112
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião Vinnícius Pereira de Almeida O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO KUYPERIANISMO: APONTAMENTOS HISTÓRICOS, TEOLÓGICOS E SEU PROCESSO DE RECEPÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO SÃO BERNARDO DO CAMPO 2019

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

Vinnícius Pereira de Almeida

O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO KUYPERIANISMO: APONTAMENTOS HISTÓRICOS, TEOLÓGICOS E SEU PROCESSO

DE RECEPÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

SÃO BERNARDO DO CAMPO 2019

Page 2: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

VINNÍCIUS PEREIRA DE ALMEIDA

O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO KUYPERIANISMO: APONTAMENTOS HISTÓRICOS, TEOLÓGICOS E SEU

PROCESSO DE RECEPÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Dissertação apresentada em cumprimento

parcial às exigências do Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Religião, para

obtenção do grau de Mestre.

Orientação: Prof. Dr. Helmut Renders.

SÃO BERNARDO DO CAMPO 2019

Page 3: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

FICHA CATALOGRÁFICA

Al64p

Almeida, Vinnícius Pereira de

O projeto ético-político do kuyperianismo: apontamentos

históricos, teológicos e seu processo de recepção no Brasil

contemporâneo / Vinnícius Pereira de Almeida -- São Bernardo do

Campo, 2019.

114 f.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) --Diretoria de

Pós-Graduação e Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Ciências

da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do

Campo.

Bibliografia

Orientação de: Helmut Renders.

1. Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2.

Calvinismo 3. Teologia pública I. Título

CDD 230.42

Page 4: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

A dissertação de mestrado intitulada: O projeto ético-político do Kuyperianismo:

apontamentos históricos, teológicos e seu processo de recepção no Brasil

contemporâneo, elaborada por Vinnícius Pereira de Almeida foi apresentada no

dia 10 de abril de 2019, perante banca examinadora composta por Prof. Dr.

Helmut Renders, Prof. Dr. Carlos Caldas e Prof. Dr. Lauri Wirth.

Prof. Dr. Helmut Renders

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura

Linha de Pesquisa: Teologias das Religiões

Page 5: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pois por meio de seu apoio, esta pesquisa foi viabilizada.

Page 6: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

Todas as cirandas à Alesandra, teóloga da minha vida!

Page 7: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

AGRADECIMENTOS

Ao término desse percurso é imprescindível reconhecer que há tanta gente

querida envolvida nessa realização. E assim, entre prosas e brindes, leituras

flutuantes e orações, rolês de skate e passeios com o cachorro, reflexões e

esperanças — enquanto várias destas páginas foram produzidas nas sessões de

quimioterapia — que foi possível superar as angústias existenciais e as inseguranças

expostas na construção científica. Com alegria, expresso minha profunda gratidão,

Ao bom Deus, criador, inspirador e sustentador, pela dádiva da vida, que durante

esse período, tem sido bem presente em tudo…

Ao Prof. Dr. Nicanor Lopes, orientador responsável pelo “Lado A do disco”, do

pré-projeto até a qualificação deste trabalho, por aportar saberes e ampliar de

maneira tão generosa a construção dessa pesquisa.

Ao Prof. Dr. Helmut Renders, orientador responsável pelo “Lado B desse disco”,

pelos direcionamentos e valorização ética, que conduziram e propiciaram o voo e o

pouso desta pesquisa até sua fase de conclusão.

Ao Prof. Dr. Lauri Wirth, por compor a banca examinadora e pela apreciação

desta pesquisa e apontamentos devidos, que sinalizaram para pontos a serem

adensados na continuidade da produção.

Ao querido Prof. Dr. Carlos Caldas, convidado externo da banca examinadora,

que prontamente atendeu a proposta, e pelas contribuições ex-ante, quando ainda

considerava ingressar no Programa, e, agora, ex-post, nos indicativos referidos com

essa realização.

Ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da

Universidade Metodista de São Paulo, pela abertura ao diálogo e pelo estímulo para

a investigação.

Ao meu pastor-amigo, Sandro Baggio, por compartilhar de seu acervo pessoal

os inúmeros títulos que enriqueceram e foram fundamentais à pesquisa.

Ao amigo Igor Miguel, pelos diálogos tão preciosos e assertivos e pela gentil

articulação, que me colocou em contato com muitos agentes e instituições

mencionadas.

Page 8: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

Ao Eliezer Lírio, bibliotecário na Universidade Presbiteriana Mackenzie, pela

precisão do levantamento bibliográfico, tão significativo às buscas no processo de

mapeamento das publicações.

À querida amiga Leila Souza, pela parceria ininterrupta e presença solidária na

finalização deste trabalho.

Aos departamentos de Coordenação e Supervisão Social do Programa Guri

Santa Marcelina, que mantém o alinhamento desta instituição em valorizar o

constante aprimoramento por meio fomento aos estudos e pesquisas.

À mamãe, José Fernandes e toda a família, pelo amor, apoio, motivação e

temperos.

À Carolina, Nathan, Joy e todos os marimigos. Amo a vida de vocês! Agradeço

por todo o apoio, carinho e cuidado e por buscarmos trilhar a teologia que anda no

chão da vida.

À Steiger Brasil, missão que me provoca a pensar formas de comunicar a boa

nova. Valeu Hudson, Aline & Ângelo, Moáh e a geral.

À minha amada comunidade de fé, o Projeto 242, que retroalimenta o desejo

pelo Reino de Deus e sua justiça.

Coram Deo

Page 9: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

ALMEIDA, Vinnícius Pereira de. O projeto ético-político do Kuyperianismo:

apontamentos históricos, teológicos e seu processo de recepção no Brasil

contemporâneo. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião) - Programa de

Pós-Graduação Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São

Bernardo do Campo, SP, 2019.114 Folhas.

RESUMO

O presente estudo se ocupou de investigar a trajetória do teólogo e estadista holandês, Abraham Kuyper. Como objeto da pesquisa, os nexos entre sua biografia e propostas para a educação, a questão social, a igreja e o cenário político, apresentam a gênese do neocalvinismo enquanto um movimento que legitima a compreensão da soberania divina sobre todas as esferas da vida, vinculada ao posicionamento de comprometer-se com a arena pública. Como demonstrado no capítulo primeiro, Kuyper liderou a edição de um jornal e um partido político, instituiu a Universidade Livre de Amsterdam, participou de um movimento para a fundação da Igreja Reformada Livre e proferiu as Palestras Stone. A sequência do capítulo segundo demonstra o desenvolvimento da perspectiva kuyperiana e seu pensamento teológico, que sustentou o reconhecimento de um projeto ético-político. Em seguida, é apresentado no capítulo terceiro, por intermédio de pesquisa bibliográfica, o processo de tradução e publicação de obras no campo da filosofia reformacional e das instituições que acolhem e promovem o pensamento neocalvinista no Brasil. Nas considerações finais foram explicitados os elementos que este estudo pôde acessar e destacados os aportes analíticos: dos desafios de se contextualizar uma teologia holandesa do século XIX no Brasil do século XXI, e, das possibilidades de contribuir agregando novos elementos teórico-metodológicos e linhas de ação para a articulação da fé cristã diante dos enfrentamentos sociopolíticos. PALAVRAS-CHAVE: Neocalvinismo; Kuyperianismo; Teologia Pública Kuyperiana; Abraham Kuyper;

Page 10: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

ALMEIDA, Vinnícius Pereira de. The ethical-political project of Kuyperianism: historical notes, theological and its process of reception in contemporary Brazil. Master's Dissertation in Religion Sciences - Post-Graduate Program in Religion Sciences of the Methodist University of São Paulo, São Bernardo do Campo, SP, 2019.114.

ABSTRACT

This study investigates the life and work of Abraham Kuyper, the Dutch theologian and statesman. His biography and proposals for education, social matters, the church, and the political scene form the two axes which are studied as constituting the origin of neocalvinism as a movement that legitimates the comprehension of divine sovereignty over all spheres of life attached to a position of commitment to the public arena. As demonstrated in the first chapter, Kuyper lead the edition of a newspaper and a political party, established the Free University of Amsterdam, participated in a movement to found the Free Reformed Church and gave the Stone Lectures. Then the development of Kuyper’s perspective and theological thought is presented in the second chapter as the foundation sustaining the recognition of an ethic-political project. Following, in the third chapter, through bibliographical research, it is presented the process of translation and publication of works in reformed philosophy and institutions that foster and promote the neocalvinist thought in Brazil. In the concluding considerations, it is explicitly demonstrated the elements that this study could assess and the analytical contributions are highlighted: the challenge of contextualizing a Dutch theology from the 19th century in 21st century Brazil; and the possibilities of making a contribution by attaching new theoretical and methodological elements, and action strategies of articulating the Christian faith before sociopolitical confrontations. KEYWORDS: Neo-calvinism; Kuyperianism; Kuyperian Public Theology; Abraham Kuyper;

Page 11: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12

1. O PANORAMA DO NEOCALVINISMO HOLANDÊS: O PENSAMENTO

ÉTICO, SOCIAL E POLÍTICO DE ABRAHAM KUYPER ................................. 15

1.1 O Neocalvinismo Holandês ........................................................................ 16

1.2 Abraham Kuyper e as Palestras Stone ...................................................... 19

1.3 Temas e ênfases teológicas do Neocalvinismo ......................................... 30

1.4 O pensamento de João Calvino e as ênfases teológicas das vertentes do

Novo Calvinismo e do Neocalvinismo .............................................................. 36

Considerações intermediárias ......................................................................... 44

2. FUNDAMENTOS DO NEOCALVINISMO HOLANDÊS: O PENSAMENTO

ÉTICO, SOCIAL E POLÍTICO DE ABRAHAM KUYPER ................................. 46

2.1 O Estado .................................................................................................... 47

2.2 A Educação ............................................................................................... 50

2.3 Ciência e Universidade .............................................................................. 52

2.4 A questão dos pobres ................................................................................ 56

2.5 A Igreja ...................................................................................................... 60

2.6 O Pluralismo Kuyperiano ........................................................................... 63

Considerações intermediárias ......................................................................... 66

3. A RECEPÇÃO DO NEOCALVINISMO HOLANDÊS NO BRASIL: A

APRECIAÇÃO DO PENSAMENTO KUYPERIANO ........................................ 68

3.1 A Trajetória das obras neocalvinistas no contexto brasileiro: a concepção de

traduções e publicações .................................................................................. 69

3.2 As instituições promotoras do pensamento kuyperiano ............................. 77

Considerações intermediárias ......................................................................... 92

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 102

ANEXOS.........................................................................................................113

Page 12: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

12

INTRODUÇÃO

Convenci-me de que, talvez, nada é mais importante na

caminhada cristã com o Senhor que bons amigos. Acho que

Deus nos dá bons amigos como sacramentos — meios de

graça indicando-nos a presença de Deus que nos conduz à

santificação. Enquanto “existe um amigo mais apegado que

um irmão” (Provérbios 18.24, NVI), esse mesmo Amigo nos

manda outros amigos para nos ajudar a tornar sua presença

mais tangível e concreta. Nada há que dê continuidade à

encarnação como a amizade cristã.

James K. A. Smith

Parece que vivemos numa Babel de dialetos incompreendidos. Teria o discurso

ideológico sucumbido a espiritualidade? Ou ainda, a capacidade de dialogar? É

nublado o horizonte de fraternidade. O que emerge é um espectro de violência e

hostilidade que permeia as múltiplas vozes polarizadas. Gritam, mas nada

comunicam! Pelo menos quando o assunto é promover uma mensagem de paz,

proclamada na ética das religiões, e, especificamente neste estudo, daqueles que

falam em nome do evangelho…

Nossa linguagem teológica comunica aquilo que cremos? Sem nenhuma gota

de romantismo ou desconhecimento acerca da singularidade das diferenças,

precisamos urgentemente de diálogos e encontros. Nossos conflitos de janelas

fechadas vêm sendo pretexto para que cada voz ecoe apenas na própria sala de casa

(quando não, teclada do computador), isolada nas quatro paredes do quiosque das

ilhas virtuais e sectárias.

Aprendi há algum tempo que a Igreja é maior do que eu penso… E o cristianismo

é um profundo mar que contempla as mais belas praias espalhadas por sua realidade

local, regional e global. Por isso brinco sério quando digo que moro no Cristianismo!

E por quê — quando se há tanto esforço em delinear um pensamento autóctone,

de desconstrução de memórias imperiais amplamente denunciadas — considerar

surfar por ondas de uma teologia holandesa? Justamente porque parte de minha

trajetória de fé vivenciou águas que recusaram o debate do papel da religião e da

teologia na esfera pública, mas também num diálogo com a cultura e as artes. Outra

parte, banhou-se no litoral de sistematizar ideias e conceitos, mas, que sem uma

Page 13: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

13

articulação teórica com a realidade, por vezes, e não raras, limitam-se tão somente

aos “ritos da vida privada”.

Inegavelmente, existem considerações históricas e opções teológicas que

permeiam o porquê de Abraham Kuyper. Acredita-se que esse segmento contribui

para uma práxis que tem influência na costa que flui das ondas da teologia reformada

com Calvino no século XVI, mas águas que foram ressignificadas na experiência da

Holanda, do final século XIX em sua virada XX.

Dessa forma, não se trata pura e inocentemente de “importar uma teologia”, mas

de reconhecer e oferecer à dinâmica brasileira uma perspectiva contextualizada, que

deve, sobretudo, considerar a temperatura e especificidades latino-americanas.

Assim, não é da intencionalidade desta pesquisa conflitar na orla de outros

referenciais teológicos, mas apresentar as possibilidades e potencialidades

apreendidas na perspectiva kuyperiana, de que se pode realizar uma mediação

analítica propositiva entre a fé, tradição e ação diante dos desafios contemporâneos

da Igreja e do mundo, que por dádiva habitamos e temos um papel a desempenhar.

A amplitude e heterogeneidade das questões que têm sido objeto do

pensamento de Abraham Kuyper, sua trajetória pública e produção teológica,

cumuladas ao desdobramento da tradição neocalvinista e a filosofia reformacional,

faz com isso, ser de fundamental importância reconhecer o foco específico para o

qual se dirige esta investigação, que busca compreender a perspectiva kuyperiana

posta pela afirmação de que há um projeto ético-político e é sobre essa possibilidade

que todo o esforço deste estudo é empreendido.

Põem-se em questão a relevância das Palestras Stone, proferidas por em 1898

no Seminário de Princeton, quando Abraham Kuyper produziu uma alternativa diante

dos enfrentamentos da Revolução Francesa, que se afirmou com práticas e

procedimentos de resistência ao reconhecimento da autoridade divina. Por outro

prisma, Kuyper compreendeu que os valores compostos pelo pensamento filosófico

das revoluções promoviam uma oposição ao Cristianismo. Assim, o modernismo, que

passou a ser interpretado como sistema de vida abrangente só poderia ser

confrontado com outro sistema de vida que fosse semelhantemente amplo e

expansivo.

O ponto que se adota nesta reflexão parte da compreensão exibida no capítulo

primeiro, na qual Abraham Kuyper e numa mesma plataforma, nomes como

Page 14: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

14

Guillaume Groen van Prinsterer e Herman Bavinck promovem o calvinismo de modo

que apresentam subsídios para os enfrentamentos dos cristãos em sua época. Assim,

a teologia neocalvinista emerge com realces e elaborações do pensamento de

Calvino que engendram a perspectiva ética, social e política de Kuyper. Antes, é

necessário configurar um campo de análise para conceituar o fenômeno do Novo

Calvinismo, que possui ênfases diferentes do Neocalvinismo.

O segundo capítulo, tem por premissa apresentar a compreensão kuyperiana de

como essa perspectiva se relaciona com a sociedade. Constitui-se a base ontológica,

que fornecem os fundamentos e diretrizes de uma teologia elaborada com uma práxis

que interpreta instituições como o Estado, a universidade e a família. Embora não

sejam excludentes, esta concepção provê outras respostas a essa mesma

expectativa, pois trata-se de atualizar e produzir sentido para as relações sociais, a

cultura e a produção de conhecimento.

O referencial de leitura que sustenta essa construção aparecerá

necessariamente explicitado quando contribuir para a análise das situações reais, a

partir do processo de publicações e traduções de autores e instituições que acolhem

esse pensamento. Portanto, o terceiro capítulo corresponde ao ponto de chegada da

perspectiva kuyperiana no Brasil, delimitado no tempo e no espaço, que consiste,

fundamentalmente, em apurar as proposições e projetos em andamento desde a

última década. Assim sendo, a ênfase deste capítulo é dar visibilidade e analisar o

curso possível dos ramos e rumos do neocalvinismo. Destarte, não se trata de um

modelo ideal ou de uma idealização, tampouco de personificar um autor, mas de

reconhecer o alcance e os limites de viabilizar outras experiências teológicas ao

contexto brasileiro evangélico, e, singularmente, aos que buscam inserções analíticas

para diálogos e reflexões entre igreja e sociedade na tradição reformada e

evangelical.

Page 15: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

15

Capitulo 1

O PANORAMA DO NEOCALVINISMO HOLANDÊS: O

PENSAMENTO ÉTICO, SOCIAL E POLÍTICO DE

ABRAHAM KUYPER

Introdução

É inegável que apresentar o tema do calvinismo e do neocalvinismo no Brasil

demanda antes, compreender o que pretendeu Calvino e como as diferentes

perspectivas se desenvolveram. Não é incomum encontrar discursos estereotipados

do “calvinismo”, visto que o legado do próprio Calvino, ora é negligenciado por setores

da tradição reformada, ora é reduzido às questões que envolvem apenas a doutrina

da predestinação.

Cabe de início problematizar tal reducionismo, que afeta a teologia reformada

brasileira, mas também setores da própria academia, quando frequentemente,

restringe o conjunto temário da teologia de Calvino, somente aos “cinco pontos do

calvinismo”, a saber: depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça

irresistível e perseverança dos santos. Embora essa ênfase, que surge

posteriormente, seja acolhida por alguns segmentos dessa tradição, não representam

sua amplitude nem sua complexidade.

Faz-se necessário então, apresentar quais as ênfases teológicas que

caracterizam o neocalvinismo e o novo calvinismo, visto que há uma perspectiva

ética, social e política, contida no pensamento reformado, ou ainda, a expressão

desse pensamento materializada na práxis do neocalvinismo. Assim, esse capítulo

presta-se a exibir a trajetória de Abraham Kuyper e de autores que foram seus

companheiros e contemporâneos vinculados à perspectiva neocalvinista. Disto,

sinaliza ainda que o novo calvinismo não é o neocalvinismo e dedica-se a mostrar as

ênfases teológicas utilizadas por cada uma dessas vertentes.

Page 16: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

16

1.1 O Neocalvinismo Holandês

“Nem um único espaço de nosso mundo mental

pode ser hermeticamente selado em relação

ao restante, e não há um só centímetro,

em todos os domínios da nossa

vida humana, sobre o qual Cristo,

Senhor de tudo,

Não clame:

é Meu!”

Abraham Kuyper

A frase supracitada refere-se ao discurso inaugural de Kuyper na Universidade

Livre de Amsterdã1 (1880), e que apresenta sua perspectiva centrada na soberania

de Jesus Cristo sob todos os aspectos da vida humana, bem como a relação com a

sociedade e a cultura, elementos estes que compõem o lócus do pensamento

kuyperiano.

O neocalvinismo holandês foi um movimento de reforma do século XIX, iniciado

por Abraham Kuyper (1837-1920) com outros articuladores, que se esforçaram para

entender e responder os enfrentamentos da igreja cristã ocidental após o advento da

Modernidade. Também conhecido como kuyperianismo, buscou reafirmar o

Calvinismo, resgatando aspectos doutrinários e logrando assim, uma espiritualidade

de engajamento social, cultural e político, abordados por João Calvino desde a

Reforma do século XVI (KUYPER, 2003, p. 36; RAMLOW, 2012, p. 19).

Diante das tendências do Iluminismo francês, da Revolução Francesa e do

Humanismo2, que a partir de então, tem uma ênfase no antropocentrismo e no

racionalismo, a igreja era afetada por um conflito intelectual, que desencadeou

mudanças no campo religioso (NAUGLE, 2017, p. 102). Nisto, se o pietismo surge

como uma reação de valorização à experiência religiosa ou ao aspecto subjetivo da

fé e a isso se restringe (TILLICH, 1999, p. 45; WELCH, 1985, p. 68), é nessa

1 Dulci (2018, p. 38), faz um apontamento perspicaz quando rememora que a Universidade Livre de Amsterdam, levava esse nome, justamente por ser “livre dos ditames da igreja, do Estado e da economia”. 2 Convém mencionar que o Humanismo na época do Renascimento, que têm fortes influências inclusive na vida de pensadores como Lutero, Erasmo de Roterdã e Calvino, não é o mesmo do período do Iluminismo, no século XVII, sob tendências ateístas, irreligiosas e anti-clericais. Ademais, na contemporaneidade, o termo é ainda polirreceptivo, podendo representar até mesmo uma cosmovisão que nega a importância ou a existência de Deus (MCGRATH, 2005, p. 75; TILLICH, 1999, p. 51).

Page 17: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

17

conjuntura que, por outro prisma, o teólogo calvinista holandês, Guillaume Groen Van

Prinsterer (1801-1876), sob a influência do reavivamento religioso, denominado

Despertamento, atuou alinhado à ortodoxia da fé reformada, buscando um caminho

de compromisso com a sociedade.

Van Prinsterer foi historiador e político e buscava articular a fé cristã com seu

trabalho. Para ele, "o espírito da Revolução Francesa era a maior ameaça de seus

dias ao Cristianismo e à sociedade holandesa em geral" (GODFREY, 1990, p. 140

apud RAMLOW, 2012, p.12). Disto, ele identificou problemas no absolutismo e no

individualismo, que se levantavam como um contraponto à soberania e lei divina, na

qual os cristãos tinham o dever de cumprir. Assim, Van Prinsterer foi o precursor do

neocalvinismo holandês, que passa a ser desenvolvido posteriormente, na trajetória

do teólogo, acadêmico, estadista, mas também um fiel piedoso, Abraham Kuyper.

Diante disso, Kuyper expõe em suas palestras o Calvinismo como um sistema

de vida. Aliás, Santos (2006, p. 92) observa que o termo “sistema de vida” é utilizado

por Kuyper nestas palestras para traduzir o termo de origem alemã Weltanschauung3,

cuja tradução literal pode ser conceito do mundo ou cosmovisão. No início do século

XX, o termo Weltanschauung era encontrado em mais de duas mil obras no idioma

alemão, sendo utilizado como conceitos filosóficos ou na afirmação da aspiração

humana pela busca de uma compreensão acerca da natureza do universo (SOUZA,

2006, p.43). Conforme Oliveira (2008, p.34), James Orr4 (1844-1913) teólogo

presbiteriano escocês e Abraham Kuyper, foram os primeiros a utilizarem o conceito

de Weltanschauung ao contexto cristão-reformado.

Para Orr, esse conceito de cosmovisão possibilita ao cristianismo uma amplitude

capaz de qualificá-lo como um sistema. Nesse sentido, Wolters (1983, p. 117 apud

3 O termo Weltanschauung, foi inicialmente associado aos sistemas metafísicos ou construções teóricas da cultura nas esferas de metanarrativas filosóficas, científicas ou religiosas, sendo encontradas nas obras de idealistas e românticos alemães como G.W.F. Hegel (1770-1831), F.W.J. Schelling (1775-1854), J.G. Herder (1744-1803), J.W.Goethe (1749-1832), entre outros. Weltanschauung era igualada à filosofia da cultura ou do espírito absoluto. Wilhelm Dilthey (1833-1911) acrescenta uma nova significância ao conceito de Weltanschauung, quando considera um fenômeno que não apenas antecede a apropriação da reflexão teórica, mas também a condiciona. Posteriormente, o termo Weltanschauung foi traduzido para o inglês, worldview, e em português, cosmovisão (SOUZA, 2006, p.41; RAMLOW, 2012, p. 45). 4 James Orr (1844-1913), é da cidade de Glasgow, na Escócia. Foi ministro presbiteriano e professor de teologia e história. De acordo com Ramlow (2012, p. 46), a relevância de Orr para o neocalvinismo holandês encontra-se em sua obra The Christian View of God and the World (1893). Foi ele quem inicialmente, teria aplicado a noção de Wilhelm Dilthey (1833-1911) acerca da Weltanschaaung para o cristianismo, implementando assim, uma cosmovisão cristã.

Page 18: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

18

NAUGLE, 2017, p. 106) observa que, enquanto cosmovisão, o calvinismo é similar ao

marxismo no que se refere a um modo abrangente de sua intelectualidade,

aplicabilidade e envolvimento diante dos fenômenos socioculturais.

Um importante ponto de partida para compreender essa articulação teórica entre

a cosmovisão cristã elaborada na perspectiva de Kuyper são as Palestras Stone. A

obra do autor holandês aborda o conteúdo das palestras proferidas na Universidade

e Seminário de Princeton, em 1898. Tal evento, que ocorreu no cenário acadêmico

estadunidense, ficou conhecido como as Palestras Stone. Trata-se de seis

exposições: O Calvinismo como sistema de vida; Calvinismo e Religião; Calvinismo e

Política; Calvinismo e Ciência; Calvinismo e Arte e Calvinismo e o Futuro; onde

Kuyper apresenta o Calvinismo não apenas como um conjunto de dogmas, mas

principalmente, como a proposta fundamental para uma compreensão mais ampla da

vida.

Ao argumentar sobre as condições que demandam a elaboração de sistemas

gerais de vida, Ramlow (2012, p. 52) identifica que Kuyper os traduz por 'condições'

ou 'relações fundamentais da vida humana' o que outros autores compreendem por

questionamentos. Logo, para Kuyper (2003, p. 28), uma cosmovisão trata de explicar

sobre (1) nossa relação com Deus, (2) nossa relação com o homem, (3) nossa relação

com o mundo.

Dessa forma, para Kuyper, todas as relações da vida humana baseiam-se na

interpretação de nossa relação com Deus. No entanto, o Modernismo, que desde a

Revolução Francesa de 1789 e com o Iluminismo, sobretudo na França,

consideravam “o cristianismo como algo opressor e irrelevante” (MCGRATH, 2014, p.

129), desencadearam uma corrente de oposição e rejeição à fé e ao cristianismo,

caracterizando-o como ultrapassado.

Diante disso, na contracorrente do humanismo, Kuyper (2003, p. 23)

compreende que o Calvinismo “tem uma teoria de ontologia, de ética de felicidade

social e de liberdade humana, derivada totalmente de Deus”. E assume um

posicionamento crítico à funcionalidade da apologética tradicional acerca do conflito

de sentido para o ser humano ocidental. Ele identifica que tal abordagem não

promove a causa cristã, tampouco a defesa da fé, referindo-se a esse modelo como

inútil, visto que “os apologistas invariavelmente começam abandonando a defesa

assaltada, a fim de entrincheirar-se covardemente em um revelim atrás deles”

Page 19: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

19

(KUYPER, 2003, p. 19). Deve-se então, promover ações com as demandas

fundamentais, de modo que elabora uma compreensão de como atuar mediante tais

enfrentamentos.

1.2 Abraham Kuyper e as Palestras Stone

Abraham Kuyper nasceu no dia 29 de outubro de 1837 em Maassluis, na

Holanda. Sua mãe, Henrietta Huber (1802-1881), trabalhou como governanta antes

de se tornar professora num colégio interno para garotas em Amsterdã. Seu pai, o

Rev. Jan Hendrik (1801-1882) era pastor na igreja estatal (Nederlandse Hervormde

Kerk), e procedia de uma família simples de Amsterdã.

Em 1841, a família de Kuyper se mudou de Maassluis para Middelburg, capital

provinciana de Zeeland. Após oito anos, mudaram-se novamente, desta vez para a

cidade universitária de Leyden. É dali que o jovem Kuyper recebe primorosa

educação, onde inicia os estudos de línguas antigas e modernas. Mostrou-se desde

cedo excelente aluno e quando terminou a escola secundária. Foi o orador da turma,

convidado a expor sobre um tema que fosse de sua escolha. Sua apresentação já

indicou grande interesse pela literatura alemã, história, mas também pela teologia. O

título em alemão desse discurso era Ulfila, der Bischof der Visi-Gothen und seine

Gothische Bibelübursetzung, Úlfilas, o bispo dos visigodos e a tradução gótica da

Bíblia.

A Holanda dessa época contava com uma população de cerca de três a um

quarto de milhão de habitantes, também possuía uma universidade em Utrecht e

ainda outra em Groningen. Logo, era um número limitado de jovens privilegiados

pelas diversas circunstâncias que tinham acesso às universidades.

Em 1855, Kuyper ingressou os estudos de teologia e literatura na Universidade

de Leiden, fundada por William the Silent. Em 1575, a escola já possuía a tradição de

formar alunos por 280 anos. Berg (1978, p.14) lembra que o conhecimento das

línguas clássicas e também do mundo bíblico era considerado indispensável para os

clérigos, sendo que mesmo os aspirantes ministros estudavam latim, grego, hebraico,

aramaico e árabe. Eles também seguiram cursos de história, filosofia, ciências

naturais e literatura holandesa, para citar apenas quatro. No entanto, Kuyper já havia

aprendido os idiomas inglês, alemão e francês. E, aproximadamente em 1858,

Page 20: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

20

concluiu a primeira graduação, na qual recebeu aprovação nos exames em literatura,

filosofia e línguas clássicas summa cum laude5.

No final da década de 1850, Kuyper estudava sob a influência de novas

perspectivas da teologia protestante6 na Europa, que apresentavam outras teorias e

métodos sobre a natureza da religião e da Bíblia (BERG, 1978, p. 19). Segundo

Henderson (2017, p. 119), um dos mais importantes teólogos em Leyden foi Jan

Hendrik Scholten (1811-1885).

Contudo, apesar de manifestar imenso respeito por Scholten, Kuyper sentiu-se

mais à vontade com o professor de literatura, Matthias de Vries (1820-1892), um

pesquisador da literatura holandesa. De Vries foi uma grande inspiração para Kuyper

e, em 1859, o encorajou a participar de um concurso promovido pelo departamento

de teologia da Universidade de Groningen, que na ocasião, premiava o melhor ensaio

comparado das visões de João Calvino e João de Lasco7 acerca da igreja. Kuyper

empenhou-se e, em 1860, recebeu o prêmio: uma medalha de ouro e honrarias

acadêmicas. Inclusive, relata que ao produzir o ensaio e aproximar-se das obras de

Lasco, o fez “lembrar-se de Deus”, confluindo a vida acadêmica e espiritualidade

cristã (KUYPER, 2003, p. 12).

Em dezembro de 1861, completou a graduação em teologia (kandidaats),

summa cum laude; e no ano seguinte, transformou o ensaio premiado em sua tese

de doutorado.

