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1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa Elementos para a reavaliação das funções das línguas no processo de construção das nacionalidades Jorge Francisco Pereira Paulo Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos) Orientador: Prof. Doutor Pierre François Georges Guisan. Rio de Janeiro Janeiro de 2012

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

Elementos para a reavaliação das funções das línguas no processo

de construção das nacionalidades

Jorge Francisco Pereira Paulo

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obtenção do Título de Mestre em

Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos

Neolatinos)

Orientador: Prof. Doutor Pierre François Georges

Guisan.

Rio de Janeiro

Janeiro de 2012

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Elementos para a reavaliação das funções das línguas no processo de

construção das nacionalidades Jorge Francisco Pereira Paulo

Orientador: Prof. Doutor Pierre François Georges Guisan.

Dissertação de mestrado submetida ao programa de pós-graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do titula de mestre em Letras Neolatinas.

Examinada por:

______________________________________________________________________

Presidente, Prof.ª Doutora Sonia Cristina Reis

______________________________________________________________________

Profa . Doutora Ângela Maria da silva Corrêa – UFRJ

______________________________________________________________________

Profa . Doutora Telma Cristina de Almeida Silva Pereira – UFF

______________________________________________________________________

Profa . Doutora Maria Lizete dos Santos – UFRJ, Suplente

______________________________________________________________________

Prof. Doutor Afrânio Gonçalves Barbosa – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Janeiro de 2012

3

Paulo, Jorge Francisco Pereira.

Elementos para a reavaliação das funções das línguas no processo de

construção das nacionalidades/ Jorge Francisco Pereira Paulo. – Rio de Janeiro:

UFRJ/ Faculdade de Letras, 2012.

Viii, 84f; 31 cm.

Orientador: Pierre François Georges Guisan.

Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-

Graduação em Letras Neolatinas, 2012.

Referências Bibliográficas: f. 82-84.

1. Introdução. 2. Língua, Nação e Território. 3. A construção da Nacionalidade.

4. Língua e Identidade. I. Guisan, Pierre François Georges. II. Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pós-graduação e pesquisa em Letras

Neolatinas. III. Título

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RESUMO

Elementos para a reavaliação das funções das línguas no processo de construção das

nacionalidades

Jorge Francisco Pereira Paulo

Orientador: Pierre François Georges Guisan.

Resumo da dissertação de mestrado submetida ao programa de Pós-graduação

em Letras Neolatina. Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em

Letras Neolatina.

Quando retomamos o processo de formação das nacionalidades podemos

constatar uma instrumentalização da língua para alcançar tal objetivo. Esse fato permite

que se considere a língua não apenas como um sistema linguístico, mas, sobretudo

como um fenômeno social e também representativo. Ao longo da Historia, as línguas

foram frequentemente associadas a ideias de superioridade, poder, liberdade etc.,

entretanto percebemos mais recentemente uma concepção de língua como referencial de

nação moderna, evidenciando assim, um caráter mais subjetivo referente às línguas. Na

França a língua nacional é empregada em programas de nacionalização baseados na

construção de mitos e símbolos nacionais como elementos fundadores e unificadores da

nação.

Palavras-chave: língua, identidade, nacionalidade.

Rio de Janeiro

Janeiro de 2012

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RESUMÉ

Éléments pour la réévaluation des fonctions des langues dans le processus de

construction des nationalités.

Jorge Francisco Pereira Paulo

Orientador: Pierre François Georges Guisan.

Resumé da dissertação de mestrado submetida ao programa de Pós-graduação

em Letras Neolatina. Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em

Letras Neolatina.

Quand nous reprenos le processus de formations des nationalités, nous pouvons

vérifier une instrumentalisation de la langue pour atteindre tel but. Ce fait permet

d’envisager la langue non seulement comme un système linguistique, mais surtout

comme un phénomène social aussi bien en tant que répresentant. Tout au long de

l’histoire, les langues ont souvent été associées à des idées de supériorité, de pouvoir, de

liberté etc. Cependant nous apercevons une conceptions de langue comme référenciel de

nation moderne, montrant, de cette façon, un caractère plus subjectif par rapport aux

langues. En France la langue est employée dans des programmes de nationalisation

basée sur la construction de mythes et de symboles nationaux comme des éléments

fondateurs et unificateurs de la nation.

Mots-clés: Langue, Identité, Nationalité

Rio de Janeiro

Janeiro de 2012

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente a minha família,

que sempre mostrou o quanto é importante uma boa educação e força de vontade.

Ao meu Orientador Pierre François Georges Guisan,

Pela positividade e paciência com que me orientou durante todos esses anos.

A todos que, de maneira direta ou indireta, contribuíram para a elaboração deste

trabalho.

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SINOPSE

Reflexão sobre a função das línguas

na construção de uma identidade

nacional no território francês.

Processo histórico de formação da

língua nacional e constituição da

nacionalidade.

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SUMÁRIO

1 – INTRODUÇÃO......................................................................................................9

2 – LINGUA, NAÇÃO E TERRITÓRIO....................................................................11

2.1 – Conceito de fronteira.............................................................................................12

2.2 - O termo nação e seus significados.........................................................................15

2.3 – Língua ou Dialeto?................................................................................................21

2.4 – Língua nacional: Funções e definições.................................................................25

2.5 – Outros fatores identificadores...............................................................................30

3 – A CONSTRUÇÃO DA NACIONALIDADE ........................................................37

3.1 – O surgimento das nacionalidades européias.........................................................38

3.2 – A língua nacional na França. ...............................................................................42

3.3 - A Língua Nacional: O caso do Brasil....................................................................47

4 – LINGUA E IDENTIDADE....................................................................................53

4.1 – Ideologia lingüística..............................................................................................54

4.2 – A escrita e a língua nacional................................................................................57

4.3 – Língua e cultura...................................................................................................64

4.4 – A escola na implantação de uma língua nacional: a escola laica .......................66

5 – CONCLUSÃO.......................................................................................................80

6 – REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS........... .....................................................82

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1 - INTRODUÇÃO

O presente trabalho, que se iniciou em desdobramento de um projeto de

iniciação científica, consiste em estabelecer uma correspondência entre a formação dos

Estados – Nacionais1 e o conceito que se tem do que seja uma língua nacional,

procurando, dessa forma, verificar até que ponto podemos considerar a língua como um

fator realmente importante na construção de uma identidade nacional nos processos de

formação das nacionalidades.

Para alcançar tal objetivo, buscaremos, primeiramente, explicitar os vários

significados que foram atribuídos ao termo “nação” ao longo da História, além de tentar

explicitar ou estabelecer uma distinção entre o que seria uma “língua” ou um “dialeto”

com o intuito de verificar com quais conceitos estamos trabalhando e somente a partir

de então estabelecer a relação entre o adjetivo língua nacional e o termo “nação”,

considerando que as línguas antecederam o surgimento de nações, no seu significado

moderno. Dessa forma, poderemos observar quais sentidos o termo “nação” teve até

chegar ao conceito que conhecemos hoje, para somente então podermos dar a uma

língua o status de língua nacional, além de tentar mostrar o percurso desta língua até

lhe ser atribuído tal título.

A partir dos conceitos referentes ao termo nação encontrados no Dictionnaire

étymologique de la Langue française e em outros dicionários partimos para uma

verificação dos significados atribuídos ao referente termo ao longo da história afim de

verificar a partir de quando começou a se utilizar tal termo com o significado que

1 Este termo foi escolhido por ser utilizado pelos lingüistas pesquisados.

10

conhecemos nos dias atuais, e, dessa forma verificar a partir de quando começou a ser

utilizado o adjetivo nacional relacionado ao conceito de língua.

Assim sendo, as obra sobre a história da língua francesa são de extrema

importância para o bom andamento da pesquisa, e, dessa forma consultamos a obra de

Picoche & Marchello-Nizia (1994), intitulada Histoire de la Langue Française, da

mesma forma que Bezbakh, Petit Larousse de l’Histoire de France. Des origines à nos

jours, da mesma forma que para o uso das teorias Sociolingüísticas são usadas também

obras de Boyer: Sociolinguistique, Territoire et objets (1996): e Introduction à la

Sociolinguistique (2001), como também consultamos obras do autor Louis-Jean Calvet:

Les politiques linguistiques (1995), La guerre de langues et les politiques linguistique

(1999) e Essais de Linguistiques – La langue est-elle une invention des linguistes?

(2004) estes autores também nos ajudam a verificar e a compreender a representação de

língua oficial.

Através dos preceitos da Sociolinguística Histórica observaremos primeira-

mente quais os conceitos atribuídos o termo nação ao longo da história e, dessa forma,

verificar com quais ideias e noções estamos trabalhando. Além disso verificaremos as

correntes de nacionalismo que possibilitaram a difusão da variante tida como oficial

(nacional) por todo o território francês, através dos modelos teóricos articulados por

Benedict Anderson (1983) da mesma forma que trabalhos de Gellner (1989-2000),

ainda sobre a noção de nação e nacionalismo. Usaremos neste trabalho obras do autor

Louis-Jean Calvet, sempre com o objetivo de ressaltar a importância da língua mostrada

como símbolo de libertação social além também de algumas obras de Henri Meschonnic

(1987), sobre o imaginário linguístico.

11

2 – LINGUA, NAÇÃO E TERRITÓRIO.

Serão agora examinados conceitos fundamentais como os de fronteira, de nação

de língua e dialeto. Como a ideia de fronteira varia segundo as épocas e começou sendo

usado como um termo militar, uma região de confrontos e não necessariamente uma

linha definida como hoje. Portanto será conveniente analisar as mudanças semânticas do

termo e as consequências para as nossas reflexões.

A mesma problemática de indefinição semântica surge com a palavra nação que

inclui uma multidão de sentidos segundo o contexto em que está inserido. Sendo assim,

teremos que examinar as mudanças semânticas, as suas relações genéticas que mantém

entre elas e a progressiva elaboração de uma restrição de sentido que consta numa

palavra moderna como o adjetivo nacional.

Outro debate que será focalizado é naturalmente essa interminável discussão

que tenta levantar as diferenças entre uma língua e um dialeto. De antemão parece

evidente que não há palavra final que permita chegar a uma conclusão definitiva a

respeito, numa briga que inclui pensamentos ideológicos, sentimentos e emoções mais

do que observação e raciocínio científico. Há muito tempo, os linguistas sérios

desistiram de considerar tais conceitos como estritas categorias linguísticas.

Nesse contexto, a famigerada língua nacional tão citada em constituições

políticas, discursos oficiais, leis escolares, aparece no fundo um argumento legitimador

bastante duvidoso quanto à firmeza das suas bases. Entretanto, pelo menos nos tempos

modernos, constitui uma das bandeiras da legitimidade das nações.

12

Logo, não é estranho encontrar “bandeiras” suscetíveis de legitimar o caráter

nacional de determinada comunidade, como de um conjunto de traços culturais que não

seja necessariamente a língua. A historiadora Anne-Marie Thiesse nos propõe uma lista

que permite checar os elementos que constituiriam as representações da identidade

nacional como veremos adiante.

2.1 – CONCEITOS DE FRONTEIRA

O conceito de fronteira assim como o de nação é um conceito que variou com o

passar do tempo. Este termo esteve durante muito tempo ligado ao termo militar fronte

sendo derivado do italiano, pois marcava os limites das tropas. Para ser mais exato este

conceito conheceu uma evolução ao longo do tempo, segundo os contextos políticos,

econômicos, sociais e ideológicos referentes a cada período da história.

Segundo o dicionário da Academia Francesa, frontière significa Ligne

conventionnelle marquant la limite d'un État, séparant les territoires de deux États

limitrophes (Linha convencional mancando o limite de um Estado, separando dois

estados fronteiriços2). Entre os países do Espaço Schengen, uma convenção que

promulga a aberturas das fronteiras entre os países participantes, França, Alemanha e

Luxemburgo, fronteiras são apenas limites político e jurídicos não formando obstáculos

à circulação de pessoas e bens. Porém nem todos os casos são assim. Entre as duas

Coréias, por exemplo, a fronteira é materializada por uma grande faixa vigiada

militarmente e sua ultrapassagem é bastante restrita. A palavra frontière aparece pela

2 Tradução nossa

13

primeira vez na França no século XVIII. Dessa forma podemos perceber como esse

conceito é recente e que desde sua origem traz em si uma dimensão política.

A fronteira territorial é atualmente considerada como uma linha definida

marcando a separação entre dois territórios. A fronteira é um objeto jurídico. Ela é

configuração institucionalizada do espaço em que o Estado exerce sua autoridade

territorial, seu controle efetivo e coercitivo. Fronteiras concretizam intenções políticas,

traduzidas em disposições jurídicas, marcadas nos mapas sob formas lineares e

contínuas, produzidas de um processo técnico de determinação inscritas materialmente e

projetadas virtualmente no meio natural. A noção de fronteira precisa e intangível nem

sempre existiu. Em várias regiões e em momentos históricos diversos os limites das

fronteiras não eram definidos com precisão.

A noção de fronteira no sentido atual, que sucede a de confins, limite indefinido

entre dois territórios, noção que precede a de fronteira, está associada ao

desenvolvimento do Estado moderno, tal como se desenvolveu na Europa a parir dos

séculos XIII e XIV. Os progressos conseguidos pela cartografia permitiram a seus

dirigentes de tomar melhor consciência do seu território e de melhor controlá-lo. Com a

Revolução Francesa a ideia de fronteira ganha uma nova intensidade. Os

revolucionários queriam dar à França um território unificado e precisamente delimitado,

segundo eles o limite do território nacional deve ser linear e as fronteiras internas

abolidas, o que nos leva a pensar na ideia de identificação interna e diferenciação

externa.

14

A ideia de criar limites precisos, permitindo esclarecer as situações jurídicas se

impõe progressivamente nas regiões sob o controle da Europa. Contudo, a definição

exata de todas as fronteiras nacionais se fez somente com o passar do tempo. Vários

Estados-Nacionais não tinham ainda determinado com precisão o limite de seus

territórios ao fim do século XX.

A maioria das fronteiras em todo mundo foram traçadas sem pedir a opinião ou

o consentimento das populações locais. Entretanto, a partir da Revolução Francesa, que

marca o nascimento da ideia de Estado-Nacional, os limites desse Estado-Nacional deve

corresponder ao território de um povo. Na verdade, é, sobretudo a partir da Primeira

Grande Guerra, que o direito à autodeterminação se tornou um principio do sistema

político mundial. Sob a pressão dos Estados Unidos, o mapa da Europa foi desenhado

em 1918 com a finalidade de levar melhor em conta o principio da nacionalidade.

Na verdade, o principio de Estado-Nação se mostra na maioria das vezes muito

difícil de ser executado na prática. Em varias regiões não foi possível a criação de

Estados-Nacionais homogêneos, culturalmente e muito menos linguisticamente.

