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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE. CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES. PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DA UFRN. UMA ANÁLISE DO TERMO XÉNOS EM O SOFISTA E O POLÍTICO Miguel Pereira Neto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE. CENTRO DE … · expondo o estrangeiro como um modo de falar estranho; numa fase de crítica aos sofistas que 2 Compreensão da Platão

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE.

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES.

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA DA UFRN.

    UMA ANLISE DO TERMO XNOS EM O SOFISTA E O POLTICO

    Miguel Pereira Neto

  • MIGUEL PEREIRA NETO

    UMA ANLISE DO TERMO XNOS EM O SOFISTA E O POLTICO

    Dissertao de mestrado apresentada ao Pro-grama de Ps Graduao em Filosofia da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte soba orientao do Prof. Dr. Markus Figueira daSilva.

    Novembro de 2012.

  • MIGUEL PEREIRA NETO

    UMA ANLISE DO TERMO XNOS EM O SOFISTA E O POLTICO

    Dissertao de mestrado apresentada ao Pro-grama de Ps Graduao em Filosofia da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte soba orientao do Prof. Dr. Markus Figueira daSilva.

    BANCA

    Presidente da banca Prof. Dr. Markus Figueira da Silva.

    Prof Dr. Srgio Luis Rizzo Dela Savia

    Prof Dr. Maria das Graas de Moraes Augusto

    Prof. Dr. Jos Gabriel Trindade Santos (suplente)

    Novembro de 2012.

  • Dedico essa dissertao a minha esposa,

    Larissa, que tanto me ajudou a compreen-

    der um pouco mais sobre as belezas da

    arte e da vida.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao princpio que rege a ideia de promover o bem acima de tudo com inteligncia e es-

    foro para tornar o mundo melhor, que alguns mencionam como DEUS, sou grato.

    Aos meus pais que contriburam de modos que vo alm do que possvel mencionar

    para este texto aos quais agradeo muito.

    Aos organizadores de compilaes dos textos gregos que tanto difundiram pelo mundo

    o conhecimento dos antigos como o Projeto Perseu, o Projeto Digenes e o Projeto Thesaurus.

    Ao Prof. Dr. Markus Figueira da Silva por seu acompanhamento que vem mesmo des-

    de antes do mestrado contribuindo para o amadurecimento das idias aqui trabalhadas.

    Ao Prof. Dr. Anastcio Borges de Arajo Jnior pela receptividade ao meu incio na

    Filosofia.

    Aos meus colegas de Ps Graduao, em especial ao grande amigo Voltaire Ribeiro

    Vianna Filho por sua prestatividade e amizade sinceras que tanto me inspiraram.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande

    do Norte pela oportunidade.

    Capes, pelo apoio financeiro da pesquisa.

    E aos demais parceiros que contriburam para minha formao como cidado e ser so-

    cial.

  • Il a dit quelques mots que je n'ai pas entendus et m'a demand

    trs vite si je lui permettais de m'embrasser : Non , ai-je rpondu.

    Il s'est retourn et a march vers le mur sur lequel il a pass sa main

    lentement : Aimez-vous donc cette terre ce point ? a-t-il murmu-

    r. Je n'ai rien rpondu. Albert Camus. L'tranger. p. 95.

    Ele disse algumas palavra que eu no tinha entendido e me pediu rapidamente se

    poderia me abraar: No, eu respondi. Ele retornou a caminhar atravs de muro sobre o

    qual ele passou sua mo lentamente: Voc ama esta terra a este ponto ele murmurou.

    Eu no respondi nada.

  • SUMRIO

    RESUMO 05

    INTRODUO 06

    1. ESTRANGEIRO, CONCEITO OU PERSONAGEM? 14

    1.1 Termos para nomear estrangeiro: brbaro, meteco, sofista e xnos 14

    1.2 O estrangeiro como problema na obra de Plato, especialmente nos dilogos

    O Sofista e O Poltico. 38

    2. O SOFISTA: PARADIGMA DA DIFERENA 49

    3. O POLTICO: PARADIGMA DA CONCILIAO 66

    4. FILSOFO: PARADIGMA DA RELAO 79

    CONCLUSO 88

    BIBLIOGRAFIA 94

  • 5

    RESUMO

    Neste trabalho abordaremos o hspede como personagem e mtodo na obra platnica,com destaque para os dilogos O Sofista e O Poltico de Plato, e como essa noo dehspede conduz ao inqurito do que seria um sofista, um poltico e um filsofo.Comearemos com a teorizao dos possveis significados para estrangeiro aos quaishspede pode estar ligado ou no, mostrando como o problema da recepo das diferenaspode ser pensado na obra platnica pelo prisma do estrangeiro. Analisaremos especificamenteo dilogo O Sofista, apresentando a proposta do dilogo enquanto uma busca pelasdiferenas, tanto no ramo ontolgico quanto na definio do sofista. Da mesma forma,analisaremos o dilogo O Poltico, mostrando as relaes que esse dilogo guarda com o seuanterior (O Sofista), no sentido de continuar uma investigao e mostrar como o poltico deveser uma figura de conciliao dos problemas. Apresentaremos uma proposta visando pensar oltimo termo da investigao lanada em O Sofista: o Filsofo como uma proposta que Platodemonstra atravs de relaes durante toda a sua obra e no apenas num dilogo, concluindoo trabalho com as relaes que os textos nos deixaram para pensar o Filsofo a partir doprisma da hospitalidade.

  • 6

    INTRODUO

    Para o homem sbio toda a terra acessvel, pois o mundo inteiro ptria da alma boa. De-

    mcrito fragmento 217

    Nosso trabalho pretende analisar o estrangeiro enquanto um conceito e um

    personagem, dentre as abordagens da obra platnica a abordagem de hspede que percebemos

    e destacamos est nos livros O Sofista e O Poltico. Tambm demonstraremos as outras

    concepes de estrangeiro para destacar como elas se relacionam ao entendimento da questo

    da hospitalidade e da recepo das diferenas culturais para o universo conceitual do grego.

    As maiores inspiraes iniciais esto nos escritos de Franois Hartog e principalmente

    o Memria de Ulisses que primeiro motivou pensar na nossa experincia acadmica a

    importncia do estrangeiro para o grego, numa leitura em que os limites foram escritos

    principalmente pela proposta de uma literatura que fortaleceu o sentido de unidade da hlade.

    Durante o processo da pesquisa Henrique Murachco mostrou uma antecipao de sua

    traduo atual de O Sofista, na qual apresentou alguns motivos expressos no texto para

    entendermos como deveramos traduzir para contemplar o sentido de hspede que procuramos

    ver nas demais tradues e no contemplamos1. Por fim, o trabalho decisivo de Marcelo

    Pimenta Marques, no qual ele analisa principalmente uma bibliografia sobre ontologia em

    contraste com a noo de uma viso antropolgica de Plato, expe uma viso da importncia

    do estrangeiro e das diferenas como principal caracterstica que define O Sofista em Plato:

    o pensador da diferena; pensar a diferena seria um passo basilar na anlise de O Sofista

    para compreender o motivo de uma definio do sofista passar pela definio da Ontologia:

    possvel uma pesquisa sobre o no ser?

    A pesquisa que empreendemos busca compreender como o estrangeiro aparece na obra

    platnica, primeiramente fazendo uma exposio de alguns termos-conceitos do que pode ser

    entendido como estrangeiro na Atenas Clssica: brbaro, xnos, meteco e sofista.1 PLATO. O Sofista. Trad. Juvino Maia e Henrique Murachco. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2012.

  • 7

    Apresentaremos as diferenas e as contribuies das diferentes concepes de estrangeiro e de

    como elas interferem na noo geral daquilo que vem a ser um estrangeiro. Depois

    aprofundaremos o olhar sobre como Plato aplica o uso do termo xnos que est ligado

    hospitalidade no caso especfico do Xnos de Eleia.

    Buscaremos mostrar o uso do termo xnos dentro dos dilogos de Plato, com

    destaque para o dilogo O Sofista como iniciador e mtodo de uma problemtica e o dilogo

    O Poltico como continuao dessa problemtica, a saber: a natureza do sofista, do poltico e

    do filsofo orientados pelo mtodo dialgico de um xnos. Pensar como relacionar as

    diferenas e as funes do filsofo diante dos sofistas e polticos, quando esses assumem

    alguns papis que deveriam caber ao filsofo nos dilogos O Sofista e O Poltico.

    Precisaremos, para cumprir tal proposta, analisar os dilogos por vrias chaves

    argumentativas: pela compreenso de uma lxis dos dilogos; pela compreenso dos dilogos

    em sua dramaticidade com a importncia desses termos para a trama; pelas inter-relaes que

    os dilogos travam entre si e pelos modelos de conhecimento que eles expressam. Trataremos

    do estrangeiro/hspede como problema na obra de Plato, principalmente na produo dos

    dilogos O Sofista e O Poltico e como possibilidade argumentativa diferenciada, permitindo

    a fluidez de uma Filosofia das diferenas em Plato.

    O modelo que destacamos no dilogo O Sofista o da superao das diferenas,

    apresentado que todas as perspectivas que se estabelecessem so outras que ainda no foram

    contempladas. Um modo de compreender a dialtica platnica, num processo constante de

    compreenso do papel do filsofo entre os objetos de estudo que aparecem nos dilogos O

    Sofista e O Poltico, a saber: as teorias que orientam o saber dos sofistas com destaque para a

    teoria do ser e do no ser e a teoria da cincia da boa poltica em relao dos saberes do

    sofista e do poltico com o papel da Filosofia. Buscamos essa compreenso por visualizarmos

    uma unidade entre os dois dilogos no que se refere a mtodos e dialtica nos quais termos

    importantes surgem por: constante separao; identificao e contraste; analogias, nas quais

    as ideias principais do texto so relacionadas em relaes aos mitos e o modo como os

    homens poderiam se portar e com relaes entre a natureza; bem como dos homens e dos

    animais domesticados caados e principalmente em relaes entre os personagens que

    revelam pontos importantes da tentativa argumentativa que est sendo expressa. Todos pontos

    em que percebemos o filsofo ao questionar sobre os personagens sofista e poltico.

  • 8

    Perceberemos a ausncia de nome, alm da provenncia, para o personagem e a

    referncia constante a Protgoras e a Parmnides como uma possibilidade de compreender o

    modelo epistemolgico relativista do sofista, teorizando o no-ser contra um modelo

    identitrio forte da disputa do ser do poeta representados por personagem partidrio de ambos

    por suas colocaes. As disputas, contribuies e trocas que os textos nos quais figuram o

    xnos de Elia vo relacionar, resumem as disputas filosficas e polticas da gesto pelo

    conhecimento poca de Plato. O uso do estrangeiro/hspede, que aparece sem nome, um

    recurso dramtico que amplia a percepo das diferenas por estar fora dos campos que um

    indivduo poderia alcanar em suas crticas e alm dos limites daquilo que a definio do

    personagem poderia abarcar.