Durante esse período, Kuyper, com vinte e um anos, conheceu Johanna

Hendrika Shaay (1842-1899), com dezesseis, e pouco tempo depois, tornam-se

noivos. Nesse período de noivado, de 1858 a 1863, o pai de Johana era negociante,

e portanto, a família vivia em Roterdã. Assim, Kuyper e Johanna se comunicavam

com regularidade por correspondência, fornecendo um amplo registro de ideias e

sentimentos sobre a vida e a fé. Essas cartas são um importante recurso para

5 Summa Cum Laude (Com a Maior das Honras) é uma expressão em latim utilizada no circuito acadêmico europeu. Representa a maior distinção e é o reconhecimento por obter a máxima qualificação possível em uma titulação universitária. 6 Para compreender as perspectivas das teologias protestantes nos séculos XIX e XX, cf. Tillich (1999, p. 43) e Welch (1985, p. 146). 7 João de Lasco (1499-1560) foi um reformador protestante, pregador e teólogo polonês. Possuía vínculos de amizade com Erasmo e Cranmer, o que motivou a buscar o desenvolvimento da linguagem e literatura polaca, bem como do humanismo em seu país. Pertence à segunda geração de reformadores.

Page 21: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

21

compreender o jovem Kuyper e sua trajetória teológica. Eles se casaram em 1863,

pouco antes de Kuyper iniciar o ministério pastoral em Beesd (HENDERSON, 2017,

p. 119).

Outra experiência de profunda importância na vida religiosa de Kuyper teria sido

a leitura da novela inglesa The Heir of Redclyffe, O Herdeiro de Redcliffe (1853), de

Charlotte Yonge8. Ele fez uma aplicação pessoal das experiências espirituais pelas

quais passou o personagem do romance, Filipe de Norville. Esta leitura teria

sensibilizado Kuyper de tal forma que escreve: “O que minha alma passou naquele

momento, somente vim a entender plenamente mais tarde; mas todavia naquela hora,

não, naquele próprio momento, aprendi a desprezar o que anteriormente admirava, e

a procurar o que anteriormente rejeitava” (KUYPER, 2003, p. 13).

O período de quatro anos na comunidade rural de Beesd (1863-1867)

representa o momento de grandes mudanças na vida de Kuyper, quando os fiéis de

sua paróquia se recusaram a comparecer aos cultos do jovem pastor em resistência

contra sua prédica porque concentrava elementos do modernismo. No entanto, o

convívio com esses paroquianos o atraiu, de modo que passou a visitá-los

periodicamente. Surpreendeu-se positivamente diante do conhecimento bíblico e

como compreendiam o mundo, que apresentava a autêntica teologia de Calvino,

como afirma:

Não havia apenas conhecimento da Bíblia, mas também

conhecimento de uma bem ordenada cosmovisão, embora ao estilo

dos reformadores antigos. Era como se algumas vezes eu estivesse

sentado nos bancos da universidade ouvindo meu talentoso mentos

Scholten palestrando sobre a “doutrina da Igreja Reformada”, mas

com simpatia invertida. E o que era, para mim pelo menos, mais

atraente, era que aqui falava um coração não apenas que possuías,

mas também tinha uma simpatia por uma história e experiência de

vida [...] Aquelas pessoas trabalhadoras simples, escondidas naquele

lugar, contaram-me no seu dialeto rústico as mesmas coisas que

Calvino legou-me para ler em belíssimo latim (HESLAM, 1998, p.

33,34 apud SANTOS, 2006, p. 86).

8 Chalotte M. Yonge (1823-1901) foi uma romancista cristã que recebeu influência do Movimento de Oxford. Propagou a fé por meio de romances e o ensino na escola dominical. Convém mencionar que o Movimento de Oxford ocorre entre as décadas de 1830 e 1840 sob a liderança de John Klebe, John Newman e Edward Pusey, tendo agido uma parte desse segmento, em reação ao liberalismo teológico. Assim, representa um movimento de piedade da alta igreja anglicana, que segundo Henderson (2017, p. 128), era “inspirado por um novo ideal romântico do cristianismo primitivo”.

Page 22: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

22

Enquanto ministrava em Beesd, Kuyper teceu fortes vínculos com as pessoas

do campo e apresentou uma sensibilidade e preocupação com o modo de vida e com

os problemas sociais que o povo enfrentava. Ademais, nessa convivência

comunitária, os fiéis passaram a orar pela sua conversão e, desse modo, sua jornada

espiritual é marcada de maneira que, por muitos momentos, ele sempre demonstrou

a gratidão que sentia por ter vivenciado aquela experiência de fé com o povo de

Beesd. Com isso, foi um momento de ressignificar aspectos de sua teologia, ao passo

que constituía os fundamentos da perspectiva kuyperiana, que traz fortes relações

com seu múltiplo campo de atuação.

Durante sua trajetória, Kuyper publicou diversos artigos acadêmicos, ensaios,

comunicações, editoriais, além de seus sermões, a produção teológica, os discursos

proferidos no parlamento e a troca de correspondências com pessoas importantes em

sua vida, envolvidas com sua obra e pensamento.

Em 1867, iniciou os planos para formar a Marnix Vereeniging, para o estudo da

Reforma nos Países Baixos. Atuou também na União das Escolas Nacionais Cristãs,

trabalhando pela liberdade da confessionalidade na educação.

No campo político, contribuiu para formalizar um partido cristão no país e inseri-

lo no espectro democrático9, da qual foi jornalista, editor-chefe e líder do Partido

Antirrevolucionário De Standaard, em 1872, e torna-se, em 1879 o primeiro partido

político holandês moderno e o primeiro partido cristão democrata do mundo (DULCI,

2018, p. 99). Foi eleito membro da Casa Baixa do Parlamento em 1874.

Em 1880, a Associação de Educação Superior Reformada manifestou o objetivo

de implementar uma universidade cristã, da qual por meio de Kuyper, é fundada então

a Universidade Livre de Amsterdã. Ele contribuiu ainda para estabelecer a

Gereformeerde Kerken (Igrejas Reformadas), onde a membresia foi composta por um

grupo de pessoas que sentiram-se forçadas a deixar a igreja organizada pelo Estado,

em 1886.

Kuyper produziu sobre os problemas sofridos pela classe trabalhadora por meio

de publicações com essa temática, onde realizou uma conferência organizada em

1891 para refletir sobre a questão social. Exerceu a função de primeiro ministro da

Holanda (1901-1905) e deixa o cargo em 1905 durante as repercussões de uma greve

9 Guillaume Groen Van Prinsterer (1801-1876) que, era antecessor de Kuyper e será abordado adiante,

já exercia a liderança desse movimento, que Kuyper auxilia a reorganizar e formalizar para inserir o debate por meio de representação do partido.

Page 23: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

23

nas ferrovias (HENDERSON, 2017, p. 123; SANTOS, 2006, p. 88; KUIPERS, 2011,

p. 15-16).

As Palestras Stone, foram proferidas por Kuyper em 1898, na Universidade e

Seminário Teológico de Princeton, nos Estados Unidos. Posteriormente, é qualificada

como “Calvinismo”, reconhecida como a obra de referência para uma introdução ao

seu pensamento. Para Santos, “as Palestras Stone se tornaram o principal

instrumento no estabelecimento da escola internacional de pensamento denominada

kuyperianismo ou neocalvinismo” (SANTOS, 2006, p. 93 apud RAMLOW, 2012, p.

20).

Em suas palestras, Kuyper apresenta o Calvinismo como um conjunto de

pressupostos sustentados pelos calvinistas, para suas ações no mundo. Na primeira

palestra, “O Calvinismo como sistema de vida”, o termo sistema de vida é utilizado

por Kuyper para traduzir o termo de origem alemã Weltanschauung, cuja tradução

literal seria conceito do mundo ou cosmovisão. Entretanto, Santos (2009, p. 91)

identifica que esta tradução pudesse estar excessivamente associada aos aspectos

físicos da natureza, ele utiliza também a tradução alternativa concepção de vida e do

mundo à qual se pode também denominar biocosmovisão10.

Kuyper (2003, p. 21) critica nessa palestra inicial o fato do termo calvinista ser

um estigma sectário, da qual reduz o movimento a uma “mesquinhez dogmática”,

conforme suas próprias palavras:

Mas além deste uso sectário, confessional e denominacional do nome

“calvinismo”, ele serve (...), como um nome científico, quer em um

sentido histórico, filosófico ou político. Historicamente, o nome

Calvinismo indica o canal pelo qual a Reforma se moveu, até onde ela

não foi nem luterana, nem anabatista, nem sociana. No sentido

filosófico, entendemos por Calvinismo aquele sistema de concepções

que, sob a influência da mente mestre de Calvino, levantou-se para

dominar nas diversas esferas da vida. E como um nome político o

Calvinismo indica aquele movimento político que tem garantido a

liberdade das nações em governo constitucional; primeiro na Holanda,

então na Inglaterra, e desde o final do século XVIII, nos Estados

Unidos.

10 “Biocosmovisão” é um esforço utilizado na tradução para o português, com o objetivo de articular

dois conceitos da perspectiva kuyperiana entre a “visão-de-mundo” ou “cosmovisão” (worldview) e o “sistema-de-vida” ou “percepção-de-vida” (lifeview). É valendo-se desse conceito que compõe a “cosmovisão” e o “sistema-de-vida”, que Abraham Kuyper estrutura seu pensamento denominado Calvinismo (MARQUES, 2017, p. 4).

Page 24: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

24

Então, o termo calvinismo não é utilizado no sentido pejorativo ou sectário, e,

tampouco no sentido confessional ou dogmático daqueles grupos que supervalorizam

o dogma da predestinação ou nem mesmo é interpretado em seu sentido

denominacional. No entanto, é utilizado para o autor com o objetivo de afirmar que o

Calvinismo possui uma ontologia e uma ética autenticamente validadas na própria

perspectiva de Calvino acerca da interpretação bíblica e de sua relação com o mundo.

Verifica-se que na primeira palestra, o argumento de Kuyper é que os sistemas

de crenças têm consequências. É no cotidiano que as ações daquilo em que

realmente creem os cristãos devem aparecer, e não no que ocorre aos domingos nas

igrejas. Para Kuyper, os cristãos estavam “destituídos de uma unidade de concepção

de vida”. Tanto que, para ele o Calvinismo, a fim de se estabelecer enquanto um

sistema de vida que apresente unidade, deve-se responder a essas três perguntas:

Como o homem se relaciona com Deus? Como o homem se relaciona com o homem?

Como o homem se relaciona com o mundo? Visto que os sistemas de vida respondem

essas perguntas sob diferentes perspectivas (KUYPER, 2003, p. 28).

Na análise da segunda palestra Calvinismo e Religião, Kuyper discute entre

outros temas, sua eclesiologia. Partindo do sensus divinitatis – de que toda a

humanidade intui um senso sobre Deus – Kuyper (2003, p. 56) é teocêntrico ao validar

que o ponto de partida da religião é Deus e não o homem. Todavia, possui um

reconhecimento da responsabilidade humana para com a criação:

A posição do Calvinismo é diametralmente oposta a tudo isto. Ele não

nega que a religião tem igualmente seu lado humano e subjetivo (...)

O Calvinismo valoriza tudo isto como frutos que são produzidos pela

religião ou como âncoras que lhe dão apoio, mas rejeita honrá-los

como a razão de sua existência. Certamente, a religião, como tal,

produz também uma bênção para o homem, mas ela não existe por

causa do homem. Não é Deus quem existe por causa de sua criação;

a criação existe por causa de Deus. Pois, como diz a Escritura, ele

criou todas as coisas para si mesmo.

Por esta razão, Deus mesmo imprimiu uma expressão religiosa no

conjunto da natureza inconsciente, - nas plantas, nos animais e

também nas crianças (...), porque o próprio Deus implantou na

natureza humana a verdadeira expressão religiosa essencial, por

meio da “semente da religião” (semen religionis), como Calvino a

define, plantada em nosso coração humano (KUYPER, 2003, p.

55,56).

Page 25: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

25

Contudo, Kuyper (2003, p. 62) também defendeu uma pluriforme ideia de igreja.

Isso é fruto de sua crença no ofício de todos os crentes e sua trajetória democrática,

na qual o princípio da liberdade é um aspecto importante e valorizado em sua

perspectiva teológica. Ademais, esta temática de grande relevância à perspectiva

reformacional será explorada no próximo capítulo desta pesquisa.

Em sua terceira palestra Calvinismo e Política, Kuyper busca apontar que esse

fenômeno não se limita à esfera religiosa, mas também em sua compreensão sobre

o Estado. Para tanto, partindo da doutrina sobre a soberania de Deus, ele discute a

sua perspectiva dessa soberania e seus desdobramentos no Estado, na sociedade e

na igreja. Desse processo, é desencadeado um importante elemento do pensamento

kuyperiano, o esboço de sua teoria da “soberania das esferas”, à qual serão

retomados mais adiante, juntamente com sua compreensão de outras temáticas, que

abordam a participação na vida pública, tais como o dever de promover a justiça e o

pluralismo.

Nesta palestra, Kuyper (2003, p. 91) ainda reconhece a democracia como uma

graça de Deus. Ao citar as palavras de Calvino, dando “graças a Deus todo-poderoso

que deu a nós o poder de escolher nossos próprios magistrados”, ele tece

considerações sobre a liberdade da escolha popular, ao passo que apresenta

indignação diante da teocracia, do absolutismo bem como dos abusos de poder da

própria igreja.

Bartholomew (2017, p. 96-97) constata que, para Kuyper, enquanto o

paganismo eleva o mundanismo, e o islã deprecia completamente o mundo, na Idade

Média, sob Roma, a igreja também foi colocada contra o mundo, com o objetivo de

estabelecer-se “sobre” o mundo. Isso resultou numa igreja corrompida pelo próprio

mundo. Assim, no Calvinismo, ele encontra possibilidades de implementar um novo

modelo, na qual é retirado o controle da igreja, a fim de que a vida diante de Deus

(Coram Deo), viesse a se desenvolver sobre as outras esferas. Por isso, a doutrina

do mandato cultural, encontrada no capítulo primeiro de Gênesis e a graça comum

são temas de grande importância ao pensamento kuyperiano e é valendo-se delas

que Kuyper (2003) promove as outras três palestras conseguintes: Calvinismo e

Ciência, Calvinismo e Arte e O Calvinismo e o Futuro.

Page 26: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

26

Herman Bavinck

Herman Bavinck (1854-1921) foi um colaborador de Kuyper e sendo seu

contemporâneo, tornou-se um teólogo precioso para o neocalvinismo. Foi professor

de teologia na Universidade Livre de Amsterdã e sua contribuição vem da obra

intitulada como Dogmática Reformada, publicada em quatro volumes entre 1895 e

1901 (BAVINCK, 2012, p.13). Tamanha a compreensão de uma perspectiva integrada

entre fé e prática, que as palavras de Bavinck definem o esforço do neocalvinismo

holandês em superar os dualismos e as fragmentações:

As palavras “reformado” e “calvinista” [...] embora cognatas em

significado, não são de nenhuma forma equivalentes, a primeira

sendo mais limitada e menos abrangente que a última. Reformado

expressa meramente uma distinção religiosa eclesiástica; é uma

concepção puramente teológica. [...] Calvinista é o nome de um

cristão reformado apenas à medida que ele revela um caráter

específico e um aspecto exterior distinto, não simplesmente em sua

igreja e teologia, mas também na vida social e política, na ciência e

na arte (BAVINCK, apud SANTOS, 2006, p.94).

A teologia de Herman Bavinck, da qual sua obra Dogmática Reformada é

composta por quatro volumes, envolve reflexões por uma perspectiva da teologia

reformada construída desde a Reforma do século 16 até os dias de Bavinck, sendo

que os mais proeminentes teólogos da tradição reformada holandesa deste período

encontram-se citados por Bavinck. Embora houvessem os movimentos separatistas

que ocorriam em seus dias, Bavinck demonstra ser um profundo conhecedor da

tradição reformada bem como de outras tradições, o que, para Ramlow (2016, p. 51)

[...] se evidencia pela maneira que trabalha integrando,

especialmente, o catolicismo e o luteranismo em sua reflexão. A

profundidade e amplitude de seu pensamento revela-se ainda pela

maneira como ele inclui as inquietações de seu tempo a partir das

alegações da ciência moderna. Bavinck demonstra-se profundamente

consciente e engajado enquanto analisa de forma ponderada as

propostas do mundo científico de então. Transparece em sua obra a

tensão em que Bavinck viveu, entre a cultura moderna e todas as

novidades científicas e, sua alma piedosa, que se esforçava por

preservar a ortodoxia reformada. Bavinck procurava, assim, por uma

síntese entre o cristianismo e a cultura na cosmovisão trinitária do

neocalvinismo holandês.

Page 27: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

27

Além de ser um teólogo sistemático, inclusive, o responsável por estruturar a

dogmática do neocalvinismo, é evidente que Bavinck era alguém envolvido com a

perspectiva kuyperiana. Foi membro na Casa Alta da Holanda e atuou como consultor

na esfera educacional de seu país. Semelhante à Kuyper, James Orr e Van Prinsterer,

pode-se identificar a seguir, que também os próximos autores referenciados mantêm

uma tradição de uma fé cristã comprometida com a sociedade, o que marca aspectos

elementares do neocalvinismo com a sua materialidade histórica.

Herman Dooyeweerd

Outro teórico de extrema importância ao neocalvinismo foi o filósofo e jurista

holandês, que exerce influência nacional e internacional, Herman Dooyeweerd (1894-

1977). Embora não tenham se conhecido pessoalmente, Dooyeweerd herda o

pensamento do reformador e seu compatriota, Abraham Kuyper, onde se torna

professor de direito na Universidade Livre de Amsterdã. Foi membro da Academia

Holandesa de Ciências e presidente por longos anos da Sociedade Holandesa de

Filosofia do Direito.

Conforme Carvalho (2006, p.190), como kuyperiano, Dooyeweerd esteve

comprometido desde o início com a renovação cultural de seu país e utilizava da

cosmovisão cristã para suas produções, resistindo inclusive ao processo de

secularização. Assim como Kuyper, Dooyeweerd expressava confiança nas

influências transformadoras do cristianismo sob a égide reformada.

Dooyeweerd elabora uma abordagem alternativa à teoria do Estado, além de

contrapor as teorias vigentes de seu tempo, influenciadas pelo absolutismo

monárquico e da própria Revolução Francesa, dos séculos XVIII e XIX. Para tanto,

promove uma reação ao Iluminismo e apresenta uma filosofia política ao contexto

holandês, da seguinte forma:

Dooyeweerd analisou do ponto de vista histórico e filosófico, as

questões da causalidade jurídica, culpa, responsabilidade,

propriedade, e fontes da lei, insistindo em ver estas e outras no

contexto de uma teoria mais ampla da natureza e destino do ser

humano (antropologia), do ser e da ordem (ontologia), e do

conhecimento e suas fontes (epistemologia). Sua obra De

Wijsbegeerte der Wetsidee (A Filosofia da Ideia Cosmonômica), foi

publicada em três volumes em Amsterdã entre 1935-1936 e viria a

Page 28: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

28

constituir-se o centro do seu pensamento filosófico, e costuma ser

considerada revolucionária pelo amplo diálogo com a tradição

filosófica e sua crítica à autonomia do pensamento teórico (RAMLOW,

2012, p. 22).

Para o autor, todo o pensamento é direcionado por uma motivação que tem sua

origem no coração e não na razão humana. Ao questionar “qual é o ponto de

referência central em nossa consciência a partir do qual essa síntese teórica pode se

iniciar?”, Dooyeweerd (2010, p. 68), identifica no ponto arquimediano [ἀρχή] (arché),

o aspecto crítico dos limites no pensamento (transcendental) e a abertura para o

religioso (transcendente e incondicionado). Portanto, o reconhecimento de uma ἀρχή

(arché), dá sentido à toda participação humana na criação e elaboração dos

significados, que por sua vez, são permeados por uma intencionalidade religiosa. Por

isso, tece críticas à síntese promovida em outros sistemas filosóficos, de modo que

são baseados em outros pressupostos do coração. Assim:

Se todas as correntes filosóficas que alegam estabelecer seu ponto

de partida exclusivamente na razão teórica não possuíssem, de fato,

pressuposições mais profundas, seria possível resolver todas as

discussões filosóficas entre elas de uma forma puramente teórica.

Mas a situação real é bastante diferente (DOOYEWEERD, 2010, p.

50).

Tal afirmação conflui com os dizeres de Kuyper (2003, p. 138):

Toda ciência num certo grau parte da fé, e ao contrário, a fé que não

leva à ciência é fé equivocada ou superstição, mas não é fé real,

genuína. Toda ciência pressupõe fé em si, em nossa autoconsciência;

pressupõe fé no trabalho acurado de nossos sentidos; pressupõe fé

na correção das leis do pensamento; pressupõe fé em algo universal

escondido atrás de fenômenos especiais (...) todos estes axiomas

indispensáveis, necessários a uma investigação científica produtiva,

não veem a nós pela prova, mas são estabelecidos em nosso

julgamento por nossa concepção interior e dados com nossa

autoconsciência.

Desta forma, contemporâneo de Kuyper, Dooyeweerd desenvolveu um sistema

filosófico cristão, chamado de filosofia reformacional ou filosofia cosmonômica, na

qual, partindo do conceito kuyperiano de soberania das esferas, Dooyeweerd articula

uma compreensão acerca das instituições sociais e também do Estado. Sua “proposta

de reforma para o pensamento político é a aplicabilidade do próprio sistema

filosófico”, conforme a introdução na obra “Estado e Soberania”: ensaios sobre

Page 29: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

29

Cristianismo e Política”, apresentada por Leonardo Ramos e Lucas Freire,

(DOOYEWEERD, 2014, p. 23).

Enquanto acadêmico, Dooyeweerd demonstrou grande incômodo com o

reducionismo científico existente na história do pensamento ocidental moderno. Ao

problematizar o reducionismo e apresentar a relevância da fé cristã para a academia,

desenvolve uma releitura da história do pensamento ocidental e a sua expressiva

descoberta fundamental, encontrada na base de seu sistema de filosofia

reformacional (CARVALHO, 2006, p. 194; DOOYEWEERD, 2015, p. 11).

Hans Rookmaaker

Henderik Roelof Rookmaaker (1922-1977) foi um pensador holandês que exerce

um legado de grande importância no campo das artes. Hans, como era geralmente

conhecido pelos familiares e amigos, possui uma vasta trajetória acadêmica na

docência e como historiador da arte. A partir de 1942, ano em que se converteu ao

cristianismo, numa prisão nazista em Estanislaw (atual Ucrânia), a vida e obras de

Rookmaaker compõem uma intensa convicção a respeito de sua fé e missão, na qual

afeta suas produções e perspectiva das artes, integrando paixão e crença, trabalho e

influência, energia e esperança.

É no mundo contemporâneo do século 20 que Rookmaaker inicia sua

missionalidade relacionando arte e fé cristã, segmento já apontado por alguns de seus

conterrâneos que identificaram a necessidade de uma ação cristã integral, aplicada

na igreja e na sociedade.

Entre os defensores da perspectiva de uma ação cristã integral, destacam-se,

como já mencionado nesta pesquisa, Abraham Kuyper, Herman Bavinck e o

contemporâneo Herman Dooyeweerd. Souza (2009, p. 98) e Gasgue (2012, p. 23)

narram que logo após o curto tempo de conversão ao cristianismo, Rookmaaker havia

conquistado o reconhecimento como uma das vozes mais expressivas no campo da

integração entre fé cristã e artes no Ocidente.

Apesar de seu tempo de vida e a trajetória como cristão ter sido relativamente

breve (aproximadamente 25 anos), é inegável a contribuição e a influência exercida

desse autor sobre o pensamento cristão em diversas partes do mundo.

Page 30: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

30

Com dezenas de livros nas temáticas da relação entre arte, cultura e

cristianismo, centenas de artigos publicados em revistas especializadas na Europa,

Estados Unidos e Canadá, Rookmaaker foi professor de História da Arte na

Universidade Livre da Amsterdã. Implementou também departamentos de arte que

foram estruturados na Holanda, Estados Unidos e Inglaterra. Associações de artistas

cristãos que foram inauguradas sob sua influência ou pelo próprio autor. Um centro

de estudos internacional formado na Holanda (L’ABRI)11 e estações de rádio criadas

e fortalecidas em seu país (SOUZA, 2009, p. 99; GASGUE, 2012, p. 61).

A vida, pensamento e obra de Hans Rookmaaker ainda é pouco conhecida no

Brasil. Apenas quatro de suas obras foram traduzidas para o português, a saber: A

arte não precisa de justificativa, em 2010; A arte moderna e a morte de uma cultura,

em fevereiro de 2015; ambas pela Editora Ultimato; há também uma biografia escrita

pela professora e historiadora da arte Laurel Gasgue, traduzida em novembro de 2012

por esta mesma editora, com o tema: Rookmaaker: arte e mente cristã; e, Filosofia e

Estética, pela editora Monergismo, em 2018. Outro aspecto relevante para a difusão

e publicização do pensamento de Hans Rookmaaker e a procura por suas obras no

contexto brasileiro foi a canção Rookmaaker, lançada em 2010 pela banda de rock

alternativo Palavrantiga.

1.3 Temas e ênfases teológicas do Neocalvinismo

Abraham Kuyper buscou reavivar o calvinismo na Holanda do século XIX. Para

tanto, como será abordado no próximo capítulo, almejou que as igrejas fossem livres

e procurou destacar as doutrinas tradicionais do calvinismo de tal forma que não

fossem somente atreladas às ideias, mas com o objetivo de promover uma dinâmica

de participação na sociedade de sua época. Assim, a aplicabilidade do calvinismo em

articulação com a ciência, a cultura e as artes se dão por meio de ênfases teológicas

11 O primeiro L’ABRI (palavra de origem francesa que significa “abrigo”) foi fundado no ano de 1955

pelo casal Francis e Edith Schaeffer, quando eles abriram sua casa para acolher estudantes, profissionais e artistas de diversos países que compartilhavam questionamentos sobre a existência, a transcendência, a espiritualidade e questões sociais, culturais e políticas. Desde então, foram fundadas comunidades L’ABRI na Inglaterra, Holanda (essa devido à forte amizade entre Hans Rookmaaker e Francis Schaeffer), Suécia, América, Canadá, Coréia e, no Brasil, a partir de 2008. Muito das ideias de Rookmaaker foram posteriormente popularizadas por Francis Schaeffer. Na mesma linha de outros teólogos e filósofos do neocalvinismo holandês, como Abraham Kuyper, Herman Dooyeweerd, Nicholas Wolterstoff e Egbert Schuurmann.

Page 31: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

31

que são cabais na cosmovisão calvinista, embora não foram aprofundadas por

Calvino (RAMLOW, 2012, p. 6). A seguir, são apresentados alguns destes

fundamentos que, na perspectiva neocalvinista, possibilitam compreender e agir

numa visão abrangente a toda a dinâmica da vida, envolvendo-se com a sociedade

por meio de uma cosmovisão cristã que norteia a atuação de cada indivíduo,

apropriado de sua vocação.

As Esferas de Soberania

Desde a primeira das Palestras Stone, é possível identificar alguns dos

fundamentos que colorem a visão de Kuyper sobre o Calvinismo e que permeia todo

o conteúdo da obra. Destes, a compreensão da soberania de Deus sobre toda a vida,

o mandato cultural, a renovação (palingênesis), pela qual a vida humana e o cosmos

são restaurados, e o princípio da graça comum, compõem um conjunto temário de

suma importância ao neocalvinismo (BARTHOLOMEW, 2017, p.545).

Para Kuyper, a soberania divina sobre toda a extensão do cosmos se faz diante

da humanidade numa correlação entre: “1-) a soberania no Estado; 2-) a soberania

na sociedade; e, 3-) a soberania na Igreja” (KUYPER, 2003, p. 86; MOLENDIJK, 2008,

p. 244). Disto, é possível identificar o esforço insistente de Kuyper em promover a

liberdade de pensamento e a pluralidade religiosa contra qualquer poder do Estado

ou ainda de uma esfera sobre outra esfera. Kuyper e seus seguidores12 que militavam

contra o Modernismo, entendiam que a soberania não pode ser fundamentada em

nenhuma das teorias de contrato social, fosse ela “hobbesiana, lockiana ou

rousseauniana” (REICHOW, 2014, p. 48).

A soberania então ocorre nas diversas esferas. Ao Estado, por exercer sua

governabilidade, não cabe ultrapassar o limite de sua execução, impondo sua

legislação e ordem, mas, compete garantir os princípios que norteiam a vida bem

12 Destes seguidores, Herman Dooyeweerd posteriormente viria a elaborar a sistematização de sua

filosofia, reconhecida enquanto a ontologia dos modos da experiência ou ontologia modal, a partir do princípio desenvolvido por Abraham Kuyper acerca das esferas de soberania. Dooyeweerd compreende que há uma relação da fé com outros aspectos modais estabelecidos numa lei cosmonômica. Assim, existem aspectos que limitam, diversificam e estruturam o sentido de cada esfera por meio de um núcleo de significados. Desse modo, na esfera ética, o núcleo de sentido seria o amor; na jurídica, a justiça; na estética, a harmonia; na econômica, a mordomia e conservação; de modo que tais aspectos possuem uma exemplaridade científica que contribui para a produção de conhecimento. Reichow (2012, p. 50) apresenta uma dissertação que aborda a filosofia reformacional de Dooyeweerd, possibilitando o aprofundamento de seu pensamento na tradição neocalvinista.

Page 32: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

32

como a tipificação que qualifica a funcionalidade de cada esfera. Destarte, o Estado

deve intervir nas seguintes condições:

1-) Quando esferas diferentes entram em conflito para forçar respeito

mútuo as linhas divisórias de cada uma; 2-) Defender pessoas

individuais e fracas, naquelas esferas, contra o abuso de poder dos

demais; e 3-) Constranger todos a exercer as obrigações pessoais e

financeiras para a manutenção da unidade natural do Estado

(KUYPER, 2003, p. 86 apud RAMLOW, 2012, p. 33).

Sendo assim, cada esfera deve possuir a liberdade sobre as demais, de maneira

que sua operacionalização e funcionalidade derivam da soberania de Deus.

Entretanto, sua ênfase nessa doutrina vai na contracorrente do dogmatismo e por

meio deste princípio, estabelece uma perspectiva de comprometimento dos cristãos

com a sociedade por meio dessas esferas, elementos que norteiam a sua teologia.

Logo, é inconcebível para Kuyper um calvinismo que fosse tradicionalista, sectário

e\ou escapista, não compreendido enquanto um sistema de vida abrangente

(KUYPER, 2003, p. 34; CARVALHO, 2009, p.55).