15

2.2 - O TERMO “NAÇÃO” E SEUS SIGNIFICADOS

O termo nação percorreu ao longo da história uma grande jornada até chegar a

seu significado atual, que é bastante recente. Dentre uma série de palavras referentes à

agrupamentos humanos, este termo foi o mais afortunado tendo como sinônimas

palavras como raça, tribo, classe, povo, clã, comunidade, sociedade entre outros. Porém,

de todos os termos acima mencionados nação parece ser o que desperta maiores

entusiasmos individual e coletivamente. Dessa forma a ele está ligado um conjunto de

expressões que se tornaram emblemáticas dos tempos modernos, nacionalismo,

nacionalidade e língua nacional. Por isso o conceito de língua nacional também é

recente, e a ideia de nação e língua nacional formando uma só identidade é ainda mais

recente. Entre o primeiro sentido atribuído ao termo nação e o moderno há grandes

diferenças, as realidades designadas por um e pelo outro praticamente em nada

coincidem.

Etimologicamente, a palavra natio, do latim, esta ligada à palavra gens, que por

sua vez designava da mesma forma um tipo de agrupamento humano. As sociedades

gentílicas podiam ser encontradas, por exemplo, na Grécia arcaica, como células sociais

formadas por agregados de famílias que se criam descendentes de um mesmo ancestral

– eram as gentes. Ainda que tenhamos apresentado uma tentativa de definição de nação,

é clara a disparidade entre aquela realidade e a atual, ao passo que muito facilmente

poderíamos reconhecer algumas semelhanças entre natio e gens. Ambas derivam de

uma antiga raiz indo-europeia – g’ena- , g’n-: significando nascer, gerar – amplamente

presente nas línguas desse grupo linguístico. Dessa raiz formaram-se palavras direta ou

indiretamente relacionadas à ideia de coletividade humana. Como nos mostra o

16

dicionário da língua francesa Le Littré.

Na época do Império Romano gentes designava as nações estrangeiras em

oposição ao populus romanus, e, a partir disso, na linguagem eclesiástica empregou-se

gentes para traduzir o termo grego correspondente que indicava as nações pagãs, como

diferenciação em relação aos judeus e aos cristãos.

Natio traz em si, inicialmente o significado de nascimento, personificado e

divinizado. No entanto, na língua rústica, essa palavra tinha um significado concreto e

significava o nascimento de filhotes de um animal, o que explica que a acepção de natio

possa ter se desenvolvido para a ideia de “conjunto de indivíduos nascidos num mesmo

lugar ou tempo, nação” e, por extensão, passou a indicar povo, a raça, a espécie. Natio

tornou- se, dessa forma, próxima de gens. Nationes, como gens, foi empregado pela

igreja pra referir-se às nações pagãs.

A natio era, portanto, uma comunidade que se reconhecia unida pela referência a

uma origem comum. Essa crença era certamente uma construção mítica, tanto nos casos

que se apoiavam na ideia de um ancestral comum, quanto nos que tinham outras

motivações. De qualquer forma, a noção de natio, por ser o resultado de uma aplicação

à coletividade do processo biológico de nascimento de um individuo, designava sempre

comunidades que se criam unidas pelos laços de sangue.

Na nação moderna, apenas gradativamente é que a língua, uma origem étnica e

um passado comum foram usados como recursos de identificação, funcionando como

substitutos para os laços de sangue para suprir certas deficiências de um conceito

17

político de nação baseado apenas em um principio bastante impreciso de nacionalidade.

Mas mesmo com esses acréscimos, a ideia da nação moderna continua deficiente, de tal

forma que ao pensarmos em nação dificilmente poderemos reconhecer na realidade

concreta seu referencial objetivo.

De fato, o poder simbólico da nação parece ser sua maior força, e essa essência

representativa será a marca de todos os instrumentos de construção da nacionalidade.

Mas se a realidade designada pelo termo é de difícil definição, crescente é o número de

coletividades humanas que reivindicam para si tal denominação. Tais coletividades

reclamam nacionalismo para obterem seus direitos contra outras coletividades como por

exemplo uma classe social, uma casta, uma elite sobre outra.

Nas línguas românicas, a palavra nação no sentido vulgar acaba sendo sinônimo

de país, em outras é usada por empréstimo, mas em quase todos os casos seu significado

acaba por aproximar-se do de povo. Antes disso, porém, a palavra nação se desenvolveu

para designar grupos de naturezas diversas. A partir do século XIII a palavra nação já

começava a circular pela Europa; durante esse período e até o século XVII o termo

assimilou algumas acepções diferentes tanto da antiga quanto da moderna. Como

destaca Guy Hermet.

“Tratava-se de comerciantes da nação alemã em Antuérpia, de

estudantes da nação inglesa na Sorbonne, de nação mulçumana,

européia, bizantina, armênia ou judia até no Império Otomano,

bem pouco ou nada de nação francesa em França e ainda menos,

de nação italiana na Itália.”3

3 HERMET, Guy. História das nações e do nacionalismo na Europa. Lisboa. Editorial Estampa 1996. p. 52

18

Dessa forma a palavra nação pode descrever grupos fechados ou corporações

que tem a necessidade de serem distinguidos de outros com os quais coexiste, o que

acrescentou ao termo a noção de estrangeiro, como no caso de comunidades habitando

em uma cidade, por exemplo, as nações de mercadores estrangeiros a um país. Ou

também podia se referir a estudantes que integravam uma comunidade cultural que se

formou na Europa a partir do surgimento das primeiras universidades e que se

diferenciavam por suas línguas – “Organizadas segundo os mesmos princípios, essas

universidades, onde comentava-se os mesmos textos das autoridades reconhecidas por

todos, atraem os estudantes de diferentes nationes” – dessa forma, dizia-se, por

exemplo que a Universidade de Paris era formada pelas nações da França, Picardia,

Normandia e Germania.

Assim a nação faria referência ao lugar de origem ou ao grupo de descendência,

realçando assim a idéia de etnia, que é um termo politicamente correto para designar

raça, porém é um termo tão contestável quanto o primeiro. Por essa razão a relação de

nação vernácula com o Estado ou nação política não encontra justificativa neste

momento. Na transição para o período Renascentista, as nações identificaram, sobretudo

intelectualmente, grupos humanos particularmente no seio da Europa ligados a uma

determinada coroa e que gradualmente procuraram afirmar raízes em um passado

mitificado. A acepção medieval de nação que mais se desenvolveu foi essa, a que

designava a descendência da casa real em conjunto com a nobreza circundante que, por

sua vez, não tinha muita dificuldade em encontrar laços comuns num passado quase

sempre remoto.

Por extensão dessa acepção, a expressão monarquia nacional passou a indicar os

19

agrupamentos humanos ou sociedades sob o domínio político de uma nação particular

entendida como uma linhagem nobre. Por esta razão, em termos étnicos, linguísticos e

outros, fica claro que os Estados, independentemente de seu tamanho, não eram

homogêneos e não poderiam coincidir com o povo ou a nação assim entendida.

De todas as possibilidades de significação do termo nação, elas serão ainda

claramente diferentes de seu significado moderno, que é basicamente político e

historicamente bastante recente. O New English Dictionnary de 1908 registra a

novidade do termo ao indicar que o velho significado da palavra contemplava,

sobretudo a unidade étnica e que já em seu uso recente indicava mais « a noção de

independência e unidade política ». O termo passa a ser empregado sistematicamente

em discursos políticos sobretudo a partir de 1830, tendo como marca uma certa

imprecisão quanto a seu conteúdo. Pouco a pouco o termo nação tende a implicar a

idéia de unidade e centralização em relação aos vários estados reunidos, por isso, muitas

vezes é substituída pela expressão mais genérica povo. A nação passa a indicar um

corpo de cidadãos cuja soberania coletiva o constituía em um Estado concebido como

uma expressão política. Uma nação una e indivisa não poderia ter como critérios de

legitimação as varias identidades étnicas e linguísticas que constituíam seu povo; o que

a justificava era o princípio de cidadania como garantia da participação das massas.

Finalmente, nação termina por equalizar povo e Estado.

“Cada povo é independente e soberano, qualquer que seja

o número de indivíduos que o compõem e extensão do território

que ocupa”4

4 HOBSBAWM, Eric J. Nations et Nationalismes depuis 1780. Programme, Mythe, Réalité. Éditions

Gallimard. 1992. P.32

20

Pouco é dito do que constitui o povo, e esse corpo de cidadãos identificado com

um Estado não tinha onde apoiar um sentimento coletivo de pertença ao grupo pois os

fundamentos de suas identidades grupais haviam sido descartados.

“O sentido político do termo nação toma a partir daí todo

o seu relevo. Circunscreve um povo que é tudo como símbolo,

e nada na prática, (...), esse povo nacional é um dado, ou um

conceito, que remeta para uma sociedade empírica. É a

legitimidade da Revolução e como que sua própria definição: todo

o poder, toda a política giram futuramente a volta deste principio

impossível de encarnar.”5

Segue-se disso que um instrumento de nacionalidade não era fundamental para a

Revolução Francesa. Por isso, a essa altura, a língua não tinha nada a ver, em princípio,

com o ser Francês ou Inglês, por exemplo. Na concepção revolucionária de nação, nem

língua falada nem nenhum outro tipo de identidade particular deveria ser considerado

um critério de nacionalidade, sendo esta definida de forma mais funcional apenas pela

idéia de cidadania. Em síntese, o que caracterizava o povo nação era o fato de ele

representar o interesse comum contra interesses particulares, o bem comum contra os

privilégios. As diferenças grupais eram, desse ponto de vista, secundárias. Portanto, a

nação revolucionária não havia ainda desenvolvido o programa posterior que estabelecia

Estados-nações para corpos sociais definidos segundo elementos como etnicidade,

língua comum, religião, território e um passado histórico comum. Esses são critérios

que serão posteriormente intensamente debatidos no século XIX. A nação napoleônica

ao alargar suas fronteiras para áreas que não eram francesas e que não possuíam

5 HERMET. 1996 p.94

21

nenhum dos critérios acima deixa claro a irrelevância de uma nacionalidade assim

definida. Entretanto, o período de forte perturbação política por que passava a Europa

nessa época exigia o fortalecimento dos laços de uma nação que se queria una e

indivisa. A busca por essa unidade terá como consequência indesejável o realce de sua

heterogeneidade interna e se transformará num problema futuro para o ideal nacional.

2.3 - LINGUA OU DIALETO?

Como vimos anteriormente, o conceito de nação passou por várias mudanças até

o conceito que tomos hoje. E assim como o significado de nação, os conceitos de língua

e dialetos sofreram variações quanto ao significado. Atualmente existe uma grande

discussão no que diz respeito ao que seria uma língua ou um dialeto, e existe geralmente

uma ambiguidade entre os dois conceitos, o que torna necessária a análise dos dois

conceitos por diversos pontos de vistas, como da linguística, sociolinguística, política

etc.

O conceito atual do que seria um dialeto é derivado do conceito original de

“dialeto” para se referir às variantes da antiga Grécia, pois neste caso durante o período

Clássico não existia uma norma grega unificada, existindo apenas um conjunto de

normas aparentadas. Dessa forma o grego “dialektos”, embora levasse o nome de

diferentes regiões, designava diferentes sistemas usados em todo o território grego, cada

qual para um determinado gênero literário, considerados como a língua de uma região

grega em que eles deviam recobrir dialetos no sentido moderno do termo, regionais ou

sociais. Assim sendo, o jônico era utilizado, não somente na Jônia, mas em toda a

22

Grécia para o gênero histórico, o dórico para a lírica coral, e o ático para a tragédia.6

No período pós-clássico, porém, os dialetos gregos desapareceram e foram

substituídos por uma norma grega unificada, uma coiné ou língua comum,

principalmente o dialeto falado em Atenas entre 500 a.C e 300 a.C e também chamado

de Grego Clássico. Assim sendo, no período helenístico, o que se chamou de “grego”

foi uma norma que resultou de uma convergência linguística. As diferenças existentes

entre esses diversos dialetos foram suprimidas em favor de uma única norma triunfante,

o ático de Atenas tornou-se progressivamente a língua comum dos gregos e que

substituiu todos os outros dialetos a partir do século IV a.C., ou seja, a norma baseada

no dialeto da cidade de maior prestígio dos gregos, como é exposto pelo linguista Einar

Haugen em seu artigo Dialeto, língua, nação.

Esta situação grega forneceu o modelo para todo o uso posterior dos dois termos

“língua” e “dialeto”.

Num sentido descritivo, sincrônico, “língua” pode se referir a uma única

norma lingüística tanto quanto a um grupo de línguas aparentadas . Num sentido

histórico, diacrônico, “língua” pode se referir a uma língua a caminho da

dissolução, tanto quanto uma língua comum resultante de unificação. Um

“dialeto”, então, é qualquer uma das normas aparentadas compreendidas sob o

nome geral “língua”, historicamente o resultado ou de divergência ou de

convergência. 7

Entretanto percebemos que atualmente definir os dois termos não é tarefa fácil,

6 BAGNO, Marcos. Norma Lingüística. Editora Loyola, São Paulo, 2001. P. 99

7 HAUGEN, Einar. Dialeto, língua, nação. In: Norma Lingüística. Editora Loyola, São Paulo, 2001 p. 99

23

mesmo os mais importantes dicionários não nos dão mais que uma definição um tanto

quanto imprecisa dos termos em questão.

Encontramos, porém, uma certa concordância por parte dos dicionários quanto à

definição de língua e dialeto. O termo língua é definido no dicionário da Académie

Française e em outros dicionários franceses como système d'expression verbale qui est

d'emploi conventionnel dans un groupe humain et permet à ses membres de

communiquer entre eux (Sistema de expressão verbal que é de emprego convencional

num grupo humano e permite à seus membros se comunicar entre eles8). E da mesma

maneira o termo dialeto é definido nestes dicionários como variété régionale d’une

langue (variedade regional de uma língua). Porém percebemos que na realidade não é

tão simples assim.

Os conceitos de língua e dialeto englobam elementos de maior complexidade,

envolvidos diretamente com o conceito de nação. Onde o termo língua é sempre

superordenado, e o termo dialeto sempre subordinado ao termo língua, visto que sempre

encontramos que tal dialeto pertence a tal língua e jamais o contrario.

A noção de dialeto é aquela que distinguimos com maior dificuldade. Da mesma

forma que a palavra “país” que se aplica às regiões estendidas tão diferentes quanto à

palavra nação, o termo dialeto, segundo Le Grand Larousse de La Langue Française,

designa um conjunto de falares de uma mesma origem . Os dialetos existentes na

França, eram regionais e literários assim como na Antiga Grécia, entretanto não tinham

8 Tradução nossa

24

a mesma distinção funcional. Assim quando os dialetos deixaram de ser escritos,

passaram a ser chamados pejorativamente patois. Dessa forma um patois é uma norma

linguística que não é usada para fins literários, e, frequentemente oficiais, sendo

limitada sobretudo a situações informais.

