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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA CIDADÃOS EM TODA PARTE OU CIDADÃOS À PARTE? DEMANDAS DE DIREITOS E RECONHECIMENTO NO BRASIL E NA FRANÇA. Niterói 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

CIDADÃOS EM TODA PARTE OU CIDADÃOS À PARTE? DEMANDAS DE DIREITOS E RECONHECIMENTO NO BRASIL E NA FRANÇA.

Niterói

2009

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FABIO REIS MOTA

CIDADÃOS EM TODA PARTE OU CIDADÃOS À PARTE? DEMANDAS DE DIREITOS E RECONHECIMENTO NO BRASIL E NA FRANÇA.

Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor.

Orientador: Professor Roberto Kant de Lima

Niterói 2009

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CIDADÃOS EM TODA PARTE OU CIDADÃOS À PARTE? DEMANDAS DE DIREITOS E RECONHECIMENTO NO BRASIL E NA FRANÇA.

Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em An tropologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor.

Niterói, 20 de fevereiro de 2009.

Banca Examinadora

____________________________ Professor Roberto Kant de Lima (orientador).

PPGA/UFF.

____________________________ Professor Daniel Cefaï

Université de Paris X e CEMS-EHESS.

____________________________ Professora Eliane Cantarino O’Dwyer

PPGA/UFF.

___________________________ Professor Luís Roberto Cardoso de Oliveira

PPGAS/UnB.

___________________________ Professor Marco Antônio da Silva Mello

PPGA/UFF.

__________________________ Professor Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão.

PPGSD/UFF.

____________________________ Professora Maria Stella Amorim - suplente

Universidade Gama Filho

____________________________ Professor Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – suplente

PPGA/UFF.

Niterói, 2009

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Às diversas pessoas que, com amor e carinho, incentivaram esta longa jornada pelos

“mares” que naveguei. Em especial, à Leticia e aos meus pais, Edna e Toninho, cujo amor tem sido um sopro de vento para as “velas”

dos barcos em que andei.

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Agradecimentos:

A vida é a arte do encontro, pois é através dele que podemos coexistir e transformar os contornos e traçados de nossa história. Essa tese é fruto de diversos encontros que, ao longo de meu percurso pessoal e profissional, colaboram com meu velejar por essas diferentes praias e mares. Pessoas com as quais encontrei portos, naveguei, pensei e arrisquei... Sou grato por suas palavras, gestos, amizades e força nos melhores e piores momentos dessa navegação. Pelas ondas do mar da vida, pela Marambaia muito naveguei. Por lá muitos amigos, colegas e companheiros encontrei. Foram muitas travessias por essas águas que banham a Ilha. Aos muitos que encontrei, agradeço pelo acolhimento, pelas palavras, pela luta, pelas portas abertas de suas casas e histórias. Não poderia deixar de citar alguns. Sem dúvida, a luta de Adriano (e de sua família Lima), sua amizade, carinho, foi vento inspirador para outras partidas para outros portos perdidos. Agradeço ao Seu Joel, Seu Adilino, Dona Antônia, entre outros, por terem me permitido compreender o quanto uma luta pode ser também diversão. Agradeço a Dona Sebastiana pela maneira sutil de persistir em existir. Muito obrigado à Vânia, Pedrão, João Paulo, Seu Nana, Toca e muitos outros que muito me ajudaram nesse navegar. Dentre os portos que aportei, foi no NUFEP que troquei com muitos amigos, parceiros e camaradas. Lá, com eles, muito arrisquei... Não poderia deixar de agradecer ao timoneiro dessa grande embarcação que tem a conduzido por mares diversos com determinação. Agradeço ao Kant, professor, amigo e orientador, pela sua dedicação em suas orientações. Homem do mar que é, sempre estimulou seus alunos, orientados e amigos a navegar e seguir pelo mar sem pestanejar. Foi incentivador de muitos caminhos que tomei, discutindo, escutando, ensinando e apoiando. Entusiasta da transformação, conduziu esse rico lugar de encontros que é o NUFEP. Meu muito obrigado ao dedicado, ético e comprometido (com a coisa pública) professor e amigo que me apoiou por muitos mares em que naveguei! Para cima e para o alto, sempre... Nessa embarcação encontrei amigos e parceiros de pesquisa, discussão e intervenção. O colega, amigo e professor Ronaldo Lobão foi, sem dúvida, um grande camarada, amigo e professor das companhas montadas para nossas campanhas no mar. Por muitos lugares que passamos, por muitas águas que navegamos, sua amizade, opiniões e observações foram essenciais. Camarada para todas as horas, observador sagaz, Lobão foi um amigo e parceiro de trabalho que fez do mar um bom lugar para continuar a navegar. Espero que possamos continuar a nos aventurar por essas águas de uma antropologia possível. Outro navegante e condutor dessa embarcação, que tem seguido e apoiado meus passos nos mares em que andei, é o professor e amigo Marco Antonio da Silva Mello. Mello foi sempre um entusiasta das aventuras antropológicas de seus alunos, apoiando-os e estimulando-os com leituras, dicas e conversações. Passar horas de conversa, escutando suas orientações, foi fundamental para minha formação. Muito obrigado, Mello.

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Outros amigos e colegas do NUFEP foram figuras ímpares nesse trajeto por mares revoltos. Lúcio e Lênin foram amigos e cúmplices incontestes dessas guinadas dadas pelos mares do mundo. Sou muito grato pela amizade de Lucía, de sua sempre disponibilidade para colaborar. Agradeço aos amigos Christian, Sabrina e Roberta pela colaboração, seja de perto ou de longe, sempre presente. Aos novos colegas e amigos, obrigado por partilhar bons momentos: obrigado Virgínia, pela dedicação e colaboração; valeu Fred, por ser parceiro, e obrigado Antônio Rafael, pelo empenho no ofício. Tenho que agradecer a Gláucia Mouzinho pelo apoio e incentivo freqüente, bem como aos amigos Zé Colaço, Brigida e Vivian pela grandiosa amizade no NUFEP e no NUFAS. Nas ondas da Pós-Graduação, agradeço aos meus professores do PPGA que muito partilharam e ensinaram. Em especial, agradeço a professora Eliane Cantarino pelas discussões em seus cursos, bem como o Professor Paulo Gabriel pelas indicações bibliográficas e apoio constante. Agradeço a Ilma pela ajuda na construção desse espaço. Outros professores que passaram pelo PPGA e pelo NUFEP foram fundamentais nesse percurso. Agradeço pelas gentis contribuições do professor Luís Roberto, cujo trabalho tem sido fonte de muitas e novas discussões entre nós do Núcleo e do Programa. Quero expressar meus sinceros agradecimentos para os amigos e colegas que estiveram entre as praias e morros que freqüentei. As prazerosas vezes que estive em Itaipu e no Morro das Andorinhas foram marcadas pela hospitalidade da família de Seu Chico e de seu Bichinho, demonstrando que os gestos de fraternidade podem superar as mais difíceis barreiras. Obrigado em especial ao Seu Chico, Tidi e Seu Bichinho. Já distante do mar, no ritmo de samba de bambas, sou grato ao acolhimento da família Sacopã, cuja luta pelos humanos direitos inspirou este trabalho. Sou grato pelos prazerosos momentos que passei por lá, partilhando as conversas, escutando os sambas, degustando a amizade, a feijoada e a cerveja gelada ao lado de pessoas com um espírito vibrante. Um agradecimento ao Luís pela sua lição de perseverança. Em outros mares em que naveguei, tive a oportunidade de partilhar muitos projetos, discussões e ações na UENF e no ISP. Na UENF, encontrei bons marinheiros, mestres do mar que colaboraram com a construção deste trabalho. Em especial, agradeço ao colega e amigo Arno Vogel pelas conversações e aulas. Agradeço aos meus amigos Freitas, Wânia e Javier pelas boas horas de discussão. Agradeço aos meus alunos, que acreditaram nesse trabalho e continuaram a trilhar seus caminhos. No ISP, pude experimentar outros mares e construir novos portos ao lado de amigos e colegas. A determinação, ética e compromisso de Ana Paula foram essenciais para todos que naquele barco se encontravam. Encontrar e trabalhar com Kátia nos levou a uma longa amizade. Agradeço à minha amiga Solange, em especial, pela amizade, carinho e conselhos amigos. Também meu muito obrigado para Lana pelo apoio. Agradeço aos “camaradas do mar”, parceiros de longas jornadas, Fabio Fabiano e Eduardo Tavares Paes, pelas ações e projetos em comum. Não poderia deixar de expressar minha gratidão aos companheiros da Habtec, em especial meu muito obrigado ao Paulo pelo acolhimento e confiança.

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A grande parte dessa tese foi escrita ao “pé” da montanha, em Piabetá, numa pequena e aprazível maison. Morada da avó de minha querida amiga Soninha, foi lá que ergui os primeiros alicerces desse trabalho. Obrigado Soninha, pela amizade e apoio. Também a doce presença de Leticia foi estímulo constante para a superação dos momentos mais difíceis. Sua ajuda, leituras, observações, amor e carinho foram ventos que ajudaram a embarcação navegar. Agradeço muito a Lete, cujo amor superou mesmo a distância! Essa tese é fruto também de encontros por mares distantes. Do outro lado do oceano, encontrei muitos amigos e parceiros nessa empreitada. Agradeço muito aos amigos de primeira hora: Rita, por sua tenra amizade, Sidão, pelas longas conversações e desconstruções, André, pelas noites com cachaça e Foucault, Biaggio, pelo estímulo, Amílcar, pela ajuda constante, e Abraão, pelas boas horas de conversa. São pessoas sem as quais me desterritorializar e me aventurar na França não seria tão agradável. Agradeço aos amigos Etienne, Sophie e Virginia pelas histórias vividas e pelos sentimentos partilhados. Agradeço imensamente ao Jean-Claude, com quem naveguei por mares diversos em nossas histórias, conversações e discussões. Foram as belas palavras e imagens pinçadas por Chamoiseau que fizeram de nossas conversas uma vibrante amizade. Obrigado pelas portas abertas, gargalhadas e andanças pelos mares do Caribe e do Brasil. Valeu, meu amigo, pela grande amizade! Tenho que agradecer muito ao meu amigo Moise, pelas conversações e discussões que ganhavam as madrugadas da cidade de Paris. Sua inquietude com o mundo foi porto importante para a coexistência que ali fundamos. As portas abertas de sua casa, suas iguarias, sua amizade, serviram de estímulo para continuar a navegar. Também gostaria muito de agradecer ao Eddy, a Ana Julieta, a Mona e ao Antônio, pelas agradáveis conversas e discussões. Também meu muito obrigado aos amigos e camaradas Gabriel, Alexandre Werneck e Fernando Fontainha, companheiros combativos dessa grande companha brasileira em Paris. “É nóis”... Um agradecimento especial ao Fernando pela solícita ajuda na tradução de um dos documentos jurídicos analisados por mim. Valeu! Nos mares da academia, encontrei pessoas que muito colaboraram com esse trabalho. Daniel Cefaï foi um mestre e companheiro fundamental nessa companha. Estimulou-me a seguir por mares desconhecidos, abriu novas portas, foi amigo compreensível nas horas em que o mar se agitava. Obrigado pelas conversas e indicações. O professor Laurent Thévenot, com sua dedicação em escutar, discutir e orientar, colaborou significativamente na condução desse trabalho. As discussões em seus seminários, nos caffés e nos outros espaços de convívio foram importantes para o esboço dessa tese, pois seu trabalho foi, sem dúvida, uma das fontes de inspiração. Muito obrigado por sua generosidade, amizade e apoio. Sou muito grato aos outros colegas e amigos da EHESS e da Université Paris X, em especial os professores Marc Breviglieri e Pedro Sanchez, pelas portas abertas, dicas, conversas e interesse em colaborar. Obrigado Marc, pelos jantares amigos e divertidos. Valeu Pedro, pela atenção e carinho. Na

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França, pude ainda encontrar e estreitar os laços acadêmicos e de amizade com o professor José Resende, de Lisboa, um incentivador de minhas investidas por mares distantes e inconstantes. Desse laço, espero que possam surgir novas parcerias para outros também navegarem. Agradeço ao meu amigo e colega Matthieu, pelas estimulantes discussões, seja nos ares da academia francesa, seja nos bares do Rio de Janeiro. Independentemente do lugar, foram ricas as contribuições. Não posso esquecer das outras pessoas que ajudaram direta ou indiretamente esse trabalho. Agradeço ao René Levy, do CESDIP, pelas dicas, pois foi ele o primeiro a chamar minha atenção para a questão dos Antilhanos na França. Sou grato também a Antoine Garapon, do IHEJ, pelas dicas, conversas e material destinado para minha tese. Algumas conversas com ele aqui no Rio foram decisivas para tomar alguns novos rumos. Gostaria também de agradecer imensamente o professor Pierre Teisserenc por suas generosas contribuições. Sem o apoio das instituições de fomento à pesquisa não teria sido possível caminhar por esses mares. As bolsas e auxílios concedidos pela CAPES, que me destinou uma bolsa-sanduíche para realizar o estágio doutoral na França, e pelo CNPq, que me destinou uma bolsa de Doutorado, foram centrais para minha formação e para a produção dessa tese. Espero ter retribuído com um trabalho que tenha algum efeito no mundo acadêmico, bem como no campo político e social. Agradeço também a FAPERJ pelos diversos apoios à pesquisa e extensão, bem como o CNPT/IBAMA, FNMA que contribuíram com recursos essenciais à minha pesquisa. Por fim, devo um agradecimento especial para minha família. Ainda que muitos não compreendam bem meus passos e escolhas, eles aceitaram e apoiaram incondicionalmente os rumos que imprimi em minha vida. Agradeço meu pai Toninho e minha mãe Edina que me educaram, lutaram e batalharam para que eu chegasse até aqui. Uma família humilde, portadora de outras riquezas: o companheirismo, a fraternidade, a amizade e o cuidado com o outro. Sou grato pelo amor destinado por eles a mim. São eles que, com suas lições, carinho e ensinamentos, fizeram que meu trajeto fosse tão bom. Sou grato ao meu irmão por sua garra e determinação. Aprendi muito com ele nessa vida. Como sou de uma família extensa, não poderia deixar de registrar meus agradecimentos aos meus tios, cujas estradas construídas serviram de inspiração pro meu navegar. Em especial agradeço aos meus tios Chiquinho, Feliciano, Mundico e Edson pela garra e coragem. Agradeço meu primo Edilvan pela amizade e carinho. Uma grandiosa família em extensão de amor e coração. Como o mar é o “meu ninho, meu leito, meu chão”, espero poder, a partir desse trabalho, continuar a navegar com os colegas e amigos que me incentivaram e colaboram decisivamente para a produção dessa tese. Meu muito obrigado pela amizade, ajuda e colaboração! Que venham os novos encontros!

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“O caminho para uma produção intelectual que seja sempre crítica de si mesma passa pela identificação desse modelo para agilizar sua capacidade criadora e original. Há que utilizar com fecundidade nossas formas de expressão literárias e criativas, incapazes de descobertas bem comportadas; nossa oralidade e prolixidade; nossa impontualidade e falta de objetividade, sem reificá-las mas sem reprimi-las, percebendo-as pelo que são enquanto expressão de nossa identidade e reflexo de choques com outras identidades. Há que também conviver e exercitar-se revolucionariamente nessas características individualistas e disciplinares, fundadas no rígido controle de produção individual e na suposta liberdade de questionamento ilimitado dentro da forma acadêmica preestabelecida, exigente de um grande caos interior para parir estrelas bailarinas”. (Roberto Kant de Lima, Quando os índios somos nós,1997).

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SUMÁRIO:

RESUMO/ABSTRACT 12

INTRODUÇÃO 13

- Algumas linhas teóricas. 20

- Os caminhos percorridos e as metodologias empregadas. 29

CAPÍTULO 1: A S POPULAÇÕES TRADICIONAIS , OS QUILOMBOLAS E OS ANTILHANOS :

DISPOSITIVOS POLITICOS NAS MOBILIZAÇÕES COLETIVAS . 44

1.1 Populações Tradicionais: Rosseau versus Lavoisier. 47

1.2 Quilombos de ontem, quilombos de hoje: a “desfrigorificação” de um conceito. 57

1.3 Os Antilhanos e o paradoxo republicano. 78

CAPÍTULO 2: POSSE DA HISTÓRIA: O PROCESSO DE REIVINDICAÇÃO DO RECONHECIMENTO DA

COMUNIDADE QUILOMBOLA DA MARAMBAIA . 90

2.1 Memórias da escravidão. 95

2.2 Memórias da escola de pesca. 111

2.3 No tempo da Marinha e a posse da história. 121

CAPÍTULO 3: QUANDO A CIDADE VIRA MEIO AMBIENTE : O PROCESSO DE RECONHECIMENTO DOS

DIREITOS TERRITORIAIS DA COMUNIDADE TRADICIONAL DO MORRO DAS ANDORINHAS 151

3.1 “Tanto quem faz e se apraz, um dia a casa cai!” 158

3.2 Em cena, a associação. 166

3.3 O meio ambiente não desiste. 176

CAPÍTULO 4: AS IDENTIDADES MEURTRIÈRES E O CORPUS REPUBLICANO : O PARADOXO

FRANCÊS 185

4.1 Ser nacional é ser universal. 188

4.2 Ser negro francês e ser francês negro: entre assimilação, integração e

reconhecimento. 198

4.3 O jogo pelo reconhecimento. 210

4.4 O reconhecimento e a luta pela reparação da memória. 221

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CAPÍTULO 5 CIDADANIA , HIERARQUIA E DEMOCRACIA : NOTAS SOBRE O UNIVERSALISMO

FRANCÊS E O PARTICULARISMO BRASILEIRO 235

5.1 A noção de igualdade a prova das sensibilidades jurídicas. 240

5.2 Ser cidadão, ter cidadania: alguns apontamentos. 243

5.3 Dignidade, diferença e igualdade: o reconhecimento em jogo. 261

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS : RECONHECER E SER CONHECIDO: DUAS LÓGICAS E UM

PARADOXO . 272

Legislação citada. 281

Documentos diversos citados. 283

Bibliografia. 284

Anexos. 302

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Resumo: Propomos discutir na tese os processos de mobilizações coletivas que envolvem demandas de direitos e de reconhecimento vinculadas às reivindicações de identidades diferenciadas. Discutindo esta problemática sob o ponto de vista antropológico, empreendemos uma análise contrastiva entre as sensibilidades jurídicas e as gramáticas políticas, jurídicas e morais brasileira e francesa, para lançar um olhar sobre os processos reivindicatórios de grupos concebidos nestes dois espaços públicos como "minoritários". No Brasil as demandas de direitos vinculados a reivindicações de identidades diferenciadas, podem ser observadas em situações de conflitos que envolvem o reconhecimento das identidades e de direitos dos denominados "remanescentes de quilombos" e das "populações tradicionais". Portanto, elegemos como campo empírico a controvérsia pública relacionada ao reconhecimento da comunidade "remanescentes de quilombos" da Ilha da Marambaia, localizada no litoral sul do Estado do Rio de Janeiro, e o conflito existente entre o "meio ambiente" e a Comunidade Tradicional do Morro das Andorinhas, localizada no bairro de Itaipu, Niterói. Na França, cuja composição cultural, étnica, nacional e religiosa é diversa, tais processos podem ser observados em diferentes contextos. Lançamos nosso olhar para as demandas de reconhecimento de direitos e de identidades diferenciadas levadas a cabo pelos "Antilhanos" que moram em Paris, em especial os martiniquenses, cujo paradoxo de ser francês negro, promove uma oscilação entre ser "français à part entière et français entièrement à part". Propomos discutir de que modo estes atores lançam mão de diferentes regimes de engajamento para justificar suas reivindicações, tornando-as legítimas ou não nestas arenas públicas. Partindo do princípio que estes regimes obedecem a diferentes gramáticas jurídicas, políticas e morais, chamamos atenção para o fato que as denominadas políticas de reconhecimento ganham contornos distintos de acordo com os contextos locais. Palavras-chave : antropologia ; reconhecimento ; aç ão afirmativa ; Brasil e França. Abstract: Our focus in this thesis is to discuss several collective action processes which are aimed on quests for rights and recognition that activate claims for distinctive identities from an anthropological point of view. We undertake a contrastive analysis between Brazilian and French legal sensibilities and moral, legal and political grammars in order to pursue an understanding over the claims of groups who are conceived in the public spaces of these two cultures as "minorities". In Brazil , we can see claims for land rights and others, tied to a recognition of distinctive identities, as the struggle for recognition of traditional peoples and former slaves descendants, called "quilombolas" shows. Our fieldwork was done among the quilombolas of Marambaia Island (located on south shore of Rio de Janeiro State ), and along the conflict between environmental activists the traditional community of Andorinhas Mountain (located in the city of Niterói , State of Rio de Janeiro ). In France , we could see these claims in different contexts, once this country has another cultural, ethnic, national and religious background. In a fieldwork of eighteen months in Paris , we could follow the demands for rights and for distinctive recognition held by people from the Antilles that live in Paris, mainly the ones from Martinique . They live a particular paradox in which being black and French promotes a pendulum between being "français à part entière et français entièrement à part". Our ethnography shows these actors activate different "regimes d'angagement" to support their claims, which in distinctive public space, become legitimate or illegitimate, accordingly. The clue is that these regimes are build from different legal, political and moral grammars and so recognition politics are conceived and practiced according to local contexts. Keys-word : anthropology ; recognition ; affirmativ e action ; Brazil and France.

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INTRODUÇÃO

La pensée archipélique convient à l’allure de nos mondes. Elle en emprunte l’ambigu, le fragile, le dérivé. Elle consent à la pratique du détour, qui n’est pas fuite ni renoncement. Elle reconnaît la portée des imaginaires de la Trace, qu’elle ratifie. Est-ce là renoncer à se gouverner ? Non, c’est s’accorder à ce qui du monde s’est diffusé en archipels précisément, ces sortes de diversités dans l’étendue, qui pourtant rallient des rives et marient des horizons. Nous nous apercevons de ce qu’il y avait de continental, d’épais et qui pesait sur nous, dans les somptueuses pensées de système qui jusqu’à ce jour ont régi l’Histoire des humanités, et qui ne son plus adéquates à nos éclatements, à nos histoires ni à nos moins somptueuses errances. La pensée de l’archipel, des archipels, nous ouvre ces mers. Edouard Glissant Traité duTout-Monde (1997)

O mundo dos arquipélagos desenhado por Glissant nos parece adequado para a

introdução de nosso trabalho. O “mundo ocidental” dos tempos atuais comporta um

emaranhado de “arquipélagos culturais” que permite a coexistência de uma pluralidade

e diversidade de modos de pensamento e ação que não estão isolados, mas

interconectados e atravessados por múltiplas redes de significados. Como Hannerz

(1997) propõe em um de seus trabalhos, as categorias fluxo, mobilidade, recombinação

e emergência são palavras chaves do vocabulário da antropologia, da política e da

imagem que habita o “pensamento ocidental” contemporâneo.

Do mesmo modo, a “pensée archipélique”1 de Glissant é pertinente pela sua

capacidade de implodir os sistemas explicativos monolíticos e homogêneos, que visam

reduzir a conduta humana a um conjunto de práticas “racionais” e “maximizadoras”,

inscritas numa lógica utilitarista. A abordagem que atravessa esse trabalho é de cunho

antropológico, cuja perspectiva relativizadora implica estranhamento não só dos Outros,

mas de nós mesmos, e visa inserir esta “racionalidade prática” num conjunto de

significados próprios do sistema cultural “ocidental”, que, como Sahlins (1979) propõe,

tem a noção “razão prática” inscrita no seu modus operandi. Assim, a abordagem

antropológica aqui adotada visa entender como os atores, com suas múltiplas

1 Gostaríamos de ressaltar que a partir desse momento os conceitos serão citados em negrito, as categorias nativas serão sublinhadas (as que são em francês ficarão também em itálico) e as expressões, termos, etc., ficarão entre aspas. As palavras em inglês, francês, etc. ficarão em itálico.

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capacidades de leitura e re-significação do mundo, reelaboram suas Histórias (Sahlins,

1990).

Ao analisarmos os dispositivos jurídicos e discursivos e os vocabulários

empregados pelos atores em suas reivindicações de direitos e reconhecimento em

torno de “identidades diferenciadas” no Brasil e na França, pretendemos fazer emergir

as distinções existentes entre as duas gramáticas políticas sem cairmos nas armadilhas

do “essencialismo cultural” (Said, 2004). Nossa intenção é realçar, através da pesquisa

antropológica, as diversas formas como os atores operam suas ações e críticas em

situações diversas. Como a etnografia consiste numa leitura e descrição relativa às

situações experenciadas por múltilplos sujeitos (o antropólogo e seus infinitos

interlocutores), ela implica em circunscrever e escolher focos de análise e interpretação,

sem reduzi-los às “ilhas de entendimento”.

Nesse sentido, as sensibilidades das tradições jurídicas locais são fundamentais

para a constituição do modelo jurídico-político e suas definições múltiplas a respeito,

por exemplo, das categorias diferença, desigualdade e igualdade. Ora, o que queremos

ressaltar é que os significados e sentidos referentes às categorias democracia,

República, etc, apresentam características que devem ser problematizadas,

confrontado-as com as formas como os atores lidam com suas instituições e seu corpus

republicano.

No presente trabalho, um dos pontos centrais é o questionamento acerca das

políticas públicas voltadas para o reconhecimento, ou não, de diferenças, na gramática

e no vocabulário político “ocidental”. Do exército francês, que distribui comidas sem

porcos aos soldados muçulmanos, às castas dos intocáveis na Índia, passando pelos

remanescentes de quilombos que se organizam no Brasil e as affirmative actions nos

EUA, a gramática do reconhecimento (Fraser, 2005) tem figurado como pano de fundo

das ações e mobilizações públicas em diferentes cantos do mundo.

Sob este ponto de vista, os acontecimentos das últimas décadas parecem

recompor a paisagem social e cultural de alguns “arquipélagos mundiais”. Nesse

sentido, em 2008, a ascensão de um Presidente negro à Casa Branca foi

paradigmática. A vitória de Barack Obama levou o mundo a se questionar a respeito

dos efeitos de um sistema político que tem privilegiado, nas últimas três décadas, a

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constituição de mecanismos de inclusão de minorias que, desde 1964, com o Civil

Rights Act, têm provocado resultados inusitados no cenário jurídico-político dos EUA.

Uma vitória emblemática num país espelho para outras democracias ocidentais, mas

que havia convivido durante décadas com um sistema social, político e jurídico

segregacionista, no qual negros e brancos tinham acesso desiguais aos bens públicos

e do mercado. Na década de 60 a política de affirmative action nasce com a finalidade

de corrigir as desigualdades e discriminações às quais as “minorias” (negros,

hispânicos, indígenas, etc.) foram submetidas (Sabbagh, 2003).

Enquanto a affirmative action tem sido colocada em xeque em diversos Estados

americanos - como a Califórnia, Missipi, Flórida, Texas, entre outros – temos assistido

na Europa e na América Latina tentativas de transposição desse modelo. Na França,

em particular, a percepção no círculo político e acadêmico a respeito da affirmative

action é de que elas contribuíram para a fragmentação da nação americana em

comunidades constituídas em frações antagônicas (Viprey, 2005). A partir dessa

premissa, a affirmative action na França tem se baseado em critérios sócio-econômicos

e não em critérios raciais, como nos EUA:

Os EUA concebidos como uma federação de povos, uma “nation of many peoples”, uma nação “multiétnica e multiracial” não pode ser pensada, como é o caso da França, por exemplo, como uma República “una e indivisível”, como uma categoria não suscetível de toda subdivisão. Desse modo, se do lado americano a soberania é dividida em “segmentos étnicos”, do lado francês ela forma um “bloco indivisível” onde não se fala nunca em raça. (Viprey, 2005: 37)2.

Entretanto, as tensões sociais crescentes nas grandes capitais francesas, a

organização de movimentos sociais de negros e imigrantes no espaço público francês,

alguns eventos paradigmáticos, como os émeutes nas banlieues em 20053, permitiram

a emergência de um debate intenso no meio acadêmico e político francês acerca do

2 Cabe ressaltar que as traduções são livres e foram realizadas por mim. 3 O termo é polissêmico e possui diversos sentidos na língua francesa. Na imprensa francesa as manifestações nas principais capitais da França metropolitana, levadas a cabo por jovens da periferia destas áreas, culminando em destruição de vários patrimônios privados e públicos, foram objeto de discussão acerca de qual terminologia a ser empregada nesse caso. Émeute é um eufemismo de revolta, pois designa uma emoção manifesta publicamente e coletivamente. Foram amplamente noticiadas as revoltas de 2005 em que jovens atearam fogo em carros e lojas em Paris, Lyon e etc.

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modelo republicano jacobino. Alguns grupos têm organizado suas ações, mobilizando o

direito em prol das lutas contra as discriminações e desigualdades existentes. Em 2008,

pela primeira vez, uma empresa francesa foi condenada pela Justiça a pagar pesadas

indenizações para dois Antilhanos por discriminação. Os dois entraram na Renault ao

mesmo tempo em que outros dois colegas brancos, com a mesma formação escolar,

porém com melhores avaliações no decorrer da carreira, chegando, todavia, no fim da

vida profissional, a níveis (hierárquicos e de salário) sensivelmente inferiores aos de

seus colegas brancos. Moveram uma ação e foram indenizados por terem sido,

segundo a justiça, vítimas de discriminação4. A assunção do status de negro-francês,

por um lado, e a política assimilacionista francesa, por outro, tem sido a força motriz

das tensões existentes nas interações cotidianas no espaço público francês e a

conseqüente emergência de demandas de reconhecimento por igualdade e das

especificidades de alguns grupos que compõem a nação francesa.

Noutro continente, na Índia, as primeiras políticas públicas de fomento de ações

de discriminação positiva - na época colonial em que Jeremy Bentham e Jonh Stuart

Mill visavam transformar a colônia britânica num laboratório de melhoria da condição

humana – foram implementadas pela administração britânica com o intuito de suprimir

as desigualdades ocasionadas pelo sistema de castas que desigualava os brâmanes e

os intocáveis (Jaffrelot, 2002). Foram estes, portanto, beneficiários da política colonial

de discriminação positiva através de um sistema de cotas/reservations (Jaffrelot, 2002:

131). As primeiras investidas de reservation de vagas nas escolas às castas baixas

foram infrutíferas, pois os intocáveis foram vítimas da rejeição de pais e professores

nas escolas. Ainda, os britânicos introduziram anos depois um sistema de cotas no

domínio da representação política (Jaffrelot, 2002). O princípio de complementaridade e

hierarquia (Dumont, 1966) que vigorava no sistema de pensamento indiano se

confrontou com o princípio dos direitos individuais liberais, que se opõe:

O impacto da discriminação positiva indiana em termos de politização das castas baixas, isso que a gente chama de empowerment, teve duas conseqüências inesperadas. Em

4 Esta informação me foi passada por um amigo francês, Jean-Claude, a quem agradeço imensamente pela generosa colaboração.

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primeiro lugar os OBC e os scheduled castes tomaram o poder político na grande parte dos Estados em que eram marginais nas funções públicas. Em segundo lugar, o Norte não somente alcançou o Sul como o superou, não em termos de cotas, mas em termos de acesso das baixas castas ao poder político (Jaffrelot, 2002:144).

É o caso da primeira-ministra do Presidente Uttar Pradesh, Kumari Mayawati,

proveniente de uma casta baixa.

No Brasil, diversas ações têm sido levadas a cabo a partir da década de 90 do

século XX, com vistas a superar as desigualdades existentes entre os múltiplos setores

da sociedade brasileira. Essas políticas de ação afirmativa têm se caracterizado, e se

concentrado, na discussão acerca das cotas nas universidades, reduzindo o debate

entre defensores e opositores (Pinto e Clemente Júnior, 2004). Noutros domínios ela

tem ganho destaque em conflitos territoriais ou de acesso aos recursos naturais

renováveis, envolvendo “populações tradicionais”, de um lado, e fazendeiros do agro-

negócio, Forças Armadas e empresários, de outro. Seja através das demarcações de

terras indígenas, ou da titulação das comunidades remanescentes de quilombos, ou

com as políticas públicas como as Reservas Extrativistas Marinhas e Terrestres, as

demandas destes atores, sob a bandeira da “tradição” e “memoralidade”, têm adquirido

visibilidade e destaque na arena pública brasileira.

Recentemente, grupos indígenas que disputam seus territórios com arrozeiros

em área do Estado de Roraima tomaram o plenário, com seus trajes típicos, na alta

corte da justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal, para assistir ao julgamento

sobre o modelo de demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Coube à

advogada Joênia, índia wapichina nascida e criada na reserva, apresentar os

argumentos de defesa da demarcação do território pleiteado pelos grupos indígenas,

como noticiado em vários jornais. “Que nossos valores espirituais, nossas terras, matas

e águas sejam considerados como necessários para nossa vida”, assim iniciou seu

discurso com a frase de língua wapichana.

Noutro canto do Brasil, camponeses, pescadores artesanais e descendentes de

escravos travam uma batalha jurídica e política contra a Base de Lançamento de

foguetes em Alcântara, Maranhão, confrontando-se com as Forças Armadas, grupos

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empresariais internacionais, políticos regionais e nacionais. Anos de conflitos e

embates, culminaram em 2008 na publicação do Relatório Técnico de Identificação e

Demarcação das terras dos moradores tradicionais de Alcântara, sendo reconhecidos

pelo Estado brasileiro como remanescentes de quilombos. No coração de um dos

bairros mais valorizados de uma das maiores metrópoles brasileira, o Rio de Janeiro,

uma família descendente de escravos pleiteia a propriedade de seu território ocupado

desde o final da década de 30 do século XX, frente às ações do poder imobiliário local.

No bairro da Lagoa habitado por políticos, artistas, juízes, desembargadores e

empresários, há a conflituosa co-habitação deste mundo com o da família Pinto,

descendente de negros, ex-escravos, cujo patriarca aportou no local para a abertura

das ruas na região. Embora a família tenha adquirido suas terras por uma ação de

usucapião, em primeira instância, o Tribunal de Justiça entendeu que os mesmos não

eram portadores de animus domini e negou a propriedade da terra à família. Por suas

“raízes negras”, seus vínculos culturais com a “africanidade”, como o tradicional samba

e a feijoada, a família Pinto vem demandando o reconhecimento como remanescente

de quilombos.

Estas situações, encontradas em diferentes cantos do mundo, evidenciam a

fundamentação de demandas de direitos de cidadania, articulados com demandas por

reconhecimento de identidades (Taylor, 1994; Cardoso de Oliveira, 2006 e 2004b).

Demandas que articulam lógicas próprias, que informam as ações e cosmologias dos

atores em contextos particulares e locais. Ora, se a lógica do “todos juntos, mas

separados” imprime um ritmo às coordenações das ações dos atores nos EUA, o

princípio de complementaridade é o pano de fundo das ações dos atores na Índia

(Dumont, 1996). Por outro lado, no Brasil, os princípios holista e individualista convivem

dinamicamente, possibilitando que os atores usem contextualmente os dois regimes: o

do paralelepípedo e o da pirâmide (Kant de Lima, 2000), ao passo que na França, o

valor republicano, uno e indivisível se mescla com os princípios igualitários e

universalistas (Boltanski e Thévenot, 1991). Embora estes diversos regimes possam ser

encontrados em todas as situações acima listadas, em cada um deles será enfatizado e

reforçado um, mais do que o outro. Trata-se, do nosso ponto de vista, da legitimidade,

face aos outros interlocutores, de lançar mão de um regime, ou de outro, em uma

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situação de interação. Por exemplo, será que seria possível fazer uso legítimo, eficaz e

conveniente do “Você sabe com quem está falando?” para um agente público francês,

americano ou indiano?5

5 De acordo com DaMatta (1979), na gramática americana estaduninese o interlocutor, em tal circunstância, lançaria mão do “Who do you think you are?”, ao passo que na Argentina, o mesmo dispositivo discursivo iria obter a seguinte indagação: “que mierda me importa?”. (O’Donnel, 1997).

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Algumas linhas teóricas.

A “africanidade”, a “tradicionalidade”, a “quilombolice”, a “cor da pele”, o

pertencimento a uma casta, ou a um determinado grupo étnico, tem sido um importante

dispositivo na luta pelo reconhecimento (Honnet, 2000) e um elemento fundamental ao

vocabulário das mobilizações políticas contemporâneas. Ainda que elas detenham uma

amplitude global, elas se manifestam de acordo com as gramáticas e cosmologias

locais e são apropriadas, lidas e incorporadas pelos atores no espaço público de modo

diverso.

Portanto, no lugar de pensá-las como categorias estáveis ou estáticas,

buscamos contextualizá-las, inscrevendo-as nas ações dramatúrgicas cotidianas dos

agentes sociais. Os mesmos são detentores de uma capacidade crítica que lhes

permite lançar mão de diferentes papéis sociais, ou como propomos em nosso trabalho,

de distintos regimes de engajamento 6 (Thévenot, 2006) diante das controvérsias

públicas.

Ora, quando falamos de mobilizações coletivas, não estamos nos referindo

necessariamente a grupos organizados, em manifestações coletivas ou associativas.

Embora elas façam parte das questões empíricas aqui tratadas, nossa preocupação, ao

nos referirmos às ações coletivas, é compreender as formas como os atores,

individualmente, ou em grupo, mobilizam dispositivos discursivos, jurídicos e simbólicos

para fazer valer suas demandas, diante de seus interlocutores. O que torna possível,

por exemplo, que uma família negra na Lagoa Rodrigo de Freitas possa lançar mão de

justificativas legítimas, ou agir convenientemente, segundo a situação e circunstância

temporal e espacial precisa, reivindicando sua quilombolice? Em que medida o uso, ou

não, de determinada “roupagem social” - identidade, papel social, etc. - permite a

visibilidade ou invisibilidade das demandas dos atores?

Partilhamos da premissa de que estas ações, inscritas nas estruturas sociais,

não estão em equilíbrio, ou harmonia. Ao contrário, como propõe Edmund Leach (1993:

68), mesmo que “os modelos conceituais de sociedade sejam necessariamente

6 Sugerimos que o régime de engagement possa ser melhor traduzido para o português como regime de compromisso, pois engajamento em nossa língua pode ter outra compreensão como o de “tomar partido de algo”. Esse sentido, também pode existir na língua francesa, como se “engajar politicamente”, mas como veremos mais à frente não é o sentido preciso atribuído pelo autor. Vamos manter a tradução literal, regime de engajamento, no decorrer do texto, mas que fiquem essas ressalvas para o leitor.

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modelos de sistemas de equilíbrio, as sociedades reais jamais podem estar em

equilíbrio”. As ações sociais são portadoras de um desequilíbrio, flexibilidade e fluidez

própria das dinâmicas das relações estruturais e de poder. Leach (1993) chama

atenção para que a instabilidade estrutural, sua dinamicidade e fluidez, decorre das

relações de poder e de sua distribuição no interior da sociedade. A possibilidade de

pertencer aos grupos não é inerente aos traços culturais ou estruturais, mas da própria

dinâmica das relações internas e externas (o que, neste caso, diz respeito ao poder

colonial). Segundo Leach (1993: 72):

quando nos referimos à mudança estrutural, temos de considerar não apenas as mudanças na posição dos indivíduos com respeito a um sistema ideal de relacionamentos de status, mas também às mudanças no próprio sistema ideal: ou seja, mudanças na estrutura de poder

A sociedade birmanesa, da época estuda por Leach, assim como os Nuer,

estudados por Evans-Pritchard, possuem uma dinâmica estrutural que destina múltiplas

possibilidades de combinações das identidades e distintas fronteiras, no caso entre os

Nuer. Estes últimos, por exemplo, são definidos em função dos valores, pelas relações

entre seus segmentos e por suas inter-relações enquanto segmentos de um sistema

maior, numa organização da sociedade em determinadas situações sociais, e não

enquanto partes de uma espécie de moldura fixa, dentro da qual vivem os atores

pertencentes ao grupo Nuer (Evans-Pritchard, 1978: 59). Leach e Evans-Pritchard

ressaltam o aspecto instável e conflitante da constituição das “categorias identitárias”. O

antropólogo brasileiro, DaMatta, de uma outra perspectiva, chama atenção para o

caráter assimétrico das relações estruturais e de poder estabelecidas no jogo de

identidades. Como enfatiza ele:

em vez de tratarmos as identidades sociais como um conjunto de direitos e deveres que comportam ´desvios´ e seleções incongruentes, podemos chamar a atenção para o fato de que as identidades sociais estão correlacionadas a domínios, que os domínios têm relações estruturadas entre si, que cada domínio pode ter mais ou menos recursos para institucionalizar seu ponto de vista da totalidade social, estendendo ou não tais pontos de vista à totalidade social. O jogo de seleções de identidades sociais

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está relacionado ao jogo de poder sistematicamente elaborado e desenvolvido pelos domínios sociais de uma sociedade (DaMatta, 1976: 38).

Desse ponto de vista, algumas análises de Roberto Cardoso de Oliveira são

também importantes para a compreensão desta problemática, sobretudo aqueles

relacionadas aos contatos inter-étnicos no Brasil. Roberto Cardoso de Oliveira (1996)

aponta para os aspectos conflitantes inerentes ao processo de inter-relações étnicas.

Ele ressalta a necessidade de compreendermos as dinâmicas de poder no interior da

noção de “identidade”. O conceito de fricção interétnica (Cardoso de Oliveira, 1996)

nos fornece elementos importantes para o entendimento das relações sociais e das

coordenações das ações não mais no interior das “comunidades” enquanto grupos

isolados, mas na dinâmica das suas próprias fronteiras. Os atores, portanto, se

inscrevem numa dinâmica de interação e de posições estruturais que lhes permite

utilizar contextualmente determinadas identidades na afirmação do nós diante do outro

(Cardoso de Oliveira, 1976).

Entre essas abordagens atuais, que consistem numa das principais linhas de

condução da compreensão sobre a questão das interações étnicas do processo de

mudança social, dos efeitos sobre o self nos contatos inter-étnicos e culturais, talvez

seja a de Fredrik Barth a mais abrangente. Barth (2002), em um de seus artigos

clássicos, propõe que estas conformações sociais devem ser pensadas a partir de

outros artifícios analíticos, nos quais a identidade é vista como algo que se reatualiza

no tempo e espaço. Para ele, as fronteiras que definem a identidade destes grupos não

são geográficas; ao contrário, constituem-se em formas que são reinventadas e

reinterpretadas dinamicamente pelo grupo, a partir dos critérios inclusão/exclusão, cuja

variação resulta dos processos de interação e tensão (Barth,1987). Como salienta

Barth:

a manutenção de fronteiras étnicas implica também a existência de situações de contato social entre pessoas de diferentes culturas: os grupos étnicos só se mantêm como unidades significativas se acarretam diferenças marcantes no comportamento, ou seja, diferenças culturais persistentes (...) assim a persistência de grupos étnicos em contato implica não apenas a existência de critérios e sinais de identificação, mas

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também uma estruturação das interações que permita a persistência de diferenças culturais (Barth, 2002: 35).

Por outro lado, as persistências das diferenças culturais diluem-se diante de

outras formas de classificação, que persistem em atribuir categorias externas ao grupo,

sujeitando-o às visões totalizantes que estão ancoradas em premissas de outros grupos

majoritários, do próprio Estado ou de agências não estatais. A dinâmica de mobilização

política dos grupos sociais está relacionada com as estratégias de agentes políticos,

mediadores e “empreendedores étnicos” (Barth, 2005). Por outro lado, d euma maneira

sensivelmente a de Barth, Sahlins questiona as condições que têm levado a disciplina

antropológica a repensar seus modelos, em decorrência do que Sahlins denominou de

“pânico pós-moderno”. Segundo o mesmo (Sahlins, 2000: 202):

The discipline was seized by a postmodern panic about the possibility of the culture concept itself. Just when the peoples they study were discovering their “culture” and proclaiming their right to exist, anthropologists were disputing the reality and intelligibility of the phenomenon. Everyone had a culture; only the anthropologists doubt it.

A proclamação do direito de existência e da descoberta das “culturas particulares”

foi terreno fértil para a emergência das reivindicações do reconhecimento das

autenticidades e diferenças (Taylor, 2000 e Kymlicka, 1995). Do nosso ponto de vista,

tais reivindicações e “definições identitárias” não são independentes dos

investissements de forme 7 (Thévenot, 2006) que guiam as ações e julgamentos dos

atores sociais. Nesse sentido, a abordagem adotada por Thévenot, bem como pelos

colaboradores de seu grupo de pesquisa8, distingue-se daquelas que entendem a forma

como uma construção social. Ora, esforçamo-nos para nos resguardar do nominalismo

das teorias do construtivismo social9, ou seja, aquelas que concebem, por exemplo, a

emergência da categoria quilombo como uma construção social. Não nos interessam

7 Os investissements de formes , elaborado em um artigo de 1986 (Thévenot, 1986), visa chamar atenção para o papel dos objetos nos procedimentos de construção e representação dos atores em suas ações práticas e do estado problemático, fluído e incerto das interações. 8 Trata-se do Groupe de Sociologie Politique et Moral (GSPM), da EHESS-Paris/França. 9 Sobre uma crítica aos limites do construtivismo, ver o artigo de Bruno Latour (2003).

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aqui as abstrações conceituais preparadas para “desvelar” suas origens convencionais,

ou as concepções teóricas que não consideram a capacidade crítica dos atores.

Pressupomos, ao contrário, que esta noção permite vislumbrar o caráter de incerteza,

fluidez e instabilidade das ações sociais, diante das operações críticas que permitem

múltiplas leituras sobre as categorias sociais e múltiplos usos das mesmas pelos atores

nas situações de conflito e controvérsia (Castelbajac, 2008). É por isso que não

podemos reduzir as categorias sociais a simples construções sociais, sob pena de

restringirmos o caráter dinâmico e crítico das relações.

Desse modo, buscamos consagrar uma análise mais pormenorizada sobre as

normas e formas que informam a constituição das referidas categorias. Pretendemos

nos debruçar sob as situações de prova (épreuve) às quais os agentes sociais são

submetidos nas controvérsias e conflitos. Como, por exemplo, a categoria jurídica

quilombo permite mudanças no âmbito das relações familiares e de vizinhança de

moradores de uma Ilha ou de um bairro do Rio de Janeiro. A categoria épreuve , tanto

na língua francesa, como na sociologia pragmática desenvolvida por Thévenot e

Bolstanski, para citar dois deles, possui algumas nuances. Ela pode na língua francesa

remeter a uma dimensão de “provação”, como de uma ação de se “colocar à prova”.

Para os dois autores citados, a épreuve é um momento crucial para a qualificação dos

seres e para a mobilização das formas de justificações que definem os critérios que

tornam plausíveis e legítimos os acordos (Boltanski e Thévenot, 1991; Nachi, 2006: 60).

Na língua portuguesa, provação tem um sentido que não se aplica ao modo como a

categoria é utilizada pelos autores. No nosso entendimento, uma sugestão de tradução

do termo seria “colocar à prova”, pois a noção remete a um estado de ação em curso e

de liminaridade. Por exemplo, num concurso público para professor, em que é exigida a

apresentação de determinados documentos, como o CV, não é suficiente apresentar as

provas de comprovação do CV, mas é, contudo, necessário que o candidato se coloque

à prova demonstrando que é capaz de construir adequadamente um CV para aquela

situação10.

10 Este exemplo foi dado pelo meu orientador numa conversa que tivemos sobre esta categoria. Achamos que ele merece de fato uma reflexão mais acurada. O termo épreuve é ao mesmo tempo um conceito e uma categoria. Vamos mantê-la em itálico em nossas citações.

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Em consonância com esta abordagem, pressupomos que sejam pertinentes para

a nossa discussão as contribuições de Thévenot (2006) no que concerne ao

entendimento destas múltiplas formas de pertencimento. Para ele, mais do que

expressões identitárias ou étnicas, as dinâmicas de interação e de julgamento crítico

podem ser lidas sob a noção de regimes de engajamento (Thévenot, 2006). Estes são

concebidos como as relações com o mundo envolvente e não diretamente com o outro.

A razão dessa guinada diz respeito à preocupação de dirigir o olhar sobre as diferentes

maneiras de ser do agente, dos poderes e das modalidades de dependência. É porque

os regimes são comumente reconhecidos que eles servem a todos, e cada um pode

discernir as condutas de maneira congruente. Os julgamentos, as ações e as formas de

coordenação das ações intra e interpessoais estão fundadas na ordem de um

julgamento no quadro dos regimes de justificação, revelando que os atores, quando

apresentam as suas justificações em situações de conflito, não se escondem por

debaixo de interesses manifestos, ou latentes, que encobrem correlações de força,

escamoteadas pelas ideologias que as dissimulam (Boltanski, 1990), mas são

resultados das épreuves às quais os mesmos estão sujeitos nestas disputas (Boltanski

e Thévenot, 1991).

Os regimes de engajamento comportam uma compreensão instável e fluída das

relações, fruto da inquietude da ação desses diferentes atores, pois a ação humana

mais do que fruto de uma comunicação, de um habitus, de um conjunto de

representações, de diferenças de papéis, é um deslocamento constante em que os

atores fazem usos diversos de engajamentos que podem ser públicos, íntimos, cívicos,

marchands, industriais, etc, criando uma multiplicidade de condutas e de arquiteturas

que convencionam as condutas em ação (Thévenot, 2006).

Já em seu livro clássico, escrito na década de 1990 com Luc Boltanski, era

reconhecido, a partir do desenvolvimento da idéia de ordres de grandeur, o pluralismo

radical ao qual as pessoas são confrontadas nas sociedades. Como assinala Dodier

(1991), no livro De la Justification, Boltanski e Thévenot inauguram uma perspectiva

teórica que concebia a ação humana como algo situado em diferentes seqüências onde

as pessoas mobilizam competências diversas para se adequar a uma situação

apresentada. Os autores apresentam um modelo que visa cobrir a pluralidade das

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atividades humanas, em seus múltiplos momentos de disputas, de conflitos e de

controvérsias públicas, onde as pessoas evidenciam suas críticas ou justificações

(Breviglieri e Stavo-Deubage, 1999). Ou seja, mais do que a constituição de um quadro

que considere as diferenças de status e de pertencimentos a grupos sociais, Thévenot

e Bolstanski (1991) buscaram explorar uma hipótese ortogonal sobre a vida em

sociedade:

As mesmas pessoas são levadas a fazer de sua experiência uma pluralidade, de maneira a qualificar uma conduta e de a colocar à prova. Mais do que uma diferença de papéis, de mundos sociais ou mesmo de identidades escolhidas, essa pluralidade acarreta oscilações de provas da realidade, submetendo as pessoas às tensões críticas, bem como comunidades inteiras (Thévenot, 2006: 6).

Portanto, a noção de engajamento “designa tanto a dependência das pessoas,

quanto das coisas, e faz evidenciar a prova dessa dependência” (Thévenot, 2006: 13).

Thévenot desenvolve, a título analítico, gradualmente, a análise de três regimes de

engajamento, no qual “diferentemente dos modelos que dão visibilidade ao ator, sua

coletividade, sua individualidade, sua consciência ou inconsciência, sua reflexão, nossa

caracterização de regime de engajamento evidencia a forma como as pessoas

modelam seus engajamentos no meio” (Thévenot, 2006: 14). A partir da exposição de

um cenário, passado num transporte público e anônimo, Thévenot (2006) segue o

desenvolvimento de um nômade entre os lugares e no meio de transporte, que o leva a

se deslocar entre estes regimes. O transporte, rememorando a sutil sociologia do uso

do público de Isaac Joseph (1988), representa nessa circunstância uma possibilidade

de lidar com um “eu” durável em direção à concepção de um “eu” em transição. Na

perspectiva de Thévenot, os atores, humanos e não humanos, são levados a uma

experiência virtual, em movimento, em rede e em transição para um exame da vida em

sociedade e da figuração da conduta humana.

O viajante eleito é aquele que se instala se esparramando, distribuindo

generosamente seus objetos, suas duas crianças em torno dos quatro assentos do

trem. “Tal como um polvo que se defende contra o estrangeiro expandindo todos os

braços” (Thévenot, 2006: 26), esse homem vai ocupando progressivamente os

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assentos. Vinculando-se ao espaço pelas “ligações tentaculares” que prolonga sua

pessoa, esse homem, denominado de Ocupante, faz uso de um primeiro tipo de

engajamento, que não corresponde em nada ao indivíduo planificador e calculador,

daquele relativo à idéia do bem comum, pincelado pelas ciências humanas.

Preocupado em dispor dos elementos da ação que compõem a cena, Thévenot elege a

figura de outros personagens que avançaram em direção aos assentos. Os Titulares,

como ele os denomina, em cada momento de disputa, lançarão diferentes tipos de

justificativas, reportando-se a engajamentos diversos para fazer valer seus argumentos

diante das controvérsias. Esse cenário, suas disputas, conflitos e controvérsias,

possibilitam focalizar os engajamentos que dão consistência às pessoas, com o

propósito de precisar o retrato da pessoa como ator, situando-o em comparação a

outras figuras da própria pessoa, ou seja, em sua multiplicidade de vínculos e de ações.

Pois, o objetivo “é poder seguir as mudanças profundas dos engajamentos dos seres

humanos no mundo” (Thévenot, 2006: 43). Mais do que seguir um “eu” que representa

(Goffman, 2001), Thévenot propõe constituir um quadro, uma variedade de figurações,

o qual não seja reduzido em escalas de representações, mas que o mesmo possa se

diferir de acordo com as animações de figurinos, onde os seres humanos são

equipados da capacidade de ação e de interação com um meio apropriado, podendo

fazer o mesmo uso de diversos regimes.

Pressupomos que tal noção seja mais apropriada para nosso trabalho diante da

multiplicidade de engajamentos possíveis nas interações sociais envolvendo

populações tradicionais e quilombolas, no Brasil e antilhanos, imigrantes, na França.

Um morador da Marambaia pode lançar mão numa interação de distintos figurinos: o de

negro, pescador artesanal, quilombo, descendente de escravos, etc. O mesmo se

passa quando nos deparamos com franceses provenientes das Antilhas, que ora

interagem fazendo uso dos códigos gauleses, ora utilizando os códigos antilhanos,

créole. O mesmo ator, em uma situação pode fazer uso desta multiplicidade de

regimes: cívicos, familiar, do mercado...

Ainda, para ultrapassarmos as posições normativas e dicotômicas do conceito de

espaço público, utilizado aqui em nosso trabalho, mas, sobretudo, para superar tanto as

concepções demasiadamente estáticas sobre tal categoria, propomos a utilização da

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noção arena pública (Cefaï, 2002). Para Daniel Cefaï o conceito de espaço público

apresenta uma conotação demasiadamente estática e não dá o devido relevo à

natureza dramatúrgica dos confrontos públicos. Não deixamos de levar em

consideração as valiosas contribuições de Habermas (1993) a respeito da sua

construção sobre a categoria sociológica de espaço público, cujo conteúdo visa articular

um quadro de análise relativo ao princípio da publicidade e aos fundamentos

referenciais da filosofia kantiana. Embora seminal, a perspectiva habermasiana não

permite, do nosso ponto de vista, compreender outras realidades empíricas que não

estejam fortemente marcadas por uma cosmologia liberal. Sua proposição busca dar

conta, universalmente, de um conceito que é inscrito numa ordem local. Como exposto

acima, nossa intenção é de entender as estruturas locais que compõem a ação e a

situação, que são apreendidas e dadas dentro de um conjunto de percepções que são

inscritas numa cosmologia particular.

Como bem frisa Kant de Lima (2000), a questão do espaço público deve ser

analisada não apenas em relação a sua propriedade – se pública ou privada -, mas em

relação às formas de sua apropriação - se universalizadas ou particularizadas. Ou seja,

sua proposição visa compreender o modo como os atores se apropriam destes espaços

ancorados em lógicas distintas, sejam elas individualistas e igualitárias, holistas e

hierárquicas, combinando de maneira dinâmica tais princípios.

Desse modo, a categoria arena pública é um importante instrumento analítico por

permitir uma compreensão sobre o processo de constituição do público sob o prisma de

uma multiplicidade de cenários que são constitutivos de interações que enquadram

distintas experiências dos atores (Goffman, 1991 e 2001). Diante das atividades críticas

e a exposição pública dos atores e, por isso, a sua participação nas discussões,

parece-nos mais ajustada à concepção de público que pretendemos apresentar nesta

tese.

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Os caminhos percorridos e as metodologias empregada s.

Essa pluralidade de coordenação que os atores operam condiz com a modo

como construímos os dados de nosso trabalho e com o tipo de antropologia –

considerando seus múltiplos paradigmas – que buscamos exercitar: uma antropologia

que visa estudar as sociedades, sejam elas “tradicionais” ou “modernas” sob o ponto de

vista nativo, considerando os seus diferentes lugares de falas e suas múltiplas

representações.

Pressupomos que o conhecimento antropológico não depende apenas de um

ponto de vista particular, situado e datado, de um observador com relação ao seu

objeto. O fato de sermos espectador e participante, observador e interlocutor, que toma

emprestado um ponto de vista, faz com que a atividade prática do trabalho de campo

seja objeto de observação e reflexão (Bourdieu, 2000). Consideramos, assim como

Bourdieu (2000), que esse tipo de experiência cruzada à qual os antropólogos são

submetidos - a familiarização com um mundo estrangeiro e o desenraizamento de um

mundo familiar - ensina outras coisas “do que somente um retorno aos mistérios e às

miragens da subjetividade” (Bourdieu, 200: 236): a atividade antropológica possibilita a

constituição de um conhecimento que rompe com as pré-noções e classificações pré-

estabelecidas dos outros e de nós mesmos.

Adquirindo a familiaridade com outra cultura ou sistema de valores, buscamos

desempenhar o papel de “tradutor” dos sistemas de valores, códigos e cosmologias que

informam a coordenação das ações dos atores, buscando torná-los inteligíveis para o

nosso próprio sistema de pensamento e de significados. Uma tradução que se efetua

numa interação entre observado e observador, na medida em que este é parte

obrigatória do campo de observação, sendo que o quadro que ele fornece sobre o outro

é algo visto e interpretado por alguém, em um momento particular e em circunstâncias

específicas (Dumont, 2000). Nessa perspectiva, coube a mim, de modo a compreender

outro sistema, construir dados que fossem comparáveis “aqui” e “lá”, permitindo,

através da explicitação das categorias estranhas à compreensão de minha própria

cultura, estabelecer as similitudes e diferenças entre dois ou mais sistemas de valores

(Kant de Lima, 1997).

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Desse modo, privilegiamos o método comparativo, através do contraponto ou de

uma comparação por elucidação recíproca (Cardoso de Oliveira, 2000) entre duas

gramáticas política e jurídica, como um dos utensílios metodológicos e analíticos de

nossa pesquisa. O método comparativo, assim como proposto contemporaneamente

pela disciplina antropológica, remete-nos ao problema da relação e interlocução com o

outro, pois é a partir do deslocamento em direção à outra sociedade, do contato com

outros sistemas de valores estranhos ao do antropólogo, que se pode realizar o

exercício de transformação do exótico em familiar - traduzindo e explicitando as

categorias locais - assim como transformar o familiar em exótico, na medida em que o

convívio com outra cultura permite a dolorosa desnaturalização e o difícil

estranhamento dos próprios códigos e valores do observador (DaMatta, 1997). Fazendo

uso do método comparativo, visamos produzir um conhecimento fundado nas

diferenças entre sistemas sociais, “estranhando” nossa própria sociedade, descobrindo

neles aspectos inusitados e ocultos por uma familiaridade embotadora da imaginação

sociológica (Kant de Lima, 1995).

Privilegiamos o contraponto em diferentes caminhos. De um lado, num processo

de exotizar o familiar e de “desenraizamento interno”, dirigimos nossa atenção, em

especial, para dois campos empíricos no Brasil: a Marambaia e o Morro das

Andorinhas. Noutra direção, lançamos mão de outro artifício metodológico: o de

“desenraizamento externo” e de familiarização do exótico, elegendo a questão dos

Antilhanos em Paris como lócus privilegiado para nossa pesquisa.

Os caminhos percorridos nos trabalhos de campo nas três situações elegidas

tiveram trajetórias distintas, em tempos distintos e com perspectivas metodológicas

diferentes.

O trabalho de campo na Ilha da Marambaia iniciou-se em 1999 e foi objeto de

minha dissertação de mestrado (Mota, 2003), cuja abordagem etnográfica consistia em

analisar os processos de produção da verdade e de administração de conflitos que

foram desencadeados a partir de ações judiciais contra a população nativa local. A

pesquisa empreendida na Marambaia rendeu diversos outros trabalhos acadêmicos

publicados, apresentados em Congressos nacionais e internacionais (Mota, 2005; Mota,

2005b; Mota, 2004; Mota, 2003; Mota e Freire, no prelo).

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No período de 1999 a 2002, atravessei diversas vezes os caminhos das águas

da baía de Sepetiba em direção à Marambaia com o propósito de coletar dados para a

dissertação de mestrado sobre as relações de vizinhança, de parentesco, a atividade

da pesca, as representações sobre o conflito, etc., mas também para participar de

atividades, como reuniões da Associação de Moradores, reuniões com os moradores,

etc. Compreender a realidade social, seus meandros, seus contornos mais singelos

expressos na vida cotidiana, constituiu elemento essencial para a pesquisa

antropológica empreendida no local.

Travessia de canoa para Ilha da Marambaia (foto tirada por Fabio Reis Mota)

Os contornos das hipóteses, questões e problemáticas foram se delineando e

mudando de acordo com as interações e interlocuções empreendidas por mim com os

múltiplos atores encontrados no campo, com os quais, muitos, da posição de

interlocutores passaram a figurar como amigos. Os meus interesses e propósitos foram

também mudando com a dinâmica do trabalho de campo. Seja na posição de

colaborador da população local, seja como um observador externo dos conflitos, foi

possível produzir um conhecimento a respeito das questões que eram trazidas pelo

trabalho de campo.

Como a etnografia não foi realizada em uma Ilha distante, habitada por povos

que se comunicavam em língua distinta da do pesquisador, seus hábitos não diferiam

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em grande escala daquelas do etnógrafo. O exercício, aqui, não consistia em descobrir

os significados de rituais “exóticos”, de práticas religiosas incomuns aos olhos distantes

do etnógrafo. Ao contrário, o exercício nesse caso consistia em observar práticas e

rituais que se aproximavam das minhas, de minha vida cotidiana. Nessa circunstância,

o outro que se aproxima do etnógrafo, é o daqui, as histórias locais e a do pesquisador

por vezes se confundem, entrecruzam-se e se inserem em um sistema holista de

representações. Esse exercício de estranhamento do próximo, do familiar, foi marcado

por uma postura de um cientista social/cidadão (Peirano, 1991). Como salienta Peirano

(1991: 85):

Permanece o reconhecimento da pesquisa de campo como o modo privilegiado do conhecimento antropológico, a situação por excelência do encontro com o ‘outro’. No entanto, a própria pesquisa de campo também passou a ser vista, e aceita, como um fenômeno histórico, e o ‘nativo’ perdeu o caráter passivo. Reconhece-se hoje que, longe de uma fórmula, a pesquisa de campo está inserida em contexto biográfico (do próprio pesquisador).

O fato de pertencer, nesta época, à mesma camada social, e partilhar de alguns

códigos, sentimentos e valores dos moradores da Marambaia, imprimiu um ritmo ao

trabalho de campo, propiciando, em grande medida uma abertura ao longo da interação

neste controle de impressões (Berreman, 1980). Por outro lado, me foi exigido exercitar

um distanciamento de olhar para uma compreensão não esterotipada ou eivada de pré-

noções acerca das representações dos moradores da Marambaia.

Também, de modo diferente de uma pesquisa desenvolvida além-mar, noutra

sociedade, noutra cultura, a realização de uma pesquisa nos moldes preconizados pela

antropologia pode adquirir contornos distintos. Como cientista social-cidadão fui

diversas chamado para atuar como consultor, analista, interlocutor e parceiro da

comunidade da Ilha da Marambaia, produzindo materiais, como relatórios, laudos,

matérias jornalísticas, participando de reuniões com a comunidade discutindo os

meandros das ações judiciais e do processo de identificação e reconhecimento da

comunidade como remanescente de quilombos, bem como do processo de construção

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de uma Reserva Extrativista Marinha. Enfim, em distintas ocasiões fui mobilizado para

atuar no campo como um participante-observador.

Ora, foi a proximidade, a confiança e a interlocução efetiva que colaborou com

um efetivo trabalho de compreensão antropológica acerca desse Outro. Se a “ilusão

positivista”, do distanciamento e imparcialidade, não se traduz na prática em outros

domínios científicos - seja das Ciências Exatas, Naturais ou Humanas, pois o olhar do

cientista está necessariamente inscrito num sistema de pensamento e de ensino

localizado, circunscrito a uma realidade escolar particular, datada (Bourdieu, 1987) - na

antropologia, diante das características do fazer antropológico, esta “imparcialidade” é

menos provável. Isso não significa uma falta de rigor metodológico e científico. Pelo

contrário, minhas intervenções e atuações nos conflitos proporcionaram a coleção de

um repertório de dados que foram cruciais para a compreensão dos processos sociais.

Por exemplo, na ocasião de uma das atuações do NUFEP11 na assessoria para um dos

moradores da Ilha, foi possível ter uma dimensão precisa disso que denominamos de

processos de demandas de direitos e reconhecimento a partir de reivindicações de

identidades diferenciadas. Uma ação de reintegração de posse havia sido julgada

favorável ao Estado e o morador da Ilha, portanto, deveria sair de sua casa.

Contatamos uma advogada para assessorá-lo e procuramos um colega jornalista para

realizarmos uma matéria no jornal a respeito do caso e do conflito existente. Na época,

a comunidade da Marambaia havia sido identificada pelo Estado Brasileiro como

remanescente de quilombos. Na conversa entre os pesquisadores do NUFEP e o

jornalista, traçamos uma linha para a matéria: explicitar as relações entre a

memoralidade e ancestralidade da ocupação dos moradores da Ilha, enfatizando seus

11 O NUFEP (Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa) está vinculado academicamente ao Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA) da UFF. Ele foi criado em 1994 por professores de antrpologia da UFF, estimulados pelo antropólogo Luiz de Castro Faria, na época Professor Emérito da UFF e da UFRJ e decano da disciplina no Brasil. O NUFEP comporta uma estrutura acadêmica com pesquisadores do Brasil e de diversos países, como a França, Canadá, Portugal, Argentina, Angola, etc. Os projetos desenvolvidos buscam focalizar os processos de administração institucional de conflitos, em perspectiva comparada. Nesta perspectiva, dois ambientes empíricos concentram as abordagens dos pesquisadores: as políticas públicas ambientais envolvendo pescadores artesanais; e os sistemas de segurança pública e de justiça criminal. No primeiro, procura-se analisar a administração dos chamados conflitos ambientais envolvendo os pescadores de beira de praia, instituições do Estado e outros atores que participam das disputas por recursos naturais e pelo controle material e simbólico do espaço público. No segundo, se busca analisar tais processos, também de forma comparada, envolvendo instituições e atores vinculados às áreas da Segurança Pública e da Justiça Criminal.

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laços com a escravidão, ou seja, fizemos uso dos dispositivos discursivos locais que

haviam sido identificados pelas pesquisas desenvolvidas por nós do NUFEP na

Marambaia. De fato, nossa hipótese, de que essa distintividade da história da

Marambaia permitiria a visibilidade da demanda do grupo e, consequentemente, uma

ação pró-ativa do Estado Brasileiro, concretizou-se. Esse caso, em certa medida,

permitiu esboçar os primeiros passos de algumas reflexões que colaboraram com a

produção do presente trabalho (Mota, 2004), em que foi possível compreender essa

necessidade de aquisição de uma espécie de substância moral digna (Cardoso de

Oliveira, 2002) para ter acesso aos direitos mínimos. Ou seja, ao invés de pensarmos

nossas ações como um “voluntarismo” ou “militantismo”, ela foi prática essencial para a

produção dos dados e de intervenções qualificadas para as mudanças sociais.

Associadas a esta pesquisa de campo, realizei diversas outras incursões de

campo em diferentes regiões do Rio de Janeiro e em outros estados brasileiros. Numa

produção antropológica em rede realizei atividades de pesquisa com colegas do

NUFEP em comunidades denominadas tradicionais, em particular com as populações

de pescadores artesanais, compartilhando impressões, dados, perspectivas teóricas e

observações acerca de processos de demandas de direitos e implementação de

políticas públicas especiais dirigidas para tais grupos. O Professor Luiz de Catro Faria,

que fundou o NUFEP, introduziu uma tradição de estudo da pesca e pescadores, a

partir de pesquisas empreendidas na metade do século XX em regiões litorâneas, como

Arraial do Cabo, foco, nessa época, de políticas “modernizadoras”. Seus trabalhos

pioneiros inspiraram outras diversas pesquisas acadêmicas (Kant de Lima e Pereira,

1997; Mello e Vogel, 2004). Arraial do Cabo continuou nas décadas posteriores a ser

um espaço de produção acadêmica, por conta da forte concentração da atividade

pesqueira artesanal. Diversas pesquisas e ações de consultorias foram levadas à cabo

por colegas do NUFEP na região (Lobão, 2000 e 2006; Prado, 2002; Goulart, 2000 e

Britto, 1999). Pesquisadores do NUFEP desempenharam importante papel na

assessoria aos pescadores da região e para o órgão do IBAMA, o CNPT, responsável à

época, pela formulação e criação da Reserva Extrativista Marinha (RESEX) de Arraial

do Cabo (Lobão, 2000 e Prado, 2002). Participei de diversas campanhas de campo e

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de reuniões na Associação da RESEX com colegas do NUFEP, tomando emprestado

esse campo como contraste.

Outra etapa importante do trabalho de campo, foi a participação em um projeto

interdisciplinar, envolvendo biólogos marinhos, oceanógrafos e antropólogos do

NUFEP. O projeto Mecanismos Reguladores da Produção Pesqueira: subsídios para a

gestão de uma Reserva Extrativista Marinha (Itapesq), aprovado pelo edital do PADCT

III, iniciado em 2000, foi um investimento de campo novo, em Piratininga e Itaipu,

regiões habitadas por populações tradicionais de pesca e a classe média e média alta

de Niterói. Na época estava em discussão o processo de criação de uma RESEX em

Itaipú, sendo possível tomar notas, em reuniões e no trabalho de campo junto aos

pescadores na praia, sobre esta política pública (Lobão, 2006).

Imagem da pesca na Praia de Itaipu (Foto tirada em trabalho de campo pela equipe do NUFEP).

Os nossos trabalhos produziram um conjunto de reflexões sobre esta situação

social, articulando questões referentes ao meio ambiente e à administração de conflitos

neste espaço público. No Paraná, para citar uma de outras investidas de campo,

tivemos a possibilidade de realizarmos um trabalho de consultoria para uma ONG

ambientalista que visava promover ações de melhoria na atividade pesqueira na Ilha de

Superagui. Uma equipe extensa do NUFEP esteve diversas vezes em campo,

realizando etnografias sobre a pesca, os pescadores e suas formas de administração

de conflitos, suas demandas de direitos, etc. Atualmente, estamos realizando pesquisas

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e atuando como assessores, em conjunto de uma equipe de pesquisadores da

Faculdade de Direito da UFF, sob a coordenação do Professor Ronaldo Lobão, na

comunidade remanescente de quilombos do Sacopã, na Lagoa Rodrigo de Freitas/RJ.

Não descreveremos todos estes casos aqui, mas eles permanecem como referências

fundamentais para as questões levantadas neste trabalho e como ponto de constraste

ou apoio para as reflexões e conclusões de nossa tese.

Em decorrência dessa associação feita por nós, entre a pesquisa e a assessoria

aos grupos com quais nos relacionamos no campo, e a proximidade e familiaridade

com os pescadores artesanais de Itaipu, fomos convidados a atuar num dos conflitos

envolvendo a comunidade de Itaipu, por conta de uma Ação Civil Pública do Ministério

Público Estadual (MPE/RJ) que visava despejar os moradores do topo do Morro das

Andorinhas, cuja presença, como fomos descobrir a partir de levantamentos

empreendidos por pesquisadores do NUFEP no local, remonta ao final do século XIX

(Mendes, 2004 e Lobão, 2006).

Cartaz com as fotos retratando os momentos, lugares e personagens importantes da história da comunidade do Morro das Andorinhas (Foto tirada por Leticia de Luna Freire)

Os moradores do Morro das Andorinhas mantêm vínculos de parentesco e

compadrio com os pescadores de Itaipu. Em 2002, uma das lideranças da praia de

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Itaipu solicitou nossa colaboração. Para tanto, um grupo de pesquisadores do Núcleo

realizou levantamentos arquivísticos, de genealogia de parentesco, da organização

social local, etc, culminado em produções acadêmicas, como a dissertação de Mendes

(2004), a monografia de Maranhão (2007), trabalhos apresentados em Congressos

científicos nacionais e internacionais e em algumas reflexões em formato de artigos e

capítulos de tese (Lobão, 2006 e Mota, 2004). Ademais, participamos de dezenas de

reuniões na Câmara Municipal de Niterói, no Ministério Público Estadual, no topo do

Morro das Andorinhas e na Praia de Itaipu a propósito das questões que envolviam este

grupo.

