38
Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas Curso de Especialização em Políticas Públicas e de Justiça Criminal Segurança Pública MARTA MARIA DE ANDRADE GOMES A “RAÇA” DA MULHER NEGRA NA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NITERÓI / AGOSTO 2017

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas

Curso de Especialização em Políticas Públicas e de Justiça Criminal Segurança Pública

MARTA MARIA DE ANDRADE GOMES

A “RAÇA” DA MULHER NEGRA NA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO

DE JANEIRO

NITERÓI / AGOSTO 2017

Page 2: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

MARTA MARIA DE ANDRADE GOMES

A “RAÇA” DA MULHER NEGRA NA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO

DE JANEIRO

Monografia apresentada ao Curso de

Especialização em Políticas Públicas de

Justiça Criminal e Segurança Pública, da

Universidade Federal Fluminense - UFF,

como requisito parcial à obtenção do

Título de Especialista.

Orientadora

Professora Dra. Ana Paula Mendes de Miranda

NITERÓI /AGOSTO 2017

Page 3: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

MARTA MARIA DE ANDRADE GOMES

A “RAÇA” DA MULHER NEGRA NA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO

DE JANEIRO

Monografia apresentada ao Curso de

Especialização em Políticas Públicas de

Justiça Criminal e Segurança Pública, da

Universidade Federal Fluminense - UFF,

como requisito parcial à obtenção do

Título de Especialista.

Aprovada em_____/de____________ de_____.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________

Professora Dra. Ana Paula Mendes de Miranda

Orientadora

__________________________________________________

Prof. - UFF

__________________________________________________

Prof.

NITERÓI/ AGOSTO 2017

Page 4: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

AGRADECIMENTOS

Ao meu Deus, porque durante todo esse processo, experimentei o Seu sustento.

Ao Curso de Especialização em Políticas de Justiça Criminal e Segurança

Pública, que me permitiu uma reflexão diferenciada sobre os caminhos e possibilidades

de minha profissão.

Aos meus companheiros de turma, pelo de conhecimento e experiências que

ultrapassavam os momentos em sala de aula. A vocês todo o meu carinho.

À minha orientadora Profª Ana Paula Miranda, que com toda sua experiência,

sabedoria e generosidade, mostrou-me outra direção, acreditando que eu seria capaz.

Aos meus amigos de perto e de longe. Aos que agora estão longe, mas de

alguma forma participaram desse processo. E aos que permaneceram ao meu lado dando

sentido á minha caminhada.

Page 5: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

EPÍGRAFE

“(...) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha,

dentre tantas outras,

mas, tornar-se negra, é uma conquista.”

Lélia Gonzalez

Page 6: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

RESUMO

GOMES, Marta Maria de Andrade Gomes. A “RAÇA” DA MULHER NEGRA NA

POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Trabalho de Conclusão

de Curso. Especialização em Políticas de Justiça Criminal e Segurança Pública.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, agosto de 2017.

O presente trabalho tem como objetivo descrever e analisar algumas situações de

discriminações raciais e de gênero na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. O

trabalho parte da hipótese que há desafios específicos experimentados por mulheres

policiais negras, em razão da sua condição de gênero e de raça, que se tornam mais

complexos pelo modelo de gestão militar da instituição. Pretende-se explicitar as

dificuldades que as mulheres negras enfrentam para ocupar os espaços que por séculos

foram convencionados como predominantemente masculinos, e ainda compreender e

refletir sobre como estas mulheres se posicionam frente às situações de discriminação

racial e de gênero em seu cotidiano profissional. O método utilizado compreendeu em

estudo de bibliografia referente ao tema; definição do universo da pesquisa,

considerando as mulheres policiais militares autodeclaradas negras que atuam nas áreas

administrativas da Diretoria de Assistência Social da Policial Militar do Rio de Janeiro;

a elaboração de um roteiro de entrevista semiestruturada; a análise do conteúdo das

entrevistas; e a articulação da bibliografia lida aos conteúdos analisados. A pesquisa

concluiu que as mulheres policiais militares negras vêm enfrentando em seu cotidiano

profissional na PMERJ, ao longo de toda sua trajetória, desafios específicos decorrentes

única e exclusivamente de sua condição de gênero e raça, sem que haja qualquer

política de enfrentamento à discriminação ou de apoio às vítimas.

Palavras chave: mulheres, polícia militar, gênero, discriminação racial.

Page 7: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................................07

CAPÍTULO I – O RACISMO NO BRASIL...................................................................12

1.1 Delimitando os conceitos cor, raça e etnia................................................................12

1.2 Racismo, Preconceito e Discriminação.....................................................................15

1.3 Racismo no Brasil e sua especificidade....................................................................16

CAPITULO II – A MULHER NEGRA NA POLÍCIA MILITAR DO RIO DE

JANEIRO........................................................................................................................19

2.1 A questão de gênero na PMERJ................................................................................21

2.2 A mulher e sua identidade negra na Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro....23

CAPÍTULO III - SER MULHER, SER NEGRA E SER POLICIAL MILITAR..........26

3.1 Como a mulher policial negra se vê dentro da instituição policial militar................26

3.2 As práticas discriminatórias na Policia Militar no Estado do Rio de Janeiro...........29

CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................32

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................35

Page 8: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

7

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objetivo descrever e analisar algumas situações de

discriminações raciais e de gênero na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. O

trabalho parte da hipótese que há desafios específicos experimentados por mulheres

policiais negras, em razão da sua condição de gênero e de raça, que se tornam mais

complexos pelo modelo de gestão militar da instituição.

A pesquisa teve como motivação a experiência profissional da pesquisadora, em

várias unidades da corporação, incluindo alguns setores administrativos, e ainda, por

uma inquietação e preocupação com a ausência de produção científica sobre a mulher

policial militar negra da PMERJ.

A pesquisadora ingressou na corporação em 13 de março de 1991, na primeira

turma de Cabo Especialista do quadro de saúde da Polícia Militar do Estado do Rio de

Janeiro, na qual ainda continua atuando profissionalmente. E ao longo destes vinte e

seis anos de serviços foram inúmeras as formas de discriminação e preconceito racial ao

qual fui exposta, situações de preterição e diferenciação para além do grau hierárquico.

Ultrapassei barreiras institucionais que se constituíram em meu cotidiano profissional,

única e exclusivamente pelo fato de ser mulher e negra.

O interesse pelo curso de Especialização em Políticas Públicas de Justiça

Criminal e Segurança Pública ocorreu na busca por um melhor entendimento sobre qual

é o papel da PMERJ na dinâmica da segurança pública do estado do Rio de Janeiro, já

que, a instituição não é a única responsável pela execução desta política.

O interesse pelo tema do presente estudo, foi aguçado pela participação na

disciplina “Diversidade, Intolerância e Discriminação: políticas públicas de segurança e

justiça”, ministrada pelas professoras Drª Ana Paula Mendes de Miranda e Drª Lana

Lage. Disciplina que teve como o objetivo trazer o conhecimento sobre temáticas como

gênero, racismo e preconceito, bem como sobre as políticas públicas vigentes

envolvendo estas temáticas. Assim, os debates com os demais integrantes da turma e as

professoras foram decisivos para a escolha deste tema de pesquisa.

Através de levantamentos acadêmicos percebeu-se que não há nenhum estudo

que abordasse essa temática, tendo em vista que, a principal produção sobre mulheres

Page 9: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

8

policiais1 na Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro (Musumeci et al, 2005) não

possuía o recorte racial. E numa reflexão mais aguçada, surgiu uma inquietação sobre o

porquê de não existir produção acadêmica sobre a temática “a mulher negra policial

militar”. Assim alguns questionamentos vieram à baila! Quem ousaria pesquisar um

tema tão polêmico sem ter o mínimo de comprometimento (envolvimento) com o

mesmo? Como buscar informações para complementar e finalizar a pesquisa sobre a

policial feminina negra no contexto da Polícia Militar do Estado do Rio de janeiro?

Duas situações favoreceram a concretização e finalização desse estudo: pertencer aos

quadros da PMERJ na condição de Sub Oficial e ser mulher negra. Estudar as relações

de gênero, cor e a questão racial numa instituição da qual se participa, constitui um

grande desafio, frente aos complicadores originados das condições de pesquisadora e

nativa em um mesmo campo de pesquisa. Com esse estudo objetiva-se uma produção

acadêmica sobre as possíveis situações de discriminação racial e de gênero, vivenciadas

pelas mulheres policiais militares negras em seu exercício profissional na corporação.

Estudar a trajetória da mulher policial negra no Brasil é narrar uma história de

sacrifício, pobreza, e de várias formas de desvantagens em relação às outras formas de

discriminação contra a mulher, ressaltando ainda que é sempre sobre a mulher negra que

recai todo o peso da hereditariedade colonial (Neves, 2008), na qual o sistema patriarcal

apoia-se solidamente na prática que herdou do sistema escravista, como afirma

(Vainfas, 2010). O estudo sobre a mulher negra policial militar, requer certa atenção e

cuidados especiais, visto que este se torna relevante para entendermos os impasses

gerados no trinômio cor/gênero/poder nas relações entre os pares desta atividade

profissional que até pouco tempo era exclusiva para homens.

A partir do século XIX, as mulheres começaram a buscar de forma organizada a

defesa de seus direitos. E através de movimentos como, por exemplo, o feminista, que

luta contra a maneira que eram tratadas as mulheres na sociedade. O movimento

feminista no Brasil se destacou, contemporaneamente, em meio às lutas pela

democracia que marcaram a ditadura militar (1964-1985), com a proposta de afirmação

da democracia, na busca de igualdade de direitos e oportunidade para todos (homens e

mulheres).