Este termo que surge no francês está ligado, por etimologia, e uma nuança

pejorativa à palavra patte, que evoca um locutor a pattes, animal ou semelhante.

Auguste Brun chama os patois “Un patois est un dialecte qui s’est dégradé” (“Um

patois é um dialeto que degradou”) significando um idioma reduzido às comunicações

orais num território mais restrito. Na França o termo patois é pejorativo e este resulta de

uma lenta alienação cultural pela qual as autoridades francesas fizeram com que os

franceses acreditassem que ao falarem outra língua que não fosse o francês, que esta não

era uma língua mas sim uma deformação da língua francesa. Dessa forma em 1762 o

Dicionário da Academia francesa define patois da seguinte forma. “linguagem rústica,

grosseira, como a de um camponês, ou do baixo povo.”

Para certos linguistas, a distinção entre língua e dialeto não é pertinente de um

ponto de vista estritamente linguístico. Entretanto, esta diferença pode ser justificada

por outros fatores:

Políticos: uma língua seria um dialeto tendo obtido o status oficial.

Social: uma língua seria, do ponto de vista social, um dialeto que tenha obtido

um prestigio social e cultural. Podendo dessa forma se distinguir de um dialeto

por um importante uso na literatura, assim ouvimos falar frequentemente de

“língua da cultura” ou “língua literária”.

25

Linguístico: a partir desse ponto de vista, a distinção entre língua e dialeto

estaria calcada sobre a possibilidade de uma compreensão mútua. Assim os

falantes de diferentes dialetos que se compreendessem mutuamente, falariam

dialetos de uma mesma língua, enquanto que falantes que não se

compreendessem falariam línguas diferentes ou seriam falantes de dialetos de

línguas diferentes.

Dessa forma podemos perceber o quanto complicado é definir estes conceitos,

entretanto na maioria dos casos, esta distinção tem uma conotação política, onde o

conceito de língua está associado de maneira mais ou menos consciente à ideia de

Estado-Nacional da qual é a língua oficial.

2.4 - LÍNGUA NACIONAL: FUNÇÕES E DEFINIÇÕES

A maioria dos critérios usados para independência ou para o domínio é bastante

imprecisos, mesmo os que se baseiam num passado comum ou na biologia. Um critério

ou pretexto bastante recorrente é o nacionalismo linguístico.

Falar em língua ou grupo linguístico assim como o conceito de raça como

elemento agregador e caracterizador de uma dada coletividade humana, a proposta de

uma língua nacional como língua efetivamente comum ao conjunto populacional de

uma nação é bastante questionável.

Dessa forma, fazer com que uma língua nacional coincida com uma língua

26

particular pode, assim, ter como efeito o desaparecimento de línguas de pouca força

social, ou seja, línguas com pouco prestígio, mas também transformá-las em bandeiras

de “sub”- nacionalismos. Uma língua nacional, isto é, uma língua oral comum, nunca

antecedeu a nação. Esse novo conceito de língua foi desenvolvido em seguida e

sobreposto à nação moderna como um modelo, uma vez que os próprios ideais

revolucionários que promoveram a mudança da ordem política na Europa não podiam

ter na língua um apoio. O recurso à língua como elemento agregador não parece,

portanto, o mais adequado, sendo da ordem de uma construção mítica e/ou ideológica.

O fundamento da nação moderna tem sua oficialização com as mudanças

realizadas pelas Revoluções do fim do século XVIII, e que, na Revolução Francesa, se

caracterizam na transferência da soberania política da monarquia para o povo. Mesmo

sem ser precisado o que se entendia por povo e apesar do fato de que nação e povo não

eram termos sinônimos, aos poucos se tornaram intercambiáveis. A essa altura o

significado do termo nação ainda se assemelhava ao de natio. A nação indicava um

agrupamento humano que, tirada as variáveis da época, tinha como característica básica

a referência da descendência, por isso não atendia aos intuitos da popularização da

república. Somente aos poucos, graças a um trabalho consciente de retomada da carga

semântica original de natio como nascimento, é que a nação se tornou o ideal dos

povos. Assim, assumindo uma postura mais critica, podemos perceber que o nascimento

é uma ausência de liberdade, ou seja, não temos o direito de escolha, sendo regido pelo

determinismo.

No que toca a problemática da língua nacional, sua característica principal será

aquela comum a todos os outros elementos nacionais, ou seja, a de ser um fator de

27

unidade, ou mais precisamente, de uniformização, o que não deixa de ser um fator de

empobrecimento, pela perda da diversidade. Como por exemplo, temos o caso da

França que buscou a eliminação das variantes quando o mosaico linguístico foi

considerado uma ameaça. Já no caso do Brasil, apenas agora que se começa uma

reivindicação das indígenas e das línguas dos imigrantes como um fator de

enriquecimento linguístico. A língua serve também como elemento diferenciador, ou até

mesmo hostilizador contra aquele que vem de outra região. A língua nacional, por sua

natureza motivadora, não poderá conviver em igualdade com outras já existentes

anteriormente a ela num dado território. É comum situar a origem das línguas nacionais

europeias ocidentais logo após a queda do Império Romano, quando as comunidades

tribais de bárbaros em contato com a população e com a cultura romana fundaram os

reinos romano-germânicos, nos quais começaram a se esboçar as línguas românicas,

entretanto, no oriente onde dominava o grego não há línguas românicas, pois o grego

era mais privilegiado que o latim.9

O surgimento das línguas românicas é um dado histórico, no entanto, o

reconhecimento nesse momento de qualquer presságio de língua nacional é bastante

ideológico, na medida em que nenhuma dessas línguas desempenha o papel que exerce

hoje a língua oficial de uma nação.

Segundo Eric Hobsbawm, o Dicionário da Real Academia Espanhola não usa a

terminologia de Estado, nação e língua no sentido moderno antes de sua edição de 1884.

Então pela primeira vez aprendemos que lengua nacional é “a língua oficial e literária

9 DUPONT, Florence. Façons de parler grèc à Rome, ed. Berlin, 2005

28

de um país e, à diferença de dialetos e a língua de outras nações, é a língua geralmente

falada”. Antes disso, Nacíon indicava apenas o conjunto de uma província, país ou

reino, e também o estrangeiro (gentis, gentes, nationes). No entanto em 1884 passa a

indicar “um Estado ou corpo político que reconhece um centro supremo de governo

comum”, e “o território constituído por esse Estado e seus habitantes, considerado como

um todo”. Assim sendo, nação passa a ser ligada a um Estado comum e supremo, a um

território e a uma língua. O autor cita também a Enciclopédia Brasileira Mérito10

, na

qual consta que nação é “a comunidade de cidadãos de um Estado, vivendo sob o

mesmo regime ou governo e tendo uma comunhão de interesses; a coletividade de

habitantes de um território com tradições, interesses comuns, subordinados a um poder

central que se encarrega de manter a unidade do grupo; o povo de um estado, excluindo

o poder governamental”. No entanto a partir de 1925 é encontrada no dicionário da

Academia Espanhola a seguinte definição para o termo nação: a coletividade de pessoas

que têm a mesma origem étnica e em geral falam a mesma língua e possuem uma

tradição comum. Entretanto existem divergências quando tentamos definir uma nação

como um grupo que fala a mesma língua, percebemos que tal definição não tem bases

sólidas, sendo ainda um conceito impreciso, visto que há nações que possuem mais de

uma língua reconhecida como língua nacional, como é o caso da Suíça. Esta nação é

constituída por quatro principais regiões linguísticas: o Alemão, o Francês, o Italiano e

o Romanche. Assim, percebemos que os suíços não formam uma nação calcada no

sentido de uma identidade comum étnica ou linguística, mas sim num forte sentimento

de pertencer ao país fundado sobre um histórico comum, valores compartilhados além

do simbolismo alpino. Segundo o dicionario Littré de 1874 natio é o conjunto de

10

HOBSBAWM, Eric J. Nations et Nationalisme depuis 1780. Programme, Mythe, Réalité. Éditons

Gallimard. 1992. P. 26

29

individuos nascidos num mesmo tempo e num mesmo lugar. Ainda segundo o Littré na

época cristã, este termo era empregado no plural nationes para designar as populações

pagãs em oposição ao “povo de Deus”.

Essa situação linguistica fornecida pelos suíços11

nos leva a refletir sobre

algumas definições dadas às línguas em regiões onde temos um plurilingüismo. Nesses

casos, o Estado pode optar pela eliminação de uma das variantes, ou garantir a

coexistência acordando às línguas o status de língua oficial a duas linguas ou mais,

como é o caso da Bélgica, onde temos a presença do francês e do flamengo (variante do

holandês) ou no Canadá com o inglês e o francês, onde cada uma dessas línguas é

legitima em todos os dominios e pode ser utilizada pelo conjunto da comunidade.

Temos ainda o status de língua oficial para certas regiões do país, como é o caso do

romanche no Canton de Grisons na Suíça. Podemos encontrar ainda definições como

língua promovidas, que são utilizadas somente em situações bem precisas, como por

exemplo o espanhol no Estado do Novo México, nos Estados-Unidos. E uma outra

escolha possivel se encontra nas linguas ditas toleradas, ou seja, línguas que, como o

caso do basco na França não são nem toleradas nem promovidas.

Assim sendo, podemos observar que definir nação e língua nacional é ainda uma

questão muito complicada, pelo fato de que, atribuir a uma nação uma língua

correspondente é praticamente impossível, pois, segundo o escritor Louis-Jean Calvet

existem por volta de 6700 línguas faladas hoje em todo o mundo, existindo apenas 200

países, o nos dá uma média de 33 línguas por país. Daí a demonstração de que a

11

O caso suiço está longe de ser uma exceção, India, Russia, Espanha entre outros apresentam também

casos semelhantes.

30

diversidade é a regra geral, ao contrário da homogeneidade linguística. Dessa forma

podemos constatar o quão difícil é atribuir a uma língua o caráter de língua nacional.

2.5 – OUTROS FATORES IDENTIFICADORES

Na Europa, a existência de fortes identidades nacionais, ancoradas nas

profundezas da história, geralmente não é questionada, entretanto tais identidades não

existiam inicio do século XIX. A emergência desse tipo de identidades coletivas resulta

de fatores históricos, ou seja, de mudanças que deram origem a uma consciência

nacional, de natureza mítico-ideológica. As diversas identidades nacionais europeias

foram forjadas no quadro de intensas trocas internacionais, cujo resultado foi a

determinação de um modelo comum de produção das diferenças. Mais do que uma

identificação coletiva, tratava-se na verdade de uma diferenciação do seu vizinho.

Segundo o autor Ernest Gellner, no livro Nations et Nationalisme, a

heterogeneidade cultural era a regra nos impérios, reinos e principados da era pré-

nacional12

. As referências identitárias dos indivíduos eram determinadas por seu status

social, sua religião, seu pertencimento a uma comunidade local mais ou menos restrita e

rica de particularismos de todo tipo. A formação das identidades nacionais consistiu em

uma mudança total desse sistema de referências. A unidade foi instituída onde

dominava o disparate, e fronteiras foram traçadas sobre espaços de continuum. As

identidades existentes no período pré-nacional não foram verdadeiramente abolidas no

12

GELLNER, Ernest. Nations et Nationalismes. Paris : Payot, 1989 p.83

31

momento dessa transformação, mas elas foram reconfiguradas, redefinidas como

caracterizações secundárias, subordinadas às identidades nacionais.

A concepção de nação, no sentido moderno, ou seja, político aparece por volta

da segunda metade do séc. XVIII. É uma ideia nova e subversiva que traz a contestação

da sociedade dividida em ordens (ou classes) de direitos desiguais e de um poder

monárquico reclamando do direito divino ou o direito de conquista. A nação, diferente

de um agrupamento de população definido pela sujeição a um mesmo monarca, é posta

como independentemente da historia dinástica ou militar: ela preexiste ou sobrevive à

seu príncipe. Um topos intelectual, reativado de maneira recorrente, opõe duas

concepções antagonistas de nação. Uma seria oriunda da Revolução Francesa, e a outra

do romantismo alemão. A primeira seria racional, progressista e democrática; a segunda

seria reacionária e fundada sobre a emoção. De um lado a livre adesão dos indivíduos a

uma entidade política igualitária, e do outro a submissão a um determinismo

organicista. No quadro da grande revolução ideológica engajada no fim do séc. XVIII, a

nação é concebida como uma comunidade de origem, instituindo uma igualdade e uma

fraternidade de princípio entre seus membros. A criação das identidades nacionais vai

consistir em inventariar esse patrimônio comum, embora se trate na realidade de

inventá-lo.

A formação das identidades nacionais não se limita à elaboração de novas

referências coletivas; ela é acompanhada de um gigantesco trabalho pedagógico para

que cada vez mais a população as reconheça, e se reconheçam nelas.

32

Se considerarmos as diversas identidades nacionais europeias, constata-se que

elas se declinam segundo uma lista comum. Todas as nações possuem: ancestrais

fundadores, uma historia estabelecendo uma continuidade da nação através dos anos,

uma série de heróis encarnando os valores nacionais, uma língua, monumentos

culturais e históricos, lugares de memória, uma paisagem típica, folclore, sem contar

com algumas identificações pitorescas como costumes, gastronomia, animal

emblemático etc.

A “Check-list” identitária, como nomeia a autora Anne Marie Thiesse, essa série

de outros fatores identificadores, constitui a matriz de todas as representações de uma

nação. Ela fornece a base iconográfica postal e, sobretudo monetária (são geralmente os

grandes homens, as paisagens, os monumentos históricos, as grandes obras culturais que

ilustram as cédulas bancarias).

A formação das identidades nacionais foi um ponto alto da “invenção das

tradições”. Mas os criadores têm frequentemente reutilizado elementos mais antigos,

emprestados aos símbolos religiosos, aristocráticos ou monárquicos, que foram

reorganizados e reinterpretados.

A construção das nações com comunidades de origem começa no séc. XVIII,

dentro do vasto conjunto de ancestrais, que são tidos como fundadores. A reivindicação

de filiação acompanha o anuncio de um postulado: o povo é um museu vivo, depositário

dos vestígios da cultura original dos grandes ancestrais. Graças à tradição popular, o

legado primitivo pode ser conservado através dos tempos, a preço de algumas

modificações. A investigação da cultura popular deve permitir de exumá-la e de mostrar

33

os fundamentos de uma cultura nacional moderna. Essa promoção da cultura popular é

coerente com a revolução ideológica que faz do Povo constituído em nação o único

detentor da legitimidade do poder, como por exemplo Guilherme Téo, Jeane D’Arc.

A cultura popular que se encontra promovida como fundamento da cultura

nacional não se confunde com a cultura viva do campesinato. Trata-se, sobretudo de

uma construção trazida pelos escritores destinada a operar uma renovação da cultura

letrada.

