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Universidade Federal do Rio de Janeiro MARINA TSVETÁIEVA E A MUSICALIDADE DO POEMA Verônica de Araújo Costa 2013

Universidade Federal do Rio de Janeiro MARINA TSVETÁIEVA E ... · COSTA, Verônica de Araújo. Marina Tsvetáieva e a musicalidade do poema / Verônica de Araújo Costa – Rio de

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

MARINA TSVETÁIEVA E A MUSICALIDADE DO POEMA

Verônica de Araújo Costa

2013

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COSTA, Verônica de Araújo.

Marina Tsvetáieva e a musicalidade do poema / Verônica

de Araújo Costa – Rio de Janeiro: UFRJ/LETRAS, 2013.

x, 195f.: 31cm.

Orientador: Eduardo Portella.

Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/

Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, 2013.

Referências Bibliográficas: f. 194-195.

1. Poética 2. Teoria Literária 3. Poesia. 4. Tradução. I. Costa,

Verônica de Araújo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da

Literatura. III. Marina Tsvetáieva e a musicalidade do poema.

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RESUMO

MARINA TSVETÁIEVA E A MUSICALIDADE DO POEMA

Verônica de Araújo Costa.

Orientador: Eduardo Portella.

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requesitos necessários à obtenção do título de Mestre

em Poética.

Pensar a musicalidade nos poemas de Marina Tsvetáieva é uma das possibilidades

de interpretação da sua poética. Para tanto, os seus versos devem ressoar em nós no

vigor deles mesmos e não como relatos vivências de uma poetisa que passou por

grandes dificuldades durante o período da Rússia Soviética. Em constante diálogo com

o seu tempo e com as questões inerentes à vida, Tsvetáieva mostra, em seus poemas, a

urgência de repensarmos o sentido que damos à nossa existência através de um mosaico

de imagens rítmico-plásticas, convidando-nos a pensar o mistério que somos. Sem

considerar apenas questões de cunho político e social, que tanto caracterizaram os

escritores soviéticos, esta dissertação é um convite para se pensar a essência da poesia

em Marina Tsvetáieva a partir de uma coletânea de poemas traduzidos diretamente do

idioma do russo e sua ressonância com a musicalidade.

Palavras-chave: Poesia. Escuta. Interpretação. Tradução.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2013

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ABSTRACT

MARINA TSVETÁIEVA AND MUSICALITY OF THE POEM

Verônica de Araújo Costa

Advisor: Eduardo Portella

Abstract of Dissertation submitted to the Graduate Programin Science Writing,

Faculty of Arts, Federal University of Rio de Janeiro – UFRJ, as part of the requisites

necessary to obtain the title of Master in Poetics.

To think of the musicality in the poems of Marina Tsvetáieva is one of the

possibilities on the interpretation of her poetics. For this purpose, her verses must

resound inside of us on their own vigor, and not as a report of the experiences of a poet

who suffered many difficulties during the soviet Russia period. In constant dialog with

the questions of her own time and inherent of life, Tsvetáieva shows, in her poems, the

urgency of rethinking the meaning we give to our existence by means of a mosaic of

rhythmic and plastic images, inviting us to think the mystery we inherit. With no

exclusive consideration on questions of political and social matter, which so much

distinguished the soviet writers, this paper is an invitation to think the essence of poetry

in Marina Tsvetáieva from a collection of poems directly translated from the Russian

language and its resonance with musicality.

Key-words: Poetry. Listening. Interpretation. Translation.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

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Agradeço aos amigos de sempre:

Hermes –

Pela palavra e coragem,

Por me guiar nas encruzilhadas do pensar.

Pela artimanha e atenção,

Por me ensinar a dizer a verdade,

Mas não toda a verdade.

Afrodite –

Pelo frescor e encanto,

Por me ensinar a dizer com o olhar.

Pela sedução e paixão,

Por me fazer compreender o sentido,

Mas não me render aos sentidos.

Dioniso –

Pela liberdade e proteção,

Por me tornar mistério e notívaga.

Pela mania das questões,

Por me envolver com sua música,

Conduzindo-me por veredas.

Sísifo –

Pela sabedoria e astúcia,

Por me indicar caminhos, sendas.

Pelo gingado ante as pedras,

Por me ensinar o convencimento,

Transformando desvantagem em vantagem.

Dostoiévski –

Por me conduzir até aqui.

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Dedico esta dissertação à memória de minha Pérola, que na véspera de minha defesa, foi para a morada do Altíssimo.

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RESPOSTA TARDIA1

Para M. Tsvetáieva

Princesa de mãos brancas... Alegre, dúbia, satírica Que se esconde entre arbustos Em busca de abrigo

Que se ergue das ruínas E grita do alto da torre: “Hoje, volto para casa. Veja, querida terra natal, O que me aconteceu: Um abismo levou meus amigos E arruinou a casa do meu pai”. Estamos juntas, Marina, Na cidade noite à dentro. Ao nosso lado milhares Um cortejo de silêncio, Ao nosso redor um som fúnebre, Os moscovitas lamentam ferozes A nevasca, nossos passos apagará.

Anna Akhmátova

1 AKHMÁTOVA, Anna. Antologia ruskóy soviétskoi. Moscou: Valobaia, 1967, p. 298, v. 1.

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SUMÁRIO

CONVITE AO PENSAR ............................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 ................................................................................................................. 14 Possibilidades de ser ....................................................................................................... 14

1.1 Marina Tsvetáieva: uma biografia poética ........................................................... 21

1.2 O viver em louvação ............................................................................................. 31 1.3 Vida simples e exemplar ....................................................................................... 36 1.3.1 Abertura para o trágico ...................................................................................... 42 1.3.2 Apolo e Dioniso: lúmen de sentido ................................................................... 44

1.3.4 Aprendizagem pela dor ...................................................................................... 51 CAPÍTULO 2 ................................................................................................................. 56 A musicalidade do poema............................................................................................... 56

2.2 A musicalidade das versões .................................................................................. 61 2.2.1 Da musicalidade em russo ................................................................................. 64 2.2.2 Da musicalidade em vernáculo .......................................................................... 68 2.3 Reverberações da poesia ....................................................................................... 71 O LIVRO DAS CANÇÕES DE MARINA TSVETÁIEVA .......................................... 75

A tradução e suas questões ........................................................................................... 177 3. 1 Tradução: gênese de sentido .............................................................................. 178 3.1.1 Tradução e dialétheia ...................................................................................... 180

3.1.2 O tradutor é um poeta? .................................................................................... 182 3.2 O poético e a linguagem ..................................................................................... 185 3.3 O sentido como desafio ...................................................................................... 189

Referências Bibliográficas ............................................................................................ 195

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CONVITE AO PENSAR

Há uma magia secreta nas palavras do poeta. Algo que nos envolve

completamente, suspendendo nossas certezas de maneira súbita e inesperada. Não sei se

a melhor definição para o poeta seja bruxo ou alquimista das palavras, visionário ou

pensador. Talvez o poeta seja estas possibilidades acrescidas de outras. Ou, quem sabe,

não seja nada disso. É impossível definir quem seja o poeta e, muito menos, o que

venha a ser poesia. Mas quem pode ter a certeza das coisas? Todos nós podemos ser

poetas desde que habitemos poeticamente. Diante da inclinação de sermos ou não poeta,

permito-me guiar por um pensamento: não é o poeta quem faz a poesia; é a poesia que

faz o poeta. Sem a poesia somos absolutamente nada. Isso parece difícil? Não. A

dificuldade está em compreender que a soma de dois mais dois é sempre quatro. Falta aí

o diálogo. Falta aí a escuta da poesia – o mistério dando-se a pensar enquanto sentido.

Entretanto, tornou-se comum “desvalorizar” a literatura, porque em muitas

ocasiões se supõe que o poético não passa pelo crivo da razão, não enche barriga, não

serve para coisa nenhuma, não tem a verdade e, por isso, seja coisa de gente apaixonada

ou de sonhador, dentre tantas outras frases prontas que ouvimos. É em virtude disso que

muitos poetas não são compreendidos na sua época. O que é lamentável, pois muitos

críticos e editores pensam apenas a pessoa, o nome do poeta, a autoria, sem prestar

atenção no silêncio, no rumor da poesia doando-se no poeta. Em decorrência disso,

muitos poetas são incompreendidos ou simplesmente passam despercebidos ou, como se

diz coloquialmente, passam batido em sua própria época. Dentre os poetas que não

foram compreendidos no seu tempo, gostaria de chamar atenção para Marina

Tsvetáieva, uma das maiores vozes poéticas do século XX, e não apenas da Rússia

Soviética.

Marina Tsvetáieva viveu na Rússia de 1892 até 1922. E dezessete anos como

emigrante (três anos na Tchecoslováquia e na Alemanha e quatorze na França). Por

conta disso, seus versos não eram bem recebidos. Na Rússia era considerada –

estrangeira. No exterior – russa. Isso dificultou a publicação das suas obras, embora o

seu primeiro livro, Lanterna mágica, tenha sido bastante elogiado pela crítica.

Acredito que este seja o momento de tomarmos conhecimento da sua obra aqui no

Brasil. Atualmente, toda a sua produção poética está sendo editada na Rússia e em

outros países. Ela estava certa ao dizer que quando morresse tudo seria publicado:

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“Cada linhazinha! [...] Cada rabisco!” (TSVETÁIEVA, 2008, p. 246). Na Europa a sua

obra é bastante divulgada e estudada academicamente, principalmente na França,

Espanha e Alemanha.

O que preparei foi uma pequena amostra, um conjunto de poemas que considero

traduzidos em consonância com o espírito do original. O ato tanto de escrever como de

traduzir não para nunca. Por isso, os poemas selecionados para esta dissertação foram

traduzidos em diálogo com Marina Tsvetáieva, sentada à sua mesa – escrevendo. A

minha intenção é que a sua obra fale através de mim, melhor, através da tradução que

preparei. Gostaria, porém, de fazer uma advertência: eu não preparei uma dissertação a

partir dos relatos sobre a vivência de Marina Tsvetáieva. A minha proposta é que se

realize uma vigília, um diálogo com os poemas que aqui foram traduzidos. Sim,

devemos nos colocar em vigília. As vozes altissonantes, por mais que se esforcem, não

acompanham os sinuosos caminhos da poesia. O dizer da poesia é silencioso. Quando

prestamos atenção ao dizer do silêncio, a poesia se dá na sua plenitude. Por que pensar a

poesia a partir do silêncio? Os alaridos não dão conta da questão no vigor dela mesma.

Faço, portanto, aqui um convite ao pensamento.

Toda experiência de nossas vidas tem um começo-fim silencioso. Muitas vezes

não conseguimos precisar quando tudo começa ou termina. Antes mesmo de nos darmos

conta já estamos lançados, totalmente seduzidos, tomados, pelo o que até então passava

despercebido diante de nossos olhos. Normalmente acontece assim: o que nos toca

profundamente é quase imperceptível aos sentidos. Por isso, a todo instante devemos

estar atentos e não nos assustarmos com o que vem ao nosso encontro – envolvendo-

nos. Tudo o que nos toca – absorve-nos. Porque é sentido. Sentir sentido, eis o que nos

move e comove. Isso pode parecer confuso... Como no instante em que a Noite irrompe

no Dia, nossa existência dá-se em uma contínua explosão de sentido. A realidade faz-se

tão óbvia que, com a boca cheia de espanto, deixamos escapar: “Como não percebi isto

antes?!”. Na verdade, desconhecemos o porquê daquilo que nos arrebata. O que nos

interessa não é a causa, e sim o motivo que chega sem razão de ser. Quando nos damos

conta já estamos entregues ao que nos toca de maneira primordial. O que nos toca

primordialmente é a poesia: a mais angustiante e libertadora das nossas possibilidades.

Sem razão de ser, inesperada, a poesia é sempre um gestar.

A poesia angustia porque nos devolve o silêncio, ou melhor, nos envolve e

devolve ao silêncio da palavra; à possibilidade de uma existência marcada pelo que nos

é essencial. O que nos é essencial? Cada um sabe o que lhe é premente. Todavia, há

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algo comum a todos nós: o repouso sereno nos breves, porém, densos instantes de

plenitude nos quais a realidade, na sua incessante dinâmica circular de sentido, a um só

tempo, se faz, desfaz e refaz – de repente. Como isso se dá em Marina Tsvetáeieva?

O que encontramos na poética de Marina Tsvetáieva é um diálogo com as

questões que nos tocam. Às vezes, temos a sensação de que Marina fala diretamente

conosco, com nossa época tão marcada por valores medianos que apontam e incitam

cada vez mais o esquecimento do humano. A atualidade e permanência da sua obra

colocam nossa própria época em questão. Somente a arte, na sua envergadura poética, é

capaz de ultrapassar os limites entre tempo, espaço e língua aproximando culturas e

pensamentos aparentemente díspares. Isso é possível porque a linguagem, o universal

concreto de toda obra poética, tece e entretece um horizonte de possíveis interpretações,

criando condições de possibilidades de e para possibilidades. Esse universal concreto é

também a poesia. E não se opõe a uma abstração. A poesia opera quando a deixamos

ser.

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CAPÍTULO 1

Possibilidades de ser

Sempre que nos propomos a estudar um determinado poeta somos movidos, de

uma maneira ou de outra, pela curiosidade de conhecer um pouco mais da sua vida

pessoal. Será que teve filhos, casou-se, teve êxito com sua arte, que tipo de influências

sofreu? Essas são apenas algumas, das muitas perguntas que nos levam a conhecer a

persona de determinado artista. Entretanto, isso não é tudo. O que nos motiva, de fato, a

pesquisar a poética de um determinado artista é “o espanto” que a sua obra produz em

nós. Movidos e envolvidos pelo espanto, ou melhor, pela paixão de ser, pelo pacto e

impacto que a arte desperta em nós, pouco a pouco começamos a investigar, a penetrar

nos raros instantes nos quais conseguimos apreender a essência do poético. Como o

poético nos toca? Não tem explicação. Simplesmente acontece. Quando nos damos

conta já estamos completamente envolvidos com a obra. A arte nos toca, sobretudo

quando deixamo-la entregue ao silêncio de si mesma. Entregue à paixão de ser da obra

podem-se testemunhar não vivências, mas um viver autêntico em consonância com o

sentido histórico das artes. Buscar informações acerca da vivência pessoal de um

escritor, músico, escultor, pintor, arquiteto, dentre outras possibilidades de a arte

acontecer, é necessário, todavia, trata-se apenas de um passo para adentrar na dinâmica

que toda e qualquer obra de arte engendra. Por outro lado, também a relação entre

Estado e criação artística é apenas um “meio” para compreender o encantamento da arte

em nós. “O poder político pode ser uma abertura, utilizar e – em certos casos –

impulsionar uma corrente artística. Jamais pode criá-la. E mais: de um modo geral, a

sua influência é pequena, estéril.”2 (PAZ, 1973, p. 288, tradução nossa). Interpretações

políticas, morais, sociais e psicológicas são, por exemplo, possíveis, mas nos mantém

distantes da obra no seu acontecer de sentido. A obra, enquanto irrupção de sentido,

transcende os limites da língua e nos lança nos limites ilimitados da linguagem. O que

vem a ser linguagem? Como compreendê-la? Linguagem é sentido. Pensar a linguagem

significa pensá-la na sua ambiguidade de unidade e diferença. A linguagem se dá a

partir da tensão entre fala e silêncio. Por isso, quando estamos diante de uma obra de

arte temos de nos esforçar e permanecer em silêncio para que a obra, nas suas

possibilidades de sentido, fale. Deixar a obra falar, isto é, ser conduzido pela sua pulsão

2“El poder político pude canalizar, utilizar y – en ciertos casos – impulsionar una corriente

artística. Jamás puede crearla. Y más: en general su influencia resulta, a la larga, estelizadora.”

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criativa significa colocar-se em diálogo com a mesma. Só apreendemos e

compreendemos o seu dizer quando nos encaminhamos na sua direção permitindo que a

obra, na sua dialética de fala e silêncio, venha também ao nosso encontro. Por quê? A

obra fala a partir da essência da linguagem.

É em virtude disso que pensar a poética de uma obra é sempre um desafio. Muitos

são os caminhos de interpretação sugeridos pela própria obra. Os caminhos são tão

vastos que não se esgotam. Daí a importância de nos colocarmos em silêncio a fim de

que possamos ouvir a voz da obra. A escuta da obra é fundamental para que possamos

dialogar com a essência da arte. Sem escuta não há diálogo. Por isso, diante de uma

obra de arte convêm que fiquemos em silêncio. Ao contrário do que normalmente se

costumam atribuir, silêncio não significa calar. É, antes, instauração de um dizer

autêntico e essencial em que possíveis mundos advêm à presença. Possibilidade que

atravessa a obra e a nós mesmos, o silêncio consuma-se na explosão uníssona de

pluralidades, na orquestração de um coro polifônico que se apresenta enquanto abertura

de sentido. Isso nos faz pensar que o silêncio não é outra coisa senão afeto; é o que nos

toca, assoma, toma e arrebata por inteiros. Ser afetado pelo silêncio não significa

ausentar-se de uma voz calando-se, e sim permitir que a realidade se diga e se realize

como ela é. Silêncio é, portanto, possibilidade de apropriação do próprio.

Entregue ao silêncio conduzi-me pelos passos e compassos da obra de Marina

Tsvetáieva. Cheguei à proximidade da musicalidade da sua obra. E nela – permaneci.

Alguns dados de sua vida pessoal, alguns conceitos e paradigmas serão apontados nesta

dissertação e, na medida do possível, serão questionados. É impossível deixar de lado

algumas informações inerentes à sua vida pessoal, pois muitas destas podem ser

vislumbradas a partir de uma perspectiva poética. Entretanto, o exercício crítico que

aqui se deslindará não partirá de uma nomenclatura, de um nome, mas tão somente da

escuta-diálogo com a tradução que realizei de alguns poemas de Marina Tsvetáieva. O

caminho do pensamento não tem nome. Não parte de um autor ou de classificações.

Uma obra de arte nos coloca diante da ambiguidade do próprio pensar. O pensamento é

um agir, e não um mero fazer. É através do pensamento e pela coletânea de poemas

traduzidos para esta dissertação que tomaremos conhecimento da sua obra. Minha

intenção aqui é que os poemas traduzidos sejam um convite para se pensar a essência da

sua poesia.

Em Marina Tsvetáieva a poesia vai além dos seus poemas. Também sua prosa e

suas cartas pessoais, em especial, apontam uma existência marcada pelo poético. A sua

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questão é a vida. E não falar sobre técnicas de composição. Quando lhe perguntam

sobre isso ela declara não ser especialista em poesia: “A minha especialidade é a vida.”

(TSVETÁIEVA apud TODOROV, 2011, p. 188). A vida para ela só tem sentido

quando em comunhão com a arte. Fazer da vida arte torna-se o seu grande empenho. Ao

colocar-se à escuta do mundo ela consegue viver poeticamente, embora sua existência

seja marcada por grandes conflitos. Ao dispor-se em escuta Marina Tsvetáeiva não

constrói uma visão sobre as coisas. Ela vive em comunhão com as suas possibilidades.

Não desiste de nada; entrega-se cada vez mais à poesia. Partilhar de um viver

essencialmente poético-ontológico, a poesia é um chamado para adentrarmos no

mistério da própria vida.

Poesia é vida. Toque que toca aos que se deixam tocar, acorde que acorda aos que

se deixam acordar, arranjo de sentido cuja musicalidade não cessa de encantar, a poesia

rompe com o causal, fazendo irromper o que não pode ser explicado pela razão. Pode o

viver ter explicação? Ter uma causa ou um fundamento? Viver é sem causa. Podemos

explicar vivências, relatar experiências pessoais, mas não a vida na sua conjuntura de

sentido. Vida é pulsão desde si e para si mesma. Dinâmica, acontecer de possibilidades,

vida é contínua dinâmica de criação. Sem o ato criador carecemos de sentido. Em sua

essência, todo ser humano é um poeta. Entretanto, nem todo ser humano deu-se conta

disso. O que o poeta narra não são experiências vivenciais; ele não escreve uma

biografia. É a obra que faz o poeta. A biografia do poeta é dada pela obra. Lembro-me

neste momento das sábias palavras de Octávio Paz: Os poetas não têm biografia. Sua

obra é sua biografia. Será que já nos damos conta disso? Espero que sim.

Para compreendermos que é a obra que faz o poeta devemos adentrar no dizer da

obra, isto é, na linguagem, a fim de que a obra seja. As possibilidades da obra nos

mostram que devemos ser meditativos e dialogar com a sua fala. Somente assim

podemos demorar na essência da obra. Devemos nos encaminhar até a obra sem a

pretensão de trazê-la até nós a partir de juízos a priori. O modo de ser da obra é dado

por ela mesma. É assim que o vigor da arte – a sua essência – permanece: sem motivo.

Arte é possibilidade de ser. Por isso, arte e vida evocam a mesma experiência, que é a

abertura de mundos, ou melhor, abertura de sentido.

É justamente pensando a arte enquanto sentido, isto é, enquanto possibilidades de

ser que me deixei conduzir pelas possibilidades de tradução dos poemas de Marina

Tsvetáieva. Dotados de uma força plástica extraordinária, a musicalidade dos seus

versos revelam a dor de uma existência marcada por instantes de lirismo e alegria, de

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sofrimento e redenção, de lágrimas e nostalgia, de renúncia e solidão. A sua obra,

porém, ainda está por ser descoberta aqui no Brasil. Até mesmo na Rússia, sua terra

natal, a publicação de suas obras completas está em fase de organização. Isso não deve

ser atribuído à falta de interesse dos editores. A responsabilidade é da própria Marina

que viveu como peregrina – da Vida –, como estenografa3 – do Ser. Ela construiu sua

vida poeticamente e não recuou nem cogitou recusa (!) diante dos acontecimentos que,

drasticamente, lhes saltavam no verde-vida de seu míope olhar admirado. Os seus

escritos são muitos. E a sua obra chama-se vida. Sem vacilar diante do desconhecido,

vivendo por conta e risco próprio, Marina encontrou plenitude, sobretudo nos instantes

mais miseráveis. Foram muitos os momentos em que fora privada da alegria de uma

manhã amena, da mansidão a correr noite a fora. Até da escrita, sua necessidade mais

premente, fora, em muitas ocasiões, privada. Mesmo assim, conseguiu respirar. Soltou

sua voz a plenos pulmões, enfrentando os infortúnios que surgiram ao longo do seu

caminho. Como as folhas das árvores que no outono passam do verde para o vermelho e

o marrom, a vida também muda continuamente. Nada é estático. “Toda alma é uma

melodia, que se renova”4 (MALLARMÉ, 1945, p. 363). Estamos sempre diante de uma

multiplicidade de referências, de caminhos que se estendem e se renovam diante de

nossos olhos. Escutar o chamado, a melodia daquilo que nos é mais intimo é a nossa

tarefa. A melodia, isto é, a sonoridade não está presa nos instrumentos musicais. Ela

está, sobretudo, na maneira de auscultarmos a ressonância da realidade. A sonoridade,

portanto, está dentro de nós e é justamente pela escuta dessa voz, que nada tem a ver

com subjetividade, que se dará o nosso encontro com a realidade e nós mesmos.

Para Marina Tsvetáieva viver sempre se deu como passagem – aliás, com todo ser

humano é assim. Viver é travessia, principalmente quando ficamos nauseados com a

maresia. Nas muitas dificuldades do seu dia a dia, Marina encontrou pessoas dispostas

em ajudá-la como, por exemplo, o poeta Bóris Pasternak. Às vezes, sentia-se sozinha.

Partida e chegada – um e o mesmo. A sua pergunta constante era: o que falta nas

pessoas? O que falta é o fogo vivo, a luz que dá plenitude; falta o desejo de nutrir-se, de

consumar-se sem consumir-se na própria vida. Ao longo de sua travessia, Marina

3 No livro Vivendo sob o fogo, organizado por Tsvetan Todorov, há a seguinte declaração de Marina Tsvetáieva: “Estenógrafa da Vida – É tudo o que eu quero escrever em meu túmulo (uma cruz!) – apenas da Vida em maiúsculo, obrigatoriamente. Se eu fosse homem gostaria que escrevessem do Ser.” (2008, p.143).

4 “Toute âme est une mélodie, qu’il s’agit de renouver.”

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questiona o motivo de tantos encontros e desencontros: “Tudo o que a gente faz é tão

estranho: as pessoas se encontram por acaso, trocam ideias de passagens, às vezes até

umas impressões íntimas e, apesar disso, se separam, estranhas, distantes.”

(TSVETÁIEVA, 2008, p. 85). No mesmo instante em que a vida dá também retira.

Viver é enigma de ser e estar; irrupção de sentido – ação. Viver é, essencialmente,

dispor de astúcia e artimanha para transformar desvantagem em vantagem. É se permitir

libertar, indo ao encontro do que nos é próprio, da vida enquanto poíēsis, vigência de

sentido. Talvez, por isso, tudo seja tão estranho, surpreendente – misterioso.

A vida não foi fácil para Marina Tsvetáieva. Quem definiu o viver como tarefa

fácil? A sua época foi marcada por grandes mudanças históricas (duas guerras mundiais

e duas revoluções). Acredito que na Rússia, em especial no fim do século XlX e na

primeira metade do século XX, como em nenhum outro lugar, tenha existido uma forte

referência entre os poetas e o seu tempo. Isso, porém, não significa que os poetas

tenham se prendido a ideologias. Pensar o poeta e a sua época não é fazer politicagem

(!), mas pensar o rumor do tempo como clamor do destino. Para tanto, é preciso estar

empenhado.

Se ela não tivesse passado por tantos desafios a História que conta a sua estória

teria sido outra. Marina pactuou com o seu destino. De uma hora para outra, o

acolhimento da casa paterna, sólida e segura, se desfez em escombros. Revoluções,

guerras – separações. Encontros, desencontros – idílios. Marina Tsvetáeiva viveu em si

o caos e o cosmos. Passou do conforto à mendicância. Viveu em sua própria carne que

“para o sono da morte/ basta estar vivo.” 5 O mundo que lhe era fogo, subitamente,

tornou-se cinzas. Por que não fugiu? Tudo o que rompe envia sinais. Há sempre um

meio de escapar. De fato, o ser humano pode escapar de tudo exceto do seu destino.

Ciente de que não poderia escapar do seu legado, isto é, do seu quinhão, entreteceu sua

existência entregando-se a dor de viver. Ela não tenta escapar – enfrenta. Não desiste –

pactua. Marina sabe que renunciar é anunciar. Sem pestanejar ela tece uma existência

singular, cultivando um viver pleno de qualidade poético-ontológica.

Desfeita em angústia e solidão, em noites brancas, em sóis insones, em riso frouxo

e gozo contido, Marina Tsvetáieva encontra na própria vida o motivo de viver.

Contrariando expectativas, o motivo de viver não está fora ou aquém da vida. É difícil

5Dois últimos versos do poema “A carta”, de Marina Tsvetáieva. Todos os poemas reunidos

nesta dissertação foram por mim traduzidos do original russo e encontram-se disponíveis na coletânea bilíngue, no final da mesma.

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deixar-se tomar por ele. Por quê? Motivo não é causa, mas acontecer da própria vida.

Possibilidades de caminhos que vertem (e nunca divergem), motivo significa a decisão

de viver independente das circunstâncias. Até mesmo nos instantes em que a luz do sol

parece enegrecer, os pássaros emudecem e a pétala da rosa se desfaz em espinhos, há

sempre vida para viver. Há sempre uma nesga de luz a nos iluminar. Por acaso não é no

cair da noite que o dia se faz mais evidente? Há sempre um motivo. Somos empenho de

viver, ou melhor, procura de e para procura. Todavia, procurar é já achar. Só

encontramos o que procuramos quando nos dispomos em uma experiência de

aprendizagem e solidão, quando nos recolhemos em meditação. É assim que

inauguramos um tempo poético onde em cada achado se dá uma grande descoberta.

Em nossos empenhos e desempenhos procuramos o Bem – nosso próprio. E não

bens. Não basta apenas viver. É necessário ter e procurar o motivo de viver e nele e por

ele o de morrer. Devemos nos manter atentos e sentir a realidade nas suas infindáveis

possibilidades. Curiosamente, basta estarmos vivos para o sono da morte. No entanto,

desconhecemos o que seja o viver e o morrer. Estamos lançados no mistério da própria

realidade. É preciso astúcia, vigília e, sobretudo, escuta do silêncio para nos movermos

nos caminhos que encaminham as nossas realizações. Sem astúcia, discernimento e,

principalmente sabedoria torna-se impossível transpor do rigoroso querer bens para o

vigoroso ser Bem: nosso ēthos.

Qual fora o Bem de Marina Tsvetáieva? Dizer que sua mãe fora musicista e o pai

professor de arte são insuficientes. Se ainda insistimos neste aspecto é porque não nos

abrimos para o poético. Tudo indica que nós, “eminentes” críticos literários, “livres

pensadores”, não perdemos o hábito de primeiro investigar o nome do autor para

somente então penetrar nas obras. Acreditamos que conhecendo a “vivência”

encontraremos o litemotiv da poética. Precisamos de um suporte para que o autor

transmita o seu recado e a obra faça sentido. Pois bem, em primeiro lugar, o autor não

envia nada. Ele é tanto envio quanto desvio da própria mensagem – linguagem. Ele

simplesmente diz sem motivo de ser. Em segundo lugar... Não há segundo. O que há é a

obra, é a arte no seu acontecer de sentido. E esta, por ser diálogo, acontece enquanto

princípio e fim.

O leitor desta dissertação já deve ter percebido que a expectativa de amparar-se

em suportes não dá conta da amplitude poética do mistério que é a arte. Suportes não

suportam o vigor da arte. No entanto, se eu perguntasse aqui Marina Tsvetáieva, quem é

você?, de onde partiria? Evidentemente, da própria obra. Não pretendo investigar aqui

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seus flertes, suas paixões, seus anseios, suas decepções, dentre outras curiosidades que

temos a respeito da vida particular de quem admiramos. Isso já é tão batido, antipático,

grosseiro, rançoso... Levantamento biográfico não é o mesmo que colocar o poético em

questão. A cronologia não dá conta do ontológico. A pergunta Marina quem é você?

deve ressoar como uma provocação. Trata-se de uma pergunta que deve ser ouvida de

maneira singular cuja resposta devolva à palavra o seu ressoar pleno de silêncio. Por

não se prender em suportes, fundamentos, ideologias e/ou paradigmas, por desprezar

uma existência pacífica em busca de uma existência plena, Marina Tsvetáieva (2008, p.

139, 174, 317, 556-557, 133, grifo do autor) revela-se essencialmente:

Eu inteirinha sou em itálico.

[...]

Desde que nasci sou excluída do círculo dos homens e da sociedade. Atrás de mim não há muro vivo – há rocha: o Destino. Vivo observando a minha vida – toda a vida – a Vida! – Não tenho idade nem rosto. Pode ser que eu seja a Vida mesma. Não temo a velhice, não temo o ridículo, não temo a miséria – a hostilidade – a maledicência. Sob meu envoltório de alegria e de fogo, sou pedra, ou seja, invulnerável [...] – Que eu desperte amanhã com meus cabelos brancos e cheia de rugas – o que importa! – criarei minha velhice – amaram-me tão pouco mesmo! [...] Tudo no mundo me toca mais que minha vida pessoal. [...] Eu sou você + a possibilidade de amá-lo. (Você é eu + a possibilidade de eu me amar [...]).

[...]

Eu nunca estudei nada, nunca aprendi nada, o que sei – veio sozinho: entrando plenamente na coisa, voltando-me a ela. Foi assim que conheci Goethe, Napoleão, as mulheres do século XVIII, e agora – a Noruega e, talvez a única coisa que eu conheça realmente – a alma humana: forte e solitária.

[...] O que faço neste mundo? Eu ouço a minha alma.

Marina Tsvetáieva é isto, mas não se resume a isto. Ela passou por grandes

dificuldades, entretanto, foram as dificuldades que lhe propiciaram o encontro consigo

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mesma. Esse encontro deu-se pela poesia. A experiência com o poético era o que dava

sentido à sua existência. Desde pequena sentia-se “menos preterida” pela mãe. Na idade

adulta, tudo o que amava lhe fora arrancado, tirado, levado para longe. Foi o que

aconteceu com seu marido, Serguei Efron. Mal se casaram e a revolução os separou.

Todavia, Marina não foi alheia a nada. Ela escutou sua alma, o apelo do seu peito.

Cumpriu o que lhe foi destinado. Pactuou com a vida. O destino, sua rocha, apontava a

todo o instante que ela – é. Marina não precisou estar para ser. O que ela é antecede o

seu estar sendo, pois ela sabe-se doação da vida – manifestação de sentido. Se o ser é o

que possibilita ocuparmos uma posição, por que Marina Tsvetáeiva enfrentou tantos

infortúnios? A resposta é simples: Viver não tem causa. A vida é sempre possibilidades

de e para possibilidades. Por isso, não devemos confundir causa com motivo. A vida

não tem causa porque não pode ser definida previamente. A vida não apresenta um

fundamento. Vida é mistério. Este não é o que está distante, e sim na interioridade de

nós mesmos. Dito em outras palavras, o mistério nunca está fora. Ele nos é tão próximo

que não conseguimos compreendê-lo. Meditação, concentração, mistério é que nos faz

voltar ao centro, à vitalidade da vida enquanto caminhos de pensamento. Daí não termos

uma explicação lógica e causal para o mistério se apresentando.

Quando se compreende que viver é sem causa, descobrimos a leveza e a beleza do

mundo em nós; passamos a viver a vida tal qual ela se apresenta e não de acordo com a

nossa vontade; conduzimo-nos pelas possibilidades da realidade – entretecer dos fios e

desafios de nosso próprio destino.

1.1 Marina Tsvetáieva: uma biografia poética

Marina Ivánovna Tsvetáieva nasceu no dia 26 de setembro6, de 1892, na cidade de

Moscou. Ela destaca-se, sem dúvida, como uma das representantes mais relevantes da

literatura russa. Ouso afirmar que a sua poesia é única. Ao tomarmos conhecimento da

sua vasta produção poética, observamos que as suas obras não se parecem

absolutamente em nada com os escritores atuais ou do passado. Isso não quer dizer que

os seus poemas e/ou a sua prosa sejam melhores. Não se trata de atribuir valores. Aliás,

6 Esta data corresponde ao calendário antigo e sua preferência. Conforme o calendário novo,

esta data passaria a 08 de outubro, do mesmo ano.

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essa atitude valorativa não será aqui empregada. O que encontramos nas suas obras é

apelo de viver, pulsão vital da vida fazendo-se vida, poesia.

Para apreender este apelo é preciso prestar atenção à força poética da sua obra,

deixando-se conduzir pela musicalidade. Só ouve a musicalidade da sua obra quem está

disponível para a escuta do silêncio que se interpõe no âmago da própria vida. A

musicalidade não é outra coisa senão a poesia dando-se enquanto abertura de sentido.

Em sintonia com a musicalidade o ser humano pode sincronizar-se com a sinfonia da

própria existência. Daí dizer que a obra de Marina Tsvetáeiva seja marcada por uma

estrutura essencialmente rítmico-sonora. Em virtude dessa rítmica muitos dos seus

poemas foram musicados na Rússia. Vale ressaltar aqui a canção que M. Tariverdiev fez

para o poema “Agrada-me”, interpretado nas vozes de Elena Karikôva, Vladímir

Presniákov e Anna Pulgachôva. Atualmente, Elena Frolhova compõe para voz e violão

alguns dos seus poemas.

Uma das características mais marcantes dos poemas de Marina Tsvetáeiva é a

musicalidade. Conciliados a esta, há também uma sede de infinito, um desejo de entrega

ao viver na dinâmica do seu acontecer. É bem verdade que o desejo de alcançar o

infinito, ou seja, o extraordinário configura o desejo de todo e qualquer ser humano. Em

Marina, porém, tal procura assume o caráter e o sentido de uma vida de acordo com o

que lhe é próprio. A leitura dos seus poemas nos faz perceber que o sentido da

existência humana se dá não por vivências, mas pelas possibilidades de sentido dadas

pela própria vida.

A plenitude e o amor, alegria, dor, fogo, esperança são algumas das muitas

questões que perpassam os seus versos. O lírico e o trágico, o folclore russo, as cantigas

populares e a cultura grega são também elementos constantes na sua poética. Até

mesmo na sua prosa (cartas pessoais e ensaios de arte e literatura) estas questões se

fazem presentes. Marina Tsvetáeiva não limita a poesia aos poemas. A poesia é uma das

possibilidades de a realidade se dizer e acontecer. É aceno no qual o ser humano firma e

confirma o viver na sua plenitude. A poesia, no entanto, não é apenas isso. É mais:

convite para se penetrar nos raros instantes de plenitude, a poesia é a possibilidade mais

premente de descobrir a beleza do mundo em nós sem a pretensão de atribuir uma

causa. Gênese de sentido, força plástica e criativa, a poesia pode ser compreendida

como qualidade poético-ontológica a conceder vida.

Articular a poética de Marina Tsvetáieva aqui no Brasil não é nem um pouco fácil.

Quase não encontramos material disponível em vernáculo. No entanto, há material

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melhor que a obra do próprio poeta? Enquanto artista do espírito, enquanto poeta que

escreveu não com tintas, mas imprimiu seus versos com a cor púrpura da própria

existência, Marina semeou o viver como lugar de poesia.

Entre os grandes escritores ela ocupa um lugar todo especial. De fato, é raro encontrar um autor que saiba, de maneira tão intensa, dar a impressão de ter vivido e escrito em permanente contato com o absoluto. Há uma palavra que parece feita para designar o estado de espírito que a caracteriza sempre: incandescente. Ela sabe mergulhar no mais fundo e se elevar até o mais alto; indo até o âmago de suas experiências, ela consegue revelar o seu sentido universal e fazer com que a experimentemos próximas, como nossas. Graças a seu amor pelo extremo, ela pode desvelar a nosso olhar aquilo que pressentimos quase vagamente. (TODOROV, 2008, p. 13, grifo do autor).

O que pressentimos quase vagamente é a poesia. A agitação do cotidiano, o medo

do fracasso, a falta de tempo e o excesso de tarefas por fazer, para citar apenas algumas

de nossas muitas preocupações, parecem nos distanciar cada vez mais de uma existência

plena. Não temos tempo para nada. A vida moderna exige cada vez mais velocidade.

Estamos no mundo, mas não construímos uma existência poética. Vivemos uma vidinha

frouxa, minguada. Somos quase uns autômatos, espírito sem luminescência. Não

aceitamos que viver, por ser perigoso, seja uma aventura fascinante capaz de nos rasgar

e atravessar por inteiros. Temos medo de viver. Acovardamo-nos. Tentamos recuar, mas

o pulsar da vida é maior que as nossas expectativas.

