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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PLANTINGA E O SEU ARGUMENTO CONTRA O NATURALISMO Vitor Grando da Silva Pereira 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PLANTINGA E O … · naturalismo traz problemas epistemológicos sérios, implicando um radical ceticismo epistêmico. Alternativamente, supõe-se

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PLANTINGA E O SEU ARGUMENTO CONTRA O NATURALISMO

Vitor Grando da Silva Pereira

2019

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PLANTINGA E O SEU ARGUMENTO CONTRA O NATURALISMO

Vitor Grando da Silva Pereira

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-graduação em Lógica e

Metafísica da Universidade Federal do Rio

de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre

em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Guerizoli

Rio de Janeiro

Agosto de 2019

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PLANTINGA E O SEU ARGUMENTO CONTRA O NATURALISMO

Vitor Grando da Silva Pereira

Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Guerizoli Teixeira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Lógica e

Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Aprovada por:

_______________________________

Presidente, Prof. Rodrigo Guerizoli Teixeira

_______________________________

Prof. Agnaldo Cuoco Portugal

_______________________________

Prof. Guido Imaguire

Rio de Janeiro

Agosto de 2019

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“When we hear of some new attempt to

explain reasoning naturalistically, we

ought to react as if we were told that

someone had squared the circle”

Peter Geach

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RESUMO

PEREIRA, Vitor Grando da Silva Pereira. PLANTINGA E O SEU ARGUMENTO

CONTRA O NATURALISMO. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em

Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de

Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,

2019

Alvin Plantinga argumenta que a admissão conjunta de naturalismo e evolucionismo

implica um severo derrotador para a confiabilidade de nossas faculdades cognitivas.

A probabilidade de nossas faculdades cognitivas serem confiáveis dada a sua

origem evolutiva em conjunto com uma metafísica naturalista é baixa ou

inescrutável. Sendo assim, o naturalista que adere ao evolucionismo não poderia

manter a crença na sua própria racionalidade, o que lhe exigiria optar por uma das

opções de um dilema: ou rejeitar o naturalismo ou o evolucionismo. Rejeitando o

evolucionismo, tem-se uma posição radicalmente contrária à ciência moderna. Por

outro lado, rejeitar o naturalismo implicaria admitir alguma origem sobrenatural para

a cognição humana. Nessa dissertação, avaliamos o argumento de Plantinga à luz

das objeções presentes na literatura relevante. Nossa hipótese é que o argumento

resiste às objeções apresentadas.

PALAVRAS-CHAVE: Alvin Plantinga, Naturalismo, Garantia Epistêmica.

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ABSTRACT

PEREIRA, Vitor Grando da Silva Pereira. PLANTINGA E O SEU ARGUMENTO

CONTRA O NATURALISMO. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em

Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de

Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,

2019

Alvin Plantinga argues that naturalism coupled with evolutionism implies a defeater

for the reliability of our cognitive faculties. The probability of our cognitive faculties

being reliable given their evolutionary origins is low or inscrutable. Therefore, the

evolutionary naturalist can not hold his belief in its own rationality pushing him to a

dilemma: rejecting naturalism or rejecting evolutionism. By rejecting evolutionism, he

puts himself against the consensus of modern science. On the other hand, rejecting

naturalism would imply the belief in a non-natural origin for human cognition. In this

dissertation, we evaluate Plantinga’s argument in light of the relevant objections

available on the literature. Our hypothesis is that the argument resist all of these

objections.

KEYWORDS: Alvin Plantinga, Naturalism, Epistemic Warrant.

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Pereira, Vitor Grando da Silva.

Plantinga e o seu Argumento Contra o Naturalismo/ Vitor Grando da Silva Pereira. - Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGLM, 2019. xiii, 78f.: il.; 31 cm.

Orientador: Rodrigo Guerizoli Teixeira Dissertação (mestrado) – UFRJ/ PPGLM/ Programa de Pós-graduação em Lógica e Metafísica, 2019. Referências Bibliográficas: f. 76-78. 1. Epistemologia. 2. Alvin Plantinga. I. Teixeira, Rodrigo Guerizoli. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica. III. Título.

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Introdução 8

1. O Argumento Evolucionista Contra o Naturalismo 12

1.1 Epistemologia e Evolução 12

1.2 Naturalismo 14

1.3 Evolucionismo versus Naturalismo 17

1.4 A Dúvida de Darwin 24

1.5 Considerações Finais 29

2. Objeções à premissa 1: 30

2.1 Considerações Iniciais 30

2.2 O Confiabilismo Evolucionário de William Ramsey 30

2.2.1 A Falácia de Ramsey 34

2.3 O Calvário de Calvino?: A Objeção tu quoque de Evan Fales 38

2.3.1 A Doutrina da Imago Dei 40

2.3.2 Por que o Naturalista Não Pode Acrescentar Algo a Mais? 42

2.3.3 O Problema do Mal e o AECN 44

2.4 Conclusão 46

3. Objeções à premissa 2: 48

3.1 Considerações Iniciais 48

3.2 A Objeção Reidiana de Bergmann 48

3.3 A Natureza da Derrota Epistêmica 61

3.4 A Objeção da Transpiração 66

Conclusão 73

BIBLIOGRAFIA 75

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Introdução

A presente dissertação pretende investigar o Argumento Evolucionista Contra

o Naturalismo (AECN) de Alvin Plantinga (1932-). Seu argumento pretende

demonstrar que a admissão conjunta do naturalismo metafísico com o 1

evolucionismo darwinista implicaria um derrotador para a confiabilidade das

faculdades cognitivas humanas. Portanto, o naturalista evolucionista seria obrigado a

abrir mão de sua confiança básica da confiabilidade de quaisquer de suas crenças

derivadas das suas faculdades cognitivas. Sendo assim, o naturalista estaria

encerrado num cenário cético dos mais radicais.

Antevendo possíveis críticas, deve-se observar que Plantinga não pretende

criticar o evolucionismo darwinista. Antes, ele não parece interpor qualquer objeção

séria a tal teoria científica. Seu objetivo é tão somente demonstrar que essa teoria,

se admitida num contexto naturalista, implicaria sérios problemas epistemológicos

para a confiança na racionalidade humana. Assim sendo, a objeção força aquele que

admite conjuntamente o naturalismo (N) e o evolucionismo (E) a optar por uma das

opções da conjunção. Restando, portanto, a quem adere a N&E as opções de (1)

abandonar a crença na teoria da evolução, um dos pilares da ciência moderna, ou

(2) “apostatar” do naturalismo rumo ao supernaturalismo . 2

Plantinga, todavia, não abraça o ceticismo implicado pelo seu argumento. Isso

se dá em razão de sua rejeição da primeira parte da conjunção: o naturalismo

metafísico. Enquanto teísta , Plantinga acredita que o teísmo fornece o arcabouço 3

metafísico necessário para sustentar a confiabilidade de nossas faculdades

cognitivas mesmo diante da admissão do evolucionismo. Portanto, como questão

corolária ao seu argumento, o teísmo é sugerido como alternativa metafísica capaz

1 Naturalismo metafísico é essencialmente a posição que rejeita a existência de entidades não-naturais tais como Deus e quaisquer outras similares. Veja a seção 1.2 para maiores explicações. 2 Como antítese ao naturalismo, o supernaturalismo é a posição metafísica que admite a existência de entidades não-naturais tais como Deus e semelhantes. 3 O teísmo é posição que afirma a existência de um Deus que intervém na ordem natural.

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de fornecer as ferramentas necessárias para uma defesa da confiabilidade de nossa

cognição e como compatível com o evolucionismo.

O que se pretende com esse trabalho é proceder à análise detida do

argumento de Plantinga e das principais críticas presentes na literatura para que

possamos apresentar ao leitor uma conclusão sobre a sua solidez. A teoria da

evolução é um dos mais importantes alicerces da ciência moderna. Portanto, não se

pode evitar investigar suas implicações na área da epistemologia. Se o ser humano

é fruto de um longo processo de seleção natural, é de se esperar que tal processo

tenha contribuído substancialmente para o funcionamento do cérebro humano e da

forma que adquirimos crenças. Objetiva-se, assim, investigar de que maneira o

evolucionismo em conjunto com o naturalismo podem ter dado origem a

mecanismos cujo propósito fundamental seja a produção de crenças verdadeiras e

não meramente a garantia da aptidão e reprodução.

A dissertação consiste em três capítulos e a subsequente conclusão. No

capítulo 1, desenvolvemos o argumento conforme exposto por Plantinga. Nos

debates em torno do argumento, as objeções se dirigem às suas duas primeiras

premissas. A primeira delas aponta que a probabilidade de as faculdades cognitivas

humanas serem confiáveis é baixa ou no máximo inescrutável. A segunda aponta

que isso implicaria um derrotador para a confiabilidade das faculdades cognitivas

humanas. Portanto, um capítulo será dedicado a cada premissa. Em relação à

primeira premissa, tema do segundo capítulo, temos a Objeção do Confiabilismo

Evolucionário proposta por William Ramsey, segundo o qual o evolucionismo seria

um meio que tende à formação de mecanismos cognitivos confiáveis. Temos

também a Objeção Tu Quoque, levantada por Evan Fales, que sugere que se o

naturalismo tem um problema para a sustentação de mecanismos cognitivos

confiáveis, o teísmo de Plantinga apresenta problemas ainda mais sérios. Já em

relação à segunda premissa, tema do terceiro capítulo, temos a Objeção Reidiana,

elaborada por Michael Bergmann, segundo a qual haveria suficiente garantia

não-proposicional para a confiabilidade das faculdades cognitivas humanas (Cf) a

ponto de superar os ataques do AECN. Por fim, temos a Objeção da Transpiração,

que por meio de raciocínios analógicos busca demonstrar que a baixa probabilidade

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de uma dada função biológica não é razão suficiente para desacreditarmos dela.

Logo, o mesmo raciocínio aplicar-se-ia ao AECN. Essa objeção é apresentada por

W.J. Talbott e Trenton Merricks.

Então, o argumento de Plantinga é cogente? Duas perguntas essenciais

devem ser tratadas para se responder a isso. Primeiramente, pergunta-se se a

probabilidade de (Cf) dado (N&E) é de fato baixa. Em seguida, devemos investigar

se, em se concluindo pela baixa probabilidade de (Cf), isso implicaria um rigoroso e

incontornável cenário cético como Plantinga propõe. Pode-se levantar, ainda, uma

terceira questão, a saber, se a admissão do teísmo seria de fato uma alternativa

legítima para solucionar o problema do ceticismo.

A hipótese levantada inicialmente é a de que o argumento de Plantinga

resiste às principais críticas presentes na literatura e, com isso, evidencia que o

naturalismo traz problemas epistemológicos sérios, implicando um radical ceticismo

epistêmico. Alternativamente, supõe-se que o teísmo possa apresentar os recursos

metafísicos necessários para nos livrar do ceticismo. A hipótese teísta surge,

portanto, como a alternativa mais evidente ao naturalismo e aos seus possíveis

problemas.

Assim, esta pesquisa cumpre o propósito de introduzir o leitor àquele que

possivelmente é o mais controverso argumento do importante filósofo Alvin

Plantinga, trazendo à tona problemas filosóficos importantes e com implicações as

mais urgentes, a saber: a confiabilidade de nossas faculdades cognitivas e, por

conseguinte, das crenças daí derivadas.

A primeira versão publicada do AECN surgiu em 1993 em Warrant and Proper

Function e desde então passou por diversos refinamentos. Nisso destaca-se a

coletânea de ensaios críticos Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga’s

Evolutionary Argument, seguidos da réplica de Plantinga. O argumento recebeu sua

última formulação em 2011 no livro Where the Conflict Really Lies: Science, Religion

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and Naturalism . É sobre essa última versão que concentramos nossa análise, 4

buscando na referida coletânea de ensaios críticos o devido contraponto.

4 A obra foi traduzida e publicada pelas Edições Vida Nova em 2018. Cf. PLANTINGA, Alvin. Ciência, religião e naturalismo: onde está o conflito?. São Paulo: Edições Vida Nova, 2018.

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1. O Argumento Evolucionista Contra o Naturalismo

1.1 Epistemologia e Evolução

A Epistemologia Evolucionária se insere no contexto mais amplo das

epistemologias naturalistas. Sua marca distintiva é a ideia de que a cognição deve

ser entendida primariamente como produto da evolução biológica. A evolução

biológica, por sua vez, é considerada pré-condição de uma variedade de fatores

comportamentais, sociais e cognitivos que um ser humano ou grupo pode

apresentar. Assim, as faculdades cognitivas humanas são entendidas como fruto

desse processo, de modo que se torna imprescindível avaliarmos questões relativas

ao conhecimento humano e propriedades epistêmicas, como garantia e justificação,

à luz das implicações evolutivas. A epistemologia não poderia passar ao largo do

fato de que os mecanismos pelos quais obtemos as crenças que temos foram

formados através desse longo processo. Deste modo, impõe-se inexoravelmente à

epistemologia a tarefa de reavaliar suas discussões históricas à luz daquele

processo fundamental. Esse é o objeto da epistemologia evolucionista.

Se ficamos com o Deus de Descartes, fiador de nosso conhecimento, ou com

o seu maligno gênio enganador, é uma questão que dificilmente pode ser respondida

ignorando as descobertas darwinistas, a não ser que rejeitemos o consenso

científico atual em prol de uma leitura literalista dos textos religiosos da criação e

abracemos os criacionismos daí derivados. Certamente não se trata de uma

alternativa bem-vinda na ciência moderna. Pode o evolucionismo fazer as vezes do

Deus cartesiano e oferecer o subsídio necessário à confiabilidade de nossas

faculdades cognitivas? Ou estaria o evolucionismo mais próximo de um gênio

maligno enganador? Diferentes filósofos têm oferecido interpretações distintas e

mutuamente contraditórias das implicações da biologia darwinista para a justificação

epistêmica . Considerações darwinistas têm sido utilizadas tanto para justificar 5

5 Cf. CRUZ, Helen de et al. Evolutionary Approaches to Epistemic Justification. Dialectica, [s.l.], v. 65, n. 4, p.517-535, 22 nov. 2011. Wiley. http://dx.doi.org/10.1111/j.1746-8361.2011.01283.x..

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quanto para refutar a garantia epistêmica de uma variedade de crenças, desde

crenças sobre um recorte específico da realidade, tais como crenças do senso

comum, morais, religiosas ou até mesmo científicas, quanto crenças sobre aspectos

mais amplos da nossa apreensão da realidade.

A teoria de Darwin faz tanto as vezes do Deus de Descartes, quanto de seu

gênio maligno. Quine e Popper , por exemplo, propuseram que a evolução tenderia 6

a eliminar os organismos com crenças profundamente equivocadas sobre a

realidade. Stephen Stich , por outro lado, aponta diversas limitações no processo 7

evolutivo que eventualmente resultam em processos muito aquém do que seria mais

otimizado. O próprio Darwin lançou dúvidas sobre a confiabilidade de nossos

mecanismos cognitivos à luz dos princípios evolutivos por ele descritos:

Uma terrível dúvida sempre surge em mim, qual seja, se as convicções da

mente do homem, que se desenvolveram a partir da mente de animais

inferiores, são de algum valor ou confiáveis. Quem confiaria nas convicções

da mente de um macaco, se é que há quaisquer convicções em tal mente? 8

Deveríamos confiar na mente de um símio evoluído? É o questionamento que

o próprio Darwin levantou. Naturalmente, a época em que viveu favorecia esse tipo

de questionamento. Ainda assim, seu questionamento é relevante. Alvin Plantinga

acrescenta ao time dos céticos um argumento em que ataca não exatamente a

capacidade do processo evolutivo de nos prover mecanismos cognitivos confiáveis,

mas, especificamente, a racionalidade de se crer na conjunção entre naturalismo e

evolucionismo. Seu ceticismo, portanto, não se volta estritamente às capacidades do

evolucionismo, mas, particularmente, ao evolucionismo visto sob a ótica de uma

metafísica naturalista. Essa interpretação da teoria evolucionista é melhor descrita

na palavras de Richard Dawkins:

A despeito de todas as aparências, os únicos relojoeiros da natureza

são as forças cegas da física, ainda que atuem de um modo muito especial.

6 PLANTINGA, Alvin. Warrant and Proper Function. Nova Iorque: Oxford University Press, 1993. p. 218, 219. 7 Cf. CRUZ, Helen de et al. Evolutionary Approaches to Epistemic Justification. Dialectica, [s.l.], v. 65, n. 4, p.517-535, 22 nov. 2011. Wiley. http://dx.doi.org/10.1111/j.1746-8361.2011.01283.x. 8 PLANTINGA, Alvin. Op. Cit., p. 219

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Um verdadeiro relojoeiro possui antevisão: ele projeta suas molas e

engrenagens e planeja suas conexões imaginando o resultado final com um

propósito em mente. A seleção natural, o processo cego, inconsciente e

automático que Darwin descobriu e que agora sabemos ser a explicação para

a existência e para a forma aparentemente premeditada de todos os seres

vivos, não tem nenhum propósito em mente. Ela não tem nem mente nem

capacidade de imaginação. Não planeja com vistas ao futuro. Não tem visão

nem antevisão. Se é que se pode dizer que ela desempenha o papel de

relojoeiro da natureza, é o papel de um relojoeiro cego. 9

Para Dawkins, o processo de evolução por seleção natural é completamente

cego e não dirigido. Contrariando o famoso argumento de William Paley, que

comparava o universo a um relógio e dizia que assim como a produção de um

relógio exige um relojoeiro, a produção do universo exigiria um projetista. Se há um

relojoeiro por trás do universo, ele é, para Dawkins, um relojoeiro cego. É a

descrição de um universo sem teleologia, sem Deus, um universo naturalista.

Segundo Plantinga, a teoria da evolução entendida de forma estritamente

naturalista, como propõe Dawkins, resultaria num poderoso derrotador para a 10

confiabilidade de nossas faculdades cognitivas e, por conseguinte, de todas as

crenças por elas produzidas. Tem-se, deste modo, um argumento em defesa de um

ceticismo global.