Os Estados-nações europeus são munidos de uma língua nacional bem

identificada, normatizadas por um dicionário e gramáticas cuja aprendizagem é a base

da escolaridade. Há alguns casos de línguas comuns a vários Estados (Áustria e

Alemanha) ou casos de países reconhecendo várias línguas nacionais (Bélgica, Suíça,

Irlanda, etc.), mas a força da identificação “uma nação, uma língua” se manifesta pelo

fato que a ruptura da Iugoslávia conduziu uma disjunção linguística entre seus ex-

dependentes: servo e croata, definidas anteriormente como uma única e mesma língua

transcrita em dois alfabetos, são atualmente consideradas oficialmente com diferentes.

A paisagem linguística do período pré-nacional era sensivelmente diferente. Em

um mesmo espaço coexistiam ordinariamente línguas escritas e orais diversificadas,

cujo uso era determinado pelo contexto da comunicação assim como o status social dos

locutores. Língua do culto, língua das elites, língua administrativa, língua de ensino

podiam ser distintas, enquanto que a massa da população falava dialetos não-escritos.

Nos Estados alemães protestantes, por exemplo, a língua do ensino religioso e de ensino

34

primário era o alemão, enquanto o ensino secundário privilegiava o latim e a língua de

expressão cultural era frequentemente o francês.

A monarquia francesa havia imposto precocemente o francês nos atos

administrativos, depois mantém a criação literária e científica nesta língua e criada uma

academia encarregada de cuidar de sua pureza e glória.

Uma língua nacional é encarregada de preencher funções múltiplas. Ela deve

assegurar a comunicação vertical e horizontal no interior da nação, qualquer que seja

sua origem geográfica e seu status social, todos os membros devem compreendê-la e

utilizá-la.

No inicio do séc. XIX as nações europeias não tinham ainda história. Mesmo

aquelas que já tinham começado a celebrar seus ancestrais fundadores dispunham ainda

de alguns capítulos incompletos de uma narrativa cujo essencial ainda faltava escrever.

Alguns decênios mais tarde a maioria das nações dispunham de uma narrativa

retraçando uma longa, dolorosa e heroica caminhada para a liberdade. As histórias

nacionais, geralmente de inspiração liberal, se multiplicam a partir dos anos de 1820-

1830. Os eruditas decifram, publicam e interrogam os manuscritos e os arquivos

constituídos na era pré-nacional e os reinterpretam. Pois a história de uma nação se

distingue fundamentalmente da de uma monarquia. Ela coloca em evidência a

continuidade e a unidade da nação através dos anos. A história de uma nação é antes de

tudo a história de uma resistência contra a tirania, e contra um ser coletivo, ou seja, um

outro povo invasor.

35

Esses mitos nacionais nos parecem, de nação para nação, extraordinariamente

parecidos. As diferenças de um país para outro que pareciam intransponíveis aos

contemporâneos, nos parecem atualmente apenas nuances, diferenças de graus,

variações no interior de uma estrutura perfeitamente coerente.

As grandes batalhas em que a nação combateu por sua liberdade constituem um

tema privilegiado pela iconografia nacional. O acento é posto sobre a resistência

patriótica, não sobre a conquista.

O estabelecimento de histórias nacionais coincide com um movimento que

emerge na França com a Revolução e com as guerras napoleônicas: a invenção dos

monumentos históricos. Antes existiam edifícios pertencentes a proprietários que

dispunham livremente desses edifícios segundo seu gosto, suas necessidades e seus

recursos. Frequentemente, o proprietário de um imóvel antigo tentava modernizá-lo para

torná-lo mais confortável ou mais de acordo com a estética do dia. Igrejas e castelos

foram constantemente modificados e transformados. Com a formação da ideia de nação

aparece a ideia de patrimônio material coletivo. Danificar esta herança é como diz o

termo “vandalismo” inventado no momento da revolução francesa pelo republicano

abade Gregoire, um bárbaro estrangeiro à nação.

Atualmente é possível evocar uma nação por uma paisagem: a publicidade, os

cartazes turísticos o fazem regularmente. Se a leitura é geralmente imediata e sem

ambiguidade, é que uma condição da natureza em termos nacionais foi trazida no séc.

XIX pelos pintores, poetas e escritores. São eles que produzem nos espaços naturais, e

36

segundo uma estética coerente, vistas carregadas de sentidos presos a um sentimento

patriótico.

A determinação de uma vegetação nacional precisa o cliché. A paisagem

nacional francesa é mais complexa já que aparece essencialmente sob a forma de um

conjunto de paisagem regionais muito diversas. Nos Alpes por exemplo e nos Pireneus

orientais temos carvalhos, castanheiros, pinheiros. A flora não mediterrânea apresenta

da Bretanha até o nordeste e na região central da França, o carvalho séssil e a faia

europeia.

A natureza entra no domínio identitário nacional como os monumentos

históricos ou as tradições: ela pode ser declarada frágil, ameaçada de destruição

iminente pela modernidade, como por exemplo a substituição de prédios antigos de um

dado momento histórico por prédios mais coerentes com a modernidade.

Ao transcrever uma nação em territórios, exige-se que se aborde um problema

crucial: como definir o território da nação? Como definir e legitimar limites materiais

entre nações? Diferentemente dos reinos e impérios, as nações não se podem reclamar

do direito de conquista sobre outras nações. O principio nacional estabelece uma

igualdade de princípios entre nações e não permite teoricamente à nenhuma nação

anexar o patrimônio de uma outra. Uma nação digna desse nome só tem o direito de

combater para proteger sua herança contra as agressões exteriores e eventualmente

recuperar à que lhe foi privada, retirada. O estabelecimento dos direitos de propriedade

sobre um território se torna consequentemente algo muito maior, como o argumento da

continuidade de detenção desta herança.

37

3 – A CONTRUÇÃO DA NACIONALIDADE

Serão examinados, neste capítulo, os processos pelos quais passaram as nações

europeias para alcançar tal status. Como o conceito de nação varia de acordo com cada

momento histórico, como vimos no capitulo anterior, buscaremos analisar como este

conceito foi trabalhado em cada momento durante o processo de formação das nações

europeias.

Na segunda metade desse capítulo buscaremos analisar como se deu a formação

da nação francesa, mais especificamente, com o intuito de verificar se o caso da França

se deu da mesma maneira que as demais nações da Europa. Além disso, buscaremos

também analisar como se deu a formação e a implementação de uma língua dita

nacional no caso dos franceses.

E para concluir este capitulo buscaremos analisar como se deu a formação do

estado nacional brasileiro e a adoção de uma língua tida como “nacional” e assim

verificar se este processo se deu devido ao paradigma estabelecido pelos franceses.

38

3.1 – O SURGIMENTO DAS NACIONALIDADES EUROPÉIAS

As nações europeias, como as conhecemos atualmente, são o fruto de uma

construção histórica. Os intelectuais e artistas dos séculos XIX e XX forjaram os

símbolos, os heróis, os acontecimentos. Os romances, os museus e o ensino entre outros

asseguraram sua propagação.

O século XIX foi o século das nacionalidades. Entretanto a passagem da Europa

dos príncipes e reis para a Europa das nações não se deu somente através de

insurreições, guerras e alianças estratégicas. Essa passagem foi preparada e em seguida

acompanhada de uma grande revolução ideológica e cultural, através da qual as nações

foram constituídas como seres coletivos e atores políticos. Ao contrário do que narra a

História romântica, as nações não acordaram no ultimo século para se libertar da tirania,

as nações simplesmente não existiam.

As nações modernas foram construídas de maneira diferente da que nos contam

suas histórias oficiais. A lenta constituição dos territórios ao acaso das conquistas

também não é a origem das nações, ela não é nada mais que a história tumultuosa dos

reinos e principados. O verdadeiro nascimento das nações começa no momento em que

um grupo de indivíduos declara que ela existe e dessa forma tentam provar sua

existência. Os primeiros exemplos não antecedem o século XVIII. Não existiam nações

no sentido moderno, ou seja, no sentido político antes dessa data. A nação é

compreendida como uma grande comunidade, unida por elos que não são nem a

sujeição a um mesmo rei ou soberano, nem o pertencimento a uma mesma religião ou

mesmo a um estado social. A nação não é determinada pelo monarca, sua existência é

39

independente dos acontecimentos imprevisíveis da historia dinásticas ou mesmo

militares.

Segundo Renan “a existência de uma nação é um plebiscito de todos os dias” 13

.

Essa fórmula é frequentemente invocada pra fazer acreditar na tese de uma concepção

especificamente francesa da nação. O que faz a nação, segundo Renan, é “um rico

legado de lembranças” , “como o individuo, é o resultado de um longo passado de

esforços, sacrifícios e devoção”. Renan precisa ainda que “o culto dos ancestrais é

entre todos o mais legitimo, os ancestrais nos fizeram o que nós somos”. Pertencer à

nação significa ser um dos herdeiros desse patrimônio comum e indivisível, conhecê-lo

e reverenciá-lo.

Todo o processo de formação identitária consistiu em determinar o patrimônio

de cada nação e difundir seu culto. Entretanto, para fazer surgir o novo mundo das

nações, não é o bastante inventariar sua herança, mas sobre tudo inventá-la.

O resultado dessa invenção ou fabricação coletiva das identidades não é um

molde único, trata-se então de uma série de declinações da “alma nacional” e um

conjunto de procedimentos necessários para sua elaboração. Atualmente, conseguimos

estabelecer com certa facilidade os elementos simbólicos e materiais que devem

apresentar uma nação que pretende ser digna desse nome. Como vimos anteriormente,

uma nação que pretende ser chamada assim deve possuir uma história estabelecendo sua

continuidade com seus ancestrais, heróis repletos de virtudes nacionais, uma língua,

13

RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation? Paris. Mille et une nuits. 1997 p.5

40

monumentos históricos e culturais, folclore, paisagens típicas, etc. As nações que

conquistaram recentemente o reconhecimento político e sobre tudo aquelas que ainda

estão reivindicando testemunham o caráter prescritivo dessa “check-list” identitária.

Esse sistema de construção das identidades nacionais, que permite montagens diferentes

a partir dos mesmos modelos elementares é, atualmente, de domínio publico mundial,

entretanto foi a Europa que começou a exportar essa ideia ao mesmo tempo em que

impunha seu modo de organização política à suas antigas colônias. Recorrer a essa lista

identitária é o meio mais banal de representar uma nação.

A nação nasce, então, de uma invenção. Porém ela vive somente pela adesão

coletiva a essa ficção. O sentimento nacional só é espontâneo quando é perfeitamente

interiorizado, e para isso é preciso ensiná-lo previamente. A construção da identidade

nacional não está relacionada a nenhuma forma de governo precisamente. A Revolução

Francesa deu à nação uma soberania absoluta e fez da República sua expressão política.

A formação das nações está ligada à modernidade econômica e social. Ela

acompanha a transformação dos modos de produção, a expansão dos mercados,

intensificação das relações e trocas comerciais.

Dentre os elementos identificadores, o culto da tradição, e a celebração do

patrimônio ancestral foram um eficaz contrapeso permitindo às sociedades acidentais

efetuarem mudanças radicais sem a perda dos valores tradicionais. A nação, por

instaurar uma fraternidade laica e consequentemente uma solidariedade de princípios

entre os herdeiros do mesmo legado indivisível, afirma a existência de um interesse

coletivo. O nacionalismo integral, que define o individuo por seu pertencimento

41

nacional, declara ilegítimos os grupos, partidos, sindicatos fundados sobre outros

referentes.

A adesão a esses valores também é usado em muitos casos nos processos de

nacionalização ou integração de um individuo. O filme Les faiseurs de Suisses14

(Os

fabricantes de Suíços) realizado em 1978 por Rolf Lyssy apresenta de maneira cômica

as provas pelas quais deviam passar os candidatos à cidadania helvética, onde tinham

que provar que eram verdadeiros cidadãos Suíços.

Um país com forte imigração como a França, desde muito tempo concede a

naturalização sem fazer do reconhecimento do patrimônio nacional uma condição

prévia, entretanto pressupunha que este reconhecimento viria naturalmente aos novos

residentes, e em todo caso a seus filhos. Dessa forma percebemos que no caso da França

não é necessário estabelecer provas de conhecimento do patrimônio, qualquer pessoa

pode aderir à nação francesa com sua própria cultura.

Historicamente temos como exemplo, como nos mostra a professora de latim

Florence Dupont em seu livro Rome, la ville sans origine, o caso do Império Romano

onde os cidadão vinham do exterior devido as varias conquistas do Império também

eram considerados como verdadeiros cidadãos romanos.

Recentemente, em julho de 2011, acorreu na França um debate entre a Deputada

Eva Joly e o primeiro Ministro François Fillon em razão da vontade da deputada de

14

THIESSE, Anne-Marie. La création des identités nacionales, Europe XVIIIe – Xxe siècle. Seuil. 1999. P.17

42

suprimir os desfiles militares durante o 14 de julho e substituí-lo por um desfile de

cidadãos. Em se tratando de uma tradição francesa por sua vez o Ministro Fillon faz

uma critica dizendo que a Deputada Eva Joly, por ser de origem norueguesa, não

possuía uma cultura antiga de valores franceses. Porém a partir do momento em que o

individuo se naturaliza francês, não importa o tempo, mas sim a adesão a seus valores,

tais como os valores democráticos republicanos, não importando sua origem.

3.2 – A LÍNGUA NACIONAL NA FRANÇA

A nação francesa, a partir da Revolução era vista essencialmente como uma

entidade política, indiferente, ou seja, a França toma um aspecto de simples quadro

institucional e jurídico, um corpo de associados que viviam sob leis comuns e eram

representados pela mesma legislatura. Para esta concepção de nação não importava a

origem étnica de seus cidadão, ou a língua que estes falavam em suas casas, nesse caso,

a nacionalidade francesa era a cidadania francesa.

“Os 1200 guardas do Languedoc, do Delfinado e da

Provença que se encontravam perto de Valence no dia 19 de

novembro de 1789 fizeram um juramento de lealdade à Nação, ao

Rei, e a Lei, e portanto declararam que não eram mais do

Delfinado,da Provença ou do Languedoc, mas apenas franceses;

mais significativamente o fizeram os guardas Nacionais da

Alsácia, da Lorena e do Franco-Condado em um encontro

semelhante em 1790, transformando assim os habitantes das

províncias que tinham sido anexadas pela França, quase um

século antes, em franceses genuínos.”15

15

HOBSBAWM. 1998 P.108

43

No entanto, a língua nativa não era motivo de exclusão, e o francês por si só

também não era indicação de inclusão. Assim os povos anexados, ainda que

considerados franceses, não pertenciam à nação.