1 Optou-se por usar a expressão mulheres policiais para se diferenciar da forma pela qual a instituição

identifica essas profissionais – PMFEM

Page 10: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

9

E neste contexto de luta, surgiu o campo de estudos gênero ou relações de

gênero, que tinha como preocupação a problemática da condição feminina (GROSSI,

1989). Segundo a autora, os estudos de gênero tiveram sua origem na tese defendida

por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de

classes, cujo objeto de estudo era a opressão das mulheres nas sociedades patriarcais. Já

nos anos 1970/1980, deixa-se de falar de “condição feminina” e ampliam-se as

pesquisas sobre as mulheres brasileiras, para além da condição biológica das mulheres-

morfologia do sexo feminino, que problematizaram esta determinação da “condição

feminina” (GROSSI, 1989).

Como afirma Scott (1998), o gênero é uma categoria historicamente

determinada, que não apenas se constrói sobre a diferença de sexos, mas é sobre tudo,

uma categoria que serve para dar “sentido” a esta diferença”, e que é usada para pensar

as relações sociais que envolvem homens e mulheres, expressas pelos diferentes

discursos sociais sobre a diferença sexual, ou seja, tudo que é social, cultural e

historicamente determinado.

A presente pesquisa pretende explicitar as dificuldades que as mulheres policiais

negras enfrentam para ocupar os espaços que por séculos foram convencionados como

predominantemente masculinos, bem como a capacidade de se impor nestes espaços

frente à discriminação racial que tem atuado de maneira marcante nos padrões de

exclusão social, e ainda compreender e refletir sobre como estas mulheres se

posicionam frente às situações de discriminação racial e de gênero em seu cotidiano

profissional. Situações vivenciadas especialmente pelas mulheres negras no campo de

trabalho, visto que elas sofrem tripla discriminação no mercado de trabalho: de raça, de

classe e de gênero.

O método utilizado para pesquisa compreendeu em um estudo da bibliografia

referente ao tema, durante o qual priorizei a análise dos trabalhos de: Bárbara Musumeci

Soares e Leonarda Musumeci, voltados à presença feminina na Policia Militar do Rio de

Janeiro, problematizando a questão de gênero, bem como os trabalhos de Antônio

Sérgio Alfredo Guimarães, Lívio Sansone, Oracy Nogueira e Edward Telles, por estes

autores dialogarem intimamente em suas bibliografias com a temática racial, racismo e

relações raciais no Brasil.

Page 11: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

10

Com relação à definição do recorte do universo da pesquisa, optei por selecionar

profissionais que atuam nas áreas administrativas tendo como parâmetros definidores as

policiais militares femininas lotadas na Diretoria de Assistência Social da Policial

Militar do Rio de Janeiro, optou-se também pelas profissionais como que se auto declararam

negras nesta Unidade. Como metodologia de pesquisa foi elaborado de roteiro de

entrevista semi-estruturada que foi aplicado a seis mulheres policiais; a análise do

conteúdo das entrevistas; e a articulação da bibliografia lida aos conteúdos analisados.

Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa, que tem como

“A premissa fundamental para se realizar um trabalho que efetivamente parta

da centralidade do sujeito, e do reconhecimento da riqueza de sua

experiência, é conhecer o modo de vida das pessoas, como vivem a sua vida,

quais suas experiências sociais e que significados atribuem às mesmas”.

(MARTINELLI, 2008:34)

Foram vários os motivos que influenciaram na escolha da Diretoria de

Assistência Social como lócus de pesquisa: ser uma unidade relativamente “pequena”;

seu efetivo ser composto em sua maioria por mulheres, cujas atividades profissionais

são específicas; e por último, mas, não menos relevante, esta unidade ser identificada

na PMERJ como um local voltado para o “cuidado” em relação à da Tropa, e isto pode

ter influência na predominância de mulheres e de uma diretora e uma sub diretora

mulher . Sendo o “cuidado com o outro” um fator que é visto historicamente como algo

próprio das mulheres.

Alguns fatos ocorridos durante o processo das entrevistas foram cruciais para o

resultado obtido. Eles estão intimamente ligados à pesquisadora. Sou uma nativa, ou

seja, mulher, negra e policial militar e ainda com uma vivência em meu cotidiano

profissional de situações de discriminação racial e de gênero muito próximas às

relatadas pelas entrevistadas. Por isso durante as primeiras quatro entrevistas, ocorreram

dificuldades em construir o necessário distanciamento em relação ao objeto da pesquisa,

o que acarretou em entraves à continuidade do trabalho. Como afirma Velho “a ideia de

tentar pôr-se no lugar do outro e de captar vivências e experiências particulares exige

um mergulho em profundidade difícil de ser precisado e delimitado em termos de

tempo” (1987:124). Se isso é difícil quando às situações sociais são distintas para o

pesquisador e o observado, o que dirá quando o pesquisador ocupa o que os seus

Page 12: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

11

interlocutores. Tais dificuldades suscitaram uma reavaliação de minha parte quanto aos

prós e contras em dar continuidade a este trabalho. Por fim, consegui entender que seria

possível continuar a pesquisa, atentando-se para aspectos relevantes que devem ser

observados por um pesquisador:

“esse movimento de relativizar as noções de distância e objetividade, se de

um lado nos torna mais modestos quanto á construção do nosso

conhecimento em geral, por outro lado permite-nos observar o familiar e

estudá-lo sem paranoias sobre a impossibilidade de resultados imparciais,

neutros”. (Velho, 1987:129)

É relevante citar que, a interrupção e reavaliação sobre as motivações desta pesquisa

foram cruciais para a concretização deste trabalho. Consequentemente as duas últimas

entrevistas, transcorreram de uma forma diferenciada. Pude, ao assumir a condição de

nativa, obter êxito na condução das mesmas, delimitando melhor o objeto da pesquisa,

apesar deste continuar me sendo “familiar”.

O trabalho está organizado da seguinte forma: no primeiro capítulo será feita uma

discussão sobre o que é racismo no Brasil, discutindo sobre os conceitos de raça, cor e

etnia, baseado em levantamentos bibliográficos.

No segundo capítulo serão abordadas as categorias que se relacionam às

questões raciais e de gênero, com base na experiência do cotidiano profissional das

entrevistadas.

E por último uma descrição de como são processadas as práticas discriminatórias

na PMERJ, identificadas a partir das entrevistas realizadas com (seis) mulheres policiais

militares autodeclaradas negras, de diferentes patentes, no que se refere às suas

experiências e suas reações, nesse contexto institucional.

Page 13: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

12

CAPÍTULO I – O RACISMO NO BRASIL

Com relação aos trabalhos utilizados na presente pesquisa, cabe citar que os

respectivos autores escreveram suas bibliografias em épocas distintas. E em algumas

situações um autor utiliza o trabalho do outro como referência para ratificar a temática

em questão, como é o caso do autor Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, que usa Oracy

Nogueira como referência em sua bibliografia. Há que se ressaltar também que em

nenhuma das pesquisas o recorte de gênero é privilegiado.

1.1 DEMILITANDO OS CONCEITOS RAÇA, COR E ETNIA.

Os conceitos de raça, cor e etnia, apesar de suas peculiaridades, apresentam

superposições que tornam difícil defini-los com precisão em situações concretas.

(Noronha et al, 1999)

No senso comum, “raça” e “etnia” são tidos como sinônimos. Mas, apesar do

conceito raça estar muitas vezes ligado ao de etnia, os termos não são sinônimos.

Enquanto raça engloba características fenotípicas, tais como a cor da pele, a etnia,

engloba as características culturais. Por vezes o estudo destes conceitos tem gerado

dificuldades na explicitação de suas diferenças. Guimarães (2009:25) procura esclarecer

esse debate afirmando que: “os grupos raciais são os que se julgam ter uma base

genética ou outra determinante. Os grupos étnicos são os que se supõem ter um

comportamento susceptível de mudar” (2009:25).

O termo “raça” traz uma variedade de definições, que veem sendo utilizadas

empiricamente para descrever um grupo de pessoas que compartilham caraterísticas

morfológicas (Santos et al, 2009). Porém ele é utilizado em uma perspectiva

conservadora e sem fundamentação científica. No entanto, alguns dos pesquisadores

afirmam que esta categoria está intimamente ligada a uma construção sócio histórica, e

sem qualquer base biológica, sendo ainda, objeto de estudo de um ramo próprio da

Sociologia ou das Ciências Sociais, que tem sido usado para tratar acerca das

identidades sociais. Como afirma D’ Adesky (2001), do ponto de vista da biologia ou da

genética, a ideia de raça é desprovida de valor científico, pois tal ciência afirma que não

existem “raças”, no plural, e sim raça. Todas as pessoas descenderiam de uma única

raça: a raça humana.

Nesse sentido, raças para a Sociologia

Page 14: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

13

“são discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos

que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades

morais, intelectuais, psicológicas, etc., pelo sangue (conceito

fundamental para entender raças e certas essências.”

(GUIMARÃES, 2008, pág.66).

Para o autor existem algumas características fenotípicas de “raça”, tal como a

cor de pele, tipo de cabelo, conformação facial, que revelam traços identitários, tal

como a ancestralidade. Entretanto, sociólogos consideraram o conceito “raça” muito

carregado de ideologia, a ponto de rejeitarem até mesmo a distinção entre “raça” e

“etnia”, se atendo a falar apenas de “etnia” (GUIMARÃES, 2009).

Atualmente, o conceito de raça quando aplicado à humanidade causa inúmeras

polêmicas, porque a área biológica comprovou que as diferenças genéticas entre os

seres humanos são mínimas, por isso não se admite mais que a humanidade é

constituída por raças. No entanto na década de 1970, o Movimento Negro Unificado

juntamente com teóricos engajados na luta contra o racismo, redefiniram o conceito de

raça, tratando-o como uma construção social forjada nas tensas relações entre brancos,

negros e indígenas.

O termo raça usado no contexto brasileiro tem uma conotação política e é

utilizado com frequência nas relações sociais, para informar como determinadas

características físicas, como cor da pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam,

interferem e até mesmo determina o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da

sociedade brasileira. (GUIMARÃES, 2008). Segundo o autor, o conceito de raça ao ser

usado com conotação política permite, por exemplo, aos negros valorizar as

características que os diferenciam das outras pessoas, buscando assim romper com as

teorias raciais que foram formuladas no século XIX e até hoje permeiam o imaginário

popular. Pode-se dizer que, desde então, construiu-se no movimento social um

consenso, tal como revela MUNANGA (2008), de que o emprego do termo “raça” deve

ser usado como construção socio-histórica, não envolvendo, portanto, qualquer acepção

biológica.