9 DAWKINS, Richard. O Relojoeiro Cego: A Teoria da Evolução Contra o Desígnio Divino. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 10 A derrotabilidade é a propriedade que uma crença tem de ter sua justificação/garantia diminuída ou mesmo anulada. O derrotador, nesse caso, seria a condição que atualiza esse potencial. Derrotadores podem ser proposicionais ou de estados mentais. Um derrotador proposicional é toda proposição existente que atualiza a derrota. P. ex., no exemplo clássico dos “falsos celeiros” de Carl Ginet, a proposição de que os habitantes de Wisconsin ergueram dezenas de falsos celeiros é o derrotador para a garantia de sua crença de que há um celeiro à sua frente. Por derrotadores de estados mentais entende-se não aquilo que é derrotado, mas aquilo que realiza a derrota, a saber, estados mentais tais como crenças ou experiências do sujeito. Numa síntese, diríamos que um derrotador de um estado mental de uma crença C é todo estado mental C* que, ao ser obtido, anula ou diminui a garantia que se tinha para a crença C.(cf. BERGMANN, Michael. Justification Without Awareness. Nova Iorque: Oxford University Press, 2006, pp. 153;177)

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1.2 Naturalismo

Naturalismo é um termo muito abrangente e de conotações bastante

diferentes a depender do contexto no qual está inserido. Existem ao menos três 11

variedades de naturalismo na literatura: epistemológico, metafísico e metodológico.

Michael Devitt caracteriza o naturalismo como a ideia de que “há somente uma

maneira de conhecer: a maneira empírica que é a base da ciência (qualquer que

seja essa maneira)” . David Armstrong, por sua vez, caracteriza-o como a ideia de 12

que existe um único sistema espaço-temporal todo-abrangente . Não parece haver 13

muita semelhança entre as duas definições. Na verdade, ambos estão definindo

variações distintas de naturalismo. Devitt caracteriza o naturalismo epistemológico,

ao passo que Armstrong caracteriza o naturalismo metafísico. Quanto ao

naturalismo epistemológico , a definição de Devitt é a tese do empirismo. 14

Dada a multiplicidade de definições de naturalismo, Michael Rea identifica

como essência partilhada por aqueles proclamados naturalistas um conjunto de

11 A discussão sobre as definições do termo segue REA, Michael. World Without Design: The Ontological Consequences of Naturalism. Nova Iorque: Oxford University Press, 2002, pp. 50-73. 12 DEVITT, Michael. Naturalism and the A Priori. Philosophical Studies, v. 92, 1997, p. 35. 13 ARMSTRONG, David. Naturalism, Materialism and First Philosophy. In: MOSER, Paul ; TROUT, J.D. (ed.). Contemporary Materialism. Nova Iorque: Routledge, 1995. p. 35-46. 14 Não obstante, deve-se distinguir duas formas de naturalismo epistemológico: a tese sobre a disciplina da epistemologia e a tese sobre o conhecimento ou crença justificada. O naturalismo epistemológico enquanto tese sobre a epistemologia, mais conhecida como “epistemologia naturalizada”, é a ideia de que as propriedades epistêmicas normativas como a justificação, a garantia e a racionalidade reduzem-se a propriedades descritivas do funcionamento da mente humana. Se, na epistemologia tradicional, a propriedade da justificação é definida a priori como uma certa relação lógica entre determinadas crenças e suas evidências, na epistemologia naturalizada o conhecimento humano deve ser entendido à luz também de fatores a posteriori como a relação causal psicológica entre os mecanismos psicológicos e as crenças daí resultantes. Neste sentido, a epistemologia naturalizada não é necessariamente empirista, admitindo, portanto, outras formas de conhecimento. Por essa razão a epistemologia de Plantinga pode ser corretamente denominada naturalista. Ainda que se admita a legitimidade de crenças não adquiridas empiricamente, como as crenças religiosas, a noção de garantia é uma função do funcionalismo apropriado das faculdades cognitivas do indivíduo e, nesse sentido, as propriedades da garantia são descrição de um processo rigorosamente natural. O naturalismo epistemológico enquanto entendido como uma tese sobre a natureza do conhecimento consiste, por sua vez, na tese fundamental do empirismo, de acordo com a qual todo conhecimento é fundamentado na observação empírica. Sobre a epistemologia naturalizada, cf. KIM, Jaegwon. What is "Naturalized Epistemology"? Philosophical Perspectives, Epistemology, v. 2, pp.381-405, 1988

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disposições metodológicas: (a) aqueles que se dizem naturalistas se unem ao

menos em parte por disposições metodológicas que excluem a adesão a posições

que não possam ser questionadas por desenvolvimentos ulteriores da ciência e (b)

nenhum deles parece admitir que ulteriores desenvolvimentos científicos possam

forçar alguém a rejeitar o naturalismo. Por isso, ele entende o naturalismo mais

como, no fundo, um programa de pesquisa, um determinado modo de conduzir a

reflexão científica e o trabalho intelectual usando apenas os métodos e técnicas das

ciências empíricas.

Parece haver, então, uma incoerência constante no pensamento daqueles

que se denominam naturalistas, pois ou eles definem o naturalismo como uma

posição metafísica forte que antecede qualquer desenvolvimento científico e, nesse

caso, o naturalismo se tornaria exatamente o tipo de tese que o naturalista, no seu

apego ao avanço científico, tanto condena; ou eles definem a sua posição metafísica

como tudo aquilo que é fruto do conhecimento científico atual e posterior, podendo a

ciência, portanto, vir eventualmente a desacreditar o naturalismo enquanto tese

metafísica.

Mas deixemos por ora as nuances internas do naturalismo de lado e

atenhamo-nos à definição usada por Plantinga em seu trabalho. Afinal, o que ele

entende por naturalismo? Trata-se, em primeiro lugar, do naturalismo metafísico,

que consiste na ideia de que não existe um Deus ou alguma entidade como Deus.

Não é mero sinônimo de ateísmo, todavia. Naturalismo é uma tese mais forte, pois

inclui a negação de toda entidade que não possa ser descrita pelos métodos da

física atual. Portanto, podemos definir o naturalismo como a negação da existência

de Deus e demais entidades que se aproximem em alguma medida do conceito de

Deus . Assim, provavelmente um naturalista teria que negar não só a existência de 15

Deus, mas também do motor imóvel de Aristóteles, da ideia do Bem de Platão, do

Absoluto de Hegel, e de quaisquer entidades de natureza semelhante.

O naturalismo usufrui de um certo status de ortodoxia na academia

contemporânea. Talvez o mesmo status que o teísmo cristão usufruía no período

15 A definição de Plantinga encontra-se exposta em PLANTINGA, A.; TOOLEY, M. Conhecimento de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 29-32

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escolástico. Aquele programa de pesquisa amplamente religioso, mais

especificamente teísta cristão, foi substituído pelo naturalismo. Agora, porém, Deus

parece estar de fato morto. Tão seguramente morto que até mesmo na teologia

houve, em meados do século XX, um movimento denominado “A Teologia da Morte

de Deus”, que propunha, literalmente, não obstante a estranheza da coisa, que Deus

havia outrora existido, mas que agora - como dizer? - a divindade havia morrido. Se

por suicídio ou morte natural, ainda não sabemos. O fato, porém, é que o

naturalismo foi uma posição privilegiada na teologia do século XX . Plantinga, 16

nadando contra essa corrente, pretende demonstrar que a admissão da conjunção

entre naturalismo metafísico e teoria da evolução implica irracionalidade; e, ainda,

que, por outro lado, a conjunção entre teísmo e teoria da evolução estaria imune a

esses problemas, devendo, portanto, ser preferida.

1.3 Evolucionismo versus Naturalismo

Não raro os naturalistas são muito estridentes em recorrer ao evolucionismo

como um inabalável aliado de sua posição metafísica. As noções de aleatoriedade

no processo de mutação genética que eventualmente resulta em vantagens

adaptativas, pelo que se sugere, tornou a intervenção divina totalmente dispensável,

fazendo da posição naturalista algo muito confortável e amistoso à ciência

contemporânea.

Afinal, como poderia um processo de mutação aleatória ser orientado por uma

inteligência? Supor que um processo tenha sido orientado por Deus com uma dada

teleologia parece contradizer a própria definição de aleatoriedade. Mas trata-se aqui

de um equívoco recorrente. A aleatoriedade daquele processo não é sinônimo de

acaso. De acordo com o biólogo Ernst Mayr, “quando se diz que uma mutação ou

variação é aleatória, a afirmação significa tão somente que não há correlação entre a

16 Cf. por exemplo a posição de um teólogo cristão como Rudolf Butmann: “É impossível usar a luz elétrica e o rádio ou, quando doente, recorrer ao auxílio da medicina ou das descobertas científicas e, ao mesmo tempo, acreditar no mundo de espíritos e milagres apresentados pelo Novo Testamento” (BULTMANN, Rudolf. New Testament and Mythology. Fortress Press, 1984, p. 4).

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19

produção de novos genótipos e as necessidades adaptativas de um organismo em

um dado ambiente”. Elliot Sober, renomado filósofo da biologia, acrescenta: “não 17

há nenhum mecanismo físico (seja dentro dos organismos ou fora deles) que detecte

quais mutações serão benéficas e cause a ocorrências dessas mutações”. 18

Analogamente, pode-se explicar o processo de seleção natural recorrendo à

dificuldade que encontramos ao tomarmos na mão um molho de chaves e termos

que descobrir por tentativa e erro qual a chave certa para girar a fechadura. Assim

como o processo de escolha das chaves é completamente aleatório e não definido

pelo formato da fechadura, o processo de seleção natural também é aleatório e não

definido pela característica fenotípica adaptativa.

Corretamente entendido o conceito de aleatoriedade, fica claro que tal

aleatoriedade é compatível com a condução do processo por orientação divina não,

implicando, portanto, uma metafísica naturalista. Por outro lado, também temos a

alegação que o processo de evolução é “cego”, isto é, não é dirigido. Assim, ele

careceria de qualquer teleologia.

Era nesse sentido que o famoso paleontólogo Stephen Jay Gould afirmava

que somos um glorioso acidente cósmico. Ele escreve: “Rebobine a fita da vida para

os primeiros dias do Folhelho de Burgess. Toque-a novamente do mesmo ponto de

partida, e a chance de que qualquer coisa parecida com a inteligência humana

agraciasse o replay se torna quase nula” . 19

Daniel Dennet é ainda mais explícito em sua rejeição à teleologia ao

questionar se a complexidade biológica existente pode ser “realmente o resultado de

nada além de uma cascata de processos algorítmicos alimentados pelo acaso? E

nesse caso, quem projetou a cascata?”. Dennet responde “Ninguém. Ela mesma é o

17 MAYR, Ernst. Towards a New Philosophy of Biology: Observations of an Evolutionist. Cambridge: Harvard University Press, 1988, p. 98. 18 SOBER, Elliot. Evolution Without Naturalism? in: KVANVIG, Jonathan. Oxford Studies in Philosophy of Religion, vol 3. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, p. 192. 19 ALEXANDER, Denis R. Criação ou Evolução: Precisamos escolher? Minas Gerais: Editora Ultimato, 2017, p. 351.

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20

produto de um processo cego, algorítmico”. “A evolução não é um processo

projetado para produzir a nós” . 20

Portanto, Gould, Dennet e tantos outros proponentes da teoria da evolução

afirmam taxativamente que evolução não pode ser compreendida como se exibisse

qualquer evidência de plano ou propósito. Mas o biólogo Denis Alexander, da

Universidade de Cambridge, discorda:

É claro que é perfeitamente possível para um cristão dar uma interpretação

providencialista do processo evolutivo, onde Deus cumpre seu perfeito plano

e propósito na história biológica. O ateu, ao contrário, não tem base para crer

num propósito final neste relato. Contudo, quero levantar uma questão um

pouco diferente. A descrição evolutiva exibe propriedades que são mais

consistentes com uma visão teísta ou ateísta de mundo? Quero sugerir que

as descobertas biológicas recentes apontam claramente para a visão teísta

como explicação mais razoável para a existência de toda a história da

evolução no planeta Terra . 21

Inicialmente, Alexander observa que há uma inegável seta direcional de

organismos mais simples para organismos mais complexos. Por alguma razão, o

processo evolutivo parece ser unidirecional, do simples para o complexo. Não se

pode negar, portanto, que há um progresso linear nesse processo.

Somado a isso, o fenômeno da chamada “convergência” também parece

sugerir que o processo evolutivo não é tão cego como propusera Stephen J. Gould.

A convergência consiste na evolução repetida, em linhagens independentes, da

mesma rota bioquímica, do mesmo órgão ou estrutura. Isso quer dizer que, entre as

inúmeras possibilidades que o curso evolutivo pode tomar, a evolução possui a

propensão de seguir certas soluções aparentemente predeterminadas. Exemplo

paradigmático de convergência são as notáveis semelhanças entre os dentes em

forma de adaga do tigre dente-de-sabre placentário, oriundo da África, e o seu

equivalente marsupial encontrado na América do Sul. Apesar de sua origem distinta,

o dente-de-sabre evoluiu de forma convergente em ambas as espécies apesar de

20 Ibid. 21 ALEXANDER, Denis R. Criação ou Evolução: Precisamos escolher? Minas Gerais: Editora Ultimato, 2017, p. 352.

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sua trajetória evolutiva independente. Na história evolutiva multiplicam-se os

exemplos de convergência.Por isso, ao comentar sobre a suposta aleatoriedade

última do processo evolutivo, o biólogo Simon Conway Morris afirma que:

Hoje, é amplamente aceito que a história da vida não passa de uma confusão

contingente, pontuada por extinções em massa desastrosas que,

determinando o desastre para um grupo, abrem as portas da oportunidade

para uma nova leva de azarões [...] rebobine a fita da vida [...] e o resultado

final será uma biosfera totalmente diferente. Mais notavelmente, não haverá

nada remotamente parecido com um ser humano. No entanto, o que

sabemos sobre a evolução sugere exatamente o contrário: a convergência é

onipresente e as limitações da vida tornam a emergência de várias

propriedades biológicas (por exemplo, a inteligência) muito provável, se não

inevitável. 22

Assim, à luz do exposto deve-se rejeitar a visão proposta por Stephen Jay

Gould, Dennet e outros. O processo evolutivo parece ser bastante ordenado, e de

nenhuma maneira radicalmente aleatório. Pelo contrário, pode-se sugerir, sem

nenhuma violência aos pressupostos evolutivos, que a evolução converge ao seus

observadores, isto é, aos seres humanos. As fechaduras estão predefinidas,

aguardando que o processo encontre a chave correta por tentativa e erro. Longe de

ser cego, o relojoeiro da evolução parece ter olhos - olhos de lince.

Mas, ainda que se reconheça a direcionalidade intrínseca ao processo

evolutivo, seria essa direcionalidade equivalente à teleologia, ou seja, a uma teoria

de finalidade ou propósito? É preciso deixar claro que embora a teleologia possa ser

definida de maneira teísta, há também espaço para uma teleologia não teísta. Neste

caso, a teleologia seria mais bem entendida de maneira sobretudo fenomenológica,

e não tanto teórica propriamente dita. Para Aristóteles, por exemplo, que enfatizava

a noção de uma teleologia da natureza, a teleologia era entendida mais como como

22 MORRIS, Simon Conway. Life’s Solution: Inevitable Humans in a Lonely Universe. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

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um objetivo internalizado da coisa do que como um propósito imposto por um agente

externo (tal como Deus).

Desta maneira, podemos diferenciar duas formas distintas de se entender a

teleologia no processo evolutivo. Uma teleologia extrínseca, onde a direcionalidade

do processo é entendida como orientada por um agente externo tal como Deus, ou

uma teleologia intrínseca, onde aquele conceito pode ser entendido como indicando

uma disposição interna da própria natureza ou, num sentido ainda mais fraco, como

mero recurso linguístico numa interpretação fenomenológica da aparente

direcionalidade da natureza. Portanto, no argumento de Plantinga, o naturalismo

somado à evolução distingue-se da perspectiva teísta por rejeitar qualquer teleologia

extrínseca . 23

Se nos é permitido uma incursão nos meandros da teologia propriamente

cristã, é curioso observar que teólogos como Gregório de Nissa (335-394) e

Agostinho de Hipona (354-430) já propuseram uma espécie de criação evolutiva.

Ambos recorreram à distinção tipicamente aristotélica entre ato e potência para

sugerir que a criação é um ato contínuo pelo qual Deus atualiza potências dispostas

na criação. O caráter ad hoc dessa explicação não se coloca, dado que ambos

escreveram séculos antes das inovações de Darwin.

Analisando a obra de Agostinho De Genesi ad litteram, Alister McGrath

comenta: “O mundo fora criado com uma potencialidade inerente de se tornar o que

Deus pretendia que ele se tornasse ao longo do tempo, o que fora concedido no ato

primordial da Criação” . A Doutrina da Criação assim entendida é consistente de 24

forma bastante surpreendente e curiosa com a ideia de convergência evolutiva. Não

avançaremos nessa discussão teológica sobre a evolução, mas penso estar

23 A distinção entre teleologia intrínseca e extrínseca é baseada na discussão proposta por SOOTIENS, F.J.K. Evolution: Teleology or Chance? Journal for General Philosophy of Science 22, 1991, p. 133-141. Segundo o autor, a noção de teleologia de Aristóteles é reinterpretada pelos autores medievais à luz da Revelação cristã: “Sob a influência da teologia cristã, esse conceito aristotélico de 'teleologia intrínseca' foi radicalmente transformado. A Natureza passou a ser vista como o resultado de uma 'teleologia externa: toda ordem natural e todos os processos naturais eram o resultado dos propósitos e planos de Deus. Enquanto para Aristóteles a teleologia natural era a pré-condição à teleologia (humana) de um sujeito, para a Idade Média a teleologia de um Sujeito (divino) se tornou a precondição da teleologia natural”. 24 MCGRATH, Alister. Deus e Darwin: Teologia Natural e Pensamento Evolutivo. Minas Gerais: Ultimato, 2016, p. 226

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suficientemente demonstrada a consistência de uma interpretação teísta da

evolução, conforme sugerido na citação de Denis Alexander. Mostra-se desse modo

que o naturalismo consiste em um acréscimo à teoria da evolução e não numa parte

constituinte dela. O argumento que se segue, portanto, consiste numa tentativa de

apresentar uma dessas possíveis inconsistências que o naturalismo teria com

relação ao processo evolutivo . 25

O Argumento Evolucionista Contra o Naturalismo de Plantinga (AECN)

pretende demonstrar que da conjunção de naturalismo e evolucionismo deve-se

concluir que nossas faculdades cognitivas não são confiáveis e que, portanto, todas

nossas crenças – inclusive a crença no naturalismo – teriam um derrotador para a

sua garantia epistêmica. São quatro as premissas e uma a conclusão do argumento,

que passaremos a apresentar:

1. P(Cf/N&E) é baixa; 26

2. A crença em N&E resulta num derrotador para a crença intuitiva em Cf;

3. Um derrotador para a crença intuitiva em Cf é também um derrotador

para qualquer crença produzida por essas faculdades cognitivas,

incluindo a própria conjunção N&E;

4. A crença em N&E é um derrotador para a conjunção N&E, portanto

N&E é autoderrotante e não pode ser racionalmente aceita;

5. Logo, N&E não pode ser racionalmente aceita.

Segundo Plantinga, a probabilidade (P) de nossas faculdades cognitivas

serem confiáveis (Cf) dada a conjunção entre naturalismo e evolucionismo (N&E) é

25 No final do seu artigo citado acima, F.J.K. Sootiens apresenta o seguinte e interessante questionamento: “Foi a própria teoria da evolução que apontou a relação íntima entre a natureza e o homem. O homem é o produto natural de um processo evolutivo natural: a realização de possibilidades naturais. Portanto, a teoria da evolução - ao invés de ser a coroa do mecanicismo - implicitamente enfraqueceu a concepção mecanicista ateleológica da natureza, porque ela pressupõe uma continuidade entre o homem (teleológico) e a natureza. Nós todos concordamos que o homem é um ser teleológico, mas como pode haver teleologia no homem, quando ele é tão somente o produto acidental de uma natureza ateleológica? Se a natureza e a evolução são ateleológicas, então ou devemos concluir que a teleologia humana se deriva de uma fonte não- (extra-, sobre-) natural, ou devemos concluir que a teleologia humana é uma ilusão. Essa é a escolha fundamental que precisamos fazer”. 26 Leia-se: a probabilidade (P) de nossas faculdades cognitivas serem confiáveis (Cf) dada a conjunção entre naturalismo e evolucionismo (N&E) é baixa.