De Marina Tsvetáieva não se pode falar assim. Seu amor pela vida é o que a

manteve firme diante de tantas vicissitudes, diante de tantos desencontros. Independente

das surpresas cotidianas, Marina não sucumbe: aceita desafiar e desafiar-se nos fios e

desafios da própria vida. Para ela, os extremos não são instâncias separadas, mas

estâncias de um mesmo jogo. Vida e morte, tudo e nada, finito e infinito, angústia e

serenidade não estão separados. Pelo contrário! São um e o mesmo. É no

atravessamento destes que Marina Tsvetáieva imprime sua biografia.7 A vida é de se

inventar a cada instante. O seu tom é sempre desafiante e faz da desarmonia a mais

perfeita harmonia. Isso quer dizer ser poesia, tecer e entretecer sentido – caminhos.

O limite do viver não tem como extremo o morrer. Limite é sempre possibilidade

premente de a poesia irromper. É condição de travessia. Marina Tsvetáieva, ciente de

que a vida se consuma em uma grande travessia, permite que a poesia, que é o próprio

7 A palavra biografia é formada pelo prefixo latino bios, que significa vida, e do radical

grápheim que significa escrever. Daí biografia significar escrita da vida; mas não da vida enquanto vivente, e sim da vida como busca do que é próprio.

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viver nascendo, irrompendo, jorrando, sendo nas suas possibilidades de e para

possibilidades, venha também ao seu encontro. No tear de sua biografia, ela vive

poeticamente. Biografia? Sim. Biografia significa escrever com a vida; cumprir o

destino que lhe é destinado. Esta questão de cumprimento do destino será retomada

mais adiante.

Desde pequena Marina Tsvetáieva esteve contato com as artes. Seu pai, Ivan

Vladimírovitch Tsvetáev, fora um eminente professor de arte, história e filologia, da

Universidade de Moscou, e também fundador do Museu de Arte de Moscou.8 Com ele,

Marina aprendeu a ter disciplina, a renunciar, a não se prender em valores destituídos de

sentido. A figura paterna não lhe era completamente dominante. A sua influência é mais

secreta. Sua mãe, Maria Mein, pianista e poeta, esta sim foi quem exerceu nela forte

influência. Com ela, Marina aprendeu a amar a música, a natureza, a poesia. Pode-se

concluir que a herança deixada por seus pais foram: Música e Museu. É curioso, mas

Marina Tsvetáieva não se sentia amada pela mãe. Ela acreditava que dela a mãe tinha

orgulho, mas amor mesmo nutria apenas por sua irmã mais nova. Este, porém, é um

capítulo à parte e que não será desenvolvido aqui. O que se busca é a sua biografia,

abertura de sentido, e não biografismos. Tenho a impressão de que poucos se dão conta

da importância de utlrapassarmos os biografismos, em suas cronologias apenas

contemporâneas, atentando para o sentido histórico das artes, que é o poético.

A obra de Marina Tsvetáieva revela nosso destino histórico. Por História devemos

entender não o registro de documentos, fatos, acontecimentos, dados ou feitos de

determinada época e cultura. A História está sempre se fazendo. Nela se inscreve e

circunscreve o destino de todo ser humano. Com a História é possível encher-se de

estória, pois é ela que nos toma. Por cumprir seu destino histórico, Marina conta-nos os

primeiros passos de sua caminhada de sentido:

Minhas primeiras línguas: o alemão, o russo: a partir dos sete anos, o Francês [...] Minha ocupação favorita a partir dos quatro anos: a leitura; a partir dos cinco, escrever. Tudo o que eu amei, amei antes dos sete, depois, nada mais. Aos 47 anos posso dizer que tudo o que eu iria conhecer, conheci antes dos sete, depois só tomei consciência.

Na primavera de 1902, entro num internato Francês em Lausanne, onde permaneço um ano e meio. Escrevo versos em Frances. Durante o verão de 1904, vou com minha mãe para a Alemanha, na Floresta Negra, e, no outono, ingresso num internato em Friburgo. Escrevo

8 Posteriormente, transformado no Museu Aleksander Púskhin.

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versos em alemão. Meu livro nessa época é Lichtenstein, de Wilhen Hauff (Autobiografia). (TSVETÁIEVA, 2008, p.81, grifo do autor).

Até os sete anos de idade o mundo se desvelava para Marina com uma grande

surpresa. Era a inocência da criança que se admirava, apaixonando-se por cada aceno da

realidade! O vislumbre da vida na sua irrupção incessante de sentido, da descoberta

sempre constante de novas possibilidades, o seu olhar admirado, cheio de espanto e

paixão, o desejo de partilhar das coisas tal qual elas se apresentavam fizeram com que

Marina construísse um viver essencialmente poético. Tudo era descoberta. Porque tudo

era tocado como se fosse pela primeira vez. Tudo ardia em um fogo vivo, em uma

chama luminescente na qual se dava a grande descoberta do mundo, das coisas, ou, mais

precisamente, de si mesma. Já aos 47 anos, tomava consciência das coisas não porque

observasse a vida de longe. A vida a espiava por inteira, de dentro. Marina Tsvetáieva

nascera para cumprir o destino que lhe cumpre. A consciência que tinha da vida era

justamente a sede que tinha de viver, de deixar-se possuir pela paixão de ser, pelo

arrebatamento da própria vida no finito de suas infinitas possibilidades.

A leitura e a escrita tornaram-se companheiras inseparáveis de Marina Tsvetáieva.

Ler e escrever configuram também suas necessidades fisiológicas. Configuram não:

são! Aos cinco anos de idade ela já escrevia. É claro que, aos cinco anos de idade,

Marina escrevia como uma criança de cinco anos. Ela não fora uma criança prodígio.

Será que existem crianças prodígios? O que existe é o cumprimento das possibilidades

que nos foram oferecidas. Entretanto, é curiosa a anotação que vem em sua primeira

redação, em Francês: “Muita imaginação e pouca lógica.”9 (TSVETÁIEVA, 2008, p.

83, tradução nossa). Cumprir o que somos não tem idade, basta coragem de ser. Isso

significa estar diante de um viver pleno.

Marina Tsvetáieva, em sua sede de plenitude, sempre fora confiante e dedicada.

Graças à influência dos seus pais pode viver à procura da poesia. É poeticamente que

ela firma e confirma sua existência. Aos dezesseis anos publicou seu primeiro livro de

poemas, Álbum da tarde [Vetchérnii Álhbum] (1910). Muitos dos poemas deste livro

revelam uma poesia densa, mas também singela, cujo vigor essencial é oferecido pela

própria vida. A crítica da época acolheu o livro com bastante entusiasmo.

Na primavera de 1911, ela conheceu Serguei Efron. Em 27 de janeiro de 1922 eles

se casaram. Ela decide que, independente do que aconteça, nunca irá se separar do

marido. Presságio? Antecipação do futuro? Ela tem dezessete anos e ele dezoito. Em 9 “Trop d’imagination, trop peu de logique.”

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fevererio deste mesmo ano, Marina publica seu segundo livro, Lanterna mágica

[Balhchêbinii fônari]. Neste mesmo ano nasce a primeira filha do casal, Ariadna10

(Ália). Esta fora sua alegria e seu motivo de viver, além do marido. No ano seguinte,

Marina publicou o livro Fragmentos de dois livros [Iz divur kinigui], uma seleção de

poemas retirados de seus dois primeiros livros. Até meados de 1914 ela viveu em

harmonia com a sua família. Em julho de 1914 estoura a Primeira Guerra Mundial. A

sua vida sólida e serena – ruiu.

Durante a Primeira Guerra Mundial o território russo foi totalmente devastado,

tornando-se cenário para a Revolução de Outubro. Foram feitos os alicerces para uma

Guerra Civil. Por toda parte – medo, miséria. A Rússia tornou-se palco para grandes

conflitos. A lei de talião alcançava sua vigência máxima: olho por olho, dente por dente.

Cada um deveria viver por si. Esse clima de desespero pode ser entendido na imagem de

um cão perambulando, pelas ruas da cidade, com uma tabuleta pendurada no pescoço na

qual se podia ler: “Abaixo Trótski e Lênin – senão eu serei comido.” (TSVETÁEIVA,

2011, p. 199). Cidade empoeirada – cinzas, ruínas. Homens perdidos – torpor, horror. O

medo fustiga corpo e espírito. Aflição. Aonde jaz a aura das coisas?

Em 02 de novembro de 1917, Marina Tsvetáieva viaja de trem até Moscou.

Durante a viagem, ela escreve em seu caderno de notas uma carta para o marido. Fazia

algum tempo que ela não tinha notícias suas. A sua aflição é tanta que ela escreve: “Se

Deus realizar este milagre – deixar você viver, eu o seguirei como um cão.”

(TSVETAIEVA, 2008, p. 137). Serguei Efron está vivo e juntos partem para a Criméia,

deixando as filhas na Rússia. Após uma semana na Criméia, Marina decide visitá-las.

Neste mesmo período, Serguei Efron alia-se ao Exercito Branco11, opondo-se ao

Vermelho. Posteriormente, é emigrado. Marina permanece em Moscou, ao lado das

filhas, passando grandes dificuldades. Nesse período de nebulosidades e incertezas,

10 Sobre a escolha do nome da sua primeira filha, Marina Tsvetáievadeclara: “Eu a chamarei

assim por causa do romantismo e do orgulho altivo que sempre tomaram conta de minha vida.” (TSVETÁEIVA, 2008, p. 106). Marina também será mãe de Irina, que morrerá de fome em um orfanato, e de George (Mur). Dos três filhos, Ália foi a mais amada.

11 Em russo, Biélaia Ármia, também conhecido como Guarda Branca [Biélaia Gvárdia] compunham um grupo, dentre tantos outros, que se opôs aos Bolcheviques, após a Revolução de Outubro. Esse Exército lutou contra o Exército Vermelho [Krásnoe Ármia], criado por León Trótski, durante a Guerra Civil Russa de 1918 e 1921. Embora não tivessem seus princípios ideológicos bem definidos, o nome Exército Branco é decorrente de dois fatores: 1º) oposição ao Exército Velho, que era a favor do Comunismo e dos Sovietes; 2º) O termo branco tem referências ao monarquismo, sobretudo ao czar Ivan III, conhecido como “Czar Branco”. Os soldados desse exército vestiam-se todos de branco.

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Marina Tsvetáieva viu-se obrigada a dividir o parco alimento que tinha na mesa com

suas duas filhas:

A quem dar a sopa da cantina: a Ália ou a Irina? [...] Mas o pior é que essa sopa da cantina – gratuita – não passa de água fervida com restos de batata e algumas gotas de gordura desconhecida. (TSVETÁIEVA, 2008, p.147-148).

Diante de tanta miséria, decide enviar suas filhas a um orfanato12, no lugarejo de

Kúntsevo, na cidade de Moscou. Lá, a miséria será ainda maior. Alguns meses depois,

Irina adoece. Em seguida, Ália. Marina decide trazer Ália de volta para casa. Irina

morre, sem que a mãe tivesse tempo de trazê-la de volta.

Marina Tsvetéaieva ficou muito tempo sem ter notícias do marido. Ela passou por

grandes dificuldades, mas não desistiu de procurá-lo. Todos os dias ela escrivia cartas,

sem saber se chegariam até suas mãos. Após muito insistir, ela consegue notícias suas e

deixa a Rússia, indo reunir-se a ele. Ela cumpre sua promessa de segui-lo como um cão.

Passa dezessete anos no exterior. Ela não participou de nenhum dos trâmites de sua

emigração. Entretanto, o destino gosta de pregar peças. Em Praga, Serguei mudou

radicalmente de posição. Aliou-se ao Exército Vermelho. Tornou-se agente secreto do

governo soviético. Os anos passam-se e Serguei Efrón e Ália são acusados de

envolvimento em um assassinato. Eles voltam para a Rússia. Marina Tsvetáeiva e o

filho Mur permanecem na França. No ano de 1937, Marina readquire cidadania

soviética, voltando à Rússia com seu filho. Outra vez, a sua segurança – ruiu. E agora?

Onde estava agora sua meninice? Onde estava a alma que resistira ao seu destino, para meditar sozinha sobre a vergonha de suas feridas e em sua morada de sordidez e subterfúgio revesti-la regiamente com mortalhas desbotadas e com guirlandas que murchavam ao toque? Ou onde estava ele [– o destino? Onde estava agora Marina]?

[Marina] estava só [...] estava perto do coração selvagem da vida. Estava só e jovem e [com seu destino] obstinado de coração selvagem, só em meio a um deserto de atmosfera selvagem e água salobra e à safra marítima de conchas e algas e à luz cinzenta e velada do sol [...]

[...] Ela estava só e quieta, fitando o mar [...] O primeiro ruído tênue da água suavemente agitada quebrou o silêncio, baixo e tênue e susurrante, tênue como os sinos do sono; aqui e ali, aqui e ali; e uma chama tênue tremulou em sua face. (JOYCE, 1992, p. 171-172, acréscimo nosso).

12 No idioma russo a palavra sanatório [sanatorii] significa orfanato.

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Como Marina conseguiu suportar tantas dificuldades? Ela não reagiu: manteve-se

serena. Por serenar é que pode pactuar com a vida em seu devir. A serenidade, porém,

não vem de uma única vez. É um exercício diário, uma conquista que nos chega

gradualmente nos envios e desvios do próprio caminhar. É aos poucos que Marina

Tsvetáieva cumpriu o seu destino, sendo o que desde sempre já fora. Ciente de que

precisava cumprir o seu destino, entregou-se ao fogo que a mantinha viva. Vale ressaltar

aqui que o fogo é uma imagem-questão presente em sua obra (prosa e poema). O fogo é

considerado um elemento purificador através do qual as coisas se renovam, ou seja, o

fogo aparece na obra de Marina como o elemento da transformação e iluminação.

Não podemos restringir o iluminar ao que é visível, claro e liberador. Ao se

iluminar, o ser humano, que está sempre lançado nos seus limites, – sereniza. Há uma

tensão, um movimento dialético do próprio fogo, onde a luz é tanto mais luminiscente

quanto mais se encobre. Nesse horizonte de reflexão, o fogo trás consigo a possibilidade

de purificação e liberdade na medida em que o iluminar trás à presença o que antes

estava guardado, oculto, recolhido em silêncio. Isso nos faz perceber que o iluminar não

é apenas clarividência. É mais! Luz é lúmen, pulsão criativa – gênese de sentido. É

energia irradiante de tudo o que é e não é. O fogo, portanto, enquanto iluminar, é

sempre latência de possibilidades. É o que se evidência no poema abaixo

(TSVETÁEVA, 2006, 1983, p. 50, tradução nossa):

O desprezível – traga para mim! Tudo se consumará no meu fogo! Atraio a vida, atraio a morte Com meu divino fogo.

A chama gosta de – substâncias leves: Velhos gravetos – grinaldas – palavras. – A chama – aprecia estes alimentos! Levante-se – mais puro que a cinza!

Ave-Fênix – só no fogo eu canto! Façam minha vida arder alto! Queimarei alto – queimarei até o fim! Para que a sua noite tenha – clarim!

Fogueira fria, fonte quente! Ergo meu talhe elevado! Ergo meu porte elevado – De Herdeira e Mensageira!

Todo o poema gira em torno do fogo. O poeta chama para si tudo o que é

desprezível, pois tudo se consumará no seu fogo. É importante observar que não é dito

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consumir, e sim consumar-se no fogo. Ao contrário do que se consome, que se esvai e

estiola, o que se consuma dá-se como sentido. O consumar irá transformar sem findar.

O poema nos faz perceber que há no fogo um jogo dialético de transformação e

conservação. O fogo é sempre possibilidade de revelação de um saber, de um saber que

se dá não pelos limites do conhecimento, mas pelo saber do não saber. A dialétheia do

fogo recolhe e acolhe o que vigora e perdura. Não cessa nunca. No branco das cinzas –

ilumina-se. É o que nos diz o primeiro verso da terceira estrofe do poema:

Avê-Fênix – só no fogo eu canto!13

Há neste verso um diálogo com a imagem-questão da Ave-Fênix, um pássaro que

nasce e renasce das próprias cinzas. O que este pássaro nos apresenta como questão é a

dialétheia do viver e morrer. É por estar lançado neste jogo que o poeta canta. O que se

dá a cantar no poeta não é a sua vontade, mas a vigência da realidade na sua pulsão de

vida e morte.14 O poeta canta para trazer ao canto o que se louva: a vida. A vida não se

consome no limite. A vida, na sua tensão com a morte, consuma-se nos não limites.

Viver e morrer são possibilidades que se dão, a um só tempo, no ser humano. Daí o

poeta só cantar no fogo. A Ave-Fênix evocada pelo poeta não deve ser entendida como

uma metáfora ou simbologia do viver-morrer. Ela não representa: é o próprio ato criador

na sua pulsão de possibilidades. A Fênix nasce e renasce de si mesma. Como entender

isso? Do mesmo modo que a Noite se recolhe no Dia para que a luz advenha na sua

luminiscência, devemos também entender a dinâmica entre Vida e Morte. Noite é

convite ao repouso, à meditação. A Morte recolhe e acolhe a Vida para que a Vida

renasça nas suas possibilidades. Todavia, antes de morrer – se vive. Antes de nascer – se

morre. Há uma transmutação, uma transformação que se dá na travessia entre viver-

morrer, isto é, um irromper de possibilidades na experienciação das próprias

possibilidades geradas pela dinâmica de sentido da realidade sendo. O fogo, portanto, da

Fênix não finda no branco das cinzas. Pelo contrário, renova-se.

13 No idioma russo, o verbo ser não é pronunciado no tempo presente. Outra tradução possível

para este verso seria: “Sou Ave-Fênix – só no fogo eu canto!” 14 Vida não é aqui a vida dos viventes [Bios], e sim a vida enquanto gênese de sentido [Zoé].

Antes de ser vida vivida (ou medida), isto é, limitada há a unidadeda diferença, que é dada pela vida enquanto experienciação. A vida não é a soma de vivências que a morte interrompe. A vida, enquanto sentido, é sempre possibilidades de realizações; é dinâmica de experiências nas quais nossos próprios limites nos lançam em infinitas possibilidades.

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Pode-se dizer que o fogo constitui um dos elementos geradores de sentido. Em sua

dinâmica de nascer-morrer, de renascimentos contínuos, a Ave-Fênix deixa advir a

possibilidade de ser e consumar-se plenificando-se, isto é, deixa-se conduzir pelo

sentido [télos]. A sua condição é consumar-se, ser um contínuo jorrar de possibilidades.

Dito com outras palavras, o poeta alcança a plenitude de ser e de fazer-se tempo.

Queimarei alto – queimarei até o fim! Para que a sua noite tenha – clarim!

Queimar até o fim para alcançar sentido. Há aqui um jogo cíclico onde fim e

começo se tocam. Aliás, todo o poema trata da dialétheia, das possibilidades da vida

enquanto vivência (bios; vida finita) em tensão com vida na sua plenitude (zōe; vida não

finita). Queimar alto, portanto, não é alimentar a chama para se consumir, mas para que

o ser humano, entregue à paixão de ser, possa consumar-se. É justamente assim que o

poeta, e também todo e qualquer ser humano, cumpre o seu destino. Ao cumprir o seu

destino alcança o que lhe é próprio, ou seja, realiza as suas possibilidades. Prestemos

atenção à última estrofe do poema:

Fogueira fria, fonte quente! Ergo meu talhe elevado! Ergo meu porte elevado – De Herdeira e Mensageira!

O porte elevado do poeta só é compreendido quando este se lança na dialétheia do

viver-morrer, do fogo frio, da fonte quente. A realidade não opõe nada. Ela dá-se em

contínuo movimento. E o poeta, sabedor de que não existem dicotomias, ergue seu

porte, se volta para sua estirpe elevada de herdeiro e mensageiro. O que o poeta herda é

o canto, a poesia, dando-se. Daí o poeta ser um médium, ou seja, passagem para o canto

que nele se doa. A poesia acontece naqueles que estão atentos à dinâmica de sentido.

É angustiamente abrir-se ao sentido, mas quando se decide viver poeticamente,

encontra-se o próprio sentido. Falar de Marina Tsvetáieva significa pensar em

constantes mudanças. Atrevo-me a dizer que ela soube transformar sua vida, enquanto

vivente, em obra de arte. Toda sua vida foi uma conquista daquilo que lhe era próprio, e

nunca uma fuga. Como acontece com todo grande poeta e pensador, a sua arte poética

transformou-se ao longo do tempo. Tanto a sua prosa quanto os seus poemas são

legitimados por uma existência plena e nos revelam seu empenho de encontrar na

angústia liberdade – serenidade. Como consegue fazer ainda poesia diante de tanta

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miséria? Marina não fez poesia. É a poesia que a gera, ergue – projeta. Do contrário, os

seus poemas não passariam de um amontoado de palavras. Ela é criada pela poesia não

porque dá testemunho de uma época marcada pela diluição dos valores humanos, pelo

conflito e/ou pela imanência constante da revolução, mas justamente porque na poesia a

linguagem se dá no seu sentido essencial. Na poesia, a linguagem nada atribui, e sim

permite que a realidade se manifeste no seu deixar-ser.

Rebelde, mulher instigante. Apaixonada, decidida. Amiga e fiel. Tradutora,

ensaísta – poeta! Marina Tsvetáieva é tudo isso e muito mais. As inúmeras cartas que

trocara com seus amigos, muitas até com pessoas que nem sequer chegara a conhecer

pessoalmente, como o poeta alemão Reine Maria Rilke, mostram ao mesmo tempo, uma

mulher doce, porém, decidida, capaz de se entregar completamente à vida. Vida é o

abrir-se da poesia como poesia. Por isso, não basta falar sobre a vida. É preciso um

pacto com a vigência e regência da vida. Na vida que é poesia e na poesia que é vida a

imposição da vontade, de um “eu” desaparece. Tem-se biografia: escritura da própria

vida. É nessa escritura que Marina atende ao chamado da própria vida. Ela não recusa –

assume! Não sobrevive – vive! Ela compreende que a vida é doação do inaudito. A vida

não dá posses ou bens materias. O que se tem é o cumprimento do que somos. O que a

vida dá é pouco, mas este pouco é o bastante. A vida dá não para ter, mas para ser.

1.2 O viver em louvação

A vida é longa, porém, breve o bastante para sermos o que somos. Os dias passam

e quando nos damos conta, deixamos muitas coisas para trás. Tantas coisas ficaram

perdidas, esquecidas. Tantas coisas ficaram por fazer... Será que ficaram mesmo por

fazer? Não podemos ser ingênuos e ficarmos limitados às necessidades da causalidade

das vivências. Devemos estar atentos às nossas possibilidades de ser. É o poder ser

aquilo que desde sempre somos, mas que foi encoberto pela ditadura de um viver

meramente causal, que deve orientar nossa caminha. Marina Tsvetáieva parece estar

ciente disso e não tenta escapar do seu destino. Ela sabe que não havia como cumprir o

seu destino – ser poeta – sem que a poesia a possuísse. Ela vive em busca da poesia que

nela se doa.

Recordo-me neste momento da tragédia Édipo Rei, de Sófocles: sem saber, Édipo

obedece ao seu destino. Curiosamente, quanto mais tenta escapar mais se encontra com

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o seu quinhão. A sua vontade de nada adianta. Ele cumpre o seu destino. Cego, entregue

ao auge do desespero, Édipo age em consonância com o que lhe é próprio, seu Destino.

O mesmo aconteceu com Marina Tsvetáieva. Entretanto, ao contrário de Édipo, ela não

tentou fugir do seu Destino. Ao tomar ciência e consciência do que lhe fora reservado,

ela vai ao encontro daquilo que já é seu: o seu próprio.

Nos desencontros do viver, Marina Tsvetáieva busca quietude. Viver não oferece

manual de uso, não vem com receita explicativa. Viver é o que nos tira do comum,

porque a vida é excêntrica. Excêntrico não é o exótico. Formado pelo prefixo ex- que

significa lançar-se para fora, projetar, sair de, e pelo radical -centr- que quer dizer

centro, excêntrico é o que nos arremessa para fora do centro, o que foge ao comum e

ordinário, abrindo-nos ao extraordinário. Na execentricidade de Marina Tsvetáieva –

poesia. E, sobretudo o encontro com o que lhe é próprio. Fica, porém, difícil

acompanhar esta trajetória de sentido quando se parte da estética dos biografismos.

Diante do destino – revelações: Marina Tsvetáieva e o viver. Muitas vezes sua

vida definhava, muitas vezes ganhava força e Marina – apenas ela – permitia-se ser no

curso e transcurso de uma caminhada cujo télos, vigor de sentido, lhe era desconhecido.

Ela se embrenhava no mundo, porque o mundo se abria dentro dela. Ela era capaz de

reger a própria existência não por sua vontade, mas pela poesia que a espreitava. A vida

lhe exigia vida porque negar a vida é abdicar de si mesma. É cobrir o rosto com

máscaras, tentando se esconder do que se é. Todavia, não adianta. As máscaras se

esfacelam, caem. Ninguém escapa do destino que lhe cumpre. Viver não interrompe –

se ganha. Turbilhão algum é capaz de demovê-lo. Por quê? O caminho é incerto. Reter-

se ao lado da vida e não detê-la, mas ser nas suas possiblidades. Eis a sábia decisão de

Tsvetáieva.

Silêncio... Há abismo diante dos olhos. Para onde ir? O que fazer? Perguntas são

apenas perguntas quando não se sabe qual caminho escolher. Viver é essencialmente

mistério. Do mistério tudo nós sabemos e nada sabemos. E mais: o mistério retira a

certeza do controle. Coloca em suspenso a lógica. Ah, viver é tão ambíguo!

A morte e a vida, a fama e o olvido, a dor e o prazer, a riqueza e a pobreza, tudo isso acontece igualmente com a humanidade a bons e maus, sem constituir honra nem labéu: portanto, não são bens nem males. (AURÉLIO, 1973, p.278).

Estamos sujeitos às peripécias do destino. Evidentemente, uns recebem melhor as

surpresas que o dia a dia nos dá; outros não se acolhem às surpresas do destino que os

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colhe e escolhe. Nem bens nem males, o que buscamos em nossa caminhada diária

atende por Bem, a qualidade poético-ontológica que nos permite ser o que desde sempre

somos e não podemos jamais deixar de ser. O que fazemos neste mundo não é outra

coisa senão auscultar a poesia, que é a vida, nosso Bem maior. Ora, o que é Bem? Este

não deve ser confundido com posses materiais. Bem é, essencialmente, ser tomado por.

É sentido que se dispõe e interpõe diante de nós e nos convida ao pensar.

Em Marina Tsvetáieva o Bem essencial é a vida. Dos dissabores do viver ela

retira o sabor de ser. No fel encontra mel à medida que cumpre o seu destino. Alcançar

o Bem, a qualidade poético-ontológica, é estar lançado na travessia que a própria vida

oferece. Apesar de toda angústia e desamparo, na sua vida enquanto vivente, a obra de

Marina ressoa como méllos; configura um convite para adentrarmos na musicalidade e

sua referência com a própria vida, isto é, a escuta e ressonância com um viver no qual a

voz e as vozes, a unidade e a diferença, nos orquestra com a poesia da canção. Daí

encontrarmos em um dos seus poemas do ciclo “À vida” (TSVETÁIEVA, 2006, 124, p.

tradução nossa) uma possibilidade de nos voltarmos para o sentido de nossa própria

existência:

Não terás minha alma viva, Não me darei como pluma. Vida, tu rimas com fingida A escuta do poeta não erra! Não a inventou um nativo, Siga para outras paragens! Vida, tu rimas com sagrada. Vida: pegue-a! Entusiasme-se! Austeros são anéis nos tornozelos A ferrugem penetra nos ossos Vida: faca sobre a qual dança Quem ama. – Cansei destino!

O poema nos faz peceber a vida em louvação. Vida é paixão arrebatadora que

atrai. É coragem de viver por conta e risco próprio, não se deixando sucumbir diante dos

altos e baixos que a própria vida nos lança. “Vida, tu rimas com fingida”, dissimulando-

se. A vida nos arremessa em um abismo de possibildiades. O que nos cabe, portanto, é

viver com astúcia e sabedoria, ou seja, devemos viver por nossa própria conta e risco.

Esse viver por nossa própria conta e risco não deve ser entendido como “deixar a vida

levar”, “deixar correr solto”, “deixar rolar e ver no que vai dar”. A coragem de viver

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não tem relação alguma com o querer da vontade. Coragem é experienciar a vida como

paixão de ser; é compreender a dialética na qual desde sempre estamos lançados,

pactuanddo com o seu jogo de ser e não ser, com as nossas possibilidades de sentido.

Nossa necessidade mais premente é o desejo de ser. A essência do que somos é

dada pela nossa travessia com a vida, e não pelo conjunto de relações circunstâncias. É

o que nos faz refletir as duas primeiras estrofes do poema:

Não terás minha alma viva, Não me darei como pluma.

É impossível ter a alma do poeta. Esta é seu quinhão, seu próprio. Impossível

transferir a outrem o que somos. Cada um de nós é um próprio. Próprio é o que

recebemos para ser. Todo aquele que busca um viver autêntico não se deixa conduzir

por relações passageiras, temporárias, impróprias. Semelhante ao poeta, todo aquele que

busca um viver autêntico não se dá como pluma; não se deixa levar pelo querer bens. A

sua necessidade mais premente é conquista do que lhe é próprio. Bens quantitativos são

breves. É difícil chegarmos à plenitude do que somos. A cada instante nos movemos nas

possibilidades de ser/estar e de estar/ser em uma vida que só quer ser vida, porque é

criação poética. Somos finitos, mas desejamos o infinito. A vida, porém, na sua gênese,

não se dá na sua inteireza. Ela se recusa a entregar-se completamente.

Vida, tu rimas com fingida A escuta do poeta não erra!

A vida rima com fingida porque lhe é próprio o dissimular. No que dissimula, não

se dá na sua totalidade. O poeta está atento para a ambiguidade do viver. Ele

compreende a dialétheia entre vida e morte. O que corre nas suas veias é criação. Por

isso, a escuta do poeta não erra. Ele escuta o não dito de todo dito. O poeta é aquele que

vê antes mesmo de ter visto; está em sintonia com a realidade. Daí dizer que a verdade

poética não participa da adequação entre verdadeiro ou falso. Não há aí dialétheia, mas

adequação. Sabedor de que a verdade poética aparece como acontecer de mundo, o

poeta vela, isto é, coloca-se na vigília das possibilidades da realidade e suas realizações.

A verdade anunciada pelo poeta não é, portanto, fruto da sua subjetividade, e sim da

poesia que nele se doa. O poeta é aquele que se recolhe para ser acolhido e recolhido

pelo silêncio, esvaziando-se a si mesmo. Ele está à disposição da escuta da obra e seus

caminhos de criação, colocando-se como médium. Quando o poeta se coloca como

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médium, isto é, como acesso, como passagem e paragem, a poesia lhe chega enquanto

manifestação de sentido. Meditativo e sereno, entregue ao instante no qual a poesia

chega sem razão de ser, a própria poesia faz o poeta. É em decorrência disso que diz:

Vida, tu rimas com sagrada.

Sagrado e vida não se opõem. Ambos vigoram, irrompem, não cessam de

acontecer enquanto tempo, memória, sentido, isto é, enquanto possibilidades de

realização. A vida rima com sagrada porque é mistério que nos permite ser. Da vida, na

sua referência com o sagrado, tudo compreendemos e nada compreendemos. Só

podemos falar da vida porque já vigoramos nas suas possibilidades. Só podemos falar

de sagrado porque o sagrado está em todo lugar, mas nem tudo é sagrado. O que nos

cabe é o discernimento. Não podemos, porém, deixar que o instante de sagração e

revelação da vida escape:

Vida: pegue-a! Entusiasme-se!

É preciso entregar-se ao viver e suas possibilidades. Somente assim tocaremos no

que é pleno. Vida é acorde, e não acordo. É o que flui sempre em tensão com o tempo e

nossa procura de sentido. Todavia, a vida não é feita apenas de alegrias. Por vezes, é tão

austera que “a ferrugem penetra nos ossos”. A alegria e a dor não estão separadas.

Alegria é dor e dor é alegria. Não há aqui tautologia, mas dialética de sentido. As duas

possibilidades irrompem juntas, chamando-nos à plenitude. Então, cada um é feliz e

triste ao seu modo? Cada um encontra plenitude de acordo com sua procura?

Não existem plenitudes individuais. O que há são possibilidades oferecidas pela

vida, e não pelo vivente. As possibilidades da vida em sua dialética, ou seja, na dobra

entre vida vivida e vida experienciada, é sempre dinâmica. Devo acrescentar que

quando trato de dialética – dialétheia – ao longo desta dissertação não levo em

consideração a dialética hegeliana. Desconsidero que toda verdade passe pelo crivo da

razão e que sem esta não podemos consolidar nossa existência no mundo. O que dizer

da não verdade? Verdadeiro e falso são categorias idealizadas e nada nos dizem da

verdade. Além disso, pensar a dialética pela tríade tese, antítese e síntese significa

voltar-se a categorias já projetadas e, portanto, fechadas. Penso na dialética aberta, isto

é, na dobra de ser e estar. Voltando à Marina Tsvetáieva e sua dialétheia aberta, porque

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de sentido, pode-se dizer que ela esperou, esperou nas Moiras – Destino –, o

cumprimento do seu próprio.

1.3 Vida simples e exemplar

Se eu tivesse a pretensão de definir, aqui, Marina Tsvetáieva seria assim: Marina

foi alguém que soube viver poeticamente. Ou, de maneira mais precisa: Marina – vida,

poesia. Essa resposta acabaria nos lançando na velha pergunta: quem é o ser humano?

Apesar de se tratar de uma pergunta bastante antiga, acredito que jamais teremos uma

resposta válida universalmente. Todo viver é singular. Toda vida é originária quando

irrompe em consonância com o que é essencial. E o ser humano – indefinível.

Parafraseando aqui Santo Agostinho, é evidente que se não me perguntarem quem é o

ser humano sei. Se me perguntarem, já não sei. Perguntar pelo humano de todo ser

humano significa perguntar pelo seu modo próprio de ser. Todo ser humano é livre; é

um projeto que se faz, desfaz e refaz, continuamente. Como agir diante de tantas

possibilidades de ser? Será que somos livres a ponto de bebermos o mar quebrando nas

pedras? Será que temos coragem de nos entregarmos a um súbito acontecer de amar?

Coragem significa a possibilidade que temos de no finito, alcançarmos o infinito. Só

tem coragem quem é livre. Ser livre, porém, não significa fazer o que se quer. Liberdade

é a mais premente necessidade de o ser humano cumprir o seu destino; é estar aberto

para as questões, deixando-se tomar pelas peripécias do pensar. Liberdade é a

necessidade de realizar as possibilidades doadas pela realidade – com responsabilidade

– que recebemos para ser. Isso nos faz observar que o tempo todo nós estamos lançados

na dialética entre liberdade da vontade e liberdade da necessidade. A primeira surge a

partir do querer humano, da vontade de poder fazer tudo ilimitadamente, sendo sempre

uma compulsão pelo fazer. Por ser fruto do querer humano, trata-se de uma liberdade

fechada. A liberdade da necessidade não decorre da vontade, mas sim da pulsão, isto é,

do agir essencial no qual a possibilidade de sentido se doa em nós. É uma liberdade

livre, ou seja, aberta e que nos possibilita realizar o que recebemos para ser. O problema

surge quando não percebemos a ambiguidade, a dialética da liberdade, e tentamos nos

mover apenas na liberdade como vontade. Liberdade não é, em hipótese alguma, fazer o

que se quer. Só podemos agir (e não fazer!) em consonância com as nossas

possibilidades, com os nossos limites que recebemos para ser. O que somos não é dado

pela nossa pretensão de tudo querer e poder. É, antes, correspondência e cuidado com o

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que nos é necessário. A tarefa, portanto, que cabe a cada um de nós é adentrar no

horizonte de nossas próprias possibilidades e não termos medo, e sim a coragem de

cumprir o nosso destino vivendo poeticamente.

Mesmo em compassos abertos em um tom forte ou longo, fraco ou breve,

descendente ou ascendente o movimento da vida é sempre harmônico. A vida, enquanto

poesia, se dá como irrupção de uma música cujo acorde perfeito não existe. A harmonia

do viver é um jogo de apresentação e retraimento. A sonata de ontem é e não é a mesma

que ouvimos hoje. O que traz o equilíbrio, ou melhor, a harmonia não são os estágios

em que tudo parece perene, isento de transformações. Do mesmo modo que é

impossível a existência de uma música uníssona, uma vida de vivências não é ainda a

própria vida. Vida, poesia e música significam caminhos de um mesmo encontro;

significam voltar-se para as múltiplas possibilidades de interpretação. É preciso, para

tanto, ouvir a melodia que emana da própria vida a fim de nos deixarmos conduzir pela

musicalidade da própria realidade, fazendo-nos poeta.

Vida e poesia radicam em uma mesma questão. O que toca a essência da

realidade, ou seja, da vida enquanto vida é mais que um bálsamo doador de plenitude. É

a própria vida, cuja ressonância e consonância se desdobram em um concerto polifônico

de sentido, fazendo-se vida. Cada sopro de vida manifesta-se como méllos da poesia

doando-se no ser humano, permitindo-lhe alcançar uma vida simples e exemplar. O que

seria uma vida simples e exemplar? Responder tal pergunta é fácil, colocá-la em

prática...

Uma vida simples e exemplar não tem nada a ver com “vida modelar”, “exemplo

a ser seguido”, “padrão”. Se fosse possível criar um molde, isto é, um paradigma capaz

de dar conta da vida, a escuridão que por vezes nos assola já teria se iluminado. Vida

simples e exemplar é aquela na qual vivemos em harmonia com nosso próprio, ou seja,

com aquilo que realmente somos e não podemos jamais deixar de ser. Cultivar um viver

simples e exemplar não é outra coisa senão cumprir o destino que nos cumpre.

Entretanto, como pensar o ser humano em sua referência de sentido? Não é fácil

construir um viver simples e exemplar. Devemos ser vigilantes e deixar eclodir o que

somos. Isso significa ter a coragem de ser aprendiz com a própria vida. Ser aprendiz

com a vida não significa assumir uma atitude passiva ou de aceitação. Também não

adianta esclarecer o que venha a ser uma vida simples e exemplar através de conceitos.