A Graça Comum

Também é a partir das Palestras Stone que se pode identificar a influência da

graça comum (gratia communis) para o pensamento kuyperiano, dada à importância

considerada a este princípio para o desenvolvimento da vida, incluindo do próprio

Calvinismo:

Assim, também, é um e o mesmo mundo que outrora exibiu toda glória

do Paraíso, que depois foi atingido com a maldição, e que, desde a

Queda, é sustentado pela graça comum; que agora tem sido redimido

e salvo por Cristo em seu centro e que passará através do horror do

julgamento para o estado de glória. Por esta mesma razão, o

calvinista não pode calar-se em sua igreja e abandonar o mundo a

sua sorte. Antes, sente sua alta chamada para promover o

desenvolvimento deste mundo a um estágio ainda mais alto, e fazer

isto em constante acordo com a ordenança de Deus, por causa de

Deus, sustentando, no meio da tão dolorosa corrupção, tudo que é

honrável, amável e de boa fama entre os homens (KUYPER, 2003, p.

81).

Page 33: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

33

Herman Bavinck (1854-1921) foi um dos primeiros na tradição neocalvinista a

utilizar o termo “Graça Comum” articulado com a compreensão da ação do Espírito

Santo atuando e operando dada virtude:

Desta graça comum procede tudo o que é bom e verdadeiro que ainda

vemos no homem decaído. A luz ainda brilha nas trevas. O Espírito

de Deus vive e trabalha em tudo o que foi criado. Logo, ainda

permanecem no homem certos traços da imagem de Deus. Há ainda

intelecto e razão; todas as espécies de dons naturais ainda estão

presentes nele. O homem ainda tem uma percepção e impressão da

divindade, uma semente da religião. A razão é um dom inestimável. A

filosofia é um dom admirável de Deus. A música também é um dom

de Deus. As artes e as ciências são boas, proveitosas e de alto valor.

O Estado foi instituído por Deus [...] Há ainda uma aspiração por

verdade e virtude, também pelo amor natural entre pais e filhos. Em

assuntos que dizem respeito a esta vida terrena, o homem é capaz

ainda de fazer muitas coisas boas [...] Pela doutrina da graça comum

os reformadores têm, por um lado, mantido o caráter específico e

absoluto da religião cristã, mas, por outro lado, ninguém os tem

ultrapassado em sua valorização do que for bom e belo como dádivas

de Deus aos seres humanos pecaminosos (BAVINCK, 1922, p. 17

apud HOEKEMA, 1999, p. 212).

Nesse sentido, se na graça especial (ou particular), Deus concede salvação à

pessoa através de Jesus Cristo pela graça comum, Deus delimita os efeitos

desastrosos provocados pelo pecado, permitindo assim, o desenvolvimento da vida e

da cultura. Para Kuyper, apesar da graça comum não aniquilar a essência do pecado

nem possuir poder de salvação, ela impede a plena execução das intenções

pecaminosas, promovendo valores como a justiça, a beleza e a bondade.

A graça comum é uma ideia desencadeada na esteira da própria tradição cristã,

no pensamento de teólogos que, como Agostinho, já expressavam lampejos acerca

do tema. Molendijk (2008, p. 244) rememora: “não foi o próprio Calvino que comparou

as Escrituras a um par de óculos?” de modo que possibilitou “decifrar novamente os

pensamentos divinos, escritos pela mão de Deus no livro da Natureza, que se tornou

obliterado em consequência da maldição?”. Em decorrência disso, a graça comum

contribui para uma teologia que se compromete em participar na dinâmica da

produção e reprodução da vida humana.

O Mandato Cultural

Page 34: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

34

É perante a compreensão da soberania divina que sustenta e governa sobre a

criação, que o pressuposto seguinte descortina o entendimento de que Deus escolhe

compartilhar essa governabilidade através do comissionamento do ser humano. Este

pressuposto, denominado mandato cultural, é analisado na perspectiva kuyperiana e

é um tema precioso para o movimento neocalvinista. Há uma concepção de que todo

o engajamento humano na esfera da cultura e nos segmentos da sociedade

representa uma resposta ao que Carvalho (2009, p.65) identifica como “a ordem

divina para que o homem explore de forma criativa e responsável os recursos da

criação”. Os pilares do mandato cultural estão no relato da criação, em Gênesis,

quando o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus e tem a ordenança

divina para desenvolver a cultura, pois:

O Jardim é este “mundo no qual Deus nos colocou para cultivá-lo”. E,

é desta ideia de cultivar o Jardim que “surge o conceito de cultura; tudo

o que o ser humano cultiva (ou transforma) por meio de seu trabalho e

de sua atuação no mundo, se converte em cultura (ROJAS, 2009, apud

RAMLOW, 2014, p. 132).

Tanto em Abraham Kuyper como em Herman Bavinck, pode-se verificar que em

suas obras há uma recusa de qualquer proposta que busque explicar a origem da

cultura a partir do relato presente na queda, conforme descreve o texto do capítulo

terceiro de Gênesis. Tal compreensão do mandato cultural na teologia neocalvinista

tem como base o que fora qualificado por Deus e que é endossado no relato de

Gênesis 1.31: “E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom”.

Sendo assim, a crença num Deus soberano não pode ser apenas uma afirmação

abstrata, mas implica na corresponsabilidade humana para com esta criação e seu

criador. Ademais, o mandato cultural representa não somente obediência a Deus,

mas o próprio contentamento e alegria da humanidade, que desfruta a dádiva da vida.

Conforme Calvino (1999, p. 172): “o mundo foi originalmente criado para este

propósito, que todas as partes dele se destinem à felicidade do homem como seu

grande objeto”.

O problema do dualismo natureza X graça

Page 35: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

35

Uma tarefa cara e constantemente encontrada no neocalvinismo é o trabalho

para articular a criação e redenção e a natureza com a graça. É partindo do esforço

de empreender a fé cristã num sistema total de vida, considerando as diretrizes de

uma lei criacional e das esferas de soberania, que Kuyper defende “que as Escrituras

não apoiam uma visão dualista da vida”, pois:

De acordo com isto, o resultado final do futuro, prenunciado nas

Santas Escrituras, não é a existência meramente espiritual de almas

salvas, mas a restauração do cosmos inteiro, quando Deus será tudo

em todos debaixo do céu e terra renovados. Este significado amplo,

abrangente e cósmico do evangelho foi novamente entendido por

Calvino, compreendido não como o resultado de um processo

dialético, mas da profunda impressão da majestade de Deus, que

moldou sua vida pessoal (KUYPER, 2003, p. 126).

Contudo, a relação natureza x graça é condicionada ao dualismo grego, que

exerce forte influência na teologia cristã, logo nos primeiros séculos de história da

igreja. Neste dualismo, a forma é compreendida como imutável e a matéria enquanto

mutável e instável. Logo, no mundo superior e ideal coexistem a própria forma, o bem,

o céu, a alma, o espírito e a eternidade. No mundo inferior, a matéria compõe a terra,

o que é material e corpóreo, o que é temporal e o que é mal (RAMLOW, 2012, p. 37).

De maneira esquemática, é possível encontrar no pensamento de Dooyeweerd

o que o autor chamou de Motivo-base ou Motivo básico da cultura ocidental, para

compreender o que norteia o sentido de cada força motivadora em diferentes períodos

históricos. Dooyeweerd apresenta quatro motivos-base, a saber: Matéria-Forma

(grego); Criação, Queda e Redenção (hebreu/bíblico); Natureza-Graça (Católico

Romano Medieval; Escolástico); e, Determinismo/Natureza-Liberdade (Moderno;

Renascimento/Iluminismo). No entanto, somente o motivo-base judaico-cristão não é

dualista, segundo a sua análise. Acerca dos demais, essa origem dualística

desencadeia uma realidade fragmentada, que afeta a temporalidade, e, por

conseguinte, conduz uma série de tensões entre as esferas da vida humana. No

problema do dualismo grego, a valorização demasiada da alma, leva ao racionalismo,

que despreza a dimensão corporal e sua importância, promovendo uma

espiritualidade “monástica”, portanto, referindo-se que é isolada da realidade. Além

disso:

Page 36: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

36

O motivo-base natureza/graça continha, em seu interior, uma dialética

insolúvel. Essa dialética poderia levar à negação de um dos termos: a

natureza poderia “devorar” a graça, com uma total negação do

evangelho, ou a ênfase na graça poderia levar ao desprezo pela

natureza e à fixação na busca mística da comunhão sobrenatural com

Deus; ou a um equilíbrio instável no qual todos os pontos de que as

duas esferas se tornassem inteiramente independentes uma da outra

(CARVALHO, 2009, p. 135).

Neste contexto, Dooyeweerd (2015, p.55) recorda que “apenas Deus é a fonte

da ordem criada”, pois, “a universalidade da criação foi manchada pela universalidade

do pecado”. Então, “o escopo da salvação de Cristo não se aplica apenas à dimensão

espiritual do homem, mas a criação toda, originalmente boa” (SOUZA, 2006, p.52-

53). Sendo assim, essa compreensão reforça a superação do dualismo, quando Deus

é o criador de tudo, o provedor e o redentor de todas as coisas.

1.4 O pensamento de João Calvino e as ênfases teológicas

das vertentes do Novo Calvinismo e do Neocalvinismo

João Calvino nasceu 10 de julho de 1509 na cidade de Noyon, região nordeste

da França, onde foi batizado com o nome de Jean Calvin. A tradução de seu apelido

conhecido por sua família como “Calvin” para o latim Calvinus originou o nome que o

tornou conhecido. Seu pai, Gerárd Calvin possuia ligações com o clero de sua cidade,

na qual possibilitou ao jovem que tivesse grandes oportunidades de estudos. Após

alguns meses no Collége de La Marche estudando humanidades e latim com o

humanista Mathurin Cordier, Calvino matriculou-se no Collège de Montaigu (Morro

Agudo), escola que ter por alunos grandes nomes do século XVI, como Erasmo de

Roterdã e François Rabelais.

McGrath (2004, p.73) diz que o princípio geral que norteia o Humanismo

renascentista pode ser sintetizado no slogan ad fontes, (de volta às fontes). Com essa

premissa de retornar às fontes originais, a intelectualidade da Idade Média era

influenciada em realizar um retorno à Antiguidade. Tanto a Literatura quanto a

Filosofia, mas também a Teologia, dedicam-se aos textos bíblicos para redescobrir

sua vitalidade.

Page 37: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

37

Assim, Calvino estava entre os privilegiados, que tiveram oportunidades de

acessar dicionários, manuais de gramática e estudar o grego e o hebraico em razão

da influência do próprio Humanismo que era a tendência da época e estimulava essas

buscas. Por esta razão, o reformador também estudou direito civil em Orleans e

Bourges, configurando aspectos que compõem a amplitude de seu método bem como

a articulação teórica que acompanha sua obra numa síntese entre valores

humanistas, cristãos e de um reformador (MCGRATH, 2004, p. 85).

Matos (2009, p. 171) lembra da especificidade na qual Calvino é o único entre

os grandes protagonistas do período da reforma que pertenceu a um país de cultura

latina. Todos os demais – como Martinho Lutero, Filipe Melanchton, Martin Butzer,

Ulrico Zuínglio, Menno Simons, John Knox e Thomas Cranmer – eram anglo-

germânicos.

Conforme Biéler:

Calvino é muitas vezes considerado, não sem razão, embora de

maneira demasiadamente simplista às vezes, como um teólogo

que estimulou o desenvolvimento do liberalismo econômico,

deve-se a bem verdade dizer que ele é, também,

indiscutivelmente, o ancestral do Cristianismo social. Não

cessou de insurgir-se contra as injustiças de uma liberdade

econômica sem compreensão social e esforçou-se por corrigir-

lhe os efeitos nocivos. A intervenção legislativa do Estado no

domínio econômico é, por conseguinte, um princípio conforme à

ética social que foi adotada desde o início da Reforma, diante

de um capitalismo em via rápida de emancipação de toda

coerção moralmente fundada (BIÉLER, 1999, p. 123).

Se no universo das ciências sociais e humanas impera desde o século XIX a

famosa citação de Karl Marx, de que o humano é um “ser social13”, João Calvino, já

no século XVI, afirmou que o ser humano só é verdadeiramente humano conforme

vive com outros humanos. Biéler (1970, p. 17) rememora o dizer de Calvino, na qual

“o homem foi criado por Deus para ser uma criatura em sociedade”. Embora esse

aspecto natural tenha sua expressão primeira no casamento e na família, tem sua

completude no trabalho e nas relações econômicas. Biéler (1970, p. 24) identifica um

humanismo social do reformador, de tal modo que não almeja apenas a restauração

13 Cf. FREDERICO, Celso. O Jovem Marx: as origens da ontologia do ser social. São Paulo: Cortez, 1995, p. 173.

Page 38: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

38

da pessoa em sua humanidade e individualidade, mas também nas diversas formas

de sua existência. Léonard (2013, p. 88) afirma: “ninguém duvida que Calvino teria

gostado de dedicar-se a tarefas da vida pública e da administração”, justamente por

ter sido um humanista que possuía conhecimento de letras antigas, uma passagem

pela iniciação ao Direito, mas também um estudante de artes. Logo, Calvino possuía

um projeto ético-político:

O primeiro ato público do reformador religioso é um ato político e de

importância social muito grande. À testa de sua obra teológica,

endereçada, em termos respeitosos, mas firmes, uma carta ao rei

Francisco I no claro intento de fazê-lo entender que aqueles a quem

sua majestade chama de abomináveis sediciosos outra coisa não são

senão autênticos crentes, fiéis às ordens de Deus e ao ensino social

do evangelho. Esta carta, datada de 23 de agosto de 1535, prefacia

as Institutas, ela própria concebida como uma apresentação da fé

esposada pelos novos cristãos às autoridades e à opinião pública

(BIÉLER, 2012, p. 123).

Em sua epístola a Francisco I, o reformador debate com aqueles que se recusam

a agir diante das exigências do evangelho, que têm implicações no campo político e

temporal. Assim, Calvino tece um projeto ético-político de contracultura, quando

combate tenazmente a ideia de uma fé separada do mundo, tal qual o dualismo entre

natureza e graça, sagrado e profano, mas apresenta uma preocupação pela cidade e

seus problemas, de modo que “torna-se para o cristão reformado a expressão direta

de sua fidelidade cristã” (BIÉLER, 1970, p. 34).

Léonard (2013, p. 87) sinaliza que o pensamento político de Calvino não poderia

ser compreendido se nele houvesse apenas uma metafísica do Estado, baseada

somente numa doutrina teológica. Disto, pode-se encontrar a intencionalidade de

Calvino em promover uma reforma que por meio da mensagem bíblica e sua doutrina,

levasse as pessoas e os governantes, ao arrependimento, mas também ao

engajamento na cultura local e a participação política na sociedade.

Com frequência, como já mencionado, a teologia de Calvino é definida de forma

equivocada, e, portanto, reduzida aos chamados “cinco pontos” do calvinismo. São

duas as principais correntes que se desenvolveram a partir da obra de João Calvino:

a primeira, do calvinismo escocês e a segunda, da teologia reformada holandesa.

Na tradição escocesa, há uma forte ênfase nas doutrinas da salvação e no

conceito de ordo salutis (ordem da salvação). Através da influência de John Knox, a

Page 39: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

39

Escócia desencadeia uma escola de teólogos, que de Westminster, promovem

importantes documentos como a Confissão de Westminster e os Catecismos maior e

menor. Também é dessa corrente anglo-escocesa, que os puritanos como John

Owen, Richard Baxter e, mais tarde, Jonathan Edwards estão alinhados (DOUGLAS,

1990, p. 267).

Nos Estados Unidos, essa corrente escocesa é articulada em Old Princeton e é

associada a teólogos como Charles Hodge, B. B. Warfield e A. A. Hodge. Conforme

Smith (2014, p. 58), essa perspectiva é circulada em escolas como o Westminster

Theological Seminary, Reformed Theological Seminary, Covenant Seminary e

também o Southern Baptist Theological Seminary. Das denominações que se

orientam por essa vertente, incluem a Presbyterian Church in America (PCA), a

Orthodox Presbyterian Church (OPC), e a mais conhecida, a Presbyterian Church

(USA).

O calvinismo holandês tem sua importância no cenário reformado antes mesmo

de Kuyper no século XIX, quando nos anos 1618 e 1619, uma controvérsia teológica

entre os professores de teologia, Jacó ou (Tiago) Armínio e Francisco Gomaro dividiu

a opinião de pastores e governantes da Holanda. Disto, ocorre um debate entre os

calvinistas holandeses sobre um conjunto de questões soteriológicas, onde é

realizado na cidade de Dordrecht, o sínodo conhecido como “Dort”.

Em razão disso, os “cinco pontos do calvinismo14” é a resposta do sínodo geral

holandês. O objetivo principal do sínodo foi julgar um tratado dos seguidores de

Armínio, a “Remonstrância”. A tradição reformada holandesa também produz

importantes credos e confissões muito significativos à sua história, como: a Confissão

Belga, o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dort. No entanto, estes

acontecimentos históricos não resumem o calvinismo nem são capazes de defini-lo

(GONZÁLEZ, 2011, p. 315).

A tradição calvinista holandesa15 embora se oriente pelas doutrinas reformadas

da salvação, enfatiza os aspectos da teologia de Calvino que buscam o engajamento

14 São os “cinco pontos do calvinismo”, conhecidos por TULIP, estabelecidos nos Cânones de Dort

(1618-1619): Total depravaty (depravação total); Unconditional election (eleição incondicional); Limited atonement (expiação limitada); Irresistible grace (graça irresistível); e, Perseverance of the saints (perserverança dos santos). 15 A tradição do calvinismo holandês é ampla, o que demanda compreender seu processo histórico na

Holanda do século XVI, que ingressa nos países baixos e envolvem-se com aspectos sociais, políticos e econômicos, tais como o mercantilismo e o colonialismo, além dos fenômenos migratórios, com sua

Page 40: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

40

sobre os aspectos da vida, partindo da crença no senhorio de Jesus Cristo. É dessa

perspectiva, que Abraham Kuyper torna-se um dos precursores do movimento no

século XIX.

Em 2009, a revista Time16 incluiu “O Novo Calvinismo” em sua lista de “10 Ideias

que estão mudando o mundo”. O autor da matéria, David Van Biema17, usou a

expressão “ministros e autores neocalvinistas” para se referir a tais figuras como John

Piper, Mark Driscoll, Al Mohler e Justin Taylor. Embora a onda do “novo calvinismo”

não fosse exatamente nova, o termo neocalvinista é popularmente confundido.

No caso brasileiro, o movimento do Novo Calvinismo18 não é tão difundido por

líderes e pregadores, tal como nos Estados Unidos, mas sim, através do acesso à

internet, onde sites, blogs e canais no youtube promovem ideias de uma teologia

calvinista, mas que, por vezes, possui ênfases nos aspectos soteriológicos baseados

na TULIP, na salvação de “almas individuais” e na doutrina da predestinação (SMITH,

2014, p. 81; KUYPER, 2003, p. 21).

Marques (2017, p. 4) identifica que, de acordo com Bob Gouzwaard, em sua

obra “Christian Social Though in the Dutch Neo-Calvinist Tradition”, a expressão

“Neocalvinismo” fora inicialmente, mencionada por Max Weber, quando em seus

registros na sociologia da religião, tratou de analisar a retomada dos ensinos de João

Calvino e o aspecto social e político, especificamente, na Holanda entre os séculos

XIX e XX.

Com efeito, embora o prefixo grego neo traga o significado para algo “novo,

jovem, recente”, o uso original do termo “neocalvinista” remonta ao século XIX, na

qual, por outro prisma, trata-se do movimento calvinista holandês associado ao

teólogo Abraham Kuyper, que expressa em seu objetivo não querer distanciar-se do

chegada e desenvolvimento na América do Norte nos séculos XIX e XX, já sob a influência do pensamento kuyperiano. É possível encontrar um aprofundamento desta temática em (BRATT, 1990, p. 355; BIÉLER, 1999, p. 49). 16 BIEMA, David Van. 13/03/2009. 10 Ideas Changing the World Right Now. In: Time Magazine.

Disponível em: http://content.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1884779_1884782_1884760,00.html - Acesso em 11 de outubro de 2018, às 15h39. 17 Biema é um judeu-americano, formado em jornalismo pela Universidade de Columbia. É pesquisador e editor-senior sobre temas relacionados a religião na revista New York Times. 18 Lima (2009, p. 14) apresenta uma dissertação de mestrado, onde analisa o surgimento do Novo Calvinismo.

Page 41: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

41

pensamento de Calvino e tampouco desta tradição, mas almejou retomar elementos

e conceitos teológicos que, embora fossem relevantes para o próprio Calvino,

enfraqueceram sua expressividade com o passar dos anos.

Desta forma, o Novo Calvinismo é um movimento que tem desdobramentos

desde as igrejas históricas, carismáticas e até pentecostais nos EUA e têm

ramificações no Reino Unido, China, Coreia do Sul e em outros países da América

Latina, na qual o Brasil é um polo significativo, que manifesta aderência a esse

fenômeno. Assim, o Novo Calvinismo apresenta-se como um movimento que vem

sendo responsável pelo ressurgimento dos ensinos reformados de autores como João

Calvino, Charles Spurgeon e Jonathan Edwards e tem sido levado às novas gerações.

A expressão do Novo Calvinismo vem de uma série de ministérios influentes,

muitos com organizações de grandes igrejas e o uso de recursos multimídia, como

canais no youtube, podcasts, perfis no Facebook, Twitter e Instagram. Dentre os

teólogos amplamente aceitos como sendo desse movimento, merecem destaque para

esta pesquisa os seguintes:

D. A. Carson, teólogo canadense, doutor pela Universidade de Cambridge, é

professor pesquisador de Novo Testamento na Trinity Evangelical Divinity School, em

Deerfield, Illinois. É autor de A manifestação do Espírito, Cristo e cultura, A verdade,

Os perigos da interpretação bíblica e Jesus, o Filho de Deus, organizador do

Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento e As Escrituras dão

testemunho de mim, além de coautor de Introdução ao Novo Testamento e Dicionário

bíblico Vida Nova, todos publicados por Vida Nova. Ademais, Carson é um dos

fundadores da The Gospel Coalition [Coligação pelo Evangelho];

John Piper, fundador e professor no ministério desiringGod.org19 e chanceler

na Bethlehem College & Seminary, em Mineápolis, Minessotta. Foi pastor durante 33

anos na igreja Bethlehem Baptist Church e possui diversos livros publicados, dentre

os traduzidos para o português, estão: O racismo, a cruz e o cristão, Moldado por

Deus, Quando a escuridão não passa e, Lições de um leito de hospital, sendo esses

veiculados pela Vida Nova, e, Em busca de Deus e Graça futura, impressos pela

Shedd Publicações; e, Timothy Keller, natural da Pensilvânia, estudou na Bucknell

University, no Gordon-Conwell Theological Seminary e no Westminster Theological

19 In: https://www.desiringgod.org/ - acesso em 02 de março de 2019, às 15h59.

Page 42: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

42

Seminary. Foi pastor por muitos anos da Redeemer Presbyterian Church, em

Manhattan, igreja fundada em 1989 com sua esposa, Kathy. Tim Keller, como é

popularmente conhecido, é autor best-seller do New York Times e escreveu vários

livros, entre eles A fé na era do ceticismo, Deus na era secular, Caminhando com

Deus em meio à dor e ao sofrimento, Justiça generosa, Como integrar fé e trabalho,

Igreja centrada, O evangelho na vida, Pregação, Oração, A cruz do Rei, Encontros

com Jesus, Ego transformado, Os cânticos de Jesus, O Natal escondido, Gálatas para

você, entre outros títulos, majoritariamente publicados pela Vida Nova Editora. A obra

Igreja Centrada será referenciada no capítulo posterior, justamente porque esse

autor, apesar de estar mencionado no espectro do Novo Calvinismo, possui um

diálogo com a tradição neocalvinista.

Tanto John Piper como Timothy Keller têm eventos agendados no Brasil em

2019. Piper, numa conferência que leva o título Plena Satisfação em Deus, realizada

nos dias 27 e 28 de fevereiro, na Universidade Presbiteriana Mackenzie e na Igreja

Batista em Alphaville, promovida pela versão brasileira da The Gospel Coalition, a

Coalizão pelo Evangelho Brasil, com apoio da Editora Fiel. E Keller, vem ao país para

a Conferência City to City América Latina, que tem como proposta refletir sobre o

plantio e a revitalização de igrejas urbanas, o desenvolvimento de lideranças e a

criação de conteúdo para levar o evangelho num contexto urbano. O encontro está

agendado para acontecer nos dias 20 e 21 de maio de 2019, no Instituto Presbiteriano

Mackenzie, em São Paulo20.

Além disso, a Coalizão pelo Evangelho - TGC Brasil, conta com nomes que

estão diretamente envolvidos com o fenômeno do Novo Calvinismo, tais como:

Augustus Nicodemus, Jonas Madureira, Franklin Ferreira, Héber Campos Jr., Wilson

Porte, Mauro Meister e Davi Charles Gomes, seja por meio da produção de livros e/ou

no trabalho editorial, bem como lecionando em universidades e/ou seminários de

orientação calvinista.

John Piper, na Sétima Palestra Anual de Gaffin, realizada no Seminário

Teológico de Westminster, em 12 de março de 2014, tentou mostrar como o Novo

20 Cf.: Conferência City to City América Latina 2019. Disponível em: https://www.e-

inscricao.com/ctc_latam/saopaulo/?fbclid=IwAR37SCC79dM18hi8mOTA5iqRe9kMOVUjvVoocykKrMinFoGThJ6r4ji2CrI - acesso em 02 de março de 2019, às 16h37.

Page 43: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

43

Calvinismo não era essencialmente diferente da tradicional teologia reformada,

delineando doze pontos21:

1. O Novo Calvinismo, em sua lealdade à inerrância da Bíblia, abraça

as verdades bíblicas por trás dos cinco pontos (TULIP), enquanto tem

aversão ao uso do acrônimo ou qualquer outra embalagem

sistemática, junto com um abraço às vezes qualificado de expiação

limitada. O foco está na soteriologia calvinista, mas não na exclusão

ou na apreciação do escopo mais amplo da visão de Calvino;

2. O Novo Calvinismo abrange a soberania de Deus na salvação e em

todos os assuntos da vida na história, incluindo o mal e o sofrimento;

3. O Novo Calvinismo tem um forte viés complementarista em

oposição ao igualitarismo, com ênfase no florescimento de homens e

mulheres em relacionamentos onde os homens abraçam um

chamado à liderança servil, semelhante a Cristo [...];

4. O Novo Calvinismo se apoia em afirmar a cultura mais do que negar

a cultura [...];

5. O Novo Calvinismo abrange o lugar essencial da igreja local. É

liderada principalmente por pastores, têm tendências de fomento a

plantação de novas igrejas, produz música de culto amplamente

cantada e exalta a palavra pregada como elemento central para a obra

de Deus em aspecto local e global;

6. O Novo Calvinismo é profundamente envolvido com a missão,

incluindo o impacto missionário sobre os males sociais, o impacto

evangelístico por meio das relações pessoais e o impacto missionário

sobre os povos não alcançados no mundo;

7. O Novo Calvinismo é interdenominacional com um forte elemento

Batista;

8. O Novo Calvinismo inclui carismáticos e não carismáticos.

9. O Novo Calvinismo coloca uma prioridade no pietismo ou piedade

na veia puritana, com ênfase no papel essencial da vida cristã,

enquanto estima a intelectualidade, abraça o valor da seriedade.

Jonathan Edwards seria invocado como um modelo dessa

combinação de afetos entre a vida piedosa e fervorosa e a

intelectualidade da mente com mais frequência do que o próprio

Calvino, seja justo para Calvino ou não.

10. O Novo Calvinismo está vibrantemente envolvido na publicação

de livros e ainda mais notavelmente no mundo da Internet, com

centenas de blogueiros e ativistas de mídia social, como o Twitter;

21 Jared Oliphint, “John Piper's Twelve Features of the New Calvinism”, Reformed Forum, http://reformedforum.org/john-pipers-twelve-features-new-calvinism. Disponível em < http://www.thegospelcoalition.org/blogs/justintaylor/2014/03/14/john-pipers-lecture-at-westminster-theological-seminary-on-new-calvinism-and-the-new-community> Acesso em 4 de março de 2019.

Page 44: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

44

11. O Novo Calvinismo é de âmbito internacional, de expressão

multiétnica e culturalmente diversificada. Não existe um único centro

governamental geográfico, racial e cultural. Não há oficiais,

organização ou afiliação que abranja o todo. Eu ouso dizer que há

afloramentos deste movimento que ninguém (incluindo eu) nesta sala

nunca ouviu falar;

12. O Novo Calvinismo é fortemente centrado no evangelho, com

diversos livros saindo das prensas, chegando ao evangelho de todos

os ângulos concebíveis e aplicando-o a todas as áreas da vida com o

compromisso de ver a doutrina histórica da justificação, encontrando

seus frutos na santificação pessoal e comunitária (PIPER, 2015, s\n,

tradução nossa).

No entanto, o novo calvinismo configura uma ampla e variada tenda de ideias,

ensinamentos, ênfases e doutrinas, que demandaria um estudo específico somente

para compreender essa chegada ao Brasil. Aqui, buscou-se conceituá-lo, mas não

compará-lo com o neocalvinismo holandês. Entretanto, nota-se ainda que, talvez o

novo calvinismo, que vem promovendo a teologia reformada em outras alas da

tradição evangélica como em igrejas pentecostais e neopentecostais, tornando-se

popular entre as juventudes, cumpre uma função de “porta de entrada” para a reflexão

teológica e os move para um afastamento do dispensacionalismo, que marca

profundamente o pensamento da pentecostalidade.

Considerações intermediárias

O primeiro capítulo desta pesquisa identifica que desde as Palestras Stone,

proferidas nos Estados Unidos em 1898 no Seminário de Princeton, Abraham Kuyper

tecia apontamentos acerca do fenômeno da Revolução Francesa, que compunha

valores de resistência à ideia de reconhecimento da autoridade divina. Kuyper (2003,

p. 18), longe de uma análise simplista, não oculta de verificar que tal revolução é um

desdobramento histórico ocorrido sob a soberania de Deus, de maneira que dela

desencadeiam aspectos que são proveitosos à vida humana, quando a própria fé

cristã encontrava-se perante a Modernidade e seus valores secularizados.

A partir disso, emerge com um conjunto de pensadores o movimento do

neocalvinismo holandês, no século XIX. Na esteira desse movimento, nomes como

Guillaume Groen van Prinsterer, Abraham Kuyper e Herman Bavinck compreenderam

que as ideias e ideais empreendidos pela filosofia e as revoluções promoviam uma

Page 45: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

45

oposição ao Cristianismo, uma vez que o modernismo passou a ser interpretado como

um “abrangente sistema de vida” que só poderia ser confrontado com outro sistema

de vida e de poder que fosse igualmente abrangente (KUYPER, 2013, p. 28;

RAMLOW, 2016, p. 39). Disto, Abraham Kuyper e seus companheiros promovem o

calvinismo como uma perspectiva que têm subsídios para os enfrentamentos que

viviam os cristãos em sua época.