    A definio com a qual atentaremos e a aceitao do pensamento do hspede que

    percebemos como ponto difcil de definir. Nosso termmetro o quanto o xnos bem visto

    em suas opinies pelo prprio Scrates, que comea contrrio ao hspede. A aparente

    hostilidade inicial parece ser o motivo que percebemos para fortalecer a opinio que a maioria

    das tradues do texto no Brasil e mesmo nas tradues mais antigas francesas e at inglesas

    defendam uma traduo de xnos: estrangeiro. Como definiremos logo frente, o termo

    ligado hospitalidade e poderia ser traduzido tambm como hspede ou visitante. Ao traduzir

    como estrangeiro, estamos forando uma concepo das ideias do convidado como vindas de

    um campo outro que o de Scrates e corroborando com a noo de uma verdade vinda de

    fora; portanto este texto vai se permitir o modo de enunciar como estrangeiro, mas

    explicitando que as tradues poderiam pensar a noo de hspede.

    A noo de hspede que defendemos a partir dos dilogos, e na traduo citada

    anteriormente, vai se pautar nas aparies e usos dos termos de referncia com o seguinte

    intuito: na tentativa de mostrar que Plato vai usar a noo-conceito-personagem hspede-

    estrangeiro para explicitar orientaes filosficas, por considervel parte de sua obra, de

    personagens que aparecem para mudar o paradigma filosfico do senso comum. Podemos

    simplificar aqui na nossa concepo, ainda com lacunas de compreenso, mas que vislumbra

    os dilogos a partir de quatro principais modos de lidar com o estrangeiro: da fase socrtica2

    expondo o estrangeiro como um modo de falar estranho; numa fase de crtica aos sofistas que

    2 Compreenso da Plato entendido em fases de sua obra que compreenderia o Plato Socrtico como uma primeira etapa de produo em que a figura de Scrates tem papel preponderante como personagem cujo drama de vida se confunde ao drama da Filosofia ateniense.

  • 9

    aparecem nos dilogos com nomes de sofistas3 como rivais importantes para a Filosofia; a

    fase da diversificao dos termos em que aparecem como brbaros e sofistas menos propensos

    ao dilogo em A Repblica e que ganham espao de pertencimento como personagem central

    na construo dos dilogos com aparies curtas, mas de importncia fundamental como

    Diotima; Por fim ao patamar de personagem central dos dilogos de velhice e, se analisarmos

    as Cartas, a figura do prprio Plato se tornando estrangeiro na Carta VII.

    No pretendemos expor um modelo em que a Filosofia seja projetada para o

    estrangeiro, mas ao contrrio: que ela resultado de contribuies estrangeiras e tambm deve

    ser partilhada e pensada por todos os modelos dos que outrora pensaram e hoje pensam a

    Filosofia, no mais apenas os atenienses da poca clssica, mas todos que pretendem

    contribuir para o pensamento. O dilogo O Sofista evidenciar que todas as diferenas que

    poderamos qualificar como no-ser, esto contidas dentro dos cinco gneros supremos: o ser,

    o movimento, o repouso o mesmo e outro, evidenciando-se apenas como outro que o ser e no

    mais o no-ser.

    As evidncias dessas alteridades que podem surgir, do entendimento das diferenas

    como partes do todo, norteiam pensar que o estrangeiro ou o hspede um recurso para

    hospedar as diferenas e mostrar o quanto elas so importantes no processo de

    conhecimento. Mesmo o grande filsofo da obra platnica (Scrates) teve que se calar para

    acompanhar o raciocnio desse enigmtico pensador da diferena, pois o desafio maior foi

    lanado: definir aquilo que vem a ser o sofista, o poltico e o filsofo, dado que os prprios

    dilogos mostram esses objetos de pesquisa como entrelaados por funes semelhantes e

    esferas de participaes sociais bem prximas ou comuns: interferirem na educao das

    pessoas e ordenar os processos poltico-administrativos da cidade.

    Pretendemos apresentar, aps a explicao do problema do conceito-personagem

    xnos e de como ele aparece nos textos platnicos, uma anlise acompanhada dos textos que

    chamaremos de: O SOFISTA: PARADIGMA DA DIFERENA; O POLTICO:

    PARADIGMA DA CONCILIAO e FILSOFO: PARADIGMA DA RELAO.

    Em O SOFISTA PARADIGMA DA DIFERENA, privilegiaremos uma abordagem

    do dilogo O Sofista acompanhando os passos do texto e mostrando como atravs da riqueza

    3 Dilogos como Hpias Maior, Hpias Menor, Lsias, Protgoras e Grgias.

  • 10

    de temas diversos reconfigurada a noo de que pode se falar sobre o no-ser: primeiro

    mostrando a caa sofstica de jovens pelo mtodo de analogia com o caador/pescador; depois

    mostrando que os sofistas operam a noo de no-ser para capturar os incautos; por fim

    atravs de suas tcnicas de persuaso, principalmente atravs da produo de imagens que

    tomam os nomes das coisas como um todo se tratando apenas de imagens falsas. O sofista

    mostra em vrios pontos o quanto o filsofo tambm trabalha de modo semelhante e, por

    vrias vezes na relao do sofista com seu objeto de estudo, a definio que aparece a do

    filsofo.

    Como a proposta enunciada no dilogo O Sofista como sendo de definio de trs

    personagens, continuaremos analisando como em mais um dilogo aparece tendo como

    principal o Xnos de Elia e pode se perceber a recepo que a reviso de Parmnides ou o

    parricdio do pai de Elia vai ter para Scrates que se silenciou durante todo o dilogo

    subsequente: O Poltico.

    O captulo O POLTICO: PARADIGMA DA CONCILIAO continua o dilogo

    anterior de vrios modos e procuramos compreend-lo nos moldes principais adotados na

    anlise do anterior: uma abordagem que visa pensar a hospitalidade e principalmente nesse

    caso as estratgias de abrigo, onde o lar o espao da conciliao das diferenas. O dilogo O

    Poltico mostra evidenciando ainda mais com relaes aos animais funo de compreender a

    natureza que cada um possui e de que a reta gesto dessas diferenas, que foram enunciadas

    em dilogo anterior, passam pela gesto de necessidades simples que todos possuem.

    Ao analisar uma figura distante do filsofo, pois a poltica acaba sendo dominada

    pelos homens mais desprovidos de natureza filosfica, aparecem tambm atribuies de

    pensar a sociedade e criar redes de pertencimento que poderiam ser otimizadas por algum

    com afinidade pelo saber. O saber visto como modo de orientao dos homens, ou seja, o

    melhor poltico tambm deve ter natureza filosfica. O mais curioso que um estrangeiro

    analisa os homens como animais e expe que as nossas diferenas e caractersticas so

    minimizadas, ao ponto de se reduzirem ao entrosamento conciliao de um rebanho bem

    servido nas mos do poltico. Para essa afinidade do poltico em tecer redes de participao

    que o texto apresenta a alegoria da atividade de tecelagem, onde o bom poltico sabe tecer do

    modo mais completo a vida de seus governados.

  • 11

    O sofista se confunde em alguns pontos com o poltico e parecem fazer um papel

    conjunto no qual o sofista produz os artifcios para a alma se sentir bem e introduz os

    ensinamentos para que a classe poltica possa tomar por fora o governo sobre os homens.

    A reta gesto dos mecanismos de produo do conhecimento e a reta gesto dos

    homens esto acima dos modelos de governo nesse dilogo. A democracia que a tradio

    Ocidental apresenta como o modo mais justo de governo, aparece descreditada, pois qualquer

    estilo de governo pode ter boas funes se pessoas com naturezas filosficas e respeito s

    necessidades dos governados assumirem o poder. O papel do bom governante, mesmo

    daqueles que produzem as redes de conhecimento que nos controlam e educam, perpassa pela

    reta ordenao entre os elementos constituintes das aes humanas. Na adequao dos

    homens aos critrios maiores, que Plato apresenta como divinos, apresenta o melhor dos

    pastores como inalcanvel para os homens.

    Em nossa anlise dos dilogos em foco percebemos que o filsofo est o tempo todo

    presente como aquele que busca a adequao e o equilbrio entre os personagens que

    organizam o pensar e o agir da plis: o sofista e o poltico, mas no foi definido como tema

    central de uma fala por parte do hspede como foi solicitado que o fizesse. Criamos um

    captulo antes da concluso para pensar esse silncio dos textos sobre esse problema: e o

    filsofo, como aparece? Para tanto apresentaremos o teor de cada captulo.

    FILOSFO: PARADIGMA DA RELAO surge como o comentrio/comparao

    daquilo que percebemos das tradies argumentativas de Plato sobre a inexistncia de um

    dilogo que completaria a trilogia: Sofista, Poltico Filsofo ou a tetralogia: Teeteto, Sofista,

    Poltico e Filsofo. Pensamos que o resultado principal est na relao entre os elementos dos

    dois dilogos anteriormente comentados e por isso revisamos alguns passos recomentando. A

    chave interpretativa de pensar o hspede que um passo importante para a Filosofia, pois nos

    far vislumbrar como o constante dilogo das diferenas promove noes claras sobre

    assuntos tipicamente filosficos de compreender as diferenas. O filsofo est nos intervalos

    de reflexo e pensamento sobre as coisas que dirigem as aes dos homens, revelando suas

    incoerncias sobre os mais diversos assuntos e expondo os sentidos nos quais participamos

    como estranhos em questes como a poltica.

  • 12

    Concluiremos apresentando o modelo de anlise na sua relao com os trs objetivos

    de investigao, a saber: afinal em que o estrangeiro foi importante para o entendimento do

    sofista, do poltico e do filsofo? Mostrando como esse modo de interpretar pode auxiliar na

    compreenso do problema geral que o estrangeiro ou o hspede.

    O modo de interpretao que temos pensa o escrito por uma relao com suas heranas

    e tambm de uma noo de reviso do pensamento platnico como puramente socrtico, que

    tem nuances e transformaes decisivas atravs de novos personagens e da realocao de

    personagens anteriormente protagonistas como Scrates. Para a tradio Ocidental, o texto

    fundamenta pensar aquilo que nos estranho e diferente como parte do processo de filosofar.

    Uma teoria em que nos reconhecemos por critrios parmendeos e reconhecemos as

    diferenas que surgem com os confrontos sofsticos da crescente disputa por tcnicas

    polticas, que se expandem pela hlade na poca de Plato, que resultariam numa

    diversificao das noes daquilo que estrangeiro, hspede e daquilo que o heleno

    citadino.