O que somos não é uma identidade genérica. Aprendemos de acordo com nossas

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possibilidades. Só se aprende questionando, abrindo-se em diálogo. Ser aprendiz com a

vida é, portanto, pactuar com o mistério do próprio viver resguardando-nos.

MarinaTsvetáieva nos faz perceber que somos aprendizes da vida. E o quanto essa

aprendizagem é dolorosa. Dor, porém, não é aflição, mas atravessamento de plenitude.

Marina mantém-se, a todo instante, soante e consoante com seu próprio. A sua estória

nos faz adentrar nos limites ilimitados de uma vida simples e exemplar. Devemos,

porém, ter o cuidado e não confundir “simples” e “exemplar” com mera adjetivação.

Vida simples e exemplar significa viver o essencial. Ora, o que é essencial? Também

não podemos confundir essencial com essencialismo. Essencial é o que nos faz viver de

acordo com as nossas possibilidades. Tudo aquilo que nos faz um próprio nos é

essencial. É o que nos revela o poema abaixo (TSVETÁIEVA, 2008, p.62, tradução

nossa).

Sou feliz por viver simples e exemplar: Como o sol – o pêndulo – o calendário. Sou eremita de porte alinhado, Sábia – como a criação divina.

Saiba: o Espírito – meu companheiro, o Espírito – meu conselheiro! Entro sem anunciar, como um raio e um olhar. Vivo assim como escrevo: sucinta e exemplar Como Deus ordena e os amigos condenam.

O primeiro verso do poema é decisivo: “Sou feliz por viver simples e exemplar”.

Ao que parece, a felicidade advém na medida em que estamos atentos e cultivamos uma

vida simples e exemplar. Todavia, uma vida simples e exemplar vem carregada de dor e

renúncia. Incontáveis são os dias e as noites em que vagamos com nossos espectros na

tentativa de alcançar sentido. Normalmente, nós reclamos, praguejamos, dizemos que a

vida é um grande vazio. Aos dias e às noites seguem-se – anos. Tudo parece igual. Só

nossas lamentações aumentam. Lamentamos tanto que nem sequer nos damos conta de

que estamos quase ressentidos. Abaixamos a cabeça e nos trancamos em lamúrias. É

como se na entrada de nossa casa estivesse escrito: por trás desta porta mora alguém

infeliz. Por que temos medo de viver? Por que insistimos em não conhecer a nós

mesmos? Abrir os olhos e ver como os barcos cavalgam no oceano é como abrir a porta,

permitindo que o extraordinário entre; é encontrar nos sulcos abertos pelo barco a

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possibilidade de um novo horizonte. Porém, fitamos a vida como se a ela não

pertencêssemos. Olhamos o mar de longe e não percebemos a calmaria na fúria das

águas. O barco sob o comando do timoneiro segue sua viagem. E o timoneiro faz-se

viajante da própria vida. Se tivéssemos coragem e fossemos, como diz o terceiro verso

do poema, “eremita de porte alinhado”, pactuaríamos com o viver e suas possibilidades.

Desconhecemos, muitas vezes, que viver como o sol, o pêndulo e o calendário

seja deixar-se atravessar pelo tempo, que é a própria vida sendo no curso e transcurso de

si mesma, encontrando sentido. O motivo de nossa existência é dado pelo sentido. O

que nos cabe é nos empenharmos e realizarmos o que já recebemos para ser: o nosso

destino. A nossa tarefa incide em conquistar, sem nos preocuparmos com o tempo do

relógio, que a tudo controla e destrói, o que nos é próprio. Evidentemente, conquistamos

a partir das nossas possibilidades. Do contrário, não poderíamos conquistar.

O sol, o pêndulo e o calendário indicam movimento, mudança. Estas três imagens

nos convocam a uma reflexão com a mais atemorizante das questões: o tempo. Não se

trata do tempo cronológico. A divisão do tempo em princípio, meio e fim são

possibilidades ternárias do calendário, mas não sua consumação. O poema propõe um

diálogo com o tempo poético dando-se enquanto possibilidade de sentido. Tempo é o

que permanece e muda. É impossível vivermos fora do tempo. Também a expressão “eu

não tenho tempo” é falsa. Somos radicalmente tempo. Em se doando em nós, o tempo

diz-se linguagem [lógos], reunião de sentido. Para se experienciar o tempo enquanto

linguagem é preciso não tentar conceitá-lo. É preciso ter a sabedoria de que cada coisa

muda, anda pelas mãos das estações, mas se resguarda em si mesma. Tudo muda, mas

permanece. Por quê? O tempo poético instaura uma dialética aberta na qual passado,

presente e futuro dão-se harmonicamente. O fim está no começo e o começo está no

fim. Daí o poeta dizer:

Sou eremita de porte alinhado, Sábia – como a criação divina.

Ser eremita significa estar sintonizado com o tempo, ou seja, é ser atravessado

pelo tempo que lhe é oportuno, na sua dinâmica de sentido. O eremita tem o porte

alinhado porque não se resigna. Ele não teme o acontecer do tempo, pois sabe que

passado, presente e futuro irrompem juntos. Por isso, recolhe-se com sabedoria,

abdicando da sua vontade e/ou do seu querer meramente subjetivo, deixando-se acolher

pela dinâmica de sentido entreaberta pelo próprio tempo. Tempo e ser dialogam. A co-

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pertença de ser e tempo é o que nos lança na nossa dimensão mais profunda: sermos

humanos. É o tempo, enquanto sentido, que nos encaminha rumo ao horizonte de nossas

possibilidades. O que nos é possível? Aquilo que temos de próprio, nosso ēthos. Daí o

tempo ser essencial para que conheçamos a nós mesmos. Ser eremita é ensosinhar-se,

deixando-se tomar pela solidão. A solidão não tem nada a ver com isolamento; é, antes,

deixar-se tomar pelo silêncio e, sobretudo, ser e estar, estar e ser diante da dinâmica da

realidade e suas possibilidades de sentido; é escuta daquilo somos. O que somos

somente nós podemos saber e experienciar. Por isso, a solidão exige renúncia. Ao

contrário do que se costuma pensar, renunciar não significa abrir mão de algo. Pelo

contrário, renunciar significa trazer à proximidade. É, por vezes, abrir mão de certas

coisas para que estas mesmas coisas venham ao nosso encontro; também existem

algumas coisas que simplesmente renunciamos por não nos dizerem nada, por não nos

tocarem de maneira que nos lance na proximidade. Ora, tocar na proximidade de quê? O

eremita, aquele que se lança na solidão e escuta do silêncio, não faz essa pergunta. Ele

dialoga consigo mesmo. Apenas os que confundem solidão com isolamento não

suportam se resguardar em diálogo. O eremita, tomado pela solidão, chega à

proximidade do que lhe é próprio. Ele sabe que só pode ser a partir dos nossos limites,

pois o que temos são as nossas possibilidadess. Surge aqui uma questão fundamental: o

ter/possuir. Não podemos ter as possibilidades do outro. A única possibilidade que

temos é a que nos foi dada – nosso próprio. Todavia, quando se pensa o ter enquanto

posse nada temos. Tudo aquilo que não nos pertence é temporário – passa. É neste

sentido que a renúncia anuncia, tornando presente o que nos é próprio. Apenas

compreendemos isso quando nos recolhemos na dinâmica de ser e tempo vigorando na

solidão, na nossa solidão. É assim que o eremita torna-se sábio.

A sabedoria é dada pela paixão de ser. Ser o quê? Ser com o tempo. Ser e tempo,

apenas. O tempo, a todo instante, nos lança na vida morrente e na morte nascente.

Originário de toda sabedoria e plenitude, o tempo doa-se na própria realidade

convocando-nos a buscar o essencial. O que nos é essencial? Sermos no horizonte de

nossas possibilidades. Este é o mistério de ser e tempo. Em consonância com o jogo

entre viver e morrer, com a dialétheia de ser e tempo, conquistamos uma vida simples e

exemplar. Diante desta vida simples e exemplar, que se conquista aos poucos, a

existência se dá como recolhimento. Esse recolhimento é dado como presença. É o que

nos diz o sexto verso do poema:

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Entro sem anunciar, como um raio e um olhar.

Entrar sem anunciar significa entrar em silêncio, sendo provocativo como um raio

e um olhar. Essa é a condição do eremita, de todo aquele que se lança na solidão do

próprio. Ao sermos acolhidos pelo o que nos é essencial, o próprio tempo nos coloca na

proximidade do sagrado. Este é silencioso, entra sem anunciar, sem pedir licença. A sua

presença é tão premente que compreendemos que tempo é a força geradora da realidade.

Tempo é unidade de vida e morte. Entrar sem anunciar é tornar-se presença. Presença de

ser no tempo. E saber que no mesmo instante em que se diz vida, também se diz morte.

Após esta breve discussão, chego à conclusão de que nós, enquanto viventes, só

vivemos e sabemos da nossa vida finita – de viventes – porque esta é uma doação da

vida enquanto tempo, isto é, enquanto plenitude de realização. Pensar as vivências,

enumerando um conjunto de eventos, ordenando tudo cronologicamente é possível, mas

nada nos chega de maneira linear. O nosso grande desafio é não sucumbir ante os

instantes de amargura ou dificuldade. É deles que devemos retirar forças e seguir

adiante. Somos gerados pelo tempo. Ele, e somente ele – o tempo – retira e dá. Daí a

importância de estarmos sempre atentos ao inesperado. O viver em plenitude só é

possível quando nos permitimos conduzir pela espera do inesperado. Isso é alcançar

sentido! O sentido que, nas nossas procuras incessantes, nos empenhamos em procurar.

Sentido não é resultado de relações circunstânciais. Não tem causa. Sentido dá-se

como vigília e escuta do humano e seu destinar-se. É, portanto, a partir da vertente de

sentido e diálogo com os poemas de Marina Tsvetáieva que nos aproximaremos da sua

poética. O poeta é poeta do sentido que nele se doa. Ao dar o passo na direção do

sentido, de modo que o sentido venha ao seu encontro, o poeta revela:

Vivo assim como escrevo: sucinta e exemplar Como Deus ordena e os amigos condenam.

Vida é sentido no qual tempo-espaço não se dividem. No fluxo e refluxo da

realidade inspiração e expiração, movimento e repouso, agitação e serenidade, viver

simples – exemplar. Na ambivalência da realidade, o simples brota daquilo que não é

medida. Dizer vida simples e exemplar é tão somente agir de acordo com o nosso

destino. Será isto tão difícil de entender? O poeta vive como escreve: de maneira

suscinta e exemplar. Não se prende em paradigmas ou conceitos. Entretanto, não é nem

um pouco fácil ser suscinto e exemplar. A lógica não dá conta dessa questão. Os que

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têm os olhos incrustados de conceitos condenam, mas o poeta não se abala. Ele deixa-se

guiar pelo seu quinhão, fazendo do espírito seu conselheiro e companheiro. O poeta

sabe que o essencial não é para ser compreendido logicamente, tampouco se dá pela

percepção sensorial. O essencial é sempre sentido que se interpõe e nos dispõe no

mistério de ser e tempo.

Por ser essencialmente ser e tempo, a vida se faz simples e exemplar não porque

possa servir como um modelo a ser seguido ou provenha de um modelo prévio, já dado

anteriormente, como se interpretou o pensamento de Platão (e ainda se interpreta),

quando o cristianismo viu nele as ideias eternas na mente de Deus. Não é isso. Muito

pelo contrário! Viver simples e exemplar é encontrar na própria vida sentido. A

subjetividade do “eu” deixa de ser unidirecional e presa às nossas experiências

particulares; passa-se a se vislumbrar o encontro com o que nos é próprio (como diz a

sentença Délfica “Conhece-te a ti mesmo”). Como pensar isso na obra de Marina

Tsvetáieva? Ela faz filosofia e não arte? Ela mesma nos responde: Não sou filósofo. Sou

um poeta que também sabe pensar. Em cada possibilidade de ser dá-se também uma

possibilidade de dizer, isto é, de conhecer o que desde sempre somos. Por isso, a estória

de Marina Tsvetáieva, ou seja, o seu quinhão incide em deixar-se conduzir pelos

caminhos que lhes são indicados ao longo de sua trajetória. Muitos desses caminhos

apontam veredas, pequenas paragens, trilhas nas quais as pedras que surgem ao longo

de sua caminhada não são motivos para se buscar atalhos e/ou desvios. Semelhante às

águas que, serenamente, envolvem as pedras que encontram ao longo do leito de um rio

adentrando, assim, em um possível obstáculo, Marina experiência o que lhe foi

destinado. Ela realiza a consumação do viver pela dor. Como consegue? Permanecendo

junto às coisas, permitindo que a própria realidade a conduza ao repouso de si mesma.

Isso é bastante difícil: abrir mão da vontade entregando-se ao deixar ser da realidade.

1.3.1 Abertura para o trágico

Ainda há pouco vimos que Marina Tsvetáieva alcança uma vida simples e

exemplar porque vive em consonância com a essência do que lhe é próprio. Este é sua

morada, seu ēthos – sentido. Ela sabe que a vida é espera e aproximação. É envio e

desvio: desafio! Por isso, entrega-se à facticidade do viver. Facticidade não significa

fatídico, fatal, calamitoso, disparate, despropósito, e sim abertura para a anunciação

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trágica da própria existência. Por confundirmos facticidade com fatalidade é que temos

dificuldade em compreender o sentido do trágico. Toda existência imprime um caráter

trágico. A tragédia do viver dá-se em núpcias com o morrer. Daí dizer que estamos

lançados, desde sempre, na facticidade. Isso significa estar no mundo. Todavia, estar no

mundo não significa ocupar uma posição, mas cumprir nossas possibilidades de modo

pleno. Uma pedra está no mundo, no entanto, não pode mundificar. Sozinha, a pedra

jamais será uma estátua de Afrodite ou uma escada. O pedrar da pedra é-nos

desconhecido, mas este chega à sua plenitude de realização quando o ser humano se

volta para ele sem a intenção de modificá-lo, mas para que no aberto de suas

possibilidades a pedra seja apenas pedra. Sozinha, a pedra não pode cumprir o curso e

transcurso de um destino. Estar no mundo significa ter coragem e ser. Ser o quê? Nosso

próprio. Não alcançamos a plenitude porque nossas ações são boas ou más, porque

vamos à missa ou pagamos nossas dívidas. A plenitude dá-se quando nos deixamos

atravessar pela morte que não é outra coisa senão vida sendo. Isso é trágico!, gritamos

no auge do desespero. O que entender por trágico? Eis agora, a nossa questão.

O trágico não nos pede licença para acontecer. A sua presença é evidente, todavia,

somente quando somos tomados pela sua força plástica percebemos o mistério no qual

já estamos desde sempre lançados. Não foi o que aconteceu na tragédia Édipo Rei, de

Sófocles? Tudo já estava anunciado, dado às claras, mas Édipo não percebia e quanto

mais tentava se afastar, mais cumpria o seu destino. Por quê? O trágico nos lança no

cumprimento de um destino. Não de qualquer destino, mas do nosso destino. Este nada

tem a ver com fatalidade. Nenhum destino é fatal. Destino é facticidade, é angústia de se

ver atravessado por um silêncio que não se confunde com ausência de voz. Trata-se de

um silêncio que é todo espera e recolhimento, porque liberta e nos dispõe em plenitude.

A compreensão do caráter trágico da existência nos faz perceber que o trágico é

derrame, dor, penúria, furor; mas também celebração, alegria, fulgor. Devemos entender

por tragédia o viver que não cessa de morrer, mas que ao morrer não cessa de nascer.

Em presença do trágico somos assolados pela angústia, porque percebemos que a

realidade não tem causa: dispensa explicação. Estar lançado no viver-morrer é a nossa

condição. Essa é a tragicidade, ou seja, a existência dando-se em seu sentido poético-

ontológico.

Infortúnios e desgraças acontecem a qualquer um de nós. Estes não asseguram a

vigência poético-ontológica da existência. É o trágico, enquanto facticidade, que dispõe,

propõe e interpõe o ser humano em uma incessante procura de sentido. Tragédia não é o

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calamitoso, mas o que provoca compaixão e terror, aproximação e repulsa, amor e ódio,

angústia e serenidade, a um só tempo. Diante do trágico o que nos cabe é agir em

silêncio, com a sabedoria de que nada é definitivo, pois tudo está em continuo

movimento. Pactuar com o trágico da própria condição significa adentrar no horizonte

de uma vida originária, onde não há recusa diante do inesperado. Vive-se e morre-se a

cada instante. Em cada morte – nascimento; em cada nascimento – morte. O trágico é,

portanto, sempre envio e envio da estória como História, que é o nosso destino.

Vivemos à medida que correspondemos ao trágico. Por isso, devemos celebrar a vida.

1.3.2 Apolo e Dioniso: lúmen de sentido

Sempre que pensamos em tragédia, vem-nos à mente Apolo e Dioniso. Ao

contrário do que normalmente se diz, essas duas divindades não se opõem. Apolo e

Dioniso são irmãos. Não se anulam. Resguardam identidade e diferença. No entanto, a

classificação apolínea e dionisíaca prevalece. Nossa cultura tem inclinação para

dicotomias. Dos mitos ficaram apenas mitologias; dos ritos apenas encenações. Não se

pensam o que estes deuses são essencialmente. Daí a relutância em considerar Apolo e

Dioniso divindades que nos lançam no possível retorno ao originário, ao lugar no qual

desde sempre estamos. No entanto, não compreendemos assim. Sob a égide

classificatória, Apolo ficou conhecido como o deus do rigor, da razão; já Dioniso como

o deus do devaneio, da insensatez. Relatos sobre os deuses não nos fazem pensar o jogo

dialético entre mito e rito enquanto unidade de sentido, e sim nos lançam em mitologias.

Tudo passa a ser representação. Perdemos a dobra de rito e mito, a tensão dialética na

qual se dão possibilidades de e para possibilidades. Passamos ao duplo, a uma dialética

fechada onde o jogo de identidade e diferença é silenciado. Do mesmo modo que Apolo

e Dioniso irrompem juntos, mito e rito também. É o que nos faz observar Octavio Paz:

[...] mito e rito são realidades inseparáveis. Em todo mito se descobre a presença do rito, porque o relato não existe sem a tradução do cerimonial ritual em palavras: o mito conta ou descreve o rito. O rito atualiza o relato; através de danças e cerimônias o mito encarna e se repete: o herói volta mais uma vez entre os homens e vence os demônios, se cobre de louros, mostrando seu rosto radiante, o tempo que termina renasce e inicia um novo ciclo. O relato e sua representação são inseparáveis. Ambos se encontram já no ritmo, que é drama e dança, mito e rito, relato e cerimônia. A dupla realidade do

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mito e do rito se apoia no ritmo que a contém.15 (PAZ, 1956, p. 58, tradução nossa).

É curioso como Octávio Paz assinala a questão, mas a deixa escapar. Estou de

acordo de que mito e rito sejam inseparáveis. No entanto, mito não é relato nem causa.

E muito menos tradução.16 O mito não conta ou descreve o rito; tampouco o rito seja

atualização de um relato mítico, enquanto transposição de códigos linguísticos, ou

espetáculo performático. Para apreender (e não prender!) tanto o mito quanto o rito é

preciso silêncio – nada mais. É preciso deixar-se tocar pelo sentido inaugurado pelo

mito e sua consonância com o rito. Peripécias de deuses e heróis, batalha entre bem e

mal, sorte e azar dos homens estão aquém do mítico. A força do mito é justamente a

presença do que não se diz. Mito não é transliteração, e sim sentido. Por seu turno, o rito

ultrapassa a encenação, isto é, a performance entendida enquanto pura representação.

Anunciação e desvelo, mito e rito se copertencem. Há um jogo dialético, um

diálogo entre o dito e o não dito de todo mito/rito. Neste jogo, a verdade irrompe não

como adequação entre verdadeiro ou falso, mas como dialétheia da própria realidade.

Por isso, mito e rito não são conceitos, e sim possibilidades de adentrar naquilo que se

permite dizer retraindo, mas que no próprio movimento de retração se diz. Na dialétheia

de mito e rito – questões.

A dialétheia é a unidade primordial não apenas de mito e rito, mas da própria

realidade. Em todo o universo há dialétheia. Na canção do vento ou da chuva, no ardor

das palavras do poeta, na precisão do cientista e no olhar curioso do filósofo –

dialétheia. No desabrochar da flor, nas mãos que aram a terra, na criança de colo, no

abraço dos amantes... A dialétheia está presente em todo lugar. Força que envolve e

seduz, dialétheia não quer dizer repetição de movimentos em intervalos homogêneos. É

mais! Pulsão sonoro-plástica que ultrapassa a lógica da medida, dialétheia significa

gesto de realidade a acenar sentido. Tempo e espaço confluídos na dinâmica de suas

15 “[...] rito y mito son realidades inseparables. En todo cuento mítico se descubre la presencia

del rito, porque el relato no es sino la traducción em palavras de la ceremonia ritual: el mito cuenta o describe el rito. Y el rito actualiza el relato; por médio de danzas y cerimonias el mito encarna y se repite: el héroe vuelve uma vez más entre los hombres y vence a los demônios, se cubre de verdor la tierra y aparece el rosto radiante de la desenterrada, el tiempo que acaba renace e inicia u nuevo ciclo. El relato y su representación son inseparables. Ambos se encuentran ya em el ritmo, que es drama y danza, mito y rito, relato y cerimônia. La doble realidad del mito y del rito se apoya en el ritmo, que los contiene.”

16 Neste trecho, Octávio Paz pensa a tradução como transcrição. O que é um equívoco. Traduzir não é o mesmo que transcrever. O exercício de tradução seja um texto poético ou teórico exige disciplina e, principalemnte escuta da palavra. Horizonte de possibilidades, a palavra nos conduz aos caminhos do interpretar.

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próprias possibilidades, a dialétheia nos lança em uma espera. Os dois últimos versos

do terceiro poema do “Ciclo Insônia”, de Marina Tsvetáeiva (1983, p. 39, tradução

nossa) nos fazem pensar o quanto nos esquecmos da dialétheia como doação de sentido:

Amigos, libertem-se dos laços do dia Lembrem-se de que nós – sonhamos.

Estamos tão presos aos laços do dia, ao nosso cotidiano que sequer prestamos

atenção às possibilidades doadas pela realidade. Concentramo-nos não na espera, ou

seja, no recolhimento do que nos é próprio, mas nos alaridos, nas arritimias. Ou, se

preferirem, normalmente damos mais atenção àquilo que nos desvigora. Permanecemos

presos aos laços do dia, à agitação. E aí já não há mais concentração. Toda concentração

é silenciosa. Atados aos nós da agitação do cotidiano, esquecemo-nos de lembrar que

sonhamos. Ora, não podemos renunciar aos sonhos. O sonho não é evasão ou fuga da

realidade. Pelo contrário, o sonho co-participa com as possibilidades de a realidade ser;

é o que, por vezes, nos angustia perpassando nossa quietude. Angústia não é busca de

sentido? Toda busca de sentido é gerada pela dinâmica da realidade sendo. Todavia, a

experiência com o sonho é velada pelo poeta. O que nos cabe aqui é a espera, a

serenidade de nos aproximarmos do jogo entre poesia e pensamento. É, portanto, na

dialética entreaberta pela realidade sendo que devemos pensar o sonho sob os véus, sem

retirá-los. Devemos nos permitir seguir com o movimento da obra. Esperar e sonhar não

significam deixar de procurar, mas concentrar-se. Esperar é guardar o que se aguarda. É

voltar-se ao velamento que abriga o inesperado no já esperado – o sonho.

Quem não está disposto a esperar, deixa o vigor de sentido escapar. Não alcança o

inesperado que está diante de seus olhos. Saber esperar é saber ser. Não basta ao ser

humano o desejo de ser. É necessário saber ser com aquilo que lhe é próprio. Devemos

pensar a referência de ser e ser humano. Essa referência nos acompanha a todo instante.

Por isso, é fundmental que saibamos ser com a dialétheia da realidade dando-se em nós.

Confusos, pela agitação do cotidiano, somos levados a não esperar. Queremos tudo de

imediato. Queremos tudo para ontem, como diz o senso comum. Exigimos que a

realidade se enquadre com a nossa vontade. Que ilusão! Podemos controlar fazeres, mas

não podemos medir o agir, a dinâmica da realidade sendo. Por não sabermos esperar,

por termos pressa, atropelamos tudo. Atropelamos, sobretudo, as obras de arte. É

preciso voltar-se para a obra com vigília, deixando que o seu sentido opere em nós. Se

quisermos pensar poeticamente uma obra de arte temos de nos permitir ser acolhidos

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pela própria obra. Somente em espera, isto é, colocando-se em dialágo com o silêncio

da obra começamos a compreender o seu dizer. É aos poucos que o sentido da obra

acontece em nós.

Sintonizados com a obra penetramos no seu mistério, na sua fala não enquanto

relatos, mas enquanto dizer essencial. Mas é preciso saber esperar! É aos poucos que o

sentido nos envolve, chamando-nos à proximidade daquilo que na obra opera.

Diante da espera, ou melhor, em presença desse jogo dialético-rítmico, Apolo e

Dioniso se apresentam como um e o mesmo. Eles dão-se, isto é, estão em permanente

tensão. Cada qual é um e o outro. Não há acordo entre Apolo e Dioniso, mas

ressonância de acordes. Ambos pactuam identidade na diferença. O que há entre Apolo

e Dioniso é essencialmente dialétheia. O jogo rítimico entre essas duas divindades dá-se

a partir de uma dinâmica contínua. Todavia, nunca se alternam. Estão além do duplo. O

que há é uma dobra rítmica, um movimento dialético aberto no qual Apolo e Dioniso se

apresentam (e também se ausentam). De um lado Apolo, o dia, a luz, o masculino, o

rigor, o caçador, o deus que cura. De outro, Dioniso, a noite, o encontro, o feminino, o

vigor, o deus que vem e alivia. Por que a insistência em opô-los? Do mesmo modo que

noite e dia são irmãos, Apolo e Dioniso também o são. Excesso e comedimento, rigor e

vigor, tempo e espaço primordiais, assim é a vida em seu fluxo de sentido. Dioniso e

Apolo são promotores de uma vida simples e exemplar. Tudo isso é obscuro até mesmo

para os gregos, mas é preciso ter a coragem do primeiro passo para que a caminhada se

desvele. O que nos move é a dialétheia. Sem esta não haveria a dobra na qual estamos

desde sempre lançados. Falar em dialétheia nos faz lembrar não só Apolo e Dioniso,

mas também o Tao chinês. E ainda Oslad [Ослад] e Perum [Перум], nos mitos eslavos.

Desde o desabrochar da flor, do pão presente em nossa mesa, da música das cores

guardada no silêncio do arco-íris, da noite cobrindo-se de manhã... Toda vida necessita

de luminosidade, mas também de escuridão. É esta a dobra de Apolo e Dioniso, nossa

revelação poética. Possibilidades de sentido, de saber que o Cósmos nasce do Kháos...

E que o jogo, a dialétheia, é nossa condição de travessia e vigília rumo a concretização

de nossas possibilidades.

Apolo e Dioniso são deuses libertadores. Ambos libertam porque o ser humano,

na vigência e regência destes deuses, pode conhecer seus próprios limites,

ultrapassando-os. Apolo e Dioniso são tutores de uma liberdade essencial. Todavia, o

que é liberdade? A Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura: “todo

homem, independente de raça ou classe social, é livre”. Com isso, julgamos a liberdade

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nosso grande privilégio, nossa maior conquista. Liberdade, liberdade... O que fazer,

porém, quando esta nos falta? Será que somos realmente livres a ponto de assumir o que

somos? Não sabemos. O que sabemos é que viver só vale a pena quando somos livres.

Talvez nossa concepção de liberdade esteja equivocada. A liberdade não é decorrente da

nossa vontade.

Sempre que pensamos em liberdade, normalmente, acreditamos que ser livre

significa “fazer o que der na telha”, “não ter limites”, “agir de acordo com a nossa

vontade”. Será a liberdade realmente fruto da vontade? Liberdade é uma palavra que

provém do latim liber. Do radical líb- surgiram também libatio [libação, oferenda,

sacrifício], Líber [deus do vinho], liberatio [salvação], libertinus [liberto], libido

[libido], libamentum [primícias, oferenda feita aos deuses, libação, prova], dentre

outras. Por seu turno, o radical lib- veio do verbo grego léibo e quer dizer “chorar, ter os

olhos marejados, derramar gota a gota, especialmente o vinho para a libação aos

deuses”. Liberdade, portanto, é abertura, atravessamento, rasgo de sentido.

Tocado por uma emoção intensa, isto é, pela paixão de ser, o ser humano

entusiasma-se, daí estar diante da possibilidade de sair de si. Sair de si não é o mesmo

que tentar ser um outro que não lhe convém; não é se vestir de máscaras. O que está por

trás das máscaras não é o vazio, o silêncio? Sair de si é conhecer a si mesmo na medida

em que se experiencia o que se tem de próprio. Somente sendo o que se é, aceitando a

finitude do que somos, realizamos o que nos é próprio.

Apolo e Dioniso indicam a liberdade do próprio, do ēthos. Se Apolo é

considerado o deus que dá a cura, Dioniso também o é. Cada um ao seu modo, claro. A

Pítia, sacerdotisa de Apolo, passava por um ritual de purificação antes de proferir as

sentenças do Oráculo de Delfos. Os consulentes e os sacerdotes do deus também

passavam por um rito de iniciação. Era preciso purificar-se para ter o destino vaticinado.

Durante o rito de purificação a Pítia (ou Pitonisa) banhava-se na fonte Castália17 e, em

seguida, dirigia-se ao Templo de Apolo, na companhia dos sacerdotes e dos

consulentes.

Realizadas as fumigações de praxe com folha de loureiro, árvore sagrada de Apolo, e com farinha de cevada “no fogo eterno do deus Pito”, a profetisa descia para o ádyton, “o inacessível, o sacrossanto”, isto é, uma pequena sala localizada sob a cela do tempo, enquanto os sacerdotes, os mantéis, os profetas ficavam numa saleta ao lado, de

17 O radical de Castália é cast-, que significa castidade, pureza. Há toda uma referência entre a

pureza das sacerdotisas e o santuário – sagrado.

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onde formulavam em altas vozes as perguntas. A Pítia, após beber água da fonte Cassótis, que, diziam, corria no ádyton, sentava-se na trípode e tocava no omplhalós, no “umbigo”, centro da terra, ali representado por uma pedra. Em seguida, mastigando folhas de loureiro, respirava as exalações (pneúmata), que proviriam duma fenda aberta no solo, o que, diga-se logo, jamais foi detectado em Delfos; entrava em êxtase e entusiasmo, “possuída” de Apolo e balbuciava palavras entrecortadas, que eram recolhidas pelos sacerdotes. (BRANDÃO, 1991, p. 287, grifo do autor).

Em êxtase e entusiasmo, Apolo revela a verdade mais dolorosa: “Homem,

conhece-te a ti mesmo”. Isso nos aponta o rigor no qual Apolo nos lança. É preciso

saber o que somos para que sejamos livres. O que significa conhecer a si mesmo? Não

se trata, evidentemente, de atribuir adjetivos sobre si como, por exemplo, “eu sou bom”,

“eu sou inteligente”, “eu sou esperto”, “eu sou o máximo”, “eu posso tudo”. A

subjetividade do “eu” cai no esquecimento do vigorar do ser. O “eu” não é capaz de

deixar-ser o que realmente somos: tenta determinar o que somos a partir de uma

liberdade presa à vontade. O oráculo propõe que nos conheçamos em sentido essencial.

Para tanto, é preciso – ser. “Conhece-te a ti mesmo” não significa consumir-se no “eu”,

mas consumar-se no ser, naquilo que nos é próprio. Pode parecer um exagero, mas é

impossível conhecer a si mesmo sem se dimensionar pelas possibilidades do ser.

O ser funda, inaugura, projeta o ser humano. Por sermos movidos e estarmos

abertos ao sentido, aos cursos e transcursos do ser, é que nossa existência torna-se

plena, passível de comemoração e questionamento. Conhecer a si mesmo é ver no que

se dá a ver o não visto de todo ver. Entretanto, é preciso enxergar com medida. E não

exagerar. O que fazer, porém, “num mundo onde o mais preto – é cinza/ onde a criação

é posta de lado!/ [o que fazer] Neste imponderável mundo de medidas!?”

(TSVETÁEIEVA, 1983, p. 161, tradução nossa, acréscimo nosso). Como não exagerar?

Como abrir-se a força iluminadora tanto da manifestação quanto da apropriação da

verdade se a criação é esquecida? Temos de nos adequar a um mundo de pesos, isto é,

de medidas? A medida não é dada por valores a priori, mas pelas possibilidades de ser,

e não pela pretensão humana de tudo poder. Conhecer a si mesmo significa, portanto,

estar aberto à travessia, ao consumar-se (e não consumir-se!) no jogo poético-ontológico

da própria existência.

Tudo isso nos profere a sentença de Delfos. Por outro lado, as Mênades (ou

Bacantes), companheiras inseparáveis de Dioniso, não passam por nenhum processo de

purificação. Elas não vaticinam oráculos. No entanto, estão em constantemente transe.

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O transe das Mênades não se assemelha ao das Pítias. Possuídas pelo fulgor da vida em

sua efervescência, as Mênades nos fazem experienciar as peripécias do viver. O vinho18

que é oferecido nos rituais dionisíacos não representa ou simboliza o deus: é a própria

presença do deus. Vale ressaltar que o nome Mênade provém do verbo grego maínomai

cujo significado é estar enfurecido, fora de si; já a sua raiz men significa pensar, ter

coragem. Para uma Mênade é preciso viver a vida tal qual ela se apresenta, sem medo,

entregando-se ao próprio instante que se apresenta. Isso é ser livre! A liberdade que as

Mênades conclamam não é fruto da vontade. É, antes, um cumprimento do que o ser

humano é. Não é fácil conhecer a si mesmo. É preciso ter coragem. Somente com ardor

no coração, entusiasmados e inflamados pela flama do próprio destino, que somos

animados, que somos convidados a prosseguir nos deixando atrair sem trair o nosso

quinhão. É assim que Apolo e Dioniso se anunciam como um e o mesmo.

As Pítias e as Mênades saem de si para que nelas Apolo e Dioniso se manifestem,

respectivamente. Em regência de Apolo e Dioniso descortina-se uma vida

essencialmente criativa, porque o principal não é ter e sim ser. Entretanto, o êxtase e o

entusiasmo têm origem em Dioniso. Atribuí-los a Apolo é uma questão que vem sendo

bastante discutida. Como explicar a presença de Dioniso em Delfos? Talvez, o caminho

esteja no Dioniso Zagreus, filho de Zeus e Perséfone, que, em virtude dos ciúmes da

esposa-irmã de Zeus, Hera, teve seu destino “mudado”. Enciumada e cansada de mais

uma das traições de Zeus, ao saber do nascimento de Dioniso, Hera pede a um caçador

que dê cabo do menino. Compadecido com a criança, o caçador não cumpre o que lhe

foi ordenado e entrega o pequeno Dioniso aos cuidados de Apolo.

O delírio das Pítias não é o mesmo das Mênades. Disso todos nós sabemos. O que

não sabemos é que cada rito e mito se dão de maneira única, provocando um êxtase

também único e que não se repete em hipótese alguma. Entretanto, uma nova questão se

interpõe aqui: êxtase, o que é? Êxtase provém do grego ekstásis cujo sentido imediato é

ser lançado para, projetado além de uma posição. O prefixo ek- indica movimento de

sair, de ser lançado, arremessado; e o radical -st- quer dizer posição. Êxtase é, portanto,

abertura, projeção e instauração de múltiplas possibilidades de manifestação; é o que

nos tira do ordinário e nos lança na paixão do extraordinário. Entusiasmado e extasiado

de vida o ser humano conhece a si mesmo – bacanteia. Torna-se paixão de ser.

18 O vinho é uma das epifanias de Dioniso.

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No que nos conhecemos alcançamos o que há de inteiro em nós mesmos. Não se

trata de um conhecer subjetivo ou objetivo. Trata-se de uma conhecer essencial no qual

nenhuma palavra pode traduzi-lo; trata-se de um conhecer no qual se cultiva a sabedoria

de ser com a própria realidade. O que Apolo e Dioniso têm a ver com isso?, talvez

pergunte o leitor em sua distração. Em uma única palavra: tudo! Apolo e Dioniso

convidam o ser humano a viver por conta e risco próprios. Ou, mais precisamente, tanto

Apolo quanto Dioniso fazem com que o ser humano conheça a si mesmo, perscrutando

o que lhe é próprio. O que é próprio de cada ser humano é saber-se finito no infinito das

suas possibilidades de realização. Em consonância e ressonância com o que lhe é

próprio, o ser humano ultrapassa o plano dos entes e permite o ser advir à presença,

entregando-se ao mistério da realidade que se apresenta. O que somos é o cumprimento

do nosso próprio. No entanto, é preciso corresponder ao destino. Destino? Cada um

sabe de si, já os deuses – de todos. Isso é assustador? Nem um pouco. Só os que têm

medo de se lançar no atravessamento do próprio (Destino) é que receiam. Temem

enxergar o infinito guardado embaixo dos seus pés. Receiam, com isso, a dar primeiro

passo.

Poucos são os que compreendem e apreendem a sentença de Delfos “conhece-te a

ti mesmo”; poucos percebem que o êxtase dionisíaco significa abertura à nossa condição

poético-ontológica. Apenas poucos, muitos poucos, compreendem a dilétheia de ser e

estar no vigorar da vida. Marina Tsvetáieva está dentre estes poucos que souberam viver

poeticamente.

1.3.3 Aprendizagem pela dor

Por sua conta e risco, Marina Tsvetáieva acolhe o destino que a escolhe,

encontrando plenitude. Pensar a sua persona significa estar diante de alguém que

encontrou na dissidência vigor de realização. Por outro lado, pensar a essência da sua

poesia significa voltar-se para possibilidades de interpretações – versões. Os que

conhecem a sua vivência, talvez, discordem, dizendo: “Não! O seu destino se inscreve

como um dos mais trágicos”. Estou de acordo. A sua vida, enquanto vivente, fora

marcada por muitos altos e baixos, mas não devemos confundir desgraça com procura

de sentido. O fato de ter passado por duas guerras mundiais e duas revoluções, seu

“primeiro encontro com a revolução, entre 1902 e 1903 (os emigrados); segundo, entre

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1905 e 1906 (Ialta, os SR). Não houve um terceiro encontro.” (TSVETÁIEVA, 2008, p.

