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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM DANIEL DE HOLLANDA CAVALCANTI PIÑEIRO Multiplicando Veredas entre Guimarães Rosa e Oswaldo Lamartine Natal 2014 DANIEL DE HOLLANDA CAVALCANTI PIÑEIRO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE … · RESUMO A presente dissertação se propõe a estudar os elos entre a linha sertaneja rosiana, representada por Grande

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

DANIEL DE HOLLANDA CAVALCANTI PIÑEIRO

Multiplicando Veredas entre Guimarães Rosa e Oswaldo Lamartine

Natal

2014

DANIEL DE HOLLANDA CAVALCANTI PIÑEIRO

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Multiplicando Veredas entre Guimarães Rosa e Oswaldo Lamartine

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação

em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte, área de concentração em Literatura

Comparada, linha de pesquisa Literatura e Memória

Cultural, como requisito parcial para a obtenção do título

de mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Edna Maria Rangel de Sá

Natal

2014

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DANIEL DE HOLLANDA CAVALCANTI PIÑEIRO

Multiplicando Veredas entre Guimarães Rosa e Oswaldo Lamartine

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação

em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte, área de concentração em Literatura

Comparada, linha de pesquisa Literatura e Memória

Cultural, como requisito parcial para a obtenção do título

de mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Edna Maria Rangel de Sá

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________

Profa. Dra. Edna Rangel de Sá – UFRN

(Orientadora)

_______________________________________________

Prof. Dr. Derivaldo dos Santos – UFRN

Examinador

_______________________________________________

Profa. Dra. Maria Suely da Costa – UEFB

Examinadora

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DEDICATÓRIA

A meus pais, pelo apoio incondicional durante minha formação

ao assumirem meus sonhos inseguros como cruzada pessoal,

dando-me forças mesmo nos momentos mais frágeis.

A meus avós, que me despertaram o interesse por histórias e

memórias familiares, preparando minha percepção para o

presente trabalho.

A Ovídeo Valois Correia, vivo em memória como pesquisador,

professor e intelectual exemplar.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Edna Maria Rangel de Sá, pelas lições de vida ao longo

de 5 anos de trabalho na Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte (ECT-UFRN), sendo um dos meus principais exemplo de atuação

docente, e por dois anos de orientação sincera e reveladora de caminhos, sem a qual não

teria concluído minha dissertação e formação.

Ao Professor Doutor Derivaldo dos Santos, por boa parte de minha formação

como pesquisador devido às suas aulas e indicações de leitura, desobrigado de

orientações, mas em direito coorientador desse trabalho.

À Professora Doutora Maria Suely da Costa, pelas orientações essenciais

presentes em sua leitura minuciosa da fase de qualificação do presente trabalho, guiando

meus passos vacilantes na (re)escrita de todos os capítulos.

Aos Professores Doutores Alex Beigui de Paiva Cavalcante, Gerardo Andres

Godoy Fajardo e Humberto Hermenegildo de Araujo pela capacitação crítica, teórica e

metodológica proporcionada em suas aulas ao longo do primeiro ano do mestrado, cujo

conteúdo foi a base de minha escrita.

À secretaria do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEL-UFRN) e ao Programa de Apoio a

Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), pela

orientação e auxílio que garantiram minha permanência na universidade durante os dois

anos de curso.

Aos professores orientadores, colegas professores estagiários e monitores da

Escola de Ciências e Tecnologia (ECT-UFRN) que influenciaram em minha formação ao

longo dos últimos 5 anos, participando em várias etapas do desenvolvimento do presente

trabalho.

Aos colegas coorientados, que participaram ativamente no avanço de minha

escrita: Gercleide, Layana, Lédja, Mirlene e Valdir.

Aos meus familiares e amigos que me acompanharam durante esse período de

formação e me auxiliaram em questões aparentemente banais, mas de grande

importância: Arlete e Gumercindo, Emílio e Ruth, Fabiano e Alaíde, Maria Carolina, Ovídio

e Fátima.

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RESUMO

A presente dissertação se propõe a estudar os elos entre a linha sertaneja rosiana,

representada por Grande sertão: veredas (2011), e a seridoense do interior do estado do

Rio Grande do Norte, nos ensaios de Sertões do Seridó (1980) de Oswaldo Lamartine de

Faria, como uma continuação da tradição iniciada por Guimarães Rosa. Para isso,

consideramos as definições sobre regionalismo desde Antonio Candido (2000) até

Chiappini (1995), que nos permitem ampliar a visão da tendência no Brasil, e mostramos

as ligações iniciais entre as duas obras citadas. Dessa forma, ao conceito de regionalismo

unimos o de tradição (CANDIDO, 2001) e nossa leitura de Lamartine é guiada para o

ensaísmo como a fronteira entre escrita ideológica-literária (HARO, 2005), que se

aproxima da ficção rosiana. É por esse caminho que analisamos os cinco ensaios de

Sertões do Seridó, e aproximamos as criações do escritor mineiro e do potiguar pelo que

se evidencia na construção de seus sertões: a ficcionalidade no ato narrativo aproximado

a Walter Benjamin (1987), pautado em “gatilhos da memória” (BOSI, 1979) e que nos leva

às reconstruções da história, especialmente pela presença de narradores idosos. Com

tais projetos, concluímos que o lastro entre Rosa e Lamartine nos leva para um

regionalismo cuja força não se encontra no choque do exotismo, mas em sua

aproximação aos leitores. Ambos os autores tornam os sertões universais pela

apresentação do fator regional.

PALAVRAS-CHAVE: regionalismo; tradição; ensaio; memórias.

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ABSTRACT

The present dissertation proposes to study the links between Guimarães Rosa's

backlands line, represented by The Devil to pay in the Backlands (2011), and the one from

Seridó's region in the state of Rio Grande do Norte, found in the essays of Sertões do

Seridó (1980) by Oswaldo Lamartine de Faria, as a continuation of the tradition begun by

Guimarães Rosa. For this, we consider the definitions of regionalism from Antonio Candido

(2000) to Chiappini (1995), which allow us to expand the view of the literary tendency in

Brazil, and so we show the initial connections between the two mentioned works. This way,

the concept of regionalism joins the notion of tradition (Candido, 2001) and our reading

about Lamartine is guided for the essayism as the border between ideological-literary

writing (HARO, 2005), which get closer to Guimarães Rosa's fiction. It is through this path

that we analyze five essays of Sertões do Seridó, and approach the creations of the two

writers from what is evident in the construction of their backlands: the fictionality in the

narrative act similar to Walter Benjamin's (1987), guided by "triggers of memory "(BOSI,

1979) which leads us to reconstructions of history, especially by the presence of elderly

narrators. With such projects, we conclude that the basis between Rosa and Lamartine

leads to regionalism whose strength is not in the shock of exoticism, but in its

approximation to readers. Both authors make the backlands universal by the presentation

of regional factor.

KEYWORDS: regionalism; tradition; essay; memories.

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Sumário

INTRODUÇÃO…...............................................................................................................p 9

1 TRADIÇÃO E REGIONALISMO: REVISÃO DE CONCEITOS.…...............................p 17

1.1 Os sertões de Rosa e Lamartine.….......................................................................p. 29

1.2 Da escrita roseana ao ensaísmo lamartineano: uma tocha passada adiante....p 37

2. GRANDE SERTÃO: VEREDAS E A CONSTRUÇÃO DO SURREGIONALISMO....p. 44

3. SOBRE O GÊNERO ENSAÍSTICO: DEFINIÇÃO E PERSPECTIVA DE ESTUDO...p 62

4. SERTÕES DO SERIDÓ: VEREDAS POTIGUARES…........................................…...p 67

4.1 Primeiro ensaio…....................................................................................................p 69

4.2 Segundo ensaio.......................................................................................................p 87

4.3 Terceiro Ensaio......................................................................................................p 101

4.4 Quarto ensaio.........................................................................................................p 107

4.5 Quinto ensaio….....................................................................................................p 116

4.6 Visão geral da coletânea…...................................................................................p 135

5. APROXIMAÇÕES FINAIS ENTRE OS AUTORES...................................................p 139

6. O RUMO QUE A TRADIÇÃO TOMOU NO RIO GRANDE DO NORTE...................p 150

REFERÊNCIAS…..........................................................................................................p 157

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INTRODUÇÃO

Ao estudarmos a tradição regionalista contemporânea, posterior à

tendência da geração de trinta, nos deparamos com Guimarães Rosa e outros

autores que, de formas diferentes, atualizaram a escrita a ponto de ultrapassarem o

conceito tradicional do gênero. Em tempos de aceleração da modernidade devido à

globalização, ainda mais pelo advento das culturas digitais, esses escritores

resistem, tornando o seu mundo regional parte desse diálogo global. Suas obras nos

levam para reflexões universais e/ou identificação com o antes simplesmente tratado

como exótico, e o fazem partindo do local.

Um desses autores, entretanto, que é responsável por uma das mais ricas

recriações do interior do Rio Grande do Norte, continua quase desconhecido e

pouco estudado pela Literatura.

Oswaldo Lamartine de Faria, nascido em 15 de novembro de 1919 em

Natal (RN), escreveu sobre os sertões do Seridó (região do estado do Rio Grande

do Norte) como poucos autores potiguares se propuseram a fazer. Foi o décimo filho

de Juvenal Lamartine, ex-governador do Rio Grande do Norte e também

memorialista do sertão, cuja obra influenciou o filho ensaísta, mas sem atingir a

mesma relevância.

Desde cedo, Oswaldo Lamartine conviveu com a paixão do pai pela

cultura sertaneja e, talvez por causa da presença constante desse tema em sua

juventude, assim como pela sua ligação direta com a terra, levou adiante o estudo

do sertão do Seridó por toda a sua vida.

Seus primeiros contatos com esse mundo começaram com a compra de

uma fazenda em São Paulo do Potengi, quando pode acompanhar as conversas de

seu pai com os amigos sertanejos. Segundo o próprio escritor, em entrevista

concedida para os professores Humberto Hermenegildo e Vilma Vitor Cruz publicada

posteriormente em Oswaldo Lamartine: Um Príncipe do Sertão (ARAÚJO,

TAVARES, VITOR, 2011), foram esses momentos que fizeram do Seridó uma parte

de si, e são essas suas raízes mais fortes no solo quebradiço da região.

No entanto, pelos incidentes da revolução de 1930 que afetaram sua vida

e a de sua família1, e devido ao trágico acidente que levou a vida de um de seus

1 Revolução que, no Rio Grande do Norte, depôs o governadorJuvenal Lamartine, representante da oligarquia Seridoense, adversária da dos Maranhão.

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amigos de infância e o marcou até sua velhice2, logo Lamartine se vê obrigado a sair

do estado. Muda para Pernambuco em 1931 e fica lá por dois anos no Ginásio do

Recife, passando para o Instituto LaFayette no Rio de Janeiro, onde fica até 1938,

quando decide entrar para a Escola Superior de Agricultura e Lavras em Minas,

formando-se técnico agrícola em 1940.

Ao terminar seus estudos, administra uma fazenda em Riachuelo (RN), e

volta a São Paulo do Potengi (RN) para trabalhar na fazenda do pai. Nessa época,

são mandados como auxílio alguns vaqueiros experientes que, segundo Lamartine,

eram pessoas sem o menor estudo, mas com memórias fantásticas. E nas noites à

luz de candeeiro, conversando nas redes, mais uma vez volta às conversas sobre o

sertão, não apenas escutando os velhos amigos do pai, mas participando.

Porém, nas próximas décadas sua história mostra reviravoltas que o

afastam várias vezes do sertão: até o final da década de 50, trabalhou como

professor na Escola Doméstica de Natal, na Escola Técnica de Jundiaí e participou

da Segunda Guerra como pracinha, indo em seguida para Macaé (RJ). Ficou no Rio

até o fim dos anos 70, quando finalmente volta para a fazenda de Acauã, em uma

época em que sua terra já estava bastante mudada pela ação do homem, a

degradação ambiental e a chegada da modernidade naquelas ribeiras.

É interessante observar que, mesmo começando a escrever sua obra

desde os anos 40, principalmente nesse período de 20 anos entre a volta para o

sertão seridoense e a vida no Sudeste, seus livros apresentam o conteúdo mais

direcionado para o registro da cultura sertaneja. Desde A caça nos sertões do Seridó

(1961) até Encouramento e arreios do vaqueiro no Seridó (1969), por exemplo,

Lamartine produz algumas das observações mais específicas do sertão em sua

escrita, alcançando, mesmo assim, uma abrangência de assuntos possivelmente

motivada pela vontade de “recuperar” a terra, uma tentativa de registro das tradições

que ultrapassa a simples documentação.

E não são apenas suas pesquisas e lembranças que acabam

transformadas em livros, mas o diálogo constante, por cartas ou conversas, que o

leva a vários “sertões”. Um dos casos mais notórios disso ocorreu com a escritora

Raquel de Queiroz. O especialista na cultura sertaneja conhece a romancista na

2 Ainda criança, ao limpar uma arma de caça Oswaldoacidentalmente dispara contra o peito de um amigo, e esse trauma o persegue pelo resto da vida, até 2007,quando o escritor comete suicídio da mesma forma.

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época da composição de Memorial de Maria Moura (publicado em 1992), e a ajuda

na compreensão de vários fatores sobre a vida do sertanejo e seu espaço, a ponto

do livro ser-lhe dedicado.

Como afirma a escritora em artigo (QUEIROZ, 1997), em 1990 estava

determinando o espaço geográfico do romance e se encontrava entre problemas

para entender os costumes regionais, além de detalhes como vestuário típicos,

armas etc. Quando as informações dos amigos não bastaram mais, Lamartine foi

finalmente introduzido no projeto, e a sua ajuda gerou não apenas boa parte do livro,

mas uma amizade duradoura:

Acho que, no Brasil, ninguém entende mais do sertão e do nordeste do que

Oswaldo. Quanto a mim, senti-me como garimpeiro que descobre uma

mina. Oswaldo levou a sério a tarefa, e passou a me fornecer toda espécie

de informação que eu lhe solicitava: desenhava roupas, chapéus,

cachimbos e, principalmente, as armas dos meus cabras. (QUEIROZ Apud

FARIA, 2008)

A escritora afirma que Lamartine foi responsável por várias desenhos de

referência e um extenso glossário da cultura sertaneja. Podemos, dessa forma,

considerar que parte da “obra” do etnólogo não está apenas em seus 21 livros, ou

mesmo em seus cadernos de anotação, mas nas conversas com diversos amigos

que integraram as informações colhidas nessas consultas e entrevistas na escrita de

suas futuras obras.

Isso se torna ainda mais evidente em outro exemplo de contato regular

que teve com um de seus conterrâneos: Câmara Cascudo. Lamartine, em entrevista

já citada, afirma que o amigo escritor sempre o questionava quanto a elementos do

sertão, e isso o levou a anotar o que presenciava antes que desaparecesse da

paisagem sertaneja e dos labirintos de sua memória. Em outra ocasião, Cascudo

passou para o amigo pesquisador um assunto que não conseguiu desenvolver,

assunto este que viria a ser um dos livros mais famosos de Lamartine:

Apontamentos sobre a faca de ponta (1988). Considerando isso, é coerente dizer

que nosso ensaísta é, em certa medida, a “outra parte” da obra de Cascudo, ou,

mais especificamente, a maior porção da tradição norte-rio-grandense que cabe à

escrita sobre o interior do estado, o estudo mais especializado que apenas a

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experiência do “Príncipe do Seridó” poderia realizar.

Fato é que os estilos desses dois autores são relativamente próximos

quanto ao uso da memória. Enquanto Lamartine busca o sertão da sua época, por

lembranças e pela pesquisa, temendo o desaparecimento das tradições, Cascudo

trata prioritariamente de Natal, igualmente temeroso dos espaços em branco da

história local. De um lado, este escritor, acadêmico de formação e de uma das

famílias mais influentes do estado, lida com documentos, depoimentos, lembranças

familiares e pessoais em uma construção dos acontecimentos de um passado quase

não registrado pelos seus contemporâneos. De outro, também filho de uma das

principais famílias do Rio Grande do Norte, instruído especialmente pela vivência e

constante observação, aparece um ensaísta de estilo “sertanejo-erudito” em busca

da preservação de sua terra.

O que observamos em ambos autores é, portanto, algo semelhante à

escrita autobiográfica, mas voltada para fora do autor: suas vidas acabam sendo

parte de histórias maiores e, assim, enquadram-se no papel da experiência vivida

que confere ao todo narrado a comprovação testemunhal. Quando falam da terra,

não prevalesse a autobiografia, e quando discorrem sobre si, não se esquecem do

espaço de onde falam. Encontram-se, portanto, em posição única: são mais que

simples potiguares interessados em suas raízes, tomando o papel de verdadeiros

representantes oficiais da tradição, pois têm meios suficientes para participar de

nossa história como “flâneurs”. No caso de Lamartine, diríamos até que seu

“passeio” é ainda mais evidente, pois constrói o sertão atentando para outras

ribeiras:

Acreditamos que os escritores das diferentes terras retratam, nos quatro

cantos do mundo, os feitos dos seus rastejadores – já que eles representam

um dia da idade do homem. Da literatura dalém mar, copiamos uma página

de ZADIG, de VOLTAIRE, onde as conclusões em torno do rasto deixado

pela cachorrinha de S.M., muito se assemelham às chegadas pelo velho

vaqueiro dos sertões cearenses […] (FARIA, 1980, p. 196)

Dessa forma, pelas anotações incessantes (inclusive por meio de

gravuras) desse escritor que “passeia” pelo sertão, é possível identificar dois

aspectos recorrentes na obra de Lamartine: sua escrita pautada na imagem, no meio

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material desenhado ou narrado, que direciona suas pesquisas; e a memória, não

apenas como finalidade de registro, mas fator de enriquecimento dos assuntos

tratados.

Percebemos isso ao encontramos desenhos e descrições bastante

precisas do léxico sertanejo não apenas na “herança” de Raquel de Queiroz, mas

norteando algumas obras do escritor. Seus livros são costurados por imagens

(muitas vezes de próprio punho) dos trabalhos em couro, das ferramentas da lida,

dos ferros de marcar gado, dos nós de cada instrumento de pesca e mesmo

algumas xilogravuras de capas de livros; o que nos leva, enfim, à observações mais

detidas de sua estética: qual seria a importância dessas características em seu

ensaísmo?

Quanto à linguagem, organização e apresentação da escrita, percebemos

aproximações entre o escritor potiguar e dois outros, já consagrados, a saber:

Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. De Euclides, o ensaísta parece retirar a

voracidade descritiva, e mesmo certa organização formal, percebida tanto em A

caça nos sertões do Seridó (1961) como em Conservação de alimentos nos sertões

do Seridó (1965). Mas de Rosa herda o tratamento com o espaço.

Leitor constante de obras sobre o sertão, produz vários estudos

etnográficos com o linguajar da terra, em que identificamos uma forte ligação entre o

enunciador e a identidade construída para o Seridó. Sua atenção com o modo

expressivo em cada novo texto o leva para uma dimensão estética ainda mais

elevada: resvalando no ficcional em várias passagens, assumindo-o em outras, e

mesmo criando verdadeiras imagens poéticas, Lamartine assume adequadamente a

cadeira número 12 da Academia Norte-rio-grandense de Letras, mesmo lugar antes

ocupado por seu pai, pois ultrapassa o papel de pesquisador e revela o sertão pela

linguagem literária.

Todo mundo sabe tratar-se de problema antes de tudo educacional. Mas o

indiferentismo com que vem sendo relegado faz pensar, sem qualquer

pessimismo, que na pisada em que vamos, o sertanejo herdará, em um

amanhã bem próximo, um chão sem rastros de bichos e silencioso de

cantos de pássaros. Paisagem morta e de fauna sintética já galhofada no

dizer matuto: “De bicho de cabelo só vai escapar escova; de animal de

quatro pés, tamborete e bicho de fôlego – o fole...” (FARIA, 1980, p. 214)

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É essa ligação entre etnografia e escrita criativa que, inclusive, faz do

autor exemplo de uma tradição regionalista diferenciada. Semelhante ao que

observamos na escrita de Guimarães Rosa, Lamartine se concentra em apresentar

o sertão não limitado a um quadro visto de longe. Os vaqueiros de ambos os

escritores nos evidenciam mais que “traços regionais”, e nos colocam no meio de

discussões humanas, tais como a existência de Deus e a vida e morte não apenas

de pessoas, mas de lugares e épocas.

Das eras de 30 para cá principiaram a trocar as caçambas das tropas de

jumento pela lastro mais taludo dos caminhões. E catingando a caatinga de

gasolina e diesel, rodam agora as rodas dos tratores de pneu, dos tratores

de lâminas, dos scrapers, dos rolos compressores pé-de-carneiro e toda a

intrincada engrenagem das máquinas com a zoeira dos motores. Mas isso

está nos relatórios oficiais, nos livros técnicos e ainda é imagem dos olhos

de todo o mundo que sobrou... (FARIA, 1980, p. 42)

Tão bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe dizia: o ruim com o ruim,

terminam por as espinheiras se quebrar – Deus espera essa gastança.

Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. O senhor rela

faca em faca – e afia – que se raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na

outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que

eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque s merece e carece.

Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, não arrocha o

regulamento. Pra que? Deixa: bobo com bobo – um dia, algum estala e

aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no

meio, um pingado de pimenta... (ROSA, 2011 p. 41)

Por essas semelhanças, investigamos a coletânea Sertões do Seridó

(1980), que reúne 5 ensaios de Lamartine, em comparação com Grande sertão:

veredas (2011), traçando uma linha entre Guimarães Rosa e o sertanista potiguar.

Fazemos isso observando o conceito de literatura enquanto efeito civilizatório de

Antonio Candido (2000), que auxilia a formarmos o vínculo da tendência regional

“surrealista” de Rosa como uma tradição passada ao ensaísta.

Com o objetivo de nos aprofundarmos nessa relação, revisamos o

conceito clássico de “regionalismo puro” de Candido e o opomos ao

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“surregionalismo” apontado pelo mesmo crítico, que é relido à luz das observações

de Chiappini (1995) sobre o estudo da tendência regionalista atual. Fazemos isso

como primeiro apoio para a associação dos regionalismos dos escritores estudados.

Em seguida, discutimos as ligações histórico-ficcionais dos sertões

rosiano e lamartineano tendo em vista suas influências e projetos ideológicos.

Enquanto o escritor mineiro ocupa seu Grande sertão mais pela criação que por

referências reais, surgindo um “sertão possível” por meio da escrita e

apropriação/ressignificação de elementos locais e universais, montamos uma breve

contextualização da tradição literária potiguar. Dessa forma, explicamos o lugar de

que fala Lamartine, os grupos de influência intelectual do estado e seus legados,

como sujeitos ao quase esquecimento, motivo pelo qual precisa resgatar e recriar o

sertão, já modificado pelo tempo.

Definidos os sertões, atiramos o último laço entre Rosa e Lamartine,

discutindo o conceito de tradição segundo Candido (2000), Bornheim (1987) e

Berman (1986). Associamos a vertente literária e histórico-cultural das tradições

estudadas, e as relacionamos no modo de se organizarem nas obras analisadas.

Para isso, ainda comparamos os “narradores tradicionais” presentes nas duas obras

pelo estudo de Benjamin, que nos leva finalmente à perspectiva de ficcionalidade na

obra do ensaísta, que desenvolvemos com os conceitos de “intenção séria” e

“intenção diversa/ficcional” de Rosenfeld (2011).

Só então nos aprofundamos no gênero ensaístico, tecendo a rede de

conceitos que nos orienta no estudo de sua estrutura maleável e imprecisa.

Revemos as primeiras definições entre os ensaios de Montaigne (2001) e Bacon

(2007) e seguimos para as de Lukács (1975) e Bense (1947), e chegamos até

Adorno (2003) e Haro (2005). Isso nos ajuda a ler Os sertões do Seridó como uma

obra fluida e estruturada, quase livremente, ao longo da escrita lamartineana.

Com os aparatos teórico e crítico reunidos, analisamos a obra do escritor

potiguar, lendo cada um dos ensaios de Os sertões do Seridó e considerando a

estrutura geral da coletânea. Encontrando características semelhantes e outras

consideravelmente destoantes, separamos e identificamos o funcionamento dos

pontos norteadores da criação de Lamartine e, lendo a organização dos textos como

uma reformulação/ressignificação que renova-os como obra revisada, ampliamos a

visão de assuntos relacionados apenas pela região para uma volta ao passado na

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tentativa de revitalizar o sertão.

Nosso estudo encerra reaproximando os dois escritores e tece o resultado

da leitura de Lamartine como “herdeiro” do regionalismo rosiano, o que é sustentado

por exemplos retirados das suas obras. Concluímos que o autor potiguar registra

seu “sertão do nunca mais” pela “narração” da história/estória seridoense, utilizando

memórias, testemunhos, pesquisas e escrita ficcionalmente criativa para ampliar o

espaço. É pela comunicação que aparece o Seridó literário, geográfico e

sociocultural, assim como na literatura de Rosa, mas por “diálogos” diferentes. O

ensaísta observa no “regional” a sua história, sua experiência revivida, e o exótico

de afastamento se dissolve em fatores da identidade cultural do próprio narrador.

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1 TRADIÇÃO E REGIONALISMO: REVISÃO DE CONCEITOS

O regionalismo, como tendência literária, já foi destacado por ter “fôlego

de gato” na sua renovação constante, colocando em perspectivas diferentes visões

críticas mais tradicionais que apenas o associam com o choque do exotismo. Visões

essas que parecem limitar a tendência a uma variedade considerada desgastada e

que, para casos como o de Guimarães Rosa, deixam à margem obras sem a

obsessão pela “cor local” e o tom de documentário social. Observando essa

tradição, mesmo Antonio Candido limita a tendência em sua manifestação mais

“pura”:

[…] se pode considerar como regionalista propriamente dito o romance, o

conto em que o que sobressai é o choque de exotismo. O homem da cidade

vê aquela matéria diferente, aquela matéria como se fosse quase de outro

mundo, e aquilo é interessante, e o enredo então se beneficia com este

exotismo. A mim pareceu que em Guimarães Rosa isso era apenas um

ingrediente, e que o importante eram os grandes problemas do homem.

Além do mais, a linguagem dele não era propriamente documentária, o que

acontece no regionalismo. (CALLADO et. al., 2011, p. 20)

Quando o crítico faz esse comentário, como entendemos, estaria se

referindo a um conjunto de obras que se encontram em sua maioria até a chamada

“geração de 30”. Essa produção, em especial construída pela vertente sertanista, é

anterior às tendências contemporâneas e tem suas origens ainda no período

romântico.

Apenas com intuito de contextualizar brevemente essa questão,

constatamos que a revisão dessa faixa do espectro literário nacional tem raízes

antes mesmo do primeiro movimento regionalista brasileiro, exibindo seus traços nas

tentativas iniciais de autonomia cultural, desenvolvidas particularmente entre as

tendências nativistas. Seu início foi marcado pelo afastamento parcial das correntes

literárias europeias e seguiu, no entanto, boa parte de suas normas, pois surge da

escrita pautada no sistema de expressão legado pela tradição e, mesmo assim, se

aventura por temas locais em uma intenção nacionalista.

Por esse caminho, e com a adaptação dos padrões europeus na

perspectiva do colonizador diante das maravilhas da terra, o escritor visava construir

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uma identidade brasileira por descrições que ressaltam o “diferente” na realidade

local. Com isso, poderíamos encontrar uma provável “contradição fundamental” da

afinidade expressiva do redator e a identificação pessoal com a matéria que

trabalha, mas esses traços não afetam negativamente a produção da época. Nossos

escritores trariam essa ótica do diferente como o elemento necessário para a

construção de uma identidade nacional.

Inclusive, Candido destaca no início do segundo volume de seu

Formação da Literatura Brasileira (2000) a naturalidade de tais tendências em nosso

sistema literário, tendo passado antes pelo movimento arcádico:

[…] essas tendências reforçaram as que se vinham acentuando desde a

segunda metade do século XVIII. Assim como a Ilustração favoreceu a

aplicação social da poesia, voltando-a para uma visão construtiva do país, a

independência desenvolveu nela, no romance e no teatro, o intuito

patriótico, ligando-se deste os dois períodos, por sobre a fratura

expressional, na mesma disposição profunda de dotar o Brasil de uma

literatura equivalente às européias, que exprimisse de maneira adequada a

sua realidade própria ou como então se dizia, uma “literatura nacional”.

(CANDIDO, 2000, v. 2, p. 11)

Entendido isso, por ser pautada na identificação de fatores exóticos que

singularizassem nossa terra, aos quais são atribuídos o papel de “origem” (em

adaptação à corrida pelo folclore no continente europeu), a produção dessas

primeiras etapas apresenta as reflexões de redatores brasileiros de cultura

“importada” sobre a cultura popular “adquirida” com a terra: para compensar a falta

de história (ainda nascente) no continente americano, o escritor branco volta-se para

o “gentio”, idealizando-o enquanto homem selvagem e exemplo de bondade e

inocência (essência do nativismo). Isso seria, enfim, o elo folclórico sonhado para

esse escritor brasileiro que se assemelha a um “europeu dos trópicos”: o Indianismo

marca a literatura nacional tornando-se tema de caracterização do nosso

Romantismo, o que é especialmente trabalhado nas obras de José de Alencar e

Gonçalves Dias.

Já em um segundo período, o desenvolvimento da escrita nacional

caminha para outras regiões ao se afastar da costa com o intuito de mostrar o

“verdadeiro Brasil”. Galvão (2000) destaca que, em reação a hegemonia cultural

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centrada no Rio de Janeiro, as regiões ao Sul e ao Norte:

[…] acusam a literatura da Corte daquilo que hoje chamaríamos

etnocentrismo, opinando que o Brasil autêntico fica no interior e não no

litoral deslumbrado pela Europa, a quem macaqueia. E reivindicam uma

expressão tanto própria quanto autônoma de sua peculiaridade. (GALVÃO,

2000, p. 15).

Isso acarreta no progresso das escritas regionais, surgindo, segundo a

mesma autora crítica, em um primeiro regionalismo, ou sertanismo (GALVÃO, 2000).

Porém, nos anos seguintes a exploração para dentro do território nacional não

modificou os traços gerais desse tipo de escrita. Houve certamente uma ampliação

de temas, o que ajudou no reconhecimento de traços típicos de várias regiões, mas

sempre orientados pela lógica do exótico:

Nesse amplo guarda-chuva cabem pioneiros como Bernardo Guimarães,

Taunay e Franklin Távora. O próprio Alencar, de importância seminal em

nossas letras, entre as muitas obras que escreveu procurando realizar sua

ambição de cobrir o país no tempo e no espaço, é autor de vários livros

regionalistas. Para todos, o interesse central estava no pitoresco, na cor

local, nos tipos humanos das diferentes regiões e províncias. (GALVÃO,

2000, p. 16)

Essa primeira leva possui fronteiras pouco delineáveis, emitindo ecos até

o Modernismo, mas, ao longo de seu desenvolvimento, mais especificamente com a

surgimento do Naturalismo, aparece um segundo regionalismo (GALVÃO, 2000).

Este vem se opor àquele por um programa de escrita até então inédito:

A reação contra o romantismo precedente implicou em uma busca de

descrição desapaixonada dos fatos, preocupação com o determinismo e

com a ciência, frio diagnóstico, pessimismo e fatalismo. Generalização

entretanto injusta para com alguns livros que, ao alcançar um nível mais alto

de elaboração literária, escapam parcialmente do bitolamento naturalista

[…]. (GALVÃO, 2000, p. 16)

Dessas duas linhas de escrita regionalista/sertanista, advém,

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consequentemente, boa parte da “cartografia literária” do interior do Brasil:

percebemos isso tanto na tendência que se concentrava nas cores locais,

desenvolvendo imagens apaixonadas dos tipos humanos, quanto na que procurava

os determinismos da vida humana pelo caminho da análise afastada dos excessos

sentimentais.

Todavia, é importante enfatizar a permanência de ambos os estilos quase

que exclusivamente em uma dimensão de afastamento com a matéria trabalhada, o

que se torna bastante significativo para compreender não apenas tais literaturas,

mas a própria representação do sertão brasileiro durante esse período. Mas, para

completar nosso quadro de influências iniciais, há ainda outra tendência que tornaria

nossa escrita mais próxima do documentário e que, mesmo após o movimento

modernista, reavivaria o regionalismo em uma terceira leva.

Com as modificações políticas ocorridas ao redor do mundo e pelo clima

de conflitos no período entres as duas guerras mundiais, escritores em vários países

começaram a se concentrar à Direita ou Esquerda, injetando em sua arte uma maior

preocupação social (uma escrita de denúncia). Entretanto, de todas as

manifestações decorrentes dessas mudanças, talvez a que mais tenha se destacado

na época, e influenciado irreversivelmente nossa escrita, foi o advento do “romance

social norte-americano” (GALVÃO, 2000). Autores como Sinclair Lewis e John

Steinback, por “uma prosa desataviada, bem próxima da escrita para periódico”

(GALVÃO, 2000, p. 19), tornaram suas obras conhecidas em todo o mundo e,

consequentemente, acabaram sendo bastante editados no Brasil. Sua escrita

empenhada em mostrar as diferenças sociais dos Estados Unidos, produzida de

modo a facilitar sua leitura, gerou tamanho impacto em nossa produção intelectual

que pela primeira vez a influência europeia em nossa cultura seria superada.

O resultado de todo esse percurso seria a produção da geração

regionalista de 1930, logo assumida como tendência principal de seu tempo. Essa

terceira etapa de produção regionalista iria se concentrar prioritariamente no

Nordeste Brasileiro com escritores tais como Graciliano Ramos, José Lins do Rego,

Raquel de Queiroz e Jorge Amado, tendo seu apogeu entre as décadas de 30 e 40

mas sendo, mesmo assim, vigente até hoje:

O fato é que essa safra de ficção ao rés-do-chão, aspirando ao

documentário, constituiu um cânone ainda vigente em nossos dias, impondo

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a norma à literatura brasileira, impedindo por longos períodos que houvesse

percepção estética de autores que não atuassem dentro de seus ditames.

(GALVÃO, 2000, p. 22)

Esse regionalismo também aspira à percepção estética naturalista,

construída pelo romance engajado na denúncia social que aparece como matéria

principal do trabalho do escritor. Sua linguagem também simples provoca reação

semelhante à do romance norte-americano, encontrando-se com um público leitor

brasileiro ainda em formação.

Todavia, nessa mesma época surgem autores interessados em uma

escrita mais voltada para a subjetividade que ao fator social. Inspirados pelo

romance católico francês, começam a se concentrar em uma investigação da

espiritualidade e dos mistérios da alma, em uma reação à literatura vigente, em uma

busca pela abertura “universal”, por questões além do meio físico. Tal linha tem

como expoente Clarice Lispector, e sua produção é tipicamente avessa ao

tratamento pitoresco e ao agnosticismo comum do regionalismo seu contemporâneo,

apurando técnicas narrativas como o monólogo interior.

Nesse ponto, vale salientar que nem sempre são precisas as divisas entre

a escrita particularizante e a universalizante desse período, sendo possível perceber

traços de introspecção nos discursos de obras exemplares do regionalismo de 30,

como em Angústia de Graciliano Ramos; e traços naturalistas gerais como

“hereditariedade”, “instinto” e “irracionalidade” segundo Galvão (2000), nessa escrita

de viés espiritualista.

Ainda assim, é compreensível uma tônica para a perspectiva “externa”, da

cor local/do determinismo da vida humana/da denúncia documental, que norteia as

imagens construídas sobre os sertões. E é especialmente desse conjunto de

tendências regionalistas que Antonio Candido (e a crítica tradicional) se vale para a

sua delimitação do regionalismo mais elementar. Entretanto, a modificação é

inevitável, e o mesmo crítico comenta:

[Sobre Rosa] Ele fez um livro que supera o regionalismo através do

regionalismo. Esse, do ponto de vista da composição literária, a meu ver, é

um paradoxo supremo. Tanto assim que eu me senti obrigado a criar uma

nova categoria que é o transregionalismo ou surregionalismo. Fenômeno,

aliás, que nós verificamos pouco depois ou ao mesmo tempo em outros

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lugares da América Latina. Nós encontramos, por exemplo, em Gabriel

García Márquez, em Juan Rulfo, em Mario Vargas Llosa, em Alcides

Arguedas esse enraizamento profundo do temário regional pitoresco com

uma linguagem transfiguradora, moderna e que não tem nada a ver com a

linguagem do regionalismo tradicional. (CANDIDO, 2011. p. 28)

Esse surregionalismo contemplaria, desse modo, a produção posterior

que relativiza o exotismo e ultrapassa o localismo, superando o regional pela sua

reflexão. E, por tal natureza, não se adéqua aos moldes expressivos do citadino, do

“diferente de”. Mesmo a apresentação exótica sendo uma conquista importante no

desenvolvimento das identidades regionais, não comporta de forma adequada a

escrita que alcança proporções universais de uma posição não cosmopolita, mas

que universaliza o tema partindo de uma cultura local. Desse prisma, a produção

contemporânea é tida como “surreal”, “paradoxal”, e suas obras são afastadas do

regionalismo que, no entanto, apenas se modificou, produzindo uma “nova tradição”.

Visto isso, a questão que se impõe ao regionalismo atualmente seria

quais os seus “limites” e como trabalhá-los em coerência com as mudanças já

consagradas nos últimos decênios. Consideramos, portanto, o estudo de Ligia

Chiappini (1995) uma possibilidade de resposta que, a nosso ver, explica o hiato

entre o regionalismo e o surregionalismo de Candido.

Em seu estudo Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na

literatura (1995), a pesquisadora desenvolve e comenta alternativas ao “mal-estar”

presente na crítica por essa divisão, e objetiva o regionalismo tanto pela

aproximação solidária do leitor com o personagem, em um ato de “alargar nossa

sensibilidade”, quanto no estudo da “superação dos limites da tendência” ainda

dentro dela.

Sua primeira tese ocupa-se da definição do regionalismo simplesmente

marcado por locais (regionalismo gaúcho, nordestino, paulista), o que permitiria a

presença de uma variante urbana e outra rural: “No limite, toda obra literária seria

regionalista, enquanto, com maiores ou menores mediações, de modo mais ou

menos explícito ou mais ou menos mascarado, expressa seu momento e lugar.”

(CHIAPPINI, 1995, p. 155). Os exemplos de regiões escolhidos são, inclusive,

retirados de uma observação de Candido em A literatura na evolução de uma

comunidade (In: Literatura e Sociedade, 1976), que nos traz uma perspectiva

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interessante: “Se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem

dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo diferente nos diversos

Estados” (Candido, 1976, p. 139).

Para Candido, haveria a possibilidade de não se falar de regionalismo

nesses lugares, talvez pela importância que ocupam na cultura brasileira. Como já

foi observado por Santos (SANTOS, 2010, pp. 172 – 173) Pernambuco e o Rio

Grande do Sul, por exemplo, são parte fundamental da História do país,

influenciando em períodos diferentes a nossa cultura geral, que é deslocada para

suas terras; já São Paulo tornou-se desde a primeira metade do século XX o centro

cultural e econômico do Brasil. São, assim, locais centrais que, embora acusem

“traços típicos”, não se afastam da modernidade e da formação cosmopolitana.

Sendo uma das características mais visíveis da tendência o combate à

homogenização moderna que apaga as particularidades locais, não se poderia falar

exatamente de um regionalismo não-periférico. Os elementos locais da produção de

um escritor vindo de algum centro urbano permaneceriam como indicadores da sua

referenciação geográfica, mas não comporiam a estrutura necessária para a

manifestação regionalista.

Por esse motivo, Chiappini destaca: “Historicamente, porém, à tendência

a que se denominou regionalista em literatura vincula-se a obras que expressam

regiões rurais e nelas situam suas ações e personagens, procurando expressar suas

particularidades lingüísticas.” (CHIAPPINI, 1995, p. 155). Essa definição elimina a

proposta de literatura regional simplesmente orientada pela referência ao espaço

geográfico, pois contrasta com a generalização do ancoramento de qualquer obra a

um lugar pelo fator de resistência da cultura rural.

A segunda tese avança nesse sentido de cultura do campo, mostrando

que é criada pela tensão entre “idílio e realismo”:

Há quem vincule o regionalismo literário à tradição greco-latina do idílio e da

pastoral. Mas é em meados do século XlX, com George Sand na França,

Walter Scott na Inglaterra e Berthold Auerbach na Alemanha, que essa

tradição é retomada na forma de romance regionalista que, daí para a

frente, começa a viver da tensão entre o idílio romântico e a representação

realista, tentando progressivamente dar espaço ao homem pobre do campo,

cuja voz busca concretizar paradoxalmente pela letra, num esforço de torná-

la audível ao leitor da cidade, de onde surge e para a qual se destina essa

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literatura. (CHIAPPINI, 1995, p. 156)

Ela pode ser associada não apenas ao regionalismo literário, mas

também à sua vertente política/histórica. Se a compreendermos como uma resposta

à urbanização moderna, encontramos em sua estrutura os dois extremos de que

trata: vemos a tradição de uma cultura campesina ser gravada pelo recurso da

escrita, não mais pela memória e o hábito das rodas de conversa; também seu

discurso ser iniciado na constatação do desaparecimento/esquecimento daquela

cultura em decorrência da concentração urbana; e as suas vozes entre o

saudosismo dos tempos áureos e o desgosto e desacordo com o presente.

Seguindo esse caminho, a terceira tese aproxima esse conflito para a

situação contemporânea: “Estudar o regionalismo hoje nos leva a constatar seu

caráter universal e moderno. Surgindo como reação ao iluminismo e à centralização

do Estado-nação, hoje se reatualiza como reação à chamada globalização.”

(CHIAPPINI, 1995, p. 156. Não seria apenas uma resposta e resistência do

habitante campesino tradicional, mas a luta contra o perigo da fragmentação que se

esconde em cada passo do homem que se vê inevitavelmente diante da

modernidade.

Assim, a globalização é também sentida como o progresso do paradoxo,

em uma “unidade da desunidade”. Ser esse homem moderno, como considera

Berman, “é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria,

crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao

mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que

somos.” (BERMAN, 1986, p. 15), e o escritor regionalista considera esse quadro em

que se encontra como um combate.

Não é somente a evolução temporal do regionalismo, e sim a aceleração

de nosso tempo que diferencia os conflitos. Hoje enfrentamos um processo

constante de rupturas que, embora seja fundamento da própria dinâmica da cultura,

nos aproxima da desintegração. Nos sentimos perdidos e nunca bem amparados

com uma única identidade, pois “a idéia de modernidade, concebida em inúmeros e

fragmentários caminhos, perde muito de sua nitidez, ressonância e profundidade e

perde sua capacidade de organizar e dar sentido à vida das pessoas.” (BERMAN,

1986, p. 17).

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Em consequência disso, a quarta tese, que menciona a perspectiva do

regionalismo como modismo velho, não poderia assumir posição diferente:

Com a modernização das técnicas agrícolas, o êxodo rural, o

desenvolvimento das cidades e de uma cultura urbana, o regionalismo tem

sido visto como ultrapassado, retrógrado, localismo estreito e reacionário

tanto do ponto de vista estético quanto do ideológico. Essa crítica esquece,

no entanto, que ele é um fenômeno eminentemente moderno e universal,

contraponto necessário da urbanização e da modernização do campo e da

cidade sob o capitalismo. Por isso, continua a existir e a dar frutos como

uma corrente temático-formal contraditória onde lêm lugar os reacionários e

os progressistas; os nostálgicos, os xenófobos mas também os

inconformados com a divisão injusta do mundo entre ricos e pobres. Uma

corrente que deu origem a grandes obras, como as de Faulkner, Verga,

Rulfo, Carpentier, Arguedas e Guimarães Rosa. (CHIAPPINI, 1995, p. 156)

As conhecidas observações de Candido sobre a “saturação” da escrita

sertanista são um bom exemplo desse caso, que se torna mais relevante por ter

insistido na divisão do regionalismo tradicional e do rosiano, por não considerar as

duas literaturas pela mesma tendência. Não só esse estudioso, mas toda a crítica

sua partidária tende a apontar para obras que ultrapassam as limitações do

regionalismo restrito como manifestações de uma superação do gênero, em um

argumento “da elevação” que acusa indevidamente o local ser menos profundo que

o global.

Na quinta tese de Chiappini, essa questão é trazida para o caráter

“marginal” normalmente associado à literatura regional. Por se confundir com

pedagogia, etnologia e folclore, e compreender obras com valor estético, mas com a

simples intenção de registro histórico de seus fatos, o regionalismo é menosprezado

“por essa impureza, julgando-o também conservador tanto do ponto de vista estético

quanto do ponto de vista ideológico.” (CHIAPPINI, 1995, p. 156). O resultado é a

mudança de nomenclatura (surregionalismo para Cândido, regionalismo cósmico

para Davi Arrigucci Jr. etc.) na separação das melhores obras, sobretudo as de

importância nacional, subentendendo que a bibliografia restante não se faz

suficiente para escapar da exclusão.

Em certa medida, a “armadilha crítica” da subordinação deseja o

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regionalismo em estado estacionário e comete um erro grave no julgamento das

obras mais bem elaboradas. Revendo o falso pressuposto da correlação de

qualidade e universalidade repetida pela crítica, a sexta tese aclara justamente o

ponto fundamental não contemplado por suas análises:

É compreensível o esforço da critica para excluir da tendência os grandes

autores, já que nela o número de obras literariamente menos expressivas

talvez seja maior que em outras, porque proporcional ao grau de dificuldade

que a especificidade da empresa do regionalismo literário implica. O

argumento da critica para assim fazer é que a qualidade literária de suas

obras os elevaria do regional ao universal. Mas freqüentemente ela esquece

que é o seu espaço histórico-geográfico, entranhado e vivenciado pela

consciência das personagens, que permite concretizar o universal. O

problema não nos parece tanto distinguir os tipos de regionalismo mas

distinguir, como em qualquer tendência, as obras boas das más,

esteticamente falando. (CHIAPPINI, 1995, p. 156)

Estruturas estética e ideológica estão intimamente relacionadas e, na boa

realização da escrita regionalista, a segunda ocupa-se também de criatividade,

sendo participante da qualidade da obra. Dessa forma, na sétima tese percebemos

que não é caso, consequentemente, de separar as manifestações mais felizes do

regionalismo, tornando-o “túmulo” de obras menores, mas aceitar suas mudanças:

“Só podemos sustentar que um Faulkner ou um Guimarães Rosa são regionalistas,

se entendermos que o regionalismo, como toda tendência literária, não é estático.

Evolui. É histórico, enquanto atravessa e é atravessado pela história.” (CHIAPPINI,

1995, p. 157).

Estariam marcados traços do período histórico e o modo como a

tendência se plasmou em cada livro, o que, mesmo assim, não delimita a sua

literatura. Em desacordo com suas vertentes políticas e culturais, normalmente

estruturadas em um desejo de permanência, a escrita regionalista segue seu próprio

itinerário. Com a oitava tese, percebe-se que a motivação do texto regional exige

mudanças:

O regionalismo lido como uma tendência mutável onde se enquadram

aqueles escritores e obras que se esforçam por fazer falar o homem pobre

das áreas rurais, expressando uma região para além da geografia, é uma

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tendência que tem suas dificuldades específicas, a maior das quais é tomar

verossímil a fala do outro de classe e de cultura para um público citadino e

preconceituoso que, somente por meio da arte, poderá entender o diferente

como eminentemente outro e, ao mesmo tempo, respeitá-lo como um

mesmo: "homem humano". (CHIAPPINI, 1995, p. 157)

Atualizando-se, a escrita nessa tendência promove a identificação entre

tipos humanos diferentes, o que é possibilitado pelo caminho oposto à

generalização. O descritivismo aparentemente excessivo é, diferente do que aponta

a crítica, também benéfico, pois nem sempre indica limitação/superficialidade do

tratamento da matéria. Cada escritor identificado com a temática regional demonstra

ser conhecedor de sua região, podendo enumerar com facilidade o que lhe é “típico”.

É por meio da “imersão cultural”, muitas vezes pedagógica, que o

regionalista pode transcender o mero registro de cultura e suas condições

ambientais/sociais e, ao atingir certo nível de abstração, sua escrita descritiva não

mantém apenas uma imagem de fidelidade com o retrato da região, o que é

salientado pela nona tese de Chiappini:

O mundo narrado não se localiza necessariamente em uma determinada

região geograficamente reconhecível, supondo muito mais um compromisso

entre referência geográfica e geografia ficcional. Trata-se, portanto, de

negar a visão ingênua da cópia ou reflexo fotográfico da região. Mas, ao

mesmo tempo, de reconhecer que, embora ficcional, o espaço regional

criado Iiterariamente aponta, como portador de símbolos, para um mundo

histórico-social e uma região geográfica existentes. Na obra regionalista, a

região existe como regionalidade e esta é o resultado da determinação

como região ou província de um espaço ao mesmo tempo vivido e subjetivo,

a região rural internalizada à ficção, momento estrutural do texto literário,

mais do que um espaço exterior a ele. (CHIAPPINI, 1995, p. 158)

À vista disso, o espaço literariamente trabalhado apresenta-se entre as

dimensões real e ficcional, fortalecendo a obra enquanto caminho de reflexão e, nas

de maior valor, ultrapassando as fronteiras regionais e alcançando o universal. Essa

superação, no entanto, não nega o local, e sim enfrenta a separação com o mundo,

o que vemos na décima tese:

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Se o local e o provincial não são vistos como pura matéria mas como modo

de formar, como perspectiva sobre o mundo, a dicotomia entre local e

universal se toma falsa. O importante é ver como o universal se realiza no

particular, superando- se como abstração na concretude deste e permitindo

a este superar-se como concreto na generalidade daquele. Desse modo, as

"peculiaridades regionais" alcançam uma existência que as transcende.

Assim, espaço fechado e mundo, ao mesmo tempo objetivos e subjetivos,

não necessitam perder sua amplitude simbólica. A função da crítica diante

de obras que se enquadram na tendência regionalista é, por isso, indagar

da função que a regionalidade exerce nelas; e perguntar como a arte da

palavra faz com que, através de um material que parece confiná-las ao beco

a que se referem, algumas alcancem a dimensão mais geral da beleza e,

com ela, a possibilidade de falar a leitores de outros becos de espaço e

tempo […] (CHIAPPINI, 1995, p. 158)

Todo esse percurso da condição atual do regionalismo literário acaba,

portanto, sendo resumido entre alguns pontos: traduz as realidades locais,

principalmente a das culturas rurais e/ou afastadas dos centros urbanos, mas não o

faz apenas devido ao regional, e sim pela tensão provocada na “modernidade

niveladora”, e em especial como resposta à globalização; não é retrógrado ou

ultrapassado, pois aparece como o outro lado fundamental da modernidade, o que

combate a fragmentação da vida humana pela transcendência que parte do regional,

motivo por que se confunde com pedagogia, etnologia e folclore, pois seu

enriquecimento começa na “explicação” da região; não se torna “não-regional” e

universal ao atingir certa grandeza, pois sua elevação ocorre justamente pelo

desenvolvimento dentro do localismo; não é uma tendência estática, mas mutável e

atravessada pela história, o que a diferencia das suas vertentes culturais e políticas

(que ajudam, entretanto, a explicar alguns de seus traços); e alcança o universal

relativizando suas fronteiras dentro do olhar regional, particularmente pela

elaboração que atinge apoiada no descritivismo, sendo que importa para o crítico

descobrir o caminho dessa transcendência, não apenas os “tipos” de regionalismo

resultantes (o que seria, a nosso ver, o caminho inicial da pesquisa, e parte mínima

da conclusão).

Finalmente, é com essa conceituação do regionalismo que trabalhamos

os textos de João Guimarães Rosa e Oswaldo Lamartine de Faria escolhidos para

nossa pesquisa: Grande sertão: veredas (2011) e Sertões do Seridó (FARIA, 1980).

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Sua perspectiva explica o que ocorre, como propomos, na tradição regionalista

representada por Guimarães Rosa, que em sua obra nos introduz em um espaço

explorado além das limitações anteriores da escrita sertanista. E, de forma

semelhante, também a produção etnográfica-literária de Oswaldo Lamartine se

distancia dessa perspectiva de exotismo provocada pelo tom local ou pelo conflito

catártico de uma intenção de crítica social, localizando-se dentro de um espaço

sertanejo de identificação pessoal.

Mas, visto que ambos os autores seguem seus caminhos por regiões e

gêneros literários diferentes, resta discutir quais são os sertões que influenciam cada

um e como a escrita rosiana e lamartineana se aproximam por suas características

composicionais.

Nossa busca dentro de tal recorte implica em um estudo dos processos

de (re)criação do espaço por meio da escrita romanesca e ensaística, que se

aproximam. Por consequência, não renunciamos os cruzamentos entre esses dois

gêneros e outros prováveis que por acaso influenciem em suas construções, mas

observamos seus projetos estéticos em uma dimensão ampla de “literatura”, que

contemple tanto o texto mais visivelmente trabalhado como literário quanto o que

atinja a fronteira da definição.

Quanto aos sertões de referência de cada autor, traçamos as suas

fronteiras e discutimos a influência de cada espaço nas obras, comparando a base

cultural a que se vinculam e quais traços gerais são percebidos nos dois escritores.

Com essa oportunidade, ainda desenvolvemos um primeiro diálogo entre as obras

de Rosa e Lamartine como tradição passada adiante.

1.1 Os sertões de Rosa e Lamartine

Para compreendermos a tradição regionalista representada pela obra do

escritor mineiro, nos deparamos inicialmente com o paradoxo de Candido, pois a

dificuldade de delimitar os sertões da obra de Guimarães Rosa está diretamente

relacionada com a negativa de vários críticos de peso de que o escritor não é

regionalista. Diferente do que se observa em Graciliano, Euclides e tantos outros, o

espaço não é delimitado de modo preciso, sendo mais relacionado com o sertão de

Minas Gerais, mas bem diferente em suas fronteiras.

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Podemos dizer que, mesmo se baseando no espaço real do sertão e na

presença histórica do sertanejo, nenhum deles é encontrado de forma “bruta” em

sua escrita. A tradição surrealista do autor se caracteriza, principalmente, pelo seu

“sertão-mundo”. As falas dos personagens e a linguagem de seus narradores,

trabalhadas ao ponto de parecerem naturais do sertão, oscilam entre neologismos,

estrangeirismos ressignificados em nosso sistema linguístico, arcaísmos e toda a

sorte de figuras construídas para cada formação de sentido suscitar leituras novas.

– “Ossenhor utúrje, mestre... Não temos costume... Não temos costume...

Que estamos resguardando essas estradas... De não vir ninguém daquela

banda: povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega em todos...

Ossenhor é grande chefe, dando sia placença. Ossenhor é

Vossensenhoria? Peste de bexiga preta... Mas povoado da gente é o Pubo –

que traslada do brejão, ossenhor ´com os seus passaram perto de lá, valor

distante meia-légua... As mulheres ficaram, cuidando,cuidando... A gente

vinhemos, no graminhá. Faz três dias... (ROSA, 2011, p. 482)

Há referências de locais reais na mesma medida que de veredas

imaginárias, e a terra toma dimensões de reflexo do que se passa no homem que a

atravessa, mostrando uma ambientação mais metafísica que referencial. E,

complicando qualquer certeza de referência geográfica local, o próprio autor já

comentou que nem sempre o espaço descrito em suas obras seria brasileiro:

Ele ria, dava uma risadinha bem típica dele, e dizia assim: “Ah!, eu me

divirto muito com isso, porque dizem 'o Rosa ali, aquela paisagem, aquele

crepúsculo mineiro', e não é nada de crepúsculo mineiro, é um crepúsculo

que vi na Holanda, misturei com algumas coisas que vi em Hamburgo,

misturado com algumas coisas de Minas, misturei tudo aquilo e fiz, joguei lá,

e as pessoas dizem que só estou é fazendo uma espécie de omelete

ecumênico”. (CAMPOS, 2011, p. 55)

Dessa forma, por pretendermos classificar o autor como regionalista, o

próprio conceito de “região” em Rosa precisa ser modificado, pois, como

consideramos, a sua abertura ao mundo não nega o sertão, e sim amplia suas

virtualidades possíveis. Com isso, nossa aproximação do sertão rosiano será de

outra natureza.

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Críticos como Antonio Callado e Candido já apontaram, por exemplo, a

influência de Euclides em Rosa, mas este teria conseguido se afastar de seu estilo

ao ponto de não sofrer qualquer angústia. Em depoimento, Callado afirma que o

escritor: “[...] deve ter lido muito e se dedicado muito à leitura do Euclides […] O que

ele não deixou, o que ele não fez foi se deixar influenciar pelo estilo a ponto de você

ler e se lembrar do Euclides.” (CALLADO, 2011, p. 11). Candido tece comentário

bastante próximo, dizendo que:

No fundo se esquematizarmos a visão dele, é uma visão que lembra a do

Euclides da Cunha, porque tem o meio, quer dizer, a terra, o homem e a

luta. O que é interessante no caso do Euclides da Cunha, porque no caso

do Euclides esse é um esquema determinista, rigorosamente determinista

[…] Nós podemos reconstruir o Grande sertão: veredas exatamente: a terra,

o homem e a luta. Só que aí não há nenhuma relação causal. (CANDIDO,

2011, p. 23)

Mas, fora essa influência não tão perceptível além do romance do autor, a

definição dos limites do sertão rosiano passa quase para um território imaginário.

Em uma entrevista famosa concedida ao crítico alemão Günter Lorenz (Gênova,

1965), o escritor deixa mais claras algumas de suas características, não apenas de

escrita, mas de vivência pessoal e, em algumas das passagens mais famosas desse

longo diálogo, demonstra preocupação com a coerência entre escrita e vida. Logo

no início de sua conversa, o escritor insiste que há uma forte ligação entre sua

identidade e a matéria de sua literatura, se apresentando como “homem do sertão”

e, interpelado por Lorenz, pontua alguns dos valores que o levaram, por exemplo, ao

Grande sertão:

Como médico conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor

da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte. […] estas

três experiências formaram até agora o meu mundo interior; e, para que isto

não pareça demasiadamente simples, queria acrescentar que também

configuram meu mundo a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e

idiomas. (LORENZ, 1991, p. 67)

Mais adiante, completa a ideia de fusão entre obra e biografia,

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sustentando que todo sertanejo é naturalmente um “fabulista”, e que desde cedo

começou a perceber todo aquele espaço de narrações em sua volta como um

terreno menos histórico, aberto a todo o tipo paradoxal de “estórias”:

Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e comecei

a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua

essência, era e continua sendo uma lenda. Instintivamente, fiz então o que

era justo, o mesmo que mais tarde eu faria deliberada conscientemente:

disse a mim mesmo que sobre o sertão não se podia fazer “literatura” do

tipo corrente, mas apenas escrever lendas, contos, confissões. (LORENZ,

1991, p. 69)

Podemos identificar nesses trechos uma perspectiva do autor que

permeia algo além das divisões entre escrita ficcional literária e seus fatores

autobiográficos. Rosa sugere que não há divisão entre tais planos, como pontua

várias vezes em suas falas seguintes. Enfatiza que escrever é repetir o que já foi

vivido (mesmo que no infinito de uma aventura imaginada), que a vida e a obra

devem ser “equivalentes”, e que a própria linguagem é a vida.

Por todas essas crenças apresentarem coincidências em sua obra, Rosa

representa, a nosso ver, o tipo de escritor que talvez tenha se aproximado mais da

“autofixão” pela identificação com a matéria trabalhada, mas sem ter grandes

preocupações em distinguir o histórico do lendário. Além disso, a declaração de que

“sobre o sertão não se podia fazer 'literatura' do tipo corrente, mas apenas escrever

lendas, contos, confissões” nos dá uma melhor ideia dessa região de que fala. É

esse o modo de transformar o sertão que foi classificado como “surregionalismo” por

Candido.

Entretanto, é Eduardo Portella um dos primeiros críticos a perceber esse

traço, em A Estória cont(r)a a História para o Jornal do Brasil (PORTELLA, 1991).

Segundo o crítico, Guimarães Rosa não seria ideólogo, mas apenas um escritor

comprometido com a criação literária e, assim, qualquer leitor que buscasse separar

o real do irreal em sua escrita estaria apenas “fraturando” a unidade da obra. Com

isso, ao notar por outras vias que Rosa não busca uma correspondência com a

realidade, Portella nos mostra em novo ângulo a questão “surrealista” de sua escrita:

não apenas o homem se encontra em uma relação dialética de existência com as

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palavras, como agora a própria percepção está ligada à imaginação na “realidade”.

E, isto posto, encontramos nessa visão uma excelente proposta para compreender a

diferença entre “realidade sensível aparente” (citada pelo escritor em Tutaméia) e a

percepção ampla de Guimarães Rosa.

Em suas obras, há uma mimese enquanto criação, em que o sensível e o

imaginário se completam. Ela parece zombar da realidade composta por fatos e

documentos, considerando todo o universo fabular do autor e superando as

características tradicionais da tendência regionalista. Seu regionalismo pode ser

identificado, portanto, pela criação que torna o sertão mais evidente, não pelo

registro preciso do espaço. A região aparece por essa criação no que, para o

escritor, seria possível pertencer ao sertão. Uma região cheia entre o real e o

místico, enriquecida por seus paradoxos, pois eles “existem para que ainda se possa

exprimir algo para o qual não existem palavras.”, como diz o próprio literato

(LORENZ, 1991, p. 68). Como consideramos, esse espaço histórico, místico, fabular

e conscientemente recriado é, portanto, a “região” de que Rosa escreve, de onde o

“homem do sertão” reorganiza suas terras em relação com o mundo, regionalizando

o universal.

Já Oswaldo Lamartine passa por sertões mais concretos, mesmo que

igualmente “lendários”. Sua luta é menos com as palavras que com o esquecimento,

pois é uma das únicas vozes do interior de um estado que poucas décadas antes

era avaliado como “estado provinciano que se apresentava com uma mínima

atividade intelectual, cujos representantes [...] estavam ou comprometidos com a

política e a vida prática, ou morando em outro lugar, enquanto outros já estavam

mortos.” (COSTA, 2010, p. 147). Essa tradição já escassa de “homens de letras” no

Rio Grande do Norte é ainda mais grave no sertão, pois quase toda a produção da

época se concentrava na costa.

Lamartine é um dos últimos representantes da oligarquia

pecuária/algodoeira do estado, que, tradicionalmente, compete com a vida costeira

mais ativa. Segundo Sônia Lúcia Ramalho (2006), os dois grupos são responsáveis

pelo movimento cultural regionalista nordestino:

[…] o regionalismo se apresenta como um movimento de defesa dos

interesses de um segmento da classe dominante brasileira que, ante a

iminência de perda de seu espaço, estabelece um front ideológico – o dos

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“regionalistas” - de reação “contra as forças em vias de aprofundarem o

controle de organização daquele espaço”. (FARIAS, 2006, pp. 32 - 33)

Mas o costeiro, da linha de Gilberto Freire, sempre subordinou o

sertanejo, da linha de Djacir Menezes. Essas duas matrizes oligárquicas defenderam

seus interesses inscrevendo-se como centro da representação regional, mas o peso

da dominância litorânea é suficiente para, mesmo nos estudos de Menezes,

classificar o interior como O Outro Nordeste (1973). Farias comenta:

Publicado contemporaneamente a Nordeste, de Gilberto Freyre, mas

ocupando-se do Nordeste semi-árido, domínio da oligarquia algodoeira-

pecuária, a obra de Djacir Menezes (1973) intenta, de acordo com a

afirmação do próprio autor no prefácio, “enquadrar a formação histórica e

social do Nordeste dentro da evolução do Brasil, em conexão com o

processo de desenvolvimento capitalista do Ocidente. Este imprime seu

ritmo na nossa formação cultural”. Neste sentido o historiador cearense

busca estabelecer a articulação espacial, no quadro do sistema capitalista

mais amplo, entre dois Nordestes, o sertanejo-pecuário-algodoeiro e o

litorâneo-açucareiro, em relação aos estados hegemônicos do Centro-Sul

do país e aos centros capitalistas do mercado externo (ingleses). (FARIAS,

2006, p. 42)

Somando-se ao peso do menor espaço na cultura regional, a obra de

Lamartine é ainda pouco mencionada na tradição norte-rio-grandense, aparecendo

pontualmente em alguns estudos, como na breve análise de Manoel Onofre Júnior:

No “Encouramento e Arreios do Vaqueiro no Seridó” (pag. 23) consta uma

citação de “Viagens ao Nordeste do Brasil” (“Travels in Brazil”), de Henry

Koster, em que este descreve minuciosamente um nosso vaqueiro,

encontrado em 1810. É “o exato Koster”. Pois bem, Osvaldo Lamartine, não

só no livro referido inicialmente, mas em toda a sua obra, semelha um nôvo

Koster, mas em perene viagem no Seridó. É impressionante a sua

capacidade descritiva; como o inglês viajor, ele não deixa passa nada. Só

que sempre norteado pelo interesse etnográfico. Descrevendo coisas –

arreios, por exemplo –, também descreve a maneira como são usadas pelo

sertanejo, e a influência delas no modo de ser dêste: – comportamento, fala,

etc. Daí não ser exagero dizermos que, com o desaparecimento real e

gradativo dêsse homo seridoensis (!), devido à civilização” invasora, ainda

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assim será possível encontrá-lo vivo nos estudos de Osvaldo Lamartine. A

pesquisa, neste autor, logicamente é ampla e inteligente. Além da vivência

pessoal, direta, e das citações livrescas, inclui também versos populares,

velhas leis e regulamentos, trechos de partilhas de antigos inventários e até

anedotas. Uma pesquisa diferente. E – o que é importante – tem a valorizá-

la um aspecto literário digno de toda a atenção. Osvaldo Lamartine escreve

moderno, desenvolto, com clareza. Mas o que mais lhe enriquece a prosa é

o modo de transplantar o que há de original e poético no linguajar do matuto

sertanejo. É admirável. (JÚNIOR, 1978, p. 74)

Isso torna a escrita do ensaísta ainda mais relevante para a literatura

norte-rio-grandense, pois junto da de seu pai, Juvenal Lamartine, forma boa parte do

registro do interior seridoense. Cascudo, próximo a Freyre, ocupa-se da história de

Natal, e da costa se irradia para o interior; mas são Juvenal e Oswaldo que tratam

da vida no sertão. Porém, para o segundo, o desafio de cobrir o sertão se aproxima

da própria criação.

Como percebemos na leitura de Onofre Júnior (1975), a grande diferença

entre os dois autores reside no trato com o sertão. Enquanto o pai “não recorre a

outra fonte informativa, senão à sua própria vivência, do que resulta inexistir a

tradicional 'colcha de retalhos'.” (JÚNIOR, 1975, p. 71), o filho dialoga com diversos

autores e testemunhas do “sertão velho”, a que inclui as obras de Juvenal.

Em Velhos costumes do meu sertão (1965), reúne-se o maior conjunto de

textos narrados pelo velho Juvenal Lamartine, já cego, aos netos. Publicado antes

em jornal nos idos de 1954, a coletânea trata da:

[…] parte do Brasil que ficou como que parada no tempo, até o

desenvolvimento das comunicações – estradas “centrais”, caminhões,

rádios, etc. –, já no século XX –, êsse sertão, meio medieval, vive na prosa

elegante e despretensiosa de quem com ele conviveu intimamente.

(JÚNIOR, 1975, p. 70)

O que aparece em primeiro plano é, com isso, a experiência do estadista,

presidente da Academia de Letras do estado e um dos maiores representantes

intelectuais da cultura potiguar em sua época:

No início do século XX, […] o Rio grande do Norte vivia sob a gestão da

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oligarquia algodoeira-pecuária, representada pelos líderes José Augusto e

Juvenal Lamartine e tendo por base uma orientação de progresso e

modernização das forças produtivas do estado. O projeto modernizador

incluiu conquistas como a aviação, a imprensa, o voto feminino, o plano

urbanístico da cidade de Natal e um maior dinamismo na vida administrativa

por meio da mocidade intelectual. (COSTA, 2010, p. 161)

Mas, no entanto, sua produção é avaliada como “literariamente medíocre”

por Onofre Júnior, servindo como fundo para a obra que Oswaldo Lamartine começa

a formar uma década depois. Enquanto o primeiro escreve sobre o que viveu,

pautado na sua história pessoal como homem influente e que participou das

mudanças do Rio Grande do Norte, o segundo, tendo saído ainda jovem do Rio

Grande do Norte devido a um problema pessoal (a morte de um amigo em

decorrência de um acidente com uma arma de caça, e o tormento da culpa insuflado

pelos colegas de escola), tenta resgatar esse sertão da infância, das memórias do

pai, da identidade perdida.

Oswaldo se vê longe da terra logo cedo e, assim, tenta reconstruir o

passado pela escrita, o que não se isenta da revisão feita por uma vida parte vivida

fora de seu espaço. É nesse sentido que o autor potiguar se aproxima da tradição

rosiana: na quase ausência de tradição literária sobre os sertões do seridó,

ultrapassa a tendência clássica do documentário e da apresentação exótica

afastada, porque necessita antes colocar no mapa da tradição potiguar esse espaço

e sua identidade. Lamartine faz isso dentro do tema, em uma perspectiva sobre o

sertanejo que acusa sua apresentação feita por um deles, e que constantemente

escapa do aspecto de “estudo” para o tom pessoal das memórias de Oswaldo

Lamartine e de seus conterrâneos. Porém, essa proximidade mantém-se conflitante,

pois o autor não se enquadra como autoridade da história do Seridó, e procura

recuperar no seu discurso algumas vozes do passado.

O espaço é assim ficcionalizado por sua construção demonstrar equilíbrio

entre elementos históricos, possibilidades de resposta tecidas pelo ensaísmo do

escritor e o uso de lendas, causos, literatura oral e ressignificações literariamente

elaboradas. Desse modo, também encontramos em Lamartine a realidade ampliada

de Rosa, pois em sua síntese não afasta o caráter mais subjetivo do conhecimento

seridoense de sua “realidade sensível aparente”, isto é, o estritamente verificável,

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que desconfia do misticismo, e não traduz as realidades psicossociais de um povo,

pois apenas as observa.

Oposto a isso, o ensaísta constitui-se sertanejo por toda a variedade de

recursos elencados para a sua imagem dos sertões do Seridó, e no ensaio de sua

terra desenvolve mais que uma história. Revela como de cada trabalho e recurso

registrado no interior é possível vislumbrar, por exemplo, o espírito vaqueiro da

sobrevivência, a poesia escondida nas águas de um açude e todas as almas

seridoenses que ainda ressoam no dizer típico da terra. Ele, por fim, nos faz mais

regionais enquanto leitores.

1.2 Da escrita roseana ao ensaísmo lamartineano: uma tocha passada adiante

Quando consideramos a obra de Guimarães Rosa, e mais

especificamente o seu Grande sertão: veredas, como representante de uma tradição

nova que supera o “regionalismo puro” de Candido, estamos, ironicamente, nos

referindo ao conceito de tradição do crítico. Na introdução de seu estudo mais

influente, Formação da Literatura Brasileira (2000), ao definir sua perspectiva sobre

literatura, o autor a considera em sua relação sócio-histórica: “[...] um sistema de

obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas

dominantes de uma fase.” (CANDIDO, 2000, p. 23), e, em decorrência dessa visão

contextualizada do meio literário, a associa com uma intenção de continuidade,

dentro da literatura, que formaria sua tradição:

[...] a formação da continuidade literária, – espécie de transmissão da tocha

[...] É uma tradição, no sentido completo do termo, isto é, transmissão de

algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando

padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais

somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradição

não há literatura, como fenômeno de civilização.” (CANDIDO, 2000, p. 23)

Por essa perspectiva, podemos falar de uma tradição rosiana passada

para Lamartine, não de uma apropriação da literatura do primeiro pelo segundo, mas

como a continuidade da tendência regionalista que Rosa representa. Ambos sendo

influenciados por Euclides, mas superando o trato quase impessoal da vertente

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ligada ao documentário, são devedores dessa tradição d'Os Sertões(1902) e estão

em outra relação de transmissão.

Vista de outra forma, a tradição, segundo Gerd A. Bornheim, é “o conjunto

dos valores dentro dos quais estamos estabelecidos” (1987, p. 20), entendidos tais

valores como “a totalidade do comportamento humano” (1987, p. 20). O autor

também aponta para a “vontade da tradição” de ser tradição e ser perene, mas,

inevitavelmente, ter de conviver próxima da “ruptura”, que a faz ser renovada. Tal

perspectiva está intimamente ligada com a própria língua que usamos, já que desde

sempre ela nos insere em uma cultura e, inclusive, é pela própria etimologia que

percebemos outras características do conceito:

A palavra tradição vem do latim: traditio. O verbo é tradire, e significa

precipuamente entregar, designar o ato de passar algo para outra pessoa,

ou de passar de uma geração a outra geração. Em segundo lugar, os

dicionaristas referem a relação do verbo tradire com o conhecimento oral e

escrito. Isso quer dizer que, através da tradição, algo é dito e o dito é

entregue de geração a geração, como que inserido nela, a ponto de revelar-

se muito mais difícil desembaraçar-se de suas peias. (1987, p. 18).

Em uma perspectiva da literatura, a “vontade de tradição” representa a

continuidade da tendência que, embora ofereça os mesmos temas, enfrenta uma

necessidade de ruptura pelo meio expressivo. Principalmente em Lamartine,

encontramos expresso o intuito de fazer aparente essa tradição não apenas literária,

mas histórica do sertão, concentrando-se no recorte seridoense dessa continuidade.

E, em ambos os autores, é encontrada a modificação da escrita pelas rupturas que

se fazem necessárias na visão de cada um: a criação da linguagem e da própria

narração regionalista em dimensões inéditas com Rosa, e a (re)criação ensaística-

literária do espaço já mudado pela modernidade em Lamartine.

Já em um diálogo bastante aproximado a Bornheim, Marshall Berman

procura explicar as mudanças que nos levam a ruptura. Em “Tudo o que é sólido

desmancha no ar: a aventura da modernidade”, nos mostra que esta é uma época

de inumeráveis oportunidades de transformação e possibilidades de destruição, de

identidades fragmentárias que não nos completam, mas nos proporcionam as

ligações dialéticas “de uma unidade de desunidade” (1986, p. 15). Aponta

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principalmente para as observações de Nietzsche: “A moderna humanidade se vê

em meio a uma enorme ausência e vazio de valores, mas, ao mesmo tempo, em

meio a uma desconcertante abundância de possibilidades.” (apud BERMAN; 1986,

p. 21), e de Marx: “Em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário.

[...] Na mesma instância em que a humanidade domina a natureza, o homem parece

escravizar-se a outros homens ou à sua própria infâmia.” (apud BERMAN, p. 19),

mostrando esse caráter contraditório nunca antes visto em outros períodos.

Mas seu julgamento sobre atitudes com a modernidade parece conter-se

na busca de “volta ao passado” pelos movimentos do século XIX (uma “tradição

moderna”), já que estaríamos vivendo, desde os anos 60, visões pessimistas e “neo-

olímpicas” de correntes niilistas/estruturalistas. Berman procura, portanto, uma

realidade que suspeite de e se interesse pela modernidade, como a visão conflituosa

de um Rousseau, talvez tendo em vista as complicações grotescas de certas

mudanças de valores, como a falta de engajamento, ou a negação foucaultiana de

toda liberdade.

Em essência, os dois escritores que analisamos encabeçam, cada um a

seu modo, uma das linhas da nova tradição regionalista produzida pelo passado e o

presente em conflito. Em Grande sertão: veredas (2011) a narrativa pela voz do ex-

jagunço Riobaldo é uma revisão de sua vida, reestruturando em nova avaliação a

sua história, e a obra em si é uma renovação expressiva da literatura passada, em

especial a de Euclides da Cunha. Lamartine não difere, combatendo a realidade do

passado que se desmancha nas areias do tempo pela sua escrita em Sertões do

Seridó (1980), que dá vigor à história local.

Os dois livros, inclusive, se aproximam no caráter narrativo de que Walter

Benjamin escreve. Em O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov

(1987), Benjamin tece um discurso que aponta para as causas do declínio da

narrativa e quais seriam as características (e natureza) dessa arte em vias de

extinção. Suas considerações parecem se endereçar ao “modos narrativos” dos dois

escritores: explica a narrativa como “A experiência que passa de pessoa a pessoa

[...]” (1987, p. 198), tendo “dimensão utilitária” e “sabedoria” como valor da narrativa

(“a sabedoria – o lado épico da verdade”, pp. 200 – 201); apresenta o narrador

incorporando suas experiências e as dos ouvintes (diferente do “isolamento” do

romance), e seus saberes sem necessidade de “verificação imediata” (diferente dos

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saberes da Imprensa), com uma renovação da história em cada nova narração

(“Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo”, p. 205); fala da

importância da memorização (“A memória é a mais épica de todas as faculdades.”,

p. 210), e do caráter artesanal da narrativa (cheia de marcas, de presença humana,

não isenção ou afastamento).

Estamos, portanto, diante de uma tradição regionalista renovada pelo

estilo e o convívio mais extenso com a modernidade, mas que, por outro lado, utiliza

traços da narrativa tradicional, feita por literatos que se identificam com os

contadores de história das culturas rurais. No caso de Lamartine, podemos traçar

uma continuidade entre o “matuto” potiguar, e mesmo a tradição vinda das histórias

de seu pai, sendo um narrador rural nordestino; já a referência histórica dos

contadores de história de Rosa é mais aproximada do caboclo, habitante do interior

mineiro, que fala de um sertão arborizado e coberto por vegetação verde. No

primeiro caso, vemos (na visão de Benjamin) um narrador sedentário, que fala da

terra e de sua gente e, no segundo, um narrador viajante, que vai traçando a

geografia dos lugares por que passa.

Faz-se a pescaria de açude por processos mais ou menos idênticos, pouco

variando com o passar dos anos. E muitos dos pescadores de hoje são

filhos de pescadores, que sentiram o despontar da barba e o engrossar da

voz ajudando os mais velhos a escalar peixe, consertar e estender as redes,

mergulhar nos porões de açudes para desenganchar uma tarrafa ou mesmo

arremedando lances à beira d'água com suas tarrafas de menino. (FARIA,

1980, p. 128)

Viajamos juntos quatro dias, quase trinta léguas, bom tempo beirando o

Riachão e enxergando à mão esquerda os vultos da Serra-do-Cabral. Meus

companheiros quase que não me informavam, de nada ou nada. Tinham

outras ordens. Mas, mesmo antes da gente entrar em terras do Palhão, fui

vendo coisas calculosas, dei meio para duvidar. Patrulhas de cavaleiros em

armas; troco de conversa de vigiação; e uma tropa de burros cargueiros

mas no meio dos tocadores vinham três soldados. (ROSA, 2011, pp. 172 -

173)

Mesmo com algumas diferenças, o aspecto narrativo perceptível entre

Rosa e Lamartine se vincula ao narrador regional, de cultura do campo, que é

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próximo da visão de “cultura rústica”, estudada por Antonio Candido em Os

parceiros do Rio Bonito (2001):

No caso brasileiro, rústico se traduz praticamente por caboclo no uso dos

estudiosos, tendo provavelmente sido Emílio Willems o primeiro a utilizar de

modo coerente a expressão cultura cabocla [...] que [...] exprime as

modalidades étnicas e culturais do referido contacto do português com o

novo meio. (CANDIDO, 2001, p. 28)

Podemos compreender com isso que tratamos com, pelo menos, duas

perspectivas de tradição que se completam nessa ligação da tendência regionalista

entre Rosa e Lamartine: uma que remete à “origem cultural” de valores tradicionais,

mesmo que remotamente presentes em características de oralidade e tentativa de

registro; e outra estética, não movida por uma simples “vontade de tradição”, mas

por uma “vontade de ser literatura”. Observamos a primeira como parte da segunda,

que não se estrutura simplesmente pelo cuidado com a linguagem, mas trabalha

esteticamente sua matéria histórica/ficcional vinculada aos sertões dos autores.

Assim, podemos entender desse contraste a tradição literária não apenas

como a tocha que é passada, contendo valores sociais e morais, mas todo o

conteúdo humano e estético, mesmo que conflituoso, em relações dialéticas com

traços da “narrativa” de cada autor.

Em tal terreno arenoso, vale salientar a importância das memórias na

Literatura, segundo Candido, como “processo de maioridade”. E é justamente

lidando com esse entrecruzar de Literatura e memórias com que trabalhamos,

particularmente no ensaísmo lamartineano, entendendo que esse vínculo gera algo

além do objeto estético somado ao registro histórico, gera literatura como “fenômeno

de civilização”. Com tal vínculo, inclusive, podemos mesmo ampliar o conceito de

leitura literária, já que, segundo Santiago: “[...] são fluidas e pouco pertinentes as

fronteiras entre o discurso ficcional memorialista e discurso autobiográfico no

contexto brasileiro.” (1982, p. 33), o que nos leva a uma maior amplitude do

“espectro literário” quanto ao tema das memórias: “[...] só o abandono por completo

da máscara dúbia contida nas etiquetas ‘romance’ e ‘personagem’ e a aceitação das

regras das memórias poderiam [...] ativar a participação de qualquer escrita, de

qualquer livro, na vida intelectual e sócio-política brasileira.” (1982, p. 33).

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Tomando os ensaios de Sertões do Seridó como fronteira desse

fenômeno civilizatório, podemos aproximá-los da literatura intrincada de Guimarães

Rosa ainda por outra perspectiva, que facilita nossa leitura do caráter literário da

obra do autor potiguar. Mesmo sendo um gênero aberto e com estrutura

relativamente livre, é possível ler o ensaio lamartineano pelas suas oscilações entre

escrita “séria” e subjetiva à luz de Rosenfeld (2011). O crítico estuda as fronteiras da

obra literária (e da obra de arte de modo geral), registrando o caráter ficcional e,

sobre a sua intenção e contexto, observa:

Uma das diferenças entre o texto ficcional e outros textos reside no fato de,

no primeiro, as orações projetarem contextos objectuais e, através destes,

seres e mundos puramente intencionais, que não se referem, a não ser de

modo indireto, a seres também intencionais (onticamente autônomos), ou

seja, a objetos determinados que independem do texto. (ROSENFELD,

2011, p. 17)

Para ele, outros textos utilizam processos semelhantes, com “imagens

puramente intencionais”, mas se apagam para dar lugar à visão da realidade. Já na

arte, essa imagem ganha valor próprio, e “ofusca” a realidade retratada. Ou seja: a

imagem intencional na literatura ofusca o lado “objetivo” de uma referência possível,

o que verificamos em várias passagens da escrita lamartineana, quando ocorrem

seus “desvios” da linha principal da escrita.

Podemos compreender que Rosenfeld aponta como um dos “problemas”

dessa ficcionalidade a correspondência do ser “ontologicamente autônomo”

(existente, real, “referenciável”) e outros seres “puramente intencionais” que

aparecem na criação literária. Os primeiros aparecem dentro da literatura apenas

como referência indireta. A “visão da realidade” é ofuscada pela “imagem

intencional” do texto literário, pela sua criação intencionalmente ficcional. Já em

Lamartine, há o convívio dos “personagens” entre dimensão real e ficcional, como

vemos nas passagens sobre pessoas reais que, pela linguagem, assumem aspecto

lendário da cultura potiguar.

Parafraseando Rosenfeld: Todo texto projeta contextos objectuais

“puramente intencionais”, que podem referir-se ou não a objetos onticamente

autônomos. Tais contextos provocam uma aparência de realidade e mesmo uma

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impressão de continuidade, mas a diferença que separaria os textos ficcionais dos

não ficcionais estaria encerrada nas imagens construídas que, diferente de um

caminho para perceber a realidade, acabam seguindo direção própria, ofuscando o

lado objetivo das possíveis referências ao mundo real.

Mas nosso ensaísta constrói um sertão entre o real e o ficcional, diluindo

essa separação. Sendo continuador dessa tradição da “verdade ampla” encontrada

em Rosa, seu texto caminha entre a “intenção séria de verdade” (ROSENFELD,

2011, p. 18) e a “intenção diversa” da ficcionalidade. O problema lógico da

ficcionalidade, segundo Rosenfeld, seria a relação do enunciado com a intenção

“séria” de atingir a “verdade”, sendo que, na literatura, tal intenção é diversa (voltada

para a ficção), pois não objetiva “juízos”, e mesmo que sua estrutura textual seja

semelhante a de textos “objetivos”, apenas apresenta “quase-juízos” na sua

construção ficcional. Porém, em uma noção do “real” que considera o imaginário e

criativo, esse problema se resolve.

Isso se esclarece ainda mais quando pensamos simplesmente no

significado de “verdade” para textos ficcionais e não ficcionais. Há diferenças

semânticas radicais entre tais verdades: uma voltada para a aproximação do “real”

(ou assim percebido), e a outra para conhecimentos que escapam à constatação do

real. Parece-nos que a maior diferença está na apresentação de juízos de um lado,

e em “proporcionar experiências” de outro, não se valendo das limitações da

“verdade verificável”. Essas experiências completam o entorno da realidade

verificável, ou da “realidade sensível aparente” de que falava Rosa, pois nos

proporcionam conhecimentos só acessíveis pelo imaginário, pela criação e pela

experiência ficcional.

É por esse prisma que avaliamos a oscilação de ficcionalidade e

seriedade de Lamartine e como ela relaciona sua escrita com a tradição que

continua. Tomamos essa literatura regional enriquecida pelas suas várias

dimensões, pela sua impressão tradicional da narrativa, ao lado do choque com a

modernidade e sua decorrente adaptação expressiva mais identificada com o

espaço retratado, e construímos o lastro entre Rosa e Lamartine.

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2. GRANDE SERTÃO: VEREDAS E A CONSTRUÇÃO DO SURREGIONALISMO

Grande sertão: veredas (ROSA, 2011) inicia já no diálogo de Riobaldo,

velho jagunço aposentado, e um “doutor de fora” que apenas aparece como ouvinte,

um visitante, para quem o narrador personagem conta a sua história. A estrutura do

livro de mais de 700 páginas e nenhuma divisão por capítulos é, por menor que seja

a presença do interlocutor, elaborada em forma de conversa, como é possível

perceber pelas expressões de retomada, presença da linguagem fática e mesmo as

visíveis fugas com explicações ou recomendações do sertanejo ao “forasteiro”:

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as

pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que

elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a

vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às

brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A

força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! (ROSA, 2011, p.

48)

Aos poucos, a apresentação do sertão e suas personagens caminha, em

lances rápidos do início da conversa, e dá lugar a recordações mais detidas de três

fontes diferentes: os lugares por onde passou, as pessoas que conheceu e as por

que nutriu algum carinho maior (sabidamente Diadorim, Zé Bebelo e alguns outros

chefes de bando).

São esses os elementos-chave que costuram a consciência do narrador:

perdido entre memórias, avaliações do passado e divagações metafísicas (a

existência de Deus/Diabo, a vida/morte no sertão, amor/silêncio por Diadorim etc.),

Riobaldo não apenas fala do sertão e de sua experiência pessoal, mas (re)cria para

o doutor que o escuta o próprio sertão, que já se encontra mudado:

Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para

sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. Agora – digo por

mim – o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram.

Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada.

(ROSA, 2011, p. 51)

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Com a certeza do passar do tempo, contempla o que lembra muitas vezes

com espanto de quem percebe estar “mudando a história”, “contando irregular”, e

volta várias vezes à linha principal das batalhas contra “os Judas”, que leva ao fim

trágico da morte do companheiro e o pacto. As passagens de sua juventude de

jagunçagem vem em blocos significativos, seguidos de pausas diversas, hora por

uma lembrança:

Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas

acontecerem... Com isso minha fama clarêia? Remei vida solta. Sertão:

estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra. Vaqueiros?

Ao antes – a um, ao Chapadão do Urucúia – aonde tanto boi berra...

(ROSA, 2011, pp. 57 - 58)

Ou por avaliações pessoais da vida e do sertão:

Mas, hoje, que raciocinei, e penso a eito, não nem por isso não dou por

baixa minha competência, num fôgo-e-ferro. A ver. Chegassem viessem

aqui com guerra em mim, com más partes, com outras leis, ou com sobejos

olhares, e eu ainda sorteio de acender esta zona, ai, se, se! É na boca do

trabuco: é no té-retê-retém... E sozinhizinho não estou, há-de-o. Pra não

isso, hei coloquei redor meu minha gente. (ROSA, 2011, p. 49)

E comentários sobre a cultura popular da região, ou sua geografia:

Mire veja: um casal, no rio do Borá, daqui longe, só porque marido e mulher

eram primos carnais, os quatro meninos deles vieram nascendo com a pior

transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos... Arre, nem

posso figurar minha ideia nisso! Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor

rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Arassuaí, discorreu

me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso

próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! (ROSA,

2011, p. 92)

Todos esses casos avançam na narrativa como complemento da visão

cósmica do sertão, espaço criado entre as histórias de vida do jagunço, causos e

contos herdados por outros viajantes, e o exame do narrador. São elementos que

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acusam no romance rosiano a presença de memórias e o “ensaio” de suas

experiências como fator principal da irregularidade narrativa.

Por esse caminho, a atenção do velho Tatarana está voltada para o fluxo

de sua memória, mesmo tentando manter a linha narrativa principal. Lembranças

surgem de comentários diferentes e não só da guerra se ocupa:

Ah, eh e não, alto-lá comigo, que assim falseio, o mesmo é. Pois ia me

esquecendo: o Vupes! Não digo o que digo, se o do Vupes não orço – que

teve, tãomente. Esse um era estranja, alemão, o senhor sabe: clareado,

constituído forte, com os olhos azuis, esporte de alto, leandrado, rosalgar –

indivíduo, mesmo. Pessoa boa. Homem sistemático, salutar na alegria séria.

Hê, hê, com toda a confusão de política e brigas, por aí, e ele não somava

com nenhuma coisa: viajava sensato, e ia desempenhando seu negócio

dele no sertão – que era o de trazer debulhadora, facão de aço, ferramentas

rógers e roscofes, latas de formicida, arsênico e creolina […] (ROSA, 2011,

p. 105)

Alguns temas recorrentes, como já foi apontado por Augusto de Campos

em Um lance de “Dês” do Grande sertão (CAMPOS, 1991), surgem na fala do

narrador, como as definições do sertão, a vida ser muito perigosa, Deus e o Diabo, e

o amor por Diadorim, declarado abertamente ou sugerido na sua presença ou

ausência:

Eu estava quase todo o tempo com Diadorim. Diadorim e eu, nós dois. A

gente dava passeios. Com assim, a gente se diferenciava dos outros –

porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades

estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é

feito um por si. De nós dois juntos, ninguém nada não falava. Tinham a boa

prudência. Dissesse um, caçoasse, digo – podia morrer. Se acostumavam

de ver a gente parmente. Que nem mais maldavam. E estávamos

conversando, perto do rego – bicame de velha fazenda, onde o agrião dá

flor. […] Quase que sem menos era assim: a gente chegava num lugar, ele

falava para eu sentar; eu sentava. Não gosto de ficar em pé. Então, depois,

ele vinha sentava, sua vez. Sempre mediante mais longe. Eu não tinha

coragem de mudar para mais perto. Só de mim era que Diadorim às vezes

parecia ter um espevito de desconfiança; de mim, que era o amigo! (ROSA,

2011, pp. 54 - 55)

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Demos no Rio, passamos. E, aí, a saudade de Diadorim voltou em mim,

depois de tanto tempo, me custando seiscentos já andava, acoroçoado, de

afogo de chegar, chegar, e perto estar. Cavalo que ama o dono, até respira

do mesmo jeito. Bela é a lua, lualã, que torna a se sair das nuvens, mais

redondava recortada. Viemos pelo Urucuiá. Rio meu amor é o Urucuiá.

(ROSA, 2011, p. 107)

Campos propõe uma leitura comparada de Rosa com a literatura de

Joyce e que trata justamente de questões do ritmo da escrita. Considera que o

romance de Rosa teria parentesco com Ulysses e Finnegans Wake principalmente

no experimentalismo com a linguagem e com o trabalho na sintaxe, além de, porque

nosso escritor também “enfrenta a problemática de um romance intemporal, ou

melhor atemporal.” em que “A ordem dos ventos é a ordem da memória” (CAMPOS,

1991, p. 327), incorreria Guimarães Rosa em vários passeios por tempos diversos,

correções, emendas etc., de forma semelhante a Joyce.

Todo esse processo de ritmo, memória e experiência com a linguagem

acaba sendo interpretado em busca de uma “tematização 'musical' da narração”

(CAMPOS, 1991, p. 328), em que temas apresentados por palavras-chave ou

expressões são aperfeiçoados a partir da repetição e da variação sonora. Tendo isso

como base, o crítico demonstra tal ponto de vista com os principais exemplos do

Grande Sertão: a recorrência predominante da sonoridade da letra “D” no meio dos

temas centrais da narrativa como um contraste, uma dúvida constante, entre Deus e

o Diabo; as reelaborações da frase “viver é muito perigoso”, que flutuam entre a

definição e a dúvida; e as “frases-conceitos” (CAMPOS, 1991, p. 345) apresentadas

essencialmente pela “travessia” e o “sertão” (algumas das passagens de revisão

mais aparentes do texto).

Desse modo, o fazendeiro Riobaldo, que explica não ser nada a se

preocupar os tiros que se ouviram antes da conversa, vai ao caso de emprestar as

armas para matar um “bezerro do Demo”, define geograficamente o sertão e depois

diz que este “está em toda parte” (ROSA, 2011, p. 30), passa pela dúvida da

existência do Diabo e as interpelações do compadre Quelemém – o amigo da

velhice de Riobaldo, que parece acalmar suas angústias metafísicas e servir de

parâmetro para algumas de suas reflexões:

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Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem,

em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas

rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo.

Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais

crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo,

até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu

Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: – “Riobaldo, a colheita é comum,

mas o capinar é sozinho...” – ciente me respondeu. (ROSA, 2011, p. 90)

Esse pequeno trecho introdutório, antes das lembranças sobre os amigos

jagunços e a apresentação da narrativa principal, ocupa, como avaliamos, não

apenas o presente de Riobaldo, mas os temas que o acompanham durante o

Grande Sertão. Seu desenvolvimento passa pela presença dessas questões ao

longo da revisão do passado do narrador em um presente diálogo com um doutor

que ignora aquele tempo e sua ligação com a terra e seus habitantes.

O velho jagunço provoca, portanto, alguns desvios para inserir seu

convidado na realidade a que se reporta, e o faz ainda dentro do sertão, como quem

conhece o mundo por estas fronteiras, cada vez menos precisas pelo alcance que

atinge:

Agora, por aqui, o senhor já viu: Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico.

O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão. E agora me lembro: no

Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor vá ver a fazenda velha, onde tinha um

cômodo quase do tamanho da casa, por debaixo dela, socavado no antro do

chão – lá judiaram com escravos e pessoas, até aos pouquinhos matar...

Mas, para não mentir, lhe digo: eu nisso não acredito. Reconditório de se

ocultar ouro, tesouro e armas, munição, ou dinheiro falso moedado, isto sim.

O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a

baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania. (ROSA, 2011,

pp. 108 - 109)

O narrador dá a conhecer sua história nos embrenhando nas veredas

como quem é guiado por um nativo, não da visão telescópica dos visitantes.

Passamos pelas terras nas andanças dos bandos, observando seus usos e

costumes, contados por “um dos seus”:

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Aquele povo estava sempre misturado, todo o mundo. Tudo era falado a

todos, do comum: às mostras, às vistas. Diferente melhor, foi quando

estivemos com Medeiro Vaz: o maior número lá era de pessoal dos gerais –

gente mais calada em si e sozinha, moradores das grandes distâncias. Mas,

por fim, um se acostumava; isto é, eu me acostumei. Sem receio de ser

tirado de meu dinheiro: que eu empacotava ainda boa quantia, que Zé

Bebelo sempre me pagou no pontual, e gastar eu não tinha onde. Recontei.

Aí, quis que soubessem logo como era que eu atirava. Até gostavam de ver:

– “Tatarana, põe o dez no onze...” – me pediam, por festar. De duzentas

braças, bala no olho de um castiçal eu acertava. Num aquele alvo só – as

todas, todas! Assim então esbarrei aquilo com que me aperreavam, os

coscuvilhos. – “Se alguém falou mal de mim, não me importo. Mas não

quero que me venham me contar! Quem vier contar, e der notícias é esse

mesmo que não presta: e leva o puto nome-da-mãe, e de que é filho!...” –

Eu informei. O senhor sabe: nome-da-mãe, e o depois, quer dizer – meu

pinguelo. Sobre o fato, para de mim não desaprenderem, não se

esquecerem, eu pegava o rifle – tive rifle de winchester, até de, quatorze

tiros – e dava gala de estremez. – “Corta aquele risco Tatarana!” – me

aprovavam. Se eu cortasse? Nunca errei. Para rebater, reproduzia tudo a

revólver. – “Vem um cismo de fio de cabelo no ar, que eu acerto.” Sobrefiz.

Social eu andava com minhas cartucheiras triplas, só que atochadas

sempre. Ao que, me gabavam e louvavam, então eu esbarrava sossegado.

(ROSA, 2011, pp. 223 - 224)

Esse caráter de linguagem oral/pessoal e toda a estruturação da palavra

no momento da expressão levou críticos como Afrânio Coutinho (em Duas

Anotações: Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 1986) a reverem o processo de

narração do autor pelo seu trabalho inovador com a linguagem: por adotar de tal

forma uma perspectiva interna em Grande Sertão, seu processo seria como um

“ponto de vista interno absoluto, pois em vez de ser o autor quem faz o relato, pela

palavra de um personagem, é o próprio personagem quem fala e conta, ficando o

autor como um simples registrador do que ele diz.” (COUTINHO, 1991, p. 291). Com

isso, a preocupação expressiva de cada camada da escrita pode ser igualmente

entendida não como uma fuga da prosa regionalista, mas uma ampliação dessa em

posição interna à “região tratada” na escrita.

Por essa ótica, na leitura de Grande sertão: veredas poderíamos

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considerar que as características observadas na narrativa de Riobaldo ultrapassam

a ficcionalização simples do narrador personagem, tornando-o mais próximo de uma

“identidade própria”, pois se destaca da personalidade do narrador tradicional que

apareceria, como considera Afrânio Coutinho, “travestido” de uma das personagens.

Em nosso caso, esse entendimento favorece a leitura pelo caminho da experiência

do narrador-personagem.

Observando isso, é interessante também apontar para a perspectiva de

“homo ludens” construída por Nelly Novaes Coelho (Guimarães Rosa e o “Homo

Ludens”, 1974) sobre o ato de narrar encontrado na literatura roseana desde

Sagarana: uma das inovações apresentadas pelo escritor, com relação ao

regionalismo “racionalista” de 1930, é justamente a natureza do “ato de contar” como

ação vital, o que remete a uma tradição popular dos mais antigos narradores

tradicionais aos tempos atuais. Esse “valor” somado à história, o valor da própria

narração, é tratado pelo escritor como elemento fundamental do ato da escrita, e

podemos encontrar tal substância na dimensão consciente do personagem-narrador

Riobaldo:

De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado de ouvir

narração, e isso de guerra é mesmice, mesmagem. Combatemos o quanto

mais pudemos – está aí. Consoante começou, no Curral de Vacas, perto do

morro do Cocoruto, onde nos pegaram num relaxo. Fugimos, depois de

grande fogo. […] Recito frente ao senhor: e é rol de nomes? Para mim

ficaram em assento de sustos e sofrimento. Nunca me queixei. Sofrimento

passado é glória, é sal em cinza. (ROSA, 2011. p. 384)

É nesse nível que uma leitura pelas concepções de Benjamin (“narrador

tradicional”), a nosso ver, seria possível. O crítico destaca que em Grande sertão o

narrador passa do monólogo interior para o diálogo e a interrogação com um “tu”, o

que permite um “espaço de reflexão”. Percebemos nisso o espaço que atravessa

pelo próprio sujeito que conta, pelo seu ouvinte e pelas histórias colocadas em

revisão.

No entanto, nem todas as referências dadas no diálogo de Riobaldo são

“típicas da terra”. De fato, por superar a proposta do registro fotográfico, podemos

interpretar que Rosa, em certa medida, passa pela Minas das suas viagens como

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quem busca inspiração para pintar. Seu olhar é próximo da mimese enquanto

criação e nada em seu modo de narrar parece gratuito, buscando coerências com

um projeto dinâmico em diversos níveis da linguagem em cada construção de

sentido, o que se distancia bastante de um compromisso com a “verdade pura”.

Antes, o autor se compromete com a criação e passa desconfiado pela

frágil realidade de fatos orientados apenas pela lógica. Portanto, se podemos falar

de um caminho em busca de “transcendência” em sua literatura, devemos

considerar que esse existe pela reflexão, por uma visão complexa que não apague

os contrastes e se revele verdadeira pela própria ficção:

Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem

um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa

parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei

que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender

sua própria alma... Invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser

coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se

pensa: ah, alma absoluta! (ROSA, 2011, p. 50)

Dessa forma, por várias perspectivas diferentes, deparamo-nos com um

fator de imprecisão em Rosa que questiona a realidade fácil da “documentação dos

fatos” (avessa às dúvidas), mas que, porém, não se afasta totalmente de referências

precisas. Mesmo levando em consideração a perspectiva metafísica da criação

literária, resta perceber que em seu projeto de escrita não há um apagamento de

elementos que revelam tradições, mas uma convivência de registros de culturas

sertanejas com o projeto criativo, e mesmo de suas origens medievais com os níveis

mais “inventivos” de sua escrita.

Principalmente quanto a essa referência além-mar, mais de um crítico

aponta a ligação dos sertanejos de Rosa, especialmente os jagunços do Grande

sertão, com os romances de cavalaria. Antonio Candido, por exemplo, em O homem

dos avessos (1964), analisa tais personagens ao colocar a “terra” em ligação

dialética com o “homem”, sendo a descrição do meio uma extensão do “estado

moral” do indivíduo que, por seu lado, também segue seu rumo no mundo, partindo

dos caminhos/descaminhos desse espaço. Ou seja: a terra gera o homem, mas

também pode ser metáfora do sertão impreciso dentro de cada um. E esses

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sertanejos que viajam por diversas paisagens estão sempre em luta, ou melhor

dizendo, em constante “guerrear”.

Candido percebe que, além das relações com o ambiente, os homens

possuem seu próprio modo de ser e que entra em diálogo com imagens históricas.

Seus jagunços são “um tipo híbrido entre capanga e homem-de-guerra.” (CANDIDO,

1991, p. 300) que quase nunca recorrem ao furto (estigmatizado pelo bando) e

prezam além de tudo sua liberdade, sempre testada pela presença constante do

perigo e da morte. São um misto entre o possível sertanejo real e uma imagem

fantástica do mesmo personagem. O crítico considera, com isso, que tais homens

permanecem entre duas dimensões, uma real e uma fantasiosa, que são unidas por

uma estrutura de romance de cavalaria.

Dessa forma, o jagunço estaria em par de igualdade com o paladino

medieval pelo modo como trazem a “justiça”, valendo-se das normas do grupo de

guerreiros em um mundo longe da concretização das leis sociais. Por essa ordem, o

banditismo da “jagunçagem” toma outras cores que derivam de seus costumes e

toda a conduta de uma filosofia militar rígida que Candido associa com o “bushidô”.

Esses sertanejos de Rosa não seguiriam, de fato, toda a moral encontrada nos

romances de cavalaria, mas estariam de acordo com uma coerência estrutural

mínima ao permanecerem “leais” aos princípios norteadores da “moral” do grupo, ao

serviço do guerreiro.

Além dessa correspondência parcial, inclusive, encontramos nessas

estruturas outras diversas características em comum com a tradição apontada:

[…] as batalhas e os duelos, os ritos e práticas, a dama inspiradora, Otacília, no seu

retiro, e até o travestimento de Maria Deodorina de Fé Bettancourt Marins no

guerreiro Renaldo (nome cavaleiresco entre todos), filha que era de um paladino

sem filhos, como a do romance incluído por Garret no Romanceiro […]. (CANDIDO,

1991, p. 301)

E o crítico ainda nos aponta para a própria trajetória de Riobaldo como parte dessa

tradição: por ser filho ilegítimo, por subir dentro do bando aos poucos e mesmo pelo

pacto, uma “iniciação às avessas” (p. 303), sua história apresentaria “contaminação

dos padrões medievais” (p. 302). Candido considera, finalmente, que os contrastes

entre o banditismo e os padrões de cavalaria acabam estruturados em uma rede de

ambiguidades que se apresenta por toda a obra.

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De forma semelhante, Cavalcanti Proença, em Don Riobaldo de Urucuia,

Cavaleiro dos Campos Gerais (1958), aponta para o caráter épico do romance de

Rosa e para várias outras características que revelam semelhanças com epopeias

medievais e romances de cavalaria: a presença de contos na estrutura narrativa

mais ampla para manter a atenção e deter o fio narrativo principal; a origem humilde

do narrador que chega ao posto de líder e herói, e a sua natureza contraditória entre

a dureza do cangaço e o repúdio pela injustiça; a semelhança dos chefes de bando

com algumas figuras marcantes da tradição medieval (Medeiro Vaz e Carlos Magno,

Joca Ramiro e Rolando, os chefes traidores com Don Galvan etc.); o sentido de

honra e da glória conquistada pelas batalhas; a enumeração dos guerreiros antes

dos combates etc.

Conseguimos, assim, interpretar várias passagens de Rosa em diálogo

com uma tradição literária medieval, mas, do modo como o próprio crítico aponta, há

a possibilidade de boa parte dos elementos mais nítidos serem apresentados de

forma talvez “inconsciente”. Portanto, quando nosso escritor mostra referências mais

explícitas, segundo Proença, há a possibilidade de terem sido descuidos:

Vez por outra, conscientemente ou não, o romancista deixa entrever em

certas expressões as raízes antigas de sua efabulação: Joca Ramiro é “um

imperador em três alturas” um chefe valente é par-de-França, Riobaldo lê o

Senclér das Ilhas e se compara a Guy de Bourgnogne. […] De Diadorim,

digamos logo que é também figura de romance-velho, a Filha de D. Matinho

[…]. (PROENÇA, 1991, p. 317)

Cavalcanti Proença, inclusive, termina sua análise mostrando várias

características de Diadorim que seriam releituras de tal romance antigo. Dessa

forma, não podemos dizer que haja consenso entre a crítica quanto à referência

exata da raiz desse personagem, pois tal pesquisador, em estudo já clássico dentro

da fortuna crítica de Rosa, sugere outro princípio para o mito além da história

compilada por Almeida Garret no Romanceiro.

Esta, segundo Braga Montenegro (“Guimarães Rosa, novelista”, 1968),

seria o romance “A Donzela que vai à Guerra”, também conhecido por “O Rapaz do

Conde Daros”, que circula pelo sertão brasileiro como “A Moça do Conde Dare”, com

muitas variações.

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Logo, é interessante notar que o mito de Diadorim, da mesma forma que

os outros elementos observados nessa ligação com textos de cavalaria, não

possuiria fonte categoricamente definida, permitindo, contudo, uma leitura pela

reelaboração de histórias da tradição medieval. Podemos, indo um pouco mais além,

compreender tais referências como uma linha “histórico-literária” na literatura de

Guimarães Rosa: uma tradição reelaborada literariamente que acomoda-se junto

das diversas visões do sertão de geografia imprecisa e, por um lado, dá parâmetros

para a análise das culturas envolvidas na narrativa, mas que, por outro lado, segue o

teor geral da obra, apresentando-se de forma intencionalmente aberta.

Além das referências europeias mais visíveis, encontramos ainda, do

“nonada” da primeira página ao da última, construções no nível da língua que,

embora sensivelmente coerentes com a narrativa, não são termos regionais dos

sertões brasileiros.

Ao observarmos estudos sobre o caráter “metalinguístico” no processo de

criação de Rosa e como sua revolução na literatura começa pelo cuidado incomum

com níveis estruturais geralmente observados apenas na escrita poética, podemos

apontar prioritariamente três dimensões da escrita roseana que foram ao longo dos

anos largamente analisadas: os processos envolvidos na ressignificação e/ou

criação de palavras; os de ressignificação pelas ligações sintagmáticas e pela

própria estruturação sintática; e o ritmo, rimas e repetições de temas (esses últimos

fatores mais comumente observados no gênero lírico).

O primeiro a que recorremos é o ensaio clássico O repertório verbal de

Oswaldino Marques (1957) que nos orienta quanto ao processo de afixação.

Diferente do que um leitor descuidado poderia pensar, boa parte dos processos de

resignificação no nível da palavra ocorrem pela modificação de um vocábulo

seguindo virtualidades possíveis da língua portuguesa, e é justamente o que

Marques demonstra ao exemplificar dezenas de casos que, apenas pelo artifício da

prefixação e/ou sufixação, surtem efeitos diferentes. Além disso, tal utilização da

língua portuguesa potencial nas “virtualidades” já havia sido reparada por Cavalcanti

Proença em estudo no mesmo ano (1957). Portanto, pelo exercício sistemático de

análise dos diversos exemplos escolhidos, Marques observa um fator fundamental

para a leitura de Rosa quanto a esses processos de criação:

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[…] não há um conteúdo puramente denotativo desses morfemas [referindo-

se aos prefixos], como o fazem crer todos os tratadistas […] É impossível

tornar manifesto o seu teor sem sofrer a contaminação dos elementos

expressivos do tema. […] O caminho acertado é considerá-los, cada um de

per si, dentro da unidade fraseológica.” (MARQUES, 1991, p. 107).

Por tal perspectiva, podemos compreender que mesmo reorganizando o

uso de afixos tradicionais, o significado de cada modificação é encontrado apenas

na passagem em que é apresentada, sendo, portanto, uma criação expressiva na

própria língua, e não uma fuga dessa. O contexto de cada recriação acusa que os

elementos de composição teriam como finalidade dar “nova luz” ao conteúdo de

cada signo desgastado pelo uso. Assim o “nonada”, por exemplo, tanto soa mais

natural ao dizer rústico que “não é nada”, quanto abre semanticamente a expressão

para a sugestão de isolamento, no “meio do nada”.

Destacamos que Marques, inclusive, percebe tal “iluminação” das

palavras pelo estilo enquanto característica “expressionista” da linguagem roseana,

escapando de qualquer busca ao “naturalismo”:

[…] os acentos que João Guimarães Rosa calça sobre certos momentos da

realidade decorrem antes de exigências expressionistas do que do desejo

de produzir uma fotocópia. […] Esta conformação, sem servilismo, à

natureza é consequência, aliás, do respeito que o autor tem pelos eventos

em si. (MARQUES, 1991, pp. 108-109).

Partindo dessa mesma linha de análise, Franklin de Oliveira, em

Revolução Roseana (1967), nota que o processo de criação do autor passa

predominantemente da unidade fraseológica em Sagarana para a da palavra entre

Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile. Com isso, o crítico destaca que não

apenas as palavras modificadas, mas cada vocábulo na organização textual deve

ser percebido além do mero papel do “significante” nos textos posteriores à

mudança de estilo: “A palavra perdeu a sua característica de termo, entidade de

contorno unívoco, para converter-se em plurissigno, realidade multi-significativa.”

(OLIVEIRA, 1991, p. 180). Isso é o que muitos autores posteriormente

reconheceram como o motivo primeiro da leitura entre prosa e poesia, mas tal

perspectiva não se limita aqui.

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Adotando uma investigação que trabalha mais os aspectos metafísicos do

autor e sua obra, o crítico foi um dos primeiros a perceber o real desdobramento do

nível estilístico no projeto do escritor: a maior revolução roseana, segundo Oliveira, é

romper a tradição de “obras vingadoras”, literatura que é escrita pela reelaboração

da matéria do tempo em que é criada (e, portanto, de certo modo “fechada” a ela),

para uma escrita que percebe o processo mimético pela sua segunda acepção, não

a cópia da natureza, mas a imitação de seus processos. Guimarães opera, dessa

forma, em uma dimensão da transcendência humana, na “categoria goetheana do

erzienhugsroman: o romance de educação espiritual.” (OLIVEIRA, 1991, p. 182).

Consequentemente, Franklin de Oliveira foi um dos primeiros estudiosos a

perceber a fronteira limite da camada filológica “concreta” na linguagem de Rosa: a

estrutura em suas obras está vinculada a uma “imagem de vida possível de ser

vivida segundo as leis da alegria e da beleza, sob o império da poesia incorporada à

existência humana.” (OLIVEIRA, 1991, p. 186). Tal ótica nos leva a contemplar uma

ligação fundamental entre expressão e existência no eixo da “escrita concreta”, e

não há, dessa maneira, recriações da linguagem, em qualquer nível, que não

estejam relacionadas ao propósito de reflexão sobre o homem.

Eduardo F. Coutinho, por sua vez, em Guimarães Rosa e o Processo de

Revitalização da Linguagem (1973) estabelece um diálogo com vários estudos de

caráter formal sobre a escrita roseana e aprofunda essas dimensões entre palavra e

metafísica no processo de criação. Inclusive, nesse ensaio, o crítico nos possibilita

um parâmetro mais claro entre os dois aspectos da linguagem destacados até

agora: “O primeiro destes aspectos, o metafísico, diz respeito à relação entre

linguagem e vida e ao processo de criação por que todo artista passa ao produzir

uma obra; o segundo, o filológico, refere-se especificamente à linguagem criada por

ele.” (COUTINHO, 1991, p. 202). Assumindo tal perspectiva, e entendendo a visão

de Rosa sobre a vida como “linguagem”, Coutinho ainda nos apresenta o processo

de ressignificação além da esfera do mero trabalho estilístico:

Como tudo na vida, as formas da língua também envelhecem e se tornam

completamente inexpressivas após uso prolongado […] Cabe, então, ao

escritor, consciente de sua missão, refletir sobre cada palavra ou construção

que utiliza e fazê-la recobrar sua energia primitiva, desgastada pelo uso. […]

E é este processo de revitalização que Guimarães Rosa emprega em suas

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obras, conforme ele mesmo declara […] (COUTINHO, 1991, p. 203).

Além desses, discorre sobre outros processos de “alteração do

significante” que não haviam sido observados anteriormente, como a aglutinação

(“fechabrir”), a modificação de sentenças já consideradas clichês (como exemplo:

“nu da cintura para cima” tornando-se “nu da cintura para os queixos”), e o uso

recorrente de alguns significantes para aumentar seus significados (o que opera

como leitmotiv nos textos de Rosa).

O crítico considera, enfim, que todos esses aspectos de modificação que

ocorrem no nível estrutural estariam para a linguagem como um projeto de

libertação, e tece algumas reflexões sobre outros elementos além dos neologismos:

aponta, por exemplo, a presença menor de estrangeirismos adaptados à estrutura

da língua portuguesa, uso de expressões eruditas e coloquiais e elementos de

regionalismo que não se limitam a uma região do país, tornando, portanto, mais

complexa a localização dos “regionalismos” do escritor em uma visão tradicional.

Dessa forma, por seguir uma prosa regionalista cheia de conflitos com a

definição mais típica do regionalismo enquanto escrita sobre um determinado

local/cultura/época, a perspectiva “surregionalista” de Candido toma corpo. A

narrativa de Riobaldo consegue nos levar para um sertão extremamente rico e

presente em nosso imaginário nacional, mas faz isso caminhando pela ficção e por

fronteiras além do evidentemente local. O surregionalismo rosiano é, portanto,

desenvolvido pelo “sertão potencial”, o que não limita suas terras:

O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado

sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo,

terras altas, demais do Urucuiá.Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo,

então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga:

é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze

léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-

jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuiá vem dos montões

oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas,

almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de

mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O

gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o

que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O

sertão está em toda a parte. (ROSA, 2011, p. 30)

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Esse sertão-mundo, mesmo que imaginário, é desvendado entre a história

principal da guerra dos jagunços que leva Riobaldo ao posto de chefe e sua atual

situação de “aposentadoria”. No meio dessa narrativa interrompida por outras

histórias, tentamos, enquanto leitores, organizar cada episódio entre os chefes de

bando, Diadorim e Riobaldo. Mas a temporalidade desses “três dias de conversa”

entre o narrador e seu visitante caminha pelo desenvolvimento das memórias,

muitas vezes involuntárias, que chegam à superfície:

De Diadorim não me apartava. Cobiçasse de comer e beber os sobejos

dele, queria pôr a mão onde ele tinha pegado. Pois, por que? Eu estava

calado, eu estava quieto. Eu estremecia sem tremer. Porque eu

desconfiava mesmo de mim, não queria existir em tenção soez. Eu não

dizia nada não tinha coragem. O que tinha era uma esperança? Mesmo

parava tempos no pensar numa mulher achada: Nhorinhá, a minha

Rosa'uarda, aquela mocinha Miosótis. Mas o mundo falava, e em mim

tonto sonho se desmanchando, que se esfiapa com o subir do sol, feito

neblina noruega movente no frio de agosto. (ROSA, 2011, p. 400)

Não é apenas um momento de revisão em que um velho expõe sua

experiência pelas veredas da terra a um ouvinte aparentemente atento (este,

inclusive, podendo ser interpretado como um “tu” sempre renovado, ocupado por

quem se aventura a desvendar o livro, um “doutor” que representa o possível leitor

citadino), mas a própria tentativa de reviver esse sertão pela organização dessas

memórias, buscando coerência na sua vida.

No fim do livro entendemos que o apreço pelo compadre Quelemém

ocorre especialmente por duas razões: ter sido apresentado por Zé Bebelo em um

momento de angústia (pela perda de Diadorim e o temor do pacto ser válido) e ter

escutado a história de Ribaldo e respondido a questão chave de sua travessia:

Tinha de ser Zé Bebelo, para isso. Só Zé Bebelo, mesmo, para meu destino

começar de salvar. Porque o bilhete era para o Compadre meu Quelemém

de Góis, na Jijujã – Vereda do Burití Pardo. Mais digo? […] Compadre meu

Quelemém me hospedou, deixou meu contar minha história inteira. Como vi

que ele me olhava com aquela enorme paciência – calma de que minha dôr

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passasse; e que podia esperar muito longe tempo. O que vendo, tive

vergonha, assaz. Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei: – “O

senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!” Então ele sorriu, o

pronto sincero, e me vale me respondeu: – “Tem cisma não. Pensa para

diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase

iguais...” (ROSA, 2011, p. 748)

É essa ligação afetiva inclusive que o narrador desenvolve com o doutor,

como se se livrasse das preocupações tendo a história contada:

Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro.

Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de

São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau

grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou:

que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano,

circunspecto. Amigos somos. (ROSA, 2011, p. 749)

Essas seguem toda a história até seu término, mas chegam ao clímax

com a transfiguração de Riobaldo, sua travessia do deserto e a vingança amarga.

Assim, as duas tentativas de vencer o Liso do Sussuarão, separadas pela

incorporação mística do pacto, representam os momentos diferentes do jagunço:

antes, aparece transitando entre a geografia dos conflitos e das memórias, vivendo

seu dilema com o amor proibido/amor físico/amor idealizado, lembrando de tantas

pessoas e histórias que povoam o sertão, e em conflito com sua própria identidade;

com o “batismo trágico” das Veredas Mortas, passa ao ritmo mais direcionado para

terminar sua história, e das divagações corre para as decisões (vencer a terra, a

luta, mudar sua sina, casar-se com o amor idealizado e buscar paz espiritual).

Podemos compreender desso modo que a ligação do Urutu Branco com o

narrador envolve menos ocorrências de memórias involuntárias, assim como parte

reduzida de seu caminho. Passa de menino no rio a aluno e “professor”, começa

como jagunço, Tatarana, e chega à chefia de bando, para depois se aquietar como

fazendeiro.

Todas essas transformações passam pelo “viver perigoso” do sertão, mas,

por mais que esteja sempre guerreando ao longo de sua história, vemos Riobaldo

voltar ao estado de “descanso” que conflituosamente carregou o quanto pôde.

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Essa perspectiva reflexiva que encontramos na entidade do narrador

personagem torna sua própria identidade diferente da dos outros cangaceiros. Não

desejava ser líder ou aceitar totalmente o ódio de Diadorim, estava sempre atento

aos companheiros, reconhecendo-se parcialmente como jagunço, capaz de sonhar

com uma vida calma na fazenda Santa Catarina, de apreciar a natureza dos lagos e

pássaros aprendida com o companheiro inseparável:

Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu

guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em

Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-congo cantou. Eu queria morrer

pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra do

Pau-d'Arco, quase na divisa baiana […] (ROSA, 2011, p. 45)

Depois de tantas guerras, eu achava um valor viável em tudo que era

cordato e correntio, na tiração de leite, num papudo que ia carregando lata

de lavagem para o chiqueiro, nas galinhas-d'angola ciscando às carreiras

no fedegoso-bravo, com florezinhas amarelas, e no vassoural comido baixo,

pelo gado e pelos porcos. (ROSA, 2011, p. 247)

É o representante mor da ideia de travessia que permeia o livro: pelas

palavras renova todo o espaço que campeou, juntando dúvidas e certezas, casos

vividos ou escutados, revendo as raivas e indecisões do passado com a experiência

do presente, dando explicações para que se entenda as passagens que julga mais

complicadas. Assim atravessa o Liso duas vezes, vencendo a aridez das palavras.

Não apenas seu discurso renova o sertão até o símbolo de infinito da

última página, mas recupera e ressignifica a própria literatura regionalista. Pelo

desenrolar dessa obra, independentemente da confirmação de veracidade e

precisão dos “campos gerais” descritos, vemos uma imagem do sertão construída de

forma impecável, de modo a um leitor citadino perceber no seu surregionalismo

tanto o exotismo esperado quanto a profundidade dos temas humanos universais e

a reelaboração da própria língua. É um processo de conhecer o sertão o

reinventando ao nível fabular.

Pelas palavras desse narrador, Guimarães Rosa nos convence que seu

Grande sertão é parte de nossa história, pois trabalha com as virtualidades da língua

portuguesa, da vida e dos homens do campo. Seu regionalismo é, por fim, revelado

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pela mimese criativa que amplia e ilumina as veredas já gastas de nossa literatura

sertanista. E é por tal processo de criação, de reinvenção despretensiosa com

qualquer verificação documental que, em parte, podemos aproximar Lamartine de

sua escrita. Em nosso ponto de vista, ambos os escritores se encontram em

processos mais criativos que reprodutivos, “inventando” seus sertões.

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3. SOBRE O GÊNERO ENSAÍSTICO: DEFINIÇÃO E PERSPECTIVA DE ESTUDO

Em uma primeira observação, constatamos que a obra do escritor

potiguar que analisamos é quase inteiramente composta por ensaios (restando

ainda um dicionário de termos regionais e uma coletânea de poemas recolhidos da

tradição). Partindo desse ponto, a forma escolhida pelo redator, pretendemos

demonstrar que temos a possibilidade de trabalharmos com uma escrita de temática

sertaneja mais maleável não apenas pelas escolhas pessoais do ato composicional,

mas também pelo amplo espectro que tal gênero pressupõe.

Da forma como é concebido após seu desenvolvimento moderno, o

ensaio permite a “aderência” de vários aspectos diferentes da escrita e que são

encontrados, inclusive, em Lamartine: a observação científica próxima de confissões

e recortes da memória familiar, o desenvolvimento estético e as exemplificações por

histórias/estórias populares etc. Embora todos esses recursos possam parecer, em

uma primeira análise, bastante destoantes e capazes de levar o texto ao caos, isso

não ocorre necessariamente. Podemos compreender nessa abertura textual que o

escritor utiliza os elementos que julga serem necessários para a construção de suas

ideias pela própria coerência das imagens que propõem, e que é justamente essa

capacidade de utilizar despretensiosamente recursos variados um dos “elementos

comuns” do ensaio.

No entanto, mesmo havendo certo consenso em seus traços gerais, nem

todas as conceituações do gênero abrangem um modelo que se adeque ao adotado

por Lamartine, o que permitiria possivelmente uma leitura equivocada de alguns

trechos dos Sertões do Seridó, como fragmentos de um tratado ou de uma

construção inventiva sobre a terra. Pensando nisso, para evitar esse e outros

problemas torna-se necessária, antes da leitura mais detida ao corpus, uma breve

revisão da literatura.

Seguindo esse raciocínio, logo constatamos que, particularmente no que

tange ao ensaio e a literatura, ainda carecemos de bibliografia adequada, sendo um

campo praticamente abandonado ao passo que ultrapassa a fronteira da escrita

meramente argumentativa. Muitos estudiosos recorrem às formulações de Lukács e

Adorno, que remetem a projetos maiores em uma perspectiva filosófica, mas quase

nenhum teórico moderno da literatura sequer menciona o gênero em seus estudos.

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Segundo GUERINI (2000), com a exceção de Northrop Frye em Anatomy of

Criticism (1957), não há tentativas precisas de teorização do ensaio em nossa área,

talvez por sua essência livre que quase tudo inclui e pela complexidade de sua

estrutura adaptável.

Dessa forma, é interessante perceber que os significados ainda utilizados

atualmente possuem fontes diversas que variam de sua “concepção original”, que

remonta a Montaigne, à recente revisão de abertura e imprecisão enquanto

características necessárias do texto, não uma simples impossibilidade de

demarcação linguística.

De fato, a “matéria” do ensaio é mais antiga que suas formulações

estruturais, sendo encontrada já nos diálogos platônicos e na Poética aristotélica.

Mas apenas com a publicação dos Essais (1580) de Montaigne é que o gênero é

nomeado, assumindo uma conotação tanto de modéstia (seriam apenas

“experimentos” do pensamento do escritor) quanto de processo de criação: suscita

um desenvolvimento de assuntos que não se pauta na profundidade do saber do

redator, ou no caráter inédito de seu assunto, e nem mesmo em seu esgotamento; o

que valeria é o percurso pelo qual decidiu seguir, não buscando fórmulas prévias e

possuindo plena consciência de suas limitações (contendo até certo orgulho em tal

percepção).

O ensaísta francês ainda reflete que nesse gênero de escrita seria

fundamental o exercício da razão reflexiva que busca eu sua própria fonte sua

coerência, unido da liberdade absoluta em seguir seu desenvolvimento ao ser

imanentemente crítico. Dessa forma, a ideia sugerida no ato de escrever é validada

em seu próprio processo e pela lógica de pensamento que estrutura, completando

assim o sentido de exercício do intelecto e modéstia da investigação, pois seria o ato

do redator se aprofundar em sua formulação e assim dar corpo ao tema.

Com a publicação dos Essais de Montaigne, logo essa forma de escrever

se popularizou, chegando em 1603 à Inglaterra, onde foi cultivada particularmente

por Bacon. O escritor inglês já havia iniciado sua obra ensaística cinco anos antes

(1597) da tradução dos Essais e propôs sua classificação do gênero: uma divisão

entre o ensaio “formal” e o “familiar” (Apud FLORES, 2004) que parece separar os

textos por intenções mais “sérias” ou mais “lúdicas”. O primeiro, texto crítico que tem

função de educar, refletiria a personalidade do autor indiretamente. O segundo,

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voltado para o entretenimento e as impressões pessoais e o subjetivismo,

apresentaria diretamente a personalidade do autor, como em poemas líricos.

Esse novo desenvolvimento na “definição clássica” do gênero ensaístico

inspira, portanto, questionamentos sobre a função do texto, em uma divisão que

claramente reflete a posição de Bacon na Literatura Inglesa. Eu sua obra de

investigação religiosa, apura criticamente suas ideias com intuito didático, sendo,

dessa maneira, mais “direcionado” a uma função prática que uma vertente familiar,

orientada pela reflexão introspectiva próxima de uma escrita poética.

Entretanto, não é apenas pela intenção que o escritor inglês separa o

gênero em duas linhas, e sim pelo caráter da reflexão em cada texto. Para Bacon, a

característica fundamental do ensaio seria a meditação e, do modo como

compreendemos, seria ainda diferente a sua natureza em cada tipo ensaístico (uma

linha mais educativa ao lado de outra possivelmente divagativa). Observa isso com

tanto cuidado que, justamente pela meditação já ser fator encontrado na literatura,

chega a negar a criação à Montaigne, pois não seria possível refutar esse aspecto

em escritores clássicos como Sêneca. Argumenta, enfim, que a palavra (ensaio)

seria nova, mas não o seu conteúdo, cabendo ao francês apenas a invenção do

termo. Esse ponto de vista de Bacon seria bastante aceito e obras anteriores à

“invenção” francesa do gênero começariam a ser relidas com nova luz.

Toda esse aprimoramento, ocorrido em um breve período de tempo,

obteve inclusive outros resultados ainda no século XVI com a diferenciação entre o

gênero textual tratadístico do ensaístico, o que nos é providencial: o ponto de

discordância das duas produções em prosa se encontra na procura por uma

“verdade absoluta” pela primeira e por uma “verdade relativa” pela segunda. Sem

essa distinção, o caráter didático e “sério” do tratado poderia, inclusive, ser

confundido com a definição de “ensaio formal” de Bacon e, de fato, o gênero

ensaístico foi, infelizmente, muitas vezes cultivado de forma equivocada durante os

dois séculos seguintes. Resta até hoje, mesmo com essa oposição bem

determinada, certa “névoa” que evoca uma desconcertante vagueza em seu uso

comum, mas formulações mais recentes puderam mudar ainda mais a leitura

especializada do gênero.

No século XX surgem dessa forma três autores que reavivariam tais

estudos a ponto de revê-los quase que completamente: Lukács, Max Bense e

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Theodore Adorno. O primeiro, em publicação de 1910 (Sobre a essência e forma do

Ensaio) percebe na forma do gênero o seu destino. O texto obriga o redator ao mais

profundo exercício de autorreflexão eu seu breve fôlego, o que deve ser aceito com

sobriedade, ainda que ironicamente. Seria o ensaio feito para a crítica, pois fala

sempre de algo já existente ao organizar a matéria de forma nova. Estaria sujeito a

enunciar as “verdades” do objeto referenciado e a produzir nova animação de seu

conteúdo. Para tanto, julga que o ensaio não possui “independência” em sua forma

de mesma maneira que ocorre na poesia, já que sua estrutura é decorrente desse

diálogo em especial com a arte.

Embora bem estruturado, o ponto de vista de Lukács sofre severas

críticas por Adorno. Em 1958 (O ensaio como forma) o crítico alemão reforça a

independência do gênero textual, não o classificando da mesma forma “determinista”

que o autor húngaro. Nessa perspectiva, a escrita é tratada como um processo de

criação, não “espelhamento” e, embora muito das duas obras se encontre, concerne

à segunda exposição o caráter de “autonomia” do ensaio: também em Adorno

encontramos a profundidade de reflexão, a transitoriedade da escrita e a experiência

pessoal na validação do conhecimento tratado, mas dentre tais elementos ainda se

destacam o direito ao método (superando seu sentido tradicional em uma escrita

sem fórmulas engessantes) e a capacidade de desvelar ideologias e combater o

dogmatismo. Assim, tal proposição mostra uma dimensão que inicia praticamente

pela didática do gênero e segue à filosofia geral de sua produção.

Diferente dessas duas perspectivas, Max Bense define o ensaio em 1947

(Sobre o ensaio e sua prosa) por uma ótica semelhante às visões da ciência

tradicional ao se deter no sentido de experiência: avalia o texto enquanto método

experimental que produz sua escrita pelo teste, refletindo, reescrevendo,

questionando. Acredita, aliás, que o gênero seria a forma assumida por nosso

espírito crítico e uma modalidade literárias complexa. Com tal visão, Bense parece

enxergar pontos fundamentais do ensaio de forma bastante sintética, mas, como

examinamos, sua orientação o guia para um espaço pouco seguro entre o gênero

textual e a atividade de reflexão, motivo que nos leva a desconsiderar seu estudo

em nossa leitura do corpus, utilizando-o apenas como contraste para o que

pretendemos englobar no conceito de gênero ensaístico.

Do outro lado, as investigações iniciadas por Lukács e revistas por Adorno

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nos parecem entrar em acordo com um sentido mais aberto e que mantém-se bem

estruturado em referência à maioria dos ensaios com que trabalhamos. Percebemos

especificamente nesse último teórico uma retomada da identidade clássica do

gênero que foi reescrita em linguagem moderna, aproximando-se de nosso tempo.

Utilizamos, portanto, a perspectiva de Theodore Adorno em reflexão com a tradição

francesa/inglesa clássica no que tange a fatores de experiência e personalidade do

redator, o que aparentemente foi deixado em segundo plano pelo autor alemão.

Com todo esse percurso, resta ainda levantar uma última proposta de

definição do ensaio com a qual pretendemos trabalhar, mesmo compreendendo

apenas uma de suas proposições sobre o tema. Haro (2005) oferece uma

perspectiva ainda mais aberta que a de Adorno:

Los géneros ensayísticos, concebidos como géneros ideológico-literarios, se

diferencian de todo punto de los géneros poéticos o artístico-literarios como

de las realizaciones de tipo cientifico. En general, las formas de lenguaje

que realizan la producción textual ensayística son determinables dentro del

gran espacio de posibilidades intermedias entre los géneros científicos y los

géneros artísticos, entre la tensión antiestándar del lenguaje artístico y la

univocidad denotativa promovida por el lenguaje científico, entre la

fenomenología y los hallazgos de la poeticidad, de un lado, y la cientificidad,

de outro. (HARO, 2005, p. 19)

Representamos, assim, parte do universo ensaístico de Lamartine por

uma ótica do ensaio que se pretende maleável e que “invada fronteiras” entre a

linguagem científica e literária. Partindo dessas considerações, podemos verificar

em camadas mais aproximadas da análise de ficcionalidade alguns elementos de

construção do texto lamartineano e aproximá-lo da escrita rosiana. Com divisas

pouco rígidas, ainda pela escolha textual nosso ensaísta já se aproxima de um

projeto complexo da terra e de sua cultura.

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4. SERTÕES DO SERIDÓ: VEREDAS POTIGUARES

Sertões do Seridó (1980) configura-se como coletânea de cinco obras

publicadas anteriormente, de 1961 a 1978, compreendendo um grupo de estudos

diversos empreendidos por Lamartine ao longo de 18 anos de produção: A Caça nos

Sertões do Seridó (1961), A.B.C. da Percaria de Açudes no Seridó (1961), Algumas

Abelhas dos Sertões do Seridó (1964), Conservação de Alimentos nos Sertões do

Seridó (1965), e Açudes dos Sertões do Seridó (1978). Sua coerência como

coletânea se dá não apenas pela presença de “Sertões do Seridó” ou “Seridó” no

título de cada obra, mas por suas visíveis tentativas de explicação nesse espaço

repetidamente discutido. Outros livros do autor, como Encouramento e Arreios do

Vaqueiro no Seridó (1978), poderiam integrar esse grupo maior talvez sem

problemas, mas Lamartine concentra sua “imagem ampla” do sertão potiguar em

algumas atividades produtivas mais próximas do esquecimento, ou seja: das facetas

culturais menos ligadas à cultura algodoeira e o ciclo pecuário, que ainda

permanecem na imagem da tradição do Nordeste interiorano.

São, por assim dizer, atividades em vias de extinção pelo

desaparecimento das condições necessárias para sua manutenção, ocorrendo pela

modernização ou degradação do ambiente, o que é repetidamente ressaltado por

Lamartine. De fato, cada um dos textos dessa publicação de 1980 assume papel de

denúncia e memória do que o Seridó perdeu, principalmente em questões

ambientais e culturais: diminuição do convívio e esforço coletivo na açudagem pelo

maquinário atual, comidas típicas descaracterizadas devido à mudança de seus

métodos de produção/conservação, quase desaparecimento da fauna apícula

seridoense pela caça irregular e nenhum cuidado e/ou tentativa de criação em larga

escala das espécies nativas, memória dos quase esquecidos mutirões de pescaria

nos açudes da região e, por fim, a rarefação da fauna e o registro da cultura de caça

do sertão.

Igualmente importante, a organização dos ensaios se torna outro fator de

relevância: não há um encadeamento de progressão cronológica corriqueira, na

“catalogação” das impressões do autor, mas uma corrida para a “volta do tempo”. A

disposição dos ensaios segue o caminho inverso, do mais novo para o mais antigo,

apontando para a estrutura como outra camada significativa do projeto. Em cada

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explicação mais recente ouve-se o eco do que é apresentado depois, que é

resignificado pelo que foi dito anos mais tarde, porém várias páginas antes.

Esse processo de releitura opera na “nova obra” de Lamartine como uma

revisão de sua escrita, de sua memória. Uma reformulação para a posteridade de

um enunciador seridoense já em idade avançada. Começando pela imagem

paradisíaca do avistamento de um açude, somos conduzidos ao passado por cada

retomada que nos faz entender melhor a primeira ocorrência de cada assunto. Não

lemos simplesmente estudos encadeados, mas também traços de um mesmo

quadro que nos obriga a passar por suas observações semelhantes e que, assim

como em Rosa, definem várias vezes seus sertões.

Quanto às características gerais, encontramos a preocupação em

destacar o vocabulário regional, que geralmente aparece em itálico ou com a

indicação denota de rodapé; o recurso de citações de especialistas (em comentário

do autor ou destacada do texto), poetas populares (muitas vezes com nomes

destacados em caixa alta e com versos em itálico), e do discurso coletivo da boca do

povo (sentenciado entre aspas como argumentos de autoridade); e posições

firmadas no presente, mas saudosas do “sertão do nunca mais”.

Seu estilo é progressivamente desafiador, colocando várias passagens na

fronteira entre o ensaísmo histórico/sociológico e o artístico. Em poucas páginas,

saímos de listas de procedimentos ou descrições de uma ferramenta e, de um

exemplo catado pela memória do escritor ou de algum informante, nos deparamos

com desvios que, em certos casos, permitem interpretação literária.

Entretanto, a maleabilidade do gênero e a própria escrita lamartineana

não permitem a sua homogeneização como literária, e cada uma das obras é

estruturada por necessidades diferentes, permitindo examinar os diversos elementos

que compõem a estrutura de Sertões do Seridó.

O efeito da leitura pormenorizada dos seus ensaios é, portanto, alcançado

em duas dimensões: a particular, que de cada estudo amplia o repertório do autor; e

a global, que das unidades segue aos seus contrastes e afinidades, com intuito de

traçar a recepção da coletânea e considerá-la, finalmente, como uma nova obra.Por

coerência, nosso trabalho segue a ordem da publicação, lendo cada ensaio pela sua

integridade e deixando a segunda dimensão por último, quando a leitura de cada

prefácio, “eco” ou reescrita aparece contextualizada pelas análises individuais.

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4.1 Primeiro ensaio

O ensaio Açudes dos sertões do Seridó (pp. 17 - 48), escrito originalmente

em 1978, trata tanto da história dos açudes no interior do Rio Grande do Norte, mais

especificamente na região que comporta os municípios do Seridó, quanto da

memória dos trabalhadores nas obras do “sertão antigo” ao período das obras

públicas.

É composto por 3 macrodivisões que separam o desenvolvimento do texto

entre as etapas de sua História. A primeira apresenta as hipóteses do surgimento do

processo de represamento ao redor do mundo, que culmina nas construções iniciais

(e ainda sem domínio) dos primeiros açudes potiguares; a segunda toma como

partida a intervenção governamental pela Inspetoria e o aparecimento dos

trabalhadores especializados em obras públicas, discutindo a sua arte aprendida

com os “doutores” de fora; e a terceira fecha o desenvolvimento com considerações

tanto estatísticas quanto de ordem sociológica, propondo uma leitura sobre o

impacto do represamento da água para o homem, sua criação e seu meio ambiente.

Mesmo com estruturação semelhante a um estudo acadêmico, o ensaio

dos açudes é talvez o estudo em que a “marca pessoal” de Lamartine é mais visível,

por trechos sensivelmente emocionados, ou pela presença frequente de traços de

sua memória. Tal característica já pode ser observada desde sua apresentação,

como no excerto do poeta José Lucas de Barros:

Vendo d'água a terra cheia

Eu sinto doce lembrança

Do meu tempo de criança,

Dos meus açudes de areia

(Apud FARIA, 1980, p. 21)

Esse tom de lembrança sentimental e pessoal tocará a superfície do

discurso do ensaísta em diversos trechos e, como observamos, movimenta boa

parte de seu desenvolvimento, equilibrando os elementos de estudo/pesquisa sobre

o tema com a linha mais reflexiva/divagativa por que se percebe a erudição de

Lamartine.

E isso ocorre principalmente em trechos que acusam linguagem mais

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próxima da escrita criativa. O primeiro ponto da etapa inicial do ensaio (p. 23) é um

desses exemplos, que pode ser lido como uma descrição poética do açude:

1. O açude

Espia-se a água se derramando líquida e horizontal pela terra adentro a se

perder de vista. As represas esgueiram-se em margens contorcidas e

embastadas, onde touceiras de capim de planta ou o mandante de hastes

arroxeadas debruçam-se na lodosa lama. O verde das vazantes emoldura o

açude no cinzento dos chãos. Do silêncio dos descampados vem o

marulhar das marolas que morrem nos rasos. Curimatãs em cardumes

comem e vadeam nas águas beirinhas nas horas frias do quebrar da barra

ou ao morrer do dia. Nuvens de marrecas caem dos céus. Pato verdadeiro,

putrião e paturi grasnam em coral com o coaxar dos sapos que abraçados

se multiplicam em infindáveis desovas geométricas. Gritos do socó

martelam espaçadamente os silêncios. Garças em branco-noivo fazem

alvura na lama. É o arremedar, naqueles mundos, do começo do mundo...

O rio, estancado em açude, continua depois, em verde sinuoso de

capinzais, copas de mangueiras, leques de coqueiros ou canaviais

penteados pelo vento. Milhões de metros cúbicos de água-doce, fria e

cheirosa – é que a água nos desertos também cheira – esbarrados pela

muralha da parede, aninham peixes, criam vazantes, dão de beber à

criação, fazem crescer raízes, caules, folhas, flores e frutos e se esclerosam

em veias pela terra adentro, esverdeando em folhas os sedentos chãos

cinzentos daqueles sertões. (FARIA, 1980, p. 23)

O açude é, portanto, um início incomum para estudo que, em certa

medida, se propõe “preciso” e “sério” (em um sentido de oposição ao fictício,

segundo Rosenfeld), pois há vários elementos que o aproximam de uma leitura

literária, tais como:

• Sinestesia (“Espia-se a água se derramando líquida e horizontal pela terra

adentro a se perder de vista.”, “Do silêncio dos descampados vem o marulhar

das marolas que morrer nos rasos.”, “ Milhões de metros cúbicos de água-

doce, fria e cheirosa – é que a água nos desertos também cheira” atc.);

• Aliteração/coliteração (“vem o marulhar das marolas que morrem nos rasos”),

adjetivação insistente (“água se derramando líquida e horizontal”, “lodosa

lama”, “em verde sinuoso de capinzais” etc.);

• Suspense (a imagem que é construída só aparece como um açude no

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segundo parágrafo);

• Construções semânticas que observam várias camadas da linguagem (“Gritos

do socó martelam espaçadamente os silêncios.”, imagem que, por exemplo,

aumenta a impressão da ausência de “espectadores” do cenário apresentado.

“fazem crescer raízes, caules, folhas, flores e frutos e se esclerosam em veias

pela terra adentro”, o que sugere o processo de crescimento da planta como

que visto desde o germinar pelo espectador do cenário).

A combinação desses e outros recursos gera um processo de criação de

sentidos que estaria, desse modo, mais próximo de um poema em prosa que

descreve um espaço do que de sua explicação objetiva. É uma introdução ao tema

que apela para o caráter sugestivo da linguagem e não se limita ao nível de

“constatação do real”, mas passa à criação.

Logo em seguida, no segundo ponto (p. 23), também podemos observar

traços desse processo, quando o ensaísta toma posição levando em conta a

imprecisão dos registros históricos. Em E como começou, espera-se soluções para

as perguntas que iniciam o texto, mas o que recebemos é uma possível origem que

é desenvolvida pela argumentação de Lamartine. Sua tese centrada na imagem do

castor e em exemplos de História Geral é organizada por suposições elaboradas em

trechos narrativos que beiram o terreno da ficcionalidade:

Talvez, quem sabe, ao espiar uma garganta de terra por onde corria um

riacho, engasgada por uma barreira deslizada, uma pedra rolada ou uma

árvore em balceiro caída.

Ou, o mais fatível, a lição aprendida de um bicho menor – o castor – que

apenas com as ferramentas da engenharia que Deus lhe deu, derruba

árvores, a poder de dentes, roendo os troncos, entope com eles as

ombreiras dos pequenos vales e argamassa com barro e pedra as suas

grosseiras paliçadas. […]

E foi, quem sabe, arremedando o trabalho desse pequeno bicho roedor que

o bicho-homem fez suas tapagens primeiras...

Um dia alguém atinou que depois da fartura das chuvas minguavam as

águas, os rebanhos fanavam as carnes e as plantações murchavam o verde

e em amarelo caiam mortas as folhas. (FARIA, 1980, p. 24)

Nesses trechos, há a criação pela sequência narrativa que se justifica não

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apenas na coerência da argumentação, mas na sua “imagem do real”, sua

verossimilhança. As lacunas da História são preenchidas pela visão do escritor que,

frente a uma possibilidade, desenvolve-a ao ponto de parecer a explicação mais

adequada, como “provavelmente deve ter sido”.

Essa é, como veremos em vários exemplos, uma das características

comuns do ensaísmo lamartineano que, ao invés de retroceder timidamente e

explicar a insuficiência dos dados, segue apontando-a enquanto completa o sentido

com outros recursos. É também, devemos destacar, uma característica esperada do

gênero – o ensaio de um tema pelo desenvolvimento do pensamento do redator –,

mas, no caso de nosso escritor, permanece sendo também parte de seu estilo.

Lamartine fundamenta a coerência de suas ideias não apenas pela

seleção de argumentos, mas pelo cuidado com que utiliza os recursos de cada

trecho, assumindo, por exemplo, no segundo ponto a seguinte ordem: questões

sobre a “origem”, respostas desenvolvidas por narração/argumentação, exemplos

históricos, conclusão (resposta possível).

Assim, na ausência de papelada, surge a emenda do tempo pelo

testemunho pessoal, memória coletiva ou pela narração e avaliação crítica do

escritor, que levam o texto ao limite da História/estória. O terceiro ponto, por

exemplo, Adonde foi e quem aqui fez o açude primeiro (p. 25), progride pelo

equilíbrio desse expediente com comentários das menções de documentos do

estado:

Teria o Reverendo alevantado naquelas ribeiras a parede do açude primeiro

ou o argumento de mettam logo muitos gados, gentes e fazer assudes,

servia em parte para facilitar o deferimento das terras requeridas. Ou, quem

sabe, não encontrou local onde houver capacidade de assudes. Ademais, é

preciso não esquecer que ele próprio alega que as terras são servidas de

aguadas e possos nos ditos rios, alagoas e olhos dagoa...(FARIA, 1980, p.

26)

Por interpretação dos esparsos dados oficiais dessa tema que pretende

desenvolver, Lamartine escreve a História desses tempos quase sem memórias indo

de um requerimento a uma lei, da rala bibliografia do sertão ao testemunho dos

informantes de cada ribeira. Desse jeito, o ponto 3 mantém quase a mesma

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organização que o precedente: passado revivido como em uma narração de origem,

desenvolvimento por citações de documentos e seus comentários, conclusão parcial

(descoberta do provável primeiro açude da região e avaliação de como a “novidade”

se espalhou), exemplos históricos que reforçam a segunda parte da conclusão.

Esse ensaio, como começamos a constatar, é concebido entre

recuperações da história seridoense e os “ajustes” promovidos para gerarem

continuidade e fluidez; mas também por testemunhos que resultam da aproximação

com o tempo do autor e das pessoas que povoam o seu discurso. Isso é

gradualmente avistado conforme vamos nos avizinhando do “hoje”, da

“modernidade” apresentada por Lamartine, pois saímos das conjecturas hesitantes e

cenários supostos dos primeiros dias do sertão e chegamos às memórias. Logo, os

pontos subsequentes exibem o aumento dessa presença, como constatamos na

menor incerteza do ponto 4 (Adonde os faziam construir, p. 27):

A diligência dos tempos velhos era, pouco mais ou menos, a usada pelos

sertanejos nos dias modernos. Apenas os engenhos de como fazer é que

melhoraram a trabalheira da construção.

[…]

É um penitente a subir e descer pernas de córrego e riachos. Devagar, aqui

e acolá esbarrando, botando reparo nos chãos, na qualidade da terra, na

altura das ombreiras e nas riscas de marcas deixadas pelas águas das

grandes cheias dos invernos de castigo como o de 1924 e 1940...

Atrepando-se nos caculos, fazendo contas de cabeça para a decisão do dá

ou não dá – faz ou não faz – se deixa a ficar perdido em cismas de contas,

economias e sonhos... (FARIA, 1980, pp. 27 - 28)

Mesmo a memória não se evidenciando na superfície textual, podemos

divisar uma assertividade que substitui os movimentos argumentativos. A escrita

assume posição mais dissertativa, e o escritor começa a incrementar as descrições

e explicações, mudando o foco da necessidade de “provar uma tese” para o

aprofundamento do assunto pelo detalhamento:

Aí torna a especular sobre o local e os gastos. E quando de uma vez se

decide a pegar no serviço – principia as providências. Primeiro tem de

marcar a altura da parere e, de acordo com ela, o nível do sangradouro.

Mas isso é ciência de mestres. Quando é uma obra pequena, um barreiro

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com parede de poucas braças, um conhecido mais curioso que já trabalhou

ou ajudou mestres afamados se inicia no engenho da marcação... (FARIA,

1980, p. 28)

Desse ponto em diante, o texto muda sua função de reconstruir de forma

evidente o passado e principia a expansão de um de seus recortes temporais.

Lamartine pratica metodicamente o ato de explicar todas as “ferramentas” e

“procedimentos” do assunto tema, quando finalmente atinge o período do passado

mais recente que dá razão aos seus estudos.

O ponto 5 dessa primeira etapa do ensaio (E de como se fazia, p. 28) é o

que expõe justamente a organização de cada etapa do processo de açudagem até

então revelado. Nessas explicações o ensaísta deixa patente sua familiaridade com

o tema, aumentando as notas de rodapé sobre expressões típicas (sete delas no

ponto 5, superando a média de duas a três para cada divisão) transparecendo certa

emotividade (“Um menino-guia puxava a boiada no mesminho vai-e-vem [...]”, p.29),

e chegando mesmo a construir verdadeiras imagens poéticas:

O sol de estio tostava e curtia a pele viva sem o afago de uma nuvem. E

eram naquelas horas de mormaço, quando golpeavam a terra sem sombra, que

faziam de cada gesto um acordar de músculos vergonteados na pele lambuzada de

suor e barro, que se viravam em estatuária viva, se bolindo, bela e ignorada pelos

artistas... (FARIA, 1980, p. 30)

Isso sugere que, conforme é relatado o curso dos trabalhos, concedem-se

informações “secundárias” que enriquecem as imediações. O modo ensaístico

lamartineano engloba, como resultado, matérias de diferentes naturezas, e esse

espectro cumulativo torna, consequentemente, o texto rico em mais de uma

dimensão (informativa, expressiva, reflexiva etc.). O resultado seria uma expansão

do espaço proporcional ao grau de contato do escritor com o tempo que o texto

referencia.

Para ilustrar, basta imaginar a progressão da primeira etapa de Açudes

dos sertões do Seridó como uma linha que oscila no eixo vertical dependendo do

nível de subjetividade e de recursos expressivos que fujam da objetividade, e

teremos o seguinte gráfico:

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O curso dessa linha apresentaria, a nosso ver, três momentos que

separam o texto. Há dois ápices no início e termino do trecho que estariam

relacionados com os episódios mais subjetivamente elaborados, a imagem poética

do açude no ponto 1 e o último parágrafo do ponto 5. Após o momento de

estabilidade no ápice da primeira descrição do espaço, há uma queda brusca em

que o escritor se concentra no assunto ao buscar desenvolvê-lo e, tanto pelo

afastamento temporal quanto pela escassez de referências, permanece longe e em

crescimento subjetivo lento. Já com a coincidência dos pontos 4 e 5 e uma época

mais próxima da experiência pessoal de Lamartine, observa-se o crescimento mais

acelerado de recursos não-objetivos na sua redação, alcançando a imagem

literariamente construída dos escavadores “que se viravam em estátua viva, se

bolindo, bela e ignorada pelos artistas...” (FARIA, 1980, p. 30).

Descobrir a relação entre tempo, experiência e modo de escrita nos

evidencia, portanto, pelo menos um princípio de seleção e organização do ensaio

lamartineano, mas que surge principalmente devido ao correr do tempo, o que não

se aplica às duas outras macrodivisões desse ensaio.

A segunda delas, E depois..., dá início ao “período moderno” da

açudagem nordestina, quando a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas -

IFICS (atual DNOCS) intervem afetando o processo de produção e seus

trabalhadores. Já é uma época com que o escritor se identifica, havendo várias

intromissões de sua memória pessoal e avaliações sobre as diferenças do que se

fazia antes, no “sertão antigo”:

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Negócio de uns tempos para cá, coisa duns 50 anos, e por certo depois da

aprendizagem da Inspetoria, é que o alevantar paredes de açudes fez-se

ciência de maior saber. (FARIA, 1980, p. 32)

Quando da construção do açude Lagoa Nova, 1941-8 (Fz. Lagoa Nova,

Riachelo, RN), o ferreiro de lá, Mestre Irineu, “cunhou” para os serviços da

obra, centenas delas com alumínio de sucata de avião de guerra. Apenas

numa das faces tinha como efígie o ferro da fazenda; na outra, os valores

convencionados: 1, 10, 50, 100, e 1.000.

Semanalmente, aos sábados ou em dias incertos quando havia suspeita, as

fichas eram recolhidas e conferidas de modo a evitar clandestinas

inflações... (FARIA, 1980, p. 34)

O alicerce foi lição trazida pelos doutores da Inspetoria (DNOCS). No sertão

velho, nos açudes erguidos com arrastão de couro de boi, o uso era apenas

raspar o espelho da terra onde ia se acamar a parede. Daí maior revência e

a pouca duração da água de quase todos eles... (FARIA, 1980, p.36)

Localizamos com facilidades nesses intervalos ancoramentos temporais

mais particulares (“De uns tempos para cá” e “sertão velho”, que usam como

referência respectivamente o momento da escrita e a época do escritor), e

comentários parciais ou que deixam o sentido propositalmente aberto (“[...] de modo

a evitar clandestinas inflações...” e “Daí maior revência e a pouca duração da água

de quase todos eles...”, apontando por eufemismo a falsificação das fichas no

primeiro caso e um possível pesar pelo trabalho quase desperdiçado dos mais

velhos no segundo).

De fato, “frases inacabadas” ocupam boa parte do ensaio pelo uso

consistente de reticências, o que resulta em indicadores confiáveis das

manifestações pessoais de Lamartine:

• Respeito - “[...] melhor pedreiro e mestre maior de açudes...” (FARIA, 1980, p.

31);

• Assombro - “[...] nele se podia correr a vista ou o instrumento, de ponta a

ponta, sem esbarrar nem catombo ou barroca em todo aquele espichão de

terra arrumada a lombo de jumento...” (FARIA, 1980, p. 32);

• Luto - “[...] colocaram em suas mãos calosas a vela do derradeiro adeus...”

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(FARIA, 1980, p. 32);

• Pesar - “Terra, água e esperança levadas para o mar...” (FARIA, 1980, p. 32);

• Saudosismo - “Bastava que quando umedecidas e espremidas na mão –

formassem bolo. Perdidas para qualquer serventia eram o barro de piçarra e

a areia – ensinava o mestre Zé Lourenço...” (FARIA, 1980, p. 37);

• Saudade - “A pá cambalhotava no ar e tornava às mãos do cassaco enquanto

o bolo de terra subia destacado e ia cair no alto da barranca. Fazia gosto

espiá-los nesse malabarismo...” (FARIA, 1980. p. 37);

• humor - “E nem carece dizer que a peixeira cortou as rimas, a poesia, e as

carnes...” (FARIA, 1980, p. 38).

No entanto, esse efeito pela pontuação não se restringe aos

apontamentos do escritor, e se estende em escala maior a um sentido de

“continuidade emudecida”, quando são citadas falas, mencionados acontecimentos

vivenciados ou mesmo rotinas:

As tropas de jumento disciplinadas no vaivém do carguejar seguiam de

cargas coculadas em passo tardo para o despejo e voltavam escoteiras e

até em chouto no alívio do peso para os lugares de cavagem. Os

tangedores – meninos de 10 para 14 anos – tangiam com um chiqueirador,

falando a cada animal:

– Êêê Rouxinho! Fasta pra lá Paturi! 'sbarra-aí Canário!... (FARIA, 1980, p.

41)

[…] Entrada a seca e faz de conta que o cidadão, ele mesmo, se

determinou a alevantar o seu açude ou açudeco, cuidou em providenciar o

cercado de solta para acomodar os jumentos; tratou de apalavrar o

apontamento dos ferros com o ferreiro mais perto e espalhou a notícia no

mundo. E de boca-em-boca na rede dos alpendres, nas bodegas das beiras

de estrada, nos domingos de missa e nas feiras sertanejas, espalhou-se o

acontecido... (FARIA, 1980, p. 33)

[…] Homens de ciência e saber, dessa e da outra banda do mar, ajudados

pelo muque do sertanejo que de tanto almocrevar, guiar, carregar, fazer

mandos e trabalhar, botando reparo como se fazia, e aqui ou acolá se

atrevendo a uma pergunta, arremedava ou aprendia alguma coisa... (FARIA,

1980, p. 31)

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Por consequência, as reticências ocupam uma posição de destaque na

estrutura aqui analisada. Além de sinalizar continuidades interrompidas, funcionam

como um dos elementos de coerência da redação ensaística, pois orientam boa

parte de nossa leitura para uma imagem de tempo recortado e costurado pelo

escritor. Elas Ampliam o efeito das interrupções e retomadas como um tecido

orgânico que não privilegia o ciclo cronológico, mas sim o kairótico (da consciência)

por intermédio de Lamartine. Dessa forma a seleção de informações não apaga os

discursos periféricos interrompidos, mas passeia por eles indicando que apenas

contempla parte de cada um. O que justifica, ainda em outra perspectiva, a visão de

construção ensaística pelas memórias.

Avistamos, assim, uma diferente estruturação em cruzamentos constantes

da História e rememoração e, exceto por alguns fragmentos mais bem elaborados

que tomam vulto, percebemos a oscilação frequente da escrita como em ondas, não

linhas estáticas, ascendentes ou descendentes. Como resultado, o grau de

subjetividade aparece frequentemente alto em quase todo o trecho na mudança de

objetividade e não-objetividade:

O trabalho mais pesado e penoso era o de alavanca. Carecia o homem ter

tutato para agüentar o erguer, o ferir a terra e aluir barrancas ao peso de

uma barramina. Quando a escavação tinha maior fundura, tinha vez que os

paleadores faziam foguetão, sacudindo a terra a grande altura. A pá

cambalhotava no ar e tornava às mãos do cassaco enquanto o bolo de terra

subia destacado e ia cair no alto da barranca. Fazia gosto espiá-los nesse

malabarismo... (FARIA, 1980, p. 37)

Compreendemos que Lamartine dá continuidade a esses dois modos de

escrita tornando um parte da progressão do outro, sendo que a única “quebra” nesse

equilíbrio relativo aparece em dois episódios “secundários” que possuem estrutura

desenvolvida. Podemos percebê-los como uma minibiografia e uma história cômica,

ambas em forma de conto, que ultrapassam o nível do comentário e se mostram

com introdução, desenvolvimento e conclusão. Cada um possui elementos

sugestivos próprios que indicam camadas significativas da linguagem além do uso

comum, e seus referentes são trabalhados ao ponto de se tornarem personagens da

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tradição popular norte-rio-grandense.

O primeiro caso ocorre logo após a introdução (ponto 1), quando

Lamartine recorda a história de José Lourenço para exemplificar o que seria um

“mestre de parede”:

José Lourenço da Silva, raça dos Batista do Seridó, tora de homem, de fala

gritante e gestos estabanados, trabalhador sem canseiras, cortou o imbigo

nas ribeiras do Acari nos idos de 1901 e por lá mesmo recebeu a água

sagrada e salgada do batismo.

Menino ainda (1909), ganhou seus primeiros vinténs no vaivém de sol a sol

do tardo caminhar e amontoar do arrastão de couro de boi para o

alevantamento da parede-lombo-de-peba do Açude Quiporó (Fazendo

Quiporó, propriedade de Joaquim Caetano, Acari, RN).

Rapaz, já taludo, caçava ganho nos meses de seca pelas construções do

Governo. E foi trabalhando, servindo, espiando e apreendendo, como se

fazia e porque se fazia cada coisa e cada serviço, que de servente se fez

mestre. E mestre dos bons. Bom carapina, melhor pedreiro e mestre maior

de açudes...

Dezenas e mais dezenas de paredes se alevantaram com sua engenharia

rude e tosca, cujos instrumentos se resumiam em um novelo de barbante e,

como dizia ele, um nível de pedreiro. Era homem de muitas poucas letras e

muita sabedoria e habilidade no trabalho. Quando terminou de erguer e

cortar os 640 metros de extensão que formam a parede do açude Lagoa

Nova (Fazenda Lagoa Nova, Riachuelo, RN), nele se podia correr a vista ou

o instrumento, de ponta a ponta, sem esbarrar num catombo ou barroca em

todo aquele espichão de terra arrumada a lombo de jumento...

José Lourenço da Silva, uma das derradeiras sementes dessa nação de

gente que está se finando, já setentão (1971) só se arredou do trabalho

quando o sangue aguado de leucemia roubou suas últimas sustâncias. Em

suas terras, sob as suas telhas, nas quebradas da Serra Branca (Riachuelo,

RN), colocaram em suas mãos calosas a vela do derradeiro adeus...

(FARIA, 1980, pp. 31 – 32)

Lendo atentamente, é possível identificar nesse fragmento algumas

elaborações ficcionais, ou pelo menos recursos que enfatizam a leitura sugestiva: o

primeiro parágrafo faz uma descrição grandiosa desse personagem, sendo uma

pessoa incansável e bastante enérgica, o que é ressaltado em um nível quase mítico

pelo simbolismo do batismo com água salgada, detalhe nada vulgar se associado ao

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suor que derramará durante sua vida de trabalho; o segundo e terceiro parágrafos

mostram o crescimento do menino ao homem e, pelo próprio desenvolvimento

textual, é possível perceber o processo de aprendizagem por que passou como se o

assistíssemos; o quarto parágrafo apresenta os feitos do “mestre”, que são

arranjados em contrastes propositais entre sua pouca instrução e instrumentos

simples, e sua perícia impecável e grande extensão de seus trabalhos, assumindo

uma posição ainda mais “fantástica”; o quinto parágrafo, fechando o ciclo de vida do

personagem inclusive pela circularidade do retorno ao seu nome, não apenas passa

os resultados de sua vida, mas o faz de forma extremamente emotiva com

construções semânticas tais como “quando o sangue aguado de leucemia roubou

suas últimas sustâncias”, a enfatização da propriedade conquistada pelo esforço

(“suas terras”, “suas telhas”), e por “colocaram em suas mãos calosas a vela do

derradeiro adeus...”, que encerra a história com a sua imagem de maior poder.

Todos esses pontos e a sua disposição evidenciam uma preocupação

com a linguagem e uma estrutura tão cuidadosas, que podemos analisar a

passagem como um conto dentro do projeto maior ensaístico. Percebemos que o

trecho possui autonomia, sendo estruturado com uma única finalidade: exemplificar

o que seria um “mestre de parede” com a história de um dos mais importantes

mestres da época. O tempo se torna amplo no breve desenvolvimento do trecho,

mas, ainda assim, suas demais características marcantes do gênero são

encontradas:

[…] contém um só drama, um só conflito, uma só unidade dramática, uma

só história, uma só ação, enfim, uma única célula dramática. Todas as

demais características decorrem dessa unidade originária: rejeitando as

digressões e as extrapolações, o conto flui para um único objetivo, um único

efeito. O passado anterior ao episódio que nele se desenrola, bem como os

sucessos posteriores, não interessam, porque irrelevantes. Quando,

porventura, importa mencionar os acontecimentos precedentes, o contista

sintetiza-os em escassas linhas. Tudo sucede como se, na existência das

personagens, apenas aquele incidente é que alcançou densidade para fugir

ao anonimato. E, fechando o parênteses em que se constitui a narrativa, a

vida das personagens regressa à opacidade que abandonara por um

momento fugaz. (MOISÉS, 2013, p. 89)

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É, portanto, além dos fatores de elaboração da linguagem, que se

configura como conto encaixado na linha ensaística pelo sentido de “parênteses

narrativo”. É a história de toda uma vida, mas em perspectiva com o plano maior da

História seridoense, apenas um desvio sobre um homem célebre.

Seguindo a mesma lógica de episódio que excede o anonimato, o

segundo caso está localizado em um trecho menos longo da página 38 (ponto 7),

em que Lamartine recorda um “sucedido” entre dois cassacos:

[…] De 1939 para 40, pegamos na construção de um açude (Fz. Lagoa

Nova, Riachuelo, RN). Era um ano de seca e tinha uns trabalhadores de

fora, gente de rede-nas-costas. No meio deles um banqueteiro, quarentão

casado com uma caboclinha nova. E vai daí, a mulherzinha engraçou-se de

outro, anoiteceu e não amanheceu... A notícia ganhou a boca dos

trabalhadores. E o “viúvo” trabalhava calado e sisudo na humilhação de seu

abandono, enquanto o vizinho caçoava, cantando:

Óia seu Zé

qui casá dá prejuízo,

o homem perde o juízo

cum ciúme da muié.

Óia seu Zé,

Seu Zé, seu Zé,

Cum'anda tão cacundo

Cu'um chifre maió do mundo

quem butô foi a muié.

Muié gaieira

qui bota gáio no home,

merece morrê de fome

pra sabê gáio o que é...

E nem carece dizer que a peixeira cortou as rimas, a poesia, e as carnes...

(FARIA, 1980, p. 38)

Assim como no fragmento anterior, há recursos que atravessam as

primeiras camadas linguísticas, tornando-as significativas: o contraste entre

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“quarentão” e “caboclinha” admite mais de uma leitura, enfatizando tanto a diferença

de idade quanto funcionando como um indicador da futura brutalidade do marido; as

escolhas lexicais “não acordou...” e “'viúvo'” deixam claro o ocorrido e ainda

sustentam uma atmosfera de interdito que só será quebrada pelos versos; esses

transformam a tensão do banqueteiro “calado e sisudo” em humor, o que toma o

próprio discurso do narrador do acontecido com a imagem da peixeira reassumindo

o silêncio e fazendo uma nova vítima.

Dessa forma, Lamartine consegue expor o teor humano conflituoso dos

arranchamentos provisórios da construção dos açudes e do que versejavam

rotineiramente os trabalhadores; e o faz dando vida a exemplo nuclear, capaz de

tomar vulto sem ser fuga desmedida no texto principal. É ainda mais condensado

que o exemplo anterior, e se desenvolve pelas falas dos personagens, o que é

recorrente no gênero: “No tocante à linguagem, o conto prefere a concisão à

prolixidade, a concentração de efeitos à dispersão. E, como a ênfase é colocada

antes na ação que nas personagens, antes no conflito que nos participantes, o

diálogo predomina na trama do conto.” (MOISÉS, 2013, p. 90).

São esses os trechos mais elaborados que conseguem se destacar do

“revezamento” de objetividade/não-objetividade do escritor, e que, mesmo assim,

integram o texto como desvios coerentes que exemplificam as ideias defendidas.

Suas presenças resultam em um ápice de subjetividade mais relevante que as

outras interferências, mas o trecho continua em uma estrutura fluida:

Portanto, até o ponto final dessa etapa do ensaio, veremos o convívio

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entre linguagem mais e menos subjetiva/sugestiva:

Terminado o furo ou os furos precisos para cada fogo – aí principiavam a

socar a pólvora com um soquete de madeira e depois “espoletar” com pavio

ou estopim e comprimir com barro-de-liga. Era a hora mais séria e perigosa

pois bastava um instante de descuido para dali se fazer uma arte... Muitas

das pedras que levaram fogo naqueles saartões da terra, guardam em suas

entranhas e nos seus silêncios de eternidade os epitáfios não escritos e

enodoados com o suor e sangue de um cavouqueiro anônimo que ali se

finou. (FARIA, 1980, p. 39)

Às vezes, na volta do despejo, num pinote ganhavam a garupa do jumento

do coice e vinham sentados de banda, uma das mãos agarradas ao

cabeçote da cangalha, chiqueirador ao ombro e desenfadando daquela

canseira.

Espiados assim do alto mais pareciam um formigueiro assanhado naquele

afã de cavar, carregar e carguejar terra em suas trilhas que iam esbarrar no

estirão da parede... (FARIA, 1980, p. 41)

Ao observar esses trechos, temos, inclusive, uma ideia resumida dos dois

tipos de “descanso” da linha argumentativa mais objetiva em Lamartine: há os

trechos que já iniciam bem elaborados devido à recordação (como é o caso do

começo do ensaio), e a maioria das ocorrências em que a escrita subjetiva advém

de algo anteriormente dito (o que identificamos nos exemplos acima).

Essa estrutura, não por acaso, é semelhante ao funcionamento das

memórias, já que é necessário um “gatilho” para a maior parte ser ativada. Bosi

(1979), por exemplo, nos leva para uma visão da memória do sujeito em idade

avançada em que suas relações cognitivas com o espaço mudam e acabam por

apagar possibilidades de rememoração por culpa de dados físicos. Os gatilhos da

memória podem ser as próprias pedras do calçamento que, caso retiradas para

pavimentação com concreto, dificultam as recuperações do passado daqueles que

passaram por elas durante vários anos. Com a transformação inevitável do

ambiente, parte dessa história dos antigos habitantes também é levada pelo tempo

e, infelizmente, seu “espaço vivido”, recurso físico de memórias profundas e há

muito tempo submersas, acabaria aos poucos limitado. É nesse ponto que as

interferências da memória de Lamartine são parecidas.

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Isso seria perceptível particularmente pela prática da escrita de pessoas

maduras se direcionar a uma busca do passado, como uma revitalização e um “fazer

viver pela palavra” o que fisicamente está se deteriorando. Tal perspectiva é

basicamente uma síntese das principais forças que motivam Lamartine e também

apresenta uma visão similar à “escrita como ato vital” de Rosa.

O ensaísta busca repetidamente suas lembranças devido ao choque com

o espaço já transformado pela tecnologia, e o romancista constrói seu sertão pelas

histórias de um jagunço aposentado que já não pode mais viver pelas veredas que

passou, e as recorda. Mas, não sendo uma escrita totalmente autobiográfica, a

diferença de Lamartine é encontrada nos gatilhos também presentes em seu

discurso não-autobiográfico. Suas interferências subjetivas são desvios de uma linha

maior, que comporta o estudo empreendido (no caso, o dos açudes), por isso

desviando dele quando o assunto toca o autor.

Assim, o tempo suspenso pelas memórias de Lamartine fecha o seu ciclo

no décimo ponto, um caminho entre muito por se dizer do E depois... (p. 31) ao Do

tempo que se foi... (p. 42). Deixa pela primeira vez claro o desconforto de ter de

“abandonar” essa época, um “sertão do nunca mais” graças ao progresso da

modernidade. São com palavras amargas e em tom de despedida que encerra a

discussão sobre a açudagem:

Das eras de 30 para cá principiaram a trocar as caçambas das tropas de

jumento pelo lastro mais taludo dos caminhões. E catingando a caatinga de

gasolina e diesel, rodam agora as rodas dos tratores de pneu, dos tratores

de lâminas, dos scrapers, dos rolos compressores pé-de-carneiro e toda a

intrincada engrenagem das máquinas com a zoeira dos motores.

Mas isso está nos relatórios oficias, nos livros técnicos e ainda é imagem

dos olhos de todo o mundo que sobrou... (FARIA, 1980, p. 42)

Sentimos pela primeira vez em sua linguagem ensaística um modo mais

melancólico, já no final do seu trabalho. E por essa situação o autor nos indica uma

tendência que o acompanhará ao longo da obra: o povoamento do sertão pelo ato

de rememorar, e sua destruição gradativa pela invasão tecnológica. Vai-se o Seridó

dos trabalhos e dos esforços que davam razão às tradições de sua época, o Seridó

poeticamente silencioso da primeira visão do açude, e fica a necessidade de mantê-

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lo pelo diálogo entre o escritor e a posteridade.

Com esse breve desabafo, Lamartine passa à última divisão do ensaio: E

da contagem de cada um (p. 43), em que deixa suas conclusões, questionamentos

não respondidos e algumas “máximas” sobre o assunto.

Diferente das etapas precedentes, essas poucas páginas apresentam um

escritor mais reflexivo e contido na busca por soluções para o futuro do Seridó,

comentando vários autores que sustentam seu posicionamento. A argumentação é

pautada em dados estatísticos que nos levam a crer, por lógica, na importância das

reservas de água para a economia local, incluindo a piscicultura, mas seu

fechamento retoma em parte a subjetividade até agora observada.

Para “encurtar conversa e papel” (p. 45), Lamartine condensa suas ideias

em quatro máximas sobre o assunto:

1o – Nos açudes maiores, capazes de guardar água de dois invernos para

mais, a média de pescado/hectare/ano anda pela casa dos 150 kg. “Cerca

de 100.000 toneladas de peixe são apanhadas nos açudes dos municípios,

inclusive no açude público, Cruzeta.”

2o – O valor de água para serventia dos bichos e do bicho-homem. “Quanto

mais longe vai beber o boi mais magro volta aos pastos” – é a sabedoria de

qualquer vaqueiro sertanejo.

3o – E também dos recursos das vazantes: batata-doce, feijão, jerimum,

melancia, forrageiras etc., cultivadas no montante, além das culturas de

jusante: cana-de-açúcar, coqueiros, mangueiras, e toda uma mescla de

fruticultura tropical.

4o – Que a contagem de cada um, ambó, barreiro, açudeco ou açude, vai

ser dificultosa de ser calculada em metros cúbicos. É que o sertanejo a mais

das vezes ignora essa cubagem. Sabe sim, de cor e salteado, que esse ou

aquele açude sangrando, leva tantos meses para secar... (FARIA, 1980, p.

45)

É interessante reparar que a primeira e terceira são construídas por

argumentos de quantidade e variedade respectivamente, enquanto a segunda e

quarta pela autoridade da figura do sertanejo. Mesmo se valendo de cálculos e

estudos de “doutores”, o escritor não se afasta em nenhum momento da sabedoria

popular, nivelando as duas influências e as estruturando logicamente. No entanto,

transparece seu saudosismo além da reflexão, demonstrando novamente que o

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autor ocupa cada espaço do texto com o que é da terra. Seu ensaio, orientado por

um assunto objetivo, desenvolvido por pesquisas em comunhão com memórias,

ainda nos reserva uma imersão cultural no Seridó do nível significativo lexical ao

ideológico.

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4.2 Segundo ensaio

Conservação dos alimentos nos sertões do Seridó (pp. 49 - 100), ensaio

escrito treze anos antes da publicação sobre os açudes, segue a coletânea como o

segundo texto apresentado. Possui a segunda maior introdução sobre a região, não

direcionando-a totalmente para o tema do estudo, e em muitos trechos destaca a

participação de “informantes” para a sua realização. Diferente do que percebemos

no primeiro ensaio, este demonstra um menor grau de biografismo de Lamartine,

que soluciona o distanciamento por outros elementos.

Sua composição é dividida em 4 etapas, sendo a última apenas um índice

de nomes científicos da flora local citada, tomando praticamente a mesma estrutura

que já observamos no primeiro ensaio: introdução e história do assunto em relação

com o sertão, exposição do assunto com intervalos não-objetivos, conclusão com

questionamentos sobre o futuro.

Assim como Rosa, segundo Candido, foi influenciado por Euclides da

Cunha em seu romance, nesse texto encontramos um Lamartine mais esquemático

na divisão da terra. Antes de entrar na discussão sobre os alimentos, ilustra o Seridó

pelas mesmas divisões encontradas em Os Sertões, pelo nome de Em que se fala

dos sertões do Seridó (p. 51). Seus três primeiros pontos da etapa inicial são

verdadeiras releituras da sequência a terra, o homem e a luta.

Em Adonde é encravado e de como está retalhado (p. 51), o espaço é

revelado pelo caminho que começa de Natal e o sertão é explorado aos poucos pela

descrição da viagem:

Quem sai da cidade de Natal pelo Bairro das Quintas e dá as costas para o

mar tomando o rumo do sertão – segue a velha estrada-tronco na qual os

técnicos, de tempos em tempos, fazem a plástica das curvas, das rampas e

do piso, batizando-a cada vez com siglas ou nomes estrangeiros àqueles

mundos.

Rodando no asfalto que se espicha léguas adentro, cobrindo os primitivos

caminhos de terra solta ou piçarrados, vai-se comendo chão. Para trás fica

o cheiro das vacarias e, depois, o da maresia do Potengi. De banda vão

ficando as dunas, o rio, os tabuleiros de mangabeiras, para mais adiante se

cortar a cidade de Macaíba. Daí, em direção de As Marias, o chão vai

ficando mais barrento e mais trancado com a vegetação do agreste – é o

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marmeleiro, a sarjadeira, o velame e a macambira fazendo a saia das raras

essências de maior porte que escaparam, só Deus sabe por que, ao gume

do machado e à coivara. […] (FARIA, 1980, p. 51)

[…] Mais para diante, entre as nascentes do Riacho dos Angicos que corre

para Este e as do Mulungu, que descamba para Oeste – a estrada

enladeira-se, de cabeça-abaixo, pisando os chãos do Seridó. A serra

aceirou o que ficou para trás. O vento amorna, o chão se enladeira de

quebrada em quebrada, com a nata da terra lambida pela erosão,

estampando lajedos e serrotes ondo domina o espinho; e mais rala é a

caatinga, já que as raízes carecem se espalhar na superfície para sorver a

minguada umidade que, na pegada das chuvas, alivia e estoura em verde a

paisagem cinzenta. (FARIA, 1980, p. 52)

Essa introdução, além de demonstrar domínio da geografia local, estimula

sinestesicamente o leitor, provocando uma experiência detalhada das mudanças do

trajeto. Semelhante ao modo como nos apresenta o açude, o escritor nos faz passar

pela estrada devido ao foco na consciência, e muito provavelmente na memória.

Não é a escrita de alguém diante de mapas, mas de quem sofreu a travessia do mar

ao sertão, conhecedor da terra. Vem em formato de experiência vivida, ganhando

corpo na frente dos interlocutores, como também encontramos em Rosa nas

travessias de Riobaldo:

As nove. Com mais dez, até à Lagoa do Amoroso. E sete, para chegar

numa cachoeira no Gorutuba. E dez, arranchando entre Quem-Quem e

Solidão; e muitas idas marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor

empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.

Sertão é quando menos se espera; digo. Mas saímos, saímos. Subimos. Ao

quando um belo dia, a gente parava em macias terras, agradáveis. As

muitas águas. Os verdes já estavam se gastando. (ROSA, 2011, p. 363)

Logo após esse caminho, Lamartine tece breves explicações sobre as

divisões oficiais da região:

No Rio Grande do Norte, o Seridó mede 9.386 km2. As sesmarias primitivas

foram retalhadas, de tempos em tempos, pelo crescimento das populações

e decorrentes necessidades político-administrativas. Hoje o Seridó soma

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dezesseis municípios: Acarí, Caicó, Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá,

Cruzeta, Currais Novos, Florânia, Jardim de Piranhas, Jardim do Seridó,

Jucurutu, Ouro Branco, Parelhas, São Fernando, São João do Sabugi, São

Vicente e Serra Negra do Norte.

Confrontados com outras terras, de modo a oferecer melhor visualização da

área, os 9.386 km2 do Seridó medem oito vezes mais que o atual Estado da

Guanabara (1.171 km2). (FARIA, 1980, p. 52)

Esse tipo de resumo ocorre não apenas nesse ensaio, mas, como

veremos nas análises seguintes, ocupa o lugar de um discurso revisto várias vezes

ao longo da obra do escritor. Porém, desde já observamos que em sua primeira

aparição em Sertões do Seridó, e cronologicamente em sua última reescrita, assume

ordem secundária, completando informações não esmiuçadas pela noção de

deslocamento e chegada ao sertão.

O mesmo tipo de descrição ocorre, inclusive, no segundo ponto ao

realizar o retrato do homem seridoense:

Cento e quarenta e seis mil, duzentos e noventa e três viventes moram

naqueles 9.386km2 de chão, formando uma densidade demográfica de 16

hab/km2. Em vista dos 1.157.268 habitantes contados pelo censo de 1960

para o Estado, como um todo, representa a população do Seridó 12,6% da

do Rio Grande do Norte.

A maior parte dos seridoenses vive na zona rural, i. é., 66,13% – enquanto

33,86% se acomodam nas ruas das vilas e cidades que, devagar, também

vão crescendo e se enfeitando por aquelas paragens. (FARIA, 1980, p. 52)

O povo que lá vive (p. 52) relata a localização e deslocamento dos

residentes da região de forma clara e pontual, avançando em cálculos estatísticos e

explicações de êxodo, mas deixando de lado outros detalhamentos. Somente com E

de como chegaram e se fizeram (p. 53) a redação ensaística adquire maior

complexidade, voltando ao modo narrativo que completa os intervalos esquecidos da

História pela criação:

E os brancos lá chegaram, rompendo pelo caminho das águas – subindo o

rio ou a areia deles – de vez que por todos aqueles mundos os cursos

d'água apartam nos meses de seca. A marcha, é de se imaginar, era

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empalhada, a cada légua: carnes rasgadas pela flecha do caboclo-brabo ou

o espinho da sarjadeira, da jurema, da macambira, da quixabeira, do

juazeiro, do cardeiro ou do xiquexique – já que as plantas ali também se

defendem; esbarrada pela furada mais venenosa da jararaca e da cascavel

ou pela secura da água – escassa, ausente ou salobra a ponto de

“arripunar” (repugnar). (FARIA, 1980, p. 53)

Com essa estrutura, trata a História do sertão pelos meios produtivos que

sustentaram o sertanejo até depois da Segunda Gerra, atentando para a sua luta. E

não são apenas essas as referências encontradas de Euclides, aparecendo uma

citação de Os Sertões para a descrição de uma foto de xiquexiques do Seridó:

“...destacando-se, nítidos, à meia luz dos crepúsculos, dão a ilusão emocionante de

círios enormes, fincados a esmo no solo, espalhados pelas chapadas, e acesos...”

(CUNHA Apud FARIA, 1980. p. 55).

À vista disso, o ponto quatro continua com o estilo descritivo euclidiano e

exibe um mapa mais preciso dos acidentes geográficos, da hidrografia e flora do

Seridó:

O chão é enladeirado em serras pedregosas, cuja altitude média deve ficar,

pouco mais ou menos, em 250m. A nata da terra albida pela erosão das

águas e dos ventos (de 2 a 20km/hora) estanca, mais das vezes, na chá de

algumas caatingas ou nas várzeas dos rios; aí a terra é gorda, sílico-

argilosa, profunda e tomada pelas raízes do algodão mocó.

[...]

As chuvas são esparsas e mal distribuídas; 4 meses de molhado para 8

secos – é o que Deus dá nos anos normais de inverno. Mas, tão cedo caem

as primeiras chuvas, a vegetação estoura em verde nos arbustos – a rama –

e o chão se atapeta de ervas e capins – a babugem. É o tempo de fartura

em que o sertanejo tira a barriga da miséria, melhora de carnes, cria

sustância e, na força do feijão, vai se fazendo crescer em natalidade...

(FARIA, 1980, p. 56)

Todo esse percurso, entretanto, serve como ensejo para a seguinte nota,

que introduz o texto ao seu tema principal: “Hoje o trabalho daquela gente, traduzido

em números estatísticos, mostra uma economia assentada no tripé: minérios,

algodão mocó e gado.” (FARIA, 1980, p. 56).

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Por tais explicações gerais, chega-se aos fatores econômicos da região e

sua cultura, pois o ensaio passa aos meios de nutrição do sertanejo, dividindo-os em

quatro categorias. Essas são desenvolvidas tendo como pano de fundo as razões

históricas e culturais de seu uso, relacionadas ao processo produtivo que geram e

organizadas por grau de importância.

Visto isso, a segunda etapa, que compõe a maior parte do ensaio, é

composta pelos pontos Da água (p. 57), Do gado (p. 59), Das sementes (p. 74) e De

outras comidas (p. 82), em que o prévio esboço sobre o Seridó é enriquecido pelo

aprofundamento do “cardápio” regional em um processo, inclusive, bastante utilizado

na escrita lamartineana: a concentração dos temas em volta do trabalho.

A partir da entrada dos “marinheiros” na terra, por exemplo, vai-se

desenvolvendo a importância da água para a sobrevivência não apenas como

recurso fundamental para a manutenção das populações seridoenses, mas

enquanto elemento principal de uma série de trabalhos que envolvem o seu

abastecimento, manuseio e purificação:

A água é que garante a fixação e do chão é que tinham que tirá-la para o

gasto dos homens e dos bichos, durante os oito meses de seca. E nem

sempre era fina e leve; algumas pesadas, salobras e turvas, parecendo

mais, na cor, caldo-de-cana. Ocasionalmente, quando algum serrote ou

algum lajedo apresentava maior cavidade – tanque – capaz de juntar as

águas da chuva ou que para ele corriam – era e ainda é, limpo, varrido e

coberto, de modo a serem dali carregadas ou servirem para, em derredor,

lavar roupa. (FARIA, 1980, p. 57)

Os cuidados de higiene eram rudimentares, como rude era e ainda é a vida

por aqueles mundos. A cacimba de beber – assim chamada a de uso das

pessoas – é, diariamente, esgotada, seca da água velha, e contida em uma

armadura de tábuas ou um pote perfurado com tampa também de madeira.

Assim fazem, para os bichos do mato e as criações nela não chafurdarem.

Em casa, a água é coada na boca do pote em um pano de algodãozinho e

nela ainda alguns colocam pedações de enxofre. Dizem que faz bem à

saúde e impede a criação de martelos! Os potes e jarras são tampados com

um testo de tábua em alça; a caneca, neles mergulhada para tirar água,

costuma ser de flandres, provida de comprido cabo e tendo os bordos

dentados para evitar que alguém, menos avisado, nela venha a beber.

Algumas canecas mais engenhosas tinham sistema de pipeta. (FARIA,

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1980, pp. 58 - 59)

As exposições nesse ensaio demonstram, inclusive, que as passagens

mais objetivas do escritor são amparadas por costumes e/ou objetos, predominando

o dado físico de sua existência vinculado a algum tipo de trabalho. Podemos

identificar que nos fragmentos citados a escassez da água é desenvolvida na

descrição das fontes salobras e do cuidado com os reservatórios mais potáveis, e

que a higiene “rudimentar” é explicada pelos vários processos e aparatos do uso

comum da água.

Essa observação vem a tempo de ampliar nossa análise do ensaio

lamartineano, pois ao lado da ligação entre tempo, história e memória, que pode ser

observada pela oscilação da objetividade do autor, há uma linha orientadora da

escrita que atravessa, portanto, o universo material.

Inclusive, ela seria perceptível em praticamente quaisquer excertos,

independentemente do grau de seriedade ou da contaminação subjetiva. O

afastamento temporal obriga o escritor a completar lacunas da História com

conjecturas, enquanto a aproximação amplia o repertório de registros e memórias

coerentes com o tema, mas em ambos os casos há “ferramentas” e “técnicas” como

meio de caracterização na escrita de Lamartine:

Lá uma vez perdida, quando em uma caçada mais feliz, conseguiam abater

carne capaz de fartá-los, ou o tinguijamento de algum poço deixava

coalhada de peixe toda a água – surgia o problema do sobejo da comida a

preservar para o amanhã. Recorriam, provavelmente, ao moquém, i.é,

numa grelha de varas à moda jirau, erguida sobre um braseiro, faziam o

peixe ou carne assar ou secar. […] (FARIA, 1980, p. 61)

Logo, compreendemos que objetos e costumes não se comportam como

indicadores do grau de subjetividade e objetividade, mas assumem papel estratégico

na construção de sentidos, dando ritmo e assunto para o projeto maior de

“preenchimento” da cultura e História sertaneja seridoense por suas atividades

produtivas. Desse modo, basta retomar algum trecho de desvio da objetividade pelo

adensamento da voz subjetiva do escritor, e que seja rico em informatividade, para

observarmos isso:

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O trabalho mais pesado e penoso era o de alavanca. Carecia o homem ter

tutato para agüentar o erguer, o ferir a terra e aluir barrancas ao peso de

uma barramina. Quando a escavação tinha maior fundura, tinha vez que os

paleadores faziam foguetão, sacudindo a terra a grande altura. A pá

cambalhotava no ar e tornava às mãos do cassaco enquanto o bolo de terra

subia destacado e ia cair no alto da barranca. Fazia gosto espiá-los nesse

malabarismo... (FARIA, 1980, p. 37)

Encontramos nesses dois excertos níveis compatíveis de definição e

diferentes em intenção, o que comprova a sua não-correspondência. E, com esse

esclarecimento de mais um dos atributos chave dos ensaios lamartineanos,

conseguimos alcançar com certa tranquilidade as diferenças globais entre os dois

textos até agora discutidos sem incorrermos em explicações baseados

simplesmente em influências de outros escritores sertanistas.

Açudes dos sertões do Seridó (1978), por tratar de processos da

construção dos açudes, de trabalhos coletivos que envolviam necessariamente o

convívio social, aparenta possuir menor grau descritivo com a mistura de descrição e

narração, enquanto Conservações de alimentos nos Sertões do Seridó (1965), em

alguns trechos, observa recursos em equilíbrio com seus modos de preservação e

preparo, a nosso ver, por se tratarem de situações menos socializadas e de trabalho

artesanal praticamente caseiro.

Essa diferença é bem relevante entre as subdivisões do ponto 2, com a

origem e mudanças de conservação dos recursos da caça/criação, contemplando

envolvimentos sociais diferentes da influência indígena e dos currais de gado

levantados pelos “marinheiros”. Os modos de aproveitar os recursos animais (carne,

leite, gordura e sangue) são evidentemente díspares ao compararmos os trabalhos

de perseguição e luta pelo sertão com os que não privilegiam o deslocamento, mas

sim o sedentarismo.

Entendido isso, Do gado (p. 59) começa com uma elaboração das

origens da conservação da caça e passa a explicar a paçoca. Por ser a “ração de

guerra” ou de jornada, seu preparo é praticamente improvisado e sua explicação

sugere um aprofundamento maior nos motivos da pressa que na importância da

receita:

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Carne pilada com farinha e pimenta, queijo ou rapadura – preparada de um

jeito ou de outro, paçoca de carne ou piracuí – paçoca de peixe –

constituíram as rações de guerra dos caboclos brabos que pelos sertões

vagavam. Arremedaram-nos os vaqueiros, conduzindo-as aos alforjes

quando tinham de dar campo mais longe de casa; também os comboieiros

nas suasjornadas pelos caminhos da caatinga e mais tarde os viajantes dali

ou que por ali passaram. Até o tocaieiro, na espreita, espera, tocaia, onde

se deixavam ficar horas e dias aguardando a passagem da caça – bicho do

mato ou mesmo do bicho-homem... (FARIA, 1980, p. 63)

Já a carne de sol, surgindo logo depois, pressupõe maior cuidado e

diversos processos que por si sós têm sentido. Sua finalidade é a base alimentar do

sertanejo, residindo sua riqueza cultural no modo de preparo. Dessa forma, o

descritivismo acaba tomando o foco, e o ensaio muda sua forma para quase uma

receita culinária:

a) A rês é morta a bala (com um tiro no redemoinho da testa), machado,

marreta ou chuçada no cabelouro sendo, logo em seguida, sangrada.

b) Risca-se, pela barriga, o esquadrejamento para tirar o couro. O fato

(vísceras) é retirado logo – diligência necessária para a carne ficar cheirosa.

Completa-se a tiragem do couro.

[…]

g) Despencada a carne é, em seguida, golpeada nas partes mais grossas –

ao correr da manta – e salgada com sal fino. Para uma rês de 10 arrobas

são necessários de 25 a 30 k de sal. (FARIA, 1980, p. 65)

São nesses exemplos em que Lamartine decide esmiuçar algum assunto

que se aproxima de “textos técnicos” e o seu lado criativo parece mais distante, mas

é fundamental perceber que o “modo” como o apresenta também contém escolhas

criativas. Seguindo, por exemplo, a “receita” da carne de sol, chegamos a um ponto

em que, sem fugir do assunto, o escritor associa ao processo comentários do modo

de fazer antigo, quebrando momentaneamente a linha objetiva do preparo:

j) Mais para trás, contam os mais velhos, quando o fazendeiro ainda não

tinha o hábito nem as facilidades de transporte que lhe permitiam o

abastecimento semanal nas feiras das “ruas” sertanejas – matavam antes

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do cair das carnes, para comer até a pegada do inverno vindouro. A carne

depois de preparada, como ainda hoje se faz, era empilhada em caixotes ou

malas de couro, em camadas sobrepostas, entremeadas de sal, ficando as

faces gorda com gorda e carne com carne. Assim estocadas duravam por

todos os meses de seca. Quanto às de hoje, dado o consumo mais

imediato, suportam bem de um a dois meses. (FARIA, 1980, p. 66)

Quanto mais se aprofunda nos processos desse ou daquele recurso, o

escritor amplia o alcance do tema com “recursos vizinhos” e diminui a aparência de

manual, tornando o seu ensaio um espaço de experiências múltiplas de

conhecimento do Seridó:

Da carne de porco pura, temperada ou misturada com outras, também

faziam e ainda fazem por lá a lingüiça. Atividade caseira que pouco ou nada

varia das usanças de outras ribeiras. Talvez, de tudo, valha lembrar apenas

a originalidade do apelido de espeto-de-virar-tripa dado às pessoas

lazarinas, i. é., magras e altas, em alusão à vareta usada para esse fim na

manufatura da lingüiça... (FARIA, 1980, p. 67)

Assim, o escritor procura manter seu discurso “balanceado” entre

“explicações práticas” e curiosidades, episódios interessantes, exemplos diversos

etc. Sendo um dito popular que enfatize um motivo, uma pausa para

esclarecimentos lexicais, ou mesmo uma mudança de curso temporária, tudo

concorre para a formação do ensaio lamartineano. E ainda faltaria a observação de

que o destaque mais instrumental das fases de cada processo de conservação dos

alimentos não ocorre apenas por sua complexidade, mas por se tratarem de

discursos citados de outros sertanejos:

As receitas aqui transcritas nos foram fornecidas por Pery Lamartine

(Hypérides), filho, neto e bisneto dos Gorgônio da Timbaúba (Caicó, RN) –

onde gerações se criaram nas lides do pastoreio, ao redor de um tacho,

fazendo queijo para guardar e, mais recentemente, para os mercados da

praça. (FARIA, 1980, pp. 67 - 68)

Com isso, Lamartine busca, em cada divisão dos alimentos, apontar para

“especialistas” que, de alguma forma, completem o sentido de suas explicações e,

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consequentemente, distribui suas contribuições com mais atenção. Não se trata

apenas da explanação dos resultados de pesquisas realizadas pelo escritor, mas um

modo de povoar os trabalhos sobre a alimentação com testemunhas desse assunto

escrito:

O informante, Pery Lamartine, diz que “é conseguida através da fervura do

soro-de-queijo que sob ação do calor faz soltar uma espuma; recolhida a

mesma com uma cuia, é posteriormente levada ao fogo para apurar. Esta

última operação é demorada pois requer toda atenção a fim de evitar que o

produto fique com gosto de queimado. (FARIA, 1980, p. 72)

Nos anos bons de inverno, o macássar, de ciclo maior, 3 meses, foz o

sertanejo sentenciar: “Plantar em S. José (19/III) para colher em S. João

(24/VI)...”

“Se plantam em janeiro

e a chuva não falta,

não tendo lagarta,

até fevereiro,

vai logo estendendo,

o milho crescendo,

já no fim de março,

não tendo em baraço,

alguns vão comendo.

No fim de abril até maio,

já é enorme a fartura,

já estão batendo feijão,

tem muita fava madura,

dão princípio a virar milho,

está a lavoura segura.” (FARIA, 1980, p. 77)

Tanto o apoio de artesão dado por Pery Lamartine quanto a sentença de

discurso coletivo desvelada pelos versos de João Martins de Athayde entram no

ensaio, por exemplo, como parte do diálogo que constitui uma das dimensões

fundantes da linha textual. Ao lado das relações que envolvem o grau de

objetividade e o uso dos recursos materiais, há ainda uma terceira linha, mais

contínua, da presença do “outro”, que não é completada simplesmente pela sua

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menção, mas por relações dialógicas. Segundo Bakhtin:

[...] a relação dialógica não coincide de modo algum com a relação existente

entre as réplicas de um diálogo real, por ser mais extensa, mais variada e

mais complexa. Dois enunciadores, separados um do outro no espaço e no

tempo e que nada sabem um do outro, revelam-se em relação dialógica

mediante uma confrontação do sentido, desde que haja alguma

convergência do sentido (ainda que seja algo insignificante em comum no

tema, no ponto de vista, etc.) (BAKHTIN, 1997, p. 354)

Por uma visão dos trabalhos que envolvem o tema, e construída sua linha

enunciativa pela leitura e reescrita de outras vozes que deles falam, percebemos

mais uma estrutura fundamental do ensaísmo lamartineano. A terceira linha

orientadora de seu discurso, que caminha pelo universo real e seus dados físicos,

dispõe do diálogo que o autor mantém com pesquisadores, poetas e testemunhas

históricas, mas também com outros autores sertanistas não mencionados e que

“dialogam” com a obra lamartineana. Não apenas em nível mínimo de resposta à

enunciados anteriores, seu dialogismo ocorre inclusive conscientemente, na

presença de vários modos de citação e na mistura da voz de Lamartine com as

explicações de seus “informantes”:

Acrescenta ainda o informante que, na época da pastagem madura, quando

o leite apresentar maior teor gorduroso, um queijo que gasta na sua

manufatura duas garrafas de manteiga, devolve três.

E diz: “A borra é o resíduo que sobra da manteiga depois de apurada. Tem

aspecto de cera de abelha ordinária, embora apresente cheiro e sabor

agradável e característico.”

Na luta do queijo, a borra vai sendo juntada diariamente em vasilha de

barro, para depois ser submetida a um tratamento próprio, a fim de soltar a

manteiga que nela esteja entranhada.(FARIA, 1980, p. 73)

Apenas nesse exemplo, podemos encontrar três modos de citação:

discurso segundo no primeiro parágrafo, citação direta no segundo, e uma

possibilidade de discurso indireto livre no terceiro; o que também é facilmente

observado em outros trechos devido à presença mais concentrada de testemunhos

ao longo do ensaio. É justamente pela escrita sempre em contato com vozes do

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sertão, em uma costura constante do eu e do outro, que o texto segue seu

desenvolvimento até o último ponto da etapa sobre cada um dos recurso do Seridó.

De outras comidas (p. 82), por tratar da última classificação em escala de

importância, apresenta uma mudança no tom explicativo e perde seu vigor, voltando

ao equilíbrio com a tendência narrativa da redação lamartineana:

É, no Seridó, uma cultura típica de vazantes, de vez que é feita nos meses

de seca, quando os rios apartam as águas e os açudes principiam a

descobrir terra de planta. As batatas de açude são tidas como mais

saborosas e melhores, embora nos mercados não sertanejos sejam menos

preferidas; é que exteriormente são mais sujas, dado o solo mais argiloso

do açude. As vazantes do rio, ao contrário das de açude, reclamam

adubação. O matuto recorre ao estrume de curral para fertilizá-las. Nas

imediações da Serra do Bico da Arara (Acari, RN) também plantam com

estrume de andorinha, de melhor rendimento, e procedente da Furna das

Andorinhas (Serra do Bico). (FARIA, 1980, p. 82)

A mudança, como observamos, ocorre pelos recursos “outros” sugerirem

menor necessidade do registro de seu processamento, assim como menor

frequência de sua produção no sertão seridoense. Essa tese se adensa quando o

autor discorre sobre a farinha e a rapadura, que são duas bases alimentares do

sertanejo potiguar e, no entanto, vem geralmente de outros lugares:

A farinha de mandioca é que fazia e faz o grosso da mistura da mesa

sertaneja. É parelha para carne (paçocas), pirão, rapadura, banana e até

café.

A lavoura de mandioca sempre foi mingüada por aquelas brenhas e se fazia

mais nas chãs de algumas serras. O gasto é completado pela que vem

trazida de longe, dos Brejos ou do Agreste. Naquele tempo, dada a maior

dificuldade de transportes, era entesourada em enormes caixões de

imburana ou cumaru de onde saía para o gasto de cada dia. (FARIA, 1980,

p. 83)

Mas a rapadura afamada, de primeira, clara, de bom doce, vem de longe,

transportada ainda ontem em lombo de burro e hoje no espinhaço do

caminhão; é a do Cariri cearense. Têm formas diversas, variando o tamanho

com a região de origem; as mais afamadas são: cariri (CE), bancos (Seridó,

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RN) e japecanga (S. José de Mipibu, RN). Variam de peso, forma, cor e

sabor. (FARIA, 1980, p. 85)

Com essa organização hierárquica dos recursos nutricionais

apresentados pelo ensaio, fica ainda mais explícito o vínculo de Lamartine com os

processos produtivos que envolvem os temas que trabalha. As páginas seguintes

mostram, dessa forma, tabelas relativas ao crescimento populacional,

comercialização dos rebanhos e plantações, assim como dados pluviométricos. Fica

para o final ainda um glossário de nomes científicos de cada espécie da flora

regional citada, uma preocupação crescente do autor, que tenta englobar cada traço

do vocabulário regional já não tão costumeiro aos sertões mudados ou mesmo para

além das fronteiras da terra. Seus esforços de “catalogação” ao longo do texto são

mais uma vez voltados para explicar termos que possivelmente escapam do

conhecimento geral de algum leitor futuro:

IDENTIFICAÇÃO DAS PLANTAS CITADAS

ALGODÃO MOCÓ – Gossypium purpurascens Poir, fam. Malváceas.

ARROZ – Oryza sativa Linn., fam. Gramíneas.

AVELÓS – Euphorbia gymnoclada Boiss., fam. Euforbíceas.

BANANA – Musa paradisiaca Linn., fam. Musáceas.

BATATA DOCE – Ipomoea Batatas Poir., fam. Convolvuláceas.

BELDROEGA – Portulaca oleoracea Linn., fam. Portuláceas. (FARIA, 1980,

p. 95)

Assim sendo, mesmo com a menor prioridade de explicações, seguida de

conclusões concentradas em dados estatísticos e referências científicas, é patente o

efeito da terceira linha na escrita do ensaio, a do diálogo. Lamartine insiste em

terminar seu estudo com dados de outras pesquisas, e garante mesmo a precisão

das espécies abarcadas na discussão.

Podemos, finalmente, identificar com segurança nos padrões de

afastamento e aproximação do autor a manifestação de outras vozes que

completam o “povoamento” das etapas da História em que Lamartine, por motivo

temporal ou de não vivência direta, se omite. Sua perspectiva ensaística passa por

memórias, pelo progresso do próprio pensamento do autor e por outras pessoas.

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Não vemos o “sertão do nunca mais” apenas no presente, mas no

momento em que cada voz se pronuncia pelas palavras do escritor. Seu tempo é

renovado no ato de contar o que se passou “ontem”, e cada nome esquecido ganha

um rastro de vida ao receber um espaço na história.

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4.3 Terceiro Ensaio

Escrito em parceria com Hypérides Lamartine (um dos “especialistas”

consultados para a produção de Conservação de alimentos nos Sertões do Seridó

um ano depois), o estudo sobre a fauna apícula do Rio Grande do Norte é o menor

ensaio da coletânea analisada e, consequentemente, o em que o escritor parece

demonstrar menor intimidade com o tema. Isso se evidencia não apenas pela

necessidade de um coautor, que não se manifesta ao longo do texto além do recurso

da primeira pessoa do plural, mas pelo caráter de pesquisa ser marcado em cada

etapa do desenvolvimento ensaístico.

Essa perspectiva é proporcionada tanto pelo uso praticamente unânime

de testemunhos de outros e o quase apagamento da presença histórica do escritor,

quanto pelo fôlego reduzido e mais objetivo de sua redação. Diferente de todas as

outras obras reunidas para Sertões do Seridó, a publicação de Algumas abelhas dos

sertões do Seridó (1964) torna-se significativa no repertório de Lamartine por,

inicialmente, caracterizar o extremo de afastamento identitário do autor com o

assunto, pois se posiciona enquanto coletor de informações bem mais do que

testemunha ocular.

Tal distância poderia, entretanto, se diluir na importância secundária da

“caça do mel” no estado, que, segundo o próprio ensaísta, ocupa quase sempre a

esfera do extrativismo ocasional. Porém, essa informação apenas aclara o lugar da

apicultura na memória coletiva do Seridó, não diminuindo a relevância do contraste

que nos oportuniza.

Além de um registro da História seridoense, o ensaio das abelhas permite

uma leitura do papel da proximidade pessoal na escrita lamartineana e quais

recursos se explicitam em um contexto limite. Retomando as manifestações da

presença subjetiva do autor já estudadas em seus dois ensaios precedentes, é

possível compará-las com as soluções encontradas ao longo das 14 páginas do

texto que agora desvendamos:

José Lourenço da Silva, uma das derradeiras sementes dessa nação de

gente que está se finando, já setentão (1971) só se arredou do trabalho

quando o sangue aguado de leucemia roubou suas últimas sustâncias. Em

suas terras, sob as suas telhas, nas quebradas da Serra Branca (Riachuelo,

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RN), colocaram em suas mãos calosas a vela do derradeiro adeus...

(FARIA, 1980, pp. 31 - 32)

O Lunário não diz mas, tenho para mim, que o processo de conservação da

carne pelo sol, sal e vento – é artimanha comum à grande parte dos

viventes das terras secas, fartas de sol e de menor umidade atmosférica. E

tanto assim é que, C. SANZ ENGAÑA (Enciclopedia de la carne), citando

Obermaier, faz observar: […] (FARIA, 1980, p. 64)

Hoje, até nos anos bons de inverno, dizem os mais velhos, é fácil perceber,

mesmo a olho, a rarefação de abelhas nos pés-de-pau floridos, como ainda

ontem era visto e cantado:

“Quando chove as abelhas

Começam a trabalhar:

Moça-branca e a pimenta,

Mandaçaia e magabá;

Canudo, Mané-de-abreu,

Tubiba e arapuá. […] (FARIA, 1980, p. 108

As diferenças mais evidentes entre os trechos 1 e 2, destacados

respectivamente do primeiro e segundo ensaios, e o 3, presente no ponto II das

Abelhas, não aparecem na escolha das “vozes outras” do sertão e reorganização

para a linha argumentativa do ensaísta, mas em seu emprego. O primeiro caso é de

uma presença que ocupa a reflexão do ensaísta, que por sua vez se torna

biógrafo/contista, absorvendo o indivíduo citado; o segundo mostra a perspectiva

pessoal do ensaísta, fortalecida na leitura e comentário de outros autores; o terceiro

não exibe a presença de Lamartine, mas dá relevância aos “mais velhos”, que

absorvem o discurso do ensaio por um breve momento.

Conforme analisamos o caráter dialógico da escrita lamartineana, tais

recursos surgem no centro da redação ao completarem espaços de “testemunhos

exemplares” que o escritor, por alguma razão, não assume. São, portanto,

inicialmente dados mais próximos da curva inferior na oscilação da presença

pessoal do escritor, e ocupam o espaço das contaminações subjetivas do discurso

enquanto “terceira pessoa”, ou seja, assunto de alguma recordação do ensaísta:

“José Lourenço da Silva, uma das derradeiras sementes dessa nação de gente que

está se finando […]” (FARIA, 1980, p. 32).; ou enquanto “interlocutor” necessário

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para o desenvolvimento textual: “[...] E tanto assim é que, C. SANZ ENGAÑA

(Enciclopedia de la carne), citando Obermaier, faz observar [...]” (FARIA, 1980, p.

64).

Em todos os outros casos, em que a presença da voz do outro indica a

sua posição de testemunha de modo dominante, o escritor mentem-se organizador

dos relatos, construindo o sentido geral de seu pensamento:

Francisco Julião (fz. Lagoa Nova, S. Paulo do Potengi, RN), tem para ele

que: – “qualquer mel quente embebeda; ou então estando no tempo da flor

da maniçoba ou da flor-de-seda. Já Arthephio Bezerra (Serra Negra do

Norte, RN) acredita que a embriaguez é causada unicamente pela flor da

maniçoba. (FARIA, 1980, p. 110)

Essa presença de discursos outros entre os três ensaios nos mostra que

o emprego como testemunho ou assunto, na posição de sujeito ou parte de uma

memória, muda também o lugar do escritor em seu texto. E, com isso, encontramos

um “sertão sem mel” (p. 108) do enunciador em plural que dá espaço aos que

tiveram a experiência em primeira mão:

Poucas abusões conhecemos ligados aos caçadores de abelhas. Uma mais

estranha e que parece comum a todo o sertão nordestino, é a de que o mel

da abelha limão, tirado no mato, tem de ser comido em silêncio. Se um dos

tiradores, acabada a refeição, diz para o outro: – “Vamo imbora”, fica

completamente bêbado, lançando e areado. De alguns sertanejos ouvimos

essa afirmativa como verdadeira, embora nunca tivéssemos oportunidade

de testemunhá-la. A literatura regional registra o fato nos sertões cearenses.

(FARIA, 1980, pp. 109 - 110)

A presença do escritor assinala o evento como observador, mas não é

sensível seu envolvimento da mesma forma que em outras situações nos ensaios

precedentes. Não há o elemento da memória vindo do ensaísta, que passa pelo

cenário sendo leitor, ouvinte, e testemunha ocular circunstancial:

Vale anotar como curiosidade o fato de que fomos testemunhas, mais de

uma vez, quando em suas atividades agrícolas, esbarravam com uma

“casa” de boca-torta. Mesmo sem se protegerem, algumas vezes até nus da

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cintura-para-cima, limitavam-se a passar as mãos nos sovacos e,

devagarinho, aproximá-las da “casa”, até esmagá-la, esfregando uma na

outra, sem sofrer uma única ferroada. (FARIA, 1980, p. 109)

Resta à redação com substância criativa, que ressignifica as explicações

em linha narrativa, o fator de proximidade do autor com o tema. Fazendo de sua

pesquisa história/estória, escolhe modo praticamente cênico de dar corpo aos

processos e, cercando-os com comentários menos objetivos, ainda os mantém entre

dois vazios de tradição mais ampla:

Faz de conta que seja uma jandaíra... Espiam uma a uma as que bebem e o

rumo que tomam de volta. Sentem a direção do vento. Atentam para a altura

do vôo. Andam algumas braças naquele mesmo rumo e, de novo, botam

sentido na passagem delas. Vêem passar a primeira, a segunda, a

terceira... está confirmada a direção. Adiantam-se outras tantas braças e

recomeçam o balizamento... E de lance em lance, vão bater no pau em ue

está situada a jandaíra. Nele botam o ouvido, auscultando-o com pequenas

batidas e chegam a “diagnosticar” se é morada velha, se está gorda ou

magra. As pobres de mel são chamadas magras, tanto assim que o enxu,

em certa época do ano que tem pouco mel e abundante ninhada de larvas,

serve de comparação aos indivíduos de família numerosa. “Fulano tem fio

que só enxu magro”... (FARIA, 1980, pp. 110 - 111)

Pelo estilo, que associa linha objetiva com informações que a desviam,

que tece citações documentais com ditos populares e conjecturas, e que controla

observações do “pesquisador” e as cenas construídas do “narrador”, Lamartine

alcança a estrutura necessária para seu estudo menos íntimo.

Desse resultado, encontramos sua escrita compensada em consequência

da falta de interferências pessoais e desvios longos. Seu desenvolvimento é

enriquecido pela associação incomum de informações secundárias (o caso de ter

“fio que só enxu magro”), escolhas lexicais da região (como “lançar” e “arear” na

explicação do mel da abelha limão), e uso de discursos alheios, ou mesmo do nome

e vida de sertanejos, como vozes daqueles tempos:

Os mais curiosos conhecem tim-tim por tim-tim o mundo que os cerca.

Sabem de cor as madeiras que se apresentam mais freqüentemente ocadas

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– a imburana, a catingueira e o cumaru – morada natural das nossas

abelhas silvestres. E a literatura oral comprova essa preferência:

“Xique-xique é pau de espinho,

Imburana é pau de abelha;

Gravata de boi é canga,

Paletó de negro é peia...” (FARIA, 1980, p. 111)

Em serra Negra deitaram fama e ainda hoje são lembrados os feitos dos

rastejadores como o negro velho Donato (nasc. 1857 - fal. 1952), escravo

de Manoel Pereira Mariz (faz. Solidão) e do velho Marcolino Fidelix (? -

1890). (FARIA, 1980, p. 111)

Assim sendo, o Seridó torna-se vivo, com esse tema pouco comum em

sua tradição, pelas ligações da escrita ensaística em trajeto vacilante. Tendo poucas

informações e o auxílio de questionários distribuídos em várias cidades (o que é

lembrado em agradecimento no fim do estudo), Lamartine estrutura Algumas

abelhas dos sertões do Seridó em 5 pontos: Geografia e povoamento (p. 107), que

contempla uma descrição simples da região, a origem indígena da caça de abelhas,

a modificação do ambiente pelo algodão e a diminuição da fauna apícula; O sertão

sem mel (p. 108), que se ocupa tanto dos motivos e efeitos da rarefação do mel,

quanto de toda a exposição dos meios tradicionais da caça e criação (contando com

vários fatores secundários), e coloca em perspectiva a produção de cada espécie e

o trabalho de várias personalidades daquele tempo; As perguntas e as respostas (p.

114), que compõe as conclusões parciais do estudo e algumas observações das

lacunas ainda necessitando estudo; O que se conclui (p. 116), que fecha a

argumentação sobre a situação arriscada da epifauna regional por retomadas

pontuais do que foi demonstrado ao longo do texto; e finalmente As abelhas na boca

do povo (p. 116), uma pequena lista de expressões relativas às abelhas que são

registradas na fala popular.

Esse último ponto, inclusive, deixa mais convincente o afastamento do

autor pela falta de familiaridade, pois ele mesmo destaca que: “O adágio e as

comparações do linguajar sertanejo são pobres no falar de suas abelhas. Dos

poucos que conseguimos arrebanhar, a maioria foi coletada por Leonardo Mota.”

(FARIA, 1980, p. 116).

Mas em poucas páginas e de modo tímido, identificamos mesmo assim os

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traços além e aquém da fronteira íntima do ensaísta, que, de formas diferentes,

consegue reestruturar o Seridó dos arredores de sua memória às veredas por que

menos tenha trilhado. Emprega conhecimento por experiência pessoal ou por

leitura/escuta de modo a reviver o passado da região, e o faz buscando os

sertanejos. A presença humana é o dado frequente de sua escrita, e o caminho que

assegura seu desenvolvimento.

Podemos assim considerar que, independente de sua distância, há a

identificação do sertão com algum de seus habitantes, e essa ligação é um dos

elementos norteadores do enriquecimento textual em Lamartine. Não basta relatar

dos temas o que eram e como existiam, pois cada um caminha para o aclaramento

de quem os conhecia e por que fazem parte da memória de tantas pessoas.

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107

4.4 Quarto ensaio

Publicado pela primeira vez em 1961, três anos antes de Algumas

abelhas, A.B.C. da pescaria de açudes no Seridó (pp. 121 - 156) é um dos ensaios

mais bem elaborados da obra lamartineana. Embora curto, sua estrutura se destaca

por nos trazer um fator incomum, a utilização de um acróstico das letras do alfabeto

para destacar seu andamento. Essa escolha, no entanto, não é apenas estilística,

pois recorda os versos de abecê cantados no interior do estado, uma forma popular

de literatura oral cultivada aqui, mas com origens antigas:

Designa as composições poéticas nas quais certas letras formam uma

palavra ou frase, no geral um nome próprio. Quando se juntam as letras

iniciais, tem-se o acróstico propriamente dito, que se lê na vertical, de cima

para baixo ou no sentido inverso. […] Quando as primeiras letras compõem

o alfabeto, tem-se o abecedarius […] ou o acróstico alfabético. […] Poesia

de circunstância, expediente típico de poetas menos inspirados que

virtuoses, o acróstico remonta à Antiguidade greco-latina. (MOISÉS, 2013,

p. 11)

Porém, não é apenas no sentido poético, mas pelo seu caráter didático,

que Lamartine utiliza tais recursos. É a retomada do “abecê” enquanto “primeiros

passos”, noções básicas de qualquer ciência, o que se destaca desde a dedicatória:

“À memória de BONATO LIBERATO DANTAS (1897-1955) que, nos serões da

Fazenda Lagoa Nova, em 1943, nos explicou, tim-tim por tim-tim, como pescava nas

ribeiras do Seridó […]” (FARIA, 1980, p. 123). O escritor passa essas histórias

adiante, caminhando metodicamente pelas noções gerais da pesca, invadindo a

rotina dos mutirões e definindo cada função, etapa e impacto sócio econômico da

atividade.

O resultado é um texto organizado de “A” a “C” por mais uma descrição

do Seridó (A), um resumo da História desde o período das sesmarias (B), e como se

chegou aos açudes pela evolução do represamento das águas (C); de “D” a “F”,

explicando a origem da pescaria na região (D e E) e seus processos gerais (F); de

“G” a “R”, observando detidamente todas as funções de cada participante da pesca;

por “S”, que se demora nas ferramentas utilizadas pelos pescadores; de “T” a “U”,

que trata da rentabilidade da piscicultura nos açudes; de “V” a “Z”, pontuando o que

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resta dizer de peixes de outras regiões pescados no Seridó; e, por fim, “Y” (com um

til), apresentando uma lista de peixes do Seridó como despedida.

Ao analisarmos, essa estrutura se repete em outros estudos do autor,

tanto que pode ser repartida em 5 etapas até aqui recorrentes: descrição do sertão,

origem histórica (provável) do tema, progressão desse tema (com pausas ou desvios

não-objetivos), conclusões desse percurso e crítica da “situação atual”,

tabelas/glossários ou qualquer outro texto de referência.

Portanto, o que se sobressai no presente ensaio é sua organização maior

em escala lexical, devido a necessidade de cada ponto iniciar pela letra seguinte do

alfabeto. Seu maior efeito é gerado da preocupação estética que interfere nas

formações sintáticas do autor. Principalmente nos pontos que iniciam com as letras

mais incomuns, parece se equilibrar por escolhas criativas:

Kalendário de pescaria nos açudes principia com a catimbóia feita de

garranchos secos. A madeira verde só é empregada na falta de outra

porque, azedando com a água, torna-se pouco procurada pelo peixe.

(FARIA, 1980, p. 131)

Xistoso é o peixe pirarucu. Trazido em 1942 para as águas daqueles

sertões, tem desovado em milhares e crescido a ponto de já terem pescado

deles com 120 kg de peso e 2,20 de comprimento. Como peixe miúdo e

camarão. No Amazonas ele é arpoado quando sobe para respirar. (FARIA,

1980, p. 140)

Zoada de fazer o coração dar pinotes e bater mais acelerado é quando a

catraca estala com peixe fisgado e o pescador ainda não sabe o tamanho

de quem está na outra ponta da linha.

Ferrado, o pirarucu pula fora dágua, ficando com o corpo todo à mostra,

sacudindo a cabeça de mandíbulas escancaradas lutando para escapulir.

(FARIA, 1980, p. 140)

~

Y “Hipicilone e til/Juntei ambas para o fim” com um apanhado da ictiofauna

sertaneja, melhor enumerado na tabela do príncipe dos poetas populares –

Ignácio da Catingueira […] (FARIA, 1980, p. 141)

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Assim, nos pontos K, X e Z identificamos verdadeiros “malabarismos” com

as soluções de Lamartine, que, percebendo as formações incomuns, coloca notas

para os dois primeiros exemplos: “Kalendário – Nos tradicionais ABC (poesia popular

mnemônica narrativa), a estrofe que se iniciava a letra “k”, comumente o fazia com a

palavra “kalendário”. (FARIA, 1980, p. 131), “Xistoso – esquesito.” (FARIA, 1980, p.

140).

Já em Y, a letra inicial é destacada, e sua coerência garantida pela citação

de versos de fechamento tradicionais (“Hipicilone e til/Juntei ambas para o fim”),

seguidos de nota retirada de Cascudo:

Nas velhas cartas de ABC, depois da última letra, havia o til. O sertanejo

recitando o alfabeto nunca esquecia de citar o sinal que lhe parecia uma

letra também. Todos os versos de ABC, por este motivo, incluem o til. Como

não é possível arranjar-se tema com ele, aproveitam para uma frase de

ironia, uma despedida, um motejo […] (apud. FARIA, 1980, p. 141)

São esses os casos mais evidentes de adequação, sendo necessárias

algumas explicações extratextuais, mas, por boa parte do ensaio, é possível

distinguir consequências do acróstico no nível das orações: “Cordão de pedra

esbarrando a carreira de algum riacho [...]” (FARIA, 1980, p. 126), “Gabados são os

açudes bons criadores de peixe […]” (FARIA, 1980, p. 128), “Homem de

merecimento tem de ser o chamado dono da percaria ou das redes.” (FARIA, 1980,

p. 130), “Importância maior é a da prova do açude para as negociações de compra.”

(FARIA, 1980, p. 130), “Redobrado é o trabalho quando sucede haver locas em

serrotes submersas onde o peixe se acoita.” (FARIA, 1980, p. 135), “Sortidos são os

apetrechos que usam os pescadores sertanejos:” (FARIA, 1980, p. 135).

A obrigação de acomodar cada letra inicial desses pontos em orações

mais ou menos espontâneas leva Lamartine a uma inversão dos termos, motivo pelo

qual o hipérbato demonstra-se tão recorrente respectivamente no primeiro parágrafo

das divisões, mas não nos subsequentes.

Com esses elementos somados à estrutura ensaística do autor, sua

composição supera a barreira de escrita criativa ser mais visível apenas em trechos

subjetivos, de desvios não-objetivos e pela contaminação da memória por tom

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saudosista. O cuidado com as palavras demonstra ser de outra ordem, juntando o

estudo com o jogo retirado dos versos de ABC, e assim diminuindo a linha que

separa “seriedade” e “criatividade”.

O ensaio sobre a pesca é, portanto, o único da coletânea em que a

oscilação criativa do autor pode ser traçada como 4a linha guia do texto, pois além

de desvios da orientação argumentativa geral já observados na escrita lamartineana,

o componente de “A.B.C.” se mantém por todo o desenvolvimento.

É fator estilístico, mas também retomada da tradição, quando explorado

de acordo com a leitura de cada traço da pesca no Seridó. Abrange as duas esferas

por acompanhar estruturalmente a intenção de ser um guia de pescaria comum da

região, elaborando para leigos as primeiras noções de sua arte:

Faz-se a pescaria de açude por processos mais ou menos idênticos, pouco

variando com o passar dos anos. E muitos dos pescadores de hoje são

filhos de pescadores, que sentiram o despontar da barba e o engrossar da

voz ajudando os mais velhos a escalar peixe, consertar e estender as redes,

mergulhar nos porões de açudes para desenganchar uma tarrafa ou mesmo

arredando lances à beira d'água com suas tarrafas de menino. (FARIA,

1980, p. 128)

Logo, o roteiro dos açudes passa antes pela descrição do Seridó, trecho

recorrente em cada ensaio até aqui analisado, e enfoca a hidrografia da região:

Os rios são transitórios e apartam as águas no estio – ficando apenas

caminhos tortuosos nas várzeas de solo profundo, sílico-argiloso, onde se

concentra a sua lavoura-dinheiro: o algodão mocó. A caatinga é ondulada,

erodida, de solo raso e compacto, esturricado por quase 3.000 horas de luz

por ano que o escalda a 60oC nos meses de seca e varrida por ventos de 2

a 20km/hora.

Os invernos são escassos. Nos anos bons, quando sucede chover, têm de 4

a 5 meses de molhado para garantir a safra e fazer água os açudes. […]

(FARIA, 1980, p. 125)

E logo o sertanejo aprendeu que sua melhor forma de fazer economia era

guardar água em açudes. Dali tirava as vazantes para comer verde nos

meses de seca, batata para si, para as feiras e para melhorar o trato do seu

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gado. A jusante úmida onde fazer um sítio de fruteiras (coqueiro,

mangabeira, mamoeiro) e criar capim de planta para o trato dos animais.

Água onde fazer desovar e engordar peixe. Água boa e doce para a gente e

para a criação. (FARIA, 1980, p. 127)

Criado o espaço, o ensaísta passa para as origens da pesca, apontando

referências diversas que culminam na observação das influências do sertanejo:

De certo que muito antes do açude já pescavam por aquelas ribeiras. Nos

rios – quando açoitavam as cheias nos anos bons de inverno – ou mesmo

quando apartavam deixando em alguns cantos poços que guardavam água

por muitos meses. […] Espiando os métodos de pesca usados pelo

sertanejo e na tentativa de conhecer suas raízes, distinguimos:

1. Européia: tarrafa, rede, anzol, explosivos e sifão.

2. Indígena: anzol, tingui, bulha, pescaria a mão, armadilhas (jiquiás ou

covos) e espera (flechar).

Na verdade, alguns dos instrumentos de pesca acima enumerados são

comuns às duas culturas. Soluções que parecem ter surgido ao homem nas

diferentes terras sem que para isso tenha havido, obrigatoriamente, contato

entre eles. Assim, não nos atrevemos a formas rígidas de admitir uma raiz

comum para certas etnias. (FARIA, 1980, pp. 127 - 128)

Dessa forma, o tema da pesca já introduzido é refinado em seu recorte

com a exposição dos modos típicos do sertanejo:

Faz-se a pescaria de açudes por processos mais ou menos idênticos,

pouco variando com o passar dos anos. E muitos dos pescadores de hoje

são filhos de pescadores, que sentiram o despontar da barba e o engrossar

da voz ajudando os mais velhos a escalar peixe, consertar e estender as

redes, mergulhar nos porões de açudes para desenganchar uma tarrafa ou

mesmo arremedando lances à beira d'água com suas tarrafas de menino.

(FARIA, 1980, p. 128)

E, finalmente, chega-se ao trabalho coletivo da pescaria em grandes

açudes:

Apartado o inverno (período das chuvas), quando a água dos açudes baixa

de nível deixando a descoberto melhor chão para as vazantes – de

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setembro a outubro – os pescadores principiam a despesca, de açude em

açude, até que os primeiros relâmpagos ou a fala mais grossa do pai da

coalhada façam-nos então trocar a tarrafa, pelo cabo da enxada.

Pescadores profissionais de entressafra, i. é, durante a seca e agricultores,

ou de atividades diversas, nos meses de inverno. (FARIA, 1980, p. 130)

Percebe-se que nessa última etapa o texto se alarga e para de avançar

cronologicamente, se acomodando a um quadro no açude. Todas as tarefas,

diversões e testemunhos se concentram prioritariamente nele:

Juazeiro é que dá sombra boa para a gente se arranchar no sertão. Mas

pescador prefere mesmo é uma latada de rama na beira do açude. É que o

sal do trato do peixe mata os pés de pau...

Alevantado o rancho, enterram algumas estacas na beira dágua, separadas

de 2 a 4m uma da outra, para secagem e conserto das redes. Daí por diante

cada um cuida de sua obrigação […] (FARIA, 1980, p. 131)

Narração de pescaria não pode esconder a molecagem da encomendação

do corpo. É quando se prepara para mergulhar e descarregar sobre os

outros toda sorte de nome feio. Assim fazem cientes que desaparecendo da

tona d'água os que ficam encomendam-lhe o corpo, i. é, passam o troco

redobrando aos nomes recebidos. (FARIA, 1980, p. 132)

Quando surpreendidos ante a coragem suicida por mergulharem em locas

escuras e de águas turvas algumas vezes infestadas de piranhas, ouvimos

um veterano justificar-se com a mais humilde naturalidade:

– É u'a asneira, moço. A gente mergúia e vai tateando pelo rosnado da

bicha. Quanço roça nela, coça a barriga e ela se abre toda. Aí é só infincá

os dedo nas guelra e cuidá em subi. A piranha é que nem tubiba – num qué

é pancada (FARIA, 1980, p. 135)

Não são feitos desvios pela memória do autor, que em sua “história” conta

as lembranças de outros, mas, semelhante ao que se observa no ensaio sobre a

açudagem, o cenário se enche menos pelas descrições do meio que dos

trabalhadores. Às explicações de cada classe de pescadores acompanham sua

rotina e curiosidades, relegando ao final a definição detalhada de seus instrumentos

e o que escapou do quadro (curiosidades sobre peixes amazônicos e uma lista de

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fauna comum nos açudes seridoenses):

Sortidos são os apetrechos que usam os pescadores sertanejos:

1. Tarrafa – A tarrafa, medida do punho às chumbadas, tem de 12 a 18

palmos. Para melhor clareza dividiremos a sua nomenclatura em ordem

decrescente, i. é, corda, punho, pano de crescência, pano morto, saco e

chumbadas. (FARIA, 1980, p. 135)

Vaquejando o assunto de como se pescava por aqueles mundos – é forçoso

aproveitar essas derradeiras letras do A.B.C. Para o registro das usanças

conseqüentes do peixamento com espécies de outras águas.

Ajuda substancial nos foi dada por BENTO XAVIER D'ALMEIDA,

encarregado do Posto Agrícola do Itans, no Caicó. É ele que nos manda

dizer por aqui assim […]

Dizem que é uma pescaria rendosa e interessante, oferecendo mais das

vezes um rendimento maior de 10 kg, a despeito do peso médio do tucunaré

variar de 500 a 600 gramas. (FARIA, 1980, pp. 138 – 139)

As espécies nativas de maior valor comercial são:

Cangati – Trachycorystes sp.

Cará – Pam. Cichlidae

Cascudo – Fam. Loricariidae. Gen. Plecostomus

Curimatã – Prochilodus sp.

Piau – Leporinus sp.

Piranha – Serrasalmus sp.

Traíra – Hoplias malabarica. (FARIA, 1980, p. 141)

Ocupando sua imagem do sertão com os mutirões de trabalho na beira da

água, Lamartine por consequência desenha seus contornos com estatísticas,

comentários e mesmo gravuras dos objetos referenciados no texto:

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(apetrechos dos pescadores, desenhados por Lamartine. pp. 146 - 147)

Não é o único caso de linguagem não-verbal em seus textos, que

apresentam desenhos e fotos esporadicamente, mas, dentro de Sertões do Seridó,

são os únicos desenhos de ferramentas feitos pelo autor. As demais artes a bico de

pena são, eu sua maioria, de Percy Lau, que faz ilustrações para o primeiro, terceiro

e quinto ensaios, incluindo a capa da coletânea.

Porém, voltando ao Lamartine desenhista, interessa perceber sua

preocupação com os detalhes: não satisfeito com as explicações de uso e

descrições verbais, o autor ainda grava em sua obra a imagem dos objetos

utilizados na pesca, sendo os mais complexos divididos por letras explicadas em

glossário abaixo da imagem, e mesmo incluindo as voltas dos nós mais comuns dos

pescadores. Isso é feito para evitar, porventura, algum dos apetrechos, tantas vezes

referenciado, ser mal compreendido pelo leitor.

Com mais essa característica, A.B.C. da pescaria de açudes no Seridó

torna-se o texto que utiliza maior número de recursos diferentes dos cinco

analisados e, por isso, serve como parâmetro oposto ao também breve estudo sobre

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as abelhas. Como vemos, tais textos diferem especialmente no quesito de

“envolvimento” do escritor: o primeiro possui pouca presença de Lamartine, que

permanece como observador/pesquisador e demonstra pouca familiaridade com o

assunto, tentando desenvolvê-lo pelos relatos coletados e por sua erudição; o

segundo, mesmo se tratando de outro ensaio feito com matéria herdada, não vivida,

é mais próximo pelo jogo “moleque” da estrutura, pelo empenho de traduzir o tema

em mais de uma linguagem e, embora guiado pelo abecê, é mais fluido devido a sua

organização se misturar com a criação não-objetiva.

Isso posto, sua importância reside dentro da coletânea, como

entendemos, na proximidade com a Literatura pelo fator metalinguístico encontrado

no A.B.C., e por ele responder com mais segurança ao leitor qual seria, entre 4 dos

5 textos analisados, o papel dos seus elementos criativos em relação a seus temas.

Por lermos um texto repleto de memórias pessoais, outro menos

interrompido e enfático na presença do trabalho nas tradições, um terceiro

praticamente estudado e exposto com certa impessoalidade, e ainda outro criativo

por sua própria apresentação, ampliamos os limites dos sertões, mas concluímos

que se busca sua imagem precisa, enquanto todos os outros fatores flutuam pelo

traçado dessa “cartografia”. Não apenas por causa do saudosismo tangível na

escrita lamartineana, e sim por seu desejo de continuação (mesmo que pela tinta) do

sertão que não volta, descobrimos o Seridó de formas diversas, mas voltadas

inevitavelmente para a mesma região. Criatividade, imprecisão e lendas não diluem

seu espaço e contribuem enquanto contrastes.

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4.5 Quinto ensaio

A caça nos sertões do Seridó (1961), um dos estudos mais completos do

autor, encerra a coletânea com cores de prefácio. Contando 72 páginas (sendo 55

do texto principal e o restante de comentários, tabelas e demais anexos), apresenta

a formulação mais extensa sobre o Seridó até aqui analisada. Sua introdução

destaca 23 páginas para a definição do espaço, e torna-se praticamente outro

ensaio, ou um mesmo texto “em dois atos”, pois a caça toma seu lugar apenas na

metade do desenvolvimento.

Tendo quatro divisões, inicia com O começo dos sertões do Seridó (p.

159) pelos mesmos caminhos das descrições dos outros textos, mas com

detalhamento diferente. Seu cuidado em explicar as raízes do interior do estado

implica, como logo percebemos, em resumos maiores de sua história. Essa atenção

detida por mais tempo, nos mesmos períodos antes recordados, torna a “última

revisão” das origens do sertão renovada. O que não passa de menção pontual

várias páginas atrás ganha corpo e é dividido em As primeiras datas (p. 159), Os

currais (p. 160), A raiz do algodão (p. 164) e O sertão de agora (p. 167).

Principalmente ao compararmos a organização do conteúdo dos três

primeiros pontos em outros ensaios, o maior fôlego de Lamartine neste texto de

1961 fica evidente: em Açudes dos sertões do Seridó (p. 17), Algumas abelhas dos

sertões do Seridó (p. 101) e A.B.C. Da pescaria de açudes no Seridó (p. 121), as

introduções do espaço e da história do povo daquelas regiões são direcionadas

respectivamente a cada tema de pesquisa, formando apenas a contextualização

necessária para desenvolvê-lo; em Conservação de alimentos nos sertões do Seridó

(p. 49), vemos a mesma preocupação de explicar o espaço, sua história e

habitantes, mas concentrando-se em apenas seis páginas cujo maior mérito pode

ser observado na descrição do caminho de Natal até o sertão.

Visto isso, o escritor separa o rastro dos índios, a terra povoada pelo gado

e o crescimento da “lavoura-dinheiro” de tal forma que aparecem informações no

ensaio da caça que foram desconsideradas em outras obras. O primeiro exemplo

ocorre trazendo as únicas referências aos holandeses em toda a coletânea:

De primeiro, só quem fazia rastro de gente na caatinga do Seridó era pé de

caboclo brabo.

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Terminada a guerra com os Holandeses (1654) a Capitania cuidou de

reorganizar sua vida econômico-administrativa, desmantelada na luta de

quase uma geração. A faixa litorânea, na posse do branco, de ano para ano

se alargava, com a penetração dos criadores – saindo dos tabuleiros

arenosos do litoral para pisar o chão mais duro e barrento do agreste e

sertão – “caçando” índios para as senzalas e assentando os paus de

porteira dos primeiros currais. (FARIA, 1980, p. 159)

Isso expande o sentido do “caboclo brabo” tantas vezes mencionado, pois

traz para a memória dessa região os conflitos entre colonizadores e povos nativos:

Em março de 1695 o bacamarte cuspia o trovão da morte, muito tacape de

jucá ainda rachava quengo de português e já o Senado da Câmara de Natal

informava os Capitão-Mor que as terras da Capitania estavam todas

doadas... Até o ano de 1700 ainda havia restos de briga é que diz L. C.

Cascudo – História do Rio Grande do Norte. (FARIA, 1980, p. 160)

Só depois de anotados os conflitos que, em Os currais, discute-se a base

de descoberta do interior pelo trato com os animais:

Daí para diante, a estaqueada dos currais e o rastro-fêmea do boi explica o

povoamento do Seridó. Um touro e três novilhas, diz Nunes Pereira,

representavam a base do pastoreio. De que raça e qual a verdadeira

procedência dos primeiros animais – sabemos muito pouco […] viam-no

crescer e multiplicar-se biblicamente o que o sertanejo cedo compreendeu,

sentenciando: “bicho que mija pra trás é que empurra o dono pra diante”.

(FARIA, 1980. p. 160)

E novamente Lamartine introduz algo novo, passando da atividade

econômica do ciclo do couro aos seus trabalhadores. Discute o convívio entre

senhores e escravos, o que não ocorre em outros trechos de Sertões do Seridó:

Viviam assim os primeiros criadores apojados em pleno ciclo do couro, onde

o trabalho de todos os dias mais argamassava as relações entre o

marinheiro colonizador e os primeiros escravos levados para a vaqueirice.

Cedo tomaram das mesmas véstias. “Sinhô” e escravo campeando juntos,

correndo os mesmos riscos – negro correndo ao boi e “sinhô” fazendo

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esteira no gesto de ajuda […] (FARIA, 1980, p. 161)

“Sinhô” derrubando o negro enchocalhado. “Sinhô” segurando o cabresto

para negro esbrabejar poldros. Um segurando o laço para o outro desleitar a

novilha parida. Tomando coalhada da mesma terrina, bebendo água da

mesma borracha e comendo paçoca do mesmo alforje. Negro na trilha e

“sinhô” cortando-o-rastro da onça que “estragava” a miunça e – quando

acuada na furna – negro “alumiando” com murrão para o outro atirar. Negro

no cabo da zagáia e “sinhô” no coice do bacamarte boca de sino. Negro

novo, afilhado do “sinhô”. Negro velho fazedor de meizinha pra curar dodói

de sinhozinho. (FARIA, 1980. p. 162)

Inclusive, faz mais do que simplesmente colocar as relações sociais em

perspectiva, pois chega a contestar uma das obras mais influentes na construção de

nossa identidade nacional:

A maior incidência de pardos, 44%, pode ser traduzida como uma forte

miscigenação dos habitantes seridoenses, ao contrário do que se dizia, em

face da maior austeridade dos hábitos sertanejos. Doutro jeito, como

explicar essa maioria? Crias de negro com índio ou mesmo do branco com

índio, arroladas simplesmente como “pardos”? Importados do eito dos

engenhos de açúcar do Litoral? Ou pardos gerados nas pequenas senzalas

sertanejas contradizendo as observações feitas por Gilberto Freire, em

Casa Grande & Senzala, citando Gustavo Barroso – ambos mostrando que

habitualmente, no sertão, o rapaz somente vinha “a conhecer mulher tarde,

e quase sempre pelo casamento”. (FARIA, 1980. p. 162)

Não bastasse essa contribuição para a História, ainda relata os efeitos da

pecuária no estado que, interferindo na vida dos fazendeiros, seria a razão primeira

de alguns sobrenomes potiguares:

O gado se multiplica e, prosperando, também fazia prosperar o dono, que

chegava a acrescentar o nome da fazenda ao seu, de família. Que agora

nos vem a lembrança, como exemplo, Leandro Gomes de Faria das

Aroeiras, Joaquim Gomes do Queimado e, mais para trás, Antônio de

Azevedo Maia, proprietário da Fazenda Conceição. Que mais tarde virou

lugar – hoje sede de município. Outra que deve ter vindo na mesma trilha é

Carnaúba dos Dantas – reflexo do predomínio da família Dantas... (FARIA,

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119

1980, p. 163)

A visão do espaço ter sido formado no século XIX pelos currais fica,

assim, bem mais evidente. E, logo em seguida, pela sequência d'A raiz de algodão,

nos vemos diante da mudança em curso, explicando os motivos da troca pela cultura

do “ouro branco” e natureza da planta:

Mais tarde, a economia pecuária que levou o homem ao Seridó foi perdendo

terreno e valor econômico para o algodoeiro arbóreo, de fibra longa, mais

conhecido por algodão mocó (Gossypium Purpurascens Poir). Quanto à

verdade sobre a sua origem é, ainda hoje, história a que falta uma banda e,

justamente, a banda do pé. (FARIA, 1980, p. 164)

Fernando Melo do Nascimento, estudioso do algodão mocó, afirma que a

origem deste ainda “permanece no terreno de pura especulação” admitindo

a hipótese de ser o resultado de um cruzamento de diversas variedades. No

trabalho, onde coletamos estas notas, transcreve ele idêntico parecer do

agrônomo especialista em genérica do mocó – Carlos Faria e do Prof J. G.

Duque […] (FARIA, 1980, p. 165)

Além de complexificar o termo “lavoura-dinheiro” e alastrar os motivos da

diminuição da pecuária, chega a acusar o desaparecimento de tradições do ciclo do

couro:

A valorização, como mercadoria exportável provocou o aumento progressivo

da área de cultura, reduzindo o gado aos cercados de pastagens – cercas

de arame farpado e pedra – que mataram as festas de apartação do

rebanho em comum, frustrando barbatões que, por certo, inspirariam muito

A.B.C. De boi e cavalo famoso... (FARIA, 1980. p. 165)

Também relata como a modernidade arrancou das mãos do sertanejo o

trabalho, tomando o espaço das antigas moendas e dando passagem às empresas

de fora:

De lá para cá é que a usina engoliu os pequenos descaroçadores. O

espinhaço mais taludo e o pé-redondo mais ligeiro do caminhão tangeram das

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estradas as tropas de burro. No faro vieram as firmas “galegas” com seus

classificadores puxando fibra e cotando preços, comprando algodão na folha,

espremendo a semente para tirar óleo, embarcando lã – no quadro que o poeta

OTHONIEL DE MENEZES (Sertão de Espinho e de Flor) rimou:

“Arrieiro, perdeu o emprego,

Argudão, é dos galegos.

Pau é figo bejamin...

Cardeiro, crôa-de-frade,

é luxo lá na cidade,

enfeita jarro e jardim...” (FARIA, 1980, p. 166)

E termina o ponto 3 revelando o fim que levou o mocó por causa da

plantação irregular:

A fama da fibra longa do algodão mocó correndo mundo, arregalando os

olhos do comércio. A boca mais escancarada da usina engolindo também as

safras das ribeiras vizinhas e até dos municípios de fora do Seridó.

Passando nas máquinas toda qualidade de algodão, espalhando semente

ruim, num processo criminoso de castear p trabalho de tantos anos da

natureza.

A fibra do mocó, de safra para safra, mais perdia a sua uniformidade. A

planta que pela sua perenidade chegou a ser bem de raiz, também

minguava sua vida. (FARIA, 1980, p. 166)

De mesmo modo, em O sertão de agora o escritor não se restringe à

anotação dos tempos serem diferentes e muito ter desaparecido, e tece uma

imagem desse sertão de ontem e como sua dimensão expandiu ao ponto de alterar

a feição do Seridó:

Cerca de pedra, pé-de-pedra e arame ou madeira – onde havia fartura de

pedra; pé de xiquexique e arame, onde o espinho tomava lugar da pedra –

crescendo, se espichando, limitando pastos e retalhando quinhões de

herança. Os boqueirões dos riachos tomados por barragens – represando

água, criando peixes e vazantes. A tradição do queijo de manteiga ou Seridó

se esparramando pelas ribeiras. Os bangalôs crescendo nas ruas

sertanejas – ruas já calçadas de pedra e clareadas a eletricidade;

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barulhentas pela boca “estrangeira” do rádio. As estradas ganhando o chão

das caatingas – zoando caminhões. Caminhão que carregava algodão e

depois minério, agora também carreando “araras”. O sertão crescendo e se

descaracterizando, parecendo hoje ter vergonha de ontem... (FARIA, 1980.

pp. 168 - 170)

E em consequência do percurso desses quatro pontos da etapa inicial do

ensaio, a impressão sobre o assunto, outras quatro vezes desenvolvido em poucas

páginas (ou parágrafos), ganha profundidade e campo mais largo. São perceptíveis

as propriedades típicas da redação lamartineana equilibrada entre manifestações

pessoais e considerações de pesquisador, auxiliando no andamento da introdução.

Traços da memória, testemunhos, contemplação pessoal do assunto e uso do tempo

em referência à própria experiência: há equilíbrio entre diversos fatores e de forma

análoga aos textos precedentes, residindo sua inovação no ritmo demorado.

Inclusive, a divisão seguinte, O mundo seridoense (p. 171), continua pelo

mesmo procedimento com uma descrição mais precisa sobre o espaço. Com

exceção dos três pontos iniciais, que reincidem quase inalterados em todos os

ensaios de Sertões do Seridó, de O chão e os matos (p. 172) adiante, a

contextualização escapa à esfera meramente introdutória.

Começando pela flora regional, por exemplo, usa citações de Euclides da

Cunha, o testemunho de um vaqueiro experiente, versos de João Martins de

Athayde, um dizer popular, apontamentos do agrônomo Fernando Melo do

Nascimento e a avaliação do professor J. G. Duque para explicar o clima, topografia

e vegetação. Fora o número de recursos e suas naturezas diferentes, a narração do

ensaísta sobre as mudanças de estação demonstram certo requinte linguístico

observado geralmente nos trechos mais criativos de sua redação:

Logo nas primeiras chuvas a vegetação despida se veste de uma linda

folhagem – a rama, ficando o chão atapetado de ervas rasteiras – a

babugem. Vestido de gata borralheira que tem a duração efêmera de

poucos meses […] Passado o inverno a folhagem caduca amadurece e cai,

deixando apenas galhos tortuosos e nus apontando para os céus – o

cinzento dominando a paisagem de um quadro geográfico e dantesco, em

que a verdadeira moldura são os limites ecológicos. Mas o sol, que a tudo

esturrica, não conseguiu, ainda, secar a coragem estóica do sertanejo que

troçando, define, então, o meio:

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– De verde só ficou pano de bilhá, papagaio e a bandeira da Prefeitura...

(FARIA, 1980, p. 173)

Essa engenhosidade segue seu curso com Os invernos (p. 174), em que

a escassez das chuvas é aprofundada não por outros dados estatísticos além dos já

revistos nos estudos anteriores, mas pelo falar do sertanejo seridoense:

A chuva é o assunto de maior importância e constância nas palestras

sertanejas, onde é traduzida na medição oral das expressões regionais. E

dizem por aqui assim:

– Uma chuvinha que mal dei prá apagar a poeira (chuvisco que apenas

umedeceu a camada mais superficial do solo).

– Chuveu que deu bem prá corre os duros (a água correu nos lugares de

solo mais compacto).

– … correu moles e duros (a água nosl ugares arenosos e argilosos).

– … mal deu prá corrê as goteiras (o mesmo que mal deu prá apagar a

poeira ou, quando muito – corrê os duros).

– Chuva de imendá as goteiras (chuva muito grossa, fazendo correr os

riachos, juntando água). (FARIA, 1980. p. 174)

É justamente utilizando discursos do meio, ou que sejam pelo menos

coerentes com seu contexto, que passagens mais áridas ganham vigor, e números

são complementados pelo que não dizem, como no ponto “Kalendário” das secas (p.

175):

O desembargador Felipe Guerra (Secas do Nordeste), um dos homens de

maior espírito público do Nordeste, enumera em resumo histórico,

abarcando os anos de 1559 a 1942: “uma seca de 5 anos, cindo secas de 3

anos, oito de 2 anos e dezesseis de um ano, a saber: 1559, 1564, 1614,

1690-2, 1723-7, 1744-6, 1766, 1777-8, 1808-9, 1814, 1817, 1825-6, 1833,

1837, 1844-5, 1860, 1868-9, 1877-9, 1885, 1888-9, 1891-2, 1898, 1900,

1902-4, 1907-8, 1915, 1919, 1930-2 e 1942”.

De 1942 para cá, ainda na era de quarenta, tivemos: 1943 e 1946; na era de

cinqüenta: 1951-3, 1957 (parcial) e a deste ano de 1958.

Resta-nos a resignação sertaneja de transferir a esperança para o ano

seguinte e entupir os ouvidos ao canto de Cassandra da A Profecia da

Garça Misteriosa:

“– No fim de cinqüenta e nove

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Quem for vivo não se cala

O mundo vai dar um tombo

Que toda a terra se abala,

Se ver neste tempo gasto,

Muito pasto e pouco rastro,

Muita sala e pouca fala...” (FARIA, 1980, p. 175)

Assim, Lamartine progride alternando entre redação mais e menos

objetiva, dando significado a dados com versos, observações pessoais, trechos de

algum especialista, ou mesmo pela memória. Este último recurso aparece não

apenas vinculado ao escritor, mas pela vivência das “testemunhas” de cada assunto

reunidas ao longo do ensaio, como em O caminho das águas (p. 175), que termina

com explicações sobre a cultura em vazantes ancoradas em dizeres dos “mais

velhos”, de Manoel Dantas e de Juvenal Lamartine (pai do autor):

Dizem os mais velhos e conta Manoel Dantas, Homens de Outrora, ter

nascido da lição da fome da seca dos setes (1877-9), o aproveitamento do

leito dos rios para a cultura de vazantes. Juvenal Lamartine (1874-1956) nos

dizia que as primeiras vazantes do Seridó foram plantadas no Poço do

Barbosa, no rio Acauan (Acarí). O sucesso da experimentação logo se

alastrou por toda a ribeira e hoje, os rios secos do Seridó, deixaram de ser

meros “caminhos da água” para se vestir de rama de batata e feijão,

riscando linhas tortas e verdes na paisagem esturricada. A contribuição

dessa nova forma de trabalho tem se traduzido de maneira positiva para o

Seridó; não só participando da panela do sertanejo como, pelas ramas e os

refugos das batatas, dando sustância e até cevando gado na época das

secas. Mais convincente, talvez, seja o resultado estatístico do S.E.P. Do

Ministério da Agricultura, que diz no ano passado (1957) ter o Seridó

produzido 14517 toneladas de batata doce – o segundo maior produto

agrícola em valor da região – embora grande parte dessa safra deva ser

repartida também com as vazantes dos açudes. (FARIA, 1980, p. 177)

Quando não alterna exposições práticas com discursos alheios,

percebemos soluções na própria escrita ensaística que se adensa, aproximando

algumas passagens da criação literária. Ocorre principalmente em trechos

descritivos, operando tanto nos níveis lexicais quanto semânticos, o que

observamos em As serras e os quatro aceiros (p. 177):

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O trabalho enfiado do vento e da água através do tempo – o vento

açoitando a uma velocidade de 2 a 20km/hora, mediu J. G. Duque no

estudo citado, e a água lambendo a nata da terra cada vez mais rasa,

magra e pelada pelo machado de uma agricultura de coivara – vão

descobrindo rochas ciclópicas que reduzem a superfície de infiltração do

solo e mais irradiam calor e luz, contribuindo para que a brisa na estação da

seca seja mais um bafo morno que alentador. (FARIA, 1980. p. 177)

No exemplo, escolhas como “a água lambendo a nata da terra” e “rochas

ciclópicas” saltam aos olhos do leitor como formações de sentido incomuns no texto

lamartineano, pois contrastam com a linguagem mais direta de sua redação. São

elas também acompanhadas de imagens construídas pela ordenação da frase, o

que percebemos em “a nata da terra cada vez mais rasa, magra e pelada pelo

machado de uma agricultura de coivara.”, que coloca em relação sugestiva o

desgaste do solo e a rarefação da flora pela ação (bruta) do homem. Logo vemos

que a combinação desses recursos e de outros com atuação semelhante provoca

em boa parte o equilíbrio dos trechos mais extensos sem a presença de citações.

Em Dinheiro de pedra (p. 178) a linguagem é mais uma vez apurada e

chega a destacar-se como narrativa à parte. Inicia com a possibilidade de leitura da

história passada entre Juvenal Lamartine e José Augusto Bezerra de Medeiros em

1907, pela observação deste de que as terras do sertão só seriam ricas quando

suas pedras dessem dinheiro. Então, no parágrafo seguinte e já na década de

quarenta, a exploração bélica da Xelita alavanca a mineração no estado e, de

avanço em avanço, chegamos ao desaquecimento do mercado em 1958.

Finalmente, o autor conclui com a observação de que “quando as nossas pedras

forem industrializadas no nosso chão – seremos menos pobres...” (FARIA, 1980, p.

179), fechando o percurso cronológico de mais de meio século com a reformulação

da frase de José Augusto.

Com isso, todo o trecho segue a possibilidade de riqueza do sertão

potiguar, mas salta entre três formulações: seremos ricos quando as pedras valerem

dinheiro, as pedras se tornaram rentáveis, e teremos algum dinheiro quando nós

mesmos processarmos os nossos recursos minerais. Sua composição centrada

nessas mudanças é ainda apoiada pelo título do ponto, “Dinheiro de pedra”, que

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incentiva, além da conotação fácil de “fonte de riqueza”, uma interpretação da

dificuldade do negócio no estado.

Por essas características que escapam à escrita meramente informativa,

e que ajudam o texto a atingir um nível de trabalho estético com a linguagem,

compreendemos que esse é mais um caso de “desvio longo” do autor que permite

ser destacado como conto (ficando mais evidente se considerarmos sua economia

de linguagem ao abarcar pontualmente quase 60 anos de história). Inclusive,

apresenta visivelmente unidade de sentido e se integra no ensaio de forma diferente

dos outros pontos, mais interdependentes e, de forma geral, menos elaborados.

Do ambó ao Itans (p. 179), por sua vez, volta à escrita ensaística mais

aberta, empregando os recursos que se fazem necessários ao longo de seu

desenvolvimento. Vai da origem imprecisa do represamento de água na região às

grandes obras governamentais, o que, a princípio, não se diferencia de trechos do

ensaio sobre os açudes ou dos breves comentários encontrados nos demais textos

da coletânea. Sua originalidade encontra-se em outro desvio que trata sobre a

importância do jumento para o sertanejo:

Só mais tarde, quando os primeiros jumentos vieram agüentar no espinhaço

a economia agrária nordestina e o couro do boi passou a ser mercadoria

exportável, é que caiu em desuso o arrastão.

O sertão tem para o jumento uma dívida maior que a do ciclo da cana para

com o braço escravo. É o animal que mais compartilha da fome sertaneja

nos anos escassos e também o último a ser acudido, pela confiança que

têm na sua quase ilimitada sobriedade. Magros, no couro e no osso,

abandonados ao mormaço, se deixam ficar cochilando, como a poupar

sustância, mastigando basculhos e até o próprio estrume – num ciclo vicioso

que o agarra desesperadamente à vida. Daí a irreverência no dizer

sertanejo: “... em tempo de seca só escapa padre sacerdote e jumento”.

Paradoxalmente, guardam certo respeito pelo animal. Na seca de 1942,

sugerimos a um bando de retirantes abater para comer um jumento velho,

aleijado e gordo que vivia desprezado no pátio da fazenda. Repeliram a

idéia surpresos e até indignados em admitir-se “comer a carne de um bicho

que carregou Nosso Sinhô”. Argumentamos que outros animais também

conviveram com Cristo e nem por isso eram preservados pelo homem.

– Mas em nenhum Ele deixou a marca.

– ?

– A lista que tem na cruz foi por onde escorreu o mijo do Menino Deus...

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(FARIA, 1980, p. 180)

As observações que faz, reafirmadas na história com os retirantes,

igualmente se aproximam da escrita literária. A breve narrativa precedida pela

explicação da natureza do animal possui estrutura bastante semelhante a de um

conto, e só permanece na margem, a nosso ver, por sua unidade não ser garantida:

é ainda parte de um comentário sobre os animais utilizados no processo de

açudagem, e não chega a formar célula independente, apenas encaixada na linha

textual principal. Seu intervalo nos alimenta com uma curiosidade, logo retornando

às obras do DNOCS: “Jumento no Nordeste é assunto para encher um livro – o livro

que o nordestino ainda não escreveu. Mas, voltando à conversa dos açudes [...]”

(FARIA, 1980, p. 181).

O escritor volta e se afasta algumas vezes do tema, juntando nos espaços

a luta dos trabalhadores de pedra, a primeira escrita da biografia de José Lourenço,

o mestre de parede, e uma volta a infância que termina a segunda etapa do ensaio

com versos quase calados pelo tempo:

O açude logo passou a ser um acidente indisponível à vida e à paisagem

sertaneja. Crianças ainda, mal correm as goteiras das primeiras chuvas,

ganham os pátios das casas, a atalhar a água argamassando com as mãos

o barro das tapagens de brinquedo. E qual o menino sertanejo que não

jogou canga-pé nos banhos de açude, nem deu mergulhos de tinir os

ouvidos, estumando pelo desafio do rebolo atirado a água?

“Galinha gorda?

Gorda é ela.

Vamos comê-la?

Vamos a ela...” (FARIA, 1980, p. 182)

A terceira divisão, A caça nos sertões do Seridó (p. 183), é a que trata

especificamente do tema proposto no estudo. Parece-nos que as páginas

precedentes foram deliberadamente poupadas dos trabalhos da caça por esse ser

um dos primeiros trabalhos publicados pelo autor. Há, portanto, uma necessidade

conflitante de cobrir todo o silêncio sobre a terra antes de detalhar parte de sua

cultura.

Visto isso, encontramos quatro pontos organizando a caça entre a

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Indumentária (p. 183), os Instrumentos e apetrechos (p. 188), os Métodos de caça

(p. 190) e suas Crendices (p. 207), que apresentam quase a mesma organização

dos outros ensaios. Sua diferença reside na ordem entre as “ferramentas” e os

“métodos”, pois geralmente se prioriza o segundo grupo. Entretanto, em nada o texto

é prejudicado por isso. De fato, a apresentação dos instrumentos de caça antes das

estratégias apenas sugere o caminho pelo qual o ensaísta progrediu em suas ideias.

Sendo assim, logo no primeiro ponto percebemos que seu avanço excede

o título e transita entre a história da caça e de figuras míticas dos caçadores de

onça. Marcando a natureza das veste em parágrafos curtos em sua primeira e

penúltima página, todo o restante é tomado pelas mudanças históricas e,

principalmente, pela biografia dos atos de bravura de Miguelão das Marrecas, José

Gomes da Trindade Templo de Maria e Cazuza Sátiro.

Após uma contextualização de que tudo começou pela defesa da criação

e a necessidade de buscar no mato alguma rês fugida, vai-se aos caçadores apenas

para chegar aos mais notáveis:

Os caçadores de onça, porém conquistaram fama imorredoura. No Rio

Grande do Norte, o Miguelão das Marrecas, era sempre lembrado toda vez

que surgia um carniceiro a desfalcar os rebanhos.

“O Miguelão das Marrecas

Veio da Serra do Doutor,

Chamado por Joaquim Teles

Para ser seu morador,

Porque perseguia onça

Como heróe lutador.”

“Em novecentos e quatro

Miguelão andava armado

De agalha, rifle e punhal

Com um cachorro aprovado;

Seguiu para Serra Negra

Por causa de um chamado...” (FARIA, 1980, p. 184)

À imagem grandiosa do guerreiro, segue-se em quase anonimato a

recordação de outro: “L. C. Cascudo lembra o nome de José Gomes da Trindade

Templo de Maria, falecido no Caicó em 9-8-1898, com 84 anos, de quem diziam a

boca pequena haver caçado mais de 80 onças...” (FARIA, 1980, p. 184). Um

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estabelecido pela fama em cordéis e outro na destreza revelada pelo número de

prezas abatidas, mesmo assim ocupam espaço dos “outros caçadores” de feras,

pois aquele tomado como exemplar é Cazuza:

[…] Contudo, o nome mais famoso das ribeiras seridoenses, foi, sem

dúvida, o do velho Cazuza Sátiro (José Sátiro de Souza, 1829-1911).

Abastado proprietário no vizinho município de Patos (PB), a poucos

quilômetros da fronteira com o Seridó (serra dos Troncos), devotou toda a

sua vida a perseguir onças, atendendo chamados de muitas léguas sem

aceitar qualquer remuneração – apenas pelo prazer de ouvir um cachorro

chorador em noite de lua numa guela de serra e os esturros do gatão nas

furnas. Caráter forte, reto e modesto. Cultivava duas manias: esquipar

cavalos e criar cachorros onceiros (um dos seus cães, Labugão, atravessou

as portas da popularidade emparelhando a Cazuza). (FARIA, 1980, p. 184)

Esse “cavaleiro errante” dos sertões é retratado além da esfera de

qualquer desvio, exemplo, ou comentário, e termina apresentado por Lamartine

como a própria matéria da tradição que expõe. Sua idealização se concentra entre

trechos do cancioneiro popular e episódios expostos pelo ensaísta, e pode ser

dividida por três momentos: a apresentação, os fatos principais, e a morte do

caçador com o “encantamento” da lenda. O primeiro momento pode ser lido da

introdução sobre Cazuza (supracitada) seguida da descrição física do sertanejo:

“Cazuza era carrancudo

além de ser tão barbado

o vento abria o cavanhaque

um molho pra cada lado

quando ia galopando

em um cavalo montado.” (FARIA, 1980, p. 184)

O segundo é encontrado entre as páginas 185 e 186 com todos os

acontecimentos relativos ao seu gosto pelos cachorros:

Sobre a personalidade desse homem há uma fieira de casos que constituem

algumas das mais encantadoras páginas da tradição oral sertaneja:

“Quem perguntasse pela saúde

Da família do Capitão,

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Ele não respondia,

Nem lhe prestava atenção.

Se falasse nos cachorros,

Ganhava mais atenção.

Neste tempo o Cazuza

Deixa preparados

Uns vinte e cinco cachorros,

Todos bem exercitados,

E só com carne de boi

Eram os cachorros tratados.” (FARIA, 1980, p. 185)

Cazuza costumava – como a maioria dos criadores de sua época – comprar

bois no sertão do Piauí para refazer. De uma feita contratou, naquele

Estado, um vaqueiro ganhador que possuía um cachorro branco de cabeça

preta, chamado Cambráia. Em um dos campos para juntar a boiada,

Cambráia matou uma onça. Cazuza verificando o trabalho do cachorro

procura logo adquiri-lo ao que o vaqueiro refuga, alegando que ainda na

semana anterior o bichinho havia salvo sua vida em luta contra uma pintada.

Tratando-se de um rapaz pobre, cuida seduzi-lo com uma quantia avultada,

no que é, novamente, rejeitado. Dobra a proposta e, de lance em lance,

termina oferecendo todo o dinheiro que conduzia e mais a burra de sua

sela:

– Me sujeito a voltar pra minha terra a pé, puxando Cambráia pel'uma

corda.

– O sinhô tá vendo a terra e o céu?... Pois pode ter dinheiro pra fazê uma

ruma que vá batê nas nuvem; mas não tem dinheiro que pague Cambráia...

(FARIA, 1980, p. 186)

São nesses trechos que a história do caçador cruza mais claramente a

fronteira da ficção pela proporção desmesurada de Cazuza pelos cachorros. Sua

imagem totalmente comprometida com sua “luta” é ainda mais ressaltada pelo

próprio escritor ao organizar o final do trecho em forma de conto, facilitando a

adesão da dimensão fantástica à histórica.

Sua idealização como caçador excepcional daquela época ainda recebe

um alicerce final, com o seu “encantamento” nos últimos versos quando, já

aposentado, o homem dá lugar ao mito:

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“Em novecentos e quatro

Cazuza tinha encostado

As armas de matar onça

Estava velho e cansado

Findo doente de asma

Pelo serviço pesado.

Morreu o Cazua Sátiro

Nosso herói do sertão,

O grande matador de fera

Limpo na sua missão,

Merecia uma státua

Com as agáias na mão.” (FARIA, 1980, p. 187)

Assim, o decurso de sua vida compreende nesse ensaio todo o “período

áureo” da caça nos sertões do Seridó, pois com sua morte logo o discurso elevado

transforma-se na verificação de que “viver da espingarda” é atualmente

insustentável. Por diminuição dos recursos em decorrência da caça predatória ou

das reações adversas observadas pela ingestão de “comida braba”, Lamartine

retrata-a como “ocasional”.

Apenas com essa contextualização é que, enfim, fala-se sobre as

ferramentas e roupas do caçador:

Indumentária – É a roupa usada para o trabalho; alpercatas de rabicho, faca

à cintura (antes, a clássica faca de ponta nordestina, hoje a peixeira – mais

cortante, malvada e de menor valor; chapéu de couro ou palha de carnaúba

e badaneco de couro ou mescla onde conduzem os apetrechos da

espingarda além do arremedo de nambu, fumo de rolo, cachimbo ou

mortalhas para enrolar os cigarros e o artifício ou papafogo. Quando a

excursão se prolonga por mais de um dia costumam levar rapadura, farinha,

carne de sol e café para o café de pedra. A água é conduzida numa cabaça

de colo (Cucurbita lagenaria Linn. Da fam. das Cucurbitáceas) ou borracha

presa à cintura. Se por qualquer eventualidade findasse a água, recorriam

às raízes do umbuzeiro ou ao caule da mucuna. (FARIA, 1980, pp. 187 -

188)

Esse último parágrafo, que representaria o único trecho estritamente

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coerente com o título de seu ponto, serve como introdução ao assunto seguinte.

Depois da história sobre a caça e os caçadores, o segundo ponto, Instrumentos e

apetrechos (p. 188), resume o que se tem registro das armas utilizadas na região,

ocupando suas redondezas com crenças e a memória da região:

As superstições ligadas aos instrumentos de caça, provavelmente,

comportariam uma pesquisa detalhada no sentido de identificar suas

origens. Desde a arma mais primitiva, a pedra, rebolada sem auxílio de

qualquer instrumento que os meninos sertanejos cospem para obter uma

pontaria certeira – às clássicas baladeiras de matar passarinho. Baladeiras

de ganchos (forquilhas) mossados – calendário dos pássaros mortos.

Menino comendo fígado cru de beija-flor e melando de sangue o gancho da

“arma” para não errar pedrada. Qual o menino sertanejo que não passou por

esses testes?...

as armas de fogo detêm, naturalmente, maior acervo de tabus. Assim é que

atirar em urubu ou consentir que alguma mulher pegue na espingarda, são

motivos suficientes para inutilizá-la, transformando-a de “chumbo frio” em

“chumbo quente”. E para justificar o preceito alegam que se depois de atirar

em urubu soprar a boca da arma, correrá água pelo ouvido da mesma...

(FARIA, 1980, p. 188)

Se observadas com cuidado, às definições de cada item prosseguem

notas gerais sobre o seu impacto na cultura seridoense: cercanias maiores no

campo dos rifles e espingardas, e lugar secundário, por exemplo, para a funda,

relegada às plantações como modo de espantar animais daninhos. Seguindo essa

lógica, o ponto seguinte, Métodos de caça (p. 190), torna mais evidente a diferença

de detalhamento entre os modos mais e menos comuns, influenciados pelo caráter

mais narrativo do esclarecimento dos seus processos.

Já presente na própria tradição contextualizada pelas biografias dos

caçadores ilustres, a primeira macrodivisão dos métodos, Por espera (p. 191), inicia

pelo uso de cachorros:

A caça com o auxílio do cachorro, nos sertões do Seridó, acreditamos não

mostrar ainda as caraterísticas rígidas da cinegética moderna que

sistematiza cães em caça-tiro e caça-presa. Lá uma vez perdida, caçadores

pracianos, com armas de cartucho e cachorros chamados perdigueiros,

pisam a caatinga. No comum, a caçada matuta se faz pelo rastejamento,

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perseguição e morte da caça. (FARIA, 1980. p. 192)

Além da explicação de cada passo, o autor se detém na escolha do

animal, que aparece envolta de importância igual ou maior:

Como primeiro cuidado aconselham furtar o cão, ainda novo, porquanto

cachorro roubado costuma dar para bom. No exterior do animal, constitui

bom sinal:

a) As unhas dos pés e das mãos de cor uniforme.

b) O céu da boca de cor preta.

c) Não gritar quando suspenso pelo couro do cangote.

d) Ser biqueiro.

e) Quando pizunho, acua lobisomem.

f) Os de pelagem rajada costumam ser reimosos e os brancos,

esmorecidos.

g) A cauda fina constitui bom sinal e melhor ainda quando enrolada para a

direita; sendo “as esquerdas” o cachorro tem dias, i.é, nem sempre presta.

h) Cachorro de ânus grande é corajoso.

i) Mas a melhor característica é mostrada pelos cabelos debaixo do queixo:

um cabelo, é muito bom; 2 é bom; 3 é sofrível e 4 não presta. (FARIA, 1980,

p. 191-192)

Dentre os animais utilizados, o autor apresenta somente um segundo

caso em comentário rápido: “Alguns falam na usança do furão (Grison vuttatus)

amestrado – à guisa da lendária falcoaria – para desentocar pequenos roedores...”

(FARIA, 1980, p. 193), o que evidencia ainda mais o contraste entre os dois.

O que segue desse momento em diante é a presença cada vez maior do

caçador, surgindo pelo método de rastejamento (p. 194):

O sertanejo seridoense, pela significação de uma vida mais achegada à

terra é, mais das vezes, em grau de mestre ou de aprendiz, capaz de “tirar

um rastro”. […] Perspicazes observadores, nada lhes escapa ao olhar. Aqui

é uma pequena pedra revirada da “cama” – ali uma imperceptível depressão

do solo ou um graveto partido: adiante, os pelos do animal que ficaram

presos aos galhos das plantas. Quando o chão não lhes oferece indícios,

apelam para os matos – rastejar no ar, observando os pontos de atrito dos

ramos que, com a passagem da caça, mudam o contato. (FARIA, 1980, pp.

194 - 195)

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Esse terceiro método é que comporta a maior parte dessa etapa do

ensaio, sendo enriquecida de várias histórias que demonstram a perícia dos

rastejadores. Entre Câmara Cascudo, Henry Koster, Gustavo Barroso e até mesmo

Voltaire, Lamartine elenca exemplos quase mágicos da habilidade de saber

aparência, caminho percorrido e local atual da caça, mas é com o exemplo

encontrado em Sarmiento, do rastejador Calibar, que consegue inserir

definitivamente o tipo tratado no universo maravilhoso:

[…] Contam-se dele que, durante um viagem a Buenos Aires, lhe roubaram

uma vez seus arreios de gala. Sua mulher tapou o rastro. Dois meses

depois, Calibar regressou, viu o rastro já apagado e imperceptível a outros

olhos, e não falou mais no caso. Ano e meio mais tarde, Calibar caminhava,

cabisbaixo, por uma rua dos subúrbios, penetra numa casa, e encontra os

seus arreios, enegrecidos e quase inutilizados pelo uso. Havia encontrado o

ladrão depois de dois anos! (SARMIENTO Apud FARIA, 1980, pp. 197 -

198)

Com histórias que pertencem tanto à dimensão real quanto a fictícia, A

caça nos sertões do Seridó é, dos textos escolhidos para a coletânea, o que mais

aproxima a escrita lamartineana da puramente literária, pois concentra-se em figuras

exemplares que, além de integrarem trechos do cancioneiro popular, trazem o

próprio desenvolvimento textual para a fronteira entre o estudo e criação ficcional. É

por isso que os caçadores de onça e os rastejadores conseguem amparar o tema e,

subordinando-o, tomam o primeiro plano nas alternâncias entre suas narrativas.

Não é de se estranhar que, terminadas as aparições desses personagens,

o texto volta ao descritivismo temperado por observações pontuais e algumas

citações de outros escritores, recorrendo à redação equilibrada entre estilo sério e

desvios criativos que parece conter o modo mais comum da escrita do autor.

Caracteriza objetos e métodos à proporção de sua importância e

recorrência no Seridó, como que seguindo as exigências do tratamento cultural de

cada assunto. Entretanto, juntando o meio material, as memórias, interferências

pessoais e criativas, parece mesmo assim mais ausente em comparação com os

intervalos relativos às aparições célebres.

De acordo com o que já observamos, percebe-se uma importância

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norteadora não apenas nos testemunhos, mas nas “terceiras pessoas” de cada

discurso, o que só se observa com tal relevância nesse último texto. Distinto da

figura prioritariamente anônima dos trabalhadores nos açudes, dos artesãos que

conservam o alimento, dos caçadores de abelhas e dos grupos de pesca, o

sertanejo aqui retratado pertence à casta dos heróis regionais. Seus atos de bravura

enganam a morosidade relativa que toma conta do Seridó e tornam a experiência

individual em memória coletiva.

O texto ainda corre pelas Crendices (p. 207), a título de curiosidade, em

que dá novo espaço para a cultura de caça com cachorros e, pela primeira vez,

relata a presença da Caipora no sertão. Identifica os traços da “mãe do mato” e sua

influência mística, mencionando uma história, contada como verídica por um

informante, sobre os poderes da Ruiva:

A caipora às vezes vem disfarçada em outro bicho. Um sertanejo, há muito,

confidenciou-me haver disparado e recarregado a capricho sua lazarina por

quatro vezes em um gavião vermelho: “Olha que não dava 15 braças pra

onde eu estava agachado. No primeiro tiro o bicho se arrepiou e sujou

(defecou) – pensei inté que ia cair. Depois dos quatro, já desconfiado,

rebolei uma pedra e vim m'imbora...” Outro contou-nos haver atirado em um

veado e esse, impassivelmente, vir farejar o pé de pau onde estava trepado.

Astúcias da caipora. (FARIA, 1980, p. 209).

Regressa o autor aos anônimos que compõem o grosso de sua terra, e

faz em E por derradeiro (p. 2011) suas últimas conclusões sobre o desgaste do

sertão na mão do homem, pois: “ Todo mundo sabe tratar-se de problema antes de

tudo educacional. Mas o indiferentismo com que vem sendo relegado faz pensar,

sem qualquer pessimismo, que na pisada em que vamos, o sertanejo herdará […]

um chão sem rastro de bichos […]” (FARIA, 1980, p. 214). Seguem-se notas,

anexos, referências e agradecimentos, e o mais antigo e último texto de Sertões do

Seridó nos deixa com a impressão de eco que se modifica, mais forte em cada

repetição.

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4.6 Visão geral da coletânea

Terminada a leitura de cada ensaio, podemos, finalmente, elencar suas

características individuais em uma visão ampla e avaliar com maior propriedade até

que ponto o ensaísmo lamartineano invade o terreno literário. Para isso, podemos

organizar o campo global da recepção de Sertões do Seridó em três categorias:

reincidência de trechos, organização e presença de outros gêneros.

Das “linhas orientadoras” na escrita dos cinco ensaios, que nos elucidam

como o autor lida com a oscilação de objetividade, procura se organizar pelo diálogo

e por dados materiais ligados aos temas, e ainda equilibra de formas diferentes a

escrita criativa, aparecem outros níveis de informação que são alcançados com a

leitura integral da coletânea.

O primeiro, e talvez mais evidente, surge pelo “eco” da definição do

Seridó, sua história e seus habitantes. Não é linear sua apresentação, e nosso

primeiro contato é com a imagem d'O açude (p. 23), que gera um deslumbramento

pelo espaço. A prosa poética encontrada nesse trecho é seguida pela escrita mais

séria das hipóteses do início do represamento pelos seridoenses, que se encontram

em constante comparação com a história de outras regiões e povos. Com isso, a

atmosfera criada manifesta mais lacunas em branco, tornando a apresentação

nebulosa.

É no decorrer de Açudes dos sertões do Seridó (p. 17) que a impressão

de unidade é possível. Configurando estudo mais isolado do programa geral de

contemplar o sertão pelas palavras, seu desenvolvimento serve à condição de

recorte e, sozinho, definiria pouco o Seridó, e muito do “sertão de nunca mais”, este

presente nas lembranças do autor.

O mesmo não ocorre em Conservação de alimentos nos sertões do

Seridó (p. 49) que, fazendo uma releitura da organização de Os sertões, assume por

um lado as divisões euclidianas da terra, do homem e da luta, e discorre de forma

mais concreta sobre a região. Porém, exceto pelo aumento de descritivismo e o tom

afastado, Lamartine permanece em um estilo de identificação com a terra. Escolhas

lexicais típicas acusam o espaço do autor sendo o mesmo que está em pauta:

Daqueles mundos brotou o algodão branco-cremoso, fibra de 36/38 mm e

arbóreo – que ainda ontem era bem de raiz nas heranças sertanejas. De

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semente nua, escura, que é ver o estrume do mocó, donde, talvez, seu

apelido – bem pode se alastrar por imensas áreas de ecologia favorável no

Polígono, de vez que, ao contrário dos competidores, não reclama solo

irrigado para produzir. E a indústria – dizem os economistas – tem fome de

fibras longas. Se assim é, carecemos de que as estações experimentais

não sejam capadas em suas verbas, para que possam oferecer sementes

selecionadas ao fomento e à engatinhante extensão agrícola; e a esperança

de que estas induzam o matuto a cultivá-lo segundo as recomendações

técnicas. (FARIA, 1980, pp. 54 - 55)

Mesmo que o trecho inicie por “Daqueles mundos”, a distância é quebrada

por “carecemos”, não mencionando o vocabulário que indica certa identidade

linguística do autor: “donde”, “capadas” e “matuto”.

O terceiro ensaio, Algumas abelhas dos sertões do Seridó (p. 101),

diminui a contextualização para duas páginas, resumindo a parte não direcionada

para o tema em apenas quatro breves parágrafos:

Dezesseis municípios, ao Sul do Estado, formam a região do Seridó no Rio

Grande do Norte.

Com uma área de 9.386km2, i.é, oito vezes maior do que o Estado fa

Guanabara (1.171 km2) e uma população de 146.293 hab., apresenta o

Seridó uma densidade de 15,6 hab/km2.

A topografia da região é ondulada, devendo a altitude média estar, pouco

mais ou menos, na cota dos 250m. O solo é compacto, raso, erodido e

pedregoso, dificultando o enraizamento das plantas. A vegetação – caatinga

– é espinhenta, arbustiva, rala, dominando as cactáceas e outras formas

xerófilas.

Os invernos são escassos e irregulares, detendo o posto de Currais Novos

a menor média do Estado: 398.3 mm/anuais contra 1.450.2 da cidade de

Natal. (FARIA, 1980. p. 107)

A modificação não é justificada somente pelo fôlego curto do texto, mas

sim por seguir a mesma tendência do primeiro ensaio, e terminar em um meio

caminho entre os dois anteriores. Parece seleciona os dados fundamentais e logo

virar o seguimento para o tema:

Os invernos são escassos e irregulares, detendo o posto de Currais Novos

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a menor média do Estado: 398.3 mm/anuais contra 1.450.2 da cidade de

Natal.

O gentio que por ali vagava antes do colonizador requerer terras, dela tomar

posse e situar a estaqueada dos currais, já caçava abelhas – verbo

arremedado pelo homem primitivo nos matos dos quatro cantos do mundo.

(FARIA, 1980, p. 107)

Entretanto, sua relevância aumenta ao lermos a introdução do ensaio

seguinte, A.B.C. Da pescaria de açudes no Seridó (p.121):

Abarcam as ribeiras do sertão seridoense, no Rio Grande do Norte, os

municípios de Acari, Caicó, Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá, Cruzeta,

Currais Novos, Florância, Jandim de Piranhas, Jardim do Seridó, Jucurutu,

Ouro Branco, Parelhas, São João do Sabuji, São Vicente e Serra Negra do

Norte – medindo 9.544 km2 que vem a ser 18,6% da área total do Estado

(51.105 km2).

O censo de 1950 contou, naquelas ribeiras, 137.426 sertanejos, dando

assim 15 hab/km2, i. é, 14,19% da população do Rio Grande do Norte.

(FARIA, 1980. p. 125)

Do terceiro para o quarto texto da coletânea, percebemos textualmente a

volta do tempo, pois na descrição do Seridó os 16 municípios voltam a ser 15 e a

densidade demográfica diminui, o que provavelmente passaria despercebido em

uma leitura rápida. Este texto também introduz o assunto após contextualizar o

sertão, o que faz com algumas informações diferentes (como o calendário das

secas).

E, com o quinto ensaio, todos as repetições ao longo das demais

contextualizações parecem se organizar em escrita definitiva. Entramos no Seridó

pelos açudes, e os vemos em todos os ensaios como ondas da primeira discussão.

Lemos várias vezes sobre os ciclos do couro e do algodão, conhecendo histórias

paralelas uma vez, sabendo informações mais precisas em outra. Revisitamos a

colonização até a escravidão sair de seu silêncio no quarto ensaio e assumir o

primeiro plano no quinto. Revemos, aliás, alguns sertanejos em mais de um trecho,

como o “mestre de parede”.

A extensão e o alcance do espaço no último estudo nos faz reler nele os

ensaios anteriores. O começo dos sertões do Seridó (p. 159) é também o seu fim.

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Todas as repetições que, cronologicamente, deveriam ser posteriores ao ensaio da

caça passam a ressignificá-lo. E, pelo eco gerado desde a primeira página, a

“organização” acaba ganhando propriedade.

Isso, dito de outra forma, difere o caminho traçado de seu destino: os

ensaios da concepção sertaneja do autor, junto de suas intervenções pessoais,

movimentam o fluxo da memória e história que se evidencia ao longo da coletânea,

mas o caminho cronologicamente invertido da apresentação dos textos faz, em certo

nível significativo, o que o autor deseja: nós voltamos ao passado, independente da

sombra de modernidade que se agita em cada recordação.

Com a possibilidade de identificar na organização uma construção

estética, não meramente estilística, mas familiar à criação com fins expressivos,

Sertões do Seridó se aproxima outra vez do modo literário. Os trechos identificados

como contos, descrições poéticas, excertos da poesia popular, descrições

requintadas e a criação narrativa na ausência de documentos podem ser, dessa

forma, lidas como um todo significativo, não meramente “arquivado” em uma nova

publicação.

Por esse caminho, a coletânea junta modos ensaísticos diversos em não

apenas um arranjo diferente da obra do autor, mas facilita sua leitura literária como

parte da tradição norte-rio-grandense. Lamartine encontra-se na cadeira dos mais

importantes ensaístas potiguares que tratam do sertão, espaço que dificilmente seria

ocupado por outros escritores contemporâneos ao seridoense, pois mesmo Cascudo

preferencia a cultura litorânea, fazendo história partindo de Natal.

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5. APROXIMAÇÕES FINAIS ENTRE OS AUTORES

Ao retomarmos nossa linha de leitura entre Grande sertão: veredas (2011)

e Sertões do Seridó (1980), observamos que tais obras encontram-se próximas em

aspectos fundamentais da escrita do ensaísta, o que fortalece nossa tese da

influência de Rosa sobre Lamartine. Nas duas obras é facilmente observável a

estruturação de suas histórias pela rememoração, pelo “ato de narrar” (Benjamin,

1987), e mesmo na identificação pessoal do narrador/enunciador com a matéria de

que fala. Isso, como consideramos, mantém uma perspectiva diferente do conceito

clássico de regionalismo e aproxima os dois autores, mesmo em sertões e gêneros

textuais diferentes.

Também esses fatores, que geram formas atípicas de enunciar

(comparando nosso corpus com o “romance sertanista exótico” e o ensaio histórico

etnocêntrico), oportunizam, para o leitor, uma provável identificação com o espaço e

o homem. Em ambos os escritores há pelo menos uma linha de adesão de escolhas

lexicais “típicas” com a própria perspectiva dos enunciadores, não tornando suas

vozes parte de um coro “diferente de”. Ao contrário da exposição em terceira

pessoa, não apenas gramatical, mas em uma espécie de sombra do outro, as “linhas

narrativas” rosiana e lamartineana apresentam-se dentro de uma experiência

pessoal (mesmo que ficcionalizada) do eu. Encontramos os sujeitos de maior

onisciência em cada texto não apenas dentro do sertão, mas em reconhecimento

com ele. Seus processos identitários são promovidos passando por tal espaço em

uma travessia pessoal, e seus conhecimentos evidenciam-se pela experiência.

Com isso, é facilmente observável a presença de outras pessoas nos

discursos de Oswaldo Lamartine e de Rosa, via Riobaldo, voltando nossa atenção

para uma leitura de sertões povoados, não apenas pelos narradores. Vemos as

interferências indiretas frequentes de personagens como Quelemém: “Por isso dito,

é que a ida para o Céu é demorada. Eu confiro com compadremeu Quelemém, o

senhor sabe: razão de crença mesma que tem – que, por todo o mal, que se faz, um

dia em repara, o exato.” (ROSA, 2011, p. 47), as vozes dos companheiros de

veredas e/ou de desconhecidos que marcaram a história por uma fala: “Surpreendi

um, o Conceiço, que jazia vadio deitado, se ocultando atrás de fechadas môitas;

momento que raro se vê, feito o cagar dum bicho bravo. – 'É essa natureza da

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gente...' – ele disse […]” (ROSA, 2011, p. 399), ou por histórias alheias que costuram

a principal, como algumas de Zé Bebelo: “[...] uma vez, ele

corria a cavalo, por exercício, e um veredeiro que isto viu se assustou, pulou de

joelhos na estrada, requerendo: – 'Não faz vivalei em mim não, môr-de-Deus, seu

Zebebel', por perdão...' E Zé Bebelo jogou para o pobre um cédula de dinheiro [...]”

(ROSA, 2011, p. 113).

Já em Lamartine, encontramos presença humana nas referências

literárias: “E era serviço que sempre corria perigo. Os que ganhavam a vida na

pedra se mutilavam ou perdiam a vida com a pedra – mote que serviu de carretilha

ao poeta: A vida corta a pedra/Mas ao cortar se corta/Na pedra quase-viva/A vida

quase morta'.” (FARIA, 1980, pp. 38-39), nos trechos de falas de conhecidos: “L. C.

Cascudo lembra o nome de José Gomes da Trindade Templo de Maria, falecido no

Caicó em 9-8-1898, com 84 anos, de quem diziam a boca pequena haver caçado

mais de 80 onças...” (FARIA, 1980, p. 184), em causos da região: “A notícia ganhou

a boca dos trabalhadores. E o 'viúvo' trabalhava calado e sisudo na humilhação de

seu abandono, enquanto o vizinho caçoava, cantando […] E nem carece dizer que a

peixeira cortou as rimas, a poesia e as carnes...” (FARIA, 1980, p. 38), assim como

em reflexões pessoais que se encontram com algum dizer dos funcionários da lida,

explicações que envolvem a imprecisão do que é passado “de boca em boca”, e

ainda trechos da sabedoria popular e dos autores recuperados do anonimato.

Enquanto o “doutor de fora” dá razão para o monólogo do narrador de

Rosa, que está em diálogo com os ex-companheiros por um “ensaio” de suas

memórias (no sentido de Montaigne), o esquecimento gradativo da bibliografia do

Seridó e suas testemunhas dos tempos velhos é o que motiva Lamartine a reviver

essa região e população por meio da escrita ensaística, isto é, para garantir a

continuação dessas histórias para a posteridade.

Torna-se pertinente, portanto, destacar outra dimensão de identidade com

o espaço: ele é construído, além das paisagens, por comunidades que interferem

nessas memórias aparentemente individuais. Cada ato de contar uma lembrança

passa por outras pessoas e histórias que atravessam a linha do enunciador, e assim

cada sujeito presente nesses enunciados dá novo contorno às linhas gerais dos

espaços apresentados (mesmo que seja em um diálogo para fora de suas

fronteiras).

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Nesse ponto, é coerente indicar que as ditas interferências se apresentam

vinculadas ao discurso do narrador-personagem rosiano ou da linha argumentativa-

criativa do ensaísta, sendo que o sujeito da enunciação as reorganiza, buscando

não apenas o desenvolvimento de uma história/explicação, mas tornando o diálogo

em seu discurso o próprio desenvolvimento. Por esse elemento, mesmo a memória

individual encontra-se de tal maneira contaminada da presença dos outros, que a

linha do texto permanece, prioritariamente em Rosa, na primeira pessoa do singular

sem se afastar totalmente do diálogo, da presença coletiva mesmo nas piores horas;

enquanto o plural em primeira pessoa é a tônica de Lamartine, que também não se

nega ao contato com outros habitantes do Seridó:

Mas, de feito, eu carecia de sozinho ficar. Nem a pessoa especial do

Reinaldo não me ajudava. Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre

nas estreitas horas – isso procuro. O Reinaldo comigo par a par, e a tristeza

do medo me eivava de a ela não dar valor. Homem como eu, tristeza perto

de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero. (ROSA, 2011,

p. 204)

Poucos abusões conhecemos ligados aos caçadores de abelhas. Uma mais

estranha e que parece comum a todo o sertão nordestino, é a de que o mel

da abelha limão, tirado no mato, tem de ser comido em silêncio. Se um dos

tiradores, acabada a refeição, diz para o outro: – “Vamo imbora”, fica

completamente bebado, lançando e areado. (FARIA, 1980, p. 109)

Podemos, partindo desse entendimento, ver nos projetos de tais

escritores mais do que um “diálogo”, no sentido de Bakhtin (1997), e sim processos

muito similares ao ato de narrar estudado por Walter Benjamin em seu O narrador,

pois neles muitas vezes o individual e o coletivo se misturam/confundem:

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem

todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que

menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros

narradores anônimos. (BENJAMIN, 1987, p. 198)

Assim, pelas concepções de Benjamin, poderíamos dizer que a “narrativa”

de Faria e Rosa é uma forma artesanal de comunicação, pois percebemos a

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“impressão” da presença dos narradores nas histórias contadas, e que são, de modo

equivalente, mergulhadas em suas vidas (reais ou imaginárias). Além disso, também

tais narradores costumam contar as circunstâncias em que receberam a história ou

como a vivenciaram, o que nos aproxima, por exemplo, de uma perspectiva coletiva

das passagens em que Riobaldo inicia uma reflexão sobre algum ponto de sua vida

partindo da cultura popular e, nos ensaios de Lamartine, dos comentários sobre a

manutenção de certos aspectos culturais seridoenses. São esses, como

entendemos, indícios de um ato comunitário no enunciado, das diversas vozes que

se apoderam do discurso individual. Como identificamos nos exemplos seguintes,

tanto Rosa quanto Lamartine deixam essas vozes penetrarem em seus discursos

pela lenda de covarde virar bravo e da caipora:

Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não

sabendo, não me entenderá. Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou.

O que há, que se diz e se faz – que qualquer um vira brabo corajoso, se

puder comer crú o coração de uma onça pintada. É, mas, a onça, a pessoa

mesma é quem carece de matar; mas matar à mão curta, a ponta de faca!

Pois, então, por aí se vê, eu já vi: um sujeito medroso, que tem muito medo

natural de onça, mas que tanto quer se transformar em jagunço valentão – e

esse homem afia sua faca, e vai em soraca, capaz que mate a onça, com

muita inimizade; o coração come, se enche das coragens terríveis! O senhor

não é bom entendedor? Conto. De não pitar, me vinham uns rangidos

repentes, feito eu tivesse ira de todo o mundo. Aguentei. […] Reproduzi de

mim outro fôlego. Deus governa grandezas. Medo mais? Nenhum algum!

Agora viesse corja de zebebelos ou tropa de meganhas, e me achavam. Me

achavam, ah, bastantemente. (ROSA, 2011, pp. 205-206)

A caipora às vezes vem disfarçada em outro bicho. Um sertanejo, há muito,

confidenciou-me haver disparado e recarregado a capricho sua lazarina por

quatro vezes em um gavião vermelho: “Olhe que não dava 15 braças prá

onde eu estava agachado. No primeiro tiro o bicho se arrepiou e sujou

(defecou) – pensei inté que ia cair. Depois dos quatro, já desconfiado,

rebolei uma pedra e vim m'imbora...” Outro contou-nos haver atirado em um

veado e esse, impassivelmente, vir farejar o pé de pau onde estava trepado.

Astúcias da caipora […] (FARIA, 1980, p. 209)

Seguindo tal perspectiva, além do ato de narrar encontrado nos textos

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analisados, consideramos também os estudos sobre a memória pela natureza das

escritas de ambos os autores. É fundamental perceber a atuação do recurso às

memórias em nosso corpus, pois interfere na própria presença ficcional devido ao

caráter reconstruído das lembranças.

A existência do passado posto em revisão, além de acusar um “caráter

ensaístico” desenvolvido pelos enunciadores, meche com as motivações discursivas

de tais obras. Lamartine se coloca como testemunha e pesquisador crítico do sertão

já mudado, enquanto Rosa desenvolve seu Grande sertão pelo testemunho do velho

Riobaldo, que tenta dar coerência ao seu caminho de vida. Por essas semelhanças,

nessa leitura comparada passamos pelo pensamento de Maurice Halbwachs sobre

memória coletiva, e a reflexão sobre a memória de velhos por Eclea Bosi.

Halbwachs considera que nossas lembranças são naturalmente sociais, o

que nos ajudaria a compreender esse enriquecimento das obras tratadas pelo

“testemunho” do “eu” atravessado de “outros”:

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros,

ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e

objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós.

[...] sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que

não se confundem. (HALBWACHS, 2006, p.30)

Também observa, o que é positivo para nosso trabalho, que não há uma

necessidade de “exatidão” nas lembranças e que, a uma quantidade de 'lembranças

reais” se juntaria “uma compacta massa de lembranças fictícias.” (HALBWACHS,

2006 p. 32). Isso ressalta nossas possibilidades de tratar o gênero ensaístico e a

tendência ensaística como motivadora da ficcionalidade dos autores, pois, na

medida em que utiliza memórias, há modificações nas suas histórias. E,

consequentemente, pela escrita de Lamartine explorar relatos pessoais em relativo

equilíbrio com documentos históricos, não encontramos desconforto na sua redação,

e sim aceitação: o ensaísta parece ser consciente desse aspecto das memórias e

não as desqualifica por não trazerem mais que uma provável veracidade. É nesse

ponto que encontramos a “mimese criativa” no autor potiguar.

A obra de Lamartine busca, como entendemos, exatamente o contrário: a

existência dessas histórias não enquanto registro oficial sepultado em uma estante,

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mas fazendo parte da cultura sobrevivente, uma tradição a ser passada em visão

ampla da realidade seridoense, o que já é desenvolvido desde Rosa pela negação

da “verdade aparente pura”.

Por pretenderem seguir adiante com tal projeto da realidade, não

subestimam o valor de memórias, entendidas em senso comum como

anedóticas/ficcionais. As histórias menos reais também participam da identidade das

sociedades que as comunicam, e os escritores as reconhecem nessa memória

coletiva que perpassa os seus discursos. Essa “tradição rosiana” fica bastante

evidente em várias passagens de Lamartine:

As armas de fogo detêm, naturalmente, maior acervo de tabus. Assim é que

atirar em urubu ou consentir que alguma mulher pegue na espingarda, são

motivos suficientes para inutilizá-la, transformando-a de “chumbo frio” em

“chumbo quente”. E para justificar o preconceito alegam que se depois que

atirar em urubu soprar na boca da arma, correrá água pelo ouvido da

mesma... (FARIA, 1980, p. 188)

Rosa torna esse fator fundamental, organizando e dando forma ao próprio

fluxo da narrativa de Grande sertão: veredas pela recordação muitas vezes vacilante

de Riobaldo. O narrador, como já indicamos, recupera suas falas no diálogo com o

“doutor”, reformulando-as e assumindo certas vezes impressões pessoais meio a

dúvidas:

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é

muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela

astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se

remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido?

Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em

tantos tempos, tudo miúdo recruzado. (ROSA, 2011, p. 241)

De modo próximo, o estudo de Bosi (1979) nos leva para uma visão da

memória do sujeito em idade avançada, que depende dos gatilhos presentes no

meio ou nas lembranças que mais os marcaram. Com a mudança do meio pela

modernização, suas memórias mais profundas não encontram os sinais do convívio

antigo que facilitariam a volta à tona das imagens do passado. O hiato entre a

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vontade de lembrar e a chegada da memória é somente preenchido, muitas vezes,

nas relações cognitivas com algum dado físico do espaço (motivo pelo qual

poderíamos compreender o meio físico ser tão utilizado em Lamartine). Assim, não

são apenas memórias, mas memórias de “velhos narradores” que encontramos

como centro dessa tradição literária.

Como percebemos no estudo de Bosi, a diferenciação palpável da

rememoração de narradores velhos da de outros narradores ocorre pela prioridade

que escritores em idade avançada dão à recuperação do passado. Buscam o já

vivido não apenas como tempo de uma história, mas a própria razão em si da

narrativa, como quem vive no presente uma revisão constante dos períodos

marcantes da vida, geralmente ligados a fase produtiva do sujeito. Esse saudosismo

discursivo é presente em Lamartine que, embora homem ativo ainda longe das

limitações físicas e intelectuais que muitas pessoas enfrentam na velhice, segue

caminho o traçado anteriormente pela escrita rosiana do Grande sertão. Lamartine

se identifica com o “sertão velho” e se considera como o último de uma geração já

quase morta, o que o classifica como “narrador velho”, mesmo que comece a

escrever ainda jovem.

Portanto, em ambos escritores há saudade, revisão, esquecimento e

criação; mas o mais importante ocorre nos gatilhos, sempre movimentando as

lembranças, levando-nos de um assunto a outro ao gosto do narrador. No caso de

Lamartine, há pelo menos o ancoramento categórico nas ferramentas diversas dos

trabalhos do Seridó, que desenha com tanto cuidado. Suas descrições são em

grande maioria orientadas por tais objetos e percebemos que o texto se organiza

envolta deles:

Instrumentos de caça – Inicialmente usava-se o bacamarte e a espingarda

de pederneira que o aparecimento da espoleta fez transformar em

espingarda de ouvido. Com essas armas privativas os nossos antepassados

defenderam os rebanhos dos felinos carniceiros. Hoje, os velhos e raros

clavinotes são usados apenas para salvas nas festas juninas. (FARIA, 1980,

p. 188)

Ou, de outra forma, o ensaísta observa uma lista de procedimentos como

a “linha mestra” de sua recuperação do passado:

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a) Véspera do começo – Entrada a seca e faz de conta que o cidadão, ele

mesmo, se determinou a alevantar o seu açude ou açudeco, cuidou em

providenciar o cercado de solta para acomodar os jumentos; tratou de

apalavrar o apontamento dos ferros com o ferreiro mais perto e espalhou a

notícia no mundo. E de boca-em-boca na rede dos alpendres, nas bodegas

das beiras de estrada, nos domingos de missa e nas feiras sertanejas,

espalhou-se o acontecido... (FARIA, 1980, p. 33)

Quanto ao caso de Rosa, são encontrados gatilhos menos “táteis”,

ocorrendo ao longo do processo de rememoração, indo e vindo no tempo

psicológico do narrador ao passo que Riobaldo conta sua história a um “senhor” que

o escuta. Também por isso que encontraríamos um discurso muitas vezes retomado

e ressignificado, como ocorre com a definição do espaço: um sertão da lei do mais

forte, do pensamento acima do poder do espaço, dos vazios, do tamanho do mundo,

sertão grande, sertão só, sertão interno de cada um, sertão-arma, sertão dos

desencontros, sertão ocultado, sertão visto de cima etc. Em certos momentos essas

reformulações são associadas, por exemplo, à presença de Diadorim, que, de modo

geral, surge como um dos gatilhos emocionais mais frequentes do narrador:

Diadorim, na retirada, bem conseguido; depois se retrasou, por uma

cacimba de grota. – “...Estava com sangue numa perna de calça. Pra mim,

foi nada, arranho à-tôa...” O que me ensombreceu – então Diadorim estava

ferido. Aí, eu me esbarrei, beirávamos o riachinho do Jio, eu quis lavar os

pés, que muito me doíam. Acho que, de cansado, estava também com

dôres redondas de cabeça, molhei minhas fontes. Cansaço faz tristeza, em

quem dela carece. Diadorim estivesse ali, somentemente, espaço disso me

alegrava, eu não havia de querer conversar repertório de tiros e combates,

eu queria calado a consequência dele. Ao modo que eu nem conhecia bem

o estôrvo que eu vivia. Pena. Dos homens que incerto matei, ou do sujeito

altão e madrugador – quem sabe era o pobre do cozinheiro deles – na

primeira mão de hora varado retombado? Em tenho que não. Dó que me

dava era do Garanço, e o Montesclarense. (ROSA, 2011, p. 281)

Consideramos, portanto, que tais gatilhos tornam-se fundamentais no

objetivo de ambos os narradores: tanto Lamartine escreve procurando seu espaço

perdido na infância do interior (particularmente observando objetos desse passado

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que o orientem na busca do antigo Seridó), quanto Rosa faz Riobaldo relembrar seu

(des)caminho cheio de dúvidas que tomam toda a sua história (atendendo aos

chamados da memória que caminha não apenas pelo sertão, mas pelas pessoas

que passaram).

É importante, nessa altura, destacar mais uma anotação de Bosi: o

crescimento do espaço de experiência partindo da casa materna. Por tal ótica,

podemos dizer que há uma ampliação da terra que começa pelas recordações da

infância: o sertão da terra natal que se deixa forçosamente por um lado, e que vira

tema de estudo em incessantes tentativas de recuperação, ampliando suas

fronteiras em estudo contínuo que culmina em uma “especialização” sobre as

tradições da terra; e uma travessia interminável que começa com um barco

cruzando o rio e se espalha por paragens sem fim, mesmo depois de uma

“aposentadoria” dos dias de jagunço, pois o discurso faz retornar e dar voltas por

tantas outras veredas, as da reflexão.

Logo, nossa análise percebe a existência de campos ficcionais nos

projetos de Rosa e Faria por uma linha pessoal do “eu narrativo” e que, embora

sempre em diálogo com outros testemunhos que sustentam sua própria experiência,

promovem um ato complexo em que a verificação do “real” não se torna exatamente

necessária. No caminho dessa reconstrução de memórias de um espaço e tempo

vivenciados, há inevitavelmente a presença da criação pelo “erro”, mudanças de

impressão ou mesmo esquecimentos.

Ou seja, seu valor está atrelado às reformulações, mesmo quando o

discurso se pretende “objetivo”, e ambos os projetos permitem leituras do passado

em uma perspectiva feita no presente: com a não necessidade de total exatidão dos

relatos, podemos perceber os sertões de Rosa e Lamartine como o que ultrapassa a

história, uma visão desse passado revisado em cada leitura.

Tais projetos seriam, desse modo, antes de uma metódica apresentação

das memórias de cada narrador, mais voltados para a escrita que se liga às suas

identidades e imagens processadas na recriação do tempo e espaço vivido. Cada

um desses sujeitos que conta suas histórias torna o sertão parte de si, e cada leitor

que se identifica com os narradores leva consigo algo deles, em um contato mais

próximo com os sertões (sertões ensaiados, não fotografados). Essa é uma das

características mais fortes desse “surregionalismo” rosiano, que leva o regional ao

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reconhecimento humano, tornando-o universal.

Isto é, pela recuperação das memórias e seus enganos, assim como pela

seleção e importância de cada lembrança, uma provável tentativa mais “séria” de

registro histórico não impede que o sertão de cada autor chegue a um plano geral

humano:

E' um penitente a subir e descer pernas de córregos e riachos. Devagar,

aqui e acolá esbarrando, botando reparo nos chãos, na qualidade da terra,

na altura das ombreiras e nas riscas de marcas deixadas pelas águas das

grandes cheias dos invernos de castigo como o de 1924 e 1940...

Atrepando-se nos caculos, fazendo contas de cabeça para a decisão do dá

ou não dá – faz ou não faz – se deixa a ficar perdido em cismas de contas,

economias e sonhos... (FARIA, 1980, p. 28)

O de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São Francisco, bem reto ele

vai, formam uma esquadria. Quem carece, passa o de-Janeiro em canoa –

ele é estreito, não estende de largura as trinta braças. Quem quer bandear a

cômodo o São Francisco, também principia ali a viagem. O porto tem de ser

naquele ponto, mais alto, onde não se dá febre de maresia. A descida do

barranco é indo por a-pique, melhoramento não se pode pôr, porque a cheia

vem e tudo escavaca. O São Francisco represa o de-Janeiro, alto em

grosso, às vezes já em suas primeiras águas de novembro. Dezembro

dando, é certo. Todo o tempo, as canoas ficam esperando, com as correntes

presas na raiz descoberta dum pau-d'óleo, que tem. Tinha também umas

duas ou três gameleiras, de outrora, tanto recordo. (ROSA, 2011, p. 141)

Em passagens como essas, aparentemente construídas em função do

elemento “típico” que identifica a região, é possível uma leitura mais ampla, que nos

aproxima dos narradores e, por seu contato mais familiar com o tema, nosso

reconhecimento do outro se fortalece, diminuindo distâncias entre leitores e

personagens.

Podemos, finalmente, ver que por tal percurso a revisão e ampliação dos

sertões evocados atravessa mais que regiões, mas cada sertanejo, narrador e

receptor. Passamos pela aceitação e identificação com o espaço, pela revisão dele

embebida nas experiências pessoais e coletivas, e pela própria fusão da história de

vida e as percepções do ambiente (ambiente inevitavelmente povoado), que se

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desenvolvem meio ao “ensaio” como ato criativo dos autores. Essa é, como

avaliamos, a essência dessa tradição.

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6. O RUMO QUE A TRADIÇÃO TOMOU NO RIO GRANDE DO NORTE

Ao traçarmos a tradição de Rosa a Lamartine por uma leitura comparada

da construção dos seus sertões, podemos perceber características coincidentes nas

obras escolhidas, e isso nos leva, afinal, a ver duas dimensões que importariam para

tal estudo: a criação que ocorre pelos caminhos semelhantes de escrita e que nos

levam a aproximar as obras Grande sertão: veredas (2011) e Sertões do Seridó

(1980), e as características diferentes de cada projeto estético que nos fazem

particularizá-los.

Alcançando primeiramente as semelhanças, conseguimos reconhecer,

como já destacamos, sinais que apontam para além do texto “limitado” pelos

traçados geográficos do sertão e, mesmo assim, perceber os objetivos de cada

projeto em suas identidades sertanejas. Encontraríamos, desse modo, duas escritas

que lidam com a terra não a separando totalmente do mundo, pois cada distância é

ressignificada pelo sujeito que por ela passa.

A escrita de Oswaldo Lamartine, em sua variedade e mobilidade do

gênero textual ensaístico, nos possibilita uma leitura da tradição do sertão

seridoense no vértice entre a produção criativa de ensaios etnográficos e a

reformulação da tradição de seu tempo pela recuperação de memórias, invadindo o

terreno literário. O escritor expressa suas preocupações, com a manutenção do

meio ambiente e do registro da história seridoense, o desejo de manter vivo o

“sertão do nunca mais”, e para isso estuda documentos oficiais e autores regionais

buscando dar corpo ao seu intento. Porém, mesmo que seus escritos ganhem

aspecto de pesquisa científica, neles são recorrentes recursos literários, assim como

certo tom confessional, hibridizando o texto resultante. Lamartine se posiciona em

Sertões do Seridó enquanto pesquisador e integrante de uma cultura que tenta

manter viva, motivo pelo qual é possível perceber mesmo em trechos estritamente

argumentativos a ligação entre matéria tratada e identidade do redator no

desenvolvimento lapidar do texto.

Em tal recorte de inscrição da história do Seridó e da experiência vivida,

são construídas imagens de um ambiente geográfico-cultural mais que “registrado”,

e sim uma expansão das identidades do sertanejo e de seu meio pelos recursos

expressivos/criativos. Isso ocorre no estudo histórico e nas citações documentais

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assim como também pela especulação, imprecisão de fatos ou mesmo na ficção

declarada. A linguagem mais expressiva e pessoal, mais criativa que referencial,

acaba se ancorando igualmente no discurso devido particularmente ao recurso da

memória.

A recuperação do passado por memórias individuais ganha espaço na

escrita lamartineana não apenas por escolha, mas pela necessidade de sua

utilização em uma cultura passada em grande parte de boca em boca. O grande

número de “informantes” na linha argumentativa é o maior indício da oralidade dessa

tradição. E por esse caminho na pesquisa aparecem os relatos, e o próprio autor

toma uma posição menos distanciada.

Inclusive, não é apenas por memórias alheias que Lamartine se aproxima,

tendo inscrita sua própria experiência de vida. Todos esses recursos para recuperar

o passado são organizados de forma cuidadosa pelo redator, demonstrando

preocupação além da explicação e chegando à beleza da linguagem, o que ocorre

em passagens muitas vezes conficionais.

É nesse aspecto da obra do ensaísta que, pela escrita articulada em

matizes locais, vemos mais que os trabalhos do sertanejo ou um guia de palavras e

costumes periféricos que se misturam com cada profissão, as histórias de cada

aparato remanescente e vozes anônimas com vulto de patrimônio cultural de uma

época. Sua escrita ensaística diferenciada pelo estilo parcialmente literário e o

caminho de experiência pessoal mostra uma busca de objetividade que, no entanto,

apresenta inúmeras interferências pelos fatores estéticos da proposta do escritor. A

redação pautada em sobriedade aparente é, desse modo, um campo de

“porosidades” expressivas.

Em cada texto de Lamartine, percebemos a presença de um “articulador”

de assuntos bastante específicos e que é capaz de nos inserir em seus temas por

meio da experiência desse sertão anedótico e literário, histórico e memorialista,

regional e em diálogo com outras ribeiras.

Pelo caminho menos rígido do ensaio, Oswaldo Lamartine, como propõe

nossa leitura, invade a fronteira literária na recriação do Seridó que ultrapassa os

assuntos propostos e a redação meramente argumentativa, chegando ao extremo

reflexivo do gênero onde nos encontramos com a ficção e o cuidado com a

expressão.

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Utilizando Adorno (2003), entendemos que sua escolha pelo ensaio não o

leva à escrita literária mais “pura” (não enquanto objeto puramente artístico, mas

costurado por eventos passíveis dessa leitura estética), e acompanha suas bordas

por características compartilhadas, criando um universo sertanejo que não se

esquiva de elementos ficcionais. Uma produção “ideológico-literária”, como diria

Haro (2005), que não combate nenhuma de suas partes. Essa seria, enfim, a

dimensão em que podemos aproximar com mais propriedade o literato Lamartine de

Rosa.

Nossa perspectiva sobre a ficcionalidade literária, entretanto, nos afasta

um pouco do ensaio. Rosenfeld (2011) considera que a obra literária ficcional

passaria, independente de critérios valorativos, por algumas questões de

identificação que a separariam de outros tipos de produção. Mesmo apresentando

uma impressão de realidade e a aparência de continuidade que nos confundem com

um relato real, o texto ficcional literário apenas faria referências indiretas a

elementos extratextuais “onticamente autônomos” no mundo real, valendo-se de

“quase-juízos” em uma intenção que prioriza a criação estética. Mas Lamartine

convive com as duas dimensões.

O autor mineiro utilizaria, dessa forma, “contextos objectuais” como um

caminho para a construção estética, e não para uma intenção “séria” de realidade. A

“visão da realidade” seria ofuscada pela “imagem intencional” do texto literário, pela

sua criação intencionalmente ficcional. Dessa forma, mesmo que um “personagem”

exista de fato no meio físico, por exemplo, ele se tornaria uma outra entidade,

possuindo autonomia e não sendo reflexo da pessoa que o inspirou.

Além disso, Rosenfeld observa que pela presença humana no texto

surgem os elementos ficcionais mais evidentes: certas características textuais

acusam os sujeitos enunciados de serem personagens, tais como escolhas lexicais

que nos levam a seus processos psíquicos ou à onisciência da perspectiva narrativa.

Já os diversos sertanejos de Sertões do Seridó nem sempre passam por essa

transformação, como o caso dos informantes e mesmo dos estudiosos utilizados

para organizar/reforçar o pensamento do autor.

Fatores criativos não são raros na escrita de Lamartine, aparecendo em

várias passagens de Sertões do Seridó e que, de tal modo, acusam sua dimensão

ficcional. Porém, a dimensão de registro histórico ainda é um norteador em

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Lamartine, não sendo uma prioridade em Rosa.

Enquanto o ensaísta passa seres reais para uma dimensão mítica, o

romancista deixa suas influências mais submersas. Qualquer tentativa de

correspondência de seus personagens com pessoas reais termina em ambiguidades

desconcertantes. Rosa busca, como julgamos, a experiência do sertanejo renovada

da mesma forma que a pratica na linguagem. Seu livro é um processo novo por

excelência, não se fixando claramente a personalidades históricas ou mapas

precisos. Sua literatura nos leva ao sertão pelo diálogo de um velho jagunço como

se fôssemos por ele iniciados. Nos é passada a revisão de uma vida pelas veredas

de Riobaldo, e por sua história conhecemos o grande sertão dos narradores

viajantes, conhecedores de lugares não cartografados, únicas testemunhas de

outros tantos viajantes anônimos.

É nessa perspectiva que encontramos o maior nível de ficcionalidade de

Rosa. Ao invés de retratar acontecimentos célebres, ou pelo menos de modo mais

próximo da linha do documentário, como é típico no regionalismo clássico, “cria”

suas próprias histórias/estórias, personagens e espaços. Porém, não podemos dizer

que tal escolha diminua a “veracidade” de sua literatura, pois sua escrita ficcional

completa espaços que o discurso científico não alcança. Essa visão da realidade

que supera as limitações do discurso da realidade é justamente um dos objetivos da

escrita rosiana.

Quanto ao entendimento do narrador segundo Rosenfeld (2011), é

importante destacar que tal autor crítico define-o de forma diversa a do ethos

discursivo de um redator (o que nos afasta mais um pouco de Lamartine), pois esse

narrador não seria uma imagem do escritor, mas sim estruturalmente ficcional:

Na ficção narrativa desaparece o narrador real. Constitui-se um narrador

fictício que passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se por

vezes (ou sempre) com uma ou outra das personagens, ou tornando-se

onisciente etc. (ROSENFELD, 2011, p. 26)

Lamartine se inscreve no texto enquanto narrador dessa criação, mas

também como testemunha de uma História verídica. De mesma forma, por também

fazerem parte desse mundo reestruturado ficcionalmente, todos os outros sujeitos

deveriam ser imanentemente personagens, negando, enquanto obra literária, o

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caráter de “pessoas reais”:

A modificação do discurso indica que na ficção (e isso se refere também à

poesia e dramaturgia) não há um narrador real em face de um campo de

seres autônomos. Este campo existe somente graças ao ato narrativo (ou

ao enunciar lírico, dramático). O narrador fictício não é sujeito real de

orações […] não narra de pessoas, eventos ou estados; narra pessoas

(personagens), eventos e estados. E isso é verdade mesmo no caso de um

romance histórico. As pessoas, (históricas), ao se tornarem ponto zero de

orientação, ou ao serem focalizadas pelo narrador onisciente, passam a ser

personagens […]. (ROSENFELD, 2011, p. 26)

Todas essas questões nos levam, finalmente, ao entendimento das

diferenças encontradas na obra do ensaísta, não diminuindo, mesmo assim, o seu

valor literário. Parafraseando Anatol Rosenfeld, mesmo não sendo passível de

avaliações baseadas em critérios de veracidade, a obra literária continua no campo

de discussões do real ao caminhar por suas beiradas. O universo ficcional possui,

pelas suas estruturas esquemáticas, maior coerência que nossa já fragmentária

perspectiva do mundo, além da possibilidade única de “transparência” dos seres na

ficcionalidade literária que nos proporciona uma oportunidade única de

conhecimento humano. Esse lado é apenas acompanhado sem oposição pelo real

verificável do caráter mais “sério” no estudo lamartineano.

Rosa estaria, portanto, do outro lado da fronteira: enquanto o ensaio

lamartineano invade a literatura e permanece na linha do discurso ideológico-

literário, o romance do autor mineiro permanece no mundo ficcional, pelo qual “ecoa”

no real.

Seguindo entre essas divisões, entendemos que, mesmo por construções

estéticas de naturezas diferentes (mas com características próximas), ambos os

escritores se encontram próximos pelos processos de experiência (mesmo que

conscientemente “criados”) em busca dos sertões. Para Rosa, o processo ocorre em

uma busca pela “verdade complexa” que não exclui os contrastes e a imaginação,

deixando mais perguntas que possibilidades de resposta em seu sertão-mundo.

Para Lamartine, seria o resultado da batalha com o ato de contar um sertão ainda

vivo nas pessoas que o presenciaram, e que pode ainda viver pela tradição.

Caminhos inversos, porém complementares: ampliando as fronteiras pela incerteza

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e pelo conflito do próprio homem, e ampliando as fronteiras da terra pelo exame

cuidadoso da civilização sertaneja que não se apresenta apenas pelo registro oficial.

São esses sertões das memórias narradas, sertões de cenários povoados

por habitantes dos caminhos que não foram esquecidos, que se aproximam da

indescritível margem entre a vida de um narrador e a história de sua terra: espaços

criativamente sem arados ou limites de horizonte, o lugar ampliado pelo alcance das

ideias, sertão enquanto mundo construído por palavras; e sertão seridoense datado,

resistente por poucos traços físicos e culturais, e recuperado pelas palavras de

quem o viu.

No ensaio, Oswaldo Lamartine é a voz desse tempo atropelado pelo “pé-

redondo” das máquinas e diminuído em cada despedida dos antigos sertanejos,

assim como o vate da palavra quase morta, que voa pelo sertão enquanto tem

pousada segura em seus livros.

Finalmente, a tradição surregionalista deixada para o Rio Grande do

Norte se encontra na situação do autor: pela necessidade de (re)criação do registro

do interior do estado, o ensaísta se vê em uma posição de registro para os “doutores

de amanhã” que não viveram no sertão, na própria estruturação desse tempo e

espaço habitado, e no desenvolvimento de seu fôlego pela coerência de sua criação.

Lamartine nos deixa uma das obras mais amplas sobre cultura sertaneja

que a produção local possui, não apenas traçando as fronteiras do Seridó dentro da

literatura, mas desenvolvendo seu caráter ficcional.

Seus leitores se deparam várias vezes com a árida descrição de

incidência solar, flora retorcida, hidrografia e os nomes das cidades próximas,

apenas para serem absorvidos pela fluidez da redação lamartineana entre

objetividades vacilantes que enriquecem-se das formas mais diversas. Em poucas

páginas estamos não apenas acompanhando o raciocínio do estudioso, mas nos

detendo em diversas passagens pelas formas incomuns de sua redação, que

proporcionam tanto, em um nível linguístico, o fascínio do enunciado exótico/familiar,

quanto, em camada mais metafísica, o reconhecimento não afastado do outro ou de

uma ampliação dos traços da própria identidade regional.

O resultado desse breve balanço da contribuição de Lamartine para a

literatura ainda compreende o espaço de referência para a produção

regionalista/sertanista. Em um sistema literário esparso, com poucos escritores e

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quase nenhum representante de importância comparável a de Cascudo, o “príncipe

do Seridó” se ocupa do sertão e trata de seus principais temas, contemplando além

do espaço geográfico uma pequena tradição literária oral e escrita relativa ao Seridó.

Nas passagens de outros autores, e mesmo nas vozes dos sertanejos, encontra-se

a proposta de organização da literatura potiguar interiorana remanescente pelas

pesquisas do autor.

Lamartine a revive ressignificando tais passagens, elencando esses

recortes como parte da história dessa região. Constrói, assim, um Seridó histórico,

literário e lendário, que contagia seus leitores.

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