire, enrichie à la foire aux puces et aux perles où vient se perdre la piété contemporaine. De l’autre, dans les vieux cyprès, parmi les allées couvertes d’aiguilles de pin et de pommes de cyprès, ou bien près des murs humides au pied desquels poussait l’oxalis et ses fleurs jaunes, de vieilles dalles presque confondues avec la terre étaient devenues illisibles. Des foules entières étaient venues ici depuis plus d’un siècle, avaient labouré, creusé des sillons, de plus en plus profonds en certains endroits, en certains autres de plus en plus tremblés jusqu’à ce qu’une terre légère les recouvre et la région retournait alors aux végétations sauvages, et ils avaient procrée puis

85 “A memória dos pobres já é por natureza menos alimentada que a dos ricos, tem menos pontos de referência no espaço, considerando que eles raramente saem do lugar onde vivem, e tem também menos pontos de referência no tempo de uma vida uniforme e sem cor. É claro que existe a memória do coração, que dizem ser a mais segura, mas o coração se desgasta com as dificuldades e o trabalho, esquece mais depressa sob o peso do cansaço. Só os ricos podem reencontrar o tempo perdido. Para os pobres, o tempo marca apenas os vagos vestígios do caminho da morte”. (CAMUS, 1994, p.74-75)

80

disparu. Et ainsi de leurs fils. Et les fils et les petits-fils de ceux-ci s’étaient trouvés sur cette terre comme lui-même s’y était trouvé, sans passé, sans morale, sans leçon, sans religion [...]86 (CAMUS, 1994, p. 178).

Assim, considerando que a recordação é constitutivamente social, como

defendeu Halbwachs, ou seja, que existe uma lógica de percepção do mundo nos grupos

sociais e que esta determina aquilo de que o indivíduo vai se lembrar, é possível

compreender como Jacques Cormery descobriu uma multidão. No entanto, poderíamos

nos perguntar até que ponto tal tese não ignoraria a consciência do indivíduo. Quer

dizer, onde estaria o indivíduo nesse quadro exposto por Halbwachs, ou, dizendo de

outra forma, como considerar também a interioridade do sujeito? Essa pergunta nos é

cara, pois em Le Premier homme, principalmente na segunda parte do manuscrito, há a

decisão de voltar-se para si mesmo, para a identidade de um só homem; o que justifica

as reflexões sobre a memória individual e a infância na seção anterior.

Paul Ricoeur reflete sobre a polaridade entre memória individual e coletiva em A

memória, a história e o esquecimento. O filósofo pontua que o centro da questão

encontra-se na atribuição da lembrança. Para ele, os fenômenos psíquicos em geral e os

fenômenos mnemônicos em particular podem ser tomados como afecções ou ações, e,

desse modo, podem ser vistos como predicados atribuídos a cada indivíduo, aos outros,

ou até ser considerados fora de qualquer atribuição explícita – “cabe a esses, já que são

atribuídos a si mesmo, poder ser atribuídos a um outro que si” (RICOEUR, 2007, p.

135). E, quando compreendidos assim:

É dessa forma que eles [fenômenos psíquicos] também entram no thesaurus dos significados psíquicos que a literatura explora, ora na terceira pessoa do romance em ele/ela, ora na primeira pessoa da autobiografia (“durante muito tempo costumava deitar-me cedo”), e até mesmo na segunda pessoa da invocação ou da imploração (“Senhor, lembra-te de nós”). A mesma suspensão de atribuição constitui a condição da atribuição dos fenômenos psíquicos a personagens fictícios. Essa aptidão dos predicados psíquicos de serem compreendidos em si mesmos na suspensão de toda atribuição explícita constitui o que chamamos de o “psíquico”. (RICOEUR, 2007, p. 136).