82) são decisivos. E, sobretudo, o fato de ter sido constantemente separada da

companhia dos que tanto amou a lança em uma travessia pelo trágico. Esse caráter

trágico do viver não tem nada a ver com os contratempos que vez e outra nos assolam,

deixando a sensação de que “as coisas” foram tiradas do seu lugar. Trágico é abertura de

sentido, deixando-se atravessar pela angústia de conhecer a si mesmo, tornado-se livre.

Ciente de que a vida é uma aprendizagem contínua, Marina Tsvetáieva não se

prende a episódios circunstânciais. Ela não reagiu contra o despotismo que tomava

conta da Rússia Soviética, fazendo-se vítima, subimissa. Sim, ela sofreu com as

consequências das guerras e revoluções. Todavia, soube transmutar sua dor. Cada

dificuldade é, para ela, um chamado, um convite para voltar-se à poesia. Ao invés de

lamentar, choramingar, desvanecer, temos a impressão de que ela diz a si mesma:

– Saia! – ao primeiro chamado: sê! Atenda à súplica do peito (TSVETÁIEVA, 1983, p. 168-169, tradução nossa).

Interessada em viver de modo autêntico e essencial, faz da dor um caminho para

se libertar dos algozes do dia a dia. Ela escuta a súplica do seu peito, fazendo da dor

indicativo de plenitude. Vida e obra são, para ela, uma única realização. O seu desafio é

fazer da vida arte. Como consegue? Participando do acontecer da vida, e não se

colocando como mera expectadora dos acontecimentos. Aprender com a dor é aprender

com as possibilidades que se apresentam. Por isso, ela entrega-se às suas obras: “Só

vivo plenamente em meus poemas – não com as pessoas, e menos ainda (por mais

estranho que possa parecer) com as que amo – estar e viver.” (TSVETÁIEVA, 2008, p.

623). Dor é latência de sentido. E nunca redução a uma ferida que, apesar de

cicatrizada, lateja. Dor é, neste caminho de reflexão, um chamado, um aceno com o qual

Marina Tsvetáieva, e todos nós, não podemos recusar. Por quê? Dor é anúncio de vida.

Poucos se permitem esbanjar na dinâmica da vida pactuando com a própria vida.

Marina Tsvetáeiva adentra em uma caminhada cujo começo-fim não pode ser medido. É

assim que ela vive plenamente nos seus poemas, alcançando sentido. O pleno não é o

sorriso do gozo que se tem quando se atinge um objetivo, mas a serenidade da espera

que conquistamos e nos conquista diariamente. Consumar sem consumir-se: eis o nosso

quinhão. Devemos atender à síplica do peito e, com Marina Tsvetáeiva (1983, p. 218,

tadução nossa), poder dizer:

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Abri a veia: incessante, Irreprimível jorra a vida. Coloquem vasos e vasilhas! Cada vasilhas será – rasa

Cada vaso – parco. Pelas bordas – entre – No seio da terra escura, o alimento verte. Irrevogável, incessante, Irreprimível jorra o verso.

O poema nos faz pensar a coragem de abrir a veia, permitindo-se esbanjar com a

vida no seu vigorar de possibilidades. Incessante, irreprimível, em sua dinâmica de

sentido, a vida jorra. O que cabe ao ser humano é se permitir ser na vigência da própria

vida, fazendo do viver – criação. As possibilidades da vida, enquanto plenitude, são

tantas que nenhum vaso ou vasilha podem contê-las. A vida não é de se medir. Por quê?

Não basta viver. É necessário saber-se vivo. Podemos colocar, por exemplo, três

vasilhas lado a lado. Uma pequena, uma média e outra grande. E enchê-las até que

transbordem. Qual será a mais plena? Se estivermos presos à quantidade, diremos que a

maior. Se estivermos atentos à qualidade poético-ontológica, ao encontro daquilo que

nos é próprio, diremos que cada uma alcança sentido a partir das suas possibilidades.

Nenhum recipiente dá conta do viver na sua plenitude. A vida é mais que qualquer

medida. A sua medida, ou seja, o seu limite é o não limite. É o que nos convida ao

pensar o terceiro verso da segunda estrofe do poema:

No seio da terra escura, o doce alimento verte.

Na terra escura, o originário de tudo que é e não é – a vida –, na sua parição e

aparição poético-ontológica, transborda em possibilidades ao mesmo tempo em que

hospeda a nós memos. O seio da terra escura não é o oculto, mas a própria terra dando-

se como morada, como possibilidades de e para possibilidades. Só podemos falar do

oculto porque este já nos é conhecido. Latência, pulsão, força criativa, terra é gênese de

sentido que confere ser às coisas. É derrame de possibilidades, de caminhos. Todo

caminho traz consigo possibilidades de criação. Essa exeperiência aparece nos dois

últimos versos do poema:

Irrevogável, incessante, Irreprimível jorra o verso.

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O verso jorra irrevogável, incessante, irreprimível, da mesma forma que a vida.

Vida e criação poética não se separam. Entretanto, não se deve articular o verso que

jorra como sendo o “tijolo”, mas possibilidades da obra. O todo e a parte não estão

separados: dão-se em tensão. Por isso, o verso é já a própria obra dando-se na sua

vigência de sentido. Há aqui uma aproximação entre vida e obra. Essa aproximação é

dada pela linguagem. É a linguagem, oferecida pelas possibilidades da terra, que torna o

viver criação. Criar não significa inventar, mas ser tocado pelo o que se dá a ver antes

mesmo de se ter visto. Criar é manter-se em escuta, recolhendo-se em silêncio. É assim

que a obra nasce. A compreensão da referência entre vida, enquanto possibilidade de

sentido, e criação depende de como nos relacionamos com a linguagem. E, sobretudo,

de como o pensamento em nós se doa. Para tanto, devemos aprender a esperar. Tudo o

que é bom vem aos poucos. Exige paciência, confiabilidade. Toda nossa ânsia é desejo.

Desejo de quê? De vida, de poesia, de afetar e afetar-se pela paixão, pelos fluxos e

influxos de uma existência libertadora na qual podemos alcançar plenitude. Toda nossa

ânsia é desejo de ser. Um viver autêntico não tem ideologias, e sim sede de vida. De que

vida? Da vida que é dor, angústia e criação; da vida que é vida para ser e não pode

deixar de ser. É da vida, e somente dela, que se toma e tem fôlego. Vida é o que

acontece de repente. Para ser com a vida é preciso estar apaixonado, ou seja, devemos

nos entregar ao que nos toca essencialmente. Paixão é delírio, euforia, agitação,

vertigem, mas também sensatez, repouso, silêncio e recolhimento. Paradoxo que nos

arremessa em um jogo de loucura e razão, paixão é cuidado com as possibilidades que

recebemos para ser.

Apesar de toda força e resistência, de toda paixão de ser com a vida, aos cinquenta

e um anos de idade, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, com a invasão alemã de

1941 no território russo, cansada de tanto lutar, Marina Tsvetáieva não resiste e comete

o suicídio, na cidade de Élabuga, República Tártara, deixando órfão o filho George

(Mur). Sem recursos financeiros, sem materiais para trabalhar em seus livros, sem saber

do paradeiro do seu marido e da filha Ália, que agora eram agentes secretos do governo

soviético, Marina escreve três cartas e, em seguida, enforca-se. Fora fraca? É isto que

significa viver poeticamente? “Cometer o suicídio é, em certo sentido e como em um

melodrama, confessar. É confessar que a vida nos supera ou que não a entendemos [...]

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Viver, naturalmente, nunca é fácil.”19 (CAMUS, 2009, p.16, tradução nossa). Todavia,

não discutirei aqui atitudes que dizem respeito à vivência de Marina. O motivo que me

move é outro. É a musicalidade da sua obra – vislumbre de sentido.

Todas estas reflexões nos fazem perceber que o ser humano tem de ser o que é

para que a sua vida não feneça. A vida é dialétheia de sentido e o ser humano também o

é. Há dialétheia em todo lugar. No entanto, só compreendemos isso quando

suspendemos nossos conceitos, nossas certezas paradigmáticas e aceitamos que a vida é

desde sempre possibilidade de e para possibilidade. No jogo dialético-dialogal da

existência podemos alcançar o que nos é próprio, escapando assim do impróprio.

Próprio não é adjetivo, mas o que nos lança no encontro com o que somos. É justamente

por viger em seu próprio que Marina Tsvetáieva imprime, no livre aberto de suas

possibilidades, a sua força plástica. Ela nos faz perceber que devemos viver em

plenitude: “como o raio te resplande! Sê inteiro na poeira dourada.” (TSVETÁEIVA,

1983, p. 6-7, tradução nossa). A dinâmica do viver não nos pede licença. É, antes, ela

que nos projeta. Vida é salto, assalto. Devemos-lhe gratidão, por isso.

19 “Matar-se es, em cierto sentido y como em el melodrama, confessar. Es confessar que la vida nos supera o que no la entendemos [...] Es solamente confessar que ‘no vale a pena’. Vivir, naturalmente, jamás es fácil”.

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CAPÍTULO 2

A musicalidade do poema

Talvez eu precisasse de compêndios, de tratados e manuais de teoria musical para

demostrar o que entendo pela musicalidade de uma obra. Curiosamente, não

demonstrarei nada. O que farei é apenas um convite. Com muita ousadia, e com toda

certeza de que nada sairá conforme planejei, limito-me a dizer apenas o que considero

necessário. Não tenho habilidades com ornamentos. O que proponho é uma escuta e um

diálogo com a musicalidade dos poemas de Marina Tsvetáieva disponíveis no final

deste capítulo. Dito com outras palavras, é pela coletânea de poemas por mim

traduzidos e selecionados que será possível, pelo menos aqui nesta disssertação, o

conhecimento da musicalidade na sua obra. Muitos preferem a análise, no entanto. O

que é lamentável. A leitura e a escuta não é a mesma para todos. Sabendo que cada

poema dá-se como uma incesssante pulsão de possibilidades, irei deter-me no encontro

entre literatura e música a fim de que a poesia ressoe como um possível caminho para

habitarmos e pensarmos poeticamente, colocando-nos em diálogo.

Pensar o diálogo entre literatura e música é sempre um desafio. Todavia, o que

seria do pensamento se não fossem as provocações? Seria um conceito estéril, talvez. O

que prende nossa atenção diante de uma obra de arte é o seu ritmo, ou melhor, a sua

projeção contínua de imagens sonoro-plásticas. Isso nos faz observar que o ritmo não se

limita à repetição de uma série harmônica em intervalos iguais e/ou expressão de

nuances ou tons. O ritmo não é um elemento exclusivo da música. Pelo contrário, está

presente nas obras de arte em geral e, sobretudo na própria realidade. Não devemos,

porém, nos esquecer de que a obra de arte se dá como um todo. O ritmo é apenas uma

parte e não o todo. Mas o todo não vigora sem a parte. Daí minha consideração de que o

sentido de uma obra de arte é dado por ela mesma. Toda obra traz consigo a

possibilidade da unidade. A unidade não exclui a diferença – acolhe-a. Este acolhimento

dá-se pela linguagem, enquanto mistério e jogo de dinâmica e sentido da própria obra.

Quando nos colocamos diante de uma obra literária o que realmente prende a

nossa atenção, o que nos afeta imediatamente, é a sua abertura de sentido oferecida pelo

entrelaço das palavras e das questões que se doam na obra formando um corpo de baile.

É neste corpo de baile que a poesia irrompe como uma sinfonia. Toda grande obra

chama à presença a poesia. O desafio do poeta é deixar-se tocar pela poesia, que surge

sem razão de ser, demorando-se na sua vigência poética: a musicalidade.

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2.1 Cadência para escuta

Música e literatura não são duas artes separadas, mas possibilidades distintas de o

poético acontecer. Ambas as artes são entrelaçadas por um mesmo instante ao qual

chamamos poesia. Esse instante originário, ou seja, essa força criadora que é a poesia

não se restringe a ser possibilidade exclusiva da literatura. A poesia nos faz perceber

também que o real vai além do realismo. Como podemos perceber isso? Entregues ao

jogo inaugurado pela poesia, olhamos para a realidade como se esta nos fosse

apresentada pela primeira vez. Potência plástica que não se deixa aprisionar em

conceitos estéticos, a poesia surge quando olhamos para a realidade sem a intenção de

dizê-la. Por não termos a intenção de falar sobre poesia, o poético irrompe com seus

tons e magia, com suas cores e alquimia, tocando-nos semelhante à brisa fresca e serena

que, meditativamente, corre no regato murmurante de silêncio. A poesia que se doa

tanto na literatura quanto na música (nas artes em geral!) “é revelação da condição

humana e consagração de uma experiência histórica concreta.” (PAZ, 1990, p. 74). Por

isso, o entendimento do poético nos lança em diversas possibilidades de interpretação.

Convém ressaltar que quando falo de o entendimento do poético, penso a poesia em sua

amplitude verbal, em seu incessante fluxo de sentido. E não em uma representação

estrutural do verso. O poético vai além de interpretações substantiva/predicativas.

A poesia revela nossa condição humana na medida em que nos faz pensar nossos

próprios limites, ou seja, o sentido que damos à nossa existência. Uma vez tocados pela

poesia, percebemos que a mesma não é específica da literatura. O poético está em todo

lugar: basta que saibamos escutar, abrindo-nos em diálogo, para que possamos ser por

ele acolhidos. O poético não se esconde: dá-se às claras. Todavia, nem tudo é poético.

Gostaria também de chamar atenção de que a literatura não está fora da realidade.

Ela é apenas uma dentre tantas outras possibilidades de a realidade acontecer. A música,

por sua vez, ultrapassa a sonoridade dos instrumentos musicais. O que une literatura e

música é a poesia, ou seja, é a linguagem dando-se como um possível caminho de

pensamento. Literatura e música fazem parte de um e o mesmo movimento; irrompem

juntas. Ao contrário do que pensa Artur Schopenhauer, não existe hierarquia entre estas

duas artes. A literatura, em hipótese alguma, subordina-se à música. Parece que

Schopenhauer se esquivoca ao dizer que

[...] a música é incoparavelmente mais poderosa do que a linguagem, possui uma eficácia infinitamente mais concentrada e instantânea do

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que as palavras, que, por conseguinte, tem de ser anexadas, tem de ser dissolvidas na música e ocupar por inteiro uma posição subordinada, seguindo-a. (SCHOPENHAUER, 2003, p. 237).

Por que atribuir à música um poder superior ao da linguagem? Certamente,

Schopenhauer pensa a linguagem como representação, ou seja, como instrumento de

comunicação. Ele não percebe que, antes de ser um conceito, a linguagem é o que não

cessa de se desdobrar e se retrair; não atenta para a ambiguidade da linguagem. Só

percebe esta ambiguidade quem se coloca em escuta. É pela escuta que seremos tocados

pela poesia. Schopenhauer parece não perceber que música é o próprio vigorar da

linguagem na sua abertura de sentido. Dizer que a música seja incomparavelmente

muito mais poderosa que a linguagem incide em pensar tanto a música quanto a

linguagem a partir de uma concepção causalista, estabelecendo sempre a relação sujeito

e objeto. Tudo, portanto, que for dito acerca destas duas possibilidades que, no fundo

são uma e a mesma, será a partir de uma hierarquia, de uma visão dicotômica e

reducionista. Linguagem não é meio de expressão; tampouco se subordina ou subordina.

O que é, então, a linguagem? Nosso entendimento dicotômico da realidade não nos

deixa perceber que a linguagem é um projetar de possibilidades em que música e

literatura se dão como unidade de sentido. A linguagem é ambígua, porque verbal.

É pela linguagem que música e literatura se tocam. Descrições analíticas ou

psicológicas, sociais ou biológicas deixam de existir. “O que caracteriza um texto

literário [seja prosa ou poema] é o fato de ele não surgir com a pretensão de documentar

um evento no mundo.” (HABERMAS, 2002, p.241, acréscimo nosso). Um texto

literário, quando dimensionado pela poíēsis, não fala sobre a realidade. O que

comparece e prevalece em um texto poético é a poesia, ou seja, o diálogo com a

realidade nas possibilidades de suas versões na unidade do sentido. A poesia é apenas

um, dentre tantos outros caminhos, de o poético acontecer; é a musicalidade da obra,

doando-se enquanto poesia.

Em Marina Tsvetáieva o encontro entre literatura e música é bastante presente.

Seus poemas apontam um caminho que integra a vida nela mesma. Vida é,

essencialmente, poesia. E a poesia não é outra coisa senão vida se pensando.

Evidentemente, só perceberemos isso quando nos colocarmos em escuta e diálogo com

sua obra. Será que compreendemos a importância de escutar não a nossa voz, mas a

própria obra?

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Geralmente impomos um caráter autobiográfico às questões que determinado

poeta-pensador privilegia. Julgamos que sua obra seja relatos da sua vivência pessoal.

Contextualizamos e comprovamos através de datas, episódios e relatos. O pior de tudo,

porém, é quando afirmamos: “Toda obra poética nasce envolta numa áurea placentária

ideológica, mas muito poucas livrando-se da placenta, mantém a aura” (PIGNATARI,

2005, p. 32). Os poemas de Marina Tsvetáieva são um prato cheio para se pensar assim!

No entanto, trata-se de uma pista falsa. Nenhuma obra, quando realmente poética, surge

a partir de valores a priori. Antes de classificações ideológicas há a própria obra. A

poética de uma obra é dada pelas possibilidades da própria obra. Por outro lado, no que

diz respeito à Marina Tsvetáieva, a essência da sua poesia é dada pela escuta-diálogo

com as questões da vida na sua abertura de sentido. A sua obra não nasce envolta em

uma aura placentária. O que há nas suas obras, especialmente nos seus versos, é

pensamento. O poeta pensa não porque comprova pelo rigor da razão, mas por estar

atento ao sentido. É o que nos faz refletir os dois versos abaixo (TSVETÁIEVA, 1983,

p. 3, tradução nossa):

Nós sabemos, sabemos demais Daquilo que eles desconhecem!

O saber do poeta não é o saber do já sabido, mas do saber que se faz

continuamente. Por isso, o poeta coloca-se em meditação escutando o que lhe chega de

modo essencial. Ele não faz um discurso sobre as coisas, mas permite que as próprias

coisas venham ao seu encontro na sua poeticidade. O poeta escuta não para falar, e sim

para dialogar. Pela ação da escuta e pelo vigor do diálogo, o poeta conhece o que lhe era

e não era, a um só tempo, desconhecido. Pelo diálogo e, principalmente, pela escuta,

poesia e pensamento apontam para a mesma experiência. E a persona tanto do poeta

quanto do pensador radicam, assim, em uma mesma questão: perscrutar sentido.

No dizer do poeta, que já não é e nem nunca fora seu, porque lhe foi doado, a

mousikḗ revela o poético e inaugura mundo. Mundo? Doação de possibilidades.

Verdade que não cabe apenas no que é dito. Projetar harmônico de ser humano e coisas,

mundo significa harmonia de sentido. Essa harmonia é compartilhada e seu abismo de

realizações não pode ser confundido com uma cilada, para o qual somos atraídos quanto

mais ele, o abismo, se retrai e mais nos atrai. Mundo é a própria musicalidade entoando

seus motivos melódicos, suas cores surdas, seus compassos nus, seus acordes

concordantes, corajosos, suas possibilidades de e para possibilidades. Sentido que não

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cessa de se interpor, mundo é justamente o que advém à presença e se permite, em canto

e encanto, se doar, dizer. Mundo, neste horizonte de pensamento, diz-se poesia.

Poesia é instante criador que nos lança na efervescência da vida, no lúmen do seu

inquietante sentido e fulgor. É mundo que nos retira do palor. Cada mundo inaugurado

se apresenta singularmente, lançando-nos em comunhão com a realidade que se nos

apresenta sempre desafiante e inaugural. O que cada mundo instaura é justamente o que

antes não havia, mas que desde sempre estivera vigendo. Mundo é umas das

possibilidades de sentido (abertura, caminho, provocação). Dizer que um mundo se

instaurou não significa atribuir nomes para cada coisa que está sendo e se apresenta.

Matrioska20 a desvelar novas possibilidades, coisa dentro da coisa resguardada no vazio,

mundo não é o ajuntamento de coisas. Invisível a saltar diante de nossos olhos, mundo é

acolhimento e recolhimento daquilo e naquilo que somos. Sonata que não se deixa

findar, mundo é o que é e está a nos encantar e cantar e tocar.

A leitura dos poemas de Marina Tsvetáieva nos projeta justamente na

experienciação poética dos limites ilimitados do mundo. A sua poética é densa, tensa e

intensa. Muitas vezes, seus versos nos fazem perceber o quanto o ser humano está

apartado de seu próprio. Em outras, que a simplicidade é o que precisa ser cultivado e

acolhido. No acontecer de um instante tudo se desfaz, porém, o que for construído de

modo essencial sempre se refaz, porque o instante existe. Basta estarmos sintonizados

com a musicalidade da própria realidade. Ritmo, tempo, espaço, memória, imagens

sonoro-plásticas, dança, música – poesia. Um perfume de madrugada insone acalanta a

maresia. E versos grávidos de poesia e canção dão voz ao silêncio. Cantam e encantam

no encantado do canto. Como surgem esses versos? Para quem são destinados? A

poesia surge sem pretensão de ser. Ela é instante que não carece de razão. É sem

20Há duas versões para a origem da Matrioska [матрешка], bonequinhasde madeira que se

abrem no meio e se encaixam uma dentro das outras, em uma escala decrescente de tamanho, podendo variar de 03 a 36 unidades. A primeira versão conta que a Matrioskasurgiu no final do século XIX. Após visitar o Japão, a nora de Anatoli Mamantov trouxe para o seu ateliê de brinquedos uma imagem do sábio budista Fukurama, com várias imagens umas dentro das outras. Vassíli Zviozdotchikin, que trabalhava como entalhador no seu ateliê, inspirou-se na imagem, entalhando formas semelhantes. Em seguida, o pintor Serguei Maliutin pintou as imagens dando-lhes a forma de meninas. A segunda versão é de que antes da confecção das matrioskas, já eram feitos, na Rússia, ovos de páscoa com peças que se acoplavam dentro das outras, e que o Japão se inspirou nestes ovos para fazer a imagem do sábio Fukurama. O que se sabe é que as matrioskas são o símbolo do folclore russo e podem ser encontradas na Praça Vermelha, em Moscou, com vários formatos, números e cores. É importante acrescentar que a raiz hindu-eslava da palavra matrioska é matr-, que deu origem ao latim mattter e significa matriona, ou seja, mãe. Matrioska é o diminutivo de Matriona e quer dizer mãezinha.

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motivo. Por isso, não tem começo ou fim. A vigência da poesia incide nela mesma.

Força secreta que não se deixa esconder, mistério dado às claras, a poesia nos convoca

ao compartilhamento de mundo no seu florescer. Poesia é sem causa. Instante que

chega de repente, a poesia redimensiona o ser humano com o poético.

Nem todos estão atentos ao acontecer da poesia. Tornou-se comum dar atenção

aos pseudopoetas e prestar honrarias apenas ao corriqueiro, ao consensual, à novidade.

Muitos críticos, aliás, julgam démodé voltar-se para o silêncio da obra a ponto de por

ele ser acolhido, ouvindo o que ele – o próprio silêncio – tem a nos dizer. Ao se negar o

silêncio de uma obra perde-se o que a obra tem de primordial: a poesia. Com isso, a

musicalidade do poema passa intocada, despercebida, negligenciada por uma concepção

de poesia que nada tem de relevante. Que pena... O poeta, quando em escuta das

possibilidades do poético, não se importa com a aceitação ou rejeição de uma crítica

prêt-à-porter, baseada nas tendências da próxima estação. O poeta é indiferente à

opinião da crítica, porque o que importa é o poético.

2.2 A musicalidade das versões

Antes de tudo, é preciso um esclarecimento: a musicalidade nos poemas de

Marina Tsvetáieva não tem nenhuma ligação com a musicologia. Pelo menos aqui,

nesta dissertação. Não estou falando da música no seu sentido técnico-funcional.

Quando digo “A musicalidade das versões” falo da musicalidade da linguagem que nos

envolve com seu canto encantatório. Todos nós sabemos que o suporte escrito anula, até

certo ponto, a dinâmica da oralidade. Anula porque cristaliza, fechando em paradigmas

o que é, a um só tempo, manifestação e retraimento. Por isso, não penso a musicalidade

a apartir de mecanismos técnico-teóricos. Eu não poderia, pois não sou musicista.

O fato de eu não ter formação em música não desautoriza meu diálogo com o

movimento dialético entre literatura e música. A poesia, na sua essência, chama-se

música. Por seu turno, a essência da música dá-se pela poesia. É o enlace entre música,

do grego mousikhḗ, e poesia, do grego poiētikḗ, que me faz pensar a musicalidade da

linguagem, doando-se na sua plenitude. Para tanto, devemos entender o que venha ser

música e poesia. Seria muito cômodo se eu apresentasse aqui um conceito para música e

outro conceito para poesia e, em seguida, desse uma síntese do que seria a musicalidade

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nos poemas de Marina Tsvetáeiva. Ah, isso seria fantástico! Só que nos afastaria da

nossa investigação. Permaneceríamos de fora da musicalidade. Teríamos um paradigma

e não o vigor da questão. Toda grande resposta devolve a provocação. Será que já nos

damos conta disso? Espero que sim.

A musicalidade não é um conceito genérico, não é um mero fazer, mas

essencialmente criação poética. Como esta criação se articula nos poemas de Marina

Tsvetáieva? O que nos leva a acreditar que tanto a prosa quanto o poema se sustentam

pelo seu ritmo e encantamento? Qual o limite da musicalidade? Não devemos ser

ingênuos e pensar que haja apenas uma única maneira de “captar” a musicalidade. É

preciso estar atento às possibilidades de interpretação que a própria obra sugere: as suas

versões. Para tanto, devemos obedecer ao dizer da obra e não impor a nossa vontade,

escutando o silêncio. É bem verdade que “podemos medir falas, mas como medir no

canto o encanto, o seu poder revelador, enquanto voz do silêncio?” (CASTRO, 2011, p.

148). Difícil ouvir a voz do silêncio, porque do silêncio queremos distância. Não

suportamos estar em presença daquilo que não se permite conceituar. Vale ressaltar que

o silêncio não estabelece, nesta dissertação, relação com aspectos estéticos e técnicos da

produção de determinado som. Por quê? O silêncio já traz consigo aquilo que vigora

como possíveis caminhos de musicalidade. Não tem a ânsia de tudo poder dizer ou

calar.

A proposta de se pensar os poemas de Marina Tsvetáieva e a sua musicalidade

não havia sido realizada aqui no Brasil. Essa ideia surgiu-me pela intraduzibilidade

traduzível dos seus poemas, embora a musicalidade esteja em toda e qualquer obra

poética e de pensamento. Sem prolegômenos, gostaria de chamar a atenção para a

distinção entre poema e poesia. É fundamental compreendermos que a forma poema não

assegura a presença da poesia. Muito pelo contrário! A poesia não começa ou termina

no poema. Para compreender o que vem a ser poesia devemos realizar uma experiência

com a linguagem. Não falo da linguagem enquanto expressão. Falo da experiência com

o jogo dialético da linguagem, da tensão entre fala e silêncio, na sua irrupção de sentido.

Por isso, o poema não é a certidão de nascimento da poesia. Não podemos nos esquecer

de que:

Ao perguntar ao poema pelo ser da poesia, não confundimos arbitrariamente poesia e poema? Já Aristóteles disse que “nada há de comum, exceto a métrica, entre Homero e Empédocles; e por isso com justiça se chama poeta ao primeiro e fisiólogo ao segundo”. E assim é: nem todo poema – ou para ser exato: nem toda obra construída sob as

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leis do metro – contém poesia. Mas essas obras métricas são verdadeiros poemas ou artefatos artísticos, didáticos, ou retóricos? Um soneto não é um poema, e sim uma forma literária, exceto quando este mecanismo retórico – estrofes, metros e rimas são tocados pela poesia. Por outra parte, há poesia sem poemas: paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos: são poesia sem ser poemas.21 (PAZ, 1956, p. 14, tradução nossa).

Um poema é para se lido em voz alta. A língua falada é dinâmica. Não tem o rigor

do registro escrito. Quando lemos em voz alta somos imediatamente tomados pelo seu

ritmo, pela sua força melódica, pelos seus tons harmônicos e, imediatamente,

começamos a cantá-lo. Neste canto que se doa em nós a poesia se faz presente com

todas as suas possibilidades interpretativas. O mais curioso, porém, é que quando nos

damos conta da sua pulsão criativa, a nos seduzir e envolver, já estamos de há muito

lançados em um tempo que não segue o cronológico. A poesia toca-nos. O conceito do

que venha a ser poesia não cabe em uma definição exaltativa ou em um paradigma

manipulador. Manejos técnicos são indispensáveis para a composição artística, mas não

são imprescindíveis à poesia. Todo poema, e também toda prosa, cuja regência é a

musicalidade, inaugura um tempo-espaço – mundo – que poetiza a realidade. Daí dizer

que a musicalidade é a própria poesia dando-se. E todos nós, quando nos colocamos em

escuta, imergimos nas suas possibilidades. O poema dialoga a partir da poesia que nele

se dá. O que nos cabe, insisto, é colocarmo-nos em posição de escuta.

Considero importante discorrer um pouco sobre a musicalidade das palavras. Isso

nos ajudará a não cometer equívocos. A musicalidade das palavras não está na notação

de signos musicais (partitura), mas na própria palavra. Um arranjo de notas pode ter

uma execução fria, sem encantamento. Por quê? Som não é musicalidade. Uma séria

harmônica não assegura melodia. É preciso pacto e impacto – afeto, sentido. Por outro

lado, o registro escrito de um poema que tenha ritmo verbal, imagens sonoro-plásticas,

movimento, dentre outros aspectos que uma obra trás consigo, pode nos lançar na

companhia da mousikhḗ. A palavra, em se doando, se entregando, sendo, é sempre

21“Al perguntarle al poema por el ser de la poesía, ¿ no confundimos arbitrariamente poesía y

poema? Ya Aristóteles decía que “nada hay de común, excepto la métrica, entre Homero y Empédocles; y por esto com justicia se lhama poeta al primero y fisiólogo al segundo”. Y así es: no todo poema – o para ser exactos: no toda obra construida bajo las leyes del metro – contiene poesía. Pero esas obras métricas ¿ son verdaderos poemas o artefactos artísticos, didácticos o retórico? Um soneto no es um poema, sino uma forma literaria, excepto cuando esse mecanismo retórico – estrofas, metros y rimas – há sido tocado por la poesía. Hay máquinas de rimar pero no de poetizar. Por outra parte, hau poesía sin poemas; paisajes, personas y hechos suele ser poéticos: son poesía si ser poemas.”

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possibilidade de poesia – música. É de suma importância ressaltar que não estou

confundindo aqui língua escrita com língua oral; nem registro formal com registro

coloquial; tampouco poema com poesia. O que faço é chamar atenção para o desvelo

com a musicalidade: o lugar da poesia. A poesia não tem uma forma fixa; não é

representação. E, curiosamente, raras vezes acontece em um poema.

A poesia é um saber. Não se trata de um saber que tudo sabe, que tem o conceito,

ou seja, que tem “toda” a verdade. Saber significa saber vibrar nas vibrações e

reverberações dos passos e compassos da realidade. Saber é, em última instância, saber

ser com a coisa; é manter-se atento, em vigília. Colocar-se em vigília é uma das

exigências do pensamento. Sem vigilância não há desvelo de sentido.

A vigília, isto é, a escuta das versões/interpretacões da musicalidade, fez com que

eu pensasse os poemas de Marina Tsvetáieva a partir de duas experiências distintas: 1ª)

a leitura dos seus poemas no original russo 2ª) como seria possível traduzí-los

poeticamente para o português do Brasil. Diante dessas duas questões a musicalidade

das versões da tradução foi o que mais me perseguiu. Até que ponto a musicalidade do

poema permanece a mesma diante do original e da tradução? Como o tradutor deve agir

diante do intraduzível? Existe a intraduzibilidade? Todo ato de leitura/tradução deve ser

interpretativo e, portanto, criador. Ler não significa apenas decifrar códigos, transpor

signos linguísticos. A prática da leitura é um exercício de interpretação/escuta que nos

provoca e coloca em diálogo. Todo tradutor é, antes, um leitor. Por isso, nenhuma

tradução esgota a outra. Nenhuma leitura esgota as possibilidades da obra. Para ser mais

precisa: nenhuma interpretação é melhor ou superior. É preciso o cuidado com a

palavra, a experienciação da linguagem enquanto pensamento, que se dá na escuta do

silêncio da própria palavra. Certamente, só ouviremos o silêncio da palavra dando-se na

sua muscalidade se tivermos os ouvidos livres do cerúmen dos conceitos.

2.2.1 Da musicalidade em russo

Não é preciso ser músico para perceber que a obra poética de Marina Tsvetáieva é

dotada de musicalidade, sobretudo quando temos a possibilidade de lê-la no original. Há

na sua poética curvas melódicas, aliterações, tons harmônicos, inovações de ritmo e

melodia. Marina está atenta ao vigor da palavra cantada. Com isso, a mousikhḗ se faz

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presente a todo instante nos seus poemas. É praticamente impossível não sentir as

vibrações e reverberações dos seus versos. O que acabo de dizer pode ser percebido nas

canções que Shostakóvitchi compôs para alguns dos seus poemas. Recentemente, Elena

Frolhôva lançou alguns CDs22, fazendo arranjos para voz e violão de alguns poemas de

seus poemas. Seguindo os passos destes artistas não irei falar sobre a musicalidade da

sua obra, mas tentarei transformar esta escrita em lira, mais especificamente, tentarei

aproximar a tradução que preparei de alguns dos poemas de Tsvetáieva em canto, em

palavras encantadas, grávidas de sentido, de modo que possa ser aberto o livro das

canções. Como o leitor perceberá o seu canto encantatório? Pelas suas possibilidades de

escuta e diálogo com a própria obra.

Concorde com as venturas e desventuras doadas pelo destino, Marina Tsvetáieva

encontrou nas palavras, reunidas em cânticos dínamos, a harmonia entre o dom e o tom

da poesia. Os seus versos são pulsantes de vida – vigor. A musicalidade é um dos seus

elementos essenciais. Além disso, ocorre a criação de uma sintaxe que vai além da

construção gramatical. Ela pensa o poético além da estrutura, criando uma sintaxe

poética. Pode-se perceber o seu cuidado com a palavra. Apreender a musicalidade e a

força poética da sua obra, cujo sentido é dado pela vigília da palavra, exige que também

sejamos cuidadosos. A sua obra nos convida a ouvir a poesia da canção.

Diante da leitura dos seus poemas, podemos sentir cada palavra na sua tensão de

silêncio e fala, de presença e ausência, de movimento e repouso. É enquanto

possibilidade de e para possibilidade que a palavra poética vem ao nosso encontro. O

que nos cabe é o diálogo com o jogo dialético das palavras. A escuta verbal das

sonâncias e resonâncias interpretativas da poesia. Somente assim seremos apreendidos

pelo vigorar da palavra. Por quê? Estamos à espera. À espera da poesia.

Na dialétheia rítmico-plástica de Marina Tsvetáieva, o arranjo das palavras se

harmoniza com a poesia da canção. Qual o tom da sua poesia? Ouso dizer que é, a um

só tempo, rude e suave, inteiro – fragmento. Dito com outras palavras, o tom da poesia

ressoa em possibilidades de tons. Não exige o aguçamento dos sentidos, mas a vigília

do sentido de tudo que nos cerca – da realidade e suas realizações.

22 Trata-se das obras El sol de la tarde[O sol da tarde], Хвалынь-колывань [Elogio-

canção], Геньблагощения [Dia da celebração], Elena Frolhova chante Marina Tsvetaeva [ElenaFrolhova canta MarinaTsvetáieva] Colegio Universitario de Humanidades S.C., 2008, Mocou: IVC, 2007, Moscou 2006, L’Emperinte Digitale: France, 2006, respectivamente.

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Eu poderia escolher um poema de Marina Tsvetáieva e fazer a transcrição fonética

do russo para o português do Brasil a fim de mostrar como se dá a palavra verbal na sua

obra. Todavia, seria inútil. Não haveria sentido. Evidentemente, não falo do sentido

enquanto significado, mas enquanto abertura de mundo/possibilidades de interpretação.

Articular o sentido como significado é o mesmo que organizar os tijolos de uma casa,

dispondo-os logicamente. Ao final descobriríamos que ainda não temos a casa.

Permaneceríamos no formal, ou seja, na estrutura. A transcrição fonética não acolheria,

neste momento, o sentido. Não haveria a dialétheia entre língua e linguagem. Sem esta

não há o acontecer da obra; a proximidade com a sua gênese, isto é, com o seu sentido.

O sentido (linguagem) em tensão com o significado (língua) é o que diferencia as obras

de arte de qualquer outra obra comunicativa. Por isso, se eu transcrevesse aqui um

poema ou uma conversa informal daria no mesmo. Ficaríamos presos à estrutura. Não

haveria a linguagem acontecendo enquanto reunião de sentido, que é sempre abertura de

mundo. Não haveria obra poética, e sim um amontoado de versos destituídos de vigor.

A palavra em Marina Tsvetáieva é verbal, e nunca predicativa/substantiva. Não

tem alegorias e/ou adereços. Não há um único significado em sua obra. É claro que, por

sermos finitos e falarmos uma língua (até mesmo algumas línguas), não podemos fugir

dos significados. Todavia, os significados podem ser caminhos para o sentido. E aí está

a criatividade de Marina Tsvetáieva. Ela não se prende à palavra na sua significação

dicionarizada, cristalizada e sem movimento. O que ela busca é a palavra-verbo. Por

isso, seus poemas são dotados de musicalidade, ou seja, de encantamento. A palavra na

sua substantivação/predicação é mera comunicação do já sabido, do já conhecido, do

império dos signos comunicativos. O poeta não trabalha com o simplório. Ele busca a

palavra na sua gênese de sentido, no seu incessante pulsar de possibilidades. O seu

empenho é pelo vigor e não pelo rigor. Daí voltar-se à palavra verbal. Pensar a palavra

enquanto verbo significa apreendê-la na sua dinâmica, adentrando nas suas

possibilidades, sem pretender esgotá-la. Dito mais precisamente, o que há na palavra-

verbo são possibilidades de interpretação – sentido. A palavra-verbo é o lugar da poesia.

Por pensar a palavra verbal, Marina Tsvetáieva tem facilidade para brincar com as

palavras. Os seus versos abrem-se em compassos, entregando-se a uma série harmônica

no mesmo instante em que nos chegam imagens rítmico-plásticas. A escala de vogais

dispostas nos seus versos e que, por vezes, terminam o verso, compondo uma série, nos

aproxima da oralidade. Um ritmo doa-se no outro. Uma sonoridade ressoa na outra.