Já no que se refere ao termo “etnia” o que está em foco é a dimensão cultural.

Nesse sentido são destacados os elementos que ressaltam a identidade do indivíduo, tais

Page 15: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

14

como as relações de parentesco, a religião, o território compartilhado, a nacionalidade,

além da aparência física. Um grupo étnico é, portanto, uma comunidade definida por

afinidades linguísticas, culturais e semelhanças genéticas, que geralmente reclamam

para si uma estrutura social, política e um território. (MUNANGA, 2003).

O termo “cor”, retoma as narrativas que valorizam os elementos de origem

biológica. Consequentemente, no debate sobre a questão racial, está intimamente ligado

a um discurso classificatório, que é amplamente utilizado para análise de características

raciais. Mas vale ressaltar que a cor da pele se constitui apenas, em um dos elementos

que caracterizam a raça. (Noronha et al, 1999). Entretanto, a cor da pele estigmatiza o

sujeito a tal ponto, que se torna uma espécie de marca. No caso dos negros, em uma

sociedade racista, essa marca o difere pela suposta inferioridade, ou seja, é excludente.

No Brasil a cor da pele constitui- se em uma categoria importante de análise e é

sempre associada ao fator socioeconômico dos indivíduos. Para os brasileiros a cor da

pele está intimamente vinculada a uma hierarquia social, tornando-se um marcador de

diferenças de superioridade e inferioridade. Apontada como marca racial que exprimiu

simbolicamente e fisicamente a distância entre as duas camadas sociais, a cor da pele

além de indicar uma desigualdade social, passou a apontar a supremacia dos brancos e a

inferioridade moral, mental e social dos negros. Assim, subsistiram representações e

estereótipos associados à cor e às diferenças raciais que sustentam preconceitos e

discriminações. Entretanto a cor da pele não determina a ancestralidade, principalmente

em países altamente miscigenados como o Brasil. (GUIMARÃES, (2008).

Nos estudos sobre relações raciais no Brasil, a distinção entre “cor” e “raça”, ou

seja, aparência e ancestralidade muitas vezes se confundem. Segundo Guimarães

(2009), no Brasil os negros não são definidos pela regra “uma gota de sangue negro faz

de alguém negro”, o que segundo o autor, se constitui num dos motivos da falta de

clareza de alguns estudos sobre estas categorias. Tal dificuldade em uma definição clara

sobrea relação dessas categorias entre si, se deve ao fato de no Brasil, diferente do que

acontece nos Estados Unidos, os critérios de classificação étnico-raciais serem

relacionados à aparência externa, física, e não à ascendência das pessoas. Portanto,

nesse, contexto, o elemento “cor” passou a ser característica classificatória na definição

de raça.

Page 16: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

15

Para Telles (2003), a raça no Brasil se baseia principalmente na cor da pele de

uma pessoa, sua aparência física, e não na descendência africana. Segundo o autor, é a

marca exterior da pele que prevalece e não o sangue, afirmando ainda, que se o critério

utilizado aqui no Brasil fosse o da ascendência, todos seriam considerados negros,

frustrando a possibilidade de alguns cidadãos quererem se considerar brancos, pois essa

possibilidade seria reduzida à zero em face da ancestralidade brasileira, igualmente

como nos Estados Unidos.

1.2 RACISMO, PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO

Para Guimarães (2004), o racismo é uma doutrina que prega a crença na

existência de raças com diferentes qualidades e habilidades, e sua hierarquização. E que

elas são naturalmente inferiores ou superiores a outras, em uma relação fundada na ideia

de dominação. “Além dessa doutrina, - o racismo também é referido como sendo um

corpo de atitudes, [...] instruídos pela ideia de superioridade racial, [..], seja no plano

moral, estético, físico ou intelectual (GUIMARÃES, 2004, pág. 17). Essa teoria utiliza

de características fenotípicas-cor da pele, descendência-, morais, intelectuais e até

psicológicas, atribuindo a estas, valores positivos e negativos, justificando com essas

diferenças a inferiorização de uma raça em relação à outra. Segundo o autor, o racismo

pode ser definido tanto como uma doutrina ou ainda como um sistema de atitudes.

“Chama-se ainda de racismo o sistema de desigualdade de

oportunidades, inscritas na estrutura de uma sociedade, que

podem ser verificadas estatisticamente através da estrutura de

desigualdades raciais.” (GUIMARÃES, 2004:18).

O racismo se manifesta de diferentes formas e expressões, dentre elas estão o

preconceito racial e a discriminação. E se constitui numa ferramenta que cria, mantém e

perpetua o poder de um grupo em detrimento do outro, portanto, o conhecimento sobre

as diferenças conceituais entre racismo, preconceito e discriminação se torna

imprescindível para a identificação dos mecanismos discriminatórios. Guimarães (2004:

18) afirma, que estudiosos sobre essa temática classificam preconceito, como um

conjunto de atitudes ligados a uma crença preconcebida, ou seja, um julgamento

antecipado contra pessoa, grupos ou povos, baseados na ideia de raça. O preconceito

pode ser definido como “um juízo preconcebido de uma generalização estereotipada”.

Page 17: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

16

Já o conceito de discriminação, é caracterizado por comportamentos e ações

concretas, como o tratamento diferencial de pessoas, também baseado na ideia de raças,

ou seja, uma materialização do preconceito (MIRANDA, 2016). O autor afirma ainda,

que tais comportamentos podem gerar segregação e desigualdades raciais. Define

discriminação como “um ato intencional de efeitos públicos, que resulta em exclusão

social e marginalização. ” (MIRANDA,2016).

A lei 12.288 de julho de 2010 é considerada um marco para os militantes da

causa da “questão racial” e das relações raciais no Brasil, porque instituiu o Estatuto da

Igualdade Racial, que ao contrário das leis anteriores referentes à questão racial, buscou

promover a igualdade e a inserção da população negra em áreas como escolaridade,

mercado de trabalho, saúde, condições de moradia entre outros.

“Toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor,

descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou

restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições,

de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político,

econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou

privada.” (BRASIL,2010)

A discriminação racial se expressa de forma direta e indireta. A discriminação

racial direta é um termo empregado no Brasil, desde a década de 1990, pelo movimento

social negro, organizações internacionais e governo, visando à promoção de políticas

públicas para a promoção racial. E é definida como um a ação, ou comportamento que

prejudica aberta e explicitamente pessoa ou um grupo de pessoas em decorrência de sua

raça/cor (RODRIGUES, 2005), ou ainda outra característica que destaque tal como é o

caso do gênero.

Já a discriminação indireta se refere ao comportamento discriminatório não

explícito, manifestado por meio de condutas veladas, que resultam em exclusão racial

(JACCOUD; BEGHIN, 2002). A discriminação indireta tem sido frequentemente

associada ao “racismo institucional”, uma expressão introduzida por ativistas norte-

americanos na década 1960, e que atua de forma difusa no funcionamento das

instituições, provocando uma desigualdade na distribuição de serviços, benefícios e

oportunidades em função da raça.

1.3 RACISMO NO BRASIL E SUAS ESPECIFICIDADES

Page 18: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

17

O Brasil é signatário de todos os pactos internacionais de defesa dos direitos

humanos e combate ao racismo. A legislação nacional já definia através da Lei Afonso

Arinos lei federa1 nº1.390/51- os primeiros conceitos sobre o racismo, apesar de não o

classificar como crime, e sim como contravenção penal. Em 1988 houve uma relevante

articulação na luta contra as desigualdades raciais, quando, a Constituição Federal de

1988, em seu artigo 5º, inciso XLII, passou a considerar crime inafiançável e

imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Nesse contexto deve-se

destaque à lei federal nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989, de autoria do deputado Carlos

Alberto Oliveira. Conhecida como “Lei Caó”, tipificou o racismo como crime

inafiançável, e representou um grande avanço na luta contra a discriminação racial.

Sendo aprovada com vistas a regulamentar a disposição constitucional, definiu: “serão

punidos, na forma desta Lei, os crimes de discriminação ou preconceito de raça, cor,

etnia religião ou procedência nacional” (Brasil, 1989).

Segundo Freyre (2000), a perversidade do racismo brasileiro foi suavizada

durante anos através da ideologia da democracia racial. E por detrás dessa fantasiosa

“democracia racial”, ocorreram diversas manifestações brutais de preconceito racial no

Brasil. A questão da raça no Brasil, é enfocada por vários ângulos diferentes. Para

Telles (2003), o preconceito aqui no Brasil é baseado no fenótipo das pessoas, na

aparência externa, física de cada cidadão, chamado pelo autor de preconceito de cor,

quando mesmo sendo de descendência africana, mas possuindo a pele clara, esta pessoa,

para a sociedade brasileira, será considerada branca. Diferente do que ocorre nos

Estados Unidos, onde o que prevalece é a ascendência, pois a maioria das pessoas com

ascendência africana é classificada como negra.

No Brasil, muitas pessoas que são classificadas ou se identificam como

brancas possuem ascendência africana. Isso sem mencionar aqueles

classificados como pardos, morenos, mestiços, mulatos, pretos ou negros.

Portanto, a raça no Brasil se baseia principalmente na cor da pele de uma

pessoa e sua aparência física e não na descendência africana. (TELLES,

2003:15-16).

Os estudos sociológicos e a historiografia sobre o Brasil revelam que a sociedade

brasileira foi constituída, essencialmente, com base no sistema escravocrata. No entanto,

a escravidão não pode ser a única responsável pela discriminação racial, pela

desigualdade racial e pelo racismo na sociedade brasileira. Segundo Sansone (2002) no

Brasil a cor escura da pele tem uma estreita associação com a classe social. E

Page 19: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

18

historicamente, os afro-brasileiros têm tido uma grande representação entre as classes

mais pobres, contexto onde a discriminação racial tem atuado de maneira marcante nos

padrões de exclusão social.

