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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM GEANE DA SILVA SANTANA O TEATRO SEM FRONTEIRAS DE ARÍSTIDES VARGAS: MEMÓRIA E EXÍLIO NA AMÉRICA LATINA NATAL 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · A peça Nuestra Señora de las Nubes foi idealizada a partir dos anos em que o autor passou exilado no Equador, país que,

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

GEANE DA SILVA SANTANA

O TEATRO SEM FRONTEIRAS DE ARÍSTIDES VARGAS:

MEMÓRIA E EXÍLIO NA AMÉRICA LATINA

NATAL

2019

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GEANE DA SILVA SANTANA

O TEATRO SEM FRONTEIRAS DE ARÍSTIDES VARGAS:

MEMÓRIA E EXÍLIO NA AMÉRICA LATINA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudos da Linguagem, como

requisito para obtenção do Título de Mestre em

Literatura Comparada pela Universidade Federal do

Rio Grande do Norte.

Orientadora: Profa. Dra. Tânia Maria de Araújo

Lima.

NATAL

2019

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Este trabalho é completamente devotado à

memória de Francisca da Silva Santana. A

mulher que mais me amou na vida.

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AGRADECIMENTOS

Aos familiares: Itamar, meu pai; minhas tias e primas, pelo apoio e pela força que me

passaram ao ficar do meu lado em momentos tão difíceis. Aprendemos da pior maneira a

cuidar uns dos outros.

A meu companheiro: Victor. Pelo amor, paciência, viagens, conversas, discursões, força,

apoio, companheirismo, cuidado, preocupação, enfim... Obrigada por dividir uma vida

comigo e, principalmente, obrigada por ter ficado ao meu lado quando eu mais precisei.

A minha madrinha e família: Maria do Céu, Arnaldo, Daniele e Isabele. Obrigada pela

força, pela ajuda incondicional no período de tratamento de minha mãe. Agora sei que ela me

deixou uma segunda mãe realmente.

A minha família de coração: Veraneide, Nonato, Renata, Tena, Rafael, Maura, Jackeline,

Terezinha, Vó terceira. Obrigada por me aceitarem nessa família tão batalhadora e linda.

Agradeço especialmente às tias Tena e Maura, por cuidarem tão bem de mãe quando eu não

pude estar presente.

Aos amigos: Thayane, Thamise, Danilo, Victor, Ivson, Juliane, Ely, Aline, Lenny, Karol,

Cleyton, Amanda, Diana, Artur, Gilmara, Bárbara, Wesley, Lady, Lidiane, Shyrles: pela

amizade, conversas, viagens, festas, discussões, aprendizados e principalmente pela força por

estarem ao lado quando precisei.

A minha orientadora: Primeiramente, por ter me aceitado como orientanda e por todos os

ensinamentos, que não foram poucos. Pelas belas tardes de café e conversas durante as

orientações. Pela preocupação e por entender tudo que estive passando durante esses anos de

curso. Por não ter me deixado desistir desse mestrado. Na graduação já lhe admirava como

profissional, mas agora lhe admiro mais ainda como pessoa e como amiga que já lhe

considero. Obrigada por tudo Tânia Lima!

Aos amigos de estágio: Profa. Sandra Erickson, Margarete e Leonardo. Obrigada pela

amizade, discussões em sala e pelas belas tardes de conversas sobre política e América Latina.

Ao grupo Clowns de Shakespeare: Renata, Dudu, Joel, Diogo, Camille, Rafael, Titina,

César, Fernando, Paula, Myllena, Rolnaldo. Obrigada pelas conversas, pelos ensinamentos

nas oficinas, pelas experiências vividas no Barracão, por poder usar a biblioteca e o material

produzindo por vocês, pela disponibilidade, pelo convite para trabalhar junto com vocês e o

Malayerba. Por ter sido a porta de entrada, a inspiração, a colaboração, a magia, a alma desse

trabalho. Sem a influência dos Clowns, acredito que este trabalho não existiria. Vida longa

aos Clowns de Shakespeare!

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Ao grupo Malayerba: Arístides Vargas, María del Rosario Francés, Gerson Guerra. Por

todo aprendizado e experiência vivida, que irei guardar na memória por muito tempo.

Aristides, obrigada pela entrevista a mim consentida e por toda paciência e cuidado de

responder todos os meus questionamentos, guardarei todos estes momentos. Pelo maravilhoso

trabalho teatral e por ser fonte de inspiração para esse trabalho. Hoje tenho cada vez mais

certeza que arte consegue mudar vidas e com elas mudar o mundo. Vida longa ao Malayerba!

Ao departamento: A todos os professores que me inspiraram, por todo percurso de minha

vida acadêmica. Por terem concedido um maior prazo para que pudesse concluir esse

trabalho.

À capes: Pelo fomento da bolsa de estudos, sendo, que sem esse incentivo, teria se tornado

inconcebível o desenvolver desse trabalho.

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RESUMO

O presente trabalho propõe a elaboração de uma análise da peça Nuestra Señora de las Nubes,

do diretor e dramaturgo argentino Arístides Vargas. O objetivo dessa análise é explorar

elementos que surgem de forma marcada na obra do dramaturgo. A poética teatral de Vargas

é uma síntese dos processos dolorosos do exílio argentino, tema constante em todo o seu

teatro. Ao refletir sobre as conjunturas das memórias individuais e coletivas do exílio,

também se pretende analisar como essas memórias remontam, dentro da obra, um traçado do

pensamento político contemporâneo no teatro latinoamericano. A peça Nuestra Señora de las

Nubes foi idealizada a partir dos anos em que o autor passou exilado no Equador, país que, no

ano de 1979, fundou junto com outros expatriados da América Latina, o grupo Malayerba.

Sendo assim, a peça elaborada por Arístides Vargas, trata das várias memórias dos

expatriados que sofreram com os golpes ditatoriais na América Latina. O enredo da peça tem

seu foco em dois momentos principais e estes direcionam toda a história; primeiramente,

ocorrem os sucessivos encontros entre os personagens de dois exilados, Oscar e Bruna, em

um tempo e espaço não especificados. E já em um outro momento, são reconstruídas as várias

reminiscências expostas pelos dois, que são distribuídas em blocos não lineares, em que eles

recordam episódios sobre suas vidas e a respeito de seu lugar de origem, o país de Nuestra

Señora de las Nubes. Para um melhor fomento de questões sobre a análise do texto teatral, as

reminiscências do exílio e suas possíveis explanações historiográficas e identidades são

contempladas essas questões sob as perspectivas de autores como: Augusto Boal, Eduardo

Galeano, Edward Said, Michael Pollack e Denise Rollemberg.

Palavras chave: Literatura latinoamericana. Exílio. Arístides Vargas.

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ABSTRACT

The present work proposes the elaboration of an analysis of the piece Nuestra Señora de las

Nubes, by Argentine director and playwright Arístides Vargas. The purpose of this analysis is

to explore elements that emerge markedly in the work of the playwright. The theatrical poetry

of Vargas is a synthesis of the painful processes of the Argentine exile, constant theme in all

its theater. Reflecting on the conjunctures of the individual and collective memories of exile,

it is also intended to analyse how these memories go back, within the work, a plot of

contemporary political thought in Latin American theater. The piece Nuestra Senora de las

Nubes was created from the years in which the author spent in exile in Ecuador, a country

that, in 1979, founded the Malayerba group together with other Latin American expatriates.

Thus, the piece elaborated by Aristides Vargas, deals with the various memories of the

expatriates who suffered with the dictatorial coups in Latin America. The plot of the play

focuses on two main moments and these guide the whole story; first, there are the successive

encounters between the characters of two exiles Oscar and Bruna in an unspecified time and

space. And in another moment, the various reminiscences exhibited by the two are

reconstructed, which are distributed in non-linear blocks, in which they recall episodes about

their lives and about their place of origin, the country of Our Lady of the Clouds. For the

better encouragement of questions about the analysis of the theatrical text, the reminiscences

of exile and its possible historiographical explanations and identities are contemplated these

questions under the perspectives of authors like: Augusto Boal, Eduardo Galeano, Edward

Said, Michael Pollack and Denise Rollemberg.

Keywords: Latin American literature. Exile. Aristides Vargas.

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RESUMEN

El presente trabajo propone la elaboración de un análisis de la pieza Nuestra Señora de las

Nubes, del director y dramaturgo argentino Arístides Vargas. El objetivo de este análisis es

explorar elementos que surgen de forma marcada en la obra del dramaturgo. La poética teatral

de Vargas es una síntesis de los procesos dolorosos del exilio argentino, tema constante en

todo su teatro. Al reflexionar sobre las coyunturas de las memorias individuales y colectivas

del exilio, también se pretende analizar cómo esas memorias remontan, dentro de la obra, un

trazado del pensamiento político contemporáneo en el teatro latinoamericano. La pieza

Nuestra Señora de las Nubes fue idealizada a partir de los años en que el autor pasó exilado

en Ecuador, país que, en el año 1979, fundó junto a otros expatriados de América Latina, el

grupo Malayerba. Siendo así, la pieza elaborada por Arístides Vargas, trata de las varias

memorias de los expatriados que sufrieron con los golpes dictatoriales en América Latina. La

trama de la pieza tiene su foco en dos momentos principales y éstos dirigen toda la historia; en

primer lugar, ocurren los sucesivos encuentros entre los personajes de dos exiliados Oscar y

Bruna en un tiempo y espacio no especificados. Y ya en otro momento, se reconstruyen las

varias reminiscencias expuestas por los dos, que se distribuyen en bloques no lineales, en los

que recuerdan episodios sobre sus vidas y acerca de su lugar de origen, el país de Nuestra

Señora de las Nubes. Para un mejor fomento de cuestiones sobre el análisis del texto teatral,

las reminiscencias del exilio y sus posibles explicaciones historiográficas e identidades son

contempladas estas cuestiones bajo las perspectivas de autores como: Augusto Boal, Eduardo

Galeano, Edward Said, Michael Pollack y Denise Rollemberg.

Palabras clave: Literatura latinoamericana. El exilio. Arístides Vargas.

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LISTA DE FOTOS

Imagem 1 – Festival O Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V (26/09/2017) – Grupo

Malayerba. Cena do incesto com Irma e D. Tello – Foto: Taline Freitas........61

Imagem 2 – Festival O Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V (26/09/2017) – Grupo

Malayerba. Cena dos constantes encontros de Oscar e Bruna – Foto: Taline

Freitas................................................................................................................63

Imagem 3 – Festival O Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V (26/09/2017) – Grupo

Malayerba, Cena do banho de lua e morte da Vó Josefa – Foto: Taline

Freitas................................................................................................................74

Imagem 4 – Festival O Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V (26/09/2017) – Grupo

Malayerba. Cena de Memé e da Vovó Josefa lhe contando sobre a fundação de

Nuestra Señora de las Nubes. Foto: Taline Freitas...........................................82

Imagem 5 – Festival O Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V (26/09/2017) – Grupo

Malayerba. Cena do Governador e sua Esposa. Foto: Taline Freitas...............84

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: AS MEMÓRIAS DE UM PRIMEIRO CONTATO ................................... 13

I CAPÍTULO: LANÇANDO UM OLHAR SOBRE O CONTINENTE ................................. 27

1.1 A América Latina das Veias Abertas ............................................................................. 27

1.2 A América Latina e os regimes ditatoriais .................................................................... 37

II CAPÍTULO: UM TEATRO MEMORIALISTA .................................................................. 45

2.1 O Teatro Exilado de Arístides Vargas ....................................................................... 45

2.2 O valor da memória para o teatro .............................................................................. 53

III CAPÍTULO: DAS LEMBRANÇAS E DO ESQUECIMENTO – AS MEMÓRIAS DO

EXÍLIO ..................................................................................................................................... 59

3.1 As memórias do exílio em Nuestra Señora de Las Nubens ........................................... 59

3.2 As diferentes nuances do exílio - a loucura .................................................................... 77

AQUÍ SE RESPIRA LUCHA .................................................................................................. 89

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 93

APÊNDICE .............................................................................................................................. 98

APÊNDICE 1: ENTREVISTAS REALIZADAS .................................................................... 99

1.1 Entrevista realizada com Fernando Yamamoto, diretor dos Clowns de Shakespeare, por

e-mail em 06/11/2017. .......................................................................................................... 99

1.2 Entrevista realizada com Arístides Vargas, no Barracão dos Clowns, em Natal – Rio

Grande do Norte, no dia 29 de setembro de 2017. Durante sua vinda a Natal, no Festival O

Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V, organizado pelo grupo Clowns de Shakespeare...... 103

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INTRODUÇÃO

As memórias de um primeiro contato

O momento histórico de

praticamente todos os países

latino-americanos há

algumas décadas era de

regimes militares ditatoriais.

O inimigo, portanto, era

muito claro, forte e

provocativo. O impulso,

para se buscar a reunião de

companheiros que se

dispusessem a usar da sua

arte para buscar uma vida

melhor era evidente.

Fernando Yamamoto

Diretor dos Clowns de

Shakespeare

INTRODUÇÃO

As memórias de um primeiro contato

[...] tivemos a alegria

transbordante de recebe-

los em nosso próprio

festival, O Mundo Inteiro

é um Palco, com o próprio

Nuestra Señora e La

Razón Blindada. Agora

estamos pensando em

projeto conjuntos, que em

algum momento serão

realizados. [...] esses laços

de fato são muito sólidos e

afetivos. Seguramente é

uma parceria que se

estenderá para sempre.

Que privilégio poder ser

parceiro e amigo dos seus

ídolos, seus mestres, suas

referências! E felizmente

o teatro tem nos dado

isso!

Fernando Yamamoto

Diretor dos Clowns de

Shakespeare

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INTRODUÇÃO: AS MEMÓRIAS DE UM PRIMEIRO CONTATO

A ideia de escolher um objeto específico para o desenvolvimento de uma dissertação

é, de longe para algumas pessoas, uma escolha bem aterradora. Pensar que iremos passar dois

anos partilhando um só tema em dedicação exclusiva e de maneira focada nos assusta. Em uns

casos por medo de realizarmos escolhas erradas e de não poder sustentá-las durante a

pesquisa, em outros por medo das críticas que serão realizadas e que são necessárias para o

andamento do trabalho. Nesse ínterim, minha escolha vem se mostrando uma mistura de

inquietação, preocupações e surpreendentes descobertas. Há um turbilhão de informações que

precisamos administrar e dar conta para podemos administrar as melhores escolhas para a

pesquisa. Enfim, em meu caso especificamente, os elementos foram se somando com o tempo

até chegar a uma escolha definida.

Antes de entrar no Curso de Letras Português da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte (UFRN), já havia tido meu primeiro contato com a produção teatral. A primeira peça

com a qual tive contato foi ‘O Rei da Vela’ de Oswald de Andrade 1 que, inclusive, é uma

peça de que gosto até hoje. Lembro-me que ficava deslumbrada com aquele formato de escrita

em que se sucediam vários diálogos, com elementos que podiam nos fazer imaginar toda uma

cena. Não havia uma consciência de minha parte em relação à construção teatral tendo o texto

como elemento, nem das inúmeras pontes referenciais que aquele texto elencava. Isso foi algo

que só vim descobrir depois.

No desenvolvimento do curso, surgiram outros estudos. Houve a descoberta de novos

autores e novas literaturas que, muitas vezes, não nos são apresentadas no ensino básico.

Comigo foi assim, com a literatura construída na América Latina e no Continente Africano,

que me apareceram como um mundo novo. Com o tempo, fui me afastando do teatro e não

consigo descrever categoricamente quando retornei a ele, mas lembro que esse retorno foi

decisivo para a escolha da pesquisa, ao ponto de incluí-lo sempre, na medida do possível, em

meus projetos acadêmicos, fossem eles da iniciação científica, trabalhando em uma análise do

livro, ‘O senhor Embaixador’ de Érico Veríssimo, no contexto da ditadura militar, ou da

iniciação à docência, com o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à

Docência (PIBID), envolvida no ensino de gêneros textuais para os Ensinos Fundamental e

Médio.

1 A obra O Rei da Vela foi escrita por Oswald de Andrade em 1933, mas a sua estreia ocorreu somente em 1967,

nesta produção do Teatro Oficina. Encenada durante a revolução cultural do final dos anos 60 e no limiar do

AI-5 de1968 – o período mais violento da ditadura brasileira.

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A partir desse momento, minha curiosidade sempre rondava o universo teatral e se

fortaleceu ainda mais quando cursei a disciplina de ‘História do Teatro Brasileiro’. E foi

através dessa disciplina que obtive meu primeiro encontro com o trabalho do Grupo de Teatro

Clowns de Shakespeare2. No evento de comemoração dos vinte anos do grupo, no festival, ‘O

Mundo Todo é Um Palco’ (2013), obtive o meu primeiro contato, assistindo a um dos

espetáculos mais famosos dos Clowns, o ‘Sua Incelença, Ricardo III’. 3 Nesse primeiro

contato, já havia sido arrebatada, de primeira, pelo trabalho do grupo, lembrando-me de ter

saído maravilhada daquele espetáculo.

E, a partir desse momento, consegui enxergar algo que me despertava para pesquisa,

mas na época, não havia nada concreto encaminhado. Encontrava-me em um momento de

indecisão, estava refletindo sobre vários temas para pesquisar. Havia pensado em trabalhar

com a obra de alguns autores nacionais como Augusto Boal, Plínio Marcos, Nelson

Rodrigues. Interessava-me pelas questões políticas do teatro nacional como, por exemplo, a

resistência ao teatro durante a ditadura militar. No entanto, não me interessava por nada

específico e quando me direcionava a algum tema, já havia várias pesquisas bem elaboradas

sobre a proposta. O que acabou por me despertar interesse novamente, não por acaso, foi

justamente uma sinopse de um novo espetáculo dos Clowns de Shakespeare.

E foi em uma noite de outubro de 2014 que decidi assistir ao espetáculo. Era a

primeira vez que conhecia o Barracão dos Clowns, (sede do grupo e espaço de interações e

espetáculos), antes, apenas ouvia comentários sobre o local. E naquela noite, me descobri

seduzida por aquele espetáculo. Existia uma narrativa poética, com tons de ironia e crítica. A

partir desse momento, a teatralidade de Arístides Vargas, já me despertava interesse.

Identifiquei-me bastante com as questões abordadas pelo espetáculo, pois mesclavam

elementos de outros países da América Latina e da cultura brasileira. Haviam músicas que

foram censuradas na época e depoimentos de exilados brasileiros, além das discussões

abordadas, que se mostravam bastante importantes para o momento. No ano em que os

Clowns de Shakespeare estrearam o espetáculo, o Brasil completava 50 anos do golpe militar,

tornando-se, assim, um momento bastante propício para levantar discussões de cunho político,

em qualquer ambiente. Saí do Barracão com a cabeça repleta de ideias, desejava ler a obra

original, desejava conhecer melhor algumas referências. Dessa forma, poderia entender

2 Grupo de teatro do Rio Grande do Norte, se destacam no campo da cultura popular por sempre inserirem, em

seus espetáculos mambembes, manifestações do caldeirão cultural do Rio Grande do Norte e marcas

regionalistas do Nordeste. 3 O espetáculo é uma releitura intercultural dos Clowns de Shakespeare, dirigido por Gabriel Villela. Esta que é a

montagem mais aclamada do grupo, através do universo do picadeiro, de palhaços mambembes e das carroças

ciganas, a peça cria um diálogo entre o sertão nordestino e a Inglaterra.

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melhor a peça e foi ali que percebi que o meu desejo era trabalhar com aquele formato de

teatro. Um teatro crítico, de cunho político, que permeia questões sociais, que nos ajuda a

refletir diante de questões históricas, fazendo com que nossa experiência no teatro seja única.

E sendo assim, com o andamento da pesquisa percebi que a minha conexão com o

grupo Clowns de Shakespeare foi se tornando, cada vez mais, estreita. Nesse período da

pesquisa, mantive um contato maior com os Clowns em três ocasiões. Na primeira, me

inscrevi em uma das oficinas ministrada pelo grupo, pois eles estavam, naquela época,

iniciando um projeto para ministrar oficinas para a formação de profissionais da arte teatral,

com o intuito de fundar uma escola de teatro. Eu tinha o desejo de conhecer melhor o grupo e

seu trabalho, pois no inicio dessa pesquisa também pretendia analisar a adaptação elaborada

pelos Clowns. Naquele momento tinha um grande desejo de absorver o que eles pudessem me

passar e assim o foi.

Participando das oficinas consegui absorver conhecimentos pontuais em alguns

segmentos do teatro como produção cultural, direção, jogos teatrais, preparação do corpo e

voz, produção da escrita teatral e ainda pude manter um contato interessante com

profissionais de várias áreas do teatro. Foram tardes proveitosas, acredito que pude até

desenvolver um olhar mais criativo durante esse período.

Através dessas oficinas obtive um maior conhecimento sobre o meu objeto de

pesquisa. Acompanhar os ensaios, observar as preparações, atentar para as mudanças feitas no

espetáculo e também as discussões elaboradas a partir do olhar do grupo constituíram uma

experiência determinante para o desenvolvimento deste trabalho. Todas essas vivências

propiciaram um maior contato com o trabalho dos Clowns sobre a adaptação da peça Nuestra

Señora de las Nubes. Lembro-me de que na época estavam realizando vários ensaios, pois

iam começar uma nova temporada de exibições e sair em turnê pelo País.

Pude compreender melhor as dificuldades e complicações de administrar um grupo do

porte e experiência dos Clowns de Shakespeare em uma cidade como Natal. Realizo esta

observação, pois Natal é uma cidade que deixa um pouco a desejar quanto ao quesito de

patrocínio e divulgação da cultura local. É perceptível que órgãos públicos não apresentam

uma real preocupação com as atividades que permeiam o universo cultural da cidade.

O que pude observar a partir da pesquisa e observando os grupos locais é que muitos

grupos e artistas produzem sua arte de maneira autônoma, sem muito incentivo ou patrocínio

de empresas ou órgãos públicos. Um exemplo pontual que se pode mencionar para reforçar a

perspectiva de pouca preocupação com a cultura local é a maneira como se encontra um dos

principais teatros da cidade, o ‘Teatro Alberto Maranhão’, que é um monumento tombado

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pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Rio Grande do Norte e foi interditado

para uma reforma em 14 de junho de 2015, permanecendo fechado até os dias atuais, por

questões várias e assim, deixando de produzir e promover eventos e espetáculos culturais, o

que se configura como uma perda irreparável para a classe artística e para a população. Aos

interessados pela arte cênica local resta a opção de fazer uma pesquisa mais apurada e buscar

os espaços dos grupos de teatro autônomos pela cidade, que continuam produzido um teatro

significativo de qualidade e resistência.

Outra possibilidade viável para o público potiguar apresenta-se na opção de frequentar

um teatro dentro de um shopping. O que se denota notoriamente, a partir desse teatro, é que

sua preocupação se pauta na geração do lucro e não, na qualidade do que é exibido. Acredito e

reforço com a produção deste trabalho que as criações artísticas realizadas por artistas locais

deveriam ser mais bem exploradas, havendo lugares em que os artistas pudessem apresentar e

divulgar sua arte, sendo assim mais prestigiados. O cerceamento desses espaços públicos

apenas favorece a invisibilidade dessa cultura local, alimentando unicamente a iniciativa

privada, que define previamente o público que terá acesso a esses espaços. A construção de

espaços públicos acessíveis colabora não só com os artistas, mas também com a população,

contribuindo com a criação de uma futura memoria cultural para a cidade.

Todas as perspectivas advindas através da pesquisa deste trabalho me fizeram

reestruturar o meu olhar sobre o universo cênico local. Todo esse período de aprendizado e

observação fez-me observar o teatro potiguar com outro olhar que não é apenas o do

espectador que vislumbra o espetáculo pronto da plateia, mas o de quem observa o interior da

conjuntura e consegue perceber o emaranhado de relações e dificuldades que se entrecruzam

para o nascimento de um espetáculo.

Foi também a partir dessas vivências que pude direcionar minha pesquisa da melhor

maneira, conseguindo realizar recortes e reparos necessários, percebendo o que seria mais

necessário ser destacado ou retirado, sem causar danos à pesquisa. Um desses importantes

recortes surgiu na decisão de trabalhar apenas com a peça original do Arístides Vargas, pois

pensava, ao planejar essa pesquisa, em realizar também a análise com a adaptação elaborada

pelos Clowns de Shakespeare. No entanto, no decorrer do trabalho, observei que a peça

original do Arístides Vargas já apresentava uma grande gama de opções de análises bastante

relevante, assim como múltiplas referências para serem abordadas e trabalhadas na pesquisa.

Sendo assim, decidi por não utilizar a peça dos Clowns para a realização deste trabalho, mas

faço referência ao trabalho do grupo, pois eles foram a fonte inicial para que este trabalho

surgisse e tomasse forma.

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O segundo momento em que estive mais próxima do grupo Clowns de Shakespeare

surgiu a oportunidade de trabalhar como voluntária em um dos festivais elaborados pelo

grupo. O festival intitulado ‘O Mundo Inteiro é um Palco’, participando na edição de número

III. Os voluntários ajudantes do festival recebiam o nome carinhoso de anjos, pois

colaboravam de maneira voluntaria com as várias atividades que eram organizadas a partir de

um cronograma e distribuídas dentro das áreas do festival.

Estive contribuindo com o respectivo festival durante toda a semana em que ele

aconteceu e preferi direcionar minhas ações ao Barracão onde funciona a sede do grupo e

onde ocorriam os principais espetáculos. Esse desejo partiu da premissa de compreender o

funcionamento, organização e aplicação de um festival daquele porte na cidade de Natal. Foi

uma experiência bastante significativa, contribui fazendo de tudo um pouco e em troca, podia

assistir aos espetáculos. Essa foi uma das melhores trocas que pude experimentar em minhas

vivências e acredito que não conseguiria realizar uma maratona dessas em circunstâncias

normais.

Em dias alternados, participei da organização de camarins, ajudei a atender grupos

locais e de outros estados que se preparavam e ensaiavam no barracão para os seus

respectivos espetáculos. Essa experiência também se configurou de maneira bastante

interessante para este trabalho, pois se trata de uma experiência empírica que em minhas

particulares vivências nunca pensei na possibilidade de ter e só ajudou no esclarecimento do

que seria uma vivência puramente teatral. Lembro-me de ficar bastante encantada, pois nunca

tinha respirado tanta vivência teatral, foi uma maneira de me enamorar ainda mais pelo teatro.

O terceiro momento e mais recente de contato maior com o grupo os Clowns se

apresentou como o mais significativo de todos. Tudo começou quando recebi a notícia de que

os Clowns de Shakespeare, junto à Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em

Artes Cênicas (ABRACE) iriam trazer um evento nacional de teatro para ser realizado na

UFRN e no Barracão do Clowns. A informação adicional é a de que um dos convidados do

evento era o grupo Malayerba, para apresentações e um ciclo de palestras. Eu realmente não

estava acreditando que iria conseguir assistir o Malayerba ao vivo. Dentre as peças que fariam

parte do espetáculo do grupo equatoriano em Natal estava presente a peça trabalhada nesta

pesquisa, a Nuestra Senõra de las Nubes.

Em minha concepção, acreditava que iria adquirir as senhas, se possível no primeiro

lote e conseguiria assistir ao espetáculo do Malayerba, sentada na plateia como os demais

espectadores. No entanto, não foi bem assim que ocorreu. Nas semanas que seguiram, acabei

recebendo uma ligação da Renata Kaiser, ela que é uma das atrizes pertencentes ao grupo

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Clowns de Shakespeare. Essa, em uma ligação, me fez um convite bastante inusitado que

nunca, nem sequer, passou pela minha cabeça. Recebi um convite para organizar as legendas

dos dois espetáculos do Malayerba, em Natal.

No momento, não soube como reagir, não consegui pensar em muita coisa, sendo que

se alguém me contasse algo parecido há algum tempo atrás, com certeza, iria dizer que era

mentira. Nos dias que seguiram marcamos uma reunião no barracão, ainda estava muito

ansiosa e nervosa com tudo o que me era passado, mas acabei entendo o que eles realmente

queriam e soube que poderia tentar fazer o trabalho e oferecer o melhor para que esta

experiência prosperasse.

Assim que a data do festival se aproximava me repassaram os textos originais dos

respectivos espetáculos que o Malayerba iria apresentar, no caso seriam dois espetáculos, um

era a peça Nuestra Señora de las Nubes e o outro seria o La Razon Blindada.4 Logo que

comecei a organizar as legendas me passaram o contato do ator Gerson Guerra pertencente ao

grupo Malayerba, que divide o palco com Arístides Vagas na peça La Razon Blindada. Este

me ajudou bastante durante todo o processo.

As legendas das peças deveriam ser entregues o mais brevemente, pois eram feitas

várias modificações para poder ser apresentada no espetáculo. Como no teatro o texto é vivo,

iam sendo feitas essas mudanças até a hora do ensaio, mas mesmo na hora do espetáculo

havia os improvisos que os atores adicionavam em cena, quando achavam necessário, sendo

essa a magia do teatro, não se prendendo necessariamente a uma estrutura fixa em momento

algum estão sempre em constante construção e reconstrução do espetáculo. Tive um pouco de

dificuldade com as legendas do espetáculo, por conta dos muitos improvisos, pois tínhamos

que parar de apresentar as legendas nos momentos de improviso e retomar novamente ao

texto quando este acabasse. No final, com o auxílio de Fernando Yamamoto e Diogo Spinelli,

respectivamente diretor e ator dos Clowns, consegui contribuir da melhor forma com o

espetáculo.