Uma melodia surge nas consonâncias e ressonâncias da palavra cantada. Dito mais

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claramente, uma palavra conclama a palavra seguinte. Cada verso sugere uma imagem,

um ritmo verbal que não é estático. Com isso, o número de sílabas, as pausas, a duração

dada pelos acentos tônicos vão além da métrica. O que há nos poemas de Marina

Tsvetáieva é o acontecer da palavra verbal. Há um arranjo de sentido. Com isso, poesia

e música irrompem, a um só tempo, harmonicamente. É como se estivéssemos diante de

uma orquestra na qual a simetria dos versos se arranja espontaneamente, compondo um

todo harmônico: a obra.

Tratar da palavra verbal é o mesmo que se voltar à musicalidade da obra, tendo

sempre como referência a dialétheia da própria obra. Por ser verbal, uma palavra sugere

a outra e traz consigo inúmeras possibilidades de interpretação. Todavia, o que rege, ou

melhor, o que desencadeia o arranjo verbal das palavras é o sentido. Como o sentido

pode ser apreendido em uma obra? Antes de tudo, um esclarecimento: sentido não quer

dizer apenas significado. O sentido comparece em uma obra de literatura à medida que

cada palavra soa poeticamente. Todo soar é sempre um ressoar. É um soar novamente a

partir de suas infindáveis possbilidades. É a obra, na sua pulsão de sentido, que nos

prende e encanta. Só nos demoramos diante de uma obra porque fomos por ela tocados.

Ora, falar de pulsão da obra e de sentido é também falar de ritmo. Todavia, devemos

compreender o ritmo enquanto manifestação verbal, e não restringi-lo a um conjunto de

metros. Por ser verbo, ritmo é a própria obra, na sua dinamicidade, convidando-nos a

senti-la, pensá-la.

É importante ressaltar que quando penso na musicalidade dos poemas de Marina

Tsvetáieva escritos em russo não penso na metrificação do verso, mas tão somente na

meditação da obra. Também não me refiro à absorção da palavra pelo som. A

musicalidade está além dos instrumentos musicais. E a posia não se limita a uma forma

fixa, que é o poema. “A poesia tem sua própria música: a palavra.” (PAZ, 1990, p. 26).

Poesia é palavra cantada. As suas possibilidades são tão vastas que ouso pensá-la como

um contínuo e vibrante pulsar de sentido. A palavra poética é sempre verbal.

A palavra nos projeta em um horizonte rítmico, harmônico e melódico, dentre

outros. A palavra não se subordina à música para que a poesia possa surgir. Não é

preciso ser escritor ou músico para sentir as vibrações, o acontecer da realidade nas suas

realizações. Possibilidades, nuances, tons – modulações –, a realidade é dinâmica de

sentido onde os opostos não se complementam, mas se dão em uma dobra de tempo-

espaço criados por eles próprios. Essa dobra não é progressiva nem regressiva; é jogo,

movimento dialético entreaberto pela condição de musicalidade da própria realidade na

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qual se dá o encontro de ser humano e coisas. Mais que uma acústica agradável aos

ouvidos, o sentido, enquanto linguagem, nos lança no “acontecer da obra”.

Tudo isso nos faz pensar que a cadência dos poemas de Marina Tsvetáieva,

escritos no seu original, pode ser andante, agitato ou retardando. Não importa a

classificação. O que perdura é a palavra verbal. Os seus poemas fluem semelhante um

barco que navega leve e solto e apaixonado. Há uma cumplicidade de fala e silêncio

entre o barco e o oceano. O barco segue devagar, devagar. Porque sabe que tem tempo

suficiente. Na verdade, quem conduz o barco não é o barqueiro. É o próprio oceano que

conduz o timoneiro. O que quero dizer com isso? Não é o idioma que conduz a

musicalidade na obra de Marina Tsvetáieva. É a linguagem que a conduz. A linguagem,

enquanto o universal poético de todas as línguas, nos faz perceber que a compreensão

da musicalidade não necessita do abstrato. A musicalidade é concreta, porque nos toca

essencialmente. Pois bem, chegamos aqui ao ēthos poético. A musicalidade é sempre

abertura de sentido, é a própria poesia dando-se enquanto mundo.

2.2.2 Da musicalidade em vernáculo

Uma experiência completamente distinta de ouvir a musicalidade do poema em

Marina Tsvetáieva no original é a tentavida de aproximar-se da mesma experiência

pelas versões oferecidas pelas possibilidades de tradução. Cada tradutor tem um método

de traduzir, um modo peculiar de se voltar para a palavra, ou seja, tem seus caminhos de

interpretação. Nenhum tradutor ouve o “mesmo” dizer poético. O que se ouve são as

possibilidades da própria obra. Traduzir não é outra coisa senão interpretar. Ninguém

interpreta a mesma obra de maneira homogênea. O que cabe tanto ao tradutor quanto ao

leitor de uma obra é a interpretação. Isso vale também para o “autor” e o crítico de arte.

Interpretar não significa analisar, decompor, explicar a mensagem que a obra tem a nos

dizer. A obra tem algum recado a transmitir? Enquanto permanecermos presos em

valores a priori, não ouviremos as possibilidades que na obra se doa. Ficaremos à

margem da própria poesia. Perderemos a alegria do nosso encontro com a obra.

Quando temos a oportunidade de ler os poemas de Marina Tsvetáieva no original

russo somos imediatamente tomados pela musicalidade da sua obra. E nas traduções?

Como não perder o encantamento da obra? Podemos traduzir sem trair? Até que ponto

nós, tradutores, somos livres para recriar a obra e também nos mantermos fiéis ao

“espírito” do original? Não discutirei, neste momento, conceitos de teoria da tradução.

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Deixarei apenas algumas provocações. É difícil traduzir sem trair. Alíás, é necessário

que haja, a um só tempo, fidelidade e traição. É assim que nos mantemos atentos ao

dizer da poesia. Quando somos tomados pela poesia não há traição. Há o diálogo com a

obra, isto é, ocorre a interpretação. O ato de interpretar é um negociar com a palavra,

escolhendo e acolhendo as possibilidades que mais se doam harmonicamente.

Traduzir os poemas de Marina Tsvetáieva para o português do Brasil não é nem

um pouco fácil, todavia, não se trata de uma tarefa impossível. É bem verdade que

estamos diante de línguas distintas, mas devemos nos conduzir pela escuta da

linguagem. É por esta que chegaremos ao sentido da obra. Ora, o sentido não é um

signo linguístico. Não é comunicação a ser transmitida, mas o que está destinado a ser

experienciado – poíēsis – na obra enquanto irrupção de mundo e verdade. Isso nos leva

a conclusão de que a sintaxe gramatical, sozinha, não nos conduz a uma tradução que se

pretenda poética. Se quisermos manter no poema o vigor do original devemos ser

criativos, tal qual o poeta. Devemos nos conduzir pela sintaxe poética, ou seja, pelo

sentido. É este que manterá a musicalidade da obra, que resguardará o dito poético, que

nos aproximará da poesia. Tradução é, portanto, deixar-se tocar pelo sentido.

O essencial em uma tradução é a proximidade com a sintaxe poética. Através

desta o tradutor estará atento à graciosidade e ao encanto produzido pelo original. O

idioma (a língua) não deve ser visto como um empecilho, uma dificuldade que “rouba”

o poético. É, antes, um convite às diversas possibilidades de se experienciar a mesma

obra a partir de perspectivas distintas. É preciso voltar-se à linguagem. É pela tensão

entre língua e linguagem que o tradutor conciliará possibilidades de mundo, sendo

acolhido pela obra. Entregue à dinâmica da linguagem, a língua sai dos escombros, das

cinzas, dos fósseis que uma leitura estritamente lógica e conceitual pode nos lançar. Em

consonância com a linguagem, a língua retoma o caminho do sentido: dá-se

poeticamente. É assim que somos tocados pela poesia e suas possibilidades.

Para ser tocado pela poesia é preciso deixar que o poema faça a si mesmo. Deixar

que o poema se faça não quer dizer reinventar ou se servir do original como “modelo”

para a reprodução de algo, e sim fazer com que a obra dita, por exemplo, em uma língua

A, ressoe na sua consonância de identidade e diferença de imagens rítmico-plásticas em

uma língua B. Isso nos faz perceber que o exercício da tradução é árduo; exige a

renúncia da palavra dicionarizada para que a própria palavra, enquanto sentido, se diga.

Traduzir é ser atrevessado pelas possibilidades de interpretações/versões, sabendo que

toda palavra, na sua singularidade, revela sempre o que é para ser dito. Mas nem tudo é

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dito. Há também o não dito, o não traduzível, o silêncio da palavra. Daí a dificuldade de

nos sintonizarmos com a dilétheia: o jogo vibratório entre o ser humano e as palavras.

Encontrar a musicalidade dos poemas de Marina Tsvetáieva em vernáculo é um

desafio para os tradutores que se voltam para a tradução como interpretação, como

escuta do lógos, isto é, escuta da palavra na sua referência de manifestação e

retraimento. Devemos nos prender à liberdade rítimica, que é sempre verbal. E não

ficarmos presos a metros. Acredito que somente assim nos manteremos próximos de

uma tradução poética. Não é fácil manter uma sintaxe poética, mas quando se consegue

todo o nosso esforço é recompensado. Traduzir não é esclarecer o que está dito em outro

idioma. Não é relatar! Pois bem, chegamos agora à dificuldade (e não impossibilidade)

de verter para o vernáculo alguns poemas de Marina Tsvetáieva. Como os seus poemas

devem ressoar no português do Brasil? A resposta é simples: deve ressoar a partir das

versões interpretadas por seus tradutores. Porém, as possibilidades de tradução não se

fecham nunca. Traduzir não para. É sempre um convite.

A partir de agora mostrarei três das principais dificuldades encontradas na

tradução dos poemas de Marina Tsvetáeiva para o português do Brasil:

1) Em russo, o verbo ser [buiti] só é pronunciado no passado ou no futuro. No

presente não é necessário, posto que já está subentendido. Em algumas ocasiões é

possível não traduzir este verbo em vernáculo. Em outras, é praticamente impossível

deixá-lo oculto. Como o tradutor deve agir? Deve deixar o verbo ser implícito ou

explecitá-lo? A sua escolha, certamente, deve ser consonante com a musicalidade da

obra. Não há uma regra, mas escuta das possibilidades da poesia dando-se na obra.

2) Uma segunda dificuldade é o uso dos artigos. Não existem artigos na língua

russa. Como traduzir, por exemplo, o poema “Comediante” [Komedianti]? Pode-se

optar por “Um comediante” ou “O comediante”. A escolha não deve ser meramente

arbitrária e/ou pessoal. O tradutor deve pensar a obra como um todo, pois somente

assim será acolhido pelo seu próprio sentido. Na tradução que realizei para este poema,

optei por não utilizar o artigo. Todavia, não basta apenas ocultá-lo. É preciso que o que

se oculta seja tão evidente quanto à luz do sol. Não se trata de determinar ou

indeterminar pelo emprego do artigo. Trata-se apenas de deixar que a palavra

“comediente” permaneça na sua amplitude verbal.

3) A grande dificuldade, ou melhor, o desafio que Marina Tsvetáeiva proporciona

aos seus tradutores é o emprego do travessão. Ah, os travessões! Muitos dos seus

tradutores resolvem retirá-los das suas traduções. Não é em vão que ela os emprega. Os

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travessões não sobram! Retirá-los é o mesmo que negar o silêncio do texto; é rejeitar a

força poética da sua poesia. Cabe ao tradutor saber “negociar” as diferenças entre as

línguas, mantendo-se próximo do dizer do poético. O dizer da obra não é do autor, mas

da linguagem que nele ressoa. “é a linguagem que fala, não o autor.” (BARTHES, 2004,

p. 59). Devemos estar atentos à linguagem e saber que o seu dito ultrapassa os códigos

linguísticos. A escuta da linguagem nos coloca em comunhão com àquilo que na obra

perdura: a poesia. O que vem a ser poesia? A poesia é um jogo rítmico de imagens

sonoro-plásticas onde o fluxo e refluxo das palavras se dão em unidade. Não há, na

poesia, pausas ou quebras de palavras. Há um ritmo verbal, que é abertura de sentido.

Tudo isso nos faz observar que manter a musicalidade dos poemas de Marina

Tsvetáeiva em vernáculo é um desafio ao tradutor. O ato de traduzir não se restringe em

buscar equivalências semânticas. Às vezes, uma única palavra nos atordoa meses.

Considero o ato de traduzir um exercício profundo de pensamento e como tal exige

vigilância e cuidado. O tradutor deve colocar-se diante da palavra, e não querer analisá-

la, decompô-la, decifrá-la. Toda a palavra dissimula, esgueira, usa de artimanhas não se

se deixando apreender. E o que deve fazer o tradutor? Deve agir com astúcia, escutando

a palavra na sua ambiguidade de fala e silêncio. Somente assim o tradutor encontrará

em vernáculo uma palavra cujo vigor de sentido se aproxime do vigor entreaberto no

original. Por quê? A poseia, em qualquer língua, sempre se renova na dinâmica de suas

possibilidades de interpretação, permanecendo a mesma. A poesia – poesia.

2.3 Reverberações da poesia

Para melhor compreensão do que venha a ser a musicalidade nos poemas de

Marina Tsvetáieva, farei algumas interpretações da sua última quadra. Colocarei o

poema no seu original russo e, ao lado, uma possível versão/tradução que realizei para o

português do Brasil. Digo possível porque toda tradução, em sua presença, é sempre

caminhos de sentido. Nenhuma tradução esgota a outra. Todo ato tradutório é, antes, um

ato de leitura e interpretação, isto é, diálogo. Eis o poema que iremos nos deter

(TSVETÁIEVA, 1983, p. 262):

Порасниматьянтарь É tempo de retirar o âmbar Пораменятьсловарь É tempo de mudar o dicionário Порагаситьфонарь É tempo de apagar o lampião

Надверный... Usado...

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Uma tradução gramatical diria que no original as sílabas mais fortes deveriam ser

marcadas para assinalar tanto a métrica quanto a rima. Há rimas internas e externas

Além disso, o verbo está marcado no infinitivo. Por outro lado, a tradução mantém as

rimas internas, mas não as externas e que... É melhor pararmos por aqui. Preferências

estilísticas não desvelam o movimento poético no qual cada palavra se revela na sua

gênese de sentido. O que nos interessa aqui é compreender a força plástica, a pulsão

criativa, ou seja, a musicalidade como um elemento essencial em uma tradução poética.

Podemos verificar, tanto no original quanto na sua tradução, uma pulsão rítmica

binária constante onde cada palavra projeta imagens sonoro-plásticas. É este pulso

constante que irá conferir musicalidade ao poema, ou seja, uma cadência de sentido que

nos envolve e permite ao poema acontecer na sua singularidade. Chamo essa cadência

de sentido o habitar da poesia. Como o sentido da musicalidade do poema não se prende

em conceitos ou paradigmas, temos de nos colocar em escuta se quisermos ouvi-la. Vale

acrescentar que às vezes a musicalidade acontece como silêncio. Isso nos faz pressupor

que o silêncio é o maestro de todas as possíveis sonoridades e realizações.

Para que haja musicalidade, que é também ritmo e sentido, uma tradução deve ter

movimento, ou seja, o desencadeamento de imagens sonoro-plásticas nas quais a poesia

se dá harmonicamente e advenha à presença. A musicalidade inaugura mundo: sentido

que se manifesta enquanto possibilidade de a língua irromper no vigorar da linguagem.

A musicalidade é a poesia dando-se. Nesse horizonte de reflexão, a musicalidade pode

ser entendida como sentido (plenitude de realização), porque sua consumação projeta

sempre possibilidades de e para possibilidades. Não se fecha. É sempre pulsão criativa.

A ausência da musicalidade, enquanto acontecer da poesia, pode comprometer

uma tradução que se pretenda poética. Acredito que o tradutor deve estar sempre atento

à esta potência criativa para que as palavras irrompam no seu próprio movimento. No

entanto, ao mesmo tempo em que age com autonomia diante de uma obra, o tradutor lhe

deve fidelidade. Encantar sem sublimar, deixar aparecer sem revelar, apontar sem

indicar. Manter-se independente e ao mesmo tempo estar preso à obra. É preferível uma

tradução feia, mas fiel ao original ou bela e assumidamente infiel? A resposta não está

na dicotomia entre bela e feia. O tradutor aproxima-se da obra, mas não se subordina.

Ele dialoga com a poesia, e não com a construção gramatical. Ele está lançado no limite

ilimitado da linguagem. E ainda há quem diga que o trabalho do tradutor é coisa miúda,

sem grande relevância... Bem se vê que não é bem assim.

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A figura do tradutor é aquela que se põe e dispõe na escuta da palavra. Uma vez

liberto da concepção de que a língua seja apenas instrumento de comunicação, o

tradutor rompe com o senso-comum, deixando-se conduzir pela escuta daquilo que na

palavra se doa como canto e encanto: a poesia. Esta se dá sempre como canto, mas nem

todo canto é poético. Nem todo poema repousa no seio da poesia. Do mesmo modo,

pode-se dizer que nem toda música se sabe poesia. Deixemos, porém, esta discussão

para outra ocasião, ou melhor, para outro instante poético que nos sobrevenha

inesperadamente.

Em vigília à palavra que se doa em canto e encanto, o tradutor adentra no mistério

da palavra, de cada palavra, fundindo-se no e com o próprio mistério. As palavras não

se restringem aos signos representativos, porque são possibilidades de sentido. O

tradutor, ao ser atravessado pelo entreaberto da palavra, perscruta sentido. Distâncias

espaço-temporais são rompidas. Uma vez que o instante poético se dá em consonância

com a linguagem, a dicotomia entre língua alvo e língua fonte desaparece. Com isso, a

liberdade de tradução e a fidelidade ao texto passam a ser vistas como possibilidades de

interpretação, ou seja, passam a ser articuladas sob um olhar pleno de espanto, do qual

um canto melódico irrompe incessante e ardentemente e atende pelo nome de poesia.

Cultor do sentido, tradutor é aquele que sente a força plástica da palavra e se

permite vibrar e reverberar no ritmo que a própria palavra decide. Palavra é canto. E o

tradutor, semelhante a Hermes que presenteia Apolo com a lira, nos dá como oferenda a

palavra cantada. O tradutor nos arremessa no canto encantado da palavra cantada.

Lira entretecida por Hermes. Canto de Orfeu – sopro das Musas; Apesar de

abafado, o méllos da poesia não feneceu. Pulsão libertadora, a palavra cantada faz do

tradutor um poeta que encontra na sua procura pela palavra – consumação. Entregue às

possibilidades da palavra, o tradutor sente-se afetado pelo o que realmente lhe afeta,

sente-se tocado e se apropria do que lhe toca não para tomar para si, mas para trazer à

proximidade aquilo que na poesia configura um próprio, que é a musicalidade da obra.

Musicalidade da obra? O que quero dizer com isso? Instância reveladora de um modo

originário de ser, de vigorar sentido, a musicalidade da obra é um dos possíveis

caminhos da poesia.

Creio que tenha ficado evidente que a tarefa do tradutor não incide em desvendar,

ou seja, “clarear" os versos do original. O que lhe cabe é deixar a palavra ser como ela

é, mas também como ela não é. O que se busca em uma tradução poética é a palavra no

seu acontecer. Entre palavras não dicionarizadas, palavras férteis e impronunciadas, o

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tradutor perscruta o dizer poético e articula sentido. Ele não atravessa o limite da

palavra. É, antes, atravessado! Jogado! Tomado pela palavra! Ser atravessado pela

palavra como um perfume grená que entra pelos olhos inaugurando vida – plenitude de

sentido. Eis o exercício de traduzir, interpretar.

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O LIVRO DAS CANÇÕES DE MARINA TSVETÁIEVA 23

23 Como acontece em toda antologia, a seleção dos poemas aqui reunidos foram motivados pela

constância de uma linha melódica. Escolhi os poemas que melhor se orientaram pela musicalidade do poema em vernáculo, embora eu tenha traduzido todo o livro Poemas[Iztirrotivariênia], uma coletânea organizada na Rússia com poemas de Marina Tsvetáieva. Também constam nesta seleção poemas retirados da antologia bilíngue Indícios Flutuantes, cujos poemas foram selecionados e traduzidos por Aurora Bernardini, e do livro Antologia russa de poesia soviética [Antologuia ruskói soviétskoi poêzii]. Além destes livros, consultei também o site http:<//www.tsvetayeva.com//>.Considero de suma importância pensarmos na qualidade das traduções que entregamos aos nossos futuros leitores. O tradutor não pode ser ingênuo e confundir quantidade com qualidade. Além disso, traduzir é um exercício contínuo. Não para! Por isso, cada vez que voltamos os olhos sobre um mesmo poema somos tomados por novas possibilidades de interpretação. Aliás, isso acontece com as obras de arte e de pensamento.

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PERPETUMMOBILE Как звезды меркнут понемногу В сияньи солнца золотом, К нам другу друг давал дорогу, Осенним делаясь листом, – И каждый нес свою тревогу В наш без того тревожный дом. Мы всех приветствием встречали, Шли без забот на каждый пир, Одной улыбкой отвечали На бубна звон и рокот лир, – И каждый нес свои печали В наш без того печальный мир. Поэты, рыцари, аскеты, Мудрец-филолог с грудой книг... Вдруг за лампадой – блеск ракеты! За проповедником – шутник! – И каждый нес свои букеты В наш без того большой цветник.

1906

PERPETUM MOBILE Como estrela anoitecida A brilhar no céu de ouro, Alguém sugereo caminho, Outono desfeito em folhas, – E cada um leva escuridão Para nossa casa iluminada. Foi possível o encontro, Saímos para o banquete, Um sorriso respondeu Som de liras e tamborins – E cada realização da dor No nosso mundo triste.

Poetas, cavaleiros, ascetas, Sábios-filólogos vários livros... Entre lâmpadas – foguetes! Ao vencedor – batatas! – E cada um trouxe buquê Ao nosso jardim sem flores. 1906

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В ПАРИЖЕ EM PARIS

Дома до звезд, а небо ниже, Chão de estrelas, céu baixo, Земля в чаду ему близка. Toda terra lhe é próxima. В большом и радостном Париже Na vasta e alegre Paris Все та же тайная тоска. A saudade é segredo. Шумны вечерние бульвары, Nos boulevares ruidosos, После дний луч зариугас. O sol se põe na madrugada. Везде, везде всё пары, пары, Vapor, vapor, por todos os lados, Дрожанье губ и дерзость глаз. Lábios trêmulos, olhar afoito. Яздесь одна. Кство лукаштана Estou só. Encosto no sofá Прильнуть таксладко голове! Inclino a cabeça suavemente! Ивсердцеплачетстих Ростана O peito chora versos de Rostand24 Как там, в покинутой Москве. Sinto saudades de Moscou. Париж в ночи мне чуж дижалок, Paris me é alheia e miserável, Дороже сердцу прежнийбред! Mais caro ao coração é o absurdo! Иду домой, там грусть фиалок Volto para casa, para minhas tristezas И чей-то ласковый портрет. Revejo a foto de um ente querido. Там чей-то взор печально-братский. Um olhar triste e fraterno Там нежный профиль настене. Porte delicado na parede. Rostand и мученик Рейхштадтский Rostand e Reichstadt25 И Сара – все придут во сне! E Sara – tudo veem! Вбольшо мира достном Париже Na vasta e alegre Paris Мне снятсятравы, облака, Sonho com relvas, nuvens, Идальшесмех, и тени ближе, Sorrisos distantes, sombras, И боль как прежде глубока. A dor é a mesma de antes. Июнь 1909 Junho 1909 Париж Paris

24 Edmond Eugène Alexis Rostand (1868-1918) poeta e dramaturgo do neoromantismo francês.

(N. de T.). 25Trata-se de Napoleão II que, no de 1818, ficou conhecido como Franz Duque de Reichstadt.

Foi filho de Naopoleão Bonaparte, imperador da França. Marina Tsvetáieva tinha grande admiração por Napoleão. Ela considerava-o a pessoa mais admirável (N. de T.).

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ИЗ СКАЗКИ – В СКАЗКУ DE CONTO – EM CONTO

Все твое: тоска почуду, Em você: tudo é saudade, Вся тоска апрель ских дней, Saudade dos dias de abril, Все, что так тянулось к небу,– Tudo se esvaiuno céu, – Но разу мностинетребуй. É inútil querer saber. Я до смерт и буду Até a morte serei Девочкой, хотятвоей. Uma menia, a te desejar. Милый, в этот вечер зимний Querido, neste inverno, Будь, как маленький, со мной. Seja um menino comigo. Удивляться не мешай мне, Faça-me ternas surpresas. Будь, как мальчик, в страшной тайне Seja o mistério da paixão И остаться помоги мне E me ajude a ser sua Девочкой, хотя женой. Menina, sua mulher. 1909 - 1910 1909 - 1910

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Я только девочка. Мой долг Sou uma menina. Meu dever До брачного венца Até o casamento Не забывать, что всюду – волк É lembrá-lo – lobo Ипомнить: я – овца. Eu sou: sua – ovelha. Мечтать о замке золотом, Sonho com castelo de ouro Качать, кружить, трясти Magia, poções, encantos, Сначала куклу, апотом Minha primeira boneca, Не куклу, а почти... A primeira flor, e depois... В моей руке не быть мечу, Em mãos dessonhandas, Не зазвенеть струне. As cordas não tangem. Я только девочка, – молчу. Sou uma menina, – silêncio. Ах, если быимне Ah, se eu pudesse В зглянув на звезды знать, чтотам Ao olhar as estrelas saberia И мне звезда зажглась Ser uma estrela ardente И улыбнуть с явсемглазам, Sorrindo para todos Не опуска яглаз! Sem baixar os olhos! 1909-1910 1909-1910

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ДИКАЯ ВОЛИЯ

Я люблю такие игры, Где надменны все и злы. Чтоб врагами были тигры И орлы! Чтобы пел надменный голос: «Гибель здесь, а там тюрьма!» Чтобы ночь со мной боролась, Ночь сама! Я несусь, – за мною пасти, Я смеюсь – в руках аркан… Чтобы рвал меня на части Ураган! Чтобы все враги – герои! Чтоб войной кончался пир! Чтобы в мире было двое: Я и мир! 1909-1910

DESEJO SELVAGEM Amo os jogos, Onde todos são soberbos e maus. Que os inimigos sejam tigres E águias! Que a voz altiva cante: “Aqui há ruína, e lá o todo!” Que a noite lute comigo, A própria noite! Corro, – entre meus abismos, Sorrio – com as mãos em conchas... Que eu me desfaça na Tempestade! Que todos os inimigos – sejam heróis Que a guerra acabe com a festa Que o mundo seja apenas dois: Eu e o mundo! 1909-1910

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ОТ ЧЕТЫРЕХ ДО СЕМИ

В сердце, как в зеркале, тень Скучно одной – и с людьми... Медленно тянется день От четырех до семи! К людям не надо – солгут, В сумерках каждый жестк. Хочется плакать мне. В жгут Палыцы скрутили платок. Если обидишь – прошу, Только меня не томи! – Я бесконечно грушу От четырех до семи. 1910

DAS QUATRO ÀS SETE

No coração, como no espelho, sombras Aborreço-me sozinha – com as pessoas... Moroso segue o dia Das quatro às sete! As pessoas – mentem, Ao crepúsculo todos são rijos. Queria chorar. No pescoço Trago um lenço amarrado. Se te ofendes – peço-te, Não me tortures assim! – Sou infinitamente triste Das quatro às sete.

1910

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ВЗАЛЕ

Над миром вечерних видений Мы, дети, сегодня цари. Спускаются длинные тени, Горят за окном фонари, Темнеет высокая зала, Уходят в себя зеркала... Не медлим! Минута настала! Уж кто-то идет из угла. Нас двое над темной роялью Склонилось, и крадется жуть. Укутаны маминой шалью, Бледнеем, не смеем вздохнуть. Посмотрим, что ныне творится Под пологом вражеской тьмы? Темнее, чем прежде, их лица, – Опять победители мы! Мы цепи таинственной звенья, Нам духом в борьбе не упасть, Последнее близко сраженье, И темных окончится власть. Мы старших за то презираем, Что скучны и просты их дни ... Мы знаем, мы многое знаем Того, что не знают они!

1908-1910

NA SALA

Sobre o mundo a visão noturna Nós, crianças, somos hoje reis. Uma sombra negra desce, Cobrindo a janela iluminada,

A escuridão cai do alto da sala Ela sai do espelho... Não demore! O minuto chegou! Já alguém sai dum canto. Nos escondemos debaixo do piano Corremos, fugimos apavorados.

Acolhidos no xale da mãe, Pálidos, não ousamos respirar. Vamos ver o que agora acontece Sob o manto trevoso do inimigo? Mais escuro que outrora, seus rostos – Novamente, nós vencemos! Somos mistério amalgado, Nosso espírito não fenece, Após a última luta acirrada, A escuridão acabará com a glória. Estamos velhos e, também,desprezados, Que o tédio e a simplicidade dos dias... Nós sabemos, sabemos demais Daquilo que eles desconhecem!

1908-1910

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МУКА И МУКА ANGÚSTIA E ANGUSTIA

– «Все перемелется, будет мукой!» – “Tudo no fim será cinzas!” Люди утешены этой наукой. As pessoas se consolam. Станет мукою, что было тоской? Saudade pode virar cinzas? Нет, лучше мукой! Não, melhor é otormento!

Люди, поверьте: мы живы тоской! Todos creem: vivemos de saudade! Только в тоске мы победны над скукой. Na angústia nós venceremos o tédio. Все перемелется? Будет мукой? Tudo no fim? Será cinzas? Нет, лучше мукой! Não, melhor é o tormento!

1909-1910 1909-1910

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В РАЮ

Воспоминанье слишком давит плечи, Я о земном заплачу и в раю, Я старых встреч при нашей новой встрече Не утаю.

Где сонмы ангелов летают стройно, Где арфы, лилии и детский хор, Где всё покой, я буду беспокойно Ловить твой взор.

Виденья райские с усмешкой провожая, Одна в кругу невинно-строгих дев, Я буду петь, земная и чужая, Земной напев!

Воспоминанье слишком давит плечи, Настанет миг – я слез не утаю... Ни здесь, ни там, – нигде не надо встречи, И не для встреч проснемся мы в раю!

1991-1912

NO PARAÍSO

A lembrança pesa nos ombros, Sobre a terra no paraíso chorarei, Velhos encontros, novos encontros Não negarei.

Onde anjos voam harmoniosos, Onde harpas, lírios e querubins, Onde tudo for calmo, agitarei Para chamar sua atenção. Sorrio diante das visões do paraíso, Entre as virgens inocentes-maliciosas, Eu cantarei, telúrica e pura Sintonizada com a terra!

A lembrança pesa nos ombros, Num instante – lágrimas verterão... Nem cá ou lá – haverá encontros, Ficaremos separados no paraíso!

1991-1912

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ДУША И ИМЯ

Пока огнями смеется бал, Душа не уснет в покое. Но имя бог мне мное дал: Морское оно, морвкое! В круженье вальса, под нежный вздох Забыть не могу тоски я. Мечты иные мне подал бор: Морские они, морские! Поёт огнями манящий зал, Поёт и зовет, сверкая. Но душу бор мне иную дал: Морская она, морская! 1911-1912

ALMA E NOME

Se o baile sorri iluminado, A alma não repousa em paz. Deus me deu outro nome: É marinho, marinho!

No giro da valsa, breve disparate, Não posso esquecer sou saudade. Outros sonhos deus me deu: São marinhos, marinhos!

A música anima a sala Canta e clama, resplandece Outra alma deus me deu: É marinha, marinha!

1911-1912

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В. Я. БРЮСОВУ PARA BRIÚSSOVI26

Язабыла, чтосердцевВас – тольконочник, Deslembro que seu coração – é só noite, Незвезда! Я забыла об этом! Sem estrelas!Em me esquecidisso! Чтопоэзиявашаизкниг Que a poesia do seus livros И из зависти – критика. Раннийстарик, E da inveja – é crítica. Jovem ancião Выопятьмненамиг Você volta novamente para mim Показалисьвеликимпоэтом. Se anunciando um grande poeta. 1912 1912

26Válery Iákoliêvitchi Briússov (1873-1924) nasceu na cidade de Moscou. Exerceu atividades

de poeta, dramaturgo, pintor, tradutor, crítico de literatura e historiador. É considerado um dos mais importantes representantes do Simbolismo Russo. (N. de T.).

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ЛИТЕРАТУРНЫМ ПРОКУРОРАМ Всё таить, чтобы люди забыли, Как растаявший снег и свечу? Быть в грядушен лишь горсточкой пыли Под могильным крестом? Не хочу!

Каждый миг, содрогаясь от боли, К одному возвращаюсь опять: Навсегда умереть! Для того ли Мне судьбою дано всё понять?

Вечер в детской, где с куклами сяду, На лугу паутинную нить, Осужденную душу по взгляду... Всё понять и за всех пережить!

Для того я (в проявленном – сила) Всё родное на суд отдаю, Чтобы молодость вечно кранила Беспокойную юность мою.

17 мая 1913

AOS PROCURADORES LITERÁRIOS

Tudo oculto para ninguém lembrar Como são neve e vela derretendo? Ser no futuro um punhado de pó Sob a lápide com cruz? Não quero!

A cada instante, tremendo de dor Volto-me ao mesmo uma vez mais: Morrer eternamente! Será que me Foi destinado tudo compreender?

À noite, no prado a tecer o destino, No quarto com as bonecas sentarei A alma atormentada pelo olhar... Tudo compreender e por todos viver!

Para isto eu, (na manifestação – vigor) Dou aos tribunais tudo que me é caro, Para que a mocidade conserve sempre Minha agitada juventude.

17 de maio de 1913

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Идешь, на меня похожий, Глаза устремляя вниз. Я их опускала – тоже!

Прохожий, остановись!

Прочти – слепоты куриной И маков набрав букет –

Что звали меня Мариной И сколько мне было лет.

Не думай, что здесь – могила, Что я появлюсь, грозя... Я слишком сама любила Смеяться, когда нельзя!

И кровь приливала к коже, И кудри мои вились... Я тоже была, прохожий! Прохожий, остановись!

Сорви себе стебель дикий И ягоду ему вслед: Кладбищенской земляники Крупнее и слаще нет.

Но только не стой угрюмо, Главу опустив на грудь. Легко обо мне подумай, Легко обо мне забудь.

Как луч тебя освещает! Ты весь в золотой пыли... — И пусть тебя не смущает Мой голос из-под земли.

3 мая 1913 Коктебель

Andas a mim semelhante, Com os olhos fitos no chão. Eu os baixei – também! Passante, pare! Leia – colhendo o ramo De papoulas e cravinhas – Que meu nome foi Marina E quantos anos eu tinha.

Não pense, que aqui – jazigo, Que eu apareça, ameaçando... Eu mesma amei demais Sorri quando não podia!

O sangue afluiu no rosto, Meus cachos se encresparam... Eu também era passante! Passante, pare!

Arranca a haste silvestre E o bago despontando, – Morangueiro do cemitério Maior e mais doce não há

Só não fique de mau-humor A cabeça baixa sobre o peito. É fácil pensar em mim É fácil me esquecer. Como o raio te resplende! Sê inteiro na poeira dourada... – Não te acanhe com Minha voz embaixo da terra.

3 de maio de 1913 Kocktebel

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Вы, идущие мимо меня К не моим и сомнительным чарам, – Если б знали вы, сколько огня, Сколько жизни, растраченной даром,

И какой героический пыл На случайную тень и на шорох... – И как сердце мне испепелил Этот даром истраченный порох!

О летящие в ночь поезда, Уносящие сон на вокзале... Впрочем, знаю я, что и тогда Не узнали бы вы – если б знали –

Почему мои речи резки В вечном дыме моей папиросы, – Сколько темной и грозной тоски В голове моей светловолосой. 17 мая 1913

Você passará por mim Sem encantos duvidosos – Se você soubesse quanto fogo, Quanta vida perdida, em vão,

Aquele ardor heroico Sombra casual e sussurros... – Coração desfeito em cinzas Dom consumido pelo fogo!

No voo do trem noturno, O sono conspira na estação... Eu sei, eu sei, sei que nada Saberia se tu – soubesses – Porque minha voz branda Na chama de meus cigarros, – Quanta saudade e escuridão Em meus cabelos dourados.

17 de maio de 1913

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Моим стихам, напписанным так рано, Что и не знала я, что я – поэт, Собравшимся, как блызги из фонтана, Как искры из ракет,

Восвравшимся, как маленькие черти, В святлише, где сон и фимиам, Моим стихам о юности и смерти, – Нечитанным стихам! –

Разбросанным в пыли по магазтнам (Где их никто не брал и не берет!) Моим стихам, как драгоценным винам, Настнае твой черед.

Май 1913 Коктебел

Aos meus versos escritos de repente, Quando eu nem sabia sou – poeta, Jorrando como pingos da nascente, Como centelhas do foguete,

Irrompendo como pequenos demônios, No santuário, onde há sono e inсenso, Aos meus versos de juventude e morte, – Versos que não serão lidos!

Espalhados em sebos poeirentos (onde ninguém os pegou ou pegará!) Aos meus versos, como os vinhos raros, Chegará o seu tempo.

Maio de 1913 Kocktebel

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Уж сколько их упало в эту бездну, Muitos caíram neste abismo, Разверстую вдали! Posso imaginar! Настанет день, когда и я исчезну O dia começa quando sumo С поверх ности земли. Nos confins da terra,

Застынет всё, что пело и боролось, Tudo congela, canto e luta Сияло и рвалось: Se elevam e irradiam: И зелень глаз моих, и нежный голос, Meus olhos verdes, minha voz suave, И золото волос. O dourado dos meus cabelos.

И будет жизнь с ее насущным хлебом, A vida seguirá com o pão de cada dia, С забывчивостью дня. Com o esquecimento das coisas. И будет всё – как будто бы под небом Tudo seguirá – sob o céu estendido И не было меня! Como se eu nunca tivesse sido!

Изменчивой, как дети, в каждой мине, Entregue à euforia das cricanças И так не долго злой, A cólera dura pouco, Любившей час, когда дрова в камине No instante em que a lenha Становятся золой, Torna cinzas,

Виолончель, и кавалькады в чаще, Violinos e cavalgadas na floresta, И колокол в селе... O sino da aldeia... – Меня, такой живой и настоящей – Sinto-me viva e presente На ласковой земле! A colhida pela terra! – К вам всем – что мне, ни в чем не знавшей A vocês – cuja medida me é desconhecida

меры Чужие и свои?! – Estranho e nosso?! Я обращаюсь с требованьем веры Faço um apelo à exigência da fé И с просьбой о любви. E rogo com amor.