“A nação é um corpo político de antemão reprimido, que

expulsa do seu seio os franceses que, mesmo residindo no seu

território, são considerados indignos de lhe pertencer, corpo

dividido ainda por decênios entre cidadãos ativos ou eleitores

dignos de confiança e cidadãos passivos, não eleitores e objeto de

duvidas em virtude de sua pobreza.”16

Dessa forma, a disposição em adotar o francês como língua nacional junto com as

leis foi transformada em sinal de adesão aos ideais revolucionários, pois era o que

realmente importava para a cidadania francesa.

“(...) os franceses revolucionários não precisavam nem

entendiam esse argumento (da língua), dado que lutavam pela

integração dos judeus na nação francesa. De seu ponto de vista, os

judeus sefardim, que falavam espanhol medieval e os judeus

ashkenazim, que falavam idiche – e a França continha ambos –

eram igualmente franceses desde que aceitassem as condições da

cidadania francesa, o que naturalmente incluía falar francês.”17

Nesse momento, não havia uma preocupação em criar uma identidade nacional

popular através da língua. A língua francesa, em princípio, nada tinha a ver com o fato

de ser francês, era tida como um referencial, não de nacionalidade, mas de civilização.

16

HERMET. 1996 p. 93

17 HOBSBAWM. 1998 p. 34

44

Ela simbolizava a adesão à nova ordem estabelecida e devia ser um meio para fortalecê-

la, transformando-se num veículo para novos valores, as verdades da ciência, do

progresso, da liberdade e da Humanidade.

“Se nosso idioma recebeu uma tal acolhida dos tiranos e

das cortes, a quem a França monárquica oferecia teatros,

pompons, modas e costumes, que acolhida não deverá ele esperar

da parte dos povos a quem a França republicana revela seus

direitos ao abrir-lhes a rota da liberdade.”18

Como o idioma francês, que muitos consideravam como universal, torna-se a

língua da liberdade. E por esta razão o abade Gregoire lastima que na própria França

numa população de 25 milhões de habitantes, a língua não seja falada corretamente, ou

ignorada pela maioria da população.

“Pode-se afirmar, sem exagero, que pelo menos 6 milhões

de franceses, sobretudo nos campos, ignoram a língua nacional,

que um número igual é praticamente incapaz de manter uma

conversa continua, que como último resultado, o número dos que

o falam puramente não excede 3 milhões, e que, provavelmente o

número dos que o escrevem corretamente seja ainda menor.”19

A partir dessa constatação, inicia-se um processo que tinha como principal

objetivo transformar a língua francesa em marca oficial de pertença à nação e de

autêntico civismo. Em 1793 a língua francesa torna-se única e obrigatória no ensino

primário. No entanto, a realidade demora cerca de um século e meio para corresponder a

18

CALVET. Louis-Jean. La guerre des Langues et les politiques linguistiques. Paris:Hachette, 1999, p.72

19 Ibidem, p.32

45

esse projeto. Em 1863, grande parte da população francesa continuava a ignorar o que

era suposto ser sua língua. Apenas em 1870 com a implantação da escola laica, publica

e universal da Terceira República é que se alcançará uma conversão linguística efetiva.

Na segunda metade do século XIX, devido a questões de disputas territoriais

internacionais, o conceito de nação necessitou ser revisto. No caso da França a

relevância da língua para uma definição de uma nacionalidade teve de ser reconsiderada

após o episódio de disputas de fronteiras sobre o Reno, quando a Alemanha sustentava

suas reivindicações territoriais por razões linguísticas e a França pela tese de que a auto

determinação de uma nação devia basear-se na livre escolha de seus cidadãos. Os

censos acompanharam a evolução desse problema e a língua falada passou a ser contada

como um critério de peso para definição do princípio de nacionalidade, isso quando não

era tida como mais adequado, senão único elemento capaz de caracterizá-la. Dessa

forma, as nações que, como a França, não haviam sido edificadas a partir dessa

concepção, e elas eram a maioria, tiveram que se adaptar à nova ordem. E essa nova

ordem coincidia com o conceito alemão de nacionalidade. Por essa razão o processo de

unificação linguística que já vinha sendo imposto ao povo francês continuou.

A imprecisão e a subjetividade com que vinha sendo tratado o tema da

nacionalidade deixava claro sua instabilidade. Por isso, mais do que nunca, era preciso

fazer mais do que tornar o francês a língua falada pela população francesa, era preciso

convencê-los da legitimidade desse processo, e, portanto, de que eram genuinamente

franceses.

46

Entretanto, a mudança do conceito de nação não depende apenas da reavaliação

da questão linguística. Na concepção revolucionária do fim do século XVIII, a nação

era vista como uma entidade absoluta, independente de qualquer tipo de

condicionamento histórico. A nação não continuava e nem reconstruía a história, ela era

a abolição do passado num presente que se engendrava através de um novo nascimento.

Assim, no século XIX, surge a necessidade de se fabricar um passado

“nacional” e se empreende uma reinterpretação do passado, retomando e reformulando

mitos antes combatidos pela república.

A monarquia francesa, até o século XVIII, diante da realidade multilíngue que a

rodeava, construiu para si um aparato simbólico que distinguia claramente dois níveis

culturais: o das culturas populares e o da elite letrada privilegiada da sociedade. Quando

os nobres franceses descrevem as cruzadas como “gesta Dei per francos” não havia a

intenção de associar esse triunfo a maioria dos habitantes da França, pois os que se

consideravam descendentes dos francos reconheciam-se diferentes do resto da

população, que descendiam dos povos conquistados. Para atender aos objetivos

democráticos da república a Gália surge como um novo mito de origem. Com a

Revolução os “ancestrais gauleses” do Terceiro Estado, ou seja, do povo triunfaram.

47

3.3 – A LINGUA NACIONAL: O CASO DO BRASIL

No caso do Brasil, o português também se impôs ao nosso meio, tornando-se a

língua nacional do povo brasileiro. Ele é, sem sombra de dúvida, para grande parte da

população, a língua materna, ou seja, a língua que se aprende no meio familiar. No

entanto, não somos um país unilíngue como pensamos, nem em sua origem, nem no

presente. Existem no Brasil centenas de línguas indígenas, além das línguas faladas nas

diversas colônias de imigrantes (italianos, alemães, espanhóis, japoneses etc.), porém

todas parecem estar em um estado provisório, em vias de assimilação; para essas

colônias, o português é quase sempre a segunda língua.

A língua portuguesa chegou ao nosso território a bordo das grandes naus dos

descobridores. Ao contrário do que se pensa, a língua portuguesa não era a língua mais

falada nas colônias portuguesas na América do Sul, ou seja, nas colônias do Brasil e do

Grão-Pará, terras que compõem o território do Brasil atual. Assim, podemos dizer que a

língua portuguesa era usada apenas em dois grandes centros urbanos realmente

portugueses: São Sebastião do Rio de Janeiro e Salvador da Bahia que eram os dois

maiores portos exportadores de riquezas e importadores de produtos manufaturados e,

sobretudo, de mão-de-obra escrava trazida da África. Ao se deslocarem para o interior

das terras, os colonos e aventureiros se viam rapidamente na obrigação de adotar a koiné

de base lexical tupi de uso geral, a chamada língua geral.

Não podemos deixar de ressaltar que não havia escolas na totalidade do território

que hoje chamamos de Brasil, que era então, dividido em capitanias hereditárias. Esses

territórios eram propriedades particulares dadas pelo Rei de Portugal, e assim não

48

desfrutavam de nenhuma prerrogativa das quais um Estado geralmente goza.

Entretanto, nessas terras, eram desenvolvidos projetos como a alfabetização e

evangelização dos indígenas, com a presença dos jesuítas. Além disso, o plano dos

jesuítas incluía a tradução dos evangelhos em língua popular. Entretanto, para que tal

projeto obtivesse êxito seria necessária a criação de uma modalidade escrita para essa

língua popular. Percebemos, então, os mesmos problemas enfrentados pelos grandes

reformadores da religião na Europa, como Martin Luther, John Knox, Jean Calvin:

como se traduzir a bíblia numa língua compreensível pelo povo quando não há uma

escrita popular oficial e onde a realidade linguística é constituída por uma grande

variedade de dialetos cujas diferenças tornam sua intercompreensão problemática.20

A solução encontrada foi praticamente a mesma: a criação de uma língua média

que fosse compreendida por todos, ou grande parte da população, e que não fosse língua

materna de ninguém. Assim como em muitos países da Europa, um grande mosaico de

variantes regionais passou a conviver com uma variante criada para servir a modalidade

escrita, própria para ser difundida através da recente invenção da imprensa e tipografia

que permitia a criação e difusão de textos mais homogêneos. Assim, a língua geral tinha

tudo para se tornar a verdadeira língua nacional brasileiro, com seu papel identitário no

surgimento de um nacionalismo, podendo ser comparada às nações europeias tanto no

processo de nascimento quanto no de consolidação.

20

GUISAN, Pierre. Brasil: Quando um país está à procura de uma língua nacional. Cuadernos de

Ilustracíon y Romanticismo N°17. Universidad de Cádiz 2011.

49

Atualmente, a língua geral sobrevive numa forma crioulizada no norte do país

com o nheengatu21

. Porém, a situação linguística do Brasil podia ser resumida da

seguinte forma: os colonos de origem portuguesa falam o português europeu com traços

específicos que vão se acentuar com o passar do tempo. As populações de origem

indígena e africana aprendem o português, mas a utilizam de maneira imperfeita. Ao

lado do português havia a Língua Geral, como dissemos anteriormente, de base tupi,

língua falada pelos indígenas que habitavam as costas brasileiras. Entretanto esta língua

geral era um tupi gramaticalizado pelos jesuítas que se tornou a uma língua comum.

Durante muito tempo, essa língua geral e o português viveram lado a lado como

línguas de comunicação. Porém no final do século XVIII a língua geral entra em

decadência por várias razões, tais, como: a chegada de inúmeros imigrantes

portugueses, além de uma lei promulgada pelo marquês de Pombal em 3 de maio de

1757, aplicada inicialmente ao Pará e ao Maranhão, e depois, em 17 de agosto de 1758,

estendida a todo território brasileiro, que proibia o uso oficial da Língua Geral e

tornava obrigatório o uso do português. Além disso, a expulsão dos jesuítas, em 1759,

afastou os principais protetores da chamada Língua Geral.

Com essas medidas, o marquês de Pombal não só conseguiu inviabilizar a

promoção da Língua Geral à língua nacional do Brasil como também garantiu à língua

Portuguesa ser a única candidata ao status de língua nacional e de modalidade escrita.

Uma função importante da língua, além da comunicação, é a função identitária.

21

GUISAN, Pierre. La revue générale. Numéro 11-12/ 2011. 45

50

Quando os estados nacionais começam a surgir, a partir do século XVI, a língua irá

constituir um mito importante na construção da identidade nacional, como parte

essencial da ideologia que vai legitimar a consolidação paralela do estado moderno.

Quando o Brasil se consolidou como nação independente em 1822, o país se

constituiu em um império cujo primeiro monarca, D. Pedro I, era filho de D. João VI,

rei de Portugal, e a família Real que havia se refugiado aqui devido a invasão das tropas

napoleônica, ocasionaram assim um “reaportuguesamento” intenso na língua falada nas

grandes cidades. Assim, nesse momento podemos dizer que a unidade do Brasil ainda

não era baseada em questões linguísticas, mas apoiava sua legitimidade na presença de

uma figura real.

Com a instituição da Republica em novembro de 1889, será necessário encontrar

outras formas de legitimidade política que resultará no movimento autoritário e

nacionalista da era Vargas. O Brasil encontrará nas nações europeias já consolidadas

modelos prontos a serem seguido, como já mencionamos antes. Nesse caso, a França

geralmente serve como paradigma durante esse processo. Assim, serão elaborados

novas formas administrativas e novos instrumentos de identificação popular com a

nação pelo envolvimento emotivo do individuo por intermédio dos símbolos nacionais

que deverão atingir o cidadão em um nível coletivo e também no âmbito familiar. Dessa

forma, como na maioria dos casos, a língua será instrumentalizada e mitificada como

elemento fundador e unificador da nação. Dentre todos os elementos unificadores a

língua é o que parece apresentar uma maior vantagem por estar presente na vida de

todos os indivíduos desde o seu nascimento, e se esse não fosse o caso, como o dos

imigrantes que habitavam e que habitam ainda o Brasil seria preciso um processo de

51

uniformização.

É justamente nesse momento que se oferece aos indivíduos elementos de culto

nacional como os hinos nacionais, a bandeira, os heróis nacionais além da instituição

das datas de comemorações cívicas e que se define a língua como elemento de formação

da nacionalidade brasileira. Ao longo do Estado Novo, várias medidas relativas à língua

serão tomadas com o intuito de fazer que o ideal de brasilidade fosse atingido de fato.

Assim, apesar de a língua portuguesa ser, sem sombra de dúvida, a língua da nação, o

importante nesse momento não era a afirmação da língua, mas seu potencial

representativo e o efeito que teria no imaginário linguístico dos falantes.

A atitude política tomada nos anos 1930 pelo projeto nacionalista do governo

Vargas, ao proibir aos estrangeiros, imigrantes e seus descendentes, o uso do idioma de

seus países de origem. Essa decisão nos mostra um amplo projeto de nacionalização

formado pelo Estado Novo que dá ênfase à unidade nacional com base em um governo

central forte e no uso exclusivo da língua portuguesa.

Considerada a língua uma das mais fortes expressões culturais e identitárias a

imposição do português com a simultânea interdição das outras línguas foi imposta e

atingiu grupos de origem estrangeiras.

Até o Estado Novo vários núcleos de imigrantes foram estabelecidos,

principalmente na região sul, em especial nos estados de Santa Catarina, Paraná e Rio

Grande do Sul, onde haviam implantado seus próprios sistemas de educação, que eram

ministrados em suas línguas de origem o que não era visto com bons olhos pelos

52

governantes, que temiam o surgimento de várias nacionalidades no interior do Brasil.

”Essa vaga nacionalista atinge de modo contundente as regiões de colonização alemã,

já que os imigrantes italianos eram vistos como mais facilmente assimiláveis”22

. Entre

todas as outras colônias de imigrantes, os alemães eram considerados os mais bem

organizados, transmitindo a seus descendentes, língua, costumes, cultura e patriotismo.

Dentre todas as colônias de imigrantes que havia no Brasil, a colônia alemã foi a

que mais sofreu repressão oficial. Esta pressão foi justificada pela ideia de que seriam

centros de formação nazistas, como deixa claro a autora Cynthia Machado Campos:

“o Estado getulista perseguiu certos segmentos como

inimigos da pátria e da nação, acusando parte dos descendentes de

imigrantes alemão de nazistas, mas ao mesmo tempo adotou

métodos muito semelhantes àqueles vigentes na Alemanha do

mesmo período.”23

No ano de 1938 intensificaram as medidas legais e os projetos identificados com

a construção da nacionalidade brasileira. Analisando os fatos de maneira mais

minuciosa, podemos identificar vários fatores semelhantes entre a imposição do francês

como língua nacional na França e do português em relação ao Brasil, verificando assim,

mais uma vez, que o modelo francês serviu de base na construção do imaginário do que

seria uma língua nacional.