Do conjunto temário que permeia a teologia neocalvinista, aqui merecem

destaque dois aspectos, a saber: o mandato cultural e a graça comum, justamente

porque tecem toda a perspectiva ética, social e política de Kuyper, a serem exploradas

no próximo capítulo. O mandato cultural possibilita uma ação de responsabilidade

para com o cosmos, que, conforme preconiza a narrativa da criação de Gênesis, trata-

se de uma vida compartilhada com gente que também reflete a imagem e semelhança

de Deus, mas, que, por sua vez, nem sempre comungam da mesma fé, da mesma

religião e ideias. Ramlow (2016, p. 79) observa que “a pluralidade cultural, social e

religiosa pode ser encarada como um desafio frente o qual os cristãos podem assumir

posturas diversas, desde o embate até uma assimilação acrítica e, até mesmo, de

isolamento”. Então, se com a doutrina do mandato cultural, é possível ao cristão um

alinhamento para uma práxis na esfera cultural, a doutrina da graça comum,

concedida por Deus, fornece uma modo de se relacionar com a vida e o mundo,

levando os benefícios de beleza, justiça e bondade às pessoas sem que haja

nenhuma distinção.

Conforme exposto, o pensamento de João Calvino preconiza toda a

fundamentação da perspectiva kuyperiana, que potencializa na tradição neocalvinista

ênfases teológicas de diálogo com a esfera pública, uma recusa e crítica às ideologias

de seu tempo e uma valorização da participação cristã na educação, cultura, ciências

e artes. Por isso, a necessidade deste capítulo de realizar um movimento ex-ante,

tratando de apresentar João Calvino, antes da adoção do próprio pensamento

kuyperiano, uma vez que seu projeto tem elementos que possibilitam as condições

necessárias à sua adoção e fundamentação. Todavia, é preciso também um exercício

ex-post, para sinalizar que depois de elaborada a teologia de Calvino, é possível que

sua interpretação seja executada posteriormente, mas com diferentes destaques e

realces acerca desta teologia. Eis a importância de expor preliminarmente o

movimento do neocalvinismo e o fenômeno do Novo Calvinismo, porque se entende

Page 46: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

46

que a partir destas correntes que a perspectiva kuyperiana é engendrada e acolhida

no contexto brasileiro, como se pretende discernir no decorrer deste estudo.

Capítulo 2

FUNDAMENTOS DO NEOCALVINISMO HOLANDÊS:

O PENSAMENTO ÉTICO, SOCIAL E POLÍTICO DE

ABRAHAM KUYPER

Introdução:

É justamente o desejo de superar o dualismo – tema abordado no primeiro

capítulo – que o neocalvinismo se propõe desde o trabalho realizado por teólogos e

estadistas como Guillaume Groen van Prinsterer, Abraham Kuyper e Herman

Bavinck, que esta corrente teológica preconiza, a partir do pensamento de Calvino ao

engajamento e a participação na vida pública. Disto, as igrejas envolvidas nesse

período construíram escolas, universidades, envolveram-se ativamente na política,

produziram e fomentaram o comprometimento com a ciência e arte, mesmo na

contracorrente das tendências filosóficas secularizadas da época, que tinham

premissas de rejeição à fé cristã.

Inegavelmente, para realizar tal envolvimento cultural, é requerida uma

compreensão de como essa teologia se relaciona com a sociedade. E essa base

ontológica, para os neocalvinistas, se faz tecendo um diálogo da teologia elaborada

com uma práxis que interpreta instituições como o Estado, a escola e a família, visto

que para os neocalvinistas essas possuem uma funcionalidade específica

(WOLTERSTORFF, 1983).

Assim, é defendido no decorrer desta pesquisa que o kuyperianismo possui uma

perspectiva ética e política a partir de uma reflexão teológica, que, para tanto,

apresenta sua intencionalidade diante de uma relação histórica com o pensamento

de Calvino, mas, que logra uma trajetória inédita, dotada de especificidades na

Holanda do século XIX, que se constitui um fenômeno sociopolítico e expande a partir

Page 47: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

47

de uma teologia estritamente política, na qual propõe à luz desta compreensão, uma

relação da igreja e dos cristãos com a sociedade.

O conceito que permeia o pensamento kuyperiano é o princípio da soberania

das esferas. Kuyper, que articulou esse princípio ao defender uma instituição

educacional inovadora, que deve ser livre de qualquer intervenção da parte da igreja

ou do Estado. Por outro prisma, se os procedimentos modernos do catolicismo

romano enfatizavam a hierarquia de instituições sociais, no conceito de soberania das

esferas de Kuyper, há uma versão autêntica e alinhada aos princípios reformados, na

qual reconhece todas as esferas e instituições sociais diante de Deus. Da mesma

maneira, a aplicabilidade desse conceito compõe não apenas as autoridades

políticas, a igreja e o Estado, mas todas as instituições sociais (KOYZIS, 2014, p.

278).

2.1 O Estado

Ao relacionar o Calvinismo com o Estado, Kuyper (2003, p. 33) tem como ponto

de partida uma compreensão acerca da doutrina da soberania de Deus, e afirma que:

[...] no sentido cosmologicamente mais amplo, a Soberania do Deus

Trino sobre todo o cosmos, em todas as esferas e reinos, visíveis e

invisíveis [...] uma soberania primordial que se irradia na humanidade

numa tríplice supremacia, a saber: 1-) A Soberania no Estado; 2-) A

Soberania na Sociedade; e 3-) A Soberania na Igreja (p. 86).

Koyzis (2014, p. 278) aponta que Kuyper afirma esse princípio, por opor-se ao

totalitarismo estatal, mas também ao clericalismo ou integralismo medieval. O

contexto em que Kuyper viveu foi de grandes conflitos no campo da política. As

monarquias passavam a ser substituídas e emergiram diversos pós-iluministas, que

buscavam novas formulações e propostas de governabilidade. Partindo dessa

conjuntura, Kuyper entende a necessidade de que o pensamento e uma ação cristã

na política, pudessem ser implementadas.

Todavia, Bartholomew (2017, p. 159, tradução nossa) mostra que, na época,

havia liberdade genuína para grandes visões religiosas ou confessionais. Destarte,

Kuyper concentrou esforços numa ação política cristã, que, apesar disso, não

desconsiderou nem o fez deslegitimar que sua perspectiva estava em um contexto

pluralista, onde múltiplas visões competiam na esfera pública.

Page 48: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

48

É diante disso que Kuyper desenvolveu uma plataforma partidária, composta por

dezoito pontos, na qual foi publicada no De Standaard, em 1878 como a proposta

aprovada pelos membros. Kuyper apresentou cinco requisitos para o partido político:

1-) Deve ser definido por uma plataforma comum; 2-) Deve ser composto de capítulos

organizados em tantas localidades quanto possível; 3-) Os delegados dos capítulos

se reunirão em uma convenção nacional para nomear candidatos para o Parlamento;

4-) Os candidatos endossados e os membros titulares do Parlamento estarão

vinculados à plataforma do partido; e, 5-) Um comitê central é responsável por

coordenar as operações partidárias (BARTHOLOMEW, 2017, p. 160, tradução

nossa).

Aliás, Bartholomew sinaliza ainda que embora isso pareça óbvio, porque grande

parte da sociedade vivia sob um regime democrático, no contexto de Kuyper, essa

forma de organização política era nova, visto que a política holandesa tinha sido um

espaço para a preservação das elites e camadas elevadas no poder, ao passo que

Kuyper almejava oportunizar a participação das camadas populares, a saber, o

envolvimento dos pobres, uma vez que os processos de industrialização haviam

gerado reivindicações da parte dos trabalhadores. MOLENDIJK (2008, p. 236,

tradução nossa) acrescenta que o calvinismo na perspectiva de Kuyper trouxe uma

contribuição à própria democracia e aos direitos humanos.

Kuyper delineia então, os três princípios que norteiam a plataforma do Partido

Anti-Revolucionário, sendo eles: 1.) soberania para cada esfera da sociedade; a

compreensão de que, 2.) a nação não é um agregado, mas um organismo; e, 3.)

nenhuma coerção, mas liberdade para a formação intelectual, espiritual e na área da

educação (BARTHOLOMEW, 2017, p. 161, tradução nossa). Para ele:

Primeiro, então, a Soberania nesta esfera política que eu defini como

o Estado. E, portanto, nós admitimos que o impulso para formar

estados nasce da natureza social do homem, a qual já foi expressa

por Aristóteles quando ele chamou o homem de um “ζώου πολιτικοί”

(ser político). Deus poderia ter criado os homens como indivíduos

separados, estando lado a lado e sem conexão genealógica. Assim

como Adão foi criado separadamente, o segundo e terceiro e assim

por diante, cada homem poderia ter sido chamado à existência

individualmente; mas este não foi o caso (KUYPER, 2003, p. 86).

Kuyper (2003, p. 87) afirma que a raça humana é de um “mesmo sangue”. No

entanto, a concepção de Estado-Nação, fragmenta a humanidade. Ele aponta uma

Page 49: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

49

unidade orgânica da raça humana, que poderia ser realizada politicamente, somente

se um Estado abraçasse todo o mundo, mas se antes, o pecado não tivesse ocorrido.

Para o autor, “o erro dos Alexandres, dos Augustos e dos Napoleões, não foi que eles

foram seduzidos com o pensamento do Império Mundial Único”, mas que

empreenderam uma ideia já corrompida pela força do pecado.

Partindo dessa afirmativa, se não houvesse pecado, não haveria a necessidade

de autoridades civis ou mesmo da ordem do Estado. Freire e Ramos, ao elaborarem

a introdução da obra Estado e Soberania, identificam que, para Kuyper, o Estado é

uma benção de Deus para a preservação da humanidade, ao passo, que,

simultaneamente, por consequência do pecado, é necessário acompanhar os riscos

desse poder estatal acerca da liberdade individual (DOOYEWEERD, 2014, p. 20).

Logo:

O Estado não está apenas lá para que possa haver um Estado. Um

Estado não é um fim em si mesmo. Pelo contrário, a vida de um

Estado também é somente um meio para se preparar uma vida

comunitária de uma ordem ainda mais elevada, uma vida que já está

germinando e um dia será gloriosamente revelada no Reino de Deus

(KUYPER, 2015, p. 51, tradução nossa).

A compreensão de Estado em Kuyper (2003, p. 89) não apresenta um conceito

definido por completo, mas uma ideia do autor sobre o que se entende por "Estado",

indicando apontamentos que o governo civil é reconhecido pelos cidadãos de um país

e por potências estrangeiras. Por consequência do pecado e a queda, a unidade

original do homem foi afetada e a vida política têm importantes elementos para a

produção e reprodução das relações sociais. Há ainda uma rejeição de Kuyper à

teocracia, ensinando que o Estado têm deveres a cumprir, sendo: 1-) traçar um limite

entre as diferentes esferas; 2-) defender indivíduos e as vulnerabilidades de cada

esfera; e, 3-) legitimar a multiplicidade das esferas, bem como defender suas

especificidades.

Keller (2014, p. 223) apresenta uma diferença política entre os neocalvinistas e

a direita religiosa acerca das diferentes interpretações sobre o papel do Estado. A

partir do texto bíblico do livro de Romanos 13.3,4, os neocalvinistas entendem que o

governo possui duas funções básicas: administrar a justiça, punindo os malfeitores,

e, promover o bem público, satisfazendo as necessidades materiais básicas da

população, especialmente, das pessoas que vivem na pobreza e na vulnerabilidade.

Page 50: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

50

Para a direita política, o texto de Romanos 13.3,4 ensina somente a primeira dessas

duas funções, a saber: que o Estado deve somente executar a lei; de tal forma que

forneça apenas policiamento e defesa militar.

2.2 A Educação

Na condição de pastor, teólogo, membro do parlamento, editor de um jornal

diário, professor universitário, presidente do Partido Anti-Revolucionário, e,

eventualmente, como primeiro-ministro dos Países Baixos, Abraham Kuyper

trabalhou por mais de cinco décadas. Nisto, também possuía uma perspectiva de um

sistema educacional que fosse de âmbito nacional e contemplasse o direito de

escolha sobre qual filosofia de educação trilhar.

Com os conflitos políticos no âmbito da educação na Holanda, Kuyper (2015, p.

175) não foi o primeiro a preocupar-se com a questão das escolas e sua relação com

a confessionalidade. Groen van Prinsterer já participava de uma ala política que

defendia uma pauta na qual as escolas públicas deveriam treinar seus alunos no que

considerava "virtudes cristãs e sociais". No entanto, para que não fosse ofendida a

liberdade de consciência de qualquer aluno ou o próprio entendimento da família, isso

não era viável. Assim, a solução de Groen van Prinsterer era dividir o sistema

delineando propostas educacionais de matrizes protestantes e católicas, permitindo

que cada ala pudesse educar a partir de suas próprias convicções.

Bartholomew (2017, p. 238) narra que os tradicionalistas foram resistentes em

conceder à ala protestante o poder sobre a educação pública, ao passo que enquanto

os liberais queriam promover a secularização da educação e uma síntese com a

cultura vigente. Apesar das objeções de Groen van Prinsterer, em 1857 um

compromisso foi proposto para uma forma de sistema laico, financiado pelo Estado

com subsídios às escolas religiosas privadas. A lei foi aprovada pelos Estados Gerais,

mas os recursos pouco depois foram suprimidos. Em oposição, Groen van Prinsterer

demitiu-se do parlamento e concentrou esforços numa agenda que buscava

programar uma rede nacional que auxiliasse as escolas privadas e garantisse o direito

à confessionalidade, pressionando o poder público para uma mudança nessa lei.

Nesse sentido, a educação configura um tema importante ao neocalvinismo,

quando:

Page 51: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

51

Tanto Kuyper quanto Bavinck parecem sentir a urgência de inserir o

ensino cristão enquanto uma cosmovisão. Kuyper manifesta sua

gratidão pelo fato de o Estado possibilitar a existência de tal

instituição. Por outro lado, informa da sombria perspectiva que está à

frente, se o homem moderno for separado da fé cristã. Além disso,

ambos os autores estão cientes da importância que a educação

possui na dinâmica da fé, bem como do que a educação promove

através da lente da fé envolvida com a sociedade. Na visão de Kuyper,

um subsídio para uma bolsa de estudos serve como uma esfera pela

qual a verdade pode ser encontrada em outras esferas de vida. Para

Bavinck, a erudição ainda é capaz de trazer a verdade à vanguarda,

mas também traz luz para a alma do indivíduo e para sociedade

(PRICE, 2011, p. 70, tradução nossa).

Kuyper argumentou que o sistema educacional holandês do século XIX, de

escolas públicas, consideradas "mistas" era fundamentalmente injusto. Embora se

propusessem religiosamente neutras, as escolas públicas ofereciam uma perspectiva

religiosa divergente, que refletia apenas uma pequena parte da população holandesa,

mas era ofertada a toda a nação. Ele afirmou que o sistema escolar se tornou uma

ferramenta dos grupos de elite, que almejava separar os holandeses de seus valores

religiosos mais profundos e substituí-los pelos valores dos franceses

Se o governo de repente se retirasse, o resultado seria que (1) as

escolas paroquiais dos católicos romanos continuariam a florescer; (2)

as escolas dos protestantes ortodoxos sobreviveriam; (3) as escolas

de os ricos permaneceriam o que são; mas (4) quase todos os jovens

(…) (com exceção dos filhos dos ricos), na ausência de uma escola

acessível, acabariam nas ruas (KUYPER, 2015, p. 183, tradução

nossa).

Dessa forma, muitas pessoas buscavam uma alternativa ao problema e

investiram financeiramente em escolas com propostas de educação confessionais,

da qual os pobres simplesmente não conseguiam custear. Então, Kuyper argumentou

que para defender o direito humano fundamental à liberdade de consciência, o Estado

tinha o dever de garantir que as famílias escolhessem a direção pedagógica da

educação de seus filhos sem que houvesse penalidade financeira. Assim, Kuyper

(2015, p. 178) e o Partido Anti-Revolucionário lutaram por uma reestruturação no

sistema educacional. Esta luta ficou conhecida como a "Luta Escolar", que em 1917

promoveu um conjunto de diretrizes para o Partido: uma emenda constitucional que

garantiu às famílias, o direito fundamental de optar pelo modelo de educação de seus

Page 52: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

52

filhos, e forneceu subsídios iguais e completos para todas as escolas particulares e

públicas.

Acerca das convicções de Kuyper em relação ao subsídio financeiro do governo

às instituições educacionais, podem ser resumidas da seguinte forma: primeiro,

Kuyper acreditava que a família tem a responsabilidade procedente da ordem divina,

e, portanto o direito de orientar a educação de seus filhos, e que o Estado deve

legitimar e defender esse direito, implementando um sistema educacional na qual

todos os projetos pedagógicos das escolas pudessem ser livremente escolhidos pela

família (BERG, 1978, p. 41). Logo, se uma família deseja uma educação pública e

laica aos filhos, não haveria problemas. No entanto, se eles preferirem uma educação

confessional, o Estado tem o dever de garantir que a família escolha essa escola ou

ainda, estabeleçam uma. Curiosamente, da perspectiva de Kuyper, a escolha da

escola nacional não só não violou a separação entre igreja e estado, mas também

era absolutamente essencial para garantir a separação da religião e do estado

(LANGLEY, 1984, p. 109).

2.3 Ciência e Universidade

A universidade livre foi meio em que Kuyper buscou influenciar a partir de sua

compreensão da ciência na esfera institucional. Ele tinha como objetivo uma

instituição acadêmica que produzisse ciência na perspectiva do calvinismo, e por isso,

defendia uma universidade "livre". Embora reconhecesse a importância da

confessionalidade na Universidade Livre da Amsterdam, Kuyper trabalhou para que

tal instituição fosse livre do Estado e da própria Igreja.

Apesar de reconhecer que a ciência não teria se desenvolvido sem o apoio do

governo, Kuyper (2018, p. 33) sinaliza os riscos de essa esfera tornar-se serva do

Estado ou mesmo da Igreja, uma vez que, ao fazer isso, negligenciaria sua própria

vocação:

A ciência não é um ramo que cresce a partir do tronco do serviço

governamental, e muito menos um ramo que se desenvolve a partir

das raízes da Igreja. Pelo contrário, a ciência possui sua própria raiz,

estando nela, pois, firmada. Ora, é a partir do tronco que se origina

dessa raiz singular que a ciência deve cultivar seus ramos e gerar

seus frutos. Como o famoso relatório sinódico expressou

Page 53: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

53

acuradamente, a ciência é “uma criatura singular de Deus”, com seu

princípio próprio de vida, isto é, desenvolver-se em liberdade.

De acordo com Bratt, (2013, p. 275), Kuyper não insistiu na literalidade de

leituras das passagens bíblicas. Além disso, também não expressou uma recusa a

um dos grandes temas de sua época, quando a biologia do século XIX desenvolveu

com Charles Darwin (1809-1882), a teoria da evolução das espécies biológicas.

Diante da indagação dessa teoria, Kuyper responde:

Embora o próprio Darwin admitisse que a teoria da seleção natural

era insuficiente para explicar as diferenças morfológicas das

espécies, a teoria da evolução não foi, contudo, abandonada. O que

foi explicado por Charles Darwin mecanicamente poderia, de igual

modo, ser interpretado em sentido dinâmico, mesmo que precisasse

ser interpretado teleologicamente, como um processo espontâneo no

cosmo que recebeu o impulso do primeiro embrião, cujo motivo parte

da ideia teleológica que domina a totalidade do processo. Alguém

pode, portanto, ser darwinista, e, junto com Darwin, dobrar seus

joelhos perante um “Deus”, pois certamente Deus criou essa “força”

que, de modo potencial, incluía todo o cosmo em si; ou foi ele que

determinou, para o cosmo, o objetivo de seu processo de

desenvolvimento (KUYPER, 2017a, p. 57).

Assim, como menciona Bratt (2013, p. 277, tradução nossa) Kuyper “era um

calvinista consistente”, pois afirmou: “Não vamos forçar sobre o estilo do arquiteto

chefe do universo. Se é para ser o arquiteto não somente em nome, mas na realidade,

Ele também será supremo na escolha do estilo”. Logo, verifica-se que Kuyper, ainda

que crítico ao “evolucionismo”, enquanto uma cosmovisão popularizada nas

propostas de Haeckel e Spencer, não anula a possibilidade de diálogo com a teoria

darwinista, mesmo sendo crítico a questão da comprovação empírica, que foi

facilmente acolhida em seu tempo. Todavia, pode-se identificar que ele não era um

literalista acerca da interpretação de Gênesis22. Aliás, conflui com aspectos

tipicamente autênticos da tradição kuyperiana e a produção de seus contemporâneos

na esfera da ciência, como será possível analisar no capítulo 3 desta pesquisa.

Contrário senso, historicamente, a igreja, retirou-se de toda e qualquer ação

que considerava “secular” para um lugar restrito chamado “sagrado” (RAMLOW,

22 É possível realizar um aprofundamento acerca da compreensão de Kuyper e a origem do

criacionismo na Holanda em Flipse (2012, p. 108), no artigo: The Origins of Creationism in the Netherlands: The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo-Calvinists.

Page 54: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

54

2012, p. 44). A ciência foi se desenvolvendo sem considerar a hipótese de Deus. E,

os cristãos, portanto, foram perdendo a capacidade de interagir com essa realidade,

a menos que admitissem a privatização de sua fé e operassem “no mundo secular”

pelos mesmos princípios que descartam qualquer possibilidade sobre a existência de

um Deus. Então, a vida estava dividida entre o sagrado e o secular. Vale aqui

compartilhar a crítica apontada por Dulci, ao mencionar as palavras do teólogo N.T.

Wright:

[...] o mais irônico nisso tudo é que as igrejas norte-americanas que

mais prostestam contra o ensino das teorias darwinistas nas escolas,

são as que, geralmente apoiam, em suas políticas públicas, o tipo de

economia baseada nos princípios do darwinismo, com a

sobrevivência dos mais fortes nos mercados mundiais e no poderio

militar (WRIGHT, 2009, p. 233 apud DULCI, 2014, p. 225).

No campo científico, mas também acerca da questão social – antecipando o

que virá a ser elaborado no próximo capítulo desta dissertação – a partir das

experiências brasileiras, Dulci problematiza a questão das abordagens teológicas

serem contextualizadas mediante às necessidades da contemporaneidade.

Para Kuyper (2018, p. 95)

Vemos repetidas vezes como um grupo de crentes que não percebem

essa obrigação se isolam da sociedade circundante, se retirando para

um canto separado, mantendo sua posição geralmente entre as

classes menos desenvolvidas, perdendo, assim, toda influência no

curso dos eventos e na formação da opinião pública. Na natureza do

caso, a mentalidade geral do povo é moldada pelos acadêmicos. As

universidades estabelecem a direção do pensamento para as

pessoas de influência. Do meio universitário, esse modelo de

pensamento é reproduzido dentre os políticos, advogados, médicos,

professores e escritores. Mediante tal influência, esse modelo é

levado à imprensa, às escolas primárias e secundárias e à rede dos

funcionários burocráticos. [...]

Há somente um meio de prevenir isso — exigir que os pensadores

cristãos estabeleçam um movimento de nível universitário,

manifestando, por meio dele, um modelo diferente de percepção e

pensamento, reproduzindo-o dentre o povo que acompanha esses

estudos acadêmicos. O resultado eventual seria um quadro de

pessoas intelectualmente desenvolvidas para exercer influência entre

as multidões, pessoas que poderiam adentrar no campo do discurso

público.

A vida da graça particular não subsiste por si própria, porém foi

disposta por Deus no meio da vida da graça comum.

Page 55: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

55

Kuyper define a ciência da seguinte forma:

A ciência se apresenta para nós como um impulso necessário e

sempre contínuo na mente humana para refletir acerca do cosmos,

plasticamente quanto aos seus elementos, e pensar sobre isso

logicamente quanto às suas relações; sempre com o entendimento de

que ao ser humano, a mente é capaz disso em razão de sua afinidade

orgânica diante de seu objeto (KUYPER apud BARTHOLOMEW,

2017, p. 198, tradução nossa).

De acordo com Kuyper (2003, p. 138), não existe um conflito entre fé e ciência.

No entanto, a ciência, necessita pressupor aspectos e postulados que permeiam a fé,

uma vez que são princípios não verificáveis empiricamente. Nisto, a investigação

científica cumulada à intencionalidade dos sentidos sobre apreender e fornecer

informações à realidade são elementos que configuram a atuação do pensamento

sobre o processo de análise, mas que pressupõe uma fé eclipsada aos fenômenos

pesquisados. Seja a fé na vida ou mesmo nesses postulados. “Por outro lado”, como

ele acrescenta: “todo tipo de fé tem si mesmo um impulso para manifestar-se

livremente. A fim de fazer isto ela precisa de palavras, termos e expressões. Estas

palavras devem ser a encarnação de pensamentos”.

KLAPWIJK (2013, p. 33) identifica que, para Kuyper, todas as investigações

científicas devem ser livres, de modo que possibilite às instituições acadêmicas,

produzir e desenvolver conhecimento sem que estivessem numa condição de

subalternidade diante das ideologias concorrentes. Para o autor, Kuyper contribuiu

para a emancipação da cultura local, onde diferentes grupos sociais puderam se

constituir enquanto diferentes e divergentes setores de uma sociedade civil, e nisto,

emerge uma universidade livre, que tem como diretrizes, um ethos estritamente

calvinista. Ademais, Kuyper também estava fundamentalmente oposto a qualquer

ligação da ciência a uma confissão eclesiástica, mesmo com a própria Universidade

Livre de Amsterdã. Novamente, uma universidade livre na compreensão de Kuyper,

é uma universidade que é livre do Estado e da Igreja. Logo, nem as autoridades

eclesiásticas, tampouco as autoridades políticas devem interferir na dinâmica dessa

esfera educacional ou na operacionalização e gestão da ciência.

Page 56: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

56

2.4 A questão dos pobres

O contexto sociocultural e ideo-político que Abraham Kuyper viveu foi dinâmico

e repleto de mudanças. Desde a Revolução Francesa, os países da Europa

acompanharam a propagação do modo de produção capitalista e o contraponto

advindo das economias socialistas. A Revolução Industrial chegou à Holanda em

meados de 1870 e desencadeou uma depressão de três décadas que afetou grandes

segmentos da sociedade envolvidos com a agricultura (BIÉLER, 1999, p. 149).

O século XIX, além de apresentar o conflito da Igreja na esfera da cultura, das

instituições, da questão do Estado e das ideologias políticas que emergiram, configura

também a revolução industrial, que produz em larga escala; inaugura um novo

sistema econômico que tem como premissa o mercado livre e a concorrência e

defende a acumulação individual dos lucros. Esse modelo econômico compõe a

inovação dos meios de produção, os investimentos em maquinários e, em

consequência, visa o aumento da produção.

No período da Revolução Industrial, países como França, Alemanha, Itália,

Bélgica, Holanda, Estados Unidos e Japão, começaram a investir na formação de

suas indústrias. Em havendo uma nova morfologia nos processos de trabalho, o eixo

do capitalismo industrial separava o trabalho e o capital financeiro, reduzindo o

primeiro à lógica de contingência dada por meio da mão de obra humana, que foi

suprimida da vida no campo e trazida aos centros urbanos, provocando um êxodo

rural.

As consequências dessas mudanças nos processos de trabalho provocaram

uma produtividade desumanizada, a exploração da mão de obra, que têm aspectos

diretamente vinculados aos mecanismos de colonização e escravidão, visto que o

poder econômico passa a ser o elemento norteador da vida humana e suas relações.

Esse fenômeno põe o trabalhador numa relação entre o capital e o trabalho, onde o

salário é, per si, um mero produto da lei econômica que rege as necessidades e os

desejos. É diante desse cenário, de um exacerbado crescimento urbano, desemprego

e crise habitacional advindas do aumento da pobreza e da miséria, que a igreja do

século XIX buscava responder aos problemas de sua época. Nas palavras do próprio

Kuyper:

Page 57: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

57

Isto seguiu da característica dupla e intrínseca; primeiro a de

representar a posse de dinheiro como o bem maior e, segundo, na

luta pelo dinheiro, estabelecer cada homem contra todos os outros.

Não foi como se a caçada por dinheiro tivesse um lugar oficial em seu

programa, nem que seus intérpretes mais inspirados não persuadiram

tons mais nobres de suas harpas, mas a teoria, o sistema, teve que

se concretizar ajoelhado diante de Mammon, simplesmente porque

cortou o horizonte de uma a vida eterna, homens impelidos a buscar

a felicidade na terra, e assim, nas coisas terrenas, o que criou uma

esfera de unidades inferiores, em que o dinheiro era o padrão de valor,

e tudo foi sacrificado por dinheiro. Agora adicione o afrouxamento de

toda organização social, seguido da proclamação do evangelho

mercantil do "laissez faire" e você entende como a luta pela vida foi

anunciada pela luta por dinheiro, de modo que a lei do mundo animal,

onde “cachorro come cachorro”, tornou-se a lei básica para cada

relacionamento social (KUYPER, 1950, p. 35, tradução nossa).

Diante disso, Abraham Kuyper (1950, p. 14) identifica que até o final da década

de 1880, os protestantes em seu próprio país bem como os cristãos europeus não

estavam preparados adequadamente para enfrentar os desafios da Revolução

Industrial. De semelhante modo, o nascimento da Doutrina Social da Igreja Católica,

que ocorre no pontificado de Leão XIII é indissociável das condições gerais que o

viveu o mundo oitocentista; primeiro, através das revoluções políticas, e, depois, por

meio dos fenômenos culturais, das transformações sociais e propostas de inovação

na economia. Kuyper organizou o primeiro Congresso Social Cristão na Holanda,

apenas alguns meses depois de Leão XIII ter promulgado a encíclica Rerum

Novarum, que por sua vez, foi escrita quarenta anos depois das ideias de Karl Marx

circularem nos ambientes operários.

Conforme observa Bratt:

A paixão de Kuyper pelos pobres foi persistente, não apenas no

Congresso Social Cristão de 1891, mas bem antes e muito depois

disso; não somente em seus pronunciamentos sobre ética social, mas

também em sua política, sua história, seu comentário bíblico, sua

eclesiologia, sua proposta para a educação e reformas universitárias:

em todos os lugares os pobres apareciam, em toda parte a opressão

o incomodava, e em todo lugar, Kuyper colocava Deus ao seu lado.