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24

baixa. Em sendo assim, a admissão da conjunção (N&E) nos forneceria um

derrotador para a confiabilidade de nossas faculdades cognitivas. Em razão disso, o

naturalista estaria comprometido com uma das formas mais severas de ceticismo,

uma forma que “não acredita sequer que as suas faculdades cognitivas são

confiáveis” . 27

Assim como “ceticismo” é uma noção muitas vezes associada ao

“naturalismo”, o "naturalismo filosófico" tem sido costumeiramente incluído como

parte integrante da chamada "cosmovisão científica", como se a prática científica

exigisse a adoção do naturalismo metafísico . Isso parece bastante evidente na 28

citação anterior de Richard Dawkins, onde o naturalismo é tido como parte integrante

da teoria evolutiva. Não raro o naturalismo é colocado como sinônimo de “aquilo que

pode ser descrito pelos métodos da ciência natural” confundindo-se entre uma dada

concepção ontológica substancial e uma disposição metodológica, qual seja, a

disposição de admitir numa ontologia apenas aquilo que pode ser reconhecido pelos

métodos da ciência . 29

Naturalmente, portanto, a teoria da evolução, dado seu notório sucesso, é tida

como grande aliada e sustentáculo do naturalismo metafísico, em contraposição à

posição teísta e semelhantes. O darwinismo, presume-se, é entendido como a pá de

cal do teísmo . No entanto, a teoria da evolução não implica per se o naturalismo 30

metafísico, afirma Plantinga, sendo perfeitamente compatível com a cosmovisão

teísta. O naturalismo, embora seja certamente a posição dominante entre os

evolucionistas, é, na verdade, um acréscimo filosófico àquela teoria – não é parte

indispensável dela.

27 PLANTINGA, A.; TOOLEY, M. op. cit. p. 46. 28 Há aqueles que afirmam que embora a ciência em si não exija a adoção do naturalismo científico, a metodologia científica tem de ser naturalista. São questões sutilmente distintas, mas cuja diferenciação é importante. Plantinga critica essa abordagem em Methodological Naturalism <https://www.calvin.edu/academic/philosophy/virtual_library/articles/plantinga_alvin/methodological_naturalism_part_1.pdf> (acesso em 27/10/2015). 29 Cf. SCHMITT, Frederick. Naturalism. In: KIM, Jaegwon; SOSA, Ernest. Companion to Metaphysics. Oxford: Basil Blackwell, 1995. p. 343-345. 30 É famoso o relato de uma conversa em que Richard Dawkins afirmara a A. J. Ayer que, embora o ateísmo fosse intelectualmente sustentável antes de Darwin, este havia tornado possível a figura de um ateu “intelectualmente satisfeito” (cf. DAWKINS, Richard. The Blind Watchmaker. Nova Iorque: W. W. Norton & Company, 1996, pp. 6, 7).

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25

1.4 A Dúvida de Darwin

A primeira premissa do AECN é a mais importante. Se ela estiver correta,

todas as demais decorrem sem muita dificuldade. Filósofos importantes como

Nietzsche, Thomas Nagel, Barry Stroud e Patricia Churchland manifestaram suas

dúvidas sobre a capacidade de o processo evolutivo formar em nós mecanismos

cognitivos confiáveis. O próprio Darwin, conforme aludimos acima, expressou suas

dúvidas sobre a confiabilidade da mente de um primata evoluído e por isso Plantinga

batiza a primeira premissa de “A Dúvida de Darwin”. É confortável poder recorrer à

autoridade de Darwin. Importa, porém, saber: é procedente a sua dúvida?

Assim, a premissa pergunta: qual é a probabilidade de nossas faculdades

cognitivas serem confiáveis dada a conjunção N&E? Na argumentação de 31

Plantinga, o modo como ele compreende a natureza das crenças é fundamental para

se entender o seu argumento. Todos nós acreditamos em diversas coisas, ou seja,

possuímos estados a que chamamos crenças. Como podemos entender a natureza

de uma crença do ponto de vista naturalista? Considerando que o naturalista rejeita

qualquer entidade que não seja contígua à ordem natural, uma crença teria de ser

uma estrutura neurofisiológica no cérebro humano, isto é, uma entidade possível de

ser descrita em termos estritamente físico-químicos. Se é esse o caso, então as

crenças terão dois gêneros de propriedades, bastante diferentes: por um lado, suas

propriedades neurofisiológicas (propriedades NF), que são suas propriedades

físicas; do outro, terão o que denominamos conteúdo proposicional, que são suas

propriedades mentais.

Se tenho a crença de que a velocidade da luz é de 300.000 km/s, então o

conteúdo dessa crença é a proposição “A velocidade da luz é de 300.000 km/s” . É 32

em virtude desse conteúdo que se pode dizer de uma crença que ela é verdadeira

31 A probabilidade de P dado Q é a probabilidade de P ser verdadeira dado que Q é verdadeira. 32 Evidentemente, o conteúdo proposicional não é equivalente à sentença em língua portuguesa. O falante do chinês expressará a mesma proposição, mas de forma completamente diferente.

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26

ou falsa. A maior parte dos naturalistas aceita o materialismo com respeito aos seres

humanos, isto é, a tese de que o ser humano não tem qualquer outra substância que

não a material. Sendo assim, ele não tem uma alma, por exemplo. Portanto, dado o

materialismo, as crenças são essencialmente atividades neuronais. Se os seres

humanos evoluíram através dos processos descritos pela moderna teoria da

evolução, a pergunta a se fazer é: como entender a relação entre as propriedades

físicas e mentais das crenças?

Em filosofia da mente, o materialista rejeita o dualismo de substância, isto é, a

ideia de que que as propriedades mentais e físicas são propriedades de substâncias

distintas: a propriedade mental seria uma propriedade da substância mental; a

propriedade física, da substância física. Naturalmente, sendo a substância mental

uma substância não-material, o materialista a rejeita. Os materialistas, segundo

Plantinga, apresentam duas teorias sobre a relação entre as propriedades físicas e

mentais: o materialismo redutivo (MR) e o materialismo não-redutivo (MNR). O

materialismo redutivo é a posição que afirma que tais propriedades mentais são

redutíveis às propriedades neurofisiológicas do cérebro. No materialismo

não-redutivo, tais propriedades mentais são sobrevenientes (ou determinadas por)

às propriedades neurofisiológicas do cérebro, isto é, são distintas delas, mas

determinadas por elas, de modo que uma propriedade mental tem um conteúdo m

se e somente se houver uma propriedade neurofisiológica n.

A crença de que a velocidade da luz é de 300.000 km/s se refere a um

determinado conteúdo proposicional. É a esse elemento que a sentença faz

referência. Isso é uma crença. Qual é a probabilidade de essa crença ser verdadeira

dada a conjunção N&E? Em qualquer opção apresentada pelo materialismo, esse

conteúdo mental é determinado pelas propriedades NF das crenças. No MR, as

propriedades mentais são as propriedades físicas. Portanto, essa crença

corresponderia a não mais que uma estrutura física do cérebro. De certa forma, uma

conjunção de neurônios no cérebro ou é ou determina a crença “a velocidade da luz

é de 300.000 km/s”. Se admitimos a ideia, implicada pela teoria da evolução de que

o cérebro humano é fruto do processo evolutivo por seleção natural, devemos

explicar evolutivamente como o conteúdo de nossas crenças pode ter surgido na

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27

nossa mente. Pergunta-se, portanto, qual é a probabilidade de esse conteúdo ser

verdadeiro?

Para nos ajudar a entender o ponto, Plantinga lança mão de um experimento

mental para defender sua conclusão de que tal probabilidade é baixa. Ele postula

uma criatura hipotética, cujo processo de evolução teria se dado de forma similar à

nossa evolução. Ou seja, essa pequena criatura evoluiu a partir de um ser vivo

unicelular no qual, dada sua simplicidade, estavam ausentes quaisquer crenças; e a

partir desse longo processo de seleção natural ela passou em determinado momento

a possuir conteúdos de crença. Dada a sobrevivência por milhões de anos dessa

criatura, certamente seu comportamento é adaptativo. Tal comportamento é causado

por estruturas neurofisiológicas em seu cérebro. Portanto, pode-se assumir que tais

estruturas são adaptativas. Essa mesma estrutura física, num dado momento do

processo evolutivo, passa a determinar um conteúdo de crença. Como resultado

disso, aquelas criaturas evolutivamente bem sucedidas passam a possuir crenças.

Plantinga então pergunta:

Então, (dado o materialismo) algumas estruturas neurais, num certo

nível de complexidade de propriedades NF, adquirem conteúdo; nesse nível

de complexidade, as propriedades NF determinam o conteúdo de crenças, e

as estruturas em questão são crenças. E a pergunta que eu quero fazer é a

seguinte: qual é a probabilidade, dada a evolução e o naturalismo (construído

como incluindo o materialismo acerca dos seres humanos), de que o

conteúdo que daí surge seja de fato verdadeiro? Especificamente, qual é a

probabilidade, dada N&E, de que o conteúdo associado com as nossas

estruturas neurais seja verdadeiro? Qual é a probabilidade, dada N&E, de

que nossas faculdades cognitivas sejam confiáveis, produzindo assim

crenças em sua maior parte verdadeiras? 33

33 No original “So (given materialism) some neural structures, at a certain level of complexity of NP properties, acquire content; at that level of complexity, NP properties determine belief content, and the structures in question are beliefs. And the question I want to ask is this: what is the likelihood, given evolution and naturalism (construed as including materialism about human beings), that the content thus arising is in fact true? What is the likelihood, given N&E, that our cognitive faculties are reliable, thereby producing mostly true beliefs?” (Cf. PLANTINGA, Alvin. Where The Conflict Really Lies: Science, Religion and Naturalism. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, p. 325.

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Pelo que vemos, a estrutura física que causa o comportamento é a mesma

que causa o conteúdo de crença. Essas estruturas físicas, contudo, são

selecionadas porque causam comportamento adaptativo e não porque causam o

conteúdo que causam.

Observemos a estrutura temporal da sucessão de eventos. Em t1 temos um

comportamento C causado pela estrutura neurofisiológica N. Em t2 essa mesma

estrutura neurofisiológica N, causadora do comportamento C, causa também uma

crença P. Parece bastante claro, nesse contexto, que a verdade do conteúdo da

crença P não é relevante para o comportamento adaptativo promovido pela estrutura

neurofisiológica N. Num determinado nível de complexidade essas estruturas

neurais começam a apresentar conteúdo de crença. Nesse ponto, a estrutura

neurofisiológica causa o comportamento adaptativo e ao mesmo tempo o conteúdo

da crença. A seleção natural seleciona as propriedades neurofisiológicas

adaptativas, que, por sua vez, determinam o conteúdo. A seleção natural seria

indiferente ao conteúdo mental gerado pelas propriedades NF.

Qual é a probabilidade de o conteúdo proposicional de uma crença derivada

desse processo ser verdadeiro? Seu conteúdo certamente não precisa ser

verdadeiro para que a estrutura neuronal cause o tipo apropriado de comportamento.

Afinal, é por mero acaso que um arranjo particular de propriedades NF causa aquele

conteúdo particular. Mas, sendo assim, será puro acaso se esse conteúdo, essa

proposição, for verdadeira. Ela poderia igualmente ser falsa. Ou, na verdade, dada a

quase infinita possibilidade de crenças falsas acerca de um objeto p em detrimento

de uma única possibilidade verdadeira, parece extremamente improvável que

nossas crenças derivadas daqueles processos cognitivos sejam minimamente

confiáveis.

É inegável que todos nós temos a confiabilidade de nossas faculdades

cognitivas como matéria de senso comum. Plantinga não pretende desafiar essa

crença, sugerindo sua falsidade. O que ele pretende fazer, antes, é demonstrar que

o naturalista que aceita a evolução está racionalmente obrigado a abrir mão da tal

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crença do senso comum, dado que seus pressupostos naturalistas a tornariam

incrivelmente improvável.

As demais premissas do argumento decorrem com certa facilidade da

verdade da primeira premissa. Admitindo-se a primeira premissa, tem-se (2), que

afirma que a crença em N&E resulta num derrotador para a crença intuitiva em Cf.

Conforme já apontado, um derrotador é todo estado mental que ao ser

adquirido oblitera ou diminui a garantia epistêmica da admissão de uma outra crença

com ela relacionada (cf. Nota de Rodapé 6). No caso do argumento de Plantinga, a

minha crença inicial de que minhas faculdades cognitivas são confiáveis é derrotada

pela crença de que a probabilidade de minhas faculdades cognitivas serem

confiáveis dada a conjunção N&E é baixa. Afinal, se a probabilidade de um

mecanismo produtor de crenças produzir crenças verdadeiras é baixa, é no mínimo

temerário admitir-se esse mesmo mecanismo como um produtor de crenças

confiável.

Assim, tem-se (3), qual seja: “Um derrotador para a crença intuitiva em Cf é

também um derrotador para qualquer crença produzida por essas faculdades

cognitivas, incluindo a própria conjunção N&E”.

Mais uma vez, a terceira premissa decorre bastante claramente da anterior.

Se a minha crença na confiabilidade das minhas faculdades cognitivas é derrotada,

segue-se que qualquer crença produzida por esses mecanismos também é

derrotada. Isso, por fim, leva à quarta premissa: “(4) A crença em N&E é um

derrotador para a conjunção N&E, portanto N&E é autoderrotante e não pode ser

racionalmente aceita”. Daí se segue, por fim, sem dificuldade a conclusão:

5) Logo, N&E não pode ser racionalmente aceita.

Portanto, o naturalismo evolucionário não pode ser racionalmente aceito.

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30

1.5 Considerações Finais

Quatro premissas e uma conclusão ambiciosa. Se Plantinga estiver certo, a

admissão do naturalismo deixa os seres humanos encerrados em um cenário cético

cartesiano dos mais radicais. Um cenário que surge não da postulação de um gênio

maligno ou de más intenções de algum cientista malévolo, mas que brota no seio do

melhor amigo do naturalismo: o evolucionismo, esse aparente amigo da onça.

Cf goza do mais alto grau possível de garantia epistêmica que uma crença

básica poderia gozar. Considerando a força evidencial intuitiva de Cf, aquele que

admite N&E teria, então, que optar por uma das conjuntas. A negação da evolução

afastaria o naturalista do consenso científico moderno, o que conflitaria com a

disposição metodológica fundamental do naturalista de seguir a ciência aonde ela

for. Por outro lado, a negação do naturalismo implicaria a admissão de alguma forma

de sobrenaturalismo. Eis o dilema do naturalismo evolucionário.

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31

2. Objeções à premissa 1:

2.1 Considerações Iniciais

A primeira premissa é fulcral no desenvolvimento do argumento. É nela,

portanto, que se concentram boa parte das críticas ao argumento. Neste capítulo,

trataremos das objeções apresentadas por William Ramsey e Evan Fales.

Ramsey defende o que ele chama de confiabilismo evolucionário se opondo a

Plantinga no sentido de defender que a teoria da evolução tem plena capacidade de

selecionar faculdades cognitivas direcionadas à produção de crenças verdadeiras.

Para tal, Ramsey apresenta um modelo segundo o qual se pretende demonstrar que

o conteúdo cognitivo das crenças poderia exercer papel causal no comportamento

adaptativo e, assim, fazer com que a propriedade da verdade seja uma propriedade

que traga vantagens evolutivas.

Fales, por sua vez, apresenta um argumento tu quoque contra Plantinga.

Assim, Fales desenvolve sua argumentação no sentido de demonstrar que o teísmo

a que Plantinga adere não resolve o problema como ele sugere. Antes, o teísmo

traria consigo problemas ainda maiores que o naturalismo. Esse seria o Calvário de

Calvino. Nesse sentido, pressiona-se o teísta a um dilema. Ou admite-se que a

objeção é cogente e, nesse caso, o teísta perderia a suposta vantagem teórica sobre

o naturalista; ou rejeita-se a objeção e, por implicação, deve-se rejeitar também a

lógica do AECN, dado que ambos argumentos são análogos. Portanto, o teísta como

resposta deverá demonstrar que ou (1) os argumentos não são análogos ou (2) que

o teísmo tem a vantagem teórica que Fales questiona.

2.2 O Confiabilismo Evolucionário de William Ramsey

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32

William Ramsey defende o que ele chama de confiabilismo evolucionário , 34

que é a ideia de que a seleção natural tende a favorecer mecanismos confiáveis de

produção de crença. Sua objeção consiste em apresentar um modelo que demonstre

a relação entre crença verdadeira e comportamento adaptativo demonstrando,

assim, como as pressões seletivas favoreceriam a formação de faculdades

cognitivas confiáveis.

A demonstração da relação entre crença verdadeira e comportamento

adaptativo depende da demonstração de como as pressões da seleção natural

poderiam favorecer a verdade e confiabilidade como propriedades semânticas das 35

crenças produzidas pelos nossos mecanismos cognitivos. Mas, de que maneira ele

pretende demonstrar isso?