И день и ночь, и письменно и устно: Dia e noite, ditos e escritos: За правду да и нет, Pela verdade entre sim e não. Зато, что мне так часто – слишком грустно Muitas vezes sou – triste demais И только два дцатьлет, Apesar de meus vinte anos,

За то, что мне – прямая неизбежность– Meu inevitável desespero – Прощение обид, Talvez seja perdoado, За всю мою безудержную нежность, Minha ternura impetuosa, И слишком гордый вид, Parece demasiado orgulhosa, За быстроту стремительных событий, Pelo acontecer da realidade, Заправду, заигру... Pela verdade, pelo jogo... – Послушайте! – Еще меня любите – Ouça! – Me ame uma vez mais Зато, чтояумру. Para que eu possa morrer em paz. 8 декабря 1913 8 de dezembro de 1913

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ДЕКАБРЬ И ЯНВАРЬ

В декабрена заре было счастье, Длилось – миг. Настоящее, первое счастье Не из книг! В январе на заре было горе, Длилось – час. Настоящее, горькое горе В первый раз! 1913

DE DEZEMBRO À JANEIRO

Em dezembro a aurora foi feliz, Durou – instantes. Hoje, a felicidade Não está nos livros! Em janeiro a aurora foi amarga, Durou – horas. Hoje, a tristeza é amarga Pela primeira vez! 1913

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АЛЕ ÁLIA27

Ты будешь невинной, тонкой, Tu serás inocente, refinada Перелествой – и всем чужой! Encantadora – alheia a todos! Стремительной амазонкой, Uma amazona impetuosa, Пленительной госпожой, Uma senhora fascinante,

И косы свои, пожалуй, E suas tranças, talvez, Ты будешь носить, как шлем, Tu farás jovem, soberana, Ты будещь царицей бала Tu serás a rainha do baile И всех молодых поэм. E de todos os jovens poetas.

И многих пронзит, царица, Muitos, rainha, transpassarão Насмешливый твой клинок, O teu malicioso sabre И всё, что мне – только снится, Tudo que para mim – é sonho Ты будешь иметь у ног. Prostar-se-á aos teus pés.

Всё будет тебе покорно, Tudo lhes será obediente, И всё при тебе – тихи. Tudo diante de ti – silenciará. Ты будешь, как я – бесспорно – Serás como eu – incontestável – И лучше – писать стихи... A melhor – ao escrever versos...

Но будешь ли ты – кто знает? – Será que tu – quem sabe? – Смертельно виски сжимать, Também apertarás as têmporas Как их вот сейчас сжимает Como eles agora deprimem Твоя молодая мать. Tua jovem mãe. 8 июня 1914 8 de junho de 1914

27 Primeira filha de Marina Tsvetáieva (N. de T.).

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Не думаю, не жалуюсь, не спорю. Не сплю. Не рвусь ни к солнцу, ни к луне, ни к морю, Ни к кораблю.

Не чувствую, как в этих стенах жарко, Как зелено в саду. Давно желанного и жданного подарка Не жду.

Не радуют ни утро, ни трамвая Звенящий бег. Живу, не видя дня, позабывая Число и век.

На, кажется, надрезанном канате Я – маленький плясун. Я – тень от чьей-то тени. Я – лунатик Двух темных лун.

13 июля 1914

Não penso, não discuto, não lastimo. Não durmo. Não verei o sol, a lua, o mar, Nem o navio.

Não sinto estas paredes quentes, Nem o verde no jardim. O tão desejado e querido presente Não mais espero.

Não me alegram as manhã, o bonde A correr rápido. Vivo sem ver os dias, esqueço-me Da vida, das horas. Talvez, a corda se rompa Eu – pequena bailarina. Eu – sombra d’ outra sombra. Eu – luar De duas luas escuras.

13 de julho de 1914

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Мне нравтся, что вы больны не мной, Мне нравтся, что я больна не вами, Что никогда тяжелый шар земной Не уплывет под нашими ногами. Мне нравтся, что можно быть смешной – Распущенной – не играть словами, И не краснеть удушливой волной, Слегка соприкоснувшись рукавами. Мне нравтся еще, что вы при мне Спокойно обнимаете другую, Не прочите мне в адовом огне Гореть за то, что я не вас целую, Что имя нежное мое, мой нежный, не Упоминаете ни днём, ни ночью – всуе... Что никогда в церковной тишине Не пропоют над нами: аллилуйя! Спасибо вам и сердцем и руной За то, что вы меня – не зная сами! – Так любите: за мой ночной покой, За редкость встреч закатными часами, За наши не-гулянья под луной, За солнце, не у нас над головами, – За то, что вы больны – увы! – не мной За то, что я больна – увы! – не вами!

8 мая 1915

Agrada-me, não adoeces de mim, Também não adoeço de ti, O globo terrestre com seu peso Nunca afastará meu pé do teu. Agrada-me, fazer rir– Livre – brincar de palavras, Não ruborizar desde a sufocante onda, Que as mãos levemente tangem. Agrada-me, ainda estou aqui Ainda que abraces outras, Não me mandes aos infernos Para que não me beijes por fim, Que meu nome e ternura jamais Mencionem em vão – noite-dia... No silêncio da igreja Não se cantem sobre nós: aleluias! Agradeço Pois tu – mesmo que nem saibas! – Minha paz de noites prezas Nos escassos encontros no ocaso das horas Nós: não passeios ao luar Sobre nossas cabeças – só o frio sol! Tu não adoces – infelizmente! – de mim, Nem eu – infelizmente! – de ti! 8 de maio de 1915

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Два солнца стынут, – о господи, пощади! Одно – на небе, другое – в моей груди.

Как эти солнца, – прошу ли себе сама? – Как эти солнца сводили меня сума!

И оба стынут – не больно от их лучей! И то остынет первым, что горячей!

5 oктябрь1915

Dois sóis congelam, – ó senhor, piedade! – Um – no céu, outro – no meu peito

Como esses sóis – serei eu mesma? – Como esses sóis me enlouqueceram!

Ambos congelam – enfraquecidos de luz! O que esfria primeiro, é o mais quente! 5 de outubro de 1915

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Цыганская страсть разлуки! Чуть встретишь – уж рвешься прочь. Я лоб уронила в руки, И думаю, глядя в ночь: Никто, в наших письмах роясь, Не понял до глубины, Как мы вероломны, то есть – Как сами себе верны. 5 oктябрь 1915

Paixão cigana da despedida! Pouco encontras – distante. Repousei a mão na testa, Medito, ao ver a noite: Ninguém, ao ler nossas cartas Irá compreender tudo, Seremos traiçoeiros – Como nossa fé. 5 de outubro de 1915

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И как прежде они улыбались, Обожая изменчивый дым; И как прежде оне ошибались, Улыбаясь ошибкам своим; И как прежде они безустанно Отдавались нежданной волне. Но по-новому грустно и странно Вечерами молчали они.

E como antes eles sorriram, Adorando a fumaça volúvel; E como antes eles erraram, Sorrindo aos próprios erros; E como antes eles infatigáveis Se entregaram ao inesperado. Mas de maneira triste e estranha À noite acolheram-se em silêncio.

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Никто ничего не отнял – Мне сладостно, что мы врозь. Целую вас – через сотни Разъединяющих верст. Я знаю, наш дар – неравен, Мой голос впервые – тих. Что вам, молодой Державин, Мой невоспитанный стих! На страшный полет крещу вас: – Лети, молодой орел! Ты солнце стерпел, не щурясь, Юный ли взгляд мой тяжел? Нежней и бесповоротней Никто не глядел вам вслед... Целую вас – через сотни Разъединяющих лет.

12 февраля 1916

Ninguém nos levou nada – É suave nos olharmos. Beijo-te – entre as cem Vertas que nos separam. Eu conheço, a nossa – dádiva, Minha voz primeira – silêncio. Não importa ao jovem Soberano, Meu verso mal-educado! Teu terrível voo abençoo: – Voa, jovem falcão! Suporte o sol sem piscar, Junho é meu olhar pesado? Mais doce e compenetrado Ninguém jamais te olhou... Beijo-te – entre as cem Vertas que nos separam.

24 de fevereiro de 1916

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БЕССОННИЦA INSÔNIA

1 1 Обвела мне глаза кольцом Ao redor dos olhos Теневым – бессонница. Olheira – insônia. Оплела мне глаза бессонница Ao redor de meus olhos insones Теневым венцом. Negras sombras. То-то же! По ночам Isso é sempre! À noite Не молись – идолам! Sem prece – ídolos! Я твою тайну выдала, Eu traí o teu segredo Идолопоклонница. Idóltatra. Мало – тебе – дня, Curto – tu – dia, Солнечного огня! Sol da madrugada! Пару моих колец Meus pares de anéis Носи, бледноликая! Estão desbotados! Кликала – и накликала Desgraças – e desgraças Теневой венец. No fim escuro. Мало – меня – звала? Pouco – me – chamas? Мало – со мной – спала? Pouco – dormes – comigo? Ляжешь, легка лицом. Deites, com teu rosto suave. Люди поклонятся. Todos te apreciam. Буду тебе чтецом Serei teu aedo Я, бессонница: Tua insônia. – Спи, успокоена, – Durma, sossegada, Спи, удостоена, Durma mitigada, Спи, увенчана, Durma coroada, Женщина. Mulher. Чтобы – спалось – легче, Para – dormir – logo Буду – тебе – певчим: Serei – seu – cantor – Спи, подруженька Durma, amiguinha Неугомонная! Irriquieta! Спи, жемчужинка, Durma, pérola Спи, бессонная. Durma, insônia. И кому ни писали писем, A ti não escrevemos cartas, И кому с тобой ни клялись мы. A ti não fizemos juras. Спи себе. Durma. Вот и разлучены Entre encontros

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Неразлучные. Separações. Вот и выпущены из рук Desenlaço das mãos Твои рученьки. Da tua mãozinha. Вот ты и отмучилась, Cessa o sofrimento, Милая мученица. Fim do encannto. Сон – свят, Sono – santo Все – спят Sossega – acalma Венец – снят. Tudo – dorme. 8 апреля 1916 8 de abril de 1916

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2 2

Руки люблю As mãos amo Целовать, и люблю Beijar, e amo И мена раздравать Nomes compartilhar. И еще – раскрывать E ainda – escancarar Двери! As portas! – Настежь – в темную ночь! – Da noite – de par em par! Голову сжая, Apertando a cabeça, Слушать, как тяжкий шаг Escuto como o pesado passo Где-толегчает Nalgum lugar se torna suave Сонный, бессоный Sonolento, enfraquecido Лес. Na floresta. Ах, ночь! Ah, noite! Где-то бегут ключи, Nalgum lugar correm chaves Ко сну – клонут. O sono – chega. Сплю почти. Adormeço um pouco. Где-то в ночи Alhures, na noite, Челoвек тонет. Um homem se afoga. 27 мая 1916 27 de maio de 1916

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3 В огромном гороге моем – ночь. Из дома сонного иду – прочь. И люди думают: жена, дoчь, – А я запомнила одно: ночь. Июльсий ветер мне метет – руть, И где-то музыка в окне – чутью Ах, нынте ветру до зари – дуть Сквозь стенки тонкие груди – в грудью. Есть черный тополь, и в окне – свет, И звон на башне, и в руке – цвет, И шаг вот этот – никому – вслед, И тень вот эта, а меня – нет. Огни – как нити золотых бус, Ночного листика во рту – вкус. Освободите от дневных уз, Друзья, поймите, что я вам – сиюсь. 17 июля 1916 Москва

3 Em minha vasta cidade – noite. Deixo a casa e sigo – adiante As pessoas pensam: esposa, filha, – Mas eu só lembro de que é: noite. O vento de julho mostra – caminhos, Ao longe ressoa uma música – suave Ah, o vento soprará até – aurorecer Entre as finas veias – do peito. Há um negro álamo e na janela – luz, Há um som na torre e na mão – flor, Há este passo e ninguém – atrás, Há esta sombra, mas não – estou. Fogos – são como fios dourados. Da folhinha noturna na boca – o gosto. Amigos, libertem-se dos laços do dia, Lembrem-se de que nós – sonhamos. 17 de julho de 1916 Moscou

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7 Нежно-нежно, тонко-тонко Что-то свистнуло в сосне. Черноглазого ребёнка Я увидела во сне. Так у сосенки у красной Каплет жаркая смола. Так в ночи моей прекрасной Ходит по сердцу пила. 8 август 1916

7 Terno-terno, fino-fino Algo sibila no pinheiro. Um menino de olhos negros Eu vi em sonhos. A resina vermelha Goteja do pinheiro. Minha noite acolhedora Seguirá para a montanha. 8 de agosto de 1916

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8 8 Черная, как зрачок, как зрачок, сосушая Negra, como pupila, como pupila, sorvendo Свет – люблю тебя, зоркая ночть. A luz – amo-te, alta madrugada. Голосу дай мне воспеть тебя, о праматерь Dá-me voz para louvar-te, ó mãe Песен, в чьей длани узда четырех ветров. Das canções, cujo encanto o vento leva. Кличатебя, славословятебя, ятолка Ao te clamar e cantar, sou apenas Раковина, где еще не умолк океан. Uma conha, onde o oceano não cabe. Ночь! Я уже наглядедась в зрачки челавека! Noite! Cansei de olhar as pessoas! Испепели меня, черное солнце – ночь! Insinera-me, negro sol – madrugada! 9 августа 1916 9 de agosto de 1916

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10 Вот опят окно, Где опят не спят. Может – пют вино, Может – так сидят. Или проста – рук Не разнимут двое. В каждом доме, друг, Есть окно такое. Крик разлук и всртеч – Ты, окно в ночи! Может – cотни свет, Может – три свечи... Нет и нет уму Моему покоя. И в моем дому Завелось такое. Помолись, дружок, за бессонный дом, За окно с огнен! 23 декабря 1916

10 Outra janela aberta, Onde ninguém dorme. Talvez – bebam vinho, Talvez – estejam sentados. Ou simplesmente estejam Com as mãos apartadas. Em cada casa, amigo, Há uma janela assim. Gritos de encontros e separações – Tu, janela na noite! Talvez – сem velas acesas Talvez – três... Não, não há paz Pensamentos a mil. Na minha casa, Também é assim. Reza, amiguinho, pela casa acordada, Pela janela iluminada! 23 de dezembro de 1916

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11 11 Бессонница! Друг мой! Insônia! Minha amiga! Опять твою руку Outra vez na tua mão С протянутым кубком Com a taça erguida Встречаю в беззвучно – Brindamos a noite – Звенящей ночи. Em silêncio. – Прельстись! Encanta! Пригубь! Saboreie! Не в высь, Não alto! А в глубь – Mas fundo, Веду... Levarei... Губами приголубь! Com os lábios lambe! Голубка! Друг! Pombinha! Amigo! Пригубь! Saboreie! Прельстись! Encante! Испей! Bebe! От всех страстей – Em cada paixão – Устой, Firmeza, От всех вестей – Em cada instante – Покой. Certeza. – Подруга! – – Amiga – Удостой. Honra. Раздвинь уста! Abra os lábios! Всей негой уст Leve-os até a borda Резного кубка край Da taça esculpida Возьми – Pega – Втяни, Beba, Глотни: Traga: – Не будь! – Não seja! О друг! Не обессудь! Ó amigo! Não leve a mal! Прельстись! Encanta! Испей! Bebe! Из всех страстей – De todas as paixões – Страстнейшая, из всех смертей Ardor, de todas as mortes Нежнейшая... Из двух горстей Suave... Da palma de minhas Моих – прельстись! – испей! Mãos – encanta! – bebe! Мир без вести пропал. В нигде – A paz se perdeu. Nalgum lugar – Затопленные берега... Margens trasnbordam... Пей, ласточка моя! На дне Bebe, pombinha! No fundo Растопленные жемчуга... Tem pérolas... Ты море пьешь, Tu bebes o mar Ты зори пьешь. Tu bebes a aurora. С каким любовником кутеж Com qual amante se deitará? С моим Com meu

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– Дитя – – Filho – Сравним? Será? А если спросят (научу!), Se me perguntarem (ensinarei!) Что, дескать, щечки не свежи, – Diz o ditado, estou um caco – С Бессонницей кучу, скажи, Com a insônia, sigo, diga, С Бессонницей кучу... Com a insônia sigo... Май 1921 Maio de 1921

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Стихи растут, как звезды и как розы, Как красота – ненужная в семье. А на венцы и на апофеозы – Один ответ: Откуда мне сие?

Мы спим – и вот, сквозь каменные плиты, Небесный гость в четыре лепестка. О мир, пойми! Певцом – во сне – открыты Закон звезды и формула цветка.

14 августа 1918

Versos surgem como rosas e estrelas, Como beleza – desnecessária na família. Sobre o coroamento e a divinização – Uma resposta: de que isto me serve?

Nós dormimos – entre as pedras do fogão, O hóspede celestial em quatro pétalas. Ó mundo, compreenda! – Cante – sonhe – desvele A lei das estrelas e o segredo das flores.

14 de agosto de 1918

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СТИХИКБЛОКУ VERSOS A BLOCK

1 1 Имия твое – птца в руке, Teu nome – pássaro na mão, Имия твое – льдинка на языке. Teu nome – pedra na língua. Одно-единственное движенье губ. Único movimento nos lábios. Имия твое – пять букв. Teu nome – cinco letras. Мячик, пойманный на лету, Bola lançada no estio, Серебяный бубенец во рту. Guizo prateado na boca. Камень, кинутый в тихий пруд, Uma pedra, esquecida num balneário, Всхлипнет так, как тебя зовут. Silenciosa, soluça como teu nome. В легком щелканье ночных копыт Na leveza da noite, um estalido Громкое имя твое гремит. Faz teu nome ressoar alto. И назовет его нам в висок Harmonicamente escorre, Звонкo щелкающий курок. O som destina-se para nós. Имия твое – ах, нельзя! – Teu nome – ah, não posso! Имия твое – поцелйвглаза, Teu nome – beijo nos olhos, В нежную стужу недвижных век. No frio terno a idade inerte Имия твое – поцелй в снег. Teu nome – beijo na neve. Ключевой, ледяной, голубой глоток. Um gole na fonte fria e azul С именен твоим – сон глубок. Em teu nome – sono profundo 15 апреля 1916 15 de abril de 1916

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4 Зверю – берлога, Страннику – дорога, Мертвому – дроги. Каждому – свое. Женщине – лукавить, Царю – править, Мне – славить Имя твое. 2 мая 1916

4 À fera – toca Ao estrangeiro – caminho Ao morto – cortejo Para cada um – o próprio. À mulher – maliciar, Ao rei – governar, Para mim – doçura Teu nome. 2 de maio de 1918

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У меня в Москве – купола горят, У меня в Москве – колокола звонят, И гробницы в ряд у меня стоят, – В них царицы спят и цари. И не знаешь ты, что зарей в Кремле Легче дышится – чем на всей земле! И не знаешь ты, что зарей в Кремле Я молюсь тебе – до зари! И проходишь ты над своей Невой О ту пору, как. над рекой-Москвой Я стою с опущенной головой, И слипаются фонари. Всей бессонницей я тебя люблю, Всей бессонницей я тебе внемлю – О ту пору, как по всему Кремлю Просыпаются звонари. Но моя река – да с твоей рекой, Но моя рука – да с твоей рукой Не сойдутся, Радость моя, доколь Недогонитзаря – зари. 7 мая 1916

5 Moscou tem – da cúpula o abrasar, Moscou tem – dos sinos o dobrar, E muitos túmulos espalhados Onde reis e rainhas dormem. O amanhecer no Kremlim Tem o melhor ar – da terra! O entardecer no Kremlim Me faz pensar em ti – até alvorecer! Se você passar pelo Nevá Como faz sob o rio Moscou Manterei a cabeça baixa, Iluminando a fonte. Amo-te insônia, Ouço-te insônia – Além tempo, Kremelim Fazendo ressoar os sinos. Do meu rio – até o teu, Da minha mão – até a tua Não me deixe, Felicidade minha, Não mate a alvorada – madrugada. 7 de maio de 1916

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АХМАТОВОЙ 1

О, Муза плача, прекраснейшая из муз! О ты, шальное исчадие ночи белой! Ты черную насылаешь метель на Русь, И вопли твои вонзаются в нас, как стрелы. И мы шарахаемся и глухое: ох! – Стотысячное – тебе присягает: Анна Ахматова! Это имя – огромный вздох, И в глубь он падает, которая безымянна. Мы коронованы тем, что одну с тобой Мы землю топчем, что небо над нами-то же! И тот, кто ранен смертельной твоей судьбой, Уже бессмертным на смертное сходит ложе. В певучем граде моем купола горят, И Спаса светлого славит слепец бродячий... И я дарю тебе свой колокольный град, – Ахматова! – и сердце свое в придачу. 19 июня 1916

À À AKHMÁTOVA

1 Chora, ó Musa, a mais bela de todas! Em ti, delírio de noites brancas! Tu enviaste escuridão à Rússia, Teu lamento crava como flechas. Surdos nós recuamos: oh! – Milhares – te veneram: Anna Akhmátova! Nome – colossal, Plenitude inominável. Nós fomos coroados ao teu lado Nossa terra está além dos céus! Quem feriu teu destino mortal, Tornou-a imortal ante a morte. Minha cúpula arde no cantar da cidade, Senhor dê luz e glória ao cego erradio... – Eu entrego a ti o badalar dos sinos, Akhmátova! – e meu próprio coração. 19 de junho de 1916

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Ден ьидет. O dia segue Гасит огни. O fogo consuma. Где - то взревел за рекою гудок фабричный. Nalgum lugar o apito da fábrica brame. Первый Primeiro Колоколбьет. O sino soa. Ох! Oh! Бог, прости меня за него, за нее, Senhor, perdoe-me por ele, por ela, за всех! por todos! 8 анвар 1917 8 de janeiro de 1917

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Август – астры, Август – звезды, Август – грозди Винограда и рябины Ржавой – август! Полновесным, благосклонным Яблоком своим имперским, Как дитя, играешь, август. Как ладонью, гладишь сердце Именем своим имперским: Август! – Сердце! Месяц поздних поцелуев, Поздних роз и молний поздних! Ливней звездных – Август! – Месяц Ливней звездных! 7 февруару 1917

Agosto – astros, Agosto – estrelas, Agosto – cachos Amassados da videira Triste – agosto! Ponderável, afável Qual maçã imperial Brincas feito criança. Acaricia o coração Tens nome colossal: Agosto! – Coração! Mês dos últimos beijos, Últimos raios e rosas! Dilúvio de estrelas – Agosto! – Coração! Dilúvio de estrelas!

7 de fevereiro de 1917

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В лоб целовать – заботу стереть. В лоб целую. В глаза целовать – бессонницу снять. В глаза целую. В губы целовать – водой напоить. В губы целую. В лоб целовать – память стереть. Влобцелую. 5 июня 1917

Beijar na testa – apagar o cuidado. Na testa beijo.

Beijar nos olhos – retirar a insônia. Nos olhos beijo. Beijar nos lábios – mitigar a sede. Nos lábios beijo. Beijar na testa – apagar a memória. Na testa beijo. 5 de julho de 1917

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РУАН JUAN28

И я вошла, и я сказала: – Здравствуй! Eu saí de casa e disse: – Olá! Пора, король, во Францию, домой! Há tempos, o rei da França está morto! И я опять веду тебя на царство, Mais uma vez conheço teu reino, И ты опять обманешь, Карл Седьмой! Mais uma vez te enganas, Carlos Sétimo!

Не ждите, принц, скупой и невеселый, Não esperes príncipe triste e avaro, Бескровный принц, не распрямивший плеч, Sem sangue, de ombros curvados, Чтоб Иоанна разлюбила – голос, Que Joana deixou de amar – a voz, Чтоб Иоанна разлюбила – меч. Que Joana deixou de amar – a espada.

И был Руан, в Руане – Старый рынок... E esteve em Juan – Na antiga feira... – Все будет вновь: последний взор коня, – Tudo permanecerá: o olhar do cavalo, И первый треск невинных хворостинок, O primeiro estalido do graveto, И первый всплеск соснового огня. O primeiro estampido do fogo.

А за плечом – товарищ мой крылатый Nos ouvidos – o companheiro alado Опять шепнет: – Терпение, сестра! De novo sussurra: – Acalma-te, irmã! Когда сверкнут серебряные латы Quando a armadura é de prata Сосновой кровью моего костра. O sangue goteja em meus ossos. 4 декабря 1917 4 de dezembro de 1917

28 Cidade localizada na França (N. de T.).

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Это просто, как кровь и пот:

Царь – народу, царю – народ.

Это ясно, как тайна двух: Двое рядом, а третий – Дух. Царь с небес на престол взведен: Это чисто, как снег и сон. Царь опять на престол взойдет – Это свято, как кровь и пот. 7 мая 1918, 3-ий день Пасхи (а оставалось ему жить меньше трех месяцев!)

É simples como sangue e suor: O rei – o povo, o rei – o povo. É claro como dois mistérios: Dois lados, e um terceiro – o Espírito. O rei dos céus do trono observa: Está limpo como a neve e o sono. O rei se eleva na poltrona – É santo como suor e sangue. 7 de maio de 1918, 3 dias após a Páscoa (Mas permitiu que ele vivesse por mais três meses!)

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В черном небе – слова начертаны – И ослерли глаза прекpасные... И не страшно нам ложе смертное. И не сладка нам ложе страстное. В поте – пишущий, в поте – пашущмй! Нам знакомо иное рвение: Леркий огнь, над кудрями пляшущий, Дуновение–вдорновения! 14 мая 1918

No céu negro – palavras riscadas – Os belos olhos ficaram cegos... Não é estranho nosso leito mortal. Não é doce nosso leito nupcial. No suor – escrevem, no suor – lavram! Nós conhecemos outras possibilidades: Fogo suave, bailando sobre os cabelos, É sopro – inspiração!

14 de maio de 1918

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Полюбил богатый – бедную, Полюбил ученый – глупую, Полюбил румяный – бледную, Полюбил хороший – вредную: Золотой –полушку медную. – Где, купец, твое роскошество? «Во дырявом во лукошечке!» – Где, гордец, твои учености? «Под подушкой у девчоночки!» – Где, красавец, щеки алые? «За ночь черную – растаяли». – Крест серебряный с цепочкою? «У девчонки под сапожками!» _________ Не люби, богатый, – бедную, Не люби, ученый, – глупую, Не люби, румяный, – бледную, Не люби, хороший, – вредную. Золотой – полушку медную! Между 21 и 26 мая 1918

Amou ao rico – o pobre, Amou ao sábio – o tolo, Amou ao corado – o pálido Amou ao bom – o mau: Ouro – tostão de cobre. – Onde, mercador, está teu luxo? “Está no cesto mais furado!” – Onde, soberbo, está teu saber? “Sob o travesseiro da menininha!” – Onde, beleza, está o rosto ruborizado? “Pela noite escura – esvaiu-se”. – E a cruz prateada na corrente? “Sob as botas da menininha!” ___________ Não ames, ao rico, – o pobre, Não ames, ao sábio, – o tolo, Não ames, ao vermelho, – o branco Não ames, ao bom, – o mal. Ouro – tostão de cobre! Entre 21 e 26 de maio de 1918

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Как правая и левая рука – Твоя душа моей душе близка. Мы смежены, блаженно и тело Как правое и левое крыло. Но вихрь встает – и бездна пролегла От прaвого – до левого крила! 10 иоля 1918

Como a mão direita e esquerda – Nossas almas estão próximas. Juntos na beatitude que abrasa Como a direita e esquerda asa. Se o turbilhão levanta – atravessamos Da asa direita – à esquerda asa! 10 de julho de 1918

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Благословляю ежедневный труд, Благословляю еженощный сон. Господню милость и Господень суд, Благой закон – и каменный закон. И пыльный пурпур свой, где столько дыр, И пыльный посох свой, где все лучи... – Еще, Господь, благословляю мир В чужом дому – и хлеб в чужой печи.

21 мая 1918

Bendigo o trabalho de cada dia. Bendigo a noite de cada sono. Ao divino juízo e à Piedade divina, À lei benévola – de bronze. À minha púrpura poeirenta, onde trapos, À minha bengala poeirenta, onde raios... – Senhor, abençõe ao pão Alheio – a paz no mundo.

21 de maio de 1918

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Белье на речке полощу, Два цветика своих ращу. Ударит колокол – крещусь, Посадят голодом – пощусь. Душа и волосы – как шелк. Дороже жизни – добрый толк. Я свято соблюдаю долг. – Но я люблю вас – вор и волк! Между 26 маяи 4 июня 1918

A roupa branca eu lavo no rio, De duas florzinhas cuido. O sino toca – me persigno, Na época do jejum – me afino. Alma e cabelo – como seda. Mais caro da vida – bom senso. Eu cumpro a santa obrigação. – Eu te amo – lobo e ladrão! Entre 26 de maio e 4 de junho de 1918

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Я – есмь. Ты – будешь. Между нами – бездна. Я пью. Ты жаждешь. Сговориться – тщетно. Нас десять лет, нас сто тысячелетий Разъединяют – Бог мостов не строит. Будь! – это заповедь моя. Дай – миио Пройти, дыханьем не нарушив роста. Я – есмь. Ты будешь. Через десять весен

Ты скажешь: – есмь! – а я скажу: – когда-то... 6 июня 1918

Eu – sou. Tu – serás. Entre nós – abismo.

Eu bebo. Tens sede. Concluir – inútil. Estamos por dez, por cem mil anos Separados. – Deus não faz pontes.

Seja! – É meu mandamento. Quero – passar Sem ser notada, respirar sem arquejar. Eu – sou. Tu serás. Em dez primaveras Tu dirás: – sou! – eu direi: – algum dia...

6 de junho de 1918

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Каждьй стих – дтия любви, Нищтй незаконнорожденый, Первенец – у колеи На поклон ветрам – положенный.

Сердцу – ад и алтарь, Сердцу – рай и позор. Кто – отец? Может – царь, Может – царь, – может – вор.

14 августа 1918

Cada verso – filho do amor, Indigente e bastardo, Primogênito – abençoado À mercê dos ventos – situado.

Аo coração – inferno e adoração, Аo coração – paraíso e mácula. O pai – quem? Talvez – tsar, Talvez – tsar, – talvez – ladrão.

14 de agosto de 1918

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Стихи растут, как звезды и как розы, Versos surgem como estrelas e rosas, Как красота – ненужная в семье. Como a beleza – desenecessária. А на венцы и на апофеозы – Sobre o coroamento e a sacralização – Один ответ: Откуда мне сие? Uma pergunta: De que isto me serve: Мы спим – и вот, сквозь каменные плиты, Adormecemos – entre as pedras do fogão, Небесный гость в четыре лепестка. O hóspede celestial repousa. О мир, пойми! Певцом – во сне – открыты Ó mundo, compreenda! – Cante – sonhe – vele Закон звезды и формула цветка. O segredo das flores e a lei das estrelas. 14 августа 1918 18 de agosto de 1918

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Кто дома не строила – Земли недостоин. Кто дома не строила – Не будет землею: Соломой – золою... – Не строила дома. 26 августа 1918

Quem não construiu casa– De terra é indigno. Quem não construiu casa – Não poderá ser terra: Cinza – palha...

– Não construí casa.

26 de agosto de 1918

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O другим не нужно – нестите мне! Всё должно сгореть на моём огне! Я и жизнь маню, я и смерть маню В леркий дар моему огню.

Пламень любит – легкие вещество: Прошлогодний хворост – венки – слова. – Пламень – пышет с подобной пищу! Вы ж востанете – пепла чище!

Пица-Феникс – я только в огне пою! Под держите высокую жизнь мою! Высоко горю – горю дотла! И да будет вам ночь – светла!

Ледяной костер, огневой фонтам! Высоко несу свой высоктй стан! Высоко несу свой высоктй сан – Собеседницы и Наследницы!

2 cентябрь 1918

O desprezível – traga para mim! Tudo se consumirá no meu fogo! Atraio a vida, atraio a morte Com meu divino fogo.

A chama gosta de – substâncias leves: Velhos gravetos – grinaldas – palavras. – A chama – aprecia estes alimentos! Levante-se – mais puro que a cinza!

Ave-Fênix – só no fogo eu canto! Façam minha vida arder alto! Queimarei alto – queimarei até o fim! Para que a sua noite tenha – clarim!

Fogueira fria, fonte quente! Ergo meu talhe elevado! Ergo meu génos elevado – De Herdeira e Mensageira!

2 de setembro de 1918

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ПСИХЕЯ

Не самозванка – я пришила домой И не служанка – мне не надо хлеба. Я страсть твоя, воскресеньый отдых твой, Твой день седьмой, твое седьмой небою

Там, на земле, мне подавали грош И жерновов навешали на шею. Возлюбленный! Ужель не знает? Я ласточка твоя – Психея! 1918

PSIKHÉ

Não sou impostora – voltei a casa Não sou criada – não preciso de pão. Sou teu ócio de domingo, tua paixão, Teu sétimo dia, teu sétimo céu.

Na terra me ofereceram misérias, Colocaram pedras no meu colo. – Querido! Não me reconhece? Eu sou tua andorinha – Psikhé!

1918

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Любовь! Любовь! Куда ушла ты? – Оставила свой дом богатый, Надела воинские латы.

– Я стала Голосом и Гневом, Я стала Орлеанской Девой.

10 октября 1918

Amor! Amor! Para onde foi? – Deixei sua casa luxuosa, Destruí a armadura militar.

– Eu me tornei Voz e Raiva, Fiz-me Virgem de Orleans.

10 de outubr ode 1918

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Осень. Деревья в аллее – как воины. Каждое дерево пахнет по – своему. ВойскоГосподне.

14 октября 1918

Outono. Árvores no vale – guerreiros. Cada árvore tem um cheiro – próprio. Senhor da guerra.

14 de outubro de 1918

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Благодарю, о Господь, За Океан и за Сушу, И за прелестную плоть, И за бессмертную душу, И за горячую кровь, И за холодную воду. – Благодарю за любовь. Благодарю за погоду.

9 ноября 1918

Agradeço, ó Senhor Por Oceano e Terra Pela beleza carnal Pela alma imortal,

Pelo sangue quente, Pelo frio da água. – Agradeço ao amor. Agradeço ao tempo.

9 de novembro de 1918

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КОМЕДЬЯНТ

Ваш нежный рот – сплошное целованье... – И это всё, и я совсем как нищий. Кто я теперь? – Единая? – нет, тыша! Завосватель? – Нет, завоеванье! Любовь ли это – или любованье, Пера причуда – иль первопричина, Томленье ли по ангельскому чину – Иль чуиочку притворства – по призванью... – Души печал, очей очарованье, Пера ли росчерк – ах! – не всё равно ли, Как назовут сие уста – доколе Ваш нежный рот – сплошное целованье! Конец ноября 1918

COMEDIANTE

Tua boca fresca – um beijo contínuo... – Isso é tudo, sou como mendigo. Quem sou? – Uma? – Não, milhares! O conquistar? – Não, a conquista! Amor é isso – ou admiração, Plumacaprichosa – primeira fantasia, Será angústia por não ser anjo – Ou certo fingimento – por vocação... – Alma entristecida, olhos fascinados, Será rubrica da pena – ah! – tanto faz, Como se chamam seus lábios – enquanto Tua boca fresca – um beijo contínuo! Fim de novembro de 1918

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– Марина! Спасибо за мир! Дочернее странное слово. И вот – расступился эфир Над женщиной светлоголовой. Но рот напряжен и суров. Умру, – а восторга не выдам! Так с неба Господь Саваоф Внимал молодому Давиду. Cтрастной понедельник 1918

– Marina! Obrigado pelo mundo!

Filha mais estranha da palavra. Agora – o éter se esvai Da mulher iluminada. Os lábios permanecem contraídos. Morrerei, – sem nenhum prazer! Como o Senhor dos Exércitos Lembrou ao jovem Davi.

Estranha segunda-feira de 1918

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Стихи растут, как звезды и как розы, Versos surgem como estrelas e rosas, Как красота – ненужная в семье. Como a beleza – desenecessária. А на венцы и на апофеозы – Sobre o coroamento e a sacralização – Один ответ: Откуда мне сие? Uma pergunta: De que isto me serve: Мы спим – и вот, сквозь каменные плиты, Dormimos – entre as pedras do fogão, Небесный гость в четыре лепестка. Repousa o hóspede celestial com quatro pétalas. О мир, пойми! Певцом – во сне – открыты Ó mundo, compreenda! – Cante – sonhe – desvele Закон звезды и формула цветка. A lei das estrelas e o segredo das flores. 14 августа 1918 18 de agosto de 1918

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Если душа родилась крылатой – Что ей хоромы – и что ей хаты! Что Чингис – Хан ей и что – Орда! Два на миру у меня врага, Два близнеца, неразрывно – слитых: Голод голодных – и сытость сытых!

18 августа 1918

Se a alma nasceu alada – Para que cabanas – paços! Quem é Gensis Khan – e sua – Orda! Tenho dois inimigos no mundo, Dois irmãos, gêmeos – amarrados: A riqueza dos ricos – a fome dos famintos!

18 de agosto de 1918

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АЛЕ

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Незнаю – гдетыигдея. Тежпесиитежезаботы. Такиестобою друзья! Такие с тобою сироты! И так хорошо нам вдвоем – Бездомным, бессонным и сирым... Две птицы: чкть встали – поем, Две сраницы: кормимся миром.

ÁLIA

1

Não sei – onde estamos. As mesmas aflições e canções. Esses amigos contigo! Esses órfãos contigo! Assim estamos juntas: Sem casa, insones e desamparadas... Dois pássaros: breve voo – nós cantamos, Duas páginas: a alimentar-se do mundo.

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2 И бродин с тобой по церкам Великим – и малым, приходским. И бродим с тобой по домам Убогим – и знатным, господским.

Когда-то сказала: – Купи! – Сверкнув на кремлевские башни. Кремль – твой от рождения. – Спи, Мой первенец светльй истрашный.

2 Perambulo contigo pelas igrejas As grandes – pequenas, paróquias. Perambulo contigo pelas casas As miseráveis – ricas, aristocráticas.

Outrora eu disse: – Compre! Fitando as torres do Kremlin. Kremlin – do teu nascimento. – Durma, Minha primogênita terrível e brilhante.

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3 И как под землею трава Дружится с рудою железной, – Всё видят пресветлые два Провала в небесную бездну. – Сивилла! – Зачем моему Ребенку – такая судьбина? Ведь русская доля – ему... И век ей: Россия, рябина...