Ele chamou seus seguidores para se juntarem ao Mestre. “Você não

honra a Palavra de Deus”, ele advertiu, se “você alguma vez esquecer

como o Cristo (assim como seus profetas antes dele e seus apóstolos

depois dele), invariavelmente tomavam partido contra aqueles que

eram poderosos e viviam no luxo, e também denunciavam o

Page 58: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

58

sofrimento contra o povo oprimido (BRATT, 2002, p. 37-38, tradução

nossa).

As camadas populares desprivilegiadas viveram entre as experiências da

participação democrática, dos populismos políticos, da subalternidade, mas também

de um movimento de reação da própria condição de pobreza, o que demandou uma

resposta partindo de várias instituições, partidos e também da Igreja católica e

protestante.

Kuyper (2015, p. 302, tradução nossa), compreende que:

Pelos pobres, entendemos pessoas que não podem se sustentar

porque são viúvas, menores, idosos ou doentes. É uma área da vida

onde a misericórdia colhe seus louros e consola aqueles que precisam

ser consolados. Mas a questão social é, na melhor das hipóteses,

apenas indiretamente conectada com os pobres, e o fator real do

movimento social não são os humildes pobres [...], mas sim o

trabalhador sadio no auge de sua vida, uma pessoa que pode

trabalhar e quer trabalhar, mas que pede – e em breve demanda –

que ele seja fornecido com um trabalho que lhe permite ganhar a vida

salário para si e seus dependentes.

Kuyper (1950, p. 52) rejeitou a ideia de um estado socialista, ao passo que se

opôs a um modelo de economia que pudesse privilegiar as camadas elevadas. Ele

criticou o perigo do Estado ser usado sob a influência dos ricos e, assim, criar

regulamentar leis que os favorecessem. Desaprovou a social democracia e, por outro

prisma, também se posicionou contra o “laissez faire, laissez aller, laissez passer” –

que acompanhava o desdobramento do capitalismo e livre comércio nos ideais do

liberalismo – insistindo que os indivíduos devem entender quais são as suas próprias

responsabilidades, e, enquanto comunidade, devem também considerar as

necessidades dos outros, inclusive nos assuntos econômicos (KUYPER, 2015, p.

172).

Dessa forma, ele defendeu a importância de legitimar os sindicatos, que

mediasse as relações entre trabalhadores e empregadores. Kuyper observou

criticamente os efeitos da industrialização e se mostrou atento às questões dos

direitos trabalhistas, na qual era sucateado por contratos impessoais, o que

provocava abusos concretos dos proprietários e afetava os pobres. Certamente,

considerando sua grande influência teológica, é valendo-se da compreensão de

Calvino do salário como um dom de Deus, uma vez que corresponde ao significado

Page 59: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

59

espiritual, enquanto fruto do trabalho humano (BIÉLER, 1970, p. 54), que Kuyper

enfatizou a necessidade de justos salários. Ademais, sua preocupação é em especial

com os pobres, mesmo conscientes dos diferentes tipos de pobreza, o ponto das leis

trabalhistas sinaliza o desejo de contemplar o trabalhador que não consegue

encontrar um emprego permanente e um salário digno.

A compreensão kuyperiana da justiça é um tema de fundamental importância

para identificar como acontece a intersecção entre a esfera social e do Estado.

A insistência neocalvinista é que cada um dos tipos de corpo social

mencionados, merece reconhecimento em seus próprios termos, e

que cada um contém seu próprio domínio único de direitos, deveres e

autoridades – a sua própria “esfera de justiça”, para usar a frase de

Michael Walzer, ou sua própria “esfera de soberania”, para invocar

Abraham Kuyper (CHAPLIN, 2004, p. 3 apud CARVALHO, 2006, p.

205).

Há uma tendência de Kuyper que procura analisar com objetividade o problema

da pobreza, e destacar a importância de uma práxis, que procura iluminá-la com a

explicação das palavras contidas no evangelho:

Ainda vale dizer que Jesus não trabalha somente através da

motivação moral. Ele prega através de sua vida pessoal. Quando ricos

e pobres estão em oposição, um ao outro, Ele nunca se posiciona ao

lado do mais rico, mas ele sempre fica com os mais pobres. Ele

nasceu em um estábulo; e enquanto as raposas têm suas tocas e as

aves têm seus ninhos, o Filho do Homem não tem onde reclinar a

cabeça. Seus apóstolos recebem a instrução de não acumular

dinheiro. Eles são enviados sem bolsa e sem alimento. Apenas um

entre os apóstolos carregava uma bolsa, que é Judas, o homem

terrível que, justamente se desviou por causa da avareza, vendeu sua

alma ao diabo. Poderoso é o traço de compaixão, que é impresso em

todas as páginas do Evangelho, onde Jesus entra em contato com o

sofrimento e com os oprimidos. Ele não empurrou de lado as massas

ignorantes, mas os chamou a ele. Ele não iria extinguir o pavio que

ainda fumegava. Qualquer um que estava doente foi curado por Ele.

Ele não detém sua mão de tocar a carne leprosa. Quando a multidão

está faminta, mesmo que ainda não tenha fome do pão da vida, Ele

parte o pão em vários pedaços e lhes dá uma abundância de

preciosos peixes. Assim que, em Jesus, uma prática de viver a vida

se junta à teoria (KUYPER, 1950, p. 27-28 apud DULCI, 2014, p. 231-

232).

Page 60: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

60

Sobre esse aspecto do pensamento de Kuyper, pode-se identificar que ele não

se manifestou favorável a uma luta de classes. Em sua afirmação, Jesus não odiou

os ricos como tal; no entanto, ele se opôs radicalmente contra a opressão aos pobres

e condena o desejo ambicioso pelo dinheiro e por quaisquer posses. Todavia,

Goudzwaard (1986, p. 30) percebe que Kuyper acrescenta o aspecto de que a

posição dos ricos era reforçada por “um erro na fundação da própria sociedade”.

Portanto, o problema não é de falta de caridade ou mesmo filantropia, mas de uma

questão social muito mais complexa.

Estas análises partem do labor de um teólogo que, definitivamente, reconhece

as condições de trabalho, o posicionamento – ou a ausência – da igreja e da

sociedade diante das condições de vida a que estavam sujeitos os pobres e os

trabalhadores. Tais elementos constituem uma base que torna a perspectiva

kuyperiana sensível às mudanças estruturais de seu tempo. O outro ponto então é

captar a compreensão de Kuyper sobre a ação da própria Igreja.

2.5 A Igreja

Embora possua uma trajetória pública, na condição de político e estadista,

Kuyper também foi teólogo e pastor. A igreja tem uma grande importância em sua

obra. Mesmo essa pesquisa buscando compreender a perspectiva ética e política e

sua relação com a sociedade, faz-se necessário destacar as dimensões do

pensamento kuyperiano sobre a igreja. Inegavelmente, esse tópico não se propõe a

apresentar sua eclesiologia com a rigorosidade que esta temática demanda em

função da amplitude de sua obra, mas, não se pode deixar de mencionar o fato que

a igreja que pastoreou em Beesd, era uma comunidade campesina, o que o fez

dedicar-se a um exercício pastoral repleto de sensibilidade e preocupação com os

problemas sociais enfrentados pelas pessoas daquele território. Com isso, foi um

momento de ressignificar aspectos de sua teologia, ao passo que constituía os

fundamentos da perspectiva kuyperiana, que traz fortes relações com seu múltiplo

campo de atuação. De acordo com Bratt (2013, p. 170, tradução nossa).

Os primeiros sermões de Kuyper sobre a igreja em Beesd

estabelecem a base para o seu futuro desenvolvimento. À igreja, ele

disse: é 1-) uma comunidade livre dos fiéis; 2-) voluntariamente

Page 61: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

61

reunidos por lealdade ao Cristo; 3-) De corações inspirados pela ação

do Espírito Santo; 4-) que realizou obras de justiça no mundo; 5-)

semeando as sementes do reino de Deus; 6-) que constituiu o ensino

essencial e distintivo de Jesus.

Para Kuyper, há o corpo místico de Cristo, mas também uma “igreja visível”,

justamente porque, partindo do texto bíblico do evangelho de Mateus 16.18, em que

é dito por Jesus que “sobre esta pedra, eu construirei a minha igreja”, Kuyper (2017b,

p. 132) interpreta que o corpo de Cristo não pode permanecer escondido, mas deve

ser manifestado no mundo e florescer, não apenas do outro lado da sepultura, e sim,

no tempo presente. Se assim fosse, não haveria nenhuma igreja na terra:

Mas se é certo, como tentamos demonstrar que o corpo de Cristo

como tal poderia ter existido sem se manifestar na terra como uma

igreja visível, e se devemos admitir que a manifestação desse corpo

em uma igreja visível vem com enormes e sérias dificuldades, então

não queremos andar sobre gelo fino ao discutir a igreja, mas é

necessário deixar claro se Jesus instituiu ou não na tal igreja visível.

Esta questão depende inteiramente do que Jesus decidiu [...], Igreja

só pode ser aquilo que dá a forma terrena apropriada ao corpo místico

de Cristo, e porque ninguém além do cabeça daquele corpo tem

qualquer poder sobre esse corpo, que está além de qualquer

habilidade humana para revelar o poder que está nas mãos de Cristo

(KUYPER, 2017b, p. 135, tradução nossa).

Há um aspecto eclesiológico no qual o pensamento teológico de Kuyper é

erguido e que estabelece uma linha de ação diretamente articulada com uma teologia

prática. A sistematização das temáticas feitas por ele – conforme supracitados nos

tópicos anteriormente abordados – estão em conexão com a sua biografia.

Segundo Bartholomew (2017, p. 138), James Bratt identifica três etapas da

trajetória teológica de Kuyper sobre a igreja: a primeira refere-se ao período de seus

estudos de graduação em Leiden até seu pastorado em Amsterdã, onde Kuyper

desenvolveu uma teologia da igreja, movendo-se de uma ênfase na espiritualidade

interior para uma afirmação da autenticidade do Calvinismo; a segunda, a partir de

1875 quando ele enfatizou a soteriologia e a eclesiologia, e deu enfoque às doutrinas

da igreja; e, na terceira etapa, Kuyper concentrou-se em produzir sobre o calvinismo

e sua relação com a cultura, muito mais do que na igreja. Assim:

Como teólogo, Kuyper começou com a igreja e concluiu com a cultura,

com o calvinismo sempre articulando os dois. Não se deve esquecer

Page 62: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

62

que a eclesiologia de Kuyper está dentro de sua teologia mais ampla,

que foi fortemente trinitária e centrada em Deus, focada na redenção

em Cristo, enfatizando a atuação pessoal e a renovação cósmica ou

palingênesis, e celebrou o reinado de Cristo (BARTHOLOMEW, 2017,

p. 138, tradução nossa).

É possível ainda apresentar Kuyper como um “teólogo da cultura”, pois,

conforme Bratt (2013, p. 187), Kuyper é muito mais conhecido nos círculos de língua

inglesa por sua teologia de cultura. Até porque, destacou de forma contundente a

ênfase sobre a doutrina da criação e tendo como ponto de partida ponto em sua

produção e reflexão teológica. Nisto, como visto no capítulo anterior, ele valorizou a

temática do “mandato cultural”, partindo do texto bíblico de Gênesis 1:28, que trata

justamente das ordenanças divinas de “frutificar e multiplicar”, sendo uma ordem

cultural à humanidade, que deve desenvolver o potencial dotado na criação como um

serviço prestado a Deus. A partir disso, e diante dos desafios postos em seu contexto,

Kuyper elabora e qualifica o engajamento cultural enquanto uma prioridade aos seus

companheiros e seguidores. E, evidentemente, ele implanta tais esforços na esteira

de duas grandes ideias caras à perspectiva kuyperiana, a saber: a doutrina da graça

comum e a cosmovisão cristã.

Considerando o recorte desta pesquisa, que busca compreender o aspecto

ético-político, verifica-se que, a análise na trajetória teológica de Kuyper a partir dos

seus escritos torna possível verificar suas concepções eclesiais articuladas com

elementos cristológicos e soteriológicos, que promovem o envolvimento do cristão na

cultura. Aqui, a doutrina da graça comum e do mandato cultural cumulados na teologia

de Abraham Kuyper tem extrema importância quando abordam problemas

intimamente relacionados à vida humana, visto que, em resposta à problemática dos

efeitos do pecado, a doutrina da graça comum sugere que Deus universalmente

concede graça e, simultaneamente, mantém sua obra, que floresce na igreja de

Cristo, mas também na cultura, onde se manifesta a sua beleza, bondade e justiça

em tudo que os seres humanos fazem – incluindo a formação da cultura.

Com isso, no pensamento kuyperiano, mesmo sabendo que os seres humanos

não possuem poder salvífico para redimir os efeitos da queda que afetam a natureza

humana – cabendo somente ao Cristo restaurá-la, é sabido e publicizado por esta

tradição a corresponsabilidade da igreja, que é promotora do seu reino.

Page 63: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

63

2.6 O Pluralismo Kuyperiano

Enfrentando o capitalismo explorador e o estatismo arrogante,

a visão de pluralismo de Kuyper ainda deve inspirar os cristãos de

hoje23.

Assim como o calvinismo inspirou movimentos democratizantes no século XVII

(BIÉLER, 1999), o neocalvinismo holandês fez o mesmo na transição do século XIX

para o XX sob a liderança de Kuyper. Dos muitos desdobramentos desse movimento

multifacetado, uma das ações mais expressivas foi a de estabelecer na sociedade

holandesa aspectos pluralistas que permeiam na esfera do Estado, da educação, da

igreja e oferece diretrizes para as relações de trabalho, entre outros feitos. Nestas

esferas existe uma diversidade na execução dos serviços ofertados, que – como visto

anteriormente no tópico sobre a educação – é representado por “comunidades

confessionais” (religiosas e seculares) do país, que são integrados em um sistema

público supervisionado e subsidiados pelo Estado. Movimentos democratas cristãos

de inspiração católica promoveram sistemas paralelos em outras partes da Europa.

Como observa Chaplin (2019, online)

Tais arranjos propiciaram não apenas liberdades negativas para

adeptos individuais a diversas visões de mundo (a versão liberal

clássica da liberdade religiosa), mas também liberdades positivas

para diversas associações baseadas na visão de mundo. O objetivo

era trabalhar para o tipo de espaço público dentro das democracias

constitucionais que facilitava (em vez de frustrar) a representação

daquilo que Charles Taylor, em nossos tempos, chamou de

“diversidade profunda”.

Conforme Bartholomew (2017, p. 129), o próprio conceito de soberania das

esferas promove o pluralismo, pois, se uma religião ou uma nação quer que seus

cidadãos tenham a liberdade de exercitar sua fé em outros países, o Estado deve

garantir o mesmo direito aos grupos minoritários e, portanto, às religiões em sua terra

natal. Partindo dessa afirmativa, a tradição kuyperiana propõe um modelo que permite

às religiões e fés chegarem em outros territórios e também transitarem por todas as

esferas da vida, ao passo que possibilita a mesma liberdade para outros grupos,

23 CHAPLIN (2013) In: The Point Of Kuyperian Pluralism, uma publicação da CARDUS: www.cardus.ca e disponível em português em: https://tuporem.org.br/o-argumento-do-pluralismo-kuyperiano/ - acesso em 12 de fevereiro de 2019, às 16h14.

Page 64: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

64

incluindo os humanistas seculares – que, convém mencionar – eram os adversários

políticos de Kuyper. Com isso, é assegurado que não haja o domínio coercitivo de um

grupo religioso sobre outro. Assim:

Paridade, não privilégio. Dificilmente um slogan eleitoral da campanha

eleitoral, mas, em poucas palavras, o objetivo estratégico da visão de

“pluralismo” de Abraham Kuyper. Os cristãos não devem buscar uma

posição de privilégio político ou legal nas praças públicas de suas

nações religiosas e culturalmente diversas, mas de paridade. O

objetivo é desfrutar de direitos iguais ao lado de outras “comunidades

confessionais” dentro de uma democracia constitucional marcada por

ampla liberdade de expressão, representação justa e diversidade de

vozes. Assim, no auge da luta holandesa do século XIX pelo

tratamento igualitário para as escolas cristãs, Kuyper afirmou que

“nosso objetivo incessante deveria ser exigir justiça para todos, justiça

para toda expressão vital” (CHAPLIN, 2019, online).

Chaplin (2019, online) menciona Bratt (2013, p. 11) que, na introdução de sua

obra, diz:

Talvez o maior significado de Kuyper para o nosso próprio mundo

fraturado religiosa e culturalmente seja a maneira que ele propôs para

os crentes religiosos levarem o peso total de suas convicções à vida

pública enquanto respeitam os direitos dos outros em uma sociedade

pluralista sob um governo constitucional.

Dessa forma, a perspectiva de Abraham Kuyper apresenta uma contribuição

para a tradição cristã quando, no século XIX, já promove a defesa do pluralismo.

Conforme Chaplin (2019), Kuyper concedeu uma exclusiva ação que atinge de forma

simultânea três objetivos: o compromisso com o pluralismo dentro de uma teoria

social e política abrangente baseada no cristianismo bíblico; o lançamento de um

movimento político confessional engajado; e o uso de uma plataforma que estabelece

um “chão comum” até mesmo aos oponentes, que podem contribuir para o bem

comum de sua nação. Nas palavras de Chaplin (2019), “Por mais duramente que

avaliemos as falhas de Kuyper – e Bratt mostra que havia muitas – essa foi uma

conquista impressionante”.

Abraham Kuyper possui um episódio controverso em relação ao apartheid na

África do Sul. Seria necessário dissertar sobre o contexto do colonialismo holandês,

britânico e francês ao povo sul-africano, bem como apresentar a Guerra dos Bôeres

e seus desdobramentos sociopolíticos. Todavia, este fenômeno, embora careça de

Page 65: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

65

uma crítica pertinente, não é possível de fazê-la no escopo dessa pesquisa. Mesmo

sem adentrar no debate de forma detalhada, entende-se que se trata do ponto mais

complexo de sua história, ainda que suas ideias tenham sido acolhidas por grupos

que de fato se opõem ao apartheid (BRATT, 2013, p. 296). Os neocalvinistas

holandeses foram vozes de denúncia no contexto holandês contra as práticas do

Apartheid após 1948, não havendo entre estes, nenhum apoio que legitimasse o

racismo. Para maiores informações dessa passagem que envolve Kuyper e o

neocalvinismo, mas não deixa de ser mencionada e criticada por seus próprios

teóricos, é possível encontrar referências nas produções de Bratt (2013, p. 409);

Bartholomew (2017, p. 88); Goudzwaard (1986, p. 88); Baskwell (2009, p. 1278) e

Naude (2015, p. 162). Foi encontrada ainda a tese de Manavhela (2009), com o tema

An Analysis of the Theological Justification of Apartheid in South Africa: A Reformed

Theological Perspective da Vrij de Amsterdã.

Por outro prisma, é inegável que – como visto até o presente momento desta

pesquisa – o pensamento de Abraham Kuyper, bem como toda a intencionalidade

contida no escopo da tradição neocalvinista não possuem somente um discurso

metateórico, mas apresentam materialidade, quando tratam de articular o aspecto da

pluralidade com as demais esferas da vida. Inclusive, esses aspectos já apontam os

desafios da aplicabilidade dessa perspectiva no contexto brasileiro. Conforme sinaliza

Dulci (2018, p. 103)

As diferentes capacidades, inclinações e necessidades da natureza

humana precisam encontrar diferentes riquezas em uma pluralidade

de expressões sociais. Foi precisamente contra qualquer tipo de

uniformização mesmificante que Kuyper formulou o princípio da

soberania das esferas. Em uma postura muitíssimo necessária para a

prática política brasileira, Kuyper formulou o princípio dentro de um

contexto específico que o fez avançar. Ele opôs esfera de soberania

tanto contra a ‘esfera popular’ do individualismo liberal, que reduziu a

autoridade social e política às vontades individuais agregadas,

[quanto] contra à ‘soberania do Estado’ do autoritarismo conservador

e do socialismo centralizador, que fez de toda a autoridade social uma

concessão do Estado.

Sendo assim, Kuyper fornece princípios de um pluralismo, na qual a

participação e responsabilidade civil são deveres concedidos por Deus como uma

forma de realização por meio das múltiplas ordenanças da criação. De acordo com

Dulci (2018, p. 102), Chaplin define o pluralismo kuyperiano enquanto “pluralismo

Page 66: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

66

estrutural”, que dialoga com instituições plurais, tais como a igreja, escola,

universidades, sindicatos entre outros setores da sociedade civil, e, o “pluralismo

contextual”, que trata de reconhecer as especificidades contextuais de cada cultura,

que expressam a multiforme graça e beleza de Deus.

Considerações intermediárias

Diante do conteúdo apresentado neste segundo capítulo, compreende-se que a

tarefa da teologia de Kuyper almeja apropriar a igreja de um debate da qual se

preocupa em responder questões vinculadas às demandas da sociedade. Verifica-se

até aqui, que a trajetória do pensamento kuyperiano concentra, inegavelmente, uma

teologia propositiva, onde sua elaboração não somente critica aspectos de um

sistema vigente – no caso de seu tempo, a questão da secularização nas esferas que

se projetam engendrar autônomas por meio das revoluções – mas, e, especialmente,

oferece uma alternativa societária planificada num conjunto de elementos teórico-

metodológicos e ético-políticos, materializados na conjuntura da Holanda do século

XIX.

Por consequência, há uma íntima relação entre a teologia de Kuyper e uma

consistente filosofia política, que vincula a participação da igreja e dos cristãos numa

intencionalidade em integrar a vida vocacional, profissional e diaconal entre as

diferentes esferas de soberania. Kuyper aponta uma compreensão estritamente

evangélica acerca da questão social e dos pobres, onde dedica uma crítica contra a

opressão, as relações de trabalho e as estruturas econômicas injustas. Por isso,

sinaliza para uma perspectiva que desafia o cristão a promover uma articulação entre

seu chamado, vocação e vida missional. Disto, o ethos kuyperiano, parte da doutrina

do mandato cultural e da graça comum e apresenta um horizonte de “bem viver”,

baseado no próprio relato da criação, em Gênesis, que possibilita desenvolver a

produção e reprodução da vida familiar e comunitária, da qual envolvem o culto, a

cultura e o cultivo, frutificados no relacionamento que ama a Deus e, igualmente, o

próximo.

Do ponto de vista social, o pensamento de Kuyper não é compatível no padrão

que compreende os espectros políticos entre esquerda e direita. Como visto neste

capítulo, há críticas igualmente contundentes ao capitalismo e socialismo. Tal análise

Page 67: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

67

sobre essas ideologias acompanha a relação entre a soberania das esferas, na qual

Kuyper sugere aos cristãos o empenho para promover o bem, e, ao assim fazerem,

contribuem para a dinâmica dessas esferas. Disto, identifica-se que Kuyper não está

alinhado às utopias e o desejo de uma nova ordem societária a partir destas

ideologias, seja ela conservadora ou progressista, mas, endossa a crença de que o

mundo e a sociedade não são lançados à sua própria sorte ou aos processos

históricos. Assim, crê que Deus intervém na realidade temporal, inclusive na

economia, na qual se podem restabelecer as justas relações humanas, que são fruto

da relação do ser humano com Deus, e, consequentemente, com o próximo. Logo,

auxiliar na reestruturação da esfera econômica, demanda fundamentar a própria

história na crença bíblica que aponta para a escatologia da vitória final do Cristo

redentor, relatada no texto como o de Apocalipse. Portanto, a aplicabilidade deste

pensamento vem em diálogo com a tradição cristã e é materializado nas ações que

moldam a cultura humana.

Além disso, como observa Dulci (2019, p. 193), além da Encíclica Papal Rerum

Novarum, promulgada pelo papa Leão XIII em maio de 1891, é sediado pelos

neocalvinistas holandeses no mesmo ano, o 1º Congresso Social Cristão. Trata-se de

propostas e alternativas aos problemas socioeconômicos do século 20, que

reafirmam o compromisso de tal tradição, respondendo à pergunta de que a teologia

kuyperiana relaciona a fé e os problemas sociais.

Isto posto, foi abordado neste capítulo a noção de que o aspecto ético e político

é central para Kuyper, sendo respondido em seu entendimento acerca da sociedade

civil, no posicionamento que valoriza o envolvimento do cristão com a cultura, do

compromisso com a ciência, a universidade e as práticas democráticas. Para Kuyper,

a participação do cristão na sociedade civil é um dever concedido por Deus como

mais uma forma de expressar louvor às ordenanças divinas por meio da justiça,

bondade e criatividades exercidas. Para tanto, deve-se mencionar que Kuyper

defende um espaço pluralista em que as múltiplas vozes possam ser ouvidas, mesmo

baseando-se na narrativa cristã e sua cosmovisão para a sociedade. Por esta razão,

e na defesa intransigente contra a “uniformidade da modernidade”, Kuyper recorre ao

tema da criação e a diversidade que nela existe. Assim, torna possível realizar o

cumprimento às leis criacionais que promovem a pluralidade cultural, ainda que isso

encontre expressão no pluralismo religioso, mas não se esgote nele. Ademais, o autor

Page 68: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

68

entende que qualquer plano, meta ou finalidade dos indivíduos ou ideologias vigentes

possui uma raiz religiosa (KUYPER, 2003, p. 57; DOOYEWEERD, 2010, p. 50;

SMITH, 2018, p. 39).

CAPÍTULO 3

A RECEPÇÃO DO NEOCALVINISMO HOLANDÊS NO

BRASIL: TRADUÇÃO DAS OBRAS E APRECIAÇÃO

DO PENSAMENTO KUYPERIANO

Introdução

O primeiro esforço para compreender o pensamento kuyperiano e seu

desdobramento no Brasil pode ser apresentado a partir do processo de publicações

e traduções de autores e instituições que acolhem essa perspectiva. Verifica-se que

os títulos iniciais de uma bibliografia básica do neocalvinismo em português têm

leituras de conteúdo introdutório, sem a densidade filosófica e teológica requerida por

esta tradição. Embora a maior parte de publicações de uma filosofia calvinística esteja

vinculada ao inglês ou holandês, nota-se que o processo de tradução vem sendo

dinâmico e progressivo ao longo dos anos, o que sinaliza um aumento de um público

interessado nessa temática.

De semelhante modo, nota-se um empenho para seguir em diálogos com

autores internacionais que, na contemporaneidade, seguem a perspectiva kuyperiana

em múltiplas áreas do conhecimento, como a filosofia, teologia, ética, ciências exatas,

artes, educação e ciência política.

Por conseguinte, almeja-se com isso identificar se a intencionalidade das

instituições brasileiras envolvidas com a perspectiva kuyperiana sinalizam alguma

relação com uma práxis que busca influenciar, partindo de uma fé relevante diante

dos enfrentamentos da esfera pública.

Page 69: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

69

3.1 A trajetória das obras neocalvinistas no contexto

brasileiro: a concepção de traduções e publicações

Como ponto de partida, a obra Calvinismo de Abraham Kuyper (2003) –

conforme apresentado no primeiro capítulo dessa dissertação – aborda o conteúdo

das palestras proferidas na Universidade e Seminário de Princeton, em 1898. Tal

evento, de grande relevância no cenário acadêmico estadunidense, ficou conhecido

como as Palestras Stone (Stone Lectures). Trata-se de seis palestras: O Calvinismo

como sistema de vida; Calvinismo e Religião; Calvinismo e Política; Calvinismo e

Ciência; Calvinismo e Arte e Calvinismo e o Futuro; onde Kuyper apresenta o

Calvinismo não apenas como um conjunto de dogmas, mas principalmente como a

proposta fundamental para uma compreensão mais ampla da vida. A primeira edição

traduzida para o português é publicada em 2002, pela editora Cultura Cristã, com

tradução do profº Dr. Ricardo Gouveia e Paulo Arantes. Esse título é o fio condutor

de todo o movimento neocalvinista e da filosofia reformacional e tece o mesmo

caminho no Brasil.

Em seguida, em português, há a trilogia de Francis Schaeffer (1912-1984), a

saber: O Deus que Intervém, O Deus que se Revela, e A Morte da Razão. No primeiro,

há elementos de uma apologética inclinada ao pressuposicionalismo. No segundo,

uma apresentação de pressupostos filosófico-teológicos, derivados, em grande

maioria, do professor Cornelius Van Til. No terceiro, Schaeffer apresenta uma crítica

da cultura e do pensamento ocidental, que almeja complementar "O Deus que

Intervém". Francis A. Schaeffer foi um autor reconhecido no evangelicalismo do

século XX. Com títulos traduzidos para mais de 25 idiomas, além de junto à sua

companheira, Edith Schaeffer, terem fundado a L’Abri Fellowship, em 1955.

Contudo, e conforme a intencionalidade desta pesquisa, interessa-nos

compreender o percurso de seus livros no Brasil, de modo que Schaeffer é um

“intelectual orgânico” do pensamento de Herman Dooyeweerd, tal qual Antonio

Gramsci o foi para com a teoria marxiana.

Com a chegada de L’abri Brasil – que será abordado posteriormente – verifica-

se que A morte da Razão, publicada em 2002 pela Cultura Cristã, recebe uma nova

publicação em 2014 pela Editora Ultimato e ABU Editora. Nisto, é possível novamente

identificar a publicização de suas ideias, o que reforça a hipótese de seu crescimento

Page 70: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

70

bem como os diferentes interesses e até objetivos editoriais com o lançamento de

suas obras. Em A Morte da Razão, Schaeffer apresenta uma crítica ao hedonismo,

ao materialismo e ao niilismo que a afetam a ciência, a filosofia e as artes.

Dessa forma, é partindo da existência de um Deus eterno, pessoal e criador de

todas as coisas, que o cristianismo para o autor (2014, p. 100)

[...] não é apenas uma série vaga de experiências incomunicáveis,

baseadas em um “salto no escuro”, totalmente inverificável.

Tampouco deveriam a conversão (o início da vida cristã) e a

espiritualidade (seu crescimento) constituir saltos desse tipo. Ambas

relacionam-se firmemente com o Deus que existe e com o

conhecimento que Ele nos tem facultado - e ambas envolvem o

homem como um todo.

A partir disto, pode-se encontrar confluência com o próprio conceito de

“soberania das esferas”, amplamente circulado na tradição kuyperiana.

Outro título expressivo é Cosmovisão cristã e transformação: espiritualidade,

razão e ordem social, editado por Guilherme de Carvalho, Cláudio Leite e Maurício

Cunha, pode-se analisar que o ponto de partida é a filosofia social kuyperiana, que

estabelece um diálogo com a Teologia da Missão Integral. O destaque para essa obra

é o fato de ser composta estritamente por autores brasileiros. Trata-se de uma

coletânea de textos gerados no Primeiro Encontro de Cosmovisão Bíblica e

Transformação Integral que aconteceu em Curitiba, Paraná, em julho de 2005. Desse

encontro, é desencadeada a Rede Brasileira de Cosmovisão Cristã e Transformação

Integral. Com o prefácio do bispo anglicano, Dom Robinson Cavalcanti (2006, p. 12),

verifica-se de início, a intencionalidade de apresentar a herança do pensamento

reformado numa perspectiva social:

Vale lembrar o destaque dado aqui a uma figura exemplar de

pensador cristão engajado: o ex-primeiro ministro holandês Abraham

Kuyper, praticamente desconhecido entre nós. Diante de um

monopólio geopolítico e do oligopólio geoeconômico, com a ideia

única neoliberal, na presente ordem social globalizada, de história

fechada, é dever cristão pensar mudar a realidade, reabrir a história e

devolver a esperança, a partir da Providência e da visão de uma

escatologia, mas também do que e do como de nossa inserção na

história.