Foram muitas as experiências a serem absolvidas em poucos dias. O festival aconteceu

de 22 a 30 de setembro em Natal e teve apresentações, palestras e oficinas acontecendo

concomitantemente em vários lugares da cidade. Essa foi a maior edição do evento que os

4 Informação fornecida pelo dramaturgo Arístides Vargas, durante o evento “Sala de Ensaio; Diálogos sobre

processos teatrais”, que ocorreu dentro do “Festival O Mundo Inteiro é Um Palco, Ano V”, em 27 de setembro

de 2017. Esta é uma peça do grupo Malayerba elaborada em 2006. A peça é baseada na obra “Dom Quixote”

de Cervantes e “A verdade sobre Sancho Pança” de Franz Kafka, e nas narrações que fizeram Chico Vargas e

outros presos políticos da ditadura argentina dos anos 70, na prisão de Rawson.

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Clowns realizaram até hoje. O Malayerba realizou três apresentações, uma da peça Nuestra

Señora de las Nubes e duas apresentações La Razon Blindada.

A partir dessa experiência no festival, pude conhecer os integrantes do grupo

Malayerba que vieram a Natal. Os integrantes foram Arístides Vargas, María del Rosario

Francés (Charo Fracés) e Gerson Guerra. Pude acompanhar os ensaios e as passagens do

espetáculo, pois estava participando da apresentação. Assisti às palestras que foram

ministradas pelo grupo, além de conseguir uma entrevista com o Arístides Vargas, que está

anexada no final deste trabalho. Desse modo, a experiência empírica que obtive com essa

pesquisa foi muito significativa, mesmo passando por várias experiências tristes de cunho

pessoal durante essa trajetória. A reviravolta no quase final da pesquisa, foi mais do que

gratificante, encaminhou-me a uma vivência única. É preciso agradecer enormemente ao

grupo Clowns de Shakespeare por me proporcionar essa magnífica experiência. Eles não

foram só inspiração, mas também colaboradores da continuidade e da conclusão desse

trabalho.

Seguindo a perspectiva de todas essas vivências, acredito que o presente trabalho

também contribuiu, de alguma maneira, com a construção dessa memória cênica local, pois

expõem, analisa e discute questões sobre o trabalho artístico de um dos grupos mais

importantes da cena potiguar que são os Clowns de Shakespeare.

A partir das múltiplas experiências vividas, uma das prerrogativas que permanece é o

desejo de construir, estreitar e reforçar as discussões sobre as questões que envolvem América

Latina. Acredito ser de grande importância, não só para a literatura ou para o teatro, mas em

todas as vertentes de expressões culturais, sociais, políticas. O Brasil sempre se mantém a

margem dessas questões, perdendo assim, sua expressividade de raízes latinas.

O Brasil absorve muito os fragmentos eurocêntricos e se esquece, muitas vezes, de

explorar mais as suas próprias raízes e a de seu continente. E com isso, acaba transparecendo

a existência de uma barreira nessa integração de suas raízes latina, como se o Brasil não

compartilhasse essas raízes ou não quisesse fazer parte delas. Quando mencionamos um grupo

como os Clowns de Shakespeare, por exemplo, que se consagrara trabalhando a partir das

adaptações shakespearianas, mas que atualmente busca uma experiência diferente para os seus

espetáculos. Atualmente, o grupo possui um projeto mais voltado para as questões da

América Latina, trabalhando com autores latinos como Gustavo Ott, Eduardo Galeano e

Arístides Vargas.

Trabalhar com autor genial como Shakespeare, reconhecido e estudado mundialmente,

é algo maravilhoso, mas o questionamento se constrói a partir do momento que só utilizamos

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dessas referências europeias para criar arte ao redor do mundo. Podemos e devemos utilizar

essas referencias, mas também podemos criar outros caminhos e influências para que essa arte

surja e acredito que o que os clowns vêm tentando fazer é primordial e foi a partir dessa nova

fase do grupo que me despertou o interesse e a curiosidade de trabalhar com suas obras.

Acredito que conectar a literatura e o teatro latino é algo de suma importância, pois

contribuirá para uma cena cultural latinoamericana mais forte e contínua. A ideia de realizar

esse intercâmbio, de saberes com um autor argentino, que produz seu teatro no equador, mas

que abarca um trabalho memorialista do exílio é algo significativa importância. Utilizar

perspectivas influenciadas pelo período ditatorial e que dialoga com a realidade de vários

países latinos cria uma unidade discursiva para o trabalho do autor argentino. O seu teatro

absorve a cultura de vários países do continente, e talvez seja este, também, um dos motivos

de suas peças serem bastante adaptadas e revisitadas por outros grupos de vários lugares na

América Latina.

As construções de teatralidade na obra de Arístides Vargas contribui para a reflexão

sobre a produção artística latinoamericana. Pretendemos, portanto, neste trabalho, fomentar a

partir dos estudos literários uma análise da peça, Nuestra Señora de las Nubes, buscando,

assim, refletir sobre as questões da memória e do exílio, algo que é bastante recorrente nas

obras do autor. Essas relações e construções memorialistas do exílio acabam por configurar

expressões de um direcionamento crítico e político, revelando-nos uma conjuntura presente

do teatro latinoamericano contemporâneo. As várias memórias que constroem a trama da peça

são reflexo da experiência real do autor e de depoimentos de pessoas que também passaram

pelo mesmo processo traumático após o exílio. No entanto, gostaríamos de esclarecer que não

temos como objetivo analisar o exílio apenas em seu âmbito geográfico, mas nos interessam

também as diversas possibilidades de compressão dessa condição.

Para um melhor desenvolvimento da pesquisa procuramos reavivar, neste trabalho,

alguns dos fatos que marcaram essa época ditatorial na América Latina. No entanto, demos

maior destaque à Argentina, por ser o lugar em que se formularam as perseguições e o exílio

sofridos pelo autor. Formulamos algumas questões a partir de alguns pontos no contexto da

América Latina para reavivar a memória dos golpes de estado que assolaram o continente.

Tentou-se, assim, contribuir com um melhor entendimento da pesquisa que levou em conta a

realidade historicossocial da época. Demostrou-se, desse modo, o impacto dessas ditaduras no

cenário latinoamericano e suas marcas na construção cultural das artes de resistência e

engajamento político. Também se buscou refletir sobre alguns pontos da América Latina

Colonial, sua formação, exploração e pensamento, entendendo, assim, as influências do

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momento histórico com a escrita do autor. Como ocorreram em muitas obras literárias e

teatrais, de alguma forma afloraram criações artísticas a partir de experiências traumáticas

como a obra analisada neste trabalho.

A peça Nuestra Señora de las Nubes se apresenta em uma divisão em que não existe

uma linearidade, em que os fatos e as lembranças retomadas pelos personagens não surgem a

partir de um enredo cronológico comum. A peça é constituída por treze cenas, em que se

moldam dois momentos principais: em um primeiro momento, ocorrem os encontros e

conversas dos personagens principais, os expatriados Oscar e Bruna que foram exibidos em

um lugar não identificado, nem espacial, nem temporalmente e que mais se aproxima da

formulação de não lugar de Marc Augé.5 Isso nos levou a imaginar um local como uma

rodoviária ou uma praça com bancos, em que os personagens sempre se encontram com

malas, o que nos encaminha para a ideia de que eles estejam chegando ou partindo de algum

lugar em uma constante repetição.

Outro momento que também é significativo dentro da peça é construído a partir da

apresentação das várias memórias apresentadas por Oscar e Bruna em seus encontros, ou seja,

há na história dois momentos para representar essas memórias do exílio: um é quando os

personagens conversam sobre essas experiências e o outro é quando ocorre a encenação dessa

memória, quando surgem outros personagens que adentram o enredo. Essas cenas, na

construção da peça, vão se revezando sucessivamente dentro da narrativa, enquanto surgem

Oscar e Bruna conversando e, logo em seguida, surge a memória de alguma lembrança sendo

narrada em um flashback 6 e assim eles vão retomando e construindo para o expectador o

imaginário do país de Nuestra Señora de Las nubes.

Para se ter uma melhor percepção do que foi pesquisado neste trabalho, formularei nas

seguintes páginas um pequeno relato do enredo da peça e de suas especificidades. Em seu

início, relata-se o primeiro encontro entre Oscar e Bruna. Eles iniciam uma conversa tentando

recordar se já se conheciam de algum lugar e, a partir desse momento, já começam a conversa

sobre questões do seu país de origem, percebendo-se, assim, que pertencem ao mesmo lugar e

5 O não lugar é diametralmente oposto ao lar, à residência, ao espaço personalizado. É representado pelos

espaços públicos de rápida circulação, como aeroportos, rodoviárias, estações de metrô, e pelos meios de

transporte – mas também pelas grandes cadeias de hotéis e supermercados. Ver Marc Augé. “Não-Lugares.

Campinas: Papirus, 2007.

6 Flashback: [...] Em um filme narrativo, fazer suceder a uma sequência que relata acontecimentos anteriores;

dir-se-á, então que se “volta atrás” (no tempo). Essa figura narrativa (a palavra inglesa flashback conota a

repentinidade dessa “volta” no tempo) é a mais banal e consistente em apresentar a narrativa em uma ordem

que não é a da história. AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema.

Campinas: Papirus, 2003.

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se surpreendem por não terem se conhecido antes. Assim, eles vão recordando lembranças de

violências sofridas, dos motivos pelos quais foram exilados, sobre o clima no antigo país,

sobre o silenciamento do indivíduo exilado (VARGAS, 2006).

Percebe-se que durante essa conversa, em alguns momentos eles vão reformulando e

realizando a mesma pergunta: “perdão, de que país você é mesmo?” (VARGAS, 2006, p.15).

Isso sugere que eles esqueceram rapidamente de tudo o que foi dito pelo outro em um lapso

de memória recente. Desde o início já se pode perceber como são fortes as questões das

memórias de momentos marcantes e a construção do imaginário do país de Nuestra Señora de

las Nubes, a partir das recordações dos personagens.

Na segunda cena, a história se desenvolve a partir das lembranças de Bruna sobre a

fundação do país de Nuestra Señora de Las Nubes. Essa parte já surge como um flashback

dos pensamentos de Bruna, em que surgem outros personagens na narrativa: Don Tello e sua

filha Irma. Esta surge na história vestida de noiva como um objetivo de ser exposta para os

homens do vilarejo em busca de um casamento. Irma não concorda com a ideia, mas é forçada

pelo pai a se apresentar e mostrar suas mãos, expondo sua pureza para os homens. Irma

desabafa, diz que se acha ridícula naquela situação, que não se acha atraente nem desejável,

afirma que não há homens em Nuestra Señora de Las Nubes, pois no lugar só existem casas

vazias e frias e que aquilo que seu pai queria era algo inútil.

No fim, após muitas discussões com Don Tello, ela resolve falar aos homens do

vilarejo por insistência de seu pai. E nesse momento ela anuncia que irá se casar com o único

homem que tem interesse por ela no vilarejo, o seu próprio pai. E é desse fato que surge o país

de Nuestra Señora de Las Nubes, a partir de um incesto em que pai e filha vão povoar todo o

vilarejo (VARGAS, 2006).

Na terceira cena, ainda partindo das recordações de Bruna em formato de flashback,

surgem outros personagens, o da vó Josefa e do seu neto Memé, que aparece na história como

o bobo do vilarejo. Nessa parte, a vó Josefa conta para seu neto Memé como ocorreu a

fundação de Nuestra Señora de Las Nubes. A partir desse fato, ela vai explicar como seria a

sua árvore genealógica, enquanto Memé só ouve a história e emite sons incompreensíveis.

Ela conta para o neto que todos no vilarejo têm um parentesco próximo e que nem

desconfiam de nada sobre isso. Conta que alguns se casaram mesmo sendo pai, filho, primos

ou irmãos. Conta ainda as corrupções, conchavos e jogos de interesse que haviam entre essas

famílias de Nuestra Señora de Las Nubes. Partindo desses fatos, ela conclui que a árvore

genealógica de Memé é mais parecida com uma selva genealógica e que era por esse motivo

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que ele havia nascido naquela forma, como um bobo, porque todos no vilarejo eram parentes

de sangue (VARGAS, 2006).

Na quarta cena, continuam as reminiscências de Bruna. Agora, ela relata a história do

governador e de sua esposa. Fala sobre a reação deles ao saber do desastre que Memé causou

no vilarejo depois de contar ao povo como ocorreu a fundação de Nuestra Señora de Las

Nubes. O governador e sua esposa que surgem na peça sem receber nomes próprios, ficam

indignados e desconfiados ao receberem os novos informes. O governador conta a sua esposa

que Memé plantou o caos pela cidade e agora todos pensam que eles são parentes. O

governador diz que o menino é um pirado e que a culpa de tudo isso é da velha sua vó que

fica lhe contando histórias absurdas e que, inclusive, eles também são parentes, pois segundo

o louco do Memé eles seriam pai e filha e que não sabiam e essa notícia deixou os dois

claramente perturbados com relação ao seu matrimônio (VARGAS, 2006).

Na quinta cena, acontece o segundo encontro entre Oscar e Bruna. Eles voltam à

história ainda tratando da memória dos exilados e de questões políticas ligadas ao exílio,

sempre com um tom poético e irônico trazendo questionamentos e crítica aos fatos de seu país

de origem (VARGAS, 2006).

Na sexta cena, Oscar relembra mais algumas memórias ocorridas em Nuestra Señora

de Las Nubens. Nesse trecho ele relata os galanteios dos Hermanos Aguilera. Nessa passagem

da peça é apresentado o seguinte título: ‘Los Hermanos Aguilera loucuras e morbidez’ que

desatam paixões em Nuestra Señora de Las Nubens. Desse modo, surgem mais esses

personagens, os hermanos da cena que, assim como o governador, não possuem nomes

próprios, são apenas classificados por números: Hermano 1 e Hermano 2, os quais se

encontram em uma praça e ficam ali dizendo seus galanteios importunando as moças que

passam pelo local e isso ocorre em toda a cena do sexto ato (VARGAS, 2006).

Na sétima cena, Oscar continua com flashback para apresentar suas recordações e nos

apresenta agora Ângela Lucien e seu esposo Renán, o maestro da orquestra sinfônica de

Nuestra Señora de Las Nubes. É relatado que Ângela se anima ao ouvir as palavras dos

Hemanos Aguilera e decide ir visitar seu marido, o maestro Renán, enquanto este ensaia os

seus músicos. Ela chega ao ensaio levando tortilhas para seu marido, que é seu prato favorito

e gritando alto o seu apelido de casal, sem ligar muito para os músicos que estão ali ensaiando

(VARGAS, 2006).

Na oitava cena, ainda ocorrem lembranças em flashback, surgindo dessa forma, mais

dois personagens das conversas memorialistas, Soledad e seu esposo Juan. Nesse trecho, ela

decide ir visitar seu marido Juan, só que este se encontra confinado em um hospício. Soledad

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chega ao local e relata que os Hermanos Aguilera lhe disseram galanteios e que lhe deu

vontade de vir vê-lo. Ele pergunta a sua esposa se ela ainda vem vê-lo por que gosta dele, ela

responde que não há nada que a faça mais feliz do que vir vê-lo.

Ele pergunta há quanto tempo está naquele lugar e Soledad lhe diz que já faz um ano,

mas Juan não acredita. Em seguida, ela retoma a conversa lhe dizendo as coisas que ele

inventou enquanto estava naquele lugar: que ele havia inventado os sinos, as fatias de pão.

Depois, ficou em silêncio por alguns meses e quando falou novamente disse que havia

inventado a rosa dos ventos e as gaivotas e triste Juan responde que aquilo tudo já havia sido

inventado. Nesse ritmo, eles conversam em todo o trecho da cena oito e percebe-se que essa

parte se apresenta em uma construção fortemente poética (VARGAS, 2006).

Na cena nove, acontece o terceiro encontro entre Oscar e Bruna. No mesmo formato

que os outros trechos, eles vão conversando e relembrando alguns fatos e esquecendo outros,

como ocorre frequentemente nos diálogos dos dois. Nesse trecho, Bruna fala diretamente na

condição do exilado fora do seu país e da violência em Nuestra Señora de Las Nubes e acaba

criando uma poesia cantada e se intitula como poeta (VARGAS, 2006).

Na cena dez continuam os trechos que explanam a questão do exílio e da violência.

Bruna recorda em flashback como morreram dois militantes nos anos de violência em Nuestra

Senora de Las Nubes, surgindo, assim, mais dois personagens: Frederico e Alicia. A

construção de diálogos desses dois personagens consiste em supor o que poderia ter

acontecido com eles se fizessem escolhas diferentes durante os ataques e perseguições

ocorridos na repressão da ditadura. Desse modo, eles passam todo esse trecho supondo,

supondo, supondo repetidamente, em cada frase eles supõem o que poderiam ter feito ou

como poderiam ter agido naqueles momentos de violência. E quando chegam ao final do

trecho, eles silenciam quando supõem que alguém os ouvia, dando a impressão de que alguém

os encontrou e eles morreram em combate (VARGAS, 2006).

A décima primeira cena é um trecho bem curto e bem poético como muitos trechos da

obra de Arístides Vargas. Nessa cena, Bruna recorda como referência o título: “uma última

imagem, a de um homem solitário em uma balsa em um lago” (VARGAS, 2006, p. 46). O

personagem dessa cena é intitulado apenas como homem que, no trecho, apresenta o seu

desejo de aprender a prática de pescar com pelicanos. Ele relata que um senhor iria lhe ensinar

tal ofício, o homem expõe que não era necessário gaiolas ou armadilhas, só era preciso

conversar com eles e convencê-los.

Na décima segunda cena, continua o pensamento sobre a violência nos tempos da

ditadura. Bruna recorda como morreu a avó Josefa nos anos de violência. Nesse trecho,

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retomamos aos personagens da avó Josefa e de seu neto Memé. A história nos conta que ela

recebe a visita de Memé e o convida para tomar banho de lua. Nesse momento, ela começa a

observar a lua e como a luz do luar ilumina toda a cidade, enquanto Memé se preocupa e pede

para sua avó voltar e entrar em casa. Entende-se que acontece algo como um toque de

recolher, em que as pessoas não podem permanecer na rua. A Vó Josefa, por sua vez, não

gosta do que ouve e começa a dizer que não tem nada a temer e chama as pessoas para a rua,

para abrirem suas janelas e verem como a lua está cheia e bonita. E esse trecho termina com a

vó Josefa sendo atingida por uma bala no peito e mostrando ao seu neto o pequeno ponto

vermelho em seu coração (VARGAS, 2006).

Por fim, na décima terceira cena acontece a última conversa entre Oscar e Bruna. O

trecho final é bem curto e inicia com as reclamações de Oscar que discorda das lembranças de

Bruna em relação à morte da vó Josefa. Ele diz que recorda de outra maneira o trajeto da bala

até o corpo da Vó Josefa, mas acha estranho não recordar o nome do bobo da cidade. Com

Bruna também ocorre a mesma coisa, ela conta a história, mas se pergunta como se chamava

a avó. E, no fim, eles esquecem de todos os diálogos que tiverem durante a peça e Oscar

pergunta novamente se já se conheciam de algum lugar, que lembrava do rosto de Bruna, mas

não recordava de onde. E, sendo assim, ao final eles retornam ao início, em que não

lembravam um do outro e, desse modo, sucede-se um ciclo de lembranças e esquecimentos

(VARGAS, 2006).

Por conseguinte, observou-se que a obra de Arístides Vargas devolve com uma magia

infinita a possibilidade de reconstruir o imaginário do exílio. Ele consegue elaborar um

universo de referências que nos fazem visitar nossas tragédias históricas. A ousadia do

trabalho do autor se pauta em conseguir dar voz a essas vítimas de poder falar sobre essas

tragédias, mas dentro de uma estruturação crítica poética. Percebeu-se como todos os

elementos trabalham em grupo dentro do seu texto, transformando sua obra em algo atraente

em um primeiro contato. A poesia presente em sua obra possibilita uma comunicação criativa

que alcança, em sua relação, o universo da ficção, da metáfora, dos relatos verdadeiros e da

poética que o texto apresenta. Criando estes espaços, o autor nos encaminha a um constante

refratar de expectativas, moldando um quebra-cabeça em que as peças, ao se encaixam, vão

elaborando uma ressignificação do nosso passado recente.

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I CAPÍTULO: LANÇANDO UM OLHAR SOBRE O CONTINENTE

Mapa-múndi/1

O sistema:

Com uma das mãos rouba o que com

a outra empresta.

Suas vítimas:

Quanto mais pagam, mais devem.

Quanto mais recebem, menos têm.

Quanto mais vendem, menos

compram.

Eduardo Galeano

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I CAPÍTULO: LANÇANDO UM OLHAR SOBRE O CONTINENTE

1.1 A América Latina das Veias Abertas

Observando a atual conjuntura contemporânea, entende-se que nós, como

pesquisadores, devemos levar em consideração as realidades que nos circundam, pois temos

em nossas mãos um instrumento cientifico de análise da condição humana e acredito que

temos por incumbência contribuir para o conhecimento humano, discutindo e alavancando

questões que busquem seu aprimoramento e sua melhoria. Dessa forma, buscou-se direcionar

a questões que reflitam o ambiente social que nos rodeia tendo como objetivo ponderar e

reestruturar caminhos para uma melhor experiência social.

Pensando desse modo, pode-se alegar que a literatura e o teatro, de muitas maneiras, já

utilizaram suas expressões artísticas para pensar e explorar e trazer à tona reflexões sobre

questões de críticas sociais e políticas. Augusto Boal, um dos maiores dramaturgos

brasileiros, acredita determinantemente que a arte só tem um caminho, o das causas sociais.

Em seu livro o ‘Teatro do Oprimido’ ele expõe bem os seus posicionamentos com relação a

um teatro político:

Este livro procura mostrar que todo teatro é necessariamente político, porque

políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é uma delas. Neste livro,

pretendo igualmente oferecer algumas provas de que o teatro é uma arma muito

eficiente. Por isso, é necessário lutar por ele. Por isso, as classes dominantes

permanentemente tentam apropriar-se do teatro e utilizá-lo como instrumento de

dominação (BOAL, 2013, p.13).

Acreditando nessas premissas, esclarece-se que pensar a memória do exílio a partir da

reconstrução literária/teatral é acreditar no processo da reflexão do meio social para que estes

fatos não sejam esquecidos. Assim sendo, reconhece-se que estar consciente da memória do

passado é o melhor caminho para se ponderar as ações do presente e melhor trilhar o futuro,

de modo a não cometer os mesmos erros.

Desse modo, deseja-se, com esse capítulo, elucidar e trazer à tona algumas questões

que se configuram pertinentes na discussão sobre a América Latina, somando de maneira

positiva para um melhor entendimento sobre a obra de Arístides Vargas que será analisada

nesta dissertação.

Não se pretende, com este trabalho, apresentar respostas ou solucionar questões que

permeiam o âmbito da América Latina em sua grande extensão. Entende-se que o grupo de

países que compõem o continente expõe uma grande variedade não só cultural, mas também

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social, econômica e política, dentro do contexto de suas histórias. Naturalmente, entende-se

que cada país possui sua particularidade, apresentando variações e problemáticas que dizem

respeito a seus territórios em determinados períodos distintos. Dessa forma, não se tem por

objetivo analisar esse território, sem levar em consideração todos esses recortes e

particularidades.

Pretende-se, na realidade, fomentar questionamentos a partir de alguns contextos

específicos como a chegada dos primeiros exploradores e seus impactos para a América

Latina e o contexto ditatorial presente no século XX, apontando, assim, a contribuição de

alguns pensadores, sociólogos e historiadores que têm suas pesquisas e publicações voltadas

para questões sobre o continente como: Eduardo Galeano, Ocatvio Ianni, José Martí, Samanta

Quadrat, Denise Rollenberg. Estes, fazem-se necessários nesta pesquisa para que se possa

trilhar um caminho histórico sobre o imaginário latino e, sendo assim, entender melhor o

contexto teatral elaborado por Arístides Vargas. Essas questões se materializaram desde a

chegada dos primeiros exploradores europeus até a conjuntura politicossocial mais

contemporânea, realizando assim, alguns recortes mais significativos para o desenvolvimento

do trabalho.

Sendo este um tema que se encontra em constante (des)construção, é sabido que muito

já foi pesquisado, trabalhado e proferido sobre esta temática, mas compreende-se, pelas

opiniões dos diversos autores consultados, que este é um tema riquíssimo, que permanece

vivo e ainda possui muito a ser investigado e debatido, mostrando ser algo que está longe de

ser abandonado por pesquisadores, escritores e leitores em geral. O panorama de ideias que

formulam o universo latino parte de várias perspectivas e considerações advindas de

pesquisas, publicações e ideias que englobam o tema e que contribuíram para elaborar um

imaginário próprio de América Latina, reforçando, assim, a ideia de uma América Latina

unificada.

Nessa perspectiva, o sociólogo e pesquisador de América Latina Octavio Ianni (1993),

em sua obra ‘O Labirinto Latinoamericano’, explana que existe em neste continente um

imaginário ou a formulação de um pensamento latinoamericano. Há várias correntes que

alimentam essas perspectivas, as quais foram sendo moldadas ao longo do tempo e

contribuíram para criar este pensamento, que foi se formulando a partir de variantes históricas

unidas à conjuntura de teorias de críticos, filósofos, sociólogos, escritores e artistas em geral.

Desenvolveram-se, assim, temas e interpretações que dizem respeito à multiplicidade cultural

de linguagens, de questões econômicas, sociais e políticas, que se apresentam de maneira bem

diversificadas no Continente.

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[...] É claro que há muitas diversidades. Cada país possui uma história, um jogo de

forças sociais, uma combinação peculiar de formas de vida e trabalho,

compreendendo raças, regiões, culturas, tradições, heróis, santos, monumentos,

ruínas. Há sempre muita singularidade em cada país, época, conjuntura. Mas

também há semelhança, convergência e ressonâncias (IANNI, 1993, p.7).

[…] A ideia de América Latina está particularmente desenvolvida em algumas

interpretações notáveis da problemática latino-americana. As obras fundamentais,

algumas clássicas, podem ser tomadas como síntese de aspectos decisivos dessa

problemática. Não há uma, mas várias interpretações fundamentais. As vezes são

complementares, convergentes. Sob certos aspectos, são mesmo contraditórias. Mas

tomadas em conjunto, podem formar um sistema encadeado, oferecer uma imagem

múltipla e nuançada do que tem sido a América Latina. E o que pode ser (IANNI,

1993, p.9).

A partir dos escritos de Ianni (op. cit.) atentamos que a América Latina, mesmo sendo

essa grande variante cultural, dotada de características próprias, também conserva bastante

similitudes em seus contextos históricos, o que, muitas vezes, reforça a ideia e o imaginário

de uma América Latina una. E esse imaginário latino que se formulou durante o tempo não se

moldou de maneira linear e harmônica, houve muitas reviravoltas na construção dessas

perspectivas, avanços e recuos teóricos, surgimento de novas contribuições, assim como

visões antigas que reaparecem de maneira repaginada. É essa continua rede de pensamentos

que gera, de tempos em tempos, uma colcha de retalhos que vai se agrupando e se

reorganizando continuamente, levando, assim, a uma constante reformulação desse

imaginário do continente.

Pode-se partilhar ainda do pensamento de Ianni (1993), quanto ele expõe que muitos

dos pensamentos importantes que são elaborados e postos em prática na América Latina vão

se guiando por essas correntes e asserções de pesquisas e estudos sobre o continente, criando,

desse modo, uma influência sobre grupos sociais, religiosos, políticos, econômicos e culturais

não só na América Latina, mas por todo o mundo, direcionando suas escolhas e ações e

elaborando o caminho pelo qual essa América Latina elabora pensamentos e se constitui.

Dessa forma, a cada nova análise dos fatos essas visões vão se reformulando, seja

absorvendo visões políticas ou absorvendo novas linguagens locais cujas perspectivas vão se

materializando em uma nova roupagem, fazendo com que as visões sobre o continente

latinoamericano sejam admiradas de uma maneira bem ampla. No entanto, não objetivamos,

com essas premissas, realizar uma análise detalhada dessas correntes ou questioná-las em

relação a sua veracidade. Pretende-se, com este destaque, relatar a importância dessas

correntes dentro do contexto latino, elucidando, assim, como essa América Latina pensa e se

constitui como continente.

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Para ilustrar melhor a perspectiva desses pensamentos e correntes que influenciaram

os rumos do continente e suas significativas contribuições para o pensar latinoamericano,

pode-se citar como exemplo a importância do termo ‘Nuestra América’ elaborado em 1891

pelo cubano José Martí. Em seus escritos, esse autor analisa elementos socioculturais que

advêm das singularidades que compõem os países latinos em seu conjunto, fundando, assim,

uma concepção de identidade cultural do continente, com liberdade e determinação própria.