24 августа 1918

3

Como grama sobre a terra Amizade sólida é de ferro, – Todos assistem pender duas Órbitas no abismo celestial. – Sibila! – Por que meu Filho – esse destino? O quinhão russo – ele... Seu século: Rússia, abismo...

24 de agosto de 1918.

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Я сказала, а другой услышал И шепнул другому, третий – понял, А четвертый, взяв дубовый посох, В ночь ушел – на подвиг. Мир об этом Песнь сложил, и с этой самой песней На устах – о жизнь! – встречаю смерть. 6 июля 1918

Eu disse, mas alguém escutou E repassou ao tereceiro – que entendeu, O quarto, com uma vara de carvalho, Saiu na noite – está consumado. A canção Do mundo é simples, é a mesma canção Nos lábios – ó vida! – encontrarei a morte. 6 de julho de 1918

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Развела тебе в стакане Горстку жженых волос. Чтоб не елось, чтоб не пелось, Не пилось, не спалось.

Чтобы младость – не в радость, Чтобы сахар – не в сладость, Чтоб не ладил в тьме ночной С молодой женой.

Как власы мои златые Стали серой золой, Так года твои младые Станут белой зимой.

Чтоб ослеп – оглох, Чтоб иссох, как мох, Чтоб ушел, как вздох. 9 ноября 1918

A ti dissolvi num copo Punhado de cabelo queimado. Para que não comas, não cantes, Não bebas, não durmas. Para que o viço – perca o ardor, Para que o doce – perca o dulçor, Para que não sintas à noite fulgor Com tua jovem esposa. Como meus cabelos dourados Ficaram amarelos e opacos, Assim teus anos de juventude Tornar-se-ão brancos no inverno. Para que cegues – surdo Para que seques, como musgo Para que saias, como um suspiro. 9 de novembro de 1918

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Я счастлива жить образцово и просто: Sou feliz por viver simples e exemplar: Как солнце – как маятник – как календарь. Como o sol – o pêndulo – o calendário. Быть светской пустынницей стройного роста, Sou eremita de porte alinhado, Премудрой – как всякая божия тварь. Sábia – como a criação divina.

Знать: Дух – мой сподвижник и Дух Saiba: o Espírito – meu companheiro, o Espírito

– мой вожатый! – meu conselheiro! Входить без доклада, как луч и как взгляд. Entro sem anunciar, como um raio e um olhar. Жить так, как пишу: образцово и сжато, – Vivo como escrevo: sucinta e exemplar – Как бог повелел и друзья не велят. Como deus ordena e os amigos condenam.

22 ноябрь 1918 22 de novembro de 1918

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Маска – музыка... А третье Что любимое? – Не скажет. И я тоже не скажу. Только знаю, только знаю – Шалой головой ручаюсь! – Что не мать – и не жена. Только знаю, только знаю, Что как музыка и маска, Как Москва – маяк – магнит – Как метель – и как мазурка Начинается на М. – Море или мандарины? Москва, октябрь 1919

Máscara – música... E terço Qual preferir? – Não diga. Eu também não direi. Apenas sei, apenas sei

– A cabeça ensandecida responde! – Que não sou mãe – nem esposa. Apenas sei, apenas sei, Que música e máscara, Que Moscou – marca – magnético Que molhado – e mazurca Começam com M.

– Mar ou mandarim?

Moscou, outubro de 1919

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Между воскресеньем и субботой Я повисла, птица вербная. На одно крыло – серебряная, На другое – золотая.

Меж Забавой и Заботой Пополам расколота, – Серебро мое – суббота! Воскресенье – золото!

Коли грусть пошла по жилушкам, Не по нраву – корочка, – Знать, из правого я крылушка Обронила перышко.

А коль кровь опять проснулася, Подступила к щеченькам, – Значит, к миру обернулася Я бочком золотеньким.

Наслаждайтесь! – Скоро – скоро Канет в страны дальние – Ваша птица разноперая – Вербная – сусальная. 29 декабря 1919

Entre sábado e domingo Peguei um pássaro alado. Uma asa era – prata A outra – dourada.

Entre festas e tristezas Sigo só e alquebrada Meu sábado – dourado! Domingo – prateado!

Se a dor chega ao peito Não faço – rodeios, – Debaixo da tua asa Encontro abrigo.

Se o sangue escorre Aproximo devagar Dou às costas ao mundo Sorrateira e dourada. Divirta-se! – Muito – Muito Naufrague num país longe – Pássaro livre e sorrateiro – Domingo de ramos – alado.

29 de dezembro de 1919

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Набренностьбеднуюмою Взираешь, слов не расточая. Ты – каменный, а я пою, Ты – памятник, а я летаю.

Я знаю, что нежнейший май Пред оком Вечности – ничтожен. Но птица я – и не пеняй, Что легкий мне закон положен.

16 мая 1920

Para minha pobre fragilidade Olhas sem dissolver palavras. És – pedra, mas eu canto, És – estátua, voo levanto.

Eu sei, o mais terno maio Diante do Eterno – nada. Sou pássaro – não reclame, Se em mim pousou lei mais leve.

16 de maio de 1920

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Одна половинка окна растворилась. Одна половинка души показалась. Давай-ка откроем – и ту половинку, И ту половинку окна! май 1920

Metade da janela desapareceu. Metade do espírito mostrou-se. Vamos abrir – a outra metade, Da janela. maio 1920

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Не хочу ни любви, ни почестей: – Опьянительны. – Не падка! Даже яблочка мне не хочется – Соблазнительного – с лотка... Что-то цепью за мной волочится, Скоро громом начнет греметь. – Как мне хочется, Как мне хочется – Потихонечку умереть! июль 1920

Não quero honras nem amor: – Embriaguez. – Não quero! Também não quero a maçã – Na bandeja – do sedutor... Algo se arrasta atrás de mim, Tão logo o trovão troará. – O que eu desejo, O que eu desejo – É morrer em silêncio!

Julho de 1920

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СТИХИ К СОНЕЧКЕ

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Словное теплая слеза – Каплая капнула в глаза. Там в небсной вышине, Кто-то плачает обо мне. Июнь, 1920

VERSOS A SÔNIA

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Como lágrima quente – Uma gota dos olhos cai. Duma altura sem fim, Alguém chora por mim.

Junho, 1920

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Вчера еще в глаза глядел, Ontem teu olhar no meu А нынче – всё косится в сторону! Hoje – me olhas de lado! – Вчера еще до птиц сидел, – Ontem pássaros a cantar, – Все жаворонки нынче – вороны! Hoje cotovias são – corvos. Я глупая, а ты умен, Sou estúpida e pasma, Живой, а я остолбенелая. Você tão sábio e vivo. О вопль женщин всех времен: Ó clamor das mulheres: "Мой милый, что тебе я сделала?!" “Querido, o que eu te fiz?” И слезы ей – вода, и кровь – Para ela lágrima – água, sangue – Вода, – в крови, в слезах умылася! Água, – no sangue, no choro se farta! Не мать, а мачеха – Любовь: Não é pai, mas padrasto – Amor: Не ждите ни суда, ни милости. Não espere justiça nem piedade. Увозят милых корабли, Barcos levam os amados... Уводит их дорога белая... Afasta-os o branco caminho... И стон стоит вдоль всей земли: Fica o clamor por toda terra: "Мой милый, что тебе я сделала?" “Querido, o que eu te fiz?” Вчера еще – в ногах лежал! Ontem – prostrado aos meus pés! Равнял с Китайскою державою! Igualava-me ao império chinês! Враз обе рученьки разжал, – De repente, as mãos vazias Жизнь выпала – копейкой ржавою! A vida tira – sobra centavo! Детоубийцей на суду Por infanticídio sou julgada Стою – немилая, несмелая. Estou – indecisa, sem amparo Я и в аду тебе скажу: No inferno, digo-te: "Мой милый, что тебе я сделала?" “Querido, o que eu te fiz?” Спрошу я стул, спрошу кровать: Pergunto à mesa, ao leito "За что, за что терплю и бедствую?" “É por isto que sofro e me desgraço?” "Отцеловал – колесовать: “Em cada beijo – uma súplica: Другую целовать", – ответствуют. Beije outro”– respondem. Жить приучил в самом огне, Fui criada no fogo da vida Сам бросил – в степь заледенелую! Na estepe gelada – me lançaste Вот что ты, милый, сделал мне! É o que tu amado me fizeste Мой милый, что тебе – я сделала? Meu querido o que eu te fiz? Всё ведаю – не прекословь! Eu sei – não me contradigas! Вновь зрячая – уж не любовница! Percebo – já não és mais ardente! Где отступается Любовь, De onde Amor se retira Там подступает Смерть – садовница. Chega Morte – calmamente. Само – что дерево трясти! – É o mesmo – que sacudir! – В срок яблоко спадает спелое... A maçã cai na hora certa... –За всё, за всё меня прости, – Por tudo, por tudo me perdoa Мой милый, – что тебе я сделала! Meu querido, – o que eu fiz! 14 июня 1920 14 de junho de 1920

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Гордость и робость – рoдные сестры, Над колыбелью, дружные, встали. «Лоб запрокинув!» – гордость велела. «Очи потупив!» – робость шепнула. Так прохожу я – очи потупив – Лоб запрокинув – Гордость и Робость. 20 сентября 1921

Orgulho e timidez – primo-irmãos, No berço se tornaram amigos. “Erga o rosto!” – orgulhoordenou. “Abaixa os olhos!” – timidez segredou. Assim eu sigo – baixando os olhos – Com o rosto erguido – Orgulho e Timidez. 20 de setembro de 1921

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МАЯКОВСКОМУ Превыше крестов и труб, Крещенный в огне и дыме, Архангел-тяжелоступ – Здорово, в веках Владимир! Он возчик, и он же конь, Он прихоть, и он же право. Вздохнул, поплевал в ладонь: – Держись, ломовая слава! Певец площадных чудес – Здорово, гордец чумазый, Что камнем – тяжеловес Избрал, не прельстясь алмазом. Здорово, булыжный гром! Зевнул, козырнул – и снова Оглоблей гребет – крылом Архангела ломового. 16 сентября 1921

MAIAKÓVSKI Além das cruzes e torres Batizado com fogo e fumaça Arcanjo-sólido, passo firme – Salve, pelos séculos Vladímir! Ele é cavaleiro e hostil É capricho e verdade. Toma fôlego, cospe na mão: – Resiste, rejeita a glória! Canta os milagres nas praças – Salve, herói orgulhoso, Lança a pedra – mais bruta Não lhe seduz o diamante. Salve, trovão de pedras! Boceja, saúda – novamente Rejeita a glória – a asa Quebrada dos anjos. 16 de setembro de 1921

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ХВАЛА АФРОДИТЕ

1

Блаженны дочерей твоих, Земля, Бросавше для боя и для бега. Блаженны – в Елисейские поля Вступившие, не обольтившись негой.

Там, лавр растет, жестоколист и трев – Лавр-летописец, горячитель боя... – Содружества заоблачный ствес Не променяю на юдоль любови.

17 oктября 1921

ELOGIO À AFRODITE

1

Bem-aventurados são teus filhos, Terra, Que se lançam na luta e corrida. Bem-aventurados – nos campos Elíseos Os que se erguem, sem o encanto dos deleites.

Lá o loureiro cresce rígido e sóbrio, – O loureiro-observador, aquece a batalha... – Unidos além das nuvens o prumo Nunca trocarei nos vales do amor.

17 de outubro de 1921

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2 Уже богов – не те уже щедроты На берегах – не той уже реки. В широке закатные ворота, Венерины, летите, толубки! Я ж, на песках похолодевшмх лежа, В день отойду, в котором нет числа... Как змей на старую взирает кожу – Я молодость свою переросла. 17 oктября 1921

2 Os deuses – não são tão generosos Às margens – aqueles rios são outros. No vasto portão do ocaso, De Vênus, voam pássaros! E eu, deitada em areias já frias, Afasto-me do dia, onde não há tempo... Como serpente a olhar a pele encanecida – Sou uma jovem além da minha época. 17 de outubro de 1921

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На заре – наимедленнейшая кровь, На заре – наиявственнейшая тишь. Дух от плоти косной берет развод, Птица клетке костной дает развод. Око зрит – невидимейшую даль, Сердце зрит – невидимейшую связь. Ухо пьет – неслыханнейшую молвь. Над разбитым Игорем плачет Див.. 18 февраля 1922

Na alvorada – o sangue corre mais lento, Na alvorada – o silêncio é mais distinto. O espírito deixa a carne inerte, O pássaro se aparta da gaiola. O olho vê – o mais invisível longe, O coração vê – o mais invisível laço. O ouvido bebe – a mais inaudível voz. Sobre os pedaços de Igor chora Divi...

18 de fevereiro de 1922

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Золото моих волос Тихо переходит в седость. – Не жалейте! Все сбылось, Все в груди слилось и спелось. Спелось – как вся даль слилась В стонущей трубе окрайны. Господи! Душа сбылась: Умысел твой самый тайный. cентябрь 1922 г.

Meus cabelos dourados Em silêncio branquiaram – Não lamento! É o destino, Tudo veio junto ao peito. A maturidade – dá sabedoria Sobretudo no extremo da dor. Senhor!A alma se recolheu: Esvaneceu no teu segredo. setembro de 1922

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ПОЭТ POETA

3 3

Что же мне делать, слепцу и пасынку, Que vou fazer cego e enteado, В мире, где каждый и отч и зряч, Num mundo onde todos tem pai e vista, Где по анафемам, как по насыпям – Onde entre anátemas e temores, Страсти! где насморком Há paixões! Onde a coriza Назван – плач! Chama-se – lágrima?

Что же мне делать, ребром и промыслом Que vou fazer com o osso e ofício Певчей! – как провод! загар! Сибирь! De cantora! – despedida! partida! Sibéria! По наважденьям своим – как пo мосту! Entre meus delíros – como sob a ponte! С их невесомостью Neste imponderável В мире гирь. Mundo de pesos.

Что же мне делать, певцу и первенцу, Que vou fazer cantor e primogênito, В мире, где наичернейший – сер! Num mundo onde o mais preto – é cinza? Где вдохновенье хранят, как в термосе! Onde a criação é posta de lado! С этой безмерностью Neste imponderável В мире мер?! Mundo de medidas?! 22 апреля 1923 22 de abril de 1923

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ДИАЛОГ ГАМЛЕТА С СОВЕСТЬЮ DIÁLOGO DE HAMELET COM A CONSCIÊNCIA

– На дне она, где ил – No fundo ela, onde lodo И водоросли… Спать в них E algas.... Ela foi dormir Ушла, – но сна и там нет! Lá – não se dorme! – Но я ее любил, – Mas eu amei-a, Как сорок тысяч братьев Como quarenta mil Любить не могут! Não podem amar! – Гамлет! – Hamelet!

На дне она, где ил: – No fundo ela, onde lodo: Ил!.. И последний венчик Lodo!.. E a última grinalda Всплыл на приречных бревнах… Num tronco no riachinho... – Но я ее любил – Mas eu amei-a, Как сорок тысяч… Como quarenta mil... – Меньше, – Menos Все ж, чем один любовник. Mais que um amante. На дне она, где ил. – No fundo ela, onde há lodo. – Но я ее – – Será que eu a – любил?? – amei?? 5 июня 1923 5 de junho de 1923

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РАКОВИНА СONCHINHA Из лепрозария лжи и зла Do leprosário da mentira e maldade Я тебя вызвала и взяла Eu te chamei e arranquei В зори! Из мертвого сна надгробий Para as auroras! Do sono dos mortos В руки, вот в эти ладони, в обе, Para essas mãos, essas duas mãos, Раковинные – расти, будь тих: Em concha – cresça, sê silêncio: Жемчугом станешь в ладонях сих! Torna-te pérola em minhas mãos! О, не оплатят ни шейх, ни шах Ó, não paguam xeques nem xás Тайную радость и тайный страх A alegria secreta e o secreto medo Раковины… Никаких красавиц Da concha... Nenhuma beleza Спесь, сокровений твоих касаясь, Altiva, penetra em teus mistérios, Так не присвоит тебя, как тот Impossível se apossar de ti, Раковинный сокровенный свод Penetrar em teus mistérios Рук неприсваивающих… Спи! Em mãos invioláveis... Dorme! Тайная радость моей тоски, Secreto júbilo de minha dor, Спи! Застилая моря и земли, Dorme! Cubra mares e terras Раковиною тебя объемлю: A concha te vela: Справа и слева и лбом и дном – Direta e esquerda, alto e baixo – Раковинный колыбельный дом. Da concha a casa é embalada. Дням не уступит тебя душа! Aos dias não entrega tua alma! Каждую муку туша, глуша, Cada saudade abafa, silencia, Сглаживая… Как ладонью свежей Acalma... Como uma palma fresca Скрытые громы студя и нежа, Esfria e acaricia o oculto trovão, Нежа и множа… О, чай! О, зрей! Acaricia e possa... Ó, talvez! Ó, em vão! Жемчугом выйдешь из бездны сей. Pérolas saem do teu abismo. – Выйдешь! – По первому слову: будь! – Saia!– Ao primeiro chamado: sê! Выстрадавшая раздастся грудь Atenda à súplica do peito Раковинная. – О, настежь створы! – Da concha. – Ó, abre-se toda! – Матери каждая пытка в пору, Cada súplica soará falsa à mãe, В меру… Лишь ты бы, расторгнув плен, Entre... Se te libertares da prisão Целое море хлебнул взамен! Beije o mar em agradecimento! 31 июля 1923 31 de julho de 1923

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ПИСМО

Так писем не ждут, Так ждут – письма. Тряпичный лоскут, Вокруг тесма Из клея. Внутри – словцо. И счастье. И это всё. Так счастья не ждут, Так ждут – конца: Солдатский салют И в грудь – свинца Три дольки. В глазах красно. И толко. И это всё. Не счастья – стара! Цвет – вечер сдул! Квадрата двора И черных дул. (Квадрата письма: Чернил и чар!) Для смертного сна Никто не стар! Квадрата письма. 11 августа 1923

A CARTA

Não espere mensagens Espere – a carta. Trapos com nesga de Cola. Eis a – palavrinha. Felicidade. Isso é tudo. Não espere a felicidade Espere – o fim. Salva de artilharia, No peito – três tiros De chumbo. Rubor nos olhos. Nada mais. Isso é tudo. Tristeza – remota! Flor – floriu! Quadrado do pátio Bocas de fuzil. (Quadrado de cartas: Tintas e magia!) Para o sono da morte Basta estar vivo! Quadrado de cartas. 11 de agosto de 1923

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Ты, меня любивший фальшью Истины – и правдой лжи, Ты меня любивший – дальше Некуда! – За рубежи!

Ты, меня любивший дольше Времени. – Десницы взмар! – Ты меня не любишь больше: Истинавпятисловах.

12 декабрь1923

Tu me amaste com a falsidade Da verdade – e a verdade da mentira, Tu me amaste – além Do espaço, dos limites!

Tu me amaste além Do tempo – direita ao alto! – Tu não me amas mais: É a verdade em cinco palavras.

12 de dezembro de 1923

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В мире, где всяк Сгорблен и взмылен, Знаю - один Мне равносилен.

В мире, где столь Многого хощем, Знаю - один Мне равномощен.

В мире, где всё – Плесень и плющ, Знаю: один Ты – равносущ

Мне.

3 июля 1924

Num mundo onde todos São curvos e falsos Conheço – alguém Forte como eu. Num mundo onde todos Querem muito, Conheço – alguém Vivo como eu. Num mundo onde todos – São bolor e hera Conheço alguém Tu – verdadeiro como

Eu. 3 de julho de 1924

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Ятаган? Огонь? Поскромнее, – куда как громко!

Боль, знакомая, как глазам – ладонь, Как губам – Имя собственного ребенка.

7 декабря 1924

Sabre? Fogo? Modéstia, – inclinação pro elevado!

Dor, conhecida, como os olhos – palma, Como os lábios – O nome do próprio filho. 7 de dezembro de 1924

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ЖИЗНЫ

1

Не возьмешь моего румянца – Силного – как разлиы рек! Ты охотыик, но я не данмся, Ты погоня, но я семъ бег. Не возьмешь мою душу живу! Так, на полнон скаку пагонь – Пригибающийся – и жилу Перекусывающий конь Арабийский.

25 декабря 1924

À VIDA

1

Não terás minha cor rubra – Vigorosa – de rio pleno! És caçador, não sou presa, És perseguidor, não sou fuga.

Não terás minha alma viva! Acossado à todo galope – Inclina-te – sobre a veia Que mata o cavalo Árabe.

25 de dezembro de 1924

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2

Не возьмешь мою душу живу, Не даюшуюся как пух. Жизнь, ты часто рифмуешь с: лужво – Безошибочен певчий слух! Не задумана старожилом! Отпусти к берегам чужим! Жизнь, ты явно рифмуешь с жиром. Жизнь: держи его! Жизнь: нажим. Жестоки у ножных костяшек Кольца, в кость проникает ржа! Жизнь: ножи, на которых пляшет Любяшая. – заждаласьножа! 28 декабря 1924

2

Não terás minha alma viva, Não me darei como pluma. Vida, tu rimas com fingida O ouvido do cantor não erra! Não a inventou um nativo. Liberte-se pr’outras paragens! Vida, tu rimas com sagrada. Vida: agarre-a! Vida: entusiasmo! Anéis nos tornozelos são austeros A ferrugem penetra nos ossos! Vida: faca na qual dança quem Ama. – Cansei destino! 28 de dezembro de 1924

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Жив, анеумер Демон во мне! В теле как в трюме, В себе как в тюрьме. Мир – это стены. Выход – топор. ("Мир – это сцена", Лепечет актер.) И не слукавил, Шут колченогий. В теле – как в славе. В теле – как в тоге. Многие лета! Жив – дорожи! (Только поэты В кости – как во лжи!) Нет, не гулять нам, Певчая братья, В теле как в ватном Отчем халате. Лучшего стоим. Чахнем в тепле. В теле – как в стойле. В себе – как в котле. Бренных не копим Великолепий. В теле – как в топи, В теле – как в склепе, В теле – как в крайней Ссылке. – Зачах! В теле – как в тайне, В висках – как в тисках Маски железной. 5 января 1925

Vivo – não morto Há um demônio em mim! No corpo – como no porão, No corpo – como na prisão. Mundo – paredes. Saída – machado. (“Mundo – palco”, – (Murmura o ator.) Não maudou, O bobo da corte. No corpo – como na glória. No corpo – como na toga. Muitos anos! Viva – agradeça! (Apenas os poetas, Nos ossos – na mentira!) Não, não passeamos, Na união dos irmãos No corpo, no algodão Do manto paterno. É melhor assim. Definhamos no verão. No corpo – como na luta. Em si – como no caldeirão. Mortais não exploram O esplêndido. No corpo – como no pântano, No corpo – como no túmulo, No corpo – como no extremo Exílio. – Acabou! No corpo – como no mistério, Na fonte – como nos arcos Da máscara de ferro. 5 de janeiro de 1925

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Не колесо громовое – Взглядами перекинулись двое. Не Вавилон обрушен – Силою переведались души. Не ураган на Тихом – Стрелами перекинулись скифы. 16 января 1925

Sem qualquer alarde – Dois olhares trocados. A Babilônia não desabou – Observo o poder da alma. Sem cortar o Silêncio – Estrelas surgem como setas. 16 de janeiro de 1925

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Всрылажилы: неостановимо, Невосстановимо хлещет жизнь. Подставляйте миски и тарелки! Всякая марелка будет – мелкой,

Миска – плоской. Через край – и мимо – В землю черную, питать тротсник. Невозвратно, неостановимо, Невосстановимо хлещет стих.

январ 1934

Abri a veia: incessante, Irreprimível jorra a vida. Coloquem vasos e vasilhas! Cada vasilha será – rasa

Cada vaso – parco. Pelas bordas – entre – No seio da terra escura, o alimento verte. Irrevogável, incessante, Irreprimível jorra o verso.

janeiro de 1934

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САД

За этот ад, За этот бред, Пошли мне сад На старость лет.

На старость лет, На старость бед: Рабочих – лет, Горбатых – лет...

На старость лет Собачьих - клад: Горячих лет – Прохладный сад...

Для беглеца Мне сад пошли: Без ни-лица, Без ни-души!

Сад: ни шажка! Сад: ни глазка! Сад: ни смешка! Сад: ни свистка! Без ни-ушка Мне сад пошли: Без ни-душка! Без ни-души!

Скажи: довольно муки - на Сад – одинокий, как сама. (Но около и сам не стань!) – Сад, одинокий, как я сам.

Такой мне сад на старость лет... – Тот сад? А может быть - тот свет? На старость лет моих пошли – На отпущение души.

1 сентября 1934

JARDIM

Por este inferno, Por este delírio, Dê-me um jardim Pelos velhos tempos.

Pelos velhos tempos, Pelos velhos males: Anos – de trabalho, Anos – de suor...

Pelos velhos tempos Cães – tesouro: Anos ardentes – Fresco jardim...

Para a fugitiva Traga-me um jardim: Sem – rosto, Sem – alma.

Um jardim: sem passos! Um jardim: sem olhos! Um jardim: sem risos! Um jardim: sem sibilos!

Sem ouvidos Dê-me um jardim: Sem perfume! Sem alma!

Diga: feliz na angústia – Pelo jardim – só como eu. (Mas ao redor não há paredes!) Um jardim solitário como eu. Um jardim assim para mim na velhice... – Aquele jardim? Talvez – aquela luz? – Para meus velhos tempos me dê – Para meu espírito se absolver. 1 de outubro de 1934

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НАДГРОБИЕ

1

– "Иду на несколько минут..." В работе (хаосом зовут Бездельники) оставив стол, Отставив стул – куда ушел?

Опрашиваю весь Париж. Ведь в сказках лишь да в красках лишь

Возносятся на небеса!

Твоя душа – куда ушла?

В шкафу – двустворчатом, как храм, Гляди: все книги по местам. В строке – все буквы налицо. Твое лицо – куда ушло?

_______

Твое лицо, Твое тепло, Твое плечо – Куда ушло?

3 января 1935

EPITÁFIO

1

– “Sigo alguns minutos...” No trabalho (caos quer dizer Mandriar) deixando a mesa, e a cadeira caída – para onde foi?

Interrogarei toda Paris.

Percebo que só nos contos, sim apenas nas tintas Subirei aos céus! Tua alma – para onde foi?

No armário – o dobro, como no templo –Veja: todos os livros enfileirados Na linha – todas as letras Teu rosto – para onde foi? ______ Teu rosto, Teu corpo, Teu ombro – Para onde foram? 3 de janeiro de 1935

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7 В мыслях об ином, инаком, И ненайденном, как клад, Шаг за шагом, мак за маком – Обезглавила весь сад. Так, когда-нибудь, в сухое Лето, пола на краю, Смерть рассеянной рукою Сниметголову – мою. 5-6 сентябрь 1936

7 Ao pensar sobre o outro, A falta, como um tesouro, Passo a passo, rosa a rosa – Destruiram todo jardim. Assim, quando-ninguém no seco Verão, às margens do paraíso, A mão distraída da morte Erguerá minha – cabeça. 5-6 de setembro de 1936

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В синее небо ширя глаза – Как восклицаешь: – Будет гроза! На проходимца вскинувши бронь – Как восклицаешь: – Будет любовь! Сквозь равнодушья серые мхи – Так восклицаешь: – Будет стихи! 1936

A contemplar o céu azul – Tu exclamas: – Será tempestade!

Ao flâneur erguendo a sobrancelha – Tu exclamas: – Será amor! Entre a indiferença cinza dos musgos – Assim exclamas: – Será verso! 1936

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DOUCE FRANCE

Adieu, France! Adieu, France! Adieu, France! (Marie Stuart) Мне Францией – нету Нежнеестраны – Надолгуюпамять Дваперладаны.

Онинаресницах Недвижно стоят. Дано мне отплытье Марии Стюарт.

5 июня 1939

DOUCE FRANCE

Adeus, França! Adeus, França! Adeus, França! (Marie Stuart)

Mais doce que a França – não Conheço nenhum outro país – Para guardar na memória Recebi de presente pérolas.

Elas são imóveis Diante dos olhos. Quero partir como Marie Stuart.

5 de junho de 1939

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– Пора! дляэтогоогня – – É tempo! Pra este fogo – Стара! Primordial! –Любовь – старей меня! – Amor – antigo desejo! – Пятидесяти январей – Cinquenta janeiros Гора! Desde à montanha! –Любовь – еще старей: – Amor – mais antigo: Стара, как хвощ, стара, как змей, Graveto, serpente, Старей ливонских янтарей, Mais âmbar da Letônia Всех привиденских кораблей Navios fantasmas Старей! – камней, старей – морей... Antigo! – que pedra,– mar... Но боль, которая в груди, – Só tenho dor no meu peito, – Старей любви, старей любви. Antes de amor, antes de amor. 23 января 1940 23 de janeiro de 1940

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Я вас люблю всю жизнь и каждый день. Eu te amarei por toda minha vida.

Вы надо мною как большая тень, Serei para ti uma grande sombra, как древний дым полярных деревень. Como a neblina que cobre a aldeia. Я Вас люблю всю жизнь и каждый час. Eu te amarei a cada instante. Но мне не надо ваших губ и глаз. Mas não preciso de teus lábios e olhos. Все началось и кончилось – без вас. Tudo começa e termina – sem você. Я что-то помню: звонкая луга, – Eu lembrarei: da música nos campos, Oгромный ворот, чистые снега, Dos vastos portões, da neve limpa, унизанные звездами рога.... Reluzente de estrelas... И от рогов – в полнебосвода – тень.... Do regato – na água-furtada – sombra... И древний дым полярных деревень.... Da fumaça sobre a antiga aldeia... – Я поняла: вы северный олень. – Eu me lembrarei: és uma ovelha cinza. 7 декабря 1918 7 de dezembro de 1918

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Пора снимать янтарь É tempo de remover o âmbar Пора менять словарь É tempo de mudar o dicionário Пора гасить фонарь É tempo de apagar o lampião Надверный... Usado...

Фебря 1941 Fevereiro de 1941

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CAPÍTULO 3

A tradução e suas questões

Minha intenção inicial era fazer uma tradução comentada dos poemas de Marina

Tsvetáieva. No entanto, a prática diária de traduzir fez com que eu pensasse a tarefa do

tradutor a partir de várias perspectivas. Muitos ensaios inerentes ao assunto foram lidos.

Muitas dessas leituras ajudaram-me na tradução dos poemas e, principalmente

contribuíram para o meu entendimento do que venha a ser uma tradução poética.

Acredito que uma tradução que se pretenda poética deve se manter em proximidade

como o que é dito no orignial. Mas isso não implica que o tradutor deva ser subserviente

ao original. Pelo contrário, o tradutor deve cometer pequenas infrações, pequenos

desvios, tal qual o poeta, para que a poesia venha ao seu encontro.

A tradução de uma obra é um trabalho solitário e exige muita disciplina e

serenidade. Creio que o exercício de tradução não termina quando “acabamos” de

traduzir determinada obra. É aí que realmente começa o trabalho do tradutor. Será que a

obra está traduzível em vernáculo, ou seja, há legibilidade? Que tipo de tradução está

sendo oferecida aos leitores? A tradução flui ou está engessada, isto é, tem ritmo ou

não? Foi possível apresentar uma tradução onde a poesia pode ser apreendida também

na sua musicalidade? Quais as dificuldades encontradas? Muitas são as questões

envolvidas com os problemas de tradução. Dependendo da teoria na qual o tradutor se

mova, a resposta pode variar. Todavia, algo deve permanecer na tradução de literatura: a

poesia.

É certo que eu poderia citar aqui vários teóricos da tradução, indicar algumas

obras relevantes e também falar da angústia inerente ao ato de traduzir e de como é

possível solucionar algumas dificuldades imediatas como o embate com a palavra ou

dificuldades com experiêcnias distintas de cultura, por exemplo. Se assim eu tivesse

feito, teria escapado do tema que me propus: Marina Tsvetáieva e a musicalidade dos

seus poemas. Todavia, não dou por conclusa esta tarefa. Cada vez que volto os olhos

para um poema por mim traduzido percebo que eu poderia ter seguido outra

versão/interpretação. Cada um interpreta a partir de suas possibilidades. O importante é

traduzir. Traduzir é contínuo. Exigir além daquilo que podemos oferecer é recusar todo

esforço empregado. É recusar o poético e tentar tornar a obra fruto da nossa vontade.

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O tradutor é, antes de tudo, um leitor; é aquele que não apenas luta, mas se

entrega cuidadosamente à palavra. Há muitas maneiras distintas de se dizer a mesma

experiência, mas nenhuma experiência dá-se de maneira uniforme. É preciso estar

atento às possibilidades da tradução que se apresentam diante de nós. Só assim

compreenderemos a dialética do traduzir ou, para ser mais precisa, a dialética da arte.

Ao comprender que traduzir é um movimento dialético contínuo nós deixamos de ver a

tradução como transposição de signos linguísticos de uma Língua X (alvo) para uma

Língua Y (fonte). Traduzir, pensar e poetizar, por exemplo, apontam para a mesma

experiência: o cuidado com a palavra e, sobretudo o diálogo.

Temos de permaner em silêncio e ouvir a sonoridade das possíveis versões das

versões da poesia em sua musicalidade. Devemos calar a nossa voz para que a voz da

obra ressoe. Não é fácil apreender o dizer da obra, pois na maioria das vezes não

queremos ouvir. Entretanto, se não nos colocarmos em silêncio junto à obra jamais

participaremos da experiência que a própria obra nos convida.

3. 1 Tradução: gênese de sentido

Há quem diga que a tradução de poemas seja uma tarefa impossível e que o

tradutor é infiel na medida em que tenta transpor signos linguísticos de uma língua para

outra. Além disso, perde-se muito do original e ficamos sem saber o que realmente fora

dito. Todo tradutor é um traidor. Se essas afirmações fossem, de fato, verdadeiras

conheceríamos apenas os poemas escritos em vernáculo. Não teríamos o conhecimento

das obras de Homero, Dante, Petrarca, Baudelaire, Shakespeare, dentre outros. Toda

tradução tem sua relevância. O que cabe ao tradutor é dialogar com as dificuldades que

a sua arte enseja. Entretanto, parece comum a crença de que o ato de traduzir seja mera

transposição de códigos linguísticos. Ah, se fosse assim! Bastaria abrir o dicionário e

começar a transpor experiências distintas. Bastaria buscar sinônimos, conhecer um

pouco de gramática, métrica e pronto. Tudo estaria resolvido: o poema surgiria no seu

esplendor e o tradutor deixaria de ser um traidor. Seria um exímio mediador. A

gramática teria a incumbência de tudo. Ah, se fosse assim! Todavia, “traduções

gramaticais são as traduções no sentido costumeiro. Exigem muita erudição – mas

apenas aptidões discursivas.” (NOVALIS, 2009, p. 73). Nenhum dicionário dá conta da

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dinâmica da língua. Deve-se pensar o universal poético das línguas – a linguagem –

para que a obra compareça e apareça no seu esplendor. Linguagem, porém, o que é?

É impossível pensar a linguagem sem deixá-la irromper. Vigilante ao seu

acontecer, o poeta mantém-se silente, todo entregue à escuta do seu dizer. Auditor que

se permite afetar pela musicalidade da própria poesia, que é a realidade sendo na sua

dinâmica de sentido, o poeta não se restringe em ser um mero fazedor de versos. Ele é

com a linguagem. Seu empenho incide em deixar-se conquistar pelo inaudito, em ir ao

encontro da poesia, colocando em suspenso as concepções correntes, usuais e

instrumentais. Poeta é, portanto, aquele que partilha da simplicidade daquilo que lhe é

próximo e essencial – a linguagem. E não apenas da língua, como julga o senso comum.

Não há nada mais simples e, ao mesmo tempo, mais difícil do que ser com a

linguagem. De estar em consonância com aquilo que merece ser pensado. O que merece

ser pensado? As coisas esquecidas, perdidas – deslembradas. As coisas entregues,

achadas – memoráveis. A tensão entre lembrança e esquecimento, que é uma das

possibilidades da linguagem, permite que o poeta veja e apreenda as coisas nelas

mesmas. Toda experiência do ser humano ressoa na linguagem. É ela que funda e

afunda o ser humano em um horizonte de possibilidades. Sem linguagem não há reunião

de sentido. Repouso no vigorar da sua essência, gesto e desvelo de sentido, a linguagem

é o que depõe e dispõe o ser humano na proximidade do real e suas realizações.

Horizonte cristalino. Tino do destino. Linguagem é também o lodo desfeito em flor de

Lótus.

Na poesia, a linguagem dá-se em sua plenitude de manifestação. A poesia está em

todo lugar. Ela está em cada gesto que se mostra e se permite dizer. Diante da poesia, ou

melhor, do poético, a linguagem eclode na sua singularidade: sem atributos ou funções,

sem paradigmas ou qualificações. Semelhante um cavalo que com seu livre galope,

pleno de coragem vivificante abraça o vento fazendo-se vento, a linguagem pode ser

entendida como força criativa na qual repousamos em um tênue e leve habitar. O que

nos cabe, portanto, é saber-se doação da linguagem; embrenhar-se em suas veredas

silenciosas, escapando do alarido das grandes avenidas permitindo que a própria

linguagem mostre a si mesma. Como isso se dá? Não podemos confundir língua com

linguagem, narrativa com narrar, atribuição de significado com desvelo de sentido,

historiografia com história, novo com novidade, dentre outros caminhos que a palavra

pode nos encaminhar.

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Toda língua se instaura como possibilidade de mundo. A linguagem é a

possibilidade de a língua se manifestar enquanto sentido. Cada cultura firma e confirma-

se nas suas possibilidades de sentido. A linguagem preserva identidade na diferença das

línguas. Como? O sol que canta o poema asteca é e não é o mesmo sol a brilhar no hino

egípcio. O astro pode ser o mesmo, mas as possibilidades de sua experienciação são

sempre inaugurais, porque são possibilidades de e para possibilidades. Daí a riqueza de

tantas línguas e culturas. De onde provêm tantas riquezas? Da própria linguagem,

dando-se em tensão com a língua. Compreender essa tensão é o desafio.

Entregue à tensão de língua e linguagem, o ser humano tem a possibilidade de

fazer-se poeta, sendo tomado pela vigência do que lhe é próprio. A sua língua, em

sintonia com a fala e o silêncio, se desfaz da pretensão de transmitir sinais. Deixa de ter

o rigor da representação, passando ao vigor de apresentação. Todavia, não somos poetas

o tempo todo. Não suportaríamos o gozo de uma eterna epifania.