Nogueira (1954), trata dos diferentes aspectos de como se verbaliza o

preconceito racial aqui no Brasil e nos Estados Unidos, em uma situação de

discriminação racial. Para Nogueira, o preconceito que prevalece no Brasil, é aquele

baseado no preconceito de cor, denominado pelo autor de preconceito de marca.

Paralelamente, nos Estados Unidos, o preconceito racial que prevalece é aquele baseado

na origem. Ou seja, quando preconceito está relacionado à aparência física dos

indivíduos, denomina-se preconceito de marca, e quando o preconceito ocorre por

deduzir-se que o indivíduo tem uma ascendência a um determinado grupo étnico, este é

denominado preconceito de origem. Segundo Oracy, no Brasil o preconceito de marca é

explícito, e está intimamente ligado à probabilidade de ascensão social, independente

das características físicas do indivíduo negro, o que disfarça o preconceito de raça pelo

preconceito de classe social. O autor afirma ainda, que a forma velada de preconceito

racial no Brasil deve-se à natureza do preconceito existente na sociedade brasileira: o

preconceito de marca, que se constitui no elemento fundamental para se pensar as

relações raciais no Brasil hoje.

Nos capítulos I e II analisaremos a construção da identidade da mulher negra

policial militar em seu cotidiano profissional na PMERJ, e os desafios enfrentados nessa

construção, com base em algumas categorias identificadas nas entrevistas realizadas,

que perpassam pelas questões de gênero e raça.

Page 20: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

19

CAPÍTULO II – A MULHER NEGRA NA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO

DO RIO DE JANEIRO

A exclusão das policiais “não negras” desta pesquisa ocorreu pelo fato do

enfoque principal ser a mulheres negras na PMERJ. Não que estas não mereçam a

devida atenção às suas demandas, é claro que há conflitos de gênero experimentados por

elas. Só que isso foge ao escopo desta monografia. O critério de escolha das

entrevistadas se deu de acordo com a sua autoclassificação como mulheres negras. De

início, foi explicado o que seria a pesquisa, o tema, os motivos e objetivos deste estudo.

Todas as entrevistadas demonstraram um grande interesse pelo tema, partilhando da

satisfação de participar da pesquisa, foram bastante solícitas em suas respostas, e ainda

manifestaram o desejo de conhecer os resultados deste trabalho.

A inserção das mulheres nas polícias militares decorreu de fatores diversos. No

Brasil, a inserção de mulheres nas instituições policiais militares data de um período da

ditadura militar, quando a maioria dos Estados já se encontrava num contexto de

democratização política, e teve como objetivos principais modernizar estas instituições

e “humanizar” sua imagem social que se encontrava desgastada pelo advento da

ditadura.

“A expectativa da inserção da mulher na polícia é da ‘humanização’, da ‘quebra

das tensões’, e da ‘melhor imagem da instituição na sociedade”. (Musumeci et al 2005:

55).

Assim, o ingresso da mulher na PM tinha a intenção de amenizar os olhares da

sociedade em relação à corporação, positivando assim a imagem da instituição,

“cobrindo certos campos de atuação em que o policiamento masculino,

fundamentalmente repressivo, estaria encontrando acentuadas dificuldades” (Musumeci

et al, 2005: 29), pois elas, no exercício da atividade policial militar, agiriam com rigidez

e com atitude, porém com menor violência.

Estes foram alguns dos fatores que demonstraram a importância, bem como a

necessidade do ingresso das mulheres nas Instituições Policiais Militares brasileiras.

A corporação Policial Militar, Força Auxiliar e Reserva do Exército brasileiro

desempenha sua atividade constitucional – Segurança Pública - (policiamento

Page 21: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

20

ostensivo) organizada com base na hierarquia e disciplina, seguindo a orientação do

Exército Brasileiro, que somente em 1977 regulamentou, através de portaria do Estado

Maior do Exército (Musumeci et al, 2005), a admissão de mulheres nos quadros de

carreira das Polícias Militares brasileiras. Em 1984, com a nova redação dada ao

Decreto-lei Federal 667, de 2 de julho de 1969 (Musumeci et al 2005), consolidou-se a

base legal para a incorporação de policiais femininas nos quadros regulares das PMs.

O Rio de Janeiro foi um dos estados em que a incorporação das mulheres à

Polícia Militar também se deu no começo da década de 1980. Em março de 1982 foi

iniciada a primeira turma de mulheres soldados da PMERJ, composta por 153,

preparadas durante um período de seis meses no Centro de Formação e

Aperfeiçoamento de Praças (CFAP) por policiais militares masculinos, já que não

haviam oficiais femininas, para integrarem a Companhia de Polícia Militar Feminina,

criada pela lei nº 746, de 11 de novembro de 1981, durante o governo Chagas Freitas. E

no ano seguinte, abriu -se uma turma para 14 cadetes, que passaram três anos na Escola

de Formação de Oficiais (EsFO), formando assim a primeira turma de oficiais femininas

da PMERJ. A Companhia de Policia Militar Feminina, já nascia diferenciada das outras

unidades da PMERJ, entre estas diferenças estavam a configuração de seu quadro

hierárquico, que limitava a ascensão das mulheres até o posto de Capitão. Quanto às

funções estavam restritas ao policiamento de trânsito, no trato com mulheres e crianças,

em terminais marítimos, ferroviário, aeroviários e rodoviários (SOARES; MUSUMECI,

2005). O efetivo feminino era alocado na Companhia Feminina, cuja sede era no 2º

BPM, mas o emprego em atividades operacionais das policiais era decidido pelos

batalhões onde estas atuavam.

Ocorreram ainda fatos marcante no cotidiano das mulheres policiais militares.

MUSUMECI (2005) afirma que de início a dessexualização da mulher policial militar

foi tão longa que nas Escolas de Formação de Praças e Oficiais do Rio de Janeiro, as

mulheres cortavam o cabelo no estilo ‘Joãozinho’ e era proibida do uso de maquiagem,

de joias, relógio discreto e anel de grau, num intuito de minimizar os signos usuais da

feminilidade. Apesar da criação da Companhia Feminina, a corporação enfrentou uma

série de dificuldades e não foi capaz de oferecer soluções, e nem de formular uma

política efetiva de emprego das mulheres policiais militares. O que resultou na

unificação dos quadros masculino e feminino, ocorrida em 1993 (SOARES;

Page 22: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

21

MUSUMECI, 2005) com a inclusão de oficiais femininas no Quadro de Oficiais de

Saúde. Este cenário não é diferente na Policia Militar do Estado Rio de Janeiro. Por se

tratar de uma instituição altamente hierarquizada no qual o trabalho policial foi

tradicionalmente visto como tarefa masculina, a aceitação do ingresso e permanência

das mulheres foi um processo lento, marcado por situações discriminatórias. Assim, a

conquista por espaço e igualdade tem sido a luta dessas mulheres policiais militares ao

longo de mais de 30 anos de existência.

2.1 A QUESTÃO DE GÊNERO NA PMERJ

Como já vimos no inicio deste trabalho, os estudos sobre a questão de gênero

surgiram nos anos 1970/1980, inicialmente, para problematizar a determinação

biológica da “condição feminina”, ampliando posteriormente os objetivos, incluindo o

de refletir-se sobre a constituição individual da identidade de gênero e a forma como

adquirimos nossa identidade de gênero, feminina ou masculina. (GROSSI, 1998).

A inserção das mulheres nas policias militares se deu em um contexto complexo

e decorreu de fatores diversos. Inserção, que segundo Musumeci et al (2005), sempre

esteve vinculada às hierarquias de gênero, oscilando entre a reprodução e a superação

dessas hierarquias na sociedade.

“...a presença das mulheres nas instituições militares apenas reproduz os

padrões de dominação vigentes na sociedade. Em geral ocupam cargos de

menor importância, não tem acesso aos postos de comando, desempenham

funções tipicamente associadas ao mundo doméstico e são desvalorizadas

pelos seus pares” (SOARES; MUSUMECI,2005:138).

Neste trabalho, apesar de ter tido como base sobre a discussão da questão de

gênero na PMERJ a pesquisa de Musumeci et al (2005), optei por não usar o termo PM

Fem para classificar minhas interlocutoras, mesmo sendo este, o jargão utilizado pelas

autoras. Pois compreende-se que a categoria PM Fem em si é reveladora de

discriminação de gênero. Portanto, nesta pesquisa, ao me referir às minhas

interlocutoras utilizarei o termo mulheres policiais militares.

A categoria PM Fem foi utilizada para classificar as mulheres policias militares

desde o ingresso das mulheres na PMERJ. De acordo com Musumeci et al (2005), em

1991 ocorreu o primeiro passo para unificação dos quadros, com a inclusão das oficiais

Page 23: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

22

femininas no Quadro de Oficiais da Saúde.2 Este episódio mobilizou algumas policiais

femininas, que solicitaram uma comissão pra avaliar formalmente a proposta. Mas, a

unificação só foi efetivada em 1993, por intermédio da Lei nº 2.108, de 19 de abril, que

garantia às mulheres os mesmos direitos dos homens. Entretanto, esta categoria apesar

de extinta oficialmente, continua sendo utilizada e internalizada entre os pares em seu

cotidiano profissional no interior da corporação.

No decorrer da presente pesquisa através das falas das entrevistadas, observou-se

que algumas categorias relacionadas à questão de gênero se mostraram predominantes

no cotidiano profissional das mulheres policiais militares na PMERJ.

Uma delas tem relação á categoria respeito, em especial no que se refere à

construção do respeito á autoridade, que é percebida como algo que tem que ser

conquistado, e não construído pela relação inerente ao cargo.