De modo consistente, ele reúne, nas poucas páginas que compõem seu ‘artigo-manifesto’,

uma enormidade de assuntos e questionamentos que, até os dias atuais, geram discussões.

O autor referido, que também possui em sua trajetória as marcas do exílio, passou seu

tempo de banimento na Espanha, mas também residiu em países da América Latina como

México, Guatemala, Venezuela e foi exatamente no México, estando em contato com a

cultura tão diversa e latente do país, que ele inicia suas teorias de autoctonia e identidade

latinoamericana. Desse modo, de uma maneira evolutiva, Martí foi maturando pouco a pouco

suas perspectivas de construção de uma identidade latinoamericana pensando na união de

todo o continente.

Ele acreditava que a América Latina era constituída por uma natureza particular, assim

como possuía características espirituais próprias e distintas. Acreditava que para problemas

específicos e particulares, necessitava de soluções próprias, ou seja, não devíamos resolver os

problemas latinos da mesma maneira que se resolviam as problemáticas na Europa, por

exemplo. Ele lutou incisivamente contra a ideia de a América Latina ser um ‘galho’ ou

extensão europeia e, desse modo opunha-se ao pensamento dominante que predominou

durante todo o século XIX, segundo o qual a cultura latinoamericana é um ramo derivado da

árvore europeia. Essa singularidade de Martí é fundamental para se construir uma visão não-

eurocêntrica do mundo.

Martí, em seu ensaio-crônica intitulado ‘Nuestra América’, elaborado em 1891, trouxe

à luz várias questões que permeiam o universo latinoamericano. A referida obra apresenta-se

em muitos estudos do campo latino, sendo um texto clássico para o pensamento social e de

lutas do continente, influenciando o pensamento de vários movimentos importantes que

lutaram pela libertação da América Latina. como Ianni (1993) expõe no trecho a seguir:

A ideia latinoamericana de integração, ou confederação, vem de uma longa história.

Nasce com as lutas pela independência e ressurge em diversas épocas, em cada país.

O que já havia sido posto claramente duas vezes, por Bolívar e Martí, é retomado

também por Betances, Hostos, Sandino, Ingenieros, Haya de la Torre, Mariátegui,

Guevara e outros (IANNI, 1993, p.43).

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No próprio título, em que o autor assume um nós latinoamericano, já se pode perceber

um trilhar nos caminhos das questões identitárias do continente. Defendia ainda a ideia de

uma América Latina unida, mas respeitando suas disparidades. Em ‘Nuestra Madre’, outra

crônica elaborada pelo autor, ele afirmava que a América Latina não possui uma unidade

orgânica em seu corpo: o corpo da América foi ‘desconjuntado’ e ‘decomposto’. Realizando

uma ponte com a ‘Nuestra Senora de Las Nubes’, pode-se observar que a obra de Arístides

Vargas também compartilha essa construção em seu interior. Observa-se que a peça é

formada de várias partes que, a priori, parecem desconexas, recortes de realidades variadas a

partir de memórias e flashback, sendo assim, sente-se a sensação de que é constituída por

elementos fragmentados, desconexos ou desconjuntados.

No entanto, no desenrolar da trama, pode-se observar suas conexões e percebem-se

seus elementos se complementando como um todo, de modo que essas partes, por mais

díspares que possam parecer, se complementam e contribuem com o entendimento de toda a

história, assim como do próprio continente. Sendo assim, a peça também abarca uma certa

unidade orgânica, como a exposta por José Martí para denominar o continente latino.

Realizando um recorte e caminhando mais adiante para o século XX, expõe-se a

contribuição de outro intelectual e pensador que marcou, de maneira permanente e

significativa, a história da América Latina. Trata-se do jornalista e escritor Eduardo Galeano

que, em seu livro intitulado ‘As Veias Abertas da América Latina’, apresenta uma nova

perspectiva para os estudos latinos a partir da década de setenta, em que expõe um dos mais

importantes relatos e análises sobre a exploração no continente latinoamericano. Sendo assim,

não e pode falar em contexto histórico e estudos latinos sem adentrar as perspectivas

elaboradas por esse autor.

Em seus escritos, Galeano (1976) expõe a existência dos povos originários, os Incas,

Maias, Astecas, Guaranis, entre outros povos denominados ameríndios, que já se faziam

presentes no continente latino, em épocas bem anteriores à chegada do europeu explorador. E

sendo dessa forma, já havendo a existência de povos originários, torna-se inconcebível o

pensamento de que a América Latina foi descoberta pelos Europeus. Os povos originários já

se destacavam em várias áreas como: linguagem, filosofia, arquitetura, economia, além de

cultural. No entanto, não obtiveram respeito por parte dos colonizadores, em relação à sua

cultura e às suas descobertas, visto que estes buscavam somente a exploração para o próprio

enriquecimento. E criaram, com isso, o extermínio de todas as raízes culturais locais com o

intuito da formação futura de uma sociedade com bases nos preceitos culturais europeus,

eliminando, assim, todos os traços e raízes dos povos ameríndios.

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Segundo Galeano (1976), o expansionismo marítimo da Europa, que ocorreu por volta

dos séculos XV e XVI, influenciou diretamente a busca do desbravamento de novas terras e

produtos para movimentar a atividade comercial. Os Mouros, que dominavam o norte da

África juntamente ao Mar Mediterrâneo, forçaram os europeus a procurarem um caminho

ocidental para as Índias. Colombo, devido a sua experiência em alto mar, embarcou na

jornada em busca da Índia Oriental chegando à atual Bahamas, que fora denominada São

Salvador. Quando aqui chegaram, os europeus tiveram uma grande surpresa, pois perceberam

que na América Latina havia de tudo entre os indígenas da América, mas nenhuma das

culturas nativas conhecia o ferro nem o arado.

Colombo ficou deslumbrado, quando atingiu a ilhota de San Salvador, pela colorida

transparência do Caribe, a paisagem verde, a doçura e a limpeza do ar, os pássaros

esplêndidos e os mancebos “de boa estatura, gente mui formosa” e ‘bastante mansa’

que ali habitava. Presenteou aos indígenas ‘uns botões vermelhos e umas contas de

vidro que se punham no pescoço, e outras muitas coisas de pouco valor com que

fizeram muito prazer e ficaram tão nossos que era uma maravilha’. Mostrou-lhes as

espadas. Eles não as conheciam, seguravam-nas pelo fio, cortavam-se (GALEANO,

1976, p. 18) .

Havia o encantamento pelas novas terras e por tudo o que elas representavam e

podiam proporcionar, pois acreditavam ter encontrado, realmente, o caminho para as Índias.

No entanto, o intuito dessas expedições, desde o princípio, sempre foram a exploração e a

busca por riquezas e especiarias. Galeano (op. cit.) expõe esse desejo do explorador europeu

que se apresenta bem claro no trecho a seguir:

Conta o almirante em seu diário de bordo, ‘eu estava atento e trabalhava para saber

se havia ouro, e vendo que alguns deles traziam um pedacinho enfiado no buraco

que tinham no nariz, por gestos pude me informar que, indo para o sul ou

contornando a ilha pelo sul, encontraria um rei que possuía grandes vasos daquilo, e

em grande quantidade’. Porque ‘do ouro se faz tesouro, e quem o tem faz o que

quiser no mundo e até leva as almas para o Paraíso’ (GALEANO, 1976, p. 18).

Não havia uma preocupação do explorador com conhecer ou trocar saberes com os

nativos dessas novas terras, pois a intenção europeia sempre foi a exploração e busca de

riqueza e o extermínio indígena foi apenas o resultado de todo um processo de desumanização

dos povos originários. As empreitadas espanholas e portuguesas na América deixaram clara

uma combinação tóxica que foram a propagação da fé cristã com o saqueio das riquezas

nativas.

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Desse modo, opõem-se ao real interesse da Igreja Católica nessas expedições, visto

que eles não desejavam divulgar ou disseminar sua fé, mas conquistar as riquezas e a posse

dos bens pertencentes à terra nova. E para que isso acontecesse precisavam retirar os

indígenas de seu caminho, pois só assim poderiam dominar as terras e suas riquezas mais

facilmente. Galeano dizia que a América é um vasto império do diabo. Ele expõe ainda que o

ataque de Cristóvão Colombo contra os indígenas da ilha Dominicana os dizimou e que, no

auge de sua frieza, liam um requerimento para os índios antes de seu extermínio.

O autor citado explica, em sua obra, de maneira detalhada, como se deram as invasões

e conquistas por toda América Latina. Em uma dessas formas os exploradores usaram

técnicas de traição e de intrigas para vencer, colocando um povo contra o outro na cruel

intenção de dizimá-los, além de atacá-los com o uso de cavalos e bactérias para conseguir seu

genocídio.

[...] Pedro de Alvarado e seus homens arremeteram contra a Guatemala e ‘foram

tantos os índios mortos que se fez um rio de sangue, que vem a ser o Olimtepeque’, e também ‘o dia se tornou vermelho pela quantidade de sangue que correu naquele

dia’. Antes da batalha decisiva, ‘os índios atormentados disseram aos espanhóis que,

se não os atormentassem mais, teriam ali muito ouro, prata, diamantes e esmeraldas

pertencentes aos capitães Nehaib Ixquín e Nehaib feito águia e leão. E logo

entregaram tudo aos espanhóis, que com tudo ficaram’. (GALEANO, 1976, p. 24).

A economia colonial latinoamericana valeu-se da maior concentração de força de

trabalho até então conhecida, para tornar possível a maior concentração de riqueza

com que jamais contou qualquer civilização na história mundial (GALEANO, 1976,

p.41).

Os trechos anteriores expõem os vários e sucessivos ataques sanguinários contra

indígenas elaborados por exploradores espanhóis na busca por riquezas no continente latino.

Desse modo, pode-se ter uma pequena noção do nível de exploração sofrida no continente

latino. O caminho escolhido pela Europa para conseguir suas riquezas e manter sua estrutura

econômica se perpetuava a partir de uma matriz exploradora que só visava ao lucro, sem se

importar minimamente com vidas nativas, suas culturas e descobertas.

E assim que a Espanha foi formando um amplo patrimônio econômico e estando à

frente de muitos outros países em vários segmentos, conseguindo, assim, aumentar

significativamente suas linhas produções. Assim sendo, era preciso buscar, cada vez mais,

matéria bruta e, dessa forma, a Espanha ia se apoderando de mais territórios e conquistando

novos mercados. Pode-se perceber, a partir dos fatos históricos, que a economia colonial era

mais abastecedora do que consumidora e, segundo Galeano, durante muito tempo, no século

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XVI, os valores das importações eram quatro vezes maiores que as importações. Com isso, as

nações emergentes europeias iam enriquecendo e acumulando, cada vez mais, o capital.

O autor citado expõe, com razão, que os espanhóis se assemelhavam a porcos

famintos, que ansiavam por ouro, pois da mesma forma que ocorreu com o povo asteca na

Guatemala, aconteceu também em Cuzco no Peru, além do caso de Potosí, território que

equivale hoje à Bolívia. O caso de Potosí se tornou bastante conhecido pelo seu caráter de

excessivo extermínio dos bens naturais, além da violenta ação de genocídio indígena.

Afirma-se que as regiões que mais sofreram com o subdesenvolvimento e com a

pobreza foram os lugares que tiveram um relacionamento mais próximo com as metrópoles.

Geralmente, foram as regiões que mais exportaram para a Europa e, em seguida, para os

Estados Unidos e quando por algum motivo não conseguiam produzir no mesmo ritmo e as

produções decaiam, essas regiões iam sendo totalmente abandonadas pelas metrópoles, como

foi o caso de Potosí, onde se deu o auge do ciclo da prata, mas também ocorreu seu declínio.

O autor referido relata que, no auge do ciclo da prata em Potosí, as ferraduras dos

cavalos eram de prata, os altares das Igrejas e até as ruas foram desempedradas sendo cobertas

de barras de prata. Dizia-se que qualquer diamante inserido no escudo de um fidalgo rico

valia mais do que a quantia que um índio podia ganhar em toda sua vida. E é como afirma

Galeno com suas palavras: “em Potosí, a prata ergueu templos e palácios, mosteiros e

cassinos, deu motivo a tragédias e festas, derramou sangue e vinho, incendiou a cobiça e

desencadeou o esbanjamento e a aventura” (GALEANO, 1976).

Entre 1503 e 1660, chegaram ao porto de San Lúcar de Barrameda [Espanha] 185

mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. A prata transportada para a

Espanha em pouco mais de um século e meio excedia em três vezes o total das

reservas europeias. E é preciso levar em conta que estas cifras oficiais são sempre

minimizadas (GALEANO, 1976, p. 34-35).

Os índios eram levados a contragosto para o trabalho forçado em minas de prata, em

Potosí. Eles trabalhavam até a exaustão, além de irem a óbito também em decorrência de

doenças adquiridas no contato com substâncias químicas perigosas e onde não só a terra era

contaminada, mas os índios também se encontravam totalmente expostos. No trecho a seguir,

Galeano (op. cit.) expõe como ocorriam as práticas desumanas do trabalho escravo sofridas

pelos índios, de modo que se pode imaginar como se deu a trajetória do extermínio indígena

no continente a partir dos trabalhos nas minas.

Em 1581, Felipe II afirmou, durante uma audiência em Guadalajara, que um terço

dos indígenas da América tinha sido aniquilado, e que aqueles que ainda viviam

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eram obrigados a pagar tributos pelos mortos. Disse também o monarca que os

índios eram comprados e vendidos. Que dormiam na intempérie. Que as mães

matavam os filhos para salvá-los do tormento das minas (GALEANO, 1976, p. 41).

A ‘mita’ era uma máquina de triturar índios. O emprego do mercúrio para extração

da prata por amálgama envenenava tanto ou mais do que os gases tóxicos do ventre

da terra. Fazia cair os cabelos e os dentes, e provocava tremores incontroláveis. Os

‘azogados’ se arrastavam a pedir esmola pelas ruas. Seis mil e quinhentas fogueiras

ardiam à noite nas encostas da montanha rica, e nelas se trabalhava a prata, valendo-

se do vento que o ‘glorioso Santo Agostinho’ enviava do céu. Por causa da fumaça

dos fornos não havia pastos nem plantações num raio de seis léguas em torno de

Potosí, e as emanações eram também implacáveis com os corpos dos homens

(GALEANO, 1976, p. 43).

O resultado de toda essa exploração e desse abastecimento de prata para a Europa

suscitou a devastação total desse território. Entretanto, quando este não tinha mais como

exportar tanta prata, visto que sua produção escasseou, foi a vez de Potosí se entregar à

devastação e ser abandonado pela metrópole, depois que esta retirou de seu solo todas as

riquezas possíveis. A situação das montanhas, depois de exploradas, era de bastante buracos e

com toda sua flora destruída tornando-se um cenário sem cor.

A partir de todas as desgraças sofridas no território de Potosí, os nativos passaram a

interpretar e acreditar que a decadência e o esgotamento da prata teria sido um castigo divino

que se abateu em seu território, por conta das atrocidades dos mineiros contra a natureza e as

extravagâncias dos tempos de glória da Prata em Potosí. Já os europeus acreditavam que estes

não tinham alma ou fé, não eram cristãos e, por isso deviam sofrer. E no meio de todas essas

questões, no futuro, a Bolívia veio a se tornar um dos países mais pobres do mundo como

herança desse passado colonial. Segundo Galeano (1976), “a cidade que mais deu ao mundo é

a que menos tem.”

A exploração colonial e seus efeitos devastadores se perpetuaram por bastante tempo

na América Latina, de modo que até a atualidade absorve-se a herança dessa cultura colonial

em nosso continente. Assim como aconteceu em Potosí, aconteceu também com a febre do

ouro em Minas Gerais. Nesse período, a exploração foi liderada pelo europeu português. Foi

uma época de luxos exorbitantes, que também deixou o território devastado. Outra

característica é que após essa devastação, a mão de obra se tornava escrava, os portugueses

trouxeram uma grande quantidade de escravos africanos em suas embarcações para

trabalharem até a morte na mineração do ouro.

A exploração do ‘pau brasil’ na Amazônia e o ciclo do açúcar no litoral nordestino

também trouxeram grande degradação ao ecossistema e foram outras fontes de geração de

lucro para os cofres estrangeiros. Em Recife, a produção do açúcar além de devastar o solo

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com suas incessantes queimadas, os lucros eram direcionados aos senhores de engenho e para

a população sobrava apenas a subnutrição que se tornou uma constante durante esse período.

Galeano (op. cit.) expõe também que a exploração açucareira não foi uma

exclusividade do território brasileiro. As colônias açucareiras se faziam presente em vários

países latinos, sendo que algumas tiveram maior destaque como na ilha do Caribe, no Haiti e

em Cuba. Quem passa a liderar o mercado de produção açucareira é Cuba, mas isso não lhe

traz benefício nenhum, mas pelo contrário, apenas trouxe degradação. Tudo isso gerado pela

mão de obra escrava e sobre o controle continuo dos Estados Unidos, que buscavam além do

lucro, transformar Cuba em um anexo estadunidense.

E assim percebe-se o quanto os exploradores lucraram com o trabalho escravo e as

riquezas do continente. Primeiro, os países europeus e depois, os Estados Unidos conseguiram

suas fortunas atrasando o desenvolvimento de países explorados. E sendo assim, percebe-se o

quanto a América Latina sangrou durante todo esse tempo em que o modo de produção, a

estrutura de classe e suas divisões estavam todas condicionadas às escolhas do capital

estrangeiro, para que esses exploradores enriquecessem. A exploração do continente só serviu

para a engrenagem do capitalismo. Como denota Galeano, as derrotas da América Latina se

apresentaram sempre implícitas nas vitórias alheias. Na América, as riquezas se

transformaram em pobreza para o povo alimentando assim, a prosperidade dos outros, os

impérios e seus agentes nativos. A economia colonial latinoamericana valeu-se da maior

concentração de força de trabalho até então conhecida, para tornar possível a maior

concentração de riqueza com que jamais contou. Observando os trechos históricos de

exploração e extermínio do povo indígena e originário do continente pode-se, então,

compreender o contexto de luta constante pela libertação e união do povo latinoamericano.

Mais do que um continente que é bastante pesquisado pelo mundo, a América Latina é

um continente de livre pensamento, que produz e vive de maneiras diversas a cultura e o

conhecimento, mas a presença das amarras deixadas pela herança colonial se mantém até a

contemporaneidade. Nesse viés, concorda-se com o pensador sociólogo peruano Aníbal

Quijano (2005), quando afirma que é tempo de se aprender buscar a libertação do espelho

eurocêntrico no qual a nossa imagem é sempre e necessariamente distorcida.

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1.2 A América Latina e os regimes ditatoriais

A América Latina é o principal influenciador para o enredo da peça de Arístides

Vargas, pois este se baseia na ditadura argentina para compor sua história. A partir dessa

prerrogativa, entende-se a necessidade de se adentrar a essas questões que permeiam a

realidade de vários países latinos. Em uma entrevista ao canal de televisão peruano ‘Presencia

Cultural’7, o autor citado expõe que quando criou essa obra não pensou que iria representá-la

tanto, mas entende o fato de haver bastante identificação com sua obra em território latino,

pelo fato de vários países do continente vivenciaram a traumática experiência do exílio. Ele

afirma que, por mais que a história seja escrita a partir de memórias dos fatos ocorridas na

Argentina, seus traumas e experiências ditatoriais são bastante semelhantes aos dos demais

países latinos, cujas feridas ainda permanecem abertas. Esse fato decorre do fato de que, cada

vez mais, existem releituras das obras de Arístides Vargas pelo continente e, principalmente,

das peças que têm traços bastante marcados de resquícios da ditadura. No Brasil, sua obra

também vem se tornando bastante adaptada, reforçando a discussão sobre os fatos da nossa

história recente.

Desse modo, não se pode adentrar às questões sobre a América Latina, sem realizar

recortes sobre os regimes totalitários. Entende-se que as ditaduras que ocorreram no

continente latinoamericano nos meados do século XX marcaram toda uma geração. O

cientista político Franz Neumann (1969), define ditadura da seguinte forma: “o governo de

uma pessoa ou de um grupo de pessoas que se arrogam no poder e o monopolizam,

exercendo-o sem restrições.” Em suas análises, ele expõe três vertentes de tipos ditatoriais:

A simples, na qual o governo – quer se militar, monárquico etc. – detém o controle

dos instrumentos clássicos do domínio: o exército, a polícia, a burocracia e o

judiciário; a cesarista, cujas características são a necessidade do apoio popular e a

personalização do governo em torno líder; e a totalitária, que apresenta

características cesarista, por meio da forte presença de um líder e das massas

populares. No entanto, esses pontos podem não ser fortes o suficiente para garantia

do poder e acabam por obrigar o estado a lançar mão de outras estratégias, tais como

o controle da educação, dos meios de comunicação e das instituições econômicas

(NEUMANN, 1969, p.38)

O continente latinoamericano possui, em sua história, uma verdadeira combinação

dessas vertentes ditatoriais. De acordo com a obra ‘A Construção Social dos Regimes

Autoritários – Brasil e América Latina’ (2010), “o continente latinoamericano sempre

enfrentou – enfrenta – dificuldades em seu território. Desse modo, a democracia deixou de ser

7 TV Peruana – Site Presencia Cultural: <https://www.youtube.com/watch? v=yW4JoQbH4OM &list=PLGo

ZuDWL KdqmTfYmMt_fAi2GVoZN_7vi5&index=5> Acesso em: 15 de outubro de 2017

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vista por setores importantes da sociedade como a melhor maneira de combate ao

comunismo” (QUADRAT; ROLLEMBERG, 2010). Havia a presença de um autoritarismo

vigente na cultura política de muitos países latinos. Nas décadas de 1960 e 1970, as ditaduras

latinoamericanas, mesmo em suas preparações para o golpe e se estendendo para a duração

dos regimes totalitários, se utilizavam dos discursos de “salvação dos valores ocidentais e

cristãos e do perigo do comunismo” algo que era bastante disseminado na época. Tudo isso,

envolvia o momento vivido no mundo, com o fim da Segunda Guerra Mundial 8 e a imersão

na Guerra Fria.9

Sendo assim, gradativamente, Paraguai (1954), Brasil (1964), Uruguai (1971), Chile

(1973) e Argentina (1976), todos esses países passaram por processos ditatoriais em seus

territórios. Desse modo, os governos legítimos e legais foram depostos, sendo acusados de

irresponsáveis e incapazes de governar. E nesse ínterim, os novos governos montados por

militares, mas não compostos exclusivamente por eles, se apresentavam como a salvação da

nação, enquanto os governos anteriores eram a representação do caos e do atraso, perante as

formulações dos discursos ditatoriais. Havia, no Brasil, por exemplo, o discurso de que a

esquerda desejava entregar o país para Moscou. Ainda no discurso anticomunista, destaca-se

o General paraguaio Alberto Stroessner10 que, mesmo o seu governo ditador se iniciando em

1954, utilizou o discurso de anticomunismo e salvador da nação para se perpetuar no governo

até 1989 (QUADRAT; ROLLEMBERG, 2010).

Esses ditadores, de maneira geral, se preocupavam com construir um governo forte

capaz de impedir aquilo que acreditavam ser um avanço comunista, ainda mais depois da

vitória da Revolução Cubana (1959).11 Essa tática se transformou na melhor e única possível

8A Segunda Guerra Mundial, iniciada em setembro de 1939, foi a maior catástrofe provocada pelo homem em

toda a sua longa história. Envolveu setenta e duas nações e foi travada em todos os continentes, de forma direta

ou indiretamente. O número de mortos superou os cinquenta milhões havendo ainda uns vinte e oito milhões

de mutilados. Disponível em: <http://www.sohistoria.com.br/ef2/segundaguerra/> Acesso no dia 01 de outubro

de 2016.

9A Guerra Fria foi uma disputa pela superioridade mundial entre Estados Unidos e União Soviética após a

Segunda Guerra Mundial (1939-1945). É chamada de Guerra Fria por ser uma intensa guerra econômica,

diplomática e ideológica travada pela conquista de zonas de influência. Disponível em:

<http://www.sohistoria.com.br/resumos/guerrafria.php>. Acesso no dia 01 de outubro de 2016.

10 O dia 15 de agosto de 1954 marca o início de um período de três décadas e meia marcado por fraudes

eleitorais, forte repressão a opositores e crimes contra a humanidade – assassinatos, prisões ilegais, torturas,

deportações e desaparecimentos estavam entre os principais delitos. Calcula-se que, durante seu regime, teriam

morrido entre três a quatro mil dissidentes (QUADRAT; ROLLEMBERG, 2010, p. 24).

11A Revolução Cubana foi um processo de guerrilha que durou vários anos, foi uma revolução democrática que

visava a liberdade e autonomia da nação, que foi em seus instantes iniciais anti-imperialista e somente depois

tornou-se socialista. Foi, como já mencionado um dos acontecimentos políticos mais marcantes e importantes

da América Latina durante os anos de Guerra Fria. Disponível em: <https://historiandonanet07.

wordpress.com/2011/08/16/a-revolucao-cubana/>. Acesso no dia 01 de outubro de 2016.

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para esses governos autoritários. É notório que, a partir da grande ascensão do governo

comunista de Fidel Castro, haveria um contra-ataque vindo de terras estadunidenses por meio

da vigilância intensificada sobre a região da América Latina. Os Estados Unidos, como

principal porta voz desse discurso anticomunista pelo mundo, surgem no cenário

latinoamericano como crucial incentivador desses golpes e das ditaduras que se construíam,

especialmente nos casos do Brasil e do Chile.

E como efeito dessa conjuntura política, vários grupos de esquerda e de simpatizantes

da ideia comunista começaram a surgir. E em combate, do mesmo modo, e com auxílio

estadunidense, também houve uma crescente onda no contingente da ala conservadora, como

demanda de vários setores da sociedade civil que apoiavam a instituição de governos

militares.

No entanto, deve-se observar que, se por um lado é bastante clara a relação construída

entre os presentes golpes no território latino e os interesses do capital estadunidense, por outro

lado, não se pode negar o apoio forte de uma parte significativa da população

latinoamericana, que ansiava a chegada desses governos. Essa parcela da população, que tinha

em seu contingente setores da classe média, do empresariado, das oligarquias locais e da

Igreja Católica, os quais temiam que a realidade Cubana viesse a se instaurar por outros países

do continente Latino. No Brasil, por exemplo, houve, em várias capitais, as ‘Marchas da

Família com Deus pela Liberdade’.12 Consideravam que, por meio desses governos fortes,

liderados pelo autoritarismo militar, estariam protegidos contra a ameaça comunista

(QUADRAT; ROLLEMBERG, 2010).

A conjuntura do golpe militar no Brasil contém suas peculiaridades, mas não se

configura de maneira muito distante da realidade do contexto latinoamericano. De acordo,

com o artigo da ‘Revista Literatura e Autoritarismo’, de autoria da pesquisadora Seleste

Michels (2009) a ditadura foram anos que ficaram evidenciados na história pela sua presente

falta de democracia, pela supressão de direitos constitucionais, pela dura censura, pela

perseguição política e pela repressão aos que eram contra o regime militar.

No Brasil, o golpe foi implantado no ano de 1964, perfazendo, atualmente, cinquenta e

cinco anos que os militares tomaram o poder no Brasil. A partir da crise política instaurada no

governo desde a ocorrência da renuncia de presidente Jânio Quadros em 1961, um clima

12As Marchas inserem-se em um momento em diversificados setores da população saíram às ruas em repúdio ao

governo nacionalista de João Goulart, que segundo acreditavam, tinha aspirações comunizantes e caminhava

para a destruição dos valores religiosos, patrióticos e morais da sociedade. Tais passeatas surgiram como uma

espécie de pedido às forças Armadas por uma intervenção salvadora (PRESOT, 2010, p. 74).

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bastante sombrio se encontrava em relação à posse de seu vice João Goulart (Jango), que

deveria entrar em cena para governar o país.

O governo de Jango como era conhecido, foi marcado por uma legitimação das

organizações populares de trabalhadores, das organizações sociais e de estudantes criando o

repúdio às classes conservadoras como banqueiros, militares, igreja católica e empresários. O

seu estilo populista e direcionado a uma perspectiva política enfocada mais no socialismo,

botou em cheque até a preocupação do EUA, que se reunindo com as classes conservadoras

do país, temiam um golpe comunista, o suposto ‘perigo vermelho’. Como o País possui uma

vasta extensão e acaba por fazer uma ligação direta com vários países da América do Sul,

havia um medo coletivo germinado na população de que esses países se reuniriam em uma

república socialista e juntos implantariam o comunismo na América Latina.

Desse modo, com o clima e as tensões sociais crescentes no país, no dia 31 de março de

1964 os militares tomam o poder destituindo, assim, o atual governo de João Goulart. Em um

primeiro momento, o regime militar foi firmado para ser um governo provisório utilizando o

discurso de que iriam cessar o avanço do comunismo e acabar com a corrupção, e se

perpetuaram no poder por mais de duas décadas.