86 “De um lado, as construções novas e horrorosas da última moda funerária, enriquecida nas feiras de bugigangas em que se perde a religiosidade contemporânea. Do outro, entre os velhos cipestres, entre as aleias cobertas de agulhas de pinheiro e sementes de cipestre, ou perto dos muros úmidos ao pé dos quais cresciaa azedeira e suas flores amarelas, velhas lápides quase se confundindo com a terra tinham-se tornado ilegíveis. Multidões inteiras vinham ali havia mais de um século, tinham trabalhado, cavado sulcos, cada vez mais profundos em certos lugares, em outros cada vez mais ondulados, até uma terra leve cobri-los e o lugar voltar então à vegetação selvagem, e essas pessoas tinham procriado e depois desaparecido. Assim como seus filhos. E os filhos e netos dessas pessoas tinham-se encontrado nessa terra como ele próprio tinha se encontrado, sem passado, sem moral, sem lição, sem religião [...]” (CAMUS, 1994, p. 172).

81

Assim, por exemplo, podemos falar de uma lembrança sem que se diga quem é o

sujeito da rememoração. No entanto, Ricoeur observa que os estudos da chamada

“tradição interior” ganharam grande espaço nos estudos da memória devido à própria

linguagem, que tende a inserir a lembrança no domínio individual através de

possessivos – como “meu” – e da forma pronominal dos verbos de memória – como

“lembrar-se, recordar-se”. Nesse sentido, “lembrar-se de algo é lembrar-se de si”

(RICOEUR, 2007, p. 136). Por outro lado, ao considerarmos a suspensão da atribuição

dos predicados de memória, as lembranças se descolam do indivíduo e podemos atribuí-

las a inúmeros sujeitos, a uma multiplicidade, como uma comunidade, por exemplo.

E pensar a lembrança como predicado, isto é, sem considerar a quem ela deve

ser atribuída, significa concebê-la como narração. Nesse caso, teríamos aquilo que

Ricoeur chamou de “memória declarada”, posto que passa pela língua e que esta

pertence a um grupo.

Em sua fase declarativa, a memória entra na região da linguagem: a lembrança dita, pronunciada, já é uma espécie de discurso que o sujeito trava consigo mesmo. Ora, o pronunciado desse discurso costuma ocorrer na língua comum, a língua materna, da qual é preciso dizer que é a língua dos outros. (RICOEUR, 2007, p. 138).

Nesse sentido, as memórias individual e social se aproximam a partir do

momento em que um indivíduo narra, através da língua, sua lembrança e a torna

conhecida da comunidade, torna-a pública. E ao narrá-la ele se utiliza do vocabulário e

das estruturas de uma língua, apropria-se de ideias e concepções compartilhadas pelo

grupo que reconhece ser o seu, aquele com cujos membros interage, recebendo

influências deles. E, por isso, Ricoeur sugere um lugar intermediário entre os pólos da

memória individual e da memória coletiva, que seria o plano que diz respeito aos

próximos, às pessoas com quem temos relações mais pessoais e que nos influenciam

mais diretamente. Ele assim define os próximos: “essas pessoas que contam para nós e

para as quais contamos, [que] estão situadas numa faixa de variação das distâncias na

relação entre o si e os outros” (RICOEUR, 2007, p. 141), e que compartilham tempo e

espaço conosco.

Dessa forma, ao evocar as lembranças de infância, as lembranças familiares de

Jacques Cormery, a narração estende-se para seus próximos, para seus contemporâneos,

já que entendemos que o falar do si atinge também o próximo e o outro. As lembranças

do liceu, por exemplo, evidenciam não apenas a situação de Jacques nesse ambiente,

82

mas também a circunstância de seus colegas e a conjuntura da escola na cidade. O

menino tinha dois amigos no liceu, seus “próximos”, podemos dizer: Pierre, morador do

mesmo bairro, com quem ia para a escola e se identificava pela situação econômica e o

percurso escolar; e Didier, que o atraia pelo exotismo, pois entre ambos identificamos

diversas diferenças, indo de aspectos financeiros à maneira de se relacionarem com o

seu passado e com sua família.