É importante que se frise que não realizei uma pesquisa sistemática, com idas

freqüentes ao topo do Morro das Andorinhas, realizando entrevistas semi-estruturadas

etc., como no caso da Marambaia. Desse modo, adiantamos ao leitor que a densidade

da descrição entre um capítulo e outro se distingue pelo investimento destinado ao

trabalho de campo em ambos os locais. Esse desequilíbrio decorre destas diferentes

etapas de produção da pesquisa, mas esperamos que não comprometa o conteúdo

analítico de nossa tese.

Tanto na Marambaia, como no Morro das Andorinhas, fomos inseridos nas redes

de sociabilidade local. Na Marambaia, cuja população é contabilizada em 400 pessoas,

inicialmente reinava uma forte desconfiança de que eu pudesse pertencer ao serviço de

inteligência da Marinha. A entrada no campo foi difícil no início. Mas com o tempo,

estas desconfianças foram se dissipando e os laços foram se estreitando. Atualmente,

somos conhecidos por grande parte dos moradores e nossa entrada é facilitada por

isso. No caso do Morro das Andorinhas, um núcleo familiar com cerca de 40 pessoas, a

entrada no campo foi rápida, pois conhecíamos há muito tempo os pescadores de Itaipu

e, em particular aquele que nos procurou (Kant de Lima e Pereira, 1997).

O terceiro caso empírico que elegemos para nossa tese resulta de uma

experiência antropológica e acadêmica sensivelmente diferente das situações descritas

acima, fruto de um deslocamento em direção a uma sociedade estrangeira, cuja língua,

hábitos, corporalidades, valores e princípios se distinguem sensivelmente do nosso.

Partilhar de novos códigos de conduta e de um novo sistema de pensamento,

representou muito mais do que um deslocamento físico, mas um deslocamento efetivo

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e afetivo no ritmo de um anthropological blues (DaMatta, 1978). Nessa circunstância, fui

envolvido por um processo de aprendizado e compreensão tanto da língua francesa,

que não dominava na época, quanto dos códigos sensoriais, que desconhecia, pois

jamais tinha ido à França e vivido em outro país. Se no Brasil dominava relativamente

bem a língua e os códigos no campo, na França tudo era praticamente estranho para

mim.

Se considerarmos que o trabalho antropológico consiste em olhar, ouvir e

escrever (Cardoso de Oliveira, 1996b), pude vivenciar durante alguns meses de minha

experiência acadêmica na França um “handicap antropológico”, no período em que fui

para lá (julho de 2006 até dezembro de 2007). Fui acometido por um certo “daltonismo

social e antropológico”, pois muito do que via e vivenciava não compreendia ou tinha

uma leitura equivocada. Não dominava efetivamente os gestos, por exemplo, aplicados

numa situação envolvendo uma “batida policial”. Colocar a mão para trás, olhar nos

olhos do agente de polícia, baixar a cabeça? Uma situação vivenciada num curso de

francês que fazia em Vichy, cidade francesa, é ilustrativa a esse respeito. Um colega

chinês do curso, dias após nossa chegada, veio me interpelar sobre o significado de

minha mão estendida todas às vezes que o via na rua. Tratava-se de um gesto de

saudação, que era natural para mim, mas incompreensível para ele e muitos outros.

Ainda, como não dominava a língua francesa no momento em que cheguei à

França, tive que vivenciar também uma inusitada experiência de relativa “surdez social

e sociológica” pela incompreensão do que supostamente deveria ouvir, impossibilitando

uma interlocução mais efetiva com as pessoas que faziam parte de meu círculo social.

Aos poucos fui adquirindo a capacidade de poder escutar, no sentido de compreender

as sonoridades da língua local, e ouvir, no que concerne à capacidade de deter um

entendimento mais acurado das nuances daquilo que as pessoas almejavam me

explicar. Lembro-me bem de uma cena no metrô parisiense em que consegui, pela

primeira vez, de longe escutar uma conversa entre duas pessoas. Isso me proporcionou

uma sensação de alívio por perceber que estava readquirindo uma capacidade

momentaneamente perdida.

Ao mesmo tempo, a ida para outra sociedade exigiu a aquisição de novas

competências cotidianas, a princípio, banais, como fazer compras no supermercado ou

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re-aprender a fazer determinados cálculos para minha economia doméstica; foi

necessário aprender a lidar com a corporalidade numa outra situação climática, bem

como na interação diária com os outros indivíduos, mudar hábitos alimentares, ativar

novos laços de amizade com pessoas socializadas num outro sistema de valores. Por

exemplo, foi necessário entender qual o significado e limites atribuídos ao termo

amizade e como dominar os códigos locais com o propósito de demonstrar, ou não,

uma amizade ao outro. Nesse caso, partilhamos uma temporalidade relativamente curta

no que diz respeito ao início e a concretização da amizade, quando de um ponto de

vista deles, por exemplo, a temporalidade concernente ao domínio da amizade

inscreve-se num continuum em que diferentes provas e etapas devem ser superadas

para que se possa classificar alguém como amigo (ou um pote). Difícil é fazer amigos

nas ruas parisienses, aonde as pessoas parecem estar sempre com um tempo “curto”,

como também é complexa a operação de encontrar um amigo no Rio que, marcado por

uma temporalidade “elástica”, sempre lança mão da conhecida máxima vamos tomar

um chope um dia desses, me telefona...

Foi na busca do aprendizado da língua francesa que terminei tomando contato

com a problemática dos Antilhanos em Paris, que ignorava totalmente em minha

chegada. Tinha ido para França com o objetivo de fazer uma pequena incursão

etnográfica nas escolas para analisar as controvérsias em torno do uso do véu. Essa

idéia permaneceu até um determinado período quando passei a me interessar pelo

debate sobre os Antilhanos na Metrópole. Ainda no Brasil, na festa de um amigo, ex-

morador da Ilha da Marambaia, havia conhecido, antes de minha partida para meu

estágio doutoral, que durou um ano e seis meses, um francês de origem martiniquense

que se encontrava de férias. Ele falava um pouco de português e eu achava que falava

francês e assim empreendemos uma conversa sobre a obra de um grande escritor

martiniquense, Patrick Chamoiseau. Antes de partir, trocamos mails e ficamos de nos

comunicar assim que eu chegasse em Paris. Como fui antes para Vichy realizar o curso

de francês para adquirir uma competência mínima na língua local, que permitisse ao

menos pedir uma baguete e um leite na padaria, cheguei à Paris um mês depois. O

colega francês já havia gentilmente escrito e perguntado sobre minha chegada na

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França. Assim que cheguei lá, marcamos um chope num bairro bobo (bohêmio-

burguês) da cidade para tomar uma cerveja Brahma e escutar música brasileira.

Como ele estava estudando português do Brasil e eu estava tentando aprender o

francês, resolvemos fazer um échange linguísitico para que pudéssemos aprimorar o

meu francês e ele o português. Nossos échanges passaram a se tornar discussões

extremamente ricas a respeito do Brasil e da França, em particular das condições do

negro nos dois países, das questões relacionadas ao reconhecimento das diferenças,

da multiplicidade de grupos que compõem a França e a dificuldade de introdução

destes temas na França, etc. Ao mesmo tempo, falava sobre questões que me

inquietavam sociologicamente: o racismo, a questão dos quilombos no Brasil, as

demandas de direitos das “minorias”, etc.

Esse amigo, ao compreender de maneira muito aguçada minhas questões

sociológicas, resolveu me apresentar a um antigo amigo seu que estava finalizando sua

dissertação de mestrado sobre o lugar dos Antilhanos em Paris, ou do problema, como

bem resumiu no título de sua dissertação, entre “la peau noir et le corp républicain”. A

partir de então, passamos a discutir semanalmente seu trabalho em conversações que

duravam horas e horas, acompanhadas de Bordeaux e rhum antilhano. Ele, que é uma

figura comunicativa e pertencente a uma extensa rede, acolhia dezenas de pessoas em

sua casa para jantares e conversações, que duravam até o final da noite. Muitas das

pessoas que frequentavam sua casa eram martiniquenses, guadalupeanos,

guianenses, africanos e árabes. Ele, como um militante do movimento negro em Paris,

tinha um universo de amigos e interlocutores ao seu redor. Eu, já com uma

competência lingüística melhor, podia interagir neste espaço com um universo

abrangente de pessoas engajado-me em discussões e conversações, muitas delas

polêmicas, que geravam debates infinitos, como a condição do “negro” na França.

Logo, fui me apercebendo que este universo relacionado aos Antilhanos poderia

ser um ponto de contraste para meu trabalho de doutorado, e passei a investir

sistematicamente num trabalho contrastivo com leituras de textos, jornais, livros e com

a conversação estabelecida com colegas e amigos antilhanos. Paralelamente a isso,

freqüentava os seminários na EHESS e na Universidade de Paris X. Em particular, os

seminários realizados com os Professores Laurent Thévenot, na EHESS, e com Daniel

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Cefaï, na Université Paris X, foram centrais para sedimentar uma compreensão das

questões relacionadas as minhas impressões e indagações sobre a França e suas

“minorias”.

Cartaz do CRAN para as eleições municipais de 2008. Nele está escrito “Français de minorités visibles, enagagez-vous dans la vie politique de votre ville, parcticipez aux décisions qui engagent votre avenir et celui de tous nos concitoyens”.

Essa interlocução e amizade estabelecida com alguns Antilhanos moradores de

Paris fez com que meus interesses sociológicos fossem dirigidos para este campo:

compreender as demandas de reconhecimento enunciadas por muitos deles em nossas

conversações formais ou informais. Ao chegar no Brasil, e me deparar com o

estranhamento ao inverso, ou seja, daquilo que era para mim natural e naturalizado, fui

incentivado pelo meu orientador e alguns colegas do NUFEP a lançar mão de uma

perspectiva comparativa. Esta experiência prolongada na França, proporcionada pelo

estágio no exterior, forneceu-me competência e experiência cruciais para a produção

desta tese, pela possibilidade de me inserir de modo contínuo noutro sistema de

pensamento, exigindo reorientar meu ponto de vista e meu sistema de valores em

contato com este Outro. Além disso, a relação estabelecida in loci com cientistas

sociais de outros países permitiu apreender as diferentes versões de antropologia

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desenvolvidas em contextos relacionados aos valores de nation-building. Afinal,

partimos do pressuposto de que, apesar de seu caráter universalista, por ser teórica a

proposta da antropologia, o trabalho antropológico reflete a heterogeneidade de

diferentes configurações sócio-culturais (Peirano, 1991; Kant de Lima, 1997).

As informações levantadas nestas atividades de campo, tanto no Brasil como na

França, foram inúmeras vezes discutidas nas reuniões do NUFEP, propiciando a

depuração de minhas interpretações e análises, a partir do diálogo profícuo com meu

orientador e colegas do Núcleo (doutores, doutorandos, mestres, mestrandos e

graduandos). Essa dinâmica coletiva de discussão das pesquisas, enriqueceu o olhar

impresso em meu trabalho, reorientando diversas vezes seu foco. E, claro, o próprio

processo de escrita, como um ato de ordenamento dos dados e leituras, fez com que

muitas questões iniciais fossem reformuladas, abandonadas ou apresentadas com

outro formato.

O texto ora apresentado, assim, corresponde a um processo dinâmico que

contou com a colaboração de muitos. Seja na França ou no Brasil, foram inúmeros

encontros, desencontros e reencontros, nos trabalhos de campo; busquei ampliar as

relações no campo, observar, escutar diversos atores, em distintas circunstâncias,

interagindo com os moradores da Marambaia, do Morro das Andorinhas, com alguns

martiniquenses e guadalupeanos em Paris. Tanto lá, como aqui, fundei amizades,

participei de festas religiosas e de aniversário, joguei futebol, pesquei com os

pescadores, participei de reuniões, interagi com estes mundos e com eles muito

aprendi e apreendi. “construção de identidades coletivas”, mas bem das dinâmicas de

identificação, em arenas públicas onde cada ator tem que colocar à prova as suas

acusasões e reinvidicações, fornecer justificativas e responder as críticas, numa

ecologia política, que impõe dispositivos institucionais, jurídicos e administrativos, em

relação as gramáticas de vários tipos. Seja o trabalho com dados de observação direta

ou participante, ou com dados documentais e históricos, ele sempre lança um olhar

antropológico.

O ponto central da tese é o problema do tratamento das demandas de

reconhecimento das “minorias” – seja comunidades quilombolas e tradicionais no Brasil,

seja pessoas “de pele negra” na França. Pretendemos desvelar a história das

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categorias, seguir a migração delas de uma cena para outra e a suas transformações

ma arquitetura da vida em comum. Num esforço hermenêutico, vismoas traduzir estas

categorias sem importá-las de um contexto a outro, pois nosso interesse é

compreender os usos práticos destas categorias, como os atores a operam e a

transformam. Nossa intenção é analisamors e decrevermos as políticas simbólicas dos

Estados e estratégias discursivas de atores em ação

O que busquei apreender está organizado em 5 capítulos. No primeiro capítulo,

discuto os efeitos da constituição dos dispositivos jurídicos e políticos que informam as

demandas de reconhecimento e de direitos dos atores e seus múltiplos regimes de

engajamento. No capítulo 2, descrevo e analiso a controvérsia envolvendo a

comunidade da Ilha da Marambaia e a Marinha de Guerra do Brasil e a emergência da

demanda de reconhecimento dos direitos territoriais dos antigos habitantes como

remanescentes de quilombos. No capítulo 3, analiso o conflito envolvendo os

moradores do Morro das Andorinhas e o MPE, com “a chegada do meio ambiente”,

culminando na demanda de direitos através da reivindicação da tradicionalidade local.

Já no capítulo 4, explicito como as demandas de reconhecimento de grupos sociais que

compõem a République colocam à prova os valores e o corpus republicano francês, em

decorrência das demandas de reconhecimento, por exemplo, dos Antilhanos que vivem

na França metropolitana. No capítulo 5, esboço algumas considerações sobre as

distinções existentes entre as categorias igualdade, reconhecimento, cidadania, etc,

nas gramáticas políticas e jurídicas brasileira e francesa. Por fim, discorro algumas

considerações finais a respeito desse percurso nos diversos arquipélagos em que

navegamos.

A mudança de estilo no capítulo 4 se dá por uma escolha estratégica.

Considerando que esta tese se dirige a um público que não domina necessariamente

as questões do campo político e social francês, privilegiamos em dar uma abordagem

mais interpretativa e menos descritiva para melhor contextulizar alguns pontos

importantes para o argumento deste trabalho.

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CAPÍTULO 1 AS POPULAÇÕES TRADICIONAIS , OS QUILOMBOLAS E

OS ANTILHANOS : DISPOSITIVOS POLITICOS NAS MOBILIZAÇÕES

COLETIVAS .

Nós seres humanos estamos sempre entretecidos em histórias. A cada história corresponde alguém que está entretecido nela. A história e o estar entretecido numa história encontram-se tão intimamente interligados, que talvez não seja possível separar as duas coisas nem mesmo no pensamento. Wilhelm Schapp

O objetivo deste capítulo é discutir os efeitos da constituição de dispositivos

jurídicos e políticos que informam as demandas de reconhecimento de grupos sociais

concebidos como “minoritários” nos espaços públicos brasileiro e francês. No nosso

entendimento, a conexão na arena pública entre as demandas dos atores e os

dispositivos, propicia a emergência de distintos regimes de engajamentos dos quais os

atores lançam mão para dar visibilidade às suas reivindicações de direitos ou

reconhecimento.

No caso brasileiro, dirigimos nosso olhar para os dispositivos legais e políticos

que definem o reconhecimento das identidades e de direitos dos denominados

remanescentes de quilombos e das populações tradicionais. Embora sejam processos

distintos, do ponto de vista histórico, estas duas categorias emergem na arena pública a

partir das mudanças políticas e jurídicas no espaço público brasileiro, com a

emergência de processos sociais de construções legais de identidades via instrumentos

normativos nacionais e diretrizes internacionais (Lobão, 2006). É a partir da emergência

destas categorias que determinadas demandas invisíveis aos olhos do público (Estado,

movimentos sociais, partidos políticos, etc.) adquirem uma relativa visibilidade e

legitimidade jurídica, política e simbólica. Tal circunstância levou alguns intérpretes da

paisagem brasileira a classificarem o Brasil como um país multicultural e pluriétinco.

Interpretações, que embora não consensuais, seja no mundo do Direito, seja no da

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Sociologia e Antropologia, que têm informado as ações de movimentos sociais, partidos

políticos e ONGs. Estas concepções serão problematizadas posteriormente, pois

pressupomos que embora o tradicional modelo assimilacionista da Nação brasileira

esteja em xeque, as políticas públicas atuais, bem como os dispositivos jurídicos

contemporâneos brasileiros, não configuram ações equivalentes às de tradições como

a canadense ou mesmo a dos EUA, cuja base é a multiculturalidade e plurietnicidade

do estado multinacional. Mesmo porque os dispositivos legais e políticos

implementados no Brasil nos últimos anos não possibilitaram a plena autonomia das

ditas “minorias”, em decorrência da reprodução dos mecanismos jurídicos de tutela e da

desigualdade. Mas trataremos desta questão nos capítulos seguintes.

No caso francês, lançaremos nossa atenção para a constituição da categoria

Antilhano, ou seja, os franceses provenientes das ilhas francesas, buscando enfatizar

suas demandas de reconhecimento que se assentam num paradoxo vivido e sentido

por eles: o de ser francês negro e ser negro francês, o que acarreta, da perspectiva dos

mesmos, uma oscilação entre ser “français à part entière et français entièrement à part”.

Este sentimento nutrido pelos Antilhanos que vivem, sobretudo, na Metrópole é

percebido como um ato de desconsideração, pois do ponto de vista dos mesmos a

“sociedade francesa metropolitana” não dá a devida relevância para a cultura e história

antilhana na formação na nação francesa. Assim como no caso quebequense - onde os

atos de desconsideração não estão normalmente associados às práticas de desrespeito

aos direitos básicos de cidadania, pois o simples fato de não demonstrar

reconhecimento pode ser percebido como um ato de desconsideração (Cardoso de

Oliveira, 2002) – para os franceses de origem antilhana o fato de não terem suas

singularidades históricas, culturais e artísticas reconhecidas, é tido como um ato de

desconsideração. Ou seja, ser “français à part entière et français entièrement à part”

constitui um reconhecimento negativo.

A formação do Estado-Nação francês, cujas raízes estão fortemente vinculadas

com a história colonial francesa, está marcada, assim como o estado brasileiro antes de

1988, por um viés assimilacionista no que concerne aos diversos grupos nacionais,

étnicos e culturais que o compõe. Por exemplo, andar nas ruas a pé ou de metrô em

Paris permite vislumbrar essa heterogeneidade cultural da formação da França. Embora

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essa diversidade seja explícita ao “olho nu”, ela não é evidente para os “olhos

republicanos”. A ideologia universalista francesa é avessa a qualquer tipo de

particularismo de tratamento no espaço público, assim como discutiremos

pormenorizadamente no decorrer deste trabalho. Desse modo, existe uma forte “reação

republicana” contra as políticas de reconhecimento e de ação afirmativa no espaço

público francês, que colocou em campos opostos os partidários do universalismo-

humanista e os do individualismo-liberal.

Nos próximos capítulos buscaremos problematizar e explicitar como tais

questões são debatidas na França e no Brasil. No momento, nosso objetivo é

compreender como estas categorias acima mencionadas são forjadas e apropriadas

dinamicamente pelos atores nas situações diversas. Nossa intenção é discutir de que

modo estes atores lançam mão destes dispositivos classificatórios na arena pública

com o propósito de reivindicar “justiça” ou “reconhecimento”. São estes dispositivos, em

grande medida, que informam as ações e as formas como estes atores se engajam na

formulação de suas demandas. Do mesmo modo, é através deles que os atores

operam um determinado leque de justificativas e argumentações que legitimam ou não

seus pleitos na arena pública. Afinal, como poderemos analisar os casos empíricos

relativos às controvérsias públicas relacionadas ao reconhecimento das comunidades

“remanescentes de quilombos” da Ilha da Marambaia, do processo de garantia dos

direitos da Comunidade Tradicional do Morro das Andorinhas, e as demandas de

reconhecimento dos martiniquenses em Paris, sem antes nos atermos aos sistemas

classificatórios que destinam visibilidade às ações dos atores?

Para tanto, buscamos contextualizar para o leitor como se constituem, social e

juridicamente, as categorias tradicional, quilombola e antilhano. Nossa intenção não é

realizar uma leitura exaustiva a respeito da literatura sobre as três categorias, muito

menos proceder a uma sóciogênese das mesmas. Nosso propósito é montar uma

cartografia das formas como elas são operadas social e juridicamente, buscando dar

conta das posições teóricas e das representações que informam a construção de tais

categorias. Desse modo, buscamos contextulizá-las tanto em termos diacrônicos, bem

como em termos sincrônicos. A descrição delas se estabelece de acordo com a

literatura e dados existentes, por isso mesmo não obedece a uma ordem cronológica.

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1. 1 Populações Tradicionais: Rousseau versus Lavoi sier

Inicialmente, temos a intenção de realizar uma descrição sobre a constituição da

categoria população tradicional. O objetivo não é empreender uma sociogênese do

conceito, nem muito menos fazer um balanço da produção bibliográfica existente, como

mencionado acima. A finalidade é construir um quadro que permita ilustrar como os

atores lançam mão deste dispositivo conceitual e jurídico nas situações de provas a que

os mesmos são submetidos diante dos conflitos e controvérsias. Em tais circunstâncias,

como poderemos melhor vislumbrar no capítulo seguinte, tal categoria se torna um

importante instrumento para destinar visibilidade às demandas de direitos de grupos

específicos.

A noção população tradicional tornou-se um operativo político na medida em que

“a mobilização dos ‘povos e comunidades tradicionais’ aparece hoje envolvida num

processo de construção do próprio ‘tradicional’, notadamente a partir de situações

críticas de tensão social e conflitos”. (Almeida, 2007: 11). Por outro lado, ela é um

dispositivo importante na constituição de uma arquitetura da vida em comum, da

relação mais familiar até a pública12, e na elaboração de distintos engajamentos e

vínculos que perpassam a relação com o território e com um tipo de pertencimento ao

mesmo.

Decerto, de acordo com os diferentes estudiosos sobre o processo de

constituição e consolidação da categoria “população tradicional”, a emergência do

conceito está intimamente vinculada com as alterações, científicas e sociais, relativas

ao conceito de “natureza”. Natureza esta que se tornou “conhecida” no final do século

XIX por intermédio das ciências, em um primeiro plano, e dos movimentos políticos,

12 Poucos trabalhos se interessam em estudar a relação entre a constituição de dispositivos legais e suas conseqüências nas relações de proximidade, como uma comunidade, uma família que passa a ser reconhecida como uma população tradicional e as tensões decorrentes nas relações de proximidade. Por exemplo, no caso que relataremos mais a frente, o do Morro das Andorinhas, tensões foram explicitadas entre diferentes grupos vizinhos em decorrência do reconhecimento dos moradores do topo do Morro como população tradicional. Outros moradores reivindicavam tal estatuto. Entretanto, por estratégia do grupo local, bem como por critérios de incusão/exclusão dos mesmos, os que pleiteavam não foram incluídos neste campo conceitual.

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através de “redes de instrumentos”, que as definiu via profissionais da natureza,

disciplinas da natureza, e protocolos sobre a natureza. (Latour, 1999).

A mesma era compreendida, lida e observada, no início do século XIX, através

do prisma preservacionista – cuja articulação com a noção de preservação da

wilderness (natureza em seu estado selvagem) culminou na construção de áreas

protegidas a partir de 1864 na Califórnia (Yosemite Valley e Mariposa Grove), seguido

pela criação do Parque Nacional de Yellowstone em 1872, na cordilheira dos Grand

Tetons – no século XX. Uma outra cosmologia vai se contrapor a esta, numa crítica ao

preservacionismo: a socioambientalista. Esta nova lente vai adquirir notabilidade com a

idéia de que a preservação ambiental deveria aliar o uso durável ou sustentável dos

recursos naturais renováveis com a reprodução econômica, social e cultural. Tal

princípio suponha a existência de relações homem/natureza que diferia da clássica

premissa ocidental iluminista de “que tudo na natureza se cria, nada se perde, tudo se

transforma”. Esse “ocidentalismo ambiental” não vislumbraria, desse ponto de vista,

outras formas de relação entre homem/natureza, as quais combinariam práticas,

técnicas e saberes compatíveis com a reprodução e manutenção dos recursos naturais

renováveis, ou seja, adeptas de um “desenvolvimento sustentável” da natureza.

Prevalecia para os sócio-ambientalistas a visão moderna do bom selvagem de

Rousseau, em contraposição a perspectiva utilitarista e maximizadora de Lavoisier.

Uma primeira conseqüência da guinada acerca do entendimento sobre o

problema da “natureza”, foi o reconhecimento da existência de “estilos de vida

tradicionais” no âmbito do conservacionismo internacional. Em tal contexto, a categoria

“tradicional” foi incorporada oficialmente com a introdução do princípio do zoneamento à

definição das áreas protegidas e do surgimento das preocupações em relacionar

conservação da biodiversidade in situ com o desenvolvimento sócio-econômico em

escala local na gestão dessas áreas (Barreto Filho, 2001). De acordo com Henyo

Barreto Filho, no II Congresso Mundial sobre Parques Nacionais e Áreas Protegidas,

realizado em Yellowstone em 1972, foi introduzida uma noção chave às Unidades de

Conservação: a idéia de zoneamento, que trouxe consigo o reconhecimento de que

comunidades humanas com características culturais específicas faziam parte dos

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ecossistemas a serem protegidos na figura das “zonas antropológicas” (Barreto Filho,

2001).

Desse modo, as mudanças relacionadas ao conceito “população tradicional”

estão em consonância com a constituição de uma arena híbrida em que o

conhecimento acadêmico-científico e as mobilizações sociais se entrecruzam. No

Brasil, foram as questões envolvendo o problema da terra, do reconhecimento e

homologação das terras indígenas, a consolidação dos direitos das chamadas

populações quilombolas e a implementação de Reservas Extrativistas Marinhas e

Terrestres que permitiram a visibilidade das demandas destes grupos inscritos neste

conceito polissêmico. Como demonstra Ronaldo Lobão (Lobão, 2006), a passagem do

uso da categoria tradicional do universo dos movimentos políticos e organizações

sociais ao universo legal, num processo de construção legal de identidades, se deu a

partir da luta dos seringueiros da Amazônia. Chico Mendes e seus companheiros do

movimento social na Amazônia, com a colaboração de grupos internacionais,

propiciaram a visibilidade das demandas de grupos sociais outrora invisíveis em termos

de repostas do Estado. Este, ao considerar que esses grupos sociais deteriam práticas

distintas daqueles da sociedade envolvente, e que eles desenvolveriam relações

distintas com o lugar em que vivem em “um lugar praticado, um lugar estimado” (Mello e

Vogel, 2004, apud Lobão, 2006), reconheceu o status jurídico especial destas

populações. Tal premissa pressupunha que os grupos denominados tradicionais

mantinham vínculos sociais, simbólicos e rituais diferenciados com seus territórios. De

acordo com Little (2002: 11).

a expressão dessa territorialidade, então, não reside na figura de leis ou títulos, mas se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que incorpora dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua área, o que dá profundidade e consistência temporal ao território.

Os seringueiros da Amazônia foram atores fundamentais na condução e

consolidação dos movimentos sociais extrativistas na Amazônia brasileira. Devido a

uma série de alianças políticas, particularmente com grupos ambientalistas, e à

liderança singular de Chico Mendes, eles construíram um novo espaço político e, no

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processo, tornaram-se novos atores sociais no cenário nacional (Lobão, 2006). A partir

da realização do I Encontro Nacional dos Seringueiros, em 1985, em Brasília, suas

reivindicações territoriais resultaram na formulação de políticas públicas territoriais e no

apoio de diversos setores da sociedade civil internacional, culminando em duas

conquistas importantes: o estabelecimento dos Projetos de Assentamento Extrativista

dentro da política de reforma agrária (INCRA), em 1987, e a criação da modalidade das

Reservas Extrativistas dentro da política ambiental do país (IBAMA), em 1989 (Lobão,

2006).

O processo de redemocratização brasileira empreendida nos anos 90 do século

passado trouxe mudanças significativas na estrutura administrativa e legal do Estado

brasileiro, permitindo mudanças na condução das políticas ambientais e sociais. Uma

guinada na ação do Poder Público, foi a criação do Centro Nacional do

Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT) - pela Portaria n.º 22

de 10 de fevereiro de 1992 do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos

Naturais Renováveis (IBAMA) - responsável, á época, pela implementação das

Reservas Extrativistas (RESEX) no Brasil. A criação deste órgão buscou contemplar

duas novas categorias na ação política e pública: o de “desenvolvimento sustentado” e

de “populações tradicionais” (Lobão, 2006).

No que concerne à arena jurídica, um dos palcos da disputa relativa à definição

do conceito “tradicional” se deu no processo de tramitação do projeto de lei do Sistema

Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), discutido por quase dez no Congresso

Nacional. O SNUC foi aprovado, através da Lei n° 9. 985, em 2000, que regula os

procedimentos de criação e gestão das Unidades de Conservação no Brasil. A tensão

existente entre os adeptos do preservacionimo e do socioambientalismo, gerou

acirrados debates acerca da conceituação de “população tradicional”. A cláusula foi

vetada do texto final da lei. (Little, 2002: 17). O artigo vetado classificava “população

tradicional” como:

grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável

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O conceito vetado se apoiava em três elementos: a distintividade cultural, o

tempo de uso e moradia do território a as formas de manejo dos recursos naturais

renováveis, enfatizando, no caso da Lei, a sustentabilidade do uso e apropriação dos

mesmos por parte das populações locais. Entretanto, a resistência e temor dos

preservacionistas, impediram a inclusão desta categoria na Lei do SNUC (Lobão, 2006

e Little, 2002)13. De acordo com Henyo Barreto Filho e Ronaldo Lobão a introdução da

categoria tradicional e as complexas questões fundiárias na Amazônia, imprimiram uma

dinâmica nova no cenário político-jurídico, com a construção de uma visão distintiva

destes atores nesta arena pública. O conceito tradicional já apontava para o caráter

distintivo da sociedade envolvente (Barreto Filho, 2001; Lobão, 2006). Segundo Lobão,

outro marco internacional foi o III Congresso Mundial de Parques Nacionais e Áreas

Protegidas, realizado em Bali, em 1982. Neste evento existia uma preocupação com as

terminologias “sociedades tradicionais” em áreas protegidas, bem como no congresso

da The World Conservation Union – IUCN – realizado no Canadá, em 1972. Na ocasião

houve um painel que tratava das questões relacionadas aos denominados “povos

tradicionais” e do “desenvolvimento sustentado”. Fato que suscitava preocupações e

atenção das agências multilaterias, como o próprio IUCN, o World for Wildlife Fund –

WWF e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – Pnuma. Estas

agências chegaram a reconhecer os direitos dos povos tradicionais à

“autodeterminação”. Nas palavras de Lobão (2006: 42):

em 1988, a IUCN em um documento que apresenta sugestões acerca da implementação das propostas contidas no ‘Relatório Brundtland’ afirma que ‘a perda de culturas ou do conhecimento tradicional das culturas que sofrem mudança social rápida é um problema pelo menos tão grave quanto a perda de espécies’. Já neste documento há uma definição para ‘povos tradicionais’: ‘minorias culturalmente distintas da maioria da população que estão quase totalmente fora da economia de mercado’, significando que o corpo de conhecimento tradicional do ambiente e seus recursos ainda não estão intimamente ligados à economia de mercado. No Brasil, não tenho dúvidas que a história do conceito está imbricada na história dos povos amazônicos. Até a

13 No SNUC uso sustentável é definido como: “exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável”.

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década de oitenta estes eram classificados em três grupos: índios, caboclos ou ribeirinhos e colonos. Ao final da década de noventa alguns autores defendiam a aplicação da noção população tradicional em uma vertente “extensional”, ou seja, através da enumeração daqueles que poderiam ser enquadrados na categoria ou os potenciais candidatos ao enquadramento.

O processo de redemocratização no Brasil no final dos anos 80 do século XX

trouxe à tona um debate político que propiciou a constituição de um novo dispositivo de

ação e de mobilização. A Constituinte representou um marco importante pela

possibilidade aberta aos distintos setores, aglutinando movimentos sociais, ONGs e

parlamentares:

com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, distintas modalidades territoriais foram fortalecidas ou formalizadas. São os casos das terras indígenas e dos remanescentes das comunidades de quilombos. De todos os povos tradicionais, os povos indígenas foram os primeiros a obter o reconhecimento de suas diferenças étnicas e territoriais, mesmo que tal reconhecimento tenha sido efetivado por meio de processos que, em muitos casos, prejudicaram seus direitos. (Little, 2002: 13).

Esta nova configuração política e jurídica promoveu significativas mudanças no

estabelecimento de novos regimes de propriedade e novos regimes de identidades com

a sobreposição de terras indígenas, quilombolas e extrativistas com áreas protegidas,

fazendo emergir novas formas de conflitos, muitas vezes, intratáveis (Lobão 2006).

Estes conflitos permitiram que os denominados “povos tradicionais” passassem a

reivindicar do Estado Brasileiro o reconhecimento de seus territórios, com a justificativa

de que suas formas de uso dos recursos naturais não implicariam ameaça à

biodiversidade, nem para o território nacional. Como veremos mais a frente, estes

grupos procuravam dar visibilidade para suas demandas de direitos, antes invisíveis

diante de uma ideologia nacionalista homogeneizante, cuja perspectiva se defrontava

com as demandas diferenciadas destes atores.

Portanto, o reconhecimento dos direitos dos povos tradicionais, atrelado ao

reconhecimento dos distintos regimes de propriedade e de identidade das populações

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tradicionais, conduziu alguns analistas a interpretarem o estado brasileiro moderno

como um Estado “pluriétnico”. Nas palavras da Procuradora Deborah Duprat:

a Constituição de 1988 passa a falar não só em direitos coletivos, mas também em espaços de pertencimento, em territórios, com configuração em tudo distinta da propriedade privada. O seu artigo 216, ainda que não explicitamente, descreve-os como espaços onde diversos grupos formadores da sociedade nacional têm modos próprios de expressão e de criar, fazer e viver. Nesse cenário a Constituição reconhece expressamente direitos específicos a índios e quilombolas, em especial seus territórios (Duprat, 2007: 14 e 15).

Ainda que o Estado Brasileiro reconheça a existência de distintos grupos

formadores da Nação a partir da Constituição de 1988, há, por outro lado, uma enorme

dificuldade dos operadores do Direito em reconhecer os múltiplos ordenamentos

jurídicos, optando por uma análise legal da aplicabilidade ou não dos dispositivos e

instrumentos normativos de corte universalista. Diferentemente, por exemplo, da

estrutura jurídica e burocrática canadense, onde os dispositivos legais das terras dos

grupos indígenas são regidos por instrumentos próprios (Kymlincka, 1995).

Como alguns autores apontam, outro marco importante para a construção dos

instrumentos legais relacionados à categoria povos tradicionais, foi a Convenção 169

da Organização Internacional do Trabalho (OIT)14 sobre “Povos indígenas e tribais em

países independentes” (Ver Anexo 1), de 1989, que veio assegurar-lhes “o controle de

suas próprias instituições e formas de vida e desenvolvimento econômico, e manter e

fortalecer suas entidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos estados em que

vivem” (Shiraishi Neto, 2007: 135 ). Nesse âmbito, no artigo 1, da Parte 1, no inciso 2, a

Convenção 169 estabelece que:

a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser tida como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições desta Convenção.

14 O Brasil é signatário da Convenção 169, sendo que a mesma foi ratificada pelo Brasil em 19/06/2002, através do Decreto Legislativo 142/2002, entrando em vigor em 25/07/2003. A partir de então a auto-atribuição se tornou um mecanismo jurídico para o estabelecimento de direitos étnicos no território nacional.

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Baseado neste princípio é que muitos cientistas, lideranças do movimento social,

juristas e políticos argumentam que a base das políticas públicas e dos instrumentos

normativos relativos aos povos tradicionais é a auto-determinação. Tal princípio tem

encontrado eco em manifestações públicas ou mesmo na sustentação de normas,

como é o caso do Decreto 4.887/2003 (ver Anexo 2) que define os procedimentos para

identificação, demarcação e titulação das terras das comunidades remanescentes de

quilombos.

Nesse contexto, outros fóruns têm desempenhado um papel central na

consolidação da categoria tradicional. Um exemplo foi o I Encontro Nacional de

Comunidades Tradicionais, cujo tema foi “Pautas para Políticas Públicas”,

paradigmático porque expressou um novo momento: o direcionamento das políticas

públicas dirigidas às populações tradicionais, bem como momento oportuno para definir

parâmetros relativos ao conceito das comunidades tradicionais. Este evento serviu

tanto para orientar políticas públicas quanto para permitir que grupos sociais se

reconhecessem como detentores de direitos ao exercício de suas diferenças sociais e

culturais. O Encontro permitiu constatar que são heterogêneos também os critérios que

agrupam e mobilizam povos indígenas, quilombolas, ciganos, pomeranos, afro-

religiosos, ribeirinhos, quebradeiras de coco de babaçu, seringueiros, pescadores

artesanais, caiçaras, castanheiros e povos dos faxinais, dos gerais e dos fundos de

pasto, dentre outros (Almeida, 2007: 15). Serviu do mesmo modo para demonstrar que,

além de heterogênea sua composição, são também heterogêneas as possibilidades de

enquadramento na categoria legal tradicional. Como no caso de uma “facilitadora que

encontrou dificuldades para enquadrar os presentes nas categorias ‘produzidas’, de

acordo com a descrição de Lobão (2006). Segundo este, a dificuldade de

enquadramento destes múltiplos pertencimentos na categoria tradicional ficou

evidenciada quando se levantou uma mulher negra e disse: “olha, eu sou mulher,

negra, quilombola, extrativista, quebradeira de coco de babaçu. Eu estou no que a

Ministra Marina Silva falou pela manhã, na transversalidade identitária ”. (Lobão,

2006: 58, grifo do autor).

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Um dos resultados do Encontro foi o estabelecimento, em 27 de dezembro de

2004, da Comissão de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais

(CNPCT), através do Decreto Presidencial, cujo objetivo, assim como preconizado no

inciso I do artigo 1º, é “estabelecer a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável

das Comunidades Tradicionais” (Shiraishi Neto, 2007: 189). O conteúdo do mesmo foi

alterado através do Decreto Presidencial de 13 de julho de 2006, modificando o

princípio da Comissão que, anteriormente, era estabelecer a Política, e passou a

“coordenar a elaboração e acompanhar a implementação da Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentado dos Povos e Comunidades Tradicionais”, assim como

proposto no inciso I. Outra mudança significativa é a paridade da composição da

Comissão, sendo que a mesma, que no Decreto de 2004 poderia, ainda, integrar

representantes das Comunidades Tradicionais, no Decreto de 2006 passam a ter

representação efetiva. A Comissão é constituída de 30 representantes (entre titulares e

suplentes) dos povos e comunidades tradicionais (quilombolas, indígenas, ciganos, etc)

e 15 representantes de instituições governamentais (INCRA, FUNASA, FUNAI, etc).

Cabe ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome presidir a Comissão,

sendo reservado ao Ministério do Meio Ambiente a Secretaria Executiva.

Com a instituição da Comissão ficou, posteriormente, estabelecida, através de

Decreto Presidencial nº 6040 de 7 de fevereiro de 2007 (ver Anexo 3), a Política

Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais

(PNPCT). Como previsto no seu artigo 2º compete à CNPCT coordenar a

implementação da PNPCT. Diferentemente do SNUC, no PNPCT é explícita a

conceituação de povos e comunidades tradicionais, assim como previsto no inciso I do

art 3.º:

grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam seus territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

O objetivo da PNPCT é:

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promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições

Em especial, no Rio de Janeiro, um dos desdobramentos dessa política de

significados acerca da categoria população tradicional foi a introdução da Lei Estadual

n.º 293 de 1995 que “dispõe sobre a permanência de populações nativas há mais de 50

anos em unidades de conservação no Estado do Rio de Janeiro”, tornando-se, como

veremos posteriormente, ao discutirmos os conflitos entre o Poder Público, Ongs e a

Comunidade do Morro das Andorinhas, um importante instrumento na luta pela

visibilidade de grupos humanos em áreas de unidades de conservação.

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1.2 Quilombos de ontem, quilombos de hoje: a “desfr igorificação” de um

conceito .

A categoria quilombos, assim como a categoria tradicional, é polissêmica e

controversa. Ainda que tal categoria tenha adquirido uma expressão pública nas últimas

duas décadas, em decorrência da introdução deste conceito na Constituição Federal de

1988, sua constituição social e legal remete-se ao período colonial brasileiro. Da

mesma forma que a categoria tradicional, a categoria remanescentes de quilombos

tornou-se importante instrumento de reivindicações de direitos e reconhecimento no

Brasil contemporâneo. Mais do que construções sociais são elas resultados das

interações e das provas às quais os atores são submetidos na arena pública,

permitindo a dinâmica elaboração de seu “eu” bem como de seu “nós” na produção de

um novo modelo de representação coletiva. A introdução do artigo 68 na Constituição

Federal permitiu a constituição de novas formas de engajamentos, nos quais os atores

passaram a se apropriar dele para fazer valer suas reivindicações e destinar visibilidade

às suas argumentações e demandas públicas.

Seja do ponto de vista normativo, seja do ponto de vista dos efeitos sociais

ocasionados pela promulgação da Constituição Federal de 1988, aliás intitulada de

“Constituição cidadã”, podemos asseverar que a emergência de uma categoria legal, o

quilombo, explicitou determinados conflitos, reconfigurando certas controvérias públicas

em torno desse termo legal e político. Controvérias que são marcadas pela

multilplicidade semântica do termo, seja no seu nivel legal, na esfera pública, ou mesmo

nas interações cotidianas do espaço público, pois tal categoria está investida de

múltiplos sentidos e entendimentos.

Do ponto de vista histórico, a primeira conceituação sobre os quilombos foi

formulada em 1740. Nesse período, eles eram definidos como “toda habitação de

negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham

ranchos levantados nem se achem pilões neles”, segundo documento, em resposta ao

Rei de Portugal, do Conselho Ultramarino (apud Almeida: 46). Como salienta Moura,

“de acordo com esta definição da Metrópole, o Brasil se converteu, praticamente, em

um conjunto de quilombos, uns maiores, outros menores” (Moura, 1983: 16). A questão

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dos quilombos em toda a América (Colômbia, Cuba, Jamaica, Suriname, Guiana

Francesa, etc.) esteve vinculada não apenas à terra (Price, 2000), como também à

questão do regime da força produtiva nas grandes plantações das fazendas de cana de

açúcar e café. Era por isso que em diversas regiões do Brasil grupos de fazendeiros

organizados se reuniam e formavam milícias armadas com o intuito de combater os

focos de constituição dos ditos quilombos, num processo de criminalização de tais

organizações sociais. Conseqüência disso, por exemplo, foi a formação da Guarda

Nacional que, em Vassouras, por exemplo, foi organizada pela Câmara em 1834, sendo

seu primeiro comandante o fazendeiro barão de Campo Belo (Lacerda, 1998: 21).

Como descrito no alvará de 1741, por Joaquim Felício dos Santos (apud Almeida, 2002:

47 e 48), as penas aos “calhambolas” variavam. Dizia o documento:

Eu El Rei faço saber aos que este alvará virem que sendo-me presentes os insultos, que no Brasil cometem os escravos fugidos, a que vulgarmente chamam calhambolas, passando a fazer o excesso de se juntarem em quilombos, se sendo preciso acudir com remédios que evitem esta desordem: hei por bem que a todos os negros que forem achados em quilombos, estando neles voluntariamente, se lhes ponha com fogo uma marca em uma espádua com letra F, que para este efeito haverá nas câmaras: e se quando for executar esta pena, for achado já com a mesma marca, se lhe cortará uma orelha; tudo por simples mandado do juiz de fora, ou ordinário da terra ou do ouvidor da comarca, sem processo algum e só pela notoriedade do fato, logo que do quilombo for trazido, antes de entrar para a cadeia (grifo nosso).

O quilombo nesta cosmologia estava associado à “desordem” e ao “insulto” à

“ordem do reino”. Um dos principais ícones mitológicos, a “Tróia Negra”, assim

chamado por Nina Rodrigues e Oliveira Martins, foi o quilombo dos Palmares que, ao

ser iniciado em 1630 teve sua total destruição 67 anos depois, em 1697. Nina

Rodrigues, um dos primeiros estudiosos sobre o negro no Brasil - cuja perspectiva

estava fortemente vinculada às abordagens do viés da diferença racial, do conde

francês Gobineau - propunha uma leitura do quilombo dos Palmares como o “Estado

Negro” onde regia “uma certa polícia de costumes de que é bom notar não se exclui a

instituição da escravidão” (Rodrigues, 1988: 75). A cidade de Palmares reproduziria, na

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concepção deste autor, as cidades africanas em termos de suas organização espacial,

familiar, social.

O que se apura, em resumo, das descrições conhecidas é que em liberdade os negros de Palmares se organizaram em um estado em tudo equivalente aos que atualmente se encontram por toda África ainda inculta (Rodrigues, 1988: 77 grifo nosso)

Sob este prisma, as noções “rústico” e “primitivo” fundam um tipo de

interpretação relacionada às manifestações dos escravos sublevados, em

contraposição à idéia de “civilidade” e “ordem”, ou de “civilização” versus “barbárie”.

Para Nina Rodrigues, bem como para outros pensadores da época, os negros africanos

eram portadores de uma incapacidade intelectual intrínseca a sua formação racial. Não

é por menos que em seu livro “As raças humanas”, Nina Rodrigues defende a tese,

inscrita no esquema de Lombroso e Ferri, de que negros, bem como os índios, por essa

incapacidade “natural” de compreensão acerca da realidade, deveriam ter penas

atenuadas, ou mais brandas. Para ele, a suposta inferioridade da raça negra era fruto

da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade (Rodrigues, 1894).

As primeiras décadas do século XX foram marcadas por intensos embates entre

os partidários das teses “deterministas” (geográficas e raciais), evolucionistas e aquelas

de cunho “culturalista”. Um dos ícones dessa nova postura teórica e epistemológica, no

cenário mundial, foi sem dúvida Franz Boas que, em diversos trabalhos, rebateu e

criticou duramente as teses que propunham explicar o fenômeno social a partir de suas

imbricações naturais e raciais. De acordo com Boas, as variações de costumes,

tradições e culturas não permitem estabelecer parâmetros científicos válidos para

explicar as diferenças sociais. Estas poderiam apenas ser explicadas mediante um

minucioso estudo sobre os sistemas de valores e dos padrões culturais das sociedades

humanas (Boas, 2004). Os efeitos destas teorias de cunho “culturalista” tiveram

impactos na produção científica brasileira. A americana Ruth Landes, por exemplo,

começou seus trabalhos no Brasil em 1938, com o objetivo de realizar uma “pesquisa

antropológica sobre a vida dos negros”, para finalizar seu doutorado em antropologia na

Universidade de Columbia. Em 1947, publicou os resultados de sua pesquisa no livro

intitulado “The City of Women”, cuja abordagem estava em consonância com as

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contribuições de Boas e Ruth Benedict, entre outros15 (Landes, 2002). Outro autor

importante desse período foi Gilberto Freyre, que fora também aluno de Boas na

Universidade de Columbia, e que representou esta reviravolta dos estudos culturais no

Brasil. O seu olhar, assim como de diversos outros estudiosos, não estava mais

centrado no problema da “raça” negra, mas nas implicações da escravidão sobre as

relações sociais e raciais no Brasil moderno. Em seu célebre livro “Casa Grande e

Senzala”, as relações sociais eram o foco, que envolviam senhores e escravos em

torno da ambivalente relação entre a casa e a senzala, entre o senhor e o escravo,

entre branco e negro. O referido autor estava preocupado com os padrões culturais que

moldaram esta complementar relação, contrapondo-se às explicações de cunho racial

ou geográfico (Freyre, 2001).

As conseqüências desta mudança teórica imposta nos círculos de estudiosos

sobre o “problema do negro no Brasil” puderam ser sentidas em diversos trabalhos

posteriores a Freyre. Um importante estudioso sobre a temática, o folclorista Edson

Carneiro concebia os quilombos como:

movimento de fuga que era, em si mesmo, uma negação da sociedade oficial, que oprimia os negros escravos, eliminando sua língua, a sua religião, os seus estilos de vida. O quilombo por sua vez era uma reafirmação da cultura e do estilo de vida africano” (Carneiro, 1964: 26).

Entretanto, de modo distinto de Nina Rodrigues que via nesse continuum algo

relativo à influência filogenética dos escravos e mais próximo aos princípios teóricos de

Freyre, para Carneiro “os quilombos, deste modo, foram – para usar a expressão agora

corrente em etnologia – um fenômeno contra-aculturativo, de rebeldia contra os

padrões de vida impostos pela sociedade oficial e de restauração dos valores antigos”

(Carneiro, 1964: 27). Para Carneiro, o quilombo representaria um acontecimento

singular na vida nacional, como forma de luta contra a escravidão, como

estabelecimento humano, como organização social, como reafirmação dos valores das

culturas africanas. (Carneiro, 1964: 35).

15 O trabalho de Landes teve forte repercussão no campo científico brasileiro. Para uma melhor compreensão deste debate, ver a discussão de Edison Carneiro sobre as controvérsias teóricas e metodológicas entre Landes e Arthur Ramos. (Carneiro, 1964: 223-227).

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Para outro importante pensador e estudioso da questão do negro no Brasil, o

escravo desempenhou, ao contrário do que supunha uma determinada corrente

historiográfica e sociológica da época, um importante papel como agente ativo de sua

história. De acordo com Arthur Ramos seria um equívoco supor que os negros, ao

contrário dos índios, tivessem sido elementos passivos e resignados ao regime da

escravidão em decorrência da substituição do segundo pelo primeiro, nas lavouras do

Brasil colônia. Para Arthur Ramos a substituição de uma mão de obra pela outra se deu

em decorrência das aptidões culturais do negro ao trabalho da lavoura. Embora este

tenha se adaptado a este regime de trabalho, o mesmo reagiu violentamente a

escravidão. De acordo com Ramos:

desde as fugas, até o suicídio. Desde a fuga individual até os grandes movimentos de insurreição coletiva. Nestes movimentos, destacaram-se as suas qualidades de liderança, de organização, o ímpeto de combate e o sentimento de afirmação da dignidade pessoal (Ramos, 1971: 51).

Desse modo, as sublevações negras detinham, do ponto de vista do sucessor da

cátedra de Nina Rodrigues, contornos quase épicos. As revoltas quilombolas, as

insurreições dos negros nagôs e haussás, os movimentos revoltosos como a Balaida

demonstram o papel ativo dos negros na transformação da Nação brasileira. No lugar

de organizações rústicas, Ramos concebia tais movimentos, como os quilombos dos

Palmares, como a manifestação da capacidade de “liderança, de administração, de

tática militar, de espírito associativo, de organização econômica, de constituição

legislativa... do Negro Brasileiro” (Ramos, 1971: 75). Numa posição distinta ao de Nina

Rodrigues, Palmares representaria o desenvolvimento moral elevado dos negros

brasileiros: a manifestação de luta e resistência, um projeto da “República negra” de

Palmares.

É nesse contexto que a organização política do movimento negro brasileiro nos

anos 30 e 40 do século XX - com o surgimento do MNU, do Teatro Experimental do

Negro (TEM) - veio permitir a construção de uma dura crítica aos modelos explicativos

sobre o papel do negro na formação da nação, por exemplo, no que diz respeito à

difundida ideologia da “democracia racial”. Tal postura político-teórica buscou dar

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centralidade ao papel dos negros na história brasileira. Abdias de Nascimento, por

exemplo, ocupou um papel central nessa elaboração crítica sobre a relação

branco/negro no Brasil a partir da elaboração do negro como trabalhador e produtor da

riqueza material do Brasil; o negro como colonizador e construtor cultural; o negro como

injustiçado, preso à sua revolta subjetiva; o negro como alegria e vida, sobrepujando as

injustiças e a dor; o negro como produtor de uma cultura original; o negro como

guerreiro defensor da pátria e da liberdade (como no caso do quilombo dos Palmares).

(Guimarães, 2005: 07).

De acordo com Guimarães, nessa época, o movimento negro brasileiro, a partir,

sobretudo do TEM, desempenhou um importante papel na consolidação de uma crítica

à democracia racial e do lugar do negro na formação nacional através da interlocução

com intelectuais e ativistas estrangeiros. De acordo com Guimarães (2005: 10):

no TEM foi possível que os diversos intelectuais negros mantivessem estreitos laços com intelectuais estrangeiros. Foi, assim, que Abdias conheceu Camus em 1949, quando este visitou o TEN e assistiu a um ensaio de sua peça Calígula. Nos ano de 1950, Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento falarão ocasionalmente de raça negra; mas é a idéia de cultura negra, tal como utilizada pelos autores da négritude, que os influencia mais tarde. Não sem críticas e nunca integralmente, pois eles preferiram falar em cultura afro-brasileira, rechaçando o afrocentrismo e o panaficanismo da négritude. No entanto, esta negritude de Abdias não se expressa em discurso ou projeto político de ruptura com a democracia racial, até pelo menos 1964, quando a tese de Florestan Fernandes sobre A integração do negro na sociedade de classes é assimilada pelos ativistas negros. De 1964 até pelo menos 1966, data da Carta Aberta ao I Festival de Arte Negra, Abdias passa a construir o seu discurso político, afastando-se do ideal de democracia racial, denunciado como ficção ou mito, e assumindo integralmente o discurso da négritude.

O TEN, fundado em 1944 pelo artista plástico e ativista Abdias Nascimento, pode

ser caracterizado como um movimento da classe média negra, promovido por

intelectuais e acadêmicos, que buscava a inserção do elemento negro na “fórmula” da

“identidade nacional próspera” em construção e a contestação do ideal de

embranquecimento. Ainda que a grande parte da população negra fosse vítima das

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mazelas nacionais da pobreza, do crescimento desordenado das cidades e da

precariedade dos serviços públicos fundamentais, ou seja, ainda que a população

negra, como um todo, não estivesse contemplada pela “modernidade” brasileira, o TEN

preocupava-se com a auto-estima do negro, promovendo peças teatrais protagonizadas

por negros, concursos de beleza negra e espetáculos onde ganham vulto as discussões

das relações raciais (Monteiro, 2003: 63). Desse ponto de vista, Abdias, tomando

contato com os trabalhos de Camus, em especial L’homme révolté, elaborará uma

crítica aos modelos explicativos sobre a relação branco/negro na sociedade brasileira,

trazendo a figura do quilombo como central para esta reformulação político-teórica. Um

discurso que se assentava na ideologia da libertação dos negros, do quilombo como a

primeira manifestação da luta entre opressores e oprimidos, entre brancos e negros, no

qual este desempenhou um papel ativo na formulação de uma crítica à escravidão

encarnado nos movimentos insurrecionais. Portanto, o “quilombismo”, foi:

forjado durante o exílio norte-americano, Abdias concilia os conceitos eruditos de revolta e resistência com os conceitos nativos de revolta e de quilombo, recriando assim, no plano da política de identidade, um passado heróico para o povo negro brasileiro e um futuro de luta (Guimarães, 2005: 10).

Em consonância à emergência de um movimento negro organizado em

movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos, houve uma guinada nos estudos

sobre o negro e as relações raciais no Brasil que ensejou novas interpretações a

respeito da escravidão e seus efeitos no sistema social e político do Brasil moderno.

Estudos que enfatizavam os processos de modernização e mobilidade social,

inspirados nas questões de raça e classe, como por exemplo, o trabalho de Florestan

Fernandes cuja preocupação era problematizar a questão do preconceito racial e das

relações entre branco e negro através de uma leitura das lutas de classes. Florestan

percebe o problema do preconceito racial no Brasil não diretamente ligado a uma

disputa por espaços sociais entre trabalhadores brancos e negros, mas sim como um

problema ligado à ação estratégica das elites brasileiras no seu cálculo de manutenção

de privilégios. Mesmo que reconhecendo o problema da discriminação como um misto

que tinha uma face racial e outra social, ainda parece bastante identificável na

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contribuição de Florestan Fernandes um determinismo de classe (Monteiro, 2003).

Florestan em “A integração do negro na sociedade de classes” veio introduzir uma nova

interpretação a respeito da realidade social brasileira, contrapondo-se à teoria de que o

Brasil seria uma democracia racial. Ele põe em xeque a idéia de “democracia racial” ao

atribuir a desigualdade racial a duas heranças do regime escravocrata, que impediram

os negros de competir com os imigrantes: o racismo e a incapacidade dos negros de se

integrarem ao mercado (Fernandes, 1965).

A década de 50 do século XX foi frutífera no que concerne à produção científica

sobre a questão do racismo, das desigualdades entre brancos e negros, com a

produção acadêmica e política que denunciava as teorias, como as deterministas e as

evolucionistas, que alicerçaram determinados regimes totalitários e segregacionistas,

como o apartheid nos EUA e África do Sul e o Holocausto alemão durante a Segunda

Guerra Mundial. Ficou célebre a Conferência organizada pela UNESCO nesse período,

que propunha debater o problema das teorias sobre a raça, ciência e racismo. Desta

Conferência tivemos a publicação de diversos artigos que se notabilizariam nos círculos

acadêmicos mundiais, tendo um deles maior repercussão: o clássico ensaio do

antropólogo Claude Levi-Strauss, que consistia numa dura crítica às teorias que

associavam o desenvolvimento e progresso da civilização com a raça (Levi-Strauss,

1978). Ainda no ano de 1952, a UNESCO financiou diversas pesquisas sobre as

relações raciais no Brasil. Sendo o Brasil um modelo típico ideal de “democracia racial”,

assim como difundido e legitimado à época, ele poderia ser um importante laboratório

para o desenvolvimento de pesquisas aplicadas para a eliminação da discriminação

racial em outros países (Maio, 1999). Entretanto, trabalhos levados a cabo por

pesquisadores como Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Costa Pinto, Fernando

Henrique Cardoso, etc., concluíram que as relações sociais e raciais no Brasil eram

eivadas de desigualdade (Maio, 1999).

As décadas posteriores serão marcadas por intensas movimentações políticas,

como o golpe militar que culminou no regime militar a partir dos anos 70 do século XX.

Momento marcado por forte repressão às manifestações políticas e a emergência dos

movimentos sociais. Entretanto, de acordo com Monteiro (2003: 67):

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este foi também um período particularmente importante para as relações raciais no Brasil, sobretudo, pela nova postura do discurso racial promovido pela militância negra. Entre as principais mudanças do discurso racial podemos destacar (a) a substituição da identidade brasileira/miscigenada por uma identidade afro, (b) o reconhecimento da preeminência da componente “raça” nas desigualdades sociais e econômicas presentes na sociedade brasileira e (c) na denúncia da democracia racial brasileira como uma farsa. Alguns fatores podem ser apontados como geratriz de tais mudanças no discurso racial, entre eles: o arrefecimento da ortodoxia marxista que tendia a reduzir os conflitos de interesse de brancos e pretos a conflitos de classe, o processo de descolonização da África e o subseqüente panafricanismo que atingiu várias nações com população negra, a influência da luta pelos direitos civis dos negros americanos sobre as lideranças negras brasileiras que se encontravam submetidas ao exílio, o poder da indústria cultural norte-americana e européia sobre os brasileiros e o aumento de uma camada de negros escolarizados

Este período é marcado por uma reviravolta dos estudos sobre os negros com a

ênfase dada pelos estudiosos ao campesinato negro. Se trabalhos anteriormente

desenvolvidos, como o coordenado por Charles Wagley (1951), enfatizavam as

relações complementares e o caráter democrático da relação entre negro e branco no

Brasil, as pesquisas da década de 70 do século XX lançavam o olhar para as formas e

características das comunidades negras rurais, suas relações de produção, a posse da

terra, o sistema de parentesco. Tais estudos se preocupavam em acentuar as

características morfológicas das comunidades negras, concebidas nesse aspecto,

como bairro rural, de acordo com os estudos de comunidade desenvolvidos no Brasil,

por exemplo, através dos trabalhos de Antônio Cândido e Oracy Nogueira (Borges

Pereira, 1981).

Esta mudança na ênfase dos estudos dos bairros e comunidades rurais negras,

além de permitir a exploração de um campo empírico e teórico antes pouco observado,

possibilitou explicitar características de grupos sociais no Brasil outrora desconhecidos

ou invisíveis. Na USP, Borges Pereira iniciou um programa de pesquisa inovador nesse

sentido, com a produção de estudos sobre “bairros rurais negros e comunidades negras

rurais”. Este programa de pesquisa trabalhava com a idéia de que os resíduos de

antigos quilombos poderiam ser encontrados nestas comunidades negras rurais.

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Diversos trabalhos de tese foram desenvolvidos nesse âmbito, como os de Neusa

Gusmão, “Terra de pretos, terra de mulheres: terra, mulher e raça num bairro rural

negro”, entre outros.

Outro caso de estudos direcionados ao desvendamento deste universo negro

rural, foi a pesquisa desenvolvida por Carlos Vogt e Peter Fry, que culminou na

publicação de “Cafundó a África no Brasil: linguagem e sociedade no final dos anos 70.

A relevância do trabalho está, principalmente, na produção de uma extensa pesquisa

sobre a manutenção de determinados traços relacionadas aos grupos negros

escravizados no Brasil, como, por exemplo, o uso da língua banto. Esta pesquisa

permitiu trazer à tona um debate sobre as comunidades que detinham traços

remanescentes dos grupos escravos trazidos para o Brasil. Ora, desse ponto de vista o

negro não era concebido apenas como objeto da ciência, assim como proposto por

Silvio Romero no século XIX, mas era ele também visto como sujeito político. São de

suma importância os efeitos deles na arena pública brasileira, pois esteviveram

associados à emergência de um novo discurso negro, surgido na década de 1970, que

passou a orientar as ações dos movimentos pelos direitos dos negros oriundos das

áreas rurais.

Essa conjuntura, associada aos novos movimentos políticos pró-negro, parece-

nos fundamental para o amadurecimento e construção de um discurso relacionado aos

direitos dos negros no Brasil. Organizações como o Instituto de Pesquisa da Cultura

Negra (IPCN), fundado em 1975, desempenharam papel seminal nas conquistas

políticas subseqüentes ao seu surgimento, pois além de se constituírem em espaços de

referência para o debate acerca das relações raciais na cidade, essa organização teria

se desdobrado num período posterior como um pólo de auxílio jurídico a vítimas de

preconceito:

é consenso que no cenário político do fim da ditadura militar, a ascensão de negros a cargos administrativos estaduais, como o caso do Cel. Nazareth Cerqueira, e que a própria eleição destes para cadeiras do legislativo de todos os níveis (Agnaldo Timóteo, Abidias Nascimento e Carlos Alberto de Oliveira [Caó] ambos eleitos pelo PDT e Benedita da Silva, eleita pelo Partido dos Trabalhadores, são exemplos) tenham sido conquistas significativas para os movimentos pró-negro. (Monteiro, 2003: 72).

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Tal contexto permitiu a introdução de um novo viés sobre o debate a respeito do

papel do negro no Brasil e, conseqüentemente, das comunidades negras rurais. Aos

poucos, a partir da década de 1980, com a organização política do movimento negro,

houve uma visibilidade jurídica e política das reivindicações territoriais dos

denominados remanescentes de quilombo. Na década de 80 do século XX, o então

presidente José Sarney, em virtude das demandas dos movimentos negros

organizados no Brasil, cria no âmbito do Ministério da Cultura o Departamento de

Assuntos Étnicos da Fundação Pró-Memória, cujo objetivo inicial era de desenvolver

políticas públicas voltadas para a preservação do sitio histórico do quilombo dos

Palmares, na Serra da Barriga, em Alagoas. Instituiu-se o memorial Zumbi que se

reunia anualmente para discutir questões ligadas a Palmares, bem como aos outros

“quilombos” no Brasil. Desse modo, foi possível constituir um grupo com informações

sobre a questão quilombola que se reuniu nas Audiências públicas da Subcomissão de

Minorias da Constituinte. Esse grupo, em grande parte proveniente dos movimentos

negros do Rio de Janeiro, participou ativamente das discussões da inclusão do artigo

68 na Constituição Federal.

Com a Constituinte de 1988, o debate sobre o racismo, a desigualdade racial, os

direitos das terras das comunidades negras rurais, ganhou força, tanto a partir das

emendas parlamentares, bem como das mobilizações populares, como foi o caso do

Centro de Cultura Negra do Maranhão, representado por Magno Cruz, Ivan Rodrigues,

Lúcia Dutra e Mundinha Araújo, que encaminhou propositura e defendeu, nos encontros

nacionais do movimento negro, o reconhecimento de direito à propriedade nos

domínios territoriais ocupados por comunidades negras rurais (Leite, 1997). De acordo

com Dimas Salustiano Silva (Silva, 1997), a primeira iniciativa relacionada à introdução

do dispositivo legal que reconhecesse os direitos das comunidades negras rurais foi de

autoria do deputado Carlos Alberto Caó do PDT do Rio de Janeiro, com o texto que

segue:

2. Acrescente, onde couber, no Título X (Disposições

Transitórias), o seguinte artigo:

Art. Fica declarada a propriedade definitiva das terras ocupadas

pelas comunidades negras remanescentes de quilombos, devendo

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o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Ficam tombadas essas

terras bem como documentos referentes à história dos quilombos

no Brasil.

Diversas outras emendas foram propostas com o propósito de modificar ou

aperfeiçoar o texto original. Destaco o parecer da Emenda modificativa do Deputado

Eliel Rodrigues do PMDB do Pará, que propunha suprimir o reconhecimento da

propriedade definitiva das terras das comunidades quilombolas, com a alegação de que

“a emissão de títulos de propriedade pelo Estado criará “verdadeiros guetos” e a prática

do “apartheid” no Brasil”. O destaque dado a esta emenda está relacionada ao lugar

que tal representação ocupa nas críticas contemporâneas de setores militares, agro-

industriais, entre outros, contra o reconhecimento dos direitos territoriais das

comunidades remanescentes de quilombos, assim como discutiremos mais

detidamente nos próximos capítulos.

Uma das conseqüências dessa “política de significados” sobre o termo quilombo,

propiciou que o artigo 68 fosse aprovado no “apagar das luzes”, sendo mesmo

introduzido no corpo transitório da Constituição Federal, pois não foi aprovada a

proposta de incluí-lo no capítulo da cultura (Silva, 1997). A primeira proposta de

regulamentação do referido artigo se deu no ano de 1995, momento em que a

Senadora Benedita da Silva e os Deputados Alcides Monteiro e Domingos Dutra

apresentaram projetos de lei com o objetivo de regulamentar o artigo 68 do ADCT. Por

fim o artigo definitivo ficou com a seguinte redação:

Art 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que

estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva

Ficou a cargo da Fundação Cultural Palmares (FCP)16 o processo administrativo

para a identificação, reconhecimento, demarcação e titulação das terras dos

remanescentes de quilombos. Em 1995 a Portaria n.º 307 do INCRA propunha a

16 A FCP foi criada pela Lei n.º 7.668/88 e materializada pelo Decreto n.º 418/92 com a finalidade de promover a cultura negra e suas várias expressões no seio da sociedade brasileira.

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transferência do poder administrativo da FCP para o INCRA no que dizia respeito ao

processo de demarcação e titulação das terras dos remanescentes de quilombos.

Estava prevista no projeto, inclusive, a criação de um projeto especial quilombola”

(Sociedade Brasileira de Direito Público , 2002: 22).

Cabe destacar que o artigo 68 do ADCT da Constituição Federal foi o primeiro

reconhecimento formal do Estado brasileiro dos direitos territoriais dos ex-escravos,

com relação aos outros países como o Suriname, cujos territórios étnicos foram

formalmente reconhecidos pelas autoridades coloniais, e os EUA, com a constituição

dos chamados black farmers (Almeida, 1998). Ao contrário das legislações de terra,

como a Lei de Terra de 1850, que foram restritivas quanto à distribuição da terra,

propiciando uma forte concentração dos bens territoriais, o artigo 68 foi uma iniciativa

de ampliação do acesso aos territórios tradicionalmente ocupados pelos remanescentes

de quilombos.

Os primeiros Projetos de Lei que tinham a intenção de regulamentar os

procedimentos de titulação de propriedade imobiliária dos remanescentes das

comunidades de quilombos foram apresentados no ano de 1995, como mencionado

acima. No Senado Federal, foi apresentado o Projeto n.º 129, de autoria da Senadora

Benedita da Silva, e na Câmara dos Deputados foi enviado o Projeto de Lei n.º 627, da

autoria do Deputado Alcides Modesto e Domingos Dutra. No texto da Senadora era

expresso o seguinte conceito de quilombos:

os quilombos, como se sabe, constituem a saga mais comovente da raça negra em nosso País, materializada em esconderijos onde centenas de escravos se refugiavam da opressão e da violência produzidas pelos primeiros colonizadores. Formas primitivas de organização comunitária, sediadas no meio da mata bruta, essas povoações se fundavam na solidariedade e no respeito mútuo socializando a produção e o trabalho, e esboçando os primeiros sinais de uma República justa no Brasil (Leite, 1997: 32).

No texto dos Deputados, lia-se a seguinte definição de quilombos:

consideram-se remanescentes de comunidades de quilombos, para os fins desta lei, aquelas populações que guardem vínculo histórico e social com antigas comunidades formadas por

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escravos fugidos, que lograram manter-se livres durante a vigência das leis escravistas no país” (Leite, 1997: 34)

Os textos exprimem bem algumas concepções consagradas acerca do conceito

de quilombos. A primeira está relacionada com a dimensão “histórica” do quilombo, a

de que os quilombos do presente tivessem mantido suas relações com os quilombos do

passado. O passado e o presente se fundem nesta nova cartografia do social (O’dwyer,

2002). Outra dimensão interpretativa está relacionada à idéia de fuga. Concepção essa

que, segundo Almeida (2002), funcionou como definidor de quilombos entre juristas e

cientistas desde a época colonial. O esconderijo e a fuga operam como categorias

definidoras do quilombo. Outra concepção diz respeito à noção de organizações

primitivas que está atrelada à dimensão do “bom selvagem”, de grupos que haviam

guardado resquícios das formas de organização tribal da África. Organização esta que

era, em contraponto às mazelas do capitalismo moderno, vista como modelo alternativo

ao sistema opressor e desigual. Uma visão que estava intimamente vinculada com a

concepção de que os quilombos teriam sido a primeira manifestação de uma estrutura

socialista no Brasil, assim como expresso por Edison Carneiro e Abdias do Nascimento:

o Socialismo negro, da justiça e igualdade.

No campo jurídico o conceito quilombo veio adquirir diversas interpretações. Em

Simpósio promovido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), na reunião

anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada em São

Luis do Maranhão, em julho de 1995, o Procurador Regional da República Aurélio

Virgílio Veigas Rios (Veigas Rios 1997: 65), lança mão de uma interpretação do artigo

68 em consonância com as mudanças atribuídas pela Constituição Federal ao

tratamento dos direitos culturais. Tanto a Constituição de 1934, bem como a de 1967,

estão preocupadas em estabelecer uma proteção do ensino e da cultura naquilo que diz

respeito às expressões artísticas e culturais. Já a Constituição de 1988 vai propor, nos

seus artigos 215 e 216, que o Estado proteja a cultura material e imaterial, tomados

individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, memória e ação

dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. “O que se pretende

assegurar é que os diferentes grupos formadores da sociedade gozem da proteção

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quanto ao seu modo de viver, isto é, o direito à sua cultura própria” (Veigas Rios, 1997:

66).