Segundo Ramsey, existem várias maneiras pelas quais propriedades

semânticas podem ser causalmente relevantes na produção de comportamento

adaptativo, sendo isso algo que o argumento de Plantinga ignoraria. Ele apresenta o

seguinte exemplo:

Suponhamos que a dez indivíduos sejam dados dez mapas diferentes, sendo

que apenas um deles apresenta o caminho correto até o tesouro. Se

quisermos explicar o comportamento de qualquer um dos indivíduos

(incluindo aquele com o mapa correto), então tudo que precisamos é recorrer

às direções - as instruções, setas e coisa do tipo - apresentadas fisicamente

no mapa daquele indivíduo. As características intrínsecas do mapa são as

propriedades causalmente relevantes que produzem o comportamento em

questão e a precisão ou imprecisão de qualquer um dos mapas seria

totalmente irrelevante. Mas agora suponhamos que em vez de explicar o

comportamento dos caçadores de tesouros, nós queiramos saber por que o

comportamento de um dado caçador é de determinado tipo - a saber, do tipo

que de fato alcança o tesouro procurado. Claramente, então, seria apropriado

34 RAMSEY, William. Naturalism Defended. In: BEILBY, Justin (Ed.). Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002. p. 15-29. 35 No caso de uma crença, as propriedades sintáticas referem-se à estrutura física, isto é, neurofisiológica relacionada com a produção desse estado mental. As propriedades semânticas, por sua vez, referem-se ao sentido desse estado mental, como a verdade e a falsidade. Devido ao seu sentido ser dependente de uma realidade externa, diz-se das propriedades semânticas que são extrínsecas ou relacionais.

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33

recorrer ao fato de que o mapa do sortudo caçador é o mapa preciso. Ou

seja, se quisermos explicar como um determinado caçador consegue

alcançar o tesouro, a precisão de seu mapa se torna a característica causal

relevante - é aquilo que faz com que aquele caçador específico alcance o

tesouro enquanto os demais falham. De fato, se encontrar o tesouro fosse de

alguma maneira fator crítico para sobrevivência, essa seria a característica do

mapa que faz com que esse caçador sobreviva enquanto os demais não. 36

No exemplo apresentado, as orientações fornecidas pelo mapa equivalem às

propriedades sintáticas das crenças, isto é, à sua estrutura neurofisiológica ou

estritamente física. No caso, seriam essas as propriedades relevantes para explicar

o comportamento humano. As propriedades semânticas da verdade ou

confiabilidade são absolutamente irrelevantes nesse ponto.

Mas apenas um dos indivíduos chegou ao tesouro almejado. Se quisermos

saber por que foi esse o indivíduo bem sucedido, as propriedades sintáticas de suas

crenças não mais serão suficientes como causa explicativa. A explicação causal do

seu sucesso teria de recorrer às propriedades semânticas do mapa: suas direções

eram as únicas que apontavam o caminho confiável e verdadeiro.

Ramsey prossegue, explicando que propriedades relacionais irredutíveis a

propriedades físicas realizam um papel preponderante na sobrevivência de um

organismo. Esse processo é bastante evidente na formação da camuflagem animal.

A camuflagem tem influência direta na sobrevivência de um organismo, mas a

camuflagem é uma propriedade relacional, pois depende necessariamente do

ambiente onde o organismo se encontra. Assim, não existe qualquer pressão

evolutiva que influencie, por exemplo, um urso polar a ser branco. No entanto, por

mais daltônico que seja o processo de seleção natural, é a propriedade da cor

branca que torna mais provável a adaptação do urso polar ao seu ambiente. A

camuflagem só é bem sucedida se houver a correta relação entre a propriedade da

36 RAMSEY, William. Naturalism Defended. In: BEILBY, Justin (Ed.). Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002. p. 17.

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34

cor e o ambiente. Portanto, tais propriedades relacionais acabam por sofrer pressão

seletiva indiretamente, ainda que esse processo seja cego às cores.

Isso, segundo Ramsey, sugeriria, de uma forma perfeitamente plausível,

como uma propriedade não redutiva a propriedades físicas (como a propriedade da

verdade) possa ser favorecida pelas pressões seletivas. Assim, adaptando o

exemplo acima, se quisermos explicar o comportamento de um ancestral humano,

basta-nos recorrer a propriedades sintáticas de suas crenças, isto é, a suas

propriedades neurofisiológicas. No entanto, se quero saber por que é aquele

ancestral que consegue obter alimento, enquanto seus pares ficam para trás na

escada evolutiva, então certamente a verdade de suas crenças se torna

fundamental. Portanto, em certo sentido, pode-se reconhecer que as propriedades

semânticas das crenças sejam um epifenômeno das propriedades sintáticas, já que 37

elas poderiam ser alteradas sem se afetar os poderes causais dos mecanismos

cognitivos que produzem comportamento. Porém, em outro sentido, tais

propriedades muito evidentemente não são apenas epifenomenais, pois explicam o

que distingue um comportamento adaptativo de um não adaptativo. Assim, Ramsey

conclui, “a verdade não faz o comportamento, ela torna o comportamento melhor” . 38

Isso oferece ao naturalista uma explicação aparentemente razoável da relação entre

crenças e comportamentos que torna a verdade: (1) uma propriedade causalmente

relevante das crenças, que (2) possui a capacidade de aumentar a aptidão

reprodutiva.

O contra-argumento de Ramsey nos parece capaz de demonstrar

seguramente a relação entre propriedades relacionais e seu papel adaptativo. De

fato, a possibilidade de total ruptura entre verdade e valor adaptativo, sugerida

principalmente nas primeiras versões do argumento de Plantinga, parece apontar

para um cenário no qual a relação crença-comportamento prescinde por completo da

37 O epifenomenalismo é doutrina que afirma que a relação entre estados mentais e físicos é uma via de mão única. Isto é, a doutrina afirma que estados físicos causam estados mentais, mas estados mentais não causam estados físicos. Nesse caso, portanto, a propriedade semântica de uma crença seria mero epifenômeno de suas propriedades sintáticas. 38 RAMSEY, William. Naturalism Defended. In: BEILBY, Justin (Ed.). Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002. p. 18.

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35

propriedade da verdade. Isso, no entanto, é implausível, uma vez que tais modelos

teriam que sustentar a improvável ideia de mecanismos cognitivos radical e

sistematicamente falhos. A inteligência já é algo suficientemente complexo para o

cérebro organizar. Mecanismos cognitivos radical e completamente falhos tornariam

a atividade da inteligência tão arbitrária que tornaria impossível sua administração

pelo cérebro humano. Nisso falham os exemplos de Plantinga, pois são incapazes

de demonstrar a plausibilidade de um mecanismo cognitivo completamente falho a

partir de casos específicos que dizem respeito a meras possibilidades lógicas, nas

quais crenças falsas causam comportamento adequado.

2.2.1 A Falácia de Ramsey

Não obstante eventual sucesso do confiabilismo evolucionário em associar

valor adaptativo à crença verdadeira, ele parece incorrer num red herring, evadindo

do ponto central do argumento de Plantinga. Ele parece supor, como responde

Plantinga , que o argumento depende da seguinte premissa: propriedades que não 39

são redutíveis a propriedades intrínsecas ou não sobrevêm a propriedades

intrínsecas não podem ser objeto de seleção natural.

Se houvesse alguma vinculação entre essa premissa e o AECN, ele seria

facilmente refutado. É evidente que propriedades relacionais podem ser

selecionadas pelas pressões da seleção natural. Na verdade, todo esse processo é

fundamentado numa ideia de propriedade relacional, a saber, aptidão. E tal

propriedade é estritamente associada com o mundo externo e, portanto, é por

definição uma propriedade relacional (ou extrínseca).

Plantinga esclarece e aponta que seu argumento depende fundamentalmente

da contraposição entre (1) a probabilidade de, dado N&E, o conteúdo da crença

39 PLANTINGA, Alvin. Reply to Beilby's Cohorts. In: BEILBY, Justin (Ed.). Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002. p. 261-267

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36

entrar na cadeia causal que conduz ao comportamento - P(C/N&E) e (2) a 40

probabilidade de, dado N&E, o epifenomenalismo semântico ser verdadeiro e,

portanto, a crença não exercer papel causal no comportamento - P(¬C/N&E). Ora,

Ramsey pressupõe justamente aquilo que está em questão, qual seja, a relação

causal da propriedade mental das crenças sobre o comportamento. Se as

propriedades mentais das crenças exercem influência causal sobre o

comportamento, então a seleção natural claramente poderia exercer pressão

seletiva através das crenças verdadeiras, como defendeu Ramsey.

No entanto, é justamente essa a hipótese que está em questão.

Recapitulando, o argumento consiste em reconhecer inicialmente que a seleção

natural opera sobre comportamentos; ela recompensa comportamentos que

promovem a adaptação e rejeita os que prejudicam a adaptação. Ao assim fazê-lo,

ela exerce seleção sobre as estruturas físicas que geram o comportamento. No

materialismo, são essas estruturas, sobre as quais a força seletiva é exercida, que

determinam as crenças, sejam elas sobrevenientes às estruturas neurofisiológicas

(como no caso do MNR) ou equivalentes a essas estruturas (como no caso do MR).

Nessa hipótese, o conteúdo de uma crença não entraria na cadeia causal que

conduz ao comportamento.

No caso da camuflagem, por exemplo, a propriedade relacional não exerce

influência sobre o comportamento da criatura que a possui, mas no comportamento

da criatura com a qual ela se relaciona. Portanto, embora se demonstre como

propriedades relacionais podem ser selecionadas pela seleção natural, isso não é

suficiente para se demonstrar como tais propriedades podem influenciar o

comportamento da criatura, porque dado N&E não há qualquer razão para se pensar

que o conteúdo de nossas crenças afete causalmente o nosso comportamento dado

o naturalismo conforme temos demonstrado. Ou seja, o naturalista não precisa só

demonstrar que a probabilidade de a evolução selecionar preferencialmente crenças

verdadeiras caso o epifenomenalismo semântico seja falso é alta, mas ele deve

fazê-lo apenas após ter demonstrado que a probabilidade de as crenças exercerem

40 Onde por C lê-se “o conteúdo da crença exerce papel causal no comportamento”.

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37

papel causal no comportamento é maior do que a probabilidade de que, dado N&E,

as crenças serem meramente epifenomenais.

Além disso, há um segundo problema no argumento de Ramsey. Plantinga

aponta que a confusão de Ramsey se dá porque ele funde dois conceitos distintos, a

saber, o conceito de crença e o conceito de indicadores. Num outro contexto , 41

Plantinga antevê a seguinte objeção ao seu argumento. Imagine um sapo numa

vitória-régia. Ao passar de uma mosca, sua língua dispara e a captura. É preciso

haver mecanismos bastante desenvolvidos, na fisiologia do sapo, capazes de

mensurar precisamente a velocidade da mosca, sua distância, direção etc. Não

seriam tais mecanismos parte das faculdades cognitivas do sapo? Não teriam eles

de ser precisos para que o sapo pudesse se comportar de modo adaptativo?

Plantinga responde que, nesse caso, o sapo certamente possui indicadores,

estruturas neurais que recebem input dos órgãos sensoriais e que causam a reação

devida do pequeno animal. Mas o que ele aponta é que indicadores desse tipo não

exigem crença. É certo que, como defende Ramsey, nenhum animal poderia

alcançar sucesso evolutivo com mecanismos desse tipo não confiáveis. Indicadores,

no entanto, não precisam ser crenças nem envolver crenças. Assim como o corpo

humano possui indicadores de pressão sanguínea, temperatura, insulina e muito

mais, podem também existir indicadores neurais que disparam a reação adequada

perante estímulos externos. Pode-se apresentar um exemplo mais próximo à

realidade humana. Você está atravessando a rua. Nisso você percebe um carro se

aproximando em alta velocidade. Imediatamente você apressa o passo a fim de

evitar a colisão. Aparentemente, nenhuma crença tal como “o carro se aproxima em

alta velocidade” é formada, ao menos não conscientemente. A reação, porém, é

imediata a partir dos mecanismos indicadores da percepção. Tanto no caso do sapo,

quanto no caso do transeunte, temos mecanismos indicadores confiáveis. Outro

exemplo que ele apresenta é do funcionamento do hipotálamo, que regula a

temperatura corporal. Quando a temperatura do sangue que passa pelo hipotálamo

ultrapassa os 37°C, células nervosas sinalizam para o corpo a necessidade de se

41 Cf. PLANTINGA, Alvin. Where the Conflict Really Lies: Science, Religion and Naturalism. Nova Iorque: Oxford University Press, p. 326-328.

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38

resfriar. Vasos sanguíneos próximos à pele se expandem para trazer mais sangue à

superfície do corpo, onde o excesso de calor pode se dissipar; glândulas

sudoríparas liberam suor, que resfria o corpo pela evaporação. Para tal, é preciso

haver algo no hipotálamo como um dispositivo medidor de temperatura. A partir de

uma determinada indicação, o hipotálamo dispara uma determinada reação corporal.

Nenhum desses dispositivos, porém, exige a formação de crenças. Assim,

Plantinga conclui que Ramsey confunde o conceito de crença com o de indicador. É

o conceito de crença que é relevante para o AECN. A argumentação de Ramsey, por

sua vez, parece ser relevante tão somente aos indicadores, pois certamente, como

ele sugere, é extremamente difícil apresentar uma explicação adaptativa séria de

mecanismos indicadores na qual a precisão não seja relevante para a adaptação.

Nada disso, porém, exige a formação de crenças. O argumento de Plantinga,

portanto, ao que nos parece, permanece incólume aos ataques de Ramsey. Resta

ao naturalista demonstrar não só a relação entre a verdade das crenças e o

comportamento adaptativo, mas, antes disso, como o conteúdo proposicional

poderia adentrar a relação causal crença-comportamento.

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39

2.3 O Calvário de Calvino?: A Objeção tu quoque de Evan Fales

A epistemologia de Plantinga faz parte, segundo o próprio, de um

projeto de epistemologia naturalista . Numa epistemologia naturalista, grosso modo, 42

os processos de aquisição de conhecimento passíveis de serem descritos pelo

método científico são considerados fundamentais para a justificação epistêmica. Isto

é, questões sobre a forma pela qual adquirimos conhecimento são relevantes para

as questões relacionadas a como devemos adquirir conhecimento. Nisto, tem-se

evidentemente um princípio teórico pré-científico sobre a natureza do conhecimento

afastando-se, portanto, da epistemologia naturalista de Quine, para quem questões

sobre a própria definição de conhecimento ficariam a cargo da ciência.

Mas se a epistemologia de Plantinga pode ser considerada naturalista nesse

sentido, ele não é adepto da metafísica naturalista que vem frequentemente

agregada a tais projetos epistemológicos. É nesse particular que o AECN se torna

relevante. Plantinga, ao sugerir a irracionalidade de N&E, propõe como alternativa

uma ontologia teísta, pois, segundo ele, noções como a de “funcionamento

apropriado”, que é fundamental ao seu projeto epistemológico, são melhor

compreendidas sob a ótica de uma metafísica teísta. Portanto, se o AECN for

procedente, Plantinga pode alegar uma vantagem para a metafísica teísta, de modo

a, seguindo uma antiga tradição que reúne Al-Ghazali, Descartes e outros, justificar

que apenas ela é capaz de nos livrar do mais radical ceticismo.

Isso se dá porque, de acordo com essa tradição, se fomos criados à imagem

de Deus, a doutrina da imago Dei no teísmo cristão, podemos esperar que a

divindade nos tenha criado como conhecedores relativamente bem sucedidos, no

que refletiríamos a própria natureza do Logos divino. Mas Evan Fales argumenta

que o teísta não tem qualquer razão para recorrer à metafísica teísta como

fundamento seguro de suas faculdades cognitivas. Muito pelo contrário. Se o

naturalista encara um dilema perante a admissão de N&E, o teísta não está em

42 Cf. PLANTINGA, Alvin. Warrant and Proper Function. Nova Iorque: Oxford University Press, 1993, pp.45-46.

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40

melhores condições com as implicações do seu teísmo. O teísta, portanto, é

pressionado a outro dilema, a saber, se a objeção tu quoque é cogente ou não. Se

for cogente, o teísta perde a vantagem teórica de sua posição sobre o naturalista; se

não for cogente, então tampouco o é o AECN, dado que ambos, aparentemente, são

casos análogos. A única saída, portanto, consiste em demonstrar a ausência de real

analogia entre os argumentos.

Fales cita Plantinga em sua defesa do teísmo como condição necessária ao

conhecimento:

[O teísta] não tem qualquer razão correspondente para duvidar de que seja

um propósito de nossos sistemas cognitivos produzir crenças verdadeiras [...]

Ele pode até mesmo endossar alguma forma de evolução [...] conduzida e

orquestrada por Deus. E qua teísta tradicional [...] ele acredita que Deus é o

primeiro conhecedor e criou os seres humanos à sua imagem, parte

importante disso envolve dotá-los com um reflexo de seus poderes como

conhecedor . 43

Pois bem, para Plantinga, a probabilidade de nossas faculdades cognitivas

serem confiáveis, dada a conjunção de teísmo e evolucionismo - P(Cf/T&E), é maior

que a probabilidade de nossas faculdades cognitivas serem confiáveis dada a

conjunção naturalismo e evolucionismo - P(Cf/N&E). Mas Fales não acredita que o

teísta tenha direito a essa inferência a não ser que ele assuma também a hipótese

de que Deus nos criou como conhecedores confiáveis. Contra o teísta, ele apresenta

três argumentos, a saber: (1) a interpretação da doutrina da imago Dei, que sustenta

a ideia da criação dos seres humanos como seres conhecedores, é

demasiadamente frágil para ter algum valor; (2) se ao teísta seria lícito acrescentar a

hipótese da imago Dei como implicando que nós fomos criados como seres

conhecedores confiáveis, igualmente lícito seria ao naturalista acrescentar uma

hipótese análoga ao seu conjunto de informações prévias segundo a qual a

probabilidade de Cf seria alta; e (3) as respostas tradicionais ao problema do mal,

que supõem nossa incapacidade de compreender as razões divinas para permitir o

43 FALES, Evan. Darwin's Doubt, Calvin's Calvary. In: BEILBY, James. Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002. p. 53.

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41

mal, tornariam frágeis quaisquer alegações de que temos razões para pensar que

Deus nos teria criado como conhecedores confiáveis. Afinal, se ele tem suas razões

para permitir o mal, pode ter também suas razões para nos criar como conhecedores

frágeis.

2.3.1 A Doutrina da Imago Dei

Ao traçar a probabilidade de Cf em relação ao teísmo, Fales distingue entre o

que ele chama de teísmo envernizado (TE) e teísmo não-envernizado (TN). Este é o

teísmo puro, o teísmo simpliciter, segundo o qual Deus é o criador do universo e

dotado de todas as propriedades criadoras de grandeza, como onisciência,

onipotência etc. Aquele concebe Deus da mesma maneira, mas com o acréscimo da

doutrina da imago Dei, isto é, a ideia de que seres humanos foram criados à imagem

de Deus (I). De acordo com Fales, a segurança do teísta em Cf se deriva de (I).