“A cada dia você tem que galgar um respeito, um olhar diferenciado. Porque

dizem que não, mas preconceito ainda existe. Então através do seu trabalho,

da sua força, ter dignidade, ter respeito aos olhos dos outros... Se não

tivermos o conhecimento, estaremos sempre em segundo plano.” (Sargento,

16 anos de PMERJ)

“É uma luta contra os seus iguais, contra os seus pares, que não te

reconhecem. É uma luta. Às vezes pra mulher que está no trânsito ser

respeitada porque ela está conduzindo um trânsito. Então o tempo todo você

tem que provar que você está ali porque você merece estar. Não porque você

é bonita, ou porque você é assim ou assado. Então é isso, todo dia você tem

que tá batalhando pra provar seu lugar”. (CAP PM, 7 anos de PMERJ)

“O tratamento que é dado, no meu caso, como sou oficial, eu percebo isso. O

oficial, o comandante, ele fala de uma forma com o major masculino e

comigo ele já quer gritar, já quer botar a mão nas cadeiras...” (MAJ PM 17

anos de PMER)

“Existe essa cobrança e existe até uma comparação. Por que muitos que tem

essa cabeça machista, não aceitam o fato da mulher na polícia militar,

entendeu. Quantas vezes eu trabalhando, não sei se intencional ou por achar

que a gente não tem capacidade dizem: “Não, não, deixa que eu resolvo”...

Alguma coisa que até a gente mesmo poderia resolver. ” (Sub Ten ,17 anos

de PMERJ)

Tais relatos estão em consonância com a afirmação de Musumeci et al (2005):

“..., as policiais do Rio de Janeiro ocupam hoje um lugar ambíguo e parecem

experimentar também sentimentos contraditórios no que tange a condição da

policial militar. Não havendo política institucional de gênero, nem um ideal

defendido especificamente pelas mulheres, através de um mecanismo de

2 Lei 1891 de 21 de novembro de 1991.

Page 24: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

23

afirmação de identidade, a imagem da PM feminina torna-se imprecisa,

individualizada e sujeita também a avaliações individuais, baseadas na

experiência empírica, quase sempre mediada por pré-noções, idealizações ou

mecanismos de resistência. (MUSUMECI et al, 2005:99)

Outro tema destacado pelas entrevistadas diz respeito ao perfil para atuação,

principalmente no que se refere às situações nas quais as mulheres policiais militares

relataram que já foram preteridas de cargos por não terem “perfil”. Cobra-se um “perfil”

aparentemente objetivo, que mascara as desigualdades de gênero.

“Eu até percebo certa postura das mulheres aqui tentando imitar o estereótipo

masculino, né. Buscando se enquadrar no perfil cobrado. Eu acho que é um

meio dela tentar falar, ou tentar se enquadrar, se encaixar nesse universo que

é predominantemente masculino. (TEN PM, 7 anos de PMERJ)

“Você pode observar que as mulheres que são colocadas em funções

importantes são as melhores das melhores, ou as que possuem o melhor

conhecimento e o melhor QI, no sentido de quem indique. E os homens não,

tanto faz ele ser um mediano, um meia boca, se ele for o da vez, ele vai, é

uma coisa natural. ” (MAJ PM, 17 anos de PMERJ)

“Do homem vão cobrar dele uma força uma virilidade, ele vai ter que provar

isso. Da mulher já é ao contrário, já espera que a gente seja frágil e

dependente deles. Então na relação na polícia isso vai aparecer. Por isso, que

qualquer coisa que a mulher faça, vão sempre ter uma expectativa de que tem

um homem que permitiu ou deu autorização.” (CAP PM, 7 anos de PMERJ)

“Parece que nunca vais ser o suficiente para o sistema. A gente sempre vai ter

que tá provando, se reinventando. E acho que eu até aprendi a ser muito boa

nisso de me reinventar. Agora eu saí de uma unidade, que eu me dediquei

dois anos nessa unidade e o parecer também, nunca vou esquecer, que era: “

O PERFIL DELA NÃO SE ADEQUA AO PERFIL DA UNIDADE”...

Então, o perfil de novo? Que perfil? Que perfil é esse que eles querem? Que

perfil de mulher que eles querem? ” (CAP PM, 7anos de PMERJ)

Apesar de não tratar especificamente da mulher policial militar, no texto ‘A

mulher militar brasileira no século XXI: antigos paradigmas, novos desafios’, as autoras

Lana Lage e Eliane Tardin afirmam que

“o discurso dessas mulheres mostra como as representações tradicionais de

gênero persistem, reproduzindo uma visão de mundo em que a mulher ainda

pertence ao lar e reiterando seus compromissos com o cuidado com filhos e o

marido. Mesmo mulheres que optaram por entrar em uma carreira

considerada tipicamente masculina, não conseguem se desvencilhar desses

estereótipos. A presença feminina no espaço público se defronta, assim, com

os limites constituídos pelas obrigações assumidas no espaço privado,

consideradas naturalmente femininas.” (LIMA; TARDIM, 2015:79)

2.2 A MULHER E SUA IDENTIDADE NEGRA NA PMERJ

SANSONE (2002) retrata a problemática da cor, especificamente na Polícia

Militar do Rio de Janeiro, e muito embora não trate da negritude feminina na

Page 25: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

24

corporação Policial Militar, traz grandes contribuições quando aponta a interligação da

cor e classe social, bem como sobre a complexidade da criação da identidade no âmbito

policial militar. Segundo o autor, no Brasil a cor escura da pele tem estreita associação

com à classe baixa. Assim o funcionalismo público, a Polícia e o Exército foram uma

via importantíssima de mobilidade social para os negros brasileiros. (SANSONE, 2002).

Todas as entrevistadas apontam que vivenciaram e perceberam dificuldades

associadas à identidade de mulher negra:

“A mulher negra ela está na base da pirâmide. Por ela ser mulher e ser negra

e ela vai sofrer os impactos disso, dessa dupla opressão. Então assim, ela vai

ter um desafio a mais, que muitas vezes a mulher que é considerada bonita

pelo perfil dela branca, olho azul, ela vai obter algumas coisas que eu não

acho que seja bom também. Mas ela às vezes vai ser melhor tratada no dia a

dia do que uma mulher negra, que muitas vezes vão gritar com ela, vão

assedia-la de uma forma que não fariam com outra pessoa e isso

independente da patente, da graduação. ”

(CAP PM 07 anos de PMERJ)

“Lá naquela recepção, a gente nunca nem eu e outras amigas que eu posso

citar nomes aqui, nunca ficamos. Já tinham aquelas meninas certas, que eram

as bonitinhas e essas bonitinhas não tinha nenhuma pretinha, nenhuma negra,

entendeu? Só eram elas. A gente era deslocada pra limpar o mato, ou

trabalhar lá varrendo, ou trabalhar no rancho, eu nunca tive oportunidade

dentro da polícia militar de trabalhar no setor, a não ser agora na DAS né”.

(SUB TEN PM, 17 anos de PMERJ)

“Ser mulher negra é difícil, muito difícil. Eu como negra eu sinto na pele,

senti e sinto na pele. O que é que é ser negra na corporação. É uma

discriminação muito grande. Ainda mais quando começa como praça. Acho

que o preconceito é muito grande por ser negra, sendo oficial há uma

dificuldade, mas é uma dificuldade que tem que tolerar. No caso dos praças

é.. ” (SUB TEN PM 31 anos de PMERJ)

“Nesse tempo todo que passei são poucas as mulheres negras que eu vi em

cargo de comando.” (SUB TEN PM 16 anos de PMERJ)

“Eu trabalhei em uma determinada unidade como subcomandante... E ele

disse que eu não tinha o perfil que ele gostava, que ele queria para o

PROERD. Ele me tirou e colocou uma pessoa clara. E isso gerou uma

controvérsia na época, foi parar nas redes sociais... E na minha opinião a

instituição não estava preparada pra tratar esse tipo de coisa...” (MAJ PM , 17

DE PMERJ)

Em seu livro “tornar-se negro”, a autora Neuza Santos Souza, retrata a

problemática do auto reconhecimento da identidade negra:

“Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua

identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências,

compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo a experiência

de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas

potencialidades” (Santos Souza, 1990:17-18)

Page 26: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

25

Observou-se a relevância de ressaltar ainda, o relato das entrevistadas, quanto à

motivação de seu ingresso e permanência na PMERJ. O principal aspecto destacado foi:

a estabilidade financeira.

“Logo que terminei o 2ºgrau, era muito jovem e não houve muitas

oportunidades. Aí acabei trabalhando durante 4 anos em uma casa como

empregada doméstica antes de ingressar pra corporação. Na época eu tinha

em mente ser militar por já ter 20 anos e sem a definição de uma carreira.

Precisava conciliar um local onde eu pudesse me manter e estudar. Por uma

questão financeira, entrei pra academia” (MAJ PM, 17 anos de PMERJ)

“Primeiramente a questão financeira, emprego público, salário e carga

horária a gente não encontra em outro lugar. E depois, mesmo nessa

instituição, tem esse preconceito, mas fora daqui também tem. Infelizmente é

estrutural. Só que pra, eu criar filhos fortes eu tenho que me fortalecer. Então,

tem que lutar (risos). Vai ter que mudar, mesmo que seja goela abaixo vai

mudar (risos)”. (TEN PM, 07 anos de PMERJ)

”Tem duas razões, a primeira é bem objetiva- o dinheiro. Não abriram muitos

concursos depois desse concurso que eu fiz, o salário é bom, a carga horária é

boa. Eu queria fazer teatro, minha mãe falou: “não, isso é coisa de quem já

tem um berço, já tem dinheiro. É, eu acho que o motivo principal foi

sobrevivência. ” (CAP PM 07 ANOS DE PMERJ)

Estes relatos se afinam com pesquisas sobre a motivação de ingresso na Polícia

Militar, como no caso de Muniz (1999), que observou em relação aos homens

“Do universo de praças entrevistados, a ‘estabilidade proporcionada por um

emprego público’, a ‘ falta de opção na vida’ e o ‘medo de ficar

desempregado’ aparecem como as principais alegações para o ingresso na

carreira policial militar, em detrimento da ‘vocação’ e ‘da tradição familiar’,

que também foram mencionadas apesar de subordinadas ao imperativo da ‘

necessidade de sobrevivência’ (Muniz, 1999:188)

Como já visto anteriormente as dificuldades enfrentadas pelas mulheres policiais

não são somente externas, ao contrário, estão no interior da própria corporação. As

mulheres enfrentam resistência do policial nas relações em seu cotidiano profissional. E

além do preconceito de cor e de gênero, enfrentam o total despreparo da instituição para

receber a mulher policial, que vão desde a falta de provisão de alojamento para

mulheres até a falta de fardamento e equipamento de proteção individual adequado á

rotina da mulher policial. Despreparo que se perpetua por exatos 36 anos.