C’est avec Didier que Jacques comprit ce qu’était une famille française moyenne. Son ami avait en France une maison de famille où il retournait aux vacances, dont il parlait ou écrivait sans cesse à Jacques, maison qui avait un grenier plein de vieilles malles, où l’on conservait l’histoire de ses grands-parents et des arrière-grands-parents, d’un aïeul aussi qui avait été marin à Trafalgar, et cette longue histoire, vivante dans son imagination, lui fournissait aussi des exemples et de préceptes pour la conduire de tous les jours. (CAMUS, 1994, p. 191)87

Didier tem uma rica memória de sua família, enriquecida com fotos, cartas e histórias

dos ancestrais, a personagem tem acesso à sua genealogia. Ao passo que Jacques e

Pierre não possuem a mesma experiência, não estão acostumados com o conceito de

nação e nem de herança familiar. Posteriormente, quando já adulto, após ter vivido em

uma sociedade em que a memória é valorizada, Cormery procurará reconstruir a história

de sua família a partir do olhar para a sua própria juventude, com o objetivo de conhecer

o passado e resgatar rastros. No entanto, a tarefa não será nada fácil, visto que “Le

temps perdu ne se retrouve que chez les riches”, quer dizer, à sua família pobre não é

possível reconstituir sua genealogia. O escritor, igualmente, evidenciava o propósito de

construir uma história da comunidade franco-argelina que, acreditava ele, corria o

perigo de ser esquecida.

Jacques et Pierre aussi, quoique à un moindre degré, se sentait d’une autre espèce, sans passé, ni maison de famille, ni grenier bourré des lettres et de photos, citoyens théoriques d’une nation imprécise où la neige couvrait les toits alors qu’eux-mêmes grandissaient sous un soleil fixe et sauvage (...) (CAMUS, 1994, p. 192)88

87 “Foi com Didier que Jacques compreendeu o que era uma família de classe média francesa. Seu amigo tinha na França uma casa que era um bem de família e para onde ele ia nas férias, sobre a qual falava ou escrevia sem parar a Jacques, casa esta que tinha um sótão cheio de velhas malas onde se guardava as cartas da família, lembranças, fotografias. Ele conhecia a história de seus avós e bisavós, também a de um antepassado que tinha sido marinheiro em Trafalgar, e essa longa história vivia em sua imaginação, fornecia-lhe ainda exemplos e preceitos de conduta diária”. (CAMUS, 1994, p. 184). 88 “Jacques, e Pierre também, embora menos, sentia-se pertencente a uma outra espécie, sem passado nem casa de família, sem sótão entulhado de cartas de fotografias, cidadãos teóricos de uma nação imprecisa onde a neve cobria os telhados, enquanto eles próprios cresciam sob um sol fixo e selvagem (...)” (CAMUS, 1994, p. 185).

83

O ambiente do outro, os termos do outro, como a neve, também permeiam as

lembranças de Jacques, por terem sido introduzidos no ambiente escolar no qual esteve

presente. Nesse sentido, a escola metropolitana era um forte elemento de manutenção da

cultura do colonizador na colônia justamente por introduzir na memória dos colonos

objetos que faziam parte do cotidiano da metrópole e que talvez fossem por eles

desconhecidos, como é o caso da neve.

E através do cotidiano da infância, revisitado principalmente na segunda parte de

Le Premier homme, evidencia-se a multiplicidade de culturas e pessoas que circulavam

na cidade por onde Jacques andava. O trajeto da casa à escola é descrito de maneira

minuciosa e revela contrastes e concordâncias que se estabeleciam no meio social

daquela cidade.