22

CAMPOS, Cynthia Machado. A politica da língua na era Vargas. São Paulo. Ed. Unicamp. 2006 p. 15

23 CAMPOS, Cynthia Machado. A politica da língua na era Vargas. São Paulo. Ed. Unicamp. 2006 p. 15

53

4 – LINGUA E IDENTIDADE

Nesta ultima parte serão analisados algumas relações que são geralmente

estabelecidas entre língua e outros conceitos como ideologia, cultura, escrita etc. A

primeira relação que será analisada neste capítulo será a relação existente entre língua e

ideologia visando assim verificar como a língua é representada no imaginário dos

indivíduos.

Além disso, buscaremos analisar primeiramente com quais tipos de conceitos em

relação à escrita iremos trabalhar e alguns tipos de escritas escolhidas pelas nações

modernas. Como cada nação deve possuir uma língua bem definida buscaremos

também analisar qual a relação existente entre a escrita e a língua nacional no processo

de formação das nacionalidades.

Outro fator que tentaremos analisar neste capítulo será a relação estabelecida

entre língua e cultura. Entretanto, percebemos desde já que tais termos parecem estar a

muito tempo ligados e sendo na maioria das vezes indissociáveis.

E por ultimo, porém não menos importante, tentaremos analisar a relação entre a

língua tida como nacional e a escola. Sendo assim, buscaremos analisar qual o papel

desempenhado pela escola na imposição e representação da língua escolhida como a

língua da nação.

54

4.1 – Ideologia linguística

Parece não haver dúvidas de que a língua, enquanto meio de comunicação, possa

ser base para inicio de uma construção de identidades individuais e coletivas. Dessa

forma, dentro de uma mesma comunidade linguística pessoas ou grupos de pessoas

podem se diferenciar pelo uso de línguas ou registros de línguas diferentes. Assim,

pessoas que falam línguas mutuamente incompreensíveis podem identificar-se como

pertencentes a comunidades distintas. Além dos exemplos cotidianos, existem casos e

passagens históricas que ilustram muito bem essa relação existente entre língua e

identidade, tendo assim o linguista Louis-Jean Calvet24

apontado o fato de que já os

primeiros grupos de homens falantes teriam se confrontado com os problemas da

intercompreensão e da não-compreensão, o plurilinguismo e os juízos de valor sobre a

linguagem dos outros. No entanto, seria necessário não confundir fenômenos desse tipo

com a ideia que barreiras linguísticas possam separar entidades ditas nações ou

nacionalidades potenciais, pois nestes casos não se trata simplesmente de grupos de

pessoas que têm dificuldades de compreensão mútua. As coletividades humanas

conviveram por muito tempo com situações de multilinguismo, não tendo sido nunca a

língua o único nem mesmo o principal fator de unidade ou de separação.

Ao que parece, às línguas só era dado uma função identificatória como critério

de vinculo ao grupo, enquanto com isso se pretendia afirmar outros aspectos que nada

tinham a ver com características propriamente linguísticas, como noções de

superioridade, de missão civilizadora. Força poder etc. a ideia de que as línguas

24

CALVET, Louis-Jean. La guerre des langues et les politiques linguistiques. Paris: Hachette (Pluriel),

1999 (1er

ed.: 1987)

55

pudessem de certa forma simbolizar o poder de uma classe governante é antiga, nesse

sentido dizia-se que língua sempre foi amiga do império, ainda que isso não eliminasse

a realidade de multilinguismo de impérios e reinos. No século XVII, estima-se que

língua francesa vale tanto quanto, ou mesmo mais, que a língua latina, e acredita-se que

ela teria atingido um estagio de perfeição digno de ser preservado. Os gramáticos obtêm

o direito de regular a língua, de distinguir o que é ou não razoável em termos

linguísticos, e os grandes escritores clássicos são reconhecidos como modelos na arte de

escrever. Essa valorização não é um reflexo apenas de uma disputa em termos

linguísticos entre as línguas neolatinas a fim de conquistar o espaço deixado pela língua

latina enquanto parâmetro de língua da cultura; “a França, antes ainda que o resto da

Europa, considerou precocemente que a língua manifestava o poder do Estado”25

.

Confirmava-se seu grande prestigio internacional, como língua das Cortes, da

diplomacia e da alta cultura. Posteriormente, a língua francesa será associada a ideia de

progresso como o veiculo mais adequado para a regeneração e edificação do gênero

humano.

Dessa forma, percebemos que às línguas não são atribuídas apenas funções

comunicativas, mas também são atribuídos certos preconceitos ou mesmo ideias de

prestigio e de superioridade.

A ideologia é, em muitos casos, a forma da qual o homem se utiliza para compor

o quadro de dominação de uma sociedade. Muitas vezes, língua e ideologia se fundem

de tal maneira que é aparentemente impossível dissociar uma da outra. A língua é a

25

BOYER, Henri (org). Sociolinguistique , Territoire et objets. Lausanne & Niestlé, 1996 p.87

56

principal arma pela qual a ideologia se constitui. É através da língua que a classe

dominante impõe seu domínio, elevando sua categoria de superior e única seu modo de

fala e também de se expressar, rejeitando e subjugando toda e qualquer contrariedade ou

diferença. As variações regionais ou falares que se restringem a uma determinada

comunidade de fala são tidos como erradas.

O estudo das ideologias das línguas geralmente nos mostra uma série de mitos e

preconceitos que fazem parte do imaginário geral da sociedade. A luta entre as classes e

a consequente dominação de uma sobre a outra é uma fator inerente ao ser humano.

Assim como o desrespeito pela diversidade de classes não é algo recente. E esse

desrespeito pelas classes estigmatizadas atinge também a língua falada por essa classe

estigmatizada.

Podemos perceber, então, que a ideologia concede à classe dominante o status, a

posição de falante padrão, um modelo a ser imitado, como ocorreu, como vimos, no

caso do francês em relação às línguas regionais.

Existe em todas as sociedades um forte desejo de se falar a língua correta, a

língua padrão, a língua da classe dominante que detém o prestigio social. Devemos

também ressaltar que tais acontecimentos acorrem em todas as sociedades. Um exemplo

desse fenômeno é o caso da França que prega o Bon Usage da língua, que se trata de um

tipo de manual que mostra a maneira correta segundo a qual o francês deve ser usado,

resultando no uso da língua pura. Porém sabemos que tal realização não existe, visto

que não existem línguas puras ou impuras que não passam de mitos criados por essas

classes dominantes para legitimar o poder de uma língua sobre outra.

57

4.2 – A escrita e a língua nacional

A escrita é, em nossas sociedades, uma coisa sobre a qual não nos espantamos

ou nos questionamos. A língua é considerada como tendo duas formas, uma oral e uma

escrita. Todos conhecem o famoso ditado latino “verba volent, scripta manet” “as

palavras voam a escrita fica”, levando em consideração esse ditado, percebemos que a

comunicação oral é de certa forma fugaz, e sujeita a variações, deficiência da língua

falada que atualmente foi sanada pelo uso do gravador, e a escrita tem então sua

principal função: a de conservar a fala preservando a língua de certa forma contra as

forças variacionistas, além de registrar o que foi dito.

Dessa forma segundo o senso comum a escrita é subordinada à fala e ela tem

como função, além de conservar a fala, dar a palavra ao locutor que não está presente,

prolongar sua mensagem além da distância e do tempo que o som da voz pode alcançar.

A partir dessa ideia surgem duas outras afirmações, a primeira delas de que a

fala teria existido antes da escrita, que é um dos argumentos utilizados por muitos

“dialetos” para requererem o status de língua, já que a escrita tem a função de substituí-

la, e outra afirmação de que a escrita deve ter um caráter fonético, já que ela substitui a

fala. Para o senso comum, a escrita está estreitamente relacionada à língua, originada

dela, de um defeito que a caracteriza, logo, ela a completa. A escrita é considerada

como um complemento da língua. E se a escrita é considerada como um complemento

da língua, então se pode dizer que existem línguas incompletas, já que há línguas que

não têm escrita, como as línguas indígenas, línguas africanas, sendo este um dos

58

principais argumentos utilizados para as definições entre os conceitos de “línguas” e

“dialetos”.

O escritor suíço Jean-Jacques Rousseau faz distinção entre três maneiras de

escrever:

1.A primeira delas leva em consideração não os sons, mas as ideias, como os hieróglifos

egípcios.

2. A segunda leva em consideração representar as palavras e as propostas através de

caracteres convencionais, como é o caso do chinês. (ideogramas)

3. E a terceira analisar a fala em alfabeto, ou seja, cada letra representa um som.

Essas três formas de escrever, segundo Rousseau, responde exatamente aos três

estados sob os quais se pode considerar os homens reunidos em nações. A pintura de

objetos, segundo ele, é conveniente aos povos selvagens, os sinais das palavras e

propostas aos povos bárbaros e o alfabeto às nações civilizadas. A escrita é um

procedimento do qual nos servimos para fixar a língua.

As línguas refletem a complexidade dos grupos sociais que as falam e é

legítimo compará-las entre elas quanto ao número de falantes que as praticam e também

à variedade de assuntos que elas nos permitem abordar. As línguas vernáculas que

servem às necessidades locais podem ser consideradas “menos desenvolvidas” do que

as línguas estandardizadas utilizadas por diversos grupos linguísticos e que preenchem

todos os tipos de funções linguísticas.

A estandardização de uma língua, qualquer que seja seu domínio de aplicação,

59

implica na uniformização de uma série de elementos, ou seja, a supressão da variação,

possibilitando dessa forma uma maior compreensão por parte dos falantes. As línguas

Standard têm a sua etapa mais importante no momento em que os falantes sentem a

necessidade de fixar um conjunto de normas linguísticas comuns. Qualquer que sejam

as formas, a diversidade linguística ocasiona vários problemas aos Estados-Nacionais e

estes se veem conduzidos a por em prática uma política linguística. Os Estados-

Nacionais têm então diversas atitudes para com as diferentes línguas faladas no interior

de suas fronteiras. O Estado pode, por exemplo, optar por uma política de assimilação

linguística que terá como efeito organizar a eliminação de todas as línguas exceto

aquela que ele pretende manter. Podemos reconhecer, então, enquadrado nesse modelo a

política linguística adotada pela França em relação às línguas minoritárias faladas no

interior de suas fronteiras, pois a eliminação da variação vai favorecer a comunicação

em um maior lapso de tempo e espaço, eliminando também possíveis mal-entendidos.

Além disso, o grupo pode esperar de uma língua uniformizada que ela tenha o papel de

símbolo de identidade coletiva. Os grupos sociais que se tratam de nações, minorias

oprimidas, grupos marginais ou elites dominantes, fazem uso da língua como um meio

de reforçar sua identidade, e em alguns casos seu poder contra outros grupos.

A estandardização de uma língua é mais fácil de ser realizada na escrita do que

na língua falada. Embora a invenção da imprensa no século XV tenha facilitado a

produção de textos homogêneos, que possibilitou de certa forma a disseminação da

língua standard, a variação na língua oral não pode ser suprimida tão facilmente. Era

necessário então descobrir quais normas deveriam ser seguidas. Neste caso, são em

geral os grupos que possuem um certo grau de prestigio na sociedade em que vivem que

fornecem os modelos a serem seguidos, apesar de estes grupos, entretanto, não terem

60

nenhuma razão de ser estáveis ou mesmo homogêneos. É o que explica a tendência da

língua escrita estar mais estável, como o modelo de referencia para a língua falada, e, de

considerar a escrita como uma forma “superior” à oral.

O linguista Einar Haugen em um estudo intitulado “Dialeto, Língua e Nação”

distingue dois tipos de estandardização: os processos sociais e os processos

linguísticos.26

. Os processos sociais concernem as modificações na posição de uma

determinada língua tida como standard em uma dada comunidade linguística. No inicio

produz-se o que Haugen chama de seleção na região considerada de um dado dialeto

cujo emprego será privilegiado nos domínios políticos e econômicos. Segundo ele, este

dialeto será, em geral, aquele do grupo dominante na sociedade em questão, Mas não é

sua superioridade que o torna favorito em relação aos outros, mesmo que sua situação

geográfica já o tenha validado o seu status de língua franca. Uma vez escolhida, essa

variante linguística deve ser ainda difundida e adotada pela comunidade falante, e da

mesma forma ela não deve ser a variante linguística de ninguém.

Assim, a língua standard se torna o símbolo da nova “identidade nacional” ,

preenchendo o duplo objetivo de coesão interna e de diferenciação externa.

“(...) ela (a língua) serve de cimento ao novo agrupamento

“nacional”, ao mesmo tempo em que ela permite distinguir a nova

“nação” das “nações” vizinhas. ”27

26

HAUGEN, Einar. Dialeto, língua, nação. In: Norma Lingüística. Editora Loyola, São Paulo, 2001 p. 100

27 LODGE, R. Anthony. Le français – Histoire d’um dialecte devenu langue, traduit de l’anglais par Cyril

Veken, Fayard, 2002. P. 42

61

Quanto aos processos linguísticos que intervêm na estandardização de uma

língua trata-se daqueles que trazem modificações ao corpus da língua. Haugen

distingue, então, dois tipos: “a elaboração da função e a codificação”28

. Si um vernáculo

oral deve se tornar a língua destinada a abordar todos os assuntos e todas as

necessidades de uma sociedade desenvolvida, lhe será necessário então colocar em

prática as ferramentas linguísticas necessárias, e para isso adquirir uma forma escrita

assim como um léxico que os documentos escritos requerem. Este vernáculo vai, da

mesma forma, ter que adaptar seu léxico para abordar uma gama cada vez maior de

domínios, o que não quer dizer que os vernáculos falados não dispõem de uma

gramática de grande complexidade ou de um vernáculo extremamente refinado nos

domínios que são culturalmente importantes para as comunidades em questão, trata-se

simplesmente de destacar que os vernáculos falados propõem cada um uma área

limitada de conjuntos lexicais desse tipo e que domínios inteiros da atividade humana

nas sociedades com tecnologias desenvolvidas permaneçam fora de seu alcance.

Como vimos com a primeira parte no processo de estandardização trata-se da

“seleção” do dialeto próprio a uma dada área geográfica que irá constituir a base da

futura língua standard, no caso da França a variante escolhida será a da nobreza, a

variante falada pelo rei, no caso a variante falada na capital. Essa seleção das formas

que vão constituir as normas é um processo social que provoca importantes

modificações no status dado às variantes em questão.