Assim, Fales acredita que o teísmo de Plantinga consiste em (TN) somando à (I). No

entanto, (TN) por si só não torna (I) provável. Portanto, ele questiona: que garantia o

teísta tem para introduzir (I) na sua hipótese?

O primeiro argumento de Fales ataca como injustificado o acréscimo da

doutrina da imago Dei ao teísmo simpliciter. Ele apresenta três questionamentos à

doutrina. Em primeiro lugar, sugere que a sustentação da confiabilidade das nossas

faculdades cognitivas com base no teísmo repousa precipuamente na doutrina da

imago Dei baseada no texto bíblico de Gênesis 1:26-27; em segundo lugar, ele

afirma que tal doutrina poderia significar “qualquer coisa que seja, e claramente nós

não ‘refletimos’ a natureza de Deus como conhecedor de maneira muito aproximada,

ou nem mesmo tão perto quanto seria possível em criaturas criadas por Deus”. Ele

então aponta uma série de supostos problemas de confiabilidade no texto de

Gênesis, como o aparente caráter mitológico do texto.

Evidentemente, uma defesa exegética de uma dada interpretação do texto

bíblico nos levaria muito além dos limites possíveis neste trabalho e adentraria a

seara da teologia bíblica, que está muito além do que pretende uma investigação

como esta. Felizmente, isso não é necessário. Afinal, o cálculo de probabilidades

entre P(Cf/N&E) e P(Cf/T&E) não depende da prova da verdade de N ou T. Antes,

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42

dependem apenas da verdade de uma proposição condicional: o que está se

questionando é qual é a probabilidade de Cf caso a conjunção T&E seja verdadeira.

Ainda que o teísmo (cristão, especificamente) seja comprovadamente falso, o

questionamento permanece. Então, apesar de Fales, por que não poderíamos ver

em T o teísmo como interpretado numa dada tradição teológica, segundo a qual

Deus é o garantidor de nossos processos cognitivos?

No judaísmo, a sabedoria é entendida como manifestação divina, a

mediadora entre Deus e Sua criação; no Islã, o Profeta Muhammed ameaça com a

cólera de Allah aqueles que desprezam a inteligência, qualidade a qual nenhuma

mais nobre teria ele criado ; no catolicismo-romano nos é dito que “pela razão, [o 44

homem] é capaz de compreender a ordem das coisas estabelecidas pelo Criador” 45

(Catecismo, 1704). Por que o teísta não poderia considerar por T aquilo que a sua

tradição teológica afirma acerca da racionalidade humana? Não parece haver

qualquer impropriedade nisso. É evidente, porém que o naturalista não aceitaria T,

como Fales não o aceita, tampouco o aceitaria qualquer não adepto das referidas

religiões. Pode-se até considerar tal hipótese absurda ou profundamente

inverossímil . De fato, pode-se admitir os diversos problemas que a concessão a 46

essa hipótese apresenta, mas isso é absolutamente irrelevante quando se trata da

44 SCHUON, Frithjof. Para Compreender o Islã. Rio de Janeiro: Editora Best-Seller, 2004, p. 58. 45 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 1999. 46 O status das proposições teológicas no mundo mais intelectualizado já não goza mais de muito crédito, o que pode prejudicar a credibilidade de uma resposta como essa apresentada aqui, fazendo-a ser recebida com profundo ceticismo. Naturalmente, a reação é compreensível. Mas, além do que se expôs acima, pode colaborar com a nossa resposta lembrarmos de uma doutrina clássica da fé cristã, que por muito tempo contrariava o entendimento científico vigente, vindo a ser comprovada com a mudança do paradigma científico. Trata-se da clássica doutrina da creatio ex nihilo, qual seja, a doutrina cristã que propunha que todo o universo material teria sido criado por Deus a partir de um dado momento a partir do nada. No entanto, a concepção prevalecente na cosmologia até o início do século XX era a de que o universo seria eterno em seu passado. Foi somente em 1927 que o quadro começou a mudar quando o físico - e também padre - George Lemaitre propôs a ideia de que o universo estava em expansão e que teria se originado numa espécie de “átomo primordial”. Teoria batizada jocosamente por Fred Hoyle de “teoria do Big Bang”. Depois de décadas de progressivas confirmações, a teoria viria a ser confirmada cabalmente apenas em 1964 quando, por acaso, Arno Penzias e Robert Wilson descobriram a radiação cósmica de fundo em micro-ondas e, com isso, forneceram a prova final à teoria de Lemaitre. Digo isso para demonstrar que ao menos em uma ocasião a teologia cristã esteve correta no que tange ao domínio das ciências físicas, contrariando a própria ciência então vigente, e demonstrar que, ao menos para o fiel religioso, a questão da racionalidade vai além de preferir uma fonte de verdade à outra e é, na verdade, muito mais complexa. Não é automaticamente tolo ou irracional tomar como verdadeiras doutrinas religiosas. Não é preciso ser um fanático, terraplanista ou um fundamentalista ignorante para assim fazê-lo.

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43

probabilidade condicional de uma tese. O teólogo cristão está no seu direito

epistêmico de ler a realidade a partir das ferramentas que sua perspectiva cristã lhe

oferece. Até porque, por óbvio, no que tange à metanarrativa que fundamenta a

leitura de uma dada realidade não há neutralidade. Portanto, não se pode exigir que

o teísta ignore sua compreensão especificamente cristã como se o naturalista

também não falasse a partir de uma outra metanarrativa. Nesse sentido, Plantinga

aponta que o cristão aceita além do teísmo, as crenças especificamente cristãs que

o distinguem de outros teístas. Nisso, se incluem o desejo divino de que nos

relacionemos com ele e tenhamos crenças corretas acerca das verdades essenciais

da fé cristã. É possível que o cristão seja irracional por alguma outra razão, mas não

nos parece que, por si só, o teísmo implique derrota epistêmica de maneira análoga

a N&E.

Portanto, o argumento (1) nos parece irrelevante e não demonstra como o

teísta teria se comprometido com um derrotador para a confiabilidade de suas

faculdades cognitivas.

2.3.2 Por que o Naturalista Não Pode Acrescentar Algo a Mais?

Mas se ao teísta é permitido lançar mão dos recursos de sua tradição

teológica de modo a sustentar a coerência interna de sua epistemologia, por que não

seria lícito ao naturalista proceder do mesmo modo? Preocupado com a conclusão

do argumento de Plantinga, o naturalista poderia acrescentar uma dada hipótese

arbitrária H ao seu neodarwinismo (D), de acordo com a qual P(Cf/D&H) seria alta . 47

Assim, o argumento de Plantinga seria tergiversado. Mas, Fales afirma, tal

possibilidade não seria legítima. Na ausência de evidência independente para H, a

probabilidade prévia de D&H é menor do que de D somente. Assim, a probabilidade

de Cf relativa ao naturalismo não poderia ser aumentada desta maneira. Mas será

que o teísta incorre, como propõe Fales, na mesma arbitrariedade? Por que

deveríamos pensar assim?

47 Esse contra-argumento também é replicado por Van Cleve, citando Carl Ginet (cf. VAN CLEVE, James. Can Atheist Know Anything? In: BEILBY, James. Naturalism Defeated? Essays in Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002. p. 103-125.).

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44

Será que a hipótese da imago Dei goza da mesma arbitrariedade que a

hipótese H teria para o naturalista? Seguramente não. Nós dizemos que algo é

arbitrário quando tal coisa é resultante de nada mais do que mero arbítrio pessoal,

que é casual, e que desconsidera quaisquer regras ou fundamento lógico. No que

tange à hipótese da imago Dei, claramente não se trata de uma arbitrariedade

porque tal hipótese guarda estreita relação com os próprios fundamentos da tradição

teológica correspondente, seja ela por inferências diretas ou por inferências indiretas

de textos revelados que fundamentam a respectiva tradição. A crença em Deus pode

ter garantia para o teísta por meio de um mecanismo como o sensus divinitatis de

João Calvino ou o conhecimento natural, ainda que um tanto confuso, de que 48

falava Tomás de Aquino.

Portanto, para que o argumento seja verdadeiramente análogo à hipótese H

do naturalista, seria preciso demonstrar que tal hipótese guarda a mesma estreita

relação com os pressupostos naturalistas que a doutrina da imago Dei, por exemplo,

guarda com a revelação cristã. Mas será possível fazer isso? Fales não o

demonstra, além disso dada a vacuidade dos pressupostos naturalistas, é difícil

imaginar como se poderia extrair deles alguma hipótese teleológica análoga às

hipóteses associadas ao teísmo, dado que tal hipótese não é derivativa de nenhuma

definição de naturalismo existente. A existência de um ser inteligente pode explicar

por que somos seres inteligentes. Mas se aceitarmos a hipótese naturalista, teremos

de admitir que a inteligência surgiu por obra do acaso e, pelo que se depreende da

cosmologia moderna, do nada. A inclusão de um elemento garantidor de Cf no

pacote naturalista é uma arbitrariedade. Não se conhece nenhuma hipótese

48 Nesse sentido, diz João Calvino: “Está fora de discussão que é inerente à mente humana, certamente por instinto natural, algum sentimento da divindade. A fim de que ninguém recorra ao pretexto da ignorância. Deus incutiu em todos uma certa compreensão de sua deidade [...] Não obstante nenhuma nação, afirma o gentio [Calvino se refere a Cícero], é tão bárbara, nenhum povo é tão selvagem que não se convença da existência de um Deus [...] Então, de tal perspectiva, desde o começo do mundo, nenhuma cidade, nenhuma casa existiria que pudesse carecer de religião. Nisso há uma tácita confissão: está inscrito no coração de todos um sentimento de divindade.” (Cf. CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. São Paulo: Editora Unesp, 2007, p. 43).

De fato, a ciência cognitiva da religião parece apontar na direção de que há uma propensão natural no ser humano a formar crenças sobre Deus. Não se segue, evidentemente, que tal faculdade tenha sido de fato implantada pelo Criador, como propõe Calvino. Não obstante isso, tal observação ainda assim é interessante e fornece um belo material de reflexão teológica sobre a relação entre o conceito calvinista e a ciência. (Cf. BARRETT, Justin. L. Why Would Anyone Believe in God? Plymouth: AltaMira Press, 2004.)

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intrínseca ao naturalismo que pudesse fazer as vezes de imago Dei. Assim, se ex

nihilo nihil fit, a hipótese teísta (ou do motor imóvel de Aristóteles) tem muito maior

escopo explicativo e simplicidade para explicar esse dado concreto da realidade.

Nesse sentido, o teísta não está sujeito ao tipo de incoerência a que estão sujeitos

os naturalistas. Assim, consideramos também que esse contra-argumento fracassa

por absoluta falta de analogia com a hipótese em xeque.

2.3.3 O Problema do Mal e o AECN

O terceiro argumento de Fales recorre às tradicionais respostas ao Problema

do Mal, em especial à resposta oferecida pelo próprio Plantinga . Se existe um 49

Deus bom, onisciente e onipotente, por que o mal existe? Afinal, assim segue a

acusação, se ele é bom, ele quer acabar com o mal; se ele é onisciente, ele sabe

como acabar com o mal; e se ele é onipotente, ele tem poder para acabar com o

mal. Assim, o teísta é pressionado a abrir mão de uma das propriedades que o

teísmo clássico considera essenciais a Deus. Teístas se defendem argumentando

que a existência de Deus não é logicamente impossível nem improvável dada a

existência do mal. Mas, a menos que consideremos que a existência de Deus torne

alta a probabilidade da existência do mal, o que certamente não parece ser o caso, o

teísta terá que afirmar que somos radicalmente ignorantes dos propósitos divinos em

permitir o mal. Tão ignorantes a ponto de não entendermos por que Deus permite os

males mais horrendos.

Mas se a coisa é assim, nós não somos bons conhecedores ao menos no que

tange a entender os propósitos de Deus. Por isso, se Deus julgou adequado permitir

os males mais horrendos, por alguma possível razão cuja compreensão nos foge , 50

por que ele não poderia nos ter criado como criaturas cognitivamente deficientes e

profundamente enganadas quanto à confiabilidade de sua cognição?

Esse é o mais interessante dos argumentos de Fales e o mais difícil de se

responder. Ele pressiona o teísta revelando um aparente duplo-padrão na análise

49 Cf. PLANTINGA, Alvin. God, Freedom and Evil. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1974. 50 Essa é grosso modo a estratégia de Plantinga para apontar a ausência de contradição lógica na coexistência de Deus com o mal. Em God, Freedom and Evil ele propõe que Deus pode ter razões moralmente suficientes que justifiquem a existência do mal.

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dos seus argumentos. Por um lado, o teísta afirma ter razões para saber que Deus o

criou como criatura cognitivamente confiável, mas por outro afirma sua profunda

ignorância sobre as razões de Deus. Ora, se ele afirma sua profunda ignorância

sobre as razões de Deus, como ele pode afirmar com segurança que tem razões

para crer que Deus nos teria criado como conhecedores confiáveis? Não há uma

contradição nisso?

Não é fácil, talvez nem mesmo possível, apresentar uma resposta

convincente a todas as partes do debate, dado que elas divergem profundamente

em seus pressupostos mais fundamentais. Mas uma possível linha de resposta,

suficiente para demonstrar ao menos a coerência lógica do teísta, é, novamente, o

recurso às suas tradições específicas. Todas elas - judaísmo, cristianismo e

islamismo - têm concepções teológicas que apontam para uma ruptura numa ordem

original da qual é decorrente a origem do mal. Isso é enfatizado especialmente na

tradição agostiniana-calvinista. Isto é, a própria existência de um mundo imperfeito é

afirmada e esperada a partir da revelação monoteísta. Por outro lado, embora a

mente humana seja limitada perante a divina, ela é apresentada como relativamente

capaz de apreender a realidade. Portanto, se por um lado podemos afirmar que

somos cognitivamente incapazes de entender a permissão divina à existência do

mal, essa mesma Revelação sugere a existência de uma mente minimamente

confiável. Se não podemos entender como pode haver coexistência entre Deus e o

mal, também não podemos entender como pode Deus ter nos criado com uma

mente capaz de apreender o mundo externo, mas dado que isso faz parte da mesma

Revelação, o teísta não comete nenhuma impropriedade lógica ao afirmar ambas as

coisas.

Deve-se apontar ainda a diferença entre a natureza da derrota pretendida

pelo AECN e pelo Problema do Mal. Naquele caso, trata-se de um evidente

derrotador erosivo. Ao passo que o Problema do Mal é construído na forma de um

derrotador negativo. O Problema do Mal é um argumento que pretende demonstrar

que o teísmo é falso. Não é um argumento que pretende erodir toda evidência que

se tenha para a existência de Deus. O AECN, por sua vez, não é um argumento que

pretende demonstrar que o naturalismo seja falso, mas sim erodir a garantia do

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47

naturalista em Cf. A posse de evidência contrária a uma proposição não

necessariamente implica um derrotador para sua garantia. No caso do Problema do

Mal, pode-se reconhecê-lo como um derrotador negativo para o teísmo sem contudo

tornar irracional a crença no teísmo, desde que houvesse outras evidências que se

sobreponham à força evidencial do Problema do Mal.

Mas derrotadores erosivos funcionam de maneira um tanto diferentes. Eles

agem retirando a garantia epistêmica que um sujeito S possui em uma dada

proposição P, tornando, assim, a crença em P algo inapropriado para o sujeito S.

Assim funciona o AECN e, se o argumento for cogente, torna a crença em Cf

racionalmente inapropriada para o sujeito que adere a N&E.

Posto isto, penso que a coerência lógica do teísmo é mantida apesar dos

sólidos ataques de Fales. Por óbvio, o naturalista não aceita a verdade do teísmo.

Não obstante isso, a nossa resposta claramente não depende da verdade do teísmo

dado que o que está em xeque é a coerência interna do sistema teísta. Portanto,

penso que Calvino está a salvo de seu calvário.

2.4 Conclusão

Deve-se reconhecer, primeiramente, que a conclusão de que crenças não

exercem papel causal no comportamento adaptativo é deveras contraintuitiva.

Pode-se tomar isso, erradamente, como uma razão para se pôr ao lado de Ramsey.

No entanto, deve-se observar que Plantinga não pretende em momento algum

rejeitar o papel evidente que as crenças exercem no comportamento humano.

Portanto, se o naturalismo somado à evolução se mostra incompatível com essa

intuição profundamente radicada em nós, deve-se evidentemente rejeitá-lo como

pressuposto metafísico ou pôr-se contrário ao consenso científico e rejeitar a teoria

da evolução.

As respostas apresentadas contra Fales, por sua vez, seguramente não serão

demasiadamente persuasivas para o naturalista, dada sua rejeição à hipótese

supranaturalista. Todavia, penso que demonstramos ao menos que se o

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supranaturalismo for verdadeiro, então (1) é ao menos possível que a probabilidade

de nossas faculdades cognitivas sejam confiáveis seja alta, (2) a crença em T&E&Cf

é internamente coerente..

Portanto, podemos concluir que a primeira premissa do argumento resiste aos

ataques de William Ramsey e Evan Fales. Segundo o AECN, a primeira premissa

implica o ceticismo sobre Cf. No entanto, no próximo capítulo analisaremos as

objeções que buscam bloquear a inferência cética resultante da primeira premissa.

.

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49

3. Objeções à premissa 2:

3.1 Considerações Iniciais

Uma vez que tenhamos estabelecido a primeira premissa, a segunda

premissa do argumento dispõe, então, que a crença em N&E resulta num derrotador

para a crença intuitiva em Cf. Não obstante,há quem objete que mesmo que se

reconheça que a probabilidade de Cf é baixa dado N&E disso não seguiria

necessariamente um refutador para Cf.

Michael Bergmann recorre à filosofia de Thomas Reid para sugerir que o

naturalista pode ter uma garantia não-proposicional capaz de manter a crença em Cf

a despeito da primeira premissa. Assim, considerando-se a força evidencial básica

de Cf como superior à força evidencial proposicional contrária, o naturalista poderia

manter a racionalidade da crença em Cf.

W.J. Talbott critica a concepção de derrota epistêmica utilizada por Plantinga,

dando especial atenção ao seu conceito de derrotador erosivo. Segundo ele,

Plantinga aplica de forma equivocada a ideia de derrotador erosivo. Do suposto erro

resultaria uma imutabilidade cognitiva pouco apropriada do ponto de vista

epistêmico. Se admitirmos o conceito de Plantinga, segundo ele, um sujeito sob o

tipo de derrota em questão estaria impossibilitado de encontrar uma saída racional

de sua situação se confrontado com novas evidências.