O golpe militar no Brasil não só contou com o apoio político e ideológico dos EUA,

mas também com o seu apoio militar, chegando ao ponto de disponibilizar armamentos,

esquadrilhas de caça aéreas, navios e porta aviões. Desse modo, podemos perceber a

manipulação e influência americana diretamente envolvida no golpe político do Brasil. Em

virtude de seus interesses na América Latina e ao proeminente enfrentamento com a URSS

por territórios de atuação pelo mundo, acabaram por fomentar na América Latina a concepção

de que as democracias eram incapazes de sustar o comunismo.

Alguns anos depois, em 1968, após breve período de manifestações estudantis radicais

contra a ditadura militar, o governo decreta o AI-5 que altera significativamente a relação do

Estado com a vida cultural, apertando ainda mais o cerco com relação às expressões artísticas

e de intelectuais que eram contra o regime militar. O Ato Institucional número 5 (AI-5), foi o

quinto decreto sancionado pelo regime militar brasileiro, considerado o mais terrível golpe

sobre a democracia, porque conferia poder quase absoluto ao governo militar. As

manifestações culturais e artísticas que se colocavam no lugar de questionadoras ante a ordem

vigente foram duramente impedidas de se manifestarem, ou foram duramente violentadas ao

fazê-lo, pelo poder que os militares exerciam em sua categoria, e aos seus pares, no âmbito da

censura. Todo e qualquer indivíduo que viesse a ameaçar a ordem econômica, política e social

vigente se configurava como um subversivo e inimigo nacional (MICHELS, 2009).

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A ditadura sofrida pela Argentina também apresenta suas paridades com outras

ditaduras existentes na América Latina, assim como a ocorrida no Brasil. Apontaremos alguns

breves fatos que se destacaram na conjuntura ditatorial argentina. Isso por se tratar do país de

origem de Arístides Vargas e por estes fatos estarem diretamente relacionados à obra teatral

analisada nesta pesquisa. Durante a virulenta história do chamado Processo de Reorganização

Nacional na Argentina, estabeleceu-se a raiz do golpe militar contra o governo de Isabel

Perón, em 1976, que se estendeu até 1983. Estima-se que nesse período, entre mortos e

desaparecidos exista uma média de trinta mil pessoas, enquanto os que abandonaram o país

por motivos políticos perfaziam um total aproximado de sessenta a oitenta mil.

De acordo com o Historiador Ângelo Priori, 13 em seu artigo ‘Golpe Militar na

Argentina: apontamentos históricos’, o golpe militar ocorrido em 24 de março de 1976, em

território argentino é o ápice de fatos que já vinham se desenvolvendo durante algum tempo.

fatos como a repressão a esquerda peronista e a esquerda tradicional. O que ocorria era que

desde 1955, com a derrubada do General Domingos Perón, vinha acontecendo um

significativo incentivo à institucionalização do poder militar na cena política. As forças

armadas se tornaram instituições de alto poder e autonomia dentro da cena política e a

presença dos militares nesse contexto desencadeou o clímax dos conflitos sobre a

continuidade do modelo peronista (PRIORI, 2008). O historiador Daniel James14, em seu

artigo ‘Os Antecedentes: o peronismo e a classe trabalhadora, 1943-1955’, expõe um pouco

da estruturação do pensamento peronista.

O atrativo fundamental do peronismo reside em sua capacidade de redefinir a noção

de cidadania dentro de um contexto mais amplo, essencialmente social. A questão

da cidadania em si e do acesso a plenitude dos direitos políticos foram aspectos

poderosos do discurso peronista, constituindo parte de uma linguagem de protesto,

de grande ressonância popular, diante da exclusão política. [...] O peronismo

significou uma presença social e política muito maior da classe trabalhadora na

sociedade argentina. O impacto disso pode ser medido, em termos institucionais, a

partir de fatores tais como a relação íntima entre governo e sindicalismo durante a

era Perón, e o grande crescimento do sindicalismo. (JAMES, 2010, p. 318,)

Dessa forma, houve um cerceamento no modelo industrial, fundamentado fortemente

na participação do estado e no setor trabalhista, passando para um padrão liberal-conservador,

ancorado nas elites agrárias do país e associada ao capital estrangeiro, tendo como foco os

Estados Unidos. Em 1966, esse modelo militar se intensificou ainda mais com o golpe militar

do general Carlos Ongania. A partir desse momento, eles passaram a se afirmar predestinados

13Ângelo Priori - Professor do Departamento de História da UEM; Doutor em História (UNESP) e Reitor da

Universidade Estadual de Maringá. Artigo: Golpe Militar na Argentina: Apontamentos Históricos. 14 Professor de Departamento de História de Indiana, Estados Unidos.

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na ‘missão de salvar a pátria’, ou seja, ‘salvar a pátria’ seria o desenvolvimento da economia

e da indústria através do capital estrangeiro. Seria reformular a estabilidade política do país

eliminando o pensamento peronista e substituindo-o por um padrão julgado mais adequado

para o desenvolvimento harmônico da nação, segundo os critérios militares, dentro de um

contexto ocidental e cristão (PRIORI, 2008).

A repressão se deu, principalmente, para os grupos e movimentos operários e

organizações políticas de esquerda (peronistas ou não), levando esses movimentos a

assumirem uma clara posição de confronto com o Estado e o regime militar. O resumo disso

tudo se deu na eclosão da rebelião popular de Córdoba em 1969 – El Cordobazo, que irá

deixar os militares perplexos diante dos acontecimentos e da resistência operário-estudantil.

Desse modo, no ano de 1970 os partidos passaram a ter atitudes mais drásticas de combate

como sequestros, chantagens e assaltos. Um dos principais grupos da esquerda era o Exército

Revolucionário (ERP), que promoveu vários atos políticos nas fábricas e universidades. Do

mesmo modo, havia a Aliança Anticomunista Argentina (Triple A) que se apresentava como

o grupo mais importante da direita conservadora.

Desse modo, com base em documentos, depoimentos e análises historiográficas no

pós-ditadura, pode-se observar a intensidade da repressão produzida pelo terrorismo de

Estado, que foi infinitamente maior que a ação da oposição. A denominada ‘guerra sucia’,

promoveu através da máquina estatal um verdadeiro genocídio entre 1976 e 1979, cujos

dados são indicados pela Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas, mostrando

que cerca de nove mil pessoas foram dadas como desaparecidas nessa época. Mas outras

fontes defendem um número de 30 mil desaparecidos, como é o caso de líderes das

organizações de direitos humanos e movimentos como o das ‘Mães e das Avós da Praça de

Maio’.

Afirmar-se que a ditadura argentina foi a mais violenta do continente e, do mesmo

modo que o regime nazista fez uso de campos de concentração, utilizou os ‘voos da morte’

para poder sumir com os corpos das vítimas, depois de terem sido submetidos a torturas.

Sendo assim, os dados estatísticos se aproximam de cerca de cinco mil opositores do regime

que foram lançados vivos de aviões durante sobrevoos ao Rio de Prata e Oceano Atlântico,

isso segundo dados da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) (PRIORI,

2008).

Outros dados adquiridos através de depoimentos de oficiais da marinha foram sobre

os sequestros e mortes de bebês durante a ditadura Argentina, quando na La Escuela de

Mecánica de la Armada (ESMA) funcionou uma maternidade clandestina. A maioria das

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crianças foram entregues às famílias de militares e colaboradores. Na ESMA passaram cinco

mil detidos, dos quais somente cerca de 40 sobreviveram.

Em resposta a esse tipo de brutalidade surgiram grupos de resistência contra o governo

militar. Na Argentina, as ‘Mães e Avós da Praça de Maio’ foi, originalmente, um movimento

de protesto das mães e Avós que tiveram seus filhos e netos desaparecidos durante o regime

militar. Desde então, o movimento tem confrontado as autoridades para responsabilizar os

culpados pelos desaparecimentos dos seus filhos e netos. Estes movimentos se tornaram

grupos internacionalmente reconhecidos pela coragem de enfrentar o governo repressivo

através de manifestações pacíficas, e que ainda atualmente continuam descobrindo filhos e

netos sumidos durante o regime (PRIORI, 2008).

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II CAPÍTULO

UM TEATRO MEMORIALISTA

O exílio, a migração e o cruzamento de fronteiras

podem, portanto, nos proporcionar novas formas

narrativas, ou, outras formas de contar.

Eward Said

O exílio sempre foi, para ditadura uma arma. O

homem transplantado perde as suas raízes, perde o

poder de fogo, perde a combatividade. Por isso as

ditaduras gostam de duas coisas: matar! Matar

enterrando e matar exilando.

Augusto Boal

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II CAPÍTULO: UM TEATRO MEMORIALISTA

2.1 O Teatro Exilado de Arístides Vargas

O exílio é um tema frequente na história da literatura e filosofia mundiais,

desde a Odisseia de Ulisses, marco da narrativa épica ocidental, que narra o mistério do

aventureiro que retorna, ou não, a sua terra natal para contar sobre os seus feitos pelo mundo,

o exilado que prospera, ou não, em países desconhecidos, de língua diferente e culturas

estranhas, diferentes da sua. Esse é o desenrolar de muitas estórias e mitos que surgem a partir

de diferentes povos. A palavra exílio tem origem na palavra ‘asilo’ que, em grego, significa

‘fora da área de conflito’ (a = fora; silo = luta). Já na língua árabe, a palavra ‘exílio’ significa

‘estranheza’ ou ‘estranhamento’. E em português se remete ‘desterro, degredo, expatriação’,

também pode remeter a “solidão, lugar triste, sem alegrias” (KOOGAN & HOUAISS apud

ANDRADE, 2014, p.25).

A obra de Arístides Vargas é repleta de questões memorialistas e, em seu maior foco,

estão as reflexões sobre o exílio. O autor expõe essa memória traumática a partir de várias

experimentações em seu teatro, mas também deixa claro que o exílio político não é a única

maneira de se efetivar a expatriação. Por ser um tema bastante recorrente na América Latina,

em que muitas pessoas passaram pela experiência do exílio político, a suas peças têm uma

maior identificação no continente. Suas memórias partiram da Argentina, mas não são feitas

para Argentina especificadamente. No trecho a seguir o próprio Vargas reflete sobre essa

condição.

Creio que minhas obras afundam suas raízes na realidade Argentina. Eu não escrevo

para Argentinos, mas as raízes e os temas que falo estão relacionados

profundamente com a Argentina. Os equatorianos acham a minha teatralidade

estranha. Escrevo nesse fragmento, nessa territorialidade em que você não pode ter o

apego ou o senso de pertencimento. A dramaturgia é exilada, portanto, meus

trabalhos nunca ocorrem em um lugar específico. Os personagens estão sempre em

espaços muito solitários e grandes. Ir ao exílio é muito fácil, e é muito óbvio porque

você vai, mas retornar é muito difícil (VARGAS, 2016, p.15).

Arístides Vargas é um diretor e dramaturgo argentino que, no final de 1975, quando

tinha apenas 21 anos, foi exilado e forçado a deixar a Argentina, ele que na época ainda era

estudante de teatro na Universidade Nacional de Cuyo em Mendoza. Ele foi, portanto, vítima

da repressão e do terror, assim como vários artistas, intelectuais, sindicalistas e políticos que

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se posicionavam contra o governo ditatorial. Para Palestino Edward Said (2003), que também

passou pela experiência do exílio, sua prática reflete sobre essa questão da seguinte maneira:

O exílio, ao contrario do nacionalismo, é uma solidão vivida fora do grupo e um

estado descontínuo do ser; é a privação sentida por não estar com os outros na

habitação comunal. Ao estarem separados de suas raízes, de sua terra natal, do

passado, de sua história e cultura, os exilados sentem uma necessidade urgente de

reconstituir suas vidas rompidas (SAID, 2003, p. 50).

Todas essas expressões de sofrimento expressas por Said, também foram vividas por

Arístides Vargas em seus anos de exílio, quando utilizou esses traumas como gancho para a

formulação de sua teatralidade. Para melhor lidar com as inúmeras marcas deixadas por esse

período em sua vida Vargas decidiu recontar suas histórias para melhor lidar com elas. O

exílio o marcou de uma maneira significativa, tanto que ele escolheu a arte como om meio de

trabalhar e lidar com suas dores, transformando suas vivências traumáticas em arte. Não é à

toa que Arístides Vargas é conhecido como o poeta do exílio.

A história do seu exílio começa no mesmo ano de 1975. No entanto, nessa experiência

traumática de banimento também aconteceram surpresas significativamente positivas para

Vargas, com a formação do grupo Malayerba. Nesse mesmo ano ele chegou ao Equador, onde

conheceu outros artistas e intelectuais que, também exilados de seus países de origem, na

América Latina se unem por uma identificação em comum com o teatro e formam em 1980 o

grupo Malayerba. Nesse trecho podemos observar a importância do grupo pelo olhar do

próprio autor:

O Malayerba se formou no Equador no final da década de 70, várias pessoas se

conheceram ali; naquela época isso era muito comum, porque muitos países da

América Latina estavam passando por ditaduras. As pessoas eram bastante exiladas,

viajavam muito, e tivemos a oportunidade de conhecer grandes professores de teatro

latino-americano vivendo uma situação terrível com o exílio. Conheci Chavo na casa

de Susana Pautasso, outra companheira argentina exilada, de Córdoba. Com ela,

fundamos o Malayerba em Quito. Criamos esse grupo porque tínhamos muitas

carências e porque, à primeira vista, precisávamos de uma família. Como não

tínhamos como visitar o nosso país, decidimos estabelecer uma espécie de

micropaís, de microfamília, que chamamos de Malayerba (DUBATTI, 2012, p. 41).

Foi através da fundação desse grupo que Arístides Vargas conheceu sua esposa, a

atriz, diretora e também fundadora do Malayerba, a Chavo Frances. O grupo, atualmente, é

referência do teatro latino pelo mundo. Em sua produção, quase todas as suas peças foram

feitas para serem encenadas pelo Malayerba e entre algumas de suas obras estão: ‘Instruções

de como Abraçar o Ar’ (2012), ‘A República Análoga’ (2010), ‘A Razão Blindada’ [...], ‘A

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Menina que Roubava Livros Usados’ (2003), ‘A Idade da Ameixa’ [...], ‘Jardim de Pulpos’

(1991) entre outras. Além disso, em Quito, o Malayerba possui uma casa aberta para todos os

grupos de teatro latinoamericano, onde também proporciona a formação, a preparação de

centenas de artistas do teatro (DUBATTI, 2012). No site oficial do grupo podemos perceber

como eles se definem como produtores da arte teatral:

O grupo entende o teatro como um espaço artístico, ético e técnico. Em suas obras

cênicas, o Grupo Malayerba, formado por uma equipe de atores profissionais de

diferentes origens, diferentes nacionalidades, diferentes culturas, pôde expressar que

esta mistura não é apenas possível, mas pode constituir uma identidade e uma

unidade sobre as bases da diferença e ser enriquecido por ela. [...] O teatro é para

nós a procura de uma linguagem que expressa a vida, o ser humano e seus conflitos,

enfrentando-os na intenção de entender e de assumir uma posição crítica, ativa e

construtiva diante dos processos sociopolíticos da nossa realidade.15

O grupo equatoriano completou, em 2016, os seus trinta e seis anos de existência,

tendo marcado presença de maneira significativa em numerosos festivais no Equador e pelo

mundo, além de realizar trabalhos para o cinema e para a televisão. O Malayerba tem mais de

20 produções, que se espalharam por diferentes territórios, diferentes cenários e para

diferentes públicos e tem participado de outros projetos de grupos de teatro no Equador e de

outros países. Em 1989, o grupo criou o Laboratório Malayerba, constituído por jovens que

desejam atuar no palco ou em preparações técnicas, contribuindo com o desenvolvimento

ético necessário para alcançar um teatro nacional digno é fornecido. Em 2001 nasceu o Teatro

Folha Revista, sob a direção de Daysi Sánchez, como uma ferramenta para a crítica,

teorização e difusão do pensamento teatral equatoriano. A Casa Malayerba, sede do grupo,

atualmente mantém um teatro com capacidade para sessenta lugares.

A peça Nuestra Señora de las Nubes, que também foi elaborada para ser encenada

pelo grupo, faz parte de uma trilogia do exílio, apresentando-se como a segunda peça dessa

trilogia, tanto que seu subtítulo em algumas publicações se configura como o ‘Segundo

exercício do exílio', sendo que a primeira é: ‘Onde o Vento faz Sonhos’ e a terceira segue por

‘Flores Arrancadas à Névoa’. As três produções circundam entre as mesmas relações sobre as

experiências e traumas sofridos do exílio e suas relações humanas.

Arístides Vargas cria, através de sua experiência pessoal, personagens diversos, novos

mundos, em tempos e realidades não marcadas, de forma a montar um quebra cabeça, a partir

de um texto poético, irônico e crítico, expressando a dor da violência, a perda de identidade e

15 Disponível em: <http://www.teatromalayerba.com/> Acesso em: 15 de setembro de 2016

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o deslocamento, como se fosse a maneira de reivindicar o efeito de cura, através do fazer

poético e da dor (DUBATTI, 2012).

Outro autor que pelos traumas do banimento teve sua carreira bastante afetada e

demarcada pelo sofrimento no exílio foi Augusto Boal, um dos dramaturgos mais importantes

da cena brasileira. A partir do olhar da atriz e pesquisadora Clara de Andrade, que é autora do

livro ‘O Exílio de Augusto Boal’, sua obra é caracterizada da seguinte forma:

Augusto Boal, um dos maiores teatrólogos brasileiro, embaixador do teatro pela

UNESCO e indicado ao Nobel da Paz, dedicou sua vida à busca de um teatro que

pudesse ser libertador e que hoje, é praticado no Brasil, em toda a América Latina,

nos Estados Unidos, na Europa, na África e Ásia. Suas ideias sempre atravessaram

fronteiras e são estudadas no mundo inteiro (ANDRADE, 2014, p. 22).

Boal era claramente um homem que vivia para o teatro. Ele foi dramaturgo, escritor,

encenador e diretor, foi um dos únicos brasileiros a formular toda uma técnica e teorias sobre

o seu método. Suas pesquisas e buscas por novas técnicas com o desejo de formular um teatro

com moldes inovadores se tornou o seu grande objetivo. Durante os últimos anos do Teatro

Arena, entre os anos 1960 e 1970, as pesquisas e experimentações feitas por Boal acabaram

por criar as técnicas do teatro do oprimo, elevando-o a outro patamar e torando-o bastante

conhecido pelo mundo.

A história de vida de Augusto Boal, assim como a de Arístides Vargas, é marcada por

traumas decorrentes do exílio e das perseguições dos regimes militares. Para Boal, as marcas

do exílio forçado não foram o único trauma deixado pela ditadura implantada no Brasil.

Assim, como muitos artistas e intelectuais pela América Latina, Augusto Boal foi perseguido,

torturado e ano de 1971, ele foi sequestrado e preso pelo regime militar. Houve uma comoção

de renomados artistas do teatro, pelo mundo, quando da soltura de Boal, mas expulso do País.

Há algumas prerrogativas que aproximam os dois teatrólogos, podendo ser pelas suas

memórias de trauma ou por seus posicionamentos sociais e políticos. Boal passou por vários

países em seu exílio, mas da mesma maneira de Arístides Vargas que não conseguiu retornar

à Argentina, Boal também não se via mais pertencente ao Brasil. No trecho que se segue

podemos observar em seu discurso o incômodo dessa observação.

O que eu trabalho no Brasil? Praticamente nada. [...] Mas sou brasileiro e quero

trabalhar no Brasil [...] Eu não estou conseguindo me entrosar, não estou

conseguindo colocar as minhas coisas. [...] Então, eu sou o Ulisses que não voltou,

que está batendo na porta e tentando entrar pela janela. Agora, o outro teatro, esse eu

estou fazendo, que é o Teatro do Oprimido. [...] Mas eu queria fazer os dois, acho

que é o caminho para todos nós (GARCIA, 2002 apud ANDRADE, 2014, p. 24).

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Arístides Vargas passou vinte anos para retornar à Argentina e, assim como Boal, não

se sentia incluído, por isso, nunca quis voltar a morar na terra natal. Essa é uma prerrogativa

do povo exilado, de sentir esse desprendimento, de não sentir pertencentes a seus locais de

origem ou a qualquer outro. Eles mostram que as raízes que foram partidas não voltam a

fecundar com o tempo, que há uma quebra, um rompimento e que este não pode se refeito.

Outra perspectiva que é dividida pelos dois autores é a questão sobre as várias

percepções do exílio. Para Arístides Vargas o exílio pode se manifestar de várias maneiras. O

exílio político é apenas uma dessas formas, sendo induzido por pessoas externas, mas

podemos ser condicionados a esse isolamento em diferentes situações, por nos mesmos. Em

Boal também podemos enxergar essa premissa dos vários olhares para a questão do exílio.

Um exemplo colocado pela pesquisado teatral Clara de Andrade é o isolamento continuado de

Boal no Brasil, pois o autor voltou a sua origem, mas o exílio continuava nele que se sentia

exilado em si mesmo.

Na entrevista realizada com Arístides Vargas e que se encontra anexada a esse

trabalho, o dramaturgo traz o exemplo da poetisa Emily Dickinson que se exiliou em sua

própria casa, pois não desejava contato com o mundo exterior, não se sentia pertencente

àquela realidade, então ela mesma formulou o seu banimento. Para Vargas, basta não se sentir

bem no lugar em que está para se construir uma realidade exilada.

As memórias em junção com as problemáticas do exílio transitam em um percurso

significativo na obra de muitos autores. Augusto Boal e Arístides Vargas são dois deles. É

através do estudo sobre a memória que podemos adentar, de uma maneira mais crítica, as

questões sobre o exílio em Vagas. Desse modo, faz-se necessária uma reflexão sobre as

questões memorialistas. Há na dramaturgia de Vargas muitos elementos que compõem uma

perspetiva memorialista.

O cientista social, Michael Pollack16 expõe, em seu artigo ‘Memória e Identidade

Social’, que há certos meios para a construção dessas memórias em nosso inconsciente. Um

desses caminhos é marcado pelos acontecimentos com os quis temos contatos no decorrer da

vida, que direcionam os nossos pensamentos a um determinado período, que nos leva a

formular memórias diversas.

16 Michael Pollak é pesquisador do Centre National de Recherches Scientifiques - CNRS, ligado ao Institut

d'Histoire du Temps Present e ao Groupe de Sociologie Politique et Morale. Estuda as relações entre política e

ciências sociais e desenvolve atualmente uma pesquisa sobre os sobreviventes dos campos de concentração e

sobre a Aids. (Retirado do artigo Memória, esquecimento e silêncio - Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.

2, n. 3, 1989, p. 3-15. Esta tradução é de Dora Rocha Flaksman.)

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Outro caminho para a formulação dessas reminiscências é através da memória que nos

é herdada, passada de geração em geração. Um bom exemplo para a construção dessa

memória é quando ocorre um fato que seja bastante traumatizante em uma determinada região

ou em um referente grupo e essa memória é repassada por séculos para que esses fatos sejam

difundidos; observamos isso no caso das guerras, genocídios e ditaduras pelo mundo

(POLLACK, 1992).

Também podemos construir memórias através de elementos como pessoas e

personagens sejam estes reais ou fictícios, que podem nos desencadear memórias que estejam

diretamente ligadas a eles, ou não. Podem ser pessoas que encontramos no desenrolar da vida

ou uma figura pública, que seja contemporânea ou de outro século. Sendo um personagem,

este pode ser marcado pela tradição oral ou escrita que nos encaminha a lembranças.

Ainda de acordo com Pollack (op. cit.), outro elemento que contribui nesse processo

memorialistas é constituído pelos lugares, que podem ser fictícios, ligados a uma lembrança

marcada na infância ou públicos de comemoração ou de encontros. Pode ser também, um

lugar fora do espaço e do tempo do indivíduo, mas por causa de uma memória construída, o

indivíduo se sente pertencente àquele lugar. Como exemplo, podemos citar os descendentes

de Africanos que vivem em outros lugares pelo mundo e podem nunca ter indo ao Continente

Africano, mas pela forte herança cultural repassada pelas famílias, se sentem pertencentes ao

lugar através da construção dessa memória (POLLACK, 1992).

Além dos elementos já expostos anteriormente, podemos citar ainda as reminiscências

rebuscadas através das datas. Para que essas datas fiquem marcadas em nosso inconsciente

elas precisam de um acontecimento. Podemos mencionar as entrevistas feitas por Michael

Pollack em seu artigo, em que ele mostra que ao entrevistar donas de casa, estas teriam como

datas marcantes a data de nascimento dos filhos, ou netos e a data de seu casamento ou

alguma data que envolva suas ações diárias e família.

Entretanto, quando entrevistou pessoas públicas ou políticos essas datas marcantes se

direcionam para solenidades públicas, datas de feriados nacionais ou datas relacionadas a

conquistas no trabalho. O autor quis apresentar que essas datas estão diretamente relacionadas

a acontecimentos do nosso cotidiano e de nossas vivências. Observamos que para as donas de

casa os feriados nacionais pouco ficaram marcados como acontecimentos datados

significativos em suas memórias, mas para os que viviam rodeados por esses acontecimentos

públicos, tornava-se mais fácil mencioná-los.

No caso de Arístides Vargas, essas memórias construídas estão diretamente ligadas ao

acontecimento da ditadura na Argentina, suas datas, seus personagens, os lugares por onde

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passou, além da memória que se tornou herdada, que é sempre recontada por parentes e

amigos. Há, em toda a sua obra dramatúrgica, uma combinação de todos esses elementos, que

reforçam as ações contra o apagamento das memórias das ditaduras latinas e em nosso caso,

principalmente, a obra que será trabalhada nessa pesquisa.

Ainda refletindo sobre as questões que englobam a memória, quando nos deparamos

com construções memorialistas é normal, primeiramente, pensamos diretamente no indivíduo

que recorda e que guarda lembranças de si; assim, pensamos que memórias são ações que

predominam no campo da individualidade. Paul Ricœr problematiza os fenômenos sobre

memória em seu livro ‘A memória, a história, o esquecimento’, observando da seguinte forma

as memórias individuais:

[...] A memória parece de fato ser radicalmente singular: minhas lembranças não são

suas. Não se pode transferir as lembranças de um para a memória do outro.

Enquanto minha, a memória é um modelo de minhadade, de possessão privada, para

todas as experiências vivenciadas pelo sujeito. [...] o vínculo original da consciência

com o passado parece residir na memória [...] a memória é passado e esse passado é

o de minhas impressões; nesse sentido, esse passado é meu passado (RICŒUR,

2007, p.107).

O trecho retirado da obra de Ricœur exprime claramente a ideia que elaboramos

quando nos deparamos com fenômenos memorialistas, que surgem do indivíduo e só a ele

pertencem. Essa prerrogativa é verdadeira, quando refletimos sobre memória individual, mas

devemos observar que essas formulações não são apenas ocorrências de um indivíduo

sozinho, as memórias também se configuram de maneira coletiva. Para Michael Pollack, a

memória se configura na junção do individual e do coletivo.

A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo,

próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwacbs, nos anos 20-30, já havia sublinhado

que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno

coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido

a flutuações, transformações, mudanças constantes (POLLACK, 1992, p. 201).

Assim como ocorre na obra de Arístides Vargas, produzida a partir de suas

reminiscências pessoais em união com o fenômeno coletivo, a memória coletiva se configura

na junção de elementos já citados anteriormente, com a inserção de outros como: as tradições,

os costumes, certas regras de interação, o folclore, a música e até as tradições culinárias.

O autor une, em suas obras, a experiência pessoal de fatos como a repressão, o exílio e

perseguições que sofreu durante a ditadura militar Argentina, com a realidade e experiências

de outros indivíduos que também passaram pelos mesmos traumas, seja na Argentina, seu

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país de origem, ou em qualquer outro País da América Latina, reforçando assim, uma

memória coletiva sobre governos autoritários.

Um bom exemplo sobre a forma de Arístides Vargas reformular essas memórias está

em outra peça sua, ‘A razão Blindada’ (2006) que conta a história de dois prisioneiros,

confinados em uma solitária durante a ditadura de 1970, na Argentina. Estes prisioneiros têm

a permissão de se encontrar por uma hora, uma vez por semana. Para escapar dessa dura

realidade, eles contam, um para o outro, a história de Dom Quixote e Sancho Panza.

“Forçados a ficarem sentados durante todo o encontro, eles permitem que seus pensamentos

se libertem, reinventando o herói de Cervantes, o cavaleiro errante que confunde moinhos

com gigantes, e prisão com paraíso” (VARGAS, 2006).

No artigo da Revista ‘Olhares - Dramaturgia Latinoamericana’ o professor e

pesquisador de teatro Jorge Dubatti divulga o trecho de uma entrevista feita com Arístides

Vargas, em 2012, em que ele expõe que a peça se tratava de uma homenagem a seu irmão que

foi preso durante o regime militar e de suas memórias sobre essas visitas. Segue o trecho da

entrevista:

Naquele tempo ninguém podia se exilar tranquilamente. Foi uma época terrível para

a Argentina e para toda a América Latina. Foi um baque muito duro para a minha

família, com meu exílio, a morte de meu pai, e meu irmão preso em Rawson.