28

HAUGEN, Einar. Dialeto, língua, nação. In: Norma Lingüística. Editora Loyola, São Paulo, 2001 p. 111

62

Do ponto de vista social, a estandardização de uma língua tem como objetivo a

adoção, por parte de toda a comunidade, de um conjunto de normas linguísticas supra

regionais, e a fixação linguística permite atingir uma maior eficácia funcional e oferece

possibilidades de comunicação consideravelmente estendida. A noção de norma

linguística não é simples e o termo é empregado em acepções extremamente diversas,

sendo necessário assim distinguir dois possíveis significados para o termo. A norma tida

como fato de descrição, ordem estatística, corresponde ao sentido do adjetivo “normal”,

ou como modelo, referência do que traduz um comportamento social aceitável

corresponde ao sentido do adjetivo “normativo”. Assim, é mais fácil estandardizar a

língua escrita do que a língua falada, como explica R. Antony Lodge.

“Uma vez que a variante Standard foi selecionada, a

escrita é um agente poderoso para assegurar a disseminação, e,

sobretudo a medida que a alfabetização se estende e que a

imprensa coloca os textos escritos ao alcance de um numero cada

vez maior de pessoas. A medida que as formas escritas adquirem

prestigio e são consideradas como as formas “corretas”, elas

exercem uma pressão crescente sobre a fala. A língua Standard

escrita age como uma norma, uma modelo e um guia”29

.

Durante o período da Revolução Francesa, a língua oficial passou por um

processo de tentativa de universalização em todo o território nacional. Acompanhando

os acontecimentos históricos e os sentimentos de nação que se desenvolviam, a

universalização da língua seria um fator primordial para a compreensão e aceitação das

leis formuladas durante este período.

29

LODGE, R. Anthony. Le français – Histoire d’um dialecte devenu langue, traduit de l’anglais par Cyril

Veken, Fayard, 2002 p. 121-122

63

Dessa forma, era necessário aniquilar as variantes regionais existentes no interior

do território francês, chamadas de forma pejorativas de “patois”, que simbolicamente,

para os revolucionários, impediam a existência de uma nação liberta, igualitária e

fraterna, ideologias usadas pelos revolucionários como uma forma de promover o

francês escrito ao seu status de língua. O fato de serem línguas ágrafas era um dos

argumentos recorrentes por parte dos revolucionários contra os “patois”, visando, assim,

valorizar a variante linguística que estaria sendo imposta e que possuía uma

documentação bem definida, na medida em que havia uma escrita padronizada

intitulada como representante dessa variante. Com isto, utilizavam-se imagens de

genialidade e perfeição para a língua oficial, baseando-se sempre na existência desta

escrita estandardizada como argumento principal.

Como vimos, esse movimento de patriotismo se estendeu ao domínio da língua e

pela primeira vez associou-se língua e nação. Durante o período da Revolução Francesa

houve a necessidade de uma unificação linguística, não só pelo fato de proporcionar

uma maior propagação das leis desenvolvidas nesse período, mas também porque o

novo regime governamental seria melhor identificado pelos indivíduos franceses. Com

isto, esta identificação seria um dos objetivos da construção de uma imagem de língua.

E também pelo fato de que a França revolucionária que tinha como ideia principal uma

“República una e indivisível” e cuja única divisa era “Liberdade, Fraternidade e

Igualdade para todos” não podia se conciliar com a divisão linguística e o

particularismo das antigas províncias, e, deveria, dessa forma, se unificar tanto

politicamente quanto culturalmente para que se pudesse assim introduzir os cidadãos às

novas formas de produção de bens de consumo, em outras palavras, este país estava se

preparando para construir sua Revolução Industrial.

64

Dessa forma a construção de imagens tanto de língua, quanto de cidadão

pertencente a esta nação uniforme cultural e linguisticamente, proporcionaram a

aceitação e identificação desta mesma. Assim, um dos argumentos mais convincentes

para que essa representação de língua fosse aceita possibilitando, desta forma, o seu

aprendizado, fora a necessidade de se alfabetizar a população, de adquirir uma escrita e

uma fala, ambas vinculadas a esta modalidade escrita Standard, justificando, desta

forma, o argumento utilizado para a imposição do francês, a oposição entre a variante

com escrita e as variantes ágrafas.

4.3 – Língua e cultura

Um dos principais objetivos da Revolução era o de unificar a França, fazendo

reinar uma homogeneidade tanto política quanto também no âmbito linguístico. Pois

acreditava- se que suprimindo as outras línguas que não possuíam o mesmo status do

francês, poderia assim apagar qualquer vestígio do que tinha sido a forma

governamental anterior. Tal pensamento se dava pelo fato de se acreditar que falando

uma mesma língua seria facilitada a disseminação das leis e dos ideais da Revolução.

Além de informações, ideias, as línguas também têm poder de transmitir

pensamentos e costumes de uma “nação”, ou seja, também podem transmitir a cultura

dessa “nação”.

Assim devemos, primeiramente, estabelecer com qual definição de cultura

estaremos desenvolvendo nesse trabalho. Segundo o dicionário Le Petit Robert de la

Langue Française a cultura é: ensemble des connaissances acquises qui permettent de

65

développer le sens critique, le goût, le jugement; ensemble des aspects intellectuels

propres à une civilisation, une nation.30

Assim, podemos notar que de certa forma a

definição de cultura também está relacionada ao conceito de nação.

Para Lyons, cultura deve ser entendida num sentido antropológico, sem

levarmos em conta nenhum julgamento de valor, quanto à qualidade estética ou

intelectual da arte de determinadas sociedades. Assim, a partir desse ponto de vista a

língua e a cultura de uma nação são manifestações de seu espírito ou de sua mente

nacionais distintivas. Cultura pode ser descrita como o conhecimento que um individuo

possui em virtude de ser membro de uma dada comunidade, conhecimento esse que

envolve o saber prático. Não se deve, estabelecendo uma relação entre língua e cultura,

priorizar o conhecimento técnico em detrimento do conhecimento prático, ou mesmo da

chamada superstição. A língua é um traço cultural adquirido em função do individuo

pertencer à determinada sociedade.

As línguas não têm finalidade em si mesmas, são um meio de expressão e

comunicação social, por esta razão são acompanhamentos de cada fato cultural, dando-

lhe um acréscimo linguístico e permitindo a atuação dos membros na comunidades. As

línguas são elementos arbitrários em relação ao meio físico, ao contrário da religião que

está ligada às condições de vida. Isso faz da língua uma instituição mutável, as

modificações são teoricamente aceitáveis, dado o caráter arbitrário daquilo que vigora.

30

Conjunto de conhecimentos adquiridos que permitem desenvolver o senso crítico, o

gosto, o julgamento; conjunto de aspectos intelectuais próprios a uma civilização, uma

nação. Tradução Nossa.

66

As línguas só não mudam de maneira mais rápida por causa peso da tradição que

tem como tendência marcar as formas como sendo corretas e outras como erradas. Por

outro lado, os elementos linguísticos formam uma estrutura, onde se apoiam e se

reforçam de maneira mútua. Dá-se então o nome de cultura a todas as criações humanas.

As línguas, de maneira geral, usam sons que são fenômenos físicos produzidos pelos

órgãos da fala que criam comunicações com propósito claro e bem definido. Por outro

lado, a língua, por sua vez, também é transmissora de cultura, sendo, na maioria das

vezes essa sua finalidade, como a oração na religião, as leis no direito, as línguas

transmitem também ordens, ideias, instruções etc. A língua frente a cultura é seu

resultado, seu meio de operação, sua condição de subsistência.

A língua tem, na cultura, uma de suas razões de ser, não é apenas um recurso

para expressar pensamentos, emoções e vontades, mas também uma maneira de chegar

à esses estados mentais. Temos então uma aderência dos pensamentos às palavras.

4.4 – A escola na implantação de uma língua nacional: a escola laica

A escola, como muitos imaginam, não foi criada no final do século XIX. Todos

os regimes tiveram suas escolas. Entretanto, foi na França durante a III república que foi

criada a escola laica, obrigatória e gratuita para todos, esta que teve um papel

importante na difusão da língua standard em todo o território francês.

67

Nos séculos XVII e XVIII, os patois eram onipresentes em toda a França. Os

indivíduos que falavam a língua standard eram de uma quantidade ainda minoritária,

como declara o Abbé Grégoire nos resultados de uma de suas enquetes:

“Pode-se assegurar sem exageros que pelo menos seis

milhões de franceses, sobre tudo nos campos, ignoram a língua

nacional, e que um numero igual é incapaz de manter uma

conversa contínua, e que como último resultado, o número

daqueles que falam não ultrapassam três milhões, e que

provavelmente o número daqueles que a escrevem corretamente é

ainda menor.”31

A medida em que França, ao mesmo tempo que outros países da Europa

ocidental, seguia para um desenvolvimento que a faria passar de uma economia rural e

de um mercado local a uma economia urbana e um mercado mais extenso, a

superestrutura administrativa se ramificava e as documentações, em todos os aspectos

da vida social, se tornavam mais abundantes e mais sistemáticas.

Ao longo dos séculos XVII e XVIII os reis da França tentaram uma política de

expansão e de centralização. O poder era fortemente concentrado na pessoa do rei e

exercido por intermédio de uma pequena elite cuja língua era a língua dominante, a

única realmente importante na comunidade, e que exercia um verdadeiro fascínio sobre

aqueles que desejavam uma posição de poder na máquina do Estado. Dessa forma o uso

31

LODGE, R. Anthony. Le français – Histoire d’um dialecte devenu langue, traduit de l’anglais par Cyril

Veken, Fayard, 2002 p. 262

68

francês era empregado somente nas questões referentes ao Estado, enquanto grande

parte da população permanecia livre para usar as línguas herdadas das tradições

regionais no que diz respeito às suas atividades quotidianas. A França do Antigo

Regime permaneceu até o fim como uma comunidade multicultural e multilíngue, onde

o papel da coroa era somente o de garantir a paz e administrar a justiça, não havendo,

assim, interesse em facilitar a comunicação entre as comunidades que lhes eram

submissas.

O Estado do Antigo Regime era, entretanto, voltado para o caminho da

homogeneização linguística com a ordonnance de Villers-Cotterêts (1539) que tornava o

francês do rei a única língua jurídica do reino, e com a criação da Academia Francesa

(1635) encarregada oficialmente comprometida com a codificação da língua. Entretanto

para Bernard Cerquiglini a ordinnance de Villers-Cotterêts não tornava o francês a única

língua do reino, mas deveria ser usado um dos dialetos falados na França nos processos

jurídicos.

No entanto, deve-se notar que essas medidas não nos dão nenhuma evidência da

vontade do Antigo Regime em conduzir uma política lingüística de uniformização

lingüística através da assimilação das províncias que usavam os patois. Na verdade, o

uso do francês nos tribunais criava em todas as províncias do país um grupo de falantes

que podiam passar a mensagem não significava que este era o objetivo da operação.

Como todo Estado, o Antigo Regime estava preocupado em manter um certo

grau de coesão ideológica entre as partes da qual ele era a emanação, e esta deveria

repousar sobre a religião católica, e sobre a soberania do rei, mais do que sobre a

69

identidade linguística ou étnica, “A divisão das línguas não faz a separação dos reinos,

mas a divisão da religião e das leis”32

. Entretanto, a medida que as novas províncias

eram anexadas ao reino, o francês do rei lhes era imposto como língua oficial, tratando-

se apenas de uma maneira de estender a esses territórios anexados os princípios

estabelecidos pela “ordonnance de Villers-Cotterêts”.

Fora da administração do direito e das finanças, o Estado poderia, teoricamente,

empreender uma política de assimilação linguística por meio da escola. Esta teve um

papel muito importante no processo de disseminação da língua standard durante o

Antigo Regime. Mas é, sobretudo, com o objetivo de reforçar a ortodoxia religiosa em

todo o reino com o aumento das escolas religiosas, depois da revogação de “l’édit de

Nantes, que o rei ordenou em 1698 foi criada uma escola elementar pagante em cada

paróquia do reino. O ensino nestas escolas deveria ser, em primeiro lugar, calcados nos

ensinamentos da fé, em segundo lugar a ler, a escrever e também a contar. Entretanto

este processo não tinha, nesse momento, como interesse implantar uma língua nacional,

mas se fixava como meta principal facilitar a aprendizagem do latim.

Os cidadãos mais ambiciosos perceberam as vantagens sociais e econômicas que

o domínio da língua do rei lhes traria, de modo que no século XVIII um grande número

de municípios foram conduzidos a colocar em pratica uma forma de educação

elementar. Porém, o ensino do Estado permanecia minoritário, e alguns intendentes das

províncias se mostram até hostis quanto à generalização do ensino.

32

LODGE, R. Anthony. Le français – Histoire d’um dialecte devenu langue, traduit de l’anglais par Cyril

Veken, Fayard, 2002 p.276

70

“ Não acredito que seja necessário fazer grandes reflexões

para provar a inutilidade dos regentes nas aldeias. Existe certos

tipos de conhecimentos que não convém dar aos camponeses

(...)”33

Mesmo que se convenha que este tipo de opinião sejam extremo e atípico em

matéria de educação popular, fica claro que, de maneira geral, durante o século XVIII, o

Estado não tinha como objetivo utilizar as escolas como um meio de favorecer uma

política de assimilação linguística. O Antigo Regime era de modo geral indiferente à

questão da língua que era falada pela população.

No final do século XVIII, a Revolução Francesa introduziu consideráveis

transformações no poder do Estado. Se a antiga tradição centralizadora foi reforçada, a

realidade do poder político foi profundamente modificada: o Estado começa então a se

preocupar com todos os setores que interessavam à vida dos cidadãos ao mesmo tempo

em que se transformava de um Estado feudal a um Estado burocrático.

Nessa nova ideologia, a ideia de nação conhece uma completa mudança e a

língua é então encarregada de um papel completamente novo na sociedade. Essa nação

enquanto associação exigia que todos os membros falassem uma e mesma língua. E

esta se torna então o primeiro símbolo da nação.

Onde o Antigo Regime tinha como divisa: “une foi, une loi, un roi”(uma fé, uma

lei um rei), deixando claro seu caráter religioso, o Estado pós-revolucionário tornou-se:

33

LODGE, R. Anthony. Le français – Histoire d’um dialecte devenu langue, traduit de l’anglais par Cyril

Veken, Fayard, 2002 p. 278

71

“République une, langue une” (Uma República, uma língua) mostrando dessa maneira

que a língua deve ser como a República una e indivisível. Assim, começou-se a utilizar

a “língua nacional” para estimular uma lealdade que ia além dos grupos primários e para

desencorajar toda fidelidade à outras nações. Este ideal torna-se então um elemento de

”coesão interna e de diferenciação externa”34

Dessa forma, os dirigentes da Revolução tinham claramente justificado sua

política, em matéria de língua, pela necessidade de aumentar a coesão interna da nação.