Por fim, temos a Objeção da Respiração. Nesse contra-argumento,

pretende-se demonstrar que a baixa probabilidade de X não constitui

necessariamente razão para se rejeitar X. Aplicando-se a mesma lógica ao AECN,

se poderia dizer que a baixa probabilidade de Cf não constitui, portanto, razão para

rejeitá-la.

3.2 A Objeção Reidiana de Bergmann

A ideia de que podemos encontrar justificação não proposicional para nossas

crenças é comum à epistemologia de muitos filósofos, sendo o filósofo escocês

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Thomas Reid (1710-1796) um expoente entre eles. Michael Bergmann acredita

encontrar no pensamento de Reid recursos para uma defesa naturalista da garantia

da crença na confiabilidade de nossas faculdades cognitivas. Curiosamente, Thomas

Reid não só era um teísta, mas, inclusive, iniciou sua carreira como pastor

presbiteriano. Mas, é claro, suas ideias não dependem do seu teísmo, ao menos não

necessariamente. Por essa razão, Bergmann recorre a elas em defesa do

naturalismo.

Bergmann não se dirige à primeira premissa do AECN. Antes, sua

argumentação consiste em defender que mesmo que o naturalista a aceite como

verdadeira, isso não constitui necessariamente um derrotador para Cf. Isto é, seria

possível admitir que P(Cf/N&E) é baixa e, a despeito disso, manter racionalmente a

crença em Cf considerando a força das evidências não proposicionais que Cf tem

para o naturalista.

Para demonstrar seu argumento, Bergmann toma como ponto de partida dois

princípios da filosofia de Reid, a saber: (1) uma crença pode ser justificada ou

garantida de modo não inferencial – o que quer dizer que uma crença pode ser

justificada ou garantida por meio de uma experiência mesmo sem o apoio evidencial

de outras crenças e (2) entre as nossas crenças justificadas não inferencialmente

estão muitas de nossas crenças do senso comum.

De acordo com Thomas Reid, nós seríamos naturalmente dotados de certos

primeiros princípios, que seriam justificados pela nossa própria constituição natural

e, por conseguinte, justificados não-inferencialmente. Dentre elas, estariam muito

claramente a crença na confiabilidade de nossos mecanismos cognitivos que,

pode-se dizer sem controvérsia, goza da mais ampla admissão e grau de certeza

possíveis (ao menos antes da leitura de Descartes). A ideia é a de que sempre que

cogitamos uma posição contrária a um primeiro princípio, sentimos alguma rejeição

natural; como que uma emoção do ridículo de se postular tal coisa. Intuitivamente

isso parece se confirmar pelo fato de prontamente acusarmos de loucura aqueles

que apresentam hipóteses consideradas claramente absurdas. Supõe-se que uma

mente funcionando em circunstâncias normais não poderia formar determinadas

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51

crenças. A vida cotidiana não pode ser vivida à luz da dúvida de Descartes sob pena

de sermos tratamos por loucos.

Bergmann lembra que o próprio Plantinga recorre à justificação

não-inferencial para sustentar a garantia de crenças contra as quais pesam fortes

argumentos proposicionais. Ao apresentar sua resposta ao chamado Problema do

Mal, Plantinga defende que mesmo a admissão pelo teísta de que a probabilidade

da existência de Deus seja baixa dada a existência do mal, isso não implicaria

necessariamente um derrotador para a crença teísta. Se Deus existe, é provável que

ele tenha nos dotado com uma faculdade tal como aquela que João Calvino

denominou de sensus divinitatis . Essa faculdade produziria em nós a crença em 51

Deus quando exposta às experiências corretas. No caso, o sujeito ao se deparar, por

exemplo, com a dimensão do espaço e das estrelas, seria levado a formar

naturalmente a crença de que Deus criou o universo; ou, no meio da leitura do seu

texto sagrado e da prática da oração, ele poderia ser levado a formar naturalmente a

crença de que Deus perdoa os meus pecados. Nesses casos, nós teríamos uma

crença em Deus formada não com base em evidências proposicionais, mas sim na

experiência. Plantinga defende que se essa crença for suficientemente forte, ela

pode superar a força da argumentação proposicional contra a existência de Deus,

ainda que o teísta reconheça que o conjunto de suas evidências proposicionais

pesem contra a existência de Deus.

A análise dessa sugestão nos demandaria demasiado tempo. Mas o ponto de

Bergmann fica suficientemente claro. Ele pretende combinar a resposta de Plantinga

ao Problema do Mal com a explicação de Reid de como nós podemos conhecer Cf

de maneira básica, isto é, não-inferencialmente. Assim, ainda que o naturalista

admitisse que P(Cf/N&E) é baixa, ele poderia recorrer à sua evidência

não-proposicional para sustentar a crença em Cf. Mas isso não seria suficiente, pois

ao derrotar Cf o AECN ataca justamente a origem da justificação da crença em Cf,

que é o senso comum incluído no nosso aparato cognitivo. Assim, a proposta de

Bergmann consiste, concretamente, em apresentar argumentos cuja estrutura seria

51 Confira a nota 35.

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paralela ao AECN e com relação aos quais, a despeito da improbabilidade da

conclusão, ainda admitimos que suas conclusões são claramente racionais.

Antes de adentrarmos nesse ponto, porém, é preciso explicar a natureza dos

derrotadores epistêmicos (“epistemic defeaters”). A derrotabilidade é a propriedade

de uma crença de ter sua justificação/garantia diminuída ou mesmo anulada. O

derrotador, nesse caso, seria a condição que atualiza esse potencial. Derrotadores

podem ser proposicionais ou de estados mentais. Um derrotador proposicional é

toda proposição existente que atualiza a derrota. Vejamos, por exemplo, o clássico

exemplo dos “falsos celeiros” de Carl Ginet . Nesse exemplo, Henry dirige pelo 52

interior de Wisconsin. Henry espera observar o típico cenário interiorano: celeiros,

gado, tratores e coisas do gênero. No entanto, ao contrário de um cenário típico que

Henry esperaria, nessa cidade os habitantes ergueram dezenas de fachadas de

celeiros ao longo da estrada intercalando-os com um ou outro celeiro verdadeiro.

Num dado momento, Henry está diante de um celeiro real e forma naturalmente a

crença de que há um celeiro à sua frente. Henry parece estar justificado em crer

dessa forma e de fato há um celeiro à sua frente. No entanto, em virtude de todos os

falsos celeiros ao seu redor, seria temerário dizer que essa crença constitui

conhecimento. Nesse caso, portanto, a proposição de que os habitantes de

Wisconsin ergueram dezenas de falsos celeiros ao longo da estrada é o derrotador

proposicional para a garantia da crença de Henry de que há um celeiro à sua frente.

Com respeito a "derrotadores de estados mentais", por sua vez, entende-se

por "estados mentais" não aquilo que é derrotado, mas aquilo que realiza a derrota,

a saber, estados mentais tais como crenças ou experiências de um sujeito. Em

síntese, diríamos que um derrotador de um estado mental de uma crença C é todo

estado mental C* que, ao ser obtido, anula ou diminui a garantia que se tinha para a

crença C.

A distinção canônica basilar, seguindo John Pollock , entre tipos de 53

derrotadores é entre derrotadores negativos (“rebutting defeaters”) e derrotadores

52 Alvin Goldman atribui o exemplo a Carl Ginet em GOLDMAN, Alvin. Philosophy Meets the Cognitive and Social Sciences. Cambridge: MIT Press, 1992. p. 102. 53 POLLOCK, John. Contemporary Theories of Knowledge. Savage, MD: Rowman and Littlefield, 1986, pp. 37-39.

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erosivos (“undercutting defeaters”). Nas palavras do próprio Bergmann,

“derrotadores negativos derrotam uma crença apresentando uma razão para se

pensar que a crença é falsa; derrotadores erosivos derrotam uma crença

apresentando uma razão para se perder confiança na fonte daquela crença” . É 54

possível ter-se um derrotador erosivo para uma determinada crença sem com isso

se ter um derrotador negativo para a mesma crença. Tomemos como exemplo o

argumento de Freud de que a crença em Deus é fruto de wishful thinking, ou seja, é

uma espécie de ilusão confortadora criada pela mente humana. Se Freud estiver

certo, então o mecanismo de origem da crença em Deus não é confiável para a

produção de crenças verdadeiras e, com isso, derrota-se a garantia da crença em

Deus. No entanto, isso não é suficiente para se concluir pela inexistência de Deus.

Para isso seria necessário um derrotador negativo, que apontasse a falsidade da

existência de Deus, o que é justamente o que pretende o argumento probabilístico

do mal. Se esse argumento for cogente, então segue-se que, muito provavelmente,

é falso que Deus exista.

Já se antecipando a possíveis críticas, Bergmann está ciente da aparente

diferença fundamental entre o derrotador do teísmo a partir do Problema do Mal e o

derrotador de Plantinga ao naturalismo. O Problema do Mal não lança dúvidas sobre

a origem da crença teísta, como é o caso do derrotador freudiano e do AECN, que

lança suspeitas sobre a confiabilidade das nossas faculdades cognitivas e, por

conseguinte, sobre a própria origem das crenças do senso comum. Para elucidar

isso, ele apresenta a seguinte estrutura que faria parte tanto do derrotador freudiano

quanto do derrotador de Plantinga ao naturalismo:

X: A fonte de B é do tipo K

Y: P(uma fonte S de uma crença é confiável/S é do tipo K) é baixa ou

inescrutável.

Essas duas premissas resultariam num derrotador para B por lançar dúvidas

sobre:

54 BERGMANN, Michael. Justification Without Awareness. Nova Iorque: Oxford University Press, 2006, p. 159.

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54

Z: A fonte de B é confiável.

Assim, as dúvidas sobre Z são exatamente o que chamamos de derrotador

erosivo para B. E é nesse sentido que as estruturas do derrotador freudiano e do

AECN são idênticas:

Derrotador Freudiano

X: A fonte da minha crença em D (i.e., que Deus existe) é wishful thinking;

Y: P(a fonte de uma crença ser confiável/a fonte é uma forma de wishful

thinking) é baixa ou inescrutável.

De X e Y é razoável duvidar de:

Z: A fonte da minha crença em D é confiável.

AECN

X: A fonte das minhas crenças (incluindo minha crença no naturalismo)

surgiu por meio de N&E;

Y: P(a fonte de um crença é confiável/a fonte surgiu por meio de N&E) é baixa

ou inescrutável.

De X e Y é razoável duvidar de:

Z: Nossas fontes de crenças são confiáveis (i.é., Cf).

Por outro lado, seria a seguinte a estrutura do Problema do Mal:

X: MH (i.e., existem males horrendos);

Y: P(D/MH) é baixa ou inescrutável.

De X e Y, é razoável duvidar de

B: D

Nos três exemplos acima, as duas premissas lançam dúvidas sobre a

conclusão. No entanto, os dois primeiros são exemplos de derrotadores erosivos,

pois atacam justamente a fonte da conclusão. Ora, Bergmann sugere que nem

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55

sempre a crença em X e em Y, em casos como os dois primeiros, exige que a

pessoa que tem a crença ameaçada tenha dúvidas sobre a conclusão. Como

exemplo ele apresenta o que chama de Caso do Sorteio do Palito : 55

X: Um palito é retirado do conjunto de palitinhos;

Y: P(o palito retirado tem três centímetros/um palito é retirado do conjunto de

palitos) é baixa ou inescrutável;

Z: O palito retirado tem três centímetros.

No jogo do palitinho, você retira o palito de três centímetros, o que

naturalmente lhe faz gerar a crença em Z. Agora, suponha que você venha a saber

posteriormente que o palito foi retirado de um grande conjunto de palitos de doze

centímetros. Ao tomar conhecimento disso, você naturalmente forma a crença em Y.

No entanto, isso não tornaria razoável você duvidar de Z. Pelo contrário, isso apenas

lhe serviria de razão para pensar que algo que você sabe ser verdadeiro é

improvável dada sua evidência proposicional. Isso demonstraria que é razoável

insistir na crença Z porque as evidências dos sentidos contrabalançam a evidência

da inferência probabilística . 56

Isso demonstraria que há casos em que é racional continuar a crer numa

proposição mesmo quando estamos cientes de sua improbabilidade dado todo

nosso conjunto de proposições. Bergmann sugere que o AECN é análogo ao

argumento do palito e não ao argumento freudiano. Segundo ele, a compreensão

natural do derrotador freudiano transmite a ideia de que a probabilidade mencionada

em Y é igual a zero. A ideia é que as crenças formadas através do mecanismo de

wish fulfillment simplesmente não são confiáveis. No caso do AECN, tudo que

Plantinga teria seria um argumento de que Cf é improvável dado N&E. Isso, no

entanto, não seria suficiente, pois a evidência não-proposicional do naturalista para

Z seria suficientemente forte para impedir que X e Y funcionassem como derrotador,

assim como a evidência não-proposicional no caso do jogo dos palitos supera a

força das evidências proposicionais existentes impedindo, da mesma forma, que X e

55 "Straw-Drawing Case", no inglês. 56 BERGMANN, Michael. Commonsense Naturalism. In: BEILBY, James. Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002 p. 73.

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56

Y funcionem como derrotadores de Z. Daí Bergmann conclui duas coisas: (1) a

evidência contra Z, no AECN, é muito mais frágil do que no caso do derrotador

freudiano e (2) a evidência não-proposicional a favor de Z é mais forte no caso do

AECN e “ao menos tão forte quanto no caso do jogo do palitinho” 57

Em resposta a (1), Plantinga insiste que a probabilidade de Cf dado o

epifenomenalismo semântico é de fato muito baixa. Pegue uma determinada crença

epifenomenal sobre determinada estrutura neurofisiológica. Ainda que se presuma

que essa crença tenha no mínimo igual probabilidade de ser verdadeira quanto falsa,

diríamos que sua probabilidade estaria em torno de .5. Mas se for assim torna-se

impressionantemente improvável que toda a estrutura cognitiva do indivíduo seja

confiável. A probabilidade de existirem 75% de crenças verdadeiras num conjunto

total de 1000 crenças estaria abaixo de 1/1058, o que seria tão improvável quanto

impossível . Assim, se os cálculos apresentados por Plantinga estiverem corretos, 58

isso forçaria o naturalista a admitir a probabilidade de Cf como mais do que

meramente inescrutável, mas, antes, como incrivelmente baixa.

Penso, porém, que se pode dispensar a um tanto arbitrária definição de

probabilidades para questões como essas, dada a natureza imensamente

especulativa da empreitada. A simples suposição do epifenomenalismo semântico,

ao tratar o conteúdo das crenças como desconectadas da relação causal que gera o

comportamento, torna a relação entre um certo conteúdo mental e um dado

comportamento completamente arbitrária. Nesse sentido, seria incrivelmente

improvável que tais conteúdos mentais tivessem qualquer relação com a realidade,

como já exposto anteriormente neste trabalho.

Assim, ainda que o derrotador freudiano seja mais forte, isso não torna a

posição do naturalista muito mais confortável. Podemos admitir que a probabilidade

da verdade de uma crença produzida através de wishful thinking seja igual a zero, ao

passo que no AECN tudo que temos é a conclusão de que Cf é improvável dada a

verdade das premissas. No entanto, isso claramente não é suficiente para se

57 Ibid., p. 75. 58 PLANTINGA, Alvin. Reply to Beilby's Cohorts. In: BEILBY, Justin (Ed.). Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002. p. 215.

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57

esquivar do problema. Pois tal improbabilidade é essencialmente distinta da

improbabilidade no Caso do Jogo do Palitinho, porque neste caso o derrotador em

questão é negativo. Isso quer dizer que ele não lança suspeitas sobre a própria fonte

da crença em questão, qual seja, a experiência empírica e a memória que,

corretamente, dada a sua força evidencial, se sobrepõem à evidência proposicional

daquele caso. Ou seja, temos aqui um aparente conflito entre faculdades distintas da

razão, onde uma dada faculdade é preferida à outra por sua maior força evidencial.

Por outro lado, se admitirmos que é improvável que a faculdade cognitiva

através da qual a crença foi formada gere crenças verdadeiras, segue-se ser

improvável que a própria crença daí derivada seja verdadeira. Nesse caso, portanto,

recorrer ao senso comum reidiano seria exatamente um recurso àquilo que se

reconhece como improvável de ser verdadeiro. A circularidade é, assim, nitidamente

viciosa. Bergmann discorda, afirmando que nem toda circularidade é viciosa porque

evidentemente nenhum argumento a favor da confiabilidade de Cf poderia ser

desenvolvido senão a partir de Cf. Então, se rejeitarmos a resposta reidiana em

defesa de Cf, teríamos que estendê-la a qualquer argumentação a favor de Cf. Ele

diz:

Suponha que T seja toda nossa maneira de formar crenças. A crença de que

T é confiável irá, por necessidade, ser formada usando o próprio T; qualquer

argumento para a confiabilidade de T será circular na medida em que utiliza

premissas cuja garantia é recebida por derivação de T. [...] Nem mesmo Deus

poderia formar a crença de que suas formas de produzir crenças são

confiáveis sem depender dessas formas de produzir crenças. 59

A objeção nos parece justa. Todo raciocínio depende em última instância de

premissas cuja justificação não pode ser defendida de modo não-circular. Numa

passagem famosa, Thomas Reid observa que seria uma enorme tolice recorrer à

palavra do homem cuja honestidade estivesse em xeque. Ora, por óbvio, o homem

desonesto não faria outra coisa senão louvar sua própria honestidade. No entanto, 60

59 BERGMANN, Michael. Commonsense Naturalism. In: BEILBY, James. Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002, p. 79. 60 Segundo Reid, o homem seria disposto de uma propensão natural de dizer a verdade, ao que ele denominou princípio da veracidade; como contraparte natural a isso, o ser humano também seria

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58

poderia o naturalista não ter dúvidas sobre Cf? Na epistemologia bergmanniana, a

justificação das crenças do senso comum depende em última instância da

confiabilidade do senso comum . Se o senso comum é confiável, pode-se 61

perfeitamente pressupor as crenças produzidas através dele. Mas, uma vez que a

própria confiabilidade do senso comum é questionada, não se pode ignorar o

problema justamente pressupondo aquilo que está em questão, o que seria tão tolo

quando tomar por verdadeira a palavra de um homem cuja honestidade estivesse

sendo questionada.