“Há uma atmosfera que não contribui em nada com a permanência da mulher

na PMERJ, tudo aqui é para os homens, preparado para receber homens e não

mulheres. E eles até hoje, já tem mais de trinta e cinco anos da mulher na

Page 27: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

26

instituição, eles não estão preparados pra gente.” (MAJ PM, 17 anos de

PMERJ)

“Um exemplo clássico aqui na minha unidade mesmo. Existe o alojamento

dos praças e o dos oficiais e existe o alojamento das policiais femininas. E no

entanto eu como oficial superior não tenho um alojamento, não há previsão

de alojamento para o oficial feminino. Eu já trabalhei em várias unidades

em que não havia a previsão do alojamento feminino, e eu trocava de roupa

na seção, no banheiro do pátio. E todas as vezes que questionava essa

situação, nunca fui vista com seriedade, sempre com desprezo, com

demérito, com achincalhe.” (MAJ PM, 17 anos de PMERJ)

CAPÍTULO III – SER MULHER, SER NEGRA E SER POLICIAL MILITAR

A sociedade brasileira vivencia um contexto no qual as desigualdades e as

discriminações raciais e de gênero se configuram em instrumentos de exclusão social,

no que diz respeito à condição destes como sujeitos de direitos em relação à igualdade

de oportunidades. No caso das mulheres apesar dos avanços sociais, elas continuam

sendo vítimas do preconceito e da discriminação, que se encontram arraigados na

sociedade. E esse contexto incide sobre a mulher negra uma espécie de dupla forma de

discriminação, a racial e a de gênero. Em se tratando da mulher negra, uma forma de

discriminação potencializa a outra (MUNANGA, 2009).

Ao pesquisarmos sobre a situação das mulheres negras policiais militares na

PMERJ entendemos que os desafios vivenciados por estas mulheres se tornam ainda

mais complexos devido às questões pertinentes ao modelo de gestão militar da

instituição.

3.1 COMO A MULHER NEGRA SE SENTE INSERIDA NA PMERJ?

“No Rio de Janeiro e em outras unidades da Federação, surgiram variadas

formas de resistência à incorporação das mulheres, tanto por parte de oficiais

como de praças. Resistências que se manifestam, seja na reprodução de

imagens estereotipadas da mulher, como ser emocionalmente instável, sujeito

às “borbulhações” hormonais, uma espécie de “bonequinha” frágil, capaz de

realizar tarefas subalternas, associadas á esfera doméstica ou ao universo

burocrático, seja na discriminação direta de comandantes ou subordinados

que se recusam a trabalhar com mulheres ou, finalmente, no assédio moral ou

sexual, predominante no relato das entrevistadas do Distrito Federal, embora

também mencionado, de maneira mais discreta, pelas policiais das outras

duas UFs pesquisadas diretamente” ( MUSUMECI et al, 2005:180)

.

Page 28: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

27

No universo da pesquisa, observamos que as praças, apesar de relatarem

episódios de sofrimento e desigualdade, não citam exemplos e nem se expõem tanto

como as oficias, o que revela mais um elemento de opressão_ a hierarquia.

Identificamos algumas situações relacionadas às questões raciais e de gênero, que

demonstraram como a policial militar negra se sente inserida na instituição, que são o

assédio (moral ou sexual) e discriminação racial -

“Primeiramente, o tratamento que é dado às colegas, no grupinho dos

rapazes. A rede social da colega é observada, as fotos íntimas são colocadas

no grupinho e observadas pelos colegas, de maneira depreciativa. Assim

como eles veem uma revista pornô, eles dividem a Playboy, eles pegam no

Facebook da colega de ginástica e distribuem, isso ai é feito normalmente. ”

(MAJ PM, 17 anos de PMERJ)

“Para mim, ser mulher na polícia é todo dia você ter que provar o seu valor,

todo dia você tem que provar que você está ali porque você fez um concurso.

Não é porque você tem um rostinho, não é porque você é um corpo, você não

tá ali pra servir os homens e a instituição é masculina. Os homens veem a

mulher como você está aqui para mim servir, desde café até sexo. tratam

como.” (CAP PM, 07 anos de PMERJ)

“Ela vai ter um desafio a mais que, muitas vezes, a mulher que é considerada

bonita, pelo perfil dela (branca, olho azul) ela vai obter algumas coisas que

eu não acho que seja bom também. Mas ela às vezes vai ser melhor tratada no

dia a dia do que uma mulher negra que muitas vezes vão gritar com ela, vão

assedia-la de uma forma que não fariam com outra pessoa. E isso

independente da patente, da graduação. Eu mesma já passei por coisas que eu

nunca vi, um soldado homem passando, sendo capitão. E eu acho que tem a

ver com o fato de ser mulher negra. Acho não, eu tenho certeza, que tem a

ver.” (CAP PM, 07 anos de PMERJ)

“No momento em que eu trabalhava com uma outra oficial do mesmo nível

que eu (Capitão) também que era branca. A gente tinha uma linha parecida de

diálogo: com a chefia, com diretores, om tudo. Ela era a boa e eu a má. O

nosso chefe falava isso todo tempo na frente de outras pessoas, até de

graduações abaixo. Existe no regulamento que você só pode fazer uma

crítica ao seu subordinado se não tiver pessoas subordinadas a ele presente,

você tem que falar em particular, né. E ele falava no corredor, ele falava em

outras sessões que, uma era muito boa, que ela tinha perfil pro cargo que ela

estava. Eu era a indisciplinada que eu não tinha perfil, que ele não sabia o

que eu estava fazendo ali. E aquilo ficou na minha cabeça. Pensei: parece

que o que eu faço é menos tolerado, do que, o que ela faz. Porque menos,

tolerado? Nós não éramos iguais. Ela tinha o perfil mais pacato que o meu...

Eu fui muito perseguida por essa pessoa em específico, fui punida por ele, eu

era maltratada por ele, quando ele entrava na sala eu passava mal, por que ele

gritava comigo na frente dos outros, ele me desmerecia na frente dos outros e

com ela tinha uma espécie de assédio [ sexual] mesmo. – “Ele abraçava ela,”

–“ele passava a mão no cabelo dela”. Teve um dia que eu cheguei na sala e

ela estava toda encolhida e ele passando a mão no cabelo dela. Quer dizer: -

ela também estava sofrendo, mas são coisas diferentes. Não é querendo dizer

o que é pior ou melhor, mas no caso de ser mulher negra eu estava sendo

escorraçada, eu não estava sendo vista como algo bom, como algo positivo.

Eu era a indisciplinada, ele por várias vezes disse que eu tinha que desistir,

que aquilo não era o meu lugar, isso me marcou muito. Ali que eu vi que: eu

posso ser a melhor do mundo, mas eu sou uma mulher negra, isso algumas

Page 29: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

28

pessoas vão fazer questão de jogar isso na minha cara sempre. E esse mesmo

oficial, ele perseguiu outras mulheres negras também do meu quadro, uma

inclusive grávida, a menina entrou na sala aos prantos, chorando, falou que

ela ia perder o emprego, porque ela tinha ido ao médico e não tinha avisado.

Uma série de violações que as meninas brancas não estavam passando e não

tem como não perceber que isso era uma questão racial. Era de GÊNERO,

porque todas sofríamos, e era racial porque umas eram a que ele gostaria, que

ele via como alguém positivo para a instituição, que ele queria se apropriar

daquilo, e a gente era escorraçada, não era nem pra estar ali. Numa das vezes

que ele me puniu, ele falou: “ Agora com essa punição ela não vai ser

promovida”. Então ele fez com a intenção de me prejudicar na minha

promoção e eu tenho certeza que é por eu ser uma mulher negra...” (CAP

PM, 7 anos de PMERJ)

O documento ‘Mulheres nas Instituições de Segurança Publica’ faz menção de

alguns relatos de episódios de assédio sexual, ocorridos principalmente nas instituições

militares onde a hierarquia contribui para a prática do crime e seu ocultamento,

afirmando que :

“Para a maior parte das entrevistadas, as instituições de segurança pública

não oferecem qualquer tipo de apoio para vítimas de assédio sexual e/ou

moral, não oferecem canais de denúncia que sejam confiáveis e que não

resultem em novas punições e constrangimentos para as vítimas. De acordo

com algumas entrevistadas, o apoio da instituição depende da postura

profissional de um ou outro chefe, que mesmo sendo homem, pode se

sensibilizar com a situação e tentar ajudar. No entanto, mencionaram que a

saída será sempre pela remoção da pessoa que é assediada para outro

departamento/batalhão/setor, nunca pela denúncia daquele que assedia. ”

(SENASP, 2013:36)

Em comum, tanto a mulher branca como a mulher negra enfrentam dilemas

relacionados à questão de gênero em seu cotidiano profissional na polícia militar. Mas

os obstáculos que envolvem a mulher negra são bem mais complexos, pois além da

questão de gênero, há fatores específicos ligados à questão racial tais como, o

preconceito, a discriminação, o racismo, a estigmatização, a vulnerabilidade, entre

outros:

Apesar dos avanços do grande investimento em ações de qualificação

profissional, organização de trabalhadoras e estímulo ao empreendedorismo,

grande parte das desigualdades verificadas no campo do trabalho está

relacionada à permanência de convenções de gênero e raça que limitam as

possibilidades de atuação de mulheres e negros (IPEA, 2012:391)

E alguns destes fatores foram identificados nos relatos das entrevistadas

descritos a seguir:

“Eu me vejo como uma profissional que teve que mostrar muita coisa pra

chegar onde chegou. A vida da gente é sempre lutando pra provar mais do

que os outros, a gente que é negro não pode descansar. E não é paranoia não,

a gente vive isso todo dia, tem que estar atento, porque se não vem com

discriminação sim, vem com preconceito sim, vem com piadinha sim..”