Ademais, a obra é de grande relevância para essa pesquisa, pois trata de

problematizar o evangelicalismo brasileiro e sua relação com o contexto latino-

Page 71: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

71

americano; e aborda nos textos, questões ligadas à ética, cosmovisão cristã; justiça

social e faz correlações entre a Teologia Política da Missão Integral e a filosofia social

reformacional; a ética do calvinismo holandês; experiências de transformação social

por uma perspectiva reformacional, uma crítica ao dualismo natureza\graça e a

influência do humanismo secular no pensamento social cristão. Lançado em 2006,

publicado pela Editora Ultimato. Desta obra em diante, é possível observar um

alinhamento desta editora por publicações de perspectiva kuyperiana.

Fé Cristã e Cultura Contemporânea: cosmovisão cristã, igreja local e

transformação social, organizada por Leonardo Ramos, Marcel Camargo e Rodolfo

Amorim é lançada em 2009 e representa a primeira coletânea do Brasil numa

perspectiva neocalvinista que oferece reflexões sobre fé e cultura. O conteúdo é fruto

do 1º Encontro da Rede Brasileira de Cosmovisão Cristã e Transformação Social

(RBCTS), na qual foi reunido e lançado pela Editora Ultimato no formato do livro

supracitado. Os textos discutem a relação entre a fé, a cultura, a política e as artes

sob o Senhorio de Cristo, alinhados com a proposta da filosofia reformacional. Então,

os autores desta edição mencionam com frequência nomes como Abraham Kuyper,

Herman Bavinck, Herman Dooyeweerd e Hans Rookmaaker.

Faz-se as devidas referências, justamente porque os organizadores têm

envolvimento com instituições e projetos que possuem um alinhamento com a

perspectiva kuyperiana, aspectos estes, que sinalizam e endossam a hipótese de que

há um projeto ético-político que vem sendo acolhido e desenvolvido no Brasil.

Assim, esta obra é de fundamental importância para a pesquisa, sendo basilar

na compreensão da perspectiva kuyperiana que emerge buscando elaborar respostas

e projetos, partindo de uma interpretação do conceito teológico do senhorio de Jesus

Cristo sob as esferas da vida, cabendo à igreja expressar em seu tempo essa

realidade.

A obra de Herman Dooyeweerd No crepúsculo do pensamento: estudos sobre

a pretensa autonomia do pensamento filosófico é a primeira deste autor a ser

traduzida para o português em 2010 pela editora Hagnos, sendo fruto de trabalho dos

membros de L’ABRI Brasil, Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim.

Conforme apresentado no capítulo primeiro, Dooyeweerd herda o pensamento

do reformador e seu compatriota, Abraham Kuyper, onde se torna professor de direito

na Universidade Livre de Amsterdã. Foi membro da Academia Holandesa de Ciências

Page 72: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

72

e presidente por longos anos da Sociedade Holandesa de Filosofia do Direito. Para

Carvalho (2006, p.190), como kuyperiano, Dooyeweerd esteve comprometido desde

o início com a renovação cultural de seu país, e utilizava da cosmovisão cristã para

suas produções. Assim como Kuyper, Dooyeweerd expressava confiança nas

influências transformadoras do cristianismo sob a égide reformada.

Disto, é traduzida outra obra Estado e Soberania: ensaios sobre Cristianismo e

Política, pela Vida Nova, onde o autor elabora uma filosofia articulada com um

movimento intelectual que apresenta um fruto antropológico à sua época: um

“cristianismo humanizado, mas não humanista”. Desta forma, vale lembrar que

Dooyeweerd (2014, p. 23) desenvolve um sistema filosófico cristão, conhecido por

“filosofia reformacional” ou “filosofia cosmonômica”, na qual, partindo do conceito

kuyperiano de “soberania das esferas”, articula aspectos teórico-metodológicos

acerca das instituições sociais e também do Estado. Sua “proposta de reforma para

o pensamento político é a aplicabilidade do próprio sistema filosófico”, conforme a

introdução da obra, apresentada por Leonardo Ramos e Lucas Freire.

De semelhante modo, a Editora Cultura Cristã, publicadora confessional e oficial

da Igreja Presbiteriana do Brasil, lança a obra Raízes da Cultura Ocidental: as

alternativas pagã, secular e cristã, também de Herman Dooyeweerd, no ano de 2015.

O livro contém oito capítulos, onde o autor apresenta sua compreensão sobre as

raízes da cultura ocidental; a dialética e antítese religiosa; o direito público e privado;

a tríade: criação, queda e redenção; o conceito de graça comum – como visto nos

capítulos anteriores deste estudo – categoria esta de grande relevância no

neocalvinismo, sobretudo em seu engajamento com a cultura, a soberania das

esferas; uma crítica ao historicismo; a relação entre fé e cultura; uma crítica ao

dualismo; o humanismo clássico; o redirecionamento romântico e a ascensão do

pensamento social. Além disso, trata de conceitos fundamentais da filosofia

reformacional, elaborados por Dooyeweerd, tais como: Antinomia; Antítese, que

segue Abraham Kuyper; Dialética; Encapse; Estrutura de Individualidade; Estrutura

Modal; Ideia Cosmonômica; Retrocipação; Síntese e Soberania das Esferas – alguns

destes, que pertinentes ao escopo desta pesquisa, foram abordados nos capítulos

anteriores – mas que apontam para a amplitude e complexidade do pensamento

neocalvinista. Aliás, isso leva a outra obra introdutória, publicada no ano de 2015 pela

mesma editora com o título Contornos da Filosofia Cristã, de Kalsbeek (2015), que

Page 73: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

73

apresenta uma introdução à filosofia reformada de Herman Dooyeweerd. Com isso, é

sinalizado que há um crescente interesse por publicações de autores neocalvinistas,

com o destaque de diferentes grupos editoriais.

Outro autor que encontra abertura no processo de traduções e publicações

numa perspectiva neocalvinista é Hans Rookmaaker. Mencionado no primeiro

capítulo como um pensador holandês que exerce um legado no campo das artes. O

autor possui uma trajetória acadêmica, na docência e como historiador da arte, onde

lecionou no Departamento de História da Arte na Universidade Livre de Amsterdam.

Rookmaaker correlaciona arte e fé cristã, segmento já apontado nesta pesquisa por

alguns de seus conterrâneos que identificaram a necessidade de uma ação cristã

integral, aplicada na igreja e na sociedade.

A vida, pensamento e obra de Hans Rookmaaker ainda é pouco conhecida no

Brasil. No entanto, nota-se um forte interesse em publicizar suas ideias. De suas

obras traduzidas para o português, encontram-se diferentes editoras: A arte não

precisa de justificativa, em 2010; A arte moderna e a morte de uma cultura, em

fevereiro de 2015; ambas pela Editora Ultimato. Há também uma biografia escrita pela

professora e historiadora da arte Laurel Gasgue, traduzida em novembro de 2012 por

esta mesma editora, com o tema: Rookmaaker: arte e mente cristã; e duas novas

publicações em 2018, O Dom Criativo e Filosofia e Estética, ambos os títulos lançados

pela Editora Monergismo. Outro aspecto relevante para a difusão e publicização do

pensamento de Hans Rookmaaker e a procura por suas obras no contexto brasileiro

foi a canção Rookmaaker, lançada em 2010 pela banda de Rock Alternativo

Palavrantiga. Convém mencionar os autores Guilherme de Carvalho e Rodolfo

Amorim – integrantes de L’ABRI Brasil – que possuem produções, artigos e palestras

sobre as temáticas de arte e fé cristã na perspectiva deste autor e estão diretamente

engajados com processo de tradução de suas obras no Brasil.

Acerca de obras que manifestam uma práxis kuyperiana a partir do serviço

diaconal, são encontrados os seguintes títulos: O Reino entre nós: transformação de

comunidades pelo evangelho integral, com autoria de Maurício Cunha e Beth Wood.

Cunha (2003) é fundador do Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral -

CADI, que possui uma coalizão de onze organizações atuantes em oito estados

brasileiros. É assessor da Aliança Evangélica Brasileira para o tema “Igreja e Políticas

Públicas” e é Conselheiro Nacional da Política Pública de Assistência Social, sendo

Page 74: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

74

um entre os organizadores do livro Cosmovisão Cristã e Transformação, conforme

supramencionado. Junto com a coautora, Beth Wood, assistente social canadense, a

obra lançada pela Editora Ultimato em 2003, aborda, a partir da cosmovisão cristã,

uma reflexão missional do reino de Deus e seu coração para com os pobres e

compartilha experiências da ação social realizada em comunidades afetadas pela

vulnerabilidade social e situação de risco. Posteriormente, O Reino de Deus e a

transformação social: fundamentos, princípios e metas é lançado em 2018 pela

editora Ultimato e contém 4 capítulos: 1-) Integralidade e missão transformadora; 2-)

Cosmovisão cristã: compaixão, justiça e transformação; 3-) Igreja e políticas públicas:

sinalizando o reino de Deus na esfera pública; 4-) Conceitos e ferramentas para o

serviço social e comunitário.

De semelhante modo, há o título Ortodoxia Integral: teoria e prática conectadas

na missão cristã. Trata-se de uma reflexão contextual diante dos desafios da igreja

contemporânea. Pedro Dulci problematiza a desconexão entre a teoria e prática, que

afeta inclusive o Brasil evangélico, inerte tantas vezes às injustiças e ao conjunto de

desigualdades sociais. Disto, critica o discurso dos movimentos de pêndulo, das

teologias meramente transcendentalistas, alienadas da realidade e autocentradas, e

tece considerações sobre a Teologia de Missão Integral e da própria história da

tradição neocalvinista na trajetória de Kuyper sobre os pobres, consoante com o que

fora apresentado no segundo capítulo desta dissertação sobre essa questão.

Diante disso, Dulci explora aspectos da integralidade da missão, dos desafios

de uma eclesiologia contextual, mas que parte de uma construção que se utiliza de

elementos da filosofia reformacional para apresentar propostas à conjuntura

brasileira. A obra é publicada em 2014 pela Sal Editora. Outrossim, Fé cristã e ação

política: a relevância pública da espiritualidade cristã é lançada pelo mesmo autor, em

setembro de 2018 e publicada pela Ultimato. A obra possibilita à pesquisa captar os

fundamentos da relação entre a teologia pública e a política, especialmente, partindo

do conceito da soberania das esferas, sendo uma categoria cabal na perspectiva

kuyperiana, conforme contemplado na exposição do segundo capítulo desta

dissertação. Ademais, essa obra é prefaciada por James K. A. Smith (2014; 2017;

2018), o que sinaliza a articulação do movimento neocalvinista com autores

internacionais. Também emerge como um título brasileiro que estuda a Teologia

Page 75: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

75

Pública a partir de um referencial teórico que preconiza o pensamento de Abraham

Kuyper, que permeia toda a produção do livro.

James K. A. Smith é um filósofo de tradição neocalvinista. Leciona no Calvin

College, onde também ocupa a cátedra Gary e Henrietta Byker de Teologia e

Cosmovisão Reformadas Aplicadas. O autor, que vem sendo um dos principais

contemporâneos da perspectiva kuyperiana, têm três obras traduzidas para o

português. São elas Cartas a um jovem calvinista: um convite à tradição reformada,

publicada em 2014 pela Editora Monergismo; Você é aquilo que ama: poder espiritual

do hábito; também da categoria espiritualidade, publicada em 2017; e, Desejando o

reino: culto, cosmovisão e formação cultural; publicadas em 2018, ambas pela Editora

Vida Nova. Convém mencionar a contribuição de Smith, que, por apresentar uma

ênfase na questão da liturgia e um diálogo com a catolicidade da igreja, já exerce

influência sobre projetos brasileiros, como será abordado no decorrer deste capítulo.

Em fevereiro de 2019, o título Reformai a vossa mente: a filosofia cristã de

Herman Dooyeweerd, tem autoria de Josué Reichow e foi publicado pela Editora

Monergismo. A obra traz reflexões no campo da teologia, filosofia e teoria social.

Entretanto, dada a condição de recém-lançada, não foi possível analisá-la. E para o

primeiro semestre desse mesmo ano, será publicada a tradução do livro Capitalism

and Progress, de Bob Goudzwaard, pela Editora Ultimato.

Dentre os estudos e pesquisas acadêmicas, foi possível encontrar as seguintes:

a dissertação de Rodomar Ramlow com o título: O Neocalvinismo Holandês e o

Movimento de Cosmovisão Cristã, em 2012; e sua tese de doutorado: Elementos para

uma Teologia Pública em Herman Bavinck, em 2016, ambas pela EST. Também a

dissertação de mestrado de Josué Reichow, com o título: A filosofia reformada de

Herman Dooyeweerd e suas condições de recepção no contexto brasileiro, publicada

em 2016 pela mesma universidade.

Pelo Centro de Pós-graduação Andrew Jumper, da Universidade Presbiteriana

Mackenzie, há a dissertação de Filipe Fontes, com o título: Estrutura x Direção:

Aproximações teóricas entre a Filosofia da Idéia Cosmonômica e os principais

paradigmas do estudo da mudança social no pensamento sociológico, de 2009. Em

2014, o artigo: Missão Integral ou Neocalvinismo: Em busca de uma visão mais ampla

da missão da igreja, publicado na Revista Fides Reformata, XIX, nº 1, de 2014, no

Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper.

Page 76: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

76

No Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG), a dissertação de mestrado de Juliana Bolzan Sebe Dias, com o título:

Interface entre Estado e Religião: uma abordagem a partir da concepção de Herman

Dooyeweerd e do pluralismo de princípios, defendida em 27 de fevereiro de 2019.

Há também no Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais da

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), a dissertação

de Tiago Rossi Marques, com o título: Abraham Kuyper entre as nações: diálogo e

antítese entre o Neo-calvinismo holandês e o Realismo Cristão nos Estudos

Internacionais, com a data de defesa para o dia 27 de março de 2019.

Dos artigos sobre Kuyper, neocalvinismo e kuyperianos, relacionados às

temáticas de Relações Internacionais e Economia Política Internacional e Teologia

Pública chinesa; seguem os títulos encontrados pela autoria de Tiago Rossi Marques:

Economia Política Reformacional: uma contribuição teórica kuyperiana para o campo

da economia política internacional, publicado na Revista Teologia Brasileira, v. 6, p.

10, em 2017; Diálogo & Antítese Nos Estudos Internacionais: Uma Releitura

Reformacional Do Realismo Clássico De Hans Morgenthau, sobre Herman

Dooyeweerd, publicado na Revista Teologia Brasileira, nº 46, em 2018; Indo a

Público: a teologia pública cristã reformada na emergente construção da ideia de uma

esfera pública e social não-governamental chinesa, que aborda o Calvinismo e

Kuyperianismo “chinês”; além dos textos Soberania das Esferas: por uma abordagem

político-social kuyperiana nos Estudos Internacionais, produzido para o departamento

do Programa de Pós-Graduação de Relações Internacionais da Pontifícia

Universidade Católica - PUC Minas; e Progresso & Desenvolvimento: uma

contribuição crítica e reformacional para os debates em torno das Teorias e

Estratégias de Desenvolvimento (TED).

Foi encontrado ainda o artigo sobre Herman Dooyeweerd, com o título:

Introdução ao pensamento jusfilosófico de herman dooyeweerd, de Gabriel Matos,

publicado na Tabulæ Revista de Philosophia, n º 20, de 2017.

Apesar do ponto central deste estudo almejar compreender o projeto ético-

político na perspectiva kuyperiana, entende-se que realizar um levantamento sobre

as obras publicadas e traduzidas para o português possibilita captar o que, de

maneira particular, forja e veicula nas instituições vigentes promotoras desse

Page 77: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

77

pensamento. A seguir, o capítulo apresenta as instituições localizadas, que dialogam

com essa proposta neocalvinista.

3.2 As Instituições brasileiras promotoras do pensamento

kuyperiano

O L’Abri Brasil

O primeiro L’abri (palavra de origem francesa que significa “abrigo”) foi fundado

em 1955 pelo casal Francis e Edith Schaeffer, quando abriram sua casa para acolher

estudantes e profissionais de diversas áreas e de diferentes nacionalidades que

buscavam respostas sobre a fé, Deus entre outras questões existenciais. Desde

então, foram fundadas comunidades L’abri na Inglaterra, Suécia, Estados Unidos,

Canadá, Coréia, Holanda – esta, devido à forte amizade entre Hans Rookmaaker e

Francis Schaeffer – e, no Brasil, a partir de 2008, sendo membros do L’Abri Fellowship

International.

O L’Abri Brasil se apresenta como um centro de estudos que integra a vida em

comunidade, a hospitalidade e a reflexão cristã. Seu propósito é “a demonstração da

realidade de Deus e a recuperação da riqueza da nossa humanidade, por meio de

Jesus Cristo. Tudo o que fazemos – hospitalidade, oração e ideias vivas, servem a

esse propósito”. Lá, são executadas as seguintes atividades: Retiros Temáticos

realizados aos finais de semana; Estudos temáticos, que levam o nome de “Termos

e nanotermos”, com duração de até cinco semanas; Uma escola de Teologia e Vida

Cristã, curso livre com um semestre de duração; e ciclos de palestras que ocorrem

durante o semestre; além de uma Conferência L’Abri, anual.

Dos autores envolvidos com o L’Abri Brasil, é mencionado para fins desta

pesquisa o percurso pastoral e acadêmico dos seguintes:

Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, que possui graduação em Teologia pela

Universidade Presbiteriana Mackenzie (2005) e mestrado (stricto sensu) em Ciências

da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2007), sob orientação do Dr.

Etienne A. Higuet. Estudos anteriores em Teologia (livre) pelo Seminário Batista do

Estado de Minas Gerais (1997), e um mestrado (livre) em Novo Testamento pela

Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2003), sob orientação do Dr. Russel

Page 78: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

78

Shedd. É fundador da Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares (AKET) e

membro fundador da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²). É pastor

na Igreja Esperança, em Belo Horizonte, Minas Gerais;

Rodolfo Amorim Carlos de Souza, que possui Mestrado (stricto sensu) em

Sociologia pela UFMG (2009), Graduação em Relações Internacionais pela Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais (2001), e Especialização (lato sensu) em

Elaboração e Gestão de Projetos Internacionais com Ênfase no Terceiro Setor (2004)

pela mesma instituição. Desenvolve, junto à Associação Kuyper para Estudos

Transdisciplinares (AKET) e L'Abri Brasil, projetos relacionados à organização de

eventos e publicação de textos, livros e tradução de obras com ênfase na perspectiva

kuyperiana, sob proposta interdisciplinar, visando sua introdução e articulação no

contexto cultural brasileiro. É co-autor do livro Cosmovisão Cristã e Transformação,

Organizador e co-autor do livro Fé Cristã e Cultura Contemporânea, ambos pela

Editora Ultimato, e cooperador de conteúdos na Associação Brasileira de Cristãos na

Ciência (ABC²). É tradutor de obras dedicadas ao tema de filosofia e a relação entre

fé e ciência, ou "SciFaith", para a língua portuguesa.

Assim, verifica-se que o L’abri Brasil bem como a trajetória de produção de suas

lideranças, tem direta ligação com a divulgação do pensamento, ideias e obras de

Kuyper e seus contemporâneos no país. Inclusive, outras instituições, conforme

segue, podem ser caracterizadas como desdobramentos dos projetos na qual

Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim estão envolvidos.

A Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares - AKET

A Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares é uma associação

científica sem fins lucrativos que se propõe a promover uma articulação entre a

transdisciplinaridade e questões acerca da vida humana em sua integralidade. Para

tanto, a AKET organiza grupos de estudo e palestras livres; presta assessoria às

escolas e organizações sociais confessionais e trabalha com a divulgação, produção

e tradução de livros e artigos em perspectiva kuyperiana. Nisto, são versados os

seguintes temas: Teologia e Teoria Social; Missão Cristã; Filosofia Reformacional e

Diálogos entre Religião e Ciência.

Page 79: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

79

A AKET é fruto de um grupo de estudos em Belo Horizonte, na qual,

comprometidos com conhecimento científico e a cosmovisão cristã, teve, inicialmente

um núcleo de reflexão (2001-2003), e em seguida, um centro de estudos, na

Fundação Esmeralda Campelo (2004-2005). Após isto, a Associação Kuyper foi

organizada juridicamente em Maio de 2006, tendo como primeiro presidente,

Guilherme de Carvalho.

Do presidente atual da organização, Leonardo César Souza Ramos, são

encontradas as seguintes informações: Leonardo Ramos é graduado em Relações

Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, mestrado

(stricto sensu) em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro e doutorado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro. É docente do Departamento de Relações Internacionais

da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e professor visitante da

Universidad Nacional de Rosario (UNR). Lidera, junto com o professor Javier Vadell,

o Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM). É membro da Associação

Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) e International Gramsci Society (IGS e

IGS Brasil). É coordenador da área temática de Economia Política Internacional -

ABRI (2015-2016; 2017-2019)24. Com isso, partindo dessas informações, é possível

identificar uma diversidade, na qual a AKET aponta para um diálogo crítico com outros

teóricos e diferentes áreas do saber. Dentre os projetos em andamento, sublinha-se

a iniciativa denominada Kuyper Hub, de uma sociedade de amigos que almeja

dialogar os saberes a partir da fé cristã, com o foco de promover engajamento na

cultura contemporânea.

A AKET tem um declarado posicionamento alinhado à perspectiva

reformacional, de articulação entre a vida cristã e acadêmica, inspirada diretamente

pela obra de Abraham Kuyper. Dela, verifica-se o empenho em trabalhar em prol da

aplicabilidade dessa tradição kuyperiana no contexto brasileiro, que tem buscado

dialogar com uma proposta de engajamento no campo universitário. Assim, desde

2005, tem incentivado debates e vem divulgando as ideias de Kuyper, envolvida nos

processos de publicação de livros como as coletâneas Cosmovisão Cristã e

Transformação e Fé Cristã e Cultura Contemporânea, conforme supramencionado.

24 Conforme informações coletadas no currículo lattes do autor, em 05 de março de 2019.

Page 80: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

80

Além disso, pode-se identificar sua cooperação com outras instituições, como as

mencionadas em seguida.

Associação Brasileira de Cristãos na Ciência – ABC²

Antes de apresentar as propostas desta associação, deve-se mencionar o

projeto Teste da Fé Brasil, uma iniciativa conjunta do Kuyper Hub, sediado em Belo

Horizonte, e o Test of Faith UK25, um projeto internacional lançado a partir do Faraday

Institute for Science and Religion, sediado no St Edmund’s College, na Universidade

de Cambridge. Os membros do projeto foram voluntários organizados em grupos

locais e redes de divulgação espalhadas pelo Brasil. Assim, em 2013, nota-se que foi

publicado O Teste da Fé: Os cientistas também creem, organizado por Ruth

Bancewicz, publicado pela Editora Ultimato, sinalizando uma primeira tentativa desse

grupo em implementar projetos com tal abordagem.

A Associação Brasileira de Cristãos na Ciência - ABC26, é uma das iniciativas

da Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares (AKET) e possui o apoio da

Templeton World Charity Foundation (TWCF). Nota-se que a associação busca

promover a comunicação e a integração entre a comunidade cristã e o campo

científico no contexto brasileiro. Fundada juridicamente em novembro de 2016, mas

desde 2014 percebem-se ações desenvolvidas para consolidação do projeto. Sua

missão, segundo consta na página oficial é operar como uma embaixada de sentido

entre o universo da fé cristã e o universo da ciência. Para tanto, almeja dialogar com

estes dois campos, considerando a liberdade e a soberania das respectivas esferas

sociais e as finalidades intrínsecas e próprias de cada esfera, bem como trabalhando

para a produção de conhecimento a partir de uma perspectiva cristã. Dentre as áreas

de interesse, são mencionadas a teologia pública, e a divulgação científica

contextualizada ao campo da fé e do transcendente.

Das publicações realizadas, encontra-se uma série intitulada Ciência e Fé

Cristã, na qual todos os livros, lançados pela Editora Ultimato, em parceria com a

25 Cf.: Test of Faith, UK. Disponível em: http://www.testoffaith.com/ - acesso em 05 de março de

2019. 26 Cf. Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, 2015. Disponível em: http://www.cristaosnaciencia.org.br - acesso em 06 de março de 2019, às 10h40.

Page 81: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

81

Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, tiveram o início de lançamento a partir

de 2016, quando publicou os primeiros volumes: A Ciência de Deus – Uma Introdução

à Teologia Científica, de Alister McGrath; Verdadeiros Cientistas, Fé Verdadeira, com

Francis Collins, Alister McGrath, John Houghton, entre outros; e, Fé, Esperança e

Tecnologia – Ciência e Fé Cristã em uma Cultura Tecnológica, de Egbert

Schuurman27. No mesmo ano, em setembro e outubro a série lançou outros 3 títulos:

Deus e Darwin – Pensamento evolutivo e teologia natural, de Alister McGrath; Mentes,

Cérebros, Almas e Deus – Uma conversa sobre fé, psicologia e neurociência, de

Malcolm Jeeves; e, O Mundo Perdido de Adão e Eva – O debate sobre a origem da

humanidade e a leitura de Gênesis, de John Walton, com a participação de N. T.

Wright. Em 2017, o debate acerca das relações entre o campo científico e a

espiritualidade cristã conta com o lançamento de três volumes: Os Territórios da

Ciência e da Religião, de Peter Harrison; e, Criação ou Evolução – Precisamos

Escolher?, de Denis Alexander; e, O Ajuste Fino do Universo – Em busca de Deus na

ciência e na teologia, de Alister McGrath, em setembro. Em maio de 2018, é lançado:

Filosofia da Tecnologia — Uma Introdução, por Carl Mitcham. E, em julho de 2018, a

série publica A Penúltima Curiosidade – como a ciência navega nas questões últimas

da existência.

Em março de 2017, foi lançado o documentário Diálogo entre fé cristã e ciência

no Brasil. O vídeo é fruto das ações desenvolvidas pela associação com o objetivo de

articular estes dois campos. Nas palavras de Guilherme de Carvalho, na ocasião,

vice-presidente da ABC²:

O interesse não é criar uma ciência gospel. Não é criar uma ciência

própria de um grupo religioso. Não se trata disso. Não se trata de

engolir o campo científico, muito menos de subverter a fé para se

adaptar. Se trata de uma conversa e esta conversa reconhece os

limites, as diferenças e a soberania e autonomia de cada campo

(ABC², 2015, online).

27 Egbert Schuurman (1937-…), é um contemporâneo do pensamento de Abraham Kuyper e endossa

a presente pesquisa, a dinâmica da tradição neocalvinista ter cristãos envolvidos com outras áreas do conhecimento, como a ciência e a teologia pública. Formado em engenharia civil (Delft) e filosofia (Vrije), apresenta sua tese de doutorado: “Technology and the future: A philosophical challenge”. Lecionou enquanto professor emérito, filosofia em Delft, Eidenhoven e Wageningen. Atua como membro do parlamento holandês (RPF, ChristianUnion). Fez parte do Broad DNA Comittee, Responsible Technology Project. Fundou e dirigiu o Prof. Dr. G. A. Lindelboom Institute de ética médica e o Institute for Cultural Ethics. Recebeu um doutorado honorário na África do Sul e o Prêmio Templeton de educador.

Page 82: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

82

Além do documentário, podem-se encontrar recursos nas áreas de ciências

exatas, ciências humanas, neurociência e teologia. Trata-se de vídeos com teólogos,

cientistas e pesquisadores das variadas áreas, compartilhando sobre experiências e

debatendo temas deste conjunto temário.

Na aba do site sobre da ABC² (2015) sobre recomendações de leitura, é possível

encontrar uma lista que configura um dado acerca do alinhamento teológico-filosófico

da associação. Além das publicações referenciadas acima, a recomendação sobre o

tema “SciFaith” indica como leituras básicas autores como: Alister McGrath; C.S.

Lewis e N.T. Wright, aspectos que mostram uma evidente articulação com a escola

de teologia britânica. Inclusive, no campo EAD (Educação à Distância), é possível

encontrar um curso promovido pela Associação Kuyper - AKET e a ABC² com o

seguinte tema: Das terras da rainha a serviço do Rei: O pensamento de C.S. Lewis,

John Stott, N.T. Wright e Alister McGrath.

Assim, são propósitos da ABC² (2015)

1-)Fé e Razão: Desenvolver e promover visões cristãs bíblicas sobre

a natureza, o escopo e as limitações da ciência, e sobre as interações

entre ciência e fé; Incentivar a investigação atenta e criteriosa de

eventuais implicações teológicas decorrentes de novos

conhecimentos revelados pelo avanço científico;

2-) Missionalidade: Encorajar cristãos engajados na atividade

científica a manter uma fé pessoal ativa e comprometida com a igreja

local e com a comunidade intelectual cristã, a aplicar sua fé no

conjunto de sua vida profissional, a responsabilizar-se pelas

implicações éticas, sociais e ambientais da ciência e da tecnologia, e

a comunicar o evangelho na comunidade científica;

3-) Contemplação: Estimular a contemplação da beleza e da glória de

Deus na Criação por meio da ciência e o cultivo da gratidão e da

oração no dia a dia da academia e do laboratório.

Sobre o item de número 4, Conhecimento Integral, que objetiva ajudar aos

cristãos que estudam ciência e lideranças eclesiásticas a integrarem sua fé e o estudo

científico, há os seguintes princípios:

Artigo 3° - A ABC² se alicerça sobre os seguintes princípios: I - o

reconhecimento da Bíblia como a Palavra de Deus, aceitando a sua

inspiração divina, confiabilidade e autoridade final em matéria de fé e

conduta; II - a crença no Deus triúno afirmado nos credos apostólico

e niceno; III - a crença que, ao criar e preservar o universo, Deus

Page 83: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

83

conferiu a ele ordem e inteligibilidade contingentes, as quais são

basilares para a investigação científica; IV - a responsabilidade de

encorajar rigorosa pesquisa científica e tecnológica e o uso da ciência

e tecnologia para o bem da humanidade e do meio-ambiente, e para

a glória de Deus; V - o comprometimento de entender e trabalhar

dentro dos limites do nosso conhecimento, buscando minimizar os

impactos adversos da nossa ciência e tecnologia.