Por fim, ele compara o argumento de Plantinga com os cenários céticos

clássicos, tais como o cartesiano e o do “cérebro numa cuba” que nos apresentam

um cenário de ceticismo global, de acordo com o qual nossas faculdades cognitivas

estariam sob suspeita. No entanto, mesmo na mais absoluta ausência de qualquer

argumento capaz de demonstrar a falsidade desses cenários, admiti-los parece-nos

profundamente contraintuitivo e, sendo assim, não nos deixamos persuadir por tais

experimentos mentais. Não nos parece possível demonstrar a validade de nosso

conhecimento sem o tomarmos como pressuposto, isto é, sem o recurso a formas de

raciocínio epistemicamente circulares. Ao que parece, portanto, ao cético

sinceramente imerso em dúvidas sobre suas crenças dificilmente se deixará

persuadir por qualquer argumento cuja garantia epistêmica de suas premissas

dependa da confiabilidade de nossas faculdades cognitivas. Assim, segundo

Bergmann, o AECN é relevantemente similar a tais cenários céticos. E se é racional

rejeitar tais cenários com base na evidência dos próprios mecanismos que são

postos em xeque por ele, por que o naturalista deveria seguir uma postura diferente

em resposta ao AECN? Ele afirma:

dotado do princípio da credulidade, que consiste basicamente na propensão de se acreditar no testemunho de terceiros na ausência de razões para dúvida. Ao contrário da epistemologia do testemunho de Hume, para Reid a verdade do testemunho é pressuposta, salvo evidência em contrário. No caso da citação em questão, ele deixa claro que em havendo dúvida sobre a honestidade do testemunho, naturalmente a credulidade é – e deve ser – suspensa. 61 Como ele mesmo afirma: “Pois, como eu expliquei no parágrafo anterior, de acordo com essa resposta (ao Plantinga), pode-se obter, através do senso comum, uma crença justificada não-inferencialmente de que o senso comum é confiável” (grifo meu) (BERGMANN, Michael. Commonsense Naturalism. In: BELBY, James et al (Ed.). Naturalism Defeated?: essays on Plantinga's Evolutionary Argument. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002. p. 78).

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59

(...) visto que o argumento de Plantinga é similar aos exemplos típicos

de objeções céticas, o naturalista pode razoavelmente manter sua

crença em Cf sem dúvidas, a despeito de sua aceitação das versões

de Plantinga de X e Y (em relação à N&E). 62

No entanto, isso certamente não é suficiente para Bergmann, pois tais

cenários não são paralelos ao AECN num ponto absolutamente essencial. Na

apresentação de tais cenários como experimentos de pensamento filosófico, eles

nos são apresentados como hipóteses que levariam à desconfiança de tudo aquilo

que pensamos saber. Mas nós não aceitamos suas conclusões não por rejeitarmos

a consequência lógica a partir do cenário descrito, mas por julgarmos inverossímil o

próprio cenário hipotético. Não havendo razão para se acreditar que tais cenários

sejam o caso, não temos qualquer razão para aceitar sua conclusão. Ao contrário do

que críticos como Bergmann sugerem, não é a mera possibilidade de o cenário

cético ser verdadeiro que nos serve de derrotador. Antes, é a crença de que esse

cenário é de fato verdadeiro que derrota a racionalidade de Cf. Até onde nos 63

consta, nenhum cético jamais foi capaz de evidenciar minimamente a existência do

gênio maligno ou de um complô de cientistas manipuladores. Por isso as situações

não são paralelas. O próprio Bergmann esclarece que a defesa da racionalidade de

uma crença por meio de evidências não-proposicionais não a torna imune à derrota.

Alguém poderia se convencer da verdade do demônio cartesiano, o que lhe daria um

claro derrotador à sua crença em Cf. Mas enquanto para um determinado sujeito tal

hipótese não for suficientemente convincente, ele continuará crendo racionalmente

em Cf sem incorrer numa circularidade ilegítima.

Nesse ponto, faz-se pertinente trazer à tona duas distinções que Bergmann

faz na sua obra Justification Without Awareness ao tratar do problema da

circularidade . A primeira das distinções é entre circularidade epistêmica e 64

62 BERGMANN, Michael. Commonsense Naturalism. In: BEILBY, James. Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002, p. 82.. 63 Michael C. Rea segue esse mesmo raciocínio ao responder aos críticos do AECN na sua defesa do argumento em REA, Michael C. World Without Design: The Ontological Consequences of Naturalism. Nova Iorque: Oxford University Press, 2002, p. 184. 64 cf. BERGMANN, Michael. Justification Without Awareness. Nova Iorque: Oxford University Press, 2006, pp. 179-206

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60

circularidade lógica. Um argumento é epistemicamente circular quando a garantia da

crença em uma de suas premissas depende da verdade de sua conclusão. Já o

argumento logicamente circular é aquele que inclui a conclusão como uma de suas

premissas essenciais (ou seja, uma premissa sem a qual o argumento seria

inválido). Observe que no argumento epistemicamente circular é da verdade da

conclusão, não a crença nela, que depende a garantia da crença em uma de suas

premissas. Portanto, a conclusão do argumento epistemicamente circular não se faz

presente em suas premissas, pois um argumento é logicamente circular somente se

incluir a conclusão como uma de suas premissas essenciais.

Ele apresenta o seguinte exemplo de argumento epistemicamente circular

1. Eu formei a crença perceptiva B1 em t1;

2. B1 era verdadeira em t1;

3. Eu formei a crença perceptiva B2 em t2;

4. B2 era verdadeira em t2;

[…]

n. Portanto, a maior parte das minhas crenças perceptivas eram verdadeiras

C: Portanto, minha percepção é confiável.

Percebam que a conclusão C não está embutida em nenhuma das premissas,

portanto não se pode falar em circularidade lógica. Trata-se de um argumento

indutivamente cogente. A segunda distinção, por sua vez, se dá entre situações de

crenças epistemicamente circulares (crenças-EC), a saber:

Situações-QD: Situações onde, antes da formação da crença-EC, o sujeito está ou

deveria estar questionando ou duvidando da confiabilidade de X ou da confiabilidade

da formação de B.

Situações-Não-QD: Situações onde, antes da formação da crença-EC, o sujeito não

está nem deveria estar questionando ou duvidando seriamente da confiabilidade de

X ou da confiabilidade da formação de B.

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61

Como exemplo de crença-EC formada numa situação-QD, ele apresenta o

seguinte. Suponha que Tom - que recentemente foi convencido da posição cética

quanto à confiabilidade de suas faculdades perceptivas - esteja considerando um

argumento que lhe fora proposto para lhe convencer que sua percepção é confiável.

No entanto, Tom percebe que tal argumento é epistemicamente circular da mesma

forma que o argumento que apresentamos acima. Nesse caso, evidentemente, o

argumento será inútil para fazê-lo recuperar a confiança perdida nas suas

faculdades perceptivas. A razão é muito simples: Tom não confia nelas. Neste caso,

evidentemente Tom não poderia recorrer a um argumento cuja garantia de uma de

suas premissas essenciais dependesse da confiabilidade de suas faculdades

perceptivas.

Nem todas as crenças epistemicamente circulares são formadas dessa

maneira. A maior parte de nós não têm dúvidas substanciais sobre a confiabilidade

de nossas faculdades perceptivas. Por isso, deve-se distinguir as crenças-EC em

situações-QD e situações-não-QD.

É com base nisso que Bergmann sugere que a circularidade é maligna em

situações-QD e benigna em situações-não-QD

Mas o problema é que, no AECN, o naturalista como que descobre que o

cenário cartesiano é de fato verdadeiro, pois sabe que P(Cf/N&E) é baixa ou

inescrutável por ter descoberto razões para pensar assim. Neste caso, não é como

se postulássemos uma hipótese cética cuidadosamente construída para levantar

dúvidas aos nossos sentidos. A teoria moderna da evolução não é mero experimento

de pensamento filosófico. Não se trata de um “gênio maligno” imaginado por Darwin

no conforto de seu escritório. É como se descobríssemos que aquilo que outrora era

mera hipótese, ou resultado de simples exercício filosófico, é a realidade dos fatos. É

como se descobríssemos que o Gênio Maligno de Descartes é o nosso criador e, por

conseguinte, que todo e qualquer meio de se aferir a verdade de tais crenças está

sujeita aos propósitos escusos do Gênio. É um cenário de ceticismo global dos mais

radicais que se pode cogitar. A resposta de Bergmann não incorre em mera

circularidade ilegítima. Trata-se, antes, de um argumento com uma premissa

sabidamente questionável. Sendo assim, não nos resta qualquer alternativa a não

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62

ser reconhecer o sucesso do Gênio Maligno que, no caso, não tem nenhum caráter

sobrenatural. Pelo contrário, ele nasce do próprio seio do naturalismo: o darwinismo.

3.3 A Natureza da Derrota Epistêmica

W.J. Talbott analisa a concepção de derrota epistêmica utilizada por

Plantinga, em especial em seu conceito de derrotador erosivo. Segundo ele,

Plantinga compreende de forma equivocada a ideia de derrotador erosivo, o que

resultaria na afirmação de uma rigidez cognitiva nada apropriada epistemicamente.

Se Plantinga estiver correto, ele supõe, um sujeito sob o tipo de derrota em questão

estaria impossibilitado de encontrar uma saída racional dessa situação se

confrontado com novas evidências. Talbott é da opinião de que o raciocínio

pragmaticamente circular nem sempre é ilegítimo. Há situações em que é

perfeitamente razoável depender das próprias crenças produzidas por nossas

faculdades cognitivas para justificar a sua confiabilidade. Nisso, ele traça uma

distinção entre o AECN e o argumento freudiano do wish fulfillment. No caso do wish

fulfillment, a crença que serve de base para a dúvida da faculdade do wish fulfillment

tem como origem outras faculdades cognitivas que o sujeito toma por confiável. No

caso do AECN, por outro lado, qualquer argumento em favor de Cf recorreria às

mesmas faculdades postas em dúvida, o que seria equivalente ao teísta defender a

crença em Deus baseada no wish fulfillment recorrendo ao próprio wish fulfillment

para garantir sua confiabilidade. Ele diz:

Ele [Plantinga] está correto [ao dizer] que não pode ser racional julgar o wish

fulfillment confiável com base no próprio wish fulfillment, quando existam

outras razões (baseadas em outras faculdades cognitivas) para considerá-lo

não confiável [grifo do autor]. Mas quando nossas faculdades cognitivas

julgam a si mesmas confiáveis com base na evidência total disponível e não

existe outra fonte para considerá-las não confiáveis, penso ser um equívoco

afirmar que o seu resultado é objetavelmente circular ”. 65

65 TALBOTT, W. J.. The Illusion of Defeat. In: BEILBY, James. Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002. p. 157-158

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63

Assim, ele conclui que o fato de nossas faculdades cognitivas julgarem a si

mesmas confiáveis é uma razão para acreditar que elas são confiáveis. Tratar-se-ia,

de fato, de uma razão melhor que as alternativas, a saber, que elas julguem a si

mesmas como não confiáveis ou que suspendam o juízo sobre essa questão com

base em evidências produzidas, evidentemente, por elas mesmas. Basicamente, a

ideia é que as mesmas faculdades que produzem a dúvida sobre sua própria

confiabilidade produzem a confiança em sua própria confiabilidade. Neste caso, a

melhor razão pragmática é aceitar o juízo de que elas são confiáveis. Talbott tem

uma série de exemplos para demonstrar a suposta dessemelhança entre o

argumento do wish fulfillment e o AECN. Então, vejamos:

Exemplo 1: o bloqueador genético de alucinógenos. Imagine que exista

um alucinogéno H tão poderoso que 95 por cento daqueles que o tomam têm

alucinações severas uma hora após a ingestão. Nomearemos esta afirmação por

HCA (H causa alucinação). J (João) acredita em HCA. Uma hora antes ele ingeriu

uma pílula que ele acredita ter sido uma dose de H. João também acredita em JIH

(João ingeriu H). Unindo-se HCA e JIH, João conclui que é muito improvável que

suas faculdades perceptivas [Cf(FP)] sejam confiáveis. Tome uma crença qualquer

de João como a crença de que ele está teclando no computador (TC). Suponha que

João reconheça que TC seja produto de FP. Todo esse conjunto de premissas

podem ser formalizadas da seguintes forma:

1) P(Cf(FP)/HCA&JIH) = .05 < ½

2) HCA&JIH

3) João acredita em TC baseado em FP.

4) João não tem outro fundamento para crer em TC

5) Passos 1-4 não estão sujeitos à derrota epistêmica.

6) Minha crença em TC é irracional.

Embora o passo (6) seja legítimo, isso, de acordo com Talbott, nem sempre

seria o caso, pois poderia ser o caso de João possuir alguma outra informação

relevante a ser considerada que relativizasse a exigência da conclusão 6. Podemos

supor, por exemplo, que João soubesse que 5 por cento da população tem um gene

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64

que bloqueia os efeitos de H (abreviemos por 5GBH). Além disso, João sabe

também que ele mesmo tem esse gene (JSGBH: João sabe que tem esse gene) e

ele tem vastas evidências (E) de que suas faculdades perceptivas são confiáveis

quando não está sob influência de drogas alucinógenas. Agora o conjunto total de

evidências de João está ampliado e ele poderia dar o seguinte passo:

Passo 1-1) P(Cf(FP)/HCA&JIH&GBH&JSGBH&E) > ½

Mas se isso é verdade, como realmente parece ser, isso ilustra o critério que

Talbott vai propor, que é o Critério da Evidência Total Relevante. Num argumento

probabilístico, a probabilidade depende de todo conjunto evidencial relevante, como

exposto no caso acima. Talbott critica Plantinga por considerar em seu argumento

apenas a evidência N&E na determinação da confiabilidade de nossas faculdades

cognitivas, o que excluiria do cálculo parte do conjunto evidencial relevante em razão

da invectiva de Plantinga contra a circularidade epistêmica.

Exemplo 2: A Revelação Tardia. O segundo exemplo, o Exemplo da

Revelação Tardia, a situação é similar à primeira, com a diferença de que João não

sabe que possui o gene bloqueador. Horas depois de ingerir H, João espera que

suas faculdades cognitivas não estejam confiáveis, embora não tenha percebido

nenhuma mudança substancial em sua percepção após a ingestão de H. Então, ele

recebe uma ligação de seu médico que lhe informa que os testes genéticos

revelaram que ele possui o gene bloqueador de H. Agora, dado o conjunto total das

evidências relevantes, Talbott é da opinião de que é perfeitamente racional para

João seguir sua vida crendo estar teclando à frente do computador tal como no

primeiro exemplo.

Na lógica de Plantinga, segundo Talbott, João não poderia recorrer ao

testemunho de suas faculdades cognitivas para remover dúvida sobre sua

confiabilidade. Talbott não vê nada de errado nesse procedimento, dado que na

ausência de quaisquer outras experiências alucinatórias seria uma enorme

coincidência supor que a ligação de seu médico atestando a existência de seu gene

fosse uma simples alucinação. Não haveria nada de objetavelmente circular em seu

raciocínio. Talbott reconhece duas dessemelhanças entre seus exemplos e o de

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65

Plantinga: (1) o argumento de Plantinga tem uma estrutura temporal distinta, dado

que toma por base um tempo em que os seres humanos não existiam e o seu

surgimento com faculdades cognitivas confiáveis seria altamente improvável e (2) o

argumento de Plantinga aplica-se a toda a humanidade e não a um indivíduo

específico.

Exemplo 3: HS Invade a Cadeia Alimentar. Por fim, Talbott apresenta seu

terceiro exemplo na tentativa de corrigir as referidas dessemelhanças. Nesse

exemplo, a substância química HS invade a cadeia alimentar afetando a todos os

fetos a partir daquele momento. Isso tornaria todas as crianças nascidas desde esse

momento em incuráveis esquizofrênicos alucinados se não houvesse uma mutação

de uma bactéria benigna capaz de digerir a substância HS. Antes da ingestão da

bactéria benigna, a probabilidade objetiva do desenvolvimento da esquizofrenia

alucinógena era alta. Mas, dada a nossa benigna bactéria, nenhuma criança

efetivamente desenvolveu o distúrbio. Então, João no seu aniversário de 21 anos é

informado da mutação que lhe salvou de se tornar um esquizofrênico alucinatório.

Nesse caso, qual seria a reação de João?

Na lógica de Plantinga, supõe Talbott, dada a elevada probabilidade de ele

adquirir o distúrbio enquanto estava no útero, ele deveria suspender a crença na

confiabilidade de suas faculdades cognitivas a despeito de toda sua experiência de

vida sugerir o contrário. Todavia, o que o argumento de Talbott demonstra é a

legitimidade de se tomar uma dada evidência produzida por Cf como parte do

conjunto total de evidências relevante e, como base nesse conjunto total, concluir

por sua confiabilidade. Nesse caso, tem-se obviamente duas evidências relevantes.

Se o indivíduo toma conhecimento de que a bactéria HS num dado momento

se proliferou por todos os fetos, naturalmente o conhecimento desse fato lhe serviria

como derrotador de Cf. Nesse ponto, parece-nos que há um análogo com o AECN.

Mas o análogo termina aqui. No momento seguinte, acrescenta-se ao seu conjunto

de evidências a proposição de que a mutação numa bactéria benigna interferiu na

ação de HS. Nisso, tem-se uma nova crença adquirida pela ação de faculdades

perceptivas que derrota o derrotador inicial. Nesse contexto, temos uma nova crença

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66

que mantém a racionalidade da crença em Cf mesmo após a aquisição do

derrotador inicial. Nisso, tem-se o correto análogo ao AECN, em que a hipótese

teísta cumpre a função de garantidor epistêmico de Cf. A questão não é sobre a

legitimidade da circularidade epistêmica, que é inevitável, mas sobre encontrar-se

uma saída circular legítima. Que hipótese, então, está disponível ao naturalista para

justificar a manutenção de sua crença em Cf? Talbott não foi capaz, e nem sequer

pretendeu, apresentar uma solução. Ele apenas assume Cf intuitivamente,

tornando-a imune à derrota.

Todos os exemplos de Talbott visam demonstrar que a dependência rígida no

passado não é determinante para Cf. Seus exemplos demonstram que mesmo com

uma baixa probabilidade de que em sua origem nossas faculdades cognitivas

venham a se desenvolver de modo confiável, é perfeitamente possível sustentar

uma crença racional nelas a despeito de seu histórico. No argumento de Plantinga,

porém, a conclusão de que as faculdades cognitivas não são confiáveis seria

absolutamente irreversível porque qualquer nova evidência dependeria da própria

faculdade posta em xeque.