À chaque arrêt, le tram se vidait d’une partie de son chargement d’ouvriers arabes et français, se chargeait d’une clientèle mieux habillée à mesure qu’on allait vers le centre, repartait au timbre et parcourait ainsi d’un bout à l’autre tout l’arc de cercle autour duquel s’allongeait la ville (...) Dans son milieu, la rue Bab-Azoum s’élargissait en perdant ses arcades d’un seul côté au profit de l’église Sainte-Victoire. Cette petite église occupait l’emplacement d’une ancienne mosquée. (...) La rue Bab-Azoum débouchait pour finir dans une grande place où, à gauche et à droite, s’élevaient face à face le lycée et la caserne. Le lycée tournait le dos à la ville arabe, dont les rues escarpées et humides commençaient de grimper le long de la colline. La caserne tournait le dos à la mer. Au-delà du lycée, commençait le jardin Marengo ; au-delà de la caserne, le quartier pauvre et à demi espagnol de Bab-el-Oued. (CAMUS, 1994, pp. 196,199,202).89

No mesmo ambiente convivem árabes, franceses, espanhóis, cristãos,

muçulmanos, pobres e ricos, evidenciando uma sociedade complexa sem que isso seja

dito explicitamente. É a separação dos bairros em grupos de diferentes religiões e

condições financeiras, a proximidade da rua onde ficam os comerciantes árabes com a

igreja onde antes da colonização havia uma mesquita, que encena a pluralidade ali

estabelecida. A partir da lembrança do caminho percorrido pelo menino para ir ao

ginásio, a multiplicidade da cidade é declarada.

89 “Em cada parada , o bonde esvaziava uma parte do seu carregamento de operários árabes e franceses, enchia-se de uma clientela mais bem vestida à medida que ia na direção do centro, arrancava de novo ao som da sineta e percorria assim de uma ponta à outra todo o semicírculo em torno do qual a cidade (...) No seu meio, a rua Bab-Azoun alargava-se, perdendo suas arcadas de um dos lados para dar lugar à igreja Sainte-Victoire. Essa pequena igreja ocupava o lugar de uma antiga mesquita. (...) A rua Bab-Azoun desembocava e terminava numa grande praça onde, à esquerda e à direita, erguiam-se frente à frente o ginásio e o quartel. O ginásio dava fundos para a cidade árabe, cujas ruas íngremes e úmidas começavam a subir colina acima. O quartel dava fundos para o mar. Passando-se o ginásio começava o jardim Marengo; passando-se o quartel, o bairro pobre e meio espanhol de Bab-el Oued”. (CAMUS, 1994, pp. 189,192,195).

84

No entanto, talvez seja importante assinalar que, para Jacques, a distância que

percebia entre ele e os colegas do ginásio não era necessariamente negativa. A escola

foi para ele mais um lugar de encontros do que de conflitos, mesmo que inicialmente

tenha se sentindo desconfortável por vir do bairro pobre de Belcourt para uma escola

onde estudavam jovens mais ricos. No espaço escolar, a condição social ou financeira

não representava superioridade dos outros alunos sobre Jacques e Pierre, estes eram

respeitados:

Si bien que leur journée finie, les deux enfants [Jacques e Pierre] sentaient leur séparation à la porte même du lycée, ou, à peine plus loin, sur la place du Gouvernement, lorsque, quittant le groupe joyeux de leurs camarades, ils se dirigaient vers les voitures rouges à destination des quartiers les plus pauvres. Et c’était bien leur séparation qu’ils sentaient, non leur infériorité. Ils étaient d’ailleurs, voilà tout. (...) La formation solide que les deux enfants avaient reçue à la communale leur avait donné une supériorité qui, dès la sixième, les plaça dans le peloton de tête. (CAMUS, 1994, p. 204)90

A complexidade social advinda da variedade de povos que a formavam era um

dos argumentos de Camus para explicar a dificuldade em tornar o país independente,

como o queriam os nacionalistas. O narrador não discute a questão política da década de

1950, no entanto, a memória de Jacques assinala elementos da posição do autor

argelino, como neste caso, no qual a própria arquitetura e dinâmica da cidade revelam as

diversas influências responsáveis pela formação da população argelina, o que aponta

para a dificuldade em governar tal sociedade. O problema da governabilidade em um

ambiente altamente diversificado foi sinalizado por Camus durante o período em que

eclodiu o conflito de independência na Argélia, como relata Vircondelet na biografia

sobre Camus: “Aquele ano, Camus definiu claramente o problema e os princípios de sua

conduta vindoura. Ele nunca mais voltará atrás a respeito dessa posição: ambiguidade

da reivindicação árabe, legitimidade parcial do combate, ambiguidade da reação

francesa”.91 Porém, a convicção do renascimento da Argélia após o período de conflitos

e o fato de não vislumbrar a existência de uma nação argelina diante de uma população