3.1.1 Tradução e dialétheia

Lançado na tensão, ou seja, na dialétheia entre língua e linguagem, o tradutor vê-

se transpassado por um jogo no qual a palavra poética anuncia um mistério que nos

convida ao pensamento. Ao deparar-se com o “intraduzível”, com o não dito da obra, o

tradutor se volta para o cuidado com a palavra, colocando-se em vigília. Vigília do

verso livre ou da rima? Nem de um nem de outro. O tradutor, tal qual o poeta, é

vigilante da própria palavra, de toda palavra. Ele não usa vocábulos comuns, mas

também não se utiliza de vocábulos eruditos. Em vigília, perscruta o ēthos da palavra. O

tradutor busca sentido, e não significação. Colocar-se em vigília é estar à espera. “A

ética de toda vigília é, portanto, correr o risco de ser honesto e traído, de dizer a verdade

e faltar com ela.” (EYBEN, 2011, p. 284). Por quê? A palavra dissimula, não se dá

completamente. O próprio tradutor deve entrar na dança, na dialétheia das palavras. O

desafio do tradutor é, portanto, obedecer ao dito das palavras, salvaguardando-a da

nossa vontade.

Todos ouvidos – silêncio. Todo atento – diálogo. No cuidado, isto é, na vigília da

palavra o tradutor faz-se poeta não do poeta, mas da linguagem. Ele experiência o

instante poético que jamais se repete. Sem reprodução ou devaneio, sem prolongamento

ou rodeio, o tradutor deixa-se, a um só tempo, tomar pelo dito e não dito da palavra que

se manifesta silenciosamente. Irmanado com o silêncio, recria. No que recria, devolve à

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palavra sua vigência plena. Não nos esqueçamos de que não é ele quem decide por esta

ou aquela opção de tradução! Do mesmo modo, não é o poeta quem decide acerca de

sua obra. Tanto o tradutor quanto o poeta atendem ao apelo do que lhes é solicitado: a

poesia. A poesia é o instante que surge sem razão de ser; é linguagem; é a própria

palavra doando-se nas possibilidades da língua, de cada língua.

Língua não é mero veículo de comunicação. É ação [poíēsis], criação e recriação

na medida em que a linguagem se configura como o véu que vela e desvela sentido.

Todo e qualquer exercício poético, ou seja, de pensamento, dá-se em consonância com a

linguagem. É esta, no seu acontecer de sentido, que permite a poesia acontecer. No que

acontece, mundos são projetados e trazem à palavra o que o silêncio não cessa de dizer.

Como captar “sentido”? Não se pega o sentido como quem pega uma banana. É-se

tocado, arremessado, projetado no e pelo próprio sentido. Quando se tenta dizer o que

seja o sentido – que pena! – já não o temos mais. Sentido é sentido que se interpõe. Isso

significa deixar aparecer no ordinário da língua o seu extraordinário, a linguagem.

Sentido é o silêncio dando-se como possibilidade de libertação do alarido

corrente. O falatório abafa o que não é para ser dito, mas apenas sentido. O silêncio,

porém, não deve ser confundido com ausência de voz. Sua força dá-se sempre como

presença. No agir das ondas do mar e no empurra-empurra alucinado no metrô, na

padaria, nas trilhas íngremes e vertiginosas que conduzem ao Corcovado, por exemplo,

o ser humano, aberto e atento ao sentido, se vê atônito diante de tanta riqueza. Há tanto

sentido que os sentidos pedem silêncio. Possibilidade que vigora. Entendimento que

estiola. Na regência da razão nunca saberemos do silêncio/sentido guardado nas pedras.

Liberdade radiante. Espanto, encantamento. Poesia a nos lançar na travessia da vida

para a vida que se manifesta a cada instante, sentido consuma-se no acolhimento do que

nos é próprio.

No que o sentido se nos dá, somos entreabertos pelo próprio sentido. O ser

humano é doação de sentido. Então, como definir sentido?, levanta uma voz em falsete.

Não se define o sentido como quem decide decifrá-lo. Somos tomados pelo sentido. Por

isso, não somos nós quem falamos. O próprio sentido ressoa em nós. Somente quando

nos acolhemos em silêncio compreendemos o que vem a ser sentido. Como, porém,

pensar sentido e tradução?, insiste a mesma voz em falsete. Desde o romantismo

alemão, a tradução de literatura tornou-se um caminho para se discutir, refletir, criticar e

pensar a díade obras literárias e tradução sob vários aspectos. Um desses aspectos diz

respeito ao sentido. O que podemos entender por sentido? Os tons do sentido são

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possíveis ressonâncias da musicalide da obra. A amplitude de sentido ultrapassa o

literal, o etnocêntrico: abarca o inesperado. O sentido está diante de nós, no alimento

sobre a mesa, no grito surdo de Antígona, na palavra que cala, no gesto de adeus. Mas

como podemos traduzir estas, e também outras, possibilidades de sentido?

Confesso que não encontrei nenhuma explicação para esta questão. Ainda bem,

pois não pretendo pensar o sentido e a tradução como instâncias delimitadas. Traduzir é

interpretar. Interpretamos o tempo todo. Interpretamos quando nos deparamos com as

compras que fazemos no supermercado, com o livro que repousa na mesinha de

cabeceira, com a chuva forte e imponente que, de súbito, irrompe nas manhãs de estio.

Interpretamos a mãozinha pequenina e delicada da criança a colher flores no jardim. E

ainda: interpretamos o grilo que corta o silêncio. A manhã escura. O chiar da chaleira –

leite quente ou água fervida? Interpretamos as palavras, os fragmentos, o silêncio –

desta dissertação. Interpretamos a todo instante, sobretudo quando o repouso nos acolhe

e a noite advém com seus mistérios e magia. Interpretar, ser poesia. Eis aí – sentido.

Sentido é encantamento, projeção de imagens rítmico-plásticas nas quais se dá a

suspensão do tempo cronológico. Na vigência de uma obra de arte o relógio para. Não

nos damos conta de que seja cedo ou tarde, momento de repouso ou de trabalho, se

estamos perto ou longe. Ali e aqui – outro e o mesmo. Alhures, nenhures – outro e o

mesmo. O que nos prende é o sentido projetado pela linguagem. É este, e somente este,

que faz da língua um acontecer de possibilidades. Por quê? Linguagem é sentido. E este

significa ritmo, tom, oferenda. A linguagem enquanto sentido corresponde ao tempo

poético, ao instante de revelação que faz advir à presença a musicalidade da obra, que é

a própria poesia sendo. Sentido são as possibilidades da língua no vigorar da linguagem.

O que sustenta, portanto, uma tradução é a presença da própria poesia na sua dialétheia.

3.1.2 O tradutor é um poeta?

O poeta é um cantor. Ele canta o que em canto o encanta. Auditor de tudo o que

foi, é e será – memória –, sua arte se sustenta pelo que em canto e encanto pode ser

cantado e encantado. A poesia é, dentre outras possibilidades, o que afeta o ser humano,

lançando-o em uma experiência com a linguagem. Tecelã de sentido, a poesia dá-se

como patência e latência da realidade. É canto e encanto do poético que se doa nos

ouvidos do poeta, do tradutor e daqueles que a experiencia. Um poema é, portanto,

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convite à oralidade. Por quê? A poesia dá-se como palavra verbal, ou seja, como palavra

viva cuja pulsão contínua projeta uma musicalidade nunca sentida, uma musicalidade

que reverbera no corpo, uma musicalidade que solicita o pensamento. Entretanto, o que

assegura a presença da poesia? Como senti-la? Não existem fórmulas. A poesia não é

uma sucessão de episódios narrados logicamente. Pelo contrário, as palavras e os versos

de um poema se refletem uns nos outros a ponto de formar um mosaico de imagens

sonoro-plásticas. O que quero dizer com isso é bastante simples: a poesia não se

dissolve nas palavras. Todo ato poético conclama o diálogo entre as artes. Poesia,

música, pintura e dança, por exemplo, não estão separadas. O poeta sabe disso. E

também o tradutor que se deixa conduzir pela palavra verbal. O que move tanto o poeta

quanto o tradutor de literatura não é a sua vontade, mas o querer da própria linguagem.

É esta que irá ditar o tom da poesia. O querer da linguagem não parte de uma

representação, mas da espera, ou seja, do cuidado com a própria palavra dando-se nas

suas possibilidades de sentido.

Gostaria de chamar atenção neste momento para a referência entre ritmo e sentido.

O que assinala a presença da poesia é, dentre outras marcações, o ritmo. O essencial de

um poema é dado pela sua sonância e consonância com a oralidade, e não pelo seu

registro escrito. Ritmo é força através da qual advém a pulsão de uma obra, mas esta

não é motivo de poesia. O ritmo não deve ser confundido com sentido. Sem sentido não

há proximidade com a própria obra. Em se tratando de tradução de poemas, sem o jogo

rítmico entre o verso e o todo da obra, as palavras não passam de um amontoado de

signos linguísticos esvaziados de sentido. Pode até haver sintaxe gramatical/lógica,

porém se o vigor de cada palavra não for mantido não seremos surpreendidos e

agarrados pela pulsão sonoro-imagética da poesia. O ritmo de uma obra poética é

sempre verbal. Por isso, evoca sempre novos sentidos, novas possibilidades de

interpretação.

Penetrar na dinâmica de uma obra não é fácil. Aliás, este é o desafio do tradutor.

Ou ele se deixa conduzir pelo movimento rítmico requisitado pela própria obra ou então

a sua tradução não terá força poética. Não terá ritmo verbal. Com isso, faltará graça e

encanto e, consequentemente, o interesse pela leitura. Não haverá a musicalidade da

própria obra. Pensar o ritmo de uma tradução significa voltar-se para a experiência

arcaica da poesia. A aproximação entre literatura e música não deve ser entendida aqui

como gratuita. O tradutor deve ser conduzido pela musicalidade das palavras e não pela

tentativa de apresentar uma tradução explicativa, rústica, sem movimento. Ele deve

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ouvir, interpretando o que lhe é ditado poeticamente. Somente entregue à escuta das

possibilidades apontadas pela própria obra, fará com que a poesia do original ressoe

também na sua tradução de maneira essencial.

O tradutor, semelhante ao poeta, encontra na memória o canto e encanto da sua

arte. Na conjuntura da memória a poesia torna vigente o seu encantamento. A poesia

seduz e nos faz adentrar em um tempo que não é cronológico, em um espaço que não é

extensão física, em uma memória que não fica presa à reminiscência. Por isso, a tarefa

do tradutor incide em perdurar o instante poético presente no original. É ao apelo das

Musas, que se doou no poetar do poeta, que o tradutor deve estar atento. Não será,

portanto, apenas pelo domínio das línguas (alvo e fonte), pela sua capacidade de

erudição e embelezamento que ele alcançará uma tradução que se pretenda poética. Esse

domínio é extremamente importante, mas não é decisivo. O que assegura poeticidade à

tradução é a audição, a serenidade de se voltar os ouvidos com desvelo para a palavra

enquanto gesto verbal, ou seja, como movimento, possibilidades de e para

possibilidades. Fica aqui uma provocação: os tradutores de literatura estão atentos para

a relevância da escuta? E os críticos literários, também estão abertos à escuta do

silêncio, que nada mais é senão a manifestação da poesia nas suas várias

versões/interpretações?

Oferta e oferenda, a poesia nos lança nos caminhos do pensar. Por isso, não se faz

poesia. É-se composto por ela. Todo aquele que é tocado pela musicalidade da obra faz-

se poeta. O que significa ser poeta? “Ser poeta é dispor de uma voz – não de um

sotaque, nem mesmo de um timbre [...] é reunir inúmeras vozes, é deixar-se identificar

pela pluralidade vocal.” (PORTELLA, 2012, p. 159). Ser poeta, portanto, significa estar

em sintonia com a sinfonia da realidade. As palavras pronunciadas pelo poeta têm vida

própria e não dependem de um mediador para adquirir significado. O poeta é já o

próprio médium. Ele é passagem, travessia para o próprio acontecer poético. Em sua

arte, poesia e música se entrelaçam. Diante desse entrelaço o nosso coração bate mais

forte, nos coloca diante de uma emoção intensa não por romantismo, e sim porque a

unidade entre literatura e música nos lança no jogo da própria realidade. E esta, não se

repete jamais. A única coisa que se repete é a soma de três mais três. Mas há também aí

um mistério... O mar quebra no silêncio das pedras. Uma gaivota mergulha em busca

de um peixe. O crepúsculo deixa o vermelho ser no céu. E uma criança acaba de nascer

dentro do táxi. A fila do mercado aumenta e nunca chega a nossa vez de pagar as

compras. Bozinhas, carros e ônibus e motos disputam um lugar privilegiado na estrada.

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Outra onda chega até as pedras, mas dessa vez não quebra: retira-se em silêncio. Como

ouvimos a tudo isto? O que dizer desta força rítmica verbal? Devemos ser conduzidos

pela experiência de nos movermos devagar, em diálogo, na cadência de nossas

possibilidades. Só assim alcançaremos afeto – sentido.

3.2 O poético e a linguagem

Parece que agora chegamos ao ponto crucial: o poético e a linguagem. Sem o

desencadeamento lógico não se alcança nenhum objetivo. Por isso, é preciso coerência e

coesão para que uma tradução seja ímpar e o tradutor seja reconhecido pelo êxito do seu

desempenho, insistem vozes dominadas pela concepção de que o ato de traduzir seja um

exercício gramatical. No entanto, não é bem assim.

Temos que começar a compreender o que pode ou não pode ser uma tradução. Compreende-se esta como um momento mágico no qual a obra escrita em um idioma surge, subitamente, em outro? Então, estamos perdidos. Essa transubstanciação é impossível. A tradução não é o duplo do texto original; não é, e nem deve ter a pretensão de ser a mesma obra com léxico distinto. Eu diria que a tradução nem sequer pertence ao mesmo gênero literário que o traduzido. Convém realçar isto e afirmar que a tradução seja um gênero literário à parte, distinto dos demais, com suas formas e finalidades próprias. Do mesmo modo a tradução não é a obra, mas um caminho até a obra. Se esta é uma obra poética, a tradução não o é, mas sim um aparato, um artifício técnico do qual nos valemos para sem pretender repeti-la ou substituí-la jamais.29 (ORTEGA Y GASSET, 1964, p. 449, tradução nossa).

Ortega y Gasset nos fornece informações pertinentes acerca da tarefa de traduzir.

De fato, uma tradução não surge do nada, como em um passe de mágica. O dicionário

não é a varinha de condão do tradutor. Não existe “transubstanciação” de palavras. É

preciso demorar-se em cada palavra, em cada mundo instaurado pela força criativa da

própria palavra. Por quê? Uma vez que o texto traduzido não se restringe em um duplo

29Y hay que comenzar por corregir em su base misma la ideia de lo que puede y deve ser uma

traducción. ¿Se entiende ésta como una manipulación mágica em virtud de la cual la obra escrita em um dioma surge súbitamente em outro? Entonces estamos perdidos. Porque esa transustanciación es impossivle. La tradución no és um doble del texto original; no es, no deve querer ser la obra misma com léxico distinto. Yo diria: la traducción ni siquiera pertence al mismo gênero literario que lo traducido. Convendría recalcar esto y afirmar que la traducción es um gênero literário aparte, distinto de los demás, com sus normas y finalidades próprias. Por la sencilla razón de que la traducción no es la ovra, sino um camino hacia la ovra.

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do original, o que cabe ao tradutor é trabalhar, trabalhar e trabalhar. O exercício de

tradução nos lança não em um duplo, que é o que faz a tradução gramatical, mas na

dobra de língua e linguagem. Nesta dobra, que nada mais é senão um jogo dialético

entre o rigor da composição (língua) e o vigor da anunciação (linguagem), repousa a

possibilidade de a obra de arte irromper, projetando e acolhendo sentido.

Embora no trecho em questão Ortega y Gasset se refira às versões traduzidas, sua

postura parece ingênua ao dizer que “o gênero da tradução não é o mesmo que no

original” e que devemos “afirmar que a tradução seja um gênero literário à parte,

distinto dos demais, com suas formas e finalidades próprias. Do mesmo modo, a

tradução não é a obra, mas um caminho até a obra”. Por que o gênero do texto traduzido

não será o mesmo do original? Devemos reduzir a compreensão da arte aos gêneros?

Desde quando os gêneros dão conta da dinâmica da obra? Tradução não é também

possibilidade não da língua, mas da própria obra eclodir no aberto instaurado pela

linguagem? Pensar a obra a partir dos gêneros literários significa classificá-la, calá-la.

Toda obra de arte, no seu acontecer de sentido, é sempre um caminho. Uma obra

de literatura traduzida ou não, pictórica ou arquitetônica, musical ou escultural, dentre

outras, projeta sempre caminhos de pensamento. Quando nos colocamos diante de uma

obra de arte na posição de escuta, isto é, quando não temos a intenção de dissecá-la,

somos possuídos, tocados pelo que na obra vigora. Uma vez tocados pela obra,

adentramos em caminhos de interpretação. Nenhum horizonte é definido. Às vezes, este

horizonte é claro e reluzente. Às vezes, mostra-se grávido de penumbra. Por quê? Toda

obra poética e de pensamento se dá como possibilidade de permanência e mudança.

A tentativa de classificar as obras de arte em gêneros nada mais é senão aplicar

um desencadeamento lógico e causal para a própria obra. Criam-se paradigmas para

justificá-la. Inventam-se teorias para “esclarecer” sua dinâmica. Tem que haver lógica

para que uma obra justifique sua razão de ser? Por que pensar assim? Até que ponto a

lógica sustenta o encantamento de uma obra? O sentido de uma obra é dado pelo seu

desencadeamento lógico? Uma obra tem que apresentar coerência e coesão? Sendo

assim, qual a coerência e coesão do silêncio? O que dizer dos fragmentos? Por mais que

se esforce, a lógica não dá conta de tudo. Sentido não significa lógica.

A compreensão corriqueira do sentido como significado, a direção para a qual

devemos seguir, não é outra coisa senão a permanência nos meandros da tradução

gramatical. Em virtude disso, encontramos nestas traduções o glamour da palavra, e não

a palavra nela mesma. Em tais traduções, a Estética, e não a Poética, determina o tom da

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tradução. Para a Estética, o tom da tradução será sempre um sentido desencadeado pela

lógica e sua imbricação com o belo e sublime. Mais uma vez, repito: qual a coerência e

coesãodo silêncio? Esta, a tradução gramatical desconhece haja a vista a confusão que

faz entre poema e poesia, entre língua é linguagem. Em contrapartida, uma tradução

poética está sempre à espreita da palavra na sua plenitude abismal, no seu misterioso

dom e tom de anunciar mundo e verdade, isto é, de conferir sentido. É importante

ressaltar que mistério e palavra, apesar de não terem o mesmo radical, nos lançam em

uma mesma experiência: nos possíveis caminhos do pensar.

Toda palavra tem um instante em que ela é, e não é. O que acontece neste

instante? Silêncio. É vão tentar se aproximar deste instante com a intenção de decifrá-lo.

Não se define um instante que é todo mistério, e sim se deixa tocar pela sua gênese

criadora permitindo que o não dito advenha ao pronunciado em seu velamento. Tanto o

não visto quanto o que se dá a ver são possibilidades de se constituir presença. Todo

instante poético nos suspende e surpreende. Vale ressaltar que antes mesmo de nos

darmos conta de que se trata de um instante poético, este já se instaurou, porque é

plenitude de sentido.

Ao poeta e tradutor, ao crítico e leitor, cabe o contínuo exercício de penetrar na

palavra vigorando nas suas possibilidades, interpretando-a. Por que a tentativa de

clarificar uma palavra se o velamento é o que lhe convém? Toda palavra dissimula.

Nega entregar-se na sua inteireza. É o instante criador que deve nos interessar e não as

possíveis concatenações lógicas. Para atiçar ainda mais esta discussão, prestemos

atenção ao poema de Manoel de Barros (1990, p. 290):

A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.

Neste poema ressoa o máximo da precisão. Notem que não é nem mais nem

menos. É exatamente na distância de quinze metros do arco-íris que se pode sentir o

perfume do sol. Todavia, só compreenderemos o seu sentido quando nos deixarmos

guiar pelas sendas do silêncio. Desde quando o sol é cheiroso? Ao que parece, o sentido

da lógica não é capaz de dar conta de um instante poético. Temos um verso onde

palavras-verbais compõem um todo harmônico. Apesar da precisão lógica, sua força

poética suspende nosso entendimento. O que nos cabe, portanto, é a coragem de

suspender a razão, deixando-se irradiar pela luminosidade do poético.

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“A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso” é um verso tão simples que beira o

absurdo. Devemos desprezá-lo porque ele altera o sentido da lógica? Em poética não há

exclusão ou dicotomias. Há sempre inclusão, possibilidades de interpretação. Pensado

poeticamente, o belo da poesia não está na idealização de uma forma bem acabada,

imponente e que faça nossos olhos marejar. A beleza mais difícil de apreender é aquela

que partilha do simples. Todavia, a ânsia de cultuar “as coisas elevadas” nos impede de

adentrar nos raros instantes nos quais a poesia se nos oferece na dinâmica do seu

acontecer. O feio está no bonito. O bonito está no feio. E o que parece sem sentido...

Está pleno de sentido! Por isso, é preciso estar atento ao que nos afeta se permitindo

também afetar. Palavra não é para adornar, mas para nos lançar na projeção de sentido.

É preciso ser poeta, tal qual Manoel de Barros, para captar o instante no qual se

dão coisas. A voz que canta e encanta é justamente aquela que, no vigorar da

linguagem, brinca com as possibilidades da língua. O poético, na vigência da palavra

que se torna brinquedo nas mãos do poeta, assume o estatuto de uma potência criadora.

Daí ser possível dizer que o sol, a quinze metros do arco-íris, é cheiroso. Somente os

que estão abertos ao sentido e, portanto, liberto dos sentidos (das sensações) são

envolvidos pelo perfume do sol. A tarefa do poeta, de todo poeta, é germinar sentido.

Entregue à sonância e ressonância da linguagem, o poeta é aquele que se volta

para a escuta da fala da própria linguagem, e não do seu dizer; o poeta é aquele que se

permite fazer (e faz!) pequenos desvios na própria língua, pequenas estranhezas que

parecem ruidosas e agressivas, porque escapam ao uso corriqueiro do idioma; poeta é,

portanto, aquele que rompe com a concepção vigente não para consolidar um novo

paradigma ou uma nova verdade, mas para que a realidade advenha na sua dialétheia de

sentido. O poeta diz quando nos lança no silêncio, que é o desligamento da lógica.

Quando nos movemos no sentido da lógica falta poesia. Julgamos “coisa

estranha” tudo o que não atenda a um princípio lógico e causal. É preciso estar em

consonância com a razão para que haja sentido. Tudo que se embrenha pela ausência de

lógica deve ser descartado porque não apresenta nenhuma utilidade. Pois bem! Utilidade

e não utilidade são conceitos racionais/funcionais. Em se tratando de poesia, o que

sustenta a projeção de imagens rítmico-plásticas não é a serventia de determinada obra.

A lógica busca precisão, mas carece de encantamento. É ressequida, sem vida. Não dá

conta de que o silêncio seja a mais premente condição de linguagem. Assim como dois

mais dois são quatro, há quem insista na tese de que seja imprescindível ao poema fazer

razão. O que é lamentável. Poeisa é paixão de ser.

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O que tudo isto tem a ver com a gênese criativa da tradução? Tudo. Se não somos

capazes de entender o motivo melódico de um verso simples, porém denso, como este

de Manoel de Barros, como iremos adentrar na musicalidade da obra, que é uma das

possibilidades de sentido de toda e qualquer tradução poética? O que se busca quando

nos propomos a traduzir uma obra não deve ser o seu suposto sentido lógico, mas

apenas sentido. Este não se restringe à projeção, em série, de causas e consequências da

realidade. A realidade é mais do que qualquer tentativa de ordenação causal. É arranjo

cósmico – mundo. A razão não entende poesia. Ela chega ao ponto de negligenciar tudo

aquilo que escapa ao “sentido normal” só para justificar a arbitrariedade do seu sentido

lógico.

Entretanto, apesar de esquecida pela razão, as possibilidades de cada obra

vigoram. O real é mais que qualquer tentativa de classificação. Ultrapassar o

entendimento lógico vai além da pretensão de fomentar um suposto realismo fantástico.

Tal compreensão não percebe as possibilidades de a própria realidade irromper na sua

incessante envergadura poética de sentido. No mais, seria incoerente dizer que aquilo

que escapa aos padrões estabelecidos deve ser desprezado porque pertence à esfera do

fantástico. Todo real é já em si mesmo fantástico, pois deixa advir no ordinário o

extraordinário de toda e qualquer possibilidade de sentido.

3.3 O sentido como desafio

Poesia – exige razão?

Todo sentido é prévio, antecede, qualquer definição. Todavia, não

compreendemos que sentido, sempre e desde sempre, se interpõe antes de nos darmos

conta de que buscamos – sentido. Infelizmente, exigimos uma explicação lógico-causal

para tudo o que nos cerca. O que é estático e classificável nos conforta. Estamos à

espreita do suposto sentido da lógica. Julgamos que os conceitos podem nos fornecer

respostas eficazes, precisas. Ah, como é difícil sentir sentido além das sensações! E ser

afetado pelas coisas, escapando do âmbito das impressões, dos mecanismos instintivos

de respostas. Como é difícil ser levado, conduzido pelo canto e encantamento do que

nos afeta, deixando que o que nos toca venha também ao nosso encontro. Pode haver

alegria maior do que encontrar na frieza de um bloco de mármore a beleza e o ardor de

uma estátua de Afrodite? De deixar advir em um pedaço de pedra sabão, abandonado e

esquecido em um canto qualquer, a possibilidade de se esculpir uma imagem de São

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Francisco de Assis? De saber que no silêncio do vale ressoa o recado do morro?30 E

compreender, tal como Matsu Bashô (1997), que

agora é inverno no mundo uma só cor:

o som do vento.

É preciso ser vigilante, demorar-se não no tempo que passa ao lado, mas no que

transcorre e atravessa dentro de nós para que captemos do mundo a sua cor, a sua

música, ou seja, o seu sentido. É preciso aprender e apreender não pela razão, mas,

sobretudo, pelo próprio sentido. Trata-se de uma aprendizagem que não tem a pretensão

de encontrar encadeamentos. Vigor, travessia – provocação. Convite ao pensamento que

surge em um rasgo de instante, a aprendizagem do sentido diz-se força criadora, apenas.

Por quê? “Agora é inverno”, embora estejamos no verão. Agora é inverno porque o

tempo não segue à cronologia. Se agora, e somente agora, é inverno, tudo adquire

sentido, pois agora é inverno e o frio concentra todo o ardor do estio. Inverno outonal.

Verão primaveril. Na conjuntura poético-circular das estações todos os tempos estão um

no outro. E a cor do mundo é uma só: sentido.

A poesia nos transverte, nos rasga, desnudando-nos de nossas sensações até que

um raio cristalino, pleno de energia radiante e irradiante, um raio de Zeus, nos atravesse

por inteiro, ao ponto de estarmos em epifania junto às coisas, ou melhor, de perceber

que já repousamos na dinâmica da própria realidade que, a um só tempo, se dá retraindo

e ao retrair se dá em um jogo de revelação e disposição poética.

Atravessado pela lógica do sentido, que nada tem a ver com razão, o tradutor-

poeta devolve ao leitor o espanto da obra. Esse espanto não se restringe às inovações

linguísticas, às escolhas métricas, ao estilo do escritor ou ao seu tom criativo. O

tradutor, que é também leitor, deve mover-se nos possíveis caminhos da obra. Ou, como

considera Umberto Eco, o tradutor deve dizer “quase a mesma coisa que o original”.

Para tanto, é preciso interpretar, ser apreendido pela dinâmica da obra a fim de que a sua

musicalidade ressoe em vernáculo. Considero a tradução de literatura uma ação

transformadora não porque modifica, mas porque permite a obra ser. O tradutor,

portanto, deve agir como Sisifo e não reclamar da sua tarefa. Se a palavra lhe fugir,

pacientemente, ele deve recolhê-la, recomeçar o seu trabalho a ponto de as próprias

palavras o transformarem naquilo que ele faz: poesia. Esse diálogo com a palavra

30 Alusão ao conto “Recado do Morro”, de João Guimarães Rosa.

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acontece sem motivo. Surge de repente, quando o tradutor se desfaz das suas teorias e

permite que a palavra venha também ao seu encontro. Na reescrita e/ou retradução de

sua própria tradução o tradutor se vê diante de novas possibilidades. Por quê? Ele é

tocado pelo instante poético. Em comunhão com a palavra, o tradutor interpreta a obra –

recriando-a –, oferecendo não a sua voz, uma tradução etnocêntrica, mas uma possível

versão das versões da obra.

Uma obra nos atrai justamente por apontar aquilo que nela se retrai: seu

encantamento. O tradutor-poeta sabe que o gozo da criação vem acompanho de dor,

porque o empenho e penhor da sua arte se dão como paixão, como conquista e

reconquista. Sem apaixonar-se, isto é, sem fazer-se todo entrega não se perscruta

sentido. A paixão nos lança no desconhecido. É ela que difere e fere – sentido. Vale

lembrar que o desconhecido não é o contrário do conhecido, e sim o que se permite

conhecer. Por isso, o tradutor não colhe do original possíveis experiências. Ele é quem é

acolhido e recolhido pelas possibilidades de sentido inauguradas pela própria obra.

Na conjuntura do sentido não se discute o que uma obra deve ou não ser, o que

ela pode ou não pode. A obra já trás consigo suas possibilidades. Todavia, sentido o que

é? Uma resposta que elime o vigor da questão não deve ser levada em consideração.

Sentido é particípio passado do verbo sentir... Sentido pode ser compreendido como

força criativa, pulsão, gênese da própria obra, lugar da poesia que devolve ao ser

humano a possibilidade de vigorar em sintonia com a sinfonia das coisas, da realidade

acontecendo, irrompendo – sendo. Por outro lado, sentido e caos estão próximos. O

tradutor-poeta é tomado por esta experiência. Caos advém do verbo grego khaíno e

significa abrir-se, entreabrir-se. Toda irrupção de sentido nos lança no caos porque

desfaz a ordem corrente. Entreabrir-se nada mais é senão chamar para a proximidade do

mistério. Por isso, uma tradução poética dispõe e propõe o encontro com os breves

instantes nos quais tocamos no intraduzível. Toda arte é poética. Esta não é outra coisa

senão a poesia, a musicalidade doando-se nas possibilidades de sentido.

Quais os limites do sentido? Quais os limites da palavra? Quais os limites do

tradutor? Quais os limites do mundo do tradutor? Quais os limites da musicalidade?

Quais os limites da linguagem? Pensar em limites é o mesmo que estabelecer uma

posição. Todavia, só é possível tomarmos uma posição porque antes já se deu a não

posição, ou seja, o não limite. Estamos sempre nos confrontando com nossos limites.

Somos limitados, mas buscamos incansavelmente o ilimitado. Conseguiremos alcançá-

lo? A vida, a nossa existência, é uma grande dança dialétheia na qual o não limite

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jamais se opõe ao limite. Há uma dobra, um jogo, onde o não, o vazio, nos recolhe e

acolhe, projetando possibilidades. Para entrar neste jogo é preciso ser como o capoeira

que usa de artimanhas, de evasivas, seduzindo o adversário com seus movimentos

dialético-esgueirantes. Quem não entra na dialétheia – dança.

Para compreender a dialétheia do traduzir é preciso ser ousado e não ter medo. O

medo nos empurra para a permanência no mediano. Se a obra é o que foge do

corriqueiro, porque a tradução/interpretação deve permanecer no que é geral, no

mediano? Estar diante de uma obra: penetrar no seu mistério – interpretando-o. Gesto

que é sempre ação verbal, velo e desvelo que exige a renúncia do acordo de significados

para a irrupção do soar de um acorde que é puro significante, tradução é sentido

libertador que pode nos lançar na solidão da própria obra.

Não é mais novidade alguma dizer que não considero a tradução transposição de

códigos linguísticos entre uma língua e outra. Isso já ficou evidente. Não se traduz

língua; é a linguagem que confere sentido. Ora, sentido é linguagem. É em virtude disso

que quando estou traduzindo, ou melhor, quando me entrego à poética de cada obra nas

suas possíveis versões/interpretações “sei ter o pasmo essencial que tem uma criança ao

nascer.” (CAEIRO, 1997, p. 17). Se é difícil acompanhar meus passos... Este é meu

compasso! Sentido e afeto são singularidades a serem experienciadas. Para tanto, faz-se

necessário paixão, entusiasmo – sentido.

Semelhante ao poeta que não nomeia nem atribui nomes, mas diz com o cuidado

da palavra chamo atenção para a escuta da palavra enquanto gesto verbal. O poeta, o

tradutor e também o crítico de uma obra deve voltar-se para a obra naquilo que ela é: a

obra sendo. Sem excessos ou erudição, sem adornos ou predicação, mas com a

simplicidade de partilhar o que não pode deixar de ser simples, devemos pensar a arte

como uma pulsão contínua. Daí a importância de pensarmos as possibilidades de

interpretação da arte e suas provocações. A arte é um mistério. E nós, o que somos?

Somos mistério sendo. Plenitude – anunciação. Somos as núpcias de sentido e

possibilidades no estarmos sendo. Poetas de poesia e música.

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CONLUSÃO

Poesia e pensamento

Há uma magia secreta nas palavras do poeta. Algo que nos envolve

completamente, suspendendo nossas certezas de maneira súbita e inesperada. Não sei se

a melhor definição para o poeta seja bruxo ou alquimista das palavras, visionário ou

pensador. Escrevi estas palavras pela primeira vez após finalizar a tradução do ciclo de

poemas “À vida”, de Marina Tsvetáieva. Além de perceber que os dois poemas deste

ciclo são um convite para vivermos a vida tal qual ela se apresenta, fui também

motivada a refletir sobre a essência da sua poesia. Daí eu ter dito que há algo secreto nas

palavras do poeta. Esse algo secreto é a poesia, possibilidade que nos afeta e atrai. No

entanto, a poesia não é apenas isso. Como pensar, então, o poético em Tsvetáieva? A

resposta é bastante simples: deixando-se apreender pela sua própria poesia. E não querer

classificá-la. Ah, árduo exercício! Hoje, com o fim deste Mestrado, percebo que a

essência da sua poesia dá-se de maneira singular em cada poema. E que nada do que eu

disse até aqui esgota as possibilidades da sua obra. As palavras do poeta vêm carregadas

de mistério. Todo mistério é um convite para se adentrar no silêncio. Por isso, os

caminhos de uma obra poética e de pensamento são vastos. O que podemos (e

devemos!) fazer é habitar em uma de suas possibilidades e com ela – ser.

O dizer poético atinge-nos de maneira tão profunda que, curiosamente,

consideramos a vida mais leve, isto é, menos árida. Quando tomamos conhecimento de

que os poetas, na maioria das vezes, têm uma vivência miserável passamos a enxergar a

nossa própria vida com outros olhos; começamos a dar mais atenção ao silêncio de nós

mesmos. É como se despertássemos para a sentença Délfica: “Conhece-te a ti mesmo”.

Ou para o dizer de Píndaro: “Venha a ser o que tu és”. Toda obra poética é um chamado

para pensarmos nosso modo próprio de ser. Cuidar do que somos deveria ser o nosso

maior empenho. Somente quando conhecemos as nossas possibilidades, os nossos

limites, é que nos tornamos o que já somos desde sempre.

Li e traduzi Marina Tsvetáieva com paixão? Sim. Acredito que em literatura só

estudamos e pesquisamos com seriedade quando há paixão pelo que se faz. É preciso

que sejamos tocados pela obra para que nela penetremos. Toda obra que nos toca

essencialmente nos faz habitar nas suas possibilidades. Evidentemente, minha leitura e

tradução não esgotam as possibilidades de traduzir/ler a sua obra. Em minha incessante

travessia entre o vazio a inteireza da obra de Marina, muitos foram os instantes em que

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me vi diante da incompletude e do esboço do poema. Esforcei-me, assim, a encontrar a

palavra na sua plenitude. Não me prendi em metros, e sim me deixei conduzir pelo

ritmo-verbal da sua poesia. Desprender da forma para ganhar sentido, deixando-me

atravessar pelas possibilidades oferecidas pela própria obra. Eis o que eu busco

diariamente... Estou certa de que existem algumas lacunas, de que poderia ter seguido

outro caminho, no entanto, nenhum pensamento esgota uma questão. Todo pensar é

meditativo e nos devolve a própria questão. Nessa condição de contínuo sendo, poesia e

pensamento – aproximam-se. E nos lançam no risco de sempre poetizar e pensar.

Considero este trabalho mais um mosaico de provocações do que a comprovação

de algo. As reflexões que aqui foram desenvolvidas são frutos de um espírito que tem

sede de saber, que não se contenta com o já dado. Provocar e receber provocações –

meu único interesse. Minha intenção foi manter Marina Tsvetáieva presente, narrando

os próprios acontecimentos, convocando-nos a experienciar um modo de ser que nos

seja próprio. Talvez haja um pouco de excessos, de delírios. Mas como pensar com

medida quando somos movidos pela paixão de ser? De qualquer maneira, não dou por

finda esta dissertação. Pelo contrário! É agora que ela começa. O diálogo com os

poemas que foram traduzidos vigora. E meus pensamentos permanecem em turbilhão.

Após a releitura deste trabalho tive a sensação de que poderia ter feito diferente.

Reconheço que é um trabalho extenso. Mas como pensar a essência da poesia em

Marina Tsvetáieva, a musicalidade dos seus poemas, se não encontramos um material

abrangente em vernáculo? Como traduzir sem se ver às voltas com a tarefa do tradutor?

Como pensar sem exagerar? E apreender a poesia como plenitude de sentido sem fazer

confusão entre poema e poesia? Naveguei por amplos mares. Embrenhei-me por

caminhos sinuosos. Todavia, o medo de me ver à deriva ou perdida na floresta de meus

pensamentos não me atordoa. Um pensamento que não é ousado não é digno de ser

pensado. Nenhuma linha desta dissertação foi escrita de maneira passiva. Entreguei-me

à atividade do próprio pensar. E, se tenho agora a sensação de que poderia ter dito mais

e melhor, é porque me deparo com minha própria finitude.

Propus-me a traduzir Marina Tsvetáieva e me vi diante de questões inerentes à

vida. Coloquei-me à escuta da poesia. O que quero dizer com isso? Que o viver, na sua

plenitude, se faça obra. E a serenidade me acolha, possibilitando que eu siga adiante

sempre atenta e aberta ao diálogo.

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