No entanto, a suposição de Talbott sobre a irreversibilidade do juízo de

Plantinga não parece correta. A ideia não é tanto que o juízo negativo sobre Cf não

possa ser revertido com base em uma crença derivada de Cf. Plantinga não nega a

imensa força intuitiva de Cf e das crenças daí derivadas. Assim como a força da

crença básica em Cf torna improvável o cenário cartesiano do Gênio Maligno, essa

mesma força deveria tornar improvável qualquer cenário que sustentasse que Cf

seria muito improvável. É essa a força do argumento de Plantinga. Por que, então,

insistir em N&E se a nossa experiência intuitiva parece contradizer tão fortemente

aquilo que esperaríamos desse cenário? Talvez fosse o caso de abrirmos mão de

uma das conjuntas ou até mesmo da conjunção em si.

No entanto, abrir mão de E iria de encontro com todo conhecimento científico

atual. Tal possibilidade não parece razoável, ao menos por ora. Nesse caso, restaria

a rejeição de N como tese metafísica verossímil. Mas se N é definido como a

negação de que existe um Deus ou uma entidade de natureza semelhante, então

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67

segue-se, mediante a regra de inferência da dupla negação que existe um Deus ou

uma entidade de natureza semelhante. Até onde avança o conhecimento humano,

não parece haver uma via média. Tertium non datur.

3.4 A Objeção da Transpiração

A objeção, assim denominada por Plantinga, é também por ele exemplificada

desta maneira:

Alega-se que o naturalista tem um derrotador para Cf sob o fato de que a

probabilidade de Cf dado N&E é baixa ou inescrutável. Mas isso não pode

estar certo. A probabilidade de que a função da transpiração seja para resfriar

o corpo dado (somente) N&E também é baixa, assim como o é a

probabilidade de que Holland, no Michigan, esteja a 50 quilômetros de Grand

Rapids dado N&E. Mas certamente seria absurdo alegar que tais fatos

apresentam ao defensor de N&E um derrotador para aquelas crenças. 66

Analisemos, pois, a versão que Trenton Merricks apresenta dessa objeção. A

premissa do AECN, que ele chama de Alegação Crucial, é a seguinte:

Se P(Cf em relação a um dado indivíduo/N&E) é baixa ou inescrutável, então

quem acredita em N&E tem um derrotador para Cf em relação a si mesmo.

Dessa alegação condicional depende o AECN e, portanto, se ela for falsa,

todo o argumento desmorona. Considere o que ele chama de A Alegação

Obviamente Falsa:

(p)(q) Se P(p/q) é baixa ou inescrutável, então quem acredita em q tem um

derrotador para p.

66 PLANTINGA, Alvin. Naturalism Defeated. Não publicado, p. 14

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No entanto, a verdade dessa afirmação condicional parece estar sujeita a

contra-exemplos claramente absurdos. Merricks apresenta o seguinte:

p = eu estava pensando sobre o argumento evolucionista de Plantinga ontem;

q = o sol é maior do que a terra.

Merricks supõe que P(p/q) nesse caso é baixa ou inescrutável. Todavia, é

intuitivamente óbvio que isso não constitui um derrotador para p de modo que p é

uma crença garantida a despeito disso. Pode-se admitir a ausência de um derrotador

para a proposição de que P(p/q) é baixa ou inescrutável; bem como admitir-se

tranquilamente q. Nada disso parece ser relevante para a racionalidade de p. Mas

talvez esse não seja o melhor exemplo, porque pode-se perceber que antecedente e

consequente neste caso não guardam qualquer relação.

Vejamos, assim, o exemplo alternativo de Michael C. Rea . A minha avó, a 67

quem reputo por confiável, me informa ter trabalhado numa fábrica de pará-quedas

durante a Segunda Guerra. Eu percebo, porém, que a probabilidade objetiva de isso

ser verdadeiro, dado que ela é uma norte-americana de 90 anos, é deveras baixa.

Afinal, o número de pessoas que tenham ocupado tal função durante a Segunda

Guerra é irrisório. Teria eu, então, um derrotador para minha crença inicial? É

evidente que não.

Merricks, por isso, afirma que “em geral inferências de derrota a partir de

probabilidade condicional baixa ou inescrutável são injustificadas” . Disso ele 68

conclui que aquele que endossa esse tipo de inferência precisa explicar por que,

nesse caso específico, a inferência é justificada. Portanto, o defensor de que

P(Cf/N&E) é baixa ou inescrutável precisaria demonstrar ou que (1) a inferência é

justificada nesse caso ou que (2) a justificação é intuitivamente óbvia.

Merricks também apresenta uma série de críticas aos argumentos analógicos

usados para sustentar a alegação crucial do AECN para então concluir que:

67 REA, Michael. op. cit., p. 184-185. 68 MERRICKS, Trenton. Conditional Probability and Defeat. In: BEILBY, James. Naturalism Defeated? Nova Iorque: Cornell University Press, 2002. p. 167.

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69

A partir do momento em que embutimos p na garantia inicial de uma estrutura

noética, não consigo pensar em um único caso em que seja intuitivamente

óbvio, ou até mesmo intuitivamente plausível, que q seja um derrotador para

p somente com base numa probabilidade baixa ou inescrutável de P(p/q) . 69

Todavia, isso soa incrivelmente absurdo, dado que é bastante fácil apresentar

exemplos nos quais isso evidentemente acontece. O próprio Plantinga responde

com dois exemplos com a seguinte estrutura. No primeiro, eu tenho garantia inicial

para acreditar que meu novo esfigmomanômetro é preciso. No entanto, eu venho a

descobrir que ele foi fabricado por uma empresa conhecida pela sua má qualidade

na produção. Assim, eu imediatamente adquiro um derrotador para minha crença

inicial. No segundo exemplo, um amigo me diz que recentemente escalou o Morro

do Corcovado. Naturalmente, eu formo a crença inicialmente garantida de que ele

escalou o referido morro. No entanto, sua esposa depois me informa que meu amigo

vem enfrentando distúrbios psicológicos que lhe têm feito inventar histórias para

impressionar pessoas. Novamente, a crença recém adquirida derrota a garantia

inicial da crença no testemunho do meu amigo . 70

Mas me parece haver um problema no contra-argumento de Plantinga que

foge à crítica inicial de Merricks. Penso que o que Merricks quer dizer, mais

adequadamente, é que não se conhece nenhum exemplo em que a improbabilidade

de p (entendida como a confiabilidade de nossas faculdades cognitivas) dado q é um

derrotador de p quando p é apropriadamente básica numa dada estrutura noética.

Muito provavelmente, porque ele entende que qualquer crença daí derivada

dependerá de Cf para ser tomada como verdadeira.

Assim entendida, a crítica de Merricks é mais sólida. Não obstante isso, o

problema de seu argumento é que ele parece tomar o argumento de Plantinga como

uma sugestão de que devemos deixar de acreditar em Cf afinal. Nisso, ele se

esquiva do verdadeiro alvo de Plantinga que é a conjunção entre N&E. A pergunta

que se coloca, portanto, é: se tomamos Cf como apropriadamente básica, como

69 Ibid. p. 175. 70 PLANTINGA, Alvin. Reply to Beilby's Cohorts. In: BEILBY, Justin (Ed.). Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Nova Iorque: Cornell University Press, 2002. p. 251.

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70

Plantinga também o faz, por que razão insistirmos numa dada concepção metafísica

de acordo com a qual Cf seria incrivelmente improvável? Voltando aos

contra-exemplos de Plantinga, neste caso seria como se a garantia inicial da

confiabilidade do esfigmomanômetro fosse suficientemente forte a ponto de tornar

improvável que ele tenha sido produzido por uma fábrica de má qualidade ou, se o

foi, certamente consiste numa exceção à regra da fábrica.

Não obstante, Merricks sugere uma segunda possibilidade de resposta a suas

críticas, que consiste na formulação de um princípio geral que proponha um critério

minimamente objetivo de acordo com o qual pudéssemos distinguir os casos em que

a improbabilidade de p dado q constitui um derrotador de p e os casos em que isso

não acontece. Nem sempre é possível traduzir em critérios objetivos aquilo que se

coloca por intuição. Na filosofia não raro nos cabe explorar nossas intuições sobre

um assunto de modo a persuadir aqueles que compartilham das mesmas intuições,

isto é, aquelas atitudes proposicionais nas quais uma proposição nos parece

verdadeira segundo a definição de George Bealer . Se por um lado há exemplos 71

claros da Alegação Obviamente Falsa, há outros tantos exemplos claros da

Alegação Crucial, havendo entre eles um mar de vagueza de casos pouco claros.

Então, o que importa saber, se é que é possível fazê-lo, é qual é o status da

Alegação Crucial do argumento. Não obstante a dificuldade de se apresentar um

critério objetivo que satisfaça todas as partes envolvidas no debate, Michael C. Rea

enfrenta essa questão e sugere um caminho possível . 72

Sua ideia é apresentar um princípio que (1) seja fortemente intuitivo, (2) seja

exemplificado claramente pela Alegação Crucial e (3) seja possível se identificar

claramente os casos análogos que são ilustrações e os que são contra-exemplos a

tal princípio. Seu Princípio Geral é o que segue:

(PG) Seja p uma proposição crida por S não com base em evidências e seja Z o

conjunto das crenças e experiências de S. Então, S tem um derrotador para Cp se,

mas não somente se, S observa que (a) existe uma crença ou experiência ɛ em Z tal

que o grau de confiança racional de que p à luz de ɛ não é alto e (b) não existe crença

71 Cf. a exposição do intuicionismo em REA, Michael. World Without Design: The Ontological Consequences of Naturalism. Nova Iorque: Oxford University Press, pp. 173-182. 72 Ibid, p. 186

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71

ou experiência ɛ* em Z tal que o grau de confiança racional de S de que p à luz de

(ɛ&ɛ*) seja alto. 73

O seu Princípio Geral traz uma inovação em relação ao argumento de

Plantinga. Rea não faz referência a probabilidades objetivas e reformula o

argumento em termos de grau de confiança racional. Segundo ele:

PG não faz nenhuma referência a probabilidade objetiva. Talvez a

probabilidade objetiva exerça algum papel por trás do PG. Por exemplo, pode

ser que as nossas avaliações de probabilidade objetiva de alguma maneira

expliquem ou sejam explicadas por algumas de nossas avaliações do grau de

confiança racional. Mas eu não faço nenhuma suposição sobre que relação

seria essa. Todavia, certamente parece que temos uma compreensão intuitiva

mais clara da noção de grau de confiança racional do que da noção de

probabilidade objetiva e que nossas avaliações daquela são menos

escorregadias e controversas do que nossas avaliações desta. É por isso que

faço uso dessa noção no PG e é também por essa razão que eu reformularei o

argumento de Plantinga em termos de grau de confiança racional. 74

Portanto, Rea apresenta um Princípio Geral que responde à crítica de

Merricks dispensando a ideia não muito clara de probabilidade objetiva, que é

substituída por uma noção mais intuitiva de grau de confiança racional. Ademais, ele

apresenta um critério objetivo pelo qual as nossas crenças podem ser testadas,

critério esse relacionado em especial a crenças básicas.

O princípio poderia, segundo o próprio Rea, ser resumido da seguinte forma:

S tem um derrotador para Cp se, mas não somente se, o grau de confiança racional

de que p à luz de todos os membros de Z tomados em conjunto não é alto. No

entanto, tal formulação é rejeitada dada a inviabilidade de se julgar a probabilidade

de uma determinada crença à luz de todo conjunto de crenças de um certo indivíduo.

Não obstante, tal formulação é útil para tornar o Princípio Geral mais compreensível.

No caso em questão, p é uma crença apropriadamente básica (tal como Cf).

Todavia, não é imune à derrota. A percepção de que p é improvável dado o conjunto

73 REA, Michael. World Without Design: The Ontological Consequences of Naturalism. Nova Iorque: Oxford University Press, pp. 186 74 Ibid, p. 186, 187.

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de crenças do indivíduo pode enfraquecer o grau de confiança racional em p. Nisso,

o AECN se distingue dos cenários céticos clássicos como o cartesiano dado que o

cenário cartesiano não faz realmente parte de Z. O cenário cético proposto pelo

AECN não é mero experimento de pensamento. Antes, ele faz parte substancial do

conjunto de crenças Z do indivíduo que adota N&E.

Todos os contra-exemplos análogos incorrem numa dessemelhança

fundamental. A improbabilidade em questão não se refere aos próprios fatores

geradores da crença em xeque. Eu acredito que minha avó trabalhou numa fábrica

de para-quedas durante a Segunda Guerra não com base na probabilidade disso ser

verdadeiro, mas com base no seu testemunho a que reputo por confiável. Eu não

acredito que ganhei na loteria com base na probabilidade de eu ter ganhado na

loteria, mas com base na experiência sensorial de que, de fato, eu acertei o número

sorteado. Em ambos os casos, eu tenho outras crenças e experiências à luz das

quais a minha crença tem um grau de confiança racional elevado mesmo quando

considerada em conjunto com as demais. No primeiro caso, eu tenho o testemunho

confiável da minha avó do qual não tenho razões para duvidar; no segundo caso,

tenho a experiência sensorial básica de observar o bilhete premiado em minhas

mãos sem qualquer razão para duvidar da verossimilhança de tal experiência.

Agora, suponhamos que eu descubra que minha avó é mitomaníaca e que,

portanto, ela padece de uma compulsão psicológica à mentira. Nesse caso, a

confiança racional no seu testemunho estaria fragilizada e com isso eu teria um

evidente derrotador para a minha crença de que a minha avó trabalhou numa fábrica

de pará-quedas durante a Segunda Guerra, a menos que eu tivesse alguma outra

crença ou experiência no meu conjunto de crenças de acordo com a qual o grau de

confiança racional da minha crença acerca da minha avó seja alta. Na ausência

dessa outra crença, segundo o Princípio Geral, a minha crença inicial está derrotada.

Contudo, mesmo se tomarmos inicialmente como elevado o grau de confiança

racional de Cf, parece-nos claro que a reflexão sobre as implicações de N&E para as

nossas faculdades cognitivas diminui consideravelmente nossa confiança nelas.

Assim, nós teremos um derrotador para Cf a menos que tenhamos no nosso

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repertório de crenças alguma crença ɛ* de acordo com a qual o grau de confiança

racional de Cf seja elevado dado N&E. O teísta, como já exposto neste trabalho, tem

a crença em Deus e na sua atividade criadora. O naturalista, ao prescindir da

divindade, precisa apresentar alguma alternativa sólida que faça parte do repertório

de crenças comuns a um naturalista. Talvez algum naturalista perceba Cf como uma

verdade necessária; talvez outro perceba alguma teleologia necessária implícita ao

processo evolutivo. Mas a maioria não possui crenças dessa natureza e a menos

que o naturalista possa extrair do seu repertório de crenças alguma crença capaz de

cumprir esse papel, a derrota parece-nos inevitável.

Portanto, se aceitamos o Princípio Geral conforme apresentado por Michael

Rea, o que parece ser bastante razoável, a Alegação Crucial permanece incólume e

o naturalista continua nos devendo uma explicação razoável que sustente sua

confiança em Cf perante o Argumento Evolucionista Contra o Naturalismo.

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Conclusão

O Argumento Evolucionista Contra o Naturalismo lança mão de uma tese

ousada e que confronta uma posição cara a muitos filósofos contemporâneos.

Naturalmente, quando se trata de argumentos com tamanha pretensão, exige-se um

alto nível de rigor. Por isso, é natural o interesse fomentado pela discussão iniciada

por Plantinga, assim como são naturais as múltiplas críticas surgidas em torno do

argumento.

Analisamos os quatro argumentos essenciais contra a tese de Plantinga. Em

relação à primeira premissa, analisamos a Objeção do Confiabilismo Evolucionário

proposta por William Ramsey, segundo o qual o evolucionismo seria um meio que

tende à formação de mecanismos cognitivos confiáveis. Observamos como Ramsey

falha em considerar a alternativa do epifenomenalismo semântico e, assim, em

demonstrar como o conteúdo mental, fruto das estruturas físicas do cérebro, poderia

exercer papel causal na ação humana.

Em seguida, passamos pela Objeção Tu Quoque, levantada por Evan Fales.

Nela analisamos as ferramentas que o teísmo e o naturalismo oferecem como

possibilidade de se assegurar a formação de mecanismos cognitivos confiáveis. O

teísmo, se verdadeiro, leva vantagem na comparação e não padece dos problemas

que surgem da adoção de uma perspectiva naturalista, segundo argumentamos.

Já em relação à segunda premissa, tema do terceiro capítulo, tratamos

primeiramente da Objeção Reidiana, elaborada por Michael Bergmann. Segundo a

objeção, a garantia não-proposicional que temos para Cf supera em força evidencial

o argumento de Plantinga. No entanto, segundo argumentamos, usando a distinção

elaborada pelo próprio Bergmann em outra de suas obras, a situação apresentada

pelo AECN se encaixa numa circunstância de raciocínio epistemicamente circular

maligna, isto é, uma circunstância onde a crença epistemicamente circular antes de

ser formada está posta em dúvida ela mesma ou o seu processo de formação.

Portanto, a Objeção Reidiana não é de grande valia como resposta.

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No final, lidamos com a Objeção da Transpiração, que tenta demonstrar que a

baixa probabilidade de X dado Y não é razão para se duvidar de X. Logo, o mesmo

raciocínio teria de ser aplicado ao AECN. Demonstramos como os contra-exemplos

apresentados distinguem-se da lógica do AECN porque não se referem à

improbabilidade dos próprios fatores geradores da crença. À luz do Princípio Geral

sugerido por Michael Rea, demonstramos que o AECN invariavelmente resulta na

improbabilidade de Cf e, portanto, das crenças daí derivadas.

Portanto, concluímos que o Argumento Evolucionista Contra o Naturalismo

resiste às quatro críticas formuladas. Ao assim fazê-lo, se o argumento é sólido,

aquele que admite N&E deverá optar por uma das conjuntas. Lembremos que

Michael Rea identifica duas disposições metodológicas presentes no discurso dos

naturalistas: (a) aqueles que se dizem naturalistas se unem ao menos em parte por

disposições metodológicas que excluem a adesão a posições que não possam ser

questionadas por desenvolvimentos ulteriores da ciência e (b) nenhum deles parece

admitir que ulteriores desenvolvimentos científicos possam forçar alguém a rejeitar o

naturalismo.

Parece que chegamos a um ponto em que o desenvolvimento da ciência

moderna pressionou o naturalista a fazer uma escolha. Ou ele segue as implicações

da teoria evolucionista e rejeita o naturalismo; ou ele afirma o naturalismo e abre

mão de seu compromisso de seguir as conclusões da ciência aonde quer que ela

nos leve. Esse é o dilema do naturalista.

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