O quilombo passa a ser lido sob a lente da Constituição de 1988, que imprimiu

uma dinâmica de reconhecimento dos direitos dos grupos minoritários com vistas ao

estabelecimento de procedimentos para sua inclusão e para a extinção da

discriminação. Como salienta Monteiro:

a CF de 88 é reconhecidamente um marco na análise da trajetória da legislação anti-discriminatória no Brasil, sendo possível destacarmos pelo menos três motivos que contribuíram para essa notoriedade da atual Carta no processo de criminalização do racismo. O primeiro deles é a assimilação no texto constitucional de Tratados e Convenções internacionais como A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1968, e a Convenção Nº 111 da OIT Sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão. O segundo deles é atenção especial dispensada a garantia de direitos através do Estado para as comunidades reconhecidamente situadas em áreas de remanescente de quilombos (Monteiro, 2003: 90)

Este processo de visibilidade dos direitos das “minorias” no Brasil veio culminar

na organização e mobilização de demandas coletivas em torno da categoria jurídica

quilombo. As reivindicações da categoria legal quilombo tomaram o cenário nacional

com a emergência de diferentes demandas pelo Brasil afora. Pouco a pouco, estes

novos sujeitos de direitos começam a mobilizar seus esforços na busca do

reconhecimento de seus direitos territoriais sob o prisma do artigo 68, mas a

regulamentação dessa modalidade territorial demorou sete anos a ser aprovada e só

em 1995 a Comunidade Boa Vista, em Oriximiná, no Vale de Trombetas (PA), foi a

primeira comunidade de remanescente de quilombo a ser reconhecida pelo Estado sob

a figura jurídica da nova Constituição. Nos sete anos seguintes, 29 desses territórios

conseguiram reconhecimento formal, 18 do governo federal e 11 de órgãos estaduais

(Little; 2002: 14). Como observa Almeida (1998: 54):

a relação destas mobilizações, objetivadas em movimentos, com os aparatos do Estado passa a ser

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mediatizada, portanto, por agências que vão se constituindo regionalmente segundo critérios de representatividade diferenciada, alcançando, a seguir, um expressão que recupera a dimensão política do nacional.

A formação de associações regionais, tais como a Associação de Moradores das

Comunidades Rumo-Flexal no Maranhão (1985) e a Associação de Comunidades de

Remanescentes de Quilombos do Município do Oriximiná no Pará (1990), e à

realização de eventos regionais, tais como o I Encontro de Comunidades Negras Rurais

no Maranhão (1986) e o I Encontro de Raízes Negras no Pará (1988), seguiram-se

eventos de ordem nacional, como o II Seminário Nacional Sobre Sítios Históricos e

Monumentos Negros em Goiás (1992) e o I Seminário Nacional de Comunidades

Remanescentes de Quilombos (1994), organizado pela Fundação Cultural Palmares,

contando com diversos especialistas da área e grupos remanescentes de quilombos,

culminando com os festejos, em todo o país, em 1995, do 300° aniversário da morte de

Zumbi dos Palmares.

Na década de 1990, a categoria quilombo começa a ganhar outro contorno

teórico e, sob este aspecto, os quilombos, tomados como objeto de reflexão, tendem a

constituir hoje uma temática específica em um corpo de conceitos, de noções

operacionais e de aplicações próprias, configurando um campo de pesquisas

relativamente autônomo, que não se subordina exatamente aos contornos da questão

racial, tal como constituída desde as interpretações de Nina Rodrigues e de Arthur

Ramos. Para além de um tema histórico, o quilombo consiste num instrumento através

do qual se organiza a expressão político-representativa necessária à constituição, ao

reconhecimento e à fixação de diferenças intrínsecas a uma etnia (Almeida, 1998).

Num primeiro momento, a noção quilombo foi pensada como uma possibilidade

de destinar garantias especiais a grupos que se auto definiam descedentes de

escravos, cujas caracteristicas sociais, culturais e econômicas estiveram estreitamente

ligadas à história da escravidão. Desse modo, a idéia de reminiscência guardava uma

concepção de que algo haveria se estagnado com o tempo, permanecido e resistido às

alterações históricas. O quilombo era concebido como uma reminiscência quase que

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arqueológica, tanto que no texto constitucional original referia-se aos “remanescentes

de quilombos”.

Da passagem de um imaginário geral a sua inscrição nos ordenamentos legais, o

quilombo sofreu mutações significativas, ne medida em que houve uma tradução,

reorientação conceitual do texto legal que teve implicações na ação coletiva e na

mobilização política. O quilombo se tornou um ator importante na cena política,

estabelecendo uma agenda pública e política no dominio da ciência, das organizações

do estado, Ongs, igreja, movimentos sociais etc., reconfigurando as relações sociais.

Depois da CF de 88 há outra tradução sobre o quilombo que passa a ser

pensado como aglomerado de comunidades negras rurais, não necessariamente

composto de escravos fugidos, dotado de uma forma particular de acesso e uso da

terra. O quilombo passa a ser concebido como uma unidade étnica, tradução que é

operada, de maneira complexa, semanticamente, no campo político, ou seja, através

dos movimentos negros urbanos, bem como dos movimentos dos remanescentes de

quilombos, que passam a ganhar visibilidade pública, bem com no campo cientifico, a

partir de produções de historiadores, sociólogos e antropólogos que operam uma

“ressemantização” de tal conceito, que passam a concebê-los como grupos étnicos

(Almeida, 2002; O’Dwyer, 2002).

Diversos autores irão criticar a associação entre os remanescentes de quilombos

contemporâneos com o modelo colonial, frisando o “congelamento histórico e

arqueológico” do conceito (Almeida, 2002). Posteriormente, após estas discussões, o

conceito começa a ser “descongelado”, dando novos rumos à pesquisa com as

comunidades negras rurais. Como afirmou Almeida (2002: 63):

é necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da definição histórica stricto sensu e das outras definições que estão frigorificadas e funcionam como uma camisa-de-força, ou seja, da definição jurídica dos períodos colonial e imperial e até daquela que a legislação republicana não produziu, por achar que tinha encerrado o problema com a abolição da escravatura.

Neste processo de “descongelamento” do conceito quilombos, a Associação

Brasileira de Antropologia – ABA desempenhou papel importante com a constituição de

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em 1996, da criação da Comissão de Terras de Quilombo. O objetivo desta Comissão

era:

organizar e planejar as ações da ABA com relação a essa problemática, bem como assessorar a diretoria em ações externas que exigissem contato com órgãos do Judiciário e do Ministério Público, visando a garantir o cumprimento das recomendações constantes em laudos antropológicos-peritos nos processos de reconhecimento e demarcação desses territórios (O’dwyer, 2002).

No mesmo ano da criação do GT, a ABA foi convidada pelo Ministério Público

Federal (MPF) para esboçar um parecer sobre as situações empíricas envolvendo

comunidades quilombolas, com vistas a elaborar um conceito, ou “descongelar” o

conceito de quilombo. Num documento realizado pela ABA, afirmava que

“contemporaneamente, portanto, o termo não se referia aos resíduos arqueológicos de

ocupação temporal ou de comprovação biológica”. Nesse âmbito o entendimento a

respeito desta noção muda. Os quilombos passam a ser compreendidos de uma

perspectiva antropológica como grupos étnicos que organizam suas fronteiras através

de mecanismos de inclusão e exclusão, com o entendimento de que a identidade

quilombola é auto-atributiva (O’Dwyer, 2002).

Os quilombos passam a ser caracterizados através das categorias de

autodefinição e/ou auto-atribuição, que funcionam como elemento gerador de

identidades para esses grupos sociais, invariavelmente autodenomiados como “pretos”

e que se proclamam pertencentes a determinado território. (Silva, 1997: 61). Foi a partir

da incorporação das diretrizes da convenção 169 da OIT pelo Estado Brasileiro que a

auto-atribuição se tornou mecanismo classificador e definidor de direitos diferenciados.

É nesse contexto, no que tange à legislação, que é elaborado o Decreto 4887 de

novembro de 2003 que veio introduzir a auto-definição como postulado para o

reconhecimento dos direitos das comunidades remanescentes de quilombos. De acordo

com o Decreto (ver anexo 2):

Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica

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própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Neste contexto o processo de identificação, reconhecimento, demarcação e

titulação das terras quilombolas passaram para a competência do Ministério do

Desenvolvimento Agrário, ficando a cargo do INCRA o processo de reconhecimento,

demarcação e titulação das terras quilombolas. Segundo dados do Ministério do

Desenvolvimento Agrário, no exercício de 2005, foram abertos 305 processos; 27 áreas

foram reconhecidas e 6 tituladas. Ora, essa visibilidade adquirida pelos remanescentes

de quilombos iniciou-se por meio de um processo histórico de luta pela manutenção de

suas terras. Num período de quase duas décadas foi institucionalizada a relação do

Estado com estes grupos: primeiro com a criação, em 1988, da Fundação Cultural

Palmares - FCP, ligada ao Ministério da Cultura; posteriormente com o surgimento da

Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, órgão vinculado à

Presidência da República, criado em 21 de março de 2003; e por último, em 2003, foi

delegada, por meio do Decreto nº 4.887/03, ao Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária - INCRA, órgão do Ministério de Desenvolvimento Agrário - MDA, a

competência para a regularização fundiária das terras17 dos remanescentes de

quilombo. De acordo com o antropólogo Plínio dos Santos (2004), após essas

mudanças políticas e jurídicas o número de comunidades quilombolas no Piauí passou

de 4, em 2003, para mais de 150, em 2007. Há uma configuração de uma nova malha

fundiária no estado tendo a propriedade da terra como centro da discussão.

Todavia, diferentemente das terras indígenas que são definidas como bens da

União e se destinam à posse permanente dos índios, evidenciando uma situação de

tutela, as terras das comunidades remanescentes de quilombos são reconhecidas na

Constituição de 1988 como de propriedade definitiva dos quilombolas. “Não obstante

esta distinção relativa à dominialidade, pode-se afirmar que ambas são consideradas

17 Em 13 de outubro de 2005, foi publicado o Edital INCRA/SA/nº 07 que versa sobre o concurso público para o cargo de Analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário (os profissionais para esse cargo deveriam ser das seguintes áreas: Engenharia Civil, Engenharia Florestal, Engenharia Agrimensura, Arquitetura e Antropologia). Foi a primeira vez no órgão que se abriu vagas para Antropólogo, justamente com a intenção desses profissionais trabalharem com a regularização fundiária dos territórios quilombolas, porém foram criadas apenas 35 vagas distribuídas em 31 cidades, em que o INCRA têm superintendências, em todo o país.

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juridicamente como ‘terras tradicionalmente ocupadas’ seja no texto constitucional ou

nos dispositivos infraconstitucionais” (Almeida, mimeo s/data). Embora a tutela não se

expresse no regime jurídico das terras quilombolas, ela se exprime no modelo de

titulação. No caso das terras de quilombos, assim como defendido por distintos juristas

e estudiosos do tema, bem como expresso nos instrumentos normativos, a titulação de

propriedade será “reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-

indiviso às comunidades [...] com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade,

imprescritibilidade e de impenhorabilidade”. No parágrafo do artigo 17 do decreto 4887

é possível ler que as comunidades serão representadas por suas “associações

legalmente constituídas”. O que consiste em dizer que estas terras não podem ser

parceladas, vendidas pelos proprietários, pois são elas de domínio coletivo. A terra não

é um bem de troca, no sentido liberal do termo, mas de uso. Nesse sentido, os

moradores de um quilombo não são necessariamente proprietários, pois não podem

vender a terra. No momento em que são inscritos nesta categoria “tradicional” passam

a se caracterizar como agentes tutelados e com direitos limitados de acesso ao seu

bem, pois não são detentores de autonomia plena na gestão de suas terras.

Ora, queremos frisar que o descongelamento da categoria quilombo, operada por

antropólogos, historiadores, juristas, políticos e movimentos sociais, aliado à

emergência de novos dispositivos jurídicos na arena pública brasileira, como foi o caso

da Convenção 169, permitiu a tradução do estatuto legal no universo político, com a

constituição do Decreto presidencial, que deu lugar à idéia de auto-reconhecimento

como mecanismo definidor da identidade coletiva. Ponto de vista, entretanto, que não é

consensual na arena pública, pois existem outras concepções que concebem os

quilombos a partir da idéia sedimentada em 1740, ou seja, de aglomerados de escravos

fugidos. Para os defensores deste modelo, no qual se reúnem juristas, políticos,

empresários do agro-negócio, parte do setor militar, filósofos, etc., a referida

“ressemantização” significou uma falsidade histórica e deturpação dos fatos. Afinal,

para eles, os quilombos seriam concebidos a partir de um modelo típico ideal colonial.

Esta concepção relativa aos quilombos tem se confrontado com aquela que define os

quilombos como organizações étnicas, onde a noção de auto definição e auto atribuição

correponde à idéia chave do quilombo comtemporâneo. Essa operação de significação,

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resignificação, dessa constituição do quilombo, bem como das controvérsias geradas

em torno de tal conceito, nos permite compreender de que maneira esses atores, essas

comunidades, dispõem de utensílios diversos e de justificativas plurais para fazer

operar os múltilplos regimes de engajamentos no espaço público.

Os oposicionistas deste processo de descongelamento dos quilombos

apresentaram uma Ação de Inconstitucionalidade do Decreto 4887/2003 ao Supremo

Tribunal Federal. A medida foi proposta por um Deputado do antigo PFL, atualmente

DEM, com o argumento de que auto-atribuição não permite a devida segurança legal

para garantir o reconhecimento dos denominados remanescentes de quilombos, bem

como a introdução no Decreto 4887 da categoria “territórios tradicionalmente ocupados”

fere o preceito constitucional baseado na noção de propriedade.

Em termos temporais, os quilombos até recentemente sofreram da invisibilidade

jurídica do controle coletivo da terra. Entretanto, a consolidação do movimento negro na

arena pública brasileira permitiu que as demandas de certa parcela, em primeiro plano,

dos negros urbanos (notadamente do Rio e São Paulo) e, posteriormente, as

“comunidades negras rurais”, adquirissem maior visibilidade diante do Estado brasileiro.

O processo de organização política do movimento negro a partir da década de 1980,

permitiu que os quilombos rapidamente passassem a gozar de uma nova visibilidade

política − que também se refletiu no crescente interesse de estudiosos sobre o tema

(como historiadores, geógrafos, sociólogos e antropólogos).

Como salienta Ilka Boaventura Leite, o quilombo, então, na atualidade, significa

para esta parcela da sociedade brasileira sobretudo um direito a ser reconhecido e não

propriamente, apenas um passado a ser rememorado. (Leite, 2000 : 6). Ora, como

assinala Lobão (2006), a CF de 1988 determinou a posse permanente e o usufruto

exclusivo das terras por eles tradicionalmente ocupadas. A definição para “territórios

tradicionalmente ocupados” incluiu terras habitadas em caráter permanente (passado),

as terras utilizadas para suas atividades produtivas (presente) e às necessárias a sua

reprodução física e cultural (futuro), como previsto no art. 231, §1º da Constituição.

.

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1.3 Os Antilhanos e o paradoxo republicano

Como discutiremos mais pormenorizadamente, o caso dos Antilhanos difere

sensivelmente da questão das populações tradicionais e das comunidades

remanescentes de quilombos no Brasil em virtude da lógica republicana de recusa a

qualquer tipo de tratamento diferenciado ao “cidadão francês”. O republicanismo

francês é marcado por um viés fortemente universalista e, portanto, avesso a qualquer

tipo de relação no espaço público que remeta a particularismos. Desse modo, a

ideologia do “cidadão universal” tem conseqüência direta tanto no que diz respeito às

políticas públicas direcionadas às “minorias”, bem como no que concerne a produção

sociológica e antropológica sobre o negro e outros grupos étnicos-raciais na França.

Consequentemente, há em certa medida, se comparada, por exemplo, à produção

sobre o tema no Brasil, uma enorme invisibilidade sobre os estudos da questão negra

e de problemas étnicos no espaço público francês. Como salienta Stavo-Debauge “não

existem objetos que sejam descritos sob a categoria ‘negro na França’ para as Ciências

Sociais francesa” (Stavo-Debauge, 2007: 02). Tal problemática, segundo ele, foi adiada

porque os sociólogos e antropólogos franceses abandonaram esse campo da “cultura”

e das comunidades, permanecendo “surdos” para a questão da etnicidade, pelo menos

até a metade dos anos 90 do século XX. Segundo Stavo-Debauge:

quando nos debruçamos sobre a literatura francesa contemporânea relativa ao gênero da sociologia e antropologia, não achamos ‘negros na França’. Caso nos deparemos com ele, a gente pode ler sobre as famílias africanas, os estudantes africanos, os agentes públicos domiens18, os migrantes advindos da África e que podem ser distribuídos entre grupos nacionais, regionais e mesmo étnicos. A gente cruza com sans-papiers19, com Antilhanos, com grupos de contornos imprecisos que seriam classificados com o indigno status de indigènes20 ou mesmo

18 Domiens é a categoria atribuída para as pessoas provenientes dos departamentos de outre mer. Na França os départements d'outre-mer (DOM), que são também régions d'outre-mer, são coletividades territoriais integradas à República Francesa. 19 Estrangeiro em território francês que não possui os documentos de identificação em dia. 20 Na França este termo possui um caráter pejorativo, pois remete a uma definição etnocêntrica sobre as populações colonizadas pela Nação Francesa. Tem ainda um significado de distinção entre a idéia de “civilidade” e “barbárie”. Este termo remete ao regime do indigenato que vigorou na França até 1947, cuja função era estabelecer regras específicas sobre a conduta dos grupos colonizados.

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aquele, um pouco mais desejado, de imigrante, mas também de tirailleurs sénégalais21. Existem rostos e figuras, mas não há negros. Entretanto, há massivamente uma questão, no conjunto das Ciências Sociais desses últimos anos, a respeito dos processos, tidos intrinsecamente como negativos, que respondem pelos nomes de ‘etnicização’, ‘racialização’ das relações sociais. Sob a descrição ‘negro’ não achamos nada, mesmo quando se trata de um mundo de categorizações incontestavelmente ajustadas aos números equivocados, mas rapidamente mascarados sob essa palavra chave ‘etnicização das relações sociais’ (Stavo Debauge, 2007: 3).

Esta invisibilidade teórica-política sobre o papel da população negra na França

reflete essa dificuldade do olhar republicano jacobino em conceber esta multiplicidade

da formação nacional francesa. Pois a França, assim como outros diversos países

europeus, desempenhou um importante papel no período de expansão colonial no

século XVI. Este processo de expansão às “Américas e África” foi sustentado pela

premissa de que a sujeição destes “povos” concebidos como “primitivos” permitiria sua

redenção ao processo civilizatório. Desse modo, tanto a população negra africana, bem

como os ameríndios da América do Sul e Norte eram conceituados, no período colonial

do século XVI, pelos europeus colonizadores, como grupos sociais inferiores

hierarquicamente em virtude, como vimos acima, das diferenças filogenéticas.

As concepções relativas às populações negras na França em particular, oscilam

entre a noção do “selvagem” e do negro “dócil e servil”, assim como descrito no Code

Noir (ver Anexo 4), de 1685, cujas justificativas para a escravidão assinalam bem esse

caráter civilizatório. De acordo com o Code Noir:

comme nous devons également nos soins à tous les peuples que la divine Providence a mis sous notre obéissance, nous avons bien voulu faire examiner en notre présence les Mémoires qui nous ont été envoyés par nos officiers de nos îles de l’Amérique, par lesquels ayant été informés du besoin de notre autorité et justice pour y mantenir la discipline de l’Église catholique, apostolique et romaine, pour y régler ce qui concerne l’état et la

21 Tirailleurs sénégalais são os grupos militares constituídos pelo Império colonial francês em 1857 para a colonização da África.

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qualité des esclaves dans nos dites îles, et désirant y pourvoir et leur faire connaître qu’encore qu’ils habitent des climats infiniment éloignés de notre séjour ordinaire, nous leurs sommes toujours présent, non seulement par l’étendue de notre puissance, mais encore par la promptitude de notre application à les secourir dans leurs nécessités”22.

No caso francês, a construção histórica do país está intimamente vinculada com

o processo de expansão e, conseqüentemente, das ações centralizadoras do Estado

monárquico francês no século XVI e XVII. O processo de expansão do território francês

culminou em 1635 no domínio dos territórios de Guadalupe e Martinica. Sendo que em

1676 há a conquista do território da Guiana Francesa, três anos após a inserção da

França ao Comércio Triangular dos escravos. Nessa época, a França chegou a ocupar

uma posição central no comércio de escravos, sendo a segunda potência do comércio

negreiro.

Através do Code Noir, o Rei da França estabeleceu todos os fundamentos

relativos ao relacionamento entre brancos e escravos, seus direitos, deveres, as formas

de vendas, patrimônios, etc. No seu artigo 44 o Rei Luís XIV “statuant et ordonnant pour

tous les peuples que la divine Providence mis sous obéissance”, declara “les esclaves

être meubles et comme tels doivent entrer dans la communauté”. Importante salientar

que em solo francês, quer dizer, em território metropolitano, os escravos eram livres, “le

sol français affranchit” (Castaldo, 2007: 6). Desse modo, como previsto no artigo 57

ficava decretado que:

leurs affranchissements faits dans nos îles, leur tenir lieu de naissance dans nos dites îles et les esclaves affranchis n'avoir besoin de nos lettres de naturalité pour jouir des avantages de nos sujets naturels de notre royauté, terres et pays de notre obéissance, encore qu'ils soient nés dans les pays étrangers.

Sendo assim, o escravo liberto deveria destinar o respeito aos seus concidadãos

e, em especial, ao seu antigo senhor, como proposto no artigo 58: “ commandons aux

affranchis de porter un respect singulier à leurs anciens maîtres, à leurs veuves et à 22 As legislações, normas e etc. não serão traduzidas.

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leurs enfants, en sorte que l'injure qu'ils leur auront faite soit punie plus grièvement”. É

importante frisar que o Code Noir não foi apresentado ao Parlamento em Paris, nem foi

registrado por conta da aversão de uma parte da sociedade francesa à escravidão,

demonstrando que a ordem pública real estava regida por determinados princípios

jurídicos e as colônias por outros. De um lado do Atlântico, o direito natural “proscrit” a

escravidão, e do outro, o “bien public” que a postula. Nesse espírito, portanto, a

escravatura era contraditória com o costume geral do reino.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 que poderia, a

princípio, mudar o curso das relações entre branco e negro com a introdução dos

princípios da revolução (liberté, égalite, fraternité) no ordenamento jurídico francês,

acomodou em sua estrutura o sistema escravista. Em documento que visava abolir a

escravidão se lia “abolida a escravidão dos nègres e declara que todos os homens, sem

distinção de cor, são cidadãos franceses”. Um Decreto de 4 de abril de 1794 foi

adotado com o propósito de abolir a escravidão. No texto era reproduzido o seguinte

princípio “tous les hommes, sans distinction de coleurs, domiciliés dans les colonies,

sont citoyens français, et jouiront de tous les droits assurés par la Constitution”. Mas tal

Decreto teve êxito apenas na Guiana e em Guadalupe, pois a Martinica, ocupada pelos

ingleses nesse momento, manteve a escravidão.

Sobre a compreensão dos escravos acerca dos eventos da Revolução de 1789,

James (apud Cleaver, 2005: 32) informa:

os radicais concentravam as suas forças no Clube Jacobino, que conduziria a Revolução Francesa à conclusão. (...) Mas, enquanto isso, e os escravos? Eles ouviam falar da Revolução e conceberam-na à sua própria imagem: os escravos brancos da França se levantaram e mataram os seus senhores e, assim, passaram a gozar os frutos da terra. Isso era grosseiramente impreciso, de fato, mas eles haviam apanhado o espírito da coisa. Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Os eventos de 1789 propiciaram uma mudança no status do negro escravo, na

medida que este também incorporou, “cheio de orgulho”, como salienta ironicamente

James, o lugar destinado pela République aos novos cidadãos.

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Entretanto, os ares da liberdade perduraram pouco tempo para os negros

escravos das Antilhas, pois 8 anos após, em 1802, Bonaparte, proclama nova lei da

República, “dans les colonies restituées à la France en exécutaion du traité d’Amiens,

du 6 germinal na X, l’esclavage sera maintenu conformément aux lois et réglements

antérieurs à 1789”. O general Richepance, encarregado de restabelecer a escravidão

em Guadalupe por conta das sublevações e resistências dos negros contrários ao

sistema escravista, determina em Arrêté de 17 de julho de 1802 que “jusqu’à ce qu’il en

soit autrement ordonné, le titre de citoyen français ne sera porté, dans l’étendue de

cette colonie et dépendances, que par les blancs. Aucun autre individu ne pourra

prendre ce titre ni exercer les fonctions ou emplois qui y sont attachés”. Bonaparte 1º,

três anos depois, determina no código civil das Colônias que o casamento, adoção,

direito de sucessão, etc., como direito a ser executados entre blanc e blanc com a

justificação que:

considérant que tout temps on a connu dans les colonies la distinction des couleurs, qu’elle est indispensable dans les pays d’esclaves, et qu’il est nécessaire d’y mantenir la ligne de démarcation qui a toujours existé entre la classe blanche et celle de leurs affranchis ou de leurs descendans (sic), etc.

As intenções abolicionistas, fundadas sob o princípio da liberdade, igualdade,

fraternidade, esbarravam na compreensão de uma maioria branca que concebia

inconciliável a ampliação dos direitos civis e políticos à raça negra “fusionnant pour

ainsi dire avec la race blanche, et en s’exposant ainsi à verser dans le sang européen

des altérations que les siècles seuls pourront effacer”, assim como expresso nos termos

dos propriétaires d’habitations do Conselho Especial da Martinica. (Taubira, 2006: 15).

De acordo com Castaldo (2006: 16) uma instrução de 28 de março de 1790:

n’écartait pas de la citoynneté ‘active’ les gens de ‘couleur’ qui en remplissaient les conditions, ce qui alimentait à nouveau les controverses sur place. Sur la fin de 24 septembre 1791, après un échange où notamment Barnave s’oppose à Robespierre, les Députés en finissent avec hésitations: la citoyenneté est refusée aux hommes ‘de couleurs’.

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Enfim, a abolição da escravidão veio coincidir com os propósitos

independentistas e a constituição dos Estados modernos, pois os novos Estados

nacionais pressupunham que a presença das populações negras era um dos grandes

desafios para a “emancipação e igualdade humana”. Na França, no ano de 1834, um

ano após a Abolition Bill que extingue a escravidão na Inglaterra, é criada a Societé

française pour l’abolition de l’esclavage, tendo como membro um dos proeminentes

intelectuais da época, Victor Schoelcher. Uma lei é proposta em 1838 de modo a

estabelecer um plano de emancipação gradual da escravidão. Em 1845 uma lei

modifica o regime colonial com a mudança da categoria “escravo” que se torna

“pessoas não livres”.

Com a Revolução de 1848, uma das principais medidas do Governo provisório

foi a promulgação do fim da escravidão. Uma comissão presidida por Victor Schoelcher

é criada em 04 de março do mesmo ano com a finalidade de preparar o ato de

emancipação em todas as colônias, sob a justificação de que “l’esclavage est un

attentat contre la dignité humaine; qu’en détruisant le libre arbitre de l’homme, il

supprime le principe naturel du droit et du devoir; qu’il est une violation flagrante du

dogme républicain ‘Liberté-Égalite-Fraternité’ “, como exposto no preâmbulo do Decreto

da abolição da escravatura, assinado em 27 de abril de 1848. Em cada uma das

colônias a proclamação do fim da escravidão se deu em um período distinto. Na

Martinica ocorreu em 23 de maio, em Guadalupe em 27 de maio, na Guiana em 10 de

agosto e nas colônias africanas apenas 3 anos após o decreto que veio abolir

definitivamente a escravidão. O Decreto de 27 de abril propunha au nom du peuple

français abolir a escravidão em todas as colônias e possessões francesas sob o

princípio “que le sol de la France afffranchit l’esclavage qui le touche est applicable aux

colonies et possessions de la République”, como propunha o art 7 do Decreto.

O processo de emancipação dos escravos estava por um lado marcado pela

ideologia republicana, cujos princípios fundadores se contrapunham ao da escravidão,

mas por outro lado tinha uma base moral muito forte no que concernia ao controle dos

corpos e do tempo dos ex-escravos. Tal princípio estava vinculado às noções

dicotômicas de trabalho versus vadiagem, trabalhador versus vagabundo. Um texto do

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governador de Guadalupe publicado em 25 de fevereiro de 1848 é paradigmático sob

este ponto de vista:

la liberté qui va venir... ce sont vos maîtres qui l’ont demandée pour vous. L’ancien gouvernement vous l’avait refusée, parce qu’íl voulait que chacun de vous se rachetât, mais la République au contraire va vous racheter tous à la fois. Il faut prouver que vous comprenez que la liberté n’est pas le droit de vagabonder, d’abandonner les habitations, de quitter les cases de vos maîtres, mais bien le droit de travailler pour soi-même. En France, tous les gens libres travaillent plus encore que vous qui êtes esclaves, et ils sont bien moins heureux que vous, car là-bas, la vie est plus difficile qu’ici (apud Castaldo, 2006: 28)

Este texto está alinhado com outro informe difundido pelo Comissário Geral da

República francesa, que adverte os ex-escravos da Guiana quanto à aproximação da

liberdade efetiva e expressa outra dimensão sobre o lugar do negro: a da ordem e

respeito aos princípios republicanos.

meus amigos, vocês estão a ponto de vivenciar uma grande prova. A República vos chamou, sem transição, da escravidão para a liberdade. As colônias estrangeiras contemplam esse espetáculo com surpresa. Não cedam a uma primeira tentação. Pensem e provem a eles, a vocês e aos seus irmãos da Europa que vocês saberão respeitar a nobre divisa da França: A LIBERDADE, A IGUALDADE, A FRATERNIDADE, em um trabalho frutuoso e honrado, na paz pública, nos laços de família, na obediência às leis da religião e da pátria". (Mam Lam Fouck, 2002 apud Cleaver, 2005: 43)

Estas duas visões expressam bem quanto a emancipação dos escravos veio

resultar em mudanças significativas sobre o lugar e a representação do negro na

sociedade francesa. Nessa circunstância, a França vem mostrar ao mundo que ser

francês corresponde também a ser negro. A partir de então, estruturar os valores,

comportamentos, o pensamento e as moralidades destes novos cidadãos, numa

estrutura de valores comuns, foi o objetivo do Estado francês. Entretanto, esse princípio

filosófico veio se confrontar com as representações sociais dos estereótipos do francês

“de base”. O desaparecimento da escravidão permanece ligado à proclamação da

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Declaração dos Direitos do Homem. Mas a euforia da liberdade adquirida dura pouco,

pois os antigos escravos percebem que a “liberté générale” não significa a “égalité

sociale” (Udino, 2007).

É desse modo que, para os Antilhanos que vivem em Paris, a identidade negra

revela inúmeras contradições relacionadas à integração dos mesmos ao corpus cívico

da República e ao reconhecimento de suas especificidades culturais e identitárias no

interior da sociedade francesa. Como salienta Cleaver (2005) a abolição da

escravatura, em 1848, é marcada por um processo de “galicização” dos ex-escravos

antilhanos. A escola, por exemplo, cumpriu um importante papel na integração das

populações libertas, por um lado, mas também promoveu sua marginalização, por

outro, com a invisibilidade da história do negro na formação da nação francesa23. Cria-

se uma situação paradoxal, onde a igualdade como princípio não revela a igualdade de

condições. Como ressalta Cleaver (2005: 44) com relação ao ensino em Guyane:

os conteúdos, as línguas locais, como as línguas businenges, indígenas e créole, assim como os conhecimentos tradicionais e não franceses, são desconsiderados, recalcados e "normalizados" no processo de aprendizagem escolar. O sistema escolar francês reage como se os estudantes, crianças e adultos, fossem tabula rasa e o conhecimento específico sobre e da Guyane passa a ser, pois, algo informal e quase clandestino. A França segue uma política galicizante, cujo objetivo é fazer com que todos os grupos que integram a "Grande França", ou seja, o império colonial francês, partilhem do mesmo sistema de valores, da mesma cultura. Esta política ocorre nos territórios ultramarinos, sem deixar de existir na metrópole. A importância, notadamente, do sistema educacional para a galicização das populações é um aspecto bastante enfatizado.

Esta circunstância paradoxal é que reafirma o sentimento, assim como

discutiremos mais detidamente nos próximos capítulos, partilhado entre os antilhanos,

de ser “français à part entière et français entièrement à part”, embora tenha havido

23 Um dos exemplos utilizados pelos antilhanos moradores da metrópole é a inexistência de referências da presença dos antilhanos no exército francês na Segunda Guerra Mundial. Eles afirmam que centenas de antilhanos participaram da libertação da França nesse período. Visto pelos antilhanos como um símbolo épico do papel dos negros na história da nação francesa, é relegado a um plano secundário nos livros da história da França. O desconhecimento desse episódio por parte dos franceses metropolitanos significa uma indiferença ou mesmo uma desconsideração ao lugar do antilhanos na sociedade francesa.

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alguns esforços da república Francesa para tornar mais equânimes as relações entre a

metrópole e as antigas colônias.

Neste processo de mudanças, em 1946, a IV República cria a Union Française.

Nesse momento, as "velhas colônias": Guiana, Martinica, Guadalupe e Reunião se

tornaram departamentos ultramarinos franceses. Esta mudança de estatuto resultou da

política do Pós-Guerra de aproximá-las e integrá-las. Em 1982, uma outra esfera

administrativa é criada no âmbito do quadro institucional francês: a Região. Nesse

momento, a Guiana já acompanha contemporaneamente a dinâmica da administração

pública francesa. A partir desta data, ela passa a ser, além de departamento

ultramarino francês, uma região administrativa. Há, portanto, a distinção entre a

Métropole (o hexágono) e os DOM-TOM (départements et territoires d’outre-mer,

compostos pela Martinica, Guadalupe, Guiana, Reunião, Nova Caledônia). Sendo que o

DOM agrupou três départements: Guadalupe, a Martinica e a Guiana, concebidos como

“zonas da América”, denominados DFA (Départements Français d’Amérique). Sua

organização política e administrativa é equivalente à Metrópole. De modo a integrar os

habitantes dos départements à vida metropolitana, o Estado francês criou no ano de

1962 o BUMIDOM (Bureau pour le développement des Migrations intéressant les

Départements d'Outre-Mer) com vistas a colaborar para a instalação de milhares de

pessoas provenientes destes países no hexágono24. Em 1983, o BUMIDOM passou a

ser denominado Agence Nationale pour l'insertion et la promotion des Travailleurs

d'outre-mer (ANT), tornando-se uma instituição responsável pela inserção social e a

promoção profissional, destituído do caráter institucional vinculado à migração. Essa

mudança foi formulada num quadro político de críticas direcionadas aos resultados da

política do BUMIDOM que provocou a ruptura, não desejada, dos laços familiares dos

habitantes dos départaments com aqueles instalados no hexágono. Como ressalta

Udino (2007: 67):

na época do BUMIDOM um número ínfimo de pessoas podia retornar ao seu país natal e, somente, durante as férias. Primeiro, porque o bilhete para Paris era apenas de vinda. Em segundo lugar, o preço do bilhete de retorno era caro. E o retorno ao país

24 Significa o mesmo que França metropolitana.

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significa a derrota. Embora, é preciso reconhecer que o BUMIDOM permitiu aos Antilhanos encontrar seu lugar na sociedade francesa, de se integrar ao corpo social. Mas podemos falar de integração de cidadãos que pertencem à mesma nação? O Antilhano é francês. Assim que ele vai para a metrópole passa a ser considerado como migrante. Aliás, é difícil achar um termo genérico que possa traduzir exatamente essa situação particular dos Antilhanos.

Esses processos de “assimilação” e “galicização” vieram afirmar e nutrir esse

sentimento de busca de pertencimento ao corpus republicano, fazendo com que os

Antilhanos vivendo na Metrópole buscassem se assemelhar ao tipo ideal francês,

adotando os valores e práticas metropolitanas (Fanon, 1952), como, por exemplo,

imprimindo um estilo e forma de falar o francês. Fanon revela inúmeras contradições no

processo de construção da “identidade antilhana”, seja na relação entre branco-negro,

ou mesmo entre negro-negro. Ele vai demonstrar de que modo a memória e

representação da escravidão propiciou que os Antilhanos se tornassem prisioneiros da

história negra, buscando se assemelhar ao branco. Ele vai descrever, por exemplo,

como o processo lingüístico é importante nesse processo de constituição do lugar dos

Antilhanos na sociedade francesa. Ele relata a história de um jovem antilhano que,

buscando se contrapor ao mito do martiniquense que “come o R”, entra num café e

exclama alto e em bom tom: “Garrrçon ! un vè de biè.” Soucieux de ne pas répondre à

l’image du nègre mangeant-les-R, il en avait fait une bonne provision, mais n’a pas su

répartir son effort” (Fanoz, 1952: 16).

Embora seja ainda presente esta concepção assimilacionista e galicizante da

República Francesa há, por outro lado, um crescimento do discurso em busca do

reconhecimento da igualdade entre negros e brancos na sociedade francesa, ainda que

seja um discurso incipiente. As pesquisas desenvolvidas por alguns grupos acadêmicos

não têm ocupado um lugar importante na explicitação destas desigualdades, como no

Brasil. Por outro lado, a mobilização de alguns setores tem permitindo a constituição de

demandas em prol de ações eficientes contra tais desigualdades, pois a visibilidade de

tais desigualdades permite aos juízes, bem como ao poder público atentar para a

igualdade, objetivando os efeitos e as conseqüências desfavoráveis resultantes dos

jogos de provas e convenções que as sustentam. Essa objetivação tem possibilitado a

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constituição de mecanismos que visam a diminuição das desigualdades provenientes

das distinções de cor ou raça. Por exemplo, Bertrand Delanoë encarregado da

Inspection générale de la ville de Paris, realizou uma pesquisa sobre a igualdade de

chances dos domiens. Neste relatório, de março de 2003, demonstra determinadas

“anomalias” com relação às carreiras dos agentes provenientes dos DOM-TOM 25. No

estudo, demonstra que há uma concentração de domiens em tais categorias

profissionais e que as promoções aos cargos estão diretamente vinculados à origem

dos funcionários.

Tais situações têm permitido a constituição de novos atores na arena pública

francesa: a emergência do C.R.A.N (Conseil Représentatif des Associations Noires) na

sociedade francesa, o papel desempenhado pela Deputada Christiane Taubira, autora

da lei que define “a escravidão como crime contra a humanidade”, lei que tem sido

representada como uma “compensação moral” pelos efeitos da escravidão, são alguns

destes atores que desempenham um papel importante na discussão sobre o lugar do

negro na França

Ainda, destacamos a consolidação das leis contra a discriminação, como a de

1972, que permitiu incriminar os propósitos racistas, os textos racistas e os atos de

discriminação cometidos em razão da raça, cor, religião, ascendência ou origem

nacional ou étnica. A inscrição do conceito de “discriminação indireta” no direito francês

veio impor instrumentos cognitivos inéditos às pessoas e reduzir a distância entre os

“julgamentos de direito” e os “julgamentos cotidianos” (Thévenot, 2006b), na medida em

que as declarações ou intenções racistas podem ser avaliadas pelos atores em suas

interações práticas. O direito francês, após a introdução das diretrizes européias,

passou a conceber que uma “discriminação” é um ato que, embora indireto, pode ser

observado através de uma compreensão comparativa utilizando dispositivos cognitivos

específicos. Enfim, é uma compreensão bastante peculiar desse credo republicano que

se recusa a considerar a diversidade interna da sociedade francesa e as consequências

desta diversidade sobre a “comunidade política”. Como salienta Stavo-Debauge (2007:

05):

25 Bertrand Delanoë, éditorial, Rapport sur les parcours des Agents de la ville de Paris originaires d’Outre-Mer, Publication de la délégation Générale à l’Outre-mer, Mairie de Paris Juillet 2005.

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compreensão muito estranha essa do ‘republicanismo’, frequentemente mobilizado por inúmeros intelectuais e atores públicos. Ele parece ser muito mais uma promessa, pois não permite a constituição de nenhuma política pública com crédito. Frequentemente, ele não tem nada de republicano, pois é somente, como assinalou Michel Seymour, um nacionalismo que ignora tal postura... Para dizer de modo direito, os republicanos jacobinos que dencunciam sem pestanejar as reivindicações minoritárias são frequentemente os nacionalistas que ignoram suas posturas […]. É, portanto, porque estão sob a influência do nacionalismo (civique ou ethnique) que ofuscamos a idéia de adotar uma política de reconhecimento das minorias.

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CAPÍTULO 2: POSSE DA HISTÓRIA : O PROCESSO DE REIVINDICAÇÃO

DO RECONHECIMENTO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DA

MARAMBAIA .

Meus passos vêm de longe, senhora. Cá estão meus documentos, fotografias de meus pais, e trago comigo a minha história. Nasci na Marambaia, nesta casa que estão querendo me tomar, meus pais nasceram aqui, meus filhos nasceram aqui, minha casa é a herança de meus antepassados escravizados. Meus passos vêm de longe... Tenho posse de minha história.

Dona Zenilda. Moradora da Marambaia26

Já fazia muito tempo que andava pelas águas e terras da Marambaia seguindo

os longos passos da história do povoado. Muitas viagens, memórias, idas e vindas.

Numa certa ocasião me dirigia à Ilha para uma festa: a comemoração da posse da

segunda Diretoria da Associação dos Remanescentes de Quilombos da Ilha de

Marambaia, a Arqimar. Momento inédito, considerando que havia sido um longo

percurso para a fundação da Associação. A posse da segunda Diretoria representava a

persistência de um anseio local que havia se concretizado.

Um projeto duro diante de todos os obstáculos. Anteriormente, em 1990 e 1998,

algumas pessoas ensaiaram organizar uma associação, mas a Marinha se opunha, não

destinando apoio e a população local temia algum tipo de desagravo da Marinha com

relação à iniciativa. A constituição da Arqimar também foi permeada por estes

sentimentos dúbios: de desejo de seguir e lutar e ao mesmo tempo de medo. Logo de

início, quando surgiu a idéia de fundá-la, uma parcela significativa dos moradores havia

“abandonado o barco” mesmo antes de sua partida. É importante que o leitor

compreenda que a categoria medo aqui empregada fazia parte do vocábulo corriqueiro

dos moradores. Silêncio, corpos contidos, palavras sussurradas, emprego de

metáforas, eram gestos habituais entre os moradores da ilha. Eram, propriamente,

26 Palavras pronunciadas para a juíza que julgara a ação de reintegração de posse de sua casa. Depoimento concedido para a Revista Existimos (2007).

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expressões obrigatórias dos sentimentos. Portanto, a aparente simplicidade da

fundação de uma associação adquiria contornos dramáticos na Marambaia pelos

possíveis custos de reivindicar demandas do que seriam, a princípio, direitos definidos

constitucionalmente. Demandar direitos parecia um ultraje tão acentuado assim como

os escravos demandarem, no século XVI, o reconhecimento de sua digna humanidade,

como vimos no capítulo anterior. A diferença, entretanto, era que nesse caso

estávamos no século XXI, num país cuja Constituição Federal era orgulhosamente

intitulada a “Constituição cidadã”!

Seguíamos, eu e um amigo, com os movimentos das águas, nos movimentando

pelas histórias dessa batalha que sempre atravessava nosso itinerário até a ilha. Esse

amigo nascido e criado na Marambaia, há décadas residia noutro lugar. Entretanto, o

mesmo se considerava um homem da terra, orgulhoso de seu laço afetivo com a Ilha

que tantos prazeres e alegrias lhe proporcionara. Seu pai, pescador hábil (dizia-me

sempre que ele possuía uma inteligência incomum e habilidade manual peculiar),

“fazedor de canoas”, tivera sido filho de um ex-escravo. Assim como seu pai, esse

amigo tinha crescido imerso na pesca, com seus irmãos, primos e amigos. “Veja o

movimento da maré, acho que vai bater xaréu”. Eu, com minha “cegueira de um não

pescador”, dizia que não sabia distinguir bem para qual lado a maré caminhava. Insistia

em pedir-lhe para me explicar como poderia perceber tal diferença. Ele de modo singelo

dizia, “repare bem no movimento da água. Veja ela está em direção a leste”. Tratava-se

de um saber que eu não tinha e presumia que não poderia ter. “Sorte a minha de não

viver da pesca”, comentário que nos fazia rir.

Entre gargalhadas e brincadeiras, conversas sobre o passado da Ilha, vinham as

esparsas memórias de infância, de novo a pesca, a Escola de Pesca Darci Vargas, seu

pai, mais uma vez e as angústias vivenciadas pela população com a iminente

possibilidade de expulsão com a chegada da Marinha de Guerra na década de 70 do

século passado. Fato que culminou numa intensa luta pelo processo de

reconhecimento do grupo como remanescentes de quilombos, que se encontrava em

curso desde o final da década de 90 do mesmo século. Tal demanda se apoiava no

dispositivo constitucional, já mencionado: o artigo 68 dos Atos das Disposições

Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 (ADCT). Todavia, o temor

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entre os moradores era patente, ainda que existisse um alento maior com a visibilidade

da demanda do grupo no campo jurídico, midiático e político, após o reconhecimento do

grupo como quilombo.

Ao mesmo tempo em que vinham as histórias dos conflitos entre a população

local e a Marinha, meu amigo relatava, assim como em diversas outras ocasiões em

que atravessamos de barco para a Ilha, a história de resistência da comunidade de seu

bairro. Já nessa época esse amigo morava na baixada fluminense, em Duque de

Caxias. Além de suas fortes ligações com a luta do “povo da Marambaia”, se engajava

impetuosamente na luta de sua morada em Caxias. O seu bairro havia sido acometido

por um dano ambiental nos anos 90, com o lixo tóxico deixado por uma empresa, que

desencadeou num desastre ambiental que atingiu o lençol freático, pondo em risco a

saúde da população local. A saída, de acordo com o Governo Federal, era, por

segurança dos moradores, o deslocamento de todos os habitantes para outra área. Tal

evento tinha mobilizado sua comunidade e ele próprio tornara-se um ator ativo na luta

por uma solução ao “dano ambiental”. Sempre que íamos à Marambaia juntos, as duas

histórias, de Caxias e Marambaia, entrecruzavam-se. Entrecruzavam-se, ainda, seus

múltiplos pertencimentos. Seus distintos vínculos políticos e afetivos com seus lugares

se evidenciavam. Diferentes papéis eram postos à prova: negro, nascido na

Marambaia, neto de ex-escravos, morador da baixada fluminense e, mais

recentemente, quilombola. Distintos mundos, distintas formas de agir e acionar seus

pertencimentos e vínculos afetivos e subjetivos com estes lugares e com estas histórias

e memórias. Locomovia-se por estes papéis e mundos sem pestanejar.

Esse aspecto é importante para compreendermos o processo social e político da

Marambaia, bem como de outros lugares em que pude realizar pesquisas etnográficas,

como no caso do Morro das Andorinhas e dos antilhanos em Paris, como ficará

evidente nos próximos capítulos. Chamava-me a atenção a capacidade deste amigo em

tornar compatível, de modo natural, estes múltiplos vínculos, ou, como os antropólogos

denominam, esses múltiplos pertencimentos. Num mesmo lugar ele podia falar ora

como membro de uma comunidade atingida por um crime ambiental, ora como um

quilombola que reivindicava o reconhecimento do Estado. Chamava-me ainda a

atenção porque presumia que isso tinha a ver com determinadas alterações nas formas

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de organização dos movimentos políticos contemporâneos. Sem cair no lugar comum

de que isso era resultado da modernidade, globalização, ou coisa que o valha, percebia

que essa característica conferida ao modo de atuação política desse amigo trazia algo

de novo nos processos de mobilização coletiva no Brasil contemporâneo.

Neste mesmo dia, ao chegar na Marambaia, pude me deparar com outros

eventos que corroborariam minhas impressões ou hipóteses, relacionadas a estas

mudanças. O barco atracou no cais. Esperamos como habitualmente, os oficias

descerem. Rito imperativo. Ao descermos nos dirigimos como rotineiramente fazíamos

ao armazém. Outras pessoas por lá nos esperavam. “Aquela cerveja de sempre, por

favor, pra molhar a garganta”. Uma latinha, outra latinha, risadas, brincadeiras,

conversas prosaicas sobre a pesca, a vida, a luta cotidiana do “povo da Marambaia”.

Cessado esse repertório de confabulações, seguimos em direção ao local da

celebração da posse da nova Diretoria. Entre conversações e apreciações acerca do

conflito com a Marinha de Guerra e os desdobramentos da criação da Arqimar,

avistamos de longe uma mulher com vestido colorido. Cores fortes, misturadas com os

panos que a cobriam, que se assemelhavam aos trajes das mulheres africanas. Lenço

na cabeça.

Nessa circunstância, em que a Marambaia era visitada por membros do

movimento negro e quilombolas de outras regiões, presumi que fosse alguém desse

círculo. Afinal, era vestimenta habitual de alguns membros destes grupos, forma

manifesta dos sinais diacríticos do “quilombismo contemporâneo”. Diante das sutis

formas de expressão pública dos moradores da Marambaia, não havia passado em

minha cabeça que pudera ser alguém da Ilha que estivesse vestida assim. Ledo

engano. Ao nos aproximarmos da figura de ares africanos, dei-me conta que se tratava

de uma moradora da Ilha. Olhei bem para comprovar. Estava surpreso, pois estava

acostumado a vê-la em trajes de cores discretas: com blusas brancas, saias cinza, ou

como dizem no linguajar corriqueiro “com o básico”. Indaguei a respeito da bela roupa.

Ela, com os olhos vibrantes, exclamou prontamente: “hoje estou de quilombola”.

Dei-me conta que aquela vestimenta representava mudanças muito mais

profundas naquela pessoa e, por conseguinte, naquelas pessoas de um modo geral.

Mudanças que desencadeariam novas formas de auto-representação e de

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apresentação no mundo, a partir de novos vínculos e discursos. A maré havia, em certa

medida, mudado de rumo na Marambaia. As histórias dos antepassados, seus vínculos

com a terra, a resistência e caminhada adquiria um novo sentido. Elas eram posseiros

de suas histórias, e na posse delas usavam e abusavam de sua história para a garantir

a visibilidade de sua luta !

Estas cenas permitem ao leitor uma compreensão destes diferentes mundos, as

diferentes formas de engajamentos dispostos pelos atores nas arenas dramatúrgicas da

apresentação do “eu” na vida cotidiana. Para que o leitor entenda melhor estas cenas

será necessário realizarmos uma digressão, tomando como base as memórias e

narrativas locais, para contextualizarmos as controvérsias do presente relacionadas a

manifestação do “quilombismo contemporâneo na Marambaia”.

Nesse âmbito, pretendemos compreender as implicações dos discursos e

narrativas dos atores na reivindicação de seus direitos. Como assinalam Mello e Vogel,

a propósito do lugar que a narrativa ocupa como evento humano paradigmático por

excelência (Mello e Vogel, 2000: 08):

o próprio estatuto da narrativa, com suas múltiplas e sempre cruciais implicações, não apenas na elaboração das etnografias, mas, para além desta, na consideração dos seus resultados, em contextos pertinentes ao fenômeno jurídico; sobretudo, no caso das disputas em torno de patrimônio, sucessão e território. Cedo se havia apercebido de que, nos casos de relevância jurídica, a modalidade dos fatos e de sua apresentação, eram sempre determinadas no âmbito de histórias. Relatos do que tinha sucedido a um ente individual ou coletivo, e do que havia resultado daí. Histórias contadas e recontadas, tal como o eram também aquelas utilizadas nos tribunais para acusar, defender ou simplesmente qualificar os envolvidos.

Histórias, narrativas e justificações que tem mobilizado a justiça e os atores em

prol do reconhecimento, da reparação dos infortúnios históricos (Garapon, 2008).

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2.1 Memórias da escravidão:

Os sons ecoavam com a chegada do navio negreiro na ponta do Pombeba, na

denominada, nos dias atuais, Praia da Armação, na Ilha da Marambaia.

- Kalaya, kalaya, kalaya.

- Você tá com fome, você tá com sede? Perguntava o capataz.

- Kalaya, kalaya, kalaya, continuava a exclamar o escravo recém chegado do

além mar.

Resquício das pedras do antigo “porto” da Praia da Armação aonde chegavam os pequenos barcos com os escravos (Foto da família Lima da Ilha da Marambaia)

O grande navio, com dezenas de negros vindos da África, aportava a alguns

quilômetros da Praia. De lá, desciam num pequeno barquinho, com bandeira vermelha,

os escravos, para serem levados à senzala na Armação. Um morador antigo da

Marambaia, conta-nos que estas histórias a respeito do navio negreiro que aportava na

Ilha da Marambaia, na altura da Praia da Armação, faziam parte do repertório das

narrativas dos seus ancestrais. Muitos que ali chegavam, diante do tratamento penoso,

das condições insalubres da viagem, morriam após o grito de “kalaya”. “É por isso que

ali na Armação, próximo a Ponta do Borrachudo, nas proximidades do Morro São

Salvador, que o cemitério dos escravos ficou conhecido como o cemitério dos kalayas”.

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Como salienta Debret a propósito das penosas viagens e as insalubres condições às

quais os escravos eram submetidos:

poucos dias depois da partida, a falta de ar, a tristeza, a insuficiência de uma alimentação saudável, provocavam febres e disenterias; e todo dia um contágio maligno dizimava essas vítimas infelizes, acorrentadas no fundo do porão sempre ofegantes de sede e só respirando o ar pútrido das dejeções infectas que sujavam ao mesmo tempo os mortos e os vivos; assim , o navio negreiro que embarcava 1500 escravos na costa da África, após uma travessia de dois meses, só desembarcava trezentos a quatrocentos indivíduos (Debret, 2001: 19).

Ainda restam na Armação as pedras postas pelos escravos para servirem de

porto para o atracamento do pequeno barquinho de bandeira vermelha. Existem ainda

os resquícios da antiga fazenda e da casa usada pelo proprietário da fazenda, o rico e

poderoso Comendador Joaquim de Souza Breves, o Breves. Ao lado direito de sua

antiga casa, os resquícios da religiosidade e fé cristã: a capela ainda erguida, embora

um pouco destroçada por conta das manobras militares no local, iniciadas na década

de 70 do século XX. Atrás da casa, mato a dentro, as pilastras da antiga senzala,

morada dos escravos. A casa, a capela e a senzala, tríade dessa composição da

história colonial e imperial brasileira. Trilogia da história contada pelos antigos

moradores da Marambaia. Ainda hoje, a casa serve de morada para um antigo morador

da Ilha, cujos ancestrais foram serviçais da família Breves: seu avô foi capitão do mato

e sua avó, trazida da Ilha Grande (outra ilha próxima à Marambaia, atualmente um dos

pontos turísticos mais cobiçados do litoral sul fluminense) fora mucama da família

Breves. “Na Praia da Armação era moradia e local de engorda dos escravos”, relata

esse antigo morador.

De acordo com alguns historiadores, cujas análises históricas corroboram com

as narrativas locais (Machado, 1993), a Ilha fora um importante ponto de desembarque

de escravos, após a proibição do tráfico negreiro em 1850. Como a Ilha se localizava

fora do alcance da fiscalização da esquadra inglesa, a Marambaia se tornou um ponto

estratégico para o desembarque dos escravos. De acordo com o historiador Stein

(1961), a proibição do tráfico negreiro africano permitiu que as regiões de Angra dos

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Reis, Parati e Marambaia ascendem como pontos estratégicos para o tráfico de

escravos interprovincial entre o Maranhão, Fortaleza, Pernambuco e a Bahia. De

acordo com outro historiador, Humberto Machado, a Ilha possuía um caráter

estratégico para os Breves:

grande importador de escravos para atender às necessidades cada vez mais insistentes do cafezal (...) o Comendador (o Breves) vivia em contato com aqueles que faziam o tráfico de escravos com o continente negro. A Marambaia era neste sentido um ponto estratégico. Ela lhe abria completamente o domínio do mar para as comunicações com os navios negreiros. Os escravos, saídos dos porões dos navios negreiros, permaneciam algum tempo naquele viveiro. Reconstituíam as forças perdidas na travessia transatlântica, retemperados eram distribuídos pelas fazendas do alto da serra. Assim, a Marambaia era uma estação de engorda do pessoal do eito (Machado 1993: 104)

A Ilha da Marambaia serviu, portanto, como um importante entreposto no período

do tráfico de escravos, que impulsionava a economia do Império. A mão de obra

escrava compunha o que era de mais valioso para os senhores. Em seus relatos sobre

a Marambaia, Reynato Breves chama atenção que “aquela fazenda era pulmão da sua

grandeza latifundiária, em baixo e no alto da serra. O crescimento do cafezal impunha

ao senhor o aumento do braço escravo” (Breves, 1994: 682).

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Mapa com a localização da Marambaia.

Nessa fazenda conviviam, portanto, alguns dos Breves, os escravos de eito (do

trabalho na lavoura), os escravos de engorda (para serem vendidos ou distribuídos

pelas outras dezenas de fazenda do Comendador Breves), os capitães-do-mato, os

capatazes, as mucamas. Enfim, conviviam uma multiplicidade de atores que ora se

viam em conflitos explícitos, ora se complementavam em seus distintos papéis. De

acordo com os relatos de memorialistas, que correspondem à memória local, eram

poucas as vezes em que o Comendador Breves atravessou a baía de Sepetiba, a bordo

de um dos seus dois barcos a vapor: o Marambaia ou o Emiliana. Ademais, o Breves

era um homem de muitas ocupações na Corte. De acordo com Luis Ascendino Dantas

(apud Márcia Motta, mimeo), o Breves exerceu diversos cargos de vereador e

presidente da Câmara de São João Marcos, onde nasceu e:

gozou de sinceras dedicações e justa estima, como chefe de grande prestígio. A sua influência política estendendo-se a todo o 12º distrito eleitoral da Província, disputou em várias legislaturas o mandato de deputado quer à Assembléia provincial, quer à Assembléia geral, logrando ser eleito nas legislaturas de 1876-

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1879-1881 e 1886, tendo sido nesta última o líder do Partido liberal27.

O Comendador Breves notabilizou-se pela sua riqueza e títulos. Desse modo, a

Marambaia correspondia à extensão de seu poderio e influência; não obstante, não era

seu principal bem. Segundo consta em fontes de memorialistas existentes sobre a Ilha,

o Comendador a adquiriu em virtude da expansão cafeeira fluminense quando se exigia

para as lavouras um número crescente de trabalhadores escravos. Segundo o Pe

Reynato Breves, o Comendador “envolveu-se nesse comércio, peché mignons da

época; para tanto adquirindo a Ilha da Marambaia, ponto de desembarque e

admiravelmente adequado às embarcações negreiras (Breves, 1994: 676 ).

A fazenda cumpria outros importantes papéis nesta época, como “branquear e

melhorar a raça”. A concepção “científica” da época, a de que o branqueamento

permitia o fortalecimento moral e físico dos escravos, marcou a história da Marambaia.

A Marambaia (por isso também conhecida como a “Restinga das Crias”) “facilitou o

contato entre as suas escravas e os feitores brancos para a melhoria das raças”

(Breves, 1994: 755). De acordo com Reynato Breves, o Comendador, ao ir ao Rio “com

a família, trazia também algumas escravas brancas e mesmo alouradas –

conseqüência da apuração da raça efetuada na Restinga da Marambaia – levando-as

luxuosamente vestidas à Ópera italiana” (Breves, 1994: 684). Tais concepções

marcaram este período, tendo destaque tanto no círculo dos “pensadores científicos”,

bem como no do senso comum. Como observa o viajante francês Debret, em uma de

suas incursões ao Rio de Janeiro, os escravos possuíam o hábito de se

cumprimentarem na cidade do Rio de Janeiro “com a invocação ‘Deus te faça branco !’”

(Debret, 2001: 24).

Na Marambaia essa heterogeneidade social encontrava correspondência nas

formas de apropriação dos recursos naturais. Na Ilha plantava-se café nas encostas do

pico da Marambaia, cana, criava-se gado e se pescava. A fazenda do “eito”, onde os

escravos estavam destinados primordialmente para o trabalho na lavoura, estava

situada na extremidade da Ilha - onde hoje estão as instalações do Centro de 27 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. ARM. 4, 3, 49 Dantas, Luis Ascendino Esboço biográfico do Dr. Joaquim José de Souza Breves (1931).

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Treinamento dos Fuzileiros Navais da Marinha de Guerra – composta

arquitetonicamente pelas casas, uma capela e uma senzala. Esta permanece intacta,

servindo como hotel para oficias que visitam a Ilha. Essa fazenda era destinada para a

lavoura, sendo, portanto, a fazenda de eito do Comendador. Os capitães do mato, os

capatazes e demais trabalhadores da casa grande residiam onde hoje é a Praia do

Sino.

Mapa da Ilha da Marambaia

No local, os escravos eram divididos pelo senhor de escravos, tanto em termos

de suas atribuições funcionais, como também por suas características físicas. Um dos

moradores nos conta que no tempo da escravidão seu avô, antigo capitão do mato,

diferenciava os escravos pela canela. “Os de canela fina eram bons trabalhadores e os

de canela grossa eram trabalhadores ruins. Os escravos de canela fina valiam mais do

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que os de canela grossa”, explica. Segundo ele, o seu avô não tinha o costume de

castigar os escravos: “as famílias são de geração histórica. Assim ele trazia os escravos

do mato, mas só não podia bater porque ele não consentia que os escravos

apanhassem. Não batia e não deixava bater”. Segundo nos conta “na Praia da Kaetana

existe uma toca que saía na extremidade da Ilha repleta de esqueletos de escravos.

Reza a lenda que quem foi lá nunca mais voltou. Era o cemitério dos escravos fugidos.

Meu avô ia muito lá atrás de escravo fugido. Mas era difícil de catar eles por essa mata

ai”.

A atitude do capitão do mato da “fazenda de engorda” era distinta da do capataz

da “fazenda do eito” do Breves. Conta outra morador que seu avô materno fora capataz

do Breves e sofria muito com as histórias que rememorava desse tempo:

Domingos era escravo, foi capataz do Breves. Ele contava história pra gente. Ele não usava roupa de cor não, era só roupa branca. Levava os escravos pro mato pro trabalho. Escolhia os escravos de “canela grossa” e de “canela fina”. Os de canela fina prestava e os de canela grossa não prestava. Ainda tinha o reprodutor. Ele chorava aquilo tudo que ele viu passar... Ele falava que levava os escravos, prendia, batia e depois botava sal. Disse que eles gritavam muito. Passou aquele sofrimento dele, né. Falava que os escravos vinham naqueles barcos grandões e os escravos ficava aqui e depois eram vendidos

Pelo que consta, de acordo com as narrativas locais, as penas eram mais rígidas

na “fazenda do eito”, onde os escravos estavam destinados para o trabalho, em

comparação à “fazenda de engorda”. Na fazenda do eito a mediação entre o senhor de

escravos e seus subalternos era mais tênue, em parte pela importância dada pelo

Comendador à fazenda de engorda. Por outro lado, segundo o Dr Clodomiro de

Vasconcelos (apud Breves, 1994: 747) o Comendador Breves:

era homem de poucas luzes, mas de uma grande vivacidade. Satisfazendo-se nas escravas, que possuía em grande número, e querendo manter real simpatia da parte dos negros, sempre irritados pela energia excessiva dos feitores, Breves mostrava-se por vezes bondoso, cheio de bondade que se resumia em melhoria da bóia, em maiores rações de cachaça e na permissão para os bailes, com adufe e cavaquinho, no terreno da fazenda:

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dançava-se o cateretê, o batuque e o jongo sendo muito apreciada a última dança.

Na foto do lado esquerdo, o resquício da antiga senzala (uma pilastra) da “fazenda de engorda” e na foto do lado direito, a antiga senzala (reformada e utilizada nos dias atuais como hotel para oficiais da Marinha) da “fazenda do eito”. (Fotos tiradas por Fabio Reis Mota)

Segundo a historiadora Márcia Motta, em trabalho datilografado encontrado no

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de autoria de José de Almeida Prado Castro

(segundo informações do IHGB, o autor é descendente dos Breves), era comum a fuga

de escravos de outras fazendas para instalarem-se nas fazendas do mencionado

fazendeiro, onde recebiam melhor tratamento do que nas fazendas dos antigos donos.

Para Castro, Breves protegia os escravos fugidos, os escondia de seus antigos

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senhores, pois era capaz de impor uma disciplina “temperada com certa brandura com

seus cativos”. (Motta, mimeo)

Embora houvesse esta distinção de tratamento, segundo as narrativas locais, os

descendentes dos ex-escravos da Marambaia guardam uma memória positiva a

respeito do tempo da escravidão. As concessões, como as danças, a comida, por

exemplo, são elementos que permitiram a constituição de uma memória positiva desta

época. Uma moradora antiga dizia que seus avós relatavam com entusiasmo que

“antigamente com o Breves era um bom lugar, os escravos que vinham de outra

fazenda ficavam impressionados porque aqui tinha roupa para festa e dança nas

senzalas, muita dança”. Os relatos positivos sobre a fazenda do Breves podem ser

conseqüência da doação de algumas glebas da fazenda para os escravos em 1888,

logo após a declaração da abolição da escravatura. O Comendador doou de “boca”, de

acordo com alguns moradores antigos da Marambaia. Embora para um tipo de senso

comum pareça descabida a doação da fazenda para os escravos, há indícios de que

este ato tenha sido consumado pelo Comendador em seu inventário, que, infelizmente,

até os dias atuais não foi encontrado nos centros arquivísticos do Estado do Rio de

Janeiro. Ademais, assim como é possível constatar no livro do memoralista Reynato

Breves (Breves, 1994: 764), a Marambaia não figurava, neste período, como uma das

principais fazendas dos Breves. Ela, comparativamente as suas outras fazendas, não

possuía alto valor econômico.

Ainda mais, o ato de doação era prática comum entre os senhores de escravos.

Ele estava revestido de um caráter dadivoso, como uma espécie de reconhecimento do

suplício dos escravos. Segundo a historiadora Márcia Motta, analisando os documentos

e memórias dos descendentes de escravos da Marambaia:

a doação de terra para ex-escravos era comum, principalmente em fins do XIX, quando a condenação pública à escravidão tornou-se recorrente. Os fazendeiros, em seus testamentos, buscavam consagrar sua prerrogativa de senhor, doando terras a seus ex-escravos e estabelecendo assim, um vínculo entre escravos e senhor que ia além de sua existência física. O ato de “bondade” presente na doação se, por um lado, expressava a intenção de desistir do poder dominial – pode este que estaria sendo negado aos seus herdeiros-; por outro, ajudaria a construir

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uma determinada memória sobre o fazendeiro (Motta, 2003, mimeo.).

O Comendador havia, por exemplo, doado parte de suas terras para seus ex-

escravos da Fazenda Bracuy, localizada em Angra dos Reis, que se tornou palco de

conflitos nos anos 70 do século XX por conta das ações de grileiros na área.

Atualmente, os descendentes dos escravos dos Breves foram reconhecidos como

remanescentes de quilombos nesta antiga fazenda. No inventário, apresentado por

Reynato Breves, existem alguns elementos relevantes acerca da sucessão de bens aos

seus escravos. Extraio uma parte do inventário do Comendador:

o Comendador doou as terras dos fundos da fazenda de Bracuy (em Angra dos Reis), com cerca de 300 alqueires, à Santa Casa de Angra dos Reis; os engenhos e mais pertences ficarão nos mesmo lugares; para serem utilizados pelos seus legatários da referida fazenda. Extinta a sucessão de direitos dos seus aggregados e libertos por três gerações, essas terras serão de pleno direito daquelles que existirem. Dispos das terras de sua propriedade do porto de juru-mirim, dividindo-as entre muitos legatários pobres e seus agregados, os quaes deverão ser conservados nos sítios em que morão (Breves, 1994: 654)

Além de terras, o Comendador recomendava a distribuição de esmolas aos

infortunados das vilas e seus escravos.

No dia de seu enterro o testamenteiro distribuiria pelos pobres e orphaos de sua freguesia e aos que concorressem ao acto, 4:000$ de esmola, que, não sendo integralmente repartidas nesse dia, sê-lo-hão no séptimo ou trigésimo dia do seu fallecimento. Fielmente cumpridas, pelo testamenteiro, se o testador não as tivesse concluído, e para guia-lo deixaria uma lista que a mesma sua mulher recomendará-lhe também a libertação de diversos escravos, dos quaes alguns já o estão. (Breves, 1994: 650)

Segundo consta nas narrativas dos moradores mais antigos da Marambaia,

assim como nos disse um dos moradores:

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o Breves naquele tempo deu uma praia para cada família. Ele disse que era para cada um ficar com a sua praia para não dar briga, mas isso só foi feito de boca, não teve nada escrito. A filha do Breves disse que quando voltasse lá das bandas da Europa ia passar a terra aqui para nós, só que ela nunca fez isso

Assim, não lhes foi transmitida nenhuma documentação comprobatória. Todavia,

mesmo sem uma documentação escrita, pode-se argumentar que para as famílias que

ali permaneceram, foi estabelecido um direito no ato da promessa do senhor em doar

suas terras aos seus escravos.

Deve-se ainda levar em conta que era prática comum no Brasil, sobretudo após

a abolição da escravidão, desconsiderar o inventário deixado por um ascendente. O

próprio pe. Reynato Breves diz que:

tendo o Comendador Breves, falecido depois de sua mulher, deixado belíssimo testamento, do qual facilmente se depreende seu espírito altamente filantrópico, mas que infelizmente jamais foi cumprido no todo, ao que me consta. Pois não só deixava forros todos seus escravos, como ainda lhes deixava terras (Breves, 1994: 670).

Para a Márcia Motta, ao analisar os documento referentes a “posse” da Ilha:

a afirmação de que as terras não foram legalmente transmitidas para os pescadores pela filha de Joaquim José também adquire sentido, se lembrarmos que as disputas pelo patrimônio da família obstaculizaram qualquer regularização fundiária. Em outras palavras, não é possível saber se a filha do fazendeiro mentia ou não quando prometera regularizar a situação dos pescadores, mas o fato é que o inventário foi palco de conflitos por mais de vinte anos, como afirma um de seus descendentes (Motta, 2003 mimeo).

Com a morte do Comendador Breves em 1889, a Marambaia é praticamente

abandonada pelos Breves, permanecendo ali apenas os ex-escravos e os

trabalhadores da casa grande. Segundo fontes existentes, um de seus parentes

próximo residiu lá por uns tempos:

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disse-me o Dr. Affonso de Taunay que depois da morte do Comendador Joaquim de Souza Breves, um parente seu próximo, Monsenhor Breves, professor do Colégio Pedro II, grande amador de caçadas, residiu na Marambaia. Deveria ter sido essa residência por pouco tempo, porque já no ‘ensilhamento’ era a fazenda vendida a uma companhia agrícola, que ali fez várias plantações e criou bastante gado. (Breves, 1994: 746)

A Companhia da qual o pe. Reynato Breves se refere, é Companhia Promotora

de Indústrias e Melhoramentos que, segundo algumas fontes (Xerez, 1990), havia

comprado a Marambaia em 28 de outubro de 1891 da viúva do Breves, dona Maria

Isabel Gonçalves de Moraes Breves. As mesmas fontes relatam que em 17 de

novembro de 1896, por liquidação forçada, a Companhia transferiu a propriedade ao

então denominado Banco da República do Brasil (Xerez, 1990: 387). Sendo que em

1905 a Marambaia é vendida por noventa e cinco contos de réis à União. Entretanto,

inexiste qualquer documentação comprobatória a respeito destas transações de compra

e venda.

O fato é que as famílias de ex-escravos permaneceram no local, dividindo as

Praias por núcleo familiar. Os escravos das duas fazendas se dividiram em duas partes

da Ilha, alocando as famílias em distintas praias. Como diz um antigo morador cada um

“se tornou rei de seu pedaço, por isso que aqui um quer reinar mais que o outro”. Como

lembra o mesmo, nesse tempo quem sabia ensinava aquele que não sabia. “No caso

aquele que fazia canoa, então cortava a tora de pau, ai todo mundo se unia fazia suas

canoinhas. Foram assim viver a vida deles. Deles vieram os outros e outros chegaram a

gente que somos os netos”.

A Ilha da Marambaia tornou-se um recanto particular na região, cujo modo de

vida da população local, suscitava a curiosidade de viajantes e moradores. O jornalista

Assis Chateaubriand, envolvido pelas histórias dos “escravos da Restinga”, em visita ao

município de Itacuruçá, resolve visitar a Marambaia no início do século XX. Ele relata

suas impressões acerca do modo de vida da população local:0

Quis a fortuna que eu me encontrasse na Restinga de Marambaia com os antigos escravos do Comendador Joaquim Breves. Falei a vários deles, e de dois pretos recolhi até os nomes: Adriano Júnior e Gustavo Vítor, este filho por sua vez de um antigo escravo de

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Breves, chamado Vítor, comprado pelo senhor quando adquirira a Fazenda do pontal da restinga da Marambaia. Adriano Júnior residiu na célebre Fazenda de São Joaquim da Grama, donde o senhor o trouxe para vir trabalhar nesta outra fazenda da restinga. Têm para mais de 80 anos. É pai de 12 filhos, todos morando na Marambaia. Gustavo Vítor parece mais arrastado, como quem procura compor fragmentos de histórias, que ninguém nunca lhe veio lembrar. Perguntei-lhe que tal era o seu antigo senhor, e ele me retrucou: - "Era um véio bão. Quando via nego assentado, despois do serviço, apreguntava se nego tava triste. E mandava reunir a senzala para dançar o caterete e o batuque, fazendo tocar o bumba da barriga". Parece que a mesa era farta, nas senzalas dos Breves. Adriano Júnior disse-me que o senhor era o pai da pobreza. Quando vinha de Mangaratiba para Marambaia, a bordo ou do vapor "Marambaia", ou do "Emiliana", a senzala se alegrava. Pelas narrativas que ouvi desses dois antigos escravos, acredito haver confirmação para o quanto já ouvira dizer a propósito do destino da fazenda que ali mantinha Breves. Grande proprietário territorial precisando incessantemente de braços, afim de prosseguir na sua atividade dentro dos cafezais que possuía no antiplano e nos engenhos de cana que tinha na planície, Breves como qualquer fazendeiro hoje de São Paulo, carecia de colonos. Naquela época o único colono possível de importar em larga escala era o negro contrabandeado da África - os pobres pretos roubados do outro lado do Atlântico, e transportados pelo piratas para serem vendidos nas terras do Novo Mundo. Gustavo Vítor me disse: - "Gente vinha da baía dãngola premero pra aqui. Engordava, e despois ia pra roça, trabaía no cafezá". Na Marambaia havia também cafezal, mandioca, milho e os negros velhos com quem falei todos me disseram que nas fraldas dos morros existiam plantações de café, que depois desapareceram. Deveria comer- se bem na Marambaia, porque o objetivo mais importante daquela fazenda não era produzir café, mas fornecer mão-de-obra forte, robusta, para o trabalho do cafezal” (Chateaubriand, 1924, s/p, mimeo).