    Pensamos tambm em quais conceitos Plato se embasou historicamente e

    filosoficamente, ao apresentarmos os usos do conceito de brbaro e das noes de estrangeiro

    ou hspede. Postulamos que essa abordagem fundamental para compreender o processo de

    construo platnico dos dilogos pelo conhecimento grego, bastante descrito como o

    processo da formao da Paidia grega. No desvinculamos o processo de conhecimento das

    disputas que envolviam o produto da cultura grega e percebemos que Plato tambm no, por

    usar dos conceitos dos hspedes como chaves para compreender o mundo antigo.

    A inteno de mostrar um Plato que no tenha receio em mostrar como as

    diferenas podem ser teis para o processo de conhecimento e como devemos dar espao para

    que o novo surja, pela recepo dos diferentes lados da questo por diferentes pessoas e

    diversos conjuntos tericos. O cenrio grego em que cada cidade-estado se entendia, como

    tendo deuses prprios e poltica prpria, incentivou uma viso de concorrncia entre as

    cidades. Cada cidade poderia possuir cultura prpria e dialetos prprios ao ponto de

    acontecerem conflitos entre cidades. Diante desse cenrio que os sofistas chamaram ateno

    ao pensar que a ideia de unificao dos povos ganha fora com os gregos, para lutarem contra

    os brbaros.

  • 13

    As propostas unificadoras que a poltica do mundo antigo pensou, como as defendidas

    por Grgias de um Pan-Helenismo, no visavam minimizar as diferenas, mas usar os

    diversos saberes para melhorar a antiga estrutura das cidades helnicas com saberes

    purificadores e prticas polticas funcionais. A renovao dessas tcnicas advm

    exatamente dos dilogos de diferentes tradies gregas que se encontram misturadas na poca

    clssica, que encontraram na erstica/retrica seu lugar de legitimao. Plato apresenta como

    o entendimento que os sofistas mostram sobre as teorias de origem distorcido, as teorias

    sobre o ser e as principais vertentes do conhecimento do mundo helnico so indevidamente

    desconfiguradas e mal tratadas pelos pensadores que definiram as origens.

    O dilogo O Sofista vai comear problematizando pelo clssico personagem Scrates

    se indagando das diferenas entre um ateniense e seus colegas, ou dos estrangeiros que nos

    cercam? No, vai usar o recurso de um hspede para tornar claro como essas diferenas no

    esto devidamente delimitadas, pois mesmo o personagem no possui nome. O estrangeiro

    apenas um conceito, apenas o hspede de um local diferente ou um filsofo? Dentro da

    nossa proposta ele corresponde a todos estes termos em locais diferentes na obra platnica

    que detalharemos a frente.

    Inicialmente colocamos as seguintes questes: o estrangeiro um conceito ou um

    personagem? Estrangeiro uma noo adequada para compreender o termo xnos? Existem

    conceitos diferentes de estrangeiro na obra platnica? Acreditamos que todas as respostas

    para essas perguntas se resguardam na ambiguidade de compreender aspectos diferentes de

    cada perspectiva como apresentaremos a seguir.

  • 14

    1. ESTRANGEIRO, CONCEITO OU PERSONAGEM?

    1.1 Termos para nomear estrangeiro: brbaro, meteco, sofista e xnos

    Pretendemos investigar o sentido das expresses que so usadas para designar a ideia

    de estrangeiro no lxico platnico. A importncia de entender os possveis significados para

    estrangeiro que a cultura grega forjou a de fomentar um entendimento daquilo que Plato

    conceituou atravs dos dilogos de relao com as diferenas, especificamente o pensar a

    diferena atravs do texto O Sofista4, bem como de desenvolvimento de compreenses do

    plano ideal atravs das tenses possibilitadas pela relao com as diferenas.

    Analisando as ocorrncias do termo xnos, a principal ocorrncia surge na Ilada na

    passagem em que Diomdes e Glauco entrariam em combate:

    Portanto sou seu amigo e anfitrio (xeinos philos) no coraode Argos, tu s o meu em Lcia, quando eu vou a tua ptria. Vamosevitar nossas lanas mtuas ... Mas permutemos nossas armaduraspara que esses outros possam saber de que modo alegamos serhspedes e amigos desde os dias de nossos pais (Xeinos patroioi).5

    A passagem na Ilada parece ser a grande referncia quando se busca a origem dos

    usos de xnos na literatura grega, a mesma referncia poderia ser feita ao Anne

    Defoumantelle convida Jacques Derrida a falar de hospitalidade6 e ao Plato pensador

    4 MARQUES, Marcelo Pimenta. Plato, pensador da diferena: Uma leitura do sofista. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.

    5 HOMERO. Iliada. 6.224-31. Trad. Lattimore 1951. Apud KONSTAN, David. A amizade no mundo clssico. Odysseus: Cambridge, 2005. P.48-49.

    6DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade . Trad.Antonio Romane. So Paulo: Escuta, 2003. Livro em que Derrida acaba mostrando como a hospitalidade umponto central para o grego e algo que precisamos entender hoje para realizar uma sociedade adequada com seusprincpios.

  • 15

    da diferena7. Konstan ainda enumera mais usos do termo e se destaca por fazer uso da ideia

    de anfitrio:

    Os termos xe()nos, traduzindo aqui como amigo e anfitrio,ou hspede e amigo, significa mais comumente em Homero umdesconhecido. Em grego clssico, xnos significa estrangeiro, isto, um habitante de uma plis ou pas diferente, ou um visitante noresidente, em oposio a um concidado (asts sympolites). O termotambm pode designar um amigo estrangeiro: o lexicgrafo Hesquio(c. sculo V d.C. ) define xenos (s.v.) como um amigo [phlos] deuma terra estrangeira [xne, sb. g]. Assim, em Alceste de Eurpides,Heracles o xnos de Admeto (540,554), que tambm pode serchamado de phlos (562, 1011). Os conterrneos de Admeto,entretanto, so simplesmente phloi (369, 935, 960; cf. phloi, 212),nunca xnoi. Para ser uma plis ... uma comunidade tinha quedistinguir formalmente entre membros e no membros (Manville1990:82).8

    A ideia de xnos ligado a uma comunidade diferente, mas pensar o amigo (phlos) em

    alguns usos mostra o paradoxo da noo do que o estrangeiro na literatura grega. Pensar

    como o estrangeiro aparece mostra os limites dos concidados em seu conhecimento de

    mundo e a forma como os gregos encaravam os diferentes.

    A presente pesquisa nasceu da anlise de um texto traduzido pelo professor Jacyntho

    Lins Brando e escrito por Franois Hartog: Memrias de Ulisses. Este texto demonstra

    como os gregos fizeram seus primeiros ensejos de contemplao do mundo, a partir da anlise

    daqueles que deveriam ser reconhecidos como irmos e daqueles que deveriam ser

    reconhecidos como inimigos e diferentes. O principal dos ensejos de cartografia do mundo

    grego est nos escritos atribudos a Homero, por exemplo, a guerra que descrita na Ilada:

    povos de crenas semelhantes so postos em combate por paixes roubadas de um povo para

    outro e isso rene os principais grupos que formavam a hlade numa investida contra a

    inexpugnvel Tria. Como se no bastasse a Ilada descrever as correntes de povos que

    7 MARQUES, Marcelo Pimenta. Plato, pensador da diferena: Uma leitura do sofista. Belo Horizonte:Editora da UFMG, 2006. Texto em que antes da retomada do hteron, as referncias a Ilada so realizadas comorastreamento do problema do que o estrangeiro para o modo de produzir platnico dentro de O Sofista.

    8 KONSTAN, David. A amizade no mundo clssico. Odysseus: Cambridge, 2005. P. 49.

  • 16

    compe os gregos, na Odisseia, a viagem de volta circunscreve a geografia grega e os

    estranhos monstros que Ulisses, na tentativa de retorno ao lar, precisa confrontar.

    Ulisses o primeiro a descrever o espao dos limites e tentar conhecer as diferenas.

    Nas origens histricas dos povos gregos, muitas teorias de povoamento se amontoam e

    atribuem cada vez mais mrito para uma concepo de origens egpcias, sem negar algumas

    influncias mesopotmicas, mas, sobretudo mediterrnicas e semitas nas origens do

    povoamento da hlade com destaque para os grupos oriundos da sia Menor. Pretendemos

    com essa explicao, estabelecer que desde os primrdios a literatura grega fizesse nexos com

    culturas estrangeiras que so basilares na formao da prpria identidade grega. No se pode

    pensar na existncia dos gregos como isolados na imensido de relaes comerciais, religiosas

    e culturais que eles mantinham para com seus vizinhos.

    Basta para tanto lembrar que a prpria lngua grega tratada pelos manuais de

    lingustica como uma apropriao do alfabeto fencio, com a insero de caracteres que

    chamamos de vogais. Hecateu de Mileto mostrou a reverncia que o povo grego sempre teve

    que reservar aos povos egpcios pela ancestralidade e por serem os senhores de cultos que so

    considerados importados na Grcia como o culto dedicado a Dionsio.

    fundamental entender a importncia para compreender o que se pretende aqui de

    trabalhos como a Paidia de Jeger9 e a A Cultura Grega e as Origens do Pensamento

    Europeu de Snell10, que fundamentaram pensar as heranas platnicas de um modelo de

    educao e civilizao que foi perpassado por toda a tradio literria grega. A reviso

    conceitual que tais autores promoveram foi centrada principalmente na explicao de uma

    identidade grega moldada pela aret como base educacional:

    A palavra aret no se refere a vida moral, mas indicanobreza, capacidade, xito e imponncia. Com essas expresses,porm, j nos aproximamos da moral, j que elas no se indicamcomo felicidade e utilidade algo que sirva apenas ao interesseindividual, mas sim que tem um valor mais amplo: aret significabravura e capacidade, o que se espera de um homem bom,ativo, de um aner agaths. Visto que essas palavras, de Homero em

    9 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidia: A formao do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3. ed. So Paulo:Martins Fontes, 1994.10 SNELL, Bruno. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. So Paulo: Perspectiva, 2005.

  • 17

    diante at Plato e mesmo depois deste, servem para indicar o valordo homem e de sua ao, sua mudana de significado ndice detransformao de valores no curso da histria grega.11

    Como j foi comentado aqui, o conceito de estrangeiro remonta aos primrdios da

    literatura grega com Homero. Porm, o processo dos conceitos de viso de mundo que

    interferem no modo de ver o que estrangeiro e o que grego possui grande relao com o

    avano de outros estilos literrios, como a tragdia grega. A sofstica era teorizada como uma

    etapa prvia a Scrates que contemplaria uma cultura cheia de problemas de valores morais

    ou inaptides conceituais que era imposta para a Atenas.