Parágrafo 1º - Enquanto organização, a ABC² não toma posição

quando há desacordo honesto entre cristãos em uma questão. A

Associação se compromete a prover um fórum aberto no qual

controvérsias possam ser discutidas de maneira respeitosa e

esclarecedora. Diferenças legítimas de opinião entre cristãos que

estudaram tanto a Bíblia quanto a ciência são expressas dentro da

Associação em um contexto de amor cristão e preocupação com a

verdade. Assim, os associados devem procurar falar a verdade em

amor e em firme humildade, enquanto se mantêm abertos a outras

maneiras de pensar, sem rejeitar o conhecimento do passado.

Parágrafo 2º - Enquanto organização, a ABC² subscreve o Pacto de

Lausanne como uma expressão bíblica da fé cristã e da missão da

igreja.

Convém mencionar o parágrafo 2º destes princípios da ABC², que subscreve o

Pacto de Lausanne. É sabido que diante de novas perspectivas para o movimento

missionário no mundo, destaca-se o Congresso Mundial de Evangelização (Berlim,

1966), onde aconteceu a primeira grande reunião mundial de evangélicos no século

XX e estimulou a realização de congressos regionais de evangelização em diversos

continentes. Estes congressos contribuíram para o Congresso 1º Congresso

Internacional de Evangelização Mundial, que foi realizado em Lausanne, Suíça, de 16

a 24 de julho de 1974, e demonstra o desenvolvimento de uma teologia missionária

evangélica consolidada. Com o tema “Para que o Mundo ouça a Sua voz”, o

congresso busca reafirmar a vocação e decodificar os desafios da igreja, além de

pensar acerca dos recursos para a evangelização em todo mundo (PADILLA, 2014,

p.86). O Congresso de Lausanne é considerado pelos cristãos evangélicos uma das

reuniões de extrema importância para o movimento missionário mundial. Teve a

presença de cerca de 2500 participantes e 1000 observadores de 250 países e 135

denominações protestantes (PADILLA, 2014, p.15). Teólogos como Francis Schaeffer

- que dialoga com a perspectiva kuyperiana - bem como Samuel Escobar, René

Padilla, Robinson Cavalcanti e Orlando Costas tiveram participação no congresso

Page 84: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

84

(CALDAS, 2007, p.214). Samuel Escobar (2015, p.117), que participou do Movimento

de Lausanne, comenta:

Costas cria que publicar era uma maneira de levar a cabo um diálogo

ecumênico e global, que implicava em submeter as idéias de um ao

processo purificador da crítica e avaliação dos demais. Suas ideias

estavam se desenvolvendo dentro de um clima de confrontação,

debate e agitação. Nosso autor recordava: “mal tínhamos começado

a dar alguns passos em direção ao desenvolvimento de uma teologia

latino-americana e uma reflexão missiológica contextual que

começamos a sentir o fogo vindo da América do Norte, em particular

dos Estados Unidos. Como já era um dos que mais falava e escrevia

entre os teólogos relacionados com a Missão Latino-Americana em

San José, comecei a ser citado e mal citado... assim foi que decidi

pegar o touro pelos chifres e comecei a por em escrito algumas das

instituições missiológicas que vinha desenvolvendo”28.

O questionamento principal de Lausanne permeia a problemática de como

anunciar a Palavra de Deus num mundo repleto de injustiças e desigualdades sociais.

Com isso, as perspectivas teológicas procuraram responder a essas questões de

modo contextual, pensando inclusive acerca de uma visão integral da missão da igreja

(XAVIER, 2011, p.39). O evento também foi marcado pelos evangelicais, que

trilhavam por rumos diferentes dos fundamentalistas, e, afirmavam ter discordância

com os liberais, buscando reagir aos enfrentamentos conjunturais, além de,

simultaneamente, reafirmar a unidade cristã e a trajetória missionária da Igreja. O

movimento de Missão Integral exerceu influência no pensamento teológico latino-

americano. O documento final do congresso, conhecido como Pacto de Lausanne,

teve John Stott como relator e registrou a confessionalidade da igreja, resgatando a

eclesiologia protestante, além de apresentar um posicionamento radicalmente

contrário ao crescimento numérico e dicotômico, reafirmando à igreja da importância

entre articular a ortodoxia e a ortopraxia, num movimento de proclamação do

Evangelho, acompanhado de responsabilidade social (PADILLA, 2014, p.20).

Dessa forma, considerando o Art. 3, § 1º do Estatuto Social da Associação

Brasileira de Cristãos na Ciência supracitado, verifica-se outro apontamento: o

28 Cf.: Estatuto Social da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência. Disponível em: http://www.cristaosnaciencia.org.br/content/uploads/ABC2_Estatuto_FINAL.pdf - acesso em 6 de março de 2019, às 14h49.

Page 85: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

85

alinhamento da perspectiva de uma iniciativa como a ABC², que se empreende

kuyperiana com o Movimento de Lausanne.

Além disso, foram encontrados 40 grupos de estudos, distribuídos em 17

estados, na qual a ABC² objetiva gerar diálogos sobre temas que envolvem fé e

ciência, especialmente com o foco em ambientes acadêmicos e grupos de trabalho.

Dentre os grupos identificados, foi possível ter informações de um deles, conforme se

descreve a seguir, localizado em Belo Horizonte e que compartilha de sua dinâmica

para contribuir à presente pesquisa.

O Grupo de Estudos em Herman Dooyeweerd – UFMG

O Grupo de Estudos em Herman Dooyeweerd foi fundado em 2015, como uma

iniciativa da ABC² e com o objetivo de contribuir na compreensão da relação entre fé

e razão. Assim, no segundo semestre de 2017, o grupo passa a ser oficializado pela

Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (FDUFMG). É

coordenado pelo Prof. Dr. Giordano Bruno Soares Roberto, do Departamento de

Direito e Processo Civil e Comercial. Em 2018, conta com aproximadamente, 10

integrantes, ano em que foram analisadas as contribuições de Herman

Dooyeweerd na filosofia e no Direito. Neste mesmo ano, realizou dois eventos

públicos, sendo a palestra Diálogo entre Direito e Religião: desafios e perspectivas,

realizada em 24 de abril; e Religião, Política e Democracia em 03 de outubro; tanto

este como aquele, promovidos pela UFMG e a ABC². Aqui, evidencia-se a partir de

tais ações, que todo o processo de livros e grupos de estudo vem buscando diálogos

com a sociedade.

Além das obras do próprio Dooyeweerd e Kuyper, aparecem nas referências

bibliográficas para o grupo, indicações dos seguintes autores: Jonathan Chaplin, com

o livro Defining “Public Justice” in a Pluralistic Society: Probing a Key Neo-

Calvinist Insight e David T. Koyzis e Visões & Ilusões Políticas: uma análise e crítica

crista das ideologias contemporâneas, sendo ambos os autores do campo da ciência

política e referenciados na presente pesquisa como aqueles que se orientam pela

filosofia reformacional.

Sobre o Lecionário: um projeto de recursos litúrgicos

Page 86: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

86

Esse é um projeto que se propõe a oferecer recursos para as liturgias do

discipulado, na qual se busca fomentar a formação espiritual, contribuindo com

pessoas e igrejas para a prática devocional e cúltica, partindo de recursos utilizados

pela catolicidade, tais como o próprio lecionário, o saltério, o ofício diário entre outros.

Têm diversos participantes que publicam e traduzem há pouco mais de um ano. O

programa de maior expressão desse projeto, oferece uma coleção de 12 fascículos

(sendo 4 para cada ano do ciclo trienal), que conduzem a uma leitura orante de toda

a Bíblia ao longo do ciclo de 3 anos litúrgicos. Assim, esses fascículos compõem um

Ofício Diário para cada Salmo e, evidentemente, um Lecionário29. Sendo elementos

utilizados por muitos segmentos da tradição cristã para o uso devocional pessoal, em

grupos domésticos ou em comunidades de fé, aqui se encontra um dado relevante:

do interesse de grupos que se orientam por uma perspectiva kuyperiana em temas

como a catolicidade da igreja e a liturgia - aspectos estritamente negligenciados por

grande parte da tradição evangélica no Brasil, que têm posicionamentos

preconceituosos e iconoclastas diante de tais recursos.

É inegável que a obra de James K. A. Smith (2017, 2018) apresenta um

alinhamento teológico que conflui com o trabalho do Lecionário. Smith é um filósofo

de tradição neocalvinista e leciona no Calvin College, onde também ocupa a cátedra

Gary e Henrietta Byker de Teologia e Cosmovisão Reformadas Aplicadas. Para

Smith, o culto é o lócus do imaginário humano, sendo então, capaz de delinear

nossos amores, anseios e impulsos de maneira que nosso engajamento cultural tenha

os valores do reino de Deus como referencial. É justamente por tal motivação, que a

comunidade de fé e o culto devem ser o espaço central para a formação do

discipulado:

Ser humano é habitar algum encanto narrativo no mundo. O culto

cristão alimenta nossa imaginação com uma imagem bíblica de um

mundo que, nas palavras do poeta Gerard Manley Hopkins, está

“carregado da grandeza de Deus”.

O culto que nos restaurará é aquele que nos dá uma nova história. O

culto que renova é aquele que reconta nossa identidade num nível

inconsciente. Para fazer isso, o culto cristão precisa ser governado

pela história bíblica e nos convidar a entrar, levando-nos a incorporá-

29 Cf.: https://lecionario.com - Acesso em 9 de março de 2018, às 9h54.

Page 87: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

87

la. É essa dupla convicção que instrui a adoração cristã histórica e,

por isso, o resgate fiel dessa herança é uma dádiva para o futuro da

fé. Agora vejamos como a tradição litúrgica corporifica isso (SMITH,

2017, p. 131).

Sendo assim, verifica-se que há uma correlação entre a obra de Smith, que

busca oferecer os recursos litúrgicos bem como a corrente de formação espiritual para

o enriquecimento da tradição neocalvinista, ao passo que, o projeto do Lecionário, ao

explorar essas tradições, embora amparados inclusive na perspectiva kuyperiana,

buscam fornecer esses subsídios para reforma da tradição evangélica brasileira no

que se refere ao modo de acolher – e não recusar – a questão da liturgia por meio de

elementos como a Lectio divina e as práticas de oração, reflexão e contemplação,

exploradas pela catolicidade da igreja.

O Movimento Mosaico

Outro artefato cultural que têm influências sobre o tema da catolicidade e

unidade da igreja é o Movimento Mosaico. Num tempo onde as divergências da Igreja

eram mantidas em ambiente íntimo aos domésticos da fé, passou a ganhar grande

visibilidade com a internet e as redes sociais, tornando-se uma arena e (cyber)espaço

para a agressividade e ataques entre aqueles que têm divergências em preferências

teológicas. Como alternativa na contracorrente dessa onda que promove o

sectarismo, preconceito e intolerância cristã, é publicado o livro “Igreja Sinfônica: Um

Chamado Radical pela Unidade dos Cristãos”, e que tem como objetivo refletir acerca

de pontos que provocam rupturas na igreja. Escrito por Pedro Lucas Dulci, Carlos

Henrique de Paula, Guilherme de Carvalho, Guilherme Franco, Igor Miguel, Marcos

Almeida e Rafael Pijama, a coletânea, é uma reação de membros do Movimento

Mosaico, evangélicos de diferentes linhas doutrinárias, que buscam promover a

unidade da igreja. Para Igor Miguel (2016, p. 70):

Calvinistas podem aprender com a liturgia anglicana; batistas,

com a concepção de união mística com Cristo da tradição

calvinista; pentecostais podem vibrar com a ênfase de Lutero na

vitória expiatória de Cristo na cruz; luteranos podem manifestar

a piedade wesleyana; e anglicanos podem aprender com o

fervor pentecostal pela evangelização.

Page 88: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

88

O problema da unidade que afeta a igreja evangélica brasileira passa então a

ser uma pauta de teólogos e artistas, na qual muitos destes como Marcos Almeida,

Igor Miguel, Guilherme de Carvalho e Pedro Dulci estão diretamente envolvidos em

projetos culturais orientados por uma perspectiva kuyperiana, sendo possível

observar que a catolicidade é um tema promovido pelos neocalvinistas.

Ademais, foi possível encontrar outra iniciativa que, enquanto fruto do

Movimento Mosaico, busca diálogos sobre a questão das artes e a cultura. O Coletivo

Tangente é formado por uma comunidade de cristãos dispostos a refletirem e

produzirem arte, “entendendo-a como um ponto tangente, um ponto de contato entre

a fé cristã e a cultura”30. O coletivo, que teve início em 2018, tem membros de Goiás,

Alagoas, Minas Gerais e São Paulo. Discute temas como música, cinema, artes

visuais e espiritualidade, partindo de referenciais teóricos dos livros de Francis

Schaeffer e Hans Rookmaaker, sendo aqui um dado de engajamento estético-cultural

de pessoas que acolhem essa tradição, comprometidos nessas esferas.

O Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral - CADI

A esta pesquisa, interessa conhecer essa obra e buscar a trajetória do próprio

CADI enquanto um produto materializado da perspectiva kuyperiana no campo da

ética social. Por este prisma, é mantida a hipótese de que um projeto ético-político

permeia tais ações.

O Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral - CADI, é uma coalizão de

organizações cristãs que atuam na ação social, no campo da proteção à infância e

adolescência às famílias. A organização existe desde 1994 e seus projetos priorizam

o atendimento às comunidades em situação de vulnerabilidade e risco social31.

30 Cf.: Coletivo Tangente. Disponível em: https://medium.com/coletivotangente/manifesto-e4ae61e8aa39 - Acesso em 9 de março de 2019, às 11h50. 31 As expressões vulnerabilidade e risco social são conceitos presentes nos documentos decorrentes da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), bem como no cotidiano dos serviços socioassistenciais. Por meio destas significações, pode-se compreender e realizar análise situacional e executar ações pela manutenção da população num lugar de risco, além de se viabilizar estratégias de empoderamento dos sujeitos na construção de potencialidades para a produção e reprodução da vida. Dessa forma, é necessário aprofundar as terminologias que estão em consonância com a Política. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf - acesso em 08 de março de 2019, às 11h56.

Page 89: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

89

Trata-se de uma organização que partilha de uma cosmovisão cristã, na qual a

missão, valores e a metodologia de intervenção social realizada são orientadas pela

confessionalidade. Conforme consta na página oficial da organização32:

[...] entendemos que o desenvolvimento social é parte dos plenos

desígnios de Deus em sua ação redentora. O pobre é a razão de ser

da nossa Organização. Nosso discurso, posicionamento e ações

honram o pobre em suas lutas, anseios e em sua dignidade intrínseca

(CADI, 2015).

O CADI Brasil possui uma executiva nacional que realiza treinamento para

empreendedores sociais, fornece assessorias e formação para organizações

interessadas em implementar e executar projetos. Possui 10 unidades de intervenção

social, distribuídas em 8 estados brasileiros: Bahia, Ceará, Paraná, Pernambuco, Rio

de Janeiro, Santa Catarina e Rondônia. Em 2017, o CADI iniciou um processo de

internacionalização, expandindo as ações para as fronteiras da Ásia e da África.

Sobre a relação de Deus para com os pobres, Cunha (2003, p. 36) afirma:

Jesus destacou o fato de que o evangelho estava sendo proclamado

entre os pobres como uma das provas de que ele era o Cristo de Deus

(Lc. 7.18-22). Jesus estava se referindo à declaração do verdadeiro

jubileu de Deus, o “dia do Senhor”, que teve um lugar central em sua

unção (Lc 4.18). No Antigo Testamento o jubileu incluía a libertação

dos escravos e a devolução das terras aos pobres. A proclamação do

evangelho do reino de Deus é o cumprimento desse antigo ritual. Essa

proclamação consiste não apenas em palavras, mas, em ações de

verdadeira libertação dos pobres em todas as áreas da vida.

A tendência da igreja de limitar esta libertação a palavras e à salvação

das almas não tem apoio na Palavra de Deus. Não podemos cair na

armadilha da pregação de um evangelho sem poder para

transformação comunitária somente por medo de sermos rotulados

como associados a filosofias ou movimentos que têm falado de alguns

desses conceitos, porém desprezando a pessoa de Jesus Cristo. A

proclamação da redenção de todas as coisas não é opcional.

Assim, encontra-se a compreensão de que o coração de Deus ama os pobres.

Valendo-se de uma teologia bíblica, Cunha desafia os cristãos ao ato de amar e servir

aos pobres, não somente, mas trabalhar por uma transformação de suas vidas em

32 Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral. Disponível em: http://cadi.org.br/quem-somos/ - acesso em 08 de março de 2019, às 11h46.

Page 90: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

90

todas as áreas. Aqui, uma evidência de sua influência estritamente kuyperiana

(CUNHA, 2003, p. 47). É possível ainda endossar tal afirmação, quando diz:

O cristianismo como sistema total de vida e pensamento é o

fundamento da responsabilidade social da igreja. A fé cristã é uma

visão de mundo, e as Escrituras oferecem os elementos fundamentais

e fundantes para o discipulado das nações, tendo um escopo integral,

não dualista, a partir da revelação de Deus. Nesse sentido, a fé muito

mais do que uma experiência religiosa, subjetiva, individual e mística

(embora inclua tudo isso). É uma visão de mundo (CUNHA, 2018, p.

30).

Acerca da compreensão da Missio Dei e da integralidade que afeta a vida

vocacional e profissional, Cunha vale-se do conceito de “esferas de soberania”,

composto da perspectiva kuyperiana-dooyeweerdiana, pensando o senhorio de Cristo

sobre as diferentes dimensões da vida humana, conceito este que fornece uma leitura

da realidade constituída de uma motivação ontológica diante das ações de

“indivíduos, instituições e relações sociais, configurando então a cosmonomia”

(CARVALHO, 2006, p. 204). Logo:

a. esfera pística: a esfera da fé (do grego, pisthos, fé). Ela existe para

nutrir a fé. Nesta esfera está a igreja local, os seminários teológicos,

as agências missionárias para a propagação da fé;

b. Esfera ética: a esfera do casamento e da família, governada pelo

amor;

c. Esfera estética: a esfera da arte, governada pela beleza. Existe

para a expressão do Belo (o criador);

d. Esfera jurídica: a esfera do Estado, governada pela lei da justiça.

Aqui também estão todos os movimentos de pressão e os partidos;

e. Esfera lógica: a esfera do conhecimento, onde está a produção do

conhecimento científico e as universidades;

f. Esfera econômica - esta é a esfera do mercado, o domínio social

das empresas, da produção de riqueza para o bem comum (CUNHA,

2018, 38).

Ao considerar o aspecto da Missio Dei cumulado à perspectiva kuyperiana,

Cunha apresenta o reino de Deus como referencial da mensagem cristã e,

simultaneamente, uma práxis que tem como objeto de sua análise situacional, a

questão social que afeta os pobres. Pode ainda localizar essa intencionalidade,

quando o autor trata da relação entre a igreja e a política, onde busca ações que

sinalizem o reino de Deus na esfera pública, diz:

Page 91: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

91

Para o propósito de redenção de todas as coisas em Jesus, todas as

esferas estão sendo reconciliadas nele mesmo. Assim, a atuação

política na perspectiva cristã, admite essa atividade como ação em

determinada esfera da criação de Deus, que, por sua vez, tem

levantado homens e mulheres para cooperarem com ele na redenção

dessa dimensão da vida.

O trabalho de incidência política da igreja acontece a partir do que

chamamos de “recuperação da sua dimensão profética”. Entendemos

aqui o profético como a denúncia de injustiças, o inconformismo com

tudo o que fere o caráter e os plenos desígnios de Deus numa dada

sociedade. A recuperação dessa dimensão profética da igreja no

exercício de sua missão está relacionada com a busca da justiça,

entendida aqui como a participação de Deus na vida humana

(CUNHA, 2018, p. 92).

Verifica-se um movimento empenhado em apresentar uma expressão calvinista

da espiritualidade cristã que, para além de uma teologia, busca uma filosofia e um

sistema de profundo e amplo envolvimento com todas as dimensões da vida humana.

Tal como Kuyper, que buscou autenticar o pensamento de Calvino à sua época, nota-

se por meio das ações do CADI e também das reflexões e produções teológicas. Vale

retomar, como já mencionado no primeiro capítulo deste estudo, a responsabilidade

dos diáconos, de acordo com as Ordenanças eclesiásticas de 1541, na qual Calvino

buscou implantar os quatro ofícios de pastores, doutores, presbíteros e diáconos,

correspondentes às áreas de doutrina, educação, disciplina e ação social. Logo, as

lideranças eclesiásticas tinham a atribuição de servir aos pobres. Para ele, nas

funções diaconais, as ações compassivas e ministérios de misericórdia, que referiam-

se aos cuidados às pessoas em situação de vulnerabilidade e risco eram tarefas

atribuídas aos homens e mulheres (com base nos textos bíblicos de Atos 6.1-6; I Tm

3,8-13; 5,9-10; Ro 12.8; 16.1-2). Sendo assim, havia uma administração dos recursos

econômicos com o objetivo de prestar apoio aos pobres, doentes e aos imigrantes e

refugiados, garantindo um sistema público de segurança e serviços sociais e de

saúde (BIÉLER, 2002, p. 210). O diaconato de Genebra permitiu a criação de um

sistema que visava atender às pessoas em situação de rua e garantir o bem-estar

àquela cidade. A instituição que dá concretude a esse projeto foi o Hospital de

Genebra, liderada pelos diáconos, que forneceu acolhimento, abrigo, alimentação,

assistência médica, formação profissional e outros serviços para os cidadãos e

imigrantes pobres (ORTIZ, 2007, p. 5).

Page 92: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

92

Dulci sinaliza que:

Por tudo isso, não é sem motivo a pergunta do secretário para Diálogo

e Engajamento Social da CIEE, Vinoth Ramachandra: “foi Calvino o

primeiro teólogo da Libertação? Ele tem boa chance de ser

considerado como tal. Ele lutou persistentemente no Conselho da

cidade de Genebra pelos direitos dos refugiados pobres, persuadindo-

os a fornecer adequada proteção social para eles. Ele mesmo

experimentou muitas vezes o exílio, e forte privação e outras

indignidades, que deve tê-lo feito particularmente sensível à difícil

situação de refugiados e oprimidos (RAMACHANDRA, 2014, s/p apud

DULCI, 2014, p. 124).

Portanto, desde Genebra, a transformação social é uma marca cabal e um

elemento fundante da teologia calvinista. Nisto, a correlação entre doutrina,

educação, disciplina e o serviço por meio da ação social são ênfases presentes no

período da Reforma, com Kuyper na Holanda do final do século XIX e começo do XX,

e no grupo que busca diálogos com tais autores na conjuntura brasileira do século

XXI. De semelhante modo, na transmissão de conhecimento das doutrinas bíblicas,

há um comprometimento ético-político em sinalizar valores do reino de Deus na

sociedade.

Considerações intermediárias

Dentre as modalidades de instituições vigentes que configuram um alinhamento

com o pensamento kuyperiano no contexto brasileiro, que produzem e reproduzem

essa perspectiva, é possível afirmar a partir da experiência apresentada por cada

linha de ação, que a chegada das ideias e ideais de Abraham Kuyper vem sendo

progressivamente discutidas por esses grupos que buscam visibiliza-las, conforme o

andamento das propostas engendradas nos projetos supracitados.

Alguns pressupostos estão implícitos na teologia\filosofia da história destas

instituições e o pensamento kuyperiano. De L’Abri Brasil, pode-se identificar que os

trabalhos vinculados à espiritualidade, buscam articular a fé cristã com todos os

aspectos da vida humana. Logo, não é exacerbado afirmar que a recepção do

pensamento de Abraham Kuyper no Brasil tem, até o presente momento, a

participação direta de agentes vinculados a essa organização, mas que participam do

desenvolvimento e mantém conexão com as demais.

Page 93: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

93

Na mesma dinâmica, a Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares, que

promove a interdisciplinaridade sob a ótica neocalvinista corrobora para a

constatação detectada. A diretoria da associação é composta por agentes que

permeiam as múltiplas instituições aqui mencionadas. Assim, a AKET tem sido um

polo gerador acadêmico-científico, que coordena e articula o projeto de formação

kuyperiano e envolve temas como a filosofia, a produção científica e o diálogo entre

religião e ciência.

Tal afirmação conflui com a instaurada Associação Brasileira de Cristãos na

Ciência, que se mostra na condição de uma executiva nacional para desenvolver as

proposições kuyperianas na esfera científica. Sua diretoria está acoplada com as

lideranças mencionadas anteriormente, mas demonstra um crescimento e

heterogeneidade, composta por teólogos, cientistas, médicos, psicólogos e

economistas. Observa-se que, com os cursos e projetos em seguimento, a ABC²

desenvolve conhecimentos no campo da educação, ciência e universidade. De tais

iniciativas, esta pesquisa acessou o Grupo de Estudos em Herman Dooyeweerd, que,

realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de

Minas Gerais sinaliza um dado autêntico do objetivo propositado por tais instituições,

que almejam ampliar a perspectiva kuyperiana nestas esferas.

Cabe ainda reportar iniciativas no campo eclesiástico, como a do Movimento

Mosaico, que, fomentada por princípios neocalvinistas, retoma o diálogo da unidade

da igreja, composta por cristãos de igrejas históricas como presbiterianos, anglicanos

e batistas e pentecostais. Nota-se aqui a intencionalidade de dialogar com as

diferentes alas da fé cristã.

Do aspecto litúrgico, observa-se no projeto Lecionário, uma precisa analogia

entre a obra de Smith, contemporâneo neocalvinista, que busca debater a importância

dos recursos litúrgicos aos que são de tradição kuyperiana, enquanto,

semelhantemente, o projeto do Lecionário, amparado por esta mesma perspectiva,

almeja partilhar desses subsídios para contribuir na dinâmica evangélica brasileira.

Sabe-se que o fenômeno da iconoclastia recusa não somente a arte cristã, mas

também outros recursos e práticas de oração, reflexão e contemplação, que foram

amplamente utilizados por grupos do cristianismo histórico.

Por fim, o Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral - CADI materializa

a perspectiva do pensamento social kuyperiano na dinâmica brasileira. Uma evidência

Page 94: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

94

de que a filosofia reformacional tem se mobilizado entre as diferentes esferas e tem

buscado engajamento com a vida pública e os enfrentamentos de maneira contextual.

É declarada a expressão de seus projetos sociais por um viés neocalvinista. E com

isso, constata-se não somente o projeto ético-político, mas a sua concretude, alinhada

com a proposta de Abraham Kuyper, uma espiritualidade comprometida com a

dimensão social.

Assim sendo, os estudos sobre o projeto ético-político de Abraham Kuyper

apontam a sua complexidade, posto a ambiguidade que nela se estabelece - entre a

chegada de uma teologia europeia da Holanda do século XIX e a recepção desse

pensamento na conjuntura do Brasil no século XXI. Todavia, há uma expectativa

destes autores, que em seu âmbito se desenvolva uma práxis cristã orientada pela

filosofia reformacional. Para Cunha:

Num país como o Brasil, onde ainda encontramos um enorme abismo

social e uma das maiores desigualdades do mundo, mas que ao

mesmo tempo impõe uma das mais altas cargas tributárias, torna-se

vital para igrejas e organizações cristãs que de fato almejam uma

influência no campo da reforma social, o exercício da participação

cidadã e da relação crítica com a cultura, governos e sociedade. No

campo do terceiro setor, há muito deveríamos ter saído do mero

modelo assistencialista de “entrega de serviços” para a população

socialmente vulnerável e migrar para o modelo da defesa de direitos,

empoderando a sociedade, especialmente os excluídos, rumo a uma

participação cidadã efetiva que toque nas estruturas de perpetuação

das misérias e injustiças que ainda assolam o nosso país. A base do

sistema democrático está na participação popular e controle social

[...]. Desse modo, a participação cidadã deveria partir de um

compromisso do povo de Deus com o reinado de Cristo, com a justiça

e com próximo, e não apenas da defesa dos interesses da própria

igreja (CUNHA, 2018, p. 82).

Quando isso ocorre, as possibilidades de desenvolvimento da influência do

neocalvinismo, que têm raízes e frutos históricos – como apresentado no capítulo 2 –

em segmentos que estão nas esferas social, cultural e política na realidade da

Holanda, mas também Inglaterra, Estados Unidos, Coreia do Sul e África do Sul,

sinalizam então, aspectos de engajamento sociopolítico proferido por esses grupos

(CARVALHO, 2006, p. 215; DULCI, 2018, p. 161).

Nisto fundamentado, pode-se identificar que os processos de tradução também

de autores contemporâneos como James K. A. Smith, David Koyzis, Egbert

Page 95: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

95

Schuurman, e, conforme informado pelo Grupo de Estudos em Herman Dooyeweerd

da UFMG, que discutem textos de autores como Jonathan Chaplin e Richard Mouw,

bem como as próprias publicações nacionais que fazem referências ainda a outros

agentes e escritores dessa mesma tradição, como Nicholas Wolterstorff e Alvin

Plantinga, pode-se detectar tanto no processo editorial quanto nas ações executadas

por essas instituições divulgadoras, um projeto deliberado de acolher a perspectiva

kuyperiana no Brasil. E o motivo que evidencia e responde a isso é o crescimento

progressivo de projetos em andamento, conforme se constatou neste capítulo.

Page 96: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

98

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora o mundo todo seja um sacramento, podemos dizer que os sacramentos e a liturgia constituem áreas cruciais específicas em

que a presença formativa e iluminadora de Deus é particularmente intensa. Embora o Espírito habite toda a criação, há também um

sentido em que a presença do Espírito é intensificada em determinados lugares, coisas e ações.

James K. A. Smith

O objeto deste estudo é o projeto ético-político concebido como processo

sociocultural da teologia de Abraham Kuyper com a trajetória do neocalvinismo

holandês, que contém possibilidade de ampliar o debate intracalvinista acerca do

engajamento de cristãos evangélicos pela justiça social de indivíduos, famílias,

grupos e segmentos populacionais na conjuntura brasileira. E, sob essa concepção

teológica, é possível adquirir a condição de uma corrente programática e propositiva,

nesta pesquisa, examinada no âmbito da perspectiva kuyperiana e o movimento de

recepção de seu pensamento no Brasil.

O capítulo primeiro, que expõe a maneira de Kuyper relacionar as dimensões de

uma fé pública, parte de uma fundamentação bíblico-teológica e contempla uma ação

orientada, na qual, ao longo da análise, conforme elucidado, é o pensamento de João

Calvino que preconiza a fundamentação da perspectiva kuyperiana, que desencadeia

a tradição neocalvinista e realça ênfases teológicas de diálogo com arena pública, da

participação cristã na educação, cultura, ciências e artes.