As atividades agrícolas continuaram neste período. A roça era, em conjunto a

atividade da pesca, o meio de reprodução social e econômica do grupo. Os produtos

colhidos e os peixes capturados serviam para a venda, troca e uso doméstico. Cada

família possuía um pequeno espaço, na encosta da Ilha ou próximo aos quintais das

casas, uma pequena parte de terra destinada ao cultivo de arroz, mandioca, milho, etc.

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Estas famílias se dividiram em dois pólos da Marambaia, reproduzindo as

diferenças e heterogeneidade do sistema escravista. A primeira, a oeste e a segunda, a

leste da ilha. O princípio ordenador desta segmentação, a priori, não era apenas a cor

da pele, mas, principalmente, a relação destes grupos com o sistema escravista. A

denominada “praia dos brancos” era o local onde tradicionalmente residiam,

majoritariamente, as famílias de ex-trabalhadores da casa-grande. Os capatazes e

capitães do mato permaneceram nesta parte da Ilha, hoje denominada Praia do Sino,

pois ali residiam desde o tempo da escravidão. Na “praia dos pretos” viviam, em sua

maioria, os ex-escravos da fazenda do Breves, o qual cedeu a cada família de pescador

uma praia. Os moradores relatam, tanto os mais antigos como os mais novos – bem

como os moradores dos dois pólos da Ilha-, que nesta época “um não podia passar

para o lado do outro nem para as festas nem para pescar, porque havia briga”.

No entanto, no interior destes dois pólos havia as estruturas internas que

estabeleciam outros tipos de vínculos e de laços sociais como: a afinidade, os laços

religiosos, os casamentos, os laços de parentesco. O território para os marambaienses

constituía-se elemento central para a construção das redes de sociabilidade, dos laços

de parentesco, das redes de afinidade e compadrio. E o território, nesse sentido, não

representa um conjunto geográfico objetivo que determina a persistência dos laços

entre os diferentes grupos circunscritos em tal espaço. A fronteira nesse caso não é

delimitada pelos limites geográficos, mas pelos mecanismos simbólicos que

determinam os de dentro e os de fora. (Barth, 2000).

Um antigo morador da Marambaia nos forneceu uma explicação sociológica

bastante elucidativa desta distinção existente entre os dois pólos (da praia dos brancos

e a praia dos pretos):

Aqui antigamente era tudo escravo. Ai veio e acabou a escravidão. Foi o Breves e deu uma praia pra cada pescador. Cada um era dono de sua praia. Só que um aqui quer ser mais rei que o outro. Ai diz que é branco e coisa e tal. Mas foi tudo escravo. O problema é que um quer ser mais rei do que o outro e não diz que foi escravo. Na Marambaia o problema é que tinham pessoas que não se reconhecem como preto, mas eu sou negro, e tenho orgulho de ser. E têm gente aqui que nem é. É igual os Juvenal Machado, que é da época do cativeiro. O velho Machado tocava o

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sino quando chegava o navio com os escravos. Mas eles não falam que eram do cativeiro. É o pessoal da velha Juliana. O velho mesmo é o Bernardo Machado, o pessoal do Chico Juvenal, mas clareou um pouquinho não quer dizer que é filho de pobre, que é isso ou aquilo. Porque pra nós brasileiros, não queremos ser preto.

Ao contrário do que um tipo de sociologia espontânea supõe, a condição da cor

da pele não é o elemento definidor do pertencimento e reconhecimento da condição de

escravo, mas são as situações em que estas classificações se impõem que definirão

um tipo determinado de pertencimento à “cor” branca ou negra. A referência à cor, além

de situacional, no sentido que Goffman atribui ao termo, é também processual e

temporal28. Ao contrário, é a associação entre a condição de escravo e a cor negra que

marca esta busca pela distinção por parte de um segmento dos ex-escravos. O

processo de distinção, nesta época, da condição pejorativa de escravo, se dava via o

branqueamento não apenas da pele, mas da condição moral de existência dos sujeitos

e nas corporalidades. Pois a denominação “ex-escravo” era um atributo negativo e

estava intrinsecamente relacionado com a escravidão.

Num sistema em que os papéis sociais estão dispostos de modo hierarquizado e

segmentado, como numa pirâmide em que cada um possui um lugar

complementarmente definido, o processo de distinção social passa pela produção de

elementos desiguais e complementares. Como nos explica outro antigo morador sobre

esta distinção entre os da “praia dos brancos” e a “praia dos pretos”:

Tinha essa rixa com o pessoal lá de cima, que são os netos de cativeiro. Eles não gostavam de se misturar com os brancos, então eles falavam, tratavam os brancos de caboclo: ‘nós não gostamos de caboclo’. O preto não gostava de caboclo, o caboclo era a gente

28 Como visto no capítulo anterior na discussão sobre a constituição da categoria Antilhano o significado sobre a cor está condicionado ao contexto no qual é produzido. Na França a ideologia republicana, por exemplo, recusa a introdução do quesito cor no censo nacional por considerar inadequado classificar os cidadãos franceses pelo pertencimento étnico ou racial. Os “negros“ franceses se distinguem entre eles a partir do pertencimento nacional, ser negro francês ou ser negro africano, bem como a partir de seus vínculos territoriais, como ser proveniente da Martinica, Guadalupe ou Guiana.

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O “caboclo” – que não é “branco”, nem “negro” – é o elemento intermediário

deste sistema classificatório. O “caboclo” é uma atribuição negativa, pois o mesmo

encontra-se em uma faixa intermediaria entre ser “negro” ou ser “branco”. O “caboclo”

encontra-se em uma escala inferior, assim como o “negro”, na estrutura social, pois não

é também branco (DaMatta, 1998). Portanto, a denominação da cor de pele possui um

caráter contextual e dinâmico, não podendo ser a mesma a variável que determine o

pertencimento e vinculo identitário, assim como supõe uma certa sociologia

espontânea.

Este cenário modificou-se significativamente nos anos 30 do século XX, com a

implementação de uma escola de Pesca na Marambaia. “Depois que a Princesa Isabel

assinou aquela lei eles ficaram aqui (os escravos), creio que os escravos não

interessavam mais. Foi e ficaram ilhado aqui, até que veio a Fundação Cristo Redentor

e acolheu eles, fez a escola de pesca. Aí deu conforto ao povo, deu abrigo ao povo,

acolheu o povo. A verdade é que deu vontade das pessoas viver, nos relata um

morador da Marambaia, expressando, assim, uma idéia compartilhada por uma parte

considerável dos ilhéus, de que a Escola de Pesca propiciou mudanças positivas na

vida local.

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2.2 Memórias da escola de pesca

A Escola de Pesca Darci Vargas foi fundada em 1939. Ela foi criada no âmbito

de uma política mais ampla no período do Presidente Vargas, cujo objetivo era restituir

o controle dos “sem grilhões”, como nas palavras de Chateubriand, de modo a restituir-

lhes a “civilidade perdida” após a abolição da escravatura. Portanto, as escolas neste

período tinham marcadamente um caráter civilizatório, no qual as Escolas de Pesca

desempenhavam um importante papel, para dispor para cada pescador artesanal

brasileiro um “barco a motor e uma casa” (Ponde, 1977). As políticas públicas, nesse

âmbito, tinham como propósito de “desenvolver” e transformar os pescadores em

espécies de “proletários do mar”29. O idealizador da escola de Pesca da Marambaia,

Levy Miranda, tinha como objetivo “tirar a pesca do seu primitivismo, modernizando-a”

(Pondé, 1977).

Foto de formatura da turma da Escola de Pesca Darci Vargas (Foto da família Lima)

29 Por exemplo, em Arraial do Cabo instala-se a indústria da Álcalis com o objetivo de transformar os pescadores em trabalhadores assalariados (Lobão, 2000; Britto, 1999; Prado, 2002; Cunha, 2000).

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Levy Miranda – assim como O Comendador Joaquim Breves - era um homem

marcado pela cristandade:

Evangelista por vocação, transmitia a palavra do Evangelho e almejava profundamente que todos confiassem em Cristo... Fracassou no comércio, porque não tinha inclinação para auferir lucros. Sua vocação estava na carreira bancária. Por ironia do destino, passava por suas mãos muito dinheiro, não para seu uso, mas para o conforto dos ricos. Com seu manuseio, acumulava experiência com que se tornaria banqueiro dos pobres, administrando seus bens” , salienta Pondé (Pondé, 1977: 13).

Como homem de seu tempo, Levy dedicava-se não apenas à caridade, mas ao

“progresso do Brasil”. A Escola de Pesca Darci Vargas era, como rememora grande

parte dos pescadores que vivem hoje na Marambaia, “um momento de grande

prosperidade”.

Homem de confiança do presidente Vargas, Levy conheceu o presidente por

intermédio do general Pantaleão Pessoa em março de 1935. Nessa data Levy se

encontrou com o presidente para solicitar-lhe a doação de um terreno a fim de

“agasalhar os pobres da cidade” (Pondé, 1977: 27). Veio ao Rio porque o interventor da

Bahia – Capitão Juracy Magalhães – palestrando com Getulio Vargas, fez referência

aos trabalhos assistenciais realizados por Levy em Salvador (na época em que ele lá se

encontrava como funcionário do Banco do Brasil). Interessando-se pelo fato, o

Presidente solicitou a Leonardo Trudda – Presidente do Banco do Brasil à época – que

providenciasse a transferência de Levy para o Rio.

De 1936 a 1943, os estabelecimentos subordinados a Levy constituíam uma

sociedade civil, sob a designação de Abrigo do Cristo Redentor. Após 1943 a entidade

constituiu-se em Fundação – Fundação Abrigo do Cristo Redentor -, pelo Decreto Lei

assinado pelo presidente Vargas, transformando-a em pessoa jurídica de Direito

Privado30 (Pondé, 1977: 40).

30 - A obra criada por Levy Miranda compreende as seguintes instituições, em ordem cronológica: Abrigo do Salvador; Abrigo do Cristo Redentor, na cidade do RJ; Instituto Profissional Getúlio Vargas, na cidade do RJ; Escola Técnica Darci Vargas, na Ilha da Marambaia; Patronato Agrícola de Sacra Família; no estado do RJ; Abrigo do Cristo Redentor de São Gonçalo no estado do RJ; Instituto Natalina Janot na cidade do RJ; Escola de Vaqueiros e Lavradores Presidente Vargas, em Santa Cruz, na cidade do RJ; Cidade dos Meninos, em Duque de Caxias, no estado do RJ. (Pondé, 1977: 40).

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A Fundação Abrigo do Cristo Redentor, pelo artigo 2.ª do seu estatuto

estabelecia as seguintes diretrizes: a) dar assistência religiosa, moral e material aos

mendigos, independentemente de nacionalidade, crença, cor, sexo, idade, estado civil;

b) dar assistência religiosa, moral, material e educativa ao menor, especialmente ao

desamparado. O projeto redencionista, pretendido por Vargas, estava impresso no

projeto da Escola. Regular o trabalho, a partir da tutela dos “infortunados”, era a meta

principal das instituições administradas pela Fundação. Nesse contexto, estavam

inseridos não apenas os mendigos dos centros urbanos, mas toda categoria de

indivíduo que estivesse classificado - dentro dos parâmetros da época – como

infortunado.

Urgia a voz da modernidade, símbolo maior dos entusiastas do Estado Novo.

Buscava-se “civilizar e domesticar” os trabalhadores para a indústria e comércio, ainda

incipientes no Brasil. Essa visão redencionista era expressa nas palavras de Assis

Chateaubriand. Em suas impressões sobre a vida dos ilhéus na Marambaia o mesmo

diz:

As águas do golfo bastam para matar todos os apetites de fome. É só lançar o anzol e sentir o peixe morde-lo. As roças em torno das choças são plantações mesquinhas, dizendo do fatalismo do homem que as cultiva. Dir-se-á que o gentio indolente daquelas paragens transmudou-se no caboclo, que ali defrontávamos. Capitaneados por um senhor enérgico, viril, combatiam a outrora natureza, e dominavam-na. A morte do senhor, o fim da escravatura restituíram aos homens o domínio de si mesmos. Isto foi a ruína deles. Conformam-se pela mesma tendência dos sangues inferiores que traziam nas veias, à adversidade. O meio subjugou-os e, sem capitão, falhos de personalidade, deixaram-se vencer pouco a pouco, até se afundarem na miséria em que os deparamos

Para Chateaubriand, assim como para os idealistas do Estado Novo, sem os

chicotes dos senhores de escravos, era necessário impor novos mecanismos

repressores que possibilitassem “o amontoamento da mão de obra que se fazia crescer

desempregada pelas cidades do Brasil”, como dizia ele.

Como chama atenção Mello (Mello, 1995) com a República Nova adota-se, no

Brasil, um mandato imperial, consubstanciado, seja no processo centralizador, que

constitui em dissolver a federação, seja em seu colorário que foi a expansão

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integradora do poder estatal, da cidadania, da produção e da nacionalidade. A tarefa de

reconstrução consiste, no entanto, na luta sem tréguas contra os limites impostos ao

desenvolvimento nacionail pela perversão particularista da República Velha, cujos

resultados foram o insulamento, a dispersão, a degenerescência e a estagnação do

‘povo brasileiro’. Era este resgate o projeto essencial almejado pela era Vargas.

Restabelecer a “ordem e o progresso” para o desenvolvimento da “nação”, do “povo”

brasileiro. Restituir-lhes da natureza para a civilidade. E, portanto, solidificar e

dimensionar a tutela do estado sobre estas populações vistas e representadas como

arcaicas, primitivas e com outras atribuições que objetivavam estigmatizar as

populações que descendiam da escravidão.

O projeto “republicano” do Estado Novo – que se opunha ao projeto político da

República Velha – passou longe da possibilidade de autonomizar estes grupos,

instituindo-os enquanto sujeitos de direito no espaço público. Ao contrário, em seu

projeto de “cidadania” prevalecia a máxima de que estes grupos, ou indivíduos,

deveriam ser tutelados paternalmente pelo Estado para que fosse possível “combater a

sua natureza” – como salienta Chateaubriand – para elevarem-se à civilidade, à

modernidade. Nesse sentido, a Marambaia constituía local ideal para implantação de

projetos com tais características na visão das autoridades do Estado Novo.

Cabe destacar que o aspecto arquitetônico das instituições da Fundação,

representava esse ideário redencionista:

Todos asilos construídos por Levy Miranda têm planta idêntica, apresentam certa semelhança, conservam as mesmas características, naturalmente com algumas diferenciações, consoante a topografia ou as necessidades específicas de cada um. Todos eles se compõem de diversos pavilhões, um dos quais destinado à Administração, sendo os outros assim discriminados: capela, residência das religiosas, dormitórios, refeitórios, cozinha, lavanderia e oficina (Pondé, 1977: 91).

Percebe-se que nela compõe-se uma estrutura arquitetônica que leva em conta

dois aspectos importantes: a capela e a residência das religiosas, representando a

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catequese, a redenção aos valores cristãos; e a oficina, que representa a redenção aos

valores do trabalho, a “laborterapia” 31 (Pondé, 1977: 116).

Levy lançou mão de suas idéias ao conhecer a Marambaia em 1939, quando fora

passar junto de sua família os festejos de carnaval em Itacuruçá. “A curiosidade de

conhecer a lendária Ilha aguçou a todos. O tenente Santos, responsável pela Capitania,

proporcionou-lhes o ensejo da visita em uma lancha da Marinha. Além do tenente

fizeram parte da excursão Levy com alguns de seus companheiros e o Pe. Quatropane

(Pondé, 1977: 173)”. Após a travessia da baía de Sepetiba, desembarcaram na Praia

da Armação. Foram recebidos “por um sargento, alguns marinheiros e os habitantes,

tristonhos e desconfiados, aos quais presentearam. Habitavam várias choças ali

existentes. Pálidos, emagrecidos, andrajosos, dedicavam-se à pesca, e a Baía de

Sepetiba construía seu mundo (Pondé, 1977: 173)”:

Daquele local partiram, acompanhados pelos habitantes, diririgiram-se para a igreja em ruínas, em cujo altar – mor ainda se encontrava linda imagem de Nossa Senhora das Dores, já muito descolorida. Aí rezou a santa Missa o Pe. Quatropane, à qual assistiram os visitantes e parte da população da Ilha. Daí partiram, após ofício religioso, em visita a vários sítios, e demoraram-se no local das ruínas da antiga fazenda. Um dos habitantes mostrou-lhes os paredões do que fora o eito dos escravos e o local onde existira a barragem (Pondé, 1977: 175).

Após essa visita, Levy retornou outras vezes à Ilha no sentido de conhecer

melhor o local, pois já era seu desejo construir uma Escola de Pesca lá:

Essa visita se realizou nos primeiro dias de abril de 1939, partindo o Ministro da estação da central do Brasil, com numeroso

31 - É importante frisar que as internações dos “mendigos” faziam-se através da Delegacia de Mendicância que “procedia à captura dos pedintes nas ruas (Pondé, 1977: 112)”. A referida Delegacia foi criada em 1934 no momento em que o Sindicato dos Lojistas encampava um movimento instituindo uma caixa de esmolas, com “o objetivo de pôr cobro aos desassossegos (Pondé, 1977: 72)” causados pelos mendigos das ruas do Centro do Rio. Em entendimento entre o Dr. Antônio Ribeiro de França – presidente do Sindicato dos Lojistas – e o Chefe de Polícia, Major Felinto Muller, estabeleceu-se a Delegacia de Mendicância, entregue aos cuidados do delegado, Dr. Jayme de Souza Praça. Ademais, havia um entendimento de que era necessária a criação de leis que aparelhassem a autoridade policial de meios para o combate à vadiagem e propiciassem o recolhimento do falso mendigo. Proposta esta, defendida pelo delegado Jayme Praça que, segundo o mesmo, pleiteava do Congresso Nacional tal ação (Pondé, 1977: 95).

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acompanhamento, em vagão especial, anexado à composição de horário normal, pela manhã. Da comitiva participaram, além de Levy e família, membros da Diretoria da Fundação. Em Itacuruçá, encontravam-se, para recepcionar o Ministro, o Comandante da Base Naval de Angra dos Reis, o Capitão-de-Mar-e-Guerra Segadas Viana, a bordo do rebocador Carioca que efetuou o transporte dos visitantes até a Ilha da Marambaia (Pondé, 1977: 177).

Após diversos despachos de documentos, negociações para o estabelecimento

da escola, concretizou-se a implantação da Escola na Ilha da Marambaia.

Reproduzimos um documento onde o Ministro da Agricultura, em novembro de 1939,

em exposição-de-motivos dirigida ao Presidente da República, refere-se aos

entendimentos havidos com a Diretoria do Abrigo Cristo Redentor e solicita ao

Presidente determinação da importância que deve ser concedida como auxílio à aludida

instituição:

“G. M 1281 – Gabinete do Ministro da Agricultura

Em 21 de novembro de 1939

Exmo. Sr. Presidente da República:

Em 16 de maio último, pela Exposição-de-Motivos n.º 451, solicitei de V. Exa. a

indispensável autorização para construir, no Saco de São Francisco, em Niterói, a

Escola Nacional de Pesca, orçada R$ 2. 732:724$500, com a aplicação de R$ 1.

732:724$500 no corrente exercício.

Posteriormente, pelo G.M 923, de 28 de agosto, voltei à presença de V.Exa para

solicitar que fosse reduzida a R$ 500:000$000 a importância a se aplicar este ano na

aludida construção.

Entrementes, aprovando um parecer do Ministério da Fazenda sobre o assunto,

constante da Exposição-de-Motivos n.º 1.775, de 30 de setembro último, determinou

V.Exa que a realização da causa fosse adiada.

Recentemente, porém, em face dos entendimentos havidos, com a anuência de V.Exa.,

entre este Ministério e a Diretoria da Humanitária instituição Abrigo do Cristo Redentor,

voltei a submeter o assunto à elevada consideração de V.Exa., desta vez pelo G.M n.º

1.186, de 24 de outubro próximo passado, no qual pedi me fosse autorizada a

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aplicação, no vigente exercício, de R$ 200:000$000 no preparo do terreno e início da

construção da referida Escola, bem como a entrega de R$ 300:000$000, como auxílio,

à instituição beneficente Abrigo Cristo redentor para a construção de uma Escola

Profissional da Pesca na Ilha da Marambaia , em próprio nacional, sob a jurisdição do

Ministério da Marinha.

Despachando dito G.M. V. Exa. , assim pronunciou: “Autorizo o projeto e execução da

escola de pesca em Marambaia para ser administrada pela direção do Abrigo Cristo

Redentor, não havendo necessidade de duas escolas de pesca tão próximas”.

Isso posto, para perfeita orientação nas relações deste Ministério com a Diretoria da

instituição em causa no que diz respeito ao assunto, tenho a honra de solicitar a V.Exa

que se digne esclarecer, se a quantia a lhe ser entregue, como auxílio, no corrente

exercício, deve ser de R$ 500:000$000, tendo em vista que a Escola de Niterói não

será mais realizada e atendendo a que a de Marambaia, construída sob a

administração da Diretoria do Abrigo do Cristo Redentor, obedecerá a projetos,

orçamentos e especificações próprias, constituindo patrimônio daquela meritória

Instituição

Fernando Costa

(Fonte: Pondé, 1977: 183)

Definiu-se, portanto, que se instalaria a primeira Escola profissionalizante da

pesca no Brasil em Marambaia. O presidente Vargas concedeu a importância de 500

contos de réis – em 21 de novembro de 1939 – para ao início das construções das

dependências da Escola. Logo nos primeiros dias de junho o movimento acentuou-se

na Marambaia:

Em poucos dias efetuaram-se a derrubada da mata e o saneamento da Ilha, executado pela Diretoria de Obras da baixada Fluminense, sob a direção do Engenheiro Hildebrando de Goes. Aos engenheiros desse Departamento, entregou-se o encargo de levantamento das plantas de uma cidade dos pescadores, comportando casas com esgoto, luz, água encanada, grupo escolar, igreja e uma cooperativa (Pondé , 1977: 185).

Construíram-se dez pavilhões - que até os dias atuais permanecem sob a

administração da Marinha - , assim discriminados: igreja, residências das religiosas,

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hospital, farmácia, escola, lavanderia, padaria, estaleiro, fábrica de redes e fábrica de

gelo. No decorrer das obras, houve modificações, visando a criação de indústrias

correlatas de atividades pesqueiras (Pondé, 1977: 185). “Iniciada a construção várias

unidades simultâneas foram implantadas, como a horticultura e a pecuária para o

abastecimento dos habitantes e operários. Também cogitou imediatamente da pesca,

aliciando pescadores ali residentes a serviço da instituição (Pondé, 1977: 186)”.

Os alunos, advindos de toda parte do Brasil, chegaram à Marambaia em 1941

quando a escola já estava concluída. A primeira turma se formou em 1944, tendo dado

inicio às suas atividades de pesca no alto mar, para término de sua formação

profissional, cujo adestramento exigia de seis a oito horas de labor. Um morador da Ilha

e ex-aluno da escola lembra que:

Antigamente aqui a coisa era boa. A gente ficava o dia todo na escola, era horário integral. Lá aprendia tudo: ler, escrever, talhar uma rede, ia pescar. A coisa era assim mesmo. Muitos de nós ficávamos aqui à semana toda e depois ia para casa. Eu mesmo morava na Praia do Sitio e demorava, à pé, mais ou menos uma hora pra chegar em casa. Ai ficava aqui na escola. Dormia, comia, trabalhava.

No ano de 1942 a Escola tinha 242 alunos, sendo que 167 eram do curso

primário e 75 no curso profissional.

Esta proposta compunha todo um esforço do Estado Brasileiro em investir numa

pesca “tipicamente nacional”, enquadrando-se nos projetos de desenvolvimento

econômico que vieram marcar a era Vargas. Esse processo, como bem é lembrado

pelo professor Luis de Castro Faria 32, consistia em tutelar estas populações. Desde

1922, com a Missão Vilar, os pescadores ocuparam um novo papel, pois eram eles os

grandes conhecedores do mar, de suas reentrâncias, de seus perigos e abrigos. Os

países com grande área costeira passaram a reconhecer nos pescadores guardiões da

pátria. (Faria apud Kant de Lima e Pereira, 1997). As escolas tinham um caráter outro:

de incluí-los subalternamente, modernizando suas atividades.

32 - Na apresentação do livro “Pescadores de Itaipu” (Kant de Lima e Pereira, 1998), o professor Castro Faria faz uma análise sobre ação do Estado brasileiro em relação à pesca.

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Muitos permaneceram na Marambaia em suas atividades como pescadores

artesanais. Outros complementavam sua renda trabalhando na escola, inclusive as

mulheres, que passaram a trabalhar – em diferentes atividades – na escola de pesca.

Com a implantação da Escola de Pesca Darci Vargas na Marambaia restabeleceu-se

um novo espaço de mediação entre os atores locais. A Escola nesse momento torna-se

um espaço privilegiado de interação entres os grupos.

Entretanto, a decadência da Escola nos anos 70 do século passado, levou à

transferência das dependências da Escola para o Centro de Adestramento da Marinha

(CADIM) da Marinha de Guerra do Brasil. Nesse momento, muitos dos funcionários da

Escola de Pesca retornaram as suas cidades respectivas. Os alunos33 – que ainda hoje

se encontram anualmente em festas comemorativas – foram atuar em outros campos

profissionais. Os antigos moradores permaneceram em suas antigas casas,

trabalhando em suas roças e nas suas embarcações.

A Marinha passa a ocupar as instalações da antiga Escola de Pesca nos anos

70. As casas são destinadas aos militares e funcionários do CADIM. A antiga senzala

torna-se um hotel destinado aos oficiais que visitam a Ilha. Reformaram-se as antigas

instalações, onde eram guardados os apetrechos de pesca, tornando-os almoxarifados

e paióis destinados ao armazenamento dos materiais da Marinha. Permanece a escola

com ensino de primeiro grau, e os serviços básicos como saúde e transporte (através

de uma barca destinada aos militares e funcionários); todavia as fábricas de gelo e de

sardinha são extintas.

33 - Há uma Associação do Ex-Alunos da escola de Pesca da Ilha da Marambaia. Existem encontros anuais com os mesmos na antiga sede da Fundação em Bonsucesso. Mesmo com o fim da Escola, os laços de amizade e afinidade permaneceram entre alunos e moradores nativos da Ilha. Vez ou outra visitam a Ilha para reencontrar velhos amigos.

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Antiga instalação da escola de Pesca Darci Vargas, utilizada pela administração do CADIM como escola de ensino primário para os moradores civis e militares da Ilha. (Foto tirada por Fabio Reis Mota)

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2.3 No tempo da Marinha e a posse da história

A relação entre o grupo local e a Marinha distinguia-se daquela da escola de

Pesca. Se esta via na tutela uma forma de incluir subalternamente os pescadores no

espaço público, a Marinha estabelece uma tutela sobre o grupo almejando a sua

subjugação aos deveres e às normas militares da instituição. Proíbem-se os roçados,

que complementavam a renda das famílias e constituíam espaço social fundamental de

afirmação das hierarquias, dos laços sociabilidade, das redes políticas e de

reciprocidade existentes. Do mesmo modo, são proibidas as antigas vendas que se

localizavam nas praias. Um antigo pescador lembra que com a Marinha novas formas

de utilização do espaço são impostas. “Aqui antigamente, antes da Marinha tinha, por

exemplo, uma vendinha aqui na Kaetana, outra na Pescaria Velha. Ai chegou a Marinha

e tirou tudo. Dizia que dava muita briga essa coisa de pescador ficar bebendo cachaça.

Ai foi e tiraram as vendas. Proibiram”.

A instalação do CADIM significou a constituição de um novo espaço, permeado

por novas regras, muitas delas inscritas nos ordenamentos e regras militares. O espaço

do quartel, com suas regras, condutas e procedimentos, justapôs-se aos espaços

vividos e representados pelos tradicionais habitantes. Para estes, tais regras

significaram a restrição de suas formas cotidianas de uso e apropriação do território. A

justaposição destas representações acerca do espaço, dos usos do território, das

sensibilidades jurídicas inscritas nas lógicas cotidianas, fez emergir uma série de

conflitos e controvérsias entre a população nativa e as Forças Armadas.

Portanto, a implementação de novas regras de acesso ao território tradicional da

comunidade34 culminou em diversas tensões e controvérsias entre o Comando do

CADIM e os descendentes dos escravos, tendo como ápice a demanda de despejo da

comunidade nativa nos anos 90 do século XX com as ações de reintegração de posse

ajuizadas pela Advocacia Geral da União, através de solicitação da Marinha de Guerra

do Brasil. Um relato de um morador da Marambaia sintetiza de modo paradigmático o

34 Gostaríamos de chamar atenção que empregamos o uso do termo comunidade de acordo com o sentido atribuído por Gusfield (1975). Para o mesmo, uma comunidade não corresponde a uma organização social homogênea e totalizante, mas é resultado das relações e interações que são dinâmicas e contextuais. Desse modo, a categoria pode ser apropriada e reapropriada de modo diverso pelos atores, como no caso dos moradores das denominadas favelas do Rio de Janeiro (Freire, no prelo).

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sentimento de desconsideração aos direitos garantidos aos descendentes de escravos

em decorrência da iminente expulsão de seu lugar vivido e estimado:

Os escravos foram e ficaram ilhados aqui, até que veio a Fundação Cristo Redentor e acolheu os ex – escravos. Fez a escola. Ai deu conforto ao povo. A verdade é que deu vontade das pessoas viverem, aqueles escravos, aquelas pessoas antigas. Foi dando trabalho nos barcos. Ai chegou até a gente. Ai tamos nós passando pelo mesmo motivo, só que não somos escravos, é lógico, mas o que estamos passando agora aqui. Não ter direito a nada. A gente só quer é viver, construir uma casa pro nossos filhos... Eu não tenho leitura, sou leigo, não tenho sabedoria, só sei pescar. Se meu filho me acompanhar, ai ele vai ficar aqui e vai casar e vai morar onde? Nós só queremos isso, alguém que se interesse pela gente, como o Levy Miranda. Não queremos brigar com ninguém. Queremos viver, viver. Queremos nosso direito, porque nós somos cidadãos iguais aos outros, porque nós não sabemos ler, não sabemos escrever, não sabemos falar, mas somos cidadãos. Somos ou não somos, Fabio ? A gente vota pra presidente, vereador, senador. Eles vêm e oferecem uma coisa, isso e aquilo. Ai quando acaba a eleição vão embora. Vivemos na promessa... Queremos viver igual aos outros, a verdade é essa. Somos contados iguais a boi... Quer montar um novo cômodo eles não deixam. Acho que isso não é viver. O ser humano que vive sobre o poder do outro não é viver. A mesma coisa que escravo, viver preso e tal. Nós não falamos mal da Marinha. Ela dá assistência até que pode, a barca, o hospital. Mas o que nos entristece é não termos luz, água encanada, poder construir um cômodo ali, fazer uma varanda. Quero é só viver...

As ações de reintegração de posse impetradas pela AGU e Marinha de Guerra

do Brasil contra as famílias da Marambaia foram efetivamente eventos paradigmáticos,

mobilizando uma gama de atores em torno dessa controvérsia pública. Advogados,

Centro Pastoral da Terra, Advocacia Geral da União, partidos políticos, Organizações

Não Governamentais, os vários grupos do MPF, jornalistas, antropólogos, biólogos,

Universidades, foram os diversos atores que passaram a figurar nesse cenário

conflituoso e controverso.

Neste evento, novos dispositivos discursivos e políticos foram acionados pelos

atores. Quilombos, pescadores, meio ambiente, segurança nacional, preservação

ambiental, defesa nacional foram alguns dos dispositivos classificatórios e discursivos

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que passaram a compor a cena das disputas levadas a cabo neste estado de

concorrência pelo reconhecimento dos direitos “difusos e constitucionais”. Cada ator

lançando mão de seus argumentos e justificativas para fazer frente às demandas

públicas. No caso dos moradores da Ilha, a memória referente à ocupação tradicional

obteve um lugar privilegiado nas manifestações políticas e jurídicas. As famílias de

pescadores e descendentes de escravos tomaram posse de sua história para fazer

frente às investidas do Poder Público que visava expulsá-los de seu território. Dando

ênfase aos seus vínculos com o lugar vivido e estimado, buscavam garantir a

visibilidade necessária para permanecer no território tradicionalmente ocupado.

Fundou-se um movimento, ainda que não “orgânico”, em torno da propriedade difusa

com o acionamento de saberes locais depositados na memória coletiva dos grupos,

tendo a evocação do passado como um mecanismo de legitimação das demandas de

reconhecimento do grupo.

“Povos da Terra - Povos do Mar - Ilha da Marambaia: Do Tráfico de Escravos,

Ontem, aos Despejos de Famílias Pescadoras, Hoje”, foi esse o título de um dos

primeiros documentos formulados pela população local, com a colaboração da Pastoral

de Terra de Itaguaí, para difundir e demandar apoio público à causa da comunidade da

Marambaia. Ele continha uma dezena de recortes jornalísticos que retratavam o conflito

entre a população civil e a Marinha, bem como materiais arquivísiticos que propunham

apresentar os indícios da ligação ancestral da comunidade da Ilha com o território.

As memórias e histórias da escravidão, os tempos vividos na Escola de Pesca,

as roças, pescarias realizadas com os companheiros, compunham as cenas desta

controversa situação. Histórias não apenas contadas ao acaso, mas como recursos de

vindicações de direitos. Como frisam Mello e Vogel (2000: 08):

o próprio estatuto da narrativa, com suas múltiplas e sempre cruciais implicações, não apenas na elaboração das etnografias, mas, para além desta, na consideração dos seus resultados, em contextos pertinentes ao fenômeno jurídico; sobretudo, no caso das disputas em torno de patrimônio, sucessão e território. Cedo se havia apercebido de que, nos casos de relevância jurídica, a modalidade dos fatos e de sua apresentação, eram sempre determinadas no âmbito de histórias. Relatos do que tinha sucedido a um ente individual ou coletivo, e do que havia

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resultado daí. Histórias contadas e recontadas, tal como o eram também aquelas utilizadas nos tribunais para acusar, defender ou simplesmente qualificar os envolvidos.

A narrativa aqui, como no caso da “aldeia dos irredutíveis” dos pescadores de

Maricá, estudada pelos referidos antropólogos, serviu como um modo de expressão dos

sentimentos de pertencimentos e vínculos com o lugar. Foi um meio de formular e

garantir os direitos não reconhecidos pelo Poder Público. As narrativas ocupavam o

papel dos documentos na evidência da existência dessa posse da história das famílias

dos descendentes dos escravos.

Nesse sentido, a Comissão Pastoral da Terra de Itaguaí incorporou essa

memória como dispositivo político destinado a dar visibilidade à demanda da população

local. Em 1999, no auge das liminares concedidas pela Justiça para a expulsão dos

moradores, a Pastoral realiza uma reunião com a comunidade. Muito alvoroçados e

preocupados com o evento que os afligia, as famílias de pescadores não tinham

nenhuma estratégia definida para reaver ou permanecer em suas casas. Neste mesmo

período, como vimos no capítulo anterior, tramitavam diversos projetos com vistas a

regulamentar o artigo 68 do ADCT da Constituição Federal referente aos direitos dos

“remanescentes de quilombos”. Como vimos, ainda, este conceito havia passado por

um processo de “desfrigorificação” (Almeida, 2002) com a mudança do entendimento

de que quilombos não eram tratados apenas como aglomerados de escravos fugidos,

mas correspondiam, a título de reconhecimento legal, como organizações sociais que

mantinham vínculos históricos e culturais com a escravidão. De acordo com esse novo

entendimento, neste período, diversas comunidades haviam sido reconhecidas como

remanescentes de quilombos no Brasil afora. Como era um debate ainda incipiente,

restrito a um universo político e acadêmico especializado e interessado no assunto, o

público da reunião (a população da Marambaia e os outros participantes) desconhecia

os reais efeitos da aplicação deste dispositivo jurídico.

Na época - sem muito saber os efeitos de meu ato - pois havia começado neste

período a tomar pé deste tema, sugeri que o Dossiê fosse enviado à Fundação Cultural

Palmares, órgão da administração pública responsável pelas políticas públicas

relacionadas aos quilombos, neste período. As pessoas pediram esclarecimentos sobre

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as implicações de tal dispositivo legal. Esbocei algumas pequenas explicações sobre os

efeitos legais do reconhecimento do grupo como quilombo, manifestando interesse em

colaborar. Para tanto, disponibilizei os contatos de um amigo, antigo e respeitado líder

do movimento negro carioca, que poderia dar maiores informações a respeito do

assunto. A sugestão foi acatada, embora uma moradora da Ilha fizesse a ressalva de

que na Marambaia não se tratava de “quilombos, mas escravos de senzala”.

O Dossiê foi enviado para Brasília no mês de fevereiro de 1999, sendo dirigido

diretamente para as mãos do Presidente da FCP. Num documento redigido por técnicos

da instituição, em maio do mesmo ano, a partir de informações coletadas em arquivos,

era argumentado que se tratava de uma “indiscutível comunidade remanescente de

quilombos” e que era necessária uma especial atenção ao caso diante da “gravidade do

conflito”. Como todo processo administrativo no Brasil, seja um pedido de certificado de

conclusão de curso na Universidade, seja de reconhecimento das terras quilombolas, a

ação tramitou vagarosamente durante meses.

Neste ínterim, as decisões judiciais favoráveis à reintegração de posse da casas

dos moradores da Marambaia continuavam a todo vapor. Do outro lado da arena, a

Marinha de Guerra se mobilizava na tentativa de convencimento dos moradores em

deixarem a Ilha com o “benefício de algumas casas em Itacuruçá”. Embora o medo e o

desânimo fossem quase que generalizados, a população local recusou

peremptoriamente a oferta da Marinha de Guerra. Relatamos um caso para que

possamos melhor compreender os desdobramentos desta confrontação e possamos

indicar como essa situação de teste ou provas evidencia as ações justificáveis e suas

implicações no desenvolvimento do julgamento público.

Um exemplo emblemático, que iria mudar o curso do conflito, foi o de Dona

Sebastiana (falecida no ano de 2008) que na época tinha mais de 70 anos. Sua ação foi

julgada e sua casa lacrada em decorrência da decisão judicial favorável a reintegrar a

propriedade. Embora a AGU e a Marinha apresentassem as ações judiciais

individualmente, os argumentos eram equivalentes em todos os processos: a Marinha

alegava ser proprietária da Ilha e que no período da Escola e da chegada da Marinha,

diversas pessoas invadiram e ocuparam, “sempre a título precário”, parte da Ilha da

Marambaia e que em nenhum caso, seja através da Escola ou da Marinha, foi

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estabelecido qualquer vínculo jurídico com os ocupantes. Deste modo, “por mera

tolerância”, a Marinha permitiu que alguns poucos pescadores permanecessem em

humildes habitações já existentes. As ações eram distribuídas individualmente para não

configurar um processo coletivo de expulsão da população local, desmobilizando-a e

não configurando uma atitude extemporânea por parte do Estado Brasileiro em tempos

de democracia.

Esta ação, que fora desencadeada a partir de uma notificação do Comando do

CADIM em 1997, com relação a um suposto abandono da casa, culminou na

constituição de um processo administrativo interno da Marinha que alegava que a casa

vinha sendo ocupada por terceiros o que “comprometia a segurança do local”. De

acordo com o Comando, a utilização por terceiros apenas seria possível caso a

Administradora dos bens, nesse caso a Marinha, consentisse com tal fato. Fazendo uso

de fundamentos de autoridades interpretativas do campo do direito, o Comando do

CADIM aduz que, segundo o jurista Helly Lopes Meirelles, “a má utilização de um bem

público deve ser repelida por meios administrativos independente de ordem judicial”,

sendo possível a retomada do imóvel sem ação judicial. Mas “apenas por uma questão

de cautela e de respeito à pessoa humana a Administradora entendeu ser justo notificar

a referida senhora”. A notificação foi enviada à Procuradoria da União e culminou na

ação de reintegração de posse, bem como solicitava o pagamento de uma indenização

para a União Federal pela reparação do imóvel, construído por seu marido com

recursos provenientes da pescaria. A ação foi julgada à revelia, pois esta senhora de

mais de 70 anos e analfabeta, ao receber a notificação para comparecer ao Tribunal,

negou-se a assinar o documento.

A tentativa de derrubar a casa, em decorrência do deferimento do juiz, resultou

em alguns desdobramentos importantes. Pesquisadores do NUFEP, com a assessoria

jurídica do Núcleo à época, traçaram uma estratégia: pedir o recolhimento do mandado

reintegratório, com o argumento de que a Marambaia havia sido identificada pela

Fundação Cultural Palmares como remanescentes de quilombos. Portanto, era

necessária uma maior cautela, pois estava tramitando um processo na esfera

administrativa federal para o reconhecimento de direitos garantidos

constitucionalmente. Paralelamente a isso, o caso de Dona Sebastiana havia adquirido

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notabilidade pública em decorrência de duas matérias publicadas em importantes

jornais do RJ, a partir da articulação entre os pesquisadores do NUFEP e um repórter,

ex-aluno da UFF. A matéria foi publicada primeiro no jornal no ., hoje extinto, e,

posteriormente, o Jornal do Brasil comprou a matéria, dedicando uma página inteira no

caderno “Cidade”, com o título “Marinha expulsa habitantes do Paraíso: moradores da

Ilha da Marambaia brigam para não perder casas para militares que alegam

deterioração do patrimônio público”. Em ambas as matérias eram enfatizados os laços

e vínculos dos moradores com a terra e a história da Marambaia. Dona Sebastiana

possuía laços diretos com os ex-escravos dos Breves.

Foto da casa de Dona Sebastiana, objeto da Ação de Reintegração de posse (foto tirada por Fabio Reis

Mota).

Com a repercussão da matéria e o pedido da advogada, a questão do quilombo

da Marambaia começava a adquirir visibilidade em outras arenas públicas. Uma

Desembargadora, que respondia pelo Presidente do tribunal, suspendeu

temporariamente a decisão judicial, sendo que um Procurador Regional da República

da 2.ª Região - responsável pela elaboração de parecer, a ser apreciado pelo

Desembargador Relator, apresenta argumentações contrárias aos direitos de dona

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Sebastiana35. Oferece parecer preliminar referenciado na matéria jornalística publicada

no Jornal do Brasil.

Neste mesmo parecer, o Procurador argumenta que “há má fé da agravante” que

estaria sendo usada “como figura de proa por força de sua idade, pintada como

perseguida apesar de se encontrar residindo fora do imóvel”. Argumenta, em primeiro

plano, que o Agravo é intemspetivo e que o ato de citação esteve em consonância aos

princípios da “fé pública e da legalidade”. Argumenta, ainda, que o Patrimônio é de

domínio público desde 1905. Alega que a casa encontrava-se fechada desde 1997 e se

opõe à tese da existência de quilombos na Ilha. Argumenta, erroneamente, que dona

Sebastiana se encontrava em julho de 1997 na casa do suboficial Antônio José de

Oliveira. Neste período, dona Sebastiana se encontrava em sua residência na

Marambaia. Neste jogo de informação e contra informação, há um documento da

Marinha – destinado ao Procurador – onde é informado que dona Sebastiana fora

casado com Cabo dos Fuzileiros Navais Sergio Dorothea de Lima (fato que se fosse

verídico seria um em incesto, pois o citado na ação, de fato, era seu filho, já falecido !).

Seu verdadeiro marido foi pescador a vida toda, cuja ascendência remonta ao seu

Estanislau, o velho Estanislau citado no livro dos Breves.

É importante frisarmos que a centralidade dada ao significado atribuído ao termo

quilombo, aplicado no caso da Dona Sebastiana, permitiu que o “quilombo da

Marambaia” passasse a se constituir enquanto um problema público, sendo

reinterpretado num quadro de tramas e dramas, num horizonte de interações e

interlocuções, numa dinâmica de produção e recepção dos elementos interpretativos. A

diversidade dos problemas públicos correspondem à diversidade de seus modos de

“construção”, como bem salienta Daniel Cefaï (Cefaï, 1996: 5). Diversidade que é

ancorada nas formas como os atores operam suas críticas e estabelecem novos

mecanismos de produzir suas verdades. As ponderações de Daniel Cefaï a respeito da

emergência dos problemas públicos são pertinentes para refletirmos sobre o

“descongelamento do quilombo da Marambaia”:

35 - A divisão da Justiça Federal é por Região. A 2.ª Região abrange Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo. Em cada Região há os Desembargadores, um Procurador e, em alguns casos, um Defensor. O Procurador é responsável por emitir um parecer que subsidiará a decisão dos votos dos apreciadores da ação, ou seja, o relator, o revisor e o vogal. O parecer não possui poder de decisão, apesar de sua relevância nas decisões dos desembargadores.

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Falamos de ‘construção’ dos problemas públicos pelos atores coletivos para sacrificar a linguagem que se tornou recorrente nas ciências sociais. Entretanto, o termo ‘constituição’ - explorado pela história da fenomenologia, que não reduz a gênese temporal de uma significação intersubjetiva nem à atividade de um sujeito, nem à passividade de um objeto -, ou aquele de ‘configuração’ (Gestaltung), no sentido merleau-pontien da emergência de uma estrutura figura-fundo, que não seja atribuído nem à matéria, nem ao espírito, nos parece mais apropriado. Não é suficiente falar de ‘construção’ da realidade ou da legitimidade, da causalidade ou da responsabilidade: é se deixar levar pela compreensão que os jogos cognitivos e normativos dos problemas públicos sejam indefinidamente manipuláveis, que os critérios de sua apreensão e de sua apreciação são arbitrários ou artificiais; é abrir a porta para todas as formas de ceticismo e cinismo, os quais não escapam à crítica da dominação, que empresta aos ‘dominantes’ um poder de produzir as ilusões e isolar os ‘dominados’ numa inexistência de mero consumo das ilusões (Cefaï, 1996: 5).

Essa operação da constituição do problema público, vinculado ao tema do

quilombo, envolveu uma gama de dispositivos argumentativos, jurídicos e morais. Os

atores, longe de serem os sujeitos ou autores desse processo no sentido de

manipularem a situação, podem ser tomados pelos temas que são dispostos na arena

em que eles operam. Eles se temporalizam através de suas manipulações dos objetos,

suas interpretações dos eventos, suas argumentações e suas projeções de ações. A

categoria quilombo, nesse âmbito, adquire uma intangibilidade pública, tornando-se

passível de se tornar um argumento ou justificativa pública, um operativo legal e moral

frente às provas enfrentadas pelos atores sociais. Do mesmo modo, ela alcança o nível

mais íntimo da vida cotidiana deles, operando como um dispositivo apropriado na

constituição de seus engajamentos públicos e privados. Ou seja, ela repercute na

estrutura das relações sociais de proximidade e de vizinhança, operando como um

elemento de distinção ou de inclusão do grupo (Barth, 2000). A constituição do

quilombo é definida em diferentes planos, num processo que implica diversos atores,

com distintos interesses e perspectivas, cujas redes se complementam, sobrepõem-se

ou se justapõem.

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Na constituição do quilombo da Marambaia, outros atores ocuparam importante

papel nas redes de argumentação e constituição da verdade. Um deles foi o Ministério

Público Federal. No Brasil contemporâneo, o Ministério Público Federal cumpre um

papel relevante na produção da verdade. Ele detém uma legitimidade interpretativa no

campo jurídico-político, sobretudo no que concerne aos temas das “minorias” no espaço

público brasileiro. Neste caso, ele desempenha o lugar do intérprete dos denominados

direitos difusos e interesses coletivos. Ele advoga em prol dos hipossuficientes,

categoria nativa empregada pelos Procuradores, que correspondem aos sujeitos

vulneráveis, que não têm a capacidade de ter sua autonomia reconhecida, tendo

necessidade de um tutor, ou como intermediário dos interesses individuais36. São

portadores da capacidade de falar para e falar sobre, e não somente em decorrência de

uma divisão social e de atribuição funcional, mas porque são portadores de uma

substância moral digna que os distingue37. Cumprindo seu papel constitucional, o MPF,

através da Procuradoria da República do Rio de Janeiro, da Seção de Direitos Difusos,

solicitou providências à FCP em relação ao conflito envolvendo as famílias de

descendentes de escravos e pescadores da Marambaia e a Marinha de Guerra do

Brasil. A resposta da FCP é de que havia duzentas solicitações de reconhecimento de

comunidades quilombolas em todo território nacional. Nesse caso, a política da

instituição era a de privilegiar as áreas com “conflitos mais agudos”.

Ora, as vozes dissidentes do Ministério Público Federal começavam a se

apresentar na arena pública em oposição aos argumentos cunhados pelo outro

Procurador Regional da República da 2.ª Região, responsável pela elaboração do

parecer do caso de Dona Sebastiana, que também envia um ofício à Fundação Cultural

Palmares, “urgente e confidencial”, solicitando a impugnação do relatório elaborado

pelos técnicos da Fundação, pois revela, segundo ele, “parcialidade, faccionalismo,

intenção clara de favorecer esbulhadores do Domínio Público, desvirtuando a verdade 36 O MPF é uma instituição permanente, essencial à função juridicional do Estado. Seu papel é de defender a ordem juridica do regime democrático e os interesses sociais e individuais. Os principios institucionais do MPF são: intervir no caso de crimes; sustentar a acusão pública do crime, etc. O MPF pode ainda propor ações em nome da sociedade, quando estão em jogo os interesses e os direitos difusos. O MPF age na função de tutela de “curadoria-geral” da sociedade e dos hipossufientes e da défesa dos direitos da criança e do jovem (Mouzinho, 2007). 37 É comum no espaço público brasileiro a distinção hierárquica entre aqueles que detêm maior legitimidade para produzir a verdade. Por exemplo, é o caso dos funcionários públicos que são portadores da denominada “fé pública” (Mouzinho, 2007).

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histórica e violação a princípios legais”. De acordo com o Procurador sem “nenhuma

apuração dos fatos, muito menos do contraditório, ou ida ao local, a Assessoria Jurídica

da Fundação encampou entusiasticamente a iniciativa e proporcionou o Procedimento”.

Suas justificativas se assentavam em diferentes planos. Primeiro, no da

“desvirtuação histórica”, pois para o Procurador tal dispositivo só poderia ser argüido se

comprovada a existência de quilombo, e que estes descendessem diretamente de

antigo quilombo, “vedando-se qualquer outra interpretação extensiva, não abrigada pela

lei”. Justifica em seu ofício: “não pode o Ministério Público deixar passar impune essa

verdadeira falsificação da história em que o ‘jus sperneandi’ é levado ao paroxismo de

alegar, até, a existência de um quilombo junto ao alcance da voz de um dos maiores

mercados de escravos da Província Fluminense, numa ILHA”.

No entendimento do Procurador, quilombo é sinônimo de escravos fugidos e

para tanto tal definição, segundo sua compreensão dos fatos históricos e sociológicos,

é que deveria informar a aplicação do dispositivo constitucional. Na Marambaia “em

suas matas seria presa fácil ao senhor de escravos em um local cercado de águas por

todos os lados”, analisava o Procurador em seu parecer. Ele buscava enfatizar que a

Ilha era destinada primordialmente para receber os escravos advindos da África para se

restabelecerem. De acordo com seu ponto de vista, em 1850, com a Lei Eusébio de

Queiroz, que enquadrava os traficantes sob a férula das Auditorias da Marinha Imperial,

a Marambaia transformou-se em hospital de escravos, buscando argumentar que não

poderiam estes “escravos serem fugitivos dos grilhões da fazenda dos Breves”.

Tomando emprestada a definição do dicionário Larousse, segundo a qual o

quilombo seria “casa ou lugar no mato onde se refugiavam os escravos fugidos”, o

Procurador busca legitimar suas argumentações. Para ele, o quilombo poderia ser

definido segundo a perspectiva do folclorista Edison Carneiro, como:

o recurso mais utilizado pelos negros escravos no Brasil, para escapar as agruras do cativeiro, foi sem dúvida o da fuga para o mato, de que resultaram os quilombos... O movimento de fuga era, em si mesmo, uma negação da sociedade oficial... O quilombo, por sua vez, era uma reafirmação da cultura e do estilo africano... Os quilombos foram – para usar a expressão agora corrente em Etnologia – um fenômeno contra – aculturativo de rebeldia contra

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os padrões de vida impostos pela sociedade oficial e da restauração dos valores antigos.

Portanto, para o Procurador a tese da existência de quilombo na Marambaia “se

constitui em um atentado grosseiro à História da Pátria... com o objetivo de tentar

legitimar invasores do patrimônio nacional sob a capa de remanescentes de quilombos

ou nativos, acarretando um favelamento certo da Marambaia”.

Outro plano argumentativo era o da favelização. No entendimento do Procurador,

a possível favelização da Ilha implicaria na degradação do meio ambiente, idílico e

intocável, pois as ocupações humanas correspondem a um risco à preservação

ambiental. A categoria favela surge como um dispositivo que representa o local como

sendo de moradas simples, desagregadas, transitórias, precárias, sem saneamento, ou

serviços básicos e, portanto, necessariamente danosas ao meio ambiente. Como

veremos no próximo capítulo, este dispositivo também foi acionado no caso da

comunidade tradicional do Morro das Andorinhas, na intervenção do Ministério Público

Estadual.

Enfim, outro plano de argumentação era o da Defesa Nacional. Sendo a área de

uso militar, as ocupações civis prejudicariam, segundo o ponto de vista do Procurador,

as atividades militares na região. Para ele, portanto, o procedimento administrativo

visava “apoiar os invasores e viabilizar sua permanência no esbulho, favelizando a área

do Bem Público, prejudicando as atividades da Defesa Nacional e danificando o Meio

Ambiente pelo aumento populacional”. Em sua conclusão lembra que “se o Parquet

Federal conseguiu, após luta tenaz, o cancelamento de registros espúrios sobre terras

públicas nacionais na Marambaia, não o fez para assistir impassível ao favelamento

dessas glebas, sob quaisquer pretextos, numa singular privatização russa... Existe um

desvio de finalidade do ato administrativo, pois se busca uma maneira oblíqua de deter

o cumprimento da Lei, tal seja a afetação primordial dos Bens Públicos para uso dos

Entes Públicos, e impedir os remédios processuais em andamento... A tentativa de

impingir a existência desse quilombo fictício fere a moralidade pública, pois foge à

verdade dos fatos e à lealdade que deve haver entre os órgãos da Administração

federal entre si”. Por fim solicita o arquivamento do processo que tramita na FCP em

um prazo de dez dias.

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Na busca de uma definição do quilombo da Marambaia, eram apresentadas as

justificativas e “teses” do Procurador da Seção de Direitos Difusos do Rio de Janeiro na

Ação Civil Pública assinada por dois Procuradores da Seção de Direitos Difusos do Rio

de Janeiro. Com o propósito de garantir os direitos da comunidade “hipossuficiente” da

Marambaia a Ação, foi subsidiada por relatório confeccionado por uma Organização

Não Governamental responsável por “levantar quilombos”. Ambos os atores tinham a

finalidade de defender os direitos da comunidade quilombola baseando-se no

dispositivo legal, o artigo 68 do ADCT da Constituição Federal.

As justificativas da Ação se assentavam no argumento que as ações judiciais

impetradas pela Marinha de Guerra, através da AGU, bem como a demora por parte

das instituições estatais em realizarem o reconhecimento, a demarcação e a titulação

da área dos quilombos, vinham pondo em risco a reprodução social, econômica e

cultural da comunidade da Marambaia. Situação que pode ser concebida, de acordo

com os Procuradores, como um ”quadro hoje caracterizado (que) tangencia o genocídio

cultural”. Os Procuradores ressaltam que as Ações Reintegratórias consistiam em

ações coletivas contra a população da Marambaia:

a estratégia utilizada foi de fragmentação do litígio, apesar de sua irrecusável dimensão coletiva: ao invés de uma ação visando a retirada de todos os moradores da comunidade étnica, são ajuizadas demandas individuais contra alguns deles, já que é mais fácil enfrentar isoladamente cada família hipossuficiente do que entrar em confronto com aquela coletividade.

Apontam a ambigüidade presente na conduta do Estado com relação à

comunidade da Marambaia. Afirmam os Procuradores: “a conduta do estado brasileiro

em relação à comunidade em questão beira a esquizofrenia. Enquanto a FCP,

integrante do Governo federal, estuda a identificação do grupo étnico como

remanescente de quilombo, visando a garantia de seu direito de propriedade sobre a

terra ocupada, bem como a proteção de sua cultura, a União federal, através da

Marinha e da AGU, trata de dizimar a mesma comunidade”. Nesse contexto, a Ação

Civil Pública demandava que a FCP, num prazo razoável, procedesse o processo

administrativo “tendente à eventual identificação da comunidade como remanescente

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de quilombos” e, eventualmente, “proceder à demarcação e titulação da área”. Segundo

os Procuradores “o exercício do Autor é portanto singelo: evitar um fato consumado de

proporções dramáticas. Com efeito, mantido o atual status quo, quando a FCP, no

exercício de suas funções institucionais, reconhecer que a coletividade em questão

constitui comunidade remanescente de quilombo, poderá não haver mais nenhuma

comunidade a ser protegida!”. Além dessa demanda, os Procuradores solicitam na

Ação que a União Federal e a FCP tomassem medidas que finalizassem as ações de

reintegração contra os moradores, a não destruição ou danificação das construções, a

permissão do retorno dos moradores que foram já retirados e tolerar que os moradores

mantenham seu estilo tradicional de vida.

As justificativas dos Procuradores da Seção de Direitos Difusos se distinguiam

substantivamente das argumentações do Procurador da 2.ª Região. No caso deles, os

moradores da Marambaia constituem uma “comunidade negra rural” em que os grupos

estão ligados por laços de parentesco que descendem direta ou indiretamente de

escravos. Buscando se sustentar nos argumentos do Relatório Técnico confeccionado

pela OnG, lançam mão do conceito de etnia para definir a “comunidade negra rural da

Marambaia”. Reportam-se à conceituação de remanescente de quilombo postulada

pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) para definir o quilombo em um

“contexto teórico mais amplo”. Segundo os Procuradores, citando o documento da ABA

“os quilombos são pensados como grupos étnicos, como um tipo organizacional que

confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou

exclusão”. Argumentam que a definição de quilombo sofreu uma ampliação abarcando

diversas comunidades negras de descendentes de escravos.

Ainda, lançam mão de outros dispositivos teóricos para sustentar suas

justificativas. Para os Procuradores, a categoria terra de preto - cunhada pelo

antropólogo Alfredo W Berno de Almeida num trabalho já mencionado no capítulo

anterior e utilizada como categoria nativa por grupos descendentes de escravos em

espeicial no Maranhão – seria perfeitamente adequada à situação da Marambaia. De

acordo com os mesmos:

é possível afirmar que as características objetivas do grupo e das terras ocupadas enquadram-se com perfeita coerência não só no

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modelo sociológico das terras de uso comum e das terras de preto, que têm sustentado a interpretação dominante da expressão constitucional ‘remanescente de quilombo’, como também no padrão das comunidades oficialmente reconhecidas com este título pela FCP no próprio estado do RJ.

Neste contexto, é reforçado o discurso cientifico com o suporte das definições

das agências estatais ligadas à temática de quilombos.

Vale lembrar que, desde 1992, por iniciativa das organizações da sociedade civil, do campo acadêmico, do Ministério Público Federal, e da própria União, se estabeleceu o consenso largamente documentado de que o termo ‘remanescente de quilombo’ consiste em uma categoria jurídica nova que não encontra perfeita correspondência na categoria histórica dos quilombos conforme definido pela parca historiografia sobre o tema...

E é com tal definição, como lembram os Procuradores, que o Governo Federal,

através da FCP, vem trabalhando. Por outro lado, “é indiscutível que a titulação das

comunidades remanescentes de quilombos pode recair sobre áreas pertencentes à

União...”

No entanto, a polêmica não se encerra neste embate jurídico-político. Toma as

páginas dos jornais e da mídia televisiva. No noticiário televisivo a matéria foi veiculada

no Jornal Nacional, jornal da Rede Globo de maior audiência nacional, que tratava da

Ação Civil Pública impetrada pelo Ministério Público. Nos jornais, a matéria ganha

destaque em diferentes empresas jornalísticas. No jornal O Globo, por exemplo, foi

publicada uma extensa notícia na primeira página do Jornal de domingo, obtendo

repercussão nacional e internacional, a respeito do caso da Maramabaia. As matérias

buscam chamar a atenção do leitor para uma reflexão a respeito da situação dos ilhéus,

sobre o modo de vida, a ancestral história do grupo.

Outros atores se apresentam na arena pública. O coordenador do departamento

de Botânica, do Instituto de Biologia da UFRRJ expressa, em carta enviada ao Globo,

sua opinião sobre o conflito. Sua argumentação enfatiza a ambígua relação entre área

de interesse social e de preservação ambiental. No seu ponto de vista, o homem é

visto, necessariamente, como potencial degradador do meio natural. Para tanto, a

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condição elementar para a preservação dos recursos é isolá-los dos homens

(restringindo seu uso apenas para pesquisa). Conclui, enfatizando que “a Marambaia

não é um paraíso ao qual somente militares e o presidente da República têm acesso.

Há oito anos o Departamento de Botânica da UFRRJ desenvolve pesquisas com apoio

das Forças Armadas gerando conhecimento que poderá ser utilizado na busca de

soluções para um convívio harmonioso entre o homem e a natureza”.

A Marinha de Guerra se pronuncia sobre o tema, através do serviço de Relações

Públicas da Marinha, destinado a informar “corretamente aos cidadãos brasileiros a

respeito de ocupações irregulares de terreno da União da Ilha da Marambaia que vêm

sendo, ultimamente, abordado na mídia”. No documento é informado que a origem da

questão está relacionada ao fato de que “algumas das 89 famílias habitantes da Ilha da

Marambaia, estarem infringindo os termos de autorização de uso, que haviam firmado

com a Marinha do Brasil”. Sendo assim, a Marinha se viu obrigada a ingressar em juízo

visando reintegração de posse “de modo a defender os legítimos interesses da União”.

No documento é feita menção ao parecer emitido pela FCP a respeito da existência de

uma comunidade remanescente de quilombos na Marambaia. Como suporte para

deslegitimar tal parecer, faz-se uso das argumentações do Procurador acima citado,

que ”após analisar o documento recomendou o arquivamento do processo pertinente,

visto constituir-se em tentativa de favorecer esbulhadores, favelizando áreas de bem

público, prejudicando atividades de Defesa Nacional e danificando o meio ambiente”.

Alegam no documento que, a FCP, arbitrariamente, enquadrou a comunidade da

Ilha da Marambaia de modo indevido, levando-se em consideração que a classificação

utilizada pela instituição para qualificar a existência de remanescentes de quilombos é

generalizada em demasia. Diz o documento: “O ponto conflitante encontra-se em definir

apropriadamente, e com correção o que seja remanescente de quilombos.“ No

entendimento da Marinha “a conceituação pautada na historiografia, isto é: ‘casa ou

lugar no mato onde se refugiam os escravos fugidos’ parece ser a definição

apropriada”. Continua o documento a afirmar que “caracterizações antropológicas ou

sociológicas não detêm o consenso, não sendo, portanto, uma definição legal”. Como é

enfatizado no documento:

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o fato é que em nenhum momento existiram quilombos na Marambaia, uma vez que a Ilha pertencia ao Comendador Joaquim de Sousa Breves(...) Importante destacar que a conformação da Ilha, em função de sua reduzida dimensão e pela presença de elevações de pequeno porte, constitui ainda hoje, um verdadeiro ‘beco sem saída’

Sendo assim, para a Marinha, as alegações do Ministério Público Federal (a de

que a Marinha vem expulsando os moradores da ilha) são infundadas, levando em

consideração a sua defesa da natureza e dos recursos naturais da Ilha. “A Marinha

Brasileira tem adotado medidas que visam a impedir a derrubada aleatória da

vegetação que cause danos ao meio ambiente, bem como a construção de novas

residências ou a ampliação das mesmas, mantendo o acordo nos termos de

autorização de uso, a fim de resguardar o patrimônio público”. Reconhece, em parte, as

argumentações do MPF, ou seja, de que vem impossibilitando a reprodução do grupo

local, mas com uma justificativa de “preservar a natureza” da ação supostamente

predatória. Lembra que o Governo do estado criou a Área de Proteção Ambiental (APA)

de Mangaratiba, incluindo áreas da Ilha da Marambaia acima da cota de 100 m. O

discurso ambiental, preservacionista, toma cena para subsidiar as ações da Marinha.

Para tanto endossa o documento: “em uma ação conjunta, a Marinha e o departamento

de Botânica da UFRrural/RJ desenvolvem diversas pesquisas para a obtenção de

conhecimento a ser utilizado na busca de soluções para um convívio harmonioso entre

o homem e a natureza”.

Desse modo, a Marinha e o Instituto de pesquisa da UFRRJ recorrem a uma

fórmula habitual: expulsar todos habitantes, permanecendo apenas os marinheiros e os

pesquisadores. Deve-se notar que, inclusive, é a solução recorrentemente adotada por

agentes estatais ou não estatais em áreas de conflitos. Como, recorrentemente, os

grupos que habitam as áreas de conflito ambiental possuem pouco poder de

mobilização frente aos seus oponentes, sucumbem diante da pressão na disputa pelo

domínio de seu território para fins de especulação imobiliária, de pesquisa, ou mesmo,

como é o caso da Marambaia, para fins militares. O discurso ambiental torna-se um

elemento que vem impor certas restrições a formas tradicionais de apropriação, de uso

e de manejo de recursos naturais.

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Outros atores enunciam e anunciam suas posições, como a Assembléia

Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) que se manifesta, através do então

Deputado Carlos Minc, membro, à época, da Comissão de Meio Ambiente, que

assegura, em entrevista ao jornal O Globo, a intervenção da ALERJ na situação. Nessa

circunstância, a Comissão de Meio Ambiente da ALERJ encaminhou um oficio ao 1.ª

Distrito Naval e ao comando do CADIM, alertando para a existência de duas leis

estaduais que asseguram o direito à terra aos moradores da Marambaia. Diz a matéria:

a Lei 2393/95, ‘assegura às populações residentes e pescadores em unidades de

conservação, há mais de 50 anos, o direito real de uso das áreas ocupadas e a lei

3192/99 que estabelece que o poder executivo fica autorizado “a reconhecer o direito

real de uso sobre a propriedade aos pescadores artesanais que estejam ocupando

suas terras, bem como a emitir-lhes os títulos e assumir, junto aos órgãos federais

competentes, a regularização da ocupação, sem ônus para os pescadores”.

Outro ator importante nessa controvérsia foi a Advocacia-Geral da União (AGU),

apresentando-se na contestação das argumentações da Ação Civil Pública ajuizada

pelo MPF, alegando ser a mesma ”totalmente incabível”. Suas justificativas operam na

mesma linha do Procurador da 2.ª Região, sustentando as argumentações, utilizadas

em seu parecer, afirmando que “ocorre que o próprio Ministério Publico Federal, pouco

tempo antes do ajuizamento da presente ação, recomendou à Fundação Cultural

Palmares que arquivasse o aludido processo administrativo, tendo em vista que não se

trata de remanescentes de quilombos”. Recorrendo, também às justificativas

ecológicas, a AGU aduz:

As razões expostas no Oficio do Procurador Regional da República, às quais a União se reporta, deixam claro que a Ilha da Marambaia não abriga comunidade remanescente de quilombo e que corre o risco de invasões de populares, culminando no ‘favelamento’ da Ilha, bem público afetado à defesa Nacional, e com danos ao Meio Ambiente”. A regularidade das desocupações estão respaldadas em decisões judiciais e tem o caráter de assegurar a preservação da Ilha e as atividades militares, de interesse nacional.

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Ainda, entre a AGU e os “MPF’s” há a Justiça Federal. A juíza federal, que

aprecia as duas argumentações, emite decisão liminar deferindo em parte as demandas

da Ação Civil Pública. Julga procedente o pedido do MPF dos Direitos Difusos de

requerer da União Federal o fim de ações que visem a desocupação das casas

ocupadas pelas famílias, da mesma não destruir ou danificar nenhuma das construções

habitadas pelos moradores e da tolerância da União em relação ao estilo de vida

tradicional de vida da comunidade. Quanto à solicitação do MPF, de permitir o retorno

dos moradores que foram expulsos pela Marinha, a juíza julga precipitada a decisão

“diferindo sua melhor apreciação para logo após manifestação da FCP”. Para a juíza a

questão trazida à apreciação (se a comunidade da Marambaia consiste ou não em uma

comunidade remanescente de quilombo) é “assaz controvertida”, tendo em vista que

não há prova alguma contrária que o referido grupo não constitua uma comunidade

quilombola. Ou seja, não foi respeitado o princípio do contraditório.

Neste cenário de controvérsias, pareceres, decisões judiciais, matérias

jornalísticas, os então coadjuvantes desse conflito começam a “tomar posse de sua

história”, reivindicando o reconhecimento de seus direitos territoriais. Numa relação de

poder de assimetria entre a população local e a Marinha de Guerra do Brasil, a

“quilombolice” se torna um importante mecanismo de reivindicação e de visibilidade das

demandas por direitos da comunidade da Marambaia, diante da oposição da Marinha

de Guerra do Brasil. Vale frisar que Forças Armadas no Brasil ocupam, seja do ponto

de vista político, seja simbólico, um lugar de destaque no espaço público brasileiro. Em

diferentes momentos da história do Brasil as Forças Armadas foram atores centrais na

vida política, sendo que, até recentemente, eram elas as principais forças políticas na

época da Ditadura Militar. Do ponto de vista simbólico e moral elas detêm uma

legitimidade na constituição da coisa pública38. Como descrito acima, incide sobre os

pescadores e descendentes de escravos um lugar desigual e subalterno no espaço

público. São os mesmos detentores de uma “hipossuficiência”, cujas demandas são

38 Importante frisar que há alguns anos foi criado no Brasil o Ministério da Defesa com o intuito de centralizar política e administrativamente o Exército, a Aeronáutica e a Marinha. Embora tenha sido criado o Ministério, cada uma destas instituições manteve seu próprio Ministério, fato que demonstra o lugar de destaque destas instituições neste espaço público. Ou seja, assim como o Poder Judiciário, as Forças Armadas no Brasil, relutam em se tornar um serviço público, pois se representam como poderes autônomos com relação a outras instituições do Estado.

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passíveis de serem questionadas ou se tornam invisíveis, pois é atribuído a eles o

acesso restrito à res publica. Não é por menos que neste contexto a população local

deteve um papel subalterno, de coadjuvante, na medida em que as disputas estavam

num plano administrativo e jurídico. Suas vozes eram ouvidas através dos

intermediários que se tornaram, legitimamente ou não, porta-vozes das demandas do

grupo. Diante dos altos custos nesta disputa assimétrica, os “empreendedores étnicos”

e os mediadores adquirem seus espaços no tratamento tutelar dos interesses dos

“hipossuficientes”.

Porém, estes custos são relativamente amenizados, do ponto de vista local, na

medida em que a controvérsia adquire visibilidade pública com as matérias veiculadas

na grande mídia, o que chamou a atenção de novos grupos de interesses na arena

pública, como políticos, ONGs, movimentos negros, etc. O caso da Marambaia ganha

notoriedade nacional, ocorrendo manifestações em prol dos direitos dos moradores da

Marambaia nas tribunas do Congresso Nacional, com cartas de apoio de

personalidades públicas do movimento negro, como Abdias do Nascimento, através de

manifestos de apoio de entidades do movimento social como a OnG FASE e Justiça

Global, e com inúmeras matérias publicadas em revistas e jornais de grande circulação

no Brasil. Posteriormente, há a constituição de um movimento de apoio aos moradores

da ilha, denominado Marambaia Livre, reunindo diferentes entidades civis, a

mobilização de entidades do movimento social como a CNBB e a CONAQ

(Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas)

em defesa dos direitos tradicionais dos quilombos da Marambaia. Durante todo esse

período são inúmeras as audiências com Ministros da Defesa, da Igualdade Racial do

Desenvolvimento Agrário e a população local.