(SUB TEN, 17 anos de PMERJ)

Page 30: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

29

“Quando eu estava me formando, achava que eu iria superar o racismo,

mostrando que era uma boa profissional. Então, quando as pessoas vissem

que eu era muito boa, o racismo acabaria. Mas na polícia eu descobri que

não. Sempre me esforcei no meu trabalho para fazer o melhor, mas isso é

uma coisa comum entre nós negros, a gente cresce aprendendo que tem que

ser sempre o melhor, porque vão sempre duvidar da gente. E os últimos seis

anos que estou na polícia isso teve pouco impacto no sentido de reduzir as

possibilidades de violência que sofri. Então me dei conta de que eu era

mulher negra, e que eu fizesse iria mudar isso, porque as pessoas iriam me

ver sempre como mulher negra”. (CAP PM, 07 anos de PMERJ)

“Eu acho que a polícia na minha vida é uma “Dádiva e uma Dívida”. É uma

dádiva porque as pessoas que vem de família mais humilde. Eu vi no meu

bairro outras pessoas como eu, jovens não tendo oportunidade. Então, eu

passei num concurso com vinte e um anos, coisa que muita gente não

consegue. Não consegue, não porque não tem capacidade, mas porque não

tem aquele investimento, não tem como, a pessoa precisa trabalhar, a pessoa

precisa se sustentar. E dívida porque é uma instituição muito difícil de se

estar, você se sente realmente devendo algo para todo mundo. Dentro da

instituição você se sente devendo, porque você tem que mostrar que você é

bom o bastante e meu perfil não é o perfil da instituição. Eu não vou

conseguir ser como eles querem que eu seja. Então isso vai sempre me

deixar em desvantagem. E fora que eu também preciso justificar para as

pessoas porque eu estou nessa instituição, sempre, que as pessoas não

aceitam, as pessoas acham que é uma instituição de opressão apenas. É sim

mas, tem várias camadas aí embaixo, tem várias pessoas sobrevivendo

também,. Então é isso, acho que é “ Dádiva e Dívida”. Ao mesmo tempo, eu

todo dia, eu me pergunto: Será que eu vou conseguir ficar aqui vinte e quatro

anos a mais? Será que eu vou sobreviver a essa instituição? É essa relação.”

(CAP PM, 7 anos de PMERJ)

“Eu já sofri discriminação sim, por conta do meu cabelo, sempre o cabelo,

né! A gente podia nascer bem pretinho. Deus, mas com o cabelo

melhorzinho, risos. Bem, meu cabelo tinha caído um pouco com esse negócio

de química, essas maluquices. Daí entrou um oficial, acho que major, no

alojamento da gente, e virou para mim e disse – “que cabelo e esse? ” Eu

olhei, virei a cara e continuei mexendo no meu armário, sem palavras.”

(SUBTEN PM, 17 anos de PMERJ)

Vale ainda ressaltar que, de acordo com o Guia de enfrentamento ao racismo

institucional, se configura discriminação racial:

“Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor,

ascendência, origem étnica ou nacional com a finalidade ou o efeito de

impedir ou dificultar o reconhecimento e /ou exercício, em bases de

igualdade, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos

político, econômico, social, cultural ou qualquer outra área da vida pública. ”

(Convenção ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968).”

3.2 AS PRÁTICAS DISCRIMINATÓRIAS NA PMERJ

Sobre o cotidiano profissional das mulheres negras na PMERJ, há uma

percepção que o racismo é velado, mas se encontra presente nos critérios de seleção das

policiais para exercer funções administrativas e extra quartel, essa particularidade fica

visível quando estas mulheres têm seu acesso não dificultado por normas e regras

escritas, mas por atitudes presentes nas relações sociais que se reproduzem nos espaços

Page 31: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

30

institucionais. Para as mulheres negras as conquistas de espaços são sempre mais

rigorosas, normalmente gerando desigualdades nas relações entre policiais militares do

mesmo gênero. Na seleção para tarefas burocráticas as características de escolhas são

sempre diferenciadas, é embutida de preconceito e discriminação, isso fica explicito em

alguns discursos:

“Alguns anos atrás... O comandante da corporação, ele descendo de uma

viagem no aeroporto. Ele viu um policiamento, e ali tinham mulheres

brancas, loiras, policias brancas, loiras, morenas e negras. Ele achou por bem

que deveria tirar as negras, porque as negras chocavam o turismo. Então

ficava feio o turista chegar e ver um grupo de policiais negras, então esse

comandante pediu pra tirar.” (SUB TEN PM, 31 anos de PMERJ)

“Assim que entrei na polícia já vi essa diferença gritante, as brancas

bonitinhas ficavam ali na recepção, para atender telefone, e ali faziam

cafezinho, essas coisas assim. A gente, as negras, eram para o rancho, para o

serviço bruto, entende?! A gente era para o “ah, pode mandar que elas

aguentam” (SUB TEN, 17 anos de PMERJ)

“Mas, parece que nunca vai ser o suficiente pro sistema, nunca vai ser o

suficiente para o sistema. A gente sempre vai ter que estar provando, se

reinventando. E acho que eu até aprendi a ser muito boa nisso de me

reinventar. Agora eu saí de uma unidade, que eu me dediquei dois anos nessa

unidade e o parecer também, nunca vou esquecer, que era: “ O PERFIL

DELA NÃO SE ADEQUA AO PERFIL DA UNIDADE”. Então, o perfil de

novo? Que perfil? Que perfil é esse que eles querem? Que perfil de mulher

que eles querem.” (CAP PM, 7 anos de PMERJ)

“A cor da minha pele teve um peso na classificação do curso, a minha nota

foi muito reduzida. Porque o COMANDO na época, avaliou pelo fato deu ser

negra que já estava bom pra mim. “Tu passou! O que tu tem já tá bom, segura

isso que está bom. ” Então, a minha nota que era muito alta foi pra baixo.

Então fiquei bastante indignada e fui até orientada a recorrer, tem o recurso

de recorrer. Eu poderia contestar a nota. Mas, só que eu fiquei com medo de

reduzir mais ainda, então ignorei, deixei para lá. Mas, fiquei bastante

magoada, bastante magoada mesmo.” (TEN PM, 7 anos de PMERJ)

“Sinto na maioria das vezes que tenho me enquadrar num mundo que não me

pertence, num mundo bem machista e que tem um preconceito racial forte,

que é o mais perigoso, porque às vezes você não consegue detectar, né.

Algumas atitudes racistas até porque o militarismo mascara bastante. E eu

acho perigoso, que eu não sei de onde vem o ataque e quando tu vê, tu já

tomando a paulada. ” (TEN PM, 7 anos de PMERJ)

As experiências acima relatadas pelas entrevistadas, remetem a uma prática

classificada como discriminação indireta, frequentemente associada ao racismo

institucional:

“o fracasso das instituições e organizações em prover um

serviço profissional e adequado às pessoas em virtude da cor,

cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas,

práticas e comportamentos discriminatórios adotados no

Page 32: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

31

cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito

racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de

atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional

sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos

discriminados em situação de desvantagem no acesso a

benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e

organizações.” (CRI, 2006:22)

Considerando como foco a sociedade brasileira, e entendendo que esta é

hierarquizada segundo estruturas raciais, é possível indicar que as opressões étnico-

raciais estejam presentes em diversos espaços da sociedade, abarcando também um

racismo institucional, que ao que tudo indica, estão presentes nas corporações policiais

militares.

Page 33: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

32

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente estudo foi descrever e analisar algumas situações de

discriminações raciais e de gênero, vividas por mulheres policiais militares negras na

Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, partindo da hipótese que há desafios

específicos experimentados por estas mulheres, em razão da sua condição de gênero e

de raça, que se tornam mais complexos pelo modelo de gestão militar da Polícia Militar

do Estado do Rio de Janeiro.

Ao longo da história assistimos a sociedade através de uma visão machista- fruto

de uma sociedade patriarcal- imputar às mulheres uma posição de submissão em relação

aos homens. Desde a infância, sempre foram educadas para falar baixo, terem bons

modos, brincarem de boneca e de “casinha”. Comportamentos que traduziam uma

subserviência, e contribuíam para que elas não tivessem voz e ação ativa para romperem

com o selo de passividade e buscassem alternativas para além do espaço convencionado

pelos homens como o espaço estritamente destinado a elas – o doméstico. E assim, as

mulheres foram silenciadas ao longo da história. Mas, a partir da década de 1960, o

mundo inteiro assistia à luta das mulheres pela ocupação de espaços na sociedade e no

mundo, antes pertencidos somente aos homens, brigando pelos seus direitos, e

conquistando seus espaços. A mulher, indo de encontro à todas as imposições, investiu

no seu potencial e galgou as mais diversas funções na sociedade brasileira. Atualmente

as mulheres estão inseridas em um contexto social, exercendo atividades nas mais

diversas áreas do conhecimento na atuação profissional. Algumas dessas participações

ainda são vistas com desconfiança, já que até bem pouco tempo era inconcebível a

mulher na linha de frente em várias situações ocupacionais. E rompendo com todas

estas barreiras, e desafiando todas as estruturas, ocupou ambientes profissionais que a

bem pouco tempo eram somente permitido aos homens, como por exemplo: a

instituição militar.

A condição de gênero foi, e ainda é, uma condicionante de discriminação em

relação à mulher na sociedade brasileira. E em se tratando da mulher negra, esta

condição é acrescida da questão racial, configurando assim uma dupla discriminação.