    Os termos para estrangeiro contemplariam tambm uma noo de hspede de outro

    lugar da hlade, portanto um membro da comunidade grega, mas de outras participaes e

    relaes de pertencimento cultural, haja vista a grande disputa de dialetos; como o exemplo da

    relao do dialeto drico e do dialeto inico, que tem em Atenas e Esparta os rivais histricos

    pela hegemonia grega. Os helenos teriam posturas de estranhamento tambm entre si, que

    intensificariam as diferenas naturais dos diferentes povos e a pluralidade de modelos

    econmicos e polticos da Grcia. Mas a sofstica seria um grande passo desde Grgias na

    tentativa da unificao da hlade, sobre a proposta de confrontar o estrangeiro de fato: o

    Persa.

    O processo educacional comentado por Jeger e Snell em que o conceito de nobreza

    era o conceito que foi trabalhado por Plato como definio de homem bom, passa aqui por

    um dilema: possvel um homem bom que provenha de uma outra cultura e que talvez no

    pactue do padro de excelncia da cultura de referncia? Os valores foram em grande medidas

    alterados na poca de Plato pelo crescimento da sofstica e por vrias crises que se

    alastravam pelos modelos gregos, os quais a literatura d grande testemunho e a grande

    ferramenta para educar as pessoas conforme os padres que vo surgindo.

    Se a literatura comps o primeiro ramo de produo e difuso dos saberes na Histria

    da Grcia, Plato usa toda essa tradio na composio de sua Filosofia. A Filosofia platnica

    discute com a literatura e com a sofstica, empregando seus mtodos e personagens, bem

    como seus compositores fazendo parte dos dilogos. O estilo de Plato tambm montado

    11 SNELL, Bruno. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. So Paulo: Perspectiva, 2005.. p. 168.

  • 18

    num esquema teatral, herdado inclusive do modelo grego de exposio das tragdias, mas

    uma exposio que fosse aprazvel e instrutiva ao mesmo tempo sem esquecer seu

    comprometimento como difusor de padres.

    A aproximao com o termo estrangeiro ao invs da aproximao direta com a anlise

    ontolgica vislumbra as tenses e as diferenas do plano fsico, com as tenses das relaes

    das pessoas com os estrangeiros, e atenta para um sentido de gnero como uma relao de

    provenincia. A provenincia, contudo, repensada em seu papel de mera origem estranha, mas

    no papel de pensamento sobre origem e alteridade. Se as palavras gregas que designam

    famlia e que designam pertencimento social so relacionadas gnos, o uso de um

    estrangeiro, portanto de outro gnos, para falar de teorias deslocadas uma possibilidade para

    que as relaes dos diversos locais que os atenienses participaram; fortalecido por uma

    comunho dos gneros no sentido de participao da Filosofia, como um saber alm de seu

    espao citadino.

    No se pretende dizer que o plano do inteligvel diretamente modificvel pelas coisas

    que os homens estabelecem, como Protgoras defendia no seu homem medida de todas as

    coisas, mas que o conhecimento pode ser percebido em suas relaes e conceitos tambm a

    partir dos estranhamentos gerados por vises diferentes que apresentam vrios lados; sem cair

    no relativismo de que tudo possvel aos homens em seus modos culturais. Intencionamos

    esboar que atravs do contraste das diferenas que se percebe a possibilidade de

    entendimentos alm das referncias locais, da cultura do local ou voltada para um grupo, para

    se chegar a noes mais gerais e que contemplem com mais equidade a multiplicidade dos

    conceitos de que somos participantes.

    No sentido daquilo que aprendemos, o enunciado falso tambm um passo que ajuda

    a elucidar aquilo que inteligvel, e nos fora a pensar as relaes que acreditamos mais

    ajustadas com mais preciso. Buscamos mostrar que a reviso da sofstica em seus princpios

    um modo de usar as diferenas em seus problemas principalmente para mostrar os caminhos

    que o filsofo deve combater e os conceitos que deve acompanhar.

    O texto platnico, assim como os vrios textos da literatura grega em seus mais

    variados estilos (tragdia, comdia, pico etc...), tocou em pontos problemticos na estrutura

    da convivncia das pessoas, mostrando as diferenas e disputas do povo grego. No caso dos

  • 19

    textos de referncia do trabalho, destacamos o modo como os gregos viam os diferentes. O

    processo de anlise das diferenas possibilitou a reviso dos critrios da mitologia/literatura e

    principalmente da sofstica na busca de uma educao ideal para os propsitos polticos,

    comerciais e imperialistas da hlade, cada vez mais participante do mundo antigo. Como frisa

    Marcel Detienne12, Plato tem um propsito ao reinventar a mitologia, que repensar a cidade

    e mesmo defend-la, no sentido de expurgar todo o processo que no seja devidamente

    raciocinado de suas proposies para a sociedade. A mitologia de Plato, no entanto, no

    uma mitologia xenfoba. Plato compreende as diferenas e explicita as contribuies dos

    supostos tempos de reinados outros, como o tempo de Chronos para o modo como o tempo

    corre ou poderia correr em ciclos que compreendem o maior grau de maturidade com o mais

    elevado grau do poder de mobilizao.

    Para Aristteles, a formao de uma sociedade que contemplou funes alm daquelas

    que se destinam a suprir necessidades bsicas, fomentou o cio necessrio para estudos de

    ordem mais terica como a matemtica; isso foi possvel primeiramente no Egito13 e a

    tradio cultural grega no cessou de fazer referncias para estrangeiros e tambm se

    reconhece neles como continuao das tradies culturais. O prprio Plato, dentre muitos

    outros pensadores da Antiguidade, teria feito viagens ao Egito com fim de aprender as teorias

    dos estrangeiros. Mesmo na constituio composta no dilogo As Leis, Plato entende que o

    dilogo com o estrangeiro no deve ser cerceado para aqueles que buscam o saber, mesmo

    quando se deve pensar em questes capitais da legislao da prpria cidade. Neste trecho

    Gerson Pereira Filho comenta sobre caractersticas do Conselho Noturno:

    Estar sempre aberto a adaptar suas funes, seguindosugestes positivas extradas at de legislaes estrangeiras, mantendoum trabalho permanente de observao e relacionamento exterior,como uma espcie de embaixada estrangeira, que possui o dever detransmitir ao Conselho novas e interessantes idias sobre legislao eeducao (As Leis, 952 a-c).14

    12 DETIENNE, Marcel. A inveno da mitologia. Trad. Andr Telles, Gilza Martins Saldanha da Gama. Rio deJaneiro: Jos Olympio/Braslia: UnB, 1992.13 ARISTTELES. Metafsica. Livro I, 981 220-2814 PEREIRA FILHO, Gerson. Uma Filosofia da Histria em Plato: O percurso histrico da cidade platnica de As Leis. So Paulo: Paulus, 2009. p. 191

  • 20

    A necessidade de pensar as relaes com os outros se d pela perspectiva de

    compreenso dos modelos que dialogam com o prprio e dos modelos que divergem com o

    prprio modelo de kosmos grego, numa clara referncia a um modelo heracltico de kosmos.

    O mundo conceitual de Plato tambm inserido num kosmos Heracltico, como disse

    Gregory Vlastos15 ao apresentar a enorme quantidade de teorias sobre a ordenao das coisas

    e principalmente numa viso baseada no dilogo O Timeu. A referncia de Plato se insere

    num amlgama de referncias das escolas que geraram a Filosofia e a Literatura por todo um

    territrio conhecido por Hlade e at por heranas culturais egpcias. Dentro da mistura e da

    confusa relao de saberes que a Filosofia teria que abarcar, boa parte dos argumentos mais

    importantes para a Filosofia at Plato provinha do estrangeiro: nas relaes da matemtica

    egpcia que Pitgoras redefiniu, nos conceitos dos italiotas que redesenhavam a ideia dos

    conceitos da hlade continental e da parte da regio da Jnia que sofria muita influncia da

    Babilnia e at dos Persas na composio de pensamento.

    O estrangeiro para a cultura grega, uma grande referncia em termos de saber e

    muito complexo para ser definido num nico termo. Tentando entender a importncia dessa

    multiplicidade e da polissemia da diferena no estrangeiro, o analisaremos tendo em vista

    ilustrar essas diferenas polissmicas e outras dentro da lngua e depois nos dilogos de Plato

    em que figura o xnos.

    A peculiaridade do xnos que se pretende abordar o retrato da possibilidade de

    convivncia com as diferenas que Plato esboa ao falar de um estrangeiro. Na lngua grega,

    encontram-se vrios termos que podem ser relacionados com estrangeiro, mas nos

    restringiremos aos termos: brbaro, meteco, sofista e xnos. Tais termos revelam uma

    multiplicidade de entendimentos geogrficos e ideolgicos do mundo grego, bem como

    possibilidades interpretativas dos dilogos platnicos de forma bastante elucidativa quando o

    crivo do que Plato pode entender pelos presentes termos.

    Analisar a ideia que o grego forjou de brbaro analisar a histria do conceito de

    heleno; pois o termo se referia inicialmente ao uso que aqueles, de sotaque estranho ao grego

    faziam ao tentar balbuciar o grego: o recurso onomatopeico do bar, bar. Quem no falava

    15 VLASTOS, Gregory. O Universo de Plato. Trad. Maria Luiza Monteiro Salles Coroa. Braslia: EditoraUniversidade de Braslia, 1987. p. 12.

  • 21

    adequadamente o grego, era o brbaro. A primeira definio de falar estrangeiro que

    tratarmos, enquanto aquele que no partilha da mesma lngua, expressa no texto Apologia

    de Scrates por exemplo:

    O fato que, embora tenha setenta anos, a primeira vez queme apresento perante a corte. Sou, portanto, um completo estrangeiroem relao ao tipo de linguagem que utilizada aqui. Assim, tal comocertamente, se eu fosse realmente um estrangeiro, me desculpareis seeu falasse no dialeto na maneira em que fora educado...16

    A noo de diferena lingustica que Scrates apresenta a de um dialeto diferente do

    dialeto praticado na corte. Uma noo de educao que altera o pertencimento lingustico

    mesmo entre habitantes da mesma cidade o primeiro estranhamento que pontuamos, no

    sentido de mostrar Scrates tratado como estranho entre seus iguais e como a hospitalidade

    das diferenas mostrada de modo claro, pois se algum grego falasse de modo diferente seria

    desculpado de tal fato se foi educado em outra forma. Scrates na passagem acima intensifica

    o carter de diferena entre os costumes dos homens das leis da cidade e estabelece a

    Filosofia ou o modo como foi educado como prtica estrangeira para o grupo que o acusa.

    Scrates aparece em certo sentido como um xnos:

    Compartilhando com poetas e sofistas a impossibilidade defaz-la viver, Scrates ao mesmo tempo em que aponta para umaenigmtica semelhana, pois atravs de sua vida, se mostra e se diz,de um certo modo, xnos" , instaura uma diferena, desafiando seusconvivas, bem como a ns, a perceb-la17.