Do mesmo modo, a tutela estabelecida pelo MPF sob o grupo a partir da Ação

Civil Pública impetrada pelos Procuradores, foi outro fator importante no processo de

visibilidade da organização coletiva local. Num cenário de incerteza, de assimetria de

poder, de um sentimento de impotência diante da Marinha e, mesmo medo de sofrer

sanções ou retaliações, a chegada do MPF permite aos atores locais se organizarem

na busca pelo reconhecimento de seus direitos. Nesse sentido, a história do grupo

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vinculada à escravidão, principalmente, bem como à escola de pesca, tornou-se objeto

importante para destinar visibilidade às demandas de reconhecimento.

Um evento paradigmático, do ponto de vista local, foi a visita de um dos

Procuradores à Ilha da Marambaia. A sua ida à Marambaia representou um importante

passo para a mobilização coletiva através da constituição de uma Associação de

moradores. Sua ida foi significativa seja do ponto de vista simbólico, tendo em vista que

“agora possuíam a legitimidade de uma autoridade”, como certa vez dissera uma

moradora, bem como do ponto de vista legal, pois a Ação Civil Pública obteve efeitos

legais como a momentânea paralisação das ações de reintegração de posse e uma

maior agilidade no processo de reconhecimento do grupo como “remanescente de

quilombos” de acordo com o dispositivo constitucional.

O Procurador foi até a Ilha com o propósito de expor os pontos da Ação,

conhecer a realidade local, esclarecer os pontos deferidos pela juíza e informar que, em

virtude da Ação, a Fundação Palmares havia iniciado o processo de reconhecimento da

comunidade e que, consequentemente, seria necessário a elaboração de uma laudo

antropológico a ser produzido pela OnG que tinha confeccionado o relatório que

subsidiou a Ação do MPF. Na ocasião, os moradores expuseram o desejo de constituir

uma associação, já que em diversas outras oportunidades esta reivindicação tinha sido

inviabilizada seja pela falta de apoio por parte da Marinha, seja pela inexistência de

apoio de outros organismos governamentais ou do movimento social.

Com a anuência e estímulo do Procurador, os moradores se organizaram em

pequenas comissões de modo a mobilizar o maior número de pessoas em torno da

emergente associação. Ainda que o entusiasmo tivesse, num primeiro momento,

tomado os moradores, as desistências foram inúmeras antes das eleições. Sobretudo

uma parcela significativa dos moradores evangélicos (seja da Assembléia de Deus ou

da Igreja Batista) que, desestimulados a participar em virtude dos “conselhos

superiores”, como certa vez disseram, abriram mão da construção da associação.

Embora tenha sido grande o número de desistentes e baixa a adesão, num

primeiro momento, alguns moradores mantiveram o desejo inicial de criar uma

Associação. Reunidos na denominada Praia Suja com o objetivo de realizar a primeira

assembléia, escolheram o nome da Associação da Comunidade dos Remanescentes

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de Quilombos da Ilha de Marambaia (Arqimar). A Associação surge como um novo

espaço de mobilização dos interesses do grupo diante das ações judiciais e das

medidas tomadas pelo Comando do Cadim, que contribuíram para a exasperação da

população nativa. Enfim, como expresso na fala do primeiro Presidente da Arqimar,

“nossos anseios são mais claros. Nossa comunidade quer deixar a condição de

ignorante para que não seja ignorada”. Como salienta Cefaï, esse florescimento de

discursos de qualificação dos prejuízos e de formulação das reivindicações articula uma

arena pública. A arena pública não pré-existe tal qual a construção do problema

público. Ela se constitui transversalmente a diferentes campos de instituições, se

constrói sob diversas cenas públicas, revela múltiplas ‘esferas de ação pública’, onde

os atores especializados utilizam estratégias, recorrem aos saber-dizer e aos saber-

fazer, aplicam as regras e regulamentações, gozam de competências e prerrogativas,

movem-se nos registros dos discursos e ações distintas. (Cefaï, 1996: 15).

Cartaz da posse da Associação (foto tirada por Fabio Reis Mota)

No caso do Brasil, cujas relações estão fortemente marcadas por um viés

hierárquico, desigual e tutelar, uma associação na arena pública cumpre um papel

fundamental: a de destinar visibilidade às reivindicações dos atores invisíveis aos olhos

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do Estado. Ela não consiste num espaço voluntário, de ação coletiva em busca do bem

comum, mas tem um caráter compulsório (Kant de Lima, Mota e Pires, 2004; Lobão,

2006) que determina o reconhecimento dos direitos do grupo39. Ela é portadora de uma

legitimidade pública, em si. Através dela, foi possível que os atores locais fizessem uso

de diferentes estratégias para a mobilização do grupo e de suas reivindicações, dando

destaque à ancestralidade escrava e à tradicionalidade da pesca, como mecanismos de

visibilidade pública positiva para as demandas de direitos. Estes dispositivos foram

importantes para a ampliação da rede na qual se inserem Ong’s, partidos políticos,

movimentos sociais ambientalistas e o movimento negro. Ser tradicional e quilombola

constituem duas formas manifestas de pertencimentos legítimos face ao público, em

detrimento da impessoalidade imposta pelo simples reconhecimento como “cidadão”.

Todavia, ela não implicou necessariamente a autonomia do grupo, pois, ao contrário,

exigiu deles compromissos e alianças com “empreendedores étnicos” (Barth, 2005), via

ONGs, movimentos sociais, etc., que não correspondem, necessariamente, seus a

anseios ou modos de vida.

Por outro lado, “a associação trouxe vida nova à Marambaia. Pessoas que antes

se calavam diante das injustiças contra a comunidade, passaram a participar e falar”,

como nos relatou um morador, diretor da Arqimar. Para além da ação coletiva, as

mudanças locais incidiram nas relações pessoais, interferindo nas interações rotineiras

e de vizinhança. Como descrevíamos acima, não foram somente as vestimentas

externas que ganharam novas cores e contornos, mas também as condições de

expressões corporais e de sentimentos dos atores, onde novas corporeidades se

manifestam nesse “rito de passagem” e afirmação de vínculos, pertencimentos. Muitos

daqueles moradores que outrora se apresentavam no espaço público com gestos

tímidos e acanhados, do início de nossa pesquisa em 1999, passaram a se notabilizar

como lideranças e porta-vozes da comunidade em reuniões, encontros nacionais e

seminários.

A categoria quilombola, mais do que um atributo jurídico, passou a pertencer ao

vocabulário de muitos em saudações (“saudações quilombolas”), nas formas de

39 No caso das comunidades remanescentes de quilombos a criação de uma associação é condição basilar para a aquisição do título, pois de acordo com o Decreto 4887 a titulação é necessariamente coletiva, pró-indiviso e com cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade.

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denominação individual ou coletiva (“eu quilombola”, “nós quilombolas da Marambaia

estamos aqui para expressar...”, “nossa história quilombola”). Sua inserção no

vocabulário local não corresponde a um uso utilitarista, mas se inscreve num quadro

experencial (Pinto, 2005) traduzido por essa nova linguagem discursiva e corporal. A

auto-imagem da comunidade adquire feições que valorizam essa vinculação com a

“quilombolice do passado e do presente”, manifesta, por exemplo, nas comemorações

no dia 20 de novembro quando os moradores festejam Zumbi nas ruínas das senzalas,

na Praia da Armação, com comidas típicas, com jongo e outras manifestações culturais

próprias da tradição “afro-brasileira”. Festividade que vem sendo realizada após a

inserção dos diferentes atores externos.

As histórias, contos e fábulas contadas pelos “mais antigos” adquirem

notabilidade, acentuando seu caráter político-organizativo. As histórias “de

antigamente” se tornaram manifestações políticas de direitos negados. Toda essa

conjuntura veio abrir espaço para um processo de re-significação do pertencimento ao

grupo da Marambaia, da sua luta e dos caminhos trilhados ao longo destes dez anos da

disputa pelo direito de permanecer nas terras aonde foi “enterrada a velha Camila, ex-

escrava, falecida aos 120 anos”, figura mítica que aparece frequentemente nas

narrativas dos mais antigos da Ilha.. Os efeitos do processo de mobilização se tornaram

evidentes, como na manifestação da comunidade num evento promovido pelo grupo de

pesquisadores da UFRRJ no auditório da Universidade.

O evento tinha como propósito reunir pesquisadores que participavam do

Convênio que englobava distintas instituições de pesquisa do Rio. Convênio este

assinado com a Marinha. Os trabalhos, que em sua maioria estavam relacionados as

questões ecológicas, estudos sobre fauna, biota, etc., tinham subsidiado a proposta de

uma Unidade de Conservação na Ilha, assim como exposto e discutido no Seminário

Científico do ano interior. Naquela ocasião, eu estava presente com mais três ex-

moradores da Marambaia, e questionamos a inexistência de diálogo da proposta com

outros atores importantes e interessados: a comunidade de pescadores e quilombolas

da Marambaia. Fato que criou muito constrangimento, pois ninguém sabia responder o

motivo desta exclusão. No Seminário Científico seguinte, no lugar dos três ex-

moradores da Ilha, havia dezenas de mulheres, homens e mesmo algumas crianças

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com faixas com dizeres “nós quilombolas da Marambaia existimos”. Manifestavam o

anseio de pronunciar e explicitar suas vozes naquele espaço científico, cujo teor era

fortemente político, em virtude das proposições dos colegas cientistas, em benefício da

Marinha, que atingiam diretamente os direitos constitucionais da população civil local.

Além das faixas, muitos pediram a palavra, manifestaram suas inquietudes e

desacordos para “desespero” do organizador do evento, que teve que finalizar as

atividades do Simpósio antes mesmo da programação prevista.

Mesmo que este processo de mobilização tenha dado uma visibilidade nacional

ao caso da Marambaia, a situação no âmbito da esfera pública não era

necessariamente favorável. Dois eventos foram “suspiros de esperança”, como nos

disse um morador, que logo se tornaram em “ares de angústia”. O primeiro foi a

publicação do Relatório Técnico de Delimitação e Identificação (RTDI), na Portaria do

INCRA reconhecendo e delimitando as terras dos remanescentes de quilombos da Ilha

da Marambaia (uma área com cerca de 1,5 mil ha). Fato que promoveu algumas

manifestações contrárias na mídia, com o argumento de que era “muita área e

prejudicaria as manobras militares”. Depois a Marinha de Guerra interveio junto a Casa

Civil com o objetivo de anular a ação administrativa. No dia seguinte a

Superintendência do INCRA do RJ, por ordem da Ministra Chefe da Casa Civil, emite

nova portaria anulando a anterior. Os “suspiros de esperança” se tornam palavras e

manifestações indignadas, levando a Arqimar a impetrar um Mandado de Segurança

contra o Governo Federal de modo a fazer valer a publicação anterior. De acordo com o

Procurador do MPF - um dos autores da Ação Civil Pública, que manifesta sua opinião

em entrevista ao jornal O GLOBO - o ato é “uma violação absoluta do estado de direito,

um atropelo às leis em vigor”. De acordo com a mesma matéria, as negociações

políticas conduzidas pela Casa Civil e envolvendo o Ministério do Desenvolvimento

Agrário, a Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (Seppir), a

Fundação Cultural Palmares (FCP), o Incra e o Ministério da Defesa adiaram a

publicação, sendo que “a Ministra-Chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, informou, por

intermédio de sua assessoria de imprensa, que a portaria foi suspensa porque ainda

não há “um consenso no governo sobre a questão”, como noticiado no jornal O Globo à

época.

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Os militares alegaram que a área reivindicada é de suma importância para o

adestramento dos fuzileiros - e não existe outra área para isso no Rio. Também temem

que, “por falta de controle, ocorra uma rápida favelização daquele paraíso, com a

conseqüente destruição ambiental”. Alegam ainda a questão da segurança nacional: “a

ilha fica num ponto estratégico, a poucos quilômetros do Rio, próxima às centrais

nucleares de Angra, a usinas siderúrgicas e a portos de minérios.” Diante desse

quadro, a Arqimar e entidades da sociedade civil pertencentes ao Movimento

Marambaia Livre foram à Brasília “fazer pressão” para obter uma resposta do Governo

Federal. Todavia, nada de concreto lhes foi exposto.

Mapa com a demarcação das áreas (em laranja) reivindicadas pela comunidade. (foto tirada por Fabio Reis Mota)

No ano seguinte, a Ação Civil Pública foi julgada procedente na Vara Federal de

Angra dos Reis, permitindo a reforma das casas, sem autorização do CADIM, e o

retorno dos moradores expulsos via ação judicial. Na tribuna da Câmara Federal, o

Deputado Carlos Santana, manifesta seu apoio aos moradores da Marambaia

esperando que “esta primeira vitória estimule os moradores da Marambaia e de outras

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comunidades que passam pelo mesmo problema a continuar lutando pelo seus

direitos”, como noticiado pela mídia.

No site de um jornal ambientalista, denominado ECO, um jornalista enuncia

sua crítica intitulando a “vitória de Pirro, daquelas que vão para a história pelo muito

que se perde ao conquistá-las”, na alusão ao sobrenome do juiz que deferiu o pedido

do MPF. No mesmo, o jornalista argumenta que área tem sido preservada pelas Forças

Armadas deixando subtender que o reconhecimento do direito constitucional do grupo

implicaria na degradação ambiental do local. Num tom nacionalista, tenta chamar

atenção “dos brasileiros para um debate que há muito tem sido evitado”. Para ele a

questão da ilha da Marambaia abriga um outro problema: a re-significação do termo

quilombo no contexto nacional e no caso da Marambaia. Num tom habitual dos críticos

dos direitos constitucionais das “minorias étnicas” brasileiras, o jornalista considera um

equívoco semântico a mudança do significado do termo quilombo.

Na Marambaia a Marinha simplesmente desconsidera os efeitos da sentença e

abre um inquérito policial militar, através da Procuradoria da Justiça Militar, contra

alguns moradores que tinham realizado reformas em suas casas.

No Tribunal Regional Federal um Desembargador, no exercício da Presidência

do TRF, acatou pedido da Marinha, através de um Agravo de Instrumento da AGU, de

suspensão dos efeitos da decisão do juiz da primeira instância. Na ocasião a Arqimar,

através do MPF, entrou com um Agravo Regimental de modo a levar a decisão para

plenário, sendo que este, por três votos a zero, manteve a decisão com a

argumentação de que o efeito da sentença “imporia grave risco à ordem e à segurança

militar, colocando em perigo as atividades militares e o meio ambiente”. Ainda, no juízo

do Desembargador, o Decreto 4887 seria objeto de uma ADIN, descrita no capítulo

anterior, fato que cria uma “incerteza jurídica com relação à aplicação do dispositivo

constitucional nesta circunstância”, pois como a mesma não foi julgada pelo STF pode

ser declarada inconstitucional a qualquer momento. Ademais, para os

Desembargadores é assaz complexa a definição da comunidade como remanescente

de quilombos sendo, a mesma, objeto de discussão e de não consenso.

Controvérsia que foi alimentada pela elaboração do Relatório Antropológico,

confeccionado por pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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(UERJ), cujos membros fazem parte do referido Convênio entre a Marinha e a UFRRJ

para pesquisas biológicas e arqueológicas na Ilha. Um dos argumentos centrais do

Relatório, de acordo com uma das pesquisadoras, é que apenas 21 % da comunidade

se define como negra, 38 % se definem como morena, 19% como parda, 18 % como

branca e 4 % como mulata. Na conclusão da pesquisadora estes indícios científicos

contrariariam a tese de existência do quilombo da Marambaia. Argumentação que teria

grande monta no círculo de cientistas do século XVIII, como vimos no capítulo anterior!

Ora, para os moradores, um elemento central nesse cenário é o papel da

memória, enquanto evocação de um passado que visa legitimar a posição dos grupos

sociais no presente, voltada às perspectivas que esses grupos constroem sobre seu

futuro. Outro elemento é a associação entre as identidades sociais e os espaços que

habitam. Estes passam a ser passíveis de avaliações desiguais no campo da disputa

pelo direito de sua permanência, o que seria o oposto do movimento pelo direito ao

deslocamento.

Foi esse ato de doação que, embora de “boca”, permitiu que as famílias dos ex-

escravos e seus descendentes constituíssem um vínculo de pertencimento com o local,

através de uma origem comum (Weber, . Uma relação de pertencimento afetivo ao

lugar vivido, praticado e estimado (Mello e Vogel, 2004: 288 e Lobão, 2006: 29). E foi

esse vínculo afetivo que permitiu que a população local criasse nos anos 90 do século

XX mecanismos de resistência às investidas da Marinha de Guerra do Brasil para

deslocá-los de suas habitações através de ações de reintegração de posse ajuizadas

na Justiça Federal.

Parece-nos que, pelo que descrevemos, ainda que a comunidade da Marambaia

tenha tomado posse de sua história, tornando-a importante instrumento de vindicação

de seus direitos e de composição de novas formas de engajamentos nesta controversa

arena pública, a posse de suas terras está longe de ser reconhecida pelo Estado

Brasileiro. Mais ainda, parece-nos que a posse dessa história não implicou

necessariamente a constituição de sujeitos autônomos, cujos direitos civis básicos, a

princípio, lhes permitiriam a expressão de suas vozes públicas nesta arena. Ao

contrário, foi necessário que diversos outros atores ocupassem esse lugar de “porta-

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vozes” para que as antigas demandas de reconhecimento da população da Marambaia

adquirissem visibilidade.

Após as conclusões dos estudos técnicos, a Marinha vem contestando o território

almejado pela comunidade com a alegação de que é muita terra, implicando em

prejuízos às manobras militares na área. Diante da controvérsia, o INCRA do Rio de

Janeiro buscou intermediar esse impasse chamando a Arqimar para um diálogo com

vistas a solucionar o problema. Na reunião, a proposta era diminuir a área com a

cessão de uma parte da Praia da Armação e uma outra parte da Praia do Sino. Ainda,

num documento redigido por técnicos do órgão, era proposta, a definição de diversas

regras de uso dos recursos locais e do solo. Fato que desagradou os moradores que

não se sentiam contemplados pelas propostas.

Ainda que bastante “contrariados”, a população se colocou a disposição para o

diálogo. Solicitaram um conversa com antropólogos do NUFEP para maiores

esclarecimentos. Fomos à Marambaia para uma conversa com eles sobre o

documento. Apresentamos algumas possibilidades legais alternativas ao artigo 68 que

podiam ser acionados pelos moradores, caso achassem viável negociar com a Marinha.

Uns se mostravam impacientes com toda essa contenda e eram da opinião que deviam

ceder, afinal “somos peixinhos debatendo e brigando com o tubarão”. Embora os

moradores partilhassem desse ponto de vista, que de eram “peixes pequenos” na

disputa com “tubarão”, ressaltavam que eram agora “peixes pequenos com direitos”,

como manifestou um dos moradores na ocasião, e que tinham que “correr atrás de seus

direitos”. Outra moradora manifestou que “nós não podemos abrir mão de nossas

ancestrais terras, temos que fazer valer nossos direitos”. Para a maioria, portanto,

deveriam negociar, mas desde que fosse dentro da legalidade e que fosse uma

negociação justa. “Não queremos apenas um terreninho, assim como propôs o Ministro

da Seppir quando veio à Marambaia, o que nos deixou muito triste. Pois queremos

nossas terras pra plantar, pra poder crescer com nossas casas, pra viver de modo

digno”, enfatizou uma moradora. Na segunda reunião com pesquisadores do NUFEP na

Ilha, para a discussão dos mecanismos legais alternativos para a mesa de negociação,

a população estava coesa na busca de uma maneira que solucionasse o impasse de

modo justo.

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Em seguida, resolveram buscar o apoio mais uma vez do Procurador do MPF,

autor da Ação Civil Pública, para consultá-lo a respeito do documento do INCRA e das

possíveis vias legais para a negociação com a Marinha. O Procurador os recebeu num

auditório, escutou as ponderações dos membros da comunidade e fez algumas

ponderações. Ele concordava que determinados pontos do documento eram

constitucionalmente inviáveis e mesmo impertinentes, mas no que dizia respeito à

possibilidade de negociação da área isso ficaria a critério da comunidade. “Doutor com

essa angústia toda, a gente quer é poder viver em paz”. Frase enunciada por um dos

moradores que indicava esse caminho possível de negociação. “Mas o que vocês

querem negociar?”, ponderou o Procurador. “É possível negociar uma parte da

Armação e estabelecer regras de uso da Praia do Sino que é essencial para pescaria”,

ressaltou o outro morador. Outros já tinham opiniões diferentes, fato que levou o

Procurador a lançar a sugestão de uma conversa entre os próprios pescadores numa

sala para que pudessem esboçar uma pequena proposta, ainda que não definitiva.

Fomos com os pescadores para uma sala e lá debatemos, sem a presença do

Procurador, por alguns minutos sobre as possibilidades de negociação.

Algumas semanas depois esta proposta foi levada ao Ministro da Seppir por

representantes da comunidade, em reunião em que estavam presentes o Procurador e

o Superintendente do INCRA. Na ocasião a única coisa que ficou evidente é que esta

negociação deve se dar no “plano político” para ultrapassar os impasses existentes.

Será um longo caminho, no qual os moradores vão continuar com a posse de suas

memórias e histórias para fazer valer seus direitos insistentemente desconsiderados

pelo Estado Brasileiro. Embora, os moradores da Marambaia tenham tomado posse de

sua história, a aquisição da propriedade da mesma, diante das múltiplas vozes que

falam em nome deles ou contra eles, será, nos parece, um longo e tortuoso caminho a

trilhar pelos mares da política e da justiça.

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CAPÍTULO 3: QUANDO A CIDADE VIRA MEIO AMBIENTE : O PROCESSO

DE RECONHECIMENTO DOS DIREITOS TERRITORIAIS DA COMUNIDADE

TRADICIONAL DO MORRO DAS ANDORINHAS

Ecoute plus souvent les choses que les êtres. La voix du feu s’entend, Entends la voix de l’eau,

écoute dans le vent en sanglots. C’est le soufflé des ancêtres

Birago Diop

Existem determinados eventos, de naturezas distintas, que acometem indivíduos

ou coletividades e que são forças motrizes para as transformações estruturais ou

íntimas. Há eventos que mobilizam paixões, explicitam desejos, movem sentimentos e

produzem fatos sociais totais (Mauss, 1966). Como descrito no capítulo anterior, as

ações judiciais movidas pela AGU contra a população da Marambaia, bem como a

Ação Civil Pública impetrada pelo MPF, tornaram-se eventos, num primeiro momento,

de natureza jurídica e, num momento posterior, de natureza política, mobilizando

diferentes atores em torno do conflito da Marambaia40. Nesse sentido, tais eventos se

tornam acontecimentos de natureza jurídica e política que propiciam a emergência de

novos dispositivos discursivos, como, por exemplo, a “quilombolice”, mobilizando os

agentes sociais em torno deste novo “regime de engajamento”, modificando suas

formas de expressões públicas, resignificando suas condutas e tornando a memória da

escravidão um dos principais instrumentos de luta. O “quilombolismo contemporâneo da

Marambaia” modificou as condutas íntimas, as relações inter-pessoais e reorganizou as

fronteiras sociais e políticas locais.

No caso da população do Morro das Andorinhas, localizado na região oceânica

de Niterói, no bairro de Itaipu, o evento que mudou significativamente os rumos da

história e da organização social e política local foi a demolição, ou mais precisamente, a

40 O Professor Marco A da Silva Mello chama atenção que há uma distinção entre o sentido do termo evento e acontecimento. Enquanto o evento é um algo que acomete um indivíduio ou grupo, o acontecimento é um ato de elaboração sobre os fatos ocorridos: é o momento em que o evento se torna um problema público (comunicação pessoal).

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tentativa de demolição de uma casa construída há mais de um século. Esse fato social

total (Mauss, 1966) gerou efeitos profundos no interior da organização social do Morro

das Andorinhas, mobilizando alguns de seus moradores para uma longa batalha judicial

e política contra o Estado, grupos imobiliários interessados em suas terras e

ambientalistas que se dizem preocupados com “o bem comum verde”. Tal como outros

fatos sociais, este também ocasionou a explicitação dos interesses, posições, papéis e

representações constituídas em torno da controvérsia entre a população residente do

Morro das Andorinhas e os outros múltiplos atores que participaram desta querela. O

evento que acometeu a comunidade do Morro das Andorinhas foi um divisor de águas,

resultando na organização política do grupo a partir da constituição de uma Associação

de Moradores, a Associação da Comunidade Tradicional do Morro das Andorinhas. Um

artifício político e simbólico utilizado pela população local como tentativa de se manter

em suas terras e em seu lugar.

O Morro das Andorinhas é situado na Região Oceânica de Niterói (RJ), entre

Itaipu e Itacoatiara, em uma área nobre da cidade. As ocupações do topo do Morro das

Andorinhas remontam ao final do século XIX. Itaipu e Itacoatiara são bairros de classe

média alta, sendo que em Itaipu há ainda uma comunidade tradicional de pescadores.

No topo do Morro das Andorinhas residem atualmente cerca de 37 moradores, ligados,

direta ou indiretamente, à atividade da pesca na Praia de Itaipu. Vinculados por laços

de parentesco e afinidade, estes moradores distribuem-se por 14 casas de alvenaria e

algumas de pau-a-pique.

No caso do Morro das Andorinhas, diferentemente do conflito da Marambaia, os

“direitos difusos” pertenciam aos “não-humanos” e os “hipossuficientes” não eram os

pescadores, mas sim a “natureza”. Esta e o meio ambiente eram os sujeitos de direitos

a serem protegidos e tutelados pelo poder público em prol das “gerações futuras”. O

Ministério Público Estadual (MPE/RJ) desempenhou um papel importante, nesse caso,

na defesa da “hipossuficiente natureza” e a favor da preservação ambiental da região. A

controvérsia instaurada no topo do Morro das Andorinhas pelo MPE e os outros

agentes sociais envolvidos tinha como propósito transformar a cidade em meio

ambiente, instituindo uma outra lógica de uso e apropriação dos espaços vividos e

estimados (Mello e Vogel, 2004).

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Mapa com informações sobre a localização de Itaipu

A Ação Civil Pública de responsabilidade por “danos causados ao meio

ambiente” e por “omissão ao processo contínuo de favelização” (Mendes, 2004 e

Lobão, 2006) foi proposta pelo MPE do Rio de Janeiro contra a Prefeitura Municipal de

Niterói, baseada em Inquérito Civil instaurado no ano de 1994. As nuances da Ação

serão descritas a seguir. Interessa-nos ressaltar, nesse momento, que ela era dirigida à

Prefeitura, cujas acusações de favelização e danos ao meio ambiente recaíram sobre

as costas, ou melhor, sobre as casas dos moradores do Morro das Andorinhas, criando

uma situação em que “na briga do rochedo com o mar, quem paga é o marisco”, como

dissera certa vez o advogado que assessorou a comunidade durante esse processo.

Na época em que a Ação Civil foi proposta, a área ocupada pelas famílias do

topo do Morro das Andorinhas encontrava-se no entorno do Parque Estadual da Serra

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da Tiririca (PEST). Como ressalta Lobão (2006: 145), sob a égide da nova lei do

Sistema Nacional de Unidades de Conservação, a população do topo do Morro das

Andorinhas, bem como de outras áreas adjacentes, devia ser deslocada. De acordo

com as legislações estaduais e federais que regulamentam a criação e gestão de

Unidades de Conservação, era necessária a criação de uma Comissão responsável

para avaliar e discutir os limites do Parque. Esta Comissão era composta por

ambientalistas da cidade de Niterói e do Rio, presidentes de associações de moradores

da região oceânica, donos de ONGs, etc. De acordo com Mendes (2004: 103):

uma Comissão Pró-Parque, criada pela portaria IEF/RJ/PR n.º 68 de 26/-5/1999, ficou encarregada de definir as delimitações e demarcação do Parque Estadual da Serra da Tiririca. A Comissão era formada pelas prefeituras de Niterói e Maricá, por ONGs, Batalhão Florestal, Instituto de Engenharia Florestal (IEF) e pela Fundação Estadual de Engenharia e Meio Ambiente (FEEMA). O Parque Estadual da Serra da Tiririca (PEST), foi instituído pela lei 1902 de 20/11/1991 e pelo Decreto n.º 18598 de 10/04/1993, sendo os limites da área a ser estudada para demarcação definitiva do perímetro do Parque. Sua área está situada ao longo dos Municípios de Niterói e Maricá, tratando-se de um maciço granítico que delimita a bacia da laguna de Itaipu e a baixada de Itaipuaçu. O Parque Estadual da Serra da Tiririca foi incluído pela UNESCO na Reserva da Biosfera da mata Atlântica em 1992.

Ora, uma série de interesses estava em jogo em torno da delimitação do Parque:

os interesses dos moradores de classe média do entorno do Parque, dos setores

imobiliários, de grupos do Governo do Estado e Municipal, membros de ONGs,

ambientalistas e, claro, das populações residentes há décadas ou séculos no interior ou

no entorno do PEST.

Numa das reuniões da Comissão, os moradores do Morro das Andorinhas

tinham sido convocados. Na ocasião, o Procurador do MPE estava presente e

informara que seria necessário cumprir uma suposta decisão judicial que requeria a

demolição, segundo ele, das casas do topo do Morro das Andorinhas. A finalidade era

garantir a preservação ambiental. Para tanto, propôs demolir uma das casas, sendo a

escolhida a de um morador mais antigo da comunidade, que se encontrava em reforma.

Os moradores da comunidade do Morro das Andorinhas presentes na reunião se

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opuseram. Como alternativa, o Promotor então propôs destruir uma casa centenária

erguida no local: como ficará claro mais a frente, não se tratava apenas de uma pena

jurídica, mas era também uma pena moral e simbólica à comunidade do Morro das

Andorinhas.

Diante desta situação que passou a afligir a comunidade do Morro das

Andorinhas, um pescador, que exerce uma liderança na Praia de Itaipu, fundador e

Presidente de uma associação de pescadores (a Associação Livre dos Pescadores e

Amigos de Itaipu - ALPAPI) procurou o NUFEP com o propósito de traçar uma

estratégia de defesa do direito de moradia da comunidade. Era de suma importância

tanto do ponto de vista simbólico, político e moral a permanência da população

remanescente dos pescadores artesanais que foram, através de mecanismos

econômicos, jurídicos e com o uso da violência física, expulsos paulatinamente de seu

lugar. No entorno de mansões, casas de luxo e restaurantes figura, ainda, em Itaipu a

paisagem de outrora com as pequenas casas, canoas e as redes da comunidade

remanescente de pescadores que, literalmente, moram no canto de Itaipu. Há anos,

lutam insistentemente contra as investidas do Poder imobiliário e do Poder Público, que

visam suas terras (Kant de Lima e Pereira, 1997). Até alguns anos antes da “chegada

do meio ambiente”, os moradores do morro das Andorinhas se encontravam numa

invisibilidade total aos olhos dos grupos imobiliários e do Poder Público41.

Nessa reunião, além do presidente da ALPAPI, estavam presentes os

pesquisadores do NUFEP e o morador do Morro das Andorinhas, “porta-voz” da família

Siqueira que compõe a tradicional família do Morro das Andorinhas. Os pesquisadores

do NUFEP ficaram cientes de que se tratava de uma comunidade centenária, vinculada

à pesca tradicional local, e que havia se instalado na área no final do século XIX.

Portanto, era necessário, segundo o nosso ponto de vista, que fossem reconstituídas as

histórias locais, as formas de ocupação e a genealogia de parentesco do grupo, com o

objetivo de coletar dados que pudessem subsidiar nossas ações. Estávamos cientes da

existência de uma Lei Estadual (apelidada de Lei Minc), já mencionada, que assegura a

41 O professor Roberto Kant procurou, na ocasião, a colaboração do professor Luíz de Castro Faria, profundo conhecedor das organizações sociais de pescadores do litoral fluminense, bem como da história da pesca em Itaipu, mas até mesmo ele desconhecia a existência de uma comunidade que ali se instalara no século XIX.

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presença humana em áreas de proteção ambiental de populações residentes há mais

de 50 anos42. Na nossa concepção, essa lei poderia ser uma garantia para a

manutenção da comunidade em seu território. Para tanto, seria necessário produzir um

vasto material empírico que sustentasse essa vinculação temporal dos moradores com

seu território.

Na ida do Promotor do MP ao topo do Morro das Andorinhas, estavam

presentes, além dos próprios moradores, alguns pesquisadores do NUFEP, um

assessor parlamentar de um vereador de Niterói, a advogada, à época, assessora do

NUFEP, o presidente da ALAPI, uma equipe de funcionários da Secretária Municipal de

Meio Ambiente, o próprio subsecretário, uma equipe do Jornal O Fluminense e um

ambientalista de Niterói, que, por sua vez, acompanhava o Promotor. O clima foi de

consternação quase total diante da situação. Afinal, para muitos que ali estavam não se

tratava apenas da demolição de uma casa, mas significava a demolição da dignidade,

do respeito, da memória e história da comunidade local. Para o ambientalista que

acompanhava o Promotor, parecia ser irrelevante tal dimensão, visto que indicava, com

deleite, aos funcionários da Prefeitura quais eram os pontos da casa que deviam

martelar. Numa certa altura dos acontecimentos, ele mesmo tomou emprestado a

marreta e começou a utilizá-la, tentando derrubar a casa. Malgrado os esforços e o

empenho físico do ambientalista, a casa de estuque não tombou, caindo apenas alguns

pedaços de telhas. Relato uma passagem da descrição do evento presente na tese de

Ronaldo Lobão (2006: 148) que ilustra, do meu ponto de vista, o sentimento partilhado

por aqueles que, consternados, assistiam a cena.

ao redor alguns choravam. Marcos, de tristeza. Eu, de um misto de impotência, raiva e frustração. Mas o silêncio era gritante. Nem o ruído das marretas rompia o silêncio respeitoso para com o crime que se cometia. Alguns momentos depois, o subsecretário decidiu que a tarefa estava concluída e que voltaria outro dia para recolher o entulho. Na verdade, a maioria formado por telhas de uma pequena varanda que não havia resistido.

42 Os trabalhos desenvolvidos pela equipe do NUFEP, além dos efeitos jurídicos (que trataremos adiante) e políticos, culminaram em diversas publicações acadêmicas (Mendes, 2004, Lobão, 2006; Mota, 2006; Maranhão, 2007). A equipe de trabalho de campo foi inicialmente composta por Andrea Morelli Mendes, Joana Saraiva e eu, que freqüentava mais as reuniões com o advogado e os moradores. Essa equipe fora coordenada pelos professores Ronaldo Lobão e Roberto Kant.

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O subsecretário, que aparentava estar inconformado com a situação, num dado

momento solicitou aos funcionários o fim do trabalho. A casa não desmoronou,

tampouco, as forças de ação e mobilização da comunidade das Andorinhas.

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3.1 “Tanto quem faz e se apraz, um dia a casa cai!”

No momento posterior ao episódio da tentativa de demolição da casa, os

moradores do Morro das Andorinhas, mais uma vez se reuniram com os pesquisadores

do NUFEP e, desta vez, na presença de outro advogado, que prestava assessoria, à

época, ao Núcleo. Para a surpresa de todos, o Procurador do MPE, de acordo com

esse advogado, havia obtido uma antecipação de tutela do Juiz que apreciou o caso,

determinando a desocupação das residências localizadas no topo do Morro “no prazo

de 90 dias, a partir da intimação, sob pena de demolição das mesmas e outras

providências requeridas”. Ou seja, o Procurador havia adquirido uma liminar para

intimar os moradores e não demolir suas casas. Ora, agiu de modo extemporâneo, pois

exarcebou os limites da sentença e ultrapassou os limites de suas funções.

É importante frisar que os Procuradores, do MPF e do MPE, muitas vezes, agem

como se fossem destinados a eles a prerrogativa de decisão das disputas judiciais.43

Tanto o Procurador do MPF, que se pronunciou contrariamente a respeito do caso de

Dona Sebastiana, já descrito, como no caso do Procurador do MPE, os limites de suas

funções foram ultrapassadas. No primeiro caso, pelo fato do Procurador ter enviado à

FCP um documento solicitando o arquivamento do processo de reconhecimento da

comunidade da Ilha da Marambaia. No segundo caso, pela ação ilegal de demolição de

uma residência sem autorização judicial. A disputa pela visibilidade dos operadores da

justiça e da administração pública proporciona ações descontextualizadas, porém

dirigidas por um propósito comum: adquirir legitimidade e espaço na produção da

verdade neste espaço público (Mouzinho, 2007 e Mota, 2003).

O advogado que participava da reunião conosco propôs, então, que fosse

enviado ao Juiz do caso a fita com a cena da tentativa de demolição, a matéria

jornalística (publicada na primeira página do jornal O FLUMINENSE) e os dados até 43 Numa reunião no MP em que estive presente com o advogado que assessorava o NUFEP na qual o, o Procurador (substituto ao da cena da tentativa de demolição da casa) convocou os moradores de Itaipu, Itacoatiara e do topo do Morro das Andorinhas para “pensar sobre os rumos das ações” e, ao esboçar algumas considerações, foi alertado pelo advogado do Núcleo da seguinte forma: “Vossa excelência esquece que suas considerações sobre o processo pouco valem, pois o MP é parte em qualquer ação. Vossa excelência bem sabe que a decisão acerca dos fatos é prerrogativa do juiz”. O Procurador, visivelmente constrangido, não respondeu, criando uma celeuma na sala. Um dos moradores irritado, retrucou: “afinal de contas, então, o que eu estou fazendo aqui nessa bodega? Perdendo meu tempo?”. Bem, foi o prenúncio do fim da reunião...

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aquele momento pelo NUFEP sobre a história, a organização social e a genealogia de

parentesco da comunidade. Ademais, na fita constava a cena em que o Procurador, em

frente da filmadora, se dispunha a ter uma “conversa no processo” com a advogada.

Dizia que “era fiel aos seus compromissos processuais e esperava dela o mesmo”. A

fita chegou às mãos do Juiz que tomou pé da situação, tornando-se sensível ao caso.

Mas qual era o conteúdo do processo?

No início da década de 1990, moradores da região do entorno do Morro das

Andorinhas, em especial aqueles pertencentes aos condomínios de classe média alta,

mobilizaram-se contra as ocupações que estavam sendo construídas na subida do

Morro, que dá acesso às casas da comunidade do topo, o que parecia lhes indicar o

indício de uma possível e temida “favelização” da área. Como já vimos anteriormente,

esta categoria, no Brasil e particularmente no Rio de Janeiro, tem um forte teor

semântico negativo, pois além de ser associada à pobreza ela é, concomitantemente,

associada à criminalidade. De fato, na cosmologia nativa as duas categorias são quase

sinônimos... Assim como existem sociedades em que certas categorias são

interditadas, pois pronunciá-las é presságio de má sorte, bruxaria, azar ou coisa que o

valha, nesta sociedade a palavra “favela” opera como um tabu e, como já apontei

noutra ocasião (Mota, 2006), um dispositivo discursivo relevante para desconsiderar

garantias de direitos de determinados setores. Sob ela recaem as mais duras ações da

sociedade, do Estado (e neste caso em particular, mais propriamente o aparelho

repressivo do Estado, ou seja, a Polícia) contra o “perigo do morro”. Como dissera um

morador de Itacoatiara, bairro de classe média alta, situado no outro lado do Morro das

Andorinhas, numa reunião no MP, “eu fugi do Rio para não conviver com o perigo das

favelas que circundam a cidade e agora não quero que o lugar que escolhi pra viver vire

uma favela”.

Diante desse “perigo”, a solução “purificadora” foi o envio, em 1992, de uma

carta de denúncia anônima ao Ministério Público de Niterói. Nela continha documentos

provenientes do IPHAN, da Colônia de Pescadores de Itaipu e do Museu Arqueológico

do bairro, com argumentações técnicas sobre a situação. Em decorrência da denúncia,

o MP instaurou o Inquérito Civil para apurar os fatos e proteger os “interesses e direitos

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difusos”, entrando, posteriormente com a Ação Civil Pública. Segundo Maranhão (2007:

33):

(segundo) o Grupo de Apoio das Promotorias do Ministério Público em maio de 1999, existiam, na época, 22 residências na área do Morro das Andorinhas, sendo que 3 estariam em fase de construção. No mesmo laudo pericial havia também a informação de que 8 famílias residiam ali há mais de 50 anos. Baseado nas informações apuradas na vistoria e no curso do inquérito civil, o MP alegava que o número de residências no Morro das Andorinhas continuava crescendo e que a área “estaria sendo alvo de um contínuo processo de favelização diante da omissão do Município”. Para o MP, a Prefeitura estaria sendo negligente e não se demonstrava “disposta a preservar e manter o Morro das Andorinhas, pouco importando que se transforme em mais uma grande favela dominada por traficantes e bandidos”.

O MP, na ocasião, solicitou à Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio

Ambiente de Niterói, a realização de uma vistoria na área com vistas à elaboração de

um parecer a respeito da situação. O relatório foi apresentado no ano seguinte.

Categorizava as residências como “simples, humildes e carentes de serviços públicos”.

No mesmo relatório, os técnicos enfatizavam que se tratava de “mais um típico

processo de favelização, mais um exemplo real dos efeitos da crise social das regiões

metropolitanas brasileiras sobre as áreas florestais remanescentes”.

É importante destacar que as informações apresentadas pelos técnicos da

referida Secretaria não consideravam as distinções existentes entre “ocupações

irregulares” – que era o caso de muitas moradias de classe média de Itacoatiara e

Itaipu que se instalaram na encosta do Morro - e “ocupações antigas de moradores”,

que era o caso das casas no topo do Morro das Andorinhas. A favelização tornou-se

justificativa homogeneizadora para classificar as distintas formas de ocupação do

espaço, desconsiderando a garantia do direito dos antigos moradores de

permanecerem em seu território (Mendes, 2004).

Para outro órgão do Governo do Estado do Rio de Janeiro, responsável pelos

licenciamentos ambientais, a FEEMA, em seu relatório, confeccionado um ano após, os

moradores eram identificados como “invasores”, cujas práticas e moradias vinham

causando danos ao meio ambiente. Tratava-se, de acordo com os técnicos do órgão,

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de “crime ecológico”, embora, de acordo com eles, a área em questão estava “de certa

forma preservada”, identificando como único problema o fato de haver pessoas

residindo numa área de preservação.

Foi com base nestes relatórios que o MP concluiu tratar-se de ocupações ilegais,

decorrentes de invasões, em área de preservação ambiental. Para o MP, a Prefeitura foi

negligente ao permitir a permanência humana em local a ser preservado, determinando

então a desocupação da área e a demolição das casas. Em 1995, a Prefeitura intimou

todos os "invasores da área de preservação permanente" a desocuparem os imóveis, que

seriam em seguida demolidos, num prazo máximo de trinta dias (Mendes, 2004). A

Procuradoria Geral da Defensoria Pública interveio, informando que as famílias assistidas

pelo Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública, ou seja, "as famílias de baixa

renda, antigos moradores do local denominado Morro das Andorinhas", foram notificadas

para desocupar a área, apesar delas não serem as destinatárias da denúncia que originou

o inquérito civil público. Ao contrário dos técnicos dos referidos órgãos mencionados

acima, a Procuradoria alegou que sua posse era "longeva, nativa e de boa-fé e ocorrera

por exclusiva e absoluta necessidade de moradia (estado de necessidade), elemento

criador da relação jurídica" e que, de acordo com a Lei 2393 (20.04.95), que dispõe sobre

a permanência de populações nativas residentes em unidades de conservação do Estado

do Rio de Janeiro, os moradores possuíam direito real de uso da área ocupada (Mendes,

2004). A Defensoria Pública enfatizava que a presença da comunidade requerente no

local evitava novas ocupações, desmatamentos, acréscimos das construções já

existentes, compatibilizando a natureza com existência da vida humana. O argumento da

Defensoria Pública possibilitava a distinção entre as ocupações de invasores e as

ocupações antigas. Do mesmo modo, os moradores do Morro das Andorinhas tornavam-

se com esse argumento “protetores da natureza”, e não mais “favelados”.

Mesmo com os desdobramentos provocados pela Defensoria, o MP instaurou, em

2000, uma Ação Civil Pública, responsabilizando a Prefeitura de Niterói por danos

causados ao meio ambiente, por omissão da ré diante de um “processo contínuo de

favelização e destruição de um bem de Preservação Permanente”, obrigando a

prefeitura a executar um projeto de reflorestamento da área, realocar os moradores

cadastrados e demolir as construções irregulares impedindo, ao mesmo tempo, novas

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invasões ilegais, incluindo o topo do Morro das Andorinhas (Mendes, 2004).

Culminando, como vimos, na cena da tentativa da demolição da casa.

Paralelamente a esta Ação, ocorriam as reuniões do Conselho do Parque para

discutir os limites do mesmo, muitas das quais culminavam em fortes embates (alguns

deles, físicos) entre os seus membros. Além das distinções ideológicas, de ponto de

vista, de pertencimento político, afinidades e relações pessoais, existiam as questões

propriamente vinculadas aos diferentes grupos de interesses de Itaipu que se

manifestavam contra a presença dos moradores das Andorinhas. O Morro das

Andorinhas transformou-se num palco de embates entre os grupos políticos da cidade

de Niterói, constituindo-se num problema público a se configurar na arena pública do

Rio de Janeiro.

Desde minha inserção no NUFEP em 2000, a praia de Itaipu foi local constante de

incursões etnográficas, acompanhando as discussões relacionadas à criação de uma

Reserva Extrativista Marinha na região, colaborando com outros colegas pesquisadores

do mesmo Núcleo de Pesquisa44. Frequentando reuniões, conversando com

pescadores e ambientalistas, fui me familiarizando com as questões que envolviam os

conflitos locais, muitos deles relacionados diretamente com os interesses de grupos

imobiliários, que tinham obtido êxito na expulsão da população local, como parte da

comunidade que vivia na praia de Camboinhas e teve suas casas compradas e seus

terrenos grilados na década de 1970. Pude, nestas ocasiões, compreender que um

mecanismo de produção de “fatos”, de desqualificação de pessoas ou demandas se

baseava num mecanismo socialmente legítimo e difundido no Brasil: o boato. Recursos

cuja eficiência era notável nesse campo político, mas não apenas nele, como constatei

em outras ocasiões45. Elas parecem ser um mecanismo de produção da verdade no

44 Para maiores detalhes sobre a descrição do processo da RESEX-MAR de Itaipu ver Lobão (2006: 109-117). 45 A minha permanência em estágio de doutoradoi em Paris permitiu tomar conhecimento de outros mecanismos de produção do conhecimento e do consenso no espaço público. Sempre me chamou atenção que, nas discussões, fossem elas acadêmicas ou cotidianas, as opiniões, os argumentos se balizavam em elementos precisos, lógicos e explícitos. Sob pena de perder a legitimidade perante o interlocutor, as argumentações, mesmo em situações dos embates mais ferrenhos, deviam ser sustentadas em argumentos a respeito das idéias da pessoa e não sobre a qualidade moral da mesma ou coisa que o valha. Já em situação vivenciada na UFF, por conta do projeto de criação de um curso de graduação em Segurança Pública e outro em Antropologia, ficou evidente que os argumentos na arena pública brasileira não devem, necessariamente, estar pautados por argumentos precisos, justificáveis,

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Brasil que está intimamente vinculado com uma lógica de produção do conhecimento e

do consenso. Neste espaço público em que as argumentações não devem estar

necessariamente baseadas em elementos “lógicos”, os princípios da justificação não

devem ser necessariamente explícitos. Desse modo, é legítimo lançar mão de

argumentos, ainda que não factuais, que exercem um poder e legitimidade para a

produção da verdade.

Estas controvérsias tiveram efeitos múltiplos: por um lado, elas foram um

infortúnio para a comunidade do Morro das Andorinhas, por outro, permitiram a

aquisição de alianças essenciais para a sua manutenção no território. Por exemplo, o

Juiz que julgou a Ação tomou conhecimento da situação das moradias do topo do

Morro, sensibilizando-se com a causa e tornando-se simpático à permanência da

comunidade diante do material empírico disponibilizado. Através dos dados coletados

pela equipe do NUFEP, ele soube que não se tratava propriamente de um “processo de

favelização”, como argumentavam os que defendiam a expulsão dos moradores, mas

de moradias que remontavam ao fim do século XIX. Fato que veio reverter o processo

e, do ponto de vista legal, pelo menos naquela instância, garantiu a permanência da

família no topo do Morro das Andorinhas.

Diante dessa circunstância, os grupos interessados na expulsão da comunidade

do Morro das Andorinhas, passaram a acionar outros mecanismos “extra-judicias”: o

boato. Diversos boatos foram difundidos na região sobre a “chegada de traficantes

fortemente armados” ao topo do Morro das Andorinhas. De acordo com estas

“histórias”, traficantes de “perigosos morros” do Rio de Janeiro teriam um plano de

ocupar o topo do Morro para instalar uma “boca de fumo”. Não foram utilizados apenas

o “boca a boca”, os jornais de bairros, etc., para a difusão do boato. Outros elementos

não-humanos foram também acionados, como o helicóptero – que segundo alguns

diziam, era do Próprio Governo do Estado do RJ – que sobrevoava o topo do Morro

para fotografar o local e alimentar o imaginário local, com histórias como a difundida

entre muitos: a de que o helicóptero era usado por traficantes para trazer armamentos e

drogas para a área, fazendo uso de um suposto “heliporto”.

lógicos, na medida em que acusações, contra-informações, boatos são recursos discursivos legítimos para a produção do conhecimento e da verdade.

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Assustados, acuados, os moradores de classe média alta da região, nas reuniões

que freqüentei, mostravam as fotos com o tal do heliporto para desembarque dos

armamentos. Numa destas ocasiões vimos que se tratava de foto do campo de futebol

da comunidade, utilizado para as amistosas “peladas”. Mas como um bom boato se

torna uma sustentável verdade, as consequências foram logo sentidas pela

comunidade. A Polícia Militar-PM realizou algumas inspeções na área de modo a

“averiguar os fatos”, criando um enorme constrangimento aos moradores da

comunidade, que, diante da invisibilidade vivenciada nas últimas décadas, tiveram que

passar pela “situação constrangedora de ter um policial pedindo os documentos”, como

desabafou certa vez o morador mais antigo do topo do Morro das Andorinhas, durante

uma reunião no 12º Batalhão que contou com a presença de alguns moradores do

local, de alguns pesquisadores do NUFEP e do Comandante do Batalhão. Esse

morador, que nesta época era uma pessoa comedida em suas palavras, tímida,

acanhada, mesmo diante de uma “autoridade” não se conteve e pronunciou-se de

modo enfático e emocionado.

Isso que estão fazendo com a gente não é coisa de gente não, seu Comandante. Eu fui criado no Morro das Andorinhas desde pequeno. Por lá sempre vivemos de modo humilde, plantávamos nossa rocinha pra gente mesmo colher e comer. A gente é humilde, seu Comandante, mas a gente sempre fez questão de fazer as coisas de maneira correta. Nem bicho a gente maltrata, ai vem a Polícia subir em minha casa e pedir meu documento. Sou um senhor de idade, trabalhador, sempre certo e não acho que isso seja Justiça, seu Comandante.

A audiência com o Comandante do Batalhão se deu por circunstâncias de

relações pessoais existentes: o filho dele era um amigo de longa data do filho de um

pesquisador do NUFEP, pois foram colegas de colégio. Ora, são esses “regimes de

familiaridade” que operam na caracterização de um fato e que, nesse caso, produziram

efeitos eficazes para anular os constrangimentos contra os moradores do topo do Morro

das Andorinhas. O Comandante solicitou que o tenente, que comandava a companhia

que havia subido o Morro, fosse ao local averiguar a existência ou não de paiol na área.

Como o tenente constatou, havia somente a existência de casas humildes, habitadas

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pela família tradicional do local. Após essa visita não ocorreu nenhum outro incidente

de ida de policiais na área.

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3.2 Em cena, a associação.

As ameaças de expulsão, a tentativa de demolição da casa e os atos de

desconsideração aos direitos dos membros da comunidade do morro das Andorinhas,

levou-os à mobilização e organização coletiva, através da criação de uma Associação

de Moradores. Assim como no caso da Marambaia, foi essa a alternativa de dar

visibilidade às demandas da população local no que diz respeito ao reconhecimento de

seus direitos. Através da colaboração de movimentos sociais de Niterói, de políticos da

cidade, de pesquisadores e assessores jurídicos do NUFEP, a comunidade do Morro

das Andorinhas constituiu sua primeira associação: a Organização da Comunidade

Tradicional do Morro das Andorinhas (OCTOMA). A sede da associação funciona em

uma das casas, tendo como base de seu estatuto a questão do direito de permanência

na área e o desenvolvimento humano, cultural e ecológico da comunidade.

Cartaz com o logo da Associação

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A associação foi fundada sob algumas controvérsias. Como descrevemos, a

Ação Civil Pública era dirigida contra a Prefeitura por omissão no processo de

ocupação da região, sendo, inclusive citada a encosta do morro e não o topo. Alguns

moradores da encosta do Morro das Andorinhas, cujas relações de vizinhança e

afinidade com os moradores do topo do Morro das Andorinhas são fortes, almejavam

participar da Associação, pois muitos percebiam que esta seria uma estratégia para

resistir às tentativas de expulsão. Criou-se uma situação relativamente delicada para a

comunidade do topo do Morro das Andorinhas, pois aceitar a inclusão deste grupo

implicaria na mudança de foco da atuação da Associação, que se destinava a defender

e preservar a cultura tradicional local do topo do Morro das Andorinhas. As residências

presentes na encosta não eram de moradores “tradicionais”. Por outro lado, recusar a

sua participação poderia prejudicar as relações de vizinhança. De todo modo, uma vez

que as pessoas que solicitaram a inclusão não pertenciam ao núcleo dos Siqueira,

tradicional família do Morro das Andorinhas, ficou decidido manter o núcleo familiar

como o único a ser representado pela Associação. Afinal, a visibilidade da demanda do

grupo estava sustentada pela afirmação da tradicionalidade da ocupação do morro.

Mas quais eram as bases desta tradição?

De acordo com alguns memoralistas e historiadores, a ocupação da região

oceânica de Niterói iniciou-se no século XVII, período marcado por um forte aumento de

distribuições de sesmarias, o que atraiu um número crescente de pessoas ao local para

ocupação e uso da terra para fins agrícolas (Mendes, 2004). Segundo Mendes (2004:

20):

houve aumento no número de sesmarias, o que atraiu imigrantes ao local devido à fertilidade das terras, surgindo desta forma novos povoados. Houve grande progresso econômico refletido nas fazendas, engenhos de açúcar e aguardente. No entanto, paralelo ao avanço econômico, as sesmarias foram sendo reduzidas, doadas, vendidas a terceiros ou mesmo roubadas por aventureiros.

Ora, as terras daquela região, assim como do sul fluminense, onde se localiza a

Marambaia, sofreram intensa ocupação humana no século XVII com o processo de

expansão agrícola que o Estado vivia naquele momento, propiciando a composição de

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uma malha territorial complexa, em que diferentes formas de uso e apropriação do

espaço se confrontavam.

Nos séculos posteriores a região foi crescendo ainda mais, sobretudo a partir do

período em que a Corte, que havia se instalado no Rio de Janeiro, escolhera São

Domingos como área de lazer, propiciando uma maior visibilidade à região. Segundo

Mendes (2004: 20) em 1819, D. João VI resolveu emancipar a Vila da Praia Grande.

Itaipu, que nesta época se chamava São Sebastião de Itaipuig (ou Itaipu), juntamente

com São Gonçalo, São João de Icaraí e São Lourenço dos Índios, configuravam as

quatro freguesias. Neste período existia uma pequena produção agrícola, com a

presença de 4 engenhos que, juntos, tinham 139 escravos que contribuíam com a

economia fluminenses através da plantação de cana-de-açúcar, mandioca, milho e

feijão. Monsenhor Pizarro refere-se a São Sebastião de Itaipu como a

incomparavelmente mais pobre das freguesias, tanto em população quanto em

produção, sendo que sua população contava com mais escravos do que homens livres.

(Bernardes, 1955 apud Mendes, 2004).

Em 1835, a freguesia é elevada à categoria de cidade pela lei Provincial n.º 6 de

1835, recebendo a denominação de Nictheroy, sendo que, em 1890, a cidade sofreu

fragmentação de seu território, pois as freguesias de São Gonçalo, Nossa Senhora da

Conceição de Cordeiro e São Sebastião de Itaipu passaram a constituir o município de

São Gonçalo. Em 1892, Niterói recebeu de volta a Freguesia de Itaipu. Poucos meses

depois, devido a uma nova organização municipal e distrital da Província do Rio de

Janeiro, Itaipu passou a ser o 2º distrito de Niterói.

Durante todo este período prevalecia o cultivo de café e cana-de-açúcar, que,

aliado à atividade da pesca, compunha o mosaico de atividades econômicas da região.

Aliás, foi a família que hoje mora no topo do Morro das Andorinhas que ajudou, anos

depois, na recuperação das áreas desgastadas e devastadas pelo cultivo de café na

região com a produção de bromélias. Foram, ao contrário do que se definia na Ação

Pública, esses moradores, os aliados do “meio ambiente” no processo de recuperação

da área.

No final do século XIX, segundo contam os mais antigos, fora instalada uma

fazenda numa das encostas do Morro, na vertente voltada para Itacoatiara, cujo

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proprietário, diziam, era um italiano que havia se instalado na região com o propósito de

produzir carvão, supostamente comprando terras de João Mendes. Segundo relato dos

moradores mais antigos do topo do Morro das Andorinhas, o patriarca da família, Seu

José Siqueira se instalou no local com seus parentes por volta de 1870. Como salienta

Lobão (2006: 146):

A produção local entrava em um circuito comercial com os pescadores da Praia, em um sistema de complementaridade, pois a restinga pouco oferecia em termos de plantio. Assim se passaram os anos, com a família de José Siqueira ocupando um pequeno paraíso, pescando nos costões por trás do Morro, plantando, trocando produtos. Alguns membros trabalhavam em empregos fixos, mas mesmo que se afastassem do Morro, mantinham seus laços com a família e com o lugar. Enquanto a Mata Atlântica se regenerava, a família de José Siqueira se reproduzia. Na restinga e na antiga fazenda, no entorno da lagoa de Itaipu, cadeias sucessórias (de propriedades) registradas em cartório, aumentavam os limites das propriedades que eram transacionadas. Como disse um escrivão, a cada venda o vendedor vendia uma área maior do que havia comprado. Assim, a lagoa foi perdendo seu espelho d’água e os morros e costões passaram a ter dono. Mas no topo do Morro das Andorinhas a vida seguia seu curso.

A família de Seu Siqueira também seguiu seu curso e o processo de crescimento

e urbanização da região também. Na década de 1920, a região oceânica passou a ser

considerada “área de expansão urbana” da cidade de Niterói, sendo que neste período

foi construída a estrada que liga o centro da cidade com a região oceânica, o que, mais

tarde, permitiu a expansão imobiliária, provocando efeitos locais como as compras das

casas dos moradores nativos, o esbulho, a invasão de seus terrenos e as grilagens

(Kant de Lima e Pereira, 1997). Num processo equivalente, a partir da construção da

Rodovia Rio Santos nos anos 1970, as populações remanescentes da região sul

fluminense foram sendo paulatinamente expulsas de suas terras46.

Em Itaipu, em particular, uma companhia denominada VEPLAN foi uma das

principais investidoras e promotoras da alteração do plano urbanístico da região (Kant 46 A antropóloga Eliane Cantarino O’Dwyer (mimeo) demonstra como a construção da Rodovia Rio Santos desencadeou conflitos de terra, deslocando as populações nativas para a construção de grandes empreendimentos.

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de Lima e Pereira, 1997). Ela apresentou, na década de 1940, um “Plano Estrutural de

Itaipu”, que previa, inclusive, o aterramento da lagoa de Itaipu e a urbanização de seu

atual sítio arqueológico (Kant de Lima e Pereira, 1997). Entretanto, foi na década de

1970 que a região vivenciou um boom imobiliário, com a construção de diversos

condomínios, casas e prédios na região. Foi criado um canal dividido a praia de Itaipu e

a de Camboinhas, baseado no argumento técnico de que a obra era necessária para

escoar o esgoto (Kant de Lima e Pereira, 1997). Mas de fato, o que o canal provocou foi

a divisão do território dos pescadores artesanais locais, dificultando as suas práticas de

pesca na região (Kant de Lima e Pereira, 1998). Camboinhas, em tempos de outrora

morada dos pescadores artesanais da região, transformou-se numa das áreas mais

valorizadas da cidade de Niterói e os moradores tradicionais foram paulatinamente

despejados e deslocados para as áreas periféricas da cidade. O canto de Itaipu,

embora fosse alvo constante do interesse imobiliário, por causa dos esforços de

algumas famílias da área, permaneceu sob a posse das famílias remanescentes da

pesca artesanal (Kant de Lima e Pereira, 1997). Consequentemente, a pesca, uma das

principais atividades do local, foi perdendo seus espaços para grandes

empreendimentos imobiliários, como resorts, condomínios de luxo, etc.

A praia de Itaipu nos anos 70 (Foto do acervo de Roberto Kant de Lima)

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A rua que hoje é um dos acessos ao topo do Morro das Andorinhas foi aberta na

década de 1980 pela VEPLAN. Foi nesta época que os moradores da encosta foram

remanejados com as compras de seus terrenos, sendo que o topo do Morro não foi alvo

das investidas da empresa. Ainda, na década de 1980, a população residente do topo

do Morro viu uma de suas principais atividades para o sustento familiar se extinguir,

pois o IBAMA proibiu qualquer plantação na área sob a alegação de que era um local

de preservação ambiental. Vale ressaltar que, em 1992, foi elaborado o Plano Diretor

do Município de Niterói47, que classificou a região do Morro das Andorinhas como Área

de Preservação Permanente – APP. Esta classificação exclui em seu conceito a

presença humana em sua área (Mendes, 2004: 25).

Foto de Itaipu nos dias atuais, após o processo de urbanização (foto tirada em trabalho de campo pela equipe do NUFEP)

Desde este período, os moradores nunca permitiram a construção de residências

no local de pessoas externas ao núcleo da família Siqueira. Mesmo aqueles parentes

que migraram para outras regiões não puderam, em outras ocasiões, retornar para o

lugar. A família manteve seus laços de afinidade e amizade com os pescadores

artesanais da praia de Itaipu, constituindo um núcleo de proprietários tradicionais da

região. Com base nesta memória e história relacionada à ocupação do território, a

47 Lei nº 1157 de 29/12/1992.

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família do topo do Morro das Andorinhas fundou a Associação para representar as

demandas da comunidade tradicional.

Desta forma, a categoria tradicional emergiu como um dispositivo discursivo e

político que destinou visibilidade positiva àquela ocupação. O “ser tradicional” passou a

operar como uma garantia de reconhecimento público positivo das demandas do grupo,

em contraste ao “ser favelado” que operava como uma categoria produtora de critérios

excludentes e estigmatizantes. Na medida que foram redimensionados os espaços

(bem como as temporalidades), foram também reconfigurados os conflitos sociais,

fazendo emergir novas formas de mobilizações coletivas, ligadas à questão do meio

ambiente, incorporando ao espaço público novas formas de justificações: as

justificações ecológicas (Lafaye eThévenot, 1993; Thévenot, 2001 e Lolive, 1997).

Nesse conflito, os direitos à moradia ou à propriedade foram negados face à

emergência da idéia de um meio ambiente a ser preservado em detrimento da presença

humana, sendo essa representada como danosa. O lugar - entendido como espaço de

uso, de habitação e de interação – torna-se o meio ambiente, gerando conflitos e

tensões entre habitantes, lideranças políticas, a justiça e outros atores, num processo

em que a cidade vira meio ambiente.

As tensões entre aqueles que defendem uma natureza idílica, intocada e aqueles

que proclamam direitos de indivíduos e grupos que habitam áreas ditas de preservação

ecológica, foram evidentes nessa controvérsia. Esta situação explicitou as posições

distintas dos atores: aqueles que se opõem aos direitos, muitas vezes

constitucionalmente garantidos, lançando mão da justificação ecológica, de

preservação ambiental, para desconsiderar garantias legais. Ela permitiu perceber que

na atualidade os fóruns de disputas implicam não somente humanos, mas também os

elementos não humanos. São nesses fóruns híbridos, para usar um termo cunhado por

Callon, Lascoumes e Barthes (2001), que os atores sustentariam suas demandas,

regulariam seus litígios, estabeleceriam novas normas e condutas, onde o espaço

público, mais do que um universo de relações comunicativas, seria um universo de

relações de simetria entre humanos e não humanos (Latour, 1991). E no caso do Morro

das Andorinhas, fica evidente que estas relações estão fortemente marcadas por uma

assimetria no que concerne o acesso aos “bens jurídicos”.

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Quais seriam os desdobramentos deste conflito caso a população local tivesse

lançado mão do discurso do impessoal cidadão? Em que medida esse fóruns permitem

a resolução dos conflitos? Quais são as formas que os atores encontram para fazer

valer seus direitos e argumentos? Em que medida transformar a cidade em meio

ambiente permite a reconstituição de novas formas de ação em público?

Os moradores do Morro das Andorinhas, diante desta controvérsia constituída

em torno do direito de sua propriedade, lançaram mão de sua tradicionalidade para

fazer valer suas demandas de direitos, em contraposição às justificativas de um “bem

comum verde”. Numa situação em que:

assentar numa linguagem uniforme os interesses não esclarece o trabalho requerido para conjugar a decepção do pescador de linha, preocupado com sua boa pesca, e a preocupação do ecologista que, ligado a um bem comum “verde”, deplora a “estreiteza de espírito” do pescador. As noções de senso comum, de intersubjetividade ou de espaço público não são mais suficientes para reconhecer essas diferenças e as formas variadas de realismo correspondente a cada forma de engajamento (Thévenot, 2006: 220).

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Os “objetos não humanos” que visam atestar a tradicionalidade da comunidade do Morro das Andorinhas: o pilão e as fotos (foto tirada por Letícia de Luna Freire). Ora, com o objetivo de explicitar e destinar um contorno positivo para suas

demandas é que a população do Morro das Andorinhas se organizou em torno da

Associação, mobilizando-se em prol dos direitos também “difusos” da comunidade: os

“direitos difusos dos humanos”. Afinal, “ser tradicional”, além de inscrever suas

demandas num quadro jurídico nacional e internacional (como vimos no capítulo acerca

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dos dispositivos legais voltados à proteção dos direitos das denominadas populações

tradicionais), destinava-lhe uma visibilidade vinculada a uma digna identidade pública

em detrimento, por exemplo, do “impuro pertencimento” à identidade de “favelado”. Na

arena pública brasileira, ter reconhecimento público, acessar um direito, corresponde

em grande medida ao grau de legitimidade destinada ao agente ou aos grupos sociais

que, então, deterão ou não uma identidade digna pública (Cardoso de Oliveira, 2002).

Como assinala Roberto DaMatta (1985), a noção subjacente acerca do termo

cidadania no Brasil é marcada pela dimensão relacional. Nesse caso, o

reconhecimento dos direitos, no Brasil, de certos segmentos ou indivíduos depende da

dimensão da consideração (Cardoso de Oliveira, 2002) atribuída a uma pessoa ou a

uma identidade coletiva. É como a máxima que é comumente utilizada de que “existem

cidadãos mais cidadãos que outros”. Como bem assinala Kant de Lima (1995), essa

lógica é marcante no espaço público brasileiro não apenas na ordem do discurso, mas

no próprio sistema legal que vincula privilégios de acesso à justiça de acordo com a

escolaridade, função ocupada, profissão, etc.

A emergência de conflitos envolvendo reconhecimento de direitos de

“remanescentes de quilombos”, “indígenas”, “pescadores artesanais”, “populações

tradicionais”, de um lado, e a “preservação ambiental”, “sustentabilidade”, “meio

ambiente”, de outro, reorganiza as formas de engajamento pelas quais as pessoas

fazem ouvir publicamente sua voz (Thévenot, 2006). Uma forma de entendimento que

busca atribuir qualidades que possam ser concebidas positivamente, para que as

justificações permitam aos atores um lugar legítimo, assim como no caso dos

moradores do Morro das Andorinhas, ou no caso dos habitantes do mediterrâneo na

França que reivindicam a paisagem provençal para fazer valer suas demandas (Lolive,

1997).

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3.3 O meio ambiente não desiste

De um determinado ponto de vista, a constituição da OCTOMA permitiu um

relativo fortalecimento das demandas da comunidade a partir do momento em que

adquiriam uma visibilidade positiva, propiciando o estabelecimento de uma rede de

apoio à luta do grupo, envolvendo advogados, militantes dos movimentos sociais,

organizações não governamentais, políticos, etc. Apesar de ter fortalecido a luta da

população local, a visibilidade também gerou diversos incômodos no cotidiano dos

moradores, que passaram a ter que conviver com o ritmo da vida da cidade, com visitas,

audiências, reuniões, etc.

Num determinado momento, em que as coisas para eles pareciam se apaziguar,

surgiu a figura de um “herdeiro” das terras da população tradicional do topo do Morro

das Andorinhas. Munido de documentos e argumentos, este senhor alegava ser dono

das terras ocupadas pelos moradores. Estes, por sua vez, acionaram a rede de relações

que possuíam, e que havia se expandido no decorrer do conflito. Esse novo evento

provocou a convocação de uma audiência pública na Câmara de Vereadores de Niterói

para discutir o caso. Mais uma vez estavam lá os moradores em fóruns e espaços não

habituais, mas que os obrigavam a, pouco a pouco, começar a adquirir a competência

necessária para fazer valer suas vozes neste novo universo de interação social e

política. Entre vereadores, militantes e “políticos profissionais”, o presidente da

Associação discursava em defesa de seus direitos e pela garantia do modo de vida

local. Em contrapartida, um dos Diretores da Colônia de Pescadores de Itaipu, grupo

que era contrário à permanência dos moradores tradicionais no topo do Morro,

argumentava que “não se poderia falar de uma comunidade tradicional em que o

Presidente da Associação é eletricista”. Para ele, não bastava o tempo de morada da

população local, seu estilo de vida, suas relações com o território, pois, segundo seu

ponto de vista, era inconcebível falar de “comunidade tradicional” num contexto em que

o líder do grupo exerce uma profissão remunerada tipicamente urbana. Ora, para ele,

bem como para algumas outras pessoas, os “tradicionais” deveriam ser portadores de

alguns sinais essencialistas que os distinguisse dos demais habitantes da cidade.

Sinais, porventura, baseados nos princípios ideológicos majoritários dominantes da

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sociedade nacional. Esse aspecto pode ser claramente notado na fala de um

representante da Federação dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro (FAPESCA),

que, numa reunião, se opunha ao projeto de criação da Reserva Extrativista Marinha de

Itaipu (RESEX-MAR):

Se nós estamos querendo tirar o pescador do extrativismo e trazer este homem para dentro da sociedade, porque agora nós vamos encerrar o caso? A sociedade é capitalista, e quem manda é o dinheiro. Você precisa vender o peixe pra pagar a escola, precisa vender o peixe pra comprar uma casa, você precisa de dinheiro pra comprar óleo pra pescar. A sociedade é capitalista e quando eu falo em sociedade é tirar o pescador da marginalidade, da mão de meia dúzia e dar uma identidade a ele. Quando você diz pra ele que ele tem que estar dentro do extrativismo, você tá condenando ele (...). Nós somos contra e Reserva Extrativista porque vai condenar este homem aos grilhões. Só isso. Ele não tem pra onde crescer e nem como crescer.

Carecem, sob este prisma, mecanismos simbólicos e materiais para que esses

“grupos tradicionais” se reproduzam. Por outro lado, como a discussão sobre uma

Reserva Extrativista Marinha em Itaipu mostrou - projeto que há anos vinha sendo

discutido entre os pescadores, sendo um palco de controvérsias “apimentadas”48 –

estes interesses podem ser legítimos caso detenham uma substância moral que legitime

o reconhecimento destas identidades. Ainda, ficou evidente que dois modelos de

desenvolvimento concorriam nesta arena pública: o “desenvolvimento urbanístico” e o

“desenvolvimento sustentável”.

Além de passar a compor o grupo de discussão sobre a RESEX-MAR, sob a

coordenação à época da Gerência do IBAMA-RJ, a OCTOMA tornou-se participante do

Conselho Consultivo do Parque que vinha debatendo os limites do mesmo.

Transcrevemos o texto do ofício dirigido ao Administrador do Parque no período, pois as

categorias empregadas, bem como a linguagem utilizada, revelam alguns aspectos

relativos à forma de representação e apresentação do grupo nesta arena pública:

48 Para maiores detalhes sobre o processo de construção da Resex-Mar de Itaipu, ver a discussão e análise feita por Lobão (2006).