Escrevi sobre tudo isso em ‘A Razão Blindada’ (2006) (DUBATTI, 2012, p. 42).

Podemos observar, nessa obra, assim como em Nuestra Señora de Las Nubens a

hibridização de elementos de cunho memorialista, tanto pessoais como coletivos, quando o

autor não mostra só fatos de cunho particular, familiar, de suas vivencias, mas também

tradições, costumes, datas, acontecimentos políticos históricos que são comuns a toda uma

geração na América Latina. Para Pollack (1989), “isso torna possível tomar diferentes pontos

de referência como indicadores empíricos da memória coletiva de um grupo” (POLLACK,

1989), como o próprio dramaturgo reforça na seguinte citação:

Acho que as minhas obras estão enraizadas na realidade argentina. Não escrevo para

os argentinos, mas os temas e as raízes dos temas a que me refiro estão

profundamente relacionados com a Argentina. Os equatorianos acham estranha essa

minha teatralidade. Escrevo nesse fragmento nessa territorialidade (VARGAS, 2012,

p.42).

Desse modo, todas essas formulações nos encaminham a refletir sobre uma construção

da memória como identidade. Há uma unidade de pertencimento e de grupo existente por

esses indivíduos que passaram por esses traumas no período da ditadura, que reforça a ideia

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de uma identidade, como na questão dos expatriados, cujas reminiscências os identificam e os

unem como um grupo. E reforçando essa perspectiva, Pollack expõe que a memória é um

elemento constituinte do sentimento de identidade (POLLACK, 1989). Um bom exemplo

dessas percepções é o próprio grupo de teatro Malayerba, formado por Arístides Vargas e

outros artistas exilados da América Latina, que passaram a compartilhar suas memórias

pessoais em comum, formando, assim, uma identidade coletiva de luta, que está totalmente

presente na obra do grupo.

2.2 O valor da memória para o teatro

Quando pensamos na arte teatral, logo pensamos em sua construção como arte viva,

arte em movimento, e sobre sua forma única de se moldar através do espetáculo e da grande

dificuldade que é reformular ou recontar essa arte em registros, por se tratar de uma arte tão

efêmera. O pesquisador em teatro, Mateus Furlanetto, reflete sobre esta perspectiva em seu

artigo, ‘Teatro: Entre o Efêmero e o Perpétuo’:

O acesso aos vestígios da memória do espetáculo é mais complexo, uma vez que ele

se fragmenta em múltiplos suportes de registro que revelam dimensões distintas do

processo criativo e do processo teatral. Em função do dinamismo e multiplicidade de

leituras e interpretações que um espetáculo ou obra permitem (FURLANETTO,

2011, p.79).

Nesse contexto adentramos a importância dos registros das atividades teatrais e das

impressões colhidas sobre o trabalho que eles desenvolvem. Para que se elaborem esses

registros contínuos da história, há a necessidade de se construírem projetos de memórias

teatrais visando fortalecer esses grupos, edificando assim, sua permanência para a

posteridade, buscando se perpetuar, indo contra a maré de efemeridade dos espetáculos e

lutando contra esquecimento no tempo.

Ainda na visão de Furlanetto (2011), a análise criteriosa desses registros e documentos

proporcionaram a esses grupos o poder de construir sua própria narrativa. A utilização de

documentos históricos existentes, muitas vezes guardados em caixas e gavetas de modo

esquecido e fraccionado, podem conter informações e conteúdos preciosos de interesse direto

do público que, muitas vezes, são mal empregados.

Apesar de ser impossível o registro do teatro de forma integral, pois cada

apresentação é única e por isso irrepetível, os vestígios oriundos dos espetáculos e

dos processos criativos são elementos que reunidos e trabalhados de forma pensada

e articulada cumprem a função de prolongar, ainda que de forma incompleta, a

memória desses momentos passageiros (FURLANETTO, 2011, p. 80).

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Desse modo, os projetos de conservação da memoria dos grupos de teatro criam

oportunidade desses momentos de experimentações e expressões teatrais únicas, em que é

nítido o entrelaçar entre palco e plateia, serem preservados através da memória. E é a partir do

pensamento de preservação, que uma série de produtos elaborados pelo próprio grupo e

destinado ao público se faz necessário.

Sendo assim, observamos que cada espetáculo e cada processo criativo gera inúmeros

materiais e informações, de modo que, a partir de registros e documentações podem vir a se

transformar em produtos que podem ser: livros históricos, livros roteiro de espetáculo, DVDs

documentários da história do grupo, DVDs com registro do espetáculo, exposições de fotos e

objetos do grupo, sites, blogs, canais, perfis na internet, arquivos, centros de documentação e

memória, reencenarão de espetáculos, minicursos, oficinas e mostras de repertório.

Sendo a memória um dos pilares do imaginário, a guardadora e perpetuadora da

história, para que não esqueçamos os momentos sublimes ou os atos de violência, faz-se

necessário utilizar esses vários formatos de preservação da memória, pelos quais cada um

reforça necessidades específicas, atingindo vários tipos de linguagem, alcançando, assim,

públicos variados.

O segmento audiovisual cresce a cada ano em seu flerte com o teatro sendo um dos

responsáveis por relativizar o fenômeno do efêmero na dramaturgia, preservando momentos

únicos de expressividade artística que fugiram aos olhos de quem não assistiu à montagem ao

vivo. A tecnologia nas gravações digitais na contemporaneidade permite captações cada vez

mais fiéis, sobretudo no quesito áudio dos diálogos (SANTOS, 2012).

Outro item fundamental e de significativa importância a ser considerado em

companhias longevas que atravessam a casa das duas três décadas de idade como algo

imprescindível para sua construção memorialistas são os figurinos, os fragmentos de cenários

e adereços. A fortuna crítica dos estudos de pesquisas e o público em geral são valiosíssimos,

visto que, além de imortalizar as memórias desses espetáculos, esses grupos estão criando

parâmetros para grupos futuros poderem trabalhar (FALABELLA, 2012).

Outro meio bastante difundido na atualidade pelos grupos como armazenamento de

informações e estreitamento de contato com o público são as redes sociais, em particular o

facebook. Estas redes vêm se tornando uma útil ferramenta em criar uma ‘memória viva’, uma

memória dos processos criativos, permitindo acesso às informações por um maior número de

pessoas.

Mais um segmento que contribuiu para o fomento da memória teatral é constituído

pelos estudos e pesquisas desenvolvidos no âmbito acadêmico, nos cursos de mestrado e

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doutorado, estabelecendo, de maneira cada vez mais gradativa, um constante diálogo com o

universo teatral. E essa realidade se mostra aparente, não apenas nos cursos de artes cênicas,

mas também em áreas circundantes, como é o nosso caso, destacando que foram essas

pesquisas que se moldaram anteriormente traçaram o nosso percurso até aqui e, sem elas, esta

pesquisa provavelmente não seria possível.

E não poderíamos deixar de citar a grande parcela de importância que a literatura

desempenhou nessa história memorialista do teatro, pois, é através de um grande legado

deixado pela literatura que podemos ter contato com obras dramatúrgicas que atravessaram

séculos e se perpetuaram, tornando-se cânones da literatura mundial, sendo exemplo deles os

escritos deixados por Aristóteles, cujas escrituras abordam as várias temáticas da análise da

arte teatral, como a importância da mimese, da cartasse, além de tecer importantes

considerações sobre os vários tipos teatrais da Antiguidade, como o a tragédia, a comédia e a

epopeia (RORIZ, 2014).

Podemos rememorar alguns nomes mais consagrados do teatro mundial, especialmente

a contribuição de William Shakespeare, um dos maiores representantes da arte teatral,

considerado como o dramaturgo mais influente do mundo, além de um notável poeta. Entre as

suas obras de maior destaque se encontram: ‘Romeu e Julieta’, ‘Hamlet’, ‘Macbeth’, ‘Sonho

de uma Noite de Verão’, ‘Rei Lear’, ‘Ricardo III’, ‘Otelo’, entre outras (RORIZ, 2014).

Outro memorável nome do teatro mundial, que revolucionou a prática e deixou um

legado didático utilizado até os dias atuais, foi Bertold Brecht que defendia o pensamento

político e crítico como prioridades dentro da formulação teatral e considerava o teatro como

um impulsionador de mudanças sociais levando os indivíduos a questionarem e se

posicionarem perante o mundo.

Mais um nome que se faz recorrente no pensamento contemporâneo teatral é a figura

de Antonin Artaud, que foi perseguido e estigmatizado em decorrência de sua doença mental,

fato este que marcou sua vida e sua obra. O ‘Teatro e seu Duplo’, sua principal produção é

uma das obras mais influentes do teatro deste século. Em seus escritos ele expõe o grito, a

respiração e o corpo do homem como lugar primordial do ato teatral e denuncia o teatro

superficial, rejeitando a hegemonia da palavra.

Mais um autor contemporâneo de singular importância na conjuntura teatral é Samuel

Beckett, cujo teatro aborda várias problemáticas existentes na contemporaneidade e utiliza

uma multiplicidade de gêneros para formular sua prosa. Seu trabalho, com o tempo, foi se

tornando cada vez mais minimalista, entre a sua obra mais conhecida do público está

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‘Esperando Godot’. É considerado um dos primeiros pós-modernistas e um elemento

fundamental do denominado ‘Teatro do absurdo’ (RORIZ, 2014).

Nelson Rodrigues também não pode deixar de ser citado sempre que rememoradas as

expressões do teatro moderno e experimental.

Destaco aqui o trabalho de Augusto Boal que foi um dramaturgo que inovou, não só o

teatro nacional, mas seu método através do Teatro do Oprimido que o tornou conhecido no

mundo inteiro. Boal sempre acreditou em uma produção autenticamente brasileira e

latinoamericana. Sua obra se propunha a destacar a realidade brasileira, no seu imaginário e

na sua identificação, retratando o contexto social e as peculiaridades aqui existentes.

Constantemente buscando associar questões sociais e de cunho político, utilizava a arte teatral

como ponte de transformação para as relações humanas.

Dessa forma, esses conceituados nomes do teatro cumprem na sociedade não só o

papel de dramaturgos, mas literatos, teorizadores e preservadores da arte teatral, de modo que

seu legado transfere uma vasta contribuição para a fortuna crítica da teoria e da prática teatral

(RORIZ, 2014).

Ainda sobre a importância da preservação da memória no âmbito teatral, o ator

dramaturgo e diretor Eduardo Moreira nos apresenta um olhar interessante sobre essa questão

em seu artigo, ‘O Invisível e a Construção da Memória’:

Apagar a memória de um povo é, consequentemente, transformá-lo num povo

invisível [...] A memória é o que nos deixa vivos, aquilo que transporta o passado

para o presente e projeta o presente para os desafios do futuro. E isso é algo que

premente não só para a sobrevivência de um povo, uma sociedade ou uma

comunidade, mas também para uma microcélula social, como um grupo de teatro

[...] por mais que a nossa ilusão moderna se alimente do mito de que a história

sempre caminha para frente no sentido da melhora. O teatro, como fenômeno

cultural pertence à memória (MOREIRA, 2011, p.101).

Por essa explicação, entende-se que a preservação da memória se faz necessária não só

no âmbito teatral, sendo entendida como qualquer expressão cultural social positiva para um

povo ou indivíduo. Com isso, entendemos a importância de resguardar e valorizar a cultura de

qualquer povo, região ou comunidade. No caso da América Latina e a partir do recorte feito

neste trabalho sobre o século XX, abordamos a memória do exílio e das ditaduras que

ocorreram em vários países do continente latino cuja preservação se faz presente na tentativa

de que algo dessa dimensão não torne a acontecer.

Moreira expõe ainda que, seu cotidiano, em razão de sua prática teatral possui bastante

contato com artistas e que estes, em sua grande maioria, são jovens. Havia, nesses artistas, o

nítido interesse por se expressarem através do teatro, mas Moreira (op. cit.) percebia o quanto

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era triste observar que essas pessoas não sabiam como seguir adiante nessa prática. A partir

desse cenário, cujos registros compreendemos como de grande necessidade, faz-se necessário

deixar caminhos abertos aos que virão depois. No trecho a seguir o diretor nos expõe e deixa

mais claro o porquê dessa necessidade do registrar e de formar caminhos no percurso teatral:

Não um modelo, porque os caminhos são infinitos e sempre distintos. E o caminhar

sempre depende do caminhante. Mas o caminho também precisa de pistas e

sinalizações. Nesse sentido, deixar um testemunho de que o teatro é possível e que

pode ser fundamental como instrumento de realização pessoal e coletiva me parece

uma tarefa importante. E, mais do que isso reafirmá-lo como um instrumento

necessário para que uma determinada comunidade relembre seu passado, discuta seu

presente e se projete para o futuro (MOREIRA, 2012, p.102).

Observamos, desse modo, que há varias nuances para a preservação da memória no

contexto teatral e a forma de repassar, registra como forma de ensinar da arte é uma delas.

Vários grupos se formulam pelo mundo a partir dessa prática de ir além da produção artística,

repassando o que se aprendeu a partir do ensino da arte teatral. Destaco aqui o trabalho

efetuado pelo Grupo ‘Galpão de Minas Gerais’ do qual Eduardo Moreira é Diretor teatral e

integrante co-fundador.

O ‘Galpão Cine Horto’ é um centro cultural criado pelo Grupo ‘Galpão de Minas

Gerais’, em 1998, na cidade de Belo Horizonte. O local é um espaço que abriga salas de

espetáculo, salas de cinema e vídeo e salas de aula, em que se realiza uma intensa

programação de espetáculos oficinas e cursos. A partir de 2006, passou também a contar com

o ‘Centro de Pesquisa e Memória do Teatro’ (CPMT) que, em união com essas ações, realiza

um trabalho consistente e permanente de preservação da memória teatral. Desse modo,

materializam e tornam disponíveis os produtos relacionados a seus espetáculos e à sua história

e geram materiais vários que o público pode levar para casa e, assim, continuar se

relacionando com a história, a estética e a poética do grupo, ressinificando a experiência

efêmera da encenação e fortalecendo, assim, as contribuições de caráter memorial.

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III CAPÍTULO

DAS LEMBRANÇAS E DO ESQUECIMENTO – AS MEMÓRIAS DO EXÍLIO

O exílio começa quando começamos a

matar as coisas que amamos, mas não

matamos elas de uma vez, talvez por

anos. É como se o tempo pusesse uma

faca nas mãos, e com ela matasse os

instantes nos quais alguma vez fomos

felizes.

Arístides Vargas

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III CAPÍTULO: DAS LEMBRANÇAS E DO ESQUECIMENTO – AS MEMÓRIAS

DO EXÍLIO

3.1 As memórias do exílio em Nuestra Señora de Las Nubens

A peça Nuestra Señora de las Nubes foi escrita entre 1999 e 2000 e publicada em

2003, sendo o segundo exercício teatral sobre o tema do exílio que o grupo Malayerba

desenvolveu, sob a direção de Arístides Vargas. Apresenta, em seu construto, as várias

nuances dos traumas vivenciados pelos expatriados no exílio, através de questões políticas

históricas, inserido em um ensejo ficcional.

A história permeia esse universo, utilizando elementos como a poesias, o riso, as

questões sociais e políticas, de uma forma crítica, utilizando um lirismo poético próprio e,

assim, expondo a estrutura do discurso político, aproximando-se de um realismo fantástico. A

peça narra os sucessivos encontros de Oscar e Bruna, que foram exilados de seu país natal,

elucidando seus encontros que acontecem em um lugar não demarcado. No desenrolar, eles

vão se encontrando por várias vezes dentro da trama e assim recordam episódios de suas vidas

e do povo de um país chamado Nuestra Señora de las Nubes.

Quando refletimos e pensamos as questões sobre a ocorrência do exílio devemos ter

em mente que o tema engloba várias nuances das visões sociais dos indivíduos envolvidos

nessa experiência e isso ocorre não só na América Latina, mas em qualquer lugar pelo mundo.

Devemos levar em consideração que essa experiência de banimento ocorre em situações e

épocas distintas em vários países pelo mundo.

O crítico literário Edward Said, também exilado, nos apresenta muitas dessas questões

em seu livro intitulado ‘Reflexões Sobre o Exílio’, sendo também o título do capítulo que

reflete sobre o tema. Ele traz à tona questões relacionadas ao exílio por várias perspectivas e

experiências, expondo suas vivências e as de vários outros autores filósofos, sociólogos,

poetas e romancistas, criando uma rede de reflexões distintas sobre as experiências do exílio.

É esse tipo de marca do banimento, da solidão, da perda do enraizamento que vemos descritos

da peça escrita por Arístides Vargas.

O exílio é uma solidão vivida fora do grupo: a privação sentida por não estar com os

outros na habitação comunal. [...] O exílio tem origem na velha prática do

banimento. Uma vez banido, o exilado leva uma vida anômala e infeliz, com o

estigma de ser um forasteiro (SAID, 2003).

Por mais que exista uma distância geográfica entre as vivências de Said e Arístides

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Vargas podemos perceber que há experiências e marcas deixadas pelos traumas do exílio que

os unem e que é bastante complicado para alguém que não passou por essas vivências,

entende-las plenamente. A historiadora social Rosane Rollemberg em seu artigo ‘Memórias

no exílio, memória do exílio’, nos apresenta um interessante entendimento sobre essa questão:

Contar a história, de qualquer exílio, é narrar muitas histórias, de tendências grupos

políticos muito variados entre si, mas também de pessoas as mais diversas que o

viveram a partir das referências políticas e em função de suas características

individuais. Assim, o exílio deve ser compreendido como experiência coletiva e

individual, pessoal, ao mesmo tempo uma influenciando a outra. Uma das grandes

dificuldades, portanto, de estudar o exílio é dar conta da variedade da experiência,

da heterogeneidade. Mas também aí que está sua riqueza (ROLLEBERG, ano, p.

203).

É a partir dessa experiência heterogênea que Arístides Vargas molda o universo do

exílio em sua peça, rememorando e compartilhando as vivências do exílio para com todos

aqueles que passaram por esse trauma, seja no continente latino, no Brasil ou em qualquer

outra parte do mundo. A Nuestra Señora de las Nubes, publicada em 2003, é o segundo

exercício teatral sobre o tema do exílio encenado pelo grupo Malayerba.

A obra, como já citado anteriormente, é o segundo exercício de uma trilogia do exílio

elaborado por Arístides Vargas. Na obra os sucessivos encontros entre Oscar e Bruna

constroem o enredo principal da obra, que é divida em treze cenas, das quais quatro são de

encontros dos exilados e as demais se constroem a partir de flashbacks sobre as memórias e

lembranças desses personagens. Há, portanto, um momento de diálogos sobre essas memórias

e um momento da representação memorialista.

E as memórias do exílio surgem sempre no decorrer desse enredo, algumas vezes de

forma mais direta e outras de maneira mais implícita ou velada. Logo no início em que temos

o primeiro encontro de Oscar e Bruna, a conversa já mostra um traço que será constante em

seus diálogos, o fato de estarem sempre lembrando e esquecendo algo, construindo e

desconstruindo acontecimentos.

Desse modo, o narrar na peça está sempre ligado ao lembrar, uma vez que as rubricas

nos inicios das cenas constantemente incluíam o verbo recordar: “A fundação de Nuestra

Señora de Las Nubes, segundo Bruna. Ela recorda de como Don Tello...” (Cena 2, p. 21);

“Bruna recorda de como Vovó Josefa narrava...” (Cena 3, p.24); “Bruna recorda como o

Governador narrava...” (Cena 4, p. 27) deixando marcada a construção constante da memória

a partir da personagem Bruna.

O autor Jorge Dubatti, expõe que a peça de Arístides Vargas envolve três grandes

temas: o primeiro seria o da fundação e o incesto como origem; o segundo, envolvendo os

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relacionamentos e o amor; e o terceiro seria sobre a morte. Observando, assim, que a peça se

constrói a partir de uma coleção de fatos integradas, mas não heterogêneos entre si que, em

vários casos, os personagens estão interligados ou se repetem e o ponto de unidade se molda

se interligando a partir das referências feitas ao povo de Nuestra Señora de Las Nubes. Desse

modo, tentaremos demarcar a partir desses temas alguns recortes para desenvolver nossa

análise.

Em relação à origem do nome dado a peça, Dubatti (2012), diz que Nuestra Señora de

Las Nubes poderia remeter a Nossa Senhora dos Bons Ares (Nuestra Señora del Buen Aires),

fazendo referência ao nome original que Pedro de Mendoza deu a Argentina na primeira

fundação em 1536. Desse modo, observamos que Nuestra Señora de Las Nubens é Buenos

Aires, mas também poderia ser a extensão de qualquer cidade/povoado da América Latina.

O nome também poderia evocar ao surgimento de vilas e cidades no imaginário dos

romances latinoamericanos, como Santa María de Juan Carlos Onetti ou Macondo de Gabriel

Garcia Márquez. No entanto, em uma entrevista ao programa ‘Presencia Cultural’ 17 da

televisão peruana, no dia 10 de maio de 2009, quando Arístides Vargas foi questionado pela

real inspiração para o título da peça, ele respondeu:

Nós estávamos na região andina do Equador, encontramos um povoado abandonado,

todo mundo tinha emigrado de lá para Espanha. Bom, não tinha ficado ninguém.

Nós descemos do carro e caminhamos pelas ruas do povoado abandonado, e o nome

do lugar era Nuestra Señora de la Nubes. A gente falou que quando fizermos uma

peça, tentando reconstituir a memória de um povo, vai chamar-se Nuestra Señora de

la Nubes (TV PERU, 2009).

O trecho apresentado é reforçado quando retomamos a cena de Dom Tello e sua filha

Irma que relata a criação de Nuestra Señora de la Nubes. No trecho em que seu pai lhe força a

mostrar a mãos aos homens do vilarejo, no desejo que esta consiga um casamento. O

desaparecimento do resto dos representantes da masculinidade não tem uma explicação

concreta, parecendo que a ausência foi causada por um vento misterioso e agoureiro que

carregava jornais velhos e laranjas podres; outras vezes, se alude ao fato de os homens

estarem trancafiados nas suas casas mortos de medo. É o recurso metafórico empregado por

Vargas para falar da migração, do exílio e da perseguição política que transformou países

inteiros em lugares abandonados e habitados apenas por fantasma. O trecho a seguir expõe

essa perspectiva:

17 TV Peruana – Site Presencia Cultural: < https://www.youtube.com/watch?v= yW4JoQbH4OM&list=PL

GoZuDWLKdqmTfYmMt_fAi2GVoZN_7vi5&index=5> Acesso em: 15 de outubro de 2017.

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Irma: Mas pai... neste vilarejo não mora ninguém.

D. Tello: Anda, filhinha, mostra suas mãos aos homens.

Irma: Não há homens, papai... Além do que, me sinto ridícula.

D. Tello: Melhor ridícula que solitária, e a solidão se reconhece por duas coisas: as

mãos e o hálito. Anda, filha, exale teu hálito aos homens.

D. Tello: Levanta as mãos. Tá vendo? Não tem aliança! Suas mãos estão solteiras, é

terrível para uma mulher ter a mãos virgens e hálito de nada.

Irma: As ruas estão vazias e eu estou fria.

Irma: Ninguém me vê por trás das portas porque não há ninguém; só o frio mora

aqui. Irma: Só o vento bate na porta de Nuestra Señora de las Nubes, e ainda assim não

abrem para ele, porque dentro não há ninguém, as portas desse vilarejo guardam o

vazio. (VARGAS, 2016, p. 69)

Esse trecho antecipa a cena do incesto entre pai e filha, que leva à criação do país de

Nuetra Señora de las Nubes. A ideia de incesto também pode retomar, na peça, uma ideia de

metáfora do continente latino em que seriamos todos irmãos de maneira igualitária, pela

territorialidade, pela identidade. O trecho a seguir expõe a construção do incesto. Logo em

seguida através da imagem podemos observar como o Malayeba organizou a cena de D. Tello

e Irma.

Irma: Como estava dizendo, queiram\me, porque se não terão que me apontar o

dedo e inventar apelidos que, com muita amargura, carregam as mulheres como eu:

solteirona, panela velha, caritó... Para evitar tudo isso, vou me casar com o único

homem que tem interesse por mim: meu pai.

D. Tello: Tá louca? O que tá dizendo?

Irma: Assim tudo ficará em família, pai; teremos filhos que serão nossos irmãos e

netos; por sua vez, minha finada mãe será minha finada sogra, os netos serão

sobrinhos, filhos irmãos de seu pai e assim vamos encher de famílias as casas vazias

de Nuestra Señora de las Nubes... (VARGAS, 2016, p. 71).

Imagem 1 – Festival O Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V (26/09/2017) – Grupo Malayerba. Cena do incesto com Irma e D.

Tello – Foto: Taline Freitas

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Houve em cena a utilização de um véu para ajudar na exibição do corpo de Irma para

os homens de Nuestra Señora de las Nubes. Esta foi obrigada por seu pai, D. Tello, a se

mostrar em busca de um casamento. Precisava mostrar as mãos e os braços para que os

homens a desejassem e a pedissem em casamento. O pai, em um ato de violência, oferece a

filha a qualquer homem que a queira. Na Imagem 1, em particular, podemos observar o

trabalho de legendas, que elaborei para os espetáculos do Malayerba no festival ‘O Mundo

Inteiro é um Palco’ – Ano V.

Mais adiante, na peça, ainda tratando sobre a criação de Nuestra Señora de las Nubes,

o autor lança uma ideia de igualdade e da mistura dos povos latinos, posto mais adiante pela

personagem Avó Josefa, que conta ao seu neto Memé sobre a criação do país de Nuestra

Señora de las Nubes, relatando em um extenso monólogo a origem e as variações de povos

que pertencem ao país, sendo, portanto, na América Latina que vivemos como povos

diferentes, mas compartilhamos uma identidade de irmãos, seja nas lutas, seja por questões

culturais identitárias.

Josefa: ...e foi assim, Memê, como Don Tello e a Irma encheram de gente este

vilarejo, fundaram, Memê, e fundar um vilarejo não é qualquer bobagem... [...] Bom,

esse irmão da Matilde Herrera, a cabelereira celestial, a que cuida do cabelo dos

santos e virgens de Nuestra Señora de las Nubes... Sim, ela é uma cabelereira muito

boa; Desde que ela começou a cortar o cabelo do Santo Antônio, Santo Antônio é

outra coisa... [...] E os Bravo são mais bonzinhos que um pão francês, e os França

são os que moram em frente à prefeitura... Claro que eles são irmãos dos Bezerra e

primos dos Vásconez, mas como eles são índios e não se bicam, [...] que por sua vez

são irmãos dos Duque Molina Bezerra, que são os que sempre ganham as eleições,

porque aqui, ganhe quem ganhe, sempre ganha a família Robles, que são Duque por

parte de mãe e por parte de pai são Robles, [...] Os Salin são turcos do Líbano, e não

me pergunte como um turco pode nascer no Líbano, porque isso é coisa de turco [...]

mas você, Memê, é descendente direto dos Vásconez, que ao misturarem com os

Nunes que são... De onde são eles? Pela cor, devem ser de Angola; [...] Angelita

Vásconez me contava como a humilhavam porque era índia, e isso me deixa furiosa

porque aqui todos temos de tudo, e isso nunca serviu pra nada. [...] nós nos matamos

trabalhando para que outros vivam como reis [...] (VARGAS, 2016, p. 72).

O autor utiliza o monólogo da Vó Josefa para realizar uma referência ao passado

colonial da América Latina. Ele faz menção aos vários tipos de povos que passaram pelo

continente e reforça que alguns, como os França, que não se bicam com os índios em uma

referência direta à exploração e extermínio indígena no continente. Cita os religiosos, os

europeus, duques, índios, as oligarquias familiares que sempre ganham as eleições, aos turcos,

os negros quando fala em Angola.

Nesse trecho podemos destacar um direcionamento a partir das memórias dos

personagens e refletir sobre a condição do exilado em terras estrangeiras. O autor utiliza a

metáfora da flor do ar para trazer à tona essa questão e reforçar a situação de vagueio, de

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desprendimento do sujeito exilado. Podemos perceber essas colocações, no trecho aqui

apresentado, quando os personagens relatam que não possuem moradia, ou seja são os

indivíduos que vivem pairando, não tendo um lugar para se fixar e vivem vagando.

Oscar: (Pausa) A propósito, você tem casa?

Bruna: Não.

Oscar: Nem eu.

Bruna: E onde dorme?

Oscar: No ar.

Bruna: Como a flor.

Oscar: Que flor?

Bruna: A flor do ar.

Oscar: A flor do ar?

Bruna: A flor do ar vive no ar, e não do ar, que disso todos vivemos. A flor do ar

vive nos galhos das árvores secas. Nos cabos de luz, nos postes... Sempre encostada

em outros, como se dissesse “deixem-me estar aqui um pouco, um pouquinho”...

Uma flor aleijada (VARGAS, 2006, p. 17).