90 “De maneira que, quando seu dia terminava, os dois meninos sentissem a separação na própria porta do ginásio ou um pouco mais longe, na praça do Governo, quando, deixando o grupo alegre de seus colegas, dirigiam-se para os bondes vermelhos que se destinavam aos bairros mais pobres. E era mesmo a separação o que sentiam, não sua inferioridade. Moravam em outro lugar, nada mais que isso. (...) A sólida formação que as duas crianças tinham recebido na escola comunal tinha-lhes dado uma superioridade que, desde o sexto ano, colocou-os no pelotão da frente”. (CAMUS, 1994, p. 197-198). 91 “Cette année-là [1958], Camus a clairement défini le problème et les principes de sa conduite à venir. Il ne reviendra jamais sur sa position : ambigüité de la revendication arabe, légitimité partielle du combat, ambigüité de la réaction française”. (VIRCONDELET, 2013, p. 58).

85

tão heterogênea – “Não há, a seus olhos, nação argelina”92 mobilizam a escrita da

narrativa a partir das lembranças de um grupo pequeno, da família, dos vizinhos. Assim,

vislumbra a possibilidade de que tais lembranças representassem o outro e pudessem

contribuir para a elaboração de uma nova história do povo argelino. “Quando todos o

pressionam a tomar partido, ele restabelece ao longo das páginas o que acredita ser a

verdadeira história de seu país”.93

Dessa forma, também na primeira parte do manuscrito identificamos

acontecimentos históricos que permeiam as lembranças sobre a família de Jacques, seja

a guerra no Marrocos em 1905, na qual o pai e o diretor da escola haviam lutado, ou a

ocupação da Argélia em 1848, época em que a avó se mudara para a região onde

morava a família. Em um diálogo com a mãe, Cormery se lembra de ter escutado do

diretor sobre o passado do pai na guerra:

C’était vrai. Il avait oublié. 1905, son père avait vingt ans. Il avait fait, comme on dit, du service actif contre les Marocains. Jacques se souvenait de ce que lui avait dit le directeur de son école lorsqu’il l’avait rencontré quelques années auparavant dans les rues d’Alger. (...) Quand il réfléchissait, Jacques se rendait compte que c’était de ce vieil instituteur perdu maintenant de vue qu’il avait appris le plus de choses sur son père. (CAMUS, 1994, pp. 65,67).94

É através da memória declarada desse antigo professor, um dos personagens mais

presentes na vida do menino depois daqueles que povoavam o ambiente familiar, que

Jacques Cormery pode rememorar, ele mesmo, outros elementos da vida de seu pai e de

seu grupo social. A sequência narrativa continua com uma espécie de história familiar,

tendo a mãe como ponto de origem. As referências históricas advêm da memória de

Jacques, que preenche as lacunas do discurso materno, mas guarda o tom de ignorância

da mãe com suas comparações e ideias inocentes: Paris é uma cidade desconhecida, os

inimigos alemães são caracterizados com adjetivos infantis “malvados” e “cruéis”.