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Nós, membros da OCTOMA, vimos por meio deste manifestar o nosso interesse em participar das atividades inerentes ao Conselho Consultivo do PEST, pleiteando um espaço representativo o qual será, porventura, ocupado pelo sr. José Siqueira da Silva, indicado por nossa Comunidade para atuar neste conselho. Na ocasião enfatizamos a importância desta Comunidade, visto que a mesma é descendente de pescadores artesanais tradicionalmente radicados há mais de 100 anos na região , cujas origens remontam-se ao final do século XIX, protegida , portanto, por legislação estadual que prevê a permanência de grupos tradicionais em Unidades de Conservação estadual. Esclarecemos também que a referida Comunidade vêm contribuindo com seus dados humanos, culturais, sociais e ecológicos para a formação e melhoramento da região. Conjuga-se, com isso, esforços no sentido da conservação das famílias ali residentes, reivindica ndo seus direitos adquiridos, visto que as mesmas, contribue m consideravelmente para a preservação, conservação e melhoria do meio ambiente em que vivem. Certos de contarmos com o empenho de Vossa Senhoria, no sentido de atender a este nosso pleito, enviamos nossas saudações ecológicas e culturais . (grifo nosso)

Consideramos este ofício paradigmático no que diz respeito às mudanças de

referência cognitiva e da ação pública dos atores diante das disputas, como acontecera

com os moradores da Marambaia com a assunção da “identidade quilombola”. No caso

da população do Morro das Andorinhas, foram a ancestralidade, as origens e vínculos

com a terra que compuseram o dispositivo argumentativo fundamental para a ação

coletiva. Ação que orientou estas novas referências cognitivas e a inserção de novas

formas de engajamento. O grupo passou a ser visto não mais como potencial destruidor

do “meio ambiente”, mas como aquele que empreendeu esforços para a manutenção e

conservação dos recursos naturais do topo do Morro, impedindo, inclusive, a ocupação

do mesmo por pessoas de fora.

Se o “meio ambiente” é portador de garantias fundamentais, a população

tradicional também passou a ser. Emergiu um cenário de concorrência de direitos entre

referências legais e simbólicas distintas: umas vinculadas ao ponto de vista ecológico

da questão e outras relacionadas ao universo cultural e social do problema. A

participação no Conselho foi importante para que a “voz pública” da comunidade do

Morro das Andorinhas se fizesse representada neste espaço heterogêneo em que

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interesses de sitiantes, comunidades tradicionais, empreendedores imobiliários,

ecologistas, eco-oportunistas e condomínios do entorno do parque se opunham

ferozmente, com debates frequentemente ”intensos e calorosos”, como descrito numa

das atas da reunião do Conselho.

As primeiras reuniões foram fortemente marcadas por estes antagonismos,

explicitando as dificuldades existentes de conciliação do interesse coletivo plural e

heterogêneo. Agressões verbais, insultos morais, recursos judiciais marcaram a

composição deste espaço representativo. Ainda que a comunidade do Morro das

Andorinhas tenha sido alvo de diferentes acusações e ações do Poder Público e dos

grupos de interesse, nesse momento era quase consensual entre estes heterogêneos e

conflituosos pontos de vista que a comunidade tradicional era detentora do legítimo

direito de participar da composição do Conselho. Em parte, pela positiva visibilidade

adquirida por eles, mas também porque é previsto em Lei Federal (SNUC) e Estadual

(Lei Minc) a participação das comunidades tradicionais nos conselhos consultivos e

deliberativos de Unidades de Conservação desta categoria49.

Foi ainda, nesse momento, que a comunidade decidiu abrir “as portas do morro”

para os de “fora”, com a realização da festa junina, há anos voltada apenas para os

familiares. Em 2003, participaram da festa junina convidados de toda parte do Estado:

pessoas ligadas aos movimentos sociais, pesquisadores da UFF, políticos,

pescadores... A festa tornou-se um espaço de publicização da causa dos moradores e

um instrumento de visibilidade positiva da comunidade diante dos argumentos que se

opunham à permanência deles na área. Era a festa tradicional do Morro das Andorinhas

que fazia deste momento um meio de transformar a política em fogueira e forró.

49 Para a composição do Conselho Consultivo era necessário que a ONG, associação ou entidade colegiada apresentasse documentos que comprovassem a atuação na área, a existência de dois anos, estatuto registrado, ata de reunião indicando seu representante e carta de intenções sobre os objetivos da entidade junto ao Parque.

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Foto de uma das festas juninas no Morro das Andorinhas.

(fotos tiradas por Letícia de Luna Freire e Fabio Reis Mota).

Dada a visibilidade da controvérsia, o Deputado Estadual Marcelo Freixo

concedeu em 2007 a José Siqueira da Silva, o Seu Bichinho, morador mais antigo do

Morro das Andorinhas, a medalha Tiradentes, um dos símbolos de distinção de maior

importância no Estado, como a demonstração do reconhecimento da luta da

comunidade. Fato que foi marcante para todos os moradores, em particular o próprio

homenageado, que, diante de tamanha honraria, passou da tradicional timidez para um

novo estilo falastrão e brincalhão. Na época da concessão da medalha, encontrava-me

fora do país. Soube da homenagem e da emoção e felicidade contida no evento. Para

minha surpresa, logo após meu retorno, em visita ao Morro das Andorinhas, tinha

encontrado um Seu Bicinho com sorriso resplandecente, fazendo piada, brincando com

as pessoas. Um efeito de mudança, como no caso que descrevemos sobre a

Marambaia, no nível mais íntimo da ação pública.

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O Sr José Siqueira da Silva, seu Bichinho, recebendo a medalha das mãos do Deputado Marcelo Freixo

Embora a controvérsia envolvendo a população do topo das Andorinhas tivesse

adquirido visibilidade pública, com a constituição de uma rede extensa de atores que os

apoiavam, a disputa entre os “direitos difusos do meio ambiente” e os “direitos difusos

da comunidade tradicional” ganhou de novo o mundo jurídico com a proposta do

Ministério Público Estadual de constituição de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC)

com a comunidade. O objetivo era propiciar o uso sustentável dos recursos na área de

preservação (Maranhão, 2007). Através de uma Ação Civil Pública, o MP propôs o TAC

de modo a conciliar a permanência da “comunidade tradicional” e o “meio ambiente”.

De acordo com Maranhão (2007: 42):

o Ministério Público, representado pelo promotor de justiça recém-empossado na 2º Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Niterói, propôs à comunidade do Morro das Andorinhas a celebração de um termo de ajuste de conduta, com o objetivo de conciliar a preservação do meio ambiente e a permanência das famílias. Com o objetivo de definir conjuntamente as regras de utilização do local, foi marcada uma reunião. No dia marcado, além dos representantes da comunidade, compareceram também

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outros moradores da região. Estavam preocupados com as conseqüências da anexação do Morro das Andorinhas ao Parque Estadual da Serra da Tiririca. Defendendo seu direito à moradia, os sitiantes estavam acompanhados de uma advogada da Rede Nacional de Advogados Populares. Como havia um grande número de pessoas presentes, não foi possível a entrada de todos no gabinete do promotor. Mesmo assim, a reunião foi acompanhada pela advogada dos sitiantes, além de outros representantes de entidades interessadas.

Nesta ocasião, pesquisadores do NUFEP e da Faculdade de Direito da UFF,

apresentaram um relatório que continha as informações históricas, revelando a

importância da presença da comunidade do topo do Morro das Andorinhas na proteção

do meio ambiente e destacando a longeva presença da comunidade tradicional local.

Paralelo a isso, tramitava o projeto de lei que iria definir os limites do Parque estadual, o

qual previa a anexação do Morro das Andorinhas aos limites do PEST. A proposta foi

aprovada, significando “a transferência da tutela do local para o Instituto Estadual de

Florestas” (Maranhão, 2007: 43). Portanto, a proposta do MP de celebrar um TAC com

a comunidade das Andorinhas não foi à frente, pois a tutela do espaço passou para a

responsabilidade do Estado, ficando a cargo do IEF as negociações com a

comunidade.

No âmbito da esfera pública, o Parque havia sido demarcado, num primeiro

momento, excluindo a área ocupada e utilizada pela comunidade no Morro das

Andorinhas, assim como algumas mansões existentes na encosta de Itacoatiara. Em

reuniões posteriores da Comissão que discutia os limites do mesmo, o Morro das

Andorinhas passou a figurar no novo mapa. De acordo com Maranhão (2007: 21):

desta forma, considerando que os limites definidos pela comissão implicavam em desafetação, a definição da área do PEST dependeria de aprovação do Poder Legislativo. Os limites do PEST tornaram-se definitivos em setembro de 2007, após a sanção da lei aprovada pelos parlamentares da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. O processo de votação que definiu os limites do PEST foi marcado por grande disputa política envolvendo a aprovação de emendas. Desta forma, algumas áreas foram retiradas do Parque sob o argumento de evitar gastos excessivos com desapropriações. Em outra emenda, foram estendidos aos moradores das áreas retiradas dos limites

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do Parque, os mesmos direitos assegurados pela lei estadual nº 2393/95, que garante o direito real de uso das áreas ocupadas às comunidades residentes há mais de 50 anos em Unidades de Conservação no Estado do Rio de Janeiro. A condição prevista na referida lei é que a população residente dependa, para sua subsistência, direta e prioritariamente dos ecossistemas locais. O direito assegurado pode ser transferido apenas aos descendentes diretos, desde que também preencham a condição de dependerem destas mesmas áreas, sendo vedadas a locação ou sublocação a outros interessados. O parágrafo 2º impõe como contrapartida deste direito, que as populações beneficiadas pela lei ficam obrigadas a participar da preservação, recuperação, defesa e manutenção das unidades de conservação.

Em decorrência dessa mudança, técnicos do IEF fizeram uma visita ao topo do

Morro das Andorinhas com o propósito de começar os estudos preliminares. Como

assinala Maranhão (2007: 48):

os responsáveis pela administração do PEST marcaram uma reunião com a comunidade a fim de estabelecer um “plano emergencial” com as medidas mais urgentes a serem adotadas até a elaboração do plano de manejo. Reconhecendo o direito à reprodução de sua cultura tradicional, a administração do Parque demonstrou preocupação em delimitar o espaço utilizado pelos mesmos a fim de manter sua privacidade. A comunidade poderá exercer seu direito de permanecer no lugar onde estabeleceram seu modo de vida com base no reconhecimento de uma relação diferenciada com o espaço. Em troca, deverão preservar o meio ambiente, se comprometendo à assinatura de um termo de compromisso ambiental.

A minuta do termo foi esboçada e discutida com os moradores, que convidaram

os pesquisadores da UFF, mais uma vez, para os assessorarem nesta nova etapa de

negociação com o Governo do Estado. Noutra visita dos técnicos do IEF ao topo do

Morro, estávamos lá para acompanhar a reunião. Como frequentemente ocorre, fomos

todos muito bem recebidos pelos moradores. Os dois técnicos do IEF foram gentis com

todos. Uma reunião num clima amistoso. Começam as observações dos técnicos.

Delas, decorrem as futuras mudanças às quais a comunidade teria que se submeter.

Em breve, os cachorros terão que ser castrados, pois não poderão se reproduzir no

topo do Morro porque são considerados focos de doença para os outros animais

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silvestres do Parque. Outras construções não poderão ser feitas para conter o

crescimento e seus possíveis impactos no meio ambiente. As cercas de arame terão

que ser substituídas por utensílios “mais ecológicos” e a plantação da roça ficará

restrita a um dos pedaços do topo do Morro. Enfim, uma série de mudanças será

levada a cabo, provocando alterações no estilo de vida da população tradicional local.

Para conciliar a presença da comunidade e o meio ambiente muitos hábitos, práticas e

costumes terão que se modificar. Nesta concorrência de direitos difusos dos não

humanos e os direitos difusos dos humanos, os moradores já não precisam mais correr

por conta da chegada do meio ambiente. Entretanto, não poderão acender as chamas

da fogueira de São João na próxima estação.

Os três “não-humanos” em via de extinção no Morro das Andorinhas após a chegada do “meio Ambiente”: o cão, a fogueira e o pilão (foto tirada por Fabio Reis Mota).

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CAPÍTULO 4: AS IDENTIDADES MEURTRIÈRES50 E O CORPUS REPUBLICANO : O PARADOXO FRANCÊS

Tous concernent des êtres portant en eux des appartenances qui, aujourd’hui, s’affrontent violemment; des êtres frontaliers, en quelque sorte, traversés par des lignes de fracture ethniques, religieuses ou autres. En raison même de cette situation, que je n’ose appeler “privilégiée”, Ils ont um rôle à jouer pour tisser des liens, dissiper des malentendus, raisonner les uns, tempérer les autres, aplanir, raccommoder... Ils ont pour vocation d’être des traits d’union, des passerelles, des médiateurs entre les diverses communautés, les diverses cultures. Et c’est justement pour cela que leur dilemme est lourd de signification: si ces personnes elles-mêmes ne peuvent assumer leurs appartenances multiples, si elles sont constamment mises em demeure de choisir leur camp, sommées de réintegrer les rangs de leur tribu, alors nous sommes en droit de nous inquiéter sur le fonctionnement du monde [...] Chaque personne sans exception aucune, est dotée d’une identité composite; Il lui suffirait de se poser quelques questions pour débusquer des fractures oubliées, des ramifications insoupçonnées, et pour se découvrir complexe, unique, irremplaçable Amin Maalouf (Les identités meurtrières) Les peoples de l’outre mer française savent que les séquelles de la violence d’État, de l’oppression, de l’humiliation restent longtemps nichées dans l’inconscient qui transporte l’émotivité du corps et les écorchures de l’esprit. Le corps garde ainsi ses habitudes primordiales. ChristianeTaubira.

Como vimos nos capítulos anteriores, a sociedade brasileira tem assistido

complexas transformações em seu cenário político, jurídico e cultural com a emergência

de grupos que assentam suas demandas de direitos ou de reconhecimento em suas

“identidades diferenciadas”, vinculadas a uma memoralidade histórica, a uma

tradicionalidade, de modo a tornarem visíveis e legítimas suas demandas na arena

pública brasileira. Ou seja, a “tradicionalidade”, a “cor da pele” ou a “quilombolice”

operam como instrumentos fundamentais para as ações coletivas, tornando-se

dispositivos através dos quais estes múltiplos atores fazem suas “vozes serem ouvidas”

50 O termo permanece em francês, pois é uma referência a obra de Amin Maalouf (1988).

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(Thévenot, 2007). Este fenômeno, como buscaremos frisar ao longo dos próximos

capítulos, diz respeito a um conjunto de mudanças culturais, jurídicas e políticas

evidenciadas nos países “ocidentais” a partir da emergência e difusão da gramática do

reconhecimento (Fraser, 2005).

Ainda que possamos reconhecer a abrangência internacional destes processos

sociais, de seu alcance externo às fronteiras nacionais, buscamos pontuar e

problematizar no decorrer desta tese os efeitos desta “gramática do reconhecimento”

em distintos contextos locais. Ora, se esta última é, a princípio, o paradigma basilar das

“democracias ocidentais” do pós-socialismo (Fraser, 2005: 5), ela adquire sentidos de

acordo com os sistemas culturais que a relaboram, a reclassificam de acordo com

eventos locais, contextuais. Partilhamos da concepção de Marshall Sahlins de que “a

transformação de uma cultura também é um modo de sua reprodução” (Sahlins, 1990:

174) na medida em que determinados eventos sofrem interpretações e reinterpretações

de acordo com as cosmologias locais. Por exemplo, enquanto a gramática liberal dos

EUA está informada pela lógica do “todos juntos, mas separados” (Dumont, 1966) -

legitimando, de acordo com essa cosmologia, a presença de minorias no espaço

público, cuja igualdade, aliás, é garantida pelo direito, como as affirmative actions,

(Sabbagh, 2003) – a gramática republicana francesa pressupõe a existência de todos

juntos em prol da unidade, valor que corrobora com a resistência à introdução de

mecanismos de ações afirmativas no espaço público pelo temor dos “particularismos

comunitários”.

Neste capítulo, pretendemos explicitar como a educação e as instituições

republicanas estão sendo colocadas à prova frente às demandas de reconhecimento de

grupos sociais que compõem a République. Atores não organizados, associações,

sindicatos, partidos políticos, intelectuais, acadêmicos, têm protagonizado debates e

embates na arena pública francesa contemporânea acerca das políticas destinadas às

“minorias visíveis”. Um exemplo destes “novos” atores na cena pública francesa é o

CRAN51 (do cartaz acima) que, desde sua fundação, defende ferrenhamente a

51 O CRAN (Conseil représentatif des associations noires) foi criado em 26 de novembro de 2005. Seu presidente atual é o Patrick Lozès. Em colóquio realizado no grand amphithéâtre da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em fevereiro de 2005, surgiu a idéia de criação desta organização. De acordo com as informações no site da instituição, o CRAN recusa qualquer pertencimento político, pois

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introdução da categoria cor e etnia no censo francês, com o propósito de avaliar

estatisticamente as desigualdades e discriminações raciais e étnicas. Debate, como

veremos mais adiante, que atinge diretamente o problema do universalismo francês, da

democracia e dos ideais republicanos.

Aqui, diferentemente dos capítulos anteriores, não analisaremos uma

comunidade específica, mesmo porque, como ficará mais claro ao longo do texto,

inexiste uma “comunidade Antilhana” na França metropolitana.

Mapa da França metropolitana e das ilhas antilhanas francesa.

ele se vê um “reflexo das cores da França”. O CRAN posiciona-se no combate contra as discriminações étnico-raciais e pelo dever da memória. Foram os co-fundadores do CRAN o porta voz do Partido Verde Stéphane Pocrain, o cantor camaronense Manu Dibango, o antigo presidente do SOS Racismo Fodé Sylla e a jornalista da Africa número 1, Eugénie Diecky.

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4.1 Ser nacional é ser universal

Para abordamos estas questões relativas à gramática republicana francesa e sua

relação com a gramática do reconhecimento contemporâneo, gostaríamos de eleger

algumas questões mais precisas para que possamos introduzir o leitor nesse complexo

universo da paisagem jurídica, política e cultural francesa. Vamos nos deter na

discussão do caso da demanda de cidadania plena por parte de uma muçulmana,

porque, no nosso entendimento, tal situação é um evento paradigmático que revela

múltiplos aspectos sociológicos para a compreensão da problemática central de nosso

trabalho. Posteriormente, buscaremos fazer a ligação dessa situação com a questão da

integração dos Antilhanos na França metropolitana e suas consequências na produção

de uma representação destas identidades como identidades meurtrières em relação e

contato com o corpus republicano. Este contato entre as “identidades meurtrières”, no

sentido atribuído ao termo por Amim Maloouf, e o “corpus republicano” – no sentido das

regras, normas, sensibilidades jurídicas e códigos que informam a République –

evidencia um dilema existente na sociedade francesa: o fato de que ser nacional

implica em ser universal, em decorrência da exigência do corpus republicano de que os

seus membros, para adquirirem sua cidadania plena, abdiquem de seus vínculos

identitários, culturais e religiosos no espaço público, em prol do bem comum, da

vontade geral e da cidadania universal.

As diversas faces da França e o corpus republicano nas eleições presidenciais.

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Desse modo, o caso de mulher, de origem muçulmana, casada com um francês

que deu início ao processo de naturalização na França, é paradigmático para

pensarmos estas questões enunciadas acima. Vamos a ela...

Um dos requisitos fundamentais para obtenção do visto permanente na França é

a aquisição da competência lingüística. A língua francesa é um importante sinal de

integração e assimilação ao estilo de vida local e requisito formal para obtenção do

visto permanente. Ela é, ainda, como vimos anteriormente, através do exemplo do

martiniquense retratado por Fanon (1952), um sinal de distinção do “grau de

francesidade”.

Essa mulher foi impedida de obter a nacionalidade francesa, pois relutou em tirar

sua vestimenta tradicional nas aulas de francês e nas entrevistas com os agentes do

Estado. Com a burca, de acordo com o relatório do governo francês, era “impossível a

interação entre a aluna e os professores”, dificultando a sua aprendizagem do francês.

Este caso veio reafirmar a jurisprudência de outra situação similar: de uma marroquina

que havia solicitado seu visto permanente, por ser casada com um francês e mãe de

três filhos nascido na França. A recusa por parte do Estado francês vai ao encontro do

argumento do caso da outra muçulmana: suas vestimentas tradicionais e suas crenças

vinculadas aos princípios do Corão ferem os princípios basilares da République. De

acordo com o Conselho de Estado52, que emitiu a decisão, a roupa e os valores da

marroquina não condizem com os princípios republicanos fundamentais: o da igualdade

entre os homens e mulheres. A mulher muçulmana teve também seu visto permanente

negado pelo Estado francês no mesmo ano de 2008, segundo o relatório do Governo

francês:

por ter em nome de uma prática radical de sua religião, um comportamento em sociedade incompatível com os valores essenciais da comunidade francesa e especialmente com o princípio da igualdade entre os sexos.

52 Para maiores detalhes sobre o Conselho de Estado ver Latour (2004).

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De acordo com a Haute autorité de lutte contre les discriminations et pour

l’égalité (HALDE)53, órgão governamental francês responsável pela defesa dos droits

de l’homme, as mulheres deveriam retirar suas burcas nos cursos para que houvesse a

possibilidade de integração à sociedade francesa. Favorável à negação da

nacionalidade às alunas que não correspondiam aos requisitos exigidos pelo Contrato

de Acolhimento e Integração (CAI), a HALDE ressaltou, através de seu presidente,

Louis Schweiter, que:

a obrigação de retirar a burca durante um processo de CAI no qual estão incluídas as aulas obrigatórias de francês não constitui uma discriminação religiosa, sobretudo em se tratando de um pedido de integração à França.

Segundo o princípio da République, estas mulheres se contrapõem aos valores

da sociedade francesa, ao não abdicarem no espaço público de seus pertencimentos

particulares (religiosos, étnicos, culturais etc.), pois não são passíveis de se

assimilarem à cultura local. Toda pessoa que postula a nacionalidade francesa deve

provar “son assimilitation à la communauté française, notamment par une connaissance

suffisante, selon sa condition, de la langue française” (artigo 21 e 24 do Código Civil,

apud Weil, 2004: 441).. Desse modo, se o conhecimento da língua é nulo ou não

corresponde às necessidades da vida cotidiana a demanda pode ser recusada. De

acordo com Weil (2004: 442) para cada caso de demanda de visto permanente a

Administração examina a estabilidade da residência e dos recursos financeiros na

França, o comportamento do postulante e seu grau de assimilação à comunidade

francesa.

No meio político, as opiniões tanto dos partidos de “esquerda” quanto dos de

“direita” foram favoráveis à decisão do Estado francês. Para François Hollande,

presidente do Partido Socialista francês, é uma “boa aplicação da lei e não há porque

contestá-la”. Para o outro lado da arena política francesa, Jacques Myard, do Partido

UMP (Union pour un Mouvement Populaire), o mesmo do Presidente Nicolas Sarkosy, a

lei, além de ser positiva, deveria ser aperfeiçoada através da proibição do uso de

53 O projeto de lei para a criação da Haute autorité de lutte contre les discriminations et pour l’égalité foi enviado à Assembléia em julho de 2004.

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burcas nas ruas em prol da segurança. Embora algumas associações muçulmanas

tenham se pronunciado contra a decisão, nenhuma delas postulou entrar na justiça. E,

ainda, emergiram as vozes dissidentes do movimento. É o caso da antropóloga e ex-

membro do Conselho Francês do Culto Muçulmano que afirmou que:

a burca não é um sinal religioso, é um uniforme que simboliza uma visão do mundo em que a pessoa se auto-exclui e exclui os outros. A pessoa coloca uma barreira intransponível entre si e o resto do mundo, então não me espanta o fato de que agora a lei francesa exija um mínimo de adesão aos valores da República.

De acordo com o jurista francês Gwénaële Calvès o princípio constitucional de

“unicité du peuple français” opõe-se ao “reconhecimento de direitos coletivos de grupos

que sejam definidos por uma comunidade de origem, de cultura, de língua ou de

crença”54, o que explica, segundo o mesmo, porque a França não ratifica os

instrumentos europeus ou internacionais que visam a proteção das minorias nacionais,

que reconhecem, juridicamente, a existência de minorias. Quando os reconhece, o faz

parcialmente, com a reserva pela qual o “Governo da République declara,

compte tenu do artigo primeiro da Constituição da République française, que o artigo X

não tem aplicação no que concerne à République” (Calvès, s/data).

Como salienta Calvès, essa indiferença com relação a existência jurídica de minorias

no espaço público francês, que se assenta numa distinção radical entre a esfera pública

e a privada, não exclui de modo absoluto a utilização de critérios de distinções proibidas

pelo texto constitucional, por parte do Estado francês. É nítido que, segundo Calvès,

que a separação das Igrejas e o Estado não é total, no que diz respeito, por exemplo,

aos serviços públicos, pois a République laïque não pode ignorar determinadas

exigências formuladas em nome de prescrições religiosas diferenciadas (jours chômés,

régime alimentaire, assistance d’un aumômier...). (Calvès, s/data)

Esta problemática torna-se ainda mais complexa na França contemporânea face

às demandas das minorias visíveis em distintos contextos, ainda que elas não

detenham visibilidade jurídica. De acordo com Simon (2003: 02):

54 Decisão 99-412 DC de 15 junho de 1999 (Charte européenne des langues régionales ou minoritaires)

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A visibilidade não procede somente de uma imputação negativa, ela revela igualmente um reconhecimento ou demanda de reconhecimento de caráter não contraditório com relação às referências de “origem”, de uma parte, e de exercício pleno da cidadania, de outra parte. A expressão “jeunes issus de l’immigration” testemunha de maneira desajeitada a transmissão de uma história que pressupunha desaparecer com a ascensão da nacionalidade francesa e da “francisation”, isto é, a dissolução no corpo nacional. É, portanto, possível conceber como portador de origens diversas e de exprimí-las nas práticas de referências, de afinidades, sem que elas ameacem a unidade nacional e não venham contradizer sua cidadania. Ora, esse reconhecimento permanece essencialmente teórico e continua a ser disputado, como podemos testemunhar através de determinados argumentos relativos ao debate sobre o véu na escola. Uma suspeita de ilegitimidade, ou de não francesidade, pesa sempre sob aqueles que, pelas suas práticas ou seus vínculos, são considerados por conta de suas afiliações como concorrentes com o pertencimento nacional. Os franceses “à trait d’union”, para utilizar o conceito de hyphenated americans, não são ainda percebidos como cidadãos à part entière.

A discussão sobre a legitimidade ou não das expressões dos laços culturais,

religiosos e étnicos nos espaços públicos laicos da Répubique tem revelado diversos

questionamentos à sociedade francesa, ganhando diferentes frentes de mobilização e

discussão na França. Ela tem sido tangenciada pelas discussões ocorridas em 2003 em

decorrência dos incidentes envolvendo alunas de origem muçulmanas que foram

impedidas de utilizar o foulard (véu) nas instituições escolares por “ferir o princípio da

laicidade francesa”. Este fato culminou, em fevereiro de 2004, na votação de uma lei

que impede a utilização de signos religiosos ostentatórios nas escolas francesas e em

determinados estabelecimentos públicos. A expulsão de algumas alunas reacendeu,

em 2003, o debate sobre o foulard com a inserção de diferentes atores públicos

(associações de pais e alunos, sindicatos dos professores, partidos políticos,

associações muçulmanas, etc.) mobilizados em torno da aplicação da laicidade

(Amiraux, 2004). Problemas que se tornaram públicos e reabriram as discussões

iniciadas em 1989 sobre o “foulard islamique”. No momento em que a França

comemorava o bicentenário da Revolução Francesa, celebrando o modelo histórico da

République dos droits de l’homme, o affaire do foulard isalmique introduziu um debate

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caro à França: a possibilidade de conciliar sua diversidade interna aos princípios da

République conquistada a ferro e fogo.

Por outro lado, estes eventos paradigmáticos lançam à arena pública francesa a

discussão acerca do combate à discriminação. A emergência da luta contra a

discriminação na França e suas implicações políticas e jurídicas não constituem

somente novas ações contra as desigualdades, mas representa uma nova forma de

compreensão das relações sociais e o advento de uma problemática e de modalidades

de ações coletivas pouco familiares à tradição filosófica e política francesa, pautada

pelo princípio da integração e assimilação ao corpus republicano e ao corpo nacional.

Como salienta Simon (2003), esses dispositivos e temáticas desenvolvidos atualmente

em muitas sociedades européias, que foram em parte forjadas nos EUA em torno do

trabalho ou da gestão de uma sociedade “multicultural”, tem posto à prova a política de

integração ao corpus republicano:

A política de integração tem como objetivo propiciar a inserção das populações consideradas como exógenas no corpo nacional, mobilizando dispositivos para dotar as populações exógenas (os imigrantes, entre outros) de recursos para melhorar sua compreensão e participação ativa na sociedade francesa. O uso desses recursos para que imigrantes abandonem progressivamente seus particularismos pode ser considerado seja como um fim em si mesmo, seja como um meio para autonomizá-los. Nestes dois casos, admite-se que todas as práticas e estruturas coletivas que são obstáculos para a incorporação dos recursos destinados aos imigrantes são contraditórios no que diz respeito ao horizonte de integração e devem ser modificados ou suprimidos. A exterioridade inicial é trabalhada progressivamente pelos “opérateurs d’intégration” para que ela seja absorvida e, a termo, as diferenças, concebidas muito mais como um fermento de desigualdade, nivelem-se tanto coletivamente quanto individualmente. A missão da integração consiste em transformar o imigrante de modo que ele possa se adaptar à sociedade de instalação. A luta contra a discriminação pode ser qualificada de maneira mais exata de “política de igualdade”. Ela está fundada numa perspectiva que opera um basculement de populações em direção às estruturas. Enquanto a integração supõe agir sobre as deficiências dos imigrantes, a política de igualdade se preocupa antes de tudo em agir sobre as propriedades do sistema, assegurando sua imparcialidade face os cidadãos, usuários,

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clientes... Portanto, as características individuais não são colocadas em xeque: cada um e cada uma deve poder acessar em condições semelhantes os direitos, bens e serviços. O horizonte da política de igualdade é suprimir os obstáculos ao acesso e as oportunidades do sistema. (Simon, 2003: 02)

Uma das consequências desse princípio republicano é que todo tratamento

diferenciado é visto sob suspeita, por atingir os laços cívicos que devem superar os

vínculos e pertencimentos particulares, sejam eles étnicos ou religiosos. Reivindicar o

acesso particular à determinados bens públicos, corresponde à forma de ação pública

categorizada localmente como comunitarista. O “comunitarismo”, no sentido atribuído

pelos nativos, possui uma carga negativa, pois corresponde a uma tentativa de

“isolamento comunitário” em detrimento dos laços cívicos da République. Recai sob

aqueles que lançam mão de estratégias discursivas tidas como comunitaristas uma

dura crítica na medida em que tal argumento é concebido como particularista, o que

afeta o princípio do bem comum e da universalidade dos cidadãos.

No caso dos denominados Antilhanos que moram em Paris, a categoria

“comunitarismo” detém uma alta complexidade e sensibilidade no momento em que

estes atores lançam mão de reivindicações de reconhecimento da igualdade postulada

no espaço público francês. Ainda que denunciem as desigualdades, as discriminações

vivenciadas, os negros provenientes das Antilhas, que moram na Metrópole, pretendem

fundar suas justificações no interior do princípio republicano: o da igualdade. Como

dizia um colega da Martinica, “minha crítica está baseada no fato de que o modelo

francês é desigual e funda a desigualdade numa hipócrita igualdade e liberdade. Mas

eu não quero discutir esse lance de minoria, porque eu não sou minoria, minoria é cocô

de cachorro!” Sua veemente crítica ao tratamento destinado às “minorias” na França

corresponde à sua “visão republicana” de que o problema do racismo, da desigualdade

entre brancos e negros, deve ser solucionada dentro dos preceitos republicanos.

Diferentemente, por exemplo, do princípio liberal americano do “todos juntos,

porém separados”, que visa afirmar as identidades particulares de cada grupo étnico

que compõe a nação americana (do hyphenated americans), o republicanismo francês

vem revelar dois tipos de demandas por parte dos antilhanos em Paris. Numa direção

ela está pautada no princípio da universalidade existente entre os cidadãos franceses,

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independentemente de seus laços religiosos, étnicos, familiares e territoriais. É, como

dizia um colega, o princípio “de esqueça a minha cor de pele, esqueça meu local de

nascimento e se detenha sobre minhas capacidades intelectuais de fazer as coisas

como qualquer outro cidadão francês”. De acordo com esse mesmo colega

martiniquense e residente em Paris há mais de 10 anos, o que para ele é importante é

o reconhecimento de sua capacidade técnica e intelectual. Tal como ele próprio afirma:

Não almejo ter acesso a determinados serviços ou trabalho por minha cor de pele. Desejo que minha formação, ter uma boa Universidade, ter tido acesso a um nível cultural elevado, sejam elementos considerados no meio em que vivo.

Neste sentido, numa direção, esta demanda de reconhecimento se assenta no

que podemos denominar de princípio da igualdade que está fundada no princípio da

semelhança.

Assim, numa direção esta demanda de reconhecimento se assenta no que

podemos denominar do princípio da igualdade que está fundada no princípio da

semelhança. Noutra direção, podemos identificar um tipo de demanda de

reconhecimento que se aproxima em determinada medida daquilo que Cardoso de

Oliveira (2002) intitulou, tratando dos conflitos existentes no Canadá, de demandas de

consideração e respeito às dignas identidades públicas. Demanda de reconhecimento

da relevância da cultura e história dos negros franceses na composição da Nação

francesa, por exemplo. Como vimos nos capítulos anteriores, o processo de

incorporação dos habitantes do Outre Mer funda-se nos marcos de uma “galicização”

dos negros antilhanos (Cleaver, 2005), na formulação do tipo ideal francês. O típico

francês é representado como a figura do branco, gaulês. “Quando se fala da França, se

pensa no negro?”, questiona um de meus interlocutores numa conversa sobre os

Antilhanos em Paris. Como explica um colega, comparando ao Brasil:

Veja bem, no Brasil, embora o povo negro sofra forte discriminação, haja uma desigualdade absurda entre negro e branco, os negros são representados na formação cultural da Nação. Você vê falar do Brasil, se vê falar da cultura negra. Um amigo meu foi à Bahia e chamou muito sua atenção como no espaço público o negro está representado em suas diferentes

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manifestações, em estátuas, em restaurantes, em festas, etc. Na França, na Metrópole, tudo aquilo que diz respeito ao negro é exótico. O zouk é exótico, a culinária antilhana é exótica. Por exemplo, seria engraçado se existisse um restaurante francês típico de especialidade antilhana. Na escola não falamos da relevância da população antilhana que lutou contra o nazismo na Segunda Guerra Mundial. É esse o mal-estar dos antilhanos na Metrópole.

Um mal-estar que é nutrido pelo princípio de que são franceses à part entière e,

segundo a fórmula de Aimé Césaire, franceses entièrement a part. Ora, no caso dos

denominados antilhanos há a convivência dos dois princípios: o da integração e da

demanda de reconhecimento à igualdade, pois não são imigrantes no sentido mais

elementar do termo. Como franceses, possuem os mesmos direitos, o acesso aos

mesmos bens, a princípio, e são livres para associar-se, fazer concurso público, etc.

Portanto, como franceses, estão aptos a se integrar ao corpus republicano,

incorporando e normalizando suas condutas à la française. Por outro lado, pelo fato de

serem provenientes das Antilhas, de sua cor da pele, de seu passado escravo, esta

inserção à sociedade francesa não valoriza as particularidades das identidades tidas

como meutrières que devem ser subsumidas em prol do bem comum. O corpus

Antilhano não é compatível com o corpus republicano, necessariamente, como iremos

problematizar mais a frente.

Como vimos no capítulo 1, é nesse sentido que a terceira República forneceu um

quadro particular das relações sociais na França, pois ela veio inserir a ideologia

política e administrativa da assimilição. Nas palavras de Aimé Cesaire, a assimilação:

consistia, para ser civilizado e não ser mais um selvagem, em renunciar a um certo número de coisas e em adotar um outro modo de vida. Tudo isso é completamente respeitável, mas já no liceu eu sabia então que isso era respeitável mas insuficiente. Essa doutrina não respondia mais às necessidades do século XX!55

55Entrevista concedida ao site http://www.cristovam.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=798&Itemid=1.

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O princípio da assimilação não correspondia aos anseios da négritude francesa

que emergia no cenário político e cultural do século passado, logo após a Segunda

Guerra Mundial. De acordo com Aimé Cesaire:

não é preciso ser ingrato: é evidente que isso rendeu enormes serviços, mas no mundo moderno era necessária uma outra coisa. Eis porque fui muito rapidamente conquistado por uma idéia que não tinha então ainda todo seu lugar - mesmo que ela não fosse desconhecida – em nossos comportamentos e em nossas filosofias: a identidade. Quando os martiniquenses diziam “assimilação”, quando fui eleito deputado, eles me pediam para voltar da França com a Martinica departamento francês. Confesso que fiquei perturbado. Hesitei. E estou convencido, cara Maryse Condé, que aquela que está diante de mim, que revejo ainda sentada, refletindo, em seu escritório da Rua des Écoles, com Alioune e Christiane Diop, me compreenderá. Hesitei. Finalmente - e isso foi um drama para mim - compreendi. A assimilação, isso significa a alienação, a recusa de si mesmo. É terrível… Mas você pensa então que as pessoas de Fort-de-France e dos subúrbios não entendiam isso totalmente: eles pronunciavam a palavra “assimilação” e lhe davam um sentido bem particular. Aceitei defender essa tese porque compreendi - e é evidente – que há as palavras, mas também o que há por trás das palavras. Na realidade, o pobre coitado que vinha se pendurar em mim para me pedir a assimilação, para que a Martinica se tornasse um departamento francês, não queria a assimilação. Ele queria a igualdade com os franceses. Eis porque nós debatemos sobre a idéia de departamentalização, que não supõe forçosamente a assimilação: um departamento é uma medida de ordem administrativa. Mas, para mim, o equilíbrio essencial devia se fazer a propósito da identidade. Daí a importância da cultura. Retorno à tua pergunta: por que as palavras da poesia são “armas miraculosas”? Porque pensei que é de lá que, miraculosamente, devia vir a salvação. Isso era, para mim, o milagre.56.

56 Aimé Cesaire em entrevista ao site http://www.cristovam.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=798&Itemid=1

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4.2 Ser negro francês e ser francês negro: entre a assimilação, integração e

reconhecimento

Como vimos acima, a assimilação, do ponto de vista jurídico, político e cultural,

permite que ainda hoje a paisagem francesa seja marcada por esse princípio da

integração ao corpus republicano. No caso das duas muçulmanas, o argumento da sua

não incorporação aos princípios da République ocasionou a recusa do titre de séjour

permanente às duas estrangeiras. Mas como a assimilação opera no caso dos

Antilhanos ? Segundo Udino (2008: 64):

a assimilação é o principal modo de integração social na França e, ao mesmo tempo, um processo de identidade para os antilhanos. A assimilação comporta numerosas convergências com a construção da identidade francesa antilhana, pois foi necessário passar do status de escravo ao de cidadão.

Nos anos 70 do século XX, a tradicional política de assimilação e do processo de

adaptação dos imigrantes resultou na invisibilidade das diferenças culturais na esfera

pública, pois foi deslegitimado pela descolonização, de um lado, e pela rejeição aos

imigrantes de origem norte africana ou africana, de outro (Weil, 2004: 368):

A gente distingue então os partidários da inserção e aqueles da integração. A ‘integração’ privilegia a relação com o indivíduo; ela visa absorver cada indivíduo um após o outro na sociedade de acolhimento pela mistura ou brassage que é levado a cabo na escola republicana, na realização do serviço nacional, no casamento fora do meio de origem. Esse processo implica uma dinâmica de troca. Cada um aceita se constituir parte do todo e se compromete a respeitar a integridade do conjunto. Inversamente, a ‘inserção’ organiza os direitos de uma comunidade: a implantação na sociedade francesa se efetua não sobre um fundamento individual, mas sobre um fundamento comunitário. Essa comunidade é às vezes representada diante dos poderes públicos pelos dirigentes que visam manter a especificidade do grupo (Weil, 2004: 369).

Essas políticas casam com os processos de intensificação da migração em

direção à Franca. Notadamente, é a partir dos anos 60 do século XX que há um intenso

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processo de migração das Antilhas em direção à Metrópole. Nos anos precedentes,

com menor intensidade, já ocorria uma migração de uma elite Antilhana destinada à

função pública. Para eles “ir à França” com uma perspectiva de uma carreira

metropolitana era incontestavelmente sinônimo de ascensão. Com os eventos em

Martinica e em Guadalupe, relativos às manifestações e revoltas em decorrência da

crise da produção agrícola nas regiões, o Estado francês se encarrega de

institucionalizar e controlar o movimento de migração Antilhana com a criação, em 1961

do BUMIDOM (Bureau pour les migrations intéressant les Départements d’outre-mer),

como visto no capítulo 1. Fato que vai provocar a multiplicação do número de

Antilhanos na metrópole.

No caso da população Antilhana, a assimilação rendeu benefícios, segundo

mesmo Aimé Césaire, propiciando esta passagem do lugar do negro-escravo-antilhano,

mas também trouxe com ela um processo de “mortificação” dos pertencimentos, das

particularidades concernetes à identidade antilhana. Ela “gaulicizou” (Cleaver, 2005) a

forma antilhana de ser através desse processo de assimilação dos escravos em sua

transformação em cidadãos. A lógica igualitária assimilacionista fez com que o corpus

republicano prevalecesse sobre a “pele negra”, no sentido não apenas de sua cor, mas

da corporeidade subjacente à ela. Esta situação contemporânea das relações sociais

na França propiciou o aparecimento, para os Antilhanos que vivem em Paris, de um

sentimento que oscila entre ser français à part entière et français entièrement à part, na

medida em que a cor da pele o distingue da realidade envolvente. Cumpre salientar, por

exemplo, o papel do BUMIDOM no processo de gaulicização através das mulheres

provenientes das Antilhas, como bem demonstra Pourette:

As estratégias de recrutamento do BUMIDOM visam igualmente ‘instruir’ as mulheres com a finalidade que elas se adaptem ao modo de vida metrepolitano. Assim, numa formação de ‘especialização doméstica’, uma pré-formação intitulada ‘adaptação à comida e ao modo de vida metropolitano’ é ensinada. Esse tipo de formação consiste em ensinar às mulheres como cozinhar, fazer a limpeza, se vestir... de maneira correta segundo as normas metropolitanas. Não se trata, então, de ajudar estas mulheres a se inserirem na sociedade francesa, o bem-estar dos migrantes não faz parte das preocupações das políticas migratórias. A finalidade dessas políticas reside no fato de que os

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migrantes devem se adaptar ao modo de vida metropolitano para que eles o reproduzam corretamente e que elas transmitam às suas crianças. Essas mulheres devem, portanto, contribuir para a reprodução da sociedade francesa, segundo suas próprias normas, se vigiando para não introduzir elementos culturais exteriores com a finalidade de preservar a identidade nacional (Pourette, 2006: 17)

Foto dos anos 60 do século XX com inscrições no muro de Fort-de-France

Esta estratégia francesa de afirmar a igualdade pela indiferença às identidades

étnicas, culturais e religiosas - dentro do princípio de que para obter a igualdade é

necessário impor semelhança, nivelar e, não, diferenciar os públicos – propiciou a

constituição de grupos “médios” descedentes dos escravos, dos imigrantes. Ainda que

o passado colonial francês tenha sido umas das matrizes de produção da desigualdade

entre os metropolitanos e os indigènes - como vimos no capítulo 1, via o Code Noir - e

seja um dos elementos que sustentam as discriminações cotidianas na França

metropolitana, o princípio do “esquecimento em prol da unidade nacional” tornou-se

durante muito tempo um dos mecanismos que fundaram as relações no espaço público

francês. Mesmo para os partidários do reconhecimento destas desigualdades, a fórmula

para a superação desse passado colonial, e de suas consequências atuais, é a

constituição de uma política de indiferenciação. No caso dos Antilhanos, essa busca

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pela igualdade social e política, propiciou aquilo que Edouard Glissant denominou de

“pulsion mimétique” relacionada à figura do branco francês.

Esse complexo jogo entre a lógica da indiferenciação e da assimilação na

sociedade francesa é explicada por Fanon (1952: 120):

aos Antilhanos, o jovem Negro, que na escola não cessa de repetir “nossos pais, os Gauleses”, se identifica com o explorador, com o civilizador, com o Branco que traz a verdade para os selvagens, uma verdade toda branca. Há uma identificação, isto é, o jovem Negro adota subjetivamente uma atitude de Branco [...] Uma criança de oito anos oferecendo algo, mesmo para uma pessoa adulta, não saberia tolerar a recusa. Pouco a pouco, a gente vê formar e cristalizar nos jovens Antilhanos uma atitude, um hábito de pensar e de ver que são essencialmente brancos. Quando, na escola, ele vai ler as histórias dos selvagens, nas obras brancas, ele pensa sempre no Senegalês. Estando na escola, nós podemos discutir durante horas inteiras sobre os pretensos costumes dos selvagens senegaleses. Havia em nossos propósitos uma inconsciência ao menos paradoxal. Mas é que o Antilhano não se pensa Negro; ele se pensa Antilhano. O nègre vive na África. Subjetivamente, intelectualmente, o Antilhano se comporta como um branco.

O jovem Antilhano que migra para a França metropolitana é chamado a todo

tempo a viver com seus “compatriotas brancos”, a se “europeizar” e, com isso, é

convidado a perder seus laços com as Antilhas, suas famílias, seu modo de vida, suas

expressões obrigatórias dos sentimentos. Como dizia um guianense num jantar na casa

de um amigo:

Quando a gente chega aqui em Paris, nós perdemos nossas formas mais elementares da vida nas Antilhas. Andar de camisa aberta, rir alto, falar alto, andar pela rua a bouger (balançar) o corpo. Aqui em Paris tudo se torna mais contido, não se fala alto, não se ri alto. As pessoas devem conter sua corporalidade para não se tornar mais do que um velho nègre.

Assim como no caso do martiniquense descrito por Fanon a que nos referimos

nos capítulos anteriores, que come o R para fugir do estigma do martiniquense típico-

comedor-de-R, a fala deste interlocutor demonstra de que modo esse processo de

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assimilação se constitui como um forte mecanismo de socialização e de normalização

dos corpos. Foucault fala do controle imposto aos corpos através das instituições totais

como as clínicas, os presídios, etc. (Focault, 1972 e 1977) como espaços de

normalização das condutas. O mesmo ocorre, poderíamos asseverar, no que diz

respeito ao processo de assimilação à la française. Ela se torna um potente recurso de

incoporação das “identidades meurtrières” ao corpus republicano. E por que?

Porque exatamente, a cor da pele para um Antilhano, no contexto do corpus

republicano, comporta características paradoxais. Ela é ao mesmo tempo um elemento

que caracteriza a afirmação da particularidade do francês proveniente das Antilhas, je

suis noir, je suis fièr, mas também um traço negativo, pois para eles a cor da pele não

corresponde a um presente. Um colega martiniquense esboçou uma elucidativa

explicação acerca do lugar da cor da pele na cosmologia antilhana:

Nas Antilhas este o mito do mal de Cham que corresponde a uma história de natureza religiosa. Quando Deus criou o ferro e a prata chamou um branco e um negro para escolherem uma coisa ou outra. O negro escolheu o ferro e o branco escolheu a prata. Enquanto esta representa a fortuna, o bem estar, o ferro representa a dor, o desprezo, a escravidão. O ferro representa a escravidão e essa condição a qual os negros foram submetidos permanece na memória coletiva como algo terrível e degradante.

Desse modo, paradoxalmente, para um Antilhano ser Negro não é um presente.

Como destaca Udino (2008: 32) há termos que definem esse lugar da cor da pele nas

cosmologias locais:

”Pli i nwè, pli i kouyon” (Mais ele ou ela é Negro(a), mais ele ou ela é idiota). Quanto mais a pele negra, mais a dificuldade de se fazer ser aceito e se integrar. É comum, aliás, que os pais digam às suas crianças ainda hoje em dia “ou ja nwè, pa fé yo rimatchéw !” (Se você já é negro, não apareça!) Mas além dessa doença ligada à cor da pele e traduzida por provérbios, é tudo uma maneira de fazer, pensar, olhar, de se constituir.

Essa condição da cor da pele propicia um tipo de sensibilidade por parte dos

Antilhanos no que concerne seu lugar na sociedade francesa. A sua cor é o sinal da

convivência de um signo de mal-estar, o mal-estar da escravidão que em prol da

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harmonização social, foi esquecida. Essa situação paradoxal fortalece o sentimento de

inferioridade e de invisibilidade deste grupo na arena pública francesa. A própria

categorização recente deste grupo como uma “minoria visível” vem definir esse lugar

ambíguo que o Antilhano ocupa na arena pública francesa, no reconhecimento de sua

cidadania francesa de ser negro/francês e ser francês/negro (Udino, 2008: 87).

A importância da cor da pele vem reativar um aspecto crucial das relações sociais

nas Antilhas a respeito da construção identitária que está relacionada à valorização de

determinadas características fenotípicas vinculadas a este passado. Nas sociedades

antilhanas - que se constituíram a partir de uma ordem social-racial hierarquizada, que

propiciou a constituição de um estigma forte com relação à cor da pele e de sua

subjugação em comparação à pele branca – a cosmologia da cor da pele é ligada a

uma dimensão de um handicap social aos olhos externos e a uma inferiorização nas

relações sociais (Udino, 2008). Para ilustrar o papel que a cor da pele desempenha no

processo identitário antilhano é, por exemplo, preciso escutar os comentários feitos por

ocasião do nascimento de uma criança, pois se fala de sua cor – se negra, mulata, etc.-

e de sua classificação no interior da família.

Ora, a dispersão e a inserção dos Antilhanos na Metrópole fazem parte desse

processo de assimilação dos Antilhanos em Paris. A République exige ao mesmo

tempo o esquecimento das especificidades regionais, bem como o esquecimento da

sua cor da pele, de seu vínculo com a história da escravidão. A cor da pele, por outro

lado, como buscamos ressaltar, ainda assim pemanece, paradoxalmente, como

símbolo de distinção e de discriminação. Ao mesmo tempo que lhe é exigido esquecer

sua cor da pele, ela continua ser um diacrítico que resulta na lembrança frequente de

que, embora os Antilhanos sejam français a part entière, as relações cotidianas

reafirmam que são, simultaneamente, français entierement à part. Isso propicia que os

Antilhanos constituam uma identidade particular no seio da République. Como ressalta

Pourette (2006: 36):

a problemática identitária dos Antilhanos que migraram para a metrópole vem à luz no momento em que eles tomam consciência do revés da assimilação, quando é explicitado para eles que são somente franceses de status. Assim, a questão da identidade coloca-se de maneira mais crucial para os Antilhanos migrantes

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do que para os Antilhanos que permaneceram nas Antilhas. Trata-se, para eles, de saber quem eles são, pois é evidente que eles não são franceses como os outros.

Uma particularidade que se assenta nos múltiplos sentidos que a cor da pele

adquire no espaço público francês. O fato dos bretões serem brancos, mas

reivindicarem suas particularidades no que concerne sua língua, por exemplo, não os

distingue “a olho nú” do “típico” francês, ao passo que a cor da pele, enquanto um sinal

visível, é um fator que distingue o francês negro e o francês branco. Como dizia uma

guianesa que mora em Paris há mais de 20 anos, “é na rua que sabemos que somos

negros, no trato cotidiano, no trato com a polícia, no comércio, etc.”. O “negro na rua”

tanto faz ser Antilhano ou ser africano. O que os distinguirá são outros sinais como o

domínio da língua, dos códigos corporais, dos símbolos e mitos partilhados do “être

français”. Na rua, tanto o negro francês como o negro não francês, como diziam muito

de nossos interlocutores, é um estrangeiro. Na compreensão nativa, ser negro é ser

estrangeiro. Extraio a fala de um martiniquense que retrata Udino (2008: 129), pois

ilustra essa condição de estrangeiro, de ser o outro, embora sendo francês:

Quer dizer que eu, na rua, quando passo, eu sou um Negro, ou seja, sou um estrangeiro, um outro . E o que é que a gente chama Francês? Quer dizer, em relação às relações que você pode ter, aos conhecimentos e conhecendo sua identidade, as pessoas sabem que você é um Antilhano. Mas quando você passa na rua, você é um estrangeiro, você é um Negro. É a instauração e a mentalidade. Um iugoslavo passará menos talvez como um estrangeiro do que eu, porque ele tem a cor branca, porque a pessoa não sabe se ele realmente é ou não francês. Talvez em relação à sua forma de falar e aos seus documentos sim, mas acima de tudo, o olhar que as pessoas terão sobre ele será de vê-lo como Branco. Como branco, ele pode ser considerado um Francês. O Negro é automaticamente visto como um estrangeiro. Por exemplo, durante uma abordagem policial, antes mesmo de saber que eu sou francês, antes mesmo de ver meus documentos, eles já têm um a priori. E isso faz com que eu me sinta às vezes estrangeiro sim... (grifos do autor).

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Ora, essa fala chama atenção para o fato de que, embora eles sejam cidadãos

franceses, as realidades de discriminação não mudam significativamente nas relações

cotidianas, como no mercado de trabalho, como aponta Marie (2002).

Por outro lado, ainda que existam similitudes no que concerne o lugar dos

Antilhanos e dos demais “imigrantes”, como os Africanos, no interior da sociedade

francesa, seja no que diz respeito ao acesso ao trabalho, moradia e às discirminações

cotidianas, os Antilhanos se percebem de modo distinto aos outros “imigrantes”. Como

enfatiza Pourette (2006: 42):

Tendo consciência de suas diferenças em comparação aos metropolitanos, tanto no que diz respeito ao seu fenótipo quanto à sua história familiar, alguns se distinguem das outras pessoas de cor, sobretudo dos Africanos. Eles se afastam da “Blanchitude” e da “Négritude” na busca de uma identidade autônoma. Eles se situam na busca de uma identidade antilhana, mas ela diz respeito a uma identidade original.

Por outro lado, há uma distinção forte no âmbito cultural e político no que

concerne ao Negro Africano e o Negro Antilhano: este último detém a cidadania

francesa. Ou seja, goza do ponto de vista administrativo e jurídico de todos os direitos

de um cidadão francês. Bem como também goza de uma capacidade de lidar com as

situações conflituosas que um Negro africano não possui por ter uma competência

linguística e domínio dos códigos locais que um Africano não possui por não ter sido

socializado na escola republicana, por exemplo. Uma situação vivida por um amigo

martiniquense e morador de Paris há dez anos elucida bem esse ponto:

Numa certa vez estava andando com uma blusa do Bob Marley com uma folha de maconha. Estava vindo de uma escola de criança, onde era animador aos finais de semana, e estava um pouco sujo. Fui abordado por um policial que interpelou-me, solicitando meus documentos. Perguntou-me se portava alguma substância ilegal. Respondi-lhe negativamente. Afirmou, então, que eu, ao usar aquela camisa, estava infringindo a lei citando erroneamente uma lei do Código Penal. Corrigi-lhe dizendo que não se tratava de tal código, mas de outro número e afirmando-lhe que a utilização daquela camisa não consistia num crime. Ele percebeu que comigo não ia dar, pediu desculpas e me mandou ir embora.

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Essa situação ilustra bem de que modo o fato de “ser negro na rua” adquire

contornos distintos diante do domínio dos códigos corporais, linguísticos, que permitem

uma distinção efetiva entre um negro francês e um negro não francês, notadamente

africano. Mesmo porque para os Antilhanos há uma fronteira bem demarcada entre

estes dois pertencimentos. De acordo com Udino (2008: 75):

diversos Antilhanos fazem esta distinção e regionalizam suas reivindicações nas atuais lutas sociais . Essa vontade de afirmar sua ‘regionalidade’ corresponde a uma forma de resistência intelectual face ao esquecimento e a negação na história da França.

É nesse contexto que os Antilhanos reivindicam sua identidade francesa. Eles

reivindicam o direito de ser Francês e Negro e Negro Francês, onde essa

“regionalidade” corrobora com a dissociação entre o Negro Antilhano e o Negro

Africano:

a pele remete então a uma história, qualquer que seja. Ela é também portadora de significações. O dilema dos Antilhanos situa-se justamente aqui. Seu corpo físico faz aparecer uma fisionomia idêntica à do Africano, do qual descende, mas do qual se diferencia pela história – o mercado triangular e o choque psicológico que isso provocou o diferencia do Africano, no seu mundo de relação, seu modo de vida; o meio geográfico e institucional também é diferente. (Udino, 2008: 131)

Ainda que esse pertencimento esteja associado a situações e contextos bem

diversos, afinal um “martiniquense é primeiro martiniquense, posteriormente um

antilhano e, enfim, um francês”, como dissera um amigo, esses múltiplos

pertencimentos, mediados por fronteiras fluídas (Barth, 2005) distinguem também os

Antilhanos entre eles mesmos. Como uma colega guadalupeana, em conversa conosco

e com um amigo martiniquense, ironiza.

Veja bem, diversos martiniquenses dizem que durante a escravidão os escravos mais robustos e inteligentes eram vendidos à Martinica. Os outros eram vendidos para Guadalupe e Guiana. Alguns dizem que os martiniquenses são menos negros

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que os guadalupeanos e os gaudalupeanos falam que os martiniquenses são frágeis, não são rebeldes. Os martiniquenses são, de fato, mais brancos que os próprios brancos.

Há ainda, sobretudo na geração do final dos anos 90 do século XX, um grupo

que não sobrepuja seus laços com a identidade antilhana em prol de um estilo black

forjado pelo modo Black american de ser, que tem definido os pertencimentos e

identidades dos filhos de outre-mer da nova geração. Esses jovens blacks se

reconhecem nas expressões corporais, musicais e culturais dos negros americanos

(Pourette, 2006).

Ora, o modelo político e jurídico francês da assimilação e integração, conduziu

os Antilhanos a uma condição híbrida, entre as referências republicanas e as

comunitárias, na Metrópole, numa condição complexa de adaptação ao corpus

republicano. Por um lado a pele negra representa um símbolo de afirmação do “soi”,

pois ela remete à condição específica dos Antilhanos na constituição da Nação

francesa, mas ela também demonstra a dificuldade de identificação deles com a

sociedade de acolhimento, pois ele rompe com determinados laços e se torna

vulnerável no que diz respeito aos seus laços na Metrópole:

O grupo “cor de pele” é também o suporte de sentimentos e gestos sociopolíticos, todos adquiridos. Finalmente, a cor da pele é como o ponto de encontro de todo um complexo psico-socio-político e torna-se um fato social e um símbolo, o ponto de união e símbolo da desumanidade dos homens. Paradoxalmente, ela é igualmente, uma forma de afirmação de si e de luta contra o esquecimento do passado que pena para se inscrever na memória coletiva da nação. (Udino, 2008: 114)

Desse ponto de vista, há um duplo desafio para os Antilhanos em Ilê de France.

O primeiro é superar as dificuldades implícitas impostas pela condição de ser negro.

Outra é o fato de ser negro-francês, inscrito, portanto, numa lógica hegemônica fundada

no mito da unidade da nação que nega as reivindicações às diferenças, o direito a uma

identidade, como salientava Aimé Césaire na entrevista acima. Mas por outro lado essa

condição se ser negro-francês e francês negro permite aos Antilhanos em Île-de-France

o uso de múltiplas estratégias de inserção. Como bem salienta Pourette (2006: 40)

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Diferentemente dos imigrantes de origem estrangeira, os Antilhanos tem a possibilidade de fazer malabarismo com os valores, representações, normas e códigos relevantes nos dois registros: o registro metropolitano e o registro martiniquense ou guadalupeano. De fato mesmo se os migrantes foram socializados e teham vivido grande parte de suas vidas nas Antilhas, diferentemente dos estrangeiros e notadamente por intermédio do sistema educativo francês, um certo número de chaves lhes permite compreender o funcionamento da sociedade francesa e de se adpatar a ela. De outro lado, os Antilhanos mostram uma grande capacidade de de se adaptar às situações nas quais eles se encontram e mobilizar os elementos de um sistema de referência ou de outra segundo a circunstância

O fato de serem franceses à part entière permite a eles, embora sob signos

muitas vezes estigmatizantes, lançar mão de múltiplos registros e de plurais regimes

de engajamentos (Thévenot, 2006) diante de uma situação de interação e controvérsia

pública. Para as gerações de negropolitains isso é mais evidente, pois foram formados

dentro dos princípios republicanos, na escola republicana, adquirindo os códigos e

incoporando as categorias e sistemas classificatórios da sociedade de acolhimento.

Situação paradoxal que os leva ao mesmo tempo a uma relativa inserção no mundo

francês, que pode ocasionar, muitas vezes, uma estigmatização de suas formas

específicas de ser francês, seja por conta da história de sua família ou mesmo por

conta de sua cor da pele. Enfim, como assinala Pourette (2006: 47-48)

Se é difícíl falar em ‘comunidade’ no que concerne à população antilhana na migração, é contudo pertienente de evocar, com Chrisitine Chivallon, o motivo da ‘rede’ ou do ‘segmento comunitário’ para definir a migração antilhana. De fato, as diferentes formas de reagrupamento, também diversas, sejam elas estanques, ou em mudança, podem ser consideradas como ‘segmentos comunitários’ através dos quais mobilizam os laços comunitários. Esses segmentos, em sua diversidade, a multiplicidade de suas orientações e, às vezes, suas oposições são os lugares de expressão e de renovação de uma identidade antilhana orientada em direção ao múltiplo, o diverso, o movimento, enfim, a relação. E não em direção à unidade, à estabilidade, à rigidez, a não-troca. Vinculando-se aos modos de expressões nômades e se adaptando às configurações múltiplas, a identidade antilhana, inapreensível e fugaz, escapa ao olhar externo e à análise. Na migração, mais do que nas Antilhas, a

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identidade antilhana se constrói na relação, como propõe Glissant [...] As estratégias identitárias antilhanas não podem ser consideradas como compromissos harmônicos entre os códigos, normas e valores da sociedade de origem e aquela da sociedade de acolhimento. De fato, estas estratégias não dão lugar nem às ‘recomposições identitárias’, nem as trocas sincréticas de origens diversas. Há preferencialmente a justaposição de dois registros referenciais dos quais os indivíduos podem lançar mão segundo a natureza da interação.

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4.3 O jogo pelo reconhecimento

Esse empreendiemento de “desubstancialização” e de invisibildade das

identidades cuturais e étnico-raciais na França passou a ser descontruído não apenas

pela valorização de um pensamento pós-moderno, de valorização da mestiçagem, do

hibridismo, da multiculturalidade (Breviglieri et Stavo-Debauge, 2004), mas também por

toda uma série de épreuves públicas que a sociedade francesa foi submetida nas

últimas décadas com a questão da imigração, da assimilação dos “jeunes issus de

l’immigration” (filhos de imigrantes), dos franceses provenientes dos Conselhos

Ultramarinos, das manifestações públicas e etc.

Ainda que a política assimalacionista francesa tenha sido fortemente difundida e

defendida, transformando-se num verdadeiro fato social total na composição da

sociedade francesa comtemporânea, ela não implicou na invisibilidade e indiferença

total das demandas pelas especificidades contidas na cultura dos outros grupos sociais

e étnicos que compõem o Estado-Nação. O movimento da négritude impulsionado por

Aimé Césaire, Léopold S. Senghor e Léon G Damas, por exemplo, propiciaram no início

dos anos 40 do século passado uma forte resistência e reivindicação do

reconhecimento e da valorização da ascendência africana para a cultura Antilhana. Nos

anos posteriores é que essa busca pela afirmação da especificidade antilhana adquire

outras formas, com outras manifestações políticas e culturais, como a Créolite,

representada por Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant, visando

inventar novos esquemas culturais que permitem a coabitação de diferentes culturas:

as caribenhas, européias, indígenas e africanas (Pourette, 2006: 32). Como também a

creolisation, de Glissant, como a manifestação da coexistência, do encontro de

diferentes culturas, vem afirmar que a identidade Antilhana não pode ser mais pensada

como uma manifestação exógena, de acordo com os esquemas explicativos das

sociedades metropolitanas.

É, ainda, a partir dos anos 70 do século XX, que estas reivindicações adquirem

uma visibilidade além do universo literátio, cultural e político e ganha a arena pública

francesa. Embora os movimentos políticos manifestos pelos escritores como Glissant,

Chamoiseau, Césaire, entre outros, tenha tido uma notável influência em diversos

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círculos sociais dos Antilhanos, foi nos anos 70, com as mobilizações sindicais que

estes movimentos passam a deter uma visibilidade no campo político francês.

Em abril de 1976 há, por exemplo, uma grande manifestação que reuniu

trabalhadores martiniquenses, guianenses, guadalupeanos e da Ilha da Reunião que

reivindicavam melhorias em suas condições de vida e o reconhecimento de suas

especificidades (Pourette, 2006: 35). Este processo desencadeará a multiplicação de

movimentos associativos e sindicais destinados a defender os interesses da população

do DOM-TOM. De acordo com a Agence nationale pour l’insertion et la promotion des

travailleurs d’outre mer (ANT), em 1987 havia cerca de 826 associações originárias do

outre mer na França. De acordo com Pourette, (2006: 36):

Paralelamente ao desenvolvimemento da vida associativa, o processo de reagrupamento comunitário expressa-se enfim pela dinâmica cultural que caracteriza a população antilhana na metrópole. Assiste-se assim uma revalorização cultural que passa pela organização de festas, de bailes, de carnaval, de espetáculos de música tradicional, pela criação literária e teatral e pelo consumo de produtos locais. Ao mesmo tempo, efeito e motor da afirmação da Antillanité em Guadalupe e Martinica, esse movimento de valorização cultural e identitária se aparenta no Hexágono com uma ‘estratégia sócio-política’ de inserção na sociedade de acolhimento. A ‘diferença’ que é reclamada legitima as reivindicações específicas dirigidas ao poder público e permite a ‘institucionalização’ de uma comunidade em vias de consolidação.

Uma consolidação que não propicia necessariamente a composição de um

espaço homogêneo, mesmo porque, como vimos acima, a heterogeneidade existente

na composição dessa Antillanité permite também a heterogeneidade de estratégias e

ações políticas. Mesmo hoje em dia não se pode falar na existência de uma

“comunidade Antilhana” em Île-de-France pela dispersão geográfica, cultural e dos

diferentes regimes de engajamentos possíveis (Thévenot, 2006). Enquanto uns adotam

a estratégia de inserção plena à sociedade francesa, outros optam pela permanência e

frequência nos espaços Antilhanos, onde se fala créole, dança zouk, etc., e outros

adotam uma estratégia mista: de uma relativa assimilação, tomando emprestado os

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códigos e normas francesas, mas afirmando em parte sua identidade cultural

específica. Ou seja, operando no registro antilhano e francês.

Não é por menos que estas reivindicações adquirem notabilidade nesta época

com a emergência de movimentos de rejeição às minorias não européias e com a

ascensão das práticas racistas que adquirem peso na arena pública européia e na

França. Por exemplo, os eventos ocorridos nos anos 70 do século XX desempenharam

um importante papel nas mudanças políticas, jurídicas e culturais na França, como o

caso do incêndio no foyer Aubervilliers57 que veio marcar o debate, até então

inexistente, sobre a questão da imigração na França e de seu lugar do ponto de vista

político, cultural, econômico e simbólico.

As reações a respeito do lugar dos imigrantes no espaço público francês

culminou em efeitos jurídicos e simbólicos, como a lei contra a discriminação racial em

1972, incriminando as proposições, escritos racistas e os atos de discriminação

cometidos em razão da raça, cor, religião ou ascendência ou origem nacional ou étnica

(Weil, 2004: 368), trazendo à tona questões novas no âmbito do reconhecimento, da

discriminação e do pluralismo social e cultural francês. Como ressalta Weil (2004: 411)

Além de todas essas políticas de acolhimento ou integração, progressivamente os poderes públicos foram levados a reconhecer a existência de discriminações fundadas sobre o preconceito de ordem racial, religiosa ou cultural. Como analisa Didier Fassin, a entrega do relatório sobre as discriminações em 1998 ao Primeiro Ministro, pelo Haut Conseil à l’Intégration, pode ser considerada uma mudança simbólica na história do tratamento da questão. Em primeiro plano, ela desloca a questão da

57 O incêndio do foyer de Aubervilliers provocou a inserção dos temas da imigração e da discriminação de modo contundente na grande mídia, segundo Yvan Gastaut, publicado em Confluences Méditerranée - n°24. Momento em que a França se familiariza com um tema pouco discutido à época. Em janeiro de 1970, o incêndio do foyer d'Aubervilliers veio suscitar um debate nacional sobre o racismo. Nesse caso, a TV é um dos canais pelos quais os trabalhadores imigrantes se apresentam aos franceses. Na ocasião, cinco operários africanos morreram por asfixia na noite do inverno de janeiro no apartamento d'Aubervilliers (Seine-Saint-Denis). A imprensa consagra diversos artigos a respeito deste tema. Como ressalta Gastaut, é preciso notar que este evento testemunha ignorância e ingenuidade dos franceses face às condições de vida dos estrangeiros na França. Para se aquecer do frio, diante do defeituoso aparelho de aquecimento central, um grupo de trabalhadores resolveu fazer uma pequena fogueira no interior do apartamento. A forte transmissão de óxido de carbono culminou na morte de cinco trabalhadores por asfixia. A opinião pública sensibilizou-se pelo drama de Aubervilliers e toma consciência do lugar dos imigrantes na sociedade francesa e das condições de vida.

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integração, condicionando seu sucesso pela explicitação das discriminações: não se trata de uma mudança retórica, fazendo passar de uma concepção positiva e voluntarista (“agir para”) a uma leitura crítica e combativa (“lutar contra”); essa mudança vai ocasionar uma inversão de imputation causal, pois não são mais os atributos dos estrangeiros que consideramos como responsáveis pelas dificuldades às quais eles são confrontados (seu “capital humano”), mas o próprio funcionamento da sociedade francesa (inclusive pelos comportamentos não intencionais que conduzem a uma situação discriminatória). Em segundo lugar, o critério da nacionalidade aparece como insuficiente (...) porque as discriminações podem afetar ‘os Franceses de cor, notadamente do Conselho Ultramarino ou de origem estrangeira não européia (...) Há o reconhecimento do fundamento racial dessa desigualdade específica.

No ano Europeu contra o Racismo, em 1997, diversas manifestações públicas

propiciaram a visibilidade da questão da discriminação étnica e racial. Os diversos

estudos que foram levados a cabo na ocasião expondo as condições de tratamentos

diferenciados no mundo do trabalho, no acesso à moradia, na discriminação cotidiana

na escola, na justiça, no tratamento da polícia, bem como os relatórios do Conseil

d’Etat, consagrados ao “princípio da igualdade”, vieram lançar definitivamente o tema

do racismo, da integração, na agenda política francesa.

É nesse sentido que a questão do racismo, da discriminação se tornaram

importantes através de números sobre acesso ao trabalho, moradia, etc. O Institut

National de la Statistique et des Etudes Economiques (l’Insee) estimou58 cerca 146 603

pessoas nascidas nas Antilhas francesas que vivem em Île de France. De acordo com

estes dados, em 1954, 24.200 pessoas provenientes d'Outre-Mer se instalaram na

Metrópole, sendo que em 1962 eram 53 180 pessoas. Em março de 1999 foram

estimados cerca de 357 000 pessoas do DOM-TOM na Metrópole. Esta população,

segundo Udino (2008: 107) forma, em proporção, um dos mais importantes efetivos nos

serviços públicos da região parisiense, pois são cerca de 5.000 na Prefeitura de Paris -

cerca de 10% do total de servidores públicos – 12000 na Assistência dos Hospitais

Públicos, ou cerca de 14 % dos agentes, 2 500 nos Centros de Assistência Social da

Ville de Paris e 12% dos agentes públicos do LaPoste. De acordo com Udino uma das

58 Esses dados foram publicados no Dossiê n°207, publ icado em janeiro de 2002, intitulado o "Insee Île-de-France".

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vantagens de pertencer a este setor é que a cada três anos o estado francês paga um

bilhete de avião de ida e volta para todos nascidos no DOM-TOM, bem como para os

filhos com menos de 18 anos. Devemos ressaltar que a grande maioria destes

servidores públicos pertecem à categoria C, o que corresponde aos empregos menos

qualificados e de baixos salários. Como ressalta Udino (2008: 107)

o fato de pertencerem à categoria C faz deles subalternos do ponto de vista hierárquico e confere-lhes um papel de pessoa “a serviço de”. A idéia de estar a serviço de alguém remete o Antilhano à questão da servidão. Mas, considerando um pouco mais de perto, nota-se que estes empregos que correspondem à sua qualificação não os satisfazem porque eles reforçam a falta de reconhecimento e astutamente significam – em linguagem Anba Féï – para alguns a lógica do pertencimento atávico – esclave de père en fils et de mère en fille.