Imagem 2 – Festival O Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V (26/09/2017) – Grupo Malayerba. Cena dos constantes

encontros de Oscar e Bruna – Foto: Taline Freitas

Podemos observar, na imagem 2, que os personagens de Oscar e Bruna estão sempre

envoltos com malas. Eles podiam rememorar e refletir sobre várias questões, mas sempre

usavam as malas nessas cenas. Em algumas usavam como mesa e outras só as seguravam,

mas sempre reforçando a ideia e não nos deixando esquecer que eles estão sempre de

passagem, que aquele lugar não é fixo. Parece que os exilados estão por aí pairando, sempre

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procurando um lugar para ficar, procurando um abrigo, um amigo, uma família e, com isso,

parece que sempre lhe falta algo, como uma figura aleijada na qual falta sempre alguma parte

do corpo. Essa parte do corpo que falta serve como uma metáfora para o seu lugar de origem,

pois no exílio faltam a família, os amigos, a pátria, as lembranças, os momentos vividos.

Como reforça Said, a nostalgia do exílio baseia-se na existência do amor pela terra natal e nos

laços que nos ligam a ela (SAID, 2003).

O encostar-se ao outro que a peça relata seria essa busca pelo abrigo, pelo

acolhimento, apoio para poder se manter de pé, buscar força no outro, além do que os

personagens, na peça, não parecem ter um objetivo, um dever a cumprir após os encontros.

Eles passam a imagem de um desapego com obrigações diárias, parecendo que vivem a vagar

de um lugar para outro, sem nunca se firmar. E apesar disso, parecerem lúcidos, eles nos

passam a ideia de serem um pouco alienados, arrancados de seu lugar de origem,

desorientados e deslocados. A partir dessa observação, relembramos os personagens de

Samuel Beckett em ‘Esperando Godot’, que possuem elementos bem parecidos com os de

Vargas.

Por ser esta uma obra que reflete sobre a memória e o exílio em um período ditatorial,

abordamos questões sobre a violência, por se tratar de um estado de exceção. Na obra de

Arístides Vargas a referência a essas violações se manifesta de muitas formas, cuja análise

dará destaque e referenciará algumas. Outro ponto observado durante o diálogo dos

personagens é a questão da violência, nesse caso contra a mulher. Os personagens relembram

o que ocorriam no antigo país de origem:

Bruna: Tá fazendo o quê?

Oscar: (Pausa.) Olho os pássaros.

Bruna: Empassarinhado.

Oscar: Como?

Bruna: Nada, é que em meu país os pássaros enlouquecem às seis da manhã como

se um professor de canto, neurótico por silêncio, houvesse arrancado seus rabos.

Oscar: Já no meu, os maridos batem em suas esposas.

Bruna: (Pausa longa.) No meu também, e a cada quarenta cacetadas fazem uma

gentileza: levam suas esposas ao cinema para ver filmes mudos em preto e branco

(VARGAS, 2006, p. 15).

Observamos também que Vargas traz em alguns trechos a representação do exilado

como pássaros, isso ocorre durante a obra. Em uma outra parte a personagem de Bruna

recorda de uma agressão sofrida por ela:

Oscar: Perdão, você perdeu a virgindade?

Bruna: Não, ela foi extraviada.

Oscar: E não pôs um anúncio nos classificados?

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Bruna: Não foi necessário, um professor de literatura a encontrou.

Oscar: Não me diga!

Bruna: Sim, ele se chamava... Como se chamava o professor...? Ele morava ao lado

da praça... Bem, já faz muitos anos, no colégio; esse professor gostava de

representar os personagens da literatura universal.

Oscar: Um clássico.

Bruna: Um clássico do toque.

Oscar: Um clássico tátil?

Bruna: Um degenerado que aplicava o sistema Braille pra conhecer a anatomia de

suas alunas.

Oscar: O que aconteceu?

Bruna: Um dia lemos o Lazarillo de Tormes: então ele decidiu representar o cego, e

nós Lazarillo. Ele nos tocou tanto que corri ao banheiro, vi minhas pernas e me dei

conta que estava urinando rosas (VARGAS, 2006, p. 16).

Podemos observar como o autor utiliza elementos como a ironia e a comicidade para

formular sua crítica em relação à situação de violência sofrida pela mulher, em um contexto

ditatorial. Na primeira citação observamos que a ironia se formula quando Bruna expõe que

os maridos em Nuestra Seõra de Las Nubens, após espancarem suas esposas, as levavam ao

cinema, para assistirem juntos a um filme mudo, em preto e branco. O trecho nos remete,

desse modo, à real situação dessas mulheres, silenciadas e agredidas, como se estivessem

realmente dentro do filme sem ter voz, em uma realidade paralela, parada no tempo, em preto

e branco, fazendo parte de outra época.

No segundo trecho, a ironia se encontra quando a personagem Bruna relata, a partir de

suas recordações, a maneira como foi abusada pelo seu professor de literatura. Ela conta que

não perdeu a virgindade, que essa foi extraviada, o que nos leva a retomar os documentos dos

exilados. Pelo fato de haver um personagem cego no livro que estavam lendo, o professor

utiliza esse personagem para abusar de suas alunas. Para realizar a crítica ele afirma que esse

livro se tornou um clássico tátil ou do toque. E fazendo referência às ditaduras, seja na

Argentina ou em qualquer parte do Continente, reiteramos que a violência sexual foi e é uma

prática sistemática e generalizada dentro dos centros clandestinos de detenção e tortura.

Quando Oscar traz à memória a história do homem que tinha uma ferida que

gangrenou, ele nos leva a uma reflexão sobre a condição humana e a questão da violência. Ele

nos faz entender que sempre precisamos do outro, que vivemos em sociedade e não somos

seres insolados. Expõe que até para nos ferir nós precisamos do outro e retoma a questão da

violência durante a ditadura militar quando qualquer um podia lhe fazer mal e ser seu

assassino ou o seu torturador.

Oscar: (Pausa.) Uma vez um cara... Como se chamava? Morava... Bom, o que

importa é que ele teve uma ferida no braço direito, gangrenou, e não havia médico,

não havia hospital; Ele decidiu fazer uma autointervenção cirúrgica. Pegou um

machado e começou o dilema: ‘como cortar o braço direito com o braço direito?’

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Conclusão: precisamos do outro para nos mutilarmos, precisamos do outro para nos

apoiar, sempre precisamos do outro.

Bruna: Para nos ferir...

Oscar: Para nos mutilar...

Bruna: Para nos apoiar... Eu sinto que o meu país me feriu.

(VARGAS, 2016, p. 65).

No capítulo que apresenta os irmãos Aguilera e seus galanteios em forma de cantadas

às mulheres de Nuestra Señora de las Nubes, acreditamos que, na verdade, esses trechos

tratam também de outros temas. Os irmãos Aguilera retomam em algumas das suas falas,

trechos de ações violentas, vividas por pessoas que foram perseguidas durante a ditadura

militar. Como podemos observar no recorte apresentado a seguir:

Irmão 1 : Queria violar... tua intimidade, queria violar teu espaço vital, queria violar

tua correspondência, violar teu silêncio, porque com ele tu violastes todos meus

desejos...

Irmão 2: Queria ser... queria ser... Como se chama aquele equipamento para

detectar submarinos?

Irmão 1: Queria ser marinheiro e que tu fosses minha corveta.

Irmão 2: E eu queria ser corveta... (Silêncio.) Queria ser corveta... (Não sabe como

continuar.) Queria ser corveta...

Irmão 1: Queria ser um hematoma e estar sempre na tua boca (VARGAS, 2016, p.

82).

O trecho relata, em algumas partes, a questão da violação de intimidade, de espaço, de

correspondência, além do hematoma na boca como referência às violências sofridas, como

ocorria com as pessoas perseguidas e torturadas durante o regime. Faz referência a

submarinos e corvetas relembrando as ações marítimas da Argentina. Nessa época, haviam

corvetas que realizavam ações de levar os corpos de pessoas que foram torturados para serem

dispensadas em alto mar. Outra prática que é retomada a partir de trecho refere-se às práticas

de tortura que tinham o nome de submarino molhado, que consistia em afundar a cabeça de

uma pessoa em uma tina d’água. Ocasionalmente, a tina também estava cheia de excrementos

humanos e submarino seco: consistia em colocar a cabeça de uma pessoa dentro de um saco

de plástico e esperar que ela ficasse quase asfixiada.

Outra questão abordada por Oscar e Bruna em suas conversas, que compõe um cenário

importante para as questões da memória do exílio, é o silêncio que é exposto de duas maneiras

na obra. O trecho a seguir expõe um olhar sobre o silenciamento do próprio exilado diante dos

obstáculos enfrentados diante de outra nação e questões políticas.

Bruna: Pobres de nós, que não levantamos a voz porque somos estrangeiros.

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Oscar: (Pausa.) Também não é preciso andar pelo mundo aos berros, como o

Tarzan.

Bruna: Mas também não dá para sumir no silêncio dos tolos.

Oscar: Eu não fico calado, mesmo quando as leis de um país proíbem aos

estrangeiros dar opiniões políticas. Ainda que me meta a dizer a verdade, quando o

que deveria fazer é me calar ou mentir, eu não me silencio.

Bruna: Você faz muito bem, porque o silêncio é a casa dos que não têm casa e nada

a contar, porque não contam para nada (VARGAS, 2006, p. 17).

Há, no trecho referido anteriormente, uma crítica direta aos exilados que, por motivos

de humilhação ou medo se calaram ante as questões políticas que vivenciavam. No fim da

citação, podemos observar a ironia a partir da construção de um jogo de palavras, em que

estes que ficam em silêncio, pois não contam nada porque nada têm a contar. Nesse recorte o

momento do silêncio é abordado, mas a partir de um outro olhar. O foco agora seria o silêncio

de quem observa as ações violentas e repressivas dos governos ditatoriais e não se manifestam

se transformando em cúmplices da violência. O trecho a seguir ilustra melhor essa

perspectiva:

Bruna: Porque o expulsaram do seu país?

Oscar: Não me expulsaram.

Bruna: Ah, não?

Oscar: Não, me mataram.

Bruna: A polícia?

Oscar: Não, os vizinhos.

Bruna: Com uma faca?

Oscar: Não, com o silêncio. Você vê meus vizinhos... gente comedida: me faltava

óleo, eles me emprestavam. Eles não sabiam que eram assassinos, por isso se

comportavam como vizinhos; descobriram que eram assassinos no dia em que fui

levado preso, porque não disseram nada; trataram de esquecer o que haviam visto e

eu fui fulminado pelo esquecimento, pelo desdém e o medo, no mesmo instante em

que eles fechavam suas janelas. Bruna: Em meu país aconteceu o mesmo com um amigo (VARGAS, 2006, p. 19).

Nesse trecho da obra Vargas, diferente do outro silenciamento do individuo exilado,

pauta-se um silenciamento criminoso de pessoas que, de alguma maneira, tiveram contato

com aqueles que seriam torturadas e assassinados e escolheram ter uma atitude passiva e

cúmplice. A pesquisadora historiadora sobre América Latina, Gabriela Águila, produziu um

artigo intitulado ‘Testemunhas e Vizinhos: A ditadura na Grande Rosário (Argentina)’. Em

seu artigo ela trabalha com o relato de testemunhas e vizinhos para analisar os fatos

decorrentes da ditadura na cidade de Rosário, na Argentina.

A autora expõe que na cidade de Rosário ninguém podia afirmar desconhecimento,

pois muitos fatos ocorriam a luz do dia e os centros clandestinos de detenção se encontravam

em perímetro urbano, cercado por casas particulares ou em lugares que transitavam muitos

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cidadãos. A partir de sua pesquisa, ela relata que os depoimentos da maioria de pessoas

comuns pertencentes a cidades, destaca o conhecimento, mesmo que fragmentado da

violência estatal e aceitava as explicações fornecidas, a conformidade passiva e o silêncio

produzido pelo medo. Em finalização ele denota:

O clima social e político [...] se adequou aos objetivos da ditadura, produzindo, uma

sociedade aparentemente despolitizada e que aceitava resignadamente ou de bom

grado, a nova ordem. Provavelmente, e como ocorreu no caso da ditadura franquista

na Espanha, o regime se conformava com o silêncio. E foi isso, pelo menos nos

primeiros anos, o que a maior parte da sociedade argentina outorgou (ÁGUILA,

2010, p.612).

As análises da pesquisadora argentina só reforçam o pensamento crítico elaborado por

Arístides Vargas em sua peça, quando associa essas testemunhas e vizinhos como cúmplices

diretos das ações ditatoriais na Argentina. Mais um elemento que constrói de maneira

significativa o teatro de Arístides Vargas é o uso do riso recorrendo à ironia.

A ironia, requer do leitor tripla competência: linguística, retórica e ideológica. A

competência linguística se baseia no fato de que o leitor tem de entender o que está

implícito. A competência retórica (ou genérica) pressupõe que o leitor tenha

conhecimento das normas retóricas e literárias para que possa perceber o

afastamento das mesmas. A competência ideológica, a mais complexa das três,

requer do leitor, tanto para perceber a paródia como a ironia, capacidade e treino a

fim de compreender um conjunto de valores sociais e culturais institucionalizados,

os quais serão transgredidos (HUTCHEON, 1985 apud. REGINATTO, Andréa,

2010).

A partir dos apontamentos expostos pela pesquisadora Andréa Reginatto, para

compreendemos a construção do teor irônico, ela nos estimula a compreender melhor a

questão da ironia em Vargas, pois o riso, na obra de Vargas, vem carregado de um teor

irônico no intuito de realizar críticas e provocar reflexões, especialmente sobre o período

ditatorial. Desse modo observamos, no trecho em que Oscar pergunta a Bruna o porquê da sua

expulsão de seu país, que ela responde utilizando o riso e o deboche para explicar o que havia

feito e esse trecho também expõe a questão da censura no governo de exceção. Segue o trecho

da peça:

Oscar: E por que a expulsaram do seu país?

Bruna: Porque um dia eu disse que as senhoras do meu vilarejo não tem peitos, e

sim xícaras de porcelana chinesa onde os senhores de fraque bebem cappuccino sem

leite, e que não têm vagina, e sim leques com dentes de crocodilo.

Oscar: Você disse isso?

Bruna: Sim, e que os militares do meu vilarejo são tantos que nos feriados

nacionais param na rua e a rua parece que não havia feito a barba há três dias.

Oscar: (Rindo.)Você disse isso?

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Bruna: Sim, e também que em meu vilarejo os corruptos denunciam os corruptos e

tudo fica tudo bem, porque eles sabem do que estão falando (VARGAS, 2016, p.

66).

O riso dentro da obra de Vargas se transmuta em um mecanismo de crítica social ao

regime da ditadura militar. Em outro momento, Bruna relata que confundiram o país com um

avião e usa o riso e a ironia para explicar o porquê, como podemos observar no trecho que

apresentamos adiante, que faz referência à crise que o país da Argentina passou durante a

ditadura.

Bruna: Eles nos agrediram primeiro.

Oscar: Como assim?

Bruna: Confundiram o país com um avião.

Oscar: Não diga!

Bruna; Primeiro disseram que era pra apertar os cintos, e nós assim fizemos; depois

disseram que eram tempos turbulentos, nós acreditamos; em seguida disseram que

era um caso de asfixia econômica, e uma máscara cairia automaticamente. Nenhuma

dessas coisas serviu pra nada, o país caiu e nunca encontramos a caixa preta.

Oscar: Ninguém se salvou.

Bruna: Ninguém.

Oscar: É que não apertaram bem os cintos.

Bruna: Sim, nós apertamos tanto, que nossas caras ficaram a poucos centímetros do

chão (VARGAS, 2016, p.66).

Nesse trecho o autor elabora, através da ironia do riso, uma crítica ao sistema

econômico vigente durante o período de ditadura na Argentina. O apertar dos cintos faz

alusão à crise e à fome que a população enfrentava na época, em um país que se apresentava

completamente falido. O Site Estadão Internacional expôs uma matéria que relata alguns

dados sobre a crise na Argentina durante o regime militar intitulada: ‘Desastre econômico’18.

A matéria expôs que Martínez de Hoz, Ministro da Economia do ditador Videla, aumentou a

dívida pública argentina e elevou o déficit fiscal.

Em sete anos de Ditadura a dívida externa subiu de US$ 8 bilhões para US$ 45

bilhões. A inflação do governo civil derrubado pela Ditadura, que era considerada um índice

‘absurdamente alto’ pelos militares, havia sido de 182% anual. Mas, este índice foi superado

pela política econômica caótica da Ditadura, que encerrou sua administração com 343%

anual. Assim, a pobreza disparou de 5% da população argentina para 28%.

Além disso, a Ditadura criou uma ciranda financeira, conhecida como ‘la plata dulce’,

ou, ‘o doce dinheiro’. Ao mesmo tempo em que tomavam medidas neoliberais, como a

18 Site Estadão internacional: <http://internacional.estadao.com.br/blogs/ariel-palacios/ditadura-argentina-a-

mais-sanguinaria-da/ > data de acesso: 19 de agosto de 2017.

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abertura irrestrita das importações, os militares continuavam mantendo imensas estruturas nas

empresas estatais, que transformaram em cabides de emprego de generais, coronéis e seus

parentes. A repressão provocou um êxodo de centenas de milhares de profissionais do país.

Os militares, em cargos burocráticos, exacerbaram a corrupção na máquina estatal.

O autor expõe críticas a partir da ironia para as questões religiosas, visto que a igreja

católica teve participação ativa em vários crimes durante a ditadura militar na Argentina.

Nesse trecho, o autor faz críticas fortes às práticas cristãs existentes no continente. A

personagem de Bruna expõe que “o bom de se exilar em um país latinoamericano é que não se

perde a raiz religiosa; se perde a dignidade, mas não a raiz religiosa” (VARGAS, 2016). O

Site Estadão Internacional expõe uma entrevista com o ex-ditador e general Jorge Rafael

Videla, realizada pela imprensa espanhola. Na matéria ele relata a participação da igreja

católica no regime ditatório da Argentina:

Na entrevista Videla coloca em problemas a Igreja Católica ao afirmar que o clero

manteve uma relação “cordial” e “muito sincera” com o regime militar. “Nós

tínhamos capelães militares dando assistência para a gente. Nunca foi quebrada essa

relação de colaboração e amizade”. Durante a ditadura a Igreja esteve intensamente

alinhada com os militares. Padres católicos presenciaram torturas realizadas nos

centros clandestinos de detenção e pressionaram os prisioneiros a delatar, com o

encobrimento da confissão, o nome de militantes políticos que haviam conseguido

escapar. Um dos clérigos envolvidos nas ações do regime militar, o capelão

Christian Von Wernich, além de presenciar, protagonizou torturas nos centros

clandestinos na província de Buenos Aires.19

Nesse trecho, Oscar expõe uma crítica à quebra da democracia, quando fala que

conheceu uma menina que tinha asas e que se chamava Democracia Martinéz. Quando este

fala em asas nos remete à liberdade, à esperança do que seria a democracia, mas essa

democracia foi violada, estuprada, fazendo uma referência direta ao golpe militar na

Argentina.

Faz referência, ainda, a um método bastante utilizado por torturadores que são os

estupros, algo como castigo um comum para mulheres que foram torturadas durante a

ditadura. Ele faz uma Referência direta a María Estela Martínez, conhecida como Isabelita

Perón, que foi a primeira mulher que ocupou a presidência da República Argentina. Foi ela

quem sofreu o golpe militar em 1976. O trecho a seguir expõe essas questões:

Oscar: Conheci uma menina que tinha asas.

Bruna: É?

Oscar: Sim, e por mais que pareça mentira, se chamava democracia, Democracia

19 Site Estadão internacional: < http://internacional.estadao.com.br/blogs/ariel-palacios/videla-e-sua-nova-era-o-

gato-e-as-torturas-e-o-requiem-pelo-pai-do-rock-argentino/> Data de acesso: 19 de agosto de 2017:

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Martinez, e por mais que pareça mentira, a violaram.

Bruna: É que esse nome é um convite ao estupro.

Oscar: Uma noite... a estropiaram, pobre menina... Uma patota.

Bruna: Uma patota legislativa?

Oscar: Sim, mas se iludiram, ela já havia sido violada por uma patota executiva, sua

família, gente de muito dinheiro, a esconderam, imagine...

Bruna: Claro, não se pode andar mostrando a uma violada como se tratasse de uma

constituição (VARGAS, 2016, p.80).

Em seguida, Oscar diz que não falava sobre política, retomando à questão da censura

na época militar, quando não era permitido externar opiniões contrárias ao regime. Os

cantores, escritores, poetas e dramaturgos necessitavam escrever nas entrelinhas ou utilizando

bastantes metáforas para poder publicar seus trabalhos sem serem cesurados ou perseguidos

pelo regime. Em seguida, ele brinca com o jogo de palavras quando se refere à música na

política ‘concerto de nações’ ironizando o sentido da palavra concerto. Há também uma

crítica direta à Argentina, quando os personagens comparam-na a um bumbo. O recorte que

segue demostra essas ações:

Bruna: Não fique triste, também se aplicam termos musicais à vida política, por

exemplo, um concerto de nações. Oscar: A propósito, nesse concerto, que instrumento musical você daria ao nosso

país? Bruna: Um bumbo.

Oscar: Por que?

Bruna: Porque faz muito barulho, é escandaloso e poderia perfeitamente nem

existir.

Oscar: Voou alto, hein? (VARGAS, 2016, p.81).

Nesse trecho o autor expõe, através dos personagens as reflexões sobre o amor que há

um núcleo dentro da peça que segue essa tematização. O personagem de Bruna questiona se

houve amor em Nuestra Señora de las Nubes e Oscar afirma que sim. Podemos fazer uma

alusão à vida do autor e perguntamos se existiu amor no exílio, pois Arístides Vargas

encontrou as suas duas grandes paixões durante esse período. Uma foi conhecer sua esposa a

María do Rosario Francés e a outra foi criar o grupo Malayerba que os dois fizeram juntos e

estão casados até a atualidade.

Bruna: É que tenho asas, por isso me custa tanto abraçar.

Oscar: E como você faz amor?

Bruna: Eu não faço amor, o amor me faz e me desfaz, o que não deixa de ser um

disparate, é como se um raio de lua derretesse a manteiga. Oscar: Não entendo.

Bruna: No amor não há o que entender.

Oscar; Como não, se podemos defini-lo.

Bruna: Sim, se tiver tempo e vontade, por exemplo, poderíamos dizer que atrás de

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um biombo podemos nos despir do coração, e depois pintar o céu com uma escova

de dentes e cortar queijo com a espada de Cid, e depois morrer de solidão até que

alguém nos ressuscite e outra vez atrás do biombo. Cheguei à conclusão que o amor

é dar-se mas, por favor, que não me devolvam.

Oscar: Não tem se dado bem no amor?

Bruna: Não me queixo, no entanto não aprendo a me despir sozinha atrás de um

biombo... A propósito, houve amor em Nuestra Señora de las Nubes?

Oscar: Claro, lindas histórias de amor (VARGAS, 2016, p. 82).

Nesse trecho o autor também usa a metáfora dos pássaros para falar do povo exilado.

A personagem de Bruna diz que tem asas, por isso é difícil abraçar, conduzindo à

compreensão de que, pelos traumas sofridos no exílio, ela não apresenta mais disposição para

o amor e que, de certa forma, ela acabou se fechando para o amor como uma maneira de se

proteger e se guardar de mais traumas, como pode ocorrer com os expatriados. Esse trecho se

apresenta bem poético. O personagem de Oscar lhe explica que o amor lhe faz e lhe desfaz,

que amar é se despir, ou seja se entregar. O amor é descobrir e se mostrar por inteiro, sem

amarras, não sendo preciso entender o amor, apenas se entregar a ele.

Os personagens ainda refletem sobre o amor que surge nos lugares mais inusitados.

Nesse caso, como em um momento de exílio ou ditadura, o amor existe em todas as esferas e

momentos. A metáfora do biombo foi uma ótima construção para explicar essas questões da

entrega do amor, em outro trecho que também expõe as relações de amor dentro da peça, a

parte dos personagens Ângela e seu esposo o maestro Renan. O enredo acontece a partir do

momento em que Ângela faz uma visita ao trabalho do esposo, enquanto este ensaia com sua

orquestra. Ângela diz que tem muitos Russos na orquestra do esposo e ele a corrigi dizendo

que são armênios e ela diz que são todos a mesma coisa.

Renan: O que você quer agora?

Ângela: Tem muitos russos na sua orquestra.

Renan: Armênios.

Ângela: Digamos que são a mesma coisa.

Renan: Digamos, mas não são a mesma coisa.

Ângela: Tem certeza que não quer tortilha?

Renan: Me deixa ensaiar, Ângela. Me deixa ensaiar (VARGAS, 2016, p. 85).

Podemos fazer alusão, nesse caso, à presença do povo Armênio na Argentina em que

muitos sumiram também durante a ditadura militar. Existe uma data para homenagear as

vítimas da ditadura, no trecho a seguir, retirado do Site ‘Estação Armênia’.20

20 Site Estação Armênia:<http://estacaoarmenia.com.br/527/24-de-marco-homenagem-aos-desaparecidos-

armenios/ > data de acesso: 19 de agosto de 2017.

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O ‘Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça’ é o dia em que se comemora

na Argentina as vítimas políticas produzidas pelo autoproclamado “Processo de

Reorganização Nacional”. Aos 35 anos do golpe de estado, é comemorado em 24 de

março de 1976, data em que derrubou o governo constitucional de María Estela

Martínez de Perón, iniciando a ditadura militar. O ‘Dia Nacional da Memória pela

Verdade e Justiça’ foi estabelecido como tal em 2002 e desde 2005 não é um dia de

trabalho. A comunidade armênia também lembra aqueles que desapareceram, foram

presos e sequestrados durante a última ditadura na Argentina e no Uruguai, com uma

placa de acesso à Igreja de São Gregório o Iluminador de Buenos Aires, que foi

lançada em 11 de novembro de 2007 (SITE ESTAÇÃO ARMÊNIA, 2017).

O personagem do maestro Renan nos remonta à metáfora da figura de um ditador que

não pode largar o poder que, nesse caso, seria a batuta. O ditador acredita que conhece e

entende seu povo, mas não ouve o que seu povo tem a dizer. No caso do maestro Renan este

nem pode entender sua orquestra, pois se trata de Armênios. O clarinete desafina, mas o

maestro não pode avisá-lo, pois não entende seu idioma. Não existe diálogo entre o povo e o

ditador, assim como em um regime autoritário.

Ângela: Não seja ridículo, você nunca estourou! Eu não aguento, Renan, o clarinete

tá desafinando, eu não aguento... (Gritando.) Senhor! Onde aprendeu a tocar

clarinete?

Renan: Ângela, fica quieta, eu sei que ele desafina.

Ângela: E por que não diz nada?

Renan: Porque ele é armênio, não me entende.

Ângela: Me empresta essa batuta e vai ver como ele para de desafinar.

Renan: Não, meu amor, a batuta é minha.

Ângela: isso te dá poder, né?

Renan: Eu queimei as pestanas por quinze anos no conservatório pra ter uma batuta,

e você não vai me fazer largar.

Ângela: Isso é abuso de autoridade, Renan. Me empresta a batuta.

Renan: Chega, Ângela, olha como os músicos estão resmungando, olha como o

trompetista baba de raiva, olha como se treme todo o violinista, olha, Ângela, olha...

Ângela: Me dá a batuta.

Renan: Assim vai acabar correndo sangue por aqui.

Ângela: Quem vai correr é você. (Tentando pegar a batuta.) Renan: Solta, miserável.

Ângela: Miserável é a sua mãe!

Renan: Não mete a minha mãe no meio! (Disputam, a música se descompassa, a

batuta se quebra.) Ângela: O palito quebrou!

Renan: Você quebrou!

Ângela: Nós quebramos!

Renan: E agora, o que eu faço sem batuta?

Ângela: Nada.

Renan: Por mais estranho que pareça, me sinto mais aliviado sem a batuta na mão.

Ângela: Agora você tem as mãos livres.

Renan: Pra fazer o que, meu amor?

Ângela: Pra tocar meu instrumento e comer tortilha de batata! (VARGAS, 2016, p.

87).

A cena que retrata a morte da vovó Josefa também retoma, na peça, os tempos de

violência do regime militar, remetendo a algumas singularidades com as quais pude ter

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contato apenas na fase conclusiva da pesquisa. A atriz Maria do Rosario Francés,21 também

chamada de Charo Francés, fundadora do Malayerba e companheira de Arístides Vargas, em

sua passagem por Natal com o grupo participando do festival ‘O mundo Inteiro é um palco’,

expôs uma característica pessoal para a elaboração dessa personagem.

Em uma palestra22 proferida dentro do evento ‘O mundo Inteiro é um Palco’, ela

mencionou que os banhos de lua, que são realizados pela vovó Josefa na peça, são uma

tradição das mulheres de sua família na Espanha. Disse que quando era mais nova as

mulheres da família, mãe, tias e avós se reuniam em noite de lua cheia para tomar esses

banhos de lua, com seus corpos totalmente nus.