    Mas no nessa definio primordial de dialeto que Plato pensa o brbaro no dilogo

    A Repblica, e sim na definio criada depois das guerras mdicas, que revela o universo

    complexo dos gregos em contraste ao universo dos brbaros. O brbaro no compreenderia de

    16 Apologia de Scrates 17d. In: Plato. Dilogos III: Fedro/Eutfron/Apologia de Scrates/Crton/Fdon.Trad. Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2008.17 SCHALCHER, Maria da Graa Franco Ferreira. MITO E PARTICIPAO NO TIMEU DE PLATO. In:KLOS N.1: 157-165, 1997. p.160.

  • 22

    modo algum o pensamento grego e em especial as estratgias associao e de atuao social.

    Por isso responderia atravs da batalha ao invs do dialogo, por no poder dialogar e por no

    compreender o modo como os helenos pensam duas aes.

    Desde a leitura do livro Histria de Herdoto, o mundo helnico conta com uma

    definio mais concreta do mundo brbaro e comea a fundamentar a hbris de modelos

    injustos no modelo que contraria a viso do grupo pan-helnico to reforado por vrios

    pensadores, dentre eles, mesmo os sofistas como Grgias favoreceram em discursos a unio

    da hlade contra os brbaros que ameaavam a autonomia das crenas e das famlias gregas

    em seus discursos18.

    O prprio Herdoto foi reconhecido em Atenas por seus prstimos para a cidade-

    estado, por circunscrever as possibilidades que os inimigos possuam e por elogiar o

    modelo democrtico ateniense. Foi com Tucdides, tambm com seu tratado de Histria, que

    Herdoto foi vencido em termos de mtodo e que o prisma da centralidade grega comeou a

    ser priorizado em detrimento de uma abordagem mais geral que compreenda as diferenas do

    entorno19.

    Os gregos, que preferiam uma Histria das prprias guerras que no contasse com

    fontes orais de pouco crdito chegando a descrever o mundo como algo maravilhoso ou

    espantoso, thaumadzen, encontraram em Plutarco, sculos depois, a crtica que colocaria

    Herdoto como um philobrbaro. Essa noo est prxima da ideia que Momigliano analisa

    ao pensar os modelos de historiografia philobrbara e autctone de Herdoto contra Tucdides

    a qual ela diagnostica Hecateau com Niebuhr e Herclito com Hegel no sentido de dois

    grupos: os conservadores no gostam dos pesquisadores empricos por terem vises mais

    liberais e desfigurantes dos ideais dos conservadores. Hecateau retirava o direito de

    reinvindicar descendncia divina dos gregos e talvez por isso ele seja conhecido como um

    philo-barbaro20.

    18 DHERBEY, Gilbert Romeyer. Os Sofistas. Lisboa: Edies 70, 1999. 35-36.19 Abordagem de Tuccides ao falar de uma Histria que se preocupe como reestabelecimento dos fatosbuscando fontes mais claras e que foi popularizada pela abordagem de Plutarco ao criticar a Histria deHerdoto como Philobrbaro. Para um histrico dessas querelas consultar: MOMIGLIANO, Arnaldo. As razesclssicas da historiografia moderna. Trad. Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru, SP: EDUSC, 2004.

    20 MOMIGLIANO, Arnaldo. As razes clssicas da historiografia moderna. Trad. Maria Beatriz BorbaFlorenzano. Bauru, SP: EDUSC, 2004. p .59.

  • 23

    Plato no se encontra neutro nessa busca de compreender quem o adversrio do

    modelo grego em suas buscas pela justia. Se o brbaro j foi representado de modo muito

    caricatural desde Herdoto como capaz de mandar aoitar os mares e cometer diversos atos de

    hbris, o brbaro o adversrio natural do grego. Na disputa sofstica por reconhecimento

    contra os sofistas e por adequar uma postura tica a uma postura frente ao conhecimento,

    Plato precisa recriminar as desmedidas, por isso naturaliza o conflito com o brbaro numa

    passagem do dilogo A Repblica:

    Por conseguinte, diremos que, quando os Gregos combatemcom os brbaros e os brbaros com os Gregos, esto em guerra, e queso inimigos por natureza, e que a esta inimizade se deve chamarguerra. Ao passo que, quando os Gregos fizerem tal coisa aos Gregos,diremos que so amigos por natureza, que tal conjuntura a Grcia estdoente, e em discrdia civil, e essa inimizade chamaremos sedio (ARepblica 470c)21.

    Como a passagem deixa evidente, as disputas entre os gregos so tratadas como

    pequenas dissidncias, e as disputas contra os brbaros so tratadas como disputas dotadas de

    naturalidade na disputa por espaos. O brbaro no um elemento muito analisado dentro do

    contexto do dilogo A Repblica, mas encontra amplo respaldo em seu relacionamento com

    a ideia de tirano. O prprio Herdoto (um dos responsveis pela naturalizao da ideia de

    brbaro) no se refere aos persas como brbaros, mas se refere aos atos de tirania tomados

    pelos persas.

    Ao se imprimir uma poltica imperialista, tentado dominar o espao helnico, os persas

    travam uma batalha contra a possibilidade de realizao que Plato expe que pode se realizar

    na plis governada pelo filsofo e construda no lgos. No pode haver compulsoriedade das

    funes, mas respeito s liberdades e caractersticas dos cidados e aos espaos que foram

    manifestados atravs dos tempos em relao aos gregos. importante frisar que a liberdade

    em Plato diz respeito s possibilidades de realizao do indivduo dentro da sua plis,

    atuando conforme a educao de origem orientou na construo de aes de cidadania e de

    justia para com os muitos. Ao contrrio da ideia de um indivduo plenipotencirio que pode

    21 PLATO. A Repblica. Trad. Eleazar Magalhes Teixeira. Fortaleza: Edies UFC, Banco do Nordeste,2009.

  • 24

    dominar vastos terrenos e subjugar as massas pela fora, o esforo de realizao dos

    indivduos est na insero deles nas aes das massas.

    O brbaro ento o tirano e o tirano algum que deve estar longe da plis, bem

    como um termo dedicado s pessoas que no participam do modelo de cidade que o heleno

    ateniense entende que deve acontecer. Na cidade construda no lgos, no h espao para

    muitas pessoas: poetas que no se adquam a uma poesia que ensinem modelos bons e

    prescrevam verdades para as crianas, tiranos e pessoas de ndole tirnica e, portanto m, bem

    como no h espao descrito para estrangeiros. Mas teria Plato fundamentado um espao

    argumentativo em que estrangeiros no seriam consultados, referenciados ou considerados?

    Tambm no dilogo A Repblica, aparece um personagem bastante ilustrativo de

    outro termo que revela tenses na Atenas de Plato: um meteco. Um comerciante

    especializado que de origem estrangeira, mas que no exerce poder poltico direto na polis.

    Em Atenas, eles habitavam um espao marginal em relao s praas e a acrpole da cidade

    conhecido como a regio do Pireu, o porto.

    O meteco que descrito de nome Cfalo, um comerciante de escudos num espao de

    culto estrangeiro a uma deusa Trcia chamada Bndis que se relaciona deusa grega rtemis.

    Scrates participa desse espao e tem uma postura de receptividade para com os estrangeiros,

    ainda que eles sejam agressivos e persuasivos de forma indevida para com Scrates.

    Para que o meteco possa exercer algum poder dentro das estruturas da polis, o dinheiro

    que o comrcio promove fomenta a criao de uma cultura sofstica, relacionando assim como

    no dilogo do Livro I do dilogo A Repblica os sofistas aos comerciantes e aos ricos.

    Meteco tambm tem uma ligao lingustica com um conceito metafsico de Plato herdado

    do pitagorismo: o conceito de participao (methxis), a participao a instncia receptiva

    da qual todos partilhamos.

    Um tratado especfico sobre esse conceito de participao trabalho que vai muito

    alm da proposta que desenvolvemos, mas fundamental entender que ela faz parte de pensar

    o estranhamento. A Filosofia sempre de um estrangeiro das ideias buscando participar do

    sistema compreendendo seus problemas no limite de sua percepo e atuao, mas aquilo

    que temos como o melhor caminho para nos desenvolvermos: atuarmos a partir das coisas que

  • 25

    realizamos melhor e com bons propsitos, bem como nos agruparmos com aqueles que

    promovem as coisas que valorizamos.

    Sofista outro termo que normalmente ligado a um entendimento daquilo que

    provem de outra cidade-estado da Grcia, dado que os sofistas em sua maioria no se

    estabeleciam num lugar e viviam ensinando disciplinas de retrica por onde fossem. Este

    comportamento tido como uma postura estrangeira, sobretudo em Atenas. Se cada cidade-

    estado possua seus estatutos prprios e era governada de forma prpria, as cidades possuam

    tambm sotaques prprios da lngua helnica e desdobramentos prprios de cultos e estruturas

    de pensamento que no davam espao para o dilogo com posturas no pragmticas.

    Numa viso lanada principalmente desde Kerferd22 a sofstica foi revista enquanto

    uma unidade que discutia a relatividade dos discursos, mas foi lanada como possibilidade

    argumentativa por Plato para diferenciar o discurso desses pensadores sobre o logos. Muitas

    crticas nos foram legadas por Plato ao modelo da educao sofstica:

    Ora, h quem diga que no era este o projeto da sofstica e defato no podemos reduzir a contribuio dos sofistas ao mau uso quefizeram dos seus pensamentos. Entretanto tal perigo sempre existiu.Para os sofistas gregos na Antiguidade Clssica, a produo dosdiscursos, o uso e o domnio da tchne discursiva eram criativos,agradveis, pois, segundo eles mesmos, produziam subjetividadesfelizes e bem logradas. A subverso da sofstica pelo uso do poderpoltico e a subjetividade produzida por esse poder sedimentaram adesvalorizao da inteligncia, intimidaram a criao e produziram,por meio da educao sistemtica e teleolgica, o til ignbil coletivoe o domnio poltico da ignorncia. O maior temor de Plato realiza-sesculo aps sculo, em ordem crescente. A espcie humana vive esonha com bens teis, inerentes caverna.23

    A crtica ao utilitarismo do emprego dos conhecimentos da sofstica algo que

    percebemos de modo premente quando a proposta dos sofistas comparada aos modelos de

    funes manuais, as crticas da sofstica so expostas para proveito de lucros, durante o

    22 KERFERD, G. B. O Movimento Sofista. Trad. Margarida Oliva. So Paulo: Edies Loyola, 2003.23 SILVA, Markus Figueira da. Seduo e Persuso: os deliciosos perigos da sofstica. Cadernos Cedes: AFilosofia e seu ensino, v. 24, n.64, dez. 2004. P. 07.