Em março de 2003 Bertrand Delanoë, da Inspection générale de la ville de Paris,

publicou um relatório contendo informações mostrando as desigualdades contidas nas

carreiras dos agentes públicos provenientes das regiões de Outre-Mer59. O

levantamento constatatou que estes agentes estão majoritariamente concentrados na

categoria C, cerca de 95,2% (que não exige um diplôme), 4,2% na categoria B (titular

de um bac ou de um diplôme equivalente) e 0,6% na categoria A (titular de um diplôme

universitário). O relatório aponta que as dificuldades existentes destes servidores

públicos ascenderem na profissão causa, além de um sentimento de desestímulo, um

forte ceticismo quanto à ascensão profissional. Para os funcionários públicos

entrevistados pelos pesquisadores, as possibilidades de promoção são dificeis, ainda,

pelos favoritismos existentes entre os superiores hierárquicos. Favoritismo que é

percebido, de acordo com as informações coletadas pelos pesquisadores, como uma

forma sútil de discriminação racial ou étnico, como no caso descrito na introdução.

Segundo um guadalupiano com quem discutimos sobre o lugar dos Antilhanos no

mercado de trabalho:

59 Ver Rapport sur les parcours des Agents de la ville de Paris originaires d’Outre-Mer. Publicado pel Délégation Générale à l’Outre-mer, Mairie de Paris, Julho de 2005. Coordenação: Bertrand Delanoë.

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As condições de acesso a uma promoção para um Antilhano são diferented para quem é um francês típico (branco). Há essa imagem, essa caricatura do Antilhano preguiçoso, que demora no atendimento hospitalar, do enfermeiro ou enfermeira que gasta seu tempo em conversas, risadas. Esse estigma dificulta muito que o Antilhano detenha um lugar êquanime comparando com o francês nascido da Metrópole.

Estas caricaturas são lidas como construções estereotipadas dos Antilhanos e são

vistas por estes como atos vexatórios, humilhantes e estigmatizadores. Dificilmente

uma piada acerca destas caricaturas passará desapercebida e não será objeto de

calorosas discussões sobre seu teor racista, discriminatório, no olhar deles. Esta

invisibilidade e as formas implíticas de manifestação da discriminação acabam gerando

em alguns uma hiper suscetibilidade acerca de sua cor da pele, de suas

característisticas físicas, de seu sotaque ou de sua origem racial. Isso conduz os

Antilhanos à produção de um sentimento de inferioridade na dinâmica das relações

sociais dos Antilhanos em Île-de-France. Como ressalta Udino (2008: 68):

em relação aos Antilhanos, este laço social passa pelo trabalho que – anteriormente, aliás, foi a razão da condição de escravos de seus ancestrais – é hoje o principal instrumento de socialização, de igualdade de tratamento e, ao mesmo tempo, uma fonte de afirmação identitária e de reivindicações face às discriminações no trabalho. Se alguns Antilhanos interrogados nesse estudo se dizem Franceses, é, com efeito, em relação ao trabalho, a “uma situação”, como dizem os Antilhanos quando querem dizer que uma pessoa tem um emprego e uma vida estável. Para eles, é uma fonte de emancipação e de valorização do percurso pessoal. Quanto àqueles que se distinguem reivindicando uma identidade regional, eles o fazem na forma de resistência intelectual, como para evocar que a velha tradição de ser Negro e Francês ou Francês e Negro custa se inscrever na memória coletiva da maioria dos Franceses, ou não existe. Mas a referência trabalho é o que permite aos Antilhanos falar do seu lugar na sociedade.

O trabalho funciona como forma de territorializar uma população

“destorritorializada”, não apenas pelos deslocamentos físicos, do país de origem, mas

também pelo deslocamento de pertencimentos, de posições e reconhecimento de seu

lugar na sociedade de acolhimento, na Metrópole. A distância entre os países do DOM-

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TOM e o a França metropolitana não é apenas física, mas denota uma distância

conceitual no que concerne ao modo de ser, em termos de concepções de mundo, das

cosmologias distintas. Com dizia um interlocutor martiniquense numa conversa no

apartamento de um amigo martiniquense:

Bem se eu me sinto francês? Bem, não diria que não. Mas me sinto eu mesmo em meu país , onde sou mais eu, onde posso andar de minha maneira, ter meu estilo. Na França as coisas são diferentes, as pessoas são diferentes. Eu me sinto francês, mas antes eu sou martiniquense, antilhano e, depois, francês.

Mesmo estando em Paris há mais de uma década, este interlocutor faz uma

distinção entre seu país e a França, embora não nutra, de acordo com o mesmo,

nenhum sentimento separatista, nacionalista, pois se sente francês de todo modo. “Eu

não sou desse negócio de comunitarismo, mas acho que o martiniquense tem que

saber achar ser lugar”, conclui ele a questão posta no debate. O lugar que se impõe

nessa dinâmica da proximité/éloignement à soi-même, que nos fala Aimé Césaire em

seu Cahier d’un retour au pays natal, em que ele contasta que esta construção da

identidade antilhana é alimentada por esse détour à soi, através desse processo de

desterritorialização e assimilação à Metrópole. Não é por menos que eles distinguem os

Antilhanos, nascidos nas Antilhas e os negropolitans, filhos de Antilhanos nascidos na

Metrópole.

É neste contexto de mudanças, tanto nas formas como estes atores operam

suas críticas, bem como nas alterações legislativas, que as formas de manifestações

das desigualdades existentes entre brancos, negros e estrangeiros no espaço público

francês, desencadearam mudanças políticas e jurídicas. No final de 2001, a noção de

discriminação indireta foi introduzida no direito europeu, sendo que sua transposição ao

direito francês se deu em janeiro de 2002. Em todo este período, desde a introdução

deste dispositivo legal no direito francês, esta lei se mostrou frágil diante das

dificuldades de sancionar os casos de discriminação.

Embora tenha sido criado um número 0800 (numéro vert) para o acolhimento das

denúncias relativas às discriminações, ainda que em dois anos (de maio de 2000 a

maio de 2002) 86 594 denúncias tenham sido registradas e 11 571 fichas tenham sido

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transmitidas à Commission départementale d'accès à la citoyenneté (CODAC)60, a

grande parte dos casos foram tratados pela mediação, não ocasionando em sanções

legais. A noção de discriminação indireta supõe, de maneira implícita, a existência de

“provas estatísticas para tornar evidente a existência da discriminação (Thévenot, 2006

b e Simon, 2003b). Todavia, não é possível saber quem é a vítima de discriminação

racial, porque não há uma definição positiva de raça nas estatísticas oficiais.

Na França a categorização desse público constitui uma dificuldade na análise da

luta contra a discriminação étnica ou racial. Se o francês imigrante ou negro antilhano é

reconhecido pelo seu pertencimento territorial-nacional, o mesmo não acontece com

relação a sua cor ou pertencimento étnico, ou seja, inexiste reconhecimento sobre este

prisma, enquanto categoria étnica. A informação acerca de sua origem ou cor não

figura em nenhum documento admnistrativo do Estado francês. Eles aparecem

raramente em pesquisas ou relatórios públicos, sendo que as informações existentes e

o conhecimento sobre a situação dos imigrantes e das pessoas de cor são dispersos e

não figuram como documentos oficiais do Estado francês.

Esta ausência de dados relacionados a estes aspectos impede todo projeto de

“ethnic monitoring” como praticado na Inglaterra (Simon, 1997). O ethnic monitoring

consiste no registro das origens étnicas em diversas fichas admnistrativas e faz uso de

informações geográficas extremamente detalhadas. Seu objetivo é avaliar as

necessidades das ações do poder público na luta contra as discriminações e a

eficiência dos programas de “ação afirmativa” destinados às “minorias visíveis”. No caso

francês este monitoramento permanece nos dias atuais impossível de ser realizado.

Para o Presidente do CRAN, as estatísticas sobre a raça e etnia são fundamentais para

que se faça uma fotografia justa da diversidade da França.

Mas a questão é que o ethnic monitoring, assim como o censo americano ou

canadense, se inscreve numa tradição que considera as diferenças culturais como

parte integrante do corpus social. Ele é tido como um instrumento capaz de responder

60 Com a finalidade de facilitar a integração profissional e cultural dos jovens, o ministre de l’Intérieur demandou a criação, em 18 de janeiro de 1999, em cada département de uma Commission Départementale d’Accès à la Citoyenneté (CODAC). Composta por um representante do Estado, das coletividades locais, dos serviços públicos e os atores econômicos e profissionais do département, a CODAC tem a missão de ajudar os jovens issus de l’immigration a achar um emprego e um lugar na sociedade, de lutar contra as discriminações, etc.

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aos objetivos das políticas públicas dirigidas às “minorias visíveis”, revelando uma

política de reconhecimento da diferença e da diversidade próprio de sociedades

concebidas como “multiculturais”. Desse modo, essas desigualdades podem ser lidas

sob o prisma das posições sociais e dos pertencimentos étnicos e raciais que compõem

estes países. Ou seja, isso não significa que o componente racial ou étnico substitua o

social, mas eles combinam. Ou seja, não se trata apenas de quantificar o fenômeno,

mas de factualizá-lo em medidas de ação do poder público e do judiciário para

suplantar tais problemas públicos. Todavia, na França, descrever e categorizar as

vítimas de discriminação é particularmente difícil diante, não somente das dificuldades

metodológicas, mas, sobretudo, pela concepção francesa que privilegia a

indiferenciação das identidades, impedindo a constituição de um conhecimento

sistemático sobre estas categorias.

A idéia de “variável sensível” evocada nas controvérsias sobre a introdução da

categoria cor e etnia no censo francês, tem impedido a inclusão do elemento “etnia” nas

estatísticas oficiais (Thévenot 2006 b). Esta polêmica foi forte na ocasião do censo de

1999, qualificada como "controverse des démographes" ou "controverse des catégories

ethniques" que trouxe à tona o debate a respeito da introdução das categorias

"ethniques" na estatística oficial pública (Stavo-Debauge, 2003). A controvérsia colocou

em lados opostos os "ethnicistes" et "républicains":

os primeiros procuravam introduzir categorias étnicas na estatística sob o risco (que eles desconheciam) de reforçar a etnicização das relações e identidades sociais; os segundos reforçavam a ignorância de que uma sociedade democrática deve se manter sobre as diferenciações suscetíveis de provocar o ostracismo e a rejeição, sob o risco de financiar a opacidade mantida pela experiência das discriminações. Se atendermos a esta dicotomia, não compreenderemos o que está em jogo, a saber, as modalidades de observação e de análise das trajetórias seguidas pelos “imigrantes” (e os seus descendentes) e as desigualdades ou discriminações as quais as pessoas são confrontadas em razão de sua origem “étnica” ou “racial” (real ou suposta) (Stavo-Debauge, 2003 s/pg).

Considerando que as formas de qualificação e categorização se inscrevem em

gramáticas políticas e morais, Thévenot (2006b) chama atenção para o fato de que esta

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distinção de tratamento acerca da diversidade étnica, comparando os EUA e a França,

por exemplo, assenta-se na forma como nas duas gramáticas são tratadas as

categorias direitos civis e igualdade cívica:

na composição liberal de uma coisa pública, o indivíduo é um estado preparado para o público, próprio ao encontro com outras pessoas no mesmo estado através da exposição pública de opiniões ou interesses que servem à composição. É por isso que a igualdade cívica (dito cívico LIB a seguir) é concebida como tratamento igual na distribuição de bens sociais, e que este civismo individualizado satisfaz uma grandeza marchande. O principal argumento utilizado nos Estados Unidos contra o racismo é o igual acesso ao mercado (Lamond, 2000), procedendo assim de um acordo entre as grandezas cívica e marchande que não estão presentes na França (Thévenot, 2006b: 10).

Na França, a igualdade cívica se reporta a um grandeur cívico do bem comum. A

igualdade está atrelada a uma unidade que enfatiza a figura do semelhante e da

consistência do coletivo em prol do interesse geral (como manifestado na concepção de

serviço público), igualdade assegurada por uma solidariedade anônima que se supõe

acima dos interesses particulares (Boltanski e Thévenot 1991). O universalismo

subjacente a esta gramática se pressupõe incompatível com a presença de outra

gramática como a do tipo liberal americano. A palavra mestre integração (ou,

anteriormente, assimilação) vai se compor com o grandeur cívico, sendo que o

isolamento comunitário conduz à julgamentos do tipo seguinte: “l'utilisation de

catégories ethniques risque de consacrer la fragmentation en particularismes repliés sur

des communautés d'origine, aux dépens de ce qui unit les citoyens”. (Thevenot, 2006b:

11). Ora, o direito individual fundamental ao igual tratamento não abarca nenhuma

reivindicação de pertencimento comunitário desqualificado pela igualdade cívica

francesa. Portanto, nenhuma "política de reconhecimento" pode estar acima dos direitos

gerais.

Mas nesse jogo pelo reconhecimento, por outro lado, a emergência da categoria

“diversidade” passa a se impor com um valor positivo, atrelada à dimensão da

representatividade, por exemplo, no que diz respeito ao igual direito de mulheres e

homens, seja nas funções públicas, seja no acesso a cargos em empresas, o que tem

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levado a França reconhecer a pluralidade de sua composição, o que tem modificado,

em certa medida, os mecanismos políticos e jurídicos, como no caso da proibição da

discriminação, via Código Penal (artigo 225) ou na busca de implementação de políticas

de cotas e de ação afirmativa. Outros dispositivos jurídicos têm propiciado sensíveis

mudanças no cenário francês, como é o caso de uma lei sancionada em 2001,

denominada “Lei Taubira” que reconhece a escravidão como um crime contra a

Humanidade.

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4.4 O reconhecimento e a luta pela reparação da mem ória.

A Lei Taubira, de autoria da Deputada Christiane Taubira, veio trazer questões

importantes do ponto de vista jurídico, político e simbólico na arena francesa no que diz

respeito às demandas de reconhecimento e de direitos à população Antilhana. O

reconhecimento do Estado francês dos crimes cometidos pela França no perído

escravagista abriu um espaço de negociação e de disputa de atores que reinvindicam a

reparação histórica dos crimes cometidos contra o “povo africano”.

Na Lei há dois grandes pontos que abriram brechas para um debate público

acerca da memória da escravidão e de ações de reparação, que trataremos, em

especial, mais à frente. No artigo primeiro da Lei fica estabelecido que:

la République française reconnaît que la traite négrière transatlantique ainsi que la traite dans l’ocean Indien d’une part, et l’esclavage d‘autre part, pérpétres à partir du XVe siècle, aux Amériques et aux Caraïbes, dans l’océan Indien et en Europe contre les populations africaines, améridiennes, malgaches et indiennes constituent um crime contre l’humanité

Como veremos, duas Associações francesas entraram com uma Ação contra o

Estado francês a título de reparação de seus crimes cometidos contra os escravos. Já

seu artigo 2º diz respeito ao lugar consequente que os programas de pesquisa em

história e ciências humanas devem ocupar no tratamento da questão do Traite négrière

e a esclavage. Fica estabelecido que:

les programmes scolaires et les programmes de recherche en histoire et en sciences humaines accorderont à la traite négrière et à l'esclavage la place conséquente qu'ils méritent. La coopération qui permettra de mettre en articulation les archives écrites disponibles en Europe avec les sources orales et les connaissances archéologiques accumulées en Afrique, dans les Amériques, aux Caraïbes et dans tous les autres territoires ayant connu l'esclavage sera encouragée et favorisée

Após 160 anos do fim da escravidão na França, foi reconhecida, de modo inédito

na Europa, a escravidão como um crime contra a Humanidade. Uma primeira

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consequência da Lei, foi o impacto na confiança, auto-estima e legitimidade das

populações do outre-mer. Veio reconhecer os efeitos negativos resultantes da

escravidão sob uma parte considerável da população francesa. Por outro lado, ela

possibilitou a emergência dessa memória (o esquecimento em prol da reconciliação

social) na arena pública francesa trazendo à tona o debate sobre o lugar do negro, da

população do DOM-TOM na França dos dias atuais. Como ressalta a Deputada

Christiane Taubira, autora da lei, num debate promovido pela Revue Esprit:

a marcha de maio de 1998 pela memória da escravidão organizada por uma coalisão inter-associativa tinha reunido em Paris mais de 40 000 pessoas. Ela foi, entretanto, ignorada pela grande mídia. Ela não tinha sequer constituído uma etapa essencial no fortalecimento das reivindicações das memórias no espaço público. A lei contribuiu para ancorar o debate da escravidão na paisagem francesa.

Ela permitiu a inserção de “empreendedores morais” (Garapon, 2008) neste jogo

pelo reconhecimento da escravidão como um crime contra a população negra, que

compõe a sociedade francesa. Ela, ainda, abriu um debate sobre a dimensão da culpa,

por um lado, do Estado francês no comércio triangular e a vitimização, por outro lado,

das populações que foram alvo da escravidão. Nesse sentido, enfatiza a Deputada

Taubira que na referida mesa-redonda:

é importante frisar que é também nesse período que assistimos no mundo, notadamente após Durbam, a uma grande discussão sobre a questão da responsabilidade e a culpabilidade européia, de Colombo até o colonialismo. A lei veio de algum modo reabilitar a imagem de uma França que demonstra o exemplo reconhecendo o crime da escravidão. Nesse sentido, o outre-mer é ligado à République, onde a afirmação da identidade de culturas específicas foi ainda mais longe. Assim, a lei Taubira passou, embora com reticências. Mas não era uma lei de acusação do Negro contra o Branco, mas exigia da République o reconhecimento de um de seus princípios fundadores: da cidadania comum além da raça. Não foi uma Lei de vítimas. .

Já para Stéphane Procrain - jornalista, um dos fundadores do Cran, membro do

Partido Verde – que compunha a mesma mesa de debate, parece de todo modo

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evidente que a questão da vítima se encontra no coração das reivindicações da história

e da memória. De acordo com ele:

determinados movimentos e associações adotam uma abordagem, cujo objetivo é precisamente de solidificar ad aeternam a postura de vítimas, ao passo que outros movimentos visam a anulação: estes têm o objetivo de sair da prisão de vítima. Meu propósito não é opor a figura da vítima à do cidadão, porque para uma parte da humanidade a negação do status de vítima conduz necessariamente à negação de seu status de cidadão. É preciso, entretanto, ser consciente que a vítima pode se tornar uma figura essencial para explicar o paradigma de funcionamento de nossas sociedades. Há algo de perigoso nisso. Por exemplo, é muito difícil de explicitar a questão dos problemas sociais na França. É mais tranquilo falar de insegurança, pois ela implica inevitavelmente trazer a questão da vítima potencial de uma agressão. A gente observa, aliás, uma evolução do direito francês em direção a um sistema cada vez mais vitimizador.

Situação que, como demonstra Garapon (2008), tem sido a pedra de toque do

sistema jurídico de diversos países ocidentais em virtude da emergência das demandas

de reparação, de desculpas e punição de crimes cometidos na História. Eventos que

têm promovido, num certo sentido, a concorrência de vítimas (Garapon, 2008: 15) na

multiplicação de demandas de reconhecimento dos crimes do passado. O tema da

reconciliação, da reparação, da justiça “transacional” transformou-se no drama total da

modernidade (Garapon 2008: 16), pondo em evidência o problema do racismo, da

intolerância, do reconhecimento e da coexistência de culturas diversas. Mas como

esperar essa coexistência sem passar pelo momento do reconhecimento?

Para Stéphane Pocrain, esse momento do reconhecimento é essencial, pois

evidencia o debate a respeito do lugar das populações de outre-mer e a questão da

escravidão no conflito dos usos dos espaços. Desse modo, o jogo maior é a inclusão

daqueles que vivem sob o território francês: a luta contra a discriminação na França é a

luta pela cidadania do outre-mer. ”Para mim, os outre-mers são os postos avançados

da construção e da estruturação de uma cidadania composite”.

Já para outros atores, é necessário mais do que o reconhecimento desta

cidadania, mas é fundamental a reparação financeira pelos crimes cometidos contra os

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descendentes de escravos das Antilhas. É o caso do Mouvement international pour les

réparations e o Conseil Mondial de la Diaspora Panafricaine, duas associações

representativas do direito do negro na França, que tem desempenhado um papel

central no campo simbólico e jurídico a partir da proposição de uma Ação contra o

Estado francês para réclamer des réparations da escravidão e dos danos sofridos pela

população do outre-mer (Anexo 5).

Retomando uma das idéias contidas no projeto de Lei Taubira, vetada na

Assembléia, que visava instaurar um comitê de pessoas qualificadas encarregadas de

determinar o prejuízo sofrido e de examinar as condições de reparações devidas em

decorrência desse crime (Garapon, 2008: 226), as duas associações propõem a

constituição de um colegiado de experts (historiadores, sociológos, economistas e

juristas) com a finalidade de determinar o prejuízo material, econômico e financeiro que

representa o fenômeno do traite e da escravidão para as populações atingidas pelo

desenvolvimento do sistema escravista levado a cabo pela França no território

martiniquense. Esse colegiado de experts deveria, ainda, ser composto por psicólogos,

psicanalistas, psiquiatras e médicos afim de determinar as sequelas psicológicas e

psiquiátricas que afetam os descendentes das vítimas desse crime e dos efeitos

retardatários no desenvolvimento da sociedade martiniquense. Para tanto, reivindicam

do Estado francês o valor de 200 bilhões de euros que será revertido e gerenciado para

uma “Fundação para a reparação na Martinica” (Garapon, 2008: 227).

Na Ação, a estratégia discursiva é marcada por um conteúdo crítico ao tratamento

destinado à questão da escravidão tanto por parte de especialistas, bem como por

parte do Estado francês no que diz respeito à inexistência de qualquer dado concreto

sobre os efeitos da escravidão. Na Ação eles afirmam “Il n’existe pas de comptabilité

qui mesure l’horreur de la traite négrière et l’abomination de l’esclavage”. Ao mesmo

tempo lançam mão de uma gramática do sofrimento (Boltanski, 1993) para criticar esta

inexistência de informações a respeito das atrocidades da escravidão. Como afirmam:

les cahiers des navigateurs, trafiqués, ne témoignent pas de l’ampleur des razzias, de la soufrance des enfants épuisés et effarés, du désarroi désespéré des femmes, du bouleversement accablé des hommes. Ils font silence sur la commotion qui les étourdit dans la maison des esclaves à Gorée. Ils ignorent l’effroi

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de l’entassement à fond de cale. Ils gomment les râles d’esclaves jetés, lestés, par-dessus bord. Ils renient les viols d’adolescentes affolées. Ils biffent les marchandages sur les marchés aux bestiaux. Ils dissimulent les assassinats protégés par le Code Noir. Invisibles, anonymes, sans filliation ni descendance, les esclaves ne compte pas. Seules valent les recettes. Pas de statistiques, pas de preuves, pas de préjudice, pas de réparations. Les non-dits de l’épouvante qui accompagna la déportation la plus massive et la plus longue de l’histoire des hommes someillèrent, un siècle et demi durant sous la plus pesante chape de silence

A Ação foi encaminhada para o Tribunal de Grande Instance de Fort de France61,

que é responsável pelo julgamento de causas polêmicas e que envolvem quantias

consideráveis de dinheiro. Na Ordonnance - o que equivaleria a uma decisão de

primeira instância, uma “decisão de saneamento”62 - emitida em 08 de janeiro de 2008,

são apresentados os agumentos que sustentam o pedido de reparação por parte do

Estado francês.

A Ação foi movida pelas referidas Associações em 30/05/2005 contra o Estado

francês, representado pelo agent judiciaire du trésor. Ela se sustenta na lei Taubira de

21/05/2001, que reconhece o Tráfico Negreiro como crime contra a humanidade, de

modo que a République française reconheceu a responsabilidade do Estado francês

enquanto membro das potências européias na deportação e organização do Tráfico

negreiro de escravos africanos deportados. Para os autores da Ação, esses crimes

contra a humanidade são as causas de prejuízos e dívidas às populações submetidas à

escravidão. Fatos que ainda marcam os seus descedentes e são as raízes de seu

sofrimento. Além desta lei, lançam mão da lei de 1848 que define a abolição da

escravidão em território francês. De modo a garantir uma medida imediata, solicitam o

beneficie de l’exécution provisioire, baseado em dois artigos do Código Civil63. Solicitam

61 Gostaria de agradecer imensamente as contribuições de meu colega Fernando de Castro Fontainha, no que se refere às explicações a respeito do funcionamento do sistema judiciário francês e por ter esmiuçado o processo com suas explicações elucidativas, sem as quais não teria compreendido as nuances das justificações e demandas. 62 Como explicou meu colega Fontainha, na França o Juge de la Mise em Forme é o que vai “sanear” o processo, emitindo uma “decisão de saneamento” da ação. Ou seja, ele vai analisar a procedência da demanda. Esse juiz não será o que vai julgar o processo finalmente. 63 O beneficie de l’exécution provisioire equivaleria, de acordo com Fontainha, à antecipação de tutela que, equivale a uma demanda de ação imediata da Justiça numa situação determinada, como por exemplo, no caso descrito sobre a Marambaia na ação de reintegração da casa de Dona Sebastiana. O

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na Ação, portanto: que o Estado francês seja declarado responsável pelos prejuízos

materiais e imateriais a que o povo martiniquense descendentes de africanos

deportados e escravizados em solo martiniquense foram submetidos; que o Estado

francês deve reparar integralmente o prejuízo destinado ao povo martiniquense; antes

de determinar o prejuízo, ordenar a perícia com a finalidade de avaliar o prejuízo

acarretado ao povo martiniquense em decorrência dos crimes contra a humanidade e

designar um colegiado de experts composto de diversas personalidades citadas

nominalmente; os requerentes exigem o pagamento de uma ordem de pagamento com

vistas a constituir um colegiado de experts com a ajuda dessas pessoas; os

requerentes deverão, na qualidade de mandatários judiciários, prestar contas ao Juiz de

sua missão num prazo de um ano, missão que será realizada sob o controle do

Tribunal; de ordenar que, após a constituição do colegiado, esse deverá entregar suas

conclusões num prazo de 5 anos e que os trabalhos dos membros do mesmo serão

pagos pelo Estado francês por conta de sua obrigação de reparação da dívida; de dizer

que o dinheiro previsto para o financiamento dos trabalhos será estabelecido pelo

colegiado nos 6 meses de sua constituição; de dizer que o Estado francês, tomado na

pessoa de seu representante legal, o agente judiciário do tesouro, será condenado a

financiar os trabalhos com base dudit budget provisional a título de sua consignação por

frais d’expertise; fixar o valor de 200 bilhões de euros que será gerenciado até a

constituição da fundação pelo Départament e a Région e condenar o agente judiciário

do tesouro a pagar 5000 euros pelas despesas do processo.

A questão foi levada ao Ministère Public em 18/07/2005 e em 04/11 do mesmo

ano, o Estado francês envia sua contestação, demandando do Tribunal que: á titre

liminaire, que decline sua competência em benefício do Tribunal Administrativo do Fort

de France64; à defaut, que declare radicalmente inaceitável as demandas das referidas

Associações; à titre très subsidiaire, de julgar totalmente infundadas essas demandas e

de denegar as associações requerentes da integralidade de suas pretensões e de os

fato da decisão implicar na destruição do bem, levou a advogada a entrar com uma antecipação de tutela para impedir a demolição até o julgamento do mérito. 64 Na França há duas justiças, de acordo com Fontainha, a Judiciária, que não julga ações em que o Estado é parte, a priori, e a Administrativa que é um órgão do poder executivo que não é composto por magistrados, mas por pessoas provenientes das Grandes Escolas, como SciencePo, ENA, etc

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condenar conjuntamente e solidariamente a lhes versar uma soma de 5000 euros,

como previsto pelo Código civil.

As Associações, em documento depositado na Justiça em 08/03 de 2006,

mantiveram suas pretensões expostas acima, enquanto o Estado francês, em

conclusões depositadas na Justiça 05/04/2006, 14/09/2006 e 14/11/2006 demandam ao

juge de la mise en état de declinar a competência do Tribunal de Grande Instância em

prol do Tribunal Administrativo do Fort de France e de condenar as Associações

requerentes a lhes pagar 3000 euros como prevê o Código civil.

Os agumentos do Estado francês vão em algumas direções. Argumentam que há

uma sólida jurisprudência que determina que danos causados a particulares, pessoas

ou propriedades não podem ser regulados pelo Código Civil, mas pela théorie da voie

de fait65. A Lei Taubira, como tem um caráter geral e proclamatório, não pode ser

utilizada como base de reparação ou indenização em virtude de atos cometidos pela

administração do Estado, sendo, ainda que a lei não qualifica o tráfico negreiro ou a

escravidão como voie de fait. Como inexistia à época da escravidão a théorie de la voie

de fait é impossível de aplicá-la à uma situação antiga, cujo princípio jurídico inexistia à

época. Como em 1848, os atos em tela não eram ilegais, e a théorie de la voie de fait

pressupõe a prova da implicação direta dos agentes administrativos a demanda não

pode proceder e que apenas a jurisdição administrativa é competente para julgar

questões que envolvam a aplicação de um texto legislativo relacionado a uma querela

com o Estado, assim como previsto pelo Código de Processo Civil.

De forma extemporânea o Préfet66 da Martinica vai depositar na justiça a demanda

de que o juge de la mise en état julgue procedente a demanda de declínio de

competência de julgamento do caso para a jurisdição adminsitrativa. Em contrapartida,

as Associações demandam que o juiz recuse o pedido de declinatória de competência ,

de condenar o agente do tesouro do Estado e, ainda, condenar o Préfet a pagar 10000

65 A théorie de la voie de fait, é uma teoria de origem jurisprudencial que visa proteger os direitos dos administrados frente à Administração. Há voie de fait se a Administração comete um ato material que representa uma irregularidade manifesta, seja através de uma decisão grosseiramente ilegal, seja pela execução legal através de um procedimento ilegal. Trata-se sobretudo de ações que ferem os direitos a propriedade e a liberdade pública. 66 Na França o préfet é um alto funcionário reprsentado pelo Estado no département ou na région. Ele é indicado pelo Presidente da República

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euros pela intervenção abusiva onde ele não pode intervir inclusive por lei e 10000

euros pelos honorários, como previsto pelo Código Civil.

Para os advogados da Associação, a Lei Taubira é um texto legislativo que tem

efeitos de direito e que, portanto, o juge judiciaire é por natureza o juiz para julgar

conteúdo do caso, pois o crime colocado pela lei é de designação penal de voies de fait

civiles. De acordo com eles, o Código de Processo Penal prevê a proibição de que o

conflito seja elevado quando os fatos que devem ser julgados estão relacionadas com

as infrações penais e tocam as liberdades fundamentais. E o tráfico negreiro é fato

histórico que cobre essas disposições.

Quanto às questões, levantadas pelo Estado francês, os advogados das

Associações salientam que após o Arrêt Blanco67, não é possível sustentar que não

seja possível aplicar os procedimentos do Código Civil em questões que envolvam o

Estado, sobretudo, considerando que existem diversas jurisprudências que sustentam

tal ato. Não há nenhuma jurisprudência que determine que a voie de fait não possa ser

aplicada para agentes do Estado por atos cometidos no passado. O processo não faz

referência apenas à Lei Taubira, mas é fundado sob a voie de fait e se apóia sob o

entrecruzamento de infinitos fatos concretos relativos ao tráfico negreiro e à escravidão.

Ainda, as discussões que antecedem as abolições de 1794 e 1848 mostram que o

tráfico negreiro e a escravidão já eram considerados como crime contra a humanidade.

A análise histórica do corpus jurídico do século XV ao XIX mostra que aos olhos da

ordem legal internacional o tráfico de escravos era já qualificado como crime e voie de

fait. Ademais, que a implicação direta dos agentes do Estado é um fato histórico que

não será rediscutido, nem muito menos a responsabilidade da força pública. Enfim, o

Estado violou os princípios gerais do direito editando textos como o Code Noir e

participando ativamente das atividades do tráfico e da escravidão.

67 Os Arrêts são decisões das Altas cortes na França, que são as instâncias máximas da Justiça judiciária ou administrativa. São elas: o Conselho de Estado, a Corte de Cassação e o Conselho Constitucional. O Arrêt Blanco Agnès Blanco, diz respeito ao cado de uma criança de 5 anos que sofreu um acidente em decorrência de uma carruagem conduzida por quatro operários, que caiu em cima da criança. A carruagem pertencia a uma empresa de tabaco de Bordeaux, adminsitrada pelo Estado. O pai da criança entrou com uma ação cível na Justiça contra o Estado. Um conflito entre as juridições administrativas e judiciárias levou com que o Tribunal de Conlfitos interviesse para solucionar a causa.

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Ápós diversos reenvios, o incidente foi fixado e plaide (ato em que as partes

manifestam publicamente seus direitos), no 27/11 de 2007 e o Tribunal deliberou em

08/01 de 2008. No entendimento do juge o Tribunal de Grande Instância é competente

para julgar a ação das associações contra o Estado, pois existem diversas

jurisprudências que sustentam o argumento de que a Justiça judiciária julgue casos

envolvendo o Estado, sobretudo em matéria penal, pois ela é “materialmente”

competente a fazê-lo. Portanto, o Tribunal rejeita a exception de procedure requerida

pelo agente do Estado e a déclinatoire de compétence do Prefet de Martinica. De

acordo com o Tribunal, pode “débouter”, ou seja, iniciar o julgamento do processo pelo

juge du fond, que vai julgar o mérito da causa. Embora, o juge não entenda que o Code

Noir possa ser classificado como crime contra a humanidade, assim como preconizado

pelos advogado das Associações, a escravidão e o Tráfico Negreiro constituem

efetivamente num atentado às liberdades individuais, configurando-se, nesse sentido,

numa voie de fait.

Ora, este caso tem tido um efeito simbólico e político na arena política e jurídica

francesa, não só com o debate sobre a reparação aos Antilhanos acerca dos efeitos

materiais e simbólicos ocasionados pela escravidão, como também tem sido uma via

importante para a emergência desses porta-vozes do reconhecimento no seio da

sociedade francesa. Para outros, como Alfred Adler, a lei representa uma

“compensação moral” vis-à-vis os efeitos traumáticos que representou a escravidão

para esta população. (Udino, 2008: 37). Nas palavras da Deputada Taubira:

minha preocupação não é de armar cada cidadão de um instrumento penal que lhe permita ir à justiça e pedir indenizações em escala individual. Meu objetivo também não é de obter orçamentos para as coletividades que, repletas de necessidades, as diluam em outras necessidades. Entretanto, eu penso que é indispensável obter reparação pelas consequências do crime que perdura até hoje. Existem, realmente, mecanismos de reprodução de algumas exclusões que remontam ao sistema escravagista. Em algumas ilhas, por exemplo, a raridade fundiária e a exiguidade territorial estimulam os conflitos. As propriedades fundiárias de antes perduraram enquanto que os antigos mestres receberam, após a abolição da escravidão, indenizações para o “gado” perdido. A aristocracia fundiária foi transformada em aristocracia financeira uma vez que a lei previa que um oitavo da indenização

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deveria ser investido no capital dos novos bancos. Este tipo de saída do sistema escravagista favoreceu, na verdade, a manutenção das propriedades fundiárias. É então por reparações em termos de política pública mais que por indenizações individuais que eu vou continuar lutando. É preciso promover uma política pública educativa, ajudando a pesquisa e a elaboração de manuais escolares, bem como a elaboração de outros suportes pedagógicos. É preciso assim conduzir uma verdadeira política pública de reparação cultural, através do apoio a artistas e outras pessoas suscetíveis de nos fazer ler e compreender a história pré-colonial e todo o período da escravidão, que favoreça uma invenção cultural fenomenal.

Para outros, a lei vem promover uma ruptura com a visão tradicional de que a

abolição da escravidão em 1848 tinha sido um don da França aos escravos, que esta

ruptura da servidão à liberdade tinha sido uma de Dieu et de l’égalité républicaine.

Como frisa Udino (2008: 114 e 115):

Se a igualdade entre os cidadãos foi proclamada como valor universal dos Direitos do Homem, as desigualdades e o racismo perduraram e perduram. Se o Estado exaltou depois da escravidão o “esquecimento do passado” a proveito da “reconciliação social”, a aproximação entre estes povos ainda não foi feita. Se o Estado formulou, em abril de 1848, a idéia de um corpo republicano perfectível fundada sobre a igualdade dos homens, entretanto ele minimizou, ou às vezes ignorou a História, a cultura, as contribuições dos Antilhanos na França e lhes mantuve, por constructos sociais e pela sua política de integração social, numa posição inferiorizante. Se o ideal da fraternidade republicana consiste em mostrar que o ser Negro(a) é também ser Francês(esa), a inclusão dos novos cidadãos provou ser ainda, porém, condicionada por um olhar desvalorizante da sociedade que os acolhe. Se a vontade do Estado era transformar o escravo, que, segundo a ideologia escravagista, era irracional, irresponsável e trabalhava apenas sob a ameaça do chicote, em um indivíduo racional, responsável, ele, entretanto, substituiu o colar de escravidão e o chicote por um reconhecimento negativo que não lhe permite facilmente ser ator social e de si mesmo de uma maneira clara (…). A evolução estatutária – do objeto “bem móvel” para a pessoa não pôs fim nem ao racismo nem às desigualdades. Então podemos supor o seguinte: as relações sociais ordinárias desprezantes, discriminatórias e excludentes, isto é, inferiorizantes, impedem o ideal republicano da Liberdade dos Homens, da igualdade entre os cidadãos, da Fraternidade entre os povos, que se revelam de uso limitado, quase

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impossíveis, revelando um paradoxo entre o sonho filosófico e a realidade social. Desse fato uma vulnerabilidade psicológica e social é produzida, que perturba o desabrochamento harmonioso das relações sociais da pessoa, do grupo e de uma sociedade inteira.

De fato, se o fim da escravidão veio conceder um outro status jurídico e

simbólico aos ex-escravos, com a proclamação Universelle des Droits de l’Homme, com

o igual acesso ao trabalho, a liberdade para todos, enfim, a inscrição dessa população

no corpus republicano, veio, entretanto, demonstrar que a liberté générale não

correspondeu à igualdade social. Ainda, não correspondeu, do ponto de vista dos

Antilhanos que vivem em Île-de-France, ao reconhecimento da diversidade da

composição da história e da organização social francesa. Portanto, atualmente diversos

atores, mobilizados ou não, institucionalizados ou não, questionam a diversidade social,

cultural e étnica da sociedade francesa, colocando em xeque o modelo típico-ideal

republicano. A République tem sido objeto de questionamento frente ao mal-estar

propiciado por essa indiferenciação ao diferente, nesta exigência da abdicação de todos

os vínculos, laços identitários em prol da unidade nacional, do cidadão universal. Com

isso, a République tem se confrontado com as manifestações pela luta do

reconhecimento das discriminações, das desigualdades e da “inferiorização do negro

num individualismo mal assumido” (Udino, 2008), levando a que os atores lancem mão

das reivindicações de suas particularidades. Como ressalta o Presidente do Cran,

Patrcik Lozès, em entrevista ao Jornal LeMonde do 10/11/08, ao ser recebido no Elysée

pelo chefe de gabinte do Presidente Nicolas Sarkozy, Cédric Goubet, o propósito do

Cran é que a République se aplique à todos. Uma République que possa abolir o pré-

conceito, assim como o fez com a escravidão. De acordo com ele, numa entrevista

publicizada no site do Cran, as demandas da população discriminada não

correspondem a nenhuma demanda de vantagens ou particularismos para a população

negra. Conclui dizendo: o Cran é a melhor muralha contra o comunitarismo.

A retórica do anti-comunitarismo tem sido utilizada como suporte à crítica das

demandas dos movimentos negro, homessexuais, judeus, árabes e feministas na

França como ressalta Louis Georges Tin (2005), em seu provocador e crítico artigo

“ Êtes-vous communautaristes ?”. De acordo com o mesmo, a retórica anti-comunitarista

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não é necessariamente contra a comunidade, mas contra determinadas comunidades

que atingem o ideal republicano.

Ora, esse empreendimento crítico não permite compreender de que modo as

culturas e as comunidades disponibilizam os bens simbólicos e materiais, produzem

seus pertencimentos a uma ou outra comunidade. (Breviglieri e Stavo-Debauge, 2004).

Essa incapacidade de compreender estas demandas diz respeito à visão francesa de

que a etnicidade corresponde a uma ameaça de “etnicização das relações sociais”, que

deve ser erradicada e descontruída. Elas não são concebidas, sob este prisma, como

um fato que convêm compor e reconstruir. Como propõe Jean-Loup Amselle, no seu

livro Vers un multiculturalisme français (Amselle, 2001: 179).

volta àqueles que defendem uma posição republicana aberta o direito e o dever de mostrar, quando uma reivindicação particularista finge ter a face de universal, a maneira pela qual esta identidade, para retomar as palavras de Boas, “veio a ser o que é”. Assim seria quebrado, no caso da França, o jogo de espelhos entre o Estado, os porta-vozes das comunidades e a extrema direita, jogo de espelhos que encerra o indivíduo nos estigmas identitários e o constrange a se definir de maneira unívoca. O desvelamento dos processos de construção das identidades serviria então simplesmente, nesse caso, para relativizar as pretensões dos atores sociais para alcançar um acordo entre os interesses do indivíduo e os da coletividade. Em seu papel de defensor dos direitos humanos, a atitude republicana consistiria em desconstruir as identidades para proteger o que existe de universal em cada um de nós.

O multiculturalismo, as políticas de ação afirmativa, de discriminação positiva, as

ações de reparação, a culpabilização e responsabilização dos atos históricos

desempenham um papel central neste debate comtemporâneo da paisagem francesa,

demonstrando que o esquecimento em prol da integração social, a indiferenciação em

prol do cidadão universal, não deram conta de solucionar as demandas sociais por

igualdade e equidade no espaço público francês, das contradições inerentes das

identidades meutrières, composites e do corpus republicano. Como enfatiza Stavo-

Debauge a política francesa de cunho republicano é estranha porque no lugar de tomar

consciência das vozes e demandas que são postas em público pelos atores, ela se

coloca na posição de desconstruir essas demandas sem mesmo se inquietar de escutar

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os efeitos e consequências explicitadas, recusando o “fato” do pluralismo étnico ou das

desigualdades raciais (Stavo-Debauge, 2007: 10).

Três moradores de Paris observando a manifestação de sans-papiers no quartier de Barbès, área de concentração de imigrantes (foto tirada por Leticia de Luna Freire).

Tais políticas de reconhecimento, de discriminação positiva, vem reverter o

sentido da preferência acordada há anos aos brancos em detrimento dos negros, aos

homens em detrimento das mulheres. Como salienta G Clavès (2004) a balança que

pesa os direitos e os méritos possui duas medidas. Ela é necessária para prevenir o

mal-estar ou mesmo a indignação suscitada pela preferências ou critérios definidos,

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buscando estabelcer que é a igualdade que fundamentalmene justifica essa mudança

da desigualdade.

Como aponta Garapon essas demandas por reparação e pela igualdade tem um

efeito paradoxal, pois elas introduzem uma certa distância nos laços nacionais ao

lembrar das feridas e dívidas históricas, sobretudo quando elas se assentam em

dispositivos jurídicos estrangeiros para reabrir os velhos dossiês.

Querer reparar uma relação política deteriorada, é lancar uma nova oferta política, de uma amizade política nova, que não está fundada no vis-a-vis da inimizade, mas também a negação do reconhecimento do outro, aquele que a gente jamais considerou como parceiro, o descendente de escravo, o ex-colonizado. Se nós somos uma comunidade de estrangeiros, como se questiona Michaël Sandel, o que podemos fazer senão dar prioridade à justiça? Se nós queremos ser uma comunidade de cidadãos, teremos outra escolha senão reconhecer nossas dívidas e de nos reconhecer entre nós? (Garapon, 2008:252)

E como nos reconhecermos entre nós sem reconhecermos os outros, ou sem

coexistirmos uns com os outros?

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CAPÍTULO 5 CIDADANIA , HIERARQUIA E DEMOCRACIA : NOTAS SOBRE

O UNIVERSALISMO FRANCÊS E O PARTICULARISMO BRASILEI RO

A difusão da questão do reconhecimento nas ciências socias em geral nos

convida a questionar os projetos ideológicos que visam modelá-la. Ela pode deter um

papel de denunciação e crítica da opressão vivida por grupos minoritários, assim como

propõe uma certa sociologia, mas também pode servir de instrumento analítico relativo

às inquietudes e preocupações relacionadas com o modo como os atores se apropriam

destes princípios para fazer valer seus direitos e demandas. Assim, buscando

diferenciar as formas ideológicas e as formas justificadas de reconhecimento, marcando

justamente que a realização do reconhecimento não ganha a mesma forma nos

distintos casos de interações (Honneth, 2000 e Thévenot, 2006), nossa preocupação

está relacionada com a atenção destinada às provas de justificações e críticas a que os

atores são submetidos, para fazer valer suas demandas de reconhecimento.

Como discutimos nos capítulos anteriores, contemporaneamente assistimos

novas formas de mobilizações coletivas, através das quais os atores se envolvem e se

engajam nas disputas, demandando no espaço público (bem como, em arenas não

públicas) o acesso a direitos e reconhecimento a partir de reivindicações de identidades

diferenciadas. Como buscamos descrever, nestes processos os atores lançam mão de

dispositivos jurídicos e políticos diversos para fazer valer suas demandas públicas.

Ora, pretendemos discutir neste capítulo de que modo os regimes de ação dos

atores são acionados de acordo com as gramáticas e sensibilidades jurídicas que

informam as suas tomadas de posição. Mais do que uma oposição entre o formalismo

do direito e a realidade social, entre a lei e os fatos, tal abordagem visa tratar de modo

simétrico os princípios jurídicos, assim como os significados atribuídos ao sentido de

justiça, e suas implicações numa ordem externa ao direito formal. Pretendemos

enfatizar um quadro de análise que possa dar conta de uma pluralidade de bens

políticos e morais públicos (Thévenot 2006), chamando atenção que as questões da

justiça, do Direito, da norma estão para além daquilo que está escrito nos códigos do

direito, incidindo sobre o envolvimento das práticas, e as interpretações sobre as

mesmas, buscando contextualizar as categorias e a utilização e apropriação das

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mesmas (Eilbaum, 2006). Buscamos dar conta da pluralidade das justificações e

argumentações sobre a noção de igualdade, cidadania, hierarquia, autonomia, etc., de

modo a explicitar os dispositivos discursivos dos atores, explicitando suas gramáticas e

sensibilidades jurídicas, para melhor compreender como os atores coordenam suas

ações nestes diferentes espaços públicos.

Como ressalta o antropólogo americano Clifford Geertz (2007), a construção dos

fatos jurídicos são representações, pois são apresentadas em contextos particulares,

para atores particulares, em um tempo situado. Portanto, o Direito, assim como a

Magia, o Culto, a Ciência, a Arte, apresenta um mundo no qual suas próprias

descrições fazem sentido num contexto específico:

A parte jurídica do mundo não é simplesmente um conjunto de normas, regulamentos e princípios, e valores limitados, e geram tudo que tenha a ver com o direito, desde decisões do júri, até eventos destilados, e sim parte de uma maneira específica de imaginar a realidade. Trata-se, basicamente, não do que aconteceu, e sim do que acontece aos olhos do direito. (Geertz, 2007: 259).

Desse modo, aquilo que Geertz designa de sensibilidades jurídicas revela que

o direito constitui e é constitutivo da ordem social, sendo a mesma, fruto de uma

realidade local, na qual os atores exprimem suas crenças, suas moralidades, valores,

códigos e significados compartilhados. Como ressalta o autor:

Poderíamos dizer que a defesa de um caso passa a ser algo mais que organizar a evidência para provar um argumento: terá que descrever uma série de eventos e uma concepção geral do mundo de tal maneira que a credibilidade de um reforce a credibilidade do outro. Nesse caso, para que um sistema jurídico seja viável, terá que ser capaz de unir a estrutura ‘se-então’ da existência, em sua visão local, com os eventos que compõem o ‘como-portanto’ da experiência, também segundo a percepção local, dando a impressão de que essas duas descrições são apenas versões diferentes da mesma coisa (Geertz, 1997: 261).

Mesmo se considerarmos que tal perspectiva se inscreve ela mesma nos

princípios que regem a cultura jurídica americana, segundo a qual o direito é fruto do

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consenso entre indivíduos que acordam as regras de acordo com as “condutas

normais” e locais (Kant de Lima, 1995), a abordagem de Geertz nos possibilita lidar

com o direito, ultrapassando suas visões normativas e formalistas. Portanto, a

sensibilidade jurídica é reveladora dos significados que informam as ações dos atores

na vida em comum, pois sua legitimidade é sustentada pelas crenças nas regras

estabelecidas. Como no caso da cultura , assim como discutido pelo mesmo autor em

outro livro (Geertz, 1989), uma regra só é legítima quando pública, isto é, quando é

compartilhada e apreendida pelos agentes sociais como tal. Ou seja, quando a mesma

é inteligível para um conjunto de atores.

O princípio de justiça, desse ponto de vista, corresponde às lógicas dos atores e

aos seus regimes de ação. Como no caso do Regreg68, descrito por Geertz, as

justificativas do rei aos membros do conselho da aldeia não foram suficientes para

demover os seus componentes a não expulsar Regreg da aldeia. Ora, tal princípio de

“justo” correspondia a um conjunto de significados que legitimavam a tomada de

posição do conselho local, sustentada de forma prática, moral e jurídica nas

sensibilidades jurídicas locais. Correspondia, assim, à gramática pública da aldeia

balinesa. Gramática essa, no sentido atribuído pelos sociólogos franceses Laurent

Thévenot e Luc Boltanski, que permite realizar uma ligação entre a norma e a moral,

entre a dimensão das regras da justiça e as referentes às regras da gramática.

O direito legal detém uma dimensão moral que informa as práticas e

representações (Boltanski e Thévenot, 1991: 61). Para os dois autores, a ação humana,

mais do que fruto de uma comunicação, de um habitus, de um conjunto de

representações, de diferenças de papéis, é um deslocamento constante em que os

atores fazem usos diversos de regimes de engajamentos, criando uma multiplicidade de

condutas e de arquiteturas que as convencionam de modo a fundar e/ou estabelecer

justificativas que sejam, à luz de outros interlocutores, legítimas. Ou seja, aquelas que

convêm aos olhos do interlocutor (Thévenot, 1990).

Nas disputas e controvérsias os atores são confrontados com aos testes públicos

ou privados, lançando mão de competências diversas para evidenciar suas críticas ou

justificações. Segundo Thévenot e Boltanski, os atores, em tais circunstâncias,

68 - A propósito desse caso, ver Geertz (2007: 262-268).

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coordenam suas ações e argumentações de modo a torná-las inteligíveis ao julgamento

público, pois toda coordenação, judiciária ou não, repousa sobre os julgamentos que os

atores trazem sobre a situação e sobre as ações dos atores e suas justificações. Os

mesmos são portadores de uma capacidade crítica que os leva a fazer da sua

experiência uma pluralidade, de maneira a qualificar uma conduta e de colocá-la à

prova (épreuve). Sob este prisma, o direito é o modo de investimento que assegura a

grande validade e perenidade às marcas de referência convencionais pela sua

capacidade de identificar os seres e de destinar-lhes qualidades. Assim, a operação de

qualificação que produz, por exemplo, o juiz, com relação às regras que são aplicadas,

alarga a possibilidade de atribuição de qualidades às pessoas e às coisas (Thévenot,

2006). Ela refere-se às sensibilidades legais compartilhadas pelos atores que norteiam

as classificações e categorizações do que seja justo, moralmente correto e justificável.

Como no caso descrito por Geertz sobre a controvérsia na aldeia balinesa, entre o

conselho da aldeia e Regreg, muitas ações que podem não parecer justas aos olhos de

um, entretanto serão justificáveis aos olhos de outros.

É nesse sentido que os atores coordenam suas ações de modo a destinar um

sentido comum e inteligível sobre o que venha a ser uma ordem justa. Por exemplo,

num sistema social como o Azande, na época descrito por Evans-Pritchard (2005), que

comporta a diferença entre bruxaria e feitiçaria, o papel dos adivinhos (com seus

oráculos) é fundamental para o estabelecimento dos infortúnios e suas causas, bem

como das possíveis sanções e reivindicações decorrentes delas. Para eles a bruxaria é

um fator causal de produção de infortúnios, em determinados lugares, em determinados

momentos e em relação a determinadas pessoas. Não é o vínculo necessário de uma

seqüência de acontecimentos, mas algo externo a eles, que deles participa e lhes

confere um valor peculiar. Um sistema de produção da verdade que se assenta na idéia

de que as justificações dos acontecimentos detêm uma ordem externa à vontade do

bruxo.

Ora, nossa intenção ao enfatizarmos esse caso é demonstrar que as categorias

que informam as percepções e representações dos atores se inscrevem numa ordem

plural e diversa. Mais do que uma diferença cultural, elas representam a pluralidade de

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provas e coordenações que os atores são capazes de colocar à prova nas situações de

controvérsias e disputas. Nas palavras de Geertz:

nossa visão se concentra no significado, ou seja, como os balineses (ou qualquer outro grupo) fazem sentido daquilo que fazem – de forma prática, moral, expressiva... jurídica – colocando seus atos em estruturas mais amplas de significação, e, ao mesmo tempo, como mantêm, ou pelo menos tentam manter, essas estruturas mais amplas em seu lugar, organizando suas ações em seus termos (Geertz, 2007: 270).

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5.1 A noção de igualdade a prova das sensibilidades jurídicas:

O destaque dado à discussão sobre a noção de sensibilidade jurídica e de

gramática tem como propósito permitir a contextualização do uso e aplicação de

determinadas categorias ou conceitos jurídicos, sociológicos e morais. Determinadas

análises sobre a questão das políticas de reconhecimento no Brasil fazem uso de

categorias analíticas e nativas de outras tradições jurídico-políticas, sem se dar conta

das implicações locais, e dos contextos aos quais as mesmas estão submetidas. Tomar

categorias emprestadas, tais como “cidadania diferenciada”, “multiculturalismo”,

“igualdade”, etc., sem apreender os contextos aos quais elas se vinculam, implica

perder de vista as complexidades e especificidades que cada uma destas categorias

possui, que estão inseridas numa sensibilidade jurídica local própria.

No Brasil muito tem se discutido a respeito da emergência das políticas de ação

afirmativa, das políticas de reconhecimento, das cotas, etc. Todavia, são poucos os

autores que se preocupam em analisar, sob o ponto de vista comparativo, tais

problemas, de modo a tomá-los como sistemas de valores e de pensamentos, cujas

ordens legais explicitam as sensibilidades jurídicas e as gramáticas das tradições

jurídico-políticas particulares69. A perspectiva comparativa, sob esse prisma, permite

revelar efetivamente os sentidos locais atribuídos a estas políticas públicas e as

categorias instrumentalizadas para justificá-las. Nosso objetivo é chamar atenção para

o fato de que affirmative action, multiculturalisme, ethnic mosaic, políticas de

reconhecimento não correspondem - seja do ponto de vista prático, moral e jurídico – a

mesma coisa em sistemas jurídicos e políticos distintos, como buscamos evidenciar ao

longo dessa tese. Tais categorias, observadas de um ponto de vista comparativo,

ganham contornos sensivelmente diferentes, definidos pelas gramáticas e

sensibilidades jurídicas que informam as ações e representações dos atores em seus

contextos específicos.

69 - Um dos antropólogos brasileiros, que de um modo bastante original, segue nessa direção é Luis Roberto Cardoso de Oliveira, cujas pesquisas foram desenvolvidas de uma perspectiva comparada, tomando como campo empírico o caso canadense, brasileiro e americano. E, mais recentemente, tem realizado um investimento no sentido de produzir um trabalho comparativo com o caso francês. Para maiores detalhes, ver: Cardoso de Oliveira, 2002 e 2006.

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Tomar emprestado tais categorias de modo descontextualizado, aplicando-as

para compreender processos sociais em outras localidades, provoca equívocos

analíticos e de interpretação a respeito dos processos, como por exemplo, aqueles que

se referem às demandas de direitos e reivindicações de identidades diferenciadas no

mundo contemporâneo. Naturalizar estas categorias acima mencionadas, é insistir na

produção de uma sociologia espontânea que, na recusa dessa pluralidade de modelos

de ações, pode levar o analista a interpretações que não correspondam aos

significados próprios que as categorias têm numa cultura política particular. Pois como

diz Geertz, “o homem é um animal amarrado às teias de significados que ele mesmo

teceu, numa multiplicidade de estruturas conceituais complexas, muitas delas

sobrepostas ou amarradas às outras que destinam sentidos distintos” (Geertz, 1989).

Como buscamos assinalar na discussão acima, estes significados têm

conseqüências diretas nas estratégias e/ou ações dos atores na produção de

justificações e argumentações que sejam inteligíveis.

Os casos decritos nos capítulos anteriores, permitiu vislumbrar de que modo a

categoria igualdade ganha contornos distintos ao ser aplicada nos dois contextos: o

brasileiro e o francês. No espaço público brasileiro, tal noção está relacionada a uma

concepção hierárquica em que os diferentes direitos estão disponibilizados de acordo

com a categoria ou status das pessoas, onde a igualdade manifesta uma distinção

baseada na “substância moral das pessoas dignas” (Cardoso de Oliveira, 2002). A

igualdade é assegurada pela particularização do acesso ao público, que é nesse caso

concebido como do Estado, por conseguinte de ninguém, e, portanto, passível de ser

apropriado particularizadamente (Kant de Lima, 1997). Na gramática brasileira , o

serviço público está associado aos interesses particulares das pessoas, onde os cargos

passam, muitas das vezes, a se constituir como uma propriedade de seus ocupantes,

cujas dificuldades estruturais de servir ao público manifestam essa lógica particularista

do acesso ao bem público (Schwartz, 1979; Lobão, 1998).

Em contrapartida, no espaço público francês, a igualdade vincula-se a uma

noção de grandeza cívica, atrelada a uma idéia de bem comum, onde ela se manifesta

através de uma concepção de unidade e consistência do coletivo em prol do interesse

geral. A igualdade é assegurada por uma solidariedade anônima que se supõe estar

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acima dos interesses particulares (Boltanski e Thévenot 1991, Schnapper,1994). O

tratamento destinado ao citoyen no serviço público francês é paradigmático no que diz

respeito à idéia de igualdade, pois institui essa isonomia pautada pelas regras

estabelecidas entre os indivíduos no espaço público, recusando qualquer tipo de

tratamento diferenciado ou particular ao citoyen. Todo tipo de desigualdade remete a

um sentimento de inferioridade e de baixa estima, como, por exemplo, no caso do

choque existente entre o princípio igualitário republicano e a percepção das

desigualdades no que concerne a cor da pele, como no caso dos Antilhanos que vivem

na França metropolitana, que alimenta o paradoxo francês entre a cor negra e o corpo

republicano, entre a lógica da igualdade e as desigualdades de tratamento e acesso

aos bens do mercado (Udino, 2008).

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5.2 Ser cidadão, ter cidadania: alguns apontamentos .

Formulada na crítica ao Estado absolutista, cuja ideologia estava orientada pela

noção de uma desigualdade natural no âmbito político e social, a ideologia democrática

insurge em contextos históricos distintos: primeiro nas Revoluções Inglesas do século

XVII e, posteriormente, nas Revoluções Francesa e Americana do século XVIII. Desse

ponto de vista, as chamadas revoluções burguesas introduzem uma nova gramática

das relações cotidianas, com o pressuposto de que todos são diferentes

individualmente, porém iguais em termos de seus direitos. Neste modelo jurídico-

político (que alguns filósofos, sociólogos e antropólogos denominam de individualista)

cada membro da coletividade relaciona-se individualmente com os outros, seus iguais,

opondo-se a eles: nesse caso; concebe-se uma ordem a qual todos são diferentes

individualmente, porém, iguais juridicamente (Kant de Lima, 2000).

O pressuposto é que as oportunidades são, em princípio, formalmente iguais aos

indivíduos detentores dos mesmos direitos, embora sejam diferentes uns dos outros.

Ou seja, na lógica democrática liberal, a diferença aponta para a igualdade de direitos e

não para a desigualdade. As possibilidades estando acessíveis a todos, estruturam os

procedimentos de uma meritocracia, pois aqueles que melhor se aproveitarem delas,

serão os que, embora momentaneamente, se destacarão dos outros, acessando mais e

melhores recursos na medida de sua ascensão (Kant de Lima, Mota e Pires, 2005).

Essa corrente de pensamento ficará conhecida como liberalismo político, por

partir da premissa de que o papel do Estado consiste primordialmente na garantia e

manutenção das liberdades civis garantidas nas forma de direitos pré-estabelecidos.

Afinal, nesse período compreendido entre as duas grandes Revoluções Liberais as

ideologias religiosas, que sustentavam a legitimidade do poder soberano, não possuíam

mais ampla legitimidade e hegemonia. Desse modo, era necessário a constituição de

novas justificativas para a organização política.

Um dos principais formuladores dessa justificativa - influenciando gerações de

filósofos, tendo assessorado Ashley Cooper (o conde de Shaffesbury) na elaboração da

constituição da colônia inglesa de Carolina, na América do Norte – foi Jonh Locke. Para

Locke (2004) seria injustificável uma hierarquia natural, tendo em vista que os

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indivíduos precederiam a sociedade. Ou seja, os indivíduos seriam naturalmente livres.

Ao contrário de Hobbes, que concebia o estado de natureza como a barbárie, para

Locke essa liberdade possibilitaria a “ascensão dos espíritos e do progresso humano”.

As liberdades dos ditos “homens modernos” deveriam ser reguladas por sistemas

jurídicos que possibilitassem a garantia das liberdades individuais frente aos interesses

particulares. Afinal, o “homem moderno” seria necessariamente maximizador. Nesse

estado de natureza, as pessoas poderiam se apropriar dos bens individuais das

pessoas, suprimindo a possibilidade das liberdades alheias. Sobre estes latentes

conflitos o Governo teria atuação importante na promoção das condições para a

primazia de um indivíduo livre, mas guiado por leis e regras pactuadas entre as

pessoas. É desse modo que a sociedade deveria instituir regras efetivas para o bem

comum. Pode-se afirmar que esta noção é uma das primeiras premissas da

constituição da base de um governo legítimo, representante dos cidadãos e servidor do

bem comum.

Encontramos em outro pensador, sendo este francês, J. J. Rousseau, algumas

das principais premissas da gramática liberal francesa. Para ele, haveria entre os

homens uma desigualdade naturalmente estabelecida do ponto de vista biológico,

físico, evolutivo. Todavia, os homens sob a organização civil deveriam ceder a um

contrato social estabelecido pela maioria, de modo a garantir a universalização do

acesso aos direitos postulados por uma comunidade. Por outro lado, a desigualdade

moral/política, segundo Rousseau (1971), era racionalmente condenada. A sociedade

deveria propiciar a participação efetiva dos cidadãos nas realizações da coisa pública.

Portanto, a categoria igualdade figura-se como um dos alicerces das ideologias

democráticas ocidentais modernas. A igualdade de direitos e deveres foi a marca das

revoluções burguesas do final do século XVIII e início do século XIX. Tomando os

documentos redigidos após estas revoluções como eventos paradigmáticos, é possível

asseverar o valor da igualdade tanto na tradição jurídico-política francesa, bem como na

americana e inglesa. Para a tradição americana, de acordo com a Declaração de

Independência dos Estados Unidos, de 4 de julho de 1776, “era evidente a verdade

seguinte: todos os homens são criados iguais; eles são dotados pelo Criador de

determinados direitos inalienáveis, que são eles a vida, a liberdade e a busca pela

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felicidade”. Já para os franceses, assim como expresso, na Déclaration des Droits de

l’Homme et du Citoyen, de 26 de agosto de 1789, em seu artigo primeiro, “os homens

nascem e permanecem livre e iguais em direitos”. As distinções sociais podem somente

ser fundadas sobre a unidade comum”. Ora a desigualdade jurídica, própria do Antigo

regime, deveria ser abolida com a implementação do novo sistema político.

Preocupado com as questões que tocavam a Inglaterra pós-guerra - em

particular as desigualdades entre os segmentos da sociedade inglesa, a pobreza da

classe trabalhadora e a emergência do comunismo - o sociólogo inglês Thomas

Humphrey Marshall, em uma conferência em 1949, em homenagem ao economista

inglês Alfred Marshall, na Universidade de Cambridge, analisou o desenvolvimento

histórico e sociológico do conceito cidadania e igualdade . O problema da igualdade

social, entre trabalhadores e cavalheiros, era central para as reflexões de A. Marshall.

Como conjugar as desigualdades econômicas, inerentes ao sistema capitalista, com as

igualdades de condições? A resposta contida nas formulações de Alfred Marshall era

que “a desigualdade do sistema de classes sociais pode ser aceitável desde que a

igualdade de cidadania seja reconhecida” (Marshall, 1967: 62). A cidadania era

concebida, para os autores ingleses, como a associação entre a igualdade humana

básica e a participação integral na comunidade.

Para tanto, T.H. Marshall propôs uma divisão da cidadania em três partes. A

primeira diz respeito aos direitos civis, obtidos no século XVIII, que correspondem aos

direitos de liberdade, ao direito à vida, à propriedade, à igualdade jurídica, que são

garantidos pelo Judiciário. A segunda é a cidadania política, conquistada no século XIX,

cujo propósito é destinar aos cidadãos o direito de votar, de ser eleito, de organizar

partidos políticos, garantida pelo exercício do sufrágio universal e pelo Parlamento. A

terceira é a cidadania social elaborada no século XX, que assegura o direito à

educação, trabalho, à saúde, garantida pelo Executivo no Estado de Bem Estar Social

(Marshall, 1967).

Como bem ressalta T. H. Marshall, esta história da cidadania que ele visava

reconstruir era por definição nacional, pois é importante sublinhar que ela se aplica

sobretudo à história inglesa. Bismarck, por exemplo, organizou as instituições da

cidadania social antes que a cidadania política tivesse sido instaurada no Reich alemão

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(Schnapper, 2000). No Brasil os direitos sociais precederam os outros dois direitos

(Carvalho, 2001). O fato é que a cidadania nas sociedades ocidentais modernas se

tornou, sob o ponto de vista nativo, o laço político entre os indivíduos. Ela vem fundar a

idéia de que as relações humanas são definidas a partir de uma igualdade de dignidade

de todos. Concepção que adquirirá significados distintos em outras tradições políticas e

jurídicas.

No que concerne ao caso brasileiro e francês, o que há de semelhante entre

estas distintas tradições é que o termo cidadão e cidadania ganharam notoriedade na

cena pública e política, nas vozes de sindicalistas, ambientalistas, ativistas dos direitos

humanos, políticos, jornalistas, cientistas, etc. Todavia, as categorias citoyenneté,

cidadania, citizenship são qualificadas de modo diverso de acordo com as gramáticas

que as informam.

Se tomarmos Tocqueville como um codificador privilegiado sobre a constituição

dessa gramática liberal francesa, recorrendo a um de seus principais livros (Tocqueville,

1952), poderemos perceber de que modo a Revolução Francesa de 1789, fora uma

ruptura política entre o Antigo Regime, com suas desigualdades e privilégios, e a nova

ordem política, burguesa e igualitária. Embora a Revolução tenha promovido mudanças

políticas, o modelo monárquico vigorou pós 1789. O rei da França havia reagrupado em

torno do pequeno domínio real um território unido com fronteiras estáveis. O reinado na

França, assim como na Inglaterra, transcendia a figura do rei, e era isso que exprimia a

célebre fórmula: le roi est mort, vive le roi. Vemos, por exemplo, nas análises de

Boltanski e Thévenot o lugar que o rei ocupava na cosmologia francesa:

A fórmula de subordinação exposta no Contrato Social funda a soberania, superando os problemas colocados na cité domestique, a encarnação do bem comum numa pessoa. Destituindo a soberania, que é transferida do corpo do rei à vontade geral, e fazendo do rei um cidadão comum como os outros homens, capaz como eles de virtudes e vícios, há uma diminuição da tensão engendrada pela encarnação do corpo político num corpo natural. (Boltanski e Thévenot, 1991: 138).

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No Brasil, a passagem da monarquia à República, do sistema escravista ao

processo industrial, implicou no desmantelamento de uma ordem hierarquizada

explícita que deu lugar a um sistema desigual implícito. A inexistência de uma noção de

cidadania difundida entre os homens livres da República - como, por exemplo, a idéia

de igualdade de todos perante a lei - permitiu a constituição de justificações de

manutenção de uma “ordem desigual natural” entre homens de cor e os donos do poder

(Carvalho, 2001). Tomando como como codificador privilegiado um dos principais

ideólogos do estado moderno brasileiro, Ruy Barbosa, é possível apreender o modus

operandi de como pensam os nativos no que diz respeito a essa ideologia liberal no

Brasil. Podemos encontrar em um de seus discursos, denominado “Oração aos Moços”

– pronunciado a estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo em 1920 – uma das

bases das justificações da construção da idéia de igualdade no Brasil. Afirmava ele que:

A parte da natureza varia ao infinito. Não há, no universo, duas coisas iguais. Muitas se parecem umas às outras. Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma só árvore, as folhas da mesma planta, os traços da polpa de um dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros do mesmo pó, as raias do espectro de um só raio solar ou estelar. Tudo assim, desde os astros, no céu, até os micróbios no sangue, desde as nebulosas no espaço, até aos aljôfares do rocio na relva dos prados. A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem. (Barbosa, 1999: 08).

Como salienta o antropólogo Kant de Lima, o discurso desse célebre jurista do

século passado permite, em certa medida, compreender a cosmologia liberal brasileira

na medida em que o argumento sobre a igualdade, proferido neste discurso, é

freqüentemente citado para justificar a existência de institutos jurídicos legitimadores da

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desigualdade jurídica no sistema republicano brasileiro contemporâneo. De acordo com

o mesmo:

Este discurso, repetido à exaustão pela maioria de nossos juristas, desde sua enunciação pública, claramente opera uma transformação da diversidade da natureza em desigualdade da sociedade para, em seguida, rotular esta desigualdade de natural. Os ideais do princípio de igualdade formal ficam assim neutralizados em nossa cultura jurídica, expressa na prática de profissionais do direito. A situação paradoxal de vivermos em uma sociedade onde o mercado produz constantes desigualdades econômicas, que estão em tensão contínua com o princípio basilar da igualdade de todos perante a lei, não lhes desperta inquietações, porque tal situação de desigualdade é percebida como natural, devendo o mundo do direito reproduzir essa desigualdade para, eventualmente, distribuir, também desigualmente, o acesso aos bens jurídicos para, assim, fazer justiça. Temos bons exemplos no processo penal brasileiro deste fenômeno, onde privilégios estão a desigualar o tratamento concedido a autores e co-autores dos mesmos delitos tipificados no Código Penal70 (Kant de Lima, no prelo) .

Enquanto que no caso brasileiro a noção de igualdade e desigualdade está

inscrita numa ordem da natureza, pois nas palavras de Ruy Barbosa tratar “com

desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e

não igualdade real”, na acepção francesa as duas categorias estão inscritas na ordem

civil-política. Como ressalta Schnapper (2000) a separação entre o mundo público e

privado na França não implicou, à época (da Revolução de 1789), que todos os

membros da sociedade se tornassem cidadãos. O exercício dos direitos dos cidadãos

foi imediatamente reservado a determinados cidadãos ativos. Mas era pressuposto que

todos tinham vocação a deter a cidadania. Ou seja, a noção vocação, embora

implicasse numa hierarquização entre o cidadão e não cidadão, pressupunha a

possibilidade dos não cidadãos adquirirem o status da cidadania ao se submeterem aos

princípios do bem comum ao se inscreverem numa ordem civil e política da República.

70 Como os institutos da prisão especial e o do foro privilegiado.

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Ora, o Estado moderno francês se funda numa latente ambigüidade em

decorrência de suas raízes escravocratas. O decreto de 1794 que aboliu a escravidão,

declarando que todos os homens, independentemente de suas cores, eram cidadãos

franceses, é revogado por Bonaparte em 1802, com o restabelecimento da escravidão

de acordo com as leis antes de 1789. Como asseverava o general Richepance,

responsável por restabelecer a escravidão em Guadalupe, em seu decreto de 1802, “as

colônias são somente estabelecimentos formados por Europeus que tomaram os

negros como os únicos indivíduos passíveis à exploração nesse país” (Taubira, 2006).

Pois o estatuto da escravidão, como vimos anteriormente, era apenas válido nas

colônias. Tendo um escravo entrado, clandestinamente ou não, no solo do reinado, ou

seja, na França metropolitana, era considerado livre. Da morte de Luis XIV à queda do

reinado, diversos escravos negros penetraram o solo francês metropolitano para

adquirirem a liberdade.