Imagem 3 – Festival O Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V (26/09/2017) – Grupo Malayerba, Cena do banho de

lua e morte da Vó Josefa – Foto: Taline Freitas

21 Ela fundou o grupo de teatro Malayerba em 1980 em Quito, Equador, do qual ela pertence desde então. Ela

fundou e dirigiu o Laboratório de Treinamento de Atores Malayerba há mais de quinze anos. Elea ensina

oficinas e conferências dentro e fora do Equador. Ela dirigiu peças de teatro, produções de rua e dirigiu ações

para inúmeras produções cinematográficas. Dados retirados do site < http://www.teatromalayerba.com/grupo-

de-teatro> acesso em: 22/08/2017. 22 Sala de Ensaio - Diálogos Sobre Processos Teatrais: É umas das ações formativas que compõem a

programação do festival O Mundo Inteiro é um Palco – Ano V. A ação pretende abrir um diálogo sobre o

processo de criação com alguns diretores, diretoras e atrizes de espetáculos apresentados durante o festival.

Dados retidos do folder do evento: O Mundo Inteiro é um Palco – Ano V.

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Podemos observar, através da imagem 3, que a personagem da Vó Josefa mantém essa

postura por toda a cena, posição de enfrentamento, de se posicionar de frente ao ataque dos

militares durante o banho de lua até o fechamento da cena com sua morte. Há, nessa tradição

do banho de lua, um fortalecimento do feminino, além de um posicionamento do ser livre, de

libertação do corpo da mulher que possui uma beleza bastante encantadora. No entanto, com

o acontecimento do seu banimento da Espanha, Charo sentia muita falta dos seus familiares e

da sua cultura. Sendo assim, para homenagear essa tradição tão bonita eles resolveram

adicionar o personagem da Vovó Josefa, como podemos observar no recorte a seguir:

Vovó Josefa: Mas vejam o que temos aqui! O pequeno Memê... Vem, Memê, faz

companhia pra tua avó tomar um banho de lua. Eu sei que é proibido sair de casa

depois das dez, mas essa noite a lua parece uma bola de névoa; a noite está tão clara

que posso ver como as casas de Nuestra Señora de las Nubes começam a apodrecer,

como os faróis choram lâmpadas apagadas... [...] Sou uma velha que sempre tomo

banhos de lua... Minha mãe, minha avó, em noites como essa, tomaram banhos de

lua. Posso ver seus corpos molhados pela luz da lua, como lhes alisa o cabelo, como

as deixa prateadas. [...] Devemos ter a fortaleza suficiente para noites como essa,

oferecer a nossa nudez para que se molhe com a lua, ou do contrário somente

teremos forças para fechar as janelas e nos sepultarmos cheios de temor em nossas

trêmulas casas [...] (VARGAS, 2016, p. 94).

Observamos, a partir dos diálogos da Vó Josefa, que ela é uma figura de resistência,

que não silencia, que combate e crítica o regime ditatório em Nuestra Señora de las Nubes.

Em alguns trechos o personagem expõe isso claramente quando afirma que não vai se calar,

que basta de medo, que não vai silenciar. Podemos observar essas premissas a partir do

recorte que segue:

Vovó Josefa: Vem, não tenha medo; já não basta o medo das casas trêmulas de

Nuestra Señora de las Nubes... [...] Não vou me calar, Memê! Já não basta o silencia

que nos deixa a fome e a desolação, não vou me calar porque estou mais triste que

um gato castrado, que um pensamento pendurado em um cabide, que uma paisagem

pintada por um homem sem orelha... Não vou me calar porque não tenho vontade de

me calar! [...] Devemos ter a fortaleza suficiente para noites como essa, oferecer a

nossa nudez para que se molhe com a lua, ou do contrário somente teremos forças

para fechar as janelas e nos sepultarmos cheios de temor em nossas trêmulas casas

[...] (VARGAS, 2016, p. 94).

Para reforçar a tristeza sofrida pela personagem, o autor até a compara às paisagens

tristes do pintor holandês Van Gogh. Sua morte surge no final dessa cena de maneira corajosa,

mágica e poética, pedindo ao seu neto Memé que olhe o pontinho vermelho que surge em seu

peito, pede para ele se aproximar e olhar por dentro, que talvez visse um monte de gente

tomando banho de lua igual naquela noite. Percebemos, desse modo, que a figura da Vó

Josefa remonta, dentro da peça, à imaginário das resistentes avós da praça de maio na

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Argentina, que lutam desde a época da ditadura até os dias atuais.

As avós pertenciam, a princípio, ao grupo das mães, mas pela particularidade do

desaparecimento dos seus netos, decidiram unir-se em associação própria, as ‘Avós da Praça

de Maio’, cuja finalidade é a localização e a restituição das crianças sequestradas e

apropriadas a suas famílias legítimas. Na peça Instrucciones para abraçar el aire, Arístides

Vargas realiza uma homenagem a avó Chicha Mariani, a fundadora da Associação das Avós

da Praça de Maio. Nesta peça Arístides Vargas reconta a historia de terror passada pela

família de Chicha. O dia em os militares atacaram sua casa, mataram seus familiares e

levaram sua pequena neta, a qual ela só reencontrou há pouco tempo. Essa obra também se

torna um valoroso trabalho da reconstrução memorialista da época da ditadura militar

Argentina.

3.2 As diferentes nuances do exílio - a loucura

Pretendemos, nesta parte do capítulo, refletir sobre outra construção do exílio que

também é abordada por Arístides Vargas em sua obra. Para o dramaturgo não há apenas o

exílio induzido político, mas existem outras formulações que encaminham o individuo a um

isolamento e exílio humano que também são impostas pela sociedade.

Essa obra também fala dos outros tipos de exílio, de quanto se esta em um lugar em

que não se sente bem. O exílio não é somente está fora de um país, o exílio é estar

fora de si mesmo. O teatro é uma arte do exílio é uma arte exilada O teatro é um

jogo entre pessoas, mas não é compatível com o mundo em que vivemos. No teatro

produzimos imagens (VARGAS, 2016, p. 15).

De algumas situações de banimentos que o autor aborda decidimos analisar uma que

se torna destaque dentro da peça que é o isolamento obtido pela loucura. Na peça Nuestra

Señora de Las Nubens esse tema permeia dois personagens que colaboram com o enredo da

narrativa: um é o personagem de Memé, neto da Vó Josefa, que é dito na história como o

doido da cidade e o outro é Juan que está, há mais de um ano, internado em um manicômio e

recebe visitas e de sua esposa Soledad. No entanto, pretendemos nessa parte do capítulo

referendar o personagem do Memé que tem o maior destaque dentro das construções da peça.

Para podemos ponderar de um melhor ângulo as nuances e implicações que surgem

através do tema loucura, utilizamos as perspectivas de Michel Foucault para o tema, em seu

livro ‘História da Loucura’. De acordo com o filósofo Foucault as explanações que permeiam

a loucura foram se construindo durante o tempo e em sua obra podemos observar as questões

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sobre o universo da loucura na era clássica, com outra perspectiva na era moderna. Ele vai

sempre trazer à tona o embate dessas realidades distintas. Foucault aponta, através de seus

estudos, que até o século XVIII não existia essa classificação de doença mental, pois a loucura

era apenas uma doença como qualquer outra, sendo classificada da mesma forma.

A medicina, na época, apresentava a loucura de forma classificatória, ou seja, ia se

orientando pelo modelo da história natural, em relação às plantas e aos animais,

estabelecendo, assim, semelhanças e diferenças entre as doenças, organizando-as e

classificando-as dentro de um quadro relacionado a classe, ordens e espécies. Dessa forma,

não havia, na época clássica, uma medicina psiquiátrica para acompanhar e auxiliar as

questões da loucura e assim, o louco não tinha respaldo algum para um tratamento de

acompanhamento e melhora.

Podemos observar, também, a partir dos estudos de Foucault, que o louco, nessa época,

era analisado socialmente e não, pela medicina comum, pois quem definia se aquela pessoa

era considerada louca, ou não, era a sociedade ou a própria família. Desse modo, entramos em

outra questão que Foucault analisa em seu livro que é a razão num confronto com a

‘desrazão’. O louco da época clássica era dito e jugado por essa razão clássica, não se falando

de uma razão científica, médica, mas de uma razão moral, social, que classifica como

‘desrazão’, ou ausência de razão. Era o construto do que era tido como aceito para conviver

moralmente em uma sociedade da época. O esvaziado dessa razão, levava, assim, à exclusão

desses indivíduos, acreditando que eles não partilham essa construção racional social.

O surgimento da reforma psiquiátrica teve como objetivo criar um novo estatuto social

para o doente mental, que lhe garantisse cidadania, respeito, direitos a sua individualidade,

mas mesmo assim, o louco nunca deixou de ser exilado durante todos esses séculos, pois o

que não mudou foi a maneira como o louco é tratado, pois ainda se guarda este ranço de medo

do louco, que ainda é um estigmatizado pela loucura, ainda sendo excluído com internações

arbitrárias. Ainda há o louco como ilha exilado do convívio familiar e social em razão do

medo ainda arraigado à maioria da população. Talvez por não conseguir lidar com o

estranhamento que o diferente provoca, medo do inexplicável e, porquê não?, medo da

genialidade e vanguardismos trazido pela figurado desses loucos, “a loucura passa a ser tema

principal da literatura, do teatro, enfim, das artes como um todo. Neste espaço, o louco não é

visto mais como uma figura boba, e sim como o detentor da verdade” (FOUCAULT, 1972, p.

14).

A literatura é um dos movimentos artísticos que sempre retratou e deu voz à figura do

louco; o mundo literário lhes deu liberdade para se expressarem como são, não os silenciou. A

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insanidade foi protagonista de romances, peças teatrais, poemas e ensaios, o louco é um

personagem muito interessante para a literatura, pois ele inspira a liberdade de criação, não se

prende a regras, não tem limites pré-estabelecidos. O louco pode ser a figura que, dentro da

trama, fala verdades que muitas vezes no decorrer da história não são pronunciadas, podendo

surgir com uma visão futurista ou profética sobre algum fato ou acontecimento, como o

personagem do sábio que é isolado e desacreditado como demente. Dessa maneira, podendo

criar personagens mais complexos e multifacetados, o louco foi se tornando um elemento de

destaque em vários contextos da produção literária mundial.

Apontaremos alguns casos de obras que abordaram a temática da loucura.

Primeiramente, um bom exemplo é Miguel de Cervantes, o cânone da literatura ocidental com

a obra ‘Dom Quixote’, cujo personagem é inspirado na leitura desregrada de sua vasta coleção

de romances de cavalaria e resolveu viver as histórias lidas, que acredita serem reais até que,

após um longo período de existência, de peripécias e devaneios, é trazido de volta para casa,

para a realidade material.

Outro autor do cânone ocidental que também merece destaque pela sua dramaturgia

fortemente pautada na insanidade humana é Willian Shakespeare. Seu teatro, que trabalhou de

maneira impar a complexidade humana com sua estética e genialidade, influenciou várias

gerações de dramaturgos futuros e apresenta, em vários de suas obras, um pilar na loucura.

Dando destaque a alguma dessas peças, podemos citar, por exemplo, Rei Lear em que o rei

enlouquece depois de ser traído por uma de suas três filhas, às quais ele deixa de herança seu

reino. Em Macbeth a loucura vem à tona na figura de Lady Macbeth, que induz o marido a

matar várias pessoas para conseguir seus objetivos de ser rainha, terminando sufocada pela

culpa e enlouquecendo. Outro bom exemplo é a obra Hamlet, em que Shakespeare traça uma

linha tênue entre a loucura real e a loucura fingida, expondo as multifaces humanas em um

jogo de traição, vingança, corrupção e moralidade.

Expondo alguns exemplos da literatura brasileira, podemos citar Machado de Assis em

‘O Alienista’, que nos apresenta o Simão de Bacamarte um médico que escolhe trilhar o

caminho da psicologia e abre um manicômio chamado casa verde. É uma crítica bastante

valida ao sistema manicomial existente. Essa obra se vale do pensar a condição do louco e as

formas existentes de classificá-lo. Esse trecho exprime bem os questionamentos trazidos pelo

médico “nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos juízo são

reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista? ” (ASSIS, 1994, p.

35). Em outro momento, a Doida de Carlos Drummond de Andrade traz à tona o estereótipo

da doida, a comunidade a rotula assim, os meninos jogam pedra em sua casa, a doida é dita

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como o castigo para as crianças. E nessa realidade ninguém a conhecia, nem sabia se ela era

realmente louca.

Outros autores não só escreveram sobre o estigma da loucura, mas viveram a

experiência do exílio da loucura e isolamentos em manicômios. Passaram pela vivência da

loucura na pele e isso modificou toda a percepção que estes autores teriam do mundo,

deixando demarcado em suas obras os traumas vivenciados nessa época.

Primeiramente, falarei de um ator, poeta, escritor, dramaturgo e diretor teatral que foi

de suma importância para a produção teatral em todo mundo, Antonie Artaurd, um dos mais

marcantes e inovadores criadores da arte do teatro, que foi chamado de maldito,

marginalizado e incompreendido, em sua época, pelos que acreditavam que sua produção não

passava de delírio; sendo assim, só obteve reconhecimento depois de morto. A época de suas

internações passa a ser a época mais difícil para ele, passando nove anos entre entradas e

saídas em vários hospícios, como explícita o trecho a seguir:

Começa a parte mais dolorosa e terrível da sua trajetória, seu verdadeiro calvário.

Ele, que sempre, abominara os psiquiatras e os hospícios, passa os nove anos

seguintes internado, de hospício em hospício: Sainte-Anne, Quatre-Mares, Ville-

Évrard, Chézal-Bénoit, Rodez - durante a guerra, na França ocupada, em condições

particularmente difíceis. Por um período, Artaud desaparece nessas clínicas não se

sabendo exatamente pelo que passou e o quanto sofreu. É certo que passou fome e

esteve em risco de vida em Ville-Évrard, hospício para o confinamento de loucos

tidos, como irrecuperáveis. A partir de 1943, é transferido para Rodez, graças à

intervenção do poeta Robert Desnos (que, dois anos depois, morreria de tifo num

campo de concentração) e de outros intelectuais. Artaud sai de Ville-Évrard

macilento e envelhecido. Em Rodez, é melhor tratado - seu psiquiatra, Dr. Gaston

Ferdière, o estimula a escrever e a desenhar; no entanto, além de tratá-lo de maneira

paternalista, aplica-lhe eletrochoques (ESCRITOS, 2003, p. 6).

Outro autor que também passou por esses traumas do tempo em que ficou internado em

manicômios foi o escritor Lima Barreto. Em sua obra ‘Diário do hospício’ ele retrata todas as

particularidades e experiências sofridas a partir de suas percepções como interno. É um relato

muito forte e emocionante, escritos que trazem à luz a realidade sofrida por esses internos

dentro dos muros do hospício. A seguir apresentamos um trecho relatado pelo autor:

Voltei para o pátio. Que coisa, meu Deus! Estava ali que nem um peru, no meio de

muitos outros, pastoreado por um bom português, que tinha um ar rude, mas doce e

compassivo, de camponês transmontano. Ele já me conhecia da outra vez. Chamava-

me você e me deu cigarros. Da outra vez, fui para casa-forte e ele me fez baldear a

varanda, lavar o banheiro, onde me deu um excelente banho de ducha de chicote.

Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor (BARRETO,

2010, p. 45).

Seguindo essa realidade de internações surge outro autor que também foi

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incompreendido em sua época, assim como Artourd, fez um teatro do absurdo, um teatro

inovador e de experimentações. Dessa forma, foi desacreditado e perseguido por causa do

estigma da loucura. O dramaturgo e poeta Qorpo Santo, nascido no Rio Grande do Sul em

1829, passou sua vida lecionando e escrevendo em jornais da sua cidade em Alegrete. A partir

do momento em que ele começou a demostrar suas primeiras crises de transtorno psíquico é

interditado pela família. Seus escritos e peças passam uma significativa mudança aos que os

seus contemporâneos chamaram de obra de um louco. Ele passou a ser acusado de

‘monomania’ e, a partir desse momento, se inicia o ciclo de entradas e saídas em manicômios.

Mudou seu nome durante uma crise mística, iniciando um período de castidade. Sua

produção, atualmente, é reconhecida e respeitada nacionalmente, sendo estudada e encenada.

Segue, a seguir, o monólogo que dá início a uma das peças de sua autoria, ‘As Relações

Naturais’.

PRIMEI RO ATO Cena 1.

IMPERTINENTE: Já estava admirado; e consultando a mim mesmo, já me parecia

grande felicidade para esta grande freguesia o não dobrarem os sinos... E para eu

mesmo não ouvir os tristes sons do fúnebre bronze! Estava querendo sair a passeio;

fazer uma visita; e já que a minha ingrata e nojenta imaginação tirou-se um jantar,

pretendia ao menos conversar com quem m'o havia oferecido. Entretanto não sei se

o farei! Não sei porém o que inspirou continuar no mais improfícuo trabalho! Vou

levantar-me; continuá-lo e talvez escrever em um morto: talvez nesse por quem

agora os ecos que inspiram pranto e dor despertam nos corações dos que os ouvem,

a oração pela alma desse cujos dias Deus pôs com a sua Onipotente voz ou vontade!

E será esta a comédia em 4 atos, a que denominarei — ‘As relações naturais’

(SANTO, 2001, p.70).

A partir das explanações anteriores, podemos pensar a condição do louco durante um

dado período histórico e percebemos que houve mudanças significativas, mas o louco ainda

carrega o estigma nas relações sociais. A sociedade ainda o isola por não o compreender e o

toma como um verdadeiro perigo quando, muitas vezes, não o é. Há o exílio da loucura ao

qual o insano é condicionado e podemos observar várias nuances desse exílio, não só o exílio

corporal, mas também um exílio do pensamento, da produção artística, da fala, do toque, o

torna o homem uma ilha inabitada e desacreditada. O personagem que será analisado neste

trecho do capítulo pertence ao universo ficcional da peça elaborada por Arístides Vargas, que

também traz essa personificação da figura do louco para dentro do teatro.

O personagem do Memé, que surge como um elo para muitos fatos existentes no

enredo da peça, se apresenta como uma figura bastante importante na trama. Ele é tratado

como o bobo da cidade, chamado de demente e bastardo durante a peça, surgindo a partir das

memórias trazidas por Oscar e Bruna em vários flashblacks de acontecimentos de seu antigo

país. Já o personagem de Juan, que é visitado pela esposa Soledad, também traz

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caracterizações do isolamento e do sofrimento de maneira mais sofrida e poética. Os dois

personagens compõem essa ideia do louco, mas são caracterizados de maneiras bem

diferentes. O personagem de Juan surge através de um dos flashblack das histórias

relembradas por Oscar e Bruna, enquanto Memé é uma figura mais recorrente dentro da

trama, mesmo sendo em trechos de memórias.

A estrutura narrativa da peça se encontra dividida em treze momentos cênicos como já

foi referido anteriormente e dentro dessa organização, quatro dessas cenas representam os

encontros de Oscar e Bruna, sendo que as nove restantes são as reminiscências dos dois.

Dando início a essas lembranças, que ocorrem como flashblack dentro peça, Bruna retoma

como aconteceu o surgimento do vilarejo de Nuestra Señora de las Nubes. Ela revela o modo,

extravagante e incestuoso, como teria acontecido a fundação do nubiloso país.

O surgimento de uma nova civilização, bastarda e andina se deu a partir de Irma e seu

pai Don Tello. Este vivia oferecendo a mão da filha para que ela não ficasse ‘solteirona’,

como ele afirmava, mas por não haver mais nenhum homem no vilarejo com quem ela

pudesse casar, ela acaba decidindo casar com o único que queria vê-la casada, seu pai Don

Tello, povoando, assim, o vilarejo de Nuestra Señora de las Nubes.

Dessa maneira, surge o vilarejo de Nuestra Señora de las Nubes, de uma relação

incestuosa entre pai e filha. E não sendo diferente, Memé a figura do louco do vilarejo

também é fruto dessa relação e ele é sempre lembrado sobre isso quando o chamam de

bastardo. Ele vai surgir na história na terceira cena, a partir de outras reminiscências de Bruna

como o neto de Vovó Josefa, uma velhinha que sabe das muitas histórias que aconteceram

desde a fundação de Nuestra Señora de las Nubes.

O título dado para esta cena contendo a rubrica é: ‘Bruna recorda como a vovó Josefa

narrava para Memé o tonto do vilarejo, sua árvore genealógica’. Memé só emite sons

incompressíveis para que a vó siga sua narração (VARGAS, 2003, p.283).

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Imagem 4 – Festival O Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V (26/09/2017) – Grupo Malayerba. Cena de Memé e da

Vovó Josefa lhe contando sobre a fundação de Nuestra Señora de las Nubes. Foto: Taline Freitas

Pelo relato da Vó Josefa é possível descobrir as várias gerações de famílias

empenhadas na fundação e expansão de Nuestra Señora de las Nubes. Enquanto a velha

matrona tenta explicar as raízes da árvore genealógica a Memé, ficamos conhecendo as

diferentes famílias envolvidas em eternos conflitos de consanguinidade, em eternos

confrontos de amor e de ódio de classes, como já foi referido anteriormente.

O provável espaço de representação onde transcorre a ação da cena é o quintal da casa

de Vovó Josefa, é ali onde o aparvalhado Memé encontra-se entretido com tirar as cãs da

velha vovó. A vovó, além de falar sobre a àrvore genealógica do Memé, também cita os

conflitos étnicos e os seus inúmeros problemas sociais e políticos recorrentes da péssima

administração dessa ancestralidade. Esse trecho remonta à América Latina e sua variação

populacional como já foi citado anteriormente.

Mais adiante, nas cenas seguintes, Bruna relembra como o senhor governador de

Nuestra Señora de las Nubes conta para a primeira dama sobre a catástrofe social, política e

moral provocada pelo demente Memé, que teria passado a acreditar nas ‘histórias fantásticas’

de Vovó Josefa. O governador e sua esposa, que não possuem nome nem sobrenome próprios,

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conversam enquanto dançam uma tradicional valsa, criando um contraponto entre

divertimento, dúvida e indignação.

O casal é claramente o reflexo das famílias dominantes do vilarejo que representam

toda uma casta social elitista. O diálogo inicia-se com a sincera indignação do senhor

governador perante o papelão que o pasmo Memé lhe fez passar no seu escritório de trabalho,

pois o bobo da cidade estaria reivindicando a paternidade, influenciado pelo relato da Vovó

Josefa.

Além disso, Memé passa a reivindicar questões do povo, o que ficou evidente quando

o governador, depois de admitir ser o pai da pátria, mas não, do doido Memé, passando a falar

sobre a reivindicação judicial feita pelos índios Váscones, em relação à propriedade da terra.

Tudo “porque o idiota do Memé chegou com a fofoca de que a terra lhes pertence” (Ibidem,

p.286). Nada menos que o ‘demente louco do Memé’ confirma o governador.

Podemos observar que o louco traz o questionamento e a discursão por dois vieses.

Primeiramente, ofendendo às famílias honradas e segundo, elevando os populares, aqui

entendidos como os índios e os mestiços pobres. A revolução social em Nuestra Señora de las

Nubes é, portanto, obra de um cidadão desqualificado, “[...] de um pateta, um louco, um bocó

de fivela” (Ibidem, p.287). Essa forma pejorativa serve apenas para desqualificar a figura do

louco como detentor de algum conhecimento.

O que mais surpreende o governador sem nome próprio, é que Memé estaria se

transformando em um Messias, um temido líder social seguido pela população. Outro aspecto

das terríveis ideias subversivas de Memé está no fato de conseguir promover a discórdia no

seio das famílias honradas, semeando o desentendimento na própria casa do governador ao

insinuar que as autoridades da região seriam irmãos. Segue o trecho da conversa entre o

governador e sua esposa.

Governador: O que eles querem? Uma vergonha!

Esposa: corvos e eles vão arrancar seus olhos.

Governador: Mas quem é Memé? para que este povo tenha criado essa desordem,

um simplório que não sabe nem onde está.

Esposa: Um lunático sem esperança, como você costuma dizer.

Governador: Imagine que as pessoas seguem o tolo como um Messias.

Esposa: Inimaginável.

Governador: Imagine que o idiota disse que sou seu pai.

Esposa: Você é pai dele?

Governador: Pai dele? Claro que não!, você é minha esposa e eu nunca teria um

filho sem o consentimento da minha esposa.

Esposa: Mas eu não tive filhos ...

Governador: Nem eu.

Esposa: De quem Memé é filho?

Governador: Eu não sei; Também disse que você é minha irmã.

Esposa: corvos.

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Governador: Você é minha irmã?

Esposa: Claro que não!

Governador: Claro!

Esposa: É um idiota esse Memé, eu sou sua irmã! Quem pensaria?

Governador: É a porra da idade, ter pensamentos podres. E se fôssemos irmãos, o

quê?

Esposa: Nós não somos irmãos.

Governador: E se nós, o quê? (VARGAS, 2016, p.76).

No trecho que segue, podemos observar, mais uma vez, a referência ao nosso passado

colonial, quando o governador se refere à questão das terras, quando os índios Vásconez

reivindicam a terra que pertencia a eles. O autor utiliza o governador para realizar essa alusão

ao nosso passado colonial em que os europeus não só exploraram, mas exterminaram os

índios do continente. E a história se repete quando as terras permanecem nas mãos das

oligarquias da agricultura ou políticas que continuam enganando os índios. A seguir vemos a

figura do governador e da sua esposa, núcleo que representa uma elite ignorante dentro da

peça.

Imagem 5 – Festival O Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V (26/09/2017) – Grupo Malayerba. Cena do Governador

e sua Esposa. Foto: Taline Freitas

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Vemos que eles compõem os personagens em cena utilizando perucas loiras e roupas

mais formais, retomando, assim, uma elite branca que segue padrões eurocêntricos, mas são

puramente burros e ignorantes. As terras que são mantidas nas mãos de grandes oligarquias é

algo presente em muitos países latinos. Além de levar a refletir sobre a questão do roubo das

terras indígenas a partir dos exploradores coloniais, esse trecho também conduz à reflexão

sobre a questão da reforma agrária, problema este bastante presente, inclusive no brasil.

Governador: Esses índios dos Vásconez arranjaram confusão com os Molina. E

tudo por quê? Porque o idiota do Memê veio com o boato de que a terra pertence a

eles. Pra que querem a terra? Suficiente con la que tiene las orejas*. O que querem

os Vásconez? Que as famílias honoráveis deem de presente o que ganharam com

esforço e sacrifício? Não, por favor, isso é o cúmulo!

Esposa: Sempre foram uns mortos de fome, e agora querem sentar\se à nossa mesa (VARGAS, 2016, p.75).

Podemos, portanto, perceber que, dentro da peça do Arístides Vargas, o louco, o

parvo, o imprestável é quem vai trazer a revolução para o povo e quem vai liderar as

transformações. Memé é a figura que liga os acontecimentos da cidade, que não deixa as

pessoas esquecerem o que são. É o bobo, o demente desacreditado, que sabe e conhece tudo,

que consegue enxergar os que os outros não veem ou que não têm coragem de falar. Por isso,

ele é tido como um messias, como um redentor, um salvador do povo. Na peça, o louco entra

para desconstruir questões impostas, inclusive de efeito moral.

Ele não surge na peça passando por uma transformação modificadora, passando a ser

messias depois que recebe um castigo ou aprende uma lição; não, ele continua da mesma

forma, não há grandes transformações. Ele é apenas inocente de uma maneira quase infantil,

mas que se posiciona quanto ao que acredita ser certo e errado. Percebemos, também, que a

toda hora ele é lembrado por sua condição de bastardo, bobão e demente, sempre lembrando

criando, assim, uma forma de desacreditar nos seus conhecimentos, para que sua fala não

tenha credibilidade.

Desse modo, podemos inferir sobre o singular papel da literatura como fonte de

transformação e desconstrução de estereótipos postos e reforçados socialmente. A simples

ação de colocar o louco como figura principal, que elucida e traz à tona questões sociais,

contribui para outros olhares sobre a loucura e suas nuances. E assim, dessa forma, melhorar o

entendimento de como os discursos são produzidos, como são revestidos de verdade e poder,

e que estes discursos sustentam o aparente status natural de convicções e opiniões

inalteráveis.

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Esse é o ponto alto da obra, uma vez que Arístides Vargas não isola o louco em um

confinamento, mas, ao contrário, lhe oferece destaque e o transforma em messias de seu povo.

Em síntese, o dramaturgo se encaixa em uma perspectiva de teatro necessário, pois se

apresenta como um valoroso representante do teatro latinoamericano, imerso plenamente na

realidade cultural que o circunda, empenhado em experimentar novas formas dramatúrgicas,

assim como também voltado a levar o público a pensar todas essas questões sociais que as

ditaduras deixaram de legado.

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AQUÍ SE RESPIRA LUCHA

A desmemória/2

O medo seca a boca, molha as mãos

e mutila. O medo de saber nos

condena à ignorância; o medo de

fazer nos reduz à impotência. A

ditadura militar, medo de escutar,

medo de dizer, nos converteu em

surdos e mudos. Agora a

democracia, que tem medo de

recordar, nos adoece de amnésia;

mas não se necessita ter Sigmund

Freud para saber que não existe o

tapete que possa ocultar a sujeira

da memória.