Em inúmeros segmentos da sociedade, a mulher negra enfrenta desafios específicos em

razão da sua condição de gênero e raça. A problemática da discriminação racial na

sociedade brasileira encontra profundas raízes históricas e está fortemente relacionada

Page 34: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

33

com os processos de exclusão que afetam os grupos sociais marginalizados por motivos

socioeconômicos. E segundo a discussão teórica dos autores utilizados neste trabalho,

os termos raça e etnia são considerados uma construção social, o que está em

consonância com a afirmação de Neuza S. Souza em seu livro “Tornar-se negro”. Para a

autora, a identidade negra não é algo que sempre esteve com os negros, as pessoas não

nascem “negras”, elas ganham a consciência desta condição.

Na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, a problemática vivida pela

mulher negra em seu cotidiano profissional não é diferente, já que esta instituição está

inserida nesta sociedade, reproduzindo assim esse contexto de dupla discriminação,

sendo este último complexificado pelo modelo de gestão militar da instituição.

Assim, ainda que se quisesse esconder a problemática da discriminação racial e

de gênero vividas entre os pares no cotidiano profissional da Policia Militar do Rio de

Janeiro, não seria possível, pois as falas dos policiais militares (homens e mulheres) não

deixam dúvidas de que elas existem, como em qualquer outro segmento da sociedade

brasileira.

Nas entrevistas as interlocutoras reforçam a natureza da discriminação de gênero

na instituição, que valoriza apenas os atributos tradicionais do espaço militar, que como

forma de reproduzir a relação de dominação e poder inerente à corporação militar, se

apropria de técnicas tais como as de masculinizar o feminino, fragilizar o espaço

feminino e a massificação da doutrina policial militar. Estas técnicas são caracterizadas

pelo despreparo da instituição para receber a mulher policial, e a falta de empenho em

se adequar a presença das mulheres policiais militares, que vão desde a falta de provisão

de alojamento para mulheres até a falta de fardamento e equipamento de proteção

individual adequado à rotina da mulher policial, fatos que se perpetuam desde o

ingresso da mulher na instituição.

Muito embora a PMERJ se constitua num veículo de mobilidade e ascensão

social para os negros brasileiros (SANSONE, 2002), os relatos das entrevistadas,

mostram que a questão racial tem se constituído uma barreira para ocupação de cargos

relevantes por mulheres policiais negras na corporação, em razão de sua cor. Para além

da questão de gênero existe ainda uma diferenciação no tratamento dado ás mulheres

Page 35: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

34

negras e às não negras por parte de seus pares policiais militares, principalmente sendo

estes, seus superiores hierárquicos.

A exemplo do mito da “democracia racial”, questão abordada por Freyre (2000)

que defende a teoria que, por conta da grande miscigenação do país, todos convivem em

“harmonia”, na Polícia Militar do Rio de Janeiro as práticas discriminatórias são

mascaradas por atitudes presentes nas relações sociais que se reproduzem no cotidiano

profissional no interior da instituição, e não por normas e regras escritas.

A discriminação racial é sentida e vivida pelas mulheres negras policiais

militares na PMERJ. Fato que fica é explicito em suas entrevistas, quando relatam que

sofreram e ainda sofrem discriminação pelo fato de serem mulheres, negras e policiais.

Tal situação se torna agravante, pelo fato de ser evidente um “silêncio” por parte da

Polícia Militar do Rio de Janeiro em relação às práticas discriminatórias ocorridas na

instituição, que não dispõe de políticas de enfrentamento às discriminações raciais e de

gênero.

Por fim ressalto que, apesar de na condição de nativa, ter vivido situações bem

próximas às relatadas por minhas interlocutoras, optei por não trazer para o trabalho a

minha própria trajetória, e me debruçar mais sobre os casos, demonstrando que a

pesquisa não se constituía numa questão pessoal, e sim estrutural. O objetivo era trazer

à discussão como tema acadêmico as discriminações sofridas pelas mulheres policiais

dentro da instituição, decorrente da sua condição de gênero, chamando á atenção para o

fato de que essa discriminação é potencializada quando é acrescida da questão racial.

Neste sentido, a presente pesquisa nos leva a concluir que as mulheres policiais

militares negras vêm enfrentando em seu cotidiano profissional na PMERJ, ao longo de

toda sua trajetória, desafios específicos decorrentes única e exclusivamente de sua

condição de gênero e raça.

Page 36: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

35

REFERÊNCIAS

ALENCAR, Larissa Siqueira de; CASTILHO, Maria Augusta de. Gênero e Relações

étnico-raciais: a mulher negra brasileira em debate. Revista Contribuciones a La

Ciencias Sociales, abril-junho/2016. Disponível

http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/02/mulheres-negras.html. Acesso em 10 jul 2017.

BRASIL. Estatuto Racial: Lei 12.288 de julho de 2010. 189⁰ da Independência, 122⁰ da

República. Publicações eletrônicas SEPPIR, 2012. Disponível em

<http://www.njobs.com.br/sep.pir/pt/.> Acesso em 10 jul 2017.

_________. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Mulheres nas Instituições de

Segurança Pública: estudo técnico nacional. Brasília. Ministério da Justiça, Secretaria

Nacional de Segurança Pública (SENASP), 2013.

_________.Secretaria de Assuntos Estratégicos. IPEA. 2012. Retrato das

desigualdades de Gênero e Raça. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília.

4ª ed. 2012.www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista/pdf Acesso em 22 de jul 2017.

_________. Secretaria Nacional de Promoção de Igualdade Racial. Guia de

Enfrentamento do Racismo Institucional. Brasília. Instituto Geledés. 2012.

Disponível em< www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/pub-acoes-

afirmativas/guia-racismo-institucional/view.> Acesso em 02 ago 2017.

FIGUEIREDO, Ângela. Dialogando com os estudos de gênero e raça no Brasil. In:

PINHO, Osmundo: SANSONE, Livio (Org.). .). Raça: novas perspectivas

antroplógicas. Salvador. Editora ABA/EDUFBA, 2008, p. 237-257.

GUIMARÃES, Antônio S. Alfredo. Preconceito e Discriminação. 2ª ed. São Paulo,

Editora 34, 2004.

________.Racismo e Antirracismo no Brasil. 3ª ed. São Paulo. Editora 34, 2009.

GUIMARÃES, Antônio S. Alfredo. Raça, Cor e outros conceitos analíticos. In:

PINHO, Osmundo; SANSONE, Livio (Org.). Raça: novas perspectivas

antroplógicas. Salvador. Editora ABA/EDUFBA, 2008, p.63-82.

GROSSI, Miriam Pillar. Identidade de Gênero e Sexualidade. In: ______. Gênero,

violência e sofrimento. Antropologia em Primeira Mão. n.6. Florianópolis:

PPGAS/UFSC, 1998.

MARTINELLI, Maria .Lucia. Pesquisa qualitativa: um caminho para a intervenção

profissional. In: SILVA, Ilda Lopes Rodrigues, MACÊDO, Myrtes de Aguiar (orgs.). O

Social em Questão 19 – Serviço Social: pesquisa e intervenção. Rio de Janeiro: PUC-

Rio. Departamento de Serviço Social, 2008.

Page 37: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

36

MENDES, Andréia A. Esteves. Desigualdades Raciais e de Gênero e a Inclusão das

Mulheres Negras na Educação e no Mercado de Trabalho: 30 anos de história

brasileira. 2013, p. 223. Dissertação apresentada no Curso de Mestrado em

Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado – UnC, Campus

Universitário de Canoinhas, 2013.

MUNANGA, Kabenguele et al. O Negro no Brasil hoje. São Paulo. Global editora e

distribuidora LTDA, 2006.

MUNIZ, Jaqueline. Ser policial é sobretudo uma razão de ser. Cultura e Cotidiano da

Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IUPERJ, 1999.

NEVES, Genivaldo Silva das. A presença da policial feminina com características

afrodescendentes na polícia militar da Bahia. 2008. 97p. Dissertação apresentada no

curso de Mestrado em Educação. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,

Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca e Preconceito de origem. In:

______Tanto Preto Branco: Estudos de Relações Raciais. São Paulo: TA Queiróz.

1985.

NORONHA, Ceci Vilar Et al. Violência, etnia e cor: um estudo das diferenciais na

região metropolitana de Salvador, Bahia, Brasil. Rev Panam Salud Public/Pan am.

Public Healt 5(4/5), 1999.

OLIVEIRA, Laudicéia Soares de. Na Mira da Supremacia Masculina. Dissertação

apresentada no curso de Mestrado em Ciências Sociais. Faculdade de Filosofia da

UFBA. Salvador, 2002.

SANSONE, Livio. Fugindo para a força: cultura corporativa e cor na Pmerj. In:

Estudos afro –asiáticos. Pallas, 2002, p.513-532.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade.

Porto Alegre: Faculdade de Educação/UFRGS, Vol.6, N° 2, jul/dez 1990.

SOARES, Bárbara Musumeci Et All. Mulheres Policiais: presença feminina na

Polícia Militar do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se Negro ou As vissicitudes da identidade do negro

brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro, 2ª ed. editora Graal, 1983.

TARDIM, Eliane Borges; Lima, Lana L. da Gama. A Mulher Militar Brasileira no

Século XXI: antigos paradigmas, novos desafios. Revista Ágora. Vitória, n. 22. 2015

p. 70-82 . ISSN: 1980-0096.

Page 38: Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências ... Marta Maria de... · por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960, intitulada A mulher na sociedade de classes, cujo objeto

37

TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de

Janeiro: Relume-Dumará: Fundação Ford, 2003.

VAINFAS, Ronaldo. Patriarcalismo e Misoginia. In: ______Trópico dos pecados:

moral, sexualidade e inquisição. Rio de Janeiro. Editora Nova fronteira, cap. 4, p.115-

151. 1997.

VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura. Notas para uma Antropologia da

Sociedade Contemporânea. Rio de Janeiro. Jorge Zahar editor, 2008.

WOITOWICZ, Karina Janz; PEDRO, Joana Maria. O Movimento Feminista durante

a Ditadura Militar no Brasil e no Chile: conjugando as lutas pela democracia

política com o direito ao corpo. Dossiê gênero, feminismo e ditaduras. Ano X, n.21, 2º

Semestre 2009, p.43-55. ISSN 1518-4196.