Portanto, era imputado um lugar inferior no espaço público aos escravos das

colônias francesas. Era o paradoxo francês entre a pele negra e os corpos republicanos

na instituição dos direitos de cidadania na França (Udino, 2008). Paradoxo que

permitiu, como discutimos, a emergência de uma demanda de reconhecimento de ser

francês em toda parte, e não ser francês inteiramente à parte.

Entretanto, neste capítulo, é importante frisarmos o lugar que essa desigualdade

ocupou no espaço público francês, provocando tensões com relação à idéia de

igualdade comum e da humanidade comum. Assim como propunha o ideólogo

Rousseau, o animal obedece à natureza, enquanto que o homem administra seu

destino, na qualidade de agente livre (Rousseau, 1971). Se o homem dispõe de uma

determinada liberdade, ele pode agir em função de sua vontade, e escolher seus atos:

ele deve assumir suas responsabilidades e mesmo aceitar que o julguem bem ou mau

(Todorov, 1989: 47).

Essa escolha implicou na difusão da liberdade e igualdade cívica. Liberdade que

a pretexto de garantir o bem comum, se restringe aos princípios que organizam a

sociedade civil, pois todos os homens possuem suas liberdades infinitas no espaço

privado e finitas na esfera pública. O princípio republicano possibilitou a separação do

público e do privado tornando-se um princípio fundador da ordem social. Como salienta

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Schnapper (2000: 27) o espaço privado cedeu lugar à liberdade dos indivíduos em toda

sua diversidade, enquanto o espaço público concedeu a afirmação da igualdade de

direito dos cidadãos. Portanto, todo tipo de particularismo se restringe à esfera privada.

O que funda a cidadania é a oposição entre as especificidades do homem privado,

membro da sociedade civil, e o universalismo do cidadão: é a lógica do repubicanismo

jacobino.

Já a gramática jurídica brasileira pressupõe outro princípio de público/privado e

de igualdade/desigualdade, alicerçado pela idéia de uma desigualdade natural, acima

mencionada, aliada a forte dependência da mão de obra escrava, a um viés

hierárquico, que implicou na manutenção da desigualdade civil entre os homens: entre

brancos e negros e brancos livres e escravos até o final do século XIX. O Brasil foi um

dos últimos países do mundo a abolir à escravidão, num processo lento e gradual,

como por exemplo, com a promulgação em 1850 da lei que proibia o tráfico de escravo,

criminalizando esta prática, culminando em 1888 o fim da escravatura. Como ressalta

Carvalho (2001: 47):

o Brasil era o último país de tradição cristã e ocidental a libertar os escravos. E o fez quando o número de escravos era pouco significativo. Na época da independência, os escravos representavam 30% da população. Em 1873, havia 1,5 milhão de escravos, 15 % dos brasileiros;.às vésperas da abolição, em 1887, os escravos não passavam de 723 mil, ou seja, apenas 5% da população”.

Comparado à França, onde a escravidão ocorria de modo extensivo aos

territórios externos ao hexágono, ou seja, nas colônias francesas, a escravidão no

Brasil ocorreu em todo território nacional, embora houvesse concentrações em umas

regiões, mais do que em outras:

O aspecto mais contundente da difusão da propriedade escrava revela-se no fato de que libertos possuíam escravos. Testamentos examinados por Kátia Mattoso mostram que 78 % dos libertos da Bahia possuíam escravos. Na Bahia, em Minas Gerais e em outras províncias dava-se até mesmo o fenômeno extraordinário de escravos possuírem escravos. Esses dados significam que os

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valores da escravidão eram aceitos por quase toda a sociedade. Mesmo os escravos, embora lutassem pela própria liberdade, embora repudiassem sua escravidão, uma vez libertos admitiam escravizar outros. Tudo indica que os valores da liberdade individual, base dos direitos civis, tão caros à modernidade européia e aos fundadores da América do Norte, não tinham grande peso no Brasil. (Carvalho, 2001: 49).

Associado à tradição católica - que reforçava, através de uma leitura da Bíblia, o

sistema escravocrata - e à ideologia de uma desigualdade natural e hierárquica,

formou-se uma concepção que deu lugar a um princípio de supremacia do todo sobre

as partes, da cooperação sobre a competição e conflito, da hierarquia sobre a

igualdade (Carvalho, 2001: 51). Nesse caso, a liberdade implicou aos libertos a

inexistência de terras, de escolas e de emprego; a Liberdade, nem tanto, foi concedida

universalmente na medida em que no lugar de direitos iguais, foram os privilégios que

se mantiveram, reproduzindo a estrutura hierárquica desigual: a da lógica do

republicanismo barbosiano.

Essa gramática permitiu que a categoria público e privado se inscrevesse numa

outra ordem de grandeza. Tanto liberdade, quanto igualdade, estão associadas à idéia

de um espaço público onde a hierarquia intransponível concede liberdade e igualdade

mais para uns do que para outros. De um lado, a regra da igualdade, como vimos

acima, implica em tratar desigualmente os desiguais, e o limite da liberdade de um, não

vai, de acordo com a fórmula lockiana, até atingir a liberdade do outro. É a lógica de

uma liberdade infinita, de acordo com o status! Desse ponto de vista, o domínio do

público não é representado como o locus da regra local e explícita, de aplicação

universal, de todos conhecida e de todos acessível, portanto aplicável a todos

igualmente e universalmente. O domínio do público - seja moral, intelectual ou até

mesmo o espaço físico – é o lugar controlado pelo Estado, de acordo com ‘suas’ regras,

de difícil acesso e, portanto, “onde tudo é possivelmente permitido, até que seja

proibido ou reprimido pela ‘autoridade’, que detém não só o conhecimento do conteúdo,

mas principalmente a competência para a interpretação correta da aplicação

particularizada das prescrições gerais, sempre realizada através de formas implícitas e

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de acesso privilegiado” (Kant de Lima, 2000: 109). Como assinala Kant de Lima (2000:

110):

o domínio do público é assim o lugar apropriado particularizadamente, seja pelo Estado seja por outros membros da sociedade, autorizados, ou não, por ele, e por isso sempre, aparentemente, opaco, caótico e imprevisível ao olhar do coletivo, onde tudo pode acontecer e de onde ‘quero tudo a que tenho direito’. Neste contexto, a liberdade não é associada à liberdade de escolher no mercado, em que as opções dadas foram previamente negociadas, como no sistema anglo-americano, mas a possibilidade aberta de todos poderem ‘ter’ tudo, que encontra sua expressão paroxística no delírio carnavalesco. Assim a idéia de igualdade se torna substantiva, associada à semelhança, não à diferença, entre as pessoas. Nesse contexto, as negociações se tornam deslocamentos estruturais que afetam posições desiguais em uma hierarquia excludente, não composições que visam à produção de uma hierarquia social includente, de um rank.

É importante notar qual o papel que a informação desempenha na constituição

da res publica nestas sensibilidades jurídicas e morais. A informação no modelo francês

detém um papel preponderante, pois a educação é o “coração” da democracia, pois é

ela que destina os elementos necessários para o entendimento no dissenso (Bourdieu,

1987). Os escritos de Durkheim sobre a educação, por exemplo, nos fornecem

elementos importantes desta cosmologia francesa, pois para ele a escola possui um

papel primordial na formação moral do país. Nas palavras de Schnnaper (2000: 154):

A escola, que ela seja diretamente organizada pelo Estado ou controlada por ele, é sem dúvida a instituição da cidadania por excelência. Na democracia da Antiguidade grega, a ausência da escola pública limitava a participação política destinada aos cidadãos ricos: a idéia de que cada cidadão deva poder exercer concretamente seus direitos é uma criação da democracia moderna. É a partir da Revolução que os mestres de escola, na França, deixam de ser chamados de ‘régents’ para se tornarem ‘instituteurs’, porque eles eram encarregados de instituir a nação de acordo com o artigo 3 da Déclaration des droits de l’homme et du citoyen, fonte da legitimidade política. Mais diretamente que em outros países, a Escola na França, é escola do cidadão. Todos os

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‘républicains’ cultuam verdadeiramente a Escola. A escola de Jules Ferry foi um instrumento político a serviço da construção da República. Estabelecendo os fundamentos da escola pública, os républicains de 1880 se arvoravam os filhos da Revolução e herdeiros da filosofia do século XVIII. O interesse geral não se confundia com a soma dos interesses particulares, segundo a concepção russoniana. Era importante, portanto, arrancar o indivíduo de suas particularidades para construir um cidadão abstrato destinado a encarnar e definir o interesse geral. A Escola deveria transformar em cidadãos os membros das comunidades restritas e particulares para fazê-los participar da universalidade da cidadania nacional. É por isso que a Escola na França pertence ao domínio público plenamente – isso que explica o valor simbólico que é destinado ao princípio da laicidade e o vigor dos conflitos que suscitam a aplicação do princípio.

Portanto, a escola, no caso francês, é o lugar por excelência de construção de

um conjunto de conhecimentos e referências, explícitos e implícitos, que permitem a

constituição de um espaço político, no qual todos os seus pertencentes são iguais, num

espaço impessoal e informal. Não é por menos que a Escola francesa visa formar a

criança a compreender e dominar a sociedade política, internalizando as regras de uso

e convívio no espaço público. A educação escolar, cívica e religiosa é a mesma para os

franceses dos DOM-TOM, incluindo os Antilhanos, e os franceses da Metrópole. A

apropriação da língua francesa é um dos primeiros sinais de integração, como assinala

o escritor antilhano Edouard Glissant. A linguagem é antes de tudo um fato da tradição;

de certo ponto de vista, ela é, mesma, a tradição.

Na gramática brasileira, a informação possui características distintas, pois o

acesso particularizado a ela possibilita a definição da hierarquia das interpretações, ou

da autoridade interpretativa, que poderá legitimar, ou não, determinada informação.

Sabe mais aquele que se encontra no topo da pirâmide, pois ele é o detentor de uma

legitimidade moral para garantir a verossimilhança da informação. A Escola representa

na República brasileira um outro instrumento de desigualdade entre os cidadãos.

Exemplo disso é o acesso restrito à escola a uma grande parcela de crianças e

adolescentes no Brasil. Mais ainda, sob o ângulo simbólico, a aquisição de um diploma

universitário implica em distinções legais, no que concerne ao tratamento dado a crimes

cometidos por “cidadãos comuns” e “cidadãos diplomados” no caso da prisão especial.

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Como analisam Kant de Lima, Mota e Pires (2005), a informação vale mais quando

menos membros do grupo têm acesso a ela. Explícita e publicamente, as informações

privilegiadas conferem valor e prestígio àqueles que as detêm, constituindo estruturas

nas quais saber e poder estão sempre vinculados, em público: quem sabe mais, pode

mais e vice-versa. Nessas configurações, que pretendem administrar conjuntos de

elementos dados como desiguais, especialmente quanto à quantidade de saber que

está disponível para cada um deles, a estratégia é aplicar, particularmente, regras

gerais de interpretação, para fazer justiça às desigualdades intransponíveis: seria muito

injusto aplicar a mesma regra de forma igual para todos, pois cada um tem natureza e

saber desiguais.

Embora estas arenas públicas sejam distintas, elas detêm certas similitudes:

ambos estão submetidas às regras gerais e nunca locais. No caso francês, onde o

sistema de controle social rejeita a estratégia das minorias segregadas com lugares

diferenciados para preservar a igualdade formal (Kant de Lima, 2000: 110), as regras

estão submetidas a uma vontade que não corresponde aos anseios particulares,

íntimos, mas àquela que está direcionada pelo bem comum, pela volonté générale. A

categoria volonté générale não se opõe ao individualismo, pois cada indivíduo pode ter

acesso ao estado geral e reconhecer a volonté générale que se manifesta em primeiro

lugar no seu foro íntimo, quando ele renuncia a escutar sua vontade particular (Riley,

1986, apud Boltanski e Thévenot, 1991). É nesse sentido que Rousseau pôde opor a

volonté générale e a volonté de tous, pois esta última oprime os indivíduos porque a

mesma manifesta as opiniões particulares. Ela somente leva em consideração o

interesse privado que é a soma dos interesses particulares. Essa categoria volonté

générale implica numa conjunção (e confusão) na França entre os cidadãos e as

instituições, considerando que a volonté générale se manifesta pela representatividade

das instituições legitimas da cité. Os cidadãos aderem à legitimidade do sistema

representativo, o que contradiz mesmo o princípio da sociedade fundada sob a

autonomia individual, que reproduz a personalização do poder através de indivíduos

concretos. Conseqüência dessa cosmologia é o debate em torno da questão da

paridade e equidade, por exemplo, entre homens e mulheres na França, que toca

diretamente à questão da volonté générale e autonomia individual. Enquanto os

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defensores do modelo eqüitativo defendem a idéia de que as instituições políticas

devem representar o povo em sua diversidade (através de uma “representação-

espelho”), os opositores proclamam o universalismo do tratamento como uma recusa

aos particularismos de toda ordem, como no caso dos negros e imigrantes71.

No caso brasileiro, “tais regras, que não se originam dos cidadãos envolvidos

nos conflitos, como devem ser aplicadas particularizadamente, pressupõem uma

competição entre envolvidos pelo favorecimento de sua aplicação e uma suposta

neutralidade do aplicador em relação às partes” (Kant de Lima, 2000: 110). É uma

estrutura piramidal, com forte ênfase em uma lógica hierárquica excludente – ao passo

que o espaço público francês enfatiza uma hierarquia includente – onde todos são

colocados juntos, mas hierarquizados na conquista dos bens disponíveis

particularizadamente no mercado (Kant de Lima, 2000). Como salienta Kant de Lima:

Diferentemente do sistema francês, no entanto, há em nosso modelo espaço para o reconhecimento explícito da desigualdade entre os cidadãos, manifestada em nosso dia-a-dia pelos rituais do ‘você sabe com que está falando?’ e, mesmo, para o reconhecimento jurídico de direitos diferentes explicitamente atribuídos a pessoas supostamente desiguais, como é o caso dos privilégios concedidos oficialmente a certas categorias de cidadãos pelo instituto da prisão especial. (Kant de Lima, 2000: 110).

Desigualdade que tem fortes implicações sobre a noção de equidade . Na

gramática anglo-americana, a equidade está relacionada à segurança da liberdade dos

homens contra a arbitrariedade do poder da maioria, com o propósito de respeitar os

vínculos e pertencimentos de cada indivíduo. Nas palavras de Schnapper, (2000: 40),

“uma etapa essencial foi em todo caso superada com o habeas corpus (1679), que

“afirmava os direitos dos indivíduos contra a arbitrariedade do poder e ‘Gloriosa

Revolução’ de 1688”. A Revolução confirmou o fim do absolutismo real e consagrou a

preponderância do Parlamento. Deus podia inspirar o rei, mas ele estava doravante rei

71 Com relação a esta discussão ver Schnapper, 2000 e Bourdieu, 1998. Importante ver o site do Observatoire de la parité entre les femmes et les hommes (http://www.observatoire-parite.gouv.fr/), instituição vinculada ao gabinete do Primeiro Ministro, criado em 1995.

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em seu Parlamento”. Eram as sementes dos princípios do “check and balance” do

sistema legal e político anglo-saxão:

Essa tradição política se afinava com a concepção que se exprime no reino da commow law. É um direito jurisprudencial, no qual as regras foram fixadas e evoluem pela ação na justiça. Os julgamentos são apoiados pelos precedentes, mas eles dispõem dos meios de adaptar o precedente aos novos casos que lhes são submetidos. A commow law é assim historicamente desenvolvida pela resolução sucessiva de casos particulares. (Schnapper 2000: 42)”.

Nesta gramática, o pluralismo é concebido como uma expressão natural das

liberdades públicas. Ser cidadão corresponde a pertencer a uma comunidade particular,

sendo igual na sua diferença (Kant de Lima, 2000). O interesse geral é composto de

interesses particulares, assim como formula o filósofo liberal Stuart Mill. Como salienta

Garapon e Papadoupoulos, numa comparação entre a gramática legal americana e

francesa, se a République, para os franceses, é agir juntos, para os americanos, a

Constituição, é o que permite que cada um possa agir individualmente e gozar de sua

liberdade (Garapon e Papadoupoulos, 2003).

A sensibilidade jurídica francesa concebe de outro modo a relação entre os

interesses individuais. Como ressaltamos acima, o cidadão, expressão direta da volonté

générale, deve, ao contrário da Inglaterra, ser independente de todos os laços

intermediários e permanecer em relação direta com o Estado, (Schnapper 2000: 44).

Desse modo, os interesses e a vontade de cada cidadão são expressos em

consonância com os interesses coletivos. O mundo cívico francês requer que todas as

relações, para serem legitimadas, sejam mediatizadas pela referência a seres coletivos

que garantam o interesse geral, tais como associações, instituições democráticas, etc.

(Boltanski e Thévenot, 1991; Cefaï, 2007b). Como vimos nos capítulos anteriores, tal

princípio é a base das discussões sobre o reconhecimento de identidades diferenciadas

e reivindicações de políticas de reconhecimento a diferença no espaço público francês,

bem como no Brasil também, como, por exemplo, a necessidade da criação de

associações para a aquisição de determinados direitos ao território quilombola ou para

a promoção de políticas públicas, como as RESEX (Kant de Lima, Mota, Pires, 2005 e

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Lobão, 2006). O universalismo radical francês recusa qualquer tipo de particularismo de

tratamento (Thévenot, 2006 b). O todo sobressai às partes, pois a Nação e a volonté

générale são indivisíveis e inalienáveis. O pacto social funda a identidade entre o

indivíduo e o corpo político republicano. O cidadão francês, na concepção nativa, é em

primeiro lugar um “democrata”, pois dispõe da liberdade política pela participação na

soberania coletiva. Enquanto que na Inglaterra é aceito que existam comunidades

socialmente – mas não juridicamente - reconhecidas, na qual os interesses são

específicos e no qual os representantes negociam com os poderes públicos para

obterem os direitos particulares, na França almeja-se a integração das populações de

origem estrangeira pela cidadania individual, via o processo assimilacionista (Colas,

2004).

Numa gramática inglesa, a equidade implica numa ordem cuja diferença se

estabelece na oposição, enquanto na francesa as diferenças não se opõem, mas se

complementam. O igual, na sensibilidade jurídica francesa, é aquele que se assemelha

aos outros cidadãos. Por isso, que em muitos casos os defensores das políticas de

discrimination positive são acusados de comunitaristas, ou seja, de pleitearem uma

ordem em que o indivíduo universal não esteja submetido às regras do corpo social:

fraterna, livre e igualitária (como nos escritos dos prédios públicos franceses).

Não é por menos que a crítica sobre as políticas de cotas ou de discriminação

positiva na França se assentam no argumento de que as mesmas podem propiciar um

classement (hierarquização) entre os cidadãos. Como dizia uma colega, francesa,

profissional liberal nascida em Paris, a política de cotas pode “permitir que os cidadãos

sejam divididos e classificados, cuja conseqüência é a introdução de princípios

hierárquicos no classement dos indivíduos”. Mesmo que seja reconhecido o racismo

cotidiano, a distinção diária, mesmo para ela, que defende ações em prol dos negros e

imigrantes, a inserção de regras de discriminação positiva na lei pode provocar a

distinção entre cidadãos, que “é temível para a manutenção das relações entre os

cidadãos, que podem passar a viver fechados em suas comunidades”, afirmava ela.

Como analisa Thévenot (2006 b: 11):

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longe de confrontar, simplesmente, a inquietude francesa sobre o multiculturalismo imputada aos Estados Unidos e supostamente reforçada pela utilização de categorias étnicas, essa comparação faz emergir a diferença entre os dois tratamentos de direitos cívicos ou de igualdade cívica. Os tratados precedentes e o universalismo que visa esse grandeur civique (a solidariedade cívica se estende, em princípio, para além de uma comunidade nacional) torna particularmente difícil distinguir a presença concomitante de uma gramática, bem diferente, da família comunitária. Esse isolamento comunitário, entretanto, bem visível ao abordamos a comunidade política, como o faz Stavo-Debauge, do ponto de vista daquele que deseja fazer parte da comunidade, não corresponde à expressão aberta de um patriotismo (como na gramática do nós na Rússia). A palavra chave integração (ou anteriormente, da assimilação), que se compõe entre o grandeur civique e o isolamento comunitário entre os semelhantes, conduz a julgamentos do seguinte tipo: a ‘utilização de categoria étnica pode possibilitar a consagração da fragmentação em particularismos vinculados às comunidades de origem, em detrimento disso que une os cidadãos’.

Dessa perspectiva a discussão sobre a cor da pele, da discriminação racial,

comporta, do ponto de vista nativo, certos riscos no espaço público francês em

decorrência das possíveis acusações de “antirepublicanismo”, do racismo, da

segregação. A cor da pele não existe na Constituição da République (Udino, 2008: 30).

Na gramática brasileira o pluralismo remete a uma outra dimensão, pois os

direitos da cidadania estão associados a bens raros, e não escassos, na medida em

que são aqueles sujeitos morais dignos (Cardoso de Oliveira, 2002 ; Mota, 2005) que

são detentores legítimos do reconhecimento de seus direitos. Como definiu Wanderley

Guilherme dos Santos (1987: 68) a cidadania no Brasil se associa a uma dimensão

regulada, uma cidadania regulada :

Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se, não em códigos de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei. A extensão da cidadania se faz, pois, via regulamentação de novas profissões

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e/ou ocupações, em primeiro lugar, e mediante ampliação do escopo dos direitos associados a estas profissões, antes que por expansão dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade . A cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por lei . Tornam-se pré-cidadãos, assim, todos aqueles cuja ocupação a lei desconhece. (grifo nosso).

Portanto, uma conseqüência direta dessa gramática brasileira é que a cidadania

está associada a um recurso disponível em determinados níveis sociais, assim o

trabalhador em oposição ao bandido, pessoas “com estudo” em detrimento dos

“vagabundos” são consideradas cidadãs. A representação sobre as noções de dever e

de direito está fundada em um paradoxo, onde duas lógicas operam simultaneamente:

uma que concebe a igualdade jurídica e outro que pressupõe a desigualdade, aplicando

particularizadamente as regras (Cardoso de Oliveira, 2002; Kant de Lima, 2000;

DaMatta, 1979). Sendo assim, os direitos da cidadania estão relacionados a uma

concepção hierárquica em que os diferentes direitos estão disponibilizados de acordo

com a categoria ou status dos indivíduos ou grupos.

Desse modo, a atribuição moral as categorias sociais representadas no espaço

público determina, em grande medida, o reconhecimento, ou não, dos direitos dos

indivíduos. Portar ou não certas identidades públicas, ter dignidade reconhecida ou não,

permite uma complexa interação na “busca” dos direitos. Assim, como discutido por

Mota e Freire (no prelo) o fato de ocupar uma posição social, como por exemplo, de

“favelada”, habitante de uma “ocupação irregular”, não produz efeitos pragmáticos no

que diz respeito ao direito de permanecer em sua casa na comunidade, numa situação

despejo ou conflito com o estado. Dispondo, nesse caso, apenas do “direito de não ter

direitos”. Em contrapartida, no caso de uma pessoa cuja identidade está associada, por

exemplo, à categoria social “quilombola”, membro do grupo de moradores

descendentes de escravos, pode “ao menos” dispor de recursos mínimos para deter

legitimidade e buscar reconhecer seus direitos fundamentais, podendo, mesmo, como

demonstram Mota e Freire, impedir a demolição de sua casa numa ação de despejo por

pelo sujeito adquirir o direito de ter algum direito.

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Nessa circunstância aquilo que Ronaldo Lobão denomina da construção legal

das identidades substitui, do nosso ponto de vista, contemporaneamente, o que Santos

denomina de cidadania regulada a partir das categorias e ocupações. Como ressalta

Lobão estas identidades ganham aspectos legais e administrativos adquirindo

legitimidade pública através de leis, decretos, instruções normativas, etc.,

estabelecendo uma hierarquia entre as identidades. Como ressalta o mesmo:

dependendo de sua localização na pirâmide social estas identidades serão submetidas a um reconhecimento subalterno e travestidos em identidades construídas de fora para dentro, (e) os grupos não alcançam sua integração moral em um novo sistema social, econômico e político” (Lobão: 2006: 238).

Hierarquia que se funda no princípio da semelhança em detrimento à hierarquia

que se funda no princípio da diferença: no lugar das ocupações e funções, temos as

identidades legais portadoras de direitos tutelados.

Desse modo, há diversas implicações no que diz respeito à noção de eqüidade ,

que reconhece a pertinência política das especificidades culturais dos indivíduos e dos

grupos, aceitando a idéia de um tratamento diferenciado dos membros dessas

coletividades. A eqüidade é o encontro entre a metáfora da “corrida” e do saber sobre

os handicaps dos competidores (Martuccelli, 1996: 04). É a metáfora dos dois

corredores, descrito por Lobão (2006) em que um corredor detém vantagem sobre o

outro. Para tanto, é necessário conceder a este corredor em desvantagem instrumentos

que possibilitem uma concorrência equânime.

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5.3 Dignidade, diferença e igualdade: o reconhecime nto em jogo.

Como ressaltamos acima, a partir da crítica formulada por Marshall, nos países

ocidentais liberais a cidadania se desenvolveu a partir de 3 elementos: os direitos civis,

os políticos e os sociais. O elemento civil da cidadania representa os direitos

necessários à liberdade individual. O elemento político, por sua vez, consiste na

capacidade de participação do cidadão na vida política do Estado, seja votando ou

sendo votado. Já o elemento social diz respeito a tudo o que está relacionado ao bem-

estar do cidadão e à qualidade de vida. Os direitos políticos na Inglaterra foram

conquistas datadas do séc. XIX, e só se tornaram possíveis tendo em vista a conquista

dos direitos civis. Constituíam o privilégio de determinada classe econômica e este

privilégio se estendeu aos demais cidadãos que, depois da revogação das leis

elisabetianas, puderam trabalhar e conseguir o status econômico necessário para gozar

dos direitos políticos. Inicialmente não houve o fim dos privilégios políticos, mas a

extensão destes às demais pessoas. Apenas com a Revolução Francesa, que instituiu

o sufrágio universal, é que os privilégios foram extintos. A cidadania constitui-se

enquanto recurso para promover a de equidade entre membros de segmentos

diferenciados.

Após a Segunda Guerra Mundial, com a luta pela ampliação dos direitos civis

das minorias (como, por exemplo, o movimento dos direitos civis nos EUA), o

surgimento de movimentos sociais baseados em critérios étnicos e de gênero

recolocam a questão da cidadania. Multiculturalismo, direitos coletivos, etc., tornam-se

princípios básicos dos sistemas democráticos, qual sejam, o reconhecimento da

diferença e sua equalização em termos da igualdade de oportunidades.

A crítica contra o caráter abstrato do cidadão foi formulada por sociólogos e

filósofos contemporâneos, tais como Michael Sandel, Charles Taylor, Michael Walzer,

Will Kymlincka, Nancy Fraser, entre outros. O princípio da separação do público e do

privado, segundo eles, não seria mais suficiente para assegurar uma democracia plena.

Os homens têm necessidade de ver plenamente reconhecida sua dignidade pela

cidadania, mas também sua autenticidade (Taylor, 1994).

São essas transformações ideológicas que resultaram em grande medida nas

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demandas modernas pelos direitos de cidadania e pelo reconhecimento público.

Contemporaneamente, diversos conflitos derivam das lutas por parte de diversos

segmentos sociais pelos direitos diferenciados, cujo resultado diz respeito às mudanças

decorrentes nos sistemas sociais e políticos nos países ocidentais. A ampliação dos

preceitos igualitários e individualistas vem provocar alterações significativas na

conformação das ideologias que correspondem às compreensões e significados sobre

direitos, autonomia e respeito (Taylor, 1994). O reconhecimento, a demanda por

respeito e a dignidade tornam-se centrais no debate público contemporâneo e nas

formas e tipos de demandas expressas e explicitadas nos conflitos cotidianos.

Segundo Charles Taylor (1994) a modernidade trouxe, com o fortalecimento das

ideologias igualitárias e individualistas, duas grandes modificações no Ocidente. A

primeira diz respeito à passagem da noção de honra – própria do Antigo Regime, onde

a honra correspondia ao status de cada membro – à de dignidade, própria de uma

ideologia que concede igual dignidade a todos os cidadãos. Um segundo movimento é

constituição de uma noção moderna de identidade atrelada a noção de autenticidade,

gerando uma política da diferença. Segundo Taylor (2000: 243):

a democracia introduziu uma política de reconhecimento igual que assumiu várias formas ao longo dos anos e que agora voltou na forma de exigências de igual status de culturas e de gêneros. Mas a importância do reconhecimento se modificou e se intensificou a partir da nova compreensão da identidade individual que surgiu no final do século XVIII. Poder-se-ia falar de uma identidade individualizada, identidade particular a mim e que descubro em mim mesmo: um ideal de autenticidade.

Imediatamente seguiu-se outro movimento caracterizado pela demanda por

reconhecimento de uma identidade autêntica que, no plano coletivo, tem se

manifestado através de reivindicações por reconhecimento de identidades nacionais ou

culturais.

Essa noção de autenticidade veio articulada à ruptura da idéia de hierarquia, pois

as identidades no Antigo Regime eram determinadas, em larga medida, pelo lugar que

as pessoas ocupavam na sociedade, como discutido acima. Com a substituição da

noção de honra – própria do Antigo Regime – pela de dignidade, a autenticidade, ou

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seja, a descoberta da própria maneira das pessoas agirem e se identificarem, emerge

como uma nova forma de constituição da identidade individual e/ou grupal (Taylor,

1994). Essa forma de conceber a identidade autêntica gera uma progressiva mudança

na medida em que os sujeitos sociais passam a reivindicar um maior reconhecimento à

diferença72. Como ressalta Taylor (2000: 250):

com a política da dignidade igual, aquilo que é estabelecido pretende ser universalmente o mesmo; com a política da diferença, pedem-nos para reconhecer a identidade peculiar desse indivíduo ou grupo, aquilo que o distingue de todas as outras pessoas.

Todavia, a articulação entre o ideal de autenticidade e a noção de dignidade é

geradora de um paradoxo, na medida em a exigência universal fortalece o

reconhecimento da especificidade. Ela faz com que, simultaneamente, a política da

diferença se desenvolva fora da política da dignidade universal. Numa gramática liberal

republicana, como a francesa, por exemplo, a política da diferença é concebida como

promotora de determinados privilégios. A concepção liberal dos EUA ou canadense

postula que estas políticas revelam as desigualdades existentes, que devem ser

compensadas a partir de garantias diferenciadas. O exemplo dos povos aborígines no

Canadá que tiveram suas terras desapropriadas, sendo alvos de políticas

compensatórias, é um tipo ideal das políticas da diferença no Canadá (Kymlicka, 2005).

Para Taylor, estas se opõem as políticas da igualdade universal, fazendo com que a

emergência de um status igualitário e de uma noção de dignidade.. De acordo com Paul

Ricoeur:

essa situação conflitiva extrema projeta ao primeiro plano as oposições de fundo que concernem a noção de dignidade: a versão liberal clássica enfatiza o status do agente racional, partilhado por todos a pretexto do potencial humano universal. No caso da política da diferença, é a diferença cultural que procede à

72 Como bem nota Ricoeur (2004) tal premissa é tributária da filosofia cartesiana e da teoria da reflexão de John Locke, que influenciaram decisivamente a construção do que o autor denomina de uma hermenêutica do eu. Fato que culminará na produção de uma teoria da ação que se centra sob a idéia de obrigação e de direito. O eu autônomo se caracteriza como um sinônimo de árbitro que, num julgamento sintético subjacente à idéia de autonomia, se combina a idéia de lei (Ricoeur, 2004: 150).

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exigência de reconhecimento universal. No final das contas, é o universal idêntico que será discriminatório, um particularismo travestido de princípio universal. É então a volonté générale, encontrada no argumento de Rousseau, que é acusada de homogeneizante pela política da diferença (Ricoeur, 2004: 334).

Essas duas concepções geraram dois tipos de política. Uma vinculada à noção

de um tratamento igual cego às diferenças, ou seja, o princípio da não discriminação. E

uma outra modalidade vinculada a idéia do reconhecimento à particularidade, ou seja, o

princípio da não homogeneização. De um lado, temos a concepção de que a vontade

geral é a primazia para uma boa sociedade civil e, em sendo assim, as liberdades

devem ceder ao propósito comum. Por outro lado, existem os defensores de que a

individualidade precede a igualdade universal. O reconhecimento de uma identidade

autêntica não é apenas uma questão de cordialidade em relação ao interlocutor, mas

uma obrigação moral cuja não observância pode ser vista como uma agressão, ainda

que não intencional, por parte daquele que nega a demanda de reconhecimento

(Cardoso de Oliveira, 2002, pg. 110). Como enfatiza Jacqueline Pousson-Petit (2004), a

identidade jurídica nos países ocidentais constitui um instrumento de poder e de

controle, mas também um modo de individualização das pessoas. Ou seja, o sistema

jurídico propicia que os indivíduos reivindiquem mais e mais um direito a uma

identidade escolhida e não imposta pelo grupo.

Aliada a essa noção de dignidade, temos a idéia de reconhecimento como ponto

importante dessa mudança de paradigma político-jurídico, na luta pelo reconhecimento

onde o ser reconhecido é o horizonte (Honneth, 2000; Ricoeur, 2004)73. A articulação

entre a personalidade e a identidade constitui, ao mesmo tempo, o jogo desse

reconhecimento e a ligação entre as problemáticas vinculadas a ele. A reivindicação

assentada sob o plano social da igualdade coloca em jogo a estime de soi, mediada

pelas instituições públicas (Cardoso de Oliveira, 2006).

Já para outro pensador liberal canadense, a grande problemática do

reconhecimento é a possibilidade de adequação dos direitos individuais aos direitos da

73 Para Paul Ricoeur (2004) existe uma pluralidade semântica, conseqüência de uma ausência de uma filosofia unificada do reconhecimento, no que concerne à categoria reconhecimento. Um sentido atribuído por Kant, o de rekognition, um outro sentido bergsoniano, o da reconaissance des souvenirs e o hegeliano, amplamente difundido após o trabalho de Honnet, o anerkennug (Ricoeur, 2004: 37).

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maioria, ou aos direitos coletivos (Kymlicka, 1995), na medida em que as garantias dos

direitos individuais têm como base a defesa da autonomia dos indivíduos perante a

tirania da maioria. Kymlicka chama atenção que esse debate entre liberais

individualistas e comunitaristas decorre de uma noção clássica da constituição do

Estado-Nação, onde tradicionalmente a heterogeneidade corresponderia a um perigo à

consolidação da Nação. Ele lembra que um dos célebres liberais do século XIX, Jonh

Stuart Mill, ressaltava que “entre pessoas que não possuem afinidade alguma,

especialmente se falam línguas distintas, a unanimidade necessária para o

funcionamento das instituições representativas não pode existir. Em geral uma das

condições necessárias das instituições livres é que as fronteiras dos governos

coincidam essencialmente com as da nacionalidade” (Stuart Mill, apud Kymlicka, 1995:

230).

Para tanto a democracia é representada como o governo pelo “povo”. E o “povo”

deve ser necessariamente uma nação. Desse modo os direitos de cidadania de um

cidadão estão vinculados ao seu pertencimento a uma comunidade comum nacional

(Kymlicka, 1995). Portanto, a cidadania é uma concessão àqueles pertencentes a uma

comunidade política, lingüística e cultural comum. Para Kymlicka essa base da política

da diversidade, ou seja, que valoriza da diferença cultural e ou étnica, contrasta-se à

noção de uma Nação homogênea. É nesse âmbito que numa tradição liberal

multicultural os instrumentos legais surgem para a proteção externa de determinadas

minorias étnicas, lingüísticas e/ou culturais. Os princípios tradicionais dos direitos

humanos devem ser complementados com as teorias dos direitos das minorias

(Kymlicka 1995: 18).

Como argumenta Kymlicka, sendo o propósito da democracia a garantia dos

direitos individuais, deve-se pressupor que tais garantias devam contemplar as

diferenças entre os recursos que cada grupo possui para se fazer representar ou

manter suas fronteiras e identidades. O autor propõe a constituição de cidadanias

diferenciadas de modo a garantir a proteção externa dos grupos com relação às

maiorias. Sendo assim, as minorias passam a dispor de garantias legais diferenciadas

para a proteção de um estilo de vida autêntico. Para Will Kymlicka, que se opõe a um

multiculturalismo sem controle democrático, em decorrência da possibilidade de

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fragmentação social e de etnicização das populações minoritárias, a absolutização dos

pertencimentos étnicos pode ser igualmente contraditórias com a liberdade individual.

Ele explicita as condições para a instauração da cidadania diferenciada :

- A primeira é que os indivíduos não sejam forçados a fazer parte de um grupo

particular. Eles devem ser livres de entrar e sair;

- A segunda é que as tradições dos grupos culturais diferenciados devem estar em

consonância com os valores democráticos;

- E que os grupos diferenciados sejam iguais em direitos. Visa com isso uma

integração dita plural

Ou seja, os direitos culturais devem imperativamente estar vinculados aos

indivíduos e não aos grupos. Como ressalta Cardoso de Oliveira (2002, pg. 109), se

referindo a sua etnografia sobre demandas de direitos no Canadá, “um dos aspectos

interessantes da demanda quebequense é que, apesar de ser freqüentemente

formulada como um direito coletivo, não pode ser inteiramente dissociada dos

direitos individuais dos cidadãos” (grifo nosso).

Essas garantias estão em consonância com que o sociólogo francês Avishai

(1999) denominou de uma “sociedade decente”. Para ele, o conceito de sociedade

decente pode ser comparado ao de sociedade conveniente ou sociedade respeitável,

ou seja, que protege a respeitabilidade de seus cidadãos, mas a comparação mais

importante aqui está na diferença entre uma sociedade decente e uma sociedade

eqüitativa (équitable) (Margalit, 1999: 14), ou seja, de uma sociedade que garanta a

reprodução da diferença. Segundo ele “há humilhação cada vez que um

comportamento ou uma situação dá a alguém, homem ou mulher, uma razão válida de

pensar que ele foi atingido no respeito que ele tem de si mesmo” (1994: 21).

Trata-se de uma significação mais normativa do que psicológica da humilhação,

pois o acento é colocado sobre as razões que o fazem ressentir-se da humilhação

como um resultado da conduta do outro. Os sentimentos não são apenas causas, mas

também razões. A humilhação está mais intimamente vinculada à idéia de Taylor de

dignidade, pois as condições de vida podem fornecer razões válidas para se sentir

humilhado, mas situações são humilhantes apenas se elas são o resultado de atos de

omissão imputáveis a outros seres humanos.

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Segundo uma concepção secundária ou metafórica da humilhação, as condições

mesmas da existência humana, como a velhice ou a feiúra, seriam razões para os

homens se sentirem humilhados, isto é, a humilhação seria o resultado de condições

naturais. Mas esta concepção possui um entendimento de natureza diferente da

concepção apresentada pelo autor. Para ele, uma sociedade decente é uma sociedade

que combate as condições que constituem aos olhos de seus membros uma razão para

se sentirem humilhados. “Uma sociedade é decente se o funcionamento de suas

instituições não fornece a seus membros razões válidas de ressentir-se da

humilhação”74 (Margalit, 1999: 22).

Outra característica de “uma sociedade decente poderia ainda ser definida como

aquela que não viola os direitos das pessoas que dependem dela” (Margalit, 1999, pg.

37). Isto corresponde à idéia segundo a qual apenas uma sociedade possuindo uma

noção de direitos é capaz de deter os conceitos de respeito a si mesmo e de

74 Para explicitar essa idéia de sociedade decente, o autor confronta duas reações diametralmente opostas que podem servir de sinais de alarme. O anarquismo, que proclama que toda sociedade fundada sobre estruturas de dominação é por definição humilhante. Assim, toda sociedade dotada de instituições permanentes se divide necessariamente em governantes e governados e ser governado oferece uma razão válida para se sentir humilhado. Para os filósofos céticos e anarquistas, nada justifica a autoridade política. Sua “hipótese nula” é a seguinte: nenhuma sociedade dotada de instituições permanentes pode ser uma sociedade decente. Para eles, “a humilhação consiste na limitação da autonomia individual por meio de instituições coercitivas” (ibid: 24). A tese extrema dos anarquistas é que a possibilidade mesma da coerção – quer dizer, do fato de que as pessoas sejam submetidas à boa vontade de uma autoridade – constitui a humilhação. Para que os homens submetidos a uma autoridade sejam humilhados, basta que ela represente uma ameaça permanente para as pessoas submetidas à autoridade das instituições. Entretanto, o autor argumenta que o fato de que os seres humanos vivem em sociedade não deveria ser julgado como humilhante, mesmo que a presença de instituições seja uma condição necessária à existência de uma sociedade. A simples existência dessas instituições não dá às pessoas uma razão de para sentirem humilhadas, já que são necessárias à existência humana em função de sua própria natureza. Mesmo que as instituições sejam responsáveis por falsear a ordem das prioridades individuais, elas também podem agir em prol dos interesses desses indivíduos. O stoïcismo, afirma que não existe sociedade humilhante porque nenhuma sociedade pode fornecer a um ser pensante boas razões de se sentir humilhado. O raciocínio subjacente é que a humilhação é um atentado ao respeito de si mesmo e que este respeito é aquele que os indivíduos concebem para eles mesmos sem precisar da opinião do outro. O respeito a si mesmo é independente de todo ato ou omissão imputável aos indivíduos no encontro com alguém. Enquanto para os anarquistas são os atentados (atteintes) à autonomia individual que são humilhantes, a palavra-chave dos stoïcistas é autarquia, ou seja, a capacidade de ser independente para satisfazer as suas necessidades. Diferentemente da autonomia, a autarquia não exige condições específicas do meio ambiente para sua satisfação, pois mesmo nas piores condições exteriores, a autarquia – conhecida como “autonomia espiritual” – pode ser realizada. A autonomia de pensamento, sobretudo a autonomia psíquica, é a mais alta expressão de autarquia. A humilhação seria a violação da autarquia de um indivíduo e só poderíamos ser vítimas se não tivermos autonomia em nossos pensamentos. Assim, uma sociedade não é decente se ela contribui para a falta de autarquia de seus membros, mas a sociedade não pode barrar o caminho para as pessoas absolutamente determinadas a viver em autarquia. Ou seja, ela é incapaz de humilhar alguém que não quer sê-lo.

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humilhação inerentes à uma sociedade decente. Ou seja, o projeto de uma sociedade

decente só tem sentido no quadro de uma sociedade dotada de uma clara concepção

de direitos. Afinal, existe melhor razão de nos sentirmos humilhados do que a violação

de nossos direitos, em particular daqueles que visam proteger nossa dignidade? Para

explorar esta questão, o autor pensa uma sociedade cuja moral seja fundada sobre o

dever, mas desprovida do conceito de direitos. Nesta sociedade, um comportamento

humilhante não dá às suas vítimas razão válida de se sentirem humilhadas já que estas

não têm o direito de serem protegidas da humilhação. A transgressão aqui é vista mais

como uma violação dos interditos da sociedade do que dos direitos de alguém.

Paradoxalmente, as pessoas podem agir de maneira humilhante sem que alguém seja

humilhado.

Segundo o autor, justificar o dever de não humilhar implica, sem dúvida, o fato de

que a humilhação provoca dor e sofrimento na vítima, o que pode implicar assim o seu

interesse em não ser humilhado. Mas para afirmar que a justificação repousa sobre o

conceito de direitos, não é suficiente o ato de interesse da vítima, mas também mostrar

que este interesse é uma boa coisa em si (Margalit, 1999: 41). A ausência de

humilhação seria isso que é bom em si, de modo que satisfazer os interesses da vítima

é apenas um meio de chegar a este fim. Assim, numa sociedade fundada sobre o

dever, sem a noção correlativa de direito, pode-se não apenas dispor de um conceito

de humilhação, mas também das razões válidas para se sentir humilhado. Os direitos

que podem constituir uma condição suficiente do respeito a si mesmo, ou disso que

chamamos dignidade, são os direitos do homem – aqueles que todos possuem à

igualdade, unicamente em virtude de sua humanidade. Eles são considerados como

uma proteção da dignidade humana, num princípio igualitário e fraterno.

Ora, na gramática francesa a dignidade se vincula à dimensão do respeito e da

consideração que, inscrita nos princípios dos Droits de l’homme (Cardoso de Oliveira,

2006), permite a expressão das reais manifestações do soi. Considerar e reconhecer a

dignidade do outro em prol do convívio na vida comum, em nome da igualdade e da

fraternidade. Esse viés pós-revolução francesa permitiu que as relações no espaço

público francês dessem lugar às manifestações de reconhecimento à dignidade comum.

Exemplo paradigmático dessa concepção é a liberdade que as pessoas detêm de

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manifestar suas opiniões e insatisfações perante a atitude de outro, supostamente

superior na escala hierárquica. Por exemplo, quando trabalhei em um restaurante em

Paris exercendo a função de caixa, foram inúmeras as vezes em que pude manifestar

minhas opiniões, de modo enfático e, às vezes, ríspido, aos clientes do local, diante de

suas manifestações extemporâneas de descontentamento com o serviço. Uma

situação, por exemplo, diz respeito a um cliente que reclamara da demora da entrega

de um produto, que estava, assim como o havia prevenido, sendo preparado.

Insatisfeito, começou a reclamar insistentemente. Disse-lhe enfaticamente que

esperasse, pois assim como ele, havia outros clientes à espera.

Surpresa própria de quem estava habituado com uma lógica fortemente marcada

pelo “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. Lógica essa que fundamenta uma

sólida hierarquia excludente, onde os indivíduos pertencentes à base da estrutura

piramidal estão freqüentemente expostos a ritos de humilhação e de desconsideração.

Seria impensável, por exemplo, uma confrontação dessa natureza com um cliente no

Brasil. Fato que provocaria uma forte reação em virtude do rompimento da ética

hierárquica excludente, com o uso preciso do “você sabe com quem está falando?” É

curioso que, na semana em que voltei de estágio de doutorado na França, deparei-me

com uma situação que me chamou atenção. Foi veiculado no jornal o caso de uma

senhora, na Barra da Tijuca, que havia insultado uma funcionária de um quiosque do

shopping por conta da demora da máquina de cartão de crédito. Inquieta, a cliente

passou a reclamar da demora. A funcionária respondeu que não era sua culpa, mas da

máquina, sendo em seguida ofendida pela cliente.

Em contrapartida, é comum, no Brasil, o uso e abuso do insulto como

instrumento mediador das relações cotidianas no espaço público, de modo a

estabelecer um assimetria e afirmar a hierarquia excludente. Como descreveu Pires

(2005), acerca das incursões dos vigilantes da Companhia de Trem da Central –

SUPERVIA, a relação entre os guardas e os camelôs é marcada por uma assimetria no

uso do que denominamos no linguajar corriqueiro da esculhambação e do esculacho.

Duas categorias nativas que jogam com essa liminaridade do que é concebido como

aceitável ou inaceitável. Esculhambar, mas não esculachar, é o liminar dessa relação

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estruturalmente desigual entre indivíduos detentores de dignidades hierarquizadas.

Como relata Pires (Pires, 2005: 150):

nos trens a categoria nativa do esculacho designava uma forma de se expressar sentimentos de desconsideração, desrespeito e ausência de reconhecimento, seja da parte de quem sofria seus efeitos – o esculachado - seja da parte de quem testemunhava ou, na maioria das vezes, tomava conhecimento de tais ações. No entanto, a idéia de desconsideração era muito difusa. O derrame, como vimos, se caracterizava pela tomada de mercadorias dos comerciantes ambulantes dos trens por parte de supostas autoridades, geralmente vigilantes contratados. Quando ocorria, acarretava prejuízos significativos, do ponto de vista material, aos camelôs. Estes, muitas vezes, classificavam seu infortúnio como sendo ‘do jogo’, um acontecimento previsível dentro do quadro de imprevisibilidade a que estavam acostumados. Destas situações podia resultar o esculacho, onde, a meu ver, se verificaria um déficit de cidadania (Cardoso de Oliveira, 2002: 14) ainda maior.

O esculacho e a esculhambação operam, como bem demonstra Pires, como um

eficiente instrumento de manutenção de uma ordem hierárquica, que distingue seus

cidadãos pelos atributos morais, colocando cada macaco em seu galho, ou como dizem

“mostram a ele o seu devido lugar” (Pires, 2005). Prática que goza total legitimidade

nas instituições responsáveis em administrar os conflitos no espaço público brasileiro75.

Tal legitimidade é assegurada pela percepção de que uns devem ser mais iguais que

outros e tal assimetria é compensada pelas práticas de punição e exposição à

humilhação de modo a corrigir as condutas concebidas como incorretas ou

indesejáveis. O decente é um atributo daqueles que possuem atributos morais,

concebidos como superiores ou relevantes aos olhos dos interlocutores. Não se

esculacha ou esculhamba um igual !

Ora, tal problemática nos leva a refletir sobre o problema da relação entre a

demanda de ser reconhecido e aquela que visa ser conhecido. No primeiro caso, o que

está em jogo é a busca do reconhecimento da dignidade e da autenticidade: se todos 75 Pires (ibid: 150) lembra que “o término do esculacho foi um dos pontos presentes na pauta de reivindicação apresentada por amotinados que tomaram o controle de uma penitenciária, aos representantes do governo estadual, no ano de 2002. Na ocasião, os representantes do poder público estadual concordaram com a reivindicação” Fato que demonstra que tal prática é visível aos olhos do Estado, responsável pela tutela dos presos, e que a mesma não causa maiores estranhezas ao Poder Público!

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são iguais, todos merecem um tratamento digno e devem ter reconhecido suas

especificidades. A aliança entre o princípio da igualdade e o da liberdade, reforçam a

ética da dignididade e do reconhecimento. Noutro caso, a pressuposição da existência

de igualdades estruturadas em status ou em substâncias morais dignas, prevalece a

lógica de que o reconhecimento é uma fase posterior ao conhecimento, da pertinêncioa

ou não da demanda do ator.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS : RECONHECER E SER CONHECIDO: DUAS LÓGICAS E UM PARADOXO

A marca da gramática do reconhecimento, como buscamos discutir ao longo

desta tese, está marcada por uma crítica as desigualdades econômicas e jurídicas

existentes. Explicitada pela crítica das desigualdades de origem “étnica” ou “racial” nos

EUA ou das desigualdades oriundas da discriminação “racista” nos países europeus,

ela tem sido difundida entre diferentes tradições jurídicas “ocidentais”. Existem dois

tipos de políticas públicas diferentes que visam sanar tais problemas sociais. O primeiro

consiste em, por uma legislação particular, aplicar efetivamente o princípio da igualdade

de todos na vida social. É o que promovem diversos países europeus ao adotarem uma

legislação anti-racista (Stavo-Debauge, 2003 e Schnapper, 2000) de modo a combater

todas as formas de discriminação: consiste numa política de igualdade de chances

(equal opportunity). O outro tipo de política pública consiste em adotar as medidas de

“cotas” ou de “ação afirmativa” (affirmative action), com o propósito de compensar as

desigualdades históricas, destinando para determinados segmentos das sociedades

instrumentos para a equalização das condições de acesso aos bens públicos e do

mercado no espaço público.

Nestes dois diferentes modelos, as sensibilidades e gramáticas políticas e morais

informam os modos como os atores concebem a noção de identidade e

reconhecimento. Como discutimos ao longo do trabalho, tal categoria é contextual e

passível de alterações de acordo com a situação na qual o ator se coloca.

Na França contemporânea a indiferença pelo problema identitário se assenta na

concepção de que, como discutimos acima, a questão identitária pode ser resolvida via

direitos universais, pois os indivíduos possuem “pertencimentos”, mas nunca

“identidades“. Ou, melhor dizendo, as formas pelas quais foram construídas as

identidades sociais na democracia francesa têm sido subordinadas e informadas pela

universalização das linguagens. Já no “multiculturalismo”, a liberdade positiva torna-se

a liberdade de um sujeito individual, desde que se compreenda que esse problema não

é mais um problema filosófico (a indeterminação da vontade humana), mas, antes, o da

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autodeterminação de um sujeito individual enquanto membro de um grupo (Martuccelli,

1996). Nas palavras de Martuccelli (1996: 05):

ontem, considerava-se que o “eu público” e a “vontade geral” encarnavam o sujeito, verdadeiramente individual e humano porque político — aquele do qual Rousseau, por suas contradições, constitui aqui a figura de referência. Hoje, supõe-se que o “eu privado” e as “vozes minoritárias” encarnam o verdadeiro sujeito da política: o da autenticidade. A oscilação do coletivo e do individual é considerável. Ontem, a liberdade positiva buscava a imediatez da sociedade nela mesma (o indivíduo nada mais sendo do que um prolongamento dessa exigência fundadora da verdade política); hoje, a liberdade positiva busca a imediatez do indivíduo nele mesmo (não se concebendo, no fundo, a sociedade política senão como o corolário dessa verdade política). Ao primado da “vontade geral” enquanto essência do político, sucede o primado da política da autenticidade.

Esse processo de ampliação da noção do individualismo igualitário tem sido um

campo fértil para expressão da diferença como princípio moral, político e jurídico. Tal

pressuposto, em contraste com o ideal republicano, promove a ascensão de uma

demanda de reconhecimento das particularidades de cada ator e de cada grupo. O

individualismo igualitário exprime a demanda da diferença no domínio público, que

implica diretamente na difusão da noção de equidade.

A gramática francesa pressupõe que tal política de equidade se choca com os

valores universalistas do cidadão francês. Podemos tomar as ponderações da

socióloga francesa Dominique Schnapper (2000: 212) como uma base desta concepção

republicana francesa. De acordo com ela:

parece verdadeiramente perigoso adotar uma legislação permanente de discriminação positiva, que cristalizará a existência de grupos particulares , titulares de direitos particulares , no interior da sociedade nacional, no lugar de visar, antes de todas as coisas, a unir os homens em torno dos valores e das regras comuns que permitem formar uma sociedade democrática (grifo nosso).

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Entretanto, no espaço público francês as manifestações dos movimentos

feministas, aquelas ligadas aos droits de l’homme, ou dos movimentos negro e dos

movimentos em defesa dos imigrantes, indicam que as relações que satisfazem os

indivíduos modernos são aquelas que são fundadas sob a igualdade de dignidade e

essa vontade de igualdade se manifesta quotidianamente, como vimos.

Segundo esse princípio, a cidadania eqüitativa, ou o “multiculturalismo”, para os

republicanos franceses, é vista pelo prisma da divisão entre o universo privado e o

universo público. No mundo privado, a liberdade de laços ou de fidelidades particulares,

religiosas ou históricas. As liberdades públicas asseguram a liberdade de associação, o

direito de praticar livremente sua religião e de praticar sua própria língua. No mundo

público, a unidade das práticas e dos instrumentos da vida comum, politicamente

organizadas em torno da cidadania. É essa a posição dos liberais ortodoxos dos EUA.

Para essa distinção entre público e privado, republicanos franceses e liberais ortodoxos

se esforçam em conjugar a igualdade civil e política dos cidadãos, respeitando seus

vínculos históricos ou religiosos particulares, assegurando ao mesmo tempo a unidade

social através da cidadania comum e da liberdade dos indivíduos em suas escolhas

existenciais. Essa tensão entre o bem comum e a demanda por reconhecimento no

espaço público francês é visível com relação ao caso do foulard. O “caso do foulard”,

como visto acima, desencadeou um debate público em decorrência da interdição do

uso do véu islâmico numa escola secundária. Alunas de origem marroquinas que

portavam o foulard foram impedidas de ingressar no estabelecimento escolar. Duas

posições se apresentaram no debate. Uma delas defendia uma concepção estritamente

“laica”, segundo a qual não se deveria permitir a expressão de nenhuma diferença

(sobretudo étnica ou religiosa) dentro da escola. Outra, apresentava um argumento de

que seria necessário a ampliação da concepção de “laico”, mas sem se ater na questão

da diferenciação cultural das identidades. Ora, os partidários da escola laica visam

“protegê-la” das divisões possíveis, fazendo com que os indivíduos se desprendam de

suas particularidades, almejando a formação de um cidadão imune às particularidades

identitárias. Para os defensores de uma visão mais larga da noção de uma escola laica,

a afirmação de uma identidade faz parte da expressão da individualidade (Martuccelli,

1996).

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Ora, se para o princípio da cidadania o multiculturalismo é um direito - pois a

separação do domínio privado e do domínio público é fundadora da ordem política - o

multiculturalismo à la française é concebido como a liberdade do exercício das

diferenças e particularidades na vida pessoal e social, sob a condição de respeitar as

regras universais da ordem pública. Desse modo as especificidades não devem fundar

uma identidade política particular, reconhecida como tal no espaço público, o qual deve

permanecer o lugar do espaço comum, das práticas e da língua da cidadania universal.

Por isso, como vimos acima, o temor de minha colega francesa de se introduzir o

classement entre os indivíduos. Temor maior ainda se ocorrer através da lei,

instrumento guardião, desse ponto de vista, da vontade geral.

Esses direitos se assentam na liberdade dos indivíduos de possuírem e

desenvolverem, eventualmente, em comum com outras pessoas, sua própria vida

cultural. Assim, como conciliar a liberdade e a igualdade individual de todos os cidadãos

e o reconhecimento público de suas especificidades?

Para os franceses, o risco do “comunitarismo” assenta-se na justificativa de que

os direitos diferenciados podem propiciar um isolamento dos indivíduos em seus

particularismos, reduzindo-os a grupos fechados, impossibilitando as trocas com outros.

Pertencer pelo nascimento a um grupo reconhecido por uma legislação é contraditório

com a liberdade do “homem democrático”. Segundo as circunstâncias históricas eles

podem escolher em função de seu passado individual e coletivo as formas de referência

e de identificação, pois são livres para as elaborarem. Portanto, na democracia à la

française o reconhecimento público dos grupos particulares pode possibilitar a

cristalização de grupos fechados, viabilizando a consagração de particularismos, em

detrimento dos elementos que unem os cidadãos, impedindo que os indivíduos possam

entrar em relação um com o outro. Para eles, é um risco de fragmentação social e

justaposição de “comunidades”.

A questão que se coloca é: como instaurar uma cidadania diferenciada que não

seja desigual? Podemos escapar da contradição entre o reconhecimento da diferença e

da igualdade? Podemos escapar da cristalização ou da reificação dos pertencimentos

particulares se os reconhecemos politicamente e juridicamente? Como pode o

reconhecimento público das diferenças não induzir a um processo de reivindicação sem

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fim? O reconhecimento dos direitos culturais poderia fazer com que, por exemplo, todos

os textos oficiais fossem traduzidos nas diferentes línguas que, na França, poderiam

legitimamente reivindicar serem reconhecidas pela Carta européia de proteção das

línguas regionais e minoritárias? Ora, a crítica dos republicanos franceses é que a

constituição jurídica do reconhecimento à diferença pode permitir uma reivindicação

sem fim, propiciando o enfraquecimento dos laços cívicos entre os cidadãos76. Ou,

como salienta Garapon (2008), tal quadro, no lugar de reconciliar, pode permitir a

difusão de uma inquietante “concorrência das vítimas”. Portanto, como efetivar essa

coexistência da diferença com o momento do reconhecimento? Como articular o

reconhecimento com o anseio de querer ser conhecido?

Nesse último caso, me parece essencial discutirmos as implicações destas

“políticas de reconhecimento” na gramática brasileira. Pois, como vimos, a categoria

reconhecimento não possui o mesmo sentido vista sob a perspectiva americana e

francesa. Ora, como insistimos acima, tratar tal categoria descontextualizada é incorrer

num equivoco sociológico, ou resvalar numa sociologia espontânea.

Primeiro, porque na sensibilidade jurídica brasileira a relação entre os segmentos

desigualmente constituídos se estabelece a partir de uma noção de complementaridade

(DaMatta, 1979). Os atores relacionam-se complementarmente no interior de um

sistema totalizante. Nesse contexto, a ordem hierárquica excludente é concebida como

natural, tendo em vista que cada parte desigual e complementar à outra é essencial à

estrutura do todo, mas todas têm um lugar previamente estabelecido (Kant de Lima,

Mota, e Pires, 2005). Ou seja, no Brasil, como salientado, nem no contexto legal somos

formalmente iguais tendo em vista os diversos instrumentos legais que atribuem

tratamentos desiguais. Uma conseqüência direta dessa cosmologia é que a demanda

de direitos diferenciados está, liminarmente, associada à noção privilégio. Como a

complementaridade remete à idéia de desigualdade dos diferentes e igualdade dos

semelhantes, as reivindicações à diferença se associam a idéia de distinção. Como na

76 Um debate forte é a questão a respeito dos problemas vivenciados pela constituição do novo espaço público europeu, qual seja: da constituição de uma cidadania pós-nacional. Para Habermas, por exemplo, é necessário a elaboração de um patriotismo constitucional. Será preciso, de acordo com ele, dissociar o patriotismo nacional e o exercício da cidadania. A Nação permanece o lugar da afetividade, o lugar da troca de uma mesma cultura e história, e o espaço público europeu se tornaria o lugar da lei, da racionalidade e dos direitos do homem (Schnapper, 2000).

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máxima de Ruy Barbosa, a regra da igualdade não consiste senão em quinhorar

desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Ou seja, há uma

mistura entre duas ordens de grandeza, a princípio, distintas: a da desigualdade e a da

diferença. Para os juristas brasileiros, por exemplo, há uma freqüente confusão entre a

idéia de desigualdade jurídica e a de diferença, pois:

a desigualdade jurídica é entendida equivocadamente como sinônimo de dessemelhança, de diferença, ou ainda, como instrumento legítimo para compensar a desigualdade de fato. É a naturalização da desigualdade entre nós que confere a atualidade da regra da igualdade de Ruy Barbosa, cuja leitura peculiar faz uma espécie de jusnaturalismo às avessas, uma vez que esta escola justifica a igualdade entre os homens pela sua natureza, isto é, todos são iguais porque a natureza os fez homens. O autor vincula a idéia de desigualdade jurídica à idéia de diferença e preconiza que a desigualdade jurídica é o resultado da ‘natureza’ das coisas (Mendes, 2005: 30).

As justificações por parte dos defensores das políticas à diferença (como as

cotas, as ações afirmativas, etc.), no Brasil, se alicerçam na máxima de Ruy Barbosa,

pois em tal gramática a promoção da igualdade implica não a supressão da

desigualdade, mas a sua compensação, sem alterar a estrutura desigual que sustenta a

sociedade; mantém-se, portanto, os mecanismos de acesso particularizado à

informação e aos recursos disponíveis, considerados como parte legítima e necessária

para manter privilégios inerentes a certos segmentos da sociedade, que sustentam, em

harmonia, a hierarquia social (Kant de Lima, Mota e Pires 2005). A questão importante,

pensamos, é que essa característica do espaço público no Brasil, de que é inevitável a

negociação da aplicação particularizada de regras, permite que a diferença se

constitua, paradoxalmente, no desigual.

Paradoxo este que se relaciona com a característica desse espaço público em

que o prestígio da autoridade interpretativa permite a classificação daqueles que são ou

não passíveis de serem legítimos detentores do reconhecimento público. Ou seja, para

que sejam reconhecidos é preciso antes que sejam conhecidos diante dos

interlocutores no espaço público para que suas demandas possam adquirir

legitimidade. Disso resulta que os critérios que definem a atribuição de direitos a

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determinados grupos ancoram-se, como acima mencionamos, na substância moral das

pessoas dignas (Cardoso de Oliveira, 2002: 111), devendo comportar certos atributos

de modo a garantir o direito e o reconhecimento. No lugar da autonomia, a tutela; no

lugar do reconhecimento da legitimidade dos agentes envolvidos nas políticas públicas,

a intervenção externa no reconhecimento das identidades sociais legítimas.

Portanto, deter certos atributos, pertencer a determinados segmentos sociais, ser

um hipossuficiente (Mota, 2005a) conhecido, digno, permite ser reconhecido,

destinando-lhe acesso a determinadas políticas. Paradoxalmente, o reconhecimento da

cidadania diferenciada, nesse espaço público, configura-se como uma cidadania

tutelada (Kant de Lima, no prelo), em que o ser conhecido precede o reconhecimento.

Ou seja, pertencer a certas categorias identitárias legais, como bem chama atenção

Lobão (2006), permite que o Estado e seus agentes intermediários destinem a estes

atores políticas públicas diferenciadas Por exemplo, uma comunidade de pescadores

artesanais de uma mesma região, cujos laços de parentesco, compadrios e amizade

sejam estreitos, cujas técnicas empregadas na atividade pesqueira sejam as mesmas,

pode dispor de recursos jurídicos, econômicos e de políticas públicas que desiguale

seus membros. Ë o caso de comunidades que são contempladas, por exemplo, com

uma Reserva Extrativista Marinha, enquanto outra com as mesmas características

sociais, econômicas e culturais, não pode ter acesso ao mesmo bem público. Aquela

que estiver dentro de uma RESEX pode ter acesso a determinados subsídios do

Estado, créditos e políticas especiais, ao passo que a outra não tem, ainda que partilhe

do mesmo espaço de pesca e de moradia. Ao invés de sanar as desigualdades

estruturais existentes, a ação do Estado pode provocar a reprodução de uma

desigualdade interna.

Ora, isso está relacionado, pressupomos, com o fato de que a noção de

dignidade - que como bem salienta Garapon e Papadoupoulos (2003: 32) é

marcadamente presente na tradição da civil law, ou seja, no Brasil e na França -

mistura-se com a forte personalização das relações, provocando tais paradoxos nas

políticas pensadas como diferenciadas. Como bem salienta Cardoso de Oliveira (2002):

a preocupação dos brasileiros com a manifestação de consideração à pessoa acabava provocando uma dificuldade

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inversamente proporcional no que concerne ao respeito dos direitos dos concidadãos. Isto é, a ênfase na dimensão substantiva das identidades dos atores – portadora de substância moral característica das pessoas dignas – favorecia a pessoalização das relações face a face com aqueles atores com os quais conseguimos estabelecer vínculos de empatia e perante os quais somos motivados a manifestar um sentimento de solidariedade – simbólica -, em oposição aos indivíduos frente aos quais nos situamos de maneira mais distante e com quem estabelecemos relações estritamente formais e/ou abstratas – quando a relação não é mediada por um contato pessoal ou quando não conseguimos atribuir uma referência substantiva ao nosso interlocutor. No último caso, a dificuldade em reconhecer a dimensão moral da identidade de nosso interlocutor significaria a negação de sua dignidade e, portanto, uma dificuldade em tratá-lo como igual; em outras palavras, como alguém que seja igualmente merecedor de tratamento pessoalizado dispensado às pessoas morais. É por essa razão que identifiquei, no caso brasileiro, uma contaminação indesejável da noção de dignidade pela idéia de honra. Assinalei que essa contaminação da noção de dignidade no Brasil seria um forte motivador para o estabelecimento de relações iníquas, onde – no plano das práticas sociais cotidianas, e às vezes na formalização legal de condições sociais diferenciadas – haveria uma tendência a discriminação entre dois tipos de cidadãos. Tais práticas caracterizariam a existência de uma área de intersecção excessiva entre os campos semânticos das noções de direito e privilégio, assim como as noções de público e privado, provocando uma valorização cultural da obtenção de privilégios, em detrimento de direitos, e uma motivação sistemática ao esforço de privatização do espaço público.

Assim, se o paradoxo francês está assentado na busca de uma equalização

entre a concepção igualitária (ou “republicana”), em contraposição ao comunitarismo e

aos particularismos, o paradoxo brasileiro se relaciona com a dificuldade de pensar a

igualdade na diferença, pois a semelhança na desigualdade impede o reconhecimento

do diferente na medida em que para obter reconhecimento o ator deve ser antes

conhecido. No caso francês, a igualdade implica que a sociedade seja una e,

sobretudo, que o Estado intervenha de maneira universalista para fortalecer sua

unidade, e garantir, então, a consolidação do bem comum. A intervenção do Estado,

num sentido não universalista, pode comprometer a unidade e a legitimidade da

vontade geral. No caso brasileiro, a equidade sem a igualdade de direitos permite que

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as ações de compensação sejam dirigidas às situações particulares, não possibilitando

que os princípios sejam universalizáveis para o conjunto de atores diferentes no espaço

público. Ora, leva-se em conta as circunstâncias pessoais ou a susbtância moral digna

das pessoas.

A política assimilacionista das duas tradições republicanas assumiram a

responsabilidade de suprimir as diferenças em prol da Nação. Uma com o propósito de

manutenção do bem comum e outra com o objetivo de manter cada coisa em seu lugar

e cada um em seu lugar. Numa situação, a possível privação das minorias do bem

comum provoca fortes reações quanto ao tratamento diferenciado às “minorias visíveis”,

noutra o possível capital moral e político ao pertencer a um grupo conhecido e

reconhecido legalmente (Lobão, 2006), permite o acesso aos bens escassos, antes

indisponíveis, acelerando a disputa entre os corredores, que falávamos acima. Essa

concorrência das vítimas, vinculada a esta expansão do individualismo igualitário, tem

sido a força propulsora destes mecanismos de compensação e da criação de

instrumentos de proteção às expressões das minorias.

O mundo moderno que foi pintado com as cores da “igualdade, liberdade e

fraternidade”, culminando, nos dias atuais, nas demandas de reparação, de

compensação e de reconhecimento, não parece ter reservado estas cores para todos

os habitantes dos “arquipélagos planetários”. Aparentemente, o “mundo ocidental”

escolheu vias mais fáceis em prol de demandas que contemplem nossas diferenças,

sem nos atermos às nossas universalidades. Nossas particularidades ao mesmo tempo

em que foram reconhecidas não permitiram a consolidação dos laços e vínculos entre

as diferentes culturas. Nesse vocabulário, é comum o uso da palavra tolerância, mas

nunca o de coexistência. Talvez porque a coexistência remeta para a possibilidade de

ligação e mistura entre os “arquipélagos planetários”. Mas achamos que num quadro de

expansão de desigualdades, estes arquipélagos tendem cada vez mais a se tornar em

“ilhas” isoladas, restritas a determinados membros da “ordem mundial”. Nesse sentido,

devemos exercer nossa pensée archipélique para a abertura dos diferentes mares e

fronteiras que pode possibilitar o coexistir. Ao contrário continuaremos a nos questionar,

afinal, se somos cidadãos em toda parte ou cidadãos à parte?

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______. Decreto nº. 4.340, de 22 de agosto de 2002. (Regulamentação SNUC)

______. Decreto nº. 4.887, de 20 de novembro de 2003. (Regulamenta o art. 68, dos

ADTC/CF)

______. Decreto nº. 5.051, de 19 de abril de 2004. (Promulga a Convenção 169 da

OIT).

______. Decreto 6040, de 7 de fevereiro de 2007. (Institui a Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais).

______. Decreto de 27 de dezembro de 2004. (Cria a Comissão Nacional de

Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais).

_____. Projeto de Lei n.º 129 de 1995 de autoria da Senadora Benedita da Silva

(Regulamentar os procedimentos de titulação de propriedade imobiliária dos

remanescentes das comunidades de quilombos).

_____. Projeto de Lei n.º 627 da autoria do Deputado Alcides Modesto e Domingos

Dutra (Regulamentar os procedimentos de titulação de propriedade imobiliária dos

remanescentes das comunidades de quilombos)

IBAMA

Portaria n.º 22 de 10 de fevereiro de 1992 do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e

dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), do Centro Nacional do Desenvolvimento

Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT).

Rio de Janeiro

____________. Lei Estadual n.º 293 de 1995. (Dispõe sobre a permanência de

populações nativas há mais de 50 anos em unidades de conservação no Estado do Rio

de Janeiro).

França

______. Code Noir de 1685.

______. Decreto de 4 de abril de 1794 de Abolição da escravatura na França.

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______. Decreto de 17 de julho de 1802 que restabelece a escravidão na França.

______. Decreto de 27 de abril de 1848 da abolição da escravatura.

______. Lei de 21 de maio de 2001 que define a escravidão como um crime contra a

humanidade (Lei Taubira).

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- Revista Existimos. Publicação Fase e Arqimar. Novembro de 2007.

- Dossiê “Povos da Terra - Povos do Mar - Ilha da Marambaia: Do Tráfico de Escravos,

Ontem, aos Despejos de Famílias Pescadoras, Hoje”. CPT de Itaguaí, 1999.

- Processo de reintegração de posse: 980007738-3 de 14.04.1998, da 30ª Vara

Federal. Réu(s): Sebastiana Henriqueta Camilla de Lima

- Mesa Redonda “Quelle mémoire de l'esclavage ?”, promovida pela Revue Esprit em

fevereiro de 2007 com a presença de Daniel MAXIMIN, Stéphane POCRAIN e

Christiane TAUBIRA.

- Processo movido pelo Mouvement international pour les réparations e o Conseil

Mondial de la Diaspora Pan Africaine contra o Estado francês para a reparação aos

desscedentes de escravos da Maritnica pelos crimes cometidos pela escravidão.

- Ordennace do Tribunal de Grande Instance de Forte de France sobre o processo

movido pelo Mouvement international pour les réparations e o Conseil Mondial de la

Diaspora Pan Africaine

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