Do conjunto temário que permeia a teologia neocalvinista e possibilita um

alinhamento para uma práxis diante dos enfrentamentos da modernidade, ênfase

potencial precisa ser dada às doutrinas do mandato cultural e da graça comum, que

fornecem uma maneira de se relacionar com a vida e o mundo, levando os benefícios

da beleza, justiça e bondade à toda humanidade. O Coram Deo que viveu Abraham

Kuyper e seus companheiros promoveu a partir do neocalvinismo, subsídios para os

enfrentamentos que viviam os cristãos em sua época.

Com efeito, para Kuyper, as igrejas que resguardam os decretos divinos têm

contribuído para a shalom. Sendo um teólogo que valoriza a totalidade da criação, de

tal forma que todas as coisas vieram à existência e continuam a existir por meio do

Page 97: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

99

Logos, que, portanto, se faz presente nos processos que envolvem o culto, o cultivo

e a cultura, frutificados no relacionamento em que se ama a Deus e o próximo.

Ao considerar a perspectiva kuyperiana, que vincula a participação da igreja e

dos cristãos numa intencionalidade em integrar vida vocacional, profissional e

diaconal entre as diferentes esferas de soberania, observa-se a ênfase de uma

atenção dedicada à pessoa pobre, onde é produzida uma crítica contra a opressão e

as estruturas econômicas injustas. Disto, Abraham Kuyper tem uma biografia e obras

que desafiam a promover uma articulação entre o que se entende por chamado,

vocação e vida missional na tradição evangélica. Para tanto, interpretou e incorporou

que a participação do cristão na sociedade civil é um dever concedido por Deus, como

mais uma, entre outras maneiras de se prestar culto e expressar louvor por meio

destas ações. Ressalte-se os aspectos que valorizam profundamente o envolvimento

do cristão com a cultura, do compromisso com a ciência, a universidade e as práticas

democráticas. Ademais, Kuyper defendeu veementemente um espaço pluralista,

assegurando que as múltiplas vozes devam ser ouvidas. Por tal motivação, que

recorre à narrativa bíblica da criação e explora a diversidade que nela existe. Para

ele, a multiforme graça é absurdamente antagônica à uniformidade.

Daqui, mais do que a resposta de captar se o neocalvinismo possui um discurso

para a sociedade, o capítulo segundo deste estudo proporciona apreender que o

resultado deste projeto ético-político kuyperiano constitui-se enquanto uma teologia

pública. Inegavelmente, uma teologia pública que começa a conquistar seu espaço e

trafegar entre as ciências e a universidade, que se propõe a tratar de temas como a

democracia e o pluralismo.

Assim, a inserção analítica que conduz ao terceiro capítulo deste estudo,

destaca aquilo que diz respeito ao uso da perspectiva kuyperiana, que, no processo

de chegada ao Brasil é recepcionada por segmentos de tradição reformada, mas que

concentram elementos da filosofia reformacional, formulada por Herman

Dooyeweerd, seu contemporâneo e considerado o principal articulador da obra de

Kuyper. Oportuno reconhecer que, apesar dos destaques em aspectos teológicos

possuírem ênfases e até diferentes ângulos interpretativos, o fenômeno do novo

calvinismo é, não raro, a porta de entrada para a perspectiva kuyperiana e a acolhida

ou transição ao neocalvinismo. Embora não sejam excludentes, há um indicativo que

a influência do neocalvinismo sobre o novo calvinismo pode exercer uma intervenção

Page 98: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

100

– a princípio no debate intracalvinista – que colabora para a elaboração de estratégias

aos diversos seminários e faculdades, que por sua vez, concentram os olhares

somente para os temas da igreja que se referem “da porta pra dentro”.

Acerca do capítulo terceiro e das possíveis contribuições do kuyperianismo para

uma práxis cristã no Brasil, foram encontrados pressupostos que estão implicitamente

relacionados na história destas instituições. O L’Abri Brasil representa um espaço que

protagoniza o processo de recepção do pensamento kuyperiano, na qual os agentes

de sua liderança participam ativamente do desenvolvimento dessas ideias e mantém

conexão com as demais organizações. Semelhantemente, a Associação Kuyper para

Estudos Transdisciplinares, que fomenta a interdisciplinaridade tem em seu diretório

pessoas comprometidas com as demais instituições analisadas. Da AKET, são

fornecidos direcionamentos ao campo acadêmico-científico, que dedica-se a temas

como a produção científica, publicações e traduções. Outro ponto de convergência é

constatado na Associação Brasileira de Cristãos na Ciência. Sua diretoria é composta

por pessoas envolvidas nas lideranças de outras organizações mencionadas, ao

passo que demonstra um crescimento heterogêneo, da qual participam não somente

teólogos, como também cientistas das variadas áreas, economistas e médicos.

O Movimento Mosaico expressa um empenho pela unidade da Igreja e um

diálogo com a catolicidade. Tem em sua liderança a participação de pastores e

autores declaradamente orientados pelo neocalvinismo, como Guilherme de

Carvalho, Igor Miguel e Pedro Dulci. Em sendo um movimento que debate questões

de como a igreja pode atuar na sociedade, de modo que possa participar de espaços

públicos comuns, nota-se outro elemento que promove essa iniciativa a uma teologia

pública kuyperiana.

A pauta neocalvinista da “liturgia da vida”, que traz, na importância da relação

sacramental com a criação, uma ação responsável, promove à liturgia cristã uma

correlação entre atos de proclamação e adoração. Por isso, a leitura da Bíblia e a

pregação são sincronizadas em seu aspecto litúrgico-sacramental e oferecidas aos

evangélicos brasileiros em projetos como o Lecionário.

O Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral pactua do pensamento

social kuyperiano e marca a evidência de que a filosofia reformacional tem

transpassado o campo da reflexão e vem executando projetos de maneira contextual.

É de extrema importância intensificar iniciativas como a do CADI, que se compromete

Page 99: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

101

com a justiça de pessoas em situação de vulnerabilidade social e risco. Igualmente,

há profunda necessidade de incorporar aos cristãos evangelicais a urgência de se

agir para o bem comum. E a contribuição de Abraham Kuyper mostra que isso é

possível sem perder o que se tem por referenciais teológicos.

Dentre as modalidades de instituições vigentes produtoras e reprodutoras do

pensamento kuyperiano nas circunstâncias e esferas brasileiras, na qual – mediante

as múltiplas experiências, estudos e linhas de ação apresentadas – que vem sendo

progressivamente discutidas por esses grupos, é posto o desafio estabelecido: de

elaborar uma teologia europeia da Holanda do século XIX e tratar da receptibilidade

desse pensamento na conjuntura no Brasil do século XXI. Todavia, há uma

expectativa destes autores de que em seu âmbito se desenvolva uma práxis cristã

orientada pela filosofia reformacional. Percebe-se a viabilidade desta proposta

brasileira a partir dos projetos em vigor supramencionados.

Isso posto, considera-se a contribuição de Abraham Kuyper para o cenário do

evangelicalismo brasileiro – que, historicamente, norteado pelo ethos fundamentalista

– tem um posicionamento, por variadas razões, de recusa e distanciamento diante de

questões sociais, culturais e políticas. Também cabe, de semelhante modo, a crítica

às alas da própria tradição calvinista, que carecem do mesmo apontamento, em que

pese a exemplaridade de Kuyper, que, ancorada na proposta de Calvino, possibilita

uma atuação da igreja evangélica para além de questões limitadas por vezes, a tratar

e dedicar esforços somente a indagações soteriológicas. O projeto ético-político do

kuyperianismo tem materialidade histórica e é um autêntico dado antropológico de

teologia e prática conectadas.

Page 100: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

102

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Fernando de. Calvino e cultura: uma abordagem histórico-teológica sob a

perspectiva da doutrina da graça comum. Dissertação (Mestrado) Universidade

Presbiteriana Mackenzie. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. 113

f., São Paulo, 2007.

BARTHOLOMEW, Craig G., Contours of the kuyperian tradition: a systematic

introduction. InterVarsity Press, (Ebook), posição 540, Estados Unidos, 2017.

BAVINCK, Herman. Dogmática reformada: Espírito Santo, Igreja e nova criação.

Tradução: Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.

BERG, Frank Vanden. Abraham Kuyper: a biography. Paideia Press, St. Catharines,

Ontario, Canada, 1978.

BELL, Daniel M. The economy of desire: christianity and capitalism in a postmodern

world. - The church in a postmodern culture. US: Baker Academic, 2012.

BIÉLER, ANDRÉ. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. Tradução: Valdyr

Carvalho Luz. 2ª ed. São Paulo, Cultura Cristã, 2012.

_______, ANDRÉ. A Força Oculta dos Protestantes. Tradução: Paulo Manuel

Protasio. São Paulo, Cultura Cristã, 1999.

_______, ANDRÉ. O Humanismo Social de Calvino. Tradução: A. Sapsezian. São

Paulo, Edições Oikoumene, 1970.

BASKWELL, Patrick. Kuyper and Apartheid: A revisiting. In: HTS Teological Studies,

62(4), January, 2009. Disponível em: <https://www.researchgate.net/journal/2072-

8050_HTS_Teologiese_Studies_Theological_Studies> Acesso em 14 de fevereiro de

2019.

BRATT, John H. O Calvinismo Holandês na América. In: Calvino e sua influência no

mundo ocidental, Org. Stanford Reid. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990.

Page 101: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

103

BRATT, James D. Passionate About the Poor: The Social Attitudes of Abraham

Kuyper. In: Journal of Markets & Morality. Volume 5, nº 1, p. 35–44, Calvin College,

2002.

_______, James D. Abraham Kuyper Modern Calvinist, Christian Democrat. Company

Grand Rapids, Michigan / Cambridge, U.K, 2013.

CALDAS, Carlos. Orlando Costas: sua contribuição na história da teologia

latinoamericana. São Paulo: Editora Vida, 2007.

CALVINO, João. A instituição da religião cristã; Tomo I; Livros I e II. Tradução: Carlos

Eduardo de Oliveira; et al. São Paulo: UNESP, 2008.

_______, João. O livro dos Salmos. Volume 1. São Paulo, Paracletos, 1999.

CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de; Sociedade, justiça e política no

pensamento de Herman Dooyeweerd. In: CUNHA, Maurício José Silva [Orgs.].

Cosmovisão Cristã e Transformação: espiritualidade, razão e ordem social. Viçosa:

Ultimato, 2006.

_______, Guilherme Vilela Ribeiro de. A missão integral na encruzilhada:

reconsiderando a tensão no pensamento teológico de Lausanne. In: RAMOS,

Leonardo; AMORIM, Rodolfo; (orgs.), Fé Cristã e Cultura Contemporânea. Viçosa,

MG: Ultimato, 2009.

CHAPLIN, Jonathan. Defining “public justice” in a pluralistic society: probing a key

neo-calvinist insight. Pro Rege, March, US, 2004.

_______, Jonathan. The Point Of Kuyperian Pluralism, In: CARDUS Disponível em

inglês: <https://www.cardus.ca/comment/article/the-point-of-kuyperian-pluralism/>, e

Disponível em português: <https://tuporem.org.br/o-argumento-do-pluralismo-

kuyperiano/> Acesso em 12 de fevereiro de 2019.

CUNHA, Maurício José Silva; Wood, Beth Anne; O reino entre nós: transformação de

comunidades pelo evangelho integral. Viçosa, MG: Ultimato, 2003.

Page 102: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

104

_______, Maurício José Silva. O reino de Deus e a transformação social:

fundamentos, princípios e ferramentas. Viçosa, MG: Ultimato, 2018.

DOOYEWEERD, Herman. No Crepúsculo do Pensamento: estudos sobre a pretensa

autonomia da razão. Tradução: de Guilherme Vilela Ribeiro e Rodolfo Amorim Caldas

de Souza. São Paulo: Hagnos, 2010.

_______, Herman. Estado e Soberania: ensaios sobre cristianismo e política. Trad.

Leonardo Ramos, Lucas G. Freire, Guilherme de Carvalho. São Paulo: Vida Nova,

2014.

_______, Herman. Raízes da Cultura Ocidental. Trad. Afonso Teixeira Filho. São

Paulo: Cultura Cristã, 2015.

DOUGLAS, J. D.; A Contribuição do Calvinismo na Escócia, In: Calvino e sua

influência no mundo ocidental. REID, Stanford W. (Org.). São Paulo: Casa Editora

Presbiteriana, 1990. DULCI, Pedro Lucas. Fé cristã e ação política: a relevância

pública da espiritualidade cristã. Viçosa, MG: Ultimato, 2018.

DULCI, Pedro Lucas. Fé cristã e ação política: a relevância pública da espiritualidade

cristã. Viçosa, MG: Ultimato, 2018.

DULCI, Pedro Lucas. Ortodoxia Integral: teoria e prática conectadas à Missão Cristã.

Uberlândia, MG: Sal Editora, 2014.

DULCI, Pedro Lucas [org.]. Igreja Sinfônica: um chamado radical pela unidade dos

cristãos. 1ª ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2016.

ESCOBAR, SAMUEL. Viver em tempo de missão. Tradução: Carlos Ribeiro Caldas

Neto e Samara Mouto. São Paulo: Garimpo Editorial, 2015.

FLIPSE, ABRAHAM C. The Origins of Creationism in the Netherlands: The Evolution

Debate among Twentieth-Century Dutch Neo-Calvinists. In: Church History nº 81:1,

p.104–147. American Society of Church History, 2012. Disponível em:

<http://www.few.vu.nl/~flipse/publicaties/S000964071100179Xa.pdf> Acesso em 02

de março de 2019.

Page 103: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

105

FONTES, Filipe Costa. Missão Integral ou Neocalvinismo: Em busca de uma Visão

mais Ampla da Missão da Igreja. In: Fides Reformata, XIX, Nº 1, p. 61-72, Centro de

Pós-Graduação Andrew Jumper, Mackenzie, 2014. Disponível em:

<https://cpaj.mackenzie.br/fidesreformata/arquivos/edicao_35/artigos/252.pdf>

Acesso em 25 de fevereiro de 2019.

GASGUE, Laurel. Rookmaaker: arte e mente cristã. Tradução: Fernando Guarany

Junior. Viçoca, MG: Editora Ultimato, 2012.

GODFREY, W. Robert. Calvino e o Calvinismo nos Países Baixos. In: REID, Stanfort

W. (Ed.). Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental. São Paulo: Casa Editora

Presbiteriana, 1990. p. 138.

GOUDZWAARD, Bob. Christian Social Thought in the Dutch Neo-Calvinist Tradition.

In: Religion, Economics and Social Thought: Proceedings of an International

Conference Vancouver, Fraser Institute, p. 251-279, (Chapter Seven), 1986.

_______, Bob. Capitalismo e progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental.

Tradução Leonardo Ramos. Viçosa: Ultimato, 2019.

GONZÁLEZ, Justo L. História Ilustrada do Cristianismo: a era dos reformadores até a

era inconclusa. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2011.

HENDERSON, Roger D. Como Kuyper se tornou um kuyperista. In: Kuyper, Abraham.

Em toda a extensão do cosmos. Tradução: Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF:

Editora Monergismo, 2017.

HESLAM, Peter S. Creating a christian worldview: Abraham kuyper's lectures on

Calvinism. Michigan: W. B. Eerdmans, 1998.

HOEKEMA, Anthony. Criados à Imagem de Deus. São Paulo, Cultura Cristã, 1999.

KALSBEEK. L. Contornos da filosofia cristã. Traduzido por Rodolfo Amorim de Souza.

São Paulo, Cultura Cristã, 2015.

Page 104: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

106

KELLER, Timothy. Igreja centrada: desenvolvendo em sua cidade um ministério

equilibrado e centrado no evangelho. Tradução: Eulália Pacheco Kregness. São

Paulo: Vida Nova, 2014.

KLAPWIJK, Jacob. Abraham Kuyper on Science, Theology And University. In:

Philosophia Reformata, nº 78, p. 18-46. Western University, Canadá,

2013. Disponível em: <https://philpapers.org/rec/KLAAKO> Acesso em 29 de janeiro

de 2019.

KOYZIS, David T. Visões & Ilusões Políticas: uma análise e crítica cristã das

ideologias contemporâneas. Tradução: Lucas G. Freire. São Paulo: Vida Nova, 2014.

KUYPER, Abraham. Calvinismo. Trad. Ricardo Gouveia e Paulo Arantes. São Paulo:

Cultura Cristã, 2003.

_______, Abraham. Em toda a extensão do cosmos. Tradução: Fabrício Tavares de

Moraes. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017.

_______, Abraham. A obra do Espírito Santo: o Espírito Santo em ação na igreja e no

indivíduo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010.

_______, Abraham. Christianity and the class struggle. Grand Rapids: Piet hein

publishers, 1950.

_______, Abraham. Our Program: A Christian Political Manifesto. Abraham Kuyper

Collected Works in Public Theology. Acton Institute for the Study of Religion & Liberty

Lexham Press, St., Bellingham, (E-book Kindle), USA, 2015.

_______, Abraham. Pro Rege Living Under Christ’s Kingship. Volume 2: The Kingship

of Christ in Its Operation, (E-book Kindle), 2017b.

KUIPERS, Tjitze. Abraham Kuyper: an annotated bibliography 1857-2010. Tradução:

Clifford Anderson e Dagmire Houniet. Brill’s series in church history; v.55, Leiden,

Holanda, 2011.

Langley, McKendree R. The Practice of Political Spirituality. Ontario, CA. Paideia

Press, 1984.

Page 105: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

107

LÉONARD, ÉMILE G. Calvino Fundador de uma civilização, in: João Calvino e o

Calvinismo; GALASSO, Eduardo Faria (org). São Paulo: Editora Pendão Real, 2013.

LIMA, Leandro. Uma análise do chamado "novo calvinismo", de seu relacionamento

com o calvinismo e de seu potencial para o diálogo com a contemporaneidade. 2009.

147 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo,

2009. Disponível em: <http://pergamum.mackenzie.br/biblioteca/

index.php?codAcervo=204669> Acesso em 20 de novembro de 2018.

MANAVHELA, GWASHI FREDDY. An Analysis of the Theologial Justification of

Apartheid: a Reformed Theological Perspective. Tese de doutorado - Vrije Universiteit

Amsterdam, 2009. Disponível em:

<http://dspace.est.edu.br:8000/xmlui/bitstream/handle/BR-

SlFE/318/ramlow_rr_tm254.pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em 5 de abril de

2019.

MATOS, Alderi de Souza. 500 anos de João Calvino: pensamentos sobre sua vida e

contribuições. In: Revista Caminhando v. 14, n. 2, p. 171-179, jul./dez. UMESP. 2009.

MARQUES, Tiago R. Economia política reformacional: Uma contribuição teórica

Kuyperiana para o campo da Economia Política Internacional. Revista Teologia

Brasileira, v. 6, p. 10, 2017. Disponível em <http://www.teologiabrasileira.

com.br/teologiadet.asp?codigo=555> Acesso em 03 de Janeiro de 2019.

_______, Tiago Rossi. Diálogo & Antítese Nos Estudos Internacionais: Uma Releitura

Reformacional Do Realismo Clássico De Hans Morgenthau. São Paulo: Revista

Teologia Brasileira, nº 46, 2018.Disponível em

<https://teologiabrasileira.com.br/dialogo-e-antitese-nos-estudos-internacionais-uma-

releitura-reformacional-do-realismo-cl-ssico-de-hans-morgenthau/>

Acesso em 26 de fevereiro de 2019.

_______, Tiago Rossi. Indo a Público: a teologia pública cristã reformada na

emergente construção da ideia de uma esfera pública e social não-governamental

chinesa. Disponível em

<https://www.academia.edu/37449282/_INDO_A_P%C3%9ABLICO_a_teologia_p%

C3%BAblica_crist%C3%A3_reformada_na_emergente_constru%C3%A7%C3%A3o

Page 106: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

108

_da_ideia_de_uma_esfera_p%C3%BAblica_e_social_n%C3%A3o-

governamental_chinesa> Acesso em 28 de fevereiro de 2019.

MCGRATH, Alister. A vida de João Calvino. Tradução: Marisa Lopes. São Paulo:

Cultura Cristã, 2004.

_______, Alister. Teologia Sistemática, História e Filosófica: uma introdução à

teologia cristã. Tradução: Marisa Lopes. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.

MOLENDIJK, Arie L. Neo-Calvinist Culture Protestantism: Abraham Kuyper’s Stone

Lectures. In: Church History and Religious Culture. (CHRC), 88.2, p. 235–250.

Koninklijke Brill NV, Leiden, 2008. Disponível em

<https://www.ariemolendijk.nl/downloads/download0030.pdf> Acesso em 20 de

novembro de 2018.

MOUW, Richard J. Abraham Kuyper: A Short and Personal Introduction. Grand

Rapids, Eerdmans, 2011.

_______, Richard J. Culture, church, and civil society: Kuyper for a new century. The

Princeton Seminary Bulletin 28, 1, pp. 48-63, 2007.

NAUDE, Piet. From Pluralism To Ideology: The Roots Of Apartheid Theology In

Abraham Kuyper, Gustav Warneck And Theological Pietism. In: Scriptura 88, p. 161-

173. Department of Theology, Nelson Mandela Metropolitan University, 2005.

Disponível em <http://scriptura.journals.ac.za/pub/article/view/1002/955> Acesso em

14 de Fevereiro de 2018.

NAUGLE, David. O senhorio de Cristo sobre a totalidade da vida: uma introdução ao

pensamento de Abraham Kuyper. In: Kuyper, Abraham. Em toda a extensão do

cosmos. Tradução: Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF: Editora Monergismo,

2017.

NOVAK, Michael. Human Dignity, Personal Liberty: Themes from Abraham Kuyper

and Leo XIII. Journal of Markets & Morality 5, no. 1, p. 59-85, Spring, 2002. Disponível

em

<https://www.marketsandmorality.com/index.php/mandm/article/view/557> Acesso

em 3 de fevereiro de 2019.

Page 107: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

109

OLIVEIRA, Fabiano de Almeida. Reflexões Críticas sobre Weltanschaunng: uma

análise do processo de formação e compartilhamento de cosmovisões numa

perspectiva Teo-referente. In: Fides Reformata XIII, nº 1 (2008), p. 31-52, São Paulo:

Ed. Mackenzie, 2008.

ORTIZ, Leopoldo Cervantes. Ancianos y diáconos en la tradicíon reformada: Ancianos

y diáconos en la tradición reformada: ministerios de autoridad y servicio. In: Primer

Congreso sobre el ministerio de los Ancianos y Diáconos, Presbiterio Juan Calvino,

Iglesia Presbiteriana Bethel, México, 2007.

PACTO DE LAUSANNE. São Paulo: ABU Editora; Belo Horizonte, MG: Visão

Mundial, 2004. PADILLA, C. René. Missão Integral: o Reino de Deus e a Igreja.

Tradução: Emil Albert Sobottka, Wagner Guimarães. Viçosa, MG: Editora Ultimato,

2014.

PRICE, Timothy Shaun. Abraham Kuyper and Herman Bavinck on the Subject of

Education as seen in Two Public Addresses. TBR, v2, 2011. Disponível em

<https://bavinckinstitute.org/wp-content/uploads/2011/05/TBR2_Price.pdf> Acesso

em 30 de janeiro de 2019.

PORTER, Jacob. Abraham Kuyper’s Sphere Sovereignty: Theological Comparisons

And Application To Poverty. Paper to The Southern Baptist Theological Seminary,

USA. Novembro, 2011. Disponível em

<https://www.academia.edu/3491084/Abraham_Kuypers_Sphere_Sovereignty_Theo

logical_Comparisons_and_Application_to_Poverty> Acesso em 31 de janeiro de

2019.

RAMLOW, Rodomar Ricardo. O Neocalvinismo Holandês e o Movimento de

Cosmovisão Cristã. 2012, 99 fls. Dissertação de Mestrado – Escola Superior de

Teologia, Programa de Pós-Graduação, Universidade São Leopoldo (EST), 2012.

Disponível em: http://dspace.est.edu.br:8000/xmlui/bitstream/handle/BR-SlFE/318/

ramlow_rr_tm254.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em:: 19/09/2018 às 22h08.

_______, Rodomar Ricardo. O Neocalvinismo Holandês: autores e temas. In: Anais

do Congresso Internacional da Faculdades EST. v. 1. p.1701-1716. São Leopoldo

(EST), 2012.

Page 108: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

110

_______, Rodomar Ricardo. O Mandato Cultural na Teologia da Criação: fé,

compromisso e ação. In: Protestantismo em Revista. São Leopoldo, v. 33, p. 127-137

| jan./abr. 2014. Disponível em: http://periodicos.est.edu.br/index.

php/nepp/article/view/1106/1730. Acesso em: 18 de novembro de 2018, às 17h21.

_______, Rodomar Ricardo. Elementos para uma Teologia Pública em Herman

Bavinck. 2016, 247 fls. Tese de Doutorado – Escola Superior de Teologia, Programa

de Pós-Graduação, Universidade São Leopoldo (EST), 2016. Disponível em

<http://dspace.est.edu.br:8080/jspui/bitstream/BR-SlFE/721/1/ramlow_rr_td156.pdf>

Acesso em 20 de fevereiro de 2019.

REICHOW, Josué Klumb. A filosofia reformada de Herman Dooyeweerd e suas

condições de recepção no contexto brasileiro. Dissertação de Mestrado – Escola

Superior de Teologia, Programa de Pós-Graduação, Universidade São Leopoldo

(EST), 2014. Disponível em

<http://dspace.est.edu.br:8080/xmlui/handle/BR-SlFE/546?show=full&locale-

attribute=en> Acesso em 21 de novembro de 2018.

ROJAS, Emmanuel Flores. Sobre as vocações em João Calvino (Cultivo, Cultura,

Culto). Tempo e Presença Digital. João Calvino: 500 ANOS! Ano 4 – n. 17, out. de

2009. Disponível em

<http://www.koinonia.org.br/tpdigital/detalhes.asp?cod_artigo=336&cod_boletim=18/

&tipo=Artigo> Acesso em: 18 de novembro de 2018.

ROOKMAAKER, Hans R. A arte moderna e a morte de uma cultura. Trad. Valéria

Lamim Delgado Fernandes. Viçosa, MG. Editora Ultimato, 2015.

_______, Hans R. A arte não precisa de justificativa. Trad. Fernando Guarany

Jr.Viçosa, Mg. Editora Ultimato, 2010.

_______, Hans R. Filosofia e estética. Tradução William Campos da Cruz, Brasília,

DF: Editora Monergismo, 2018.

_______, Hans R. O Dom Criativo. Tradução William Campos da Cruz, Brasília, DF:

Editora Monergismo, 2018.

Page 109: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

111

SANTOS, Nilson Moutinho dos. Abraham Kuyper: um modelo de transformação

social. In: LEITE, Cláudio Antônio Cardoso; CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro

de; CUNHA, Maurício José Silva [Orgs.]. Cosmovisão Cristã e Transformação:

espiritualidade, razão e ordem social. Viçosa, MG: Ultimato, 2006.

SMITH, James K. A. Cartas a um jovem calvinista: um convite à tradição reformada.

Tradução: Daniel Vieira, Paulo Dib, Rodrigo Rosa e Victor Bimbato. Brasília, DF:

Editora Monergismo, 2014.

_______, James K. A. Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito. Tradução:

James Reis. São Paulo, SP: Vida Nova, 2017.

_______, James K. A. Desejando o Reino: culto, cosmovisão e formação cultural.

Tradução: A. G. Mendes. São Paulo, SP: Vida Nova, 2018.

SOUZA, Rodolfo Amorim de. Cosmovisão: evolução do conceito e aplicação cristã.

In: LEITE, Cláudio Antônio Cardoso; CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de;

CUNHA, Maurício José Silva [Orgs.]. Cosmovisão Cristã e Transformação:

espiritualidade, razão e ordem social. Viçosa, MG: Ultimato, 2006.

_______, Rodolfo Amorim de. O senhorio de Cristo e a redenção das artes: um olhar

sobre a vida, obra e pensamento de Hans Rookmaaker. In: RAMOS, Leonardo;

AMORIM, Rodolfo; (orgs.), Fé Cristã e Cultura Contemporânea. Viçosa, MG: Ultimato,

2009.

TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX.

Tradução: Jaci C. Maraschin. 2ª ed. São Paulo: ASTE, 1999.

VANDENBERG, Frank. Abraham kuyper. Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 1960.

VAN TIL, Henry R. O Conceito Calvinista de Cultura. Trad. Elaine Carneiro D.

Sant‟Anna. São Paulo, Cultura Cristã, 2010.

WELCH, Claude. Protestant thought in nineteenth century. Westford, massachusetts,

US. Yale University, 1985.

Page 110: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

112

WOLTERSTORFF, Nicholas. Until justice and peace embrace: the kuyper lectures for

1981 delivered at the free university of amsterdam. Grand Rapids: W. B. Eerdmans,

1983.

XAVIER, Paulo da Costa; SOUSA, Rodrigo Franklin de. Ética protestante e relações

de trabalho: contribuições do calvinismo para a gestão de pessoas. 2012. 141 f.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Universidade Presbiteriana

Mackenzie, São Paulo, 2012.

Page 111: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

113

ANEXOS

1. CANÇÃO “ROOKMAAKER”

Eu leio Rookmaaker, você Jean-Paul Sartre

A cidade foi tomada pelos homens

Na cidade dos homens tem gente que consegue ler

Mas os outros estão néscios pra Ti

Eu canto Keith Green, você canta o quê?

A cidade está cheia de sons

Na cidade dos homens tem gente que consegue ouvir

Mas os outros estão surdos pra Ti

Vem, jogando tudo pra fora

A verdade apressa minha hora

Vem, revela a vida que é nova

Abre os meus olhos agora

Vem, jogando tudo pra fora

A verdade apressa minha hora

Vem, revela a vida que é nova

Abre os meus olhos agora

Eu fico com a escola de Rembrandt

Você no dadaísmo de Berlim

A cidade está cheia de tinta

Na cidade dos homens tem gente que consegue ver

Mas os outros estão cegos pra Ti

Eu monto o paradoxo no palco

Você anda zombando da Cruz

A cidade está cheia de atores

Page 112: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Programa de Pós ...tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1879/2... · Kuyper, Abraham, 1837-1920 – Crítica e interpretação 2. Calvinismo

114

Na cidade dos homens tem gente que consegue dizer

Mas os outros estão mudos pra Ti

Vem, jogando tudo pra fora

A verdade apressa minha hora

Vem, revela a vida que é nova

Abre os meus olhos agora

Vem, jogando tudo pra fora

A verdade apressa minha hora

Vem, revela a vida que é nova

Abre os meus olhos agora

Toda vez que procuro pra mim algo pra ler

Ouvir, olhar e dizer

Senhor sabe o que eu quero

Não me furto a certeza: és a Vida que eu quero

Vem, jogando tudo pra fora

A verdade apressa minha hora

Vem, revela a vida que é nova

Abre os meus olhos agora

(Palavratinga – Rookmaaker)