Le reste, il fallait l’imaginer. Non pas à travers ce que pouvait lui dire sa mère, qui ne pouvait même pas avoir l’idée de l’histoire ni de la géographie, qui savait seulement qu’elle vivait sur la terre près de la mer, que la France était de l’autre côté de cette mer qu’elle non plus n’avait jamais parcourue, la France étant d’ailleurs un lieu obscur perdu dans une nuit indécise où l’on abordait par un port

92 “il n’y a pas, à ses yeux, de nation algérienne”. (VIRCONDELET, 2013, p.58). 93 “Quand tous le pressent de prendre parti, il rétablit au fils des pages ce qu’il croit être la vraie histoire de son pays” (VIRCONDELET, 2013, p. 57). 94 “É verdade. Tinha esquecido. Em 1905, seu pai tinha vinte anos. Tinha prestado, como se diz, serviço militar ativo contra os marroquinos. Jacques se lembrava do que dissera o diretor da escola quando o encontrara alguns anos antes nas ruas de Argel. (...) Enquanto refletia, Jacques se dava conta de que fora seu velho professor quem lhe contara mais coisas sobre o seu pai”. (CAMUS, 1994, p. 61-62).

86

appelé Marseille qu’elle imaginait comme le port d’Alger, où brillait une ville qu’on disait très belle et qui s’appelait Paris, où enfin se trouvait une région appelée l’Alsace dont venaient les parents de son mari qui avaient fui, il y avait longtemps de cela, devant des ennemis appelés Allemands pour s’installer en Algérie, région qu’il fallait reprendre aux mêmes ennemis, lesquels avaient toujours été méchants et cruels, particulièrement avec les Français et sans raison aucune. Les Français étaient toujours obligés de se défendre contre ces hommes querelleurs et implacables. C’était là, avec l’Espagne qu’elle ne pouvait situer mais qui, en tout cas, n’était pas loin, dont ses parents, Mahonnais, étaient partis il y avait aussi longtemps que les parents de son mari pour venir en Algérie (...). (CAMUS, 1994, p. 68).95

O discurso da mãe é retomado nesse trecho pelo narrador e evidencia como ela

se constitui enquanto colonizador de maneira inocente, através de imagens infantis e

simplistas, como o bom versus o mal, a integridade do povo francês, a maldade dos

inimigos. Ao retomar os nomes usados pelos colonizadores na fala materna, instaura-se

o efeito irônico em relação a essa história, que é repetida sem ser de fato compreendida.

Mesmo assim, a história familiar da mãe, que constitui sua memória individual,

encontra-se com aquela da França e da Argélia, que ela escuta. E é através dessa

lembrança e da manutenção de seu ponto de vista sobre a história da comunidade

franco-argelina que o romance propõe uma visita à memória coletiva. O mesmo

acontecerá com a avó, com o fazendeiro e o médico que moram na região de Mondovi.

São essas pessoas, os próximos de Jacques Cormery, que permitirão que a história

franco-argelina seja recontada de outra perspectiva.

95 “O resto era preciso imaginar. Não através do que poderia lhe dizer a sua mãe, que nem mesmo tinha noção de história e geografia, que sabia apenas que vivia numa terra perto do mar, que a França era do outro lado desse mar, o qual ela também nunca tinha percorrido, sendo a França, aliás, um lugar obscuro, perdido numa noite indecisa, a que se chegava por um porto chamado Marselha, que ela imaginava como o porto de Argel, onde brilhava uma cidade que diziam ser muito bela e que se chamava Paris onde, finalmente, se encontrava uma região chamada Alsácia, de onde vinham os pais de seu marido, que tinham fugido há muito tempo de inimigos chamados alemães para se instalar na Argélia, região que precisava ser retomada dos mesmos inimigos, que sempre tinham sido malvados e cruéis, especialmente com os franceses, e sem nenhuma razão. Os franceses eram sempre obrigados a se defender desses homens rixentos e implacáveis. Tinha sido de lá, assim como da Espanha, que ela não podia localizar mas que em todo caso não era longe, que seus pais, de Mahón, partiram havia quase tanto tempo quanto os pais de seu marido para vir para a Argélia (...)” (CAMUS, 1994, p. 63-64).