  • 26

    primeiro grande exerccio de divises no texto O Sofista. O processo nocivo em que os

    Sofistas participaram em Atenas est ligado perda da identidade local em detrimento de uma

    identidade forjada pela ao educativa para persuaso poltica. O esfacelamento gradual de

    Atenas possibilitou um crescimento da interferncia estrangeira destruindo as definies a

    partir de teorias relativistas que legitimavam a fora da imposio retrica.

    No se pode reduzir a experincia da sofstica como parte negativa, ao formular

    tcnicas de uso da lngua e aproveitamento dos recursos para obteno de sucesso poltico e

    econmico. As inovaes foram agradveis e produziram modos de viver e agir bem aceitos,

    que conduziram o modelo poltico democrtico de modo bastante ativo entre os discpulos dos

    sofistas. As quebras sucessivas da economia ateniense, em conflito com os espartanos e na

    manuteno do sistema democrtico frente aos monrquicos como o dos Persas, favoreceram

    uma situao de crise na qual as pessoas passaram a atribuir culpa aos estrangeiros ou ideias

    que quebravam com os modelos anteriores da religiosidade e manuteno das tradies na

    cidade.

    Para Moses Finley, Scrates sofre de uma pena que era tambm determinada para os

    sofistas que exerciam funes de perverso da juventude em seus hbitos citadinos. As

    massas no percebiam concretamente a diferena entre Scrates e os sofistas ou outros sbios

    que pregavam seus preceitos em Atenas24. A massa no sabia diferenciar adequadamente

    pessoas como Scrates de sofistas, que pervertiam o entendimento das instituies polticas

    atravs do incentivo de educao que favorecesse estrangeiros descomprometidos com as

    tradies da plis.

    Sofista um termo que nasce na confluncia de sbios, mas com Plato que o termo

    toma o sentido que temos hoje: especificar os que trabalham com teorias de cunho relativista

    da linguagem, ou mais focados na retrica como sada para compreender as coisas de forma a

    gerar aes polticas voltadas para a realidade pragmtica da obteno de poder. Cassin

    apresenta esses argumentos mostrando como Plato tambm forjou essa apresentao para

    legar aos sofistas a um papel diferente e secundrio na Histria do pensamento25.

    Pelos termos apresentados at aqui o estrangeiro no era bem visto, mas Plato e a

    cultura grega apresentam elementos de receptividade para com os estranhos no sentido da

    24 FINLEY, Moses I. Aspectos da Antiguidade: descobertas e controvrsias. Lisboa: Edies 70, 1990.p. 70.25CASSIN, Brbara. O efeito sofstico: sofstica, filosofia, retrica, literatura. Trad. Ana Lcia de Oliveira,Maria Cristina Franco Ferraz e Paulo Pinhairo. So Paulo: Ed.34, 2005.

  • 27

    hospitalidade. As aparies de sofistas nos dilogos platnicos esto aladas na percepo da

    hospitalidade grega. Os estrangeiros eram recebidos como hspedes de grandes financiadores

    que fomentavam a participao pblica desses pensadores retricos. Da pensar a ligao dos

    sofistas como xnos e tentar entender como Plato se apropria do xnos como estratgia de

    reviso e de avano dialtico de suas propostas.

    Mesmo Kerferd demonstra que, ainda que se tenha uma crtica da sofstica iniciada por

    Plato, este no afirma que a sofstica deve ser um caminho expurgado. Se existe um processo

    de purificao na construo do conhecimento platnico, esse caminho passa em vrios

    momentos da filosofia platnica. Tomando o modo de ver os sofistas analisamos as etapas do

    seguinte modo: ao se falar com sofistas na fase socrtica com as primeiras divergncias

    destacadamente contra Grgias, ao se constatar que as teorias sofsticas so inadequadas para

    plis no dilogo A Repblica no conflito contra Trasmaco e a fase de maturidade com a

    constante reviso baseada em Protgoras nos dilogos O Teeteto e O Sofista.

    Os espartanos, por exemplo, venceram os atenienses no intervalo posterior ao que

    dramatizado no dilogo A Repblica e instituiu um regime conhecido como o dos Trinta

    Tiranos em Atenas, regime que espoliou, expulsou ou matou muitos estrangeiros que residiam

    na cidade. A maior dificuldade a de definir qual o lugar social dos estrangeiros quando a

    cidade est em decadncia, pois quando estrangeiros dominam a cidade ela exposta a

    perversos regimes de seus conquistadores, como foi o caso da Atenas em questo.

    Quando, nas lnguas modernas ocidentais, se pretende referir ao receio de

    determinados pases para com membros estrangeiros exercendo funes em seus territrios,

    usa-se a acusao de xenofobia. Teriam os gregos o receio de receber hspedes ou visitantes

    que temos configurado nas sociedades contemporneas?

    Xnos est ligado cultura grega da hospitalidade, como descreve Jacques Derrida26

    num compromisso de recepo dos homens daqueles que chegam e se comprometem a

    identificar-se, que no so hostis ao modelo heleno e que solicitam auxlio por no terem

    condies de subsistncia em terreno novo ou em ambiente de guerra.

    As tradues do dialogo O Sofista e do dilogo O Poltico no Brasil costumam se

    apoiar na traduo francesa que entende o termo como trangere, mas a traduo de Nicholas

    26 DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade . Trad.Antonio Romane. So Paulo: Escuta, 2003.

  • 28

    P. White elucida a ideia de hospitalidade ao traduzir o termo por visitor. A noo de visitante

    ou de hspede a mais adequada para expor um indivduo que comparece por convite e por

    quem os colegas de Scrates vo demonstrar admirao por seu potencial de buscar a

    Filosofia.

    Continuando a analisar as formas de traduo, destacamos tambm a verso alem

    com o uso Frendem27, termo que em alemo est ligado a uma noo de estrangeiro ao invs

    de hspede, mas que em alemo est amparada por estar ligada ao radical de amizade como

    sendo ligado s terminologias de turismo. Em espanhol aparece extranjero, novamente

    ratificando nosso vcio de traduo por estrangeiro ao invs de hspede ou visitante.

    Para Jean Pierre Vernant, os gregos possuam um culto especfico para o deus dos

    estrangeiros, que deveriam receber auxlio dos gregos, sob pena de punio do prprio Zeus

    Xnios se no respeitassem as prticas de hospitalidade28. No caso de Atenas isso ainda era

    mais forte pela tradio de um Zeus Polieus e o texto deixa clara a referncia instncia

    divina que guarda os estrangeiros.

    Diante do imperativo de receber esses sofistas e de acolher suas concepes, o que

    aconteceria se um estrangeiro viesse de uma regio com cultura distinta? Regio dos que so

    herdeiros, no to bem vistos por Plato, das teorias de Herclito e ao contrrio o estrangeiro

    fosse algum da escola de Elia, ou um dissidente da escola de Elia?

    A capacidade de recepcionar um hspede, com opinies dspares das costumeiramente

    apresentadas em Atenas, aparece nos dilogos O Sofista e O Poltico com um personagem

    que qualificado como um filsofo sem nome mas com destaque para a provenincia; mas

    que vai ter que reconhecer que suas origens epistmicas no velho Parmnides precisam ser

    revistas. A construo dramtica permite uma situao inusitada e rica em diferenas que no

    eram costumeiramente contempladas nos dilogos anteriores pela prpria esfera de

    pertencimento dos personagens no ter um estrangeiro, como o eleata criado por Plato. Sobre

    os personagens:

    27 Plato. Der Sophist: Griechisch-deutsch. Trad. Felix Meiner Verlag Philosophische Bibliothek Band: 1985.

    28 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religio na Grcia antiga. Trad. Constana Marcondes Csar. Campinas, SP: Papirus, 1992. p. 41.

  • 29

    Os personagens criados por Plato, mais do que simplesrecursos de expresso, constituem um esforo para tornar explcitas einteligveis atitudes ticas e posies tericas fundamentaisdetectveis entre os cidados, artesos, homens polticos, poetas epensadores de sua poca, de modo que a inveno de personagensconstitui uma dinmica na qual retrica e filosofia so inseparveis. Amesma estratgia retrica, que consiste em fazer falar os outros,estrutura os dilogos, com algumas variaes: encontramospersonagens nomeados e annimos, aluses mais ou menos diretas aindivduos histricos, personagens puramente fictcios, simplesremisses a algum que no est presente, e ainda personagens-tipo oumesmo argumentos personificados. Ao fazer falar estes outros,Plato os assimila para produzi-los ou reproduzi-los enquantopersonagens que dialogam entre si. O que nico e fundamental queele s fala e pensa dessa maneira. Nunca encontramos um discurso emprimeira pessoa do prprio autor dos dilogos. Plato nos aparece,assim, como um ventrloquo, mgico dos discursos, imitador dehomens e de caracteres sempre presente, sempre ausente; semprepressuposto e visado, sempre evadindo-se. Para sabermos o que dizPlato, preciso interpretar, preciso contrapor e avaliar as diferenasque significam as personagens e, neste confronto, tentar construir suaidentidade. De modo que s a encontramos atravs de um processocomplexo de progressiva construo do autor. O autor, sempre virtual, necessariamente o resultado de uma composio operada pelo leitor.Proponho caracterizar esse recurso retrico-filosfico fundamental,utilizado por Plato, que consiste em falar e pensar atravs depersonagens, como uma retrica da diferena, um processo depermanente alterizao de si ao pensar e escrever.29

    Na condio de personagem, o que se busca entender o hspede seguindo os moldes

    expressos acima: mais do que um recurso de expresso, um esforo de aproximar do

    entendimento posturas ticas e posies tericas de diferentes camadas atravs de um

    personagem annimo. Personagem este que faz referncia a indivduos histricos sendo ao

    mesmo tempo uma remisso a algum e uma fico, bem como um argumento personificado,

    a saber: das diferenas que dialogam entre si nos trs personagens centrais para o processo de

    inovao tecnolgica da Grcia: o sofista, o poltico e o filsofo. Compreendemos o

    personagem em questo na medida em que contrapomos essa figura a Scrates para um

    entendimento mais apurado dos contrastes da retrica da diferena, na medida em que

    percebemos uma postura platnica que caracterizada como tpica dos dilogos de

    maturidade de abandonar as posturas de Scrates na composio dramtica da maioria de seus

    dilogos dessa etapa da produo platnica.29 MARQUES, Marcelo Pimenta. Plato, pensador da diferena: Uma leitura do sofista. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. p.40

  • 30

    Devemos destacar ainda:

    O estilo literrio de Plato possui uma caracterstica quemuitas vezes deixa o leitor atnito: o filsofo trata em uma mesmaobra de vrios assuntos paralelamente, desenvolvendo e resolvendo-os, quando resolve, todos ao mesmo tempo, ora privilegiando umproblema ora outro, de sorte que bem difcil saber qual o maisimportante. O Sofista seguramente um exemplo mpar desse estilo.Percorrendo os meandros de sua argumentao, o leitor poder terdificuldade em determinar o tema ou problema principal da discusso,aqueles secundrios e a ordem hierrquica que possam configurar30.

    O hspede estabelece uma viso com distncia conceitual e com experincia em

    outras formas de governo que os atenienses ainda no tinham tanto contato quanto o

    personagem eleata. Se Diotima no dilogo O Banquete contempla que o crescimento

    intelectual daquilo que vem a ser o belo passa pelas coisas sensveis que se pode chegar

    prximo, avana pela vastido das formas que participam do belo no alm-mar at se chegar a

    experincia de entendimento daquilo que vem a ser o belo em si, pela experincia do dilogo

    com a diversidade31; Diotima tambm uma hspede e segundo a fala de Scrates foi sua

    mestra nas artes de ros:

    E para vocs eu deixarei agora; com o discurso que sobre o Amor euouvi um dia, de uma mulher de Mantinia, Diotima, que nesse assuntoe em muitos outros era entendida32.

    Deixando claras suas tcnicas de dilogo como: Xene anakrinousa dieei (hspede

    passou ao inqurito)33, a hspede mostrou para Scrates os sentidos de pensar as coisas de

    ros numa personagem que aparece como uma remisso a um dilogo anterior narrado dentro

    30 SILVA, Jos Loureno da. Sobre o mtodo dialtico da diviso por espcies no Sofista. Dissertao de mestrado. Campinas, 2000. p. 07.

    31 Possibilidade apresentada detalhadamente como uma ascese na compreenso do belo que figura no passo 210 a 210 e do Banquete.32 Banquete 201 d- , ' ,

    33 Banquete 201 e.

  • 31

    de uma dilogo. A maior parte da discusso no Banquete acontece quando dois personagens

    se recordam de uma ocasio em que Scrates participou de um banquete e Scrates por sua

    vez se lembra das colocaes que Diotima fez outrora.

    O hspede figura como uma possibilidade de apresentar noes das teorias

    platnicas atravs do dilogo com as diferenas, se analisarmos que o termo aparece entre

    personagens com destaque para pontos bastante avanados no entendimento de alguns

    dilogos, a saber; O Sofista, O Poltico, O Banquete e As Leis para ficarmos entre os mais

    decisivos de nossas citaes. Essas diferenas que buscam uma unidade nas questes

    filosficas: o saber sobre o ser e o no ser, as formas de governo em sua reta ordenao aos

    governados, a reta noo do amor e a constituio mais adequada para a cidade no sentido de

    relacionarem aos demais os conhecimentos que podem ser estranhos aos citadinos de Atenas.

    Interpretamos como esses usos demonstram uma participao das diferenas no uno, e

    que so propostas possveis atravs da hospitalidade ao modo de ver dos estranhos que

    tenham natureza filosfica. Se evidenciarmos que a principal apario de Parmnides na

    conjuntura dos dilogos platnicos exatamente para discutir o Uno que as possibilidades

    que Plato lana so possveis pelo contraste entre o Uno e o Mltiplo: pensar o papel do

    estrangeiro mais um recurso para pensar o fazer Filosofia.

    Como um tributo da proposta aqui arquitetada, o modelo de pensar Plato no seu

    esforo de compreender as diferenas enfim uma herana da leitura que realizamos e

    adaptamos de Marcelo Pimenta Marques ao descrever o processo daquilo que Plato teorizou

    no dilogo Sofista como o dilogo da diferena34. Ele analisa a partir do lxico sobre

    diferena no dilogo O Sofista e explicita sua opinio modelando as vises de diferena no

    dilogo O Sofista. Dentre essas vises, destaco aqui o primeiro captulo de seu livro Plato,

    pensador da Diferena em que as referncias a Homero so retomadas no quesito da xnia

    como primeiro ponto das diferenas que o texto vai ressaltar na possibilidade argumentativa

    seguinte: entender a proposta do texto como um olhar sobre a diferena nos mais variados

    vieses da argumentao sobre o ser.

    34 MARQUES, Marcelo Pimenta. Plato, pensador da diferena: Uma leitura do sofista. Belo Horizonte:Editora da UFMG, 2006.

  • 32

    Outra abordagem importante encontra-se na traduo que nos foi apresentada com

    antecipao ao prprio livro pelo professor Henrique Graciano Murachco35. Nessa traduo do

    dilogo O Sofista para o portugus lanada a ideia de traduzir xnos por hspede e

    demonstrou que tratar o personagem de elia como um mero estrangeiro no condiz com o

    contexto de um dilogo amigvel e sereno sobre problemas seriamente discutidos por seus

    participantes. Esse modo de traduzir conflita com as tradues disponveis que observam

    como um estrangeiro, fato que nos inquietou e fez pensar o impacto que essa leitura teve para

    analisar os dilogos em que xnos aparece.

    H uma outra perspectiva de anlise do dilogo O Sofista que destaca a casca do

    dilogo:

    Se, para definirmos o escopo ou assunto dominante queunifica as diversas discusses particulares deste dilogo, dssemosouvidos apenas a fortuna crtica, haveramos de admitir serem tantosos objetivos do Sofista quantas so as suas interpretaes. Mesmo atradio aceita desde Th. Gomperz no pde determinar o problemacentral da discusso filosfica, embora pretenda integrar as duaspartes componentes do dilogo pela metfora da casca e do fruto:aquela representando as definies do sofista e este a demonstrao dapossibilidade de erro, fundada, por sua vez, na proposio daexistncia do no-ser. A impresso que nos deixa, que compete acada leitor decidir a questo36.

    A conciliao entre a casca e o fruto algo que pretendemos analisar aqui e talvez

    uma das formas de anlise em que Heidegger tenha sido um dos primeiros:

    Claramente, Heidegger tem tido o imenso mrito de pensar OSofista como um todo, de sublinhar a dimenso dialtica dasdefinies e preliminares do Sofista e de estabelecer que esta dialticainterroga na direo da coisa ela mesma, A saber o ser, que oprincpio de enlace dos quatro gneros determinantes do mundo comoda linguagem, o movimento e o repouso, o mesmo e o outro37.

    35 PLATO. O Sofista. Trad. Juvino Maia e Henrique Murachco. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2012.36 SILVA, Jos Loureno Pereira da. Sobre o Mtodo dialtico da diviso por espcies no Sofista.Unicamp: Dissertao de mestrado, 2000.

    37 MATTI, Jean Franois. La subversion sophistique chez Platon. In: Noesis. N. 2. 1998. p. 83. En clair,Heidegger a eu l'immense mrite de penser le Sophiste comme un tout, de souligner la dimension dialectique des

  • 33

    Como sublinha Matti, devemos a Heidegger, em seu curso de inverno, o pensamento

    do dilogo O Sofista como um todo e numa perspectiva que vai redefinir o fruto do dilogo,

    mas talvez a proposio que aqui lanamos sirva para repensar a ideia de casca do dilogo:

    reapresentando o problema inicial e repensando como enfrent-lo. Pensando nesse sentido

    que sublinhamos o trabalho de Noburo Notomi38 que em seu resumo afirma que os filsofos

    tm estado tmidos para discutir o tema central do dilogo que para ele o confronto entre o

    Filsofo e o Sofista.

    Pretendemos esboar nossa busca com a originalidade de apenas tratar da ideia de

    alteridade ou de diferena analisando o personagem central. Assim descreveremos o maior

    recurso para Plato esboar essa diferena e como isso se liga proposta que une

    dramaticamente os dilogos de velhice que participam dos modelos lanados pelo eleata.

    Como uma parte que revela elementos do todo, compreender a transformao do sentido de

    estrangeiro de um conceito de estranheza para um personagem hospedado, essa mudana

    estilstica revela mudanas de proposta e abertura para a diferena e principalmente na busca

    dos conceitos: Sofista, Poltico e Filsofo.

    Interessante perceber que o fato de o estrangeiro no ter nome e seguir num dilogo

    srio com as teorias do no-ser, que foram discutidas pelos sofistas e at apresentadas no

    dilogo anterior na discusso sobre as possibilidades do saber O Teeteto, d margem para

    compreender heranas para com vrias figuras filosficas nas compreenses lanadas no

    dilogo O Sofista. As heranas de outros pensadores so descritas nos seguintes pensadores:

    Protgoras, Antstenes, Parmnides, Herclito, Grgias e outros sofistas como cita Eliane

    Christina ao comentar a importncia do argumento desses vrios filsofos para se

    compreender a dinmica do dilogo O Sofista39.

    A multiplicidade de abordagens sofsticas que aparecem no tocante interferncia das

    teorias sobre o ser no dilogo O Sofista esto calcadas na possibilidade platnica de um

    dfinitions pralables du sophiste, et d'tablir que cette dialectique interroge en direction de la chose elle-mme , savoir l'tre, qui est le principe d'enlacement des quatre genres dterminants du monde comme dulangage, le Mouvement et le Repos, le Mme et l'Autre.

    38 NOTOMI, Noburo. The Unity of Platos Sophist. Between the sophiste and the philosopher. Cambridge: CUP, 1999.

    39 SOUZA, Eliane Christina. Discurso e Ontologia no Sofista. Iju: Ed. Uniju, 2009

  • 34

    personagem outro ou diferente, que demostre toda a multiplicidade dos argumentos e procure

    se posicionar de modo intermedirio entre a sofstica e os parmendeos. A concluso de Eliane

    Christina caminha para pensar num eleata que vislumbra o discurso sofstico e a ontologia

    parmendea ao mesmo tempo conciliados atravs do modelo de Antstenes. Discordamos

    nesse sentido da valorizao de Antstenes por entendermos, assim como Cornford40 , que h

    uma continuidade do modelo epistmico do dilogo O Teeteto para o dilogo O Sofista,

    principalmente revisitado pela anlise das teorias de Protgoras. Defendemos que a partir das

    contradies e retomadas crticas do modelo de Protgoras e de Grgias ao estudar o logos

    que devem ser as grandes bases do modelo platnico de pensar a contradio dos termos,

    apresentando as incoerncias e contribuies que os pensadores do no-ser nos legam. No

    sentido de representao dos personagens em suas caractersticas para a composio

    dramtica, como j foi exposto, pensamos o lugar diferenciado dentre os sofistas no

    posicionamento platnico tambm pela representao constante de Protgoras, seja como

    personagem em algum dilogo ou pela releitura e constate citao que feita sobre seu

    pensamento, notadamente nos dilogos: Protgoras, O Teeteto, e O Sofista.

    O personagem pode ser pensado como um recurso do fazer filosfico platnico na

    medida em que pode ser caracterizado como diferena a ser seguida no modelo do dilogo

    como esboa Mario Vegeti:

    Os dilogos no so captulos de um tratado, e o que neles exposto no um sistema fechado de doutrinas filosficas. Osdilogos representam, ao contrrio, a encenao da pesquisa filosfica,de seus problemas, de seus argumentos; o autor est presente em todosos seus personagens, nas teses filosficas e nas formas de vida queeles representam [...]41

    Pela perspectiva de Mario Vegeti, pretende-se pensar a hiptese de enunciar

    significados com o personagem enigmtico mostrando: como ele se insere na pesquisa

    filosfica platnica, como ele trata os problemas que vai discutir, como o autor discute os

    temas antes tratados e os renova atravs do prisma de um novo personagem e de como

    40 CORNFORD, Francis MacDonald. Plato's Theory Of Knowledge. Paris: Routledge & Kegan Paul,1957.41 VEGETI, Mario apud PEREIRA FILHO, Gerson. Uma Filosofia da Histria em Plato: O percurso histricoda cidade platnica de As Leis. So Paulo: Paulus, 2009. P. 27.

  • 35

    importante contemplar questes (a prpria atitude de teorizar) atravs de vieses e lugares

    diferentes para se aproximar de entendimentos mais puros. A ideia de Mario Vegeti apresenta

    uma viso de que os significados que Plato pretendia imprimir vo alm dos personagens ou

    apenas da opinio vencedora, contemplam a diversidade da construo dialgica de sua obra.

    O formato do dilogo possibilita pensar numa construo filosfica em que todos os

    elementos conduzem a modelos de entendimento que se reinventam pelas prprias

    caractersticas do inqurito incessante que a reflexo filosfica precisa.

    Outro ponto que acordamos com Mario Vegeti a importncia do dilogo ao no

    expor sistemas fechados de doutrinas filosficas ou como captulos de tratados, a escrita

    filosfica em Plato possui uma dinmica constante, no sentido de se permitir percorrer

    caminhos distintos dos propostos inicialmente e quebrar os limites de uma exposio para

    reinventar pesquisas e modos de vislumbrar as questes que aparecem. Por essa perspectiva,

    cada apario dos conceitos possui sua importncia na compreenso da totalidade das

    abordagens e deve se compreender os contrastes como pontos importantes ainda no tratados

    das questes filosficas.

    Analisando a partir do recurso: ao entender o personagem e aplicao do termo

    hspede, buscamos elucidar como a recepo das diferenas pode ser interpretada no contexto

    do que Plato produziu e de algum modo com essa noo que se altera durante a obra.

    Pensando em termos da cronologia dos dilogos platnicos, uma dos marcos mais claros na

    ordem de exposio dos dilogos est exatamente em pensar o Plato da velhice como

    representado no dilogo O Sofista. O marco j citado fica claro pelo fato do comeo do

    dilogo tratar de um engajamento anterior discusso sobre o ser que de algum modo

    antecipado com a questo da busca pelo conhecimento no dilogo O Teeteto; por sua vez O

    Sofista seria sucedido pelo dilogo O Poltico que continuaria a problemtica apresentada em

    O Sofista e ficaria a lacuna de um dilogo perdido que deveria ser chamado O Filsofo, uma

    tentativa de resposta ao problema investigativo lanado desde o dilogo O Sofista que

    continuando no dilogo O Poltico.

    Refletindo sobre o modo como os dilogos se estabelecem, Corlett analisa um ponto

    comum entre os pensadores que ele designa como da vertente que busca uma teoria platnica

    e os pensadores que buscam uma teoria socrtica:

    interessante notar que h um campo comum entre intrpretesteorticos e socrticos de Plato. Alguns dos pontos gerais so o

  • 36

    mtuo acordo deles nos pontos que seguem: (1) Plato escrevedilogos, no tratados, (2) Existem certos pontos de vista propostospor certos personagens dos dilogos no corpus platnico; (3) Platoescreve dilogos por um propsito, ou um conjunto de propsitos, umo qual guiar os leitores para as filosficas e objetivas verdades; (4)Plato de fato tem pontos de vista, guardados no entanto portentativas; e (5) existem melhores e piores caminhos para ler osdilogos platnicos .42

    Segundo o contexto comum dos interpretes que consta no texto que acabamos de citar:

    a escrita platnica no uma escrita de tratados, portanto no so abordagens sistemticas

    sobre um nico tema, mas textos que conduzem a entendimentos da pesquisa filosfica;

    determinados personagens so propositivos de determinadas formas de avaliar problemas ou

    tem posies prprias; a escrita possui um propsito ou vrios e dentre esses propsitos o de

    guiar os leitores para verdades filosficas objetivas; Plato possui vises filosficas

    resguardadas pelas tentativas de seus constantes questionamentos e existem melhores e piores

    maneiras de ler os dilogos platnicos. Esses entendimentos nos conduzem a pensar quais

    vises os personagens, o enredo e as principais questes dos dilogos de anlise podem

    revelar.

    No se pretende negar as vrias possibilidades argumentativas que a escrita ou a

    ordenao distinta da proposta desses dilogos ainda guarda; suscitando muitos problemas de

    interpretao e ganhando novas teorias segundo os usos de termos, estilos, ordem sequencial

    dos fatos e concatenaes possveis do conjunto terico platnico. O ganho dessas

    interpretaes auxilia a ver critrios do texto que no se evidenciam de outros modos, mas a

    base conceitual do dilogo O Sofista seguido pelo dilogo O Poltico um dos principais

    marcos dentro da cronologia platnica nas amostragens de Leonard Brandwood43, sendo

    textos reconhecidos como de sequncia estilstica e dramtica.

    Se no dilogo As Leis a possibilidade de pensar um conjunto de normas sociais surge

    dos dilogos entre estrangeiros ou hspedes no espao estrangeiro nas falas do ateniense, do42 CORLETT, J. Angelo. Interpreting Platos dialogues. Great Britain: Classical Quarterly, 1997. Vol. 47, No.2. p.425. It is of interest to note that there is a common ground amongst theoretical and Socratical interpretersof Plato. Some of the general points of mutual agreement between them seem to be following: (1) Plato writesdialogues, not treatises, (2) There are certain views propounded by certain dialogical characters in the Platoniccorpus; (3) Plato writes dialogues for a purpose, or a set of purposes, one of which is to guide readers to aphilosophical and objective truths; (4) Plato indeed has philosophical views, held however by tentatively; and(5) there are better and worse ways to read Platos dialogues

    43 BRANDWOOD, Leonard. Stylometry and chronology. In: KRAUT, Richard (Ed.). The CambridgeCompanion to Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. P. 90-120.

  • 37

    lacedemnio e de Clnias. A possibilidade de contemplar a comunidade dos costumes surge

    ao questionar a provenincia dos costumes percebendo uma identidade que os cerca nas

    manifestaes pertinentes s divindades e a educao, portanto maiores do que os mortais em

    suas identidades citadinas:

    Ateniense: Prefervel a divindade a este homem, hspede, parareceber o uso de tal disposio dos costumes.Clnias: Divindade, hspede, Divindade, de onde vem a justiaseno de Zeus? Talvez dos lacedemnios, os quais brilham comesse pressgio luminoso de Apolo. 44

    Na Carta VII o recurso empregado para compreender o processo de conhecimento

    no mais se ancora no uso de um personagem estrangeiro ou na produo de dilogo, mas no

    se fazer estrangeiro e entrar em conflito com as possibilidades que habitar Siracusa podem

    fornecer: a experincia de orientar as pessoas de modo justo construindo uma cidade com a

    ordem filosfica. O estrangeiro uma etapa na compreenso do modelo platnico assim como

    poderia ser o caso de pensar a posio de Scrates. O posicionamento que est sendo deixado

    para estrangeiros o de tornar os leitores estranhos aos seus costumes em suas prprias terras,

    para analisarem atravs da Filosofia a possibilidade de contemplar modelos diferentes.

    Em Epinomis, um eplogo para o dilogo As Leis de autoria bastante incerta, existe

    um entendimento que os grandes temas daquilo que deveria ser o fazer filosfico reaparecem

    com as trs provenincias descritas no dilogo As Leis : O ateniense, Megilo o lacedemnio e

    Clnias o cretense. Nesse caso os trs personagens se tratam como hspedes-estrangeiros e

    contrastam os seus modelos de sociedade para pensar a proposta final de Plato.

    Tornar o estrangeiro uma problemtica envolve pensar uma teoria da recepo e do

    pensamento das alteridades em Plato; um prottipo de modelo baseado no lugar de onde se

    fala e a quem e o que a voz que est falando pretende representar. Para analisar a

    concatenao da problemtica que se pretende investigar do hspede (o personagem) como

    elo entre os dilogos O Sofista e O Poltico e da busca por responder a uma problemtica

    44 As Leis 624 a {.} , , {.} , , , , ,

    , .

  • 38

    comum dividida principalmente em O Sofista na forma de ver a questo do no ser e em O

    Poltico nas formas de ver os modos de governo, se faz necessrio proceder em anlises da

    sequencia dramtica dos textos centrais para fomentar o entendimento possvel da

    problemtica que at aqui foi esboada.

    1.2 O estrangeiro como problema na obra de Plato, especialmente nos dilogos O

    Sofista e O Poltico.

    O objetivo deste captulo expor em que sentido a compreenso dos usos de

    estrangeiro podem nos auxiliar a pensar a diferena em Plato. Como esse recurso se

    reinventa e se mostra profcuo a produo dramtica e filosfica. Analisando a posio de

    Joly, Pimenta Marques comenta:

    A novidade no pensamento do outro em Plato consistiria narequalificao lgica e ontolgica de um hteron que aparece comouma categoria plurifuncional, um no-ser que pode acender, atravsda congruncia total com o outro, dignidade de uma categoria deser45.

    A chave interpretativa do personagem ganha maior conciso ao pensarmos o papel que

    o personagem xnos ocupa dentro da estrutura dos dilogos pensada por Benoit:

    Trs herdeiros do logos socrtico o substituiro aqui, e em certosentido, para sempre: o jovem Teeteto, semelhante a elefisicamente; o jovem Scrates, semelhante pelo nome; e oEstrangeiro de Elia, semelhante pelo mesmo pai conceitual,Parmnides, o filsofo do Ser46.

    45 MARQUES, Marcelo Pimenta. Plato, pensador da diferena: Uma leitura do sofista. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. p. 31.

    46 BENOIT, Hector A . Scrates: o nascimento da razo negativa. So Paulo: Moderna, 1996. p.87.

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    Essa chave interpretativa, tambm presente na Tetralogia dramtica do pensar, em

    especial em A Odissia dramtica de Plato47 revela um modo dramtico do pensamento

    platnico que discutido, mas que na citao acima encontra um posicionamento definido.

    Scrates substitudo por outros trs que participam com ele das diferentes formas de

    pertencimento da identidade: a forma, o nome e o pertencimento inteligvel. Nesse argumento,

    at esses personagens formariam uma tetralogia do saber implcita na proposta.

    Analisando a relao do modo como os personagens atuam nos