Eduardo Galeano

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AQUÍ SE RESPIRA LUCHA

Podemos afirmar que o trabalho proposto, além de me direcionar a uma maior

familiarização com os caminhos da pesquisa, a partir de todo o trajeto percorrido para a

conclusão desse trabalho, me trouxe, também, experiências empíricas sobre as vivências

teatrais pelas quais pude observar, na prática, através das experiências que me propus

participar, como as oficinas, voluntariado e, por fim, a participação trabalhando na

organização da legenda do espetáculo do Malayerba no festival do organizado pelo Clowns de

Shakespeare como já havia referido anteriormente.

Essas vivências me conduziram a outra perspectiva sobre o teatro, tendo agora, não o

olhar de quem senta na plateia e espera o espetáculo, mas o olhar de quem sabe como a magia

dos bastidores acontece. Desse modo, esse novo olhar só veio adicionar novas nuances ao

trabalho, sendo que, após essas experiências, consigo perceber o teatro por completo. Percebo,

agora, que cada elemento no teatro é sumariamente importante e nada, naquele espaço, é

decorativo. Uma prerrogativa é ler sobre o tema e outra perspectiva bem diferente é ver como

as ações acontecem.

A partir do momento em que pude ter contato com as duas peças: Nuestra Senhora de

las Nuvens, dos Clowns de Shakespeare e Nuestra Señora de las Nubes, do Malayerba, pude

observar o universo que as une, mas também o universo que as separa e acredito que este é o

verdadeiro teatro. Pude observar a realidade das oficinas, dos ensaios e como operadora de

legenda como se constroem as marcações de palco, como a iluminação é primordial para

enfatizar cada cena e seus diálogos. Passei a entender que a música certa pode dar uma

qualidade inimaginável a uma cena e como o ator pode fazer milagres com poucos elementos

em cenas, se utilizá-los da maneira correta.

O texto literário que foi analisado nessa pesquisa é um dos elementos desse teatro que

é totalmente multável. Pude observar essa construção de maneira empírica vendo espetáculos

totalmente diferentes, mas partindo do mesmo texto. E o mais importante é que todos esses

elementos precisam estar em completo alinhamento para que esse teatro funcione de maneira

plena.

A experiência que consegui construir e conhecer pessoalmente, o grupo e o autor que

pesquiso há dois anos me trouxeram vivências e interesses futuros que não esperava que teria.

Dessa forma, os direcionamentos dessa pesquisa, mesmo com todas as dificuldades

encontradas, foram bastante significativos para os resultados que consegui vivenciar e obter.

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Outro aspecto que também se mostra bastante importante e está envolto na peça e,

consequentemente, ligado à pesquisa é a realidade do continente latinoamericano. As questões

sobre a América Latina, que foram apresentadas no trabalho partem de uma perspectiva da

época em que a obra foi elaborada. Desse modo, as construções que permeiam o continente já

se moldam por outra realidade, pois partem de um panorama com problemáticas que são

constantemente mutáveis. A partir dessas premissas nos predispomos, nesta conclusão, a

adicionar algumas prerrogativas relacionadas ao continente.

A América Latina, do passado colonial e da herança escravista em seu percurso até

uma situação democrática, percorreu um trajeto complicado. As lutas políticas no continente

latino, em busca da independência, fazem parte de uma constante. As oligarquias latinas,

presentes no continente, sempre buscaram cercear direitos adquiridos dos trabalhadores.

O sociólogo José Maurício Domingues, em seu livro ‘O Brasil Entre o Presente e o

Futuro’, expõe que houve muitas modificações pelo mundo a partir dos anos de 1980 e 1990,

havendo uma espécie de avanço da modernidade em que havia uma fluidez globalmente, mas

nesse panorama se observava uma queda dos governos de esquerda. Juntaram-se a essas questões,

implementações fortemente ofensivas de perspectivas neoliberalismo, diretamente ligadas ao

capital financeiro.

O autor estudado nesta pesquisa observa que, na América Latina, o cenário caminhou em

um sentido oposto, havendo uma reviravolta de governo de esquerda. Tendo destaque nessa

ascensão o Partido dos Trabalhadores (PT), no Brasil, o Movimento al Socialismo (MAS) na

Bolívia, o Kirchnerismo na Argentina, o Correa no Equador e, no Uruguai, a Frente Ampla, que

trouxeram uma série de avanços relevantes, mas de certa forma muito limitados na América

Latina. No entanto, mostravam-se significativos perante o restante do mundo, onde havia avanço

acentuado da direita, particularmente após o declínio da União Soviética.

No momento atual molda-se uma situação bastante complicada, pois esses projetos da

esquerda enfrentam uma feroz resistência dos movimentos conservadores, tendo assim uma grande

dificuldade para avançar além do ponto importante ao qual chegamos. Programas de

enfrentamento direto da pobreza e de questão social vieram para o centro da discussão.

No entanto, Domingues pontua que, por outro lado, a posição dos nossos países na divisão

internacional do trabalho ficou, de certa forma, congelada, sendo que mais que uma superação do

neoliberalismo, o que temos são certos elementos que moldam uma face mais socialmente

orientada.

Desse modo, podemos pontuar concordando com as prerrogativas do autor estudado, que a

esquerda sofreu uma derrota enorme no final do século XX, mas particularmente na América

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Latina os avanços são inegáveis. Atualmente, chegou-se a certo impasse: a esquerda pode ser

totalmente derrotada, se não souber se renovar, mas também pode se reinventar e avançar

novamente.

A partir do pensamento do pensamento de Boaventura de Souza Santos, podemos pensar

as premissas que envolvem o Brasil atual. Em seu livro intitulado ‘A difícil democracia’ o autor

expõe que, no sistema capitalista, a democracia é apenas tolerada e tem seu conceito

configurado apenas como uma representação para propiciar uma convivência. Explica ainda

que o termo se tornou popular entre os meados no final do século XIX e início do XX, diante

do crescimento de regimes autoritários como o Fascismo e o Nazismo.

Desse modo, o capitalismo fez vista grossa a sua existência por se tratar de um regime

que apoia o Estado e a regulação de mercados fortes e isso era de seu interesse. Após a 2ª

Guerra Mundial, a democracia passou a ser utilizada como arma ideológica na guerra fria.

Frente aos desafios do pós-guerra, a democracia passou a ser vista como asseguradora de

direitos fundamentais. No entanto, o autor citado deixa bem claro que essa configuração não é

aplicável em todos os contextos sociais. A democracia foi descartada nos países

semiperiféricos e periféricos como sistema político, apresentando-se, muitas vezes, só como

sistema simbólico ideal. É exatamente nestes países, que a democracia tem menos espaço no

decorrer da história. Na América Latina, a ascensão dos governos progressistas populares

sugeriu experiências mesclando democracia representativa/liberal e democracia

participativa/popular, mostrando claramente esse fenômeno.

Podemos perceber que agentes do capitalismo têm adentrado à política e se colocado,

os próprios, como gestores do Estado para os seus interesses. Esse processo, conforme pontua

Boaventura, contém práticas restritivas da democracia, desmonte e desorganização do Estado

criando sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas. No Brasil, por

exemplo, vemos um crescimento dessa prerrogativa, visto que as últimas eleições municipais

foram as que mais tiveram milionários e empresários eleitos como prefeitos.

O autor citado expõe o golpe sofrido pelo Brasil como exemplo da quebra desse

processo democrático. No plano federal, um golpe jurídico-civil-parlamentar instaurou-se

apostando e aprofundando tanto a ‘crise de representação’ quanto a ‘crise de participação’

aplicando, com isso, as reformas neoliberais que, em seu pacote de ações, têm o maior foco

firmado em retirar direitos adquiridos. O sociólogo referido entende os movimentos sociais e

ativistas do campo da esquerda como atores e atrizes capazes de repensar e reformular uma

democracia mais participativa e popular. E é nos países do Sul Global que o sociólogo

percebe a potência para esta refundação democrática, respeitando, no entanto, a pluralidade e

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propondo radicalidade nos instrumentos de participação. Esses precisam ser ampliados para

muitos canais de decisão, a partir de todas as esferas e instituições sociais.

Partindo dessas premissas, compartilhamos da ideia de pesquisas, estudos e trabalhos

que possam corroborar as questões sociais, para reforçar o âmbito democrático e suscitar

mudanças a nosso redor. Dessa forma, nossa pesquisa se faz presente e necessária no intuito

de fomentar discursões e elucidar questões do nosso passado recente que, com o retorno de

movimentos reacionários fascistas, correm o risco de um ressurgimento.

Desse modo, abordar as perspectivas da memória e do exílio especialmente no Brasil,

se pauta no objetivo de discutimos os temas presentes em nosso contexto social. Não

podemos esquecer esses fatos no Brasil, principalmente quando temos uma comissão da

verdade sobre a ditadura falha que não pune os criminosos e torturados, mas apenas registra

os casos.

O Brasil é o único país da América Latina que não puniu seus criminosos e

torturadores da ditadura. No Brasil temos deputados dentro do senado referenciando

torturador em plena sessão de votação, e em TV aberta em cadeia nacional e nada foi

efetivamente feito. Precisamos da memória para trazer à tona e discutir todos esses fatos,

quando a sociedade não tem referência do que ocorreu no passado não tendo como ter noção

da gravidade do que ainda pode vir a ocorrer. Acredito que discutir essas questões é de suma

importância no Brasil contemporâneo. Sendo assim, Arístides Vargas e o Malayerba não só

fazem um trabalho magnifico, mas também necessário, por não se poder esquecer o nosso

passado próximo nem as pessoas que estiveram em seus estados de banimento e de tortura.

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APÊNDICE

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APÊNDICE 1: ENTREVISTAS REALIZADAS

1.1 Entrevista realizada com Fernando Yamamoto, diretor dos Clowns de Shakespeare,

por e-mail em 06/11/2017.

1- Tive acesso à obra do Arístides Vargas através do trabalho realizado pelos Clowns, inclusive,

esta dissertação é o resultado desse contato. Fale-me um pouco de quando e como ocorreu seu

primeiro contato com a obra de Arístides Vargas e por que a escolha de Nuestra Señora de las

Nubes para ser adaptada?

É uma longa história. Em 2003 fui, junto com alguns dos integrantes dos Clowns, ao FIT -

Festival Internacional de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, na época um dos principais

festivais do país. Fomos para assistir espetáculos, ter mais contato com gente de teatro, etc. Na

programação do festival estava o Malayerba com Nuestra Señora, e fomos assistir. Lembro-me de

como o espetáculo nos impactou, num teatro enorme (teatro do SESC de Rio Preto), palco enorme, e

aqueles dois colocando o público no bolso. Foi uma experiência incrível. Ao final, fomos ao camarim

conversar com eles, como sempre gostávamos de fazer, e eles nos receberam com muito carinho. E o

contato com eles ficou por aí. Seis anos depois (2009) conhecemos o Diogo Spinelli, na época

estagiário do SESI Vila Leopoldina, em São Paulo, que nos acompanhava na temporada que

estávamos fazendo nesse teatro da obra O Capitão e a Sereia. Nessa convivência diária e intensa de

dois meses, ficamos muito amigos – hoje o Diogo é integrante dos Clowns – e, quando surgiu o

assunto Malayerba, ele disse que tinha o texto do Nuestra Señora. Ficamos muito empolgados, alguns

de nós fizemos cópias, e a minha ficou engavetada junto com vários outros textos que tenho. Em 2012

(nove anos depois do primeiro encontro) fomos ao festival de Cádiz, na Espanha, com Sua Incelença,

Ricardo III, e o Malayerba estava lá! Eles tinham se apresentado na véspera da nossa chegada, então

não pudemos assisti-los. Apenas os vi no café da manhã do hotel, estupidamente fiquei com muita

vergonha de falar com eles naquele momento, e depois descobri que naquele mesmo dia eles partiram

de volta ao Equador. Em 2014, o grupo decidiu que iria montar uma trilogia sobre a América Latina.

Eu estava decidido a dirigir um desses três trabalhos e, como forma de inspiração, juntei toda a

dramaturgia latinoamericana que tenho na minha biblioteca para ler. Em geral, à exceção de

Shakespeare, dificilmente um texto pronto me entusiasma a ponto de ter vontade de montá-lo. Seria

realmente uma pesquisa para alimentar meu imaginário. Depois de ler meia dúzia de textos, cheguei

àquela cópia escondida há cinco anos do Nuestra Señora. Devorei o texto, do qual me lembrava muito

pouco, e lembro vividamente o quão entusiasmado terminei a leitura. Pensei comigo que iria montar

aquele texto a qualquer custo. Era cerca de 23h, e fui até a Paula, minha esposa e atriz do grupo, que

estava na cama pronta para dormir, e pedi que ela lesse, porque precisava compartilhar aqui com

alguém. Ela – obviamente – disse que faria isso no dia seguinte. Para gastar aquela energia represada,

fui ao computador e traduzi o texto, em uma sentada, em poucas horas. Antes de dormir, já enviei para

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todos os meus companheiros de grupo e pedi que todos lessem. No dia seguinte, em reunião, expliquei

do que se tratava (ninguém tinha ainda lido), e a partir daí fomos nos envolvendo e sendo seduzidos

pela obra.

2- Do pouco que pude observar da relação entre os Clowns de Shakespeare e o

Malayerba, percebi que existe um vigoroso laço de amizade entre os grupos. Conte-me um pouco

como foi a troca de experiências entre os Clowns e o Malayerba na Casa Malayerba em Quito?

Seguindo um pouco essa história que eu vinha contando até aqui, ao decidir montar a obra

fizemos um contato com ele a respeito dos direitos autorais. O contato foi gentil, mas muito

profissional, pragmático. Ao longo do processo fomos mantendo alguma relação (ainda muito

distanciada), eu enviei algumas fotos, etc. Até que resolvemos inscrever, nessa incursão sobre o

universo latino-americano, um projeto para o edital Rumos Itaú Cultural 2013/2014 que previa uma

pesquisa sobre a formação em teatro na América Latina, através de visitas a escolas e também grupos

que tinham projetos pedagógicos estruturados, e um deles era, obviamente, o Malayerba. Dentre

milhares de projetos, fomos contemplados, e finalmente nos conhecemos devidamente (O Rafael tem

horas e horas de vídeo dessa residência). Pudemos conversar muito sobre ambos os grupos, sobre o

Nuestra Señora – tanto sobre o texto e todas as suas referências, quanto sobre a nossa montagem –,

apresentamos algumas cenas para os alunos da escola deles, o Arístides e a Charo trabalharam um

pouco algumas cenas, pudemos acompanhar o processo de montagem de Francisco de Cariamanga,

que eles estavam trabalhando naquele momento, enfim, foi um encontro de almas, uma relação muito

forte que se estabeleceu naquele momento, e a partir de então só se estreitou. Alguns meses depois

trouxemos a Charo para Natal, para o Tramas - Encontro Latinoamericano de Formações em Teatro,

uma ação que também estava dentro do projeto do Rumos Itaú Cultural. Nessa ocasião, apresentamos

o espetáculo pra Charo. Foi um momento inesquecível, ela ficou muito emocionada, fez uma fala ao

público (e a nós, claro) ao final da apresentação, que foi dedicada a ela. Depois ela me fez

possivelmente o maior elogio que já recebi em minha carreira. Foi algo assim: “Eu já apresentei o

Nuestra Señora centenas de vezes; já assisti dezenas de montagens, em geral muito chatas; conheço

todas essas falas, vivi várias dessas histórias antes delas serem escritas. Mas depois de ter assistido a

montagem de vocês, jamais vou fazê-la da mesma maneira de novo!”. No ano seguinte voltei a Quito

para fazer o Laboratório de Direção do Arístides, um ano depois foi a vez da Paula e da Camille irem

fazer o Laboratório geral que eles fazem sempre no início do ano, e esse ano pudemos nos encontrar

duas vezes. A primeira foi em Porto Alegre, no festival do ‘Ói Nois Aqui Traveiz’, um dos nossos

grandes parceiros e referência do teatro brasileiro, na qual o Arístides (junto com o Gérson e, uma vez

mais, a Charo) teve a oportunidade de ver a nossa montagem. Foi outro momento para guardar pra

sempre no coração. Muito mais contido e racional do que a explosão de ternura que é a Charo, o

Negro gostou muito do trabalho, elogiou a direção e a tradução, enfim, ficou muito satisfeito com o

que viu. Por fim, tivemos a alegria transbordante de recebê-los em nosso próprio festival, O Mundo

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Inteiro é um Palco, com o próprio Nuestra Señora e La Razón Blindada. Agora estamos pensando em

projeto conjuntos, que em algum momento serão realizados. O trânsito Natal-Quito é mais longo e

caro do que para a Europa, mas esses laços de fato são muito sólidos e afetivos. Seguramente é uma

parceria que se estenderá para sempre. Que privilégio poder ser parceiro e amigo dos seus ídolos, seus

mestres, suas referências! E felizmente o teatro tem nos dado isso!

3- Como se deu o processo de adaptação da peça Nuestra Señora de las Nubes? Fale-me um

pouco dos objetivos iniciais da época e se hoje o espetáculo está como vocês tencionavam.

A recomendação que o Arístides coloca na abertura do texto é muito reveladora e libertadora.

Ele pede que o texto seja usado como um ponto de partida pra criação. Isso é de uma generosidade

sem tamanho! Mais que isso, mostra também como se trata de um verdadeiro homem de teatro, um

mestre! Ele conhece cada atalho de uma sala de ensaio, sabe como o diretor, ator e todos os outros

partícipes do processo teatral podem contribuir para a dramaturgia a partir dos seus pontos de vista.

Apesar disso, começamos o processo extremamente respeitoso ao texto, em especial porque era uma

linguagem muito nova pra nós, um tipo de poética que, apesar de admirarmos, tínhamos muito pouca

experiência de trabalhar, de entender sua embocadura, de dar três dimensões a partir do que estava no

papel. Aos poucos, fomos encontrando os caminhos da montagem, tomando sempre como rumo os

três eixos que propus aos atores: o épico-narrativo, o surreal/fantástico e o que chamamos de lúdico. A

inserção dos depoimentos de exilados brasileiros também surgiu em algum lugar do processo por

entendermos que o texto ainda estava demasiado hispano-americano em suas referências, e que

ganharíamos em trazê-lo para mais perto. Parece-me que foi uma escolha acertada, pois sempre toca

muito as pessoas, sendo elogiada, inclusive, pelo próprio Arístides e a Charo. Hoje, passados três anos

da estreia, o espetáculo ganha outro significado. Naquele momento, pela ocasião dos cinquenta anos

do golpe civil e militar de 64, a nossa ideia era montar o trabalho para manter a chama dessa memória

acesa. No entanto, após do golpe de 2016 o espetáculo ganhou outra conotação, parece que tudo fez

sentido, os atores o fazem com maior propriedade, eu consigo ajustar as cenas com muito mais

clareza, e o público está em outro lugar de recepção nesse regime de exceção em que estamos imersos.

É um espetáculo, por diversos fatores, muito diferente daquele que estreou. Ainda acho que não

consegui encontrar o lugar de melhor potencialização da palavra Aristideana, mas seguramente a

minha compreensão sobre como abordar o texto está em outro lugar. Tenho muito desejo de montar

outras obras dele.

4- Por fim, uma pergunta que eu também realizei ao Arístides Vargas. Como você enxerga o

teatro produzido na América Latina hoje? Como você percebe o teatro produzido no Rio

Grande do Norte e pelos Clowns de Shakespeare na inserção desse contexto latino?

Esse é um tema muito caro a mim, porque nesses últimos anos estamos fortemente

mergulhados na América Latina, nessa busca por descobrir, entender e penetrar nesse universo.

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Acredito que esse movimento não seja só nosso, dos Clowns, mas vejo no teatro e outras linguagens

artísticas a mesma coisa acontecendo. Parece que depois de tanto tempo de uma aceitação inerte do

eurocentrismo que nos domina “desde sempre”, e por consequência nos fez virar as costas para o resto

do continente, estamos percebendo que atrás de nós existe um mundo de tantas belezas, potências e

saberes que até então desconhecíamos. O curioso disso é que, apesar da barreira da língua, esse

processo foi unilateral: pelos países que já tive a oportunidade de passar – Chile, Argentina, Uruguai,

Bolívia e Colômbia –, assim como das pessoas e grupos que conheci de outros países, a relação de

extrema admiração com a nossa cultura é uma constante. Como somos um país de dimensões

continentais, a circulação acaba ficando muito restrita aos limites domésticos, que são gigantescos. No

resto da América Latina, como diversos dos países são muito pequenos, eles buscam a circulação

internacional como única saída de deslocamento. Para piorar, há a diferença da língua – o que

dificulta, mas não impossibilita – e o exagerado custo de circulação para boa parte desses países.

Como exemplo, a minha esposa gastou cerca de 30% mais para ir ao Equador do que eu gastei para ir

ao Japão. Apesar de todas essas dificuldades, o desejo de estarmos mais próximos tem gerado muitas

trocas entre grupos brasileiros e dos outros países. Para mim, uma das grandes descobertas tem sido os

mestres do teatro latinoamericanos, como o próprio Arístides; Miguel Rubio, do Yuyachkani, do Peru;

Emilio Garcia Wehbi e Daniel Veronese, da Argentina; Santiago García (do La Candelaria) e Enrique

Buenaventura (do Teatro Experimental de Cali), da Colômbia, que são nomes que até alguns anos

atrás eu desconhecia completamente. Nós, dos Clowns, estamos envolvidos com afinco nesse projeto

de inserção latino-americana, seja montando espetáculos, desenvolvendo intercâmbios, circulando

com trabalhos, fazendo pesquisas ou outros projetos. O Laboratório da Cena, espaço formativo que

acontece todo mês de janeiro no Barracão Clowns é um perfeito exemplo disso. Esse próprio formato

de laboratórios é uma tradição dos países hispano americanos, em geral com características muito

semelhantes ao nosso: duas semanas de duração, no qual pessoas da cidade e de fora passam por uma

experiência formativa intensiva com o grupo, desenvolvendo um pequeno processo criativo. Em 2018

vamos para a terceira edição do Laboratório com esse formato, e já recebemos participantes da

Argentina e Colômbia. Para 2018 tivemos inscrições da Argentina, Colômbia, Equador e Bolívia. É

outra forma de começar a colocar Natal e os Clowns no mapa teatral do continente, fazendo com que

as pessoas venham para cá. Esse ano pudemos dirigir um espetáculo com o grupo uruguaio El Galpón,

o mais antigo da América Latina. Infelizmente, o desfecho desse projeto foi melancólico, por uma

série de problemas que passamos, em especial uma grave crise política interna que eles passam, e que

acabou respingando no nosso trabalho, fazendo com que ele fosse finalizado após quase um ano de

trabalho, sem poder estrear. Apesar disso, a possibilidade de passar um tempo maior nessa troca com

um grupo de outro país ampliou foi muito rico, nos fez entender ainda mais as potências e

contradições tão latentes no teatro latino-americano, que acontece tanto no Brasil como nos outros

países.

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1.2 Entrevista realizada com Arístides Vargas, no Barracão dos Clowns, em Natal –

Rio Grande do Norte, no dia 29 de setembro de 2017. Durante sua vinda a Natal, no

Festival O Mundo Inteiro é Um Palco – Ano V, organizado pelo grupo Clowns de

Shakespeare.

1- Falando um pouco do seu processo de escrita. Como ocorre esse processo? Como

ele se constitui? O que o inspira no processo criativo para a escrita?

Bom, eu creio que o ato de escrever é um ato muito solitário. Em meu caso, é um ato em

que... Onde todos os materiais que eu tenho em meu interior, que pode passam anos, anos

dentro e assim começam a pressionar e quando eu me ponho a escrever, não paro, escrevo,

escrevo, escrevo diariamente muitas horas e... Escrevo pela noite e durante o dia, e escrevo,

sentado, parado, caminhando, escrevo de muitas maneiras e... até o término a obra. Mas o ato

de escrever é um ato rápido, em meu caso, mas o ato de repensar os materiais é muito lento,

pois estou há muito tempo, muitos anos com um tema na cabeça, muitos e muitos, muitos

anos e de repente decido escrevê-los. Mas digo a resolução da escrita, no meu caso é

relativamente rápida, mas o lento é como vai crescendo em meu interior os materiais

colocados, que quero trabalhar.

2- Sei que a peça Nuestra Señora de las Nubes é o segundo exercício cênico da sua

trilogia do exílio e que existem mais duas obras que são: Flores arrancadas à

Nevoa e Onde o vento faz sonhos. Fale um pouco sobre elas e como essas peças

dialogam entre si nessa trilogia.

Sempre no exílio se vive como etapas. A primeira etapa é a etapa em a pessoa sempre

pensa que vai voltar e de alguma forma vai restituir o tempo perdido, que vai restituir o que

lhe tiraram. É nesse sentido que os personagens guardam a esperança de que os que estão

vivendo é transitório, que o que estão vivendo vai terminar e que vão viver e sobreviver no

retorno. E que irão voltar para o mesmo lugar, no mesmo lugar em sua a vida parou e que era

melhor. Isso é como uma primeira etapa do exílio. ‘Flores arrancadas à Nevoa’ são dois

personagens que ainda têm esperanças. Eles são um pouco mais otimistas que os personagens

de Nuestra Senhora de las Nubes. Isso, porque os personagens de Nuestra Senhora de las

Nubes não são tão otimistas. Estão, como em uma situação... estão fora... estão na situação de

estarem em um lugar estranho, escuro... e ai que sucedem essa segunda etapa e segundo elo

com a obra. Na terceira obra, fazendo um elo, os personagens não são otimistas, já não há

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possibilidade voltar. Eles já estão definitivamente fora de si mesmo. A única alternativa que

eles tinham, era a de ficar juntos uns aos outros, porque o círculo infernal do exílio se rompe

quando você descobre que tuas raízes são o nada. Quando você descobre que outra pessoa

pode ser teu país, que você não tem mais para onde voltar... alcançando isso, você rompe com

o exílio.

3- Você diz que o seu teatro é exilado e que o Malayerba é um grupo exilado, mas

não apenas de um exílio político, que pode ser um exílio artístico, poético,

cultural. Conte-me um pouco como isso se constitui e como você enxerga esses

vários tipos de exílio?

Tem que se entender que o exílio não é algo que se envolve diretamente com o mundo da

política, mas que o exílio é um estado existencial, é um estado da existência. Não lembro com

quem falava... que se falava que Emily Dickinson era uma exilada. Emile Dickinson é uma

poeta norte americana que se exilou em sua casa, ela não saia de sua casa. Isso é um exílio é...

não necessitou ser castigada politicamente e sinceramente já não se sentia integrada, ela se

sentia desintegrada. Isso é um sentimento quando a pessoa não se sente bem com as coisas ao

redor, com sua família, em alguns casos com os amigos, então você pensa em se desintegrar

quer disser, se distanciar e entra nesse território do exílio. E o universo do exílio é universo

pessoal seu, no qual nasce incessantemente possibilidade de agarrar, de se pegar a algo para

ferir esse sentimento, mas não necessita ser castigado por um país ou ser castigado por uma

ditadura, só necessita está descentrado ou descentrada. Só necessita que você não se sinta bem

no lugar em que está.

4- Vemos que em sua construção teatral a poesia se faz bastante presente. Que tipo

de literatura você costuma ler? Quais autores o inspiraram durante a sua

carreira?

Bom... há momentos na vida, houve um momento na vida em que eu lia muita poesia e

para minha era fundamental... e lia a todos os grandes poetas e... logo li muita novela, muito

conto. Nessa etapa de minha vida eu leio muito ensaio, mais que tudo, e decidi ler talvez

porque necessite entender mais a pessoas e os seres humanos, então leio muito ensaio, leio

muita filosofia, e... Mas nem sempre foi assim, tinha uma época em minha juventude que só

lia poesia avidamente, muita poesia, muita poesia, lia grandes poetas e me nutria deles.

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Evidentemente que quando escrevo isto está presente em mim, tanto a poesia quanto a

literatura que leio sim.

5- Vi uma entrevista sua certa vez em que você falava sobre a sua escrita. Nela você

discorria que sua escrita era uma espécie de tratamento para a cura da dor e do

sofrimento, que retomar essas memórias e conseguir falar e recontá-las

funcionava como um real tratamento. Fale-me um pouco sobre essa concepção.

Quando se escreve, se começa a falar, quando se começa a falar, começa a curar-se. As

vezes se escreve porque não se pode falar e quando escreve estais falando, estais vivendo

novamente o campo do trauma. Isso é muito bom, porque se pode ver o que está se passando

consigo, no que pensa por dentro, sua depressão, sua tristeza, inclusive sua alegria, pode vê-la

e expressa-la, está tudo impresso na escritura. É nesse sentido, um processo curativo, e nesse

sentido que começasse a se encontrar internamente. Dei-me conta disso, quando escrevi

Nuestra Señora de las Nubes, fundamentalmente eram coisas que haviam me acontecido a

muitos anos atrás. Tinham se passado vinte anos, vinte e cinco anos para que eu pudesse falar

e expressar sobre isso e fui pensando... e pensei que era um sistema também de cura para

poder escrever e poder falar. De uma maneira, sempre considerei mais claro lê-me, do que

escutar-me, eu não podia falar muitas coisas e... mas é.. Era intenso poder ler-me.