A ideia de língua e nação teve como consequência a tentativa de reunir no interior da

França as comunidades francófonas ligadas a Estados estrangeiros, como é caso da

Bélgica e da Suíça. A língua não se limitava mais a um papel de responsável pela

“coesão interna” mas ela se tornava também um meio de estabelecer a “distinção

externa”, ou seja, separar a nação francesa das nações vizinhas.

A nova ordem política e administrativa colocada em pratica pela Revolução,

depois consolidada por Napoleão 1° aumentou consideravelmente o poder do Estado

centralizado: o novo sistema administrativo, cujo centro era Paris, e resultou na

penetração do poder da capital em todos os setores e regiões da sociedade.

A principal contribuição da Revolução à difusão da língua na França pode ser

proveniente da retórica que foi utilizada, ou seja, da sua maneira de formular a nova

ideologia da língua standard. É, sem dúvida, paradoxal que seja desde a Revolução de

1789 que em nome da democracia e da igualdade que o Estado tenha procurado impor

34

HAUGEN, Einar. Dialeto, língua, nação. In: Norma Lingüística. Editora Loyola, São Paulo, 2001 p. 106

72

uma variante de língua standard que o Antigo Regime tinha cristalizado sob a forma,

como sabemos, de uma marca de distinção social. Essa contradição não enfraqueceu em

nada a ideologia da língua standard na França, pelo contrario, sem renegar os

argumentos clássicos em favor da elegância, da precisão, da lógica, da universalidade,

etc. da língua standard que fora herdada do Antigo Regime e na ocasião se descobriu

novas virtudes políticas relativas à identidade nacional e à liberdade. E já que o francês

era a língua da razão, tornou-se imperativo para todas as pessoas, para todos os

verdadeiros franceses falar “corretamente” a língua.

O século XIX conheceu uma intensificação da centralização política na França,

ainda que essa tendência tenha sido um pouco desacelerada depois de 1815 pela

restauração de uma monarquia nostálgica do Antigo Regime. O Segundo Império, e em

seguida a Terceira República, contribuíram pra o fortalecimento do Estado e buscaram

ao mesmo tempo destruir todas as identidade regionais existentes na identidade

nacional. E é com esse objetivo que foi colocado em prática uma forte política de

organização linguística.

A política do governo francês diante dos patois e as línguas minoritárias em uso

no interior de suas fronteiras desde o final do século XVIII é frequentemente

apresentada como um exemplo típico de assimilação linguística bem sucedida, pois o

francês é a única língua atualmente na França a desfrutar o status de língua oficial,

sendo este um status garantido pelo artigo dois da Constituição francesa: La langue de

La République est le français (A língua da República é o francês.)

73

Numa sociedade cada vez mais centralizada e burocrática, o Estado mostrou-se

cada vez mais nacionalista por intermédio tanto de sua enorme máquina administrativa

quanto pelo seu poder militar. Desde o levante em massa da população em francesa em

1792, cada jovem francês do sexo masculino era obrigado a servir nas forças armadas, o

que contribuiu também de maneira decisiva na homogeneização linguística do país,

ainda que as normas linguísticas dominantes nas forças armadas francesas eram as do

falar das camadas mais populares e não as normas privilegiadas do “Bon Usage” da

burguesia culta.

As guerras civis e a guerra com outros países impediram a Convenção de

conduzir seu projeto de instrução primaria dada ao Estado. Napoleão, então, fundou os

liceus e as grandes escolas, para o uso de sua nova elite social, entretanto deixou sob a

responsabilidade da Igreja instruir as massas. E foi sob a monarquia de Juillet e o

Segundo Império, graças ao empenho de Guizot, um ministro de Louis-Philippe, que

foram elaboradas as primeiras medidas visando a implantação da instrução primaria

para todos. Uma lei, criada por Guizot em 1833 obriga cada “commune”35

a abrir uma

escola. Entretanto elas não eram nem gratuitas e as crianças nem obrigadas a frequentá-

las, muitas trabalhavam ainda nos campos, nas minas e nas fábricas. A instrução das

meninas era ainda mais negligenciada que a dos meninos, e por esta razão um número

muito grande de mulheres não sabiam nem ler nem escrever, eram analfabetas.

Assim, Guizot fez votar uma outra lei obrigando cada departamento a abrir uma

escola Normal onde eram formados os professores, entretanto, uma grande parte deles

35

Município

74

não a frequentaram e sabem apenas ler, escrever e contar. Eles são pagos, mal pagos,

pelos pais e pelas “comunas” sendo eles, dessa forma, obrigados a exercer outra

profissão como trabalhar em mercearias, sapatarias etc. Nesse período, as escolas são

casas miseráveis, sujas e incômodas sem nenhum material escolar.

Mas, progressivamente, a situação evolui. Um numero cada vez maior de

professores saem das Escolas Normais; as “comunas” constroem escolas novas; os

pobres são dispensados de pagar. E os pais compreendem que a instrução é útil na vida

e enviam cada vez mais as crianças às escolas.

O choque causado pela derrota diante da Prússia em 1870 (Guerra Franco-

Prussiana) foi favorável para a popularização da ideia de que língua e identidade

nacional estão estreitamente ligadas. O que, por sinal, justificava a pretensão alemã que

anexou a Alsácia e parte da Lorena. E é assim que a retórica do século precedente se

encontrou reativada pela Terceira República e colocada ativamente em pratica após

décadas de hesitação. Todos os recursos humanos da nação iam ser mobilizados para

livrar o país dos particularismos ancorados nas províncias e criar uma nação unida que

falaria uma única língua. Jules Ferry, ministro da Instrução pública na Terceira

República, não criou a escola, mas a tornou obrigatória para os meninos e meninas de

seis a treze anos; gratuita, os pais não pagam mais nada pela instrução primaria dos

filhos e os professores tornam-se funcionários públicos sendo dessa forma pagos pelo

Estado; e laica, não havia mais a instrução religiosa nas escolas.

As leis escolares deixaram descontente um grande número de católicos, por

causa da supressão do ensino religioso. Dessa forma, percebemos que o caráter

75

unificador que era exercido pela religião no Antigo Regime foi substituído nesse

momento pela língua. Os republicanos pensavam que somente a escola laica permitiria

educar junto as crianças qualquer que fosse sua religião, católicos, protestantes, judeus

ou mesmo aqueles sem religião.

As escolas comunais eram os principais meios de instrução das massas e de

introduzir em cada um dos lares do país a “língua nacional”. Com a implantação das

escolas laicas todas as matérias seriam ensinadas em francês e o aprendizado da língua

escrita ocuparia um lugar de honra nos programas escolares, assim como o uso dos

patois ou das línguas regionais, mesmo no pátio de recreação, seria severamente punido.

“Um dos castigos favoritos herdados dos jesuítas (...) era o

crachá da vergonha que deveria exibir a criança surpreendida

falando sua língua materna”.36

A criança que tivesse recebido este “símbolo” deveria guardá-lo até que, ele

mesmo, tenha surpreendido outra criança falando outra língua que não fosse o francês e

pudesse assim, passar adiante o objeto indesejado. O aluno que se encontrasse com o

objeto no final do dia recebia uma punição. Uma maneira tão cruel de tratar as línguas

minoritárias poderia resultar em resistência.

Ao longo do século XX, as línguas regionais por causa, sem duvida, de sua

situação periférica no país, foram frequentemente associadas às reivindicações sociais e

econômicas. Nessas regiões o francês é da mesma forma considerado como um símbolo

36

LODGE, R. Anthony. Le français – Histoire d’um dialecte devenu langue, traduit de l’anglais par Cyril

Veken, Fayard, 2002 p.283

76

de opressão exercida pelo poder central, a língua sendo então tida como um verdadeiro

símbolo identitário.

Na consciência de um grande número de franceses, é o Estado que, por

intermédio do sistema escolar, foi o principal agente no processo de difusão da língua

francesa sobre todo o território nacional e que trás também a responsabilidade da

eliminação dos patois e das línguas regionais, e é o programa educativo posto em

pratica por Jules Ferry que favoreceu poderosamente para a difusão da ideologia do

standard dito parisiense em toda a comunidade de modo que no final do século XIX, ou

seja, uma geração após a instituição da escola laica o número de pessoas que falam os

patois tornou-se insignificante. Duas gerações mais tarde o número de locutores

bilíngues falando um patois estava seriamente em baixa. A política do Estado nesta área

não foi mais que um aspecto de uma evolução política e econômica marcada pela

passagem de uma sociedade camponesa tradicional profundamente enraizada nos

valores presos a terra, à uma sociedade industrial na qual predomina uma população

urbana.

Os patois e as línguas regionais, foram na França a expressão linguística de uma

economia camponesa tradicional a qual eles se ajustaram para satisfazer a suas

necessidades.

A população francesa permaneceu relativamente estável durante vários séculos

até meados de 1750, data em que começou a conhecer um novo crescimento. Pouco a

pouco, a economia do país, como a de grande parte da Europa acidental, se emancipou

das estruturas camponesas tradicionais para se engajarem na constituição de sociedades

77

urbanas e industrializadas. Três fenômenos se combinaram o que contribuiu de maneira

significativa para a difusão de uma norma linguística única em todo o país: a

urbanização e a industrialização, o progresso tecnológico e a extensão da instrução

primaria e a implementação de um mercado para os bens produzidos.

Os últimos 150 anos foram marcados na França, como aliás em toda Europa

ocidental, por uma verdadeira migração da população do campo para as cidades, o que

não deixou de levar ao abandono dos patois, em favor do falar das cidades, que se

aproximava muito mais das normas parisienses. Até meados de 1850, a população rural

representava cerca de 85% da população francesa. Se as grandes metrópoles como Lyon

e Marseille tiveram um crescimento importante ao longo do século XIX, é a cidade de

Paris que foi o grande centro de urbanização do país. A capital viu sua população se

multiplicar por cinco entre os anos de 1801 e 1891, o que nos permite compreender

melhor a influência tomada pelas normas de seu falar na vida do país.

O progresso tecnológico no século XIX não se contentou em transformar a vida

nas cidades, mas também aos poucos mostrou uma transformação maciça no campo,

além de uma melhora nos métodos agrícolas, permitindo assim aos camponeses de

escapara da fome que foi uma das características da sociedade da Idade Média e do

Antigo Regime.

A melhora da eficiência e do rendimento agrícolas significava a progressiva

redução da mão de obra e o abandono de técnicas secundárias. Entretanto, cada

movimento da população do campo para as cidades tinha como principal consequência

o enfraquecimento da cultura e da língua dos camponeses.

78

As taxas de alfabetização aumentam consideravelmente em toda França a partir

dos anos de 1750, sobre tudo nas classes médias e especialmente na parte mais

desenvolvida do país. E assim a França conhece uma progressão continua no século

XIX até ficar em torno de 95% em 1906.

É evidente que o processo de escolarização vivido na França teve um papel

essencial no desenvolvimento da instrução, mas a educação imposta de cima não é

suficiente para explicar resultados dessa magnitude. De fato, a adesão a instrução foi

cada vez mais reivindicada nas camadas mais baixas da população a medida que as

pessoas tomavam consciência de suas necessidades nas nova ordem econômica do país.

Por outro lado, o desenvolvimento da instrução ao longo do século XIX foi

incontestavelmente um dos vetores essenciais da difusão de atitudes autoritárias com

relação às línguas. Os franceses adotaram pouco a pouco a ideia de que a língua escrita

representava a forma mais valiosa da língua. A língua falada, a medida em que ela se

distanciava das normas impostas pela escrita e das estruturas do discurso convencional

era cada vez mais desconsiderada. E dessa forma, milhares de franceses acabaram se

convencendo de que eles possuíam apenas um domínio inadequado de sua própria

língua. Os patois, que raramente tinham conhecido uma forma escrita, se viram recusar

o status de língua, e devido ao fato de não possuírem uma forma escrita foram

considerados como um símbolo de barbárie, de incapacidade de dominar em detalhes as

dificuldades da língua escrita o que vinha a ser entendido como um sintoma não só de

ignorância como também de depravação moral, e mesmo de laxismo religioso. Possuir

uma ortografia perfeita toma então um valor simbólico particularmente forte, já que

79

podemos perceber um sinal, não de uma instrução mais completa, mas igualmente de

uma inteligência superior.

Pouco a pouco o tecido da sociedade camponesa tradicional cedeu o lugar a uma

sociedade bem mais estendida, característica da nação. A flexibilidade desta rede

facilitou enormemente a difusão da língua standard e na medida em que Paris se tornava

cada vez mais presente na vida econômica da França, seu falar teve um papel

importante na vida das províncias mais afastadas que tinham vivido até então em uma

semi-independência econômica.

80

5 - CONCLUSÃO

Na França o processo de homogeneização linguística atingiu, pelo menos em

parte, seu objetivo e o multilinguismo que era onipresente em todo território nacional

foi praticamente eliminado, sendo este reduzido a vestígios, tendo assim a língua

nacional, indubitavelmente, alcançando o posto de língua comum e também de língua

primeira da maior parte da população. O sucesso desta língua não parece ser apenas do

ponto de vista funcional, ou seja, da comunicação. Os franceses cultivam os imaginários

peculiares a respeito de sua língua. Confunde-se, assim, na francesa o uso propriamente

dito da língua e a ideologia que o fundamenta. Dessa junção surge representações

sociolinguísticas da realidade francesa, e tais representações, funcionando como formas

coletivas de conhecimento, promovem o ideal de uma nacionalidade. Entretanto como

podemos perceber a nação francesa não surgiu a partir da língua, a qual foi utilizada

apenas como um mito para a unificação da nação.

Assim além do projeto de uma cidadania enquanto contrato voluntário e livre

consentimento dos cidadãos, fez-se necessário a utilização de outros elementos na

construção de uma identidade, como a construção de uma história nacional anterior a

esse contrato político de livre adesão. Tivemos a retomada de um passado então

reavaliado como fundamento da nação francesa, foi o caso da crença de uma origem

celta, o mito da Gália revisto como símbolo de um ideal nacional.

Enfim, last but not least, as considerações feitas aqui mostram que a história da

língua francesa moderna constituiu um modelo, que se tornou em parte universal, isto é,

81

por muitos países, entre os quais o Brasil. Porém, tal modelo parece estar se esvaziando

nos dias de hoje, quando as línguas regionais cada vez mais promovidas a línguas

“oficiais”, se tornam sempre mais divisoras, em vez de unificadoras. O papel

representado por esta grande “Língua Geral” que veio a ser o inglês certamente está

contribuindo para o esgotamento do modelo da língua francesa dos séculos XIX e XX.

Essa conclusão tem como consequência a possibilidade de uma revisão dos

fundamentos teóricos e da prática de ensino das línguas. Seria então necessário se

questionar sobre qual a variante que está sendo privilegiada e de que forma essa escolha

se confunde com ideal de cultura e consequentemente de civilização estabelecidos. Para

isso devemos considerar a língua não apenas como um sistema linguístico, mas um

produto social, além de observarmos também as representações referentes às línguas.

82

6 – REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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