87

CONCLUSÃO

O objetivo desta dissertação foi refletir sobre a relação estabelecida entre ficção,

história e memória dentro do campo literário a partir do romance Le Premier homme, de

Albert Camus. Como entrada de leitura, consideramos ser a obra uma tentativa de

resposta do escritor para o contexto político nos anos de 1950, momento tenso nas

relações entre a Argélia e a França e período de silêncio público para Camus. Dessa

forma, ao longo da pesquisa, foram levantadas discussões teóricas centrais: a relação

construída na literatura entre ficção e realidade, o distanciamento e a aproximação entre

narrativas ficcionais e narrativas históricas, a situação dos gêneros textuais de escrita de

si frente ao compromisso com a veracidade, com o conteúdo referencial e com a ficção,

e a importância da memória tanto como material criativo quanto como fonte histórica

para o conhecimento do indivíduo e da comunidade.

Apesar de ser considerado um escritor do cânone da literatura francesa (o que

provoca polêmicas), Albert Camus sempre tratou da Argélia na totalidade de sua obra

jornalística e literária. Devido a essa característica de sua obra, consideramos a

importância do período da infância até a juventude no qual o escritor viveu em solo

argelino. A constante referência a esse espaço faz com que a memória seja um elemento

presente na obra do autor argelino, já que ele discorreu frequentemente sobre assuntos

que lhe diziam respeito pessoalmente. Além disso, o tema da memória é abordado com

certa frequência em seus textos literários, como mostrou Maurice Weyembergh na obra

Albert Camus ou la mémoire des origines, citada nesta dissertação. Weyembergh não

chega a analisar o romance Le Premier homme por esse viés memorialístico. Foi

justamente isso o que pretendemos fazer neste trabalho de mestrado, levando em

consideração também o contexto de escrita do romance, pois uma vez que se trata de um

manuscrito inacabado, pareceu-nos relevante elencar possíveis problemas, motivações e

situações pelas quais passava o escritor. Essa decisão nos enveredou no caminho da

reflexão sobre escrita de si, e, mais especialmente, sobre o romance autobiográfico, já

que nos deparamos com análises que aproximavam Camus de Cormery. No entanto,

seria muito interessante comparar as diferentes abordagens dadas pelo escritor no trato

da memória. No romance La chute, por exemplo, o monólogo de um narrador em

primeira pessoa que confessa acontecimentos de sua vida passada estabelece com a

88

memória uma relação de ordem diversa daquela que identificamos em Le Premier

homme. Diferença esta que se dá, sobretudo e, mais visivelmente, no plano enunciativo,

já que em Le Premier homme tem-se um narrador em terceira pessoa, mesmo que por

vezes ele apareça muito próximo do protagonista. Porém, os limites de tempo que nos

impõe a pesquisa de mestrado não permitiu que realizássemos tal comparação como

almejávamos no antiprojeto. Essa reflexão, que não nos parece menos relevante, foi

postergada para tempos futuros.

Duas perspectivas perpassaram a análise proposta neste trabalho: a primeira, diz

respeito à dimensão referencial do romance, à construção da personagem enquanto

“primeiro homem” de sua história ao longo da narrativa. A segunda volta-se para a

estrutura do romance, considerando sua divisão em duas partes que estabelecem uma

relação diferente com o tempo e a organização narrativa. Nos dois capítulos que

constituem esta dissertação, discorremos sobre os temas selecionados guardando esses

dois olhares sobre a obra.

O “primeiro homem” é fruto de uma comunidade na qual impera o silêncio, na

qual o protagonista, Jacques Cormery, reconhece a ausência de rastros do passado, visto

que não há a presença de uma narrativa histórica clássica, centrada em registros escritos,

e nem uma tradição oral que atravesse as gerações. Por esse motivo, Cormery assume a

identidade de “primeiro homem” de sua história, por não ter encontrado uma história

anterior a ele quando buscava conhecer o passado de seu pai. Ao declarar-se “primeiro”

desiste de procurar traços sobre a vida de seu pai e volta-se para suas próprias

lembranças de infância e adolescência. Nesse sentido, a infância pode ser vista como

fase fundadora e perene na vida de um indivíduo, posto que este se constrói em

referência a esse momento. Assim, retomar a infância recupera o passado ao mesmo

tempo em que estabelece uma identidade presente.

O reconhecimento de uma identidade construída no seio de uma comunidade faz

com que o protagonista considere igualmente os indivíduos que estão ao seu redor e que

influenciaram a sua identificação como “primeiro homem”. As histórias da época de

Jacques menino são repletas de referências aos membros de sua família, aos amigos e

professores da escola, aos vizinhos. Todas essas memórias permitem a construção de

um cenário próprio daquela comunidade. Dessa forma, é através das lembranças que se

89

delineia uma história – antes inexistente – baseada na memória individual e coletiva.

Assim, é possível que a comunidade franco-argelina saia do anonimato, ultrapasse o

silêncio e seja inserida em uma narrativa histórica.

O silêncio e o anonimato que caracterizam o grupo do qual emerge o “primeiro

homem” se contrapõem à escrita e à história associadas à sociedade metropolitana.

Esses pares marcam dois mundos diferentes no romance e têm o ápice de suas

diferenças identificado nas diversas formas de perceber a organização do tempo e da

história. Para o primeiro mundo, identificamos o tempo cíclico e a história “repetitiva”,

no sentido de que sempre pode ser reinaugurada, existe até mesmo a expectativa de

retomada, de recomeço. Daí a ideia de inaugurar sua própria história como “primeiro

homem”. O segundo mundo, aquele ligado à França, é marcado pela ideia de tempo

linear e por uma narrativa histórica cumulativa, como procuramos refletir a partir da

obra de Lévi-Strauss –, por isso, – a relevância que possuem fontes e documentos

escritos. Jacques Cormery, por estar entre a Argélia e a França, concentra as

perspectivas de ambos os “mundos”. E, portanto, procura traçar uma história não a

partir de registros, mas através da memória – a sua e a de seu grupo.

A estrutura da obra também evidencia essas duas perspectivas e sinaliza a

mudança de postura de Jacques Cormery ao passar da primeira parte do romance para a

segunda. Na primeira parte, observamos movimentação no tempo e no espaço: Jacques

percorre diversos ambientes em busca de rastros sobre o pai, e há idas e vindas entre o

tempo passado e o presente. Já na segunda parte do romance, a narrativa assume

estrutura mais linear e segue quase cronologicamente a trajetória da infância de Jacques

através de suas lembranças. Tal mudança é significativa, pois é operada justamente

quando o protagonista desiste de sua busca pelo pai e volta a sua atenção para a sua

própria vida.

O acesso à memória dá-se, frequentemente, em narrativas de escrita de si. Os

estudos teóricos empreendidos por Lejeune, Colonna e outros que se dedicaram,

especialmente, às narrativas autobiográficas nos permitiram entender o romance

camusiano em questão dentro do panorama de gêneros textuais desse tipo e, assim,

melhor identificar o papel que possui a memória nesse cenário. Para a nossa análise, o

conceito de paratexto de Gérard Genette foi importante já que sua descrição,

90

considerando fotografia, cartas, notas e rascunhos, anexados ao texto principal, permitiu

justificar a analogia usualmente traçada entre personagem e autor. Esta ocorre,

justamente, por meio dos elementos do paratexto e não por aqueles da própria narrativa.

Considerando tal aproximação, entendemos que o romance Le Premier homme,

em cujo manuscrito Camus começou a trabalhar no final da década de 1950, aponta uma

perspectiva mais complexa para os conflitos então estabelecidos entre a Argélia e a

França, assinalando a grande diversidade de culturas que viviam no mesmo território.

Além disso, e, principalmente, constrói uma outra história a partir das lembranças

pessoais e compartilhadas pela comunidade. História essa que, talvez, fosse ignorada na

metrópole e desconhecida de nacionalistas argelinos da época. Narrativa que teve como

principais sujeitos os europeus que partiram para outro continente com uma promessa

pela qual ficaram muito tempo esperando. Nesse sentido, na literatura, a memória se faz

história e possibilita a saída do silêncio e do consequente anonimato.

91

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