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UNIVERSIDADE PAULISTA PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO MERCADO OU CRIAÇÃO? ESTUDO DO FIGURINO DE TELENOVELA E SUA REDE DE CONEXÃO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista UNIP para obtenção do título de mestre em Comunicação. LYE RENATA PRANDO São Paulo 2014

UNIVERSIDADE PAULISTA PROGRAMA DE MESTRADO EM … · Março, centro comercial de São Paulo, em dezembro de 2012 estava o bracelete com a oração de São Jorge usado pela delegada

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UNIVERSIDADE PAULISTA

PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

MERCADO OU CRIAÇÃO?

ESTUDO DO FIGURINO DE TELENOVELA E

SUA REDE DE CONEXÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP para obtenção do título de mestre em Comunicação.

LYE RENATA PRANDO

São Paulo

2014

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UNIVERSIDADE PAULISTA

PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

MERCADO OU CRIAÇÃO?

ESTUDO DO FIGURINO DE TELENOVELA E

SUA REDE DE CONEXÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP, para obtenção do título de mestre em Comunicação, sob orientação do Profª Drª Solange Wajnman.

LYE RENATA PRANDO

São Paulo

2014

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Prando, Lye Renata.

Mercado ou criação? Estudo do figurino de telenovela e sua rede de conexão / Lye Renata Prando - 2014. 131 f.: il. color.

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista, São Paulo, 2014. Área de Concentração: Configuração de Linguagens e Produtos Audiovisuais na Cultura Midiática. Orientadora: Profª. Solange Wajnman.

1. Telenovela. 2. Figurino. 3. Campo da materialidade. 4. Teoria do ator-rede. I. Título. II. Wajnman, Solange (orientadora).

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LYE RENATA PRANDO

MERCADO OU CRIAÇÃO?

ESTUDO DO FIGURINO DE TELENOVELA E

SUA REDE DE CONEXÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP, para obtenção do título de mestre em Comunicação.

Aprovada em: ____/____/________

BANCA EXAMINADORA

_________________________/____/_____

Profª Drª Solange Wajnman - Orientadora

UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP

_________________________/____/_____

Profª Drª Carla Reis Longhi

UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP

_________________________/____/_____

Profª Drª Kathia Castilho

UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à amada Melzinha, minha cachorrinha companheira de

todas as horas, por estar em todos os momentos de inspiração para escrever esta

dissertação. “Apenas” com sua presença sonolenta.

Ao meu querido esposo, pela presença da sua ausência, respeitando meu

espaço para cumprir esta adorável missão.

Ao meu já amado filho, pela sua sabedoria de ter vindo na hora certa;

enquanto escrevia esta dissertação, ele me lembrava que já existia na minha vida e

na minha barriga, com sete meses de gestação, mexendo sem parar. Marcando

presença silenciosa, mas futebolístico, esperando a Copa do Mundo no Brasil e

minha defesa para nascer sendo apenas ele o centro da minha atenção.

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AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

À Capes, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior,

pela bolsa integral de estudo, concedida durante o curso, por meio da bolsa Prosup,

Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares.

À minha orientadora, Profª Drª Solange Wajnman, por acreditar em meu

potencial, me inspirar com suas ideias inovadoras e me oferecer todas as condições

para elaboração e realização desta pesquisa.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço à vida por ter me proporcionado oportunidades

de desenvolvimento pessoal incríveis a cada fase, renovando a fé que tenho em mim

e no outro. Aos meus pais, Jorge Henrique Prando e Elma Ferreira Prando; apesar

da distância, guardo em mim a lição aprendida, de crescer pela educação. À minha

amiga Maria Isabel Galvão de França, pelo apoio, inspiração e palavras que me

acompanharam nos momentos de escrita: “explique detalhadamente”, “confio em

você”, fazendo aumentar minha profunda e sincera admiração. Ao meu amigo Sérgio

Pinheiro, que sabiamente me alertou: “este processo é solitário”; não me esqueci,

obrigada por tornar o caminho mais claro. Às professoras membros da banca, Profª

Drª Carla Reis Longhi e Profª Drª Kathia Castilho, pelas relevantes contribuições

durante a pesquisa e delicadeza em apresentar os argumentos.

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“A articulação está no mundo. É o mundo que é articulado, não os humanos.”

(Bruno Latour)

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RESUMO

Esta dissertação discute os processos artísticos e comerciais do figurino de uma

telenovela. Tem como objetivo central a análise e compreensão do processo por

meio do qual o figurino de televisão torna-se moda, a partir da análise do figurino da

personagem Heloísa, da telenovela Salve Jorge. Os fundamentos teórico-

metodológicos advêm do Campo das Materialidades, a partir de autores como

Gumbretch – Materialidade da Comunicação, e Bruno Latour, na TAR – Teoria do

Ator-Rede. Os procedimentos utilizados consistiram na revisão da literatura,

confecção de entrevistas com figurinistas, coleta de dados empíricos de institutos de

pesquisa e associações e reportagens divulgadas nos meios de comunicação. A

análise mostrou a existência de um padrão no processo do figurino de telenovela e

sua interdependência nos aspectos comerciais e artísticos.

Palavras-chave: Telenovela, figurino, campo da materialidade, teoria do ator-rede.

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ABSTRACT

This dissertation discusses the artistic and commercial character of one specific soap

opera. The project has as a central objective the analysis and understanding of the

process by which the costumes television becomes fashionable, from the analysis of

the costume of the character Heloisa, of Salve Jorge soap opera. The theoretical and

methodological foundations come from the field of Materialities with authors like

Gumbretch - Materiality of Communication, and Bruno Latour, in TAR - Actor-

Network Theory. The procedures used were the literature review, making interviews

with costume designers, collecting empirical data from researches institutes,

associations and reports published in the media. The analysis showed the existence

of a pattern in the soap opera costumes and their interdependence in trade and

artistic aspects process.

Key words: Soap Opera, costume, materiality field, actor-network theory

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Cenas da personagem Heloisa em ação. ................................................ 47

Figura 2 – Calça pantalona amarela da marca Apartamento03. ............................... 48

Figura 3 – Cinto duplo marrom com placas douradas da marca Echob. ................... 48

Figura 4 – Camisa de seda com estampa de São Jorge da Fill Sete. ....................... 49

Figura 5 – Case soco inglês da marca Knucklecase. ................................................ 50

Figura 6 – Uma das calças pantalonas que a delegada Helô usou; animal print é da marca Cholet. ............................................................................................................ 51

Figura 7 – Um dos conjuntos usados é da marca A.Cult. ......................................... 52

Figura 8 – Onça na estampa das camisas Le Lis Blanc. ........................................... 53

Figura 9 – Camisa com estampa de cobra da coleção Alphorria, primavera 2012. .. 54

Figura 10 – Camisa da marca Alphorria. ................................................................... 55

Figura 11 – Camisa de cetim de seda na cor grafite e botões de cristal Swarovski da marca Dudalina ......................................................................................................... 56

Figura 12 – Camisa de cetim de seda com estampa mesclando tecidos lisos e botões em Swarovski, da marca Dudalina. ............................................................... 57

Figura 13 – Camisas estampadas da marca Fill Sete. .............................................. 58

Figura 14 – Camisa de cetim de seda com estampa mesclando tecidos lisos e botões em Swarovski da marca Dudalina. ................................................................ 67

Figura 15 – Giovanna Antonelli em sua participação no programa Domingão do Faustão, exibido em 09/02/2013. .............................................................................. 69

Figura 16 – Giovanna Antonelli em sua participação no programa Mais Você, exibido em 21/03/2013. ......................................................................................................... 69

Figura 17 – Revista Estilo de maio de 2013, com opções de calça estampada, peça muito usada pela personagem Heloisa em Salve Jorge. .......................................... 70

Figura 18 – Revista Estilo, de março de 2013, com referência ao conjunto estampado, peça-chave no guarda-roupa da personagem Heloísa. ......................... 71

Figura 19 – Revista Elle, de abril de 2013, com referência às estampas “animal print”, tendência explorada em todo o figurino da personagem................................. 71

Figura 20 – Revista Quem, março de 2013, com referência às estampas “animal print”, tendência explorada em todo o figurino da personagem Heloísa e também

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pela atriz Fernanda Lima, utilizando peça com essa moda, influenciando o consumo. .................................................................................................................................. 72

Figura 21 – Revista Manequim, de fevereiro de 2013, com referência às estampas “étnicas”, tendência explorada em todo o figurino da personagem, e também pela atriz Camila Pitanga, utilizando peça com essa moda, influenciando o consumo. Outra informação são os acessórios ......................................................................... 73

Figura 22 – Capa da revista Cláudia, em fevereiro de 2013. .................................... 74

Figura 23 – Capa da revista Estilo, em março de 2013 ............................................. 75

Figura 24 – Tutorial do portal UOL, com 38 fotos de combinações de todo o figurino da personagem Heloísa, em 26 de abril de 2013. ..................................................... 76

Figura 25 – Tutorial da consultora de moda Carla Mendonça para o telejornal MGTV – Belo Horizonte 1a edição, com as combinações do figurino da personagem, e principalmente como adaptar os objetos à realidade da telespectadora, em fevereiro de 2013. .................................................................................................................... 77

Figura 26 – Imagem da loja virtual Moda de Novela, onde os objetos da moda são inspirados no estilo da personagem Heloísa, fabricados e comercializados pela própria loja................................................................................................................. 84

Figura 27 – A Rede Globo possui o site para comercializar os objetos de figurino e do cenário das telenovelas. Esta imagem mostra os objetos de outras personagens da telenovela Salve Jorge, nenhum objeto do figurino da personagem Heloísa foi comercializado pelo site. ........................................................................................... 85

Figura 28 – A loja virtual Moda de Novela possui um perfil da rede social Facebook para divulgar os objetos do figurino de telenovela e se relacionar com as telespectadoras, com mais de 31 mil curtidores. ....................................................... 85

Figura 29 – Liderando a lista dos objetos mais procurados nas lojas da rua 25 de Março, centro comercial de São Paulo, em dezembro de 2012 estava o bracelete com a oração de São Jorge usado pela delegada. Reportagem de Higor Dorta em 10.12.2012. ............................................................................................................... 86

Figura 30 – O anel de São Jorge usado pela delegada foi um dos objetos mais procurados nas lojas da rua 25 de Março, centro comercial de São Paulo, em dezembro de 2012. Reportagem de Higor Dorta em 10.12.2012 .............................. 86

Figura 31 – Outro objeto do figurino da delegada: pingente de São Jorge, entre os mais procurados nas lojas da rua 25 de Março, centro comercial de São Paulo, em dezembro de 2012. Reportagem de Higor Dorta em 10.12.2012. ............................. 87

Figura 32 – O estilo do figurino da personagem Heloísa invadiu as vitrines das lojas do bairro de compras de atacado e varejo - Bom Retiro, em março de 2013. Na vitrine da loja Lulu Concept, há duas tendências do figurino: calças estampadas e “animal print”. Endereço da loja: Lulu Concept - 11.33312866 - Rua José Paulino, 132/25 de março de 2013. ........................................................................................ 87

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Figura 33 – Na mesma José Paulino, em março de 2013, na loja Just Lulu, revela-se a tendência do figurino com as calças estampadas. Endereço: Just Lulu - 11.33313103 - Rua José Paulino, 138 ...................................................................... 88

Figura 34 – No portal MSN, em março de 2013, na página de moda, Vanessa Andrade separou os principais objetos do figurino da delegada Heloísa, com endereço das lojas e o preço das peças, para as telespectadoras internautas adquirirem os objetos. Nesta imagem ela sugere uma camisa inspirada no estilo das camisas usadas pela personagem com estampa “animal print”. Onde comprar: lojavirtual lojasrenner.com.br. Preço R$ 89,90. ........................................................ 89

Figura 35 – Vanessa Andrade, nesta imagem, sugere a calça pantalona da Zeit, usada em cena pela delegada. Onde comprar: loja.zeitsp.com.br. Preço R$ 151,20 .................................................................................................................................. 90

Figura 36 – Aqui, Vanessa Andrade sugere o macacão com estampa de píton, inspirado no traje de cena da personagem. Onde comprar: www.equus.com.br. Preço R$ 379,00 ....................................................................................................... 91

Figura 37 – Vanessa Andrade sugere a sandália de gladiadora, a mesma usada em cena pela personagem. Onde comprar: luizabarcelos.com.br. Preço R$ 410,00...... 92

Figura 38 – A blogueira Vanessa Endringer postou, em março de 2013, no blog Blogosfera Fashion, matéria escrita por Polyanna Polycarpo, sugerindo algumas combinações de uso dos objetos de figurino da delegada. Os objetos são inspirados nos usados pela personagem, e a blogueira selecionou as peças, com o nome das lojas e custo de cada uma. Nesta imagem, calça estampada das lojas Renner, camisa da Colcci, entre outros acessórios. ............................................................... 93

Figura 39 – Vanessa Endringer publicou imagem da calça das lojas Renner, blazer “animal print” da Bo.Bô, entre outros acessórios. ...................................................... 94

Figura 40 – Etiqueta que ficará nos objetos de moda que farão parte do figurino de uma personagem em telenovela na Rede Globo, e a aplicação desta na vitrine de uma loja ..................................................................................................................... 95

Figura 41 – Rede de conexão do figurino da personagem Heloísa da telenovela Salve Jorge. .............................................................................................................. 98

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13

1 TELENOVELA, MÍDIA E MODA ......................................................................... 17

1.1 Evolução da novela brasileira como produto midiático .................................. 17 1.2 Produções da telenovela como produto de consumo próprio e a serviço da propaganda publicitária .......................................................................................... 18 1.3 Figurino de telenovela como agente.............................................................. 23 1.4 Apropriação de objetos do figurino ................................................................ 24

2 A VIDA DO FIGURINO DA PERSONAGEM HELOÍSA DE SALVE JORGE, SEGUNDO A TAR .................................................................................................... 28

2.1 Objeto ............................................................................................................ 28 2.2 Materialidade da Comunicação ..................................................................... 29 2.3 Teoria do Ator-Rede ...................................................................................... 31

2.3.1 Origem e conceito da TAR ...................................................................... 31 2.3.2 Conceitos-chave da TAR ......................................................................... 33 2.3.3 Contribuição da TAR para o entendimento do figurino de telenovela ..... 36

3 REDE DE CONEXÃO DO FIGURINO DA PERSONAGEM HELOÍSA ............... 38

3.1 Caminhos do objeto midiático ....................................................................... 38 3.2 Concepção do figurino – criação do objeto ................................................... 39

3.2.1 Corpo e figurino ....................................................................................... 39 3.2.2 Produção da telenovela e figurino ........................................................... 41 3.2.3 Processo de criação do figurino de telenovela ........................................ 43 3.2.4 Criação do figurino da delegada Heloísa ................................................. 46 3.2.5 A rede de conexão do figurino da delegada Heloísa em Salve Jorge – parte I – Concepção do figurino .......................................................................... 58

3.3 Expressão do figurino – divulgação e comunicação do objeto ...................... 62 3.3.1 Ficção e realidade ................................................................................... 62 3.3.2 Construção do ídolo e celebridade da telenovela .................................... 64 3.3.3 Comunicação do objeto de figurino – sua materialidade e tangibilidade . 65 3.3.4 Organização da mídia e moda pela comunicação do objeto de figurino . 68 3.3.5 Rede de conexão do figurino da delegada – parte II – Expressão do figurino ............................................................................................................... 77

3.4 Organização das plataformas de consumo do figurino – comercialização do objeto...................................................................................................................... 80

3.4.1 Consumo na rede de conexão do figurino de telenovela ......................... 80 3.4.2 Comunidade real e imaginária ................................................................. 81 3.4.3 Trânsito do objeto entre a comunidade real e imaginária ........................ 82 3.4.4 Organização da indústria da moda para possibilitar o consumo do figurino de telenovela ....................................................................................................... 84 3.4.5 Rede de conexão do figurino da delegada Heloísa em Salve Jorge – parte III – Organização das plataformas para o consumo ................................... 95

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 99

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 102

ANEXOS ................................................................................................................. 105

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INTRODUÇÃO

A ideia de descrever processos me acompanha ao longo de mais de vinte e

dois anos de carreira no mercado corporativo, acadêmico e de comunicação. A

experiência como publicitária e na área de comunicação corporativa me trouxe

interesse pelos estudos e criação dos processos.

A organização dos recursos e conteúdos disponíveis facilita o movimento dos

sujeitos e objetos, melhorando o fluxo de informação e possibilitando um maior

controle desses recursos por meio da padronização. A padronização existe nas

áreas mais ou menos criativas, corporativas ou de comunicação, e é o eixo principal

deste estudo, que utiliza a telenovela como produto midiático.

A telenovela é um produto de comunicação e entretenimento com caráter

publicitário e comercial desde seu início, como se observa no primeiro capítulo,

“Telenovela – mídia e moda”. O caráter artístico e comercial da telenovela motivou a

escolha desse produto de comunicação como instrumento de pesquisa.

Para enfatizar a dualidade - caráter artístico e comercial - lembramos as

palavras do autor de telenovelas Aguinaldo Silva, em entrevista à TV Cultura, no

programa Roda Viva1: ele afirmou que mais de 30 milhões de pessoas em média no

Brasil assistem à telenovela da Rede Globo no horário das 21h, sendo seu

faturamento capaz de cobrir as despesas da folha de pagamento de todos os

funcionários da emissora, ou mais de 9 mil funcionários2.

Outro dado interessante que valida o caráter e até a dependência mútua entre

as duas polaridades refere-se ao custo de produção e faturamento com o produto

telenovela. Um comercial de 30 segundos na telenovela das 21h na Rede Globo

custa R$ 595.400,00 (quinhentos e noventa e cinco mil e quatrocentos reais)3. A

Rede Globo comercializa nessas telenovelas4 18 e 45 segundos, o que corresponde

1 Entrevista disponível na íntegra em: https://www.youtube.com/watch?v=o9dFLuKOo3M. Acesso

em: 15/02/2014. 2 Fonte: Central Globo de Comunicação (CGCOM). Disponível em:

http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/como-avenida-brasil-injeta-dinheiro-na-globo. Acesso em 15/02/2014.

3 Fonte: Jovedata. Disponível em: http://www.jovedata.com.br/. Acesso em 10/02/2014.

4 Fonte: Central Globo de Comunicação (CGCOM). Disponível em:

http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/como-avenida-brasil-injeta-dinheiro-na-globo. Acesso em 15/02/2014.

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a 25% do total do programa, tempo permitido por lei por programa, o que

corresponde a aproximadamente R$ 22.327.500,00 (vinte e dois milhões, trezentos

e vinte e sete mil e quinhentos reais) por dia de exibição da telenovela, sendo que o

custo de produção por capítulo fica em torno de R$ 450.000,00 (quatrocentos e

cinquenta mil reais).

A telenovela se organiza entre as duas vertentes, pois os produtores sabem

que uma trama interessante, com personagens cativantes, atrai o telespectador e

em consequência os anunciantes. Para discutir as duas vertentes, utilizamos como

corpus o figurino de telenovela, representado pela personagem delegada Heloísa,

interpretada pela atriz Giovanna Antonelli, da telenovela Salve Jorge, da autora

Glória Peres, veiculada entre outubro de 2012 e maio de 2013.

As questões da polaridade artística e comercial permearam a escolha da

estrutura do projeto de pesquisa, que é discutir o processo que existe na criação e

consumo do figurino, pela exposição na mídia e organização da moda.

Das inquietações vieram análises e estudos preliminares que permitiram a

pesquisa. A inspiração foi o estudo de Solange Wajnman e Silvia Cristina Jardim,

publicado pela revista Iara – Revista de Moda, Cultura e Arte, em dezembro de

2010, com o título “Moda, campo não hermenêutico e materialidade da

comunicação: por uma abordagem transversal em moda”. O conteúdo do estudo

discute a criação do figurino, sua exposição na mídia e a reapropriação do objeto de

figurino pelo telespectador, tratando essa abordagem como um ciclo, processo

sistêmico e complexo, denominando-o “rede de conexão”. Baseado no campo da

materialidade de Gumbretch, em que as reflexões centralizam no significante, na

relação do objeto com o corpo, do corpo e objeto com o contexto, suas conexões,

circuitos e circunstâncias, as autoras abordam como desvelar a rede de

significantes. A partir daí, o estudo evoluiu, reunindo a TAR – Teoria do Ator-Rede,

de Bruno Latour, que concentra seus estudos no campo da materialidade, com

conceitos específicos na valorização do objeto, no estudo do significante e não

apenas do significado.

Os princípios do projeto e seus objetivos vão ao encontro dos princípios da

TAR, basicamente três: estudar e vivenciar as associações “por dentro” dos fatos

durante o processo, visualizar os vínculos entre os sujeitos e objetos em ação

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durante o processo e descrever, descrever e descrever o processo, observando os

sujeitos e objetos em seus diálogos e vínculos, durante o processo.

O objetivo geral da presente pesquisa é estudar, entender e descrever o

processo que possibilita que o figurino do personagem de telenovela se torne moda

dos telespectadores. Os objetivos específicos são:

- Analisar e discutir a integração dos interesses comerciais e artísticos do

figurino de telenovela;

- Explicitar a importância da materialidade dos objetos no processo;

- Visualizar os integrantes do processo, sujeitos e objetos e quais as

associações durante o fluxo;

O aspecto central da discussão, que se tornou o problema de pesquisa é:

Existe ou não um padrão no processo que possibilita que o figurino do

personagem de telenovela se torne moda dos telespectadores?

Organizando os estudos para facilitar a pesquisa e o entendimento do projeto,

o conteúdo foi dividido em quatro bases de dados específicos e seus respectivos

referenciais teóricos:

1. Telenovela, com os autores Esther Hamburguer e Renato Ortiz, discutindo

o caráter comercial e social da telenovela no Brasil;

2. Figurino de telenovela e moda, com os autores Adriana Leite e Lisette

Guerra, e Fausto Viana e Rosane Muniz;

3. Mídia e consumo, com os autores Norval Baitello, Jurandir Freire Costa e

Zygmund Bauman;

4. Materialidade e processo, pela TAR – Teoria do Ator Rede, com os

autores Hans Ulrich Gumbrecht, Bruno Latour e André Lemos.

Para possibilitar o desenvolvimento da pesquisa e uma análise criteriosa das

informações, utilizamos as seguintes propostas metodológicas:

1. Análise teórica/bibliográfica na literatura específica;

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2. Análise do processo de criação do figurino, por meio de entrevistas

concedidas a pesquisadores e meios de comunicação de figurinistas

relevantes aos objetivos da pesquisa;

3. Análise de documentos: dados de institutos de pesquisa, associações e

demais dados divulgados relevantes à pesquisa;

4. Análise de dados de uma amostra empírica baseado na divulgação dos

meios de comunicação de massa e segmentados;

A análise dos dados coletados metodologicamente possibilitou o

embasamento da criação do processo detalhado do figurino de telenovela que se

torna moda e de todas as considerações finais do projeto de pesquisa, e a

organização da dissertação em três capítulos, sendo o primeiro “Telenovela, moda e

mídia”, o segundo “A vida dos objetos do figurino da personagem Heloísa da

telenovela Salve Jorge segundo a Teoria do Ator-Rede”, e o terceiro “Rede de

Conexão do figurino da personagem Heloísa da telenovela Salve Jorge”.

A criação da rede de conexão do figurino da personagem Heloísa foi possível

mediante as reflexões dos princípios básicos da TAR, que são simetria generalizada

– sujeitos e objetos possuem a mesma importância na construção dos fatos, rede –

como série de vínculos e conexões, actante – sujeitos e objetos, e de alguns

conceitos-chave definidos previamente, tradução ou mediação – comunicação entre

os actantes e controvérsia – questões que surgem a partir dos atritos na relação

entre os actantes. As controvérsias são escritas mediante a capacidade de o analista

observar as relações existentes entre eles.

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1 TELENOVELA, MÍDIA E MODA

1.1 Evolução da novela brasileira como produto midiático

A escritora e ensaísta britânica Virginia Woolf dizia que só existe o que é

contado. Conforme seu pensamento, conclui-se que histórias contadas mantiveram

Sherazade5 viva ao narrar para o rei Shariar, traído por sua primeira esposa,

histórias que nunca acabavam e recomeçavam no dia seguinte.

Em termos literários, o termo “novela” designa obras narrativas de longa

duração. No entanto, o conceito em nosso idioma é vago, porque não distingue

obras literárias, mas a novela se caracteriza intermediariamente entre conto e

romance, apresentada diariamente, com novos protagonistas e histórias paralelas de

semelhante força. No romance, uma única personagem principal pode estar em uma

história contínua de múltiplos eventos e contar toda a sua vida. Na novela, as

personagens enfrentam determinada circunstância ou dramatização, não havendo o

compromisso da narrativa de sua própria história.

Do francês feuilleton deriva-se a palavra folhetim, que quer dizer, em tradução

livre, “folha de livro”. Era, no século XIX, uma publicação com duas características

básicas: a primeira em relação ao seu conteúdo ágil, com fluidez dos

acontecimentos, multiplicidade de eventos e ganchos para gerar outros eventos a

fim de prender a atenção do leitor. O segundo refere-se ao seu formato de

publicação periódica, sequencial, em parcelas, com a finalidade de fidelizar o leitor

de jornais e revistas da época.

No livro de Marlyse Meyer, Folhetim (1996), história que recebeu o Prêmio

Jabuti de melhor ensaio de 1997, o folhetim, embora ficção, tinha como missão o

entretenimento popular, tratava a condição humana social com enredo simples e

sem grandes pretensões literárias, mas com registro do cotidiano, histórias sobre

ódio, amor, paixão, ciúme, vingança, coincidências, idas e vindas, ganância, pobres

5 Personagem de uma lenda da Pérsia, dotada de grande beleza e inteligência. Casou-se com o rei

Shariar, que, traído pela primeira esposa, jurou que mataria ao amanhecer todas as mulheres com quem se casasse. Ao narrar, ela deixava sempre a história sem término, provocando a curiosidade e o fascínio do rei, que lhe poupou a vida. No decorrer dos dias, apaixonou-se novamente, e seguiram com o casamento. Segundo a lenda, as histórias de Sherazade deram origem aos contos da coleção Mil e uma Noites.

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lutadores, ricos inescrupulosos, recompensas para os bons e punições para os

maus; narrativa acessível, de fácil entendimento e identificação, de senso comum e,

sobretudo crível. Por isso despertava o interesse dos mais pobres e, posteriormente,

preconceitos dos intelectuais. Porém, já na época havia registros da influência das

descrições de moda e figurino, uso de tecidos como o veludo, de instrumentos

musicais no âmbito doméstico, boas e más condutas comportamentais e éticas.

Supõe-se ainda a intenção de o periódico se posicionar como produto

vendável; para tanto, era preciso emitir vozes convincentes, proporcionar uma leitura

que, pela forma e conteúdo, conquistasse e fidelizasse o leitor consumidor. Diante

da necessidade da conquista, reflete-se que, mesmo como ideia primária, um

periódico exigia audiência, ainda que não tivesse as definições atuais, mas buscava

agradar e garantir a própria comercialização.

Pelo mesmo dilema, desde os primórdios, todos os meios de comunicação

compartilham iguais anseios: emitir vozes convincentes e posicionamento comercial.

Em sua essência, a novela, sendo folhetins, radionovelas e posteriormente

telenovelas, contribui para o sucesso do entretenimento e do veículo no qual era

lida, ouvida ou assistida.

Os recursos midiáticos dos folhetins de mídia impressa – que, embora

tivessem a capacidade de embalar o leitor em sua imaginação, exigiam obviamente

que o receptor soubesse ler, o que não lhes dava alcance, amplitude ou

popularidade – restringiam-se ao público realmente leitor ou que se dispusesse a ler

para os demais. O meio rádio libertou o receptor da obrigatoriedade, ampliando o

alcance da emissão da mensagem, tornando independente o receptor. De posse de

vozes entonadas, diferenciadas, recursos apenas sonoros, embalava o leitor, mais

do que isso, fazia com que qualquer pessoa entendesse por que mágica bastava

dispor de algumas horas e prestar atenção.

1.2 Produções da telenovela como produto de consumo próprio e a serviço da

propaganda publicitária

De acordo com Renato Ortiz (1989), em 18 de setembro de 1950, quando o

meio televisão, pelas mãos de Assis Chateaubriand, foi lançado no Brasil,

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inaugurou-se a PRF-3 – TV Tupi de São Paulo, com estúdio montado no bairro do

Sumaré e antena no edifício do Banco do Estado de São Paulo. Curiosamente,

havia mais pessoas por trás das câmeras do que assistindo em um aparelho de

televisão. Em uma década, de 1950 a 1960, foram comercializados 598 aparelhos

de TV. Esse número cresceu exponencialmente durante os cinco anos seguintes,

passando de 598, em 1960, para 1993 aparelhos em 1965. Nas décadas

subsequentes, o meio se consolidou: em 1970, eram 4,9 milhões de aparelhos e em

1980, 19,6 milhões (ORTIZ, 1989, p. 55). Geograficamente o crescimento também

se consolidou, passando de duas cidades com emissoras, em 1950, para 17 cidades

em 1964 (p. 56).

A emissora, que tinha por característica emitir a programação, não a produzia,

a cargo de grandes empresas multinacionais, como Gessy-Lever e Colgate-

Palmolive, o que sinalizava e revelava o caráter comercial e publicitário de que

dispunham a emissora e a telenovela, segundo Renato Ortiz (1989). Toda a

programação, com horário, era ao vivo, e assim até 1962.

Problemas existiam. Primeiramente porque a programação não ficava

disponível por 24 horas; em segundo lugar, não havia obtido a maturidade de

produção da programação e do que produzir; terceiro, um velho problema

recorrente: como fidelizar o telespectador. Mas havia uma marcante vantagem com

o recurso da imagem: produziam-se novelas diferentes, em distintos horários, o que

não confundia o público. O rádio talvez implicasse um não entendimento completo,

pelo fato de haver apenas som de vozes e recursos. Na televisão, os personagens e

histórias eram identificados principalmente pelo figurino.

A primeira telenovela brasileira foi Sua vida me pertence, de Walter Foster,

em 1951, na TV Tupi de São Paulo (ORTIZ, 1989, p. 55-56), transmitida duas vezes

por semana, permanecendo com a mesma periodicidade até 1963, quando foi

lançada a primeira telenovela diária, 2-5499 ocupado, do argentino Alberto Migré,

adaptada por Dulce Santucci, com os atores Tarcísio Meira e Glória Menezes

protagonizando o casal principal. A emissora Excelsior, que funcionou dez anos, de

setembro de 1960 a 1970, foi a primeira emissora a trabalhar com grade de

programação horizontal e vertical, habituando o telespectador a assistir à televisão

cotidianamente, no mesmo horário.

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O enredo dessa novela mostrava um rapaz que havia se apaixonado por uma

voz feminina ao telefone, a partir de um único contato: a moça, porém, era

presidiária, que trabalhava como telefonista na instituição penitenciária. Um enredo

de amor impossível, com fórmula funcional até os dias atuais. De 30 de março a 13

de setembro de 1999, foi ao ar a novela Louca Paixão, na TV Record, protagonizada

pelos atores Maurício Matar e Karina Barum.

A TV Record, fundada em 1953 por Paulo Machado de Carvalho, é a mais

antiga emissora em atividade no Brasil. Mais tarde, se consolidou como emissora

musical, produzindo festivais de música popular brasileira que fizeram parte da

história de resistência contra a ditadura militar, e novelas marcantes, utilizando a

receita propícia do amor impossível, ódio, inveja e traição.

Nessa época, a identificação do público com as narrativas começa a ser

ingrediente para a continuidade da telenovela, e seu resultado como produto de

entretenimento a partir da expectativa do telespectador sobre o desfecho da trama.

O público que acompanha dia a dia o desenrolar da estória é também depositário da verdade sobre a trama. O segredo possui significado apenas no âmbito dos personagens; o espectador tudo sabe, pode torcer, amar ou odiar como se realmente fizesse parte daquele universo e pudesse interferir no seu desenvolvimento, o que na verdade é um privilégio do autor. (ORTIZ, 1989, p. 76)

Embora as mudanças na estrutura da narrativa de telenovela tenham ocorrido

desde 1989, conforme afirmou Lamounier Lucas Pereira únior no Intercom 2013, a

relação com o telespectador continua.

A partir da década de 1 0, alguns fatores socioculturais e econômicos brasileiros viriam, sobremaneira, interferir no enredo e na estrutura narrativa da telenovela, sobretudo no ritmo imposto pelos capítulos, na sucessão de clímax e ganchos diários, e nos pontos de virada. (PEREIRA, 2013, p. 8)

A relação do telespectador com a telenovela mantém-se como produto de

entretenimento para as emissoras; prova é que a Rede Globo de Televisão produziu

dez novelas inéditas somente em 2012 (LOPES; GÓMEZ, 2013, p. 139).

Ortiz (1989) afirma que são fatores que geram identificação do público com as

personagens, fidelizando-o, pois passa a utilizar a telenovela como válvula de

escape para emoções e frustrações, o que abre portas para a comercialização de

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produtos: o público era, em sua maioria, mulheres, donas de casa com potencial

decisório, ávidas por produtos que facilitem afazeres diários e compras dotadas de

custo-benefício, o que muito favoreceu a “indústria de sabão” da época.

De olho no mercado, as agências de propaganda foram determinantes no

desenvolvimento e conduta da telenovela no Brasil, responsáveis em muitos casos

pela contratação de toda a equipe, de autores a atores. Das 24 novelas produzidas

em 1969, 16 estavam sob o patrocínio das empresas Gessy-Lever, Colgate-

Palmolive e Kolynos-Van Ess (ORTIZ, 1989, p. 60); o investimento publicitário no

produto passou de 36,7% do total investido no mercado em 1970 para 51,6% em

1980 (p. 81).

Ali, o figurino tinha função bem clara, pontual, de dar corpo à estrutura da

novela, para fazer parte da história, contá-la e estabelecer-se como produtora de

discurso, demarcando e fortalecendo a trama.

A telenovela estimula, conforme analisa Esther Hamburguer (2005, p. 13), o

“debate sobre as relações entre fato e ficção, televisão e realidade, representação e

experiência, teoria e prática”.

As especulações em torno das personagens, sua personalidade e conflitos

nas narrativas produzem interação entre as pessoas que ultrapassa a ficção e gera

diálogos intensos na realidade, reflexões sobre os valores e decisões referentes às

situações vividas pelas personagens.

As discussões interferem no modo de pensar e agir dos telespectadores, com

assuntos que não faziam parte de seu cotidiano, mas que por meio da “janela para o

mundo”, como foi intitulada muitas vezes a televisão, permeiam pensamentos e

opiniões, fazendo sentido o que afirma Hamburguer (2005, p. 166): “A fantasia da

televisão seria a de que os telespectadores estão presentes na cena da ação”.

O grupo norte-americano Time Life iniciou suas atividades em 1965,

associando-se ao jornalista Roberto Marinho, que havia obtido a concessão para a

operação de emissoras de televisão nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e

Brasília. Contudo, consolidou-se como produtora audiovisual em 1969, investindo

em tecnologia, infraestrutura e profissionais. Com o apoio do governo militar,

nacionalizou-se.

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Os principais profissionais da emissora na época de consolidação eram

estrangeiros, que, com experiência e vivência, implantaram na emissora conceitos

profissionais norte-americanos e ocuparam cargos importantes e estratégicos:

Joseph Wallace ajudou a organizar a gestão financeira; o panamenho Homero

Sánchez era responsável pela pesquisa de mercado e Hans Donner pela

computação gráfica (HAMBURGUER, 2005, p. 33). Esses profissionais conferiram à

emissora um caráter publicitário, mostrando a preocupação com a essência de

qualquer veículo de comunicação, que é produzir conteúdo e gerar resultados

positivos em seu faturamento. O caráter organizacional da emissora, sob o manto

publicitário, foi reforçado pela administração geral, do profissional de publicidade

Walter Clark, durante dez anos, desde o início das operações.

Descobriu-se na telenovela um produto de consumo cada vez mais

importante ao longo de sua produção e exposição, para o telespectador e

anunciantes, que investiam na programação televisiva, especialmente em novelas.

Walter Clark criou um departamento de produção de telenovela na Rede Globo, e a

emissora promoveu grandes mudanças nas produções, que mais tarde se tornaram

de ponta, a fim de manter o interesse do público telespectador.

Na época, além da estrutura de produção, o formato do conteúdo se

transformou. Não mais cenários remotos e fantasiosos, estilo melodramático e

figurinos exóticos, narrativas passadas em lugares e tempos distantes das

adaptações de obras estrangeiras de que se utilizava a autora cubana Glória

Magadan. Agora são cenários e estilos mais realistas em narrativas

contemporâneas, da brasileira Janete Clair (HAMBURGUER, 2005, p.85), com

tramas nacionais e próximas aos conceitos de liberdade e contemporaneidade.

As novelas passam a utilizar diálogos coloquiais e a se referir a eventos e questões capazes de provocar debate e conversação. O foco das novelas da Globo na expressão da “vida como ela é” é coerente com o mote do Jornal Nacional, lançado pela emissora em 1969 [...] o produto brasileiro incorporou o humor, a ironia, o sarcasmo; apresentou figurinos da moda e maior densidade nas tramas que assimilaram a crítica de costumes. (HAMBURGUER, 2005, p. 85)

A produção ou reprodução do contemporâneo iniciou uma nova fase das

telenovelas brasileiras, que se consolidou nas décadas de 1970 e 1980, quando as

“novelas passaram a ser vitrines privilegiadas do que significava ser ‘moderno’, estar

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sintonizado com a moda e comportamentos contemporâneos” (HAMBURGUER,

2005, p. 86).

Uma vitrine na qual é possível expor ideias, conflitos, problemas e produtos,

seduzindo o telespectador em ambiente refletido nas produções contemporâneas.

Acessíveis no interior do espaço doméstico, as novelas dirigem-se a todos os telespectadores da mesma maneira. Se determinados segmentos do público não podem desfrutar do consumo dos bens exibidos nas novelas, eles aprendem que produtos estão disponíveis, para que servem e como deveriam ser usados, um conhecimento que entendem como necessário para sua inclusão na sociedade. Ao utilizar os recursos disponíveis, telespectadores de menor poder aquisitivo procuram reconstruir o universo representado em suas vidas. E nessa busca, o mundo do espetáculo aparece como via de realização social-profissional possível. (HAMBURGUER, 2005, p. 83)

1.3 Figurino de telenovela como agente

A realidade transformada em ficção ou a ficção refletindo a realidade permite

à novela ser grande produtora de moda e comportamento. A possibilidade de

consumir os objetos divulgados na vitrine confere ao telespectador o nivelamento por

meio da apropriação, no dia a dia, desses objetos. O nivelamento se dá no campo

do tempo e espaço, ficção e realidade, e desperta o sentimento de pertencer à

“realidade” exposta na telenovela, o que talvez explique por que alguns objetos se

tornam sucesso e outros não. A nomenclatura “vitrine” vem ao encontro da reflexão

geral deste trabalho, que discutirá como o figurino de telenovela se torna moda.

Deve-ser abordar que a novela não extrapola conceitos inacessíveis. Para

haver a identificação, roteiro, trama, narrativa, cenário, construção de personagens,

figurino e decoração de ambientes devem não apenas respeitar o telespectador,

mas convencê-lo do plausível sem ofender. Na novela Avenida Brasil6 havia uma

personagem que morava, criava e educava filhos adotivos no lixão, lugar fétido, de

muitas privações e miséria, mas retratado com delicadeza. A estética da casa da

personagem tinha organização espacial, recursos de conforto e objetos que não

condiziam com a sua realidade.

6 Telenovela exibida pela Rede Globo, de 26 de março de 2012 a 19 de outubro de 2012, sucesso

de audiência no horário das 21 horas. Foi escrita por João Emanuel Carneiro e dirigida por José Luiz Villamarim e Amora Mautner.

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1.4 Apropriação de objetos do figurino

Como pressuposto que o figurino é a resposta para a caracterização das

personagens, o figurinista entra em cena. A partir da sinopse, o profissional inicia

seu trabalho com pesquisa de imagens. E é preciso estar atento a tecidos, formas e

cores, além das imagens que refletem o que Emília Duncan (VIII Colóquio de Moda

de 2011) chama de “DNA”: “Não é uma pesquisa só de roupa, não é a roupa em si, é

o clima, o DNA, o universo em que ele funciona [...]”.

Portanto, o estudo não deve ser somente da roupa, mas da vida ou estilo de

vida da personagem, e a fonte inesgotável para a pesquisa está no social. A seleção

das imagens ocorre de diversas formas e nos lugares mais diversificados, como um

laboratório: livros, revistas, documentos, internet, fotos de pessoas comuns, bairros,

lojas, supermercados, grifes, filmes, lojas de discos, sites de tendências e

shoppings. Com as imagens em mãos, o figurinista começa a segunda fase do

trabalho: intervenções nas imagens coletadas, junção de peças, inclusão e exclusão

de acessórios. Verdadeiro quebra-cabeça para a caracterização das personagens,

visualizando sua “aura” em cada decisão. Dos experimentos e direcionamentos

criam-se cores, texturas e desenhos das roupas e acessórios, para posterior

produção.

Apesar de a emissora ser responsável por tudo o que se refere à produção e

à programação de telenovela nem sempre foi confortável:

Os atores traziam suas roupas de casa, e no caso de peças históricas, a empresa alugava as vestimentas na Casa Teatral. Só mais tarde, com a entrada da TV Excelsior, que se dá em bases empresariais mais sólidas, é que ocorre uma especialização de funções, as emissoras criando departamento de figurino, guarda-roupas, cenografia etc., e passa a existir o departamento de figurino. (ORTIZ, 1989, p. 34)

Conhecer o processo de criação e produção de figurino é essencial para

questões fundamentais sobre o caráter comercial dos objetos, pois, segundo

Bastide (1971, p.193), “o estilo possui uma orientação espiritualista – advém do

mundo das ideias e outra produtivista – produto das relações de produção

capitalista”. De fato, é a discussão central do trabalho: o figurino, que tem como

missão não apenas caracterizar as personagens, materializando sua aura na

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construção da narrativa de uma novela, mas também emitir e tornar-se objeto de

desejo do receptor da telenovela, que pode facilmente consumi-lo. E disso depende

o sucesso da trama e da emissora.

A telenovela utiliza uma plataforma midiática televisiva e abre espaço de

interferência de conteúdo da opinião pública, ao mesmo tempo em que a trama

interfere no comportamento, hábitos e costumes de seu público telespectador, pelo

menos durante seu período de transmissão, a fim de garantir o próprio sucesso e o

sucesso da emissora como produtora de entretenimento, novos comportamentos,

hábitos de consumo e costumes.

Atualmente, a telenovela é tratada como “obra aberta”7, por ter a possibilidade

de modificações conforme a opinião pública. Seu conteúdo reflete o social e o

propaga, ou seja, ela não dita conteúdos, originários dos acontecimentos sociais,

mas apenas reflete e propaga acontecimentos, e que rapidamente têm a adesão dos

telespectadores, apenas por emitir, apenas por dizer, apenas por mostrar.

Como exemplo, a mocinha real, da fazenda no interior da Bahia, pode

comportar-se como a mocinha personagem poderosa da zona sul do Rio de Janeiro,

que dirige sua SUV, vestida de Dior, com batom vermelho, cabelos lisos. Globaliza-

se a informação de tal modo que fica repetitiva.

Como objeto de estudo, utilizo o figurino da personagem delegada Heloísa, da

telenovela Salve Jorge, interpretada pela atriz Giovanna Antonelli, reconhecida pelas

telespectadoras, gerando moda com o seu estilo. A novela foi transmitida pela TV

Globo no período de 22/10/2012 a 17/5/2013, no horário das 21h, com direção-geral

de Marcos Schechtman e autoria de Glória Perez. A narrativa principal era sobre o

7 Esse conceito de obra aberta é bem diferente daquele criado por Umberto Eco. Este explica um

texto aberto de modo diametralmente oposto ao da narrativa da novela. No entanto, análises recentes sobre as séries ficcionais de TV, como nos mostra Ortiz (1989) referindo-se a Robert Allen, encontram no gênero traços da “abertura” proposta por Eco. De acordo com sua análise, apesar de a novela não se apresentar como arte e tampouco como vanguarda, traz em si algumas características da “obra aberta” proposta por Eco, “pois, devido a uma superabundância de situações e personagens, cristaliza uma forma literária permeada por múltiplos códigos”( Ortiz, 1989, p.177), além de se apresentar ao público em sua plena construção. Contudo, “este debate se coloca nos parâmetros teóricos da crítica literária” (ortiz, 1 8 , p.178), não cabendo aqui maior desenvolvimento sobre ele. Embora a telenovela seja acusada de ser uma obra menor, superficial, “pobre”, o que se torna evidente é que a apropriação do termo “obra aberta” se dá principalmente pelo seu sentido literal, pois a telenovela apresenta uma abertura no sentido de sua constante construção e mesmo reconstrução, o que lhe confere a possibilidade de uma perpétua renovação. (LEITE; GUERRA, 2002, p. 109).

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tráfico internacional de pessoas; as tramas paralelas se dividiam entre os conflitos

no Morro do Alemão no Rio de Janeiro e a luta contra o tráfico de pessoas:

O tráfico internacional de pessoas é o principal mote da novela, que traz como heroína a jovem Morena (Nanda Costa), moradora do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, um dos principais núcleos da trama. Ela recebe uma proposta para trabalhar na Turquia e, ao chegar ao país, percebe que foi traficada, passando a lutar para livrar-se da máfia do tráfico e ver presa a chefe da gangue no Brasil, Lívia Marine (Claudia Raia). Ao longo de toda a trama, Morena vive um romance de idas e voltas com Theo (Rodrigo Lombardi), capitão da cavalaria do Exército, devoto de São Jorge, que deseja assumir a relação e criar como seu o filho da jovem, Júnior (Luis Felipe Lima). Após entrar em contato com a delegada Helô (Giovanna Antonelli), que já vinha seguindo pistas para identificar e prender os integrantes da quadrilha, ela volta ao Brasil disfarçada [...] e passa a colaborar com as polícias brasileira e internacional (MEMÓRIA GLOBO, 2013).

A empatia da Giovanna Antonelli, seu talento para desenvolver a personagem

e a importância que obteve na trama, significando a grande “salvadora” da indefesa

mocinha traficada, deram destaque ao seu papel. Além disso, o cinto marrom pode

ser comprado pelo telefone da Central Globo e o bracelete no site da designer de

joias Juliana Ibarra, de R$ 850 a R$ 920.

Corroboramos a reflexão levantada por Renato Ortiz (1989), de que a opinião

dos telespectadores se reflete na narrativa. Sendo a telenovela uma obra aberta, o

autor pode, e com frequência o faz, alterar a narrativa mediante a resposta do

telespectador à trama. A experiência cria conexão entre as personagens e o

telespectador, que se sente capaz de influenciar a novela, além de ser influenciado

por ela. Roger Silverstone denomina de “apropriação do espaço da mídia”:

Ao descrever seu próprio movimento de sair da frente da televisão e ir para as ruas vivenciar o pesar da multidão pela morte da princesa Diana, Roger Silverstone descreve o que ele denomina como um movimento de apropriação do espaço da mídia para descrever sua própria experiência de se afastar da atitude de reflexão mediada em que se encontrava enquanto assistia aos eventos em sua televisão, para participar dos eventos nas ruas de Londres

8. (SILVERSTONE apud HAMBURGUER, 2005, p. 165)

Roger Silverstone, no impacto exposto pela mídia sobre o acidente da

princesa Diana, flagrou-se vivenciando a notícia, participando das homenagens nas

ruas de Londres, a tal ponto de dela se apropriar, como se sua fosse.

8 Roger Silverstone apud Esther Hamburguer. Christine Geraghthy, A. Kuhn, R. Brunt, J. Kitzinger, B.Edginton e R.Silverstone, “Special debate. Flowers and tears: The death of Diana, Princess of Wales”.

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O telespectador, em uma espécie de mergulho, vivencia os fatos expostos na

narrativa e, como Silverstone, para participar, busca a apropriação dos objetos de

figurino expostos na vitrine telenovela e cria vínculo com a personagem e narrativa.

Como objeto deste estudo, discutiremos a identificação do telespectador com a

personagem da atriz Giovanna Antonelli na pele de Heloísa, delegada bonita,

elegante, bem formada, honesta, independente, determinada, profissional, que

causou grande empatia. Não bastava assisti-la; à telespectadora era possível se

apropriar, mesmo em parte, dessas características, por meio da aquisição dos

objetos do figurino.

Neste estudo, a interação é fruto da conexão entre a moda e o poder da mídia

em estabelecer padrões e conceitos, e nos atentaremos à complexa rede existente

entre ambos. Entendemos que a moda se reflete na mídia, que a propaga em um

círculo de retroalimentação, renovando-se a cada nova vitrine, da loja ou da novela.

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2 A VIDA DO FIGURINO DA PERSONAGEM HELOÍSA DE SALVE JORGE,

SEGUNDO A TAR

A apropriação do objeto de figurino é possível mediante as associações

existentes ao longo do processo de concepção, expressão e apropriação do figurino,

que envolve a produção e exibição da telenovela, e as articulações da mídia e do

mundo da moda.

Para dar continuidade ao trabalho é essencial entender o que se denomina

“vida” do objeto de figurino. A nomenclatura existe nos estudos do campo da

Materialidade, sendo um dos autores Gumbrecht, e Teoria do Ator-Rede de Bruno

Latour. Neste capítulo serão descritos os principais conceitos de ambas as teorias, e

qual a conexão existente entre elas que fundamentará a pesquisa.

2.1 Objeto

O objeto na comunicação é discutido na corrente que Gumbrecht denomina

de “Materialidade de Comunicação”, analisada detalhadamente a seguir. Por ora, o

importante é a definição literal de objeto, segundo o dicionário Aurélio9: “s.m. Tudo o

que se oferece à vista, que afeta os sentidos./Qualquer coisa./Fig. Tudo o que se

oferece ao espírito, que o ocupa; intenção, propósito”.

Latour afirma que os não humanos são os objetos, e que desempenham

papel fundamental na construção do social, principalmente porque são elementos

que levam à ação.

[...] nem se duvida que panelas “fervam água”, que facas “cortem” carne, que cestos “guardem” comida, que martelos “preguem” pregos, que grades “impeçam” crianças de cair, que fechaduras “tranquem” portas para barrar visitantes indesejados, que sabão “lave” sujeira [...]. (LATOUR, 2012, p. 107).

Os objetos isoladamente, assim como os seres humanos, não realizam

ações. A associação entre eles permite a ação e criação de grupos e vínculos que

darão sentido a uma rede em determinado espaço-tempo.

No caso, o objeto “cinto de duas voltas”, do figurino da delegada Heloísa, na

telenovela Salve orge, serve como “pano de fundo” para a caracterização da

9 Disponível em: http://www.dicionariodoaurelio.com/Objeto.html, acesso em 09/01/2014.

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personagem, permitindo a visualização de sua elegância, não impedindo os

movimentos imprescindíveis à atuação de uma delegada. Se refletirmos sobre a

possibilidade de apropriação do cinto, constata-se que sua venda em sites cria outra

configuração de associação dos objetos. A internet passa ser o “pano de fundo” que

leva à ação da compra do cinto. Independentemente das duas associações, fica

claro que o objeto leva o humano à ação, e o humano usa o objeto para realizar a

ação.

Além da ação e associações momentâneas que fazem parte de uma

complexa rede, os objetos possuem características que se comunicam por si sós; no

caso do cinto, seriam cor, couro, fivela e utilização por cima ou por baixo da blusa.

2.2 Materialidade da Comunicação

Material origina-se de matéria, o que é concreto, palpável, tangível,

características de tudo aquilo que vemos e pode gerar sentido e sensações. Para

Gumbrecht, a expressão “Materialidade da Comunicação” foi definida no colóquio de

mesmo nome, em 1 88: “São todos os fenômenos e condições que contribuem para

a produção do sentido, sem serem, eles mesmos, sentido” (GUMBRECTH, 2010, p.

28).

André Lemos, um dos autores atuantes no campo de estudo da materialidade,

assim a define:

O conceito de materialidades visa tratar as mídias para além de uma hermenêutica da comunicação. A teoria parte do princípio que toda forma de comunicação é feita a partir de suportes materiais e que estes devem ser analisados antes de serem interpretados ou abstraídos de suas características materiais. (LEMOS, 2013, p. 206)

A exibição do figurino da delegada nos diferentes meios de comunicação (na

televisão, nos capítulos da telenovela e programas femininos, além de revistas

especializadas em moda, sites de comercialização e redes sociais) sofre influência

da produção de sentido para o ser humano, pois cada um deles “transporta” a

comunicação de forma única: “[...] qualquer forma de comunicação, com seus

elementos materiais, ‘tocará’ os corpos das pessoas que estão em comunicação, de

modos específicos e variados” (GUMBRECTH, 2010, p.3 ).

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É importante salientar que não é objetivo deste estudo discutir ou discorrer

sobre o sentido que os objetos do figurino da delegada têm para o telespectador,

mas descrever a rede de conexão entre humanos e objetos que permite a

apropriação do objeto por parte dos telespectadores. Buscamos a contribuição de

Solange Wajnman e Silvia Cristina Jardim:

Desta forma, pensando a moda através dos meios de comunicação e iluminados pela sugestão de Gumbrecht que [...], podemos pensar no seguinte caminho dos significados dos objetos que compõem o processo do traje audiovisual: primeiramente, partimos do conceito de comunicação enquanto processo e assumimos que os significados já estão disponíveis na esfera cultural. Diretores, figurinistas e roteiristas se apropriam desses significados e os transformam em peças que se acoplam ao corpo do artista, modelo ou personagem, para emitir uma mensagem. Em seguida, o corpo desse personagem é somado ao cenário, trilha sonora, diálogos e movimentos de câmara para construir uma mensagem audiovisual maior, que é recebida pelo receptor através de sensações sinestésicas. Por fim, o receptor se apropria desses objetos e seus significados usando-os fora da tela, a partir de suas próprias reinterpretações, devolvendo novos significados à esfera cultural. (WAJNMAN; JARDIM 2010, p. 210. (Iara: Revista de Moda, Cultura e Arte, v. 03, n. 3)

Todos os objetos e humanos que compõem a rede de conexão que é o

figurino de telenovela produzem, por meio de associações, alguma comunicação e

consequentemente significados. A proposta do presente trabalho é rastrear, pela

identificação dos elementos, qual o caminho do figurino da delegada, da sua

concepção à possibilidade de aquisição pelo telespectador.

Partindo do pressuposto que a Materialidade da Comunicação proporciona,

deve-se centrar o olhar no tangível. Segundo Gumbrecht, em Produção de

Presença, há aí uma das várias conexões com a Teoria do Ator-Rede, que é o

movimento constante, a ação.

O que é “presente” para nós (muito no sentido da forma latina prae-essere) está à nossa frente, ao alcance e tangível para nossos corpos [...]. Se producere que dizer, literalmente, “trazer para diante”, “empurrar para frente”, então a expressão “produção de presença” sublinharia que o efeito de tangibilidade que surge com as materialidades da comunicação é também um efeito em movimento permanente. (LATOUR, 2012, p. 107).

Outra importante conexão entre a Materialidade da Comunicação e a Teoria

do Ator-Rede é a importância que ambas dão ao objeto, às coisas não humanas,

sem detrimento ao humano, o que Bruno Latour denomina de “simetria

generalizada”. A Teoria do Ator-Rede é a base desta pesquisa, pois permite a visão

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racional do processo do figurino de telenovela, sendo o da delegada Heloísa um

objeto, uma comunicação, identificação e, por fim, consumo.

2.3 Teoria do Ator-Rede

Ao iniciar as pesquisas para o projeto, me deparei com a questão do

referencial teórico, ou como definir uma teoria que permeasse todo o estudo, capaz

de transmitir meus pensamentos e inspirações durante a dissertação, e a partir da

qual pudesse contribuir para o crescimento do campo de estudo. Tive contato com a

Teoria do Ator-Rede (TAR10) nas aulas de pós-graduação, em seminários e

pesquisas na literatura, e sua utilização nos estudos da comunicação. A decisão de

utilizar essa teoria foi a possibilidade de dissertar sobre comunicação objetiva e

concretamente, em visão mais racional que emocional, do ponto de vista

organizacional e não receptivo da comunicação. Por ser publicitária, minha visão de

comunicação sempre foi muito mais mercadológica e estratégica do que filosófica.

Rastrear e identificar os elementos e caminhos que o figurino de televisão percorre

para ser colocado à disposição do telespectador, sem perder a essência acadêmica,

me instiga e movimenta na construção do projeto de pesquisa com tal teoria.

Descreverei os pressupostos teóricos da TAR importantes para a pesquisa.

2.3.1 Origem e conceito da TAR

A TAR se baseia na relação entre humano e não humano; o principal

paradigma discutido é de que o ser humano não é o centro da intencionalidade na

construção dos fatos. Bruno Latour declara que se trata de um “método de

construção e fabricação dos fatos” e não propriamente uma teoria que se aplica a

algo. Segundo André Lemos:

A Teoria do Ator-Rede (TAR) nasceu no âmbito dos Estudos da Ciência e Tecnologia (Science and Tecnology Studies, STS), sendo estabelecida nos anos 1980 por Bruno Latour, Michel Callon, Madeleine Akrich, John Law, Wiebe Bijkr, entre outros (LATOUR, 2005a, AKRICH, M., LATOUR, B., 2006, BIJKER E LAW, 1 4). Ela é também conhecida como a “sociologia da tradução” (sociology of translation) ou sociologia da inscrição (enrolment theory). (LEMOS, 2013, p. 34)

10

Optarei a partir de agora a escrever TAR todas as vezes que me referir à Teoria do Ator-Rede.

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A TAR é uma forma de conhecer e organizar o mundo, estudando e

rastreando a construção dos fatos que lhe dão sentido, observando todos os

elementos que o constituem, sem privilegiar o humano como centro das justificativas

para efeitos e ações (simetria generalizada), na qual todos os atores têm igual

importância. Nessa visão, humano e objeto interagem e constroem seu lugar no

mundo, o que Latour denomina de hibridismo e heterogeneidade. Os estudos

baseados na TAR identificam os caminhos seguidos pelos fatos, indicam os atores

que participam da produção e analisam a interação entre eles (tudo isso em

movimento), buscando o equilíbrio na descrição dos fatos sem privilegiar nenhum

ator, havendo equilíbrio e justiça na importância que cada um tem dentro da rede.

E ainda, a TAR objetiva dar sentido aos fatos racionalmente (pela sua

materialidade), detectando como uma rede foi tecida. Quem construiu? Como

construiu? Quais atores foram mobilizados (humanos e objetos)? Quem interagiu

com quem? Quando houve a interação? Quais os efeitos da existência e da

interação? Quais alianças e vínculos criados e questionados? Quem são os porta-

vozes? Como a rede se movimenta, se cristaliza ou se dilui? Além da visão racional

na construção dos fatos, a TAR se torna desafiadora, pois os estuda durante a sua

construção (em movimento), revelando todo o dinamismo e “balanço” existentes em

qualquer percurso. Estudar um fato cristalizado implica conforto, mas estudar um

fato em ação provoca instabilidade e a necessidade de um olhar sem emoção,

apoiando-nos em sua materialidade e concretude. A TAR apresenta a rede, seus

atores e conexões. A rede é o que é. Embora seja dinâmica, ela sempre existirá

(materialmente falando) de alguma forma. A importância e a reapropriação que dá

aos fatos e objetos produzem o senso de compartilhamento e pertencimento ao

mesmo mundo de seus atores.

A questão principal proposta pela TAR às ciências sociais como um todo é, a meu ver, dedicar atenção à dinâmica da formação das associações, aos movimentos dos agenciamentos, à distribuição da ação entre atores diversos, humanos e não humanos, a partir da simetria generalizada. (LEMOS, 2013, p. 37)

O movimento é a base da Materialidade da Comunicação e da TAR, uma das

premissas conhecidas da telenovela, como se apresenta no capítulo anterior, como

“obra aberta”, comunicação em constante movimento, sofrendo alterações na

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narrativa, produção, personagem e figurino da personagem. O figurino da delegada

exemplifica a constante ação e interação, como se estudará no próximo capítulo.

2.3.2 Conceitos-chave da TAR

Actante

“Ator”, na expressão Ator-Rede, refere-se a todos os elementos que

compõem uma rede de conexão, humanos ou não humanos (objetos). Opto por

chamar de actante (humano e objeto), a fim de descrever quem são na rede de

conexão do citado figurino. Actante é quem ou que realiza uma ação, termo criado

por Greimas (1974) e tomado de empréstimo pela TAR. Um actante, portanto, será

sempre mediador ou intermediário, pois o movimento é sua constante.

Ele é o mediador, o articulador que fará a conexão e montará a rede nele mesmo e fora dele em associação com os outros. Ele é o que “faz fazer”. E actante é tanto o governante, o cientista, o laboratório, a substância química, os gráficos e tabelas [...]. Ou seja, humanos e não humanos em um mesmo terreno, sem hierarquias definidas a priori. (LEMOS, 2013, p. 42)

O olhar para o actante e não apenas para o comportamento humano será o

diferencial da pesquisa. Identificar e descrever os actantes na rede complexa do

figurino permitirá discutir as conexões e entender como as associações fazem a

diferença no resultado da telenovela e na apropriação do objeto do figurino pelo

telespectador. E ainda visualizar como a materialidade de um figurino de telenovela

contribui para o desenvolvimento da comunicação e como a materialidade da

comunicação contribui para o desenvolvimento de um figurino de telenovela. Os

actantes serão descritos e rastreados no capítulo seguinte.

Rede

A rede é a conexão entre os actantes em determinado espaço-tempo. Como

afirma André Lemos, “a rede é o próprio movimento associativo que forma o social”

(LEMOS, 2013, p. 53).

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Em seu livro “Reagregando o social – uma introdução à Teoria do Ator-Rede”,

Bruno Latour ressalta que não há grupos, apenas formação de grupos:

[...] os agrupamentos precisam ser feitos ou refeitos constantemente, durante essa criação ou recriação, os construtores deixam para trás inúmeros traços que podem ser usados como dados pelo informante. (LATOUR, 2012, p. 59)

A rede é movimento que se dá em conexão. É possível visualizar um cardume

de peixe se movimentando em busca de sua sobrevivência; quando uma rocha

atravessa seu caminho, eles se deslocam e mudam a rota em conjunto, alterando a

direção, mas tentam manter o grupo. Se houver a impossibilidade da unidade,

formam-se dois grupos. Não há rede sem conexão e sem comunicação, pois o

movimento de um actante altera uma ou mais conexões, refazendo a rede. Como

assinala André Lemos, “rede não é por onde as coisas passam, mas aquilo que se

forma na relação (mediação, tradução) das coisas. É o espaço e o tempo” (LEMOS,

2013, p. 54).

Descrever a rede de actantes do figurino da delegada mostrará quem são os

actantes, qual o papel de cada um (humano e objeto) na rede e como ela se

movimenta com e por meio da comunicação. Durante a movimentação constante,

ocorrem momentos de estabilização da rede, nos quais o telespectador se identifica

com a personagem e busca os figurinos, alimentando a rede no desejo de

apropriação dos objetos. O instigante na criação da rede é observar a natureza da

telenovela e da TAR, seu constante movimento. A telenovela é obra aberta, sofrendo

influências e alterando conteúdo e formato durante a exibição e criação. A TAR

pretende analisar exatamente as redes em movimento. Os actantes (autor, atriz,

lojista, sites) promovem ações de acordo com as ações dos demais actantes

(telespectador, audiência, redes sociais), formando e movimentando a rede do

figurino. As conexões e ações serão descritas no próximo capítulo.

Tradução ou mediação

A tradução ou mediação é a comunicação entre os actantes da qual é

possível criar qualquer rede de conexão. Sem comunicação não existe ação e,

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portanto, não existirá rede. Todos os actantes (humanos e objetos) se comunicam a

seu modo e colaboram na criação e recriação de uma rede.

[...] Tradução, mediação, comunicação é toda ação que um actante faz a outro, implicando aí estratégias e interesses próprios na busca da estabilização futura da rede ou da resolução da estratégia ou do objetivo. (LEMOS, 2013, p. 48)

A mediação é feita com os diálogos e discussões que movimentam a rede. A

qualidade da comunicação mantém ou altera a direção e o tempo de um vínculo,

influenciando o fluxo das informações e a estruturação de uma rede de conexão.

Na rede de conexão do figurino da delegada Heloísa, a comunicação dos

objetos acompanha a estratégia do autor, produtor e diretor da telenovela, que

seguem os direcionamentos da emissora, com o objetivo de conquistar o

telespectador. Pelas mediações (comunicação) entