UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM
DANIEL DE HOLLANDA CAVALCANTI PIÑEIRO
Multiplicando Veredas entre Guimarães Rosa e Oswaldo Lamartine
Natal
2014
DANIEL DE HOLLANDA CAVALCANTI PIÑEIRO
Multiplicando Veredas entre Guimarães Rosa e Oswaldo Lamartine
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, área de concentração em Literatura
Comparada, linha de pesquisa Literatura e Memória
Cultural, como requisito parcial para a obtenção do título
de mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Edna Maria Rangel de Sá
Natal
2014
DANIEL DE HOLLANDA CAVALCANTI PIÑEIRO
Multiplicando Veredas entre Guimarães Rosa e Oswaldo Lamartine
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, área de concentração em Literatura
Comparada, linha de pesquisa Literatura e Memória
Cultural, como requisito parcial para a obtenção do título
de mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Edna Maria Rangel de Sá
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Profa. Dra. Edna Rangel de Sá – UFRN
(Orientadora)
_______________________________________________
Prof. Dr. Derivaldo dos Santos – UFRN
Examinador
_______________________________________________
Profa. Dra. Maria Suely da Costa – UEFB
Examinadora
DEDICATÓRIA
A meus pais, pelo apoio incondicional durante minha formação
ao assumirem meus sonhos inseguros como cruzada pessoal,
dando-me forças mesmo nos momentos mais frágeis.
A meus avós, que me despertaram o interesse por histórias e
memórias familiares, preparando minha percepção para o
presente trabalho.
A Ovídeo Valois Correia, vivo em memória como pesquisador,
professor e intelectual exemplar.
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Edna Maria Rangel de Sá, pelas lições de vida ao longo
de 5 anos de trabalho na Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (ECT-UFRN), sendo um dos meus principais exemplo de atuação
docente, e por dois anos de orientação sincera e reveladora de caminhos, sem a qual não
teria concluído minha dissertação e formação.
Ao Professor Doutor Derivaldo dos Santos, por boa parte de minha formação
como pesquisador devido às suas aulas e indicações de leitura, desobrigado de
orientações, mas em direito coorientador desse trabalho.
À Professora Doutora Maria Suely da Costa, pelas orientações essenciais
presentes em sua leitura minuciosa da fase de qualificação do presente trabalho, guiando
meus passos vacilantes na (re)escrita de todos os capítulos.
Aos Professores Doutores Alex Beigui de Paiva Cavalcante, Gerardo Andres
Godoy Fajardo e Humberto Hermenegildo de Araujo pela capacitação crítica, teórica e
metodológica proporcionada em suas aulas ao longo do primeiro ano do mestrado, cujo
conteúdo foi a base de minha escrita.
À secretaria do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEL-UFRN) e ao Programa de Apoio a
Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), pela
orientação e auxílio que garantiram minha permanência na universidade durante os dois
anos de curso.
Aos professores orientadores, colegas professores estagiários e monitores da
Escola de Ciências e Tecnologia (ECT-UFRN) que influenciaram em minha formação ao
longo dos últimos 5 anos, participando em várias etapas do desenvolvimento do presente
trabalho.
Aos colegas coorientados, que participaram ativamente no avanço de minha
escrita: Gercleide, Layana, Lédja, Mirlene e Valdir.
Aos meus familiares e amigos que me acompanharam durante esse período de
formação e me auxiliaram em questões aparentemente banais, mas de grande
importância: Arlete e Gumercindo, Emílio e Ruth, Fabiano e Alaíde, Maria Carolina, Ovídio
e Fátima.
RESUMO
A presente dissertação se propõe a estudar os elos entre a linha sertaneja rosiana,
representada por Grande sertão: veredas (2011), e a seridoense do interior do estado do
Rio Grande do Norte, nos ensaios de Sertões do Seridó (1980) de Oswaldo Lamartine de
Faria, como uma continuação da tradição iniciada por Guimarães Rosa. Para isso,
consideramos as definições sobre regionalismo desde Antonio Candido (2000) até
Chiappini (1995), que nos permitem ampliar a visão da tendência no Brasil, e mostramos
as ligações iniciais entre as duas obras citadas. Dessa forma, ao conceito de regionalismo
unimos o de tradição (CANDIDO, 2001) e nossa leitura de Lamartine é guiada para o
ensaísmo como a fronteira entre escrita ideológica-literária (HARO, 2005), que se
aproxima da ficção rosiana. É por esse caminho que analisamos os cinco ensaios de
Sertões do Seridó, e aproximamos as criações do escritor mineiro e do potiguar pelo que
se evidencia na construção de seus sertões: a ficcionalidade no ato narrativo aproximado
a Walter Benjamin (1987), pautado em “gatilhos da memória” (BOSI, 1979) e que nos leva
às reconstruções da história, especialmente pela presença de narradores idosos. Com
tais projetos, concluímos que o lastro entre Rosa e Lamartine nos leva para um
regionalismo cuja força não se encontra no choque do exotismo, mas em sua
aproximação aos leitores. Ambos os autores tornam os sertões universais pela
apresentação do fator regional.
PALAVRAS-CHAVE: regionalismo; tradição; ensaio; memórias.
ABSTRACT
The present dissertation proposes to study the links between Guimarães Rosa's
backlands line, represented by The Devil to pay in the Backlands (2011), and the one from
Seridó's region in the state of Rio Grande do Norte, found in the essays of Sertões do
Seridó (1980) by Oswaldo Lamartine de Faria, as a continuation of the tradition begun by
Guimarães Rosa. For this, we consider the definitions of regionalism from Antonio Candido
(2000) to Chiappini (1995), which allow us to expand the view of the literary tendency in
Brazil, and so we show the initial connections between the two mentioned works. This way,
the concept of regionalism joins the notion of tradition (Candido, 2001) and our reading
about Lamartine is guided for the essayism as the border between ideological-literary
writing (HARO, 2005), which get closer to Guimarães Rosa's fiction. It is through this path
that we analyze five essays of Sertões do Seridó, and approach the creations of the two
writers from what is evident in the construction of their backlands: the fictionality in the
narrative act similar to Walter Benjamin's (1987), guided by "triggers of memory "(BOSI,
1979) which leads us to reconstructions of history, especially by the presence of elderly
narrators. With such projects, we conclude that the basis between Rosa and Lamartine
leads to regionalism whose strength is not in the shock of exoticism, but in its
approximation to readers. Both authors make the backlands universal by the presentation
of regional factor.
KEYWORDS: regionalism; tradition; essay; memories.
Sumário
INTRODUÇÃO…...............................................................................................................p 9
1 TRADIÇÃO E REGIONALISMO: REVISÃO DE CONCEITOS.…...............................p 17
1.1 Os sertões de Rosa e Lamartine.….......................................................................p. 29
1.2 Da escrita roseana ao ensaísmo lamartineano: uma tocha passada adiante....p 37
2. GRANDE SERTÃO: VEREDAS E A CONSTRUÇÃO DO SURREGIONALISMO....p. 44
3. SOBRE O GÊNERO ENSAÍSTICO: DEFINIÇÃO E PERSPECTIVA DE ESTUDO...p 62
4. SERTÕES DO SERIDÓ: VEREDAS POTIGUARES…........................................…...p 67
4.1 Primeiro ensaio…....................................................................................................p 69
4.2 Segundo ensaio.......................................................................................................p 87
4.3 Terceiro Ensaio......................................................................................................p 101
4.4 Quarto ensaio.........................................................................................................p 107
4.5 Quinto ensaio….....................................................................................................p 116
4.6 Visão geral da coletânea…...................................................................................p 135
5. APROXIMAÇÕES FINAIS ENTRE OS AUTORES...................................................p 139
6. O RUMO QUE A TRADIÇÃO TOMOU NO RIO GRANDE DO NORTE...................p 150
REFERÊNCIAS…..........................................................................................................p 157
9
INTRODUÇÃO
Ao estudarmos a tradição regionalista contemporânea, posterior à
tendência da geração de trinta, nos deparamos com Guimarães Rosa e outros
autores que, de formas diferentes, atualizaram a escrita a ponto de ultrapassarem o
conceito tradicional do gênero. Em tempos de aceleração da modernidade devido à
globalização, ainda mais pelo advento das culturas digitais, esses escritores
resistem, tornando o seu mundo regional parte desse diálogo global. Suas obras nos
levam para reflexões universais e/ou identificação com o antes simplesmente tratado
como exótico, e o fazem partindo do local.
Um desses autores, entretanto, que é responsável por uma das mais ricas
recriações do interior do Rio Grande do Norte, continua quase desconhecido e
pouco estudado pela Literatura.
Oswaldo Lamartine de Faria, nascido em 15 de novembro de 1919 em
Natal (RN), escreveu sobre os sertões do Seridó (região do estado do Rio Grande
do Norte) como poucos autores potiguares se propuseram a fazer. Foi o décimo filho
de Juvenal Lamartine, ex-governador do Rio Grande do Norte e também
memorialista do sertão, cuja obra influenciou o filho ensaísta, mas sem atingir a
mesma relevância.
Desde cedo, Oswaldo Lamartine conviveu com a paixão do pai pela
cultura sertaneja e, talvez por causa da presença constante desse tema em sua
juventude, assim como pela sua ligação direta com a terra, levou adiante o estudo
do sertão do Seridó por toda a sua vida.
Seus primeiros contatos com esse mundo começaram com a compra de
uma fazenda em São Paulo do Potengi, quando pode acompanhar as conversas de
seu pai com os amigos sertanejos. Segundo o próprio escritor, em entrevista
concedida para os professores Humberto Hermenegildo e Vilma Vitor Cruz publicada
posteriormente em Oswaldo Lamartine: Um Príncipe do Sertão (ARAÚJO,
TAVARES, VITOR, 2011), foram esses momentos que fizeram do Seridó uma parte
de si, e são essas suas raízes mais fortes no solo quebradiço da região.
No entanto, pelos incidentes da revolução de 1930 que afetaram sua vida
e a de sua família1, e devido ao trágico acidente que levou a vida de um de seus
1 Revolução que, no Rio Grande do Norte, depôs o governadorJuvenal Lamartine, representante da oligarquia Seridoense, adversária da dos Maranhão.
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amigos de infância e o marcou até sua velhice2, logo Lamartine se vê obrigado a sair
do estado. Muda para Pernambuco em 1931 e fica lá por dois anos no Ginásio do
Recife, passando para o Instituto LaFayette no Rio de Janeiro, onde fica até 1938,
quando decide entrar para a Escola Superior de Agricultura e Lavras em Minas,
formando-se técnico agrícola em 1940.
Ao terminar seus estudos, administra uma fazenda em Riachuelo (RN), e
volta a São Paulo do Potengi (RN) para trabalhar na fazenda do pai. Nessa época,
são mandados como auxílio alguns vaqueiros experientes que, segundo Lamartine,
eram pessoas sem o menor estudo, mas com memórias fantásticas. E nas noites à
luz de candeeiro, conversando nas redes, mais uma vez volta às conversas sobre o
sertão, não apenas escutando os velhos amigos do pai, mas participando.
Porém, nas próximas décadas sua história mostra reviravoltas que o
afastam várias vezes do sertão: até o final da década de 50, trabalhou como
professor na Escola Doméstica de Natal, na Escola Técnica de Jundiaí e participou
da Segunda Guerra como pracinha, indo em seguida para Macaé (RJ). Ficou no Rio
até o fim dos anos 70, quando finalmente volta para a fazenda de Acauã, em uma
época em que sua terra já estava bastante mudada pela ação do homem, a
degradação ambiental e a chegada da modernidade naquelas ribeiras.
É interessante observar que, mesmo começando a escrever sua obra
desde os anos 40, principalmente nesse período de 20 anos entre a volta para o
sertão seridoense e a vida no Sudeste, seus livros apresentam o conteúdo mais
direcionado para o registro da cultura sertaneja. Desde A caça nos sertões do Seridó
(1961) até Encouramento e arreios do vaqueiro no Seridó (1969), por exemplo,
Lamartine produz algumas das observações mais específicas do sertão em sua
escrita, alcançando, mesmo assim, uma abrangência de assuntos possivelmente
motivada pela vontade de “recuperar” a terra, uma tentativa de registro das tradições
que ultrapassa a simples documentação.
E não são apenas suas pesquisas e lembranças que acabam
transformadas em livros, mas o diálogo constante, por cartas ou conversas, que o
leva a vários “sertões”. Um dos casos mais notórios disso ocorreu com a escritora
Raquel de Queiroz. O especialista na cultura sertaneja conhece a romancista na
2 Ainda criança, ao limpar uma arma de caça Oswaldoacidentalmente dispara contra o peito de um amigo, e esse trauma o persegue pelo resto da vida, até 2007,quando o escritor comete suicídio da mesma forma.
11
época da composição de Memorial de Maria Moura (publicado em 1992), e a ajuda
na compreensão de vários fatores sobre a vida do sertanejo e seu espaço, a ponto
do livro ser-lhe dedicado.
Como afirma a escritora em artigo (QUEIROZ, 1997), em 1990 estava
determinando o espaço geográfico do romance e se encontrava entre problemas
para entender os costumes regionais, além de detalhes como vestuário típicos,
armas etc. Quando as informações dos amigos não bastaram mais, Lamartine foi
finalmente introduzido no projeto, e a sua ajuda gerou não apenas boa parte do livro,
mas uma amizade duradoura:
Acho que, no Brasil, ninguém entende mais do sertão e do nordeste do que
Oswaldo. Quanto a mim, senti-me como garimpeiro que descobre uma
mina. Oswaldo levou a sério a tarefa, e passou a me fornecer toda espécie
de informação que eu lhe solicitava: desenhava roupas, chapéus,
cachimbos e, principalmente, as armas dos meus cabras. (QUEIROZ Apud
FARIA, 2008)
A escritora afirma que Lamartine foi responsável por várias desenhos de
referência e um extenso glossário da cultura sertaneja. Podemos, dessa forma,
considerar que parte da “obra” do etnólogo não está apenas em seus 21 livros, ou
mesmo em seus cadernos de anotação, mas nas conversas com diversos amigos
que integraram as informações colhidas nessas consultas e entrevistas na escrita de
suas futuras obras.
Isso se torna ainda mais evidente em outro exemplo de contato regular
que teve com um de seus conterrâneos: Câmara Cascudo. Lamartine, em entrevista
já citada, afirma que o amigo escritor sempre o questionava quanto a elementos do
sertão, e isso o levou a anotar o que presenciava antes que desaparecesse da
paisagem sertaneja e dos labirintos de sua memória. Em outra ocasião, Cascudo
passou para o amigo pesquisador um assunto que não conseguiu desenvolver,
assunto este que viria a ser um dos livros mais famosos de Lamartine:
Apontamentos sobre a faca de ponta (1988). Considerando isso, é coerente dizer
que nosso ensaísta é, em certa medida, a “outra parte” da obra de Cascudo, ou,
mais especificamente, a maior porção da tradição norte-rio-grandense que cabe à
escrita sobre o interior do estado, o estudo mais especializado que apenas a
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experiência do “Príncipe do Seridó” poderia realizar.
Fato é que os estilos desses dois autores são relativamente próximos
quanto ao uso da memória. Enquanto Lamartine busca o sertão da sua época, por
lembranças e pela pesquisa, temendo o desaparecimento das tradições, Cascudo
trata prioritariamente de Natal, igualmente temeroso dos espaços em branco da
história local. De um lado, este escritor, acadêmico de formação e de uma das
famílias mais influentes do estado, lida com documentos, depoimentos, lembranças
familiares e pessoais em uma construção dos acontecimentos de um passado quase
não registrado pelos seus contemporâneos. De outro, também filho de uma das
principais famílias do Rio Grande do Norte, instruído especialmente pela vivência e
constante observação, aparece um ensaísta de estilo “sertanejo-erudito” em busca
da preservação de sua terra.
O que observamos em ambos autores é, portanto, algo semelhante à
escrita autobiográfica, mas voltada para fora do autor: suas vidas acabam sendo
parte de histórias maiores e, assim, enquadram-se no papel da experiência vivida
que confere ao todo narrado a comprovação testemunhal. Quando falam da terra,
não prevalesse a autobiografia, e quando discorrem sobre si, não se esquecem do
espaço de onde falam. Encontram-se, portanto, em posição única: são mais que
simples potiguares interessados em suas raízes, tomando o papel de verdadeiros
representantes oficiais da tradição, pois têm meios suficientes para participar de
nossa história como “flâneurs”. No caso de Lamartine, diríamos até que seu
“passeio” é ainda mais evidente, pois constrói o sertão atentando para outras
ribeiras:
Acreditamos que os escritores das diferentes terras retratam, nos quatro
cantos do mundo, os feitos dos seus rastejadores – já que eles representam
um dia da idade do homem. Da literatura dalém mar, copiamos uma página
de ZADIG, de VOLTAIRE, onde as conclusões em torno do rasto deixado
pela cachorrinha de S.M., muito se assemelham às chegadas pelo velho
vaqueiro dos sertões cearenses […] (FARIA, 1980, p. 196)
Dessa forma, pelas anotações incessantes (inclusive por meio de
gravuras) desse escritor que “passeia” pelo sertão, é possível identificar dois
aspectos recorrentes na obra de Lamartine: sua escrita pautada na imagem, no meio
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material desenhado ou narrado, que direciona suas pesquisas; e a memória, não
apenas como finalidade de registro, mas fator de enriquecimento dos assuntos
tratados.
Percebemos isso ao encontramos desenhos e descrições bastante
precisas do léxico sertanejo não apenas na “herança” de Raquel de Queiroz, mas
norteando algumas obras do escritor. Seus livros são costurados por imagens
(muitas vezes de próprio punho) dos trabalhos em couro, das ferramentas da lida,
dos ferros de marcar gado, dos nós de cada instrumento de pesca e mesmo
algumas xilogravuras de capas de livros; o que nos leva, enfim, à observações mais
detidas de sua estética: qual seria a importância dessas características em seu
ensaísmo?
Quanto à linguagem, organização e apresentação da escrita, percebemos
aproximações entre o escritor potiguar e dois outros, já consagrados, a saber:
Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. De Euclides, o ensaísta parece retirar a
voracidade descritiva, e mesmo certa organização formal, percebida tanto em A
caça nos sertões do Seridó (1961) como em Conservação de alimentos nos sertões
do Seridó (1965). Mas de Rosa herda o tratamento com o espaço.
Leitor constante de obras sobre o sertão, produz vários estudos
etnográficos com o linguajar da terra, em que identificamos uma forte ligação entre o
enunciador e a identidade construída para o Seridó. Sua atenção com o modo
expressivo em cada novo texto o leva para uma dimensão estética ainda mais
elevada: resvalando no ficcional em várias passagens, assumindo-o em outras, e
mesmo criando verdadeiras imagens poéticas, Lamartine assume adequadamente a
cadeira número 12 da Academia Norte-rio-grandense de Letras, mesmo lugar antes
ocupado por seu pai, pois ultrapassa o papel de pesquisador e revela o sertão pela
linguagem literária.
Todo mundo sabe tratar-se de problema antes de tudo educacional. Mas o
indiferentismo com que vem sendo relegado faz pensar, sem qualquer
pessimismo, que na pisada em que vamos, o sertanejo herdará, em um
amanhã bem próximo, um chão sem rastros de bichos e silencioso de
cantos de pássaros. Paisagem morta e de fauna sintética já galhofada no
dizer matuto: “De bicho de cabelo só vai escapar escova; de animal de
quatro pés, tamborete e bicho de fôlego – o fole...” (FARIA, 1980, p. 214)
14
É essa ligação entre etnografia e escrita criativa que, inclusive, faz do
autor exemplo de uma tradição regionalista diferenciada. Semelhante ao que
observamos na escrita de Guimarães Rosa, Lamartine se concentra em apresentar
o sertão não limitado a um quadro visto de longe. Os vaqueiros de ambos os
escritores nos evidenciam mais que “traços regionais”, e nos colocam no meio de
discussões humanas, tais como a existência de Deus e a vida e morte não apenas
de pessoas, mas de lugares e épocas.
Das eras de 30 para cá principiaram a trocar as caçambas das tropas de
jumento pela lastro mais taludo dos caminhões. E catingando a caatinga de
gasolina e diesel, rodam agora as rodas dos tratores de pneu, dos tratores
de lâminas, dos scrapers, dos rolos compressores pé-de-carneiro e toda a
intrincada engrenagem das máquinas com a zoeira dos motores. Mas isso
está nos relatórios oficiais, nos livros técnicos e ainda é imagem dos olhos
de todo o mundo que sobrou... (FARIA, 1980, p. 42)
Tão bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe dizia: o ruim com o ruim,
terminam por as espinheiras se quebrar – Deus espera essa gastança.
Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. O senhor rela
faca em faca – e afia – que se raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na
outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que
eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque s merece e carece.
Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, não arrocha o
regulamento. Pra que? Deixa: bobo com bobo – um dia, algum estala e
aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no
meio, um pingado de pimenta... (ROSA, 2011 p. 41)
Por essas semelhanças, investigamos a coletânea Sertões do Seridó
(1980), que reúne 5 ensaios de Lamartine, em comparação com Grande sertão:
veredas (2011), traçando uma linha entre Guimarães Rosa e o sertanista potiguar.
Fazemos isso observando o conceito de literatura enquanto efeito civilizatório de
Antonio Candido (2000), que auxilia a formarmos o vínculo da tendência regional
“surrealista” de Rosa como uma tradição passada ao ensaísta.
Com o objetivo de nos aprofundarmos nessa relação, revisamos o
conceito clássico de “regionalismo puro” de Candido e o opomos ao
15
“surregionalismo” apontado pelo mesmo crítico, que é relido à luz das observações
de Chiappini (1995) sobre o estudo da tendência regionalista atual. Fazemos isso
como primeiro apoio para a associação dos regionalismos dos escritores estudados.
Em seguida, discutimos as ligações histórico-ficcionais dos sertões
rosiano e lamartineano tendo em vista suas influências e projetos ideológicos.
Enquanto o escritor mineiro ocupa seu Grande sertão mais pela criação que por
referências reais, surgindo um “sertão possível” por meio da escrita e
apropriação/ressignificação de elementos locais e universais, montamos uma breve
contextualização da tradição literária potiguar. Dessa forma, explicamos o lugar de
que fala Lamartine, os grupos de influência intelectual do estado e seus legados,
como sujeitos ao quase esquecimento, motivo pelo qual precisa resgatar e recriar o
sertão, já modificado pelo tempo.
Definidos os sertões, atiramos o último laço entre Rosa e Lamartine,
discutindo o conceito de tradição segundo Candido (2000), Bornheim (1987) e
Berman (1986). Associamos a vertente literária e histórico-cultural das tradições
estudadas, e as relacionamos no modo de se organizarem nas obras analisadas.
Para isso, ainda comparamos os “narradores tradicionais” presentes nas duas obras
pelo estudo de Benjamin, que nos leva finalmente à perspectiva de ficcionalidade na
obra do ensaísta, que desenvolvemos com os conceitos de “intenção séria” e
“intenção diversa/ficcional” de Rosenfeld (2011).
Só então nos aprofundamos no gênero ensaístico, tecendo a rede de
conceitos que nos orienta no estudo de sua estrutura maleável e imprecisa.
Revemos as primeiras definições entre os ensaios de Montaigne (2001) e Bacon
(2007) e seguimos para as de Lukács (1975) e Bense (1947), e chegamos até
Adorno (2003) e Haro (2005). Isso nos ajuda a ler Os sertões do Seridó como uma
obra fluida e estruturada, quase livremente, ao longo da escrita lamartineana.
Com os aparatos teórico e crítico reunidos, analisamos a obra do escritor
potiguar, lendo cada um dos ensaios de Os sertões do Seridó e considerando a
estrutura geral da coletânea. Encontrando características semelhantes e outras
consideravelmente destoantes, separamos e identificamos o funcionamento dos
pontos norteadores da criação de Lamartine e, lendo a organização dos textos como
uma reformulação/ressignificação que renova-os como obra revisada, ampliamos a
visão de assuntos relacionados apenas pela região para uma volta ao passado na
16
tentativa de revitalizar o sertão.
Nosso estudo encerra reaproximando os dois escritores e tece o resultado
da leitura de Lamartine como “herdeiro” do regionalismo rosiano, o que é sustentado
por exemplos retirados das suas obras. Concluímos que o autor potiguar registra
seu “sertão do nunca mais” pela “narração” da história/estória seridoense, utilizando
memórias, testemunhos, pesquisas e escrita ficcionalmente criativa para ampliar o
espaço. É pela comunicação que aparece o Seridó literário, geográfico e
sociocultural, assim como na literatura de Rosa, mas por “diálogos” diferentes. O
ensaísta observa no “regional” a sua história, sua experiência revivida, e o exótico
de afastamento se dissolve em fatores da identidade cultural do próprio narrador.
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1 TRADIÇÃO E REGIONALISMO: REVISÃO DE CONCEITOS
O regionalismo, como tendência literária, já foi destacado por ter “fôlego
de gato” na sua renovação constante, colocando em perspectivas diferentes visões
críticas mais tradicionais que apenas o associam com o choque do exotismo. Visões
essas que parecem limitar a tendência a uma variedade considerada desgastada e
que, para casos como o de Guimarães Rosa, deixam à margem obras sem a
obsessão pela “cor local” e o tom de documentário social. Observando essa
tradição, mesmo Antonio Candido limita a tendência em sua manifestação mais
“pura”:
[…] se pode considerar como regionalista propriamente dito o romance, o
conto em que o que sobressai é o choque de exotismo. O homem da cidade
vê aquela matéria diferente, aquela matéria como se fosse quase de outro
mundo, e aquilo é interessante, e o enredo então se beneficia com este
exotismo. A mim pareceu que em Guimarães Rosa isso era apenas um
ingrediente, e que o importante eram os grandes problemas do homem.
Além do mais, a linguagem dele não era propriamente documentária, o que
acontece no regionalismo. (CALLADO et. al., 2011, p. 20)
Quando o crítico faz esse comentário, como entendemos, estaria se
referindo a um conjunto de obras que se encontram em sua maioria até a chamada
“geração de 30”. Essa produção, em especial construída pela vertente sertanista, é
anterior às tendências contemporâneas e tem suas origens ainda no período
romântico.
Apenas com intuito de contextualizar brevemente essa questão,
constatamos que a revisão dessa faixa do espectro literário nacional tem raízes
antes mesmo do primeiro movimento regionalista brasileiro, exibindo seus traços nas
tentativas iniciais de autonomia cultural, desenvolvidas particularmente entre as
tendências nativistas. Seu início foi marcado pelo afastamento parcial das correntes
literárias europeias e seguiu, no entanto, boa parte de suas normas, pois surge da
escrita pautada no sistema de expressão legado pela tradição e, mesmo assim, se
aventura por temas locais em uma intenção nacionalista.
Por esse caminho, e com a adaptação dos padrões europeus na
perspectiva do colonizador diante das maravilhas da terra, o escritor visava construir
18
uma identidade brasileira por descrições que ressaltam o “diferente” na realidade
local. Com isso, poderíamos encontrar uma provável “contradição fundamental” da
afinidade expressiva do redator e a identificação pessoal com a matéria que
trabalha, mas esses traços não afetam negativamente a produção da época. Nossos
escritores trariam essa ótica do diferente como o elemento necessário para a
construção de uma identidade nacional.
Inclusive, Candido destaca no início do segundo volume de seu
Formação da Literatura Brasileira (2000) a naturalidade de tais tendências em nosso
sistema literário, tendo passado antes pelo movimento arcádico:
[…] essas tendências reforçaram as que se vinham acentuando desde a
segunda metade do século XVIII. Assim como a Ilustração favoreceu a
aplicação social da poesia, voltando-a para uma visão construtiva do país, a
independência desenvolveu nela, no romance e no teatro, o intuito
patriótico, ligando-se deste os dois períodos, por sobre a fratura
expressional, na mesma disposição profunda de dotar o Brasil de uma
literatura equivalente às européias, que exprimisse de maneira adequada a
sua realidade própria ou como então se dizia, uma “literatura nacional”.
(CANDIDO, 2000, v. 2, p. 11)
Entendido isso, por ser pautada na identificação de fatores exóticos que
singularizassem nossa terra, aos quais são atribuídos o papel de “origem” (em
adaptação à corrida pelo folclore no continente europeu), a produção dessas
primeiras etapas apresenta as reflexões de redatores brasileiros de cultura
“importada” sobre a cultura popular “adquirida” com a terra: para compensar a falta
de história (ainda nascente) no continente americano, o escritor branco volta-se para
o “gentio”, idealizando-o enquanto homem selvagem e exemplo de bondade e
inocência (essência do nativismo). Isso seria, enfim, o elo folclórico sonhado para
esse escritor brasileiro que se assemelha a um “europeu dos trópicos”: o Indianismo
marca a literatura nacional tornando-se tema de caracterização do nosso
Romantismo, o que é especialmente trabalhado nas obras de José de Alencar e
Gonçalves Dias.
Já em um segundo período, o desenvolvimento da escrita nacional
caminha para outras regiões ao se afastar da costa com o intuito de mostrar o
“verdadeiro Brasil”. Galvão (2000) destaca que, em reação a hegemonia cultural
19
centrada no Rio de Janeiro, as regiões ao Sul e ao Norte:
[…] acusam a literatura da Corte daquilo que hoje chamaríamos
etnocentrismo, opinando que o Brasil autêntico fica no interior e não no
litoral deslumbrado pela Europa, a quem macaqueia. E reivindicam uma
expressão tanto própria quanto autônoma de sua peculiaridade. (GALVÃO,
2000, p. 15).
Isso acarreta no progresso das escritas regionais, surgindo, segundo a
mesma autora crítica, em um primeiro regionalismo, ou sertanismo (GALVÃO, 2000).
Porém, nos anos seguintes a exploração para dentro do território nacional não
modificou os traços gerais desse tipo de escrita. Houve certamente uma ampliação
de temas, o que ajudou no reconhecimento de traços típicos de várias regiões, mas
sempre orientados pela lógica do exótico:
Nesse amplo guarda-chuva cabem pioneiros como Bernardo Guimarães,
Taunay e Franklin Távora. O próprio Alencar, de importância seminal em
nossas letras, entre as muitas obras que escreveu procurando realizar sua
ambição de cobrir o país no tempo e no espaço, é autor de vários livros
regionalistas. Para todos, o interesse central estava no pitoresco, na cor
local, nos tipos humanos das diferentes regiões e províncias. (GALVÃO,
2000, p. 16)
Essa primeira leva possui fronteiras pouco delineáveis, emitindo ecos até
o Modernismo, mas, ao longo de seu desenvolvimento, mais especificamente com a
surgimento do Naturalismo, aparece um segundo regionalismo (GALVÃO, 2000).
Este vem se opor àquele por um programa de escrita até então inédito:
A reação contra o romantismo precedente implicou em uma busca de
descrição desapaixonada dos fatos, preocupação com o determinismo e
com a ciência, frio diagnóstico, pessimismo e fatalismo. Generalização
entretanto injusta para com alguns livros que, ao alcançar um nível mais alto
de elaboração literária, escapam parcialmente do bitolamento naturalista
[…]. (GALVÃO, 2000, p. 16)
Dessas duas linhas de escrita regionalista/sertanista, advém,
20
consequentemente, boa parte da “cartografia literária” do interior do Brasil:
percebemos isso tanto na tendência que se concentrava nas cores locais,
desenvolvendo imagens apaixonadas dos tipos humanos, quanto na que procurava
os determinismos da vida humana pelo caminho da análise afastada dos excessos
sentimentais.
Todavia, é importante enfatizar a permanência de ambos os estilos quase
que exclusivamente em uma dimensão de afastamento com a matéria trabalhada, o
que se torna bastante significativo para compreender não apenas tais literaturas,
mas a própria representação do sertão brasileiro durante esse período. Mas, para
completar nosso quadro de influências iniciais, há ainda outra tendência que tornaria
nossa escrita mais próxima do documentário e que, mesmo após o movimento
modernista, reavivaria o regionalismo em uma terceira leva.
Com as modificações políticas ocorridas ao redor do mundo e pelo clima
de conflitos no período entres as duas guerras mundiais, escritores em vários países
começaram a se concentrar à Direita ou Esquerda, injetando em sua arte uma maior
preocupação social (uma escrita de denúncia). Entretanto, de todas as
manifestações decorrentes dessas mudanças, talvez a que mais tenha se destacado
na época, e influenciado irreversivelmente nossa escrita, foi o advento do “romance
social norte-americano” (GALVÃO, 2000). Autores como Sinclair Lewis e John
Steinback, por “uma prosa desataviada, bem próxima da escrita para periódico”
(GALVÃO, 2000, p. 19), tornaram suas obras conhecidas em todo o mundo e,
consequentemente, acabaram sendo bastante editados no Brasil. Sua escrita
empenhada em mostrar as diferenças sociais dos Estados Unidos, produzida de
modo a facilitar sua leitura, gerou tamanho impacto em nossa produção intelectual
que pela primeira vez a influência europeia em nossa cultura seria superada.
O resultado de todo esse percurso seria a produção da geração
regionalista de 1930, logo assumida como tendência principal de seu tempo. Essa
terceira etapa de produção regionalista iria se concentrar prioritariamente no
Nordeste Brasileiro com escritores tais como Graciliano Ramos, José Lins do Rego,
Raquel de Queiroz e Jorge Amado, tendo seu apogeu entre as décadas de 30 e 40
mas sendo, mesmo assim, vigente até hoje:
O fato é que essa safra de ficção ao rés-do-chão, aspirando ao
documentário, constituiu um cânone ainda vigente em nossos dias, impondo
21
a norma à literatura brasileira, impedindo por longos períodos que houvesse
percepção estética de autores que não atuassem dentro de seus ditames.
(GALVÃO, 2000, p. 22)
Esse regionalismo também aspira à percepção estética naturalista,
construída pelo romance engajado na denúncia social que aparece como matéria
principal do trabalho do escritor. Sua linguagem também simples provoca reação
semelhante à do romance norte-americano, encontrando-se com um público leitor
brasileiro ainda em formação.
Todavia, nessa mesma época surgem autores interessados em uma
escrita mais voltada para a subjetividade que ao fator social. Inspirados pelo
romance católico francês, começam a se concentrar em uma investigação da
espiritualidade e dos mistérios da alma, em uma reação à literatura vigente, em uma
busca pela abertura “universal”, por questões além do meio físico. Tal linha tem
como expoente Clarice Lispector, e sua produção é tipicamente avessa ao
tratamento pitoresco e ao agnosticismo comum do regionalismo seu contemporâneo,
apurando técnicas narrativas como o monólogo interior.
Nesse ponto, vale salientar que nem sempre são precisas as divisas entre
a escrita particularizante e a universalizante desse período, sendo possível perceber
traços de introspecção nos discursos de obras exemplares do regionalismo de 30,
como em Angústia de Graciliano Ramos; e traços naturalistas gerais como
“hereditariedade”, “instinto” e “irracionalidade” segundo Galvão (2000), nessa escrita
de viés espiritualista.
Ainda assim, é compreensível uma tônica para a perspectiva “externa”, da
cor local/do determinismo da vida humana/da denúncia documental, que norteia as
imagens construídas sobre os sertões. E é especialmente desse conjunto de
tendências regionalistas que Antonio Candido (e a crítica tradicional) se vale para a
sua delimitação do regionalismo mais elementar. Entretanto, a modificação é
inevitável, e o mesmo crítico comenta:
[Sobre Rosa] Ele fez um livro que supera o regionalismo através do
regionalismo. Esse, do ponto de vista da composição literária, a meu ver, é
um paradoxo supremo. Tanto assim que eu me senti obrigado a criar uma
nova categoria que é o transregionalismo ou surregionalismo. Fenômeno,
aliás, que nós verificamos pouco depois ou ao mesmo tempo em outros
22
lugares da América Latina. Nós encontramos, por exemplo, em Gabriel
García Márquez, em Juan Rulfo, em Mario Vargas Llosa, em Alcides
Arguedas esse enraizamento profundo do temário regional pitoresco com
uma linguagem transfiguradora, moderna e que não tem nada a ver com a
linguagem do regionalismo tradicional. (CANDIDO, 2011. p. 28)
Esse surregionalismo contemplaria, desse modo, a produção posterior
que relativiza o exotismo e ultrapassa o localismo, superando o regional pela sua
reflexão. E, por tal natureza, não se adéqua aos moldes expressivos do citadino, do
“diferente de”. Mesmo a apresentação exótica sendo uma conquista importante no
desenvolvimento das identidades regionais, não comporta de forma adequada a
escrita que alcança proporções universais de uma posição não cosmopolita, mas
que universaliza o tema partindo de uma cultura local. Desse prisma, a produção
contemporânea é tida como “surreal”, “paradoxal”, e suas obras são afastadas do
regionalismo que, no entanto, apenas se modificou, produzindo uma “nova tradição”.
Visto isso, a questão que se impõe ao regionalismo atualmente seria
quais os seus “limites” e como trabalhá-los em coerência com as mudanças já
consagradas nos últimos decênios. Consideramos, portanto, o estudo de Ligia
Chiappini (1995) uma possibilidade de resposta que, a nosso ver, explica o hiato
entre o regionalismo e o surregionalismo de Candido.
Em seu estudo Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na
literatura (1995), a pesquisadora desenvolve e comenta alternativas ao “mal-estar”
presente na crítica por essa divisão, e objetiva o regionalismo tanto pela
aproximação solidária do leitor com o personagem, em um ato de “alargar nossa
sensibilidade”, quanto no estudo da “superação dos limites da tendência” ainda
dentro dela.
Sua primeira tese ocupa-se da definição do regionalismo simplesmente
marcado por locais (regionalismo gaúcho, nordestino, paulista), o que permitiria a
presença de uma variante urbana e outra rural: “No limite, toda obra literária seria
regionalista, enquanto, com maiores ou menores mediações, de modo mais ou
menos explícito ou mais ou menos mascarado, expressa seu momento e lugar.”
(CHIAPPINI, 1995, p. 155). Os exemplos de regiões escolhidos são, inclusive,
retirados de uma observação de Candido em A literatura na evolução de uma
comunidade (In: Literatura e Sociedade, 1976), que nos traz uma perspectiva
23
interessante: “Se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem
dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo diferente nos diversos
Estados” (Candido, 1976, p. 139).
Para Candido, haveria a possibilidade de não se falar de regionalismo
nesses lugares, talvez pela importância que ocupam na cultura brasileira. Como já
foi observado por Santos (SANTOS, 2010, pp. 172 – 173) Pernambuco e o Rio
Grande do Sul, por exemplo, são parte fundamental da História do país,
influenciando em períodos diferentes a nossa cultura geral, que é deslocada para
suas terras; já São Paulo tornou-se desde a primeira metade do século XX o centro
cultural e econômico do Brasil. São, assim, locais centrais que, embora acusem
“traços típicos”, não se afastam da modernidade e da formação cosmopolitana.
Sendo uma das características mais visíveis da tendência o combate à
homogenização moderna que apaga as particularidades locais, não se poderia falar
exatamente de um regionalismo não-periférico. Os elementos locais da produção de
um escritor vindo de algum centro urbano permaneceriam como indicadores da sua
referenciação geográfica, mas não comporiam a estrutura necessária para a
manifestação regionalista.
Por esse motivo, Chiappini destaca: “Historicamente, porém, à tendência
a que se denominou regionalista em literatura vincula-se a obras que expressam
regiões rurais e nelas situam suas ações e personagens, procurando expressar suas
particularidades lingüísticas.” (CHIAPPINI, 1995, p. 155). Essa definição elimina a
proposta de literatura regional simplesmente orientada pela referência ao espaço
geográfico, pois contrasta com a generalização do ancoramento de qualquer obra a
um lugar pelo fator de resistência da cultura rural.
A segunda tese avança nesse sentido de cultura do campo, mostrando
que é criada pela tensão entre “idílio e realismo”:
Há quem vincule o regionalismo literário à tradição greco-latina do idílio e da
pastoral. Mas é em meados do século XlX, com George Sand na França,
Walter Scott na Inglaterra e Berthold Auerbach na Alemanha, que essa
tradição é retomada na forma de romance regionalista que, daí para a
frente, começa a viver da tensão entre o idílio romântico e a representação
realista, tentando progressivamente dar espaço ao homem pobre do campo,
cuja voz busca concretizar paradoxalmente pela letra, num esforço de torná-
la audível ao leitor da cidade, de onde surge e para a qual se destina essa
24
literatura. (CHIAPPINI, 1995, p. 156)
Ela pode ser associada não apenas ao regionalismo literário, mas
também à sua vertente política/histórica. Se a compreendermos como uma resposta
à urbanização moderna, encontramos em sua estrutura os dois extremos de que
trata: vemos a tradição de uma cultura campesina ser gravada pelo recurso da
escrita, não mais pela memória e o hábito das rodas de conversa; também seu
discurso ser iniciado na constatação do desaparecimento/esquecimento daquela
cultura em decorrência da concentração urbana; e as suas vozes entre o
saudosismo dos tempos áureos e o desgosto e desacordo com o presente.
Seguindo esse caminho, a terceira tese aproxima esse conflito para a
situação contemporânea: “Estudar o regionalismo hoje nos leva a constatar seu
caráter universal e moderno. Surgindo como reação ao iluminismo e à centralização
do Estado-nação, hoje se reatualiza como reação à chamada globalização.”
(CHIAPPINI, 1995, p. 156. Não seria apenas uma resposta e resistência do
habitante campesino tradicional, mas a luta contra o perigo da fragmentação que se
esconde em cada passo do homem que se vê inevitavelmente diante da
modernidade.
Assim, a globalização é também sentida como o progresso do paradoxo,
em uma “unidade da desunidade”. Ser esse homem moderno, como considera
Berman, “é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria,
crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao
mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que
somos.” (BERMAN, 1986, p. 15), e o escritor regionalista considera esse quadro em
que se encontra como um combate.
Não é somente a evolução temporal do regionalismo, e sim a aceleração
de nosso tempo que diferencia os conflitos. Hoje enfrentamos um processo
constante de rupturas que, embora seja fundamento da própria dinâmica da cultura,
nos aproxima da desintegração. Nos sentimos perdidos e nunca bem amparados
com uma única identidade, pois “a idéia de modernidade, concebida em inúmeros e
fragmentários caminhos, perde muito de sua nitidez, ressonância e profundidade e
perde sua capacidade de organizar e dar sentido à vida das pessoas.” (BERMAN,
1986, p. 17).
25
Em consequência disso, a quarta tese, que menciona a perspectiva do
regionalismo como modismo velho, não poderia assumir posição diferente:
Com a modernização das técnicas agrícolas, o êxodo rural, o
desenvolvimento das cidades e de uma cultura urbana, o regionalismo tem
sido visto como ultrapassado, retrógrado, localismo estreito e reacionário
tanto do ponto de vista estético quanto do ideológico. Essa crítica esquece,
no entanto, que ele é um fenômeno eminentemente moderno e universal,
contraponto necessário da urbanização e da modernização do campo e da
cidade sob o capitalismo. Por isso, continua a existir e a dar frutos como
uma corrente temático-formal contraditória onde lêm lugar os reacionários e
os progressistas; os nostálgicos, os xenófobos mas também os
inconformados com a divisão injusta do mundo entre ricos e pobres. Uma
corrente que deu origem a grandes obras, como as de Faulkner, Verga,
Rulfo, Carpentier, Arguedas e Guimarães Rosa. (CHIAPPINI, 1995, p. 156)
As conhecidas observações de Candido sobre a “saturação” da escrita
sertanista são um bom exemplo desse caso, que se torna mais relevante por ter
insistido na divisão do regionalismo tradicional e do rosiano, por não considerar as
duas literaturas pela mesma tendência. Não só esse estudioso, mas toda a crítica
sua partidária tende a apontar para obras que ultrapassam as limitações do
regionalismo restrito como manifestações de uma superação do gênero, em um
argumento “da elevação” que acusa indevidamente o local ser menos profundo que
o global.
Na quinta tese de Chiappini, essa questão é trazida para o caráter
“marginal” normalmente associado à literatura regional. Por se confundir com
pedagogia, etnologia e folclore, e compreender obras com valor estético, mas com a
simples intenção de registro histórico de seus fatos, o regionalismo é menosprezado
“por essa impureza, julgando-o também conservador tanto do ponto de vista estético
quanto do ponto de vista ideológico.” (CHIAPPINI, 1995, p. 156). O resultado é a
mudança de nomenclatura (surregionalismo para Cândido, regionalismo cósmico
para Davi Arrigucci Jr. etc.) na separação das melhores obras, sobretudo as de
importância nacional, subentendendo que a bibliografia restante não se faz
suficiente para escapar da exclusão.
Em certa medida, a “armadilha crítica” da subordinação deseja o
26
regionalismo em estado estacionário e comete um erro grave no julgamento das
obras mais bem elaboradas. Revendo o falso pressuposto da correlação de
qualidade e universalidade repetida pela crítica, a sexta tese aclara justamente o
ponto fundamental não contemplado por suas análises:
É compreensível o esforço da critica para excluir da tendência os grandes
autores, já que nela o número de obras literariamente menos expressivas
talvez seja maior que em outras, porque proporcional ao grau de dificuldade
que a especificidade da empresa do regionalismo literário implica. O
argumento da critica para assim fazer é que a qualidade literária de suas
obras os elevaria do regional ao universal. Mas freqüentemente ela esquece
que é o seu espaço histórico-geográfico, entranhado e vivenciado pela
consciência das personagens, que permite concretizar o universal. O
problema não nos parece tanto distinguir os tipos de regionalismo mas
distinguir, como em qualquer tendência, as obras boas das más,
esteticamente falando. (CHIAPPINI, 1995, p. 156)
Estruturas estética e ideológica estão intimamente relacionadas e, na boa
realização da escrita regionalista, a segunda ocupa-se também de criatividade,
sendo participante da qualidade da obra. Dessa forma, na sétima tese percebemos
que não é caso, consequentemente, de separar as manifestações mais felizes do
regionalismo, tornando-o “túmulo” de obras menores, mas aceitar suas mudanças:
“Só podemos sustentar que um Faulkner ou um Guimarães Rosa são regionalistas,
se entendermos que o regionalismo, como toda tendência literária, não é estático.
Evolui. É histórico, enquanto atravessa e é atravessado pela história.” (CHIAPPINI,
1995, p. 157).
Estariam marcados traços do período histórico e o modo como a
tendência se plasmou em cada livro, o que, mesmo assim, não delimita a sua
literatura. Em desacordo com suas vertentes políticas e culturais, normalmente
estruturadas em um desejo de permanência, a escrita regionalista segue seu próprio
itinerário. Com a oitava tese, percebe-se que a motivação do texto regional exige
mudanças:
O regionalismo lido como uma tendência mutável onde se enquadram
aqueles escritores e obras que se esforçam por fazer falar o homem pobre
das áreas rurais, expressando uma região para além da geografia, é uma
27
tendência que tem suas dificuldades específicas, a maior das quais é tomar
verossímil a fala do outro de classe e de cultura para um público citadino e
preconceituoso que, somente por meio da arte, poderá entender o diferente
como eminentemente outro e, ao mesmo tempo, respeitá-lo como um
mesmo: "homem humano". (CHIAPPINI, 1995, p. 157)
Atualizando-se, a escrita nessa tendência promove a identificação entre
tipos humanos diferentes, o que é possibilitado pelo caminho oposto à
generalização. O descritivismo aparentemente excessivo é, diferente do que aponta
a crítica, também benéfico, pois nem sempre indica limitação/superficialidade do
tratamento da matéria. Cada escritor identificado com a temática regional demonstra
ser conhecedor de sua região, podendo enumerar com facilidade o que lhe é “típico”.
É por meio da “imersão cultural”, muitas vezes pedagógica, que o
regionalista pode transcender o mero registro de cultura e suas condições
ambientais/sociais e, ao atingir certo nível de abstração, sua escrita descritiva não
mantém apenas uma imagem de fidelidade com o retrato da região, o que é
salientado pela nona tese de Chiappini:
O mundo narrado não se localiza necessariamente em uma determinada
região geograficamente reconhecível, supondo muito mais um compromisso
entre referência geográfica e geografia ficcional. Trata-se, portanto, de
negar a visão ingênua da cópia ou reflexo fotográfico da região. Mas, ao
mesmo tempo, de reconhecer que, embora ficcional, o espaço regional
criado Iiterariamente aponta, como portador de símbolos, para um mundo
histórico-social e uma região geográfica existentes. Na obra regionalista, a
região existe como regionalidade e esta é o resultado da determinação
como região ou província de um espaço ao mesmo tempo vivido e subjetivo,
a região rural internalizada à ficção, momento estrutural do texto literário,
mais do que um espaço exterior a ele. (CHIAPPINI, 1995, p. 158)
À vista disso, o espaço literariamente trabalhado apresenta-se entre as
dimensões real e ficcional, fortalecendo a obra enquanto caminho de reflexão e, nas
de maior valor, ultrapassando as fronteiras regionais e alcançando o universal. Essa
superação, no entanto, não nega o local, e sim enfrenta a separação com o mundo,
o que vemos na décima tese:
28
Se o local e o provincial não são vistos como pura matéria mas como modo
de formar, como perspectiva sobre o mundo, a dicotomia entre local e
universal se toma falsa. O importante é ver como o universal se realiza no
particular, superando- se como abstração na concretude deste e permitindo
a este superar-se como concreto na generalidade daquele. Desse modo, as
"peculiaridades regionais" alcançam uma existência que as transcende.
Assim, espaço fechado e mundo, ao mesmo tempo objetivos e subjetivos,
não necessitam perder sua amplitude simbólica. A função da crítica diante
de obras que se enquadram na tendência regionalista é, por isso, indagar
da função que a regionalidade exerce nelas; e perguntar como a arte da
palavra faz com que, através de um material que parece confiná-las ao beco
a que se referem, algumas alcancem a dimensão mais geral da beleza e,
com ela, a possibilidade de falar a leitores de outros becos de espaço e
tempo […] (CHIAPPINI, 1995, p. 158)
Todo esse percurso da condição atual do regionalismo literário acaba,
portanto, sendo resumido entre alguns pontos: traduz as realidades locais,
principalmente a das culturas rurais e/ou afastadas dos centros urbanos, mas não o
faz apenas devido ao regional, e sim pela tensão provocada na “modernidade
niveladora”, e em especial como resposta à globalização; não é retrógrado ou
ultrapassado, pois aparece como o outro lado fundamental da modernidade, o que
combate a fragmentação da vida humana pela transcendência que parte do regional,
motivo por que se confunde com pedagogia, etnologia e folclore, pois seu
enriquecimento começa na “explicação” da região; não se torna “não-regional” e
universal ao atingir certa grandeza, pois sua elevação ocorre justamente pelo
desenvolvimento dentro do localismo; não é uma tendência estática, mas mutável e
atravessada pela história, o que a diferencia das suas vertentes culturais e políticas
(que ajudam, entretanto, a explicar alguns de seus traços); e alcança o universal
relativizando suas fronteiras dentro do olhar regional, particularmente pela
elaboração que atinge apoiada no descritivismo, sendo que importa para o crítico
descobrir o caminho dessa transcendência, não apenas os “tipos” de regionalismo
resultantes (o que seria, a nosso ver, o caminho inicial da pesquisa, e parte mínima
da conclusão).
Finalmente, é com essa conceituação do regionalismo que trabalhamos
os textos de João Guimarães Rosa e Oswaldo Lamartine de Faria escolhidos para
nossa pesquisa: Grande sertão: veredas (2011) e Sertões do Seridó (FARIA, 1980).
29
Sua perspectiva explica o que ocorre, como propomos, na tradição regionalista
representada por Guimarães Rosa, que em sua obra nos introduz em um espaço
explorado além das limitações anteriores da escrita sertanista. E, de forma
semelhante, também a produção etnográfica-literária de Oswaldo Lamartine se
distancia dessa perspectiva de exotismo provocada pelo tom local ou pelo conflito
catártico de uma intenção de crítica social, localizando-se dentro de um espaço
sertanejo de identificação pessoal.
Mas, visto que ambos os autores seguem seus caminhos por regiões e
gêneros literários diferentes, resta discutir quais são os sertões que influenciam cada
um e como a escrita rosiana e lamartineana se aproximam por suas características
composicionais.
Nossa busca dentro de tal recorte implica em um estudo dos processos
de (re)criação do espaço por meio da escrita romanesca e ensaística, que se
aproximam. Por consequência, não renunciamos os cruzamentos entre esses dois
gêneros e outros prováveis que por acaso influenciem em suas construções, mas
observamos seus projetos estéticos em uma dimensão ampla de “literatura”, que
contemple tanto o texto mais visivelmente trabalhado como literário quanto o que
atinja a fronteira da definição.
Quanto aos sertões de referência de cada autor, traçamos as suas
fronteiras e discutimos a influência de cada espaço nas obras, comparando a base
cultural a que se vinculam e quais traços gerais são percebidos nos dois escritores.
Com essa oportunidade, ainda desenvolvemos um primeiro diálogo entre as obras
de Rosa e Lamartine como tradição passada adiante.
1.1 Os sertões de Rosa e Lamartine
Para compreendermos a tradição regionalista representada pela obra do
escritor mineiro, nos deparamos inicialmente com o paradoxo de Candido, pois a
dificuldade de delimitar os sertões da obra de Guimarães Rosa está diretamente
relacionada com a negativa de vários críticos de peso de que o escritor não é
regionalista. Diferente do que se observa em Graciliano, Euclides e tantos outros, o
espaço não é delimitado de modo preciso, sendo mais relacionado com o sertão de
Minas Gerais, mas bem diferente em suas fronteiras.
30
Podemos dizer que, mesmo se baseando no espaço real do sertão e na
presença histórica do sertanejo, nenhum deles é encontrado de forma “bruta” em
sua escrita. A tradição surrealista do autor se caracteriza, principalmente, pelo seu
“sertão-mundo”. As falas dos personagens e a linguagem de seus narradores,
trabalhadas ao ponto de parecerem naturais do sertão, oscilam entre neologismos,
estrangeirismos ressignificados em nosso sistema linguístico, arcaísmos e toda a
sorte de figuras construídas para cada formação de sentido suscitar leituras novas.
– “Ossenhor utúrje, mestre... Não temos costume... Não temos costume...
Que estamos resguardando essas estradas... De não vir ninguém daquela
banda: povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega em todos...
Ossenhor é grande chefe, dando sia placença. Ossenhor é
Vossensenhoria? Peste de bexiga preta... Mas povoado da gente é o Pubo –
que traslada do brejão, ossenhor ´com os seus passaram perto de lá, valor
distante meia-légua... As mulheres ficaram, cuidando,cuidando... A gente
vinhemos, no graminhá. Faz três dias... (ROSA, 2011, p. 482)
Há referências de locais reais na mesma medida que de veredas
imaginárias, e a terra toma dimensões de reflexo do que se passa no homem que a
atravessa, mostrando uma ambientação mais metafísica que referencial. E,
complicando qualquer certeza de referência geográfica local, o próprio autor já
comentou que nem sempre o espaço descrito em suas obras seria brasileiro:
Ele ria, dava uma risadinha bem típica dele, e dizia assim: “Ah!, eu me
divirto muito com isso, porque dizem 'o Rosa ali, aquela paisagem, aquele
crepúsculo mineiro', e não é nada de crepúsculo mineiro, é um crepúsculo
que vi na Holanda, misturei com algumas coisas que vi em Hamburgo,
misturado com algumas coisas de Minas, misturei tudo aquilo e fiz, joguei lá,
e as pessoas dizem que só estou é fazendo uma espécie de omelete
ecumênico”. (CAMPOS, 2011, p. 55)
Dessa forma, por pretendermos classificar o autor como regionalista, o
próprio conceito de “região” em Rosa precisa ser modificado, pois, como
consideramos, a sua abertura ao mundo não nega o sertão, e sim amplia suas
virtualidades possíveis. Com isso, nossa aproximação do sertão rosiano será de
outra natureza.
31
Críticos como Antonio Callado e Candido já apontaram, por exemplo, a
influência de Euclides em Rosa, mas este teria conseguido se afastar de seu estilo
ao ponto de não sofrer qualquer angústia. Em depoimento, Callado afirma que o
escritor: “[...] deve ter lido muito e se dedicado muito à leitura do Euclides […] O que
ele não deixou, o que ele não fez foi se deixar influenciar pelo estilo a ponto de você
ler e se lembrar do Euclides.” (CALLADO, 2011, p. 11). Candido tece comentário
bastante próximo, dizendo que:
No fundo se esquematizarmos a visão dele, é uma visão que lembra a do
Euclides da Cunha, porque tem o meio, quer dizer, a terra, o homem e a
luta. O que é interessante no caso do Euclides da Cunha, porque no caso
do Euclides esse é um esquema determinista, rigorosamente determinista
[…] Nós podemos reconstruir o Grande sertão: veredas exatamente: a terra,
o homem e a luta. Só que aí não há nenhuma relação causal. (CANDIDO,
2011, p. 23)
Mas, fora essa influência não tão perceptível além do romance do autor, a
definição dos limites do sertão rosiano passa quase para um território imaginário.
Em uma entrevista famosa concedida ao crítico alemão Günter Lorenz (Gênova,
1965), o escritor deixa mais claras algumas de suas características, não apenas de
escrita, mas de vivência pessoal e, em algumas das passagens mais famosas desse
longo diálogo, demonstra preocupação com a coerência entre escrita e vida. Logo
no início de sua conversa, o escritor insiste que há uma forte ligação entre sua
identidade e a matéria de sua literatura, se apresentando como “homem do sertão”
e, interpelado por Lorenz, pontua alguns dos valores que o levaram, por exemplo, ao
Grande sertão:
Como médico conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor
da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte. […] estas
três experiências formaram até agora o meu mundo interior; e, para que isto
não pareça demasiadamente simples, queria acrescentar que também
configuram meu mundo a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e
idiomas. (LORENZ, 1991, p. 67)
Mais adiante, completa a ideia de fusão entre obra e biografia,
32
sustentando que todo sertanejo é naturalmente um “fabulista”, e que desde cedo
começou a perceber todo aquele espaço de narrações em sua volta como um
terreno menos histórico, aberto a todo o tipo paradoxal de “estórias”:
Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e comecei
a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua
essência, era e continua sendo uma lenda. Instintivamente, fiz então o que
era justo, o mesmo que mais tarde eu faria deliberada conscientemente:
disse a mim mesmo que sobre o sertão não se podia fazer “literatura” do
tipo corrente, mas apenas escrever lendas, contos, confissões. (LORENZ,
1991, p. 69)
Podemos identificar nesses trechos uma perspectiva do autor que
permeia algo além das divisões entre escrita ficcional literária e seus fatores
autobiográficos. Rosa sugere que não há divisão entre tais planos, como pontua
várias vezes em suas falas seguintes. Enfatiza que escrever é repetir o que já foi
vivido (mesmo que no infinito de uma aventura imaginada), que a vida e a obra
devem ser “equivalentes”, e que a própria linguagem é a vida.
Por todas essas crenças apresentarem coincidências em sua obra, Rosa
representa, a nosso ver, o tipo de escritor que talvez tenha se aproximado mais da
“autofixão” pela identificação com a matéria trabalhada, mas sem ter grandes
preocupações em distinguir o histórico do lendário. Além disso, a declaração de que
“sobre o sertão não se podia fazer 'literatura' do tipo corrente, mas apenas escrever
lendas, contos, confissões” nos dá uma melhor ideia dessa região de que fala. É
esse o modo de transformar o sertão que foi classificado como “surregionalismo” por
Candido.
Entretanto, é Eduardo Portella um dos primeiros críticos a perceber esse
traço, em A Estória cont(r)a a História para o Jornal do Brasil (PORTELLA, 1991).
Segundo o crítico, Guimarães Rosa não seria ideólogo, mas apenas um escritor
comprometido com a criação literária e, assim, qualquer leitor que buscasse separar
o real do irreal em sua escrita estaria apenas “fraturando” a unidade da obra. Com
isso, ao notar por outras vias que Rosa não busca uma correspondência com a
realidade, Portella nos mostra em novo ângulo a questão “surrealista” de sua escrita:
não apenas o homem se encontra em uma relação dialética de existência com as
33
palavras, como agora a própria percepção está ligada à imaginação na “realidade”.
E, isto posto, encontramos nessa visão uma excelente proposta para compreender a
diferença entre “realidade sensível aparente” (citada pelo escritor em Tutaméia) e a
percepção ampla de Guimarães Rosa.
Em suas obras, há uma mimese enquanto criação, em que o sensível e o
imaginário se completam. Ela parece zombar da realidade composta por fatos e
documentos, considerando todo o universo fabular do autor e superando as
características tradicionais da tendência regionalista. Seu regionalismo pode ser
identificado, portanto, pela criação que torna o sertão mais evidente, não pelo
registro preciso do espaço. A região aparece por essa criação no que, para o
escritor, seria possível pertencer ao sertão. Uma região cheia entre o real e o
místico, enriquecida por seus paradoxos, pois eles “existem para que ainda se possa
exprimir algo para o qual não existem palavras.”, como diz o próprio literato
(LORENZ, 1991, p. 68). Como consideramos, esse espaço histórico, místico, fabular
e conscientemente recriado é, portanto, a “região” de que Rosa escreve, de onde o
“homem do sertão” reorganiza suas terras em relação com o mundo, regionalizando
o universal.
Já Oswaldo Lamartine passa por sertões mais concretos, mesmo que
igualmente “lendários”. Sua luta é menos com as palavras que com o esquecimento,
pois é uma das únicas vozes do interior de um estado que poucas décadas antes
era avaliado como “estado provinciano que se apresentava com uma mínima
atividade intelectual, cujos representantes [...] estavam ou comprometidos com a
política e a vida prática, ou morando em outro lugar, enquanto outros já estavam
mortos.” (COSTA, 2010, p. 147). Essa tradição já escassa de “homens de letras” no
Rio Grande do Norte é ainda mais grave no sertão, pois quase toda a produção da
época se concentrava na costa.
Lamartine é um dos últimos representantes da oligarquia
pecuária/algodoeira do estado, que, tradicionalmente, compete com a vida costeira
mais ativa. Segundo Sônia Lúcia Ramalho (2006), os dois grupos são responsáveis
pelo movimento cultural regionalista nordestino:
[…] o regionalismo se apresenta como um movimento de defesa dos
interesses de um segmento da classe dominante brasileira que, ante a
iminência de perda de seu espaço, estabelece um front ideológico – o dos
34
“regionalistas” - de reação “contra as forças em vias de aprofundarem o
controle de organização daquele espaço”. (FARIAS, 2006, pp. 32 - 33)
Mas o costeiro, da linha de Gilberto Freire, sempre subordinou o
sertanejo, da linha de Djacir Menezes. Essas duas matrizes oligárquicas defenderam
seus interesses inscrevendo-se como centro da representação regional, mas o peso
da dominância litorânea é suficiente para, mesmo nos estudos de Menezes,
classificar o interior como O Outro Nordeste (1973). Farias comenta:
Publicado contemporaneamente a Nordeste, de Gilberto Freyre, mas
ocupando-se do Nordeste semi-árido, domínio da oligarquia algodoeira-
pecuária, a obra de Djacir Menezes (1973) intenta, de acordo com a
afirmação do próprio autor no prefácio, “enquadrar a formação histórica e
social do Nordeste dentro da evolução do Brasil, em conexão com o
processo de desenvolvimento capitalista do Ocidente. Este imprime seu
ritmo na nossa formação cultural”. Neste sentido o historiador cearense
busca estabelecer a articulação espacial, no quadro do sistema capitalista
mais amplo, entre dois Nordestes, o sertanejo-pecuário-algodoeiro e o
litorâneo-açucareiro, em relação aos estados hegemônicos do Centro-Sul
do país e aos centros capitalistas do mercado externo (ingleses). (FARIAS,
2006, p. 42)
Somando-se ao peso do menor espaço na cultura regional, a obra de
Lamartine é ainda pouco mencionada na tradição norte-rio-grandense, aparecendo
pontualmente em alguns estudos, como na breve análise de Manoel Onofre Júnior:
No “Encouramento e Arreios do Vaqueiro no Seridó” (pag. 23) consta uma
citação de “Viagens ao Nordeste do Brasil” (“Travels in Brazil”), de Henry
Koster, em que este descreve minuciosamente um nosso vaqueiro,
encontrado em 1810. É “o exato Koster”. Pois bem, Osvaldo Lamartine, não
só no livro referido inicialmente, mas em toda a sua obra, semelha um nôvo
Koster, mas em perene viagem no Seridó. É impressionante a sua
capacidade descritiva; como o inglês viajor, ele não deixa passa nada. Só
que sempre norteado pelo interesse etnográfico. Descrevendo coisas –
arreios, por exemplo –, também descreve a maneira como são usadas pelo
sertanejo, e a influência delas no modo de ser dêste: – comportamento, fala,
etc. Daí não ser exagero dizermos que, com o desaparecimento real e
gradativo dêsse homo seridoensis (!), devido à civilização” invasora, ainda
35
assim será possível encontrá-lo vivo nos estudos de Osvaldo Lamartine. A
pesquisa, neste autor, logicamente é ampla e inteligente. Além da vivência
pessoal, direta, e das citações livrescas, inclui também versos populares,
velhas leis e regulamentos, trechos de partilhas de antigos inventários e até
anedotas. Uma pesquisa diferente. E – o que é importante – tem a valorizá-
la um aspecto literário digno de toda a atenção. Osvaldo Lamartine escreve
moderno, desenvolto, com clareza. Mas o que mais lhe enriquece a prosa é
o modo de transplantar o que há de original e poético no linguajar do matuto
sertanejo. É admirável. (JÚNIOR, 1978, p. 74)
Isso torna a escrita do ensaísta ainda mais relevante para a literatura
norte-rio-grandense, pois junto da de seu pai, Juvenal Lamartine, forma boa parte do
registro do interior seridoense. Cascudo, próximo a Freyre, ocupa-se da história de
Natal, e da costa se irradia para o interior; mas são Juvenal e Oswaldo que tratam
da vida no sertão. Porém, para o segundo, o desafio de cobrir o sertão se aproxima
da própria criação.
Como percebemos na leitura de Onofre Júnior (1975), a grande diferença
entre os dois autores reside no trato com o sertão. Enquanto o pai “não recorre a
outra fonte informativa, senão à sua própria vivência, do que resulta inexistir a
tradicional 'colcha de retalhos'.” (JÚNIOR, 1975, p. 71), o filho dialoga com diversos
autores e testemunhas do “sertão velho”, a que inclui as obras de Juvenal.
Em Velhos costumes do meu sertão (1965), reúne-se o maior conjunto de
textos narrados pelo velho Juvenal Lamartine, já cego, aos netos. Publicado antes
em jornal nos idos de 1954, a coletânea trata da:
[…] parte do Brasil que ficou como que parada no tempo, até o
desenvolvimento das comunicações – estradas “centrais”, caminhões,
rádios, etc. –, já no século XX –, êsse sertão, meio medieval, vive na prosa
elegante e despretensiosa de quem com ele conviveu intimamente.
(JÚNIOR, 1975, p. 70)
O que aparece em primeiro plano é, com isso, a experiência do estadista,
presidente da Academia de Letras do estado e um dos maiores representantes
intelectuais da cultura potiguar em sua época:
No início do século XX, […] o Rio grande do Norte vivia sob a gestão da
36
oligarquia algodoeira-pecuária, representada pelos líderes José Augusto e
Juvenal Lamartine e tendo por base uma orientação de progresso e
modernização das forças produtivas do estado. O projeto modernizador
incluiu conquistas como a aviação, a imprensa, o voto feminino, o plano
urbanístico da cidade de Natal e um maior dinamismo na vida administrativa
por meio da mocidade intelectual. (COSTA, 2010, p. 161)
Mas, no entanto, sua produção é avaliada como “literariamente medíocre”
por Onofre Júnior, servindo como fundo para a obra que Oswaldo Lamartine começa
a formar uma década depois. Enquanto o primeiro escreve sobre o que viveu,
pautado na sua história pessoal como homem influente e que participou das
mudanças do Rio Grande do Norte, o segundo, tendo saído ainda jovem do Rio
Grande do Norte devido a um problema pessoal (a morte de um amigo em
decorrência de um acidente com uma arma de caça, e o tormento da culpa insuflado
pelos colegas de escola), tenta resgatar esse sertão da infância, das memórias do
pai, da identidade perdida.
Oswaldo se vê longe da terra logo cedo e, assim, tenta reconstruir o
passado pela escrita, o que não se isenta da revisão feita por uma vida parte vivida
fora de seu espaço. É nesse sentido que o autor potiguar se aproxima da tradição
rosiana: na quase ausência de tradição literária sobre os sertões do seridó,
ultrapassa a tendência clássica do documentário e da apresentação exótica
afastada, porque necessita antes colocar no mapa da tradição potiguar esse espaço
e sua identidade. Lamartine faz isso dentro do tema, em uma perspectiva sobre o
sertanejo que acusa sua apresentação feita por um deles, e que constantemente
escapa do aspecto de “estudo” para o tom pessoal das memórias de Oswaldo
Lamartine e de seus conterrâneos. Porém, essa proximidade mantém-se conflitante,
pois o autor não se enquadra como autoridade da história do Seridó, e procura
recuperar no seu discurso algumas vozes do passado.
O espaço é assim ficcionalizado por sua construção demonstrar equilíbrio
entre elementos históricos, possibilidades de resposta tecidas pelo ensaísmo do
escritor e o uso de lendas, causos, literatura oral e ressignificações literariamente
elaboradas. Desse modo, também encontramos em Lamartine a realidade ampliada
de Rosa, pois em sua síntese não afasta o caráter mais subjetivo do conhecimento
seridoense de sua “realidade sensível aparente”, isto é, o estritamente verificável,
37
que desconfia do misticismo, e não traduz as realidades psicossociais de um povo,
pois apenas as observa.
Oposto a isso, o ensaísta constitui-se sertanejo por toda a variedade de
recursos elencados para a sua imagem dos sertões do Seridó, e no ensaio de sua
terra desenvolve mais que uma história. Revela como de cada trabalho e recurso
registrado no interior é possível vislumbrar, por exemplo, o espírito vaqueiro da
sobrevivência, a poesia escondida nas águas de um açude e todas as almas
seridoenses que ainda ressoam no dizer típico da terra. Ele, por fim, nos faz mais
regionais enquanto leitores.
1.2 Da escrita roseana ao ensaísmo lamartineano: uma tocha passada adiante
Quando consideramos a obra de Guimarães Rosa, e mais
especificamente o seu Grande sertão: veredas, como representante de uma tradição
nova que supera o “regionalismo puro” de Candido, estamos, ironicamente, nos
referindo ao conceito de tradição do crítico. Na introdução de seu estudo mais
influente, Formação da Literatura Brasileira (2000), ao definir sua perspectiva sobre
literatura, o autor a considera em sua relação sócio-histórica: “[...] um sistema de
obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas
dominantes de uma fase.” (CANDIDO, 2000, p. 23), e, em decorrência dessa visão
contextualizada do meio literário, a associa com uma intenção de continuidade,
dentro da literatura, que formaria sua tradição:
[...] a formação da continuidade literária, – espécie de transmissão da tocha
[...] É uma tradição, no sentido completo do termo, isto é, transmissão de
algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando
padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais
somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradição
não há literatura, como fenômeno de civilização.” (CANDIDO, 2000, p. 23)
Por essa perspectiva, podemos falar de uma tradição rosiana passada
para Lamartine, não de uma apropriação da literatura do primeiro pelo segundo, mas
como a continuidade da tendência regionalista que Rosa representa. Ambos sendo
influenciados por Euclides, mas superando o trato quase impessoal da vertente
38
ligada ao documentário, são devedores dessa tradição d'Os Sertões(1902) e estão
em outra relação de transmissão.
Vista de outra forma, a tradição, segundo Gerd A. Bornheim, é “o conjunto
dos valores dentro dos quais estamos estabelecidos” (1987, p. 20), entendidos tais
valores como “a totalidade do comportamento humano” (1987, p. 20). O autor
também aponta para a “vontade da tradição” de ser tradição e ser perene, mas,
inevitavelmente, ter de conviver próxima da “ruptura”, que a faz ser renovada. Tal
perspectiva está intimamente ligada com a própria língua que usamos, já que desde
sempre ela nos insere em uma cultura e, inclusive, é pela própria etimologia que
percebemos outras características do conceito:
A palavra tradição vem do latim: traditio. O verbo é tradire, e significa
precipuamente entregar, designar o ato de passar algo para outra pessoa,
ou de passar de uma geração a outra geração. Em segundo lugar, os
dicionaristas referem a relação do verbo tradire com o conhecimento oral e
escrito. Isso quer dizer que, através da tradição, algo é dito e o dito é
entregue de geração a geração, como que inserido nela, a ponto de revelar-
se muito mais difícil desembaraçar-se de suas peias. (1987, p. 18).
Em uma perspectiva da literatura, a “vontade de tradição” representa a
continuidade da tendência que, embora ofereça os mesmos temas, enfrenta uma
necessidade de ruptura pelo meio expressivo. Principalmente em Lamartine,
encontramos expresso o intuito de fazer aparente essa tradição não apenas literária,
mas histórica do sertão, concentrando-se no recorte seridoense dessa continuidade.
E, em ambos os autores, é encontrada a modificação da escrita pelas rupturas que
se fazem necessárias na visão de cada um: a criação da linguagem e da própria
narração regionalista em dimensões inéditas com Rosa, e a (re)criação ensaística-
literária do espaço já mudado pela modernidade em Lamartine.
Já em um diálogo bastante aproximado a Bornheim, Marshall Berman
procura explicar as mudanças que nos levam a ruptura. Em “Tudo o que é sólido
desmancha no ar: a aventura da modernidade”, nos mostra que esta é uma época
de inumeráveis oportunidades de transformação e possibilidades de destruição, de
identidades fragmentárias que não nos completam, mas nos proporcionam as
ligações dialéticas “de uma unidade de desunidade” (1986, p. 15). Aponta
39
principalmente para as observações de Nietzsche: “A moderna humanidade se vê
em meio a uma enorme ausência e vazio de valores, mas, ao mesmo tempo, em
meio a uma desconcertante abundância de possibilidades.” (apud BERMAN; 1986,
p. 21), e de Marx: “Em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário.
[...] Na mesma instância em que a humanidade domina a natureza, o homem parece
escravizar-se a outros homens ou à sua própria infâmia.” (apud BERMAN, p. 19),
mostrando esse caráter contraditório nunca antes visto em outros períodos.
Mas seu julgamento sobre atitudes com a modernidade parece conter-se
na busca de “volta ao passado” pelos movimentos do século XIX (uma “tradição
moderna”), já que estaríamos vivendo, desde os anos 60, visões pessimistas e “neo-
olímpicas” de correntes niilistas/estruturalistas. Berman procura, portanto, uma
realidade que suspeite de e se interesse pela modernidade, como a visão conflituosa
de um Rousseau, talvez tendo em vista as complicações grotescas de certas
mudanças de valores, como a falta de engajamento, ou a negação foucaultiana de
toda liberdade.
Em essência, os dois escritores que analisamos encabeçam, cada um a
seu modo, uma das linhas da nova tradição regionalista produzida pelo passado e o
presente em conflito. Em Grande sertão: veredas (2011) a narrativa pela voz do ex-
jagunço Riobaldo é uma revisão de sua vida, reestruturando em nova avaliação a
sua história, e a obra em si é uma renovação expressiva da literatura passada, em
especial a de Euclides da Cunha. Lamartine não difere, combatendo a realidade do
passado que se desmancha nas areias do tempo pela sua escrita em Sertões do
Seridó (1980), que dá vigor à história local.
Os dois livros, inclusive, se aproximam no caráter narrativo de que Walter
Benjamin escreve. Em O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov
(1987), Benjamin tece um discurso que aponta para as causas do declínio da
narrativa e quais seriam as características (e natureza) dessa arte em vias de
extinção. Suas considerações parecem se endereçar ao “modos narrativos” dos dois
escritores: explica a narrativa como “A experiência que passa de pessoa a pessoa
[...]” (1987, p. 198), tendo “dimensão utilitária” e “sabedoria” como valor da narrativa
(“a sabedoria – o lado épico da verdade”, pp. 200 – 201); apresenta o narrador
incorporando suas experiências e as dos ouvintes (diferente do “isolamento” do
romance), e seus saberes sem necessidade de “verificação imediata” (diferente dos
40
saberes da Imprensa), com uma renovação da história em cada nova narração
(“Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo”, p. 205); fala da
importância da memorização (“A memória é a mais épica de todas as faculdades.”,
p. 210), e do caráter artesanal da narrativa (cheia de marcas, de presença humana,
não isenção ou afastamento).
Estamos, portanto, diante de uma tradição regionalista renovada pelo
estilo e o convívio mais extenso com a modernidade, mas que, por outro lado, utiliza
traços da narrativa tradicional, feita por literatos que se identificam com os
contadores de história das culturas rurais. No caso de Lamartine, podemos traçar
uma continuidade entre o “matuto” potiguar, e mesmo a tradição vinda das histórias
de seu pai, sendo um narrador rural nordestino; já a referência histórica dos
contadores de história de Rosa é mais aproximada do caboclo, habitante do interior
mineiro, que fala de um sertão arborizado e coberto por vegetação verde. No
primeiro caso, vemos (na visão de Benjamin) um narrador sedentário, que fala da
terra e de sua gente e, no segundo, um narrador viajante, que vai traçando a
geografia dos lugares por que passa.
Faz-se a pescaria de açude por processos mais ou menos idênticos, pouco
variando com o passar dos anos. E muitos dos pescadores de hoje são
filhos de pescadores, que sentiram o despontar da barba e o engrossar da
voz ajudando os mais velhos a escalar peixe, consertar e estender as redes,
mergulhar nos porões de açudes para desenganchar uma tarrafa ou mesmo
arremedando lances à beira d'água com suas tarrafas de menino. (FARIA,
1980, p. 128)
Viajamos juntos quatro dias, quase trinta léguas, bom tempo beirando o
Riachão e enxergando à mão esquerda os vultos da Serra-do-Cabral. Meus
companheiros quase que não me informavam, de nada ou nada. Tinham
outras ordens. Mas, mesmo antes da gente entrar em terras do Palhão, fui
vendo coisas calculosas, dei meio para duvidar. Patrulhas de cavaleiros em
armas; troco de conversa de vigiação; e uma tropa de burros cargueiros
mas no meio dos tocadores vinham três soldados. (ROSA, 2011, pp. 172 -
173)
Mesmo com algumas diferenças, o aspecto narrativo perceptível entre
Rosa e Lamartine se vincula ao narrador regional, de cultura do campo, que é
41
próximo da visão de “cultura rústica”, estudada por Antonio Candido em Os
parceiros do Rio Bonito (2001):
No caso brasileiro, rústico se traduz praticamente por caboclo no uso dos
estudiosos, tendo provavelmente sido Emílio Willems o primeiro a utilizar de
modo coerente a expressão cultura cabocla [...] que [...] exprime as
modalidades étnicas e culturais do referido contacto do português com o
novo meio. (CANDIDO, 2001, p. 28)
Podemos compreender com isso que tratamos com, pelo menos, duas
perspectivas de tradição que se completam nessa ligação da tendência regionalista
entre Rosa e Lamartine: uma que remete à “origem cultural” de valores tradicionais,
mesmo que remotamente presentes em características de oralidade e tentativa de
registro; e outra estética, não movida por uma simples “vontade de tradição”, mas
por uma “vontade de ser literatura”. Observamos a primeira como parte da segunda,
que não se estrutura simplesmente pelo cuidado com a linguagem, mas trabalha
esteticamente sua matéria histórica/ficcional vinculada aos sertões dos autores.
Assim, podemos entender desse contraste a tradição literária não apenas
como a tocha que é passada, contendo valores sociais e morais, mas todo o
conteúdo humano e estético, mesmo que conflituoso, em relações dialéticas com
traços da “narrativa” de cada autor.
Em tal terreno arenoso, vale salientar a importância das memórias na
Literatura, segundo Candido, como “processo de maioridade”. E é justamente
lidando com esse entrecruzar de Literatura e memórias com que trabalhamos,
particularmente no ensaísmo lamartineano, entendendo que esse vínculo gera algo
além do objeto estético somado ao registro histórico, gera literatura como “fenômeno
de civilização”. Com tal vínculo, inclusive, podemos mesmo ampliar o conceito de
leitura literária, já que, segundo Santiago: “[...] são fluidas e pouco pertinentes as
fronteiras entre o discurso ficcional memorialista e discurso autobiográfico no
contexto brasileiro.” (1982, p. 33), o que nos leva a uma maior amplitude do
“espectro literário” quanto ao tema das memórias: “[...] só o abandono por completo
da máscara dúbia contida nas etiquetas ‘romance’ e ‘personagem’ e a aceitação das
regras das memórias poderiam [...] ativar a participação de qualquer escrita, de
qualquer livro, na vida intelectual e sócio-política brasileira.” (1982, p. 33).
42
Tomando os ensaios de Sertões do Seridó como fronteira desse
fenômeno civilizatório, podemos aproximá-los da literatura intrincada de Guimarães
Rosa ainda por outra perspectiva, que facilita nossa leitura do caráter literário da
obra do autor potiguar. Mesmo sendo um gênero aberto e com estrutura
relativamente livre, é possível ler o ensaio lamartineano pelas suas oscilações entre
escrita “séria” e subjetiva à luz de Rosenfeld (2011). O crítico estuda as fronteiras da
obra literária (e da obra de arte de modo geral), registrando o caráter ficcional e,
sobre a sua intenção e contexto, observa:
Uma das diferenças entre o texto ficcional e outros textos reside no fato de,
no primeiro, as orações projetarem contextos objectuais e, através destes,
seres e mundos puramente intencionais, que não se referem, a não ser de
modo indireto, a seres também intencionais (onticamente autônomos), ou
seja, a objetos determinados que independem do texto. (ROSENFELD,
2011, p. 17)
Para ele, outros textos utilizam processos semelhantes, com “imagens
puramente intencionais”, mas se apagam para dar lugar à visão da realidade. Já na
arte, essa imagem ganha valor próprio, e “ofusca” a realidade retratada. Ou seja: a
imagem intencional na literatura ofusca o lado “objetivo” de uma referência possível,
o que verificamos em várias passagens da escrita lamartineana, quando ocorrem
seus “desvios” da linha principal da escrita.
Podemos compreender que Rosenfeld aponta como um dos “problemas”
dessa ficcionalidade a correspondência do ser “ontologicamente autônomo”
(existente, real, “referenciável”) e outros seres “puramente intencionais” que
aparecem na criação literária. Os primeiros aparecem dentro da literatura apenas
como referência indireta. A “visão da realidade” é ofuscada pela “imagem
intencional” do texto literário, pela sua criação intencionalmente ficcional. Já em
Lamartine, há o convívio dos “personagens” entre dimensão real e ficcional, como
vemos nas passagens sobre pessoas reais que, pela linguagem, assumem aspecto
lendário da cultura potiguar.
Parafraseando Rosenfeld: Todo texto projeta contextos objectuais
“puramente intencionais”, que podem referir-se ou não a objetos onticamente
autônomos. Tais contextos provocam uma aparência de realidade e mesmo uma
43
impressão de continuidade, mas a diferença que separaria os textos ficcionais dos
não ficcionais estaria encerrada nas imagens construídas que, diferente de um
caminho para perceber a realidade, acabam seguindo direção própria, ofuscando o
lado objetivo das possíveis referências ao mundo real.
Mas nosso ensaísta constrói um sertão entre o real e o ficcional, diluindo
essa separação. Sendo continuador dessa tradição da “verdade ampla” encontrada
em Rosa, seu texto caminha entre a “intenção séria de verdade” (ROSENFELD,
2011, p. 18) e a “intenção diversa” da ficcionalidade. O problema lógico da
ficcionalidade, segundo Rosenfeld, seria a relação do enunciado com a intenção
“séria” de atingir a “verdade”, sendo que, na literatura, tal intenção é diversa (voltada
para a ficção), pois não objetiva “juízos”, e mesmo que sua estrutura textual seja
semelhante a de textos “objetivos”, apenas apresenta “quase-juízos” na sua
construção ficcional. Porém, em uma noção do “real” que considera o imaginário e
criativo, esse problema se resolve.
Isso se esclarece ainda mais quando pensamos simplesmente no
significado de “verdade” para textos ficcionais e não ficcionais. Há diferenças
semânticas radicais entre tais verdades: uma voltada para a aproximação do “real”
(ou assim percebido), e a outra para conhecimentos que escapam à constatação do
real. Parece-nos que a maior diferença está na apresentação de juízos de um lado,
e em “proporcionar experiências” de outro, não se valendo das limitações da
“verdade verificável”. Essas experiências completam o entorno da realidade
verificável, ou da “realidade sensível aparente” de que falava Rosa, pois nos
proporcionam conhecimentos só acessíveis pelo imaginário, pela criação e pela
experiência ficcional.
É por esse prisma que avaliamos a oscilação de ficcionalidade e
seriedade de Lamartine e como ela relaciona sua escrita com a tradição que
continua. Tomamos essa literatura regional enriquecida pelas suas várias
dimensões, pela sua impressão tradicional da narrativa, ao lado do choque com a
modernidade e sua decorrente adaptação expressiva mais identificada com o
espaço retratado, e construímos o lastro entre Rosa e Lamartine.
44
2. GRANDE SERTÃO: VEREDAS E A CONSTRUÇÃO DO SURREGIONALISMO
Grande sertão: veredas (ROSA, 2011) inicia já no diálogo de Riobaldo,
velho jagunço aposentado, e um “doutor de fora” que apenas aparece como ouvinte,
um visitante, para quem o narrador personagem conta a sua história. A estrutura do
livro de mais de 700 páginas e nenhuma divisão por capítulos é, por menor que seja
a presença do interlocutor, elaborada em forma de conversa, como é possível
perceber pelas expressões de retomada, presença da linguagem fática e mesmo as
visíveis fugas com explicações ou recomendações do sertanejo ao “forasteiro”:
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que
elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a
vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às
brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A
força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! (ROSA, 2011, p.
48)
Aos poucos, a apresentação do sertão e suas personagens caminha, em
lances rápidos do início da conversa, e dá lugar a recordações mais detidas de três
fontes diferentes: os lugares por onde passou, as pessoas que conheceu e as por
que nutriu algum carinho maior (sabidamente Diadorim, Zé Bebelo e alguns outros
chefes de bando).
São esses os elementos-chave que costuram a consciência do narrador:
perdido entre memórias, avaliações do passado e divagações metafísicas (a
existência de Deus/Diabo, a vida/morte no sertão, amor/silêncio por Diadorim etc.),
Riobaldo não apenas fala do sertão e de sua experiência pessoal, mas (re)cria para
o doutor que o escuta o próprio sertão, que já se encontra mudado:
Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para
sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. Agora – digo por
mim – o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram.
Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada.
(ROSA, 2011, p. 51)
45
Com a certeza do passar do tempo, contempla o que lembra muitas vezes
com espanto de quem percebe estar “mudando a história”, “contando irregular”, e
volta várias vezes à linha principal das batalhas contra “os Judas”, que leva ao fim
trágico da morte do companheiro e o pacto. As passagens de sua juventude de
jagunçagem vem em blocos significativos, seguidos de pausas diversas, hora por
uma lembrança:
Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas
acontecerem... Com isso minha fama clarêia? Remei vida solta. Sertão:
estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra. Vaqueiros?
Ao antes – a um, ao Chapadão do Urucúia – aonde tanto boi berra...
(ROSA, 2011, pp. 57 - 58)
Ou por avaliações pessoais da vida e do sertão:
Mas, hoje, que raciocinei, e penso a eito, não nem por isso não dou por
baixa minha competência, num fôgo-e-ferro. A ver. Chegassem viessem
aqui com guerra em mim, com más partes, com outras leis, ou com sobejos
olhares, e eu ainda sorteio de acender esta zona, ai, se, se! É na boca do
trabuco: é no té-retê-retém... E sozinhizinho não estou, há-de-o. Pra não
isso, hei coloquei redor meu minha gente. (ROSA, 2011, p. 49)
E comentários sobre a cultura popular da região, ou sua geografia:
Mire veja: um casal, no rio do Borá, daqui longe, só porque marido e mulher
eram primos carnais, os quatro meninos deles vieram nascendo com a pior
transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos... Arre, nem
posso figurar minha ideia nisso! Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor
rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Arassuaí, discorreu
me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso
próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! (ROSA,
2011, p. 92)
Todos esses casos avançam na narrativa como complemento da visão
cósmica do sertão, espaço criado entre as histórias de vida do jagunço, causos e
contos herdados por outros viajantes, e o exame do narrador. São elementos que
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acusam no romance rosiano a presença de memórias e o “ensaio” de suas
experiências como fator principal da irregularidade narrativa.
Por esse caminho, a atenção do velho Tatarana está voltada para o fluxo
de sua memória, mesmo tentando manter a linha narrativa principal. Lembranças
surgem de comentários diferentes e não só da guerra se ocupa:
Ah, eh e não, alto-lá comigo, que assim falseio, o mesmo é. Pois ia me
esquecendo: o Vupes! Não digo o que digo, se o do Vupes não orço – que
teve, tãomente. Esse um era estranja, alemão, o senhor sabe: clareado,
constituído forte, com os olhos azuis, esporte de alto, leandrado, rosalgar –
indivíduo, mesmo. Pessoa boa. Homem sistemático, salutar na alegria séria.
Hê, hê, com toda a confusão de política e brigas, por aí, e ele não somava
com nenhuma coisa: viajava sensato, e ia desempenhando seu negócio
dele no sertão – que era o de trazer debulhadora, facão de aço, ferramentas
rógers e roscofes, latas de formicida, arsênico e creolina […] (ROSA, 2011,
p. 105)
Alguns temas recorrentes, como já foi apontado por Augusto de Campos
em Um lance de “Dês” do Grande sertão (CAMPOS, 1991), surgem na fala do
narrador, como as definições do sertão, a vida ser muito perigosa, Deus e o Diabo, e
o amor por Diadorim, declarado abertamente ou sugerido na sua presença ou
ausência:
Eu estava quase todo o tempo com Diadorim. Diadorim e eu, nós dois. A
gente dava passeios. Com assim, a gente se diferenciava dos outros –
porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades
estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é
feito um por si. De nós dois juntos, ninguém nada não falava. Tinham a boa
prudência. Dissesse um, caçoasse, digo – podia morrer. Se acostumavam
de ver a gente parmente. Que nem mais maldavam. E estávamos
conversando, perto do rego – bicame de velha fazenda, onde o agrião dá
flor. […] Quase que sem menos era assim: a gente chegava num lugar, ele
falava para eu sentar; eu sentava. Não gosto de ficar em pé. Então, depois,
ele vinha sentava, sua vez. Sempre mediante mais longe. Eu não tinha
coragem de mudar para mais perto. Só de mim era que Diadorim às vezes
parecia ter um espevito de desconfiança; de mim, que era o amigo! (ROSA,
2011, pp. 54 - 55)
47
Demos no Rio, passamos. E, aí, a saudade de Diadorim voltou em mim,
depois de tanto tempo, me custando seiscentos já andava, acoroçoado, de
afogo de chegar, chegar, e perto estar. Cavalo que ama o dono, até respira
do mesmo jeito. Bela é a lua, lualã, que torna a se sair das nuvens, mais
redondava recortada. Viemos pelo Urucuiá. Rio meu amor é o Urucuiá.
(ROSA, 2011, p. 107)
Campos propõe uma leitura comparada de Rosa com a literatura de
Joyce e que trata justamente de questões do ritmo da escrita. Considera que o
romance de Rosa teria parentesco com Ulysses e Finnegans Wake principalmente
no experimentalismo com a linguagem e com o trabalho na sintaxe, além de, porque
nosso escritor também “enfrenta a problemática de um romance intemporal, ou
melhor atemporal.” em que “A ordem dos ventos é a ordem da memória” (CAMPOS,
1991, p. 327), incorreria Guimarães Rosa em vários passeios por tempos diversos,
correções, emendas etc., de forma semelhante a Joyce.
Todo esse processo de ritmo, memória e experiência com a linguagem
acaba sendo interpretado em busca de uma “tematização 'musical' da narração”
(CAMPOS, 1991, p. 328), em que temas apresentados por palavras-chave ou
expressões são aperfeiçoados a partir da repetição e da variação sonora. Tendo isso
como base, o crítico demonstra tal ponto de vista com os principais exemplos do
Grande Sertão: a recorrência predominante da sonoridade da letra “D” no meio dos
temas centrais da narrativa como um contraste, uma dúvida constante, entre Deus e
o Diabo; as reelaborações da frase “viver é muito perigoso”, que flutuam entre a
definição e a dúvida; e as “frases-conceitos” (CAMPOS, 1991, p. 345) apresentadas
essencialmente pela “travessia” e o “sertão” (algumas das passagens de revisão
mais aparentes do texto).
Desse modo, o fazendeiro Riobaldo, que explica não ser nada a se
preocupar os tiros que se ouviram antes da conversa, vai ao caso de emprestar as
armas para matar um “bezerro do Demo”, define geograficamente o sertão e depois
diz que este “está em toda parte” (ROSA, 2011, p. 30), passa pela dúvida da
existência do Diabo e as interpelações do compadre Quelemém – o amigo da
velhice de Riobaldo, que parece acalmar suas angústias metafísicas e servir de
parâmetro para algumas de suas reflexões:
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Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem,
em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas
rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo.
Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais
crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo,
até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu
Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: – “Riobaldo, a colheita é comum,
mas o capinar é sozinho...” – ciente me respondeu. (ROSA, 2011, p. 90)
Esse pequeno trecho introdutório, antes das lembranças sobre os amigos
jagunços e a apresentação da narrativa principal, ocupa, como avaliamos, não
apenas o presente de Riobaldo, mas os temas que o acompanham durante o
Grande Sertão. Seu desenvolvimento passa pela presença dessas questões ao
longo da revisão do passado do narrador em um presente diálogo com um doutor
que ignora aquele tempo e sua ligação com a terra e seus habitantes.
O velho jagunço provoca, portanto, alguns desvios para inserir seu
convidado na realidade a que se reporta, e o faz ainda dentro do sertão, como quem
conhece o mundo por estas fronteiras, cada vez menos precisas pelo alcance que
atinge:
Agora, por aqui, o senhor já viu: Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico.
O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão. E agora me lembro: no
Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor vá ver a fazenda velha, onde tinha um
cômodo quase do tamanho da casa, por debaixo dela, socavado no antro do
chão – lá judiaram com escravos e pessoas, até aos pouquinhos matar...
Mas, para não mentir, lhe digo: eu nisso não acredito. Reconditório de se
ocultar ouro, tesouro e armas, munição, ou dinheiro falso moedado, isto sim.
O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a
baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania. (ROSA, 2011,
pp. 108 - 109)
O narrador dá a conhecer sua história nos embrenhando nas veredas
como quem é guiado por um nativo, não da visão telescópica dos visitantes.
Passamos pelas terras nas andanças dos bandos, observando seus usos e
costumes, contados por “um dos seus”:
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Aquele povo estava sempre misturado, todo o mundo. Tudo era falado a
todos, do comum: às mostras, às vistas. Diferente melhor, foi quando
estivemos com Medeiro Vaz: o maior número lá era de pessoal dos gerais –
gente mais calada em si e sozinha, moradores das grandes distâncias. Mas,
por fim, um se acostumava; isto é, eu me acostumei. Sem receio de ser
tirado de meu dinheiro: que eu empacotava ainda boa quantia, que Zé
Bebelo sempre me pagou no pontual, e gastar eu não tinha onde. Recontei.
Aí, quis que soubessem logo como era que eu atirava. Até gostavam de ver:
– “Tatarana, põe o dez no onze...” – me pediam, por festar. De duzentas
braças, bala no olho de um castiçal eu acertava. Num aquele alvo só – as
todas, todas! Assim então esbarrei aquilo com que me aperreavam, os
coscuvilhos. – “Se alguém falou mal de mim, não me importo. Mas não
quero que me venham me contar! Quem vier contar, e der notícias é esse
mesmo que não presta: e leva o puto nome-da-mãe, e de que é filho!...” –
Eu informei. O senhor sabe: nome-da-mãe, e o depois, quer dizer – meu
pinguelo. Sobre o fato, para de mim não desaprenderem, não se
esquecerem, eu pegava o rifle – tive rifle de winchester, até de, quatorze
tiros – e dava gala de estremez. – “Corta aquele risco Tatarana!” – me
aprovavam. Se eu cortasse? Nunca errei. Para rebater, reproduzia tudo a
revólver. – “Vem um cismo de fio de cabelo no ar, que eu acerto.” Sobrefiz.
Social eu andava com minhas cartucheiras triplas, só que atochadas
sempre. Ao que, me gabavam e louvavam, então eu esbarrava sossegado.
(ROSA, 2011, pp. 223 - 224)
Esse caráter de linguagem oral/pessoal e toda a estruturação da palavra
no momento da expressão levou críticos como Afrânio Coutinho (em Duas
Anotações: Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 1986) a reverem o processo de
narração do autor pelo seu trabalho inovador com a linguagem: por adotar de tal
forma uma perspectiva interna em Grande Sertão, seu processo seria como um
“ponto de vista interno absoluto, pois em vez de ser o autor quem faz o relato, pela
palavra de um personagem, é o próprio personagem quem fala e conta, ficando o
autor como um simples registrador do que ele diz.” (COUTINHO, 1991, p. 291). Com
isso, a preocupação expressiva de cada camada da escrita pode ser igualmente
entendida não como uma fuga da prosa regionalista, mas uma ampliação dessa em
posição interna à “região tratada” na escrita.
Por essa ótica, na leitura de Grande sertão: veredas poderíamos
50
considerar que as características observadas na narrativa de Riobaldo ultrapassam
a ficcionalização simples do narrador personagem, tornando-o mais próximo de uma
“identidade própria”, pois se destaca da personalidade do narrador tradicional que
apareceria, como considera Afrânio Coutinho, “travestido” de uma das personagens.
Em nosso caso, esse entendimento favorece a leitura pelo caminho da experiência
do narrador-personagem.
Observando isso, é interessante também apontar para a perspectiva de
“homo ludens” construída por Nelly Novaes Coelho (Guimarães Rosa e o “Homo
Ludens”, 1974) sobre o ato de narrar encontrado na literatura roseana desde
Sagarana: uma das inovações apresentadas pelo escritor, com relação ao
regionalismo “racionalista” de 1930, é justamente a natureza do “ato de contar” como
ação vital, o que remete a uma tradição popular dos mais antigos narradores
tradicionais aos tempos atuais. Esse “valor” somado à história, o valor da própria
narração, é tratado pelo escritor como elemento fundamental do ato da escrita, e
podemos encontrar tal substância na dimensão consciente do personagem-narrador
Riobaldo:
De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado de ouvir
narração, e isso de guerra é mesmice, mesmagem. Combatemos o quanto
mais pudemos – está aí. Consoante começou, no Curral de Vacas, perto do
morro do Cocoruto, onde nos pegaram num relaxo. Fugimos, depois de
grande fogo. […] Recito frente ao senhor: e é rol de nomes? Para mim
ficaram em assento de sustos e sofrimento. Nunca me queixei. Sofrimento
passado é glória, é sal em cinza. (ROSA, 2011. p. 384)
É nesse nível que uma leitura pelas concepções de Benjamin (“narrador
tradicional”), a nosso ver, seria possível. O crítico destaca que em Grande sertão o
narrador passa do monólogo interior para o diálogo e a interrogação com um “tu”, o
que permite um “espaço de reflexão”. Percebemos nisso o espaço que atravessa
pelo próprio sujeito que conta, pelo seu ouvinte e pelas histórias colocadas em
revisão.
No entanto, nem todas as referências dadas no diálogo de Riobaldo são
“típicas da terra”. De fato, por superar a proposta do registro fotográfico, podemos
interpretar que Rosa, em certa medida, passa pela Minas das suas viagens como
51
quem busca inspiração para pintar. Seu olhar é próximo da mimese enquanto
criação e nada em seu modo de narrar parece gratuito, buscando coerências com
um projeto dinâmico em diversos níveis da linguagem em cada construção de
sentido, o que se distancia bastante de um compromisso com a “verdade pura”.
Antes, o autor se compromete com a criação e passa desconfiado pela
frágil realidade de fatos orientados apenas pela lógica. Portanto, se podemos falar
de um caminho em busca de “transcendência” em sua literatura, devemos
considerar que esse existe pela reflexão, por uma visão complexa que não apague
os contrastes e se revele verdadeira pela própria ficção:
Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem
um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa
parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei
que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender
sua própria alma... Invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser
coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se
pensa: ah, alma absoluta! (ROSA, 2011, p. 50)
Dessa forma, por várias perspectivas diferentes, deparamo-nos com um
fator de imprecisão em Rosa que questiona a realidade fácil da “documentação dos
fatos” (avessa às dúvidas), mas que, porém, não se afasta totalmente de referências
precisas. Mesmo levando em consideração a perspectiva metafísica da criação
literária, resta perceber que em seu projeto de escrita não há um apagamento de
elementos que revelam tradições, mas uma convivência de registros de culturas
sertanejas com o projeto criativo, e mesmo de suas origens medievais com os níveis
mais “inventivos” de sua escrita.
Principalmente quanto a essa referência além-mar, mais de um crítico
aponta a ligação dos sertanejos de Rosa, especialmente os jagunços do Grande
sertão, com os romances de cavalaria. Antonio Candido, por exemplo, em O homem
dos avessos (1964), analisa tais personagens ao colocar a “terra” em ligação
dialética com o “homem”, sendo a descrição do meio uma extensão do “estado
moral” do indivíduo que, por seu lado, também segue seu rumo no mundo, partindo
dos caminhos/descaminhos desse espaço. Ou seja: a terra gera o homem, mas
também pode ser metáfora do sertão impreciso dentro de cada um. E esses
52
sertanejos que viajam por diversas paisagens estão sempre em luta, ou melhor
dizendo, em constante “guerrear”.
Candido percebe que, além das relações com o ambiente, os homens
possuem seu próprio modo de ser e que entra em diálogo com imagens históricas.
Seus jagunços são “um tipo híbrido entre capanga e homem-de-guerra.” (CANDIDO,
1991, p. 300) que quase nunca recorrem ao furto (estigmatizado pelo bando) e
prezam além de tudo sua liberdade, sempre testada pela presença constante do
perigo e da morte. São um misto entre o possível sertanejo real e uma imagem
fantástica do mesmo personagem. O crítico considera, com isso, que tais homens
permanecem entre duas dimensões, uma real e uma fantasiosa, que são unidas por
uma estrutura de romance de cavalaria.
Dessa forma, o jagunço estaria em par de igualdade com o paladino
medieval pelo modo como trazem a “justiça”, valendo-se das normas do grupo de
guerreiros em um mundo longe da concretização das leis sociais. Por essa ordem, o
banditismo da “jagunçagem” toma outras cores que derivam de seus costumes e
toda a conduta de uma filosofia militar rígida que Candido associa com o “bushidô”.
Esses sertanejos de Rosa não seguiriam, de fato, toda a moral encontrada nos
romances de cavalaria, mas estariam de acordo com uma coerência estrutural
mínima ao permanecerem “leais” aos princípios norteadores da “moral” do grupo, ao
serviço do guerreiro.
Além dessa correspondência parcial, inclusive, encontramos nessas
estruturas outras diversas características em comum com a tradição apontada:
[…] as batalhas e os duelos, os ritos e práticas, a dama inspiradora, Otacília, no seu
retiro, e até o travestimento de Maria Deodorina de Fé Bettancourt Marins no
guerreiro Renaldo (nome cavaleiresco entre todos), filha que era de um paladino
sem filhos, como a do romance incluído por Garret no Romanceiro […]. (CANDIDO,
1991, p. 301)
E o crítico ainda nos aponta para a própria trajetória de Riobaldo como parte dessa
tradição: por ser filho ilegítimo, por subir dentro do bando aos poucos e mesmo pelo
pacto, uma “iniciação às avessas” (p. 303), sua história apresentaria “contaminação
dos padrões medievais” (p. 302). Candido considera, finalmente, que os contrastes
entre o banditismo e os padrões de cavalaria acabam estruturados em uma rede de
ambiguidades que se apresenta por toda a obra.
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De forma semelhante, Cavalcanti Proença, em Don Riobaldo de Urucuia,
Cavaleiro dos Campos Gerais (1958), aponta para o caráter épico do romance de
Rosa e para várias outras características que revelam semelhanças com epopeias
medievais e romances de cavalaria: a presença de contos na estrutura narrativa
mais ampla para manter a atenção e deter o fio narrativo principal; a origem humilde
do narrador que chega ao posto de líder e herói, e a sua natureza contraditória entre
a dureza do cangaço e o repúdio pela injustiça; a semelhança dos chefes de bando
com algumas figuras marcantes da tradição medieval (Medeiro Vaz e Carlos Magno,
Joca Ramiro e Rolando, os chefes traidores com Don Galvan etc.); o sentido de
honra e da glória conquistada pelas batalhas; a enumeração dos guerreiros antes
dos combates etc.
Conseguimos, assim, interpretar várias passagens de Rosa em diálogo
com uma tradição literária medieval, mas, do modo como o próprio crítico aponta, há
a possibilidade de boa parte dos elementos mais nítidos serem apresentados de
forma talvez “inconsciente”. Portanto, quando nosso escritor mostra referências mais
explícitas, segundo Proença, há a possibilidade de terem sido descuidos:
Vez por outra, conscientemente ou não, o romancista deixa entrever em
certas expressões as raízes antigas de sua efabulação: Joca Ramiro é “um
imperador em três alturas” um chefe valente é par-de-França, Riobaldo lê o
Senclér das Ilhas e se compara a Guy de Bourgnogne. […] De Diadorim,
digamos logo que é também figura de romance-velho, a Filha de D. Matinho
[…]. (PROENÇA, 1991, p. 317)
Cavalcanti Proença, inclusive, termina sua análise mostrando várias
características de Diadorim que seriam releituras de tal romance antigo. Dessa
forma, não podemos dizer que haja consenso entre a crítica quanto à referência
exata da raiz desse personagem, pois tal pesquisador, em estudo já clássico dentro
da fortuna crítica de Rosa, sugere outro princípio para o mito além da história
compilada por Almeida Garret no Romanceiro.
Esta, segundo Braga Montenegro (“Guimarães Rosa, novelista”, 1968),
seria o romance “A Donzela que vai à Guerra”, também conhecido por “O Rapaz do
Conde Daros”, que circula pelo sertão brasileiro como “A Moça do Conde Dare”, com
muitas variações.
54
Logo, é interessante notar que o mito de Diadorim, da mesma forma que
os outros elementos observados nessa ligação com textos de cavalaria, não
possuiria fonte categoricamente definida, permitindo, contudo, uma leitura pela
reelaboração de histórias da tradição medieval. Podemos, indo um pouco mais além,
compreender tais referências como uma linha “histórico-literária” na literatura de
Guimarães Rosa: uma tradição reelaborada literariamente que acomoda-se junto
das diversas visões do sertão de geografia imprecisa e, por um lado, dá parâmetros
para a análise das culturas envolvidas na narrativa, mas que, por outro lado, segue o
teor geral da obra, apresentando-se de forma intencionalmente aberta.
Além das referências europeias mais visíveis, encontramos ainda, do
“nonada” da primeira página ao da última, construções no nível da língua que,
embora sensivelmente coerentes com a narrativa, não são termos regionais dos
sertões brasileiros.
Ao observarmos estudos sobre o caráter “metalinguístico” no processo de
criação de Rosa e como sua revolução na literatura começa pelo cuidado incomum
com níveis estruturais geralmente observados apenas na escrita poética, podemos
apontar prioritariamente três dimensões da escrita roseana que foram ao longo dos
anos largamente analisadas: os processos envolvidos na ressignificação e/ou
criação de palavras; os de ressignificação pelas ligações sintagmáticas e pela
própria estruturação sintática; e o ritmo, rimas e repetições de temas (esses últimos
fatores mais comumente observados no gênero lírico).
O primeiro a que recorremos é o ensaio clássico O repertório verbal de
Oswaldino Marques (1957) que nos orienta quanto ao processo de afixação.
Diferente do que um leitor descuidado poderia pensar, boa parte dos processos de
resignificação no nível da palavra ocorrem pela modificação de um vocábulo
seguindo virtualidades possíveis da língua portuguesa, e é justamente o que
Marques demonstra ao exemplificar dezenas de casos que, apenas pelo artifício da
prefixação e/ou sufixação, surtem efeitos diferentes. Além disso, tal utilização da
língua portuguesa potencial nas “virtualidades” já havia sido reparada por Cavalcanti
Proença em estudo no mesmo ano (1957). Portanto, pelo exercício sistemático de
análise dos diversos exemplos escolhidos, Marques observa um fator fundamental
para a leitura de Rosa quanto a esses processos de criação:
55
[…] não há um conteúdo puramente denotativo desses morfemas [referindo-
se aos prefixos], como o fazem crer todos os tratadistas […] É impossível
tornar manifesto o seu teor sem sofrer a contaminação dos elementos
expressivos do tema. […] O caminho acertado é considerá-los, cada um de
per si, dentro da unidade fraseológica.” (MARQUES, 1991, p. 107).
Por tal perspectiva, podemos compreender que mesmo reorganizando o
uso de afixos tradicionais, o significado de cada modificação é encontrado apenas
na passagem em que é apresentada, sendo, portanto, uma criação expressiva na
própria língua, e não uma fuga dessa. O contexto de cada recriação acusa que os
elementos de composição teriam como finalidade dar “nova luz” ao conteúdo de
cada signo desgastado pelo uso. Assim o “nonada”, por exemplo, tanto soa mais
natural ao dizer rústico que “não é nada”, quanto abre semanticamente a expressão
para a sugestão de isolamento, no “meio do nada”.
Destacamos que Marques, inclusive, percebe tal “iluminação” das
palavras pelo estilo enquanto característica “expressionista” da linguagem roseana,
escapando de qualquer busca ao “naturalismo”:
[…] os acentos que João Guimarães Rosa calça sobre certos momentos da
realidade decorrem antes de exigências expressionistas do que do desejo
de produzir uma fotocópia. […] Esta conformação, sem servilismo, à
natureza é consequência, aliás, do respeito que o autor tem pelos eventos
em si. (MARQUES, 1991, pp. 108-109).
Partindo dessa mesma linha de análise, Franklin de Oliveira, em
Revolução Roseana (1967), nota que o processo de criação do autor passa
predominantemente da unidade fraseológica em Sagarana para a da palavra entre
Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile. Com isso, o crítico destaca que não
apenas as palavras modificadas, mas cada vocábulo na organização textual deve
ser percebido além do mero papel do “significante” nos textos posteriores à
mudança de estilo: “A palavra perdeu a sua característica de termo, entidade de
contorno unívoco, para converter-se em plurissigno, realidade multi-significativa.”
(OLIVEIRA, 1991, p. 180). Isso é o que muitos autores posteriormente
reconheceram como o motivo primeiro da leitura entre prosa e poesia, mas tal
perspectiva não se limita aqui.
56
Adotando uma investigação que trabalha mais os aspectos metafísicos do
autor e sua obra, o crítico foi um dos primeiros a perceber o real desdobramento do
nível estilístico no projeto do escritor: a maior revolução roseana, segundo Oliveira, é
romper a tradição de “obras vingadoras”, literatura que é escrita pela reelaboração
da matéria do tempo em que é criada (e, portanto, de certo modo “fechada” a ela),
para uma escrita que percebe o processo mimético pela sua segunda acepção, não
a cópia da natureza, mas a imitação de seus processos. Guimarães opera, dessa
forma, em uma dimensão da transcendência humana, na “categoria goetheana do
erzienhugsroman: o romance de educação espiritual.” (OLIVEIRA, 1991, p. 182).
Consequentemente, Franklin de Oliveira foi um dos primeiros estudiosos a
perceber a fronteira limite da camada filológica “concreta” na linguagem de Rosa: a
estrutura em suas obras está vinculada a uma “imagem de vida possível de ser
vivida segundo as leis da alegria e da beleza, sob o império da poesia incorporada à
existência humana.” (OLIVEIRA, 1991, p. 186). Tal ótica nos leva a contemplar uma
ligação fundamental entre expressão e existência no eixo da “escrita concreta”, e
não há, dessa maneira, recriações da linguagem, em qualquer nível, que não
estejam relacionadas ao propósito de reflexão sobre o homem.
Eduardo F. Coutinho, por sua vez, em Guimarães Rosa e o Processo de
Revitalização da Linguagem (1973) estabelece um diálogo com vários estudos de
caráter formal sobre a escrita roseana e aprofunda essas dimensões entre palavra e
metafísica no processo de criação. Inclusive, nesse ensaio, o crítico nos possibilita
um parâmetro mais claro entre os dois aspectos da linguagem destacados até
agora: “O primeiro destes aspectos, o metafísico, diz respeito à relação entre
linguagem e vida e ao processo de criação por que todo artista passa ao produzir
uma obra; o segundo, o filológico, refere-se especificamente à linguagem criada por
ele.” (COUTINHO, 1991, p. 202). Assumindo tal perspectiva, e entendendo a visão
de Rosa sobre a vida como “linguagem”, Coutinho ainda nos apresenta o processo
de ressignificação além da esfera do mero trabalho estilístico:
Como tudo na vida, as formas da língua também envelhecem e se tornam
completamente inexpressivas após uso prolongado […] Cabe, então, ao
escritor, consciente de sua missão, refletir sobre cada palavra ou construção
que utiliza e fazê-la recobrar sua energia primitiva, desgastada pelo uso. […]
E é este processo de revitalização que Guimarães Rosa emprega em suas
57
obras, conforme ele mesmo declara […] (COUTINHO, 1991, p. 203).
Além desses, discorre sobre outros processos de “alteração do
significante” que não haviam sido observados anteriormente, como a aglutinação
(“fechabrir”), a modificação de sentenças já consideradas clichês (como exemplo:
“nu da cintura para cima” tornando-se “nu da cintura para os queixos”), e o uso
recorrente de alguns significantes para aumentar seus significados (o que opera
como leitmotiv nos textos de Rosa).
O crítico considera, enfim, que todos esses aspectos de modificação que
ocorrem no nível estrutural estariam para a linguagem como um projeto de
libertação, e tece algumas reflexões sobre outros elementos além dos neologismos:
aponta, por exemplo, a presença menor de estrangeirismos adaptados à estrutura
da língua portuguesa, uso de expressões eruditas e coloquiais e elementos de
regionalismo que não se limitam a uma região do país, tornando, portanto, mais
complexa a localização dos “regionalismos” do escritor em uma visão tradicional.
Dessa forma, por seguir uma prosa regionalista cheia de conflitos com a
definição mais típica do regionalismo enquanto escrita sobre um determinado
local/cultura/época, a perspectiva “surregionalista” de Candido toma corpo. A
narrativa de Riobaldo consegue nos levar para um sertão extremamente rico e
presente em nosso imaginário nacional, mas faz isso caminhando pela ficção e por
fronteiras além do evidentemente local. O surregionalismo rosiano é, portanto,
desenvolvido pelo “sertão potencial”, o que não limita suas terras:
O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado
sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo,
terras altas, demais do Urucuiá.Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo,
então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga:
é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze
léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-
jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuiá vem dos montões
oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas,
almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de
mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O
gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o
que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O
sertão está em toda a parte. (ROSA, 2011, p. 30)
58
Esse sertão-mundo, mesmo que imaginário, é desvendado entre a história
principal da guerra dos jagunços que leva Riobaldo ao posto de chefe e sua atual
situação de “aposentadoria”. No meio dessa narrativa interrompida por outras
histórias, tentamos, enquanto leitores, organizar cada episódio entre os chefes de
bando, Diadorim e Riobaldo. Mas a temporalidade desses “três dias de conversa”
entre o narrador e seu visitante caminha pelo desenvolvimento das memórias,
muitas vezes involuntárias, que chegam à superfície:
De Diadorim não me apartava. Cobiçasse de comer e beber os sobejos
dele, queria pôr a mão onde ele tinha pegado. Pois, por que? Eu estava
calado, eu estava quieto. Eu estremecia sem tremer. Porque eu
desconfiava mesmo de mim, não queria existir em tenção soez. Eu não
dizia nada não tinha coragem. O que tinha era uma esperança? Mesmo
parava tempos no pensar numa mulher achada: Nhorinhá, a minha
Rosa'uarda, aquela mocinha Miosótis. Mas o mundo falava, e em mim
tonto sonho se desmanchando, que se esfiapa com o subir do sol, feito
neblina noruega movente no frio de agosto. (ROSA, 2011, p. 400)
Não é apenas um momento de revisão em que um velho expõe sua
experiência pelas veredas da terra a um ouvinte aparentemente atento (este,
inclusive, podendo ser interpretado como um “tu” sempre renovado, ocupado por
quem se aventura a desvendar o livro, um “doutor” que representa o possível leitor
citadino), mas a própria tentativa de reviver esse sertão pela organização dessas
memórias, buscando coerência na sua vida.
No fim do livro entendemos que o apreço pelo compadre Quelemém
ocorre especialmente por duas razões: ter sido apresentado por Zé Bebelo em um
momento de angústia (pela perda de Diadorim e o temor do pacto ser válido) e ter
escutado a história de Ribaldo e respondido a questão chave de sua travessia:
Tinha de ser Zé Bebelo, para isso. Só Zé Bebelo, mesmo, para meu destino
começar de salvar. Porque o bilhete era para o Compadre meu Quelemém
de Góis, na Jijujã – Vereda do Burití Pardo. Mais digo? […] Compadre meu
Quelemém me hospedou, deixou meu contar minha história inteira. Como vi
que ele me olhava com aquela enorme paciência – calma de que minha dôr
59
passasse; e que podia esperar muito longe tempo. O que vendo, tive
vergonha, assaz. Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei: – “O
senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!” Então ele sorriu, o
pronto sincero, e me vale me respondeu: – “Tem cisma não. Pensa para
diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase
iguais...” (ROSA, 2011, p. 748)
É essa ligação afetiva inclusive que o narrador desenvolve com o doutor,
como se se livrasse das preocupações tendo a história contada:
Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro.
Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de
São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau
grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou:
que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano,
circunspecto. Amigos somos. (ROSA, 2011, p. 749)
Essas seguem toda a história até seu término, mas chegam ao clímax
com a transfiguração de Riobaldo, sua travessia do deserto e a vingança amarga.
Assim, as duas tentativas de vencer o Liso do Sussuarão, separadas pela
incorporação mística do pacto, representam os momentos diferentes do jagunço:
antes, aparece transitando entre a geografia dos conflitos e das memórias, vivendo
seu dilema com o amor proibido/amor físico/amor idealizado, lembrando de tantas
pessoas e histórias que povoam o sertão, e em conflito com sua própria identidade;
com o “batismo trágico” das Veredas Mortas, passa ao ritmo mais direcionado para
terminar sua história, e das divagações corre para as decisões (vencer a terra, a
luta, mudar sua sina, casar-se com o amor idealizado e buscar paz espiritual).
Podemos compreender desso modo que a ligação do Urutu Branco com o
narrador envolve menos ocorrências de memórias involuntárias, assim como parte
reduzida de seu caminho. Passa de menino no rio a aluno e “professor”, começa
como jagunço, Tatarana, e chega à chefia de bando, para depois se aquietar como
fazendeiro.
Todas essas transformações passam pelo “viver perigoso” do sertão, mas,
por mais que esteja sempre guerreando ao longo de sua história, vemos Riobaldo
voltar ao estado de “descanso” que conflituosamente carregou o quanto pôde.
60
Essa perspectiva reflexiva que encontramos na entidade do narrador
personagem torna sua própria identidade diferente da dos outros cangaceiros. Não
desejava ser líder ou aceitar totalmente o ódio de Diadorim, estava sempre atento
aos companheiros, reconhecendo-se parcialmente como jagunço, capaz de sonhar
com uma vida calma na fazenda Santa Catarina, de apreciar a natureza dos lagos e
pássaros aprendida com o companheiro inseparável:
Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu
guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em
Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-congo cantou. Eu queria morrer
pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra do
Pau-d'Arco, quase na divisa baiana […] (ROSA, 2011, p. 45)
Depois de tantas guerras, eu achava um valor viável em tudo que era
cordato e correntio, na tiração de leite, num papudo que ia carregando lata
de lavagem para o chiqueiro, nas galinhas-d'angola ciscando às carreiras
no fedegoso-bravo, com florezinhas amarelas, e no vassoural comido baixo,
pelo gado e pelos porcos. (ROSA, 2011, p. 247)
É o representante mor da ideia de travessia que permeia o livro: pelas
palavras renova todo o espaço que campeou, juntando dúvidas e certezas, casos
vividos ou escutados, revendo as raivas e indecisões do passado com a experiência
do presente, dando explicações para que se entenda as passagens que julga mais
complicadas. Assim atravessa o Liso duas vezes, vencendo a aridez das palavras.
Não apenas seu discurso renova o sertão até o símbolo de infinito da
última página, mas recupera e ressignifica a própria literatura regionalista. Pelo
desenrolar dessa obra, independentemente da confirmação de veracidade e
precisão dos “campos gerais” descritos, vemos uma imagem do sertão construída de
forma impecável, de modo a um leitor citadino perceber no seu surregionalismo
tanto o exotismo esperado quanto a profundidade dos temas humanos universais e
a reelaboração da própria língua. É um processo de conhecer o sertão o
reinventando ao nível fabular.
Pelas palavras desse narrador, Guimarães Rosa nos convence que seu
Grande sertão é parte de nossa história, pois trabalha com as virtualidades da língua
portuguesa, da vida e dos homens do campo. Seu regionalismo é, por fim, revelado
61
pela mimese criativa que amplia e ilumina as veredas já gastas de nossa literatura
sertanista. E é por tal processo de criação, de reinvenção despretensiosa com
qualquer verificação documental que, em parte, podemos aproximar Lamartine de
sua escrita. Em nosso ponto de vista, ambos os escritores se encontram em
processos mais criativos que reprodutivos, “inventando” seus sertões.
62
3. SOBRE O GÊNERO ENSAÍSTICO: DEFINIÇÃO E PERSPECTIVA DE ESTUDO
Em uma primeira observação, constatamos que a obra do escritor
potiguar que analisamos é quase inteiramente composta por ensaios (restando
ainda um dicionário de termos regionais e uma coletânea de poemas recolhidos da
tradição). Partindo desse ponto, a forma escolhida pelo redator, pretendemos
demonstrar que temos a possibilidade de trabalharmos com uma escrita de temática
sertaneja mais maleável não apenas pelas escolhas pessoais do ato composicional,
mas também pelo amplo espectro que tal gênero pressupõe.
Da forma como é concebido após seu desenvolvimento moderno, o
ensaio permite a “aderência” de vários aspectos diferentes da escrita e que são
encontrados, inclusive, em Lamartine: a observação científica próxima de confissões
e recortes da memória familiar, o desenvolvimento estético e as exemplificações por
histórias/estórias populares etc. Embora todos esses recursos possam parecer, em
uma primeira análise, bastante destoantes e capazes de levar o texto ao caos, isso
não ocorre necessariamente. Podemos compreender nessa abertura textual que o
escritor utiliza os elementos que julga serem necessários para a construção de suas
ideias pela própria coerência das imagens que propõem, e que é justamente essa
capacidade de utilizar despretensiosamente recursos variados um dos “elementos
comuns” do ensaio.
No entanto, mesmo havendo certo consenso em seus traços gerais, nem
todas as conceituações do gênero abrangem um modelo que se adeque ao adotado
por Lamartine, o que permitiria possivelmente uma leitura equivocada de alguns
trechos dos Sertões do Seridó, como fragmentos de um tratado ou de uma
construção inventiva sobre a terra. Pensando nisso, para evitar esse e outros
problemas torna-se necessária, antes da leitura mais detida ao corpus, uma breve
revisão da literatura.
Seguindo esse raciocínio, logo constatamos que, particularmente no que
tange ao ensaio e a literatura, ainda carecemos de bibliografia adequada, sendo um
campo praticamente abandonado ao passo que ultrapassa a fronteira da escrita
meramente argumentativa. Muitos estudiosos recorrem às formulações de Lukács e
Adorno, que remetem a projetos maiores em uma perspectiva filosófica, mas quase
nenhum teórico moderno da literatura sequer menciona o gênero em seus estudos.
63
Segundo GUERINI (2000), com a exceção de Northrop Frye em Anatomy of
Criticism (1957), não há tentativas precisas de teorização do ensaio em nossa área,
talvez por sua essência livre que quase tudo inclui e pela complexidade de sua
estrutura adaptável.
Dessa forma, é interessante perceber que os significados ainda utilizados
atualmente possuem fontes diversas que variam de sua “concepção original”, que
remonta a Montaigne, à recente revisão de abertura e imprecisão enquanto
características necessárias do texto, não uma simples impossibilidade de
demarcação linguística.
De fato, a “matéria” do ensaio é mais antiga que suas formulações
estruturais, sendo encontrada já nos diálogos platônicos e na Poética aristotélica.
Mas apenas com a publicação dos Essais (1580) de Montaigne é que o gênero é
nomeado, assumindo uma conotação tanto de modéstia (seriam apenas
“experimentos” do pensamento do escritor) quanto de processo de criação: suscita
um desenvolvimento de assuntos que não se pauta na profundidade do saber do
redator, ou no caráter inédito de seu assunto, e nem mesmo em seu esgotamento; o
que valeria é o percurso pelo qual decidiu seguir, não buscando fórmulas prévias e
possuindo plena consciência de suas limitações (contendo até certo orgulho em tal
percepção).
O ensaísta francês ainda reflete que nesse gênero de escrita seria
fundamental o exercício da razão reflexiva que busca eu sua própria fonte sua
coerência, unido da liberdade absoluta em seguir seu desenvolvimento ao ser
imanentemente crítico. Dessa forma, a ideia sugerida no ato de escrever é validada
em seu próprio processo e pela lógica de pensamento que estrutura, completando
assim o sentido de exercício do intelecto e modéstia da investigação, pois seria o ato
do redator se aprofundar em sua formulação e assim dar corpo ao tema.
Com a publicação dos Essais de Montaigne, logo essa forma de escrever
se popularizou, chegando em 1603 à Inglaterra, onde foi cultivada particularmente
por Bacon. O escritor inglês já havia iniciado sua obra ensaística cinco anos antes
(1597) da tradução dos Essais e propôs sua classificação do gênero: uma divisão
entre o ensaio “formal” e o “familiar” (Apud FLORES, 2004) que parece separar os
textos por intenções mais “sérias” ou mais “lúdicas”. O primeiro, texto crítico que tem
função de educar, refletiria a personalidade do autor indiretamente. O segundo,
64
voltado para o entretenimento e as impressões pessoais e o subjetivismo,
apresentaria diretamente a personalidade do autor, como em poemas líricos.
Esse novo desenvolvimento na “definição clássica” do gênero ensaístico
inspira, portanto, questionamentos sobre a função do texto, em uma divisão que
claramente reflete a posição de Bacon na Literatura Inglesa. Eu sua obra de
investigação religiosa, apura criticamente suas ideias com intuito didático, sendo,
dessa maneira, mais “direcionado” a uma função prática que uma vertente familiar,
orientada pela reflexão introspectiva próxima de uma escrita poética.
Entretanto, não é apenas pela intenção que o escritor inglês separa o
gênero em duas linhas, e sim pelo caráter da reflexão em cada texto. Para Bacon, a
característica fundamental do ensaio seria a meditação e, do modo como
compreendemos, seria ainda diferente a sua natureza em cada tipo ensaístico (uma
linha mais educativa ao lado de outra possivelmente divagativa). Observa isso com
tanto cuidado que, justamente pela meditação já ser fator encontrado na literatura,
chega a negar a criação à Montaigne, pois não seria possível refutar esse aspecto
em escritores clássicos como Sêneca. Argumenta, enfim, que a palavra (ensaio)
seria nova, mas não o seu conteúdo, cabendo ao francês apenas a invenção do
termo. Esse ponto de vista de Bacon seria bastante aceito e obras anteriores à
“invenção” francesa do gênero começariam a ser relidas com nova luz.
Toda esse aprimoramento, ocorrido em um breve período de tempo,
obteve inclusive outros resultados ainda no século XVI com a diferenciação entre o
gênero textual tratadístico do ensaístico, o que nos é providencial: o ponto de
discordância das duas produções em prosa se encontra na procura por uma
“verdade absoluta” pela primeira e por uma “verdade relativa” pela segunda. Sem
essa distinção, o caráter didático e “sério” do tratado poderia, inclusive, ser
confundido com a definição de “ensaio formal” de Bacon e, de fato, o gênero
ensaístico foi, infelizmente, muitas vezes cultivado de forma equivocada durante os
dois séculos seguintes. Resta até hoje, mesmo com essa oposição bem
determinada, certa “névoa” que evoca uma desconcertante vagueza em seu uso
comum, mas formulações mais recentes puderam mudar ainda mais a leitura
especializada do gênero.
No século XX surgem dessa forma três autores que reavivariam tais
estudos a ponto de revê-los quase que completamente: Lukács, Max Bense e
65
Theodore Adorno. O primeiro, em publicação de 1910 (Sobre a essência e forma do
Ensaio) percebe na forma do gênero o seu destino. O texto obriga o redator ao mais
profundo exercício de autorreflexão eu seu breve fôlego, o que deve ser aceito com
sobriedade, ainda que ironicamente. Seria o ensaio feito para a crítica, pois fala
sempre de algo já existente ao organizar a matéria de forma nova. Estaria sujeito a
enunciar as “verdades” do objeto referenciado e a produzir nova animação de seu
conteúdo. Para tanto, julga que o ensaio não possui “independência” em sua forma
de mesma maneira que ocorre na poesia, já que sua estrutura é decorrente desse
diálogo em especial com a arte.
Embora bem estruturado, o ponto de vista de Lukács sofre severas
críticas por Adorno. Em 1958 (O ensaio como forma) o crítico alemão reforça a
independência do gênero textual, não o classificando da mesma forma “determinista”
que o autor húngaro. Nessa perspectiva, a escrita é tratada como um processo de
criação, não “espelhamento” e, embora muito das duas obras se encontre, concerne
à segunda exposição o caráter de “autonomia” do ensaio: também em Adorno
encontramos a profundidade de reflexão, a transitoriedade da escrita e a experiência
pessoal na validação do conhecimento tratado, mas dentre tais elementos ainda se
destacam o direito ao método (superando seu sentido tradicional em uma escrita
sem fórmulas engessantes) e a capacidade de desvelar ideologias e combater o
dogmatismo. Assim, tal proposição mostra uma dimensão que inicia praticamente
pela didática do gênero e segue à filosofia geral de sua produção.
Diferente dessas duas perspectivas, Max Bense define o ensaio em 1947
(Sobre o ensaio e sua prosa) por uma ótica semelhante às visões da ciência
tradicional ao se deter no sentido de experiência: avalia o texto enquanto método
experimental que produz sua escrita pelo teste, refletindo, reescrevendo,
questionando. Acredita, aliás, que o gênero seria a forma assumida por nosso
espírito crítico e uma modalidade literárias complexa. Com tal visão, Bense parece
enxergar pontos fundamentais do ensaio de forma bastante sintética, mas, como
examinamos, sua orientação o guia para um espaço pouco seguro entre o gênero
textual e a atividade de reflexão, motivo que nos leva a desconsiderar seu estudo
em nossa leitura do corpus, utilizando-o apenas como contraste para o que
pretendemos englobar no conceito de gênero ensaístico.
Do outro lado, as investigações iniciadas por Lukács e revistas por Adorno
66
nos parecem entrar em acordo com um sentido mais aberto e que mantém-se bem
estruturado em referência à maioria dos ensaios com que trabalhamos. Percebemos
especificamente nesse último teórico uma retomada da identidade clássica do
gênero que foi reescrita em linguagem moderna, aproximando-se de nosso tempo.
Utilizamos, portanto, a perspectiva de Theodore Adorno em reflexão com a tradição
francesa/inglesa clássica no que tange a fatores de experiência e personalidade do
redator, o que aparentemente foi deixado em segundo plano pelo autor alemão.
Com todo esse percurso, resta ainda levantar uma última proposta de
definição do ensaio com a qual pretendemos trabalhar, mesmo compreendendo
apenas uma de suas proposições sobre o tema. Haro (2005) oferece uma
perspectiva ainda mais aberta que a de Adorno:
Los géneros ensayísticos, concebidos como géneros ideológico-literarios, se
diferencian de todo punto de los géneros poéticos o artístico-literarios como
de las realizaciones de tipo cientifico. En general, las formas de lenguaje
que realizan la producción textual ensayística son determinables dentro del
gran espacio de posibilidades intermedias entre los géneros científicos y los
géneros artísticos, entre la tensión antiestándar del lenguaje artístico y la
univocidad denotativa promovida por el lenguaje científico, entre la
fenomenología y los hallazgos de la poeticidad, de un lado, y la cientificidad,
de outro. (HARO, 2005, p. 19)
Representamos, assim, parte do universo ensaístico de Lamartine por
uma ótica do ensaio que se pretende maleável e que “invada fronteiras” entre a
linguagem científica e literária. Partindo dessas considerações, podemos verificar
em camadas mais aproximadas da análise de ficcionalidade alguns elementos de
construção do texto lamartineano e aproximá-lo da escrita rosiana. Com divisas
pouco rígidas, ainda pela escolha textual nosso ensaísta já se aproxima de um
projeto complexo da terra e de sua cultura.
67
4. SERTÕES DO SERIDÓ: VEREDAS POTIGUARES
Sertões do Seridó (1980) configura-se como coletânea de cinco obras
publicadas anteriormente, de 1961 a 1978, compreendendo um grupo de estudos
diversos empreendidos por Lamartine ao longo de 18 anos de produção: A Caça nos
Sertões do Seridó (1961), A.B.C. da Percaria de Açudes no Seridó (1961), Algumas
Abelhas dos Sertões do Seridó (1964), Conservação de Alimentos nos Sertões do
Seridó (1965), e Açudes dos Sertões do Seridó (1978). Sua coerência como
coletânea se dá não apenas pela presença de “Sertões do Seridó” ou “Seridó” no
título de cada obra, mas por suas visíveis tentativas de explicação nesse espaço
repetidamente discutido. Outros livros do autor, como Encouramento e Arreios do
Vaqueiro no Seridó (1978), poderiam integrar esse grupo maior talvez sem
problemas, mas Lamartine concentra sua “imagem ampla” do sertão potiguar em
algumas atividades produtivas mais próximas do esquecimento, ou seja: das facetas
culturais menos ligadas à cultura algodoeira e o ciclo pecuário, que ainda
permanecem na imagem da tradição do Nordeste interiorano.
São, por assim dizer, atividades em vias de extinção pelo
desaparecimento das condições necessárias para sua manutenção, ocorrendo pela
modernização ou degradação do ambiente, o que é repetidamente ressaltado por
Lamartine. De fato, cada um dos textos dessa publicação de 1980 assume papel de
denúncia e memória do que o Seridó perdeu, principalmente em questões
ambientais e culturais: diminuição do convívio e esforço coletivo na açudagem pelo
maquinário atual, comidas típicas descaracterizadas devido à mudança de seus
métodos de produção/conservação, quase desaparecimento da fauna apícula
seridoense pela caça irregular e nenhum cuidado e/ou tentativa de criação em larga
escala das espécies nativas, memória dos quase esquecidos mutirões de pescaria
nos açudes da região e, por fim, a rarefação da fauna e o registro da cultura de caça
do sertão.
Igualmente importante, a organização dos ensaios se torna outro fator de
relevância: não há um encadeamento de progressão cronológica corriqueira, na
“catalogação” das impressões do autor, mas uma corrida para a “volta do tempo”. A
disposição dos ensaios segue o caminho inverso, do mais novo para o mais antigo,
apontando para a estrutura como outra camada significativa do projeto. Em cada
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explicação mais recente ouve-se o eco do que é apresentado depois, que é
resignificado pelo que foi dito anos mais tarde, porém várias páginas antes.
Esse processo de releitura opera na “nova obra” de Lamartine como uma
revisão de sua escrita, de sua memória. Uma reformulação para a posteridade de
um enunciador seridoense já em idade avançada. Começando pela imagem
paradisíaca do avistamento de um açude, somos conduzidos ao passado por cada
retomada que nos faz entender melhor a primeira ocorrência de cada assunto. Não
lemos simplesmente estudos encadeados, mas também traços de um mesmo
quadro que nos obriga a passar por suas observações semelhantes e que, assim
como em Rosa, definem várias vezes seus sertões.
Quanto às características gerais, encontramos a preocupação em
destacar o vocabulário regional, que geralmente aparece em itálico ou com a
indicação denota de rodapé; o recurso de citações de especialistas (em comentário
do autor ou destacada do texto), poetas populares (muitas vezes com nomes
destacados em caixa alta e com versos em itálico), e do discurso coletivo da boca do
povo (sentenciado entre aspas como argumentos de autoridade); e posições
firmadas no presente, mas saudosas do “sertão do nunca mais”.
Seu estilo é progressivamente desafiador, colocando várias passagens na
fronteira entre o ensaísmo histórico/sociológico e o artístico. Em poucas páginas,
saímos de listas de procedimentos ou descrições de uma ferramenta e, de um
exemplo catado pela memória do escritor ou de algum informante, nos deparamos
com desvios que, em certos casos, permitem interpretação literária.
Entretanto, a maleabilidade do gênero e a própria escrita lamartineana
não permitem a sua homogeneização como literária, e cada uma das obras é
estruturada por necessidades diferentes, permitindo examinar os diversos elementos
que compõem a estrutura de Sertões do Seridó.
O efeito da leitura pormenorizada dos seus ensaios é, portanto, alcançado
em duas dimensões: a particular, que de cada estudo amplia o repertório do autor; e
a global, que das unidades segue aos seus contrastes e afinidades, com intuito de
traçar a recepção da coletânea e considerá-la, finalmente, como uma nova obra.Por
coerência, nosso trabalho segue a ordem da publicação, lendo cada ensaio pela sua
integridade e deixando a segunda dimensão por último, quando a leitura de cada
prefácio, “eco” ou reescrita aparece contextualizada pelas análises individuais.
69
4.1 Primeiro ensaio
O ensaio Açudes dos sertões do Seridó (pp. 17 - 48), escrito originalmente
em 1978, trata tanto da história dos açudes no interior do Rio Grande do Norte, mais
especificamente na região que comporta os municípios do Seridó, quanto da
memória dos trabalhadores nas obras do “sertão antigo” ao período das obras
públicas.
É composto por 3 macrodivisões que separam o desenvolvimento do texto
entre as etapas de sua História. A primeira apresenta as hipóteses do surgimento do
processo de represamento ao redor do mundo, que culmina nas construções iniciais
(e ainda sem domínio) dos primeiros açudes potiguares; a segunda toma como
partida a intervenção governamental pela Inspetoria e o aparecimento dos
trabalhadores especializados em obras públicas, discutindo a sua arte aprendida
com os “doutores” de fora; e a terceira fecha o desenvolvimento com considerações
tanto estatísticas quanto de ordem sociológica, propondo uma leitura sobre o
impacto do represamento da água para o homem, sua criação e seu meio ambiente.
Mesmo com estruturação semelhante a um estudo acadêmico, o ensaio
dos açudes é talvez o estudo em que a “marca pessoal” de Lamartine é mais visível,
por trechos sensivelmente emocionados, ou pela presença frequente de traços de
sua memória. Tal característica já pode ser observada desde sua apresentação,
como no excerto do poeta José Lucas de Barros:
Vendo d'água a terra cheia
Eu sinto doce lembrança
Do meu tempo de criança,
Dos meus açudes de areia
(Apud FARIA, 1980, p. 21)
Esse tom de lembrança sentimental e pessoal tocará a superfície do
discurso do ensaísta em diversos trechos e, como observamos, movimenta boa
parte de seu desenvolvimento, equilibrando os elementos de estudo/pesquisa sobre
o tema com a linha mais reflexiva/divagativa por que se percebe a erudição de
Lamartine.
E isso ocorre principalmente em trechos que acusam linguagem mais
70
próxima da escrita criativa. O primeiro ponto da etapa inicial do ensaio (p. 23) é um
desses exemplos, que pode ser lido como uma descrição poética do açude:
1. O açude
Espia-se a água se derramando líquida e horizontal pela terra adentro a se
perder de vista. As represas esgueiram-se em margens contorcidas e
embastadas, onde touceiras de capim de planta ou o mandante de hastes
arroxeadas debruçam-se na lodosa lama. O verde das vazantes emoldura o
açude no cinzento dos chãos. Do silêncio dos descampados vem o
marulhar das marolas que morrem nos rasos. Curimatãs em cardumes
comem e vadeam nas águas beirinhas nas horas frias do quebrar da barra
ou ao morrer do dia. Nuvens de marrecas caem dos céus. Pato verdadeiro,
putrião e paturi grasnam em coral com o coaxar dos sapos que abraçados
se multiplicam em infindáveis desovas geométricas. Gritos do socó
martelam espaçadamente os silêncios. Garças em branco-noivo fazem
alvura na lama. É o arremedar, naqueles mundos, do começo do mundo...
O rio, estancado em açude, continua depois, em verde sinuoso de
capinzais, copas de mangueiras, leques de coqueiros ou canaviais
penteados pelo vento. Milhões de metros cúbicos de água-doce, fria e
cheirosa – é que a água nos desertos também cheira – esbarrados pela
muralha da parede, aninham peixes, criam vazantes, dão de beber à
criação, fazem crescer raízes, caules, folhas, flores e frutos e se esclerosam
em veias pela terra adentro, esverdeando em folhas os sedentos chãos
cinzentos daqueles sertões. (FARIA, 1980, p. 23)
O açude é, portanto, um início incomum para estudo que, em certa
medida, se propõe “preciso” e “sério” (em um sentido de oposição ao fictício,
segundo Rosenfeld), pois há vários elementos que o aproximam de uma leitura
literária, tais como:
• Sinestesia (“Espia-se a água se derramando líquida e horizontal pela terra
adentro a se perder de vista.”, “Do silêncio dos descampados vem o marulhar
das marolas que morrer nos rasos.”, “ Milhões de metros cúbicos de água-
doce, fria e cheirosa – é que a água nos desertos também cheira” atc.);
• Aliteração/coliteração (“vem o marulhar das marolas que morrem nos rasos”),
adjetivação insistente (“água se derramando líquida e horizontal”, “lodosa
lama”, “em verde sinuoso de capinzais” etc.);
• Suspense (a imagem que é construída só aparece como um açude no
71
segundo parágrafo);
• Construções semânticas que observam várias camadas da linguagem (“Gritos
do socó martelam espaçadamente os silêncios.”, imagem que, por exemplo,
aumenta a impressão da ausência de “espectadores” do cenário apresentado.
“fazem crescer raízes, caules, folhas, flores e frutos e se esclerosam em veias
pela terra adentro”, o que sugere o processo de crescimento da planta como
que visto desde o germinar pelo espectador do cenário).
A combinação desses e outros recursos gera um processo de criação de
sentidos que estaria, desse modo, mais próximo de um poema em prosa que
descreve um espaço do que de sua explicação objetiva. É uma introdução ao tema
que apela para o caráter sugestivo da linguagem e não se limita ao nível de
“constatação do real”, mas passa à criação.
Logo em seguida, no segundo ponto (p. 23), também podemos observar
traços desse processo, quando o ensaísta toma posição levando em conta a
imprecisão dos registros históricos. Em E como começou, espera-se soluções para
as perguntas que iniciam o texto, mas o que recebemos é uma possível origem que
é desenvolvida pela argumentação de Lamartine. Sua tese centrada na imagem do
castor e em exemplos de História Geral é organizada por suposições elaboradas em
trechos narrativos que beiram o terreno da ficcionalidade:
Talvez, quem sabe, ao espiar uma garganta de terra por onde corria um
riacho, engasgada por uma barreira deslizada, uma pedra rolada ou uma
árvore em balceiro caída.
Ou, o mais fatível, a lição aprendida de um bicho menor – o castor – que
apenas com as ferramentas da engenharia que Deus lhe deu, derruba
árvores, a poder de dentes, roendo os troncos, entope com eles as
ombreiras dos pequenos vales e argamassa com barro e pedra as suas
grosseiras paliçadas. […]
E foi, quem sabe, arremedando o trabalho desse pequeno bicho roedor que
o bicho-homem fez suas tapagens primeiras...
Um dia alguém atinou que depois da fartura das chuvas minguavam as
águas, os rebanhos fanavam as carnes e as plantações murchavam o verde
e em amarelo caiam mortas as folhas. (FARIA, 1980, p. 24)
Nesses trechos, há a criação pela sequência narrativa que se justifica não
72
apenas na coerência da argumentação, mas na sua “imagem do real”, sua
verossimilhança. As lacunas da História são preenchidas pela visão do escritor que,
frente a uma possibilidade, desenvolve-a ao ponto de parecer a explicação mais
adequada, como “provavelmente deve ter sido”.
Essa é, como veremos em vários exemplos, uma das características
comuns do ensaísmo lamartineano que, ao invés de retroceder timidamente e
explicar a insuficiência dos dados, segue apontando-a enquanto completa o sentido
com outros recursos. É também, devemos destacar, uma característica esperada do
gênero – o ensaio de um tema pelo desenvolvimento do pensamento do redator –,
mas, no caso de nosso escritor, permanece sendo também parte de seu estilo.
Lamartine fundamenta a coerência de suas ideias não apenas pela
seleção de argumentos, mas pelo cuidado com que utiliza os recursos de cada
trecho, assumindo, por exemplo, no segundo ponto a seguinte ordem: questões
sobre a “origem”, respostas desenvolvidas por narração/argumentação, exemplos
históricos, conclusão (resposta possível).
Assim, na ausência de papelada, surge a emenda do tempo pelo
testemunho pessoal, memória coletiva ou pela narração e avaliação crítica do
escritor, que levam o texto ao limite da História/estória. O terceiro ponto, por
exemplo, Adonde foi e quem aqui fez o açude primeiro (p. 25), progride pelo
equilíbrio desse expediente com comentários das menções de documentos do
estado:
Teria o Reverendo alevantado naquelas ribeiras a parede do açude primeiro
ou o argumento de mettam logo muitos gados, gentes e fazer assudes,
servia em parte para facilitar o deferimento das terras requeridas. Ou, quem
sabe, não encontrou local onde houver capacidade de assudes. Ademais, é
preciso não esquecer que ele próprio alega que as terras são servidas de
aguadas e possos nos ditos rios, alagoas e olhos dagoa...(FARIA, 1980, p.
26)
Por interpretação dos esparsos dados oficiais dessa tema que pretende
desenvolver, Lamartine escreve a História desses tempos quase sem memórias indo
de um requerimento a uma lei, da rala bibliografia do sertão ao testemunho dos
informantes de cada ribeira. Desse jeito, o ponto 3 mantém quase a mesma
73
organização que o precedente: passado revivido como em uma narração de origem,
desenvolvimento por citações de documentos e seus comentários, conclusão parcial
(descoberta do provável primeiro açude da região e avaliação de como a “novidade”
se espalhou), exemplos históricos que reforçam a segunda parte da conclusão.
Esse ensaio, como começamos a constatar, é concebido entre
recuperações da história seridoense e os “ajustes” promovidos para gerarem
continuidade e fluidez; mas também por testemunhos que resultam da aproximação
com o tempo do autor e das pessoas que povoam o seu discurso. Isso é
gradualmente avistado conforme vamos nos avizinhando do “hoje”, da
“modernidade” apresentada por Lamartine, pois saímos das conjecturas hesitantes e
cenários supostos dos primeiros dias do sertão e chegamos às memórias. Logo, os
pontos subsequentes exibem o aumento dessa presença, como constatamos na
menor incerteza do ponto 4 (Adonde os faziam construir, p. 27):
A diligência dos tempos velhos era, pouco mais ou menos, a usada pelos
sertanejos nos dias modernos. Apenas os engenhos de como fazer é que
melhoraram a trabalheira da construção.
[…]
É um penitente a subir e descer pernas de córrego e riachos. Devagar, aqui
e acolá esbarrando, botando reparo nos chãos, na qualidade da terra, na
altura das ombreiras e nas riscas de marcas deixadas pelas águas das
grandes cheias dos invernos de castigo como o de 1924 e 1940...
Atrepando-se nos caculos, fazendo contas de cabeça para a decisão do dá
ou não dá – faz ou não faz – se deixa a ficar perdido em cismas de contas,
economias e sonhos... (FARIA, 1980, pp. 27 - 28)
Mesmo a memória não se evidenciando na superfície textual, podemos
divisar uma assertividade que substitui os movimentos argumentativos. A escrita
assume posição mais dissertativa, e o escritor começa a incrementar as descrições
e explicações, mudando o foco da necessidade de “provar uma tese” para o
aprofundamento do assunto pelo detalhamento:
Aí torna a especular sobre o local e os gastos. E quando de uma vez se
decide a pegar no serviço – principia as providências. Primeiro tem de
marcar a altura da parere e, de acordo com ela, o nível do sangradouro.
Mas isso é ciência de mestres. Quando é uma obra pequena, um barreiro
74
com parede de poucas braças, um conhecido mais curioso que já trabalhou
ou ajudou mestres afamados se inicia no engenho da marcação... (FARIA,
1980, p. 28)
Desse ponto em diante, o texto muda sua função de reconstruir de forma
evidente o passado e principia a expansão de um de seus recortes temporais.
Lamartine pratica metodicamente o ato de explicar todas as “ferramentas” e
“procedimentos” do assunto tema, quando finalmente atinge o período do passado
mais recente que dá razão aos seus estudos.
O ponto 5 dessa primeira etapa do ensaio (E de como se fazia, p. 28) é o
que expõe justamente a organização de cada etapa do processo de açudagem até
então revelado. Nessas explicações o ensaísta deixa patente sua familiaridade com
o tema, aumentando as notas de rodapé sobre expressões típicas (sete delas no
ponto 5, superando a média de duas a três para cada divisão) transparecendo certa
emotividade (“Um menino-guia puxava a boiada no mesminho vai-e-vem [...]”, p.29),
e chegando mesmo a construir verdadeiras imagens poéticas:
O sol de estio tostava e curtia a pele viva sem o afago de uma nuvem. E
eram naquelas horas de mormaço, quando golpeavam a terra sem sombra, que
faziam de cada gesto um acordar de músculos vergonteados na pele lambuzada de
suor e barro, que se viravam em estatuária viva, se bolindo, bela e ignorada pelos
artistas... (FARIA, 1980, p. 30)
Isso sugere que, conforme é relatado o curso dos trabalhos, concedem-se
informações “secundárias” que enriquecem as imediações. O modo ensaístico
lamartineano engloba, como resultado, matérias de diferentes naturezas, e esse
espectro cumulativo torna, consequentemente, o texto rico em mais de uma
dimensão (informativa, expressiva, reflexiva etc.). O resultado seria uma expansão
do espaço proporcional ao grau de contato do escritor com o tempo que o texto
referencia.
Para ilustrar, basta imaginar a progressão da primeira etapa de Açudes
dos sertões do Seridó como uma linha que oscila no eixo vertical dependendo do
nível de subjetividade e de recursos expressivos que fujam da objetividade, e
teremos o seguinte gráfico:
75
O curso dessa linha apresentaria, a nosso ver, três momentos que
separam o texto. Há dois ápices no início e termino do trecho que estariam
relacionados com os episódios mais subjetivamente elaborados, a imagem poética
do açude no ponto 1 e o último parágrafo do ponto 5. Após o momento de
estabilidade no ápice da primeira descrição do espaço, há uma queda brusca em
que o escritor se concentra no assunto ao buscar desenvolvê-lo e, tanto pelo
afastamento temporal quanto pela escassez de referências, permanece longe e em
crescimento subjetivo lento. Já com a coincidência dos pontos 4 e 5 e uma época
mais próxima da experiência pessoal de Lamartine, observa-se o crescimento mais
acelerado de recursos não-objetivos na sua redação, alcançando a imagem
literariamente construída dos escavadores “que se viravam em estátua viva, se
bolindo, bela e ignorada pelos artistas...” (FARIA, 1980, p. 30).
Descobrir a relação entre tempo, experiência e modo de escrita nos
evidencia, portanto, pelo menos um princípio de seleção e organização do ensaio
lamartineano, mas que surge principalmente devido ao correr do tempo, o que não
se aplica às duas outras macrodivisões desse ensaio.
A segunda delas, E depois..., dá início ao “período moderno” da
açudagem nordestina, quando a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas -
IFICS (atual DNOCS) intervem afetando o processo de produção e seus
trabalhadores. Já é uma época com que o escritor se identifica, havendo várias
intromissões de sua memória pessoal e avaliações sobre as diferenças do que se
fazia antes, no “sertão antigo”:
76
Negócio de uns tempos para cá, coisa duns 50 anos, e por certo depois da
aprendizagem da Inspetoria, é que o alevantar paredes de açudes fez-se
ciência de maior saber. (FARIA, 1980, p. 32)
Quando da construção do açude Lagoa Nova, 1941-8 (Fz. Lagoa Nova,
Riachelo, RN), o ferreiro de lá, Mestre Irineu, “cunhou” para os serviços da
obra, centenas delas com alumínio de sucata de avião de guerra. Apenas
numa das faces tinha como efígie o ferro da fazenda; na outra, os valores
convencionados: 1, 10, 50, 100, e 1.000.
Semanalmente, aos sábados ou em dias incertos quando havia suspeita, as
fichas eram recolhidas e conferidas de modo a evitar clandestinas
inflações... (FARIA, 1980, p. 34)
O alicerce foi lição trazida pelos doutores da Inspetoria (DNOCS). No sertão
velho, nos açudes erguidos com arrastão de couro de boi, o uso era apenas
raspar o espelho da terra onde ia se acamar a parede. Daí maior revência e
a pouca duração da água de quase todos eles... (FARIA, 1980, p.36)
Localizamos com facilidades nesses intervalos ancoramentos temporais
mais particulares (“De uns tempos para cá” e “sertão velho”, que usam como
referência respectivamente o momento da escrita e a época do escritor), e
comentários parciais ou que deixam o sentido propositalmente aberto (“[...] de modo
a evitar clandestinas inflações...” e “Daí maior revência e a pouca duração da água
de quase todos eles...”, apontando por eufemismo a falsificação das fichas no
primeiro caso e um possível pesar pelo trabalho quase desperdiçado dos mais
velhos no segundo).
De fato, “frases inacabadas” ocupam boa parte do ensaio pelo uso
consistente de reticências, o que resulta em indicadores confiáveis das
manifestações pessoais de Lamartine:
• Respeito - “[...] melhor pedreiro e mestre maior de açudes...” (FARIA, 1980, p.
31);
• Assombro - “[...] nele se podia correr a vista ou o instrumento, de ponta a
ponta, sem esbarrar nem catombo ou barroca em todo aquele espichão de
terra arrumada a lombo de jumento...” (FARIA, 1980, p. 32);
• Luto - “[...] colocaram em suas mãos calosas a vela do derradeiro adeus...”
77
(FARIA, 1980, p. 32);
• Pesar - “Terra, água e esperança levadas para o mar...” (FARIA, 1980, p. 32);
• Saudosismo - “Bastava que quando umedecidas e espremidas na mão –
formassem bolo. Perdidas para qualquer serventia eram o barro de piçarra e
a areia – ensinava o mestre Zé Lourenço...” (FARIA, 1980, p. 37);
• Saudade - “A pá cambalhotava no ar e tornava às mãos do cassaco enquanto
o bolo de terra subia destacado e ia cair no alto da barranca. Fazia gosto
espiá-los nesse malabarismo...” (FARIA, 1980. p. 37);
• humor - “E nem carece dizer que a peixeira cortou as rimas, a poesia, e as
carnes...” (FARIA, 1980, p. 38).
No entanto, esse efeito pela pontuação não se restringe aos
apontamentos do escritor, e se estende em escala maior a um sentido de
“continuidade emudecida”, quando são citadas falas, mencionados acontecimentos
vivenciados ou mesmo rotinas:
As tropas de jumento disciplinadas no vaivém do carguejar seguiam de
cargas coculadas em passo tardo para o despejo e voltavam escoteiras e
até em chouto no alívio do peso para os lugares de cavagem. Os
tangedores – meninos de 10 para 14 anos – tangiam com um chiqueirador,
falando a cada animal:
– Êêê Rouxinho! Fasta pra lá Paturi! 'sbarra-aí Canário!... (FARIA, 1980, p.
41)
[…] Entrada a seca e faz de conta que o cidadão, ele mesmo, se
determinou a alevantar o seu açude ou açudeco, cuidou em providenciar o
cercado de solta para acomodar os jumentos; tratou de apalavrar o
apontamento dos ferros com o ferreiro mais perto e espalhou a notícia no
mundo. E de boca-em-boca na rede dos alpendres, nas bodegas das beiras
de estrada, nos domingos de missa e nas feiras sertanejas, espalhou-se o
acontecido... (FARIA, 1980, p. 33)
[…] Homens de ciência e saber, dessa e da outra banda do mar, ajudados
pelo muque do sertanejo que de tanto almocrevar, guiar, carregar, fazer
mandos e trabalhar, botando reparo como se fazia, e aqui ou acolá se
atrevendo a uma pergunta, arremedava ou aprendia alguma coisa... (FARIA,
1980, p. 31)
78
Por consequência, as reticências ocupam uma posição de destaque na
estrutura aqui analisada. Além de sinalizar continuidades interrompidas, funcionam
como um dos elementos de coerência da redação ensaística, pois orientam boa
parte de nossa leitura para uma imagem de tempo recortado e costurado pelo
escritor. Elas Ampliam o efeito das interrupções e retomadas como um tecido
orgânico que não privilegia o ciclo cronológico, mas sim o kairótico (da consciência)
por intermédio de Lamartine. Dessa forma a seleção de informações não apaga os
discursos periféricos interrompidos, mas passeia por eles indicando que apenas
contempla parte de cada um. O que justifica, ainda em outra perspectiva, a visão de
construção ensaística pelas memórias.
Avistamos, assim, uma diferente estruturação em cruzamentos constantes
da História e rememoração e, exceto por alguns fragmentos mais bem elaborados
que tomam vulto, percebemos a oscilação frequente da escrita como em ondas, não
linhas estáticas, ascendentes ou descendentes. Como resultado, o grau de
subjetividade aparece frequentemente alto em quase todo o trecho na mudança de
objetividade e não-objetividade:
O trabalho mais pesado e penoso era o de alavanca. Carecia o homem ter
tutato para agüentar o erguer, o ferir a terra e aluir barrancas ao peso de
uma barramina. Quando a escavação tinha maior fundura, tinha vez que os
paleadores faziam foguetão, sacudindo a terra a grande altura. A pá
cambalhotava no ar e tornava às mãos do cassaco enquanto o bolo de terra
subia destacado e ia cair no alto da barranca. Fazia gosto espiá-los nesse
malabarismo... (FARIA, 1980, p. 37)
Compreendemos que Lamartine dá continuidade a esses dois modos de
escrita tornando um parte da progressão do outro, sendo que a única “quebra” nesse
equilíbrio relativo aparece em dois episódios “secundários” que possuem estrutura
desenvolvida. Podemos percebê-los como uma minibiografia e uma história cômica,
ambas em forma de conto, que ultrapassam o nível do comentário e se mostram
com introdução, desenvolvimento e conclusão. Cada um possui elementos
sugestivos próprios que indicam camadas significativas da linguagem além do uso
comum, e seus referentes são trabalhados ao ponto de se tornarem personagens da
79
tradição popular norte-rio-grandense.
O primeiro caso ocorre logo após a introdução (ponto 1), quando
Lamartine recorda a história de José Lourenço para exemplificar o que seria um
“mestre de parede”:
José Lourenço da Silva, raça dos Batista do Seridó, tora de homem, de fala
gritante e gestos estabanados, trabalhador sem canseiras, cortou o imbigo
nas ribeiras do Acari nos idos de 1901 e por lá mesmo recebeu a água
sagrada e salgada do batismo.
Menino ainda (1909), ganhou seus primeiros vinténs no vaivém de sol a sol
do tardo caminhar e amontoar do arrastão de couro de boi para o
alevantamento da parede-lombo-de-peba do Açude Quiporó (Fazendo
Quiporó, propriedade de Joaquim Caetano, Acari, RN).
Rapaz, já taludo, caçava ganho nos meses de seca pelas construções do
Governo. E foi trabalhando, servindo, espiando e apreendendo, como se
fazia e porque se fazia cada coisa e cada serviço, que de servente se fez
mestre. E mestre dos bons. Bom carapina, melhor pedreiro e mestre maior
de açudes...
Dezenas e mais dezenas de paredes se alevantaram com sua engenharia
rude e tosca, cujos instrumentos se resumiam em um novelo de barbante e,
como dizia ele, um nível de pedreiro. Era homem de muitas poucas letras e
muita sabedoria e habilidade no trabalho. Quando terminou de erguer e
cortar os 640 metros de extensão que formam a parede do açude Lagoa
Nova (Fazenda Lagoa Nova, Riachuelo, RN), nele se podia correr a vista ou
o instrumento, de ponta a ponta, sem esbarrar num catombo ou barroca em
todo aquele espichão de terra arrumada a lombo de jumento...
José Lourenço da Silva, uma das derradeiras sementes dessa nação de
gente que está se finando, já setentão (1971) só se arredou do trabalho
quando o sangue aguado de leucemia roubou suas últimas sustâncias. Em
suas terras, sob as suas telhas, nas quebradas da Serra Branca (Riachuelo,
RN), colocaram em suas mãos calosas a vela do derradeiro adeus...
(FARIA, 1980, pp. 31 – 32)
Lendo atentamente, é possível identificar nesse fragmento algumas
elaborações ficcionais, ou pelo menos recursos que enfatizam a leitura sugestiva: o
primeiro parágrafo faz uma descrição grandiosa desse personagem, sendo uma
pessoa incansável e bastante enérgica, o que é ressaltado em um nível quase mítico
pelo simbolismo do batismo com água salgada, detalhe nada vulgar se associado ao
80
suor que derramará durante sua vida de trabalho; o segundo e terceiro parágrafos
mostram o crescimento do menino ao homem e, pelo próprio desenvolvimento
textual, é possível perceber o processo de aprendizagem por que passou como se o
assistíssemos; o quarto parágrafo apresenta os feitos do “mestre”, que são
arranjados em contrastes propositais entre sua pouca instrução e instrumentos
simples, e sua perícia impecável e grande extensão de seus trabalhos, assumindo
uma posição ainda mais “fantástica”; o quinto parágrafo, fechando o ciclo de vida do
personagem inclusive pela circularidade do retorno ao seu nome, não apenas passa
os resultados de sua vida, mas o faz de forma extremamente emotiva com
construções semânticas tais como “quando o sangue aguado de leucemia roubou
suas últimas sustâncias”, a enfatização da propriedade conquistada pelo esforço
(“suas terras”, “suas telhas”), e por “colocaram em suas mãos calosas a vela do
derradeiro adeus...”, que encerra a história com a sua imagem de maior poder.
Todos esses pontos e a sua disposição evidenciam uma preocupação
com a linguagem e uma estrutura tão cuidadosas, que podemos analisar a
passagem como um conto dentro do projeto maior ensaístico. Percebemos que o
trecho possui autonomia, sendo estruturado com uma única finalidade: exemplificar
o que seria um “mestre de parede” com a história de um dos mais importantes
mestres da época. O tempo se torna amplo no breve desenvolvimento do trecho,
mas, ainda assim, suas demais características marcantes do gênero são
encontradas:
[…] contém um só drama, um só conflito, uma só unidade dramática, uma
só história, uma só ação, enfim, uma única célula dramática. Todas as
demais características decorrem dessa unidade originária: rejeitando as
digressões e as extrapolações, o conto flui para um único objetivo, um único
efeito. O passado anterior ao episódio que nele se desenrola, bem como os
sucessos posteriores, não interessam, porque irrelevantes. Quando,
porventura, importa mencionar os acontecimentos precedentes, o contista
sintetiza-os em escassas linhas. Tudo sucede como se, na existência das
personagens, apenas aquele incidente é que alcançou densidade para fugir
ao anonimato. E, fechando o parênteses em que se constitui a narrativa, a
vida das personagens regressa à opacidade que abandonara por um
momento fugaz. (MOISÉS, 2013, p. 89)
81
É, portanto, além dos fatores de elaboração da linguagem, que se
configura como conto encaixado na linha ensaística pelo sentido de “parênteses
narrativo”. É a história de toda uma vida, mas em perspectiva com o plano maior da
História seridoense, apenas um desvio sobre um homem célebre.
Seguindo a mesma lógica de episódio que excede o anonimato, o
segundo caso está localizado em um trecho menos longo da página 38 (ponto 7),
em que Lamartine recorda um “sucedido” entre dois cassacos:
[…] De 1939 para 40, pegamos na construção de um açude (Fz. Lagoa
Nova, Riachuelo, RN). Era um ano de seca e tinha uns trabalhadores de
fora, gente de rede-nas-costas. No meio deles um banqueteiro, quarentão
casado com uma caboclinha nova. E vai daí, a mulherzinha engraçou-se de
outro, anoiteceu e não amanheceu... A notícia ganhou a boca dos
trabalhadores. E o “viúvo” trabalhava calado e sisudo na humilhação de seu
abandono, enquanto o vizinho caçoava, cantando:
Óia seu Zé
qui casá dá prejuízo,
o homem perde o juízo
cum ciúme da muié.
Óia seu Zé,
Seu Zé, seu Zé,
Cum'anda tão cacundo
Cu'um chifre maió do mundo
quem butô foi a muié.
Muié gaieira
qui bota gáio no home,
merece morrê de fome
pra sabê gáio o que é...
E nem carece dizer que a peixeira cortou as rimas, a poesia, e as carnes...
(FARIA, 1980, p. 38)
Assim como no fragmento anterior, há recursos que atravessam as
primeiras camadas linguísticas, tornando-as significativas: o contraste entre
82
“quarentão” e “caboclinha” admite mais de uma leitura, enfatizando tanto a diferença
de idade quanto funcionando como um indicador da futura brutalidade do marido; as
escolhas lexicais “não acordou...” e “'viúvo'” deixam claro o ocorrido e ainda
sustentam uma atmosfera de interdito que só será quebrada pelos versos; esses
transformam a tensão do banqueteiro “calado e sisudo” em humor, o que toma o
próprio discurso do narrador do acontecido com a imagem da peixeira reassumindo
o silêncio e fazendo uma nova vítima.
Dessa forma, Lamartine consegue expor o teor humano conflituoso dos
arranchamentos provisórios da construção dos açudes e do que versejavam
rotineiramente os trabalhadores; e o faz dando vida a exemplo nuclear, capaz de
tomar vulto sem ser fuga desmedida no texto principal. É ainda mais condensado
que o exemplo anterior, e se desenvolve pelas falas dos personagens, o que é
recorrente no gênero: “No tocante à linguagem, o conto prefere a concisão à
prolixidade, a concentração de efeitos à dispersão. E, como a ênfase é colocada
antes na ação que nas personagens, antes no conflito que nos participantes, o
diálogo predomina na trama do conto.” (MOISÉS, 2013, p. 90).
São esses os trechos mais elaborados que conseguem se destacar do
“revezamento” de objetividade/não-objetividade do escritor, e que, mesmo assim,
integram o texto como desvios coerentes que exemplificam as ideias defendidas.
Suas presenças resultam em um ápice de subjetividade mais relevante que as
outras interferências, mas o trecho continua em uma estrutura fluida:
Portanto, até o ponto final dessa etapa do ensaio, veremos o convívio
83
entre linguagem mais e menos subjetiva/sugestiva:
Terminado o furo ou os furos precisos para cada fogo – aí principiavam a
socar a pólvora com um soquete de madeira e depois “espoletar” com pavio
ou estopim e comprimir com barro-de-liga. Era a hora mais séria e perigosa
pois bastava um instante de descuido para dali se fazer uma arte... Muitas
das pedras que levaram fogo naqueles saartões da terra, guardam em suas
entranhas e nos seus silêncios de eternidade os epitáfios não escritos e
enodoados com o suor e sangue de um cavouqueiro anônimo que ali se
finou. (FARIA, 1980, p. 39)
Às vezes, na volta do despejo, num pinote ganhavam a garupa do jumento
do coice e vinham sentados de banda, uma das mãos agarradas ao
cabeçote da cangalha, chiqueirador ao ombro e desenfadando daquela
canseira.
Espiados assim do alto mais pareciam um formigueiro assanhado naquele
afã de cavar, carregar e carguejar terra em suas trilhas que iam esbarrar no
estirão da parede... (FARIA, 1980, p. 41)
Ao observar esses trechos, temos, inclusive, uma ideia resumida dos dois
tipos de “descanso” da linha argumentativa mais objetiva em Lamartine: há os
trechos que já iniciam bem elaborados devido à recordação (como é o caso do
começo do ensaio), e a maioria das ocorrências em que a escrita subjetiva advém
de algo anteriormente dito (o que identificamos nos exemplos acima).
Essa estrutura, não por acaso, é semelhante ao funcionamento das
memórias, já que é necessário um “gatilho” para a maior parte ser ativada. Bosi
(1979), por exemplo, nos leva para uma visão da memória do sujeito em idade
avançada em que suas relações cognitivas com o espaço mudam e acabam por
apagar possibilidades de rememoração por culpa de dados físicos. Os gatilhos da
memória podem ser as próprias pedras do calçamento que, caso retiradas para
pavimentação com concreto, dificultam as recuperações do passado daqueles que
passaram por elas durante vários anos. Com a transformação inevitável do
ambiente, parte dessa história dos antigos habitantes também é levada pelo tempo
e, infelizmente, seu “espaço vivido”, recurso físico de memórias profundas e há
muito tempo submersas, acabaria aos poucos limitado. É nesse ponto que as
interferências da memória de Lamartine são parecidas.
84
Isso seria perceptível particularmente pela prática da escrita de pessoas
maduras se direcionar a uma busca do passado, como uma revitalização e um “fazer
viver pela palavra” o que fisicamente está se deteriorando. Tal perspectiva é
basicamente uma síntese das principais forças que motivam Lamartine e também
apresenta uma visão similar à “escrita como ato vital” de Rosa.
O ensaísta busca repetidamente suas lembranças devido ao choque com
o espaço já transformado pela tecnologia, e o romancista constrói seu sertão pelas
histórias de um jagunço aposentado que já não pode mais viver pelas veredas que
passou, e as recorda. Mas, não sendo uma escrita totalmente autobiográfica, a
diferença de Lamartine é encontrada nos gatilhos também presentes em seu
discurso não-autobiográfico. Suas interferências subjetivas são desvios de uma linha
maior, que comporta o estudo empreendido (no caso, o dos açudes), por isso
desviando dele quando o assunto toca o autor.
Assim, o tempo suspenso pelas memórias de Lamartine fecha o seu ciclo
no décimo ponto, um caminho entre muito por se dizer do E depois... (p. 31) ao Do
tempo que se foi... (p. 42). Deixa pela primeira vez claro o desconforto de ter de
“abandonar” essa época, um “sertão do nunca mais” graças ao progresso da
modernidade. São com palavras amargas e em tom de despedida que encerra a
discussão sobre a açudagem:
Das eras de 30 para cá principiaram a trocar as caçambas das tropas de
jumento pelo lastro mais taludo dos caminhões. E catingando a caatinga de
gasolina e diesel, rodam agora as rodas dos tratores de pneu, dos tratores
de lâminas, dos scrapers, dos rolos compressores pé-de-carneiro e toda a
intrincada engrenagem das máquinas com a zoeira dos motores.
Mas isso está nos relatórios oficias, nos livros técnicos e ainda é imagem
dos olhos de todo o mundo que sobrou... (FARIA, 1980, p. 42)
Sentimos pela primeira vez em sua linguagem ensaística um modo mais
melancólico, já no final do seu trabalho. E por essa situação o autor nos indica uma
tendência que o acompanhará ao longo da obra: o povoamento do sertão pelo ato
de rememorar, e sua destruição gradativa pela invasão tecnológica. Vai-se o Seridó
dos trabalhos e dos esforços que davam razão às tradições de sua época, o Seridó
poeticamente silencioso da primeira visão do açude, e fica a necessidade de mantê-
85
lo pelo diálogo entre o escritor e a posteridade.
Com esse breve desabafo, Lamartine passa à última divisão do ensaio: E
da contagem de cada um (p. 43), em que deixa suas conclusões, questionamentos
não respondidos e algumas “máximas” sobre o assunto.
Diferente das etapas precedentes, essas poucas páginas apresentam um
escritor mais reflexivo e contido na busca por soluções para o futuro do Seridó,
comentando vários autores que sustentam seu posicionamento. A argumentação é
pautada em dados estatísticos que nos levam a crer, por lógica, na importância das
reservas de água para a economia local, incluindo a piscicultura, mas seu
fechamento retoma em parte a subjetividade até agora observada.
Para “encurtar conversa e papel” (p. 45), Lamartine condensa suas ideias
em quatro máximas sobre o assunto:
1o – Nos açudes maiores, capazes de guardar água de dois invernos para
mais, a média de pescado/hectare/ano anda pela casa dos 150 kg. “Cerca
de 100.000 toneladas de peixe são apanhadas nos açudes dos municípios,
inclusive no açude público, Cruzeta.”
2o – O valor de água para serventia dos bichos e do bicho-homem. “Quanto
mais longe vai beber o boi mais magro volta aos pastos” – é a sabedoria de
qualquer vaqueiro sertanejo.
3o – E também dos recursos das vazantes: batata-doce, feijão, jerimum,
melancia, forrageiras etc., cultivadas no montante, além das culturas de
jusante: cana-de-açúcar, coqueiros, mangueiras, e toda uma mescla de
fruticultura tropical.
4o – Que a contagem de cada um, ambó, barreiro, açudeco ou açude, vai
ser dificultosa de ser calculada em metros cúbicos. É que o sertanejo a mais
das vezes ignora essa cubagem. Sabe sim, de cor e salteado, que esse ou
aquele açude sangrando, leva tantos meses para secar... (FARIA, 1980, p.
45)
É interessante reparar que a primeira e terceira são construídas por
argumentos de quantidade e variedade respectivamente, enquanto a segunda e
quarta pela autoridade da figura do sertanejo. Mesmo se valendo de cálculos e
estudos de “doutores”, o escritor não se afasta em nenhum momento da sabedoria
popular, nivelando as duas influências e as estruturando logicamente. No entanto,
transparece seu saudosismo além da reflexão, demonstrando novamente que o
86
autor ocupa cada espaço do texto com o que é da terra. Seu ensaio, orientado por
um assunto objetivo, desenvolvido por pesquisas em comunhão com memórias,
ainda nos reserva uma imersão cultural no Seridó do nível significativo lexical ao
ideológico.
87
4.2 Segundo ensaio
Conservação dos alimentos nos sertões do Seridó (pp. 49 - 100), ensaio
escrito treze anos antes da publicação sobre os açudes, segue a coletânea como o
segundo texto apresentado. Possui a segunda maior introdução sobre a região, não
direcionando-a totalmente para o tema do estudo, e em muitos trechos destaca a
participação de “informantes” para a sua realização. Diferente do que percebemos
no primeiro ensaio, este demonstra um menor grau de biografismo de Lamartine,
que soluciona o distanciamento por outros elementos.
Sua composição é dividida em 4 etapas, sendo a última apenas um índice
de nomes científicos da flora local citada, tomando praticamente a mesma estrutura
que já observamos no primeiro ensaio: introdução e história do assunto em relação
com o sertão, exposição do assunto com intervalos não-objetivos, conclusão com
questionamentos sobre o futuro.
Assim como Rosa, segundo Candido, foi influenciado por Euclides da
Cunha em seu romance, nesse texto encontramos um Lamartine mais esquemático
na divisão da terra. Antes de entrar na discussão sobre os alimentos, ilustra o Seridó
pelas mesmas divisões encontradas em Os Sertões, pelo nome de Em que se fala
dos sertões do Seridó (p. 51). Seus três primeiros pontos da etapa inicial são
verdadeiras releituras da sequência a terra, o homem e a luta.
Em Adonde é encravado e de como está retalhado (p. 51), o espaço é
revelado pelo caminho que começa de Natal e o sertão é explorado aos poucos pela
descrição da viagem:
Quem sai da cidade de Natal pelo Bairro das Quintas e dá as costas para o
mar tomando o rumo do sertão – segue a velha estrada-tronco na qual os
técnicos, de tempos em tempos, fazem a plástica das curvas, das rampas e
do piso, batizando-a cada vez com siglas ou nomes estrangeiros àqueles
mundos.
Rodando no asfalto que se espicha léguas adentro, cobrindo os primitivos
caminhos de terra solta ou piçarrados, vai-se comendo chão. Para trás fica
o cheiro das vacarias e, depois, o da maresia do Potengi. De banda vão
ficando as dunas, o rio, os tabuleiros de mangabeiras, para mais adiante se
cortar a cidade de Macaíba. Daí, em direção de As Marias, o chão vai
ficando mais barrento e mais trancado com a vegetação do agreste – é o
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marmeleiro, a sarjadeira, o velame e a macambira fazendo a saia das raras
essências de maior porte que escaparam, só Deus sabe por que, ao gume
do machado e à coivara. […] (FARIA, 1980, p. 51)
[…] Mais para diante, entre as nascentes do Riacho dos Angicos que corre
para Este e as do Mulungu, que descamba para Oeste – a estrada
enladeira-se, de cabeça-abaixo, pisando os chãos do Seridó. A serra
aceirou o que ficou para trás. O vento amorna, o chão se enladeira de
quebrada em quebrada, com a nata da terra lambida pela erosão,
estampando lajedos e serrotes ondo domina o espinho; e mais rala é a
caatinga, já que as raízes carecem se espalhar na superfície para sorver a
minguada umidade que, na pegada das chuvas, alivia e estoura em verde a
paisagem cinzenta. (FARIA, 1980, p. 52)
Essa introdução, além de demonstrar domínio da geografia local, estimula
sinestesicamente o leitor, provocando uma experiência detalhada das mudanças do
trajeto. Semelhante ao modo como nos apresenta o açude, o escritor nos faz passar
pela estrada devido ao foco na consciência, e muito provavelmente na memória.
Não é a escrita de alguém diante de mapas, mas de quem sofreu a travessia do mar
ao sertão, conhecedor da terra. Vem em formato de experiência vivida, ganhando
corpo na frente dos interlocutores, como também encontramos em Rosa nas
travessias de Riobaldo:
As nove. Com mais dez, até à Lagoa do Amoroso. E sete, para chegar
numa cachoeira no Gorutuba. E dez, arranchando entre Quem-Quem e
Solidão; e muitas idas marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor
empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.
Sertão é quando menos se espera; digo. Mas saímos, saímos. Subimos. Ao
quando um belo dia, a gente parava em macias terras, agradáveis. As
muitas águas. Os verdes já estavam se gastando. (ROSA, 2011, p. 363)
Logo após esse caminho, Lamartine tece breves explicações sobre as
divisões oficiais da região:
No Rio Grande do Norte, o Seridó mede 9.386 km2. As sesmarias primitivas
foram retalhadas, de tempos em tempos, pelo crescimento das populações
e decorrentes necessidades político-administrativas. Hoje o Seridó soma
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dezesseis municípios: Acarí, Caicó, Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá,
Cruzeta, Currais Novos, Florânia, Jardim de Piranhas, Jardim do Seridó,
Jucurutu, Ouro Branco, Parelhas, São Fernando, São João do Sabugi, São
Vicente e Serra Negra do Norte.
Confrontados com outras terras, de modo a oferecer melhor visualização da
área, os 9.386 km2 do Seridó medem oito vezes mais que o atual Estado da
Guanabara (1.171 km2). (FARIA, 1980, p. 52)
Esse tipo de resumo ocorre não apenas nesse ensaio, mas, como
veremos nas análises seguintes, ocupa o lugar de um discurso revisto várias vezes
ao longo da obra do escritor. Porém, desde já observamos que em sua primeira
aparição em Sertões do Seridó, e cronologicamente em sua última reescrita, assume
ordem secundária, completando informações não esmiuçadas pela noção de
deslocamento e chegada ao sertão.
O mesmo tipo de descrição ocorre, inclusive, no segundo ponto ao
realizar o retrato do homem seridoense:
Cento e quarenta e seis mil, duzentos e noventa e três viventes moram
naqueles 9.386km2 de chão, formando uma densidade demográfica de 16
hab/km2. Em vista dos 1.157.268 habitantes contados pelo censo de 1960
para o Estado, como um todo, representa a população do Seridó 12,6% da
do Rio Grande do Norte.
A maior parte dos seridoenses vive na zona rural, i. é., 66,13% – enquanto
33,86% se acomodam nas ruas das vilas e cidades que, devagar, também
vão crescendo e se enfeitando por aquelas paragens. (FARIA, 1980, p. 52)
O povo que lá vive (p. 52) relata a localização e deslocamento dos
residentes da região de forma clara e pontual, avançando em cálculos estatísticos e
explicações de êxodo, mas deixando de lado outros detalhamentos. Somente com E
de como chegaram e se fizeram (p. 53) a redação ensaística adquire maior
complexidade, voltando ao modo narrativo que completa os intervalos esquecidos da
História pela criação:
E os brancos lá chegaram, rompendo pelo caminho das águas – subindo o
rio ou a areia deles – de vez que por todos aqueles mundos os cursos
d'água apartam nos meses de seca. A marcha, é de se imaginar, era
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empalhada, a cada légua: carnes rasgadas pela flecha do caboclo-brabo ou
o espinho da sarjadeira, da jurema, da macambira, da quixabeira, do
juazeiro, do cardeiro ou do xiquexique – já que as plantas ali também se
defendem; esbarrada pela furada mais venenosa da jararaca e da cascavel
ou pela secura da água – escassa, ausente ou salobra a ponto de
“arripunar” (repugnar). (FARIA, 1980, p. 53)
Com essa estrutura, trata a História do sertão pelos meios produtivos que
sustentaram o sertanejo até depois da Segunda Gerra, atentando para a sua luta. E
não são apenas essas as referências encontradas de Euclides, aparecendo uma
citação de Os Sertões para a descrição de uma foto de xiquexiques do Seridó:
“...destacando-se, nítidos, à meia luz dos crepúsculos, dão a ilusão emocionante de
círios enormes, fincados a esmo no solo, espalhados pelas chapadas, e acesos...”
(CUNHA Apud FARIA, 1980. p. 55).
À vista disso, o ponto quatro continua com o estilo descritivo euclidiano e
exibe um mapa mais preciso dos acidentes geográficos, da hidrografia e flora do
Seridó:
O chão é enladeirado em serras pedregosas, cuja altitude média deve ficar,
pouco mais ou menos, em 250m. A nata da terra albida pela erosão das
águas e dos ventos (de 2 a 20km/hora) estanca, mais das vezes, na chá de
algumas caatingas ou nas várzeas dos rios; aí a terra é gorda, sílico-
argilosa, profunda e tomada pelas raízes do algodão mocó.
[...]
As chuvas são esparsas e mal distribuídas; 4 meses de molhado para 8
secos – é o que Deus dá nos anos normais de inverno. Mas, tão cedo caem
as primeiras chuvas, a vegetação estoura em verde nos arbustos – a rama –
e o chão se atapeta de ervas e capins – a babugem. É o tempo de fartura
em que o sertanejo tira a barriga da miséria, melhora de carnes, cria
sustância e, na força do feijão, vai se fazendo crescer em natalidade...
(FARIA, 1980, p. 56)
Todo esse percurso, entretanto, serve como ensejo para a seguinte nota,
que introduz o texto ao seu tema principal: “Hoje o trabalho daquela gente, traduzido
em números estatísticos, mostra uma economia assentada no tripé: minérios,
algodão mocó e gado.” (FARIA, 1980, p. 56).
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Por tais explicações gerais, chega-se aos fatores econômicos da região e
sua cultura, pois o ensaio passa aos meios de nutrição do sertanejo, dividindo-os em
quatro categorias. Essas são desenvolvidas tendo como pano de fundo as razões
históricas e culturais de seu uso, relacionadas ao processo produtivo que geram e
organizadas por grau de importância.
Visto isso, a segunda etapa, que compõe a maior parte do ensaio, é
composta pelos pontos Da água (p. 57), Do gado (p. 59), Das sementes (p. 74) e De
outras comidas (p. 82), em que o prévio esboço sobre o Seridó é enriquecido pelo
aprofundamento do “cardápio” regional em um processo, inclusive, bastante utilizado
na escrita lamartineana: a concentração dos temas em volta do trabalho.
A partir da entrada dos “marinheiros” na terra, por exemplo, vai-se
desenvolvendo a importância da água para a sobrevivência não apenas como
recurso fundamental para a manutenção das populações seridoenses, mas
enquanto elemento principal de uma série de trabalhos que envolvem o seu
abastecimento, manuseio e purificação:
A água é que garante a fixação e do chão é que tinham que tirá-la para o
gasto dos homens e dos bichos, durante os oito meses de seca. E nem
sempre era fina e leve; algumas pesadas, salobras e turvas, parecendo
mais, na cor, caldo-de-cana. Ocasionalmente, quando algum serrote ou
algum lajedo apresentava maior cavidade – tanque – capaz de juntar as
águas da chuva ou que para ele corriam – era e ainda é, limpo, varrido e
coberto, de modo a serem dali carregadas ou servirem para, em derredor,
lavar roupa. (FARIA, 1980, p. 57)
Os cuidados de higiene eram rudimentares, como rude era e ainda é a vida
por aqueles mundos. A cacimba de beber – assim chamada a de uso das
pessoas – é, diariamente, esgotada, seca da água velha, e contida em uma
armadura de tábuas ou um pote perfurado com tampa também de madeira.
Assim fazem, para os bichos do mato e as criações nela não chafurdarem.
Em casa, a água é coada na boca do pote em um pano de algodãozinho e
nela ainda alguns colocam pedações de enxofre. Dizem que faz bem à
saúde e impede a criação de martelos! Os potes e jarras são tampados com
um testo de tábua em alça; a caneca, neles mergulhada para tirar água,
costuma ser de flandres, provida de comprido cabo e tendo os bordos
dentados para evitar que alguém, menos avisado, nela venha a beber.
Algumas canecas mais engenhosas tinham sistema de pipeta. (FARIA,
92
1980, pp. 58 - 59)
As exposições nesse ensaio demonstram, inclusive, que as passagens
mais objetivas do escritor são amparadas por costumes e/ou objetos, predominando
o dado físico de sua existência vinculado a algum tipo de trabalho. Podemos
identificar que nos fragmentos citados a escassez da água é desenvolvida na
descrição das fontes salobras e do cuidado com os reservatórios mais potáveis, e
que a higiene “rudimentar” é explicada pelos vários processos e aparatos do uso
comum da água.
Essa observação vem a tempo de ampliar nossa análise do ensaio
lamartineano, pois ao lado da ligação entre tempo, história e memória, que pode ser
observada pela oscilação da objetividade do autor, há uma linha orientadora da
escrita que atravessa, portanto, o universo material.
Inclusive, ela seria perceptível em praticamente quaisquer excertos,
independentemente do grau de seriedade ou da contaminação subjetiva. O
afastamento temporal obriga o escritor a completar lacunas da História com
conjecturas, enquanto a aproximação amplia o repertório de registros e memórias
coerentes com o tema, mas em ambos os casos há “ferramentas” e “técnicas” como
meio de caracterização na escrita de Lamartine:
Lá uma vez perdida, quando em uma caçada mais feliz, conseguiam abater
carne capaz de fartá-los, ou o tinguijamento de algum poço deixava
coalhada de peixe toda a água – surgia o problema do sobejo da comida a
preservar para o amanhã. Recorriam, provavelmente, ao moquém, i.é,
numa grelha de varas à moda jirau, erguida sobre um braseiro, faziam o
peixe ou carne assar ou secar. […] (FARIA, 1980, p. 61)
Logo, compreendemos que objetos e costumes não se comportam como
indicadores do grau de subjetividade e objetividade, mas assumem papel estratégico
na construção de sentidos, dando ritmo e assunto para o projeto maior de
“preenchimento” da cultura e História sertaneja seridoense por suas atividades
produtivas. Desse modo, basta retomar algum trecho de desvio da objetividade pelo
adensamento da voz subjetiva do escritor, e que seja rico em informatividade, para
observarmos isso:
93
O trabalho mais pesado e penoso era o de alavanca. Carecia o homem ter
tutato para agüentar o erguer, o ferir a terra e aluir barrancas ao peso de
uma barramina. Quando a escavação tinha maior fundura, tinha vez que os
paleadores faziam foguetão, sacudindo a terra a grande altura. A pá
cambalhotava no ar e tornava às mãos do cassaco enquanto o bolo de terra
subia destacado e ia cair no alto da barranca. Fazia gosto espiá-los nesse
malabarismo... (FARIA, 1980, p. 37)
Encontramos nesses dois excertos níveis compatíveis de definição e
diferentes em intenção, o que comprova a sua não-correspondência. E, com esse
esclarecimento de mais um dos atributos chave dos ensaios lamartineanos,
conseguimos alcançar com certa tranquilidade as diferenças globais entre os dois
textos até agora discutidos sem incorrermos em explicações baseados
simplesmente em influências de outros escritores sertanistas.
Açudes dos sertões do Seridó (1978), por tratar de processos da
construção dos açudes, de trabalhos coletivos que envolviam necessariamente o
convívio social, aparenta possuir menor grau descritivo com a mistura de descrição e
narração, enquanto Conservações de alimentos nos Sertões do Seridó (1965), em
alguns trechos, observa recursos em equilíbrio com seus modos de preservação e
preparo, a nosso ver, por se tratarem de situações menos socializadas e de trabalho
artesanal praticamente caseiro.
Essa diferença é bem relevante entre as subdivisões do ponto 2, com a
origem e mudanças de conservação dos recursos da caça/criação, contemplando
envolvimentos sociais diferentes da influência indígena e dos currais de gado
levantados pelos “marinheiros”. Os modos de aproveitar os recursos animais (carne,
leite, gordura e sangue) são evidentemente díspares ao compararmos os trabalhos
de perseguição e luta pelo sertão com os que não privilegiam o deslocamento, mas
sim o sedentarismo.
Entendido isso, Do gado (p. 59) começa com uma elaboração das
origens da conservação da caça e passa a explicar a paçoca. Por ser a “ração de
guerra” ou de jornada, seu preparo é praticamente improvisado e sua explicação
sugere um aprofundamento maior nos motivos da pressa que na importância da
receita:
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Carne pilada com farinha e pimenta, queijo ou rapadura – preparada de um
jeito ou de outro, paçoca de carne ou piracuí – paçoca de peixe –
constituíram as rações de guerra dos caboclos brabos que pelos sertões
vagavam. Arremedaram-nos os vaqueiros, conduzindo-as aos alforjes
quando tinham de dar campo mais longe de casa; também os comboieiros
nas suasjornadas pelos caminhos da caatinga e mais tarde os viajantes dali
ou que por ali passaram. Até o tocaieiro, na espreita, espera, tocaia, onde
se deixavam ficar horas e dias aguardando a passagem da caça – bicho do
mato ou mesmo do bicho-homem... (FARIA, 1980, p. 63)
Já a carne de sol, surgindo logo depois, pressupõe maior cuidado e
diversos processos que por si sós têm sentido. Sua finalidade é a base alimentar do
sertanejo, residindo sua riqueza cultural no modo de preparo. Dessa forma, o
descritivismo acaba tomando o foco, e o ensaio muda sua forma para quase uma
receita culinária:
a) A rês é morta a bala (com um tiro no redemoinho da testa), machado,
marreta ou chuçada no cabelouro sendo, logo em seguida, sangrada.
b) Risca-se, pela barriga, o esquadrejamento para tirar o couro. O fato
(vísceras) é retirado logo – diligência necessária para a carne ficar cheirosa.
Completa-se a tiragem do couro.
[…]
g) Despencada a carne é, em seguida, golpeada nas partes mais grossas –
ao correr da manta – e salgada com sal fino. Para uma rês de 10 arrobas
são necessários de 25 a 30 k de sal. (FARIA, 1980, p. 65)
São nesses exemplos em que Lamartine decide esmiuçar algum assunto
que se aproxima de “textos técnicos” e o seu lado criativo parece mais distante, mas
é fundamental perceber que o “modo” como o apresenta também contém escolhas
criativas. Seguindo, por exemplo, a “receita” da carne de sol, chegamos a um ponto
em que, sem fugir do assunto, o escritor associa ao processo comentários do modo
de fazer antigo, quebrando momentaneamente a linha objetiva do preparo:
j) Mais para trás, contam os mais velhos, quando o fazendeiro ainda não
tinha o hábito nem as facilidades de transporte que lhe permitiam o
abastecimento semanal nas feiras das “ruas” sertanejas – matavam antes
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do cair das carnes, para comer até a pegada do inverno vindouro. A carne
depois de preparada, como ainda hoje se faz, era empilhada em caixotes ou
malas de couro, em camadas sobrepostas, entremeadas de sal, ficando as
faces gorda com gorda e carne com carne. Assim estocadas duravam por
todos os meses de seca. Quanto às de hoje, dado o consumo mais
imediato, suportam bem de um a dois meses. (FARIA, 1980, p. 66)
Quanto mais se aprofunda nos processos desse ou daquele recurso, o
escritor amplia o alcance do tema com “recursos vizinhos” e diminui a aparência de
manual, tornando o seu ensaio um espaço de experiências múltiplas de
conhecimento do Seridó:
Da carne de porco pura, temperada ou misturada com outras, também
faziam e ainda fazem por lá a lingüiça. Atividade caseira que pouco ou nada
varia das usanças de outras ribeiras. Talvez, de tudo, valha lembrar apenas
a originalidade do apelido de espeto-de-virar-tripa dado às pessoas
lazarinas, i. é., magras e altas, em alusão à vareta usada para esse fim na
manufatura da lingüiça... (FARIA, 1980, p. 67)
Assim, o escritor procura manter seu discurso “balanceado” entre
“explicações práticas” e curiosidades, episódios interessantes, exemplos diversos
etc. Sendo um dito popular que enfatize um motivo, uma pausa para
esclarecimentos lexicais, ou mesmo uma mudança de curso temporária, tudo
concorre para a formação do ensaio lamartineano. E ainda faltaria a observação de
que o destaque mais instrumental das fases de cada processo de conservação dos
alimentos não ocorre apenas por sua complexidade, mas por se tratarem de
discursos citados de outros sertanejos:
As receitas aqui transcritas nos foram fornecidas por Pery Lamartine
(Hypérides), filho, neto e bisneto dos Gorgônio da Timbaúba (Caicó, RN) –
onde gerações se criaram nas lides do pastoreio, ao redor de um tacho,
fazendo queijo para guardar e, mais recentemente, para os mercados da
praça. (FARIA, 1980, pp. 67 - 68)
Com isso, Lamartine busca, em cada divisão dos alimentos, apontar para
“especialistas” que, de alguma forma, completem o sentido de suas explicações e,
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consequentemente, distribui suas contribuições com mais atenção. Não se trata
apenas da explanação dos resultados de pesquisas realizadas pelo escritor, mas um
modo de povoar os trabalhos sobre a alimentação com testemunhas desse assunto
escrito:
O informante, Pery Lamartine, diz que “é conseguida através da fervura do
soro-de-queijo que sob ação do calor faz soltar uma espuma; recolhida a
mesma com uma cuia, é posteriormente levada ao fogo para apurar. Esta
última operação é demorada pois requer toda atenção a fim de evitar que o
produto fique com gosto de queimado. (FARIA, 1980, p. 72)
Nos anos bons de inverno, o macássar, de ciclo maior, 3 meses, foz o
sertanejo sentenciar: “Plantar em S. José (19/III) para colher em S. João
(24/VI)...”
“Se plantam em janeiro
e a chuva não falta,
não tendo lagarta,
até fevereiro,
vai logo estendendo,
o milho crescendo,
já no fim de março,
não tendo em baraço,
alguns vão comendo.
No fim de abril até maio,
já é enorme a fartura,
já estão batendo feijão,
tem muita fava madura,
dão princípio a virar milho,
está a lavoura segura.” (FARIA, 1980, p. 77)
Tanto o apoio de artesão dado por Pery Lamartine quanto a sentença de
discurso coletivo desvelada pelos versos de João Martins de Athayde entram no
ensaio, por exemplo, como parte do diálogo que constitui uma das dimensões
fundantes da linha textual. Ao lado das relações que envolvem o grau de
objetividade e o uso dos recursos materiais, há ainda uma terceira linha, mais
contínua, da presença do “outro”, que não é completada simplesmente pela sua
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menção, mas por relações dialógicas. Segundo Bakhtin:
[...] a relação dialógica não coincide de modo algum com a relação existente
entre as réplicas de um diálogo real, por ser mais extensa, mais variada e
mais complexa. Dois enunciadores, separados um do outro no espaço e no
tempo e que nada sabem um do outro, revelam-se em relação dialógica
mediante uma confrontação do sentido, desde que haja alguma
convergência do sentido (ainda que seja algo insignificante em comum no
tema, no ponto de vista, etc.) (BAKHTIN, 1997, p. 354)
Por uma visão dos trabalhos que envolvem o tema, e construída sua linha
enunciativa pela leitura e reescrita de outras vozes que deles falam, percebemos
mais uma estrutura fundamental do ensaísmo lamartineano. A terceira linha
orientadora de seu discurso, que caminha pelo universo real e seus dados físicos,
dispõe do diálogo que o autor mantém com pesquisadores, poetas e testemunhas
históricas, mas também com outros autores sertanistas não mencionados e que
“dialogam” com a obra lamartineana. Não apenas em nível mínimo de resposta à
enunciados anteriores, seu dialogismo ocorre inclusive conscientemente, na
presença de vários modos de citação e na mistura da voz de Lamartine com as
explicações de seus “informantes”:
Acrescenta ainda o informante que, na época da pastagem madura, quando
o leite apresentar maior teor gorduroso, um queijo que gasta na sua
manufatura duas garrafas de manteiga, devolve três.
E diz: “A borra é o resíduo que sobra da manteiga depois de apurada. Tem
aspecto de cera de abelha ordinária, embora apresente cheiro e sabor
agradável e característico.”
Na luta do queijo, a borra vai sendo juntada diariamente em vasilha de
barro, para depois ser submetida a um tratamento próprio, a fim de soltar a
manteiga que nela esteja entranhada.(FARIA, 1980, p. 73)
Apenas nesse exemplo, podemos encontrar três modos de citação:
discurso segundo no primeiro parágrafo, citação direta no segundo, e uma
possibilidade de discurso indireto livre no terceiro; o que também é facilmente
observado em outros trechos devido à presença mais concentrada de testemunhos
ao longo do ensaio. É justamente pela escrita sempre em contato com vozes do
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sertão, em uma costura constante do eu e do outro, que o texto segue seu
desenvolvimento até o último ponto da etapa sobre cada um dos recurso do Seridó.
De outras comidas (p. 82), por tratar da última classificação em escala de
importância, apresenta uma mudança no tom explicativo e perde seu vigor, voltando
ao equilíbrio com a tendência narrativa da redação lamartineana:
É, no Seridó, uma cultura típica de vazantes, de vez que é feita nos meses
de seca, quando os rios apartam as águas e os açudes principiam a
descobrir terra de planta. As batatas de açude são tidas como mais
saborosas e melhores, embora nos mercados não sertanejos sejam menos
preferidas; é que exteriormente são mais sujas, dado o solo mais argiloso
do açude. As vazantes do rio, ao contrário das de açude, reclamam
adubação. O matuto recorre ao estrume de curral para fertilizá-las. Nas
imediações da Serra do Bico da Arara (Acari, RN) também plantam com
estrume de andorinha, de melhor rendimento, e procedente da Furna das
Andorinhas (Serra do Bico). (FARIA, 1980, p. 82)
A mudança, como observamos, ocorre pelos recursos “outros” sugerirem
menor necessidade do registro de seu processamento, assim como menor
frequência de sua produção no sertão seridoense. Essa tese se adensa quando o
autor discorre sobre a farinha e a rapadura, que são duas bases alimentares do
sertanejo potiguar e, no entanto, vem geralmente de outros lugares:
A farinha de mandioca é que fazia e faz o grosso da mistura da mesa
sertaneja. É parelha para carne (paçocas), pirão, rapadura, banana e até
café.
A lavoura de mandioca sempre foi mingüada por aquelas brenhas e se fazia
mais nas chãs de algumas serras. O gasto é completado pela que vem
trazida de longe, dos Brejos ou do Agreste. Naquele tempo, dada a maior
dificuldade de transportes, era entesourada em enormes caixões de
imburana ou cumaru de onde saía para o gasto de cada dia. (FARIA, 1980,
p. 83)
Mas a rapadura afamada, de primeira, clara, de bom doce, vem de longe,
transportada ainda ontem em lombo de burro e hoje no espinhaço do
caminhão; é a do Cariri cearense. Têm formas diversas, variando o tamanho
com a região de origem; as mais afamadas são: cariri (CE), bancos (Seridó,
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RN) e japecanga (S. José de Mipibu, RN). Variam de peso, forma, cor e
sabor. (FARIA, 1980, p. 85)
Com essa organização hierárquica dos recursos nutricionais
apresentados pelo ensaio, fica ainda mais explícito o vínculo de Lamartine com os
processos produtivos que envolvem os temas que trabalha. As páginas seguintes
mostram, dessa forma, tabelas relativas ao crescimento populacional,
comercialização dos rebanhos e plantações, assim como dados pluviométricos. Fica
para o final ainda um glossário de nomes científicos de cada espécie da flora
regional citada, uma preocupação crescente do autor, que tenta englobar cada traço
do vocabulário regional já não tão costumeiro aos sertões mudados ou mesmo para
além das fronteiras da terra. Seus esforços de “catalogação” ao longo do texto são
mais uma vez voltados para explicar termos que possivelmente escapam do
conhecimento geral de algum leitor futuro:
IDENTIFICAÇÃO DAS PLANTAS CITADAS
ALGODÃO MOCÓ – Gossypium purpurascens Poir, fam. Malváceas.
ARROZ – Oryza sativa Linn., fam. Gramíneas.
AVELÓS – Euphorbia gymnoclada Boiss., fam. Euforbíceas.
BANANA – Musa paradisiaca Linn., fam. Musáceas.
BATATA DOCE – Ipomoea Batatas Poir., fam. Convolvuláceas.
BELDROEGA – Portulaca oleoracea Linn., fam. Portuláceas. (FARIA, 1980,
p. 95)
Assim sendo, mesmo com a menor prioridade de explicações, seguida de
conclusões concentradas em dados estatísticos e referências científicas, é patente o
efeito da terceira linha na escrita do ensaio, a do diálogo. Lamartine insiste em
terminar seu estudo com dados de outras pesquisas, e garante mesmo a precisão
das espécies abarcadas na discussão.
Podemos, finalmente, identificar com segurança nos padrões de
afastamento e aproximação do autor a manifestação de outras vozes que
completam o “povoamento” das etapas da História em que Lamartine, por motivo
temporal ou de não vivência direta, se omite. Sua perspectiva ensaística passa por
memórias, pelo progresso do próprio pensamento do autor e por outras pessoas.
100
Não vemos o “sertão do nunca mais” apenas no presente, mas no
momento em que cada voz se pronuncia pelas palavras do escritor. Seu tempo é
renovado no ato de contar o que se passou “ontem”, e cada nome esquecido ganha
um rastro de vida ao receber um espaço na história.
101
4.3 Terceiro Ensaio
Escrito em parceria com Hypérides Lamartine (um dos “especialistas”
consultados para a produção de Conservação de alimentos nos Sertões do Seridó
um ano depois), o estudo sobre a fauna apícula do Rio Grande do Norte é o menor
ensaio da coletânea analisada e, consequentemente, o em que o escritor parece
demonstrar menor intimidade com o tema. Isso se evidencia não apenas pela
necessidade de um coautor, que não se manifesta ao longo do texto além do recurso
da primeira pessoa do plural, mas pelo caráter de pesquisa ser marcado em cada
etapa do desenvolvimento ensaístico.
Essa perspectiva é proporcionada tanto pelo uso praticamente unânime
de testemunhos de outros e o quase apagamento da presença histórica do escritor,
quanto pelo fôlego reduzido e mais objetivo de sua redação. Diferente de todas as
outras obras reunidas para Sertões do Seridó, a publicação de Algumas abelhas dos
sertões do Seridó (1964) torna-se significativa no repertório de Lamartine por,
inicialmente, caracterizar o extremo de afastamento identitário do autor com o
assunto, pois se posiciona enquanto coletor de informações bem mais do que
testemunha ocular.
Tal distância poderia, entretanto, se diluir na importância secundária da
“caça do mel” no estado, que, segundo o próprio ensaísta, ocupa quase sempre a
esfera do extrativismo ocasional. Porém, essa informação apenas aclara o lugar da
apicultura na memória coletiva do Seridó, não diminuindo a relevância do contraste
que nos oportuniza.
Além de um registro da História seridoense, o ensaio das abelhas permite
uma leitura do papel da proximidade pessoal na escrita lamartineana e quais
recursos se explicitam em um contexto limite. Retomando as manifestações da
presença subjetiva do autor já estudadas em seus dois ensaios precedentes, é
possível compará-las com as soluções encontradas ao longo das 14 páginas do
texto que agora desvendamos:
José Lourenço da Silva, uma das derradeiras sementes dessa nação de
gente que está se finando, já setentão (1971) só se arredou do trabalho
quando o sangue aguado de leucemia roubou suas últimas sustâncias. Em
suas terras, sob as suas telhas, nas quebradas da Serra Branca (Riachuelo,
102
RN), colocaram em suas mãos calosas a vela do derradeiro adeus...
(FARIA, 1980, pp. 31 - 32)
O Lunário não diz mas, tenho para mim, que o processo de conservação da
carne pelo sol, sal e vento – é artimanha comum à grande parte dos
viventes das terras secas, fartas de sol e de menor umidade atmosférica. E
tanto assim é que, C. SANZ ENGAÑA (Enciclopedia de la carne), citando
Obermaier, faz observar: […] (FARIA, 1980, p. 64)
Hoje, até nos anos bons de inverno, dizem os mais velhos, é fácil perceber,
mesmo a olho, a rarefação de abelhas nos pés-de-pau floridos, como ainda
ontem era visto e cantado:
“Quando chove as abelhas
Começam a trabalhar:
Moça-branca e a pimenta,
Mandaçaia e magabá;
Canudo, Mané-de-abreu,
Tubiba e arapuá. […] (FARIA, 1980, p. 108
As diferenças mais evidentes entre os trechos 1 e 2, destacados
respectivamente do primeiro e segundo ensaios, e o 3, presente no ponto II das
Abelhas, não aparecem na escolha das “vozes outras” do sertão e reorganização
para a linha argumentativa do ensaísta, mas em seu emprego. O primeiro caso é de
uma presença que ocupa a reflexão do ensaísta, que por sua vez se torna
biógrafo/contista, absorvendo o indivíduo citado; o segundo mostra a perspectiva
pessoal do ensaísta, fortalecida na leitura e comentário de outros autores; o terceiro
não exibe a presença de Lamartine, mas dá relevância aos “mais velhos”, que
absorvem o discurso do ensaio por um breve momento.
Conforme analisamos o caráter dialógico da escrita lamartineana, tais
recursos surgem no centro da redação ao completarem espaços de “testemunhos
exemplares” que o escritor, por alguma razão, não assume. São, portanto,
inicialmente dados mais próximos da curva inferior na oscilação da presença
pessoal do escritor, e ocupam o espaço das contaminações subjetivas do discurso
enquanto “terceira pessoa”, ou seja, assunto de alguma recordação do ensaísta:
“José Lourenço da Silva, uma das derradeiras sementes dessa nação de gente que
está se finando […]” (FARIA, 1980, p. 32).; ou enquanto “interlocutor” necessário
103
para o desenvolvimento textual: “[...] E tanto assim é que, C. SANZ ENGAÑA
(Enciclopedia de la carne), citando Obermaier, faz observar [...]” (FARIA, 1980, p.
64).
Em todos os outros casos, em que a presença da voz do outro indica a
sua posição de testemunha de modo dominante, o escritor mentem-se organizador
dos relatos, construindo o sentido geral de seu pensamento:
Francisco Julião (fz. Lagoa Nova, S. Paulo do Potengi, RN), tem para ele
que: – “qualquer mel quente embebeda; ou então estando no tempo da flor
da maniçoba ou da flor-de-seda. Já Arthephio Bezerra (Serra Negra do
Norte, RN) acredita que a embriaguez é causada unicamente pela flor da
maniçoba. (FARIA, 1980, p. 110)
Essa presença de discursos outros entre os três ensaios nos mostra que
o emprego como testemunho ou assunto, na posição de sujeito ou parte de uma
memória, muda também o lugar do escritor em seu texto. E, com isso, encontramos
um “sertão sem mel” (p. 108) do enunciador em plural que dá espaço aos que
tiveram a experiência em primeira mão:
Poucas abusões conhecemos ligados aos caçadores de abelhas. Uma mais
estranha e que parece comum a todo o sertão nordestino, é a de que o mel
da abelha limão, tirado no mato, tem de ser comido em silêncio. Se um dos
tiradores, acabada a refeição, diz para o outro: – “Vamo imbora”, fica
completamente bêbado, lançando e areado. De alguns sertanejos ouvimos
essa afirmativa como verdadeira, embora nunca tivéssemos oportunidade
de testemunhá-la. A literatura regional registra o fato nos sertões cearenses.
(FARIA, 1980, pp. 109 - 110)
A presença do escritor assinala o evento como observador, mas não é
sensível seu envolvimento da mesma forma que em outras situações nos ensaios
precedentes. Não há o elemento da memória vindo do ensaísta, que passa pelo
cenário sendo leitor, ouvinte, e testemunha ocular circunstancial:
Vale anotar como curiosidade o fato de que fomos testemunhas, mais de
uma vez, quando em suas atividades agrícolas, esbarravam com uma
“casa” de boca-torta. Mesmo sem se protegerem, algumas vezes até nus da
104
cintura-para-cima, limitavam-se a passar as mãos nos sovacos e,
devagarinho, aproximá-las da “casa”, até esmagá-la, esfregando uma na
outra, sem sofrer uma única ferroada. (FARIA, 1980, p. 109)
Resta à redação com substância criativa, que ressignifica as explicações
em linha narrativa, o fator de proximidade do autor com o tema. Fazendo de sua
pesquisa história/estória, escolhe modo praticamente cênico de dar corpo aos
processos e, cercando-os com comentários menos objetivos, ainda os mantém entre
dois vazios de tradição mais ampla:
Faz de conta que seja uma jandaíra... Espiam uma a uma as que bebem e o
rumo que tomam de volta. Sentem a direção do vento. Atentam para a altura
do vôo. Andam algumas braças naquele mesmo rumo e, de novo, botam
sentido na passagem delas. Vêem passar a primeira, a segunda, a
terceira... está confirmada a direção. Adiantam-se outras tantas braças e
recomeçam o balizamento... E de lance em lance, vão bater no pau em ue
está situada a jandaíra. Nele botam o ouvido, auscultando-o com pequenas
batidas e chegam a “diagnosticar” se é morada velha, se está gorda ou
magra. As pobres de mel são chamadas magras, tanto assim que o enxu,
em certa época do ano que tem pouco mel e abundante ninhada de larvas,
serve de comparação aos indivíduos de família numerosa. “Fulano tem fio
que só enxu magro”... (FARIA, 1980, pp. 110 - 111)
Pelo estilo, que associa linha objetiva com informações que a desviam,
que tece citações documentais com ditos populares e conjecturas, e que controla
observações do “pesquisador” e as cenas construídas do “narrador”, Lamartine
alcança a estrutura necessária para seu estudo menos íntimo.
Desse resultado, encontramos sua escrita compensada em consequência
da falta de interferências pessoais e desvios longos. Seu desenvolvimento é
enriquecido pela associação incomum de informações secundárias (o caso de ter
“fio que só enxu magro”), escolhas lexicais da região (como “lançar” e “arear” na
explicação do mel da abelha limão), e uso de discursos alheios, ou mesmo do nome
e vida de sertanejos, como vozes daqueles tempos:
Os mais curiosos conhecem tim-tim por tim-tim o mundo que os cerca.
Sabem de cor as madeiras que se apresentam mais freqüentemente ocadas
105
– a imburana, a catingueira e o cumaru – morada natural das nossas
abelhas silvestres. E a literatura oral comprova essa preferência:
“Xique-xique é pau de espinho,
Imburana é pau de abelha;
Gravata de boi é canga,
Paletó de negro é peia...” (FARIA, 1980, p. 111)
Em serra Negra deitaram fama e ainda hoje são lembrados os feitos dos
rastejadores como o negro velho Donato (nasc. 1857 - fal. 1952), escravo
de Manoel Pereira Mariz (faz. Solidão) e do velho Marcolino Fidelix (? -
1890). (FARIA, 1980, p. 111)
Assim sendo, o Seridó torna-se vivo, com esse tema pouco comum em
sua tradição, pelas ligações da escrita ensaística em trajeto vacilante. Tendo poucas
informações e o auxílio de questionários distribuídos em várias cidades (o que é
lembrado em agradecimento no fim do estudo), Lamartine estrutura Algumas
abelhas dos sertões do Seridó em 5 pontos: Geografia e povoamento (p. 107), que
contempla uma descrição simples da região, a origem indígena da caça de abelhas,
a modificação do ambiente pelo algodão e a diminuição da fauna apícula; O sertão
sem mel (p. 108), que se ocupa tanto dos motivos e efeitos da rarefação do mel,
quanto de toda a exposição dos meios tradicionais da caça e criação (contando com
vários fatores secundários), e coloca em perspectiva a produção de cada espécie e
o trabalho de várias personalidades daquele tempo; As perguntas e as respostas (p.
114), que compõe as conclusões parciais do estudo e algumas observações das
lacunas ainda necessitando estudo; O que se conclui (p. 116), que fecha a
argumentação sobre a situação arriscada da epifauna regional por retomadas
pontuais do que foi demonstrado ao longo do texto; e finalmente As abelhas na boca
do povo (p. 116), uma pequena lista de expressões relativas às abelhas que são
registradas na fala popular.
Esse último ponto, inclusive, deixa mais convincente o afastamento do
autor pela falta de familiaridade, pois ele mesmo destaca que: “O adágio e as
comparações do linguajar sertanejo são pobres no falar de suas abelhas. Dos
poucos que conseguimos arrebanhar, a maioria foi coletada por Leonardo Mota.”
(FARIA, 1980, p. 116).
Mas em poucas páginas e de modo tímido, identificamos mesmo assim os
106
traços além e aquém da fronteira íntima do ensaísta, que, de formas diferentes,
consegue reestruturar o Seridó dos arredores de sua memória às veredas por que
menos tenha trilhado. Emprega conhecimento por experiência pessoal ou por
leitura/escuta de modo a reviver o passado da região, e o faz buscando os
sertanejos. A presença humana é o dado frequente de sua escrita, e o caminho que
assegura seu desenvolvimento.
Podemos assim considerar que, independente de sua distância, há a
identificação do sertão com algum de seus habitantes, e essa ligação é um dos
elementos norteadores do enriquecimento textual em Lamartine. Não basta relatar
dos temas o que eram e como existiam, pois cada um caminha para o aclaramento
de quem os conhecia e por que fazem parte da memória de tantas pessoas.
107
4.4 Quarto ensaio
Publicado pela primeira vez em 1961, três anos antes de Algumas
abelhas, A.B.C. da pescaria de açudes no Seridó (pp. 121 - 156) é um dos ensaios
mais bem elaborados da obra lamartineana. Embora curto, sua estrutura se destaca
por nos trazer um fator incomum, a utilização de um acróstico das letras do alfabeto
para destacar seu andamento. Essa escolha, no entanto, não é apenas estilística,
pois recorda os versos de abecê cantados no interior do estado, uma forma popular
de literatura oral cultivada aqui, mas com origens antigas:
Designa as composições poéticas nas quais certas letras formam uma
palavra ou frase, no geral um nome próprio. Quando se juntam as letras
iniciais, tem-se o acróstico propriamente dito, que se lê na vertical, de cima
para baixo ou no sentido inverso. […] Quando as primeiras letras compõem
o alfabeto, tem-se o abecedarius […] ou o acróstico alfabético. […] Poesia
de circunstância, expediente típico de poetas menos inspirados que
virtuoses, o acróstico remonta à Antiguidade greco-latina. (MOISÉS, 2013,
p. 11)
Porém, não é apenas no sentido poético, mas pelo seu caráter didático,
que Lamartine utiliza tais recursos. É a retomada do “abecê” enquanto “primeiros
passos”, noções básicas de qualquer ciência, o que se destaca desde a dedicatória:
“À memória de BONATO LIBERATO DANTAS (1897-1955) que, nos serões da
Fazenda Lagoa Nova, em 1943, nos explicou, tim-tim por tim-tim, como pescava nas
ribeiras do Seridó […]” (FARIA, 1980, p. 123). O escritor passa essas histórias
adiante, caminhando metodicamente pelas noções gerais da pesca, invadindo a
rotina dos mutirões e definindo cada função, etapa e impacto sócio econômico da
atividade.
O resultado é um texto organizado de “A” a “C” por mais uma descrição
do Seridó (A), um resumo da História desde o período das sesmarias (B), e como se
chegou aos açudes pela evolução do represamento das águas (C); de “D” a “F”,
explicando a origem da pescaria na região (D e E) e seus processos gerais (F); de
“G” a “R”, observando detidamente todas as funções de cada participante da pesca;
por “S”, que se demora nas ferramentas utilizadas pelos pescadores; de “T” a “U”,
que trata da rentabilidade da piscicultura nos açudes; de “V” a “Z”, pontuando o que
108
resta dizer de peixes de outras regiões pescados no Seridó; e, por fim, “Y” (com um
til), apresentando uma lista de peixes do Seridó como despedida.
Ao analisarmos, essa estrutura se repete em outros estudos do autor,
tanto que pode ser repartida em 5 etapas até aqui recorrentes: descrição do sertão,
origem histórica (provável) do tema, progressão desse tema (com pausas ou desvios
não-objetivos), conclusões desse percurso e crítica da “situação atual”,
tabelas/glossários ou qualquer outro texto de referência.
Portanto, o que se sobressai no presente ensaio é sua organização maior
em escala lexical, devido a necessidade de cada ponto iniciar pela letra seguinte do
alfabeto. Seu maior efeito é gerado da preocupação estética que interfere nas
formações sintáticas do autor. Principalmente nos pontos que iniciam com as letras
mais incomuns, parece se equilibrar por escolhas criativas:
Kalendário de pescaria nos açudes principia com a catimbóia feita de
garranchos secos. A madeira verde só é empregada na falta de outra
porque, azedando com a água, torna-se pouco procurada pelo peixe.
(FARIA, 1980, p. 131)
Xistoso é o peixe pirarucu. Trazido em 1942 para as águas daqueles
sertões, tem desovado em milhares e crescido a ponto de já terem pescado
deles com 120 kg de peso e 2,20 de comprimento. Como peixe miúdo e
camarão. No Amazonas ele é arpoado quando sobe para respirar. (FARIA,
1980, p. 140)
Zoada de fazer o coração dar pinotes e bater mais acelerado é quando a
catraca estala com peixe fisgado e o pescador ainda não sabe o tamanho
de quem está na outra ponta da linha.
Ferrado, o pirarucu pula fora dágua, ficando com o corpo todo à mostra,
sacudindo a cabeça de mandíbulas escancaradas lutando para escapulir.
(FARIA, 1980, p. 140)
~
Y “Hipicilone e til/Juntei ambas para o fim” com um apanhado da ictiofauna
sertaneja, melhor enumerado na tabela do príncipe dos poetas populares –
Ignácio da Catingueira […] (FARIA, 1980, p. 141)
109
Assim, nos pontos K, X e Z identificamos verdadeiros “malabarismos” com
as soluções de Lamartine, que, percebendo as formações incomuns, coloca notas
para os dois primeiros exemplos: “Kalendário – Nos tradicionais ABC (poesia popular
mnemônica narrativa), a estrofe que se iniciava a letra “k”, comumente o fazia com a
palavra “kalendário”. (FARIA, 1980, p. 131), “Xistoso – esquesito.” (FARIA, 1980, p.
140).
Já em Y, a letra inicial é destacada, e sua coerência garantida pela citação
de versos de fechamento tradicionais (“Hipicilone e til/Juntei ambas para o fim”),
seguidos de nota retirada de Cascudo:
Nas velhas cartas de ABC, depois da última letra, havia o til. O sertanejo
recitando o alfabeto nunca esquecia de citar o sinal que lhe parecia uma
letra também. Todos os versos de ABC, por este motivo, incluem o til. Como
não é possível arranjar-se tema com ele, aproveitam para uma frase de
ironia, uma despedida, um motejo […] (apud. FARIA, 1980, p. 141)
São esses os casos mais evidentes de adequação, sendo necessárias
algumas explicações extratextuais, mas, por boa parte do ensaio, é possível
distinguir consequências do acróstico no nível das orações: “Cordão de pedra
esbarrando a carreira de algum riacho [...]” (FARIA, 1980, p. 126), “Gabados são os
açudes bons criadores de peixe […]” (FARIA, 1980, p. 128), “Homem de
merecimento tem de ser o chamado dono da percaria ou das redes.” (FARIA, 1980,
p. 130), “Importância maior é a da prova do açude para as negociações de compra.”
(FARIA, 1980, p. 130), “Redobrado é o trabalho quando sucede haver locas em
serrotes submersas onde o peixe se acoita.” (FARIA, 1980, p. 135), “Sortidos são os
apetrechos que usam os pescadores sertanejos:” (FARIA, 1980, p. 135).
A obrigação de acomodar cada letra inicial desses pontos em orações
mais ou menos espontâneas leva Lamartine a uma inversão dos termos, motivo pelo
qual o hipérbato demonstra-se tão recorrente respectivamente no primeiro parágrafo
das divisões, mas não nos subsequentes.
Com esses elementos somados à estrutura ensaística do autor, sua
composição supera a barreira de escrita criativa ser mais visível apenas em trechos
subjetivos, de desvios não-objetivos e pela contaminação da memória por tom
110
saudosista. O cuidado com as palavras demonstra ser de outra ordem, juntando o
estudo com o jogo retirado dos versos de ABC, e assim diminuindo a linha que
separa “seriedade” e “criatividade”.
O ensaio sobre a pesca é, portanto, o único da coletânea em que a
oscilação criativa do autor pode ser traçada como 4a linha guia do texto, pois além
de desvios da orientação argumentativa geral já observados na escrita lamartineana,
o componente de “A.B.C.” se mantém por todo o desenvolvimento.
É fator estilístico, mas também retomada da tradição, quando explorado
de acordo com a leitura de cada traço da pesca no Seridó. Abrange as duas esferas
por acompanhar estruturalmente a intenção de ser um guia de pescaria comum da
região, elaborando para leigos as primeiras noções de sua arte:
Faz-se a pescaria de açude por processos mais ou menos idênticos, pouco
variando com o passar dos anos. E muitos dos pescadores de hoje são
filhos de pescadores, que sentiram o despontar da barba e o engrossar da
voz ajudando os mais velhos a escalar peixe, consertar e estender as redes,
mergulhar nos porões de açudes para desenganchar uma tarrafa ou mesmo
arredando lances à beira d'água com suas tarrafas de menino. (FARIA,
1980, p. 128)
Logo, o roteiro dos açudes passa antes pela descrição do Seridó, trecho
recorrente em cada ensaio até aqui analisado, e enfoca a hidrografia da região:
Os rios são transitórios e apartam as águas no estio – ficando apenas
caminhos tortuosos nas várzeas de solo profundo, sílico-argiloso, onde se
concentra a sua lavoura-dinheiro: o algodão mocó. A caatinga é ondulada,
erodida, de solo raso e compacto, esturricado por quase 3.000 horas de luz
por ano que o escalda a 60oC nos meses de seca e varrida por ventos de 2
a 20km/hora.
Os invernos são escassos. Nos anos bons, quando sucede chover, têm de 4
a 5 meses de molhado para garantir a safra e fazer água os açudes. […]
(FARIA, 1980, p. 125)
E logo o sertanejo aprendeu que sua melhor forma de fazer economia era
guardar água em açudes. Dali tirava as vazantes para comer verde nos
meses de seca, batata para si, para as feiras e para melhorar o trato do seu
111
gado. A jusante úmida onde fazer um sítio de fruteiras (coqueiro,
mangabeira, mamoeiro) e criar capim de planta para o trato dos animais.
Água onde fazer desovar e engordar peixe. Água boa e doce para a gente e
para a criação. (FARIA, 1980, p. 127)
Criado o espaço, o ensaísta passa para as origens da pesca, apontando
referências diversas que culminam na observação das influências do sertanejo:
De certo que muito antes do açude já pescavam por aquelas ribeiras. Nos
rios – quando açoitavam as cheias nos anos bons de inverno – ou mesmo
quando apartavam deixando em alguns cantos poços que guardavam água
por muitos meses. […] Espiando os métodos de pesca usados pelo
sertanejo e na tentativa de conhecer suas raízes, distinguimos:
1. Européia: tarrafa, rede, anzol, explosivos e sifão.
2. Indígena: anzol, tingui, bulha, pescaria a mão, armadilhas (jiquiás ou
covos) e espera (flechar).
Na verdade, alguns dos instrumentos de pesca acima enumerados são
comuns às duas culturas. Soluções que parecem ter surgido ao homem nas
diferentes terras sem que para isso tenha havido, obrigatoriamente, contato
entre eles. Assim, não nos atrevemos a formas rígidas de admitir uma raiz
comum para certas etnias. (FARIA, 1980, pp. 127 - 128)
Dessa forma, o tema da pesca já introduzido é refinado em seu recorte
com a exposição dos modos típicos do sertanejo:
Faz-se a pescaria de açudes por processos mais ou menos idênticos,
pouco variando com o passar dos anos. E muitos dos pescadores de hoje
são filhos de pescadores, que sentiram o despontar da barba e o engrossar
da voz ajudando os mais velhos a escalar peixe, consertar e estender as
redes, mergulhar nos porões de açudes para desenganchar uma tarrafa ou
mesmo arremedando lances à beira d'água com suas tarrafas de menino.
(FARIA, 1980, p. 128)
E, finalmente, chega-se ao trabalho coletivo da pescaria em grandes
açudes:
Apartado o inverno (período das chuvas), quando a água dos açudes baixa
de nível deixando a descoberto melhor chão para as vazantes – de
112
setembro a outubro – os pescadores principiam a despesca, de açude em
açude, até que os primeiros relâmpagos ou a fala mais grossa do pai da
coalhada façam-nos então trocar a tarrafa, pelo cabo da enxada.
Pescadores profissionais de entressafra, i. é, durante a seca e agricultores,
ou de atividades diversas, nos meses de inverno. (FARIA, 1980, p. 130)
Percebe-se que nessa última etapa o texto se alarga e para de avançar
cronologicamente, se acomodando a um quadro no açude. Todas as tarefas,
diversões e testemunhos se concentram prioritariamente nele:
Juazeiro é que dá sombra boa para a gente se arranchar no sertão. Mas
pescador prefere mesmo é uma latada de rama na beira do açude. É que o
sal do trato do peixe mata os pés de pau...
Alevantado o rancho, enterram algumas estacas na beira dágua, separadas
de 2 a 4m uma da outra, para secagem e conserto das redes. Daí por diante
cada um cuida de sua obrigação […] (FARIA, 1980, p. 131)
Narração de pescaria não pode esconder a molecagem da encomendação
do corpo. É quando se prepara para mergulhar e descarregar sobre os
outros toda sorte de nome feio. Assim fazem cientes que desaparecendo da
tona d'água os que ficam encomendam-lhe o corpo, i. é, passam o troco
redobrando aos nomes recebidos. (FARIA, 1980, p. 132)
Quando surpreendidos ante a coragem suicida por mergulharem em locas
escuras e de águas turvas algumas vezes infestadas de piranhas, ouvimos
um veterano justificar-se com a mais humilde naturalidade:
– É u'a asneira, moço. A gente mergúia e vai tateando pelo rosnado da
bicha. Quanço roça nela, coça a barriga e ela se abre toda. Aí é só infincá
os dedo nas guelra e cuidá em subi. A piranha é que nem tubiba – num qué
é pancada (FARIA, 1980, p. 135)
Não são feitos desvios pela memória do autor, que em sua “história” conta
as lembranças de outros, mas, semelhante ao que se observa no ensaio sobre a
açudagem, o cenário se enche menos pelas descrições do meio que dos
trabalhadores. Às explicações de cada classe de pescadores acompanham sua
rotina e curiosidades, relegando ao final a definição detalhada de seus instrumentos
e o que escapou do quadro (curiosidades sobre peixes amazônicos e uma lista de
113
fauna comum nos açudes seridoenses):
Sortidos são os apetrechos que usam os pescadores sertanejos:
1. Tarrafa – A tarrafa, medida do punho às chumbadas, tem de 12 a 18
palmos. Para melhor clareza dividiremos a sua nomenclatura em ordem
decrescente, i. é, corda, punho, pano de crescência, pano morto, saco e
chumbadas. (FARIA, 1980, p. 135)
Vaquejando o assunto de como se pescava por aqueles mundos – é forçoso
aproveitar essas derradeiras letras do A.B.C. Para o registro das usanças
conseqüentes do peixamento com espécies de outras águas.
Ajuda substancial nos foi dada por BENTO XAVIER D'ALMEIDA,
encarregado do Posto Agrícola do Itans, no Caicó. É ele que nos manda
dizer por aqui assim […]
Dizem que é uma pescaria rendosa e interessante, oferecendo mais das
vezes um rendimento maior de 10 kg, a despeito do peso médio do tucunaré
variar de 500 a 600 gramas. (FARIA, 1980, pp. 138 – 139)
As espécies nativas de maior valor comercial são:
Cangati – Trachycorystes sp.
Cará – Pam. Cichlidae
Cascudo – Fam. Loricariidae. Gen. Plecostomus
Curimatã – Prochilodus sp.
Piau – Leporinus sp.
Piranha – Serrasalmus sp.
Traíra – Hoplias malabarica. (FARIA, 1980, p. 141)
Ocupando sua imagem do sertão com os mutirões de trabalho na beira da
água, Lamartine por consequência desenha seus contornos com estatísticas,
comentários e mesmo gravuras dos objetos referenciados no texto:
114
(apetrechos dos pescadores, desenhados por Lamartine. pp. 146 - 147)
Não é o único caso de linguagem não-verbal em seus textos, que
apresentam desenhos e fotos esporadicamente, mas, dentro de Sertões do Seridó,
são os únicos desenhos de ferramentas feitos pelo autor. As demais artes a bico de
pena são, eu sua maioria, de Percy Lau, que faz ilustrações para o primeiro, terceiro
e quinto ensaios, incluindo a capa da coletânea.
Porém, voltando ao Lamartine desenhista, interessa perceber sua
preocupação com os detalhes: não satisfeito com as explicações de uso e
descrições verbais, o autor ainda grava em sua obra a imagem dos objetos
utilizados na pesca, sendo os mais complexos divididos por letras explicadas em
glossário abaixo da imagem, e mesmo incluindo as voltas dos nós mais comuns dos
pescadores. Isso é feito para evitar, porventura, algum dos apetrechos, tantas vezes
referenciado, ser mal compreendido pelo leitor.
Com mais essa característica, A.B.C. da pescaria de açudes no Seridó
torna-se o texto que utiliza maior número de recursos diferentes dos cinco
analisados e, por isso, serve como parâmetro oposto ao também breve estudo sobre
115
as abelhas. Como vemos, tais textos diferem especialmente no quesito de
“envolvimento” do escritor: o primeiro possui pouca presença de Lamartine, que
permanece como observador/pesquisador e demonstra pouca familiaridade com o
assunto, tentando desenvolvê-lo pelos relatos coletados e por sua erudição; o
segundo, mesmo se tratando de outro ensaio feito com matéria herdada, não vivida,
é mais próximo pelo jogo “moleque” da estrutura, pelo empenho de traduzir o tema
em mais de uma linguagem e, embora guiado pelo abecê, é mais fluido devido a sua
organização se misturar com a criação não-objetiva.
Isso posto, sua importância reside dentro da coletânea, como
entendemos, na proximidade com a Literatura pelo fator metalinguístico encontrado
no A.B.C., e por ele responder com mais segurança ao leitor qual seria, entre 4 dos
5 textos analisados, o papel dos seus elementos criativos em relação a seus temas.
Por lermos um texto repleto de memórias pessoais, outro menos
interrompido e enfático na presença do trabalho nas tradições, um terceiro
praticamente estudado e exposto com certa impessoalidade, e ainda outro criativo
por sua própria apresentação, ampliamos os limites dos sertões, mas concluímos
que se busca sua imagem precisa, enquanto todos os outros fatores flutuam pelo
traçado dessa “cartografia”. Não apenas por causa do saudosismo tangível na
escrita lamartineana, e sim por seu desejo de continuação (mesmo que pela tinta) do
sertão que não volta, descobrimos o Seridó de formas diversas, mas voltadas
inevitavelmente para a mesma região. Criatividade, imprecisão e lendas não diluem
seu espaço e contribuem enquanto contrastes.
116
4.5 Quinto ensaio
A caça nos sertões do Seridó (1961), um dos estudos mais completos do
autor, encerra a coletânea com cores de prefácio. Contando 72 páginas (sendo 55
do texto principal e o restante de comentários, tabelas e demais anexos), apresenta
a formulação mais extensa sobre o Seridó até aqui analisada. Sua introdução
destaca 23 páginas para a definição do espaço, e torna-se praticamente outro
ensaio, ou um mesmo texto “em dois atos”, pois a caça toma seu lugar apenas na
metade do desenvolvimento.
Tendo quatro divisões, inicia com O começo dos sertões do Seridó (p.
159) pelos mesmos caminhos das descrições dos outros textos, mas com
detalhamento diferente. Seu cuidado em explicar as raízes do interior do estado
implica, como logo percebemos, em resumos maiores de sua história. Essa atenção
detida por mais tempo, nos mesmos períodos antes recordados, torna a “última
revisão” das origens do sertão renovada. O que não passa de menção pontual
várias páginas atrás ganha corpo e é dividido em As primeiras datas (p. 159), Os
currais (p. 160), A raiz do algodão (p. 164) e O sertão de agora (p. 167).
Principalmente ao compararmos a organização do conteúdo dos três
primeiros pontos em outros ensaios, o maior fôlego de Lamartine neste texto de
1961 fica evidente: em Açudes dos sertões do Seridó (p. 17), Algumas abelhas dos
sertões do Seridó (p. 101) e A.B.C. Da pescaria de açudes no Seridó (p. 121), as
introduções do espaço e da história do povo daquelas regiões são direcionadas
respectivamente a cada tema de pesquisa, formando apenas a contextualização
necessária para desenvolvê-lo; em Conservação de alimentos nos sertões do Seridó
(p. 49), vemos a mesma preocupação de explicar o espaço, sua história e
habitantes, mas concentrando-se em apenas seis páginas cujo maior mérito pode
ser observado na descrição do caminho de Natal até o sertão.
Visto isso, o escritor separa o rastro dos índios, a terra povoada pelo gado
e o crescimento da “lavoura-dinheiro” de tal forma que aparecem informações no
ensaio da caça que foram desconsideradas em outras obras. O primeiro exemplo
ocorre trazendo as únicas referências aos holandeses em toda a coletânea:
De primeiro, só quem fazia rastro de gente na caatinga do Seridó era pé de
caboclo brabo.
117
Terminada a guerra com os Holandeses (1654) a Capitania cuidou de
reorganizar sua vida econômico-administrativa, desmantelada na luta de
quase uma geração. A faixa litorânea, na posse do branco, de ano para ano
se alargava, com a penetração dos criadores – saindo dos tabuleiros
arenosos do litoral para pisar o chão mais duro e barrento do agreste e
sertão – “caçando” índios para as senzalas e assentando os paus de
porteira dos primeiros currais. (FARIA, 1980, p. 159)
Isso expande o sentido do “caboclo brabo” tantas vezes mencionado, pois
traz para a memória dessa região os conflitos entre colonizadores e povos nativos:
Em março de 1695 o bacamarte cuspia o trovão da morte, muito tacape de
jucá ainda rachava quengo de português e já o Senado da Câmara de Natal
informava os Capitão-Mor que as terras da Capitania estavam todas
doadas... Até o ano de 1700 ainda havia restos de briga é que diz L. C.
Cascudo – História do Rio Grande do Norte. (FARIA, 1980, p. 160)
Só depois de anotados os conflitos que, em Os currais, discute-se a base
de descoberta do interior pelo trato com os animais:
Daí para diante, a estaqueada dos currais e o rastro-fêmea do boi explica o
povoamento do Seridó. Um touro e três novilhas, diz Nunes Pereira,
representavam a base do pastoreio. De que raça e qual a verdadeira
procedência dos primeiros animais – sabemos muito pouco […] viam-no
crescer e multiplicar-se biblicamente o que o sertanejo cedo compreendeu,
sentenciando: “bicho que mija pra trás é que empurra o dono pra diante”.
(FARIA, 1980. p. 160)
E novamente Lamartine introduz algo novo, passando da atividade
econômica do ciclo do couro aos seus trabalhadores. Discute o convívio entre
senhores e escravos, o que não ocorre em outros trechos de Sertões do Seridó:
Viviam assim os primeiros criadores apojados em pleno ciclo do couro, onde
o trabalho de todos os dias mais argamassava as relações entre o
marinheiro colonizador e os primeiros escravos levados para a vaqueirice.
Cedo tomaram das mesmas véstias. “Sinhô” e escravo campeando juntos,
correndo os mesmos riscos – negro correndo ao boi e “sinhô” fazendo
118
esteira no gesto de ajuda […] (FARIA, 1980, p. 161)
“Sinhô” derrubando o negro enchocalhado. “Sinhô” segurando o cabresto
para negro esbrabejar poldros. Um segurando o laço para o outro desleitar a
novilha parida. Tomando coalhada da mesma terrina, bebendo água da
mesma borracha e comendo paçoca do mesmo alforje. Negro na trilha e
“sinhô” cortando-o-rastro da onça que “estragava” a miunça e – quando
acuada na furna – negro “alumiando” com murrão para o outro atirar. Negro
no cabo da zagáia e “sinhô” no coice do bacamarte boca de sino. Negro
novo, afilhado do “sinhô”. Negro velho fazedor de meizinha pra curar dodói
de sinhozinho. (FARIA, 1980. p. 162)
Inclusive, faz mais do que simplesmente colocar as relações sociais em
perspectiva, pois chega a contestar uma das obras mais influentes na construção de
nossa identidade nacional:
A maior incidência de pardos, 44%, pode ser traduzida como uma forte
miscigenação dos habitantes seridoenses, ao contrário do que se dizia, em
face da maior austeridade dos hábitos sertanejos. Doutro jeito, como
explicar essa maioria? Crias de negro com índio ou mesmo do branco com
índio, arroladas simplesmente como “pardos”? Importados do eito dos
engenhos de açúcar do Litoral? Ou pardos gerados nas pequenas senzalas
sertanejas contradizendo as observações feitas por Gilberto Freire, em
Casa Grande & Senzala, citando Gustavo Barroso – ambos mostrando que
habitualmente, no sertão, o rapaz somente vinha “a conhecer mulher tarde,
e quase sempre pelo casamento”. (FARIA, 1980. p. 162)
Não bastasse essa contribuição para a História, ainda relata os efeitos da
pecuária no estado que, interferindo na vida dos fazendeiros, seria a razão primeira
de alguns sobrenomes potiguares:
O gado se multiplica e, prosperando, também fazia prosperar o dono, que
chegava a acrescentar o nome da fazenda ao seu, de família. Que agora
nos vem a lembrança, como exemplo, Leandro Gomes de Faria das
Aroeiras, Joaquim Gomes do Queimado e, mais para trás, Antônio de
Azevedo Maia, proprietário da Fazenda Conceição. Que mais tarde virou
lugar – hoje sede de município. Outra que deve ter vindo na mesma trilha é
Carnaúba dos Dantas – reflexo do predomínio da família Dantas... (FARIA,
119
1980, p. 163)
A visão do espaço ter sido formado no século XIX pelos currais fica,
assim, bem mais evidente. E, logo em seguida, pela sequência d'A raiz de algodão,
nos vemos diante da mudança em curso, explicando os motivos da troca pela cultura
do “ouro branco” e natureza da planta:
Mais tarde, a economia pecuária que levou o homem ao Seridó foi perdendo
terreno e valor econômico para o algodoeiro arbóreo, de fibra longa, mais
conhecido por algodão mocó (Gossypium Purpurascens Poir). Quanto à
verdade sobre a sua origem é, ainda hoje, história a que falta uma banda e,
justamente, a banda do pé. (FARIA, 1980, p. 164)
Fernando Melo do Nascimento, estudioso do algodão mocó, afirma que a
origem deste ainda “permanece no terreno de pura especulação” admitindo
a hipótese de ser o resultado de um cruzamento de diversas variedades. No
trabalho, onde coletamos estas notas, transcreve ele idêntico parecer do
agrônomo especialista em genérica do mocó – Carlos Faria e do Prof J. G.
Duque […] (FARIA, 1980, p. 165)
Além de complexificar o termo “lavoura-dinheiro” e alastrar os motivos da
diminuição da pecuária, chega a acusar o desaparecimento de tradições do ciclo do
couro:
A valorização, como mercadoria exportável provocou o aumento progressivo
da área de cultura, reduzindo o gado aos cercados de pastagens – cercas
de arame farpado e pedra – que mataram as festas de apartação do
rebanho em comum, frustrando barbatões que, por certo, inspirariam muito
A.B.C. De boi e cavalo famoso... (FARIA, 1980. p. 165)
Também relata como a modernidade arrancou das mãos do sertanejo o
trabalho, tomando o espaço das antigas moendas e dando passagem às empresas
de fora:
De lá para cá é que a usina engoliu os pequenos descaroçadores. O
espinhaço mais taludo e o pé-redondo mais ligeiro do caminhão tangeram das
120
estradas as tropas de burro. No faro vieram as firmas “galegas” com seus
classificadores puxando fibra e cotando preços, comprando algodão na folha,
espremendo a semente para tirar óleo, embarcando lã – no quadro que o poeta
OTHONIEL DE MENEZES (Sertão de Espinho e de Flor) rimou:
“Arrieiro, perdeu o emprego,
Argudão, é dos galegos.
Pau é figo bejamin...
Cardeiro, crôa-de-frade,
é luxo lá na cidade,
enfeita jarro e jardim...” (FARIA, 1980, p. 166)
E termina o ponto 3 revelando o fim que levou o mocó por causa da
plantação irregular:
A fama da fibra longa do algodão mocó correndo mundo, arregalando os
olhos do comércio. A boca mais escancarada da usina engolindo também as
safras das ribeiras vizinhas e até dos municípios de fora do Seridó.
Passando nas máquinas toda qualidade de algodão, espalhando semente
ruim, num processo criminoso de castear p trabalho de tantos anos da
natureza.
A fibra do mocó, de safra para safra, mais perdia a sua uniformidade. A
planta que pela sua perenidade chegou a ser bem de raiz, também
minguava sua vida. (FARIA, 1980, p. 166)
De mesmo modo, em O sertão de agora o escritor não se restringe à
anotação dos tempos serem diferentes e muito ter desaparecido, e tece uma
imagem desse sertão de ontem e como sua dimensão expandiu ao ponto de alterar
a feição do Seridó:
Cerca de pedra, pé-de-pedra e arame ou madeira – onde havia fartura de
pedra; pé de xiquexique e arame, onde o espinho tomava lugar da pedra –
crescendo, se espichando, limitando pastos e retalhando quinhões de
herança. Os boqueirões dos riachos tomados por barragens – represando
água, criando peixes e vazantes. A tradição do queijo de manteiga ou Seridó
se esparramando pelas ribeiras. Os bangalôs crescendo nas ruas
sertanejas – ruas já calçadas de pedra e clareadas a eletricidade;
121
barulhentas pela boca “estrangeira” do rádio. As estradas ganhando o chão
das caatingas – zoando caminhões. Caminhão que carregava algodão e
depois minério, agora também carreando “araras”. O sertão crescendo e se
descaracterizando, parecendo hoje ter vergonha de ontem... (FARIA, 1980.
pp. 168 - 170)
E em consequência do percurso desses quatro pontos da etapa inicial do
ensaio, a impressão sobre o assunto, outras quatro vezes desenvolvido em poucas
páginas (ou parágrafos), ganha profundidade e campo mais largo. São perceptíveis
as propriedades típicas da redação lamartineana equilibrada entre manifestações
pessoais e considerações de pesquisador, auxiliando no andamento da introdução.
Traços da memória, testemunhos, contemplação pessoal do assunto e uso do tempo
em referência à própria experiência: há equilíbrio entre diversos fatores e de forma
análoga aos textos precedentes, residindo sua inovação no ritmo demorado.
Inclusive, a divisão seguinte, O mundo seridoense (p. 171), continua pelo
mesmo procedimento com uma descrição mais precisa sobre o espaço. Com
exceção dos três pontos iniciais, que reincidem quase inalterados em todos os
ensaios de Sertões do Seridó, de O chão e os matos (p. 172) adiante, a
contextualização escapa à esfera meramente introdutória.
Começando pela flora regional, por exemplo, usa citações de Euclides da
Cunha, o testemunho de um vaqueiro experiente, versos de João Martins de
Athayde, um dizer popular, apontamentos do agrônomo Fernando Melo do
Nascimento e a avaliação do professor J. G. Duque para explicar o clima, topografia
e vegetação. Fora o número de recursos e suas naturezas diferentes, a narração do
ensaísta sobre as mudanças de estação demonstram certo requinte linguístico
observado geralmente nos trechos mais criativos de sua redação:
Logo nas primeiras chuvas a vegetação despida se veste de uma linda
folhagem – a rama, ficando o chão atapetado de ervas rasteiras – a
babugem. Vestido de gata borralheira que tem a duração efêmera de
poucos meses […] Passado o inverno a folhagem caduca amadurece e cai,
deixando apenas galhos tortuosos e nus apontando para os céus – o
cinzento dominando a paisagem de um quadro geográfico e dantesco, em
que a verdadeira moldura são os limites ecológicos. Mas o sol, que a tudo
esturrica, não conseguiu, ainda, secar a coragem estóica do sertanejo que
troçando, define, então, o meio:
122
– De verde só ficou pano de bilhá, papagaio e a bandeira da Prefeitura...
(FARIA, 1980, p. 173)
Essa engenhosidade segue seu curso com Os invernos (p. 174), em que
a escassez das chuvas é aprofundada não por outros dados estatísticos além dos já
revistos nos estudos anteriores, mas pelo falar do sertanejo seridoense:
A chuva é o assunto de maior importância e constância nas palestras
sertanejas, onde é traduzida na medição oral das expressões regionais. E
dizem por aqui assim:
– Uma chuvinha que mal dei prá apagar a poeira (chuvisco que apenas
umedeceu a camada mais superficial do solo).
– Chuveu que deu bem prá corre os duros (a água correu nos lugares de
solo mais compacto).
– … correu moles e duros (a água nosl ugares arenosos e argilosos).
– … mal deu prá corrê as goteiras (o mesmo que mal deu prá apagar a
poeira ou, quando muito – corrê os duros).
– Chuva de imendá as goteiras (chuva muito grossa, fazendo correr os
riachos, juntando água). (FARIA, 1980. p. 174)
É justamente utilizando discursos do meio, ou que sejam pelo menos
coerentes com seu contexto, que passagens mais áridas ganham vigor, e números
são complementados pelo que não dizem, como no ponto “Kalendário” das secas (p.
175):
O desembargador Felipe Guerra (Secas do Nordeste), um dos homens de
maior espírito público do Nordeste, enumera em resumo histórico,
abarcando os anos de 1559 a 1942: “uma seca de 5 anos, cindo secas de 3
anos, oito de 2 anos e dezesseis de um ano, a saber: 1559, 1564, 1614,
1690-2, 1723-7, 1744-6, 1766, 1777-8, 1808-9, 1814, 1817, 1825-6, 1833,
1837, 1844-5, 1860, 1868-9, 1877-9, 1885, 1888-9, 1891-2, 1898, 1900,
1902-4, 1907-8, 1915, 1919, 1930-2 e 1942”.
De 1942 para cá, ainda na era de quarenta, tivemos: 1943 e 1946; na era de
cinqüenta: 1951-3, 1957 (parcial) e a deste ano de 1958.
Resta-nos a resignação sertaneja de transferir a esperança para o ano
seguinte e entupir os ouvidos ao canto de Cassandra da A Profecia da
Garça Misteriosa:
“– No fim de cinqüenta e nove
123
Quem for vivo não se cala
O mundo vai dar um tombo
Que toda a terra se abala,
Se ver neste tempo gasto,
Muito pasto e pouco rastro,
Muita sala e pouca fala...” (FARIA, 1980, p. 175)
Assim, Lamartine progride alternando entre redação mais e menos
objetiva, dando significado a dados com versos, observações pessoais, trechos de
algum especialista, ou mesmo pela memória. Este último recurso aparece não
apenas vinculado ao escritor, mas pela vivência das “testemunhas” de cada assunto
reunidas ao longo do ensaio, como em O caminho das águas (p. 175), que termina
com explicações sobre a cultura em vazantes ancoradas em dizeres dos “mais
velhos”, de Manoel Dantas e de Juvenal Lamartine (pai do autor):
Dizem os mais velhos e conta Manoel Dantas, Homens de Outrora, ter
nascido da lição da fome da seca dos setes (1877-9), o aproveitamento do
leito dos rios para a cultura de vazantes. Juvenal Lamartine (1874-1956) nos
dizia que as primeiras vazantes do Seridó foram plantadas no Poço do
Barbosa, no rio Acauan (Acarí). O sucesso da experimentação logo se
alastrou por toda a ribeira e hoje, os rios secos do Seridó, deixaram de ser
meros “caminhos da água” para se vestir de rama de batata e feijão,
riscando linhas tortas e verdes na paisagem esturricada. A contribuição
dessa nova forma de trabalho tem se traduzido de maneira positiva para o
Seridó; não só participando da panela do sertanejo como, pelas ramas e os
refugos das batatas, dando sustância e até cevando gado na época das
secas. Mais convincente, talvez, seja o resultado estatístico do S.E.P. Do
Ministério da Agricultura, que diz no ano passado (1957) ter o Seridó
produzido 14517 toneladas de batata doce – o segundo maior produto
agrícola em valor da região – embora grande parte dessa safra deva ser
repartida também com as vazantes dos açudes. (FARIA, 1980, p. 177)
Quando não alterna exposições práticas com discursos alheios,
percebemos soluções na própria escrita ensaística que se adensa, aproximando
algumas passagens da criação literária. Ocorre principalmente em trechos
descritivos, operando tanto nos níveis lexicais quanto semânticos, o que
observamos em As serras e os quatro aceiros (p. 177):
124
O trabalho enfiado do vento e da água através do tempo – o vento
açoitando a uma velocidade de 2 a 20km/hora, mediu J. G. Duque no
estudo citado, e a água lambendo a nata da terra cada vez mais rasa,
magra e pelada pelo machado de uma agricultura de coivara – vão
descobrindo rochas ciclópicas que reduzem a superfície de infiltração do
solo e mais irradiam calor e luz, contribuindo para que a brisa na estação da
seca seja mais um bafo morno que alentador. (FARIA, 1980. p. 177)
No exemplo, escolhas como “a água lambendo a nata da terra” e “rochas
ciclópicas” saltam aos olhos do leitor como formações de sentido incomuns no texto
lamartineano, pois contrastam com a linguagem mais direta de sua redação. São
elas também acompanhadas de imagens construídas pela ordenação da frase, o
que percebemos em “a nata da terra cada vez mais rasa, magra e pelada pelo
machado de uma agricultura de coivara.”, que coloca em relação sugestiva o
desgaste do solo e a rarefação da flora pela ação (bruta) do homem. Logo vemos
que a combinação desses recursos e de outros com atuação semelhante provoca
em boa parte o equilíbrio dos trechos mais extensos sem a presença de citações.
Em Dinheiro de pedra (p. 178) a linguagem é mais uma vez apurada e
chega a destacar-se como narrativa à parte. Inicia com a possibilidade de leitura da
história passada entre Juvenal Lamartine e José Augusto Bezerra de Medeiros em
1907, pela observação deste de que as terras do sertão só seriam ricas quando
suas pedras dessem dinheiro. Então, no parágrafo seguinte e já na década de
quarenta, a exploração bélica da Xelita alavanca a mineração no estado e, de
avanço em avanço, chegamos ao desaquecimento do mercado em 1958.
Finalmente, o autor conclui com a observação de que “quando as nossas pedras
forem industrializadas no nosso chão – seremos menos pobres...” (FARIA, 1980, p.
179), fechando o percurso cronológico de mais de meio século com a reformulação
da frase de José Augusto.
Com isso, todo o trecho segue a possibilidade de riqueza do sertão
potiguar, mas salta entre três formulações: seremos ricos quando as pedras valerem
dinheiro, as pedras se tornaram rentáveis, e teremos algum dinheiro quando nós
mesmos processarmos os nossos recursos minerais. Sua composição centrada
nessas mudanças é ainda apoiada pelo título do ponto, “Dinheiro de pedra”, que
125
incentiva, além da conotação fácil de “fonte de riqueza”, uma interpretação da
dificuldade do negócio no estado.
Por essas características que escapam à escrita meramente informativa,
e que ajudam o texto a atingir um nível de trabalho estético com a linguagem,
compreendemos que esse é mais um caso de “desvio longo” do autor que permite
ser destacado como conto (ficando mais evidente se considerarmos sua economia
de linguagem ao abarcar pontualmente quase 60 anos de história). Inclusive,
apresenta visivelmente unidade de sentido e se integra no ensaio de forma diferente
dos outros pontos, mais interdependentes e, de forma geral, menos elaborados.
Do ambó ao Itans (p. 179), por sua vez, volta à escrita ensaística mais
aberta, empregando os recursos que se fazem necessários ao longo de seu
desenvolvimento. Vai da origem imprecisa do represamento de água na região às
grandes obras governamentais, o que, a princípio, não se diferencia de trechos do
ensaio sobre os açudes ou dos breves comentários encontrados nos demais textos
da coletânea. Sua originalidade encontra-se em outro desvio que trata sobre a
importância do jumento para o sertanejo:
Só mais tarde, quando os primeiros jumentos vieram agüentar no espinhaço
a economia agrária nordestina e o couro do boi passou a ser mercadoria
exportável, é que caiu em desuso o arrastão.
O sertão tem para o jumento uma dívida maior que a do ciclo da cana para
com o braço escravo. É o animal que mais compartilha da fome sertaneja
nos anos escassos e também o último a ser acudido, pela confiança que
têm na sua quase ilimitada sobriedade. Magros, no couro e no osso,
abandonados ao mormaço, se deixam ficar cochilando, como a poupar
sustância, mastigando basculhos e até o próprio estrume – num ciclo vicioso
que o agarra desesperadamente à vida. Daí a irreverência no dizer
sertanejo: “... em tempo de seca só escapa padre sacerdote e jumento”.
Paradoxalmente, guardam certo respeito pelo animal. Na seca de 1942,
sugerimos a um bando de retirantes abater para comer um jumento velho,
aleijado e gordo que vivia desprezado no pátio da fazenda. Repeliram a
idéia surpresos e até indignados em admitir-se “comer a carne de um bicho
que carregou Nosso Sinhô”. Argumentamos que outros animais também
conviveram com Cristo e nem por isso eram preservados pelo homem.
– Mas em nenhum Ele deixou a marca.
– ?
– A lista que tem na cruz foi por onde escorreu o mijo do Menino Deus...
126
(FARIA, 1980, p. 180)
As observações que faz, reafirmadas na história com os retirantes,
igualmente se aproximam da escrita literária. A breve narrativa precedida pela
explicação da natureza do animal possui estrutura bastante semelhante a de um
conto, e só permanece na margem, a nosso ver, por sua unidade não ser garantida:
é ainda parte de um comentário sobre os animais utilizados no processo de
açudagem, e não chega a formar célula independente, apenas encaixada na linha
textual principal. Seu intervalo nos alimenta com uma curiosidade, logo retornando
às obras do DNOCS: “Jumento no Nordeste é assunto para encher um livro – o livro
que o nordestino ainda não escreveu. Mas, voltando à conversa dos açudes [...]”
(FARIA, 1980, p. 181).
O escritor volta e se afasta algumas vezes do tema, juntando nos espaços
a luta dos trabalhadores de pedra, a primeira escrita da biografia de José Lourenço,
o mestre de parede, e uma volta a infância que termina a segunda etapa do ensaio
com versos quase calados pelo tempo:
O açude logo passou a ser um acidente indisponível à vida e à paisagem
sertaneja. Crianças ainda, mal correm as goteiras das primeiras chuvas,
ganham os pátios das casas, a atalhar a água argamassando com as mãos
o barro das tapagens de brinquedo. E qual o menino sertanejo que não
jogou canga-pé nos banhos de açude, nem deu mergulhos de tinir os
ouvidos, estumando pelo desafio do rebolo atirado a água?
“Galinha gorda?
Gorda é ela.
Vamos comê-la?
Vamos a ela...” (FARIA, 1980, p. 182)
A terceira divisão, A caça nos sertões do Seridó (p. 183), é a que trata
especificamente do tema proposto no estudo. Parece-nos que as páginas
precedentes foram deliberadamente poupadas dos trabalhos da caça por esse ser
um dos primeiros trabalhos publicados pelo autor. Há, portanto, uma necessidade
conflitante de cobrir todo o silêncio sobre a terra antes de detalhar parte de sua
cultura.
Visto isso, encontramos quatro pontos organizando a caça entre a
127
Indumentária (p. 183), os Instrumentos e apetrechos (p. 188), os Métodos de caça
(p. 190) e suas Crendices (p. 207), que apresentam quase a mesma organização
dos outros ensaios. Sua diferença reside na ordem entre as “ferramentas” e os
“métodos”, pois geralmente se prioriza o segundo grupo. Entretanto, em nada o texto
é prejudicado por isso. De fato, a apresentação dos instrumentos de caça antes das
estratégias apenas sugere o caminho pelo qual o ensaísta progrediu em suas ideias.
Sendo assim, logo no primeiro ponto percebemos que seu avanço excede
o título e transita entre a história da caça e de figuras míticas dos caçadores de
onça. Marcando a natureza das veste em parágrafos curtos em sua primeira e
penúltima página, todo o restante é tomado pelas mudanças históricas e,
principalmente, pela biografia dos atos de bravura de Miguelão das Marrecas, José
Gomes da Trindade Templo de Maria e Cazuza Sátiro.
Após uma contextualização de que tudo começou pela defesa da criação
e a necessidade de buscar no mato alguma rês fugida, vai-se aos caçadores apenas
para chegar aos mais notáveis:
Os caçadores de onça, porém conquistaram fama imorredoura. No Rio
Grande do Norte, o Miguelão das Marrecas, era sempre lembrado toda vez
que surgia um carniceiro a desfalcar os rebanhos.
“O Miguelão das Marrecas
Veio da Serra do Doutor,
Chamado por Joaquim Teles
Para ser seu morador,
Porque perseguia onça
Como heróe lutador.”
“Em novecentos e quatro
Miguelão andava armado
De agalha, rifle e punhal
Com um cachorro aprovado;
Seguiu para Serra Negra
Por causa de um chamado...” (FARIA, 1980, p. 184)
À imagem grandiosa do guerreiro, segue-se em quase anonimato a
recordação de outro: “L. C. Cascudo lembra o nome de José Gomes da Trindade
Templo de Maria, falecido no Caicó em 9-8-1898, com 84 anos, de quem diziam a
boca pequena haver caçado mais de 80 onças...” (FARIA, 1980, p. 184). Um
128
estabelecido pela fama em cordéis e outro na destreza revelada pelo número de
prezas abatidas, mesmo assim ocupam espaço dos “outros caçadores” de feras,
pois aquele tomado como exemplar é Cazuza:
[…] Contudo, o nome mais famoso das ribeiras seridoenses, foi, sem
dúvida, o do velho Cazuza Sátiro (José Sátiro de Souza, 1829-1911).
Abastado proprietário no vizinho município de Patos (PB), a poucos
quilômetros da fronteira com o Seridó (serra dos Troncos), devotou toda a
sua vida a perseguir onças, atendendo chamados de muitas léguas sem
aceitar qualquer remuneração – apenas pelo prazer de ouvir um cachorro
chorador em noite de lua numa guela de serra e os esturros do gatão nas
furnas. Caráter forte, reto e modesto. Cultivava duas manias: esquipar
cavalos e criar cachorros onceiros (um dos seus cães, Labugão, atravessou
as portas da popularidade emparelhando a Cazuza). (FARIA, 1980, p. 184)
Esse “cavaleiro errante” dos sertões é retratado além da esfera de
qualquer desvio, exemplo, ou comentário, e termina apresentado por Lamartine
como a própria matéria da tradição que expõe. Sua idealização se concentra entre
trechos do cancioneiro popular e episódios expostos pelo ensaísta, e pode ser
dividida por três momentos: a apresentação, os fatos principais, e a morte do
caçador com o “encantamento” da lenda. O primeiro momento pode ser lido da
introdução sobre Cazuza (supracitada) seguida da descrição física do sertanejo:
“Cazuza era carrancudo
além de ser tão barbado
o vento abria o cavanhaque
um molho pra cada lado
quando ia galopando
em um cavalo montado.” (FARIA, 1980, p. 184)
O segundo é encontrado entre as páginas 185 e 186 com todos os
acontecimentos relativos ao seu gosto pelos cachorros:
Sobre a personalidade desse homem há uma fieira de casos que constituem
algumas das mais encantadoras páginas da tradição oral sertaneja:
“Quem perguntasse pela saúde
Da família do Capitão,
129
Ele não respondia,
Nem lhe prestava atenção.
Se falasse nos cachorros,
Ganhava mais atenção.
Neste tempo o Cazuza
Deixa preparados
Uns vinte e cinco cachorros,
Todos bem exercitados,
E só com carne de boi
Eram os cachorros tratados.” (FARIA, 1980, p. 185)
Cazuza costumava – como a maioria dos criadores de sua época – comprar
bois no sertão do Piauí para refazer. De uma feita contratou, naquele
Estado, um vaqueiro ganhador que possuía um cachorro branco de cabeça
preta, chamado Cambráia. Em um dos campos para juntar a boiada,
Cambráia matou uma onça. Cazuza verificando o trabalho do cachorro
procura logo adquiri-lo ao que o vaqueiro refuga, alegando que ainda na
semana anterior o bichinho havia salvo sua vida em luta contra uma pintada.
Tratando-se de um rapaz pobre, cuida seduzi-lo com uma quantia avultada,
no que é, novamente, rejeitado. Dobra a proposta e, de lance em lance,
termina oferecendo todo o dinheiro que conduzia e mais a burra de sua
sela:
– Me sujeito a voltar pra minha terra a pé, puxando Cambráia pel'uma
corda.
– O sinhô tá vendo a terra e o céu?... Pois pode ter dinheiro pra fazê uma
ruma que vá batê nas nuvem; mas não tem dinheiro que pague Cambráia...
(FARIA, 1980, p. 186)
São nesses trechos que a história do caçador cruza mais claramente a
fronteira da ficção pela proporção desmesurada de Cazuza pelos cachorros. Sua
imagem totalmente comprometida com sua “luta” é ainda mais ressaltada pelo
próprio escritor ao organizar o final do trecho em forma de conto, facilitando a
adesão da dimensão fantástica à histórica.
Sua idealização como caçador excepcional daquela época ainda recebe
um alicerce final, com o seu “encantamento” nos últimos versos quando, já
aposentado, o homem dá lugar ao mito:
130
“Em novecentos e quatro
Cazuza tinha encostado
As armas de matar onça
Estava velho e cansado
Findo doente de asma
Pelo serviço pesado.
Morreu o Cazua Sátiro
Nosso herói do sertão,
O grande matador de fera
Limpo na sua missão,
Merecia uma státua
Com as agáias na mão.” (FARIA, 1980, p. 187)
Assim, o decurso de sua vida compreende nesse ensaio todo o “período
áureo” da caça nos sertões do Seridó, pois com sua morte logo o discurso elevado
transforma-se na verificação de que “viver da espingarda” é atualmente
insustentável. Por diminuição dos recursos em decorrência da caça predatória ou
das reações adversas observadas pela ingestão de “comida braba”, Lamartine
retrata-a como “ocasional”.
Apenas com essa contextualização é que, enfim, fala-se sobre as
ferramentas e roupas do caçador:
Indumentária – É a roupa usada para o trabalho; alpercatas de rabicho, faca
à cintura (antes, a clássica faca de ponta nordestina, hoje a peixeira – mais
cortante, malvada e de menor valor; chapéu de couro ou palha de carnaúba
e badaneco de couro ou mescla onde conduzem os apetrechos da
espingarda além do arremedo de nambu, fumo de rolo, cachimbo ou
mortalhas para enrolar os cigarros e o artifício ou papafogo. Quando a
excursão se prolonga por mais de um dia costumam levar rapadura, farinha,
carne de sol e café para o café de pedra. A água é conduzida numa cabaça
de colo (Cucurbita lagenaria Linn. Da fam. das Cucurbitáceas) ou borracha
presa à cintura. Se por qualquer eventualidade findasse a água, recorriam
às raízes do umbuzeiro ou ao caule da mucuna. (FARIA, 1980, pp. 187 -
188)
Esse último parágrafo, que representaria o único trecho estritamente
131
coerente com o título de seu ponto, serve como introdução ao assunto seguinte.
Depois da história sobre a caça e os caçadores, o segundo ponto, Instrumentos e
apetrechos (p. 188), resume o que se tem registro das armas utilizadas na região,
ocupando suas redondezas com crenças e a memória da região:
As superstições ligadas aos instrumentos de caça, provavelmente,
comportariam uma pesquisa detalhada no sentido de identificar suas
origens. Desde a arma mais primitiva, a pedra, rebolada sem auxílio de
qualquer instrumento que os meninos sertanejos cospem para obter uma
pontaria certeira – às clássicas baladeiras de matar passarinho. Baladeiras
de ganchos (forquilhas) mossados – calendário dos pássaros mortos.
Menino comendo fígado cru de beija-flor e melando de sangue o gancho da
“arma” para não errar pedrada. Qual o menino sertanejo que não passou por
esses testes?...
as armas de fogo detêm, naturalmente, maior acervo de tabus. Assim é que
atirar em urubu ou consentir que alguma mulher pegue na espingarda, são
motivos suficientes para inutilizá-la, transformando-a de “chumbo frio” em
“chumbo quente”. E para justificar o preceito alegam que se depois de atirar
em urubu soprar a boca da arma, correrá água pelo ouvido da mesma...
(FARIA, 1980, p. 188)
Se observadas com cuidado, às definições de cada item prosseguem
notas gerais sobre o seu impacto na cultura seridoense: cercanias maiores no
campo dos rifles e espingardas, e lugar secundário, por exemplo, para a funda,
relegada às plantações como modo de espantar animais daninhos. Seguindo essa
lógica, o ponto seguinte, Métodos de caça (p. 190), torna mais evidente a diferença
de detalhamento entre os modos mais e menos comuns, influenciados pelo caráter
mais narrativo do esclarecimento dos seus processos.
Já presente na própria tradição contextualizada pelas biografias dos
caçadores ilustres, a primeira macrodivisão dos métodos, Por espera (p. 191), inicia
pelo uso de cachorros:
A caça com o auxílio do cachorro, nos sertões do Seridó, acreditamos não
mostrar ainda as caraterísticas rígidas da cinegética moderna que
sistematiza cães em caça-tiro e caça-presa. Lá uma vez perdida, caçadores
pracianos, com armas de cartucho e cachorros chamados perdigueiros,
pisam a caatinga. No comum, a caçada matuta se faz pelo rastejamento,
132
perseguição e morte da caça. (FARIA, 1980. p. 192)
Além da explicação de cada passo, o autor se detém na escolha do
animal, que aparece envolta de importância igual ou maior:
Como primeiro cuidado aconselham furtar o cão, ainda novo, porquanto
cachorro roubado costuma dar para bom. No exterior do animal, constitui
bom sinal:
a) As unhas dos pés e das mãos de cor uniforme.
b) O céu da boca de cor preta.
c) Não gritar quando suspenso pelo couro do cangote.
d) Ser biqueiro.
e) Quando pizunho, acua lobisomem.
f) Os de pelagem rajada costumam ser reimosos e os brancos,
esmorecidos.
g) A cauda fina constitui bom sinal e melhor ainda quando enrolada para a
direita; sendo “as esquerdas” o cachorro tem dias, i.é, nem sempre presta.
h) Cachorro de ânus grande é corajoso.
i) Mas a melhor característica é mostrada pelos cabelos debaixo do queixo:
um cabelo, é muito bom; 2 é bom; 3 é sofrível e 4 não presta. (FARIA, 1980,
p. 191-192)
Dentre os animais utilizados, o autor apresenta somente um segundo
caso em comentário rápido: “Alguns falam na usança do furão (Grison vuttatus)
amestrado – à guisa da lendária falcoaria – para desentocar pequenos roedores...”
(FARIA, 1980, p. 193), o que evidencia ainda mais o contraste entre os dois.
O que segue desse momento em diante é a presença cada vez maior do
caçador, surgindo pelo método de rastejamento (p. 194):
O sertanejo seridoense, pela significação de uma vida mais achegada à
terra é, mais das vezes, em grau de mestre ou de aprendiz, capaz de “tirar
um rastro”. […] Perspicazes observadores, nada lhes escapa ao olhar. Aqui
é uma pequena pedra revirada da “cama” – ali uma imperceptível depressão
do solo ou um graveto partido: adiante, os pelos do animal que ficaram
presos aos galhos das plantas. Quando o chão não lhes oferece indícios,
apelam para os matos – rastejar no ar, observando os pontos de atrito dos
ramos que, com a passagem da caça, mudam o contato. (FARIA, 1980, pp.
194 - 195)
133
Esse terceiro método é que comporta a maior parte dessa etapa do
ensaio, sendo enriquecida de várias histórias que demonstram a perícia dos
rastejadores. Entre Câmara Cascudo, Henry Koster, Gustavo Barroso e até mesmo
Voltaire, Lamartine elenca exemplos quase mágicos da habilidade de saber
aparência, caminho percorrido e local atual da caça, mas é com o exemplo
encontrado em Sarmiento, do rastejador Calibar, que consegue inserir
definitivamente o tipo tratado no universo maravilhoso:
[…] Contam-se dele que, durante um viagem a Buenos Aires, lhe roubaram
uma vez seus arreios de gala. Sua mulher tapou o rastro. Dois meses
depois, Calibar regressou, viu o rastro já apagado e imperceptível a outros
olhos, e não falou mais no caso. Ano e meio mais tarde, Calibar caminhava,
cabisbaixo, por uma rua dos subúrbios, penetra numa casa, e encontra os
seus arreios, enegrecidos e quase inutilizados pelo uso. Havia encontrado o
ladrão depois de dois anos! (SARMIENTO Apud FARIA, 1980, pp. 197 -
198)
Com histórias que pertencem tanto à dimensão real quanto a fictícia, A
caça nos sertões do Seridó é, dos textos escolhidos para a coletânea, o que mais
aproxima a escrita lamartineana da puramente literária, pois concentra-se em figuras
exemplares que, além de integrarem trechos do cancioneiro popular, trazem o
próprio desenvolvimento textual para a fronteira entre o estudo e criação ficcional. É
por isso que os caçadores de onça e os rastejadores conseguem amparar o tema e,
subordinando-o, tomam o primeiro plano nas alternâncias entre suas narrativas.
Não é de se estranhar que, terminadas as aparições desses personagens,
o texto volta ao descritivismo temperado por observações pontuais e algumas
citações de outros escritores, recorrendo à redação equilibrada entre estilo sério e
desvios criativos que parece conter o modo mais comum da escrita do autor.
Caracteriza objetos e métodos à proporção de sua importância e
recorrência no Seridó, como que seguindo as exigências do tratamento cultural de
cada assunto. Entretanto, juntando o meio material, as memórias, interferências
pessoais e criativas, parece mesmo assim mais ausente em comparação com os
intervalos relativos às aparições célebres.
De acordo com o que já observamos, percebe-se uma importância
134
norteadora não apenas nos testemunhos, mas nas “terceiras pessoas” de cada
discurso, o que só se observa com tal relevância nesse último texto. Distinto da
figura prioritariamente anônima dos trabalhadores nos açudes, dos artesãos que
conservam o alimento, dos caçadores de abelhas e dos grupos de pesca, o
sertanejo aqui retratado pertence à casta dos heróis regionais. Seus atos de bravura
enganam a morosidade relativa que toma conta do Seridó e tornam a experiência
individual em memória coletiva.
O texto ainda corre pelas Crendices (p. 207), a título de curiosidade, em
que dá novo espaço para a cultura de caça com cachorros e, pela primeira vez,
relata a presença da Caipora no sertão. Identifica os traços da “mãe do mato” e sua
influência mística, mencionando uma história, contada como verídica por um
informante, sobre os poderes da Ruiva:
A caipora às vezes vem disfarçada em outro bicho. Um sertanejo, há muito,
confidenciou-me haver disparado e recarregado a capricho sua lazarina por
quatro vezes em um gavião vermelho: “Olha que não dava 15 braças pra
onde eu estava agachado. No primeiro tiro o bicho se arrepiou e sujou
(defecou) – pensei inté que ia cair. Depois dos quatro, já desconfiado,
rebolei uma pedra e vim m'imbora...” Outro contou-nos haver atirado em um
veado e esse, impassivelmente, vir farejar o pé de pau onde estava trepado.
Astúcias da caipora. (FARIA, 1980, p. 209).
Regressa o autor aos anônimos que compõem o grosso de sua terra, e
faz em E por derradeiro (p. 2011) suas últimas conclusões sobre o desgaste do
sertão na mão do homem, pois: “ Todo mundo sabe tratar-se de problema antes de
tudo educacional. Mas o indiferentismo com que vem sendo relegado faz pensar,
sem qualquer pessimismo, que na pisada em que vamos, o sertanejo herdará […]
um chão sem rastro de bichos […]” (FARIA, 1980, p. 214). Seguem-se notas,
anexos, referências e agradecimentos, e o mais antigo e último texto de Sertões do
Seridó nos deixa com a impressão de eco que se modifica, mais forte em cada
repetição.
135
4.6 Visão geral da coletânea
Terminada a leitura de cada ensaio, podemos, finalmente, elencar suas
características individuais em uma visão ampla e avaliar com maior propriedade até
que ponto o ensaísmo lamartineano invade o terreno literário. Para isso, podemos
organizar o campo global da recepção de Sertões do Seridó em três categorias:
reincidência de trechos, organização e presença de outros gêneros.
Das “linhas orientadoras” na escrita dos cinco ensaios, que nos elucidam
como o autor lida com a oscilação de objetividade, procura se organizar pelo diálogo
e por dados materiais ligados aos temas, e ainda equilibra de formas diferentes a
escrita criativa, aparecem outros níveis de informação que são alcançados com a
leitura integral da coletânea.
O primeiro, e talvez mais evidente, surge pelo “eco” da definição do
Seridó, sua história e seus habitantes. Não é linear sua apresentação, e nosso
primeiro contato é com a imagem d'O açude (p. 23), que gera um deslumbramento
pelo espaço. A prosa poética encontrada nesse trecho é seguida pela escrita mais
séria das hipóteses do início do represamento pelos seridoenses, que se encontram
em constante comparação com a história de outras regiões e povos. Com isso, a
atmosfera criada manifesta mais lacunas em branco, tornando a apresentação
nebulosa.
É no decorrer de Açudes dos sertões do Seridó (p. 17) que a impressão
de unidade é possível. Configurando estudo mais isolado do programa geral de
contemplar o sertão pelas palavras, seu desenvolvimento serve à condição de
recorte e, sozinho, definiria pouco o Seridó, e muito do “sertão de nunca mais”, este
presente nas lembranças do autor.
O mesmo não ocorre em Conservação de alimentos nos sertões do
Seridó (p. 49) que, fazendo uma releitura da organização de Os sertões, assume por
um lado as divisões euclidianas da terra, do homem e da luta, e discorre de forma
mais concreta sobre a região. Porém, exceto pelo aumento de descritivismo e o tom
afastado, Lamartine permanece em um estilo de identificação com a terra. Escolhas
lexicais típicas acusam o espaço do autor sendo o mesmo que está em pauta:
Daqueles mundos brotou o algodão branco-cremoso, fibra de 36/38 mm e
arbóreo – que ainda ontem era bem de raiz nas heranças sertanejas. De
136
semente nua, escura, que é ver o estrume do mocó, donde, talvez, seu
apelido – bem pode se alastrar por imensas áreas de ecologia favorável no
Polígono, de vez que, ao contrário dos competidores, não reclama solo
irrigado para produzir. E a indústria – dizem os economistas – tem fome de
fibras longas. Se assim é, carecemos de que as estações experimentais
não sejam capadas em suas verbas, para que possam oferecer sementes
selecionadas ao fomento e à engatinhante extensão agrícola; e a esperança
de que estas induzam o matuto a cultivá-lo segundo as recomendações
técnicas. (FARIA, 1980, pp. 54 - 55)
Mesmo que o trecho inicie por “Daqueles mundos”, a distância é quebrada
por “carecemos”, não mencionando o vocabulário que indica certa identidade
linguística do autor: “donde”, “capadas” e “matuto”.
O terceiro ensaio, Algumas abelhas dos sertões do Seridó (p. 101),
diminui a contextualização para duas páginas, resumindo a parte não direcionada
para o tema em apenas quatro breves parágrafos:
Dezesseis municípios, ao Sul do Estado, formam a região do Seridó no Rio
Grande do Norte.
Com uma área de 9.386km2, i.é, oito vezes maior do que o Estado fa
Guanabara (1.171 km2) e uma população de 146.293 hab., apresenta o
Seridó uma densidade de 15,6 hab/km2.
A topografia da região é ondulada, devendo a altitude média estar, pouco
mais ou menos, na cota dos 250m. O solo é compacto, raso, erodido e
pedregoso, dificultando o enraizamento das plantas. A vegetação – caatinga
– é espinhenta, arbustiva, rala, dominando as cactáceas e outras formas
xerófilas.
Os invernos são escassos e irregulares, detendo o posto de Currais Novos
a menor média do Estado: 398.3 mm/anuais contra 1.450.2 da cidade de
Natal. (FARIA, 1980. p. 107)
A modificação não é justificada somente pelo fôlego curto do texto, mas
sim por seguir a mesma tendência do primeiro ensaio, e terminar em um meio
caminho entre os dois anteriores. Parece seleciona os dados fundamentais e logo
virar o seguimento para o tema:
Os invernos são escassos e irregulares, detendo o posto de Currais Novos
137
a menor média do Estado: 398.3 mm/anuais contra 1.450.2 da cidade de
Natal.
O gentio que por ali vagava antes do colonizador requerer terras, dela tomar
posse e situar a estaqueada dos currais, já caçava abelhas – verbo
arremedado pelo homem primitivo nos matos dos quatro cantos do mundo.
(FARIA, 1980, p. 107)
Entretanto, sua relevância aumenta ao lermos a introdução do ensaio
seguinte, A.B.C. Da pescaria de açudes no Seridó (p.121):
Abarcam as ribeiras do sertão seridoense, no Rio Grande do Norte, os
municípios de Acari, Caicó, Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá, Cruzeta,
Currais Novos, Florância, Jandim de Piranhas, Jardim do Seridó, Jucurutu,
Ouro Branco, Parelhas, São João do Sabuji, São Vicente e Serra Negra do
Norte – medindo 9.544 km2 que vem a ser 18,6% da área total do Estado
(51.105 km2).
O censo de 1950 contou, naquelas ribeiras, 137.426 sertanejos, dando
assim 15 hab/km2, i. é, 14,19% da população do Rio Grande do Norte.
(FARIA, 1980. p. 125)
Do terceiro para o quarto texto da coletânea, percebemos textualmente a
volta do tempo, pois na descrição do Seridó os 16 municípios voltam a ser 15 e a
densidade demográfica diminui, o que provavelmente passaria despercebido em
uma leitura rápida. Este texto também introduz o assunto após contextualizar o
sertão, o que faz com algumas informações diferentes (como o calendário das
secas).
E, com o quinto ensaio, todos as repetições ao longo das demais
contextualizações parecem se organizar em escrita definitiva. Entramos no Seridó
pelos açudes, e os vemos em todos os ensaios como ondas da primeira discussão.
Lemos várias vezes sobre os ciclos do couro e do algodão, conhecendo histórias
paralelas uma vez, sabendo informações mais precisas em outra. Revisitamos a
colonização até a escravidão sair de seu silêncio no quarto ensaio e assumir o
primeiro plano no quinto. Revemos, aliás, alguns sertanejos em mais de um trecho,
como o “mestre de parede”.
A extensão e o alcance do espaço no último estudo nos faz reler nele os
ensaios anteriores. O começo dos sertões do Seridó (p. 159) é também o seu fim.
138
Todas as repetições que, cronologicamente, deveriam ser posteriores ao ensaio da
caça passam a ressignificá-lo. E, pelo eco gerado desde a primeira página, a
“organização” acaba ganhando propriedade.
Isso, dito de outra forma, difere o caminho traçado de seu destino: os
ensaios da concepção sertaneja do autor, junto de suas intervenções pessoais,
movimentam o fluxo da memória e história que se evidencia ao longo da coletânea,
mas o caminho cronologicamente invertido da apresentação dos textos faz, em certo
nível significativo, o que o autor deseja: nós voltamos ao passado, independente da
sombra de modernidade que se agita em cada recordação.
Com a possibilidade de identificar na organização uma construção
estética, não meramente estilística, mas familiar à criação com fins expressivos,
Sertões do Seridó se aproxima outra vez do modo literário. Os trechos identificados
como contos, descrições poéticas, excertos da poesia popular, descrições
requintadas e a criação narrativa na ausência de documentos podem ser, dessa
forma, lidas como um todo significativo, não meramente “arquivado” em uma nova
publicação.
Por esse caminho, a coletânea junta modos ensaísticos diversos em não
apenas um arranjo diferente da obra do autor, mas facilita sua leitura literária como
parte da tradição norte-rio-grandense. Lamartine encontra-se na cadeira dos mais
importantes ensaístas potiguares que tratam do sertão, espaço que dificilmente seria
ocupado por outros escritores contemporâneos ao seridoense, pois mesmo Cascudo
preferencia a cultura litorânea, fazendo história partindo de Natal.
139
5. APROXIMAÇÕES FINAIS ENTRE OS AUTORES
Ao retomarmos nossa linha de leitura entre Grande sertão: veredas (2011)
e Sertões do Seridó (1980), observamos que tais obras encontram-se próximas em
aspectos fundamentais da escrita do ensaísta, o que fortalece nossa tese da
influência de Rosa sobre Lamartine. Nas duas obras é facilmente observável a
estruturação de suas histórias pela rememoração, pelo “ato de narrar” (Benjamin,
1987), e mesmo na identificação pessoal do narrador/enunciador com a matéria de
que fala. Isso, como consideramos, mantém uma perspectiva diferente do conceito
clássico de regionalismo e aproxima os dois autores, mesmo em sertões e gêneros
textuais diferentes.
Também esses fatores, que geram formas atípicas de enunciar
(comparando nosso corpus com o “romance sertanista exótico” e o ensaio histórico
etnocêntrico), oportunizam, para o leitor, uma provável identificação com o espaço e
o homem. Em ambos os escritores há pelo menos uma linha de adesão de escolhas
lexicais “típicas” com a própria perspectiva dos enunciadores, não tornando suas
vozes parte de um coro “diferente de”. Ao contrário da exposição em terceira
pessoa, não apenas gramatical, mas em uma espécie de sombra do outro, as “linhas
narrativas” rosiana e lamartineana apresentam-se dentro de uma experiência
pessoal (mesmo que ficcionalizada) do eu. Encontramos os sujeitos de maior
onisciência em cada texto não apenas dentro do sertão, mas em reconhecimento
com ele. Seus processos identitários são promovidos passando por tal espaço em
uma travessia pessoal, e seus conhecimentos evidenciam-se pela experiência.
Com isso, é facilmente observável a presença de outras pessoas nos
discursos de Oswaldo Lamartine e de Rosa, via Riobaldo, voltando nossa atenção
para uma leitura de sertões povoados, não apenas pelos narradores. Vemos as
interferências indiretas frequentes de personagens como Quelemém: “Por isso dito,
é que a ida para o Céu é demorada. Eu confiro com compadremeu Quelemém, o
senhor sabe: razão de crença mesma que tem – que, por todo o mal, que se faz, um
dia em repara, o exato.” (ROSA, 2011, p. 47), as vozes dos companheiros de
veredas e/ou de desconhecidos que marcaram a história por uma fala: “Surpreendi
um, o Conceiço, que jazia vadio deitado, se ocultando atrás de fechadas môitas;
momento que raro se vê, feito o cagar dum bicho bravo. – 'É essa natureza da
140
gente...' – ele disse […]” (ROSA, 2011, p. 399), ou por histórias alheias que costuram
a principal, como algumas de Zé Bebelo: “[...] uma vez, ele
corria a cavalo, por exercício, e um veredeiro que isto viu se assustou, pulou de
joelhos na estrada, requerendo: – 'Não faz vivalei em mim não, môr-de-Deus, seu
Zebebel', por perdão...' E Zé Bebelo jogou para o pobre um cédula de dinheiro [...]”
(ROSA, 2011, p. 113).
Já em Lamartine, encontramos presença humana nas referências
literárias: “E era serviço que sempre corria perigo. Os que ganhavam a vida na
pedra se mutilavam ou perdiam a vida com a pedra – mote que serviu de carretilha
ao poeta: A vida corta a pedra/Mas ao cortar se corta/Na pedra quase-viva/A vida
quase morta'.” (FARIA, 1980, pp. 38-39), nos trechos de falas de conhecidos: “L. C.
Cascudo lembra o nome de José Gomes da Trindade Templo de Maria, falecido no
Caicó em 9-8-1898, com 84 anos, de quem diziam a boca pequena haver caçado
mais de 80 onças...” (FARIA, 1980, p. 184), em causos da região: “A notícia ganhou
a boca dos trabalhadores. E o 'viúvo' trabalhava calado e sisudo na humilhação de
seu abandono, enquanto o vizinho caçoava, cantando […] E nem carece dizer que a
peixeira cortou as rimas, a poesia e as carnes...” (FARIA, 1980, p. 38), assim como
em reflexões pessoais que se encontram com algum dizer dos funcionários da lida,
explicações que envolvem a imprecisão do que é passado “de boca em boca”, e
ainda trechos da sabedoria popular e dos autores recuperados do anonimato.
Enquanto o “doutor de fora” dá razão para o monólogo do narrador de
Rosa, que está em diálogo com os ex-companheiros por um “ensaio” de suas
memórias (no sentido de Montaigne), o esquecimento gradativo da bibliografia do
Seridó e suas testemunhas dos tempos velhos é o que motiva Lamartine a reviver
essa região e população por meio da escrita ensaística, isto é, para garantir a
continuação dessas histórias para a posteridade.
Torna-se pertinente, portanto, destacar outra dimensão de identidade com
o espaço: ele é construído, além das paisagens, por comunidades que interferem
nessas memórias aparentemente individuais. Cada ato de contar uma lembrança
passa por outras pessoas e histórias que atravessam a linha do enunciador, e assim
cada sujeito presente nesses enunciados dá novo contorno às linhas gerais dos
espaços apresentados (mesmo que seja em um diálogo para fora de suas
fronteiras).
141
Nesse ponto, é coerente indicar que as ditas interferências se apresentam
vinculadas ao discurso do narrador-personagem rosiano ou da linha argumentativa-
criativa do ensaísta, sendo que o sujeito da enunciação as reorganiza, buscando
não apenas o desenvolvimento de uma história/explicação, mas tornando o diálogo
em seu discurso o próprio desenvolvimento. Por esse elemento, mesmo a memória
individual encontra-se de tal maneira contaminada da presença dos outros, que a
linha do texto permanece, prioritariamente em Rosa, na primeira pessoa do singular
sem se afastar totalmente do diálogo, da presença coletiva mesmo nas piores horas;
enquanto o plural em primeira pessoa é a tônica de Lamartine, que também não se
nega ao contato com outros habitantes do Seridó:
Mas, de feito, eu carecia de sozinho ficar. Nem a pessoa especial do
Reinaldo não me ajudava. Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre
nas estreitas horas – isso procuro. O Reinaldo comigo par a par, e a tristeza
do medo me eivava de a ela não dar valor. Homem como eu, tristeza perto
de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero. (ROSA, 2011,
p. 204)
Poucos abusões conhecemos ligados aos caçadores de abelhas. Uma mais
estranha e que parece comum a todo o sertão nordestino, é a de que o mel
da abelha limão, tirado no mato, tem de ser comido em silêncio. Se um dos
tiradores, acabada a refeição, diz para o outro: – “Vamo imbora”, fica
completamente bebado, lançando e areado. (FARIA, 1980, p. 109)
Podemos, partindo desse entendimento, ver nos projetos de tais
escritores mais do que um “diálogo”, no sentido de Bakhtin (1997), e sim processos
muito similares ao ato de narrar estudado por Walter Benjamin em seu O narrador,
pois neles muitas vezes o individual e o coletivo se misturam/confundem:
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem
todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que
menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros
narradores anônimos. (BENJAMIN, 1987, p. 198)
Assim, pelas concepções de Benjamin, poderíamos dizer que a “narrativa”
de Faria e Rosa é uma forma artesanal de comunicação, pois percebemos a
142
“impressão” da presença dos narradores nas histórias contadas, e que são, de modo
equivalente, mergulhadas em suas vidas (reais ou imaginárias). Além disso, também
tais narradores costumam contar as circunstâncias em que receberam a história ou
como a vivenciaram, o que nos aproxima, por exemplo, de uma perspectiva coletiva
das passagens em que Riobaldo inicia uma reflexão sobre algum ponto de sua vida
partindo da cultura popular e, nos ensaios de Lamartine, dos comentários sobre a
manutenção de certos aspectos culturais seridoenses. São esses, como
entendemos, indícios de um ato comunitário no enunciado, das diversas vozes que
se apoderam do discurso individual. Como identificamos nos exemplos seguintes,
tanto Rosa quanto Lamartine deixam essas vozes penetrarem em seus discursos
pela lenda de covarde virar bravo e da caipora:
Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não
sabendo, não me entenderá. Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou.
O que há, que se diz e se faz – que qualquer um vira brabo corajoso, se
puder comer crú o coração de uma onça pintada. É, mas, a onça, a pessoa
mesma é quem carece de matar; mas matar à mão curta, a ponta de faca!
Pois, então, por aí se vê, eu já vi: um sujeito medroso, que tem muito medo
natural de onça, mas que tanto quer se transformar em jagunço valentão – e
esse homem afia sua faca, e vai em soraca, capaz que mate a onça, com
muita inimizade; o coração come, se enche das coragens terríveis! O senhor
não é bom entendedor? Conto. De não pitar, me vinham uns rangidos
repentes, feito eu tivesse ira de todo o mundo. Aguentei. […] Reproduzi de
mim outro fôlego. Deus governa grandezas. Medo mais? Nenhum algum!
Agora viesse corja de zebebelos ou tropa de meganhas, e me achavam. Me
achavam, ah, bastantemente. (ROSA, 2011, pp. 205-206)
A caipora às vezes vem disfarçada em outro bicho. Um sertanejo, há muito,
confidenciou-me haver disparado e recarregado a capricho sua lazarina por
quatro vezes em um gavião vermelho: “Olhe que não dava 15 braças prá
onde eu estava agachado. No primeiro tiro o bicho se arrepiou e sujou
(defecou) – pensei inté que ia cair. Depois dos quatro, já desconfiado,
rebolei uma pedra e vim m'imbora...” Outro contou-nos haver atirado em um
veado e esse, impassivelmente, vir farejar o pé de pau onde estava trepado.
Astúcias da caipora […] (FARIA, 1980, p. 209)
Seguindo tal perspectiva, além do ato de narrar encontrado nos textos
143
analisados, consideramos também os estudos sobre a memória pela natureza das
escritas de ambos os autores. É fundamental perceber a atuação do recurso às
memórias em nosso corpus, pois interfere na própria presença ficcional devido ao
caráter reconstruído das lembranças.
A existência do passado posto em revisão, além de acusar um “caráter
ensaístico” desenvolvido pelos enunciadores, meche com as motivações discursivas
de tais obras. Lamartine se coloca como testemunha e pesquisador crítico do sertão
já mudado, enquanto Rosa desenvolve seu Grande sertão pelo testemunho do velho
Riobaldo, que tenta dar coerência ao seu caminho de vida. Por essas semelhanças,
nessa leitura comparada passamos pelo pensamento de Maurice Halbwachs sobre
memória coletiva, e a reflexão sobre a memória de velhos por Eclea Bosi.
Halbwachs considera que nossas lembranças são naturalmente sociais, o
que nos ajudaria a compreender esse enriquecimento das obras tratadas pelo
“testemunho” do “eu” atravessado de “outros”:
Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros,
ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e
objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós.
[...] sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que
não se confundem. (HALBWACHS, 2006, p.30)
Também observa, o que é positivo para nosso trabalho, que não há uma
necessidade de “exatidão” nas lembranças e que, a uma quantidade de 'lembranças
reais” se juntaria “uma compacta massa de lembranças fictícias.” (HALBWACHS,
2006 p. 32). Isso ressalta nossas possibilidades de tratar o gênero ensaístico e a
tendência ensaística como motivadora da ficcionalidade dos autores, pois, na
medida em que utiliza memórias, há modificações nas suas histórias. E,
consequentemente, pela escrita de Lamartine explorar relatos pessoais em relativo
equilíbrio com documentos históricos, não encontramos desconforto na sua redação,
e sim aceitação: o ensaísta parece ser consciente desse aspecto das memórias e
não as desqualifica por não trazerem mais que uma provável veracidade. É nesse
ponto que encontramos a “mimese criativa” no autor potiguar.
A obra de Lamartine busca, como entendemos, exatamente o contrário: a
existência dessas histórias não enquanto registro oficial sepultado em uma estante,
144
mas fazendo parte da cultura sobrevivente, uma tradição a ser passada em visão
ampla da realidade seridoense, o que já é desenvolvido desde Rosa pela negação
da “verdade aparente pura”.
Por pretenderem seguir adiante com tal projeto da realidade, não
subestimam o valor de memórias, entendidas em senso comum como
anedóticas/ficcionais. As histórias menos reais também participam da identidade das
sociedades que as comunicam, e os escritores as reconhecem nessa memória
coletiva que perpassa os seus discursos. Essa “tradição rosiana” fica bastante
evidente em várias passagens de Lamartine:
As armas de fogo detêm, naturalmente, maior acervo de tabus. Assim é que
atirar em urubu ou consentir que alguma mulher pegue na espingarda, são
motivos suficientes para inutilizá-la, transformando-a de “chumbo frio” em
“chumbo quente”. E para justificar o preconceito alegam que se depois que
atirar em urubu soprar na boca da arma, correrá água pelo ouvido da
mesma... (FARIA, 1980, p. 188)
Rosa torna esse fator fundamental, organizando e dando forma ao próprio
fluxo da narrativa de Grande sertão: veredas pela recordação muitas vezes vacilante
de Riobaldo. O narrador, como já indicamos, recupera suas falas no diálogo com o
“doutor”, reformulando-as e assumindo certas vezes impressões pessoais meio a
dúvidas:
Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é
muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela
astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se
remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido?
Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em
tantos tempos, tudo miúdo recruzado. (ROSA, 2011, p. 241)
De modo próximo, o estudo de Bosi (1979) nos leva para uma visão da
memória do sujeito em idade avançada, que depende dos gatilhos presentes no
meio ou nas lembranças que mais os marcaram. Com a mudança do meio pela
modernização, suas memórias mais profundas não encontram os sinais do convívio
antigo que facilitariam a volta à tona das imagens do passado. O hiato entre a
145
vontade de lembrar e a chegada da memória é somente preenchido, muitas vezes,
nas relações cognitivas com algum dado físico do espaço (motivo pelo qual
poderíamos compreender o meio físico ser tão utilizado em Lamartine). Assim, não
são apenas memórias, mas memórias de “velhos narradores” que encontramos
como centro dessa tradição literária.
Como percebemos no estudo de Bosi, a diferenciação palpável da
rememoração de narradores velhos da de outros narradores ocorre pela prioridade
que escritores em idade avançada dão à recuperação do passado. Buscam o já
vivido não apenas como tempo de uma história, mas a própria razão em si da
narrativa, como quem vive no presente uma revisão constante dos períodos
marcantes da vida, geralmente ligados a fase produtiva do sujeito. Esse saudosismo
discursivo é presente em Lamartine que, embora homem ativo ainda longe das
limitações físicas e intelectuais que muitas pessoas enfrentam na velhice, segue
caminho o traçado anteriormente pela escrita rosiana do Grande sertão. Lamartine
se identifica com o “sertão velho” e se considera como o último de uma geração já
quase morta, o que o classifica como “narrador velho”, mesmo que comece a
escrever ainda jovem.
Portanto, em ambos escritores há saudade, revisão, esquecimento e
criação; mas o mais importante ocorre nos gatilhos, sempre movimentando as
lembranças, levando-nos de um assunto a outro ao gosto do narrador. No caso de
Lamartine, há pelo menos o ancoramento categórico nas ferramentas diversas dos
trabalhos do Seridó, que desenha com tanto cuidado. Suas descrições são em
grande maioria orientadas por tais objetos e percebemos que o texto se organiza
envolta deles:
Instrumentos de caça – Inicialmente usava-se o bacamarte e a espingarda
de pederneira que o aparecimento da espoleta fez transformar em
espingarda de ouvido. Com essas armas privativas os nossos antepassados
defenderam os rebanhos dos felinos carniceiros. Hoje, os velhos e raros
clavinotes são usados apenas para salvas nas festas juninas. (FARIA, 1980,
p. 188)
Ou, de outra forma, o ensaísta observa uma lista de procedimentos como
a “linha mestra” de sua recuperação do passado:
146
a) Véspera do começo – Entrada a seca e faz de conta que o cidadão, ele
mesmo, se determinou a alevantar o seu açude ou açudeco, cuidou em
providenciar o cercado de solta para acomodar os jumentos; tratou de
apalavrar o apontamento dos ferros com o ferreiro mais perto e espalhou a
notícia no mundo. E de boca-em-boca na rede dos alpendres, nas bodegas
das beiras de estrada, nos domingos de missa e nas feiras sertanejas,
espalhou-se o acontecido... (FARIA, 1980, p. 33)
Quanto ao caso de Rosa, são encontrados gatilhos menos “táteis”,
ocorrendo ao longo do processo de rememoração, indo e vindo no tempo
psicológico do narrador ao passo que Riobaldo conta sua história a um “senhor” que
o escuta. Também por isso que encontraríamos um discurso muitas vezes retomado
e ressignificado, como ocorre com a definição do espaço: um sertão da lei do mais
forte, do pensamento acima do poder do espaço, dos vazios, do tamanho do mundo,
sertão grande, sertão só, sertão interno de cada um, sertão-arma, sertão dos
desencontros, sertão ocultado, sertão visto de cima etc. Em certos momentos essas
reformulações são associadas, por exemplo, à presença de Diadorim, que, de modo
geral, surge como um dos gatilhos emocionais mais frequentes do narrador:
Diadorim, na retirada, bem conseguido; depois se retrasou, por uma
cacimba de grota. – “...Estava com sangue numa perna de calça. Pra mim,
foi nada, arranho à-tôa...” O que me ensombreceu – então Diadorim estava
ferido. Aí, eu me esbarrei, beirávamos o riachinho do Jio, eu quis lavar os
pés, que muito me doíam. Acho que, de cansado, estava também com
dôres redondas de cabeça, molhei minhas fontes. Cansaço faz tristeza, em
quem dela carece. Diadorim estivesse ali, somentemente, espaço disso me
alegrava, eu não havia de querer conversar repertório de tiros e combates,
eu queria calado a consequência dele. Ao modo que eu nem conhecia bem
o estôrvo que eu vivia. Pena. Dos homens que incerto matei, ou do sujeito
altão e madrugador – quem sabe era o pobre do cozinheiro deles – na
primeira mão de hora varado retombado? Em tenho que não. Dó que me
dava era do Garanço, e o Montesclarense. (ROSA, 2011, p. 281)
Consideramos, portanto, que tais gatilhos tornam-se fundamentais no
objetivo de ambos os narradores: tanto Lamartine escreve procurando seu espaço
perdido na infância do interior (particularmente observando objetos desse passado
147
que o orientem na busca do antigo Seridó), quanto Rosa faz Riobaldo relembrar seu
(des)caminho cheio de dúvidas que tomam toda a sua história (atendendo aos
chamados da memória que caminha não apenas pelo sertão, mas pelas pessoas
que passaram).
É importante, nessa altura, destacar mais uma anotação de Bosi: o
crescimento do espaço de experiência partindo da casa materna. Por tal ótica,
podemos dizer que há uma ampliação da terra que começa pelas recordações da
infância: o sertão da terra natal que se deixa forçosamente por um lado, e que vira
tema de estudo em incessantes tentativas de recuperação, ampliando suas
fronteiras em estudo contínuo que culmina em uma “especialização” sobre as
tradições da terra; e uma travessia interminável que começa com um barco
cruzando o rio e se espalha por paragens sem fim, mesmo depois de uma
“aposentadoria” dos dias de jagunço, pois o discurso faz retornar e dar voltas por
tantas outras veredas, as da reflexão.
Logo, nossa análise percebe a existência de campos ficcionais nos
projetos de Rosa e Faria por uma linha pessoal do “eu narrativo” e que, embora
sempre em diálogo com outros testemunhos que sustentam sua própria experiência,
promovem um ato complexo em que a verificação do “real” não se torna exatamente
necessária. No caminho dessa reconstrução de memórias de um espaço e tempo
vivenciados, há inevitavelmente a presença da criação pelo “erro”, mudanças de
impressão ou mesmo esquecimentos.
Ou seja, seu valor está atrelado às reformulações, mesmo quando o
discurso se pretende “objetivo”, e ambos os projetos permitem leituras do passado
em uma perspectiva feita no presente: com a não necessidade de total exatidão dos
relatos, podemos perceber os sertões de Rosa e Lamartine como o que ultrapassa a
história, uma visão desse passado revisado em cada leitura.
Tais projetos seriam, desse modo, antes de uma metódica apresentação
das memórias de cada narrador, mais voltados para a escrita que se liga às suas
identidades e imagens processadas na recriação do tempo e espaço vivido. Cada
um desses sujeitos que conta suas histórias torna o sertão parte de si, e cada leitor
que se identifica com os narradores leva consigo algo deles, em um contato mais
próximo com os sertões (sertões ensaiados, não fotografados). Essa é uma das
características mais fortes desse “surregionalismo” rosiano, que leva o regional ao
148
reconhecimento humano, tornando-o universal.
Isto é, pela recuperação das memórias e seus enganos, assim como pela
seleção e importância de cada lembrança, uma provável tentativa mais “séria” de
registro histórico não impede que o sertão de cada autor chegue a um plano geral
humano:
E' um penitente a subir e descer pernas de córregos e riachos. Devagar,
aqui e acolá esbarrando, botando reparo nos chãos, na qualidade da terra,
na altura das ombreiras e nas riscas de marcas deixadas pelas águas das
grandes cheias dos invernos de castigo como o de 1924 e 1940...
Atrepando-se nos caculos, fazendo contas de cabeça para a decisão do dá
ou não dá – faz ou não faz – se deixa a ficar perdido em cismas de contas,
economias e sonhos... (FARIA, 1980, p. 28)
O de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São Francisco, bem reto ele
vai, formam uma esquadria. Quem carece, passa o de-Janeiro em canoa –
ele é estreito, não estende de largura as trinta braças. Quem quer bandear a
cômodo o São Francisco, também principia ali a viagem. O porto tem de ser
naquele ponto, mais alto, onde não se dá febre de maresia. A descida do
barranco é indo por a-pique, melhoramento não se pode pôr, porque a cheia
vem e tudo escavaca. O São Francisco represa o de-Janeiro, alto em
grosso, às vezes já em suas primeiras águas de novembro. Dezembro
dando, é certo. Todo o tempo, as canoas ficam esperando, com as correntes
presas na raiz descoberta dum pau-d'óleo, que tem. Tinha também umas
duas ou três gameleiras, de outrora, tanto recordo. (ROSA, 2011, p. 141)
Em passagens como essas, aparentemente construídas em função do
elemento “típico” que identifica a região, é possível uma leitura mais ampla, que nos
aproxima dos narradores e, por seu contato mais familiar com o tema, nosso
reconhecimento do outro se fortalece, diminuindo distâncias entre leitores e
personagens.
Podemos, finalmente, ver que por tal percurso a revisão e ampliação dos
sertões evocados atravessa mais que regiões, mas cada sertanejo, narrador e
receptor. Passamos pela aceitação e identificação com o espaço, pela revisão dele
embebida nas experiências pessoais e coletivas, e pela própria fusão da história de
vida e as percepções do ambiente (ambiente inevitavelmente povoado), que se
149
desenvolvem meio ao “ensaio” como ato criativo dos autores. Essa é, como
avaliamos, a essência dessa tradição.
150
6. O RUMO QUE A TRADIÇÃO TOMOU NO RIO GRANDE DO NORTE
Ao traçarmos a tradição de Rosa a Lamartine por uma leitura comparada
da construção dos seus sertões, podemos perceber características coincidentes nas
obras escolhidas, e isso nos leva, afinal, a ver duas dimensões que importariam para
tal estudo: a criação que ocorre pelos caminhos semelhantes de escrita e que nos
levam a aproximar as obras Grande sertão: veredas (2011) e Sertões do Seridó
(1980), e as características diferentes de cada projeto estético que nos fazem
particularizá-los.
Alcançando primeiramente as semelhanças, conseguimos reconhecer,
como já destacamos, sinais que apontam para além do texto “limitado” pelos
traçados geográficos do sertão e, mesmo assim, perceber os objetivos de cada
projeto em suas identidades sertanejas. Encontraríamos, desse modo, duas escritas
que lidam com a terra não a separando totalmente do mundo, pois cada distância é
ressignificada pelo sujeito que por ela passa.
A escrita de Oswaldo Lamartine, em sua variedade e mobilidade do
gênero textual ensaístico, nos possibilita uma leitura da tradição do sertão
seridoense no vértice entre a produção criativa de ensaios etnográficos e a
reformulação da tradição de seu tempo pela recuperação de memórias, invadindo o
terreno literário. O escritor expressa suas preocupações, com a manutenção do
meio ambiente e do registro da história seridoense, o desejo de manter vivo o
“sertão do nunca mais”, e para isso estuda documentos oficiais e autores regionais
buscando dar corpo ao seu intento. Porém, mesmo que seus escritos ganhem
aspecto de pesquisa científica, neles são recorrentes recursos literários, assim como
certo tom confessional, hibridizando o texto resultante. Lamartine se posiciona em
Sertões do Seridó enquanto pesquisador e integrante de uma cultura que tenta
manter viva, motivo pelo qual é possível perceber mesmo em trechos estritamente
argumentativos a ligação entre matéria tratada e identidade do redator no
desenvolvimento lapidar do texto.
Em tal recorte de inscrição da história do Seridó e da experiência vivida,
são construídas imagens de um ambiente geográfico-cultural mais que “registrado”,
e sim uma expansão das identidades do sertanejo e de seu meio pelos recursos
expressivos/criativos. Isso ocorre no estudo histórico e nas citações documentais
151
assim como também pela especulação, imprecisão de fatos ou mesmo na ficção
declarada. A linguagem mais expressiva e pessoal, mais criativa que referencial,
acaba se ancorando igualmente no discurso devido particularmente ao recurso da
memória.
A recuperação do passado por memórias individuais ganha espaço na
escrita lamartineana não apenas por escolha, mas pela necessidade de sua
utilização em uma cultura passada em grande parte de boca em boca. O grande
número de “informantes” na linha argumentativa é o maior indício da oralidade dessa
tradição. E por esse caminho na pesquisa aparecem os relatos, e o próprio autor
toma uma posição menos distanciada.
Inclusive, não é apenas por memórias alheias que Lamartine se aproxima,
tendo inscrita sua própria experiência de vida. Todos esses recursos para recuperar
o passado são organizados de forma cuidadosa pelo redator, demonstrando
preocupação além da explicação e chegando à beleza da linguagem, o que ocorre
em passagens muitas vezes conficionais.
É nesse aspecto da obra do ensaísta que, pela escrita articulada em
matizes locais, vemos mais que os trabalhos do sertanejo ou um guia de palavras e
costumes periféricos que se misturam com cada profissão, as histórias de cada
aparato remanescente e vozes anônimas com vulto de patrimônio cultural de uma
época. Sua escrita ensaística diferenciada pelo estilo parcialmente literário e o
caminho de experiência pessoal mostra uma busca de objetividade que, no entanto,
apresenta inúmeras interferências pelos fatores estéticos da proposta do escritor. A
redação pautada em sobriedade aparente é, desse modo, um campo de
“porosidades” expressivas.
Em cada texto de Lamartine, percebemos a presença de um “articulador”
de assuntos bastante específicos e que é capaz de nos inserir em seus temas por
meio da experiência desse sertão anedótico e literário, histórico e memorialista,
regional e em diálogo com outras ribeiras.
Pelo caminho menos rígido do ensaio, Oswaldo Lamartine, como propõe
nossa leitura, invade a fronteira literária na recriação do Seridó que ultrapassa os
assuntos propostos e a redação meramente argumentativa, chegando ao extremo
reflexivo do gênero onde nos encontramos com a ficção e o cuidado com a
expressão.
152
Utilizando Adorno (2003), entendemos que sua escolha pelo ensaio não o
leva à escrita literária mais “pura” (não enquanto objeto puramente artístico, mas
costurado por eventos passíveis dessa leitura estética), e acompanha suas bordas
por características compartilhadas, criando um universo sertanejo que não se
esquiva de elementos ficcionais. Uma produção “ideológico-literária”, como diria
Haro (2005), que não combate nenhuma de suas partes. Essa seria, enfim, a
dimensão em que podemos aproximar com mais propriedade o literato Lamartine de
Rosa.
Nossa perspectiva sobre a ficcionalidade literária, entretanto, nos afasta
um pouco do ensaio. Rosenfeld (2011) considera que a obra literária ficcional
passaria, independente de critérios valorativos, por algumas questões de
identificação que a separariam de outros tipos de produção. Mesmo apresentando
uma impressão de realidade e a aparência de continuidade que nos confundem com
um relato real, o texto ficcional literário apenas faria referências indiretas a
elementos extratextuais “onticamente autônomos” no mundo real, valendo-se de
“quase-juízos” em uma intenção que prioriza a criação estética. Mas Lamartine
convive com as duas dimensões.
O autor mineiro utilizaria, dessa forma, “contextos objectuais” como um
caminho para a construção estética, e não para uma intenção “séria” de realidade. A
“visão da realidade” seria ofuscada pela “imagem intencional” do texto literário, pela
sua criação intencionalmente ficcional. Dessa forma, mesmo que um “personagem”
exista de fato no meio físico, por exemplo, ele se tornaria uma outra entidade,
possuindo autonomia e não sendo reflexo da pessoa que o inspirou.
Além disso, Rosenfeld observa que pela presença humana no texto
surgem os elementos ficcionais mais evidentes: certas características textuais
acusam os sujeitos enunciados de serem personagens, tais como escolhas lexicais
que nos levam a seus processos psíquicos ou à onisciência da perspectiva narrativa.
Já os diversos sertanejos de Sertões do Seridó nem sempre passam por essa
transformação, como o caso dos informantes e mesmo dos estudiosos utilizados
para organizar/reforçar o pensamento do autor.
Fatores criativos não são raros na escrita de Lamartine, aparecendo em
várias passagens de Sertões do Seridó e que, de tal modo, acusam sua dimensão
ficcional. Porém, a dimensão de registro histórico ainda é um norteador em
153
Lamartine, não sendo uma prioridade em Rosa.
Enquanto o ensaísta passa seres reais para uma dimensão mítica, o
romancista deixa suas influências mais submersas. Qualquer tentativa de
correspondência de seus personagens com pessoas reais termina em ambiguidades
desconcertantes. Rosa busca, como julgamos, a experiência do sertanejo renovada
da mesma forma que a pratica na linguagem. Seu livro é um processo novo por
excelência, não se fixando claramente a personalidades históricas ou mapas
precisos. Sua literatura nos leva ao sertão pelo diálogo de um velho jagunço como
se fôssemos por ele iniciados. Nos é passada a revisão de uma vida pelas veredas
de Riobaldo, e por sua história conhecemos o grande sertão dos narradores
viajantes, conhecedores de lugares não cartografados, únicas testemunhas de
outros tantos viajantes anônimos.
É nessa perspectiva que encontramos o maior nível de ficcionalidade de
Rosa. Ao invés de retratar acontecimentos célebres, ou pelo menos de modo mais
próximo da linha do documentário, como é típico no regionalismo clássico, “cria”
suas próprias histórias/estórias, personagens e espaços. Porém, não podemos dizer
que tal escolha diminua a “veracidade” de sua literatura, pois sua escrita ficcional
completa espaços que o discurso científico não alcança. Essa visão da realidade
que supera as limitações do discurso da realidade é justamente um dos objetivos da
escrita rosiana.
Quanto ao entendimento do narrador segundo Rosenfeld (2011), é
importante destacar que tal autor crítico define-o de forma diversa a do ethos
discursivo de um redator (o que nos afasta mais um pouco de Lamartine), pois esse
narrador não seria uma imagem do escritor, mas sim estruturalmente ficcional:
Na ficção narrativa desaparece o narrador real. Constitui-se um narrador
fictício que passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se por
vezes (ou sempre) com uma ou outra das personagens, ou tornando-se
onisciente etc. (ROSENFELD, 2011, p. 26)
Lamartine se inscreve no texto enquanto narrador dessa criação, mas
também como testemunha de uma História verídica. De mesma forma, por também
fazerem parte desse mundo reestruturado ficcionalmente, todos os outros sujeitos
deveriam ser imanentemente personagens, negando, enquanto obra literária, o
154
caráter de “pessoas reais”:
A modificação do discurso indica que na ficção (e isso se refere também à
poesia e dramaturgia) não há um narrador real em face de um campo de
seres autônomos. Este campo existe somente graças ao ato narrativo (ou
ao enunciar lírico, dramático). O narrador fictício não é sujeito real de
orações […] não narra de pessoas, eventos ou estados; narra pessoas
(personagens), eventos e estados. E isso é verdade mesmo no caso de um
romance histórico. As pessoas, (históricas), ao se tornarem ponto zero de
orientação, ou ao serem focalizadas pelo narrador onisciente, passam a ser
personagens […]. (ROSENFELD, 2011, p. 26)
Todas essas questões nos levam, finalmente, ao entendimento das
diferenças encontradas na obra do ensaísta, não diminuindo, mesmo assim, o seu
valor literário. Parafraseando Anatol Rosenfeld, mesmo não sendo passível de
avaliações baseadas em critérios de veracidade, a obra literária continua no campo
de discussões do real ao caminhar por suas beiradas. O universo ficcional possui,
pelas suas estruturas esquemáticas, maior coerência que nossa já fragmentária
perspectiva do mundo, além da possibilidade única de “transparência” dos seres na
ficcionalidade literária que nos proporciona uma oportunidade única de
conhecimento humano. Esse lado é apenas acompanhado sem oposição pelo real
verificável do caráter mais “sério” no estudo lamartineano.
Rosa estaria, portanto, do outro lado da fronteira: enquanto o ensaio
lamartineano invade a literatura e permanece na linha do discurso ideológico-
literário, o romance do autor mineiro permanece no mundo ficcional, pelo qual “ecoa”
no real.
Seguindo entre essas divisões, entendemos que, mesmo por construções
estéticas de naturezas diferentes (mas com características próximas), ambos os
escritores se encontram próximos pelos processos de experiência (mesmo que
conscientemente “criados”) em busca dos sertões. Para Rosa, o processo ocorre em
uma busca pela “verdade complexa” que não exclui os contrastes e a imaginação,
deixando mais perguntas que possibilidades de resposta em seu sertão-mundo.
Para Lamartine, seria o resultado da batalha com o ato de contar um sertão ainda
vivo nas pessoas que o presenciaram, e que pode ainda viver pela tradição.
Caminhos inversos, porém complementares: ampliando as fronteiras pela incerteza
155
e pelo conflito do próprio homem, e ampliando as fronteiras da terra pelo exame
cuidadoso da civilização sertaneja que não se apresenta apenas pelo registro oficial.
São esses sertões das memórias narradas, sertões de cenários povoados
por habitantes dos caminhos que não foram esquecidos, que se aproximam da
indescritível margem entre a vida de um narrador e a história de sua terra: espaços
criativamente sem arados ou limites de horizonte, o lugar ampliado pelo alcance das
ideias, sertão enquanto mundo construído por palavras; e sertão seridoense datado,
resistente por poucos traços físicos e culturais, e recuperado pelas palavras de
quem o viu.
No ensaio, Oswaldo Lamartine é a voz desse tempo atropelado pelo “pé-
redondo” das máquinas e diminuído em cada despedida dos antigos sertanejos,
assim como o vate da palavra quase morta, que voa pelo sertão enquanto tem
pousada segura em seus livros.
Finalmente, a tradição surregionalista deixada para o Rio Grande do
Norte se encontra na situação do autor: pela necessidade de (re)criação do registro
do interior do estado, o ensaísta se vê em uma posição de registro para os “doutores
de amanhã” que não viveram no sertão, na própria estruturação desse tempo e
espaço habitado, e no desenvolvimento de seu fôlego pela coerência de sua criação.
Lamartine nos deixa uma das obras mais amplas sobre cultura sertaneja
que a produção local possui, não apenas traçando as fronteiras do Seridó dentro da
literatura, mas desenvolvendo seu caráter ficcional.
Seus leitores se deparam várias vezes com a árida descrição de
incidência solar, flora retorcida, hidrografia e os nomes das cidades próximas,
apenas para serem absorvidos pela fluidez da redação lamartineana entre
objetividades vacilantes que enriquecem-se das formas mais diversas. Em poucas
páginas estamos não apenas acompanhando o raciocínio do estudioso, mas nos
detendo em diversas passagens pelas formas incomuns de sua redação, que
proporcionam tanto, em um nível linguístico, o fascínio do enunciado exótico/familiar,
quanto, em camada mais metafísica, o reconhecimento não afastado do outro ou de
uma ampliação dos traços da própria identidade regional.
O resultado desse breve balanço da contribuição de Lamartine para a
literatura ainda compreende o espaço de referência para a produção
regionalista/sertanista. Em um sistema literário esparso, com poucos escritores e
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quase nenhum representante de importância comparável a de Cascudo, o “príncipe
do Seridó” se ocupa do sertão e trata de seus principais temas, contemplando além
do espaço geográfico uma pequena tradição literária oral e escrita relativa ao Seridó.
Nas passagens de outros autores, e mesmo nas vozes dos sertanejos, encontra-se
a proposta de organização da literatura potiguar interiorana remanescente pelas
pesquisas do autor.
Lamartine a revive ressignificando tais passagens, elencando esses
recortes como parte da história dessa região. Constrói, assim, um Seridó histórico,
literário e lendário, que contagia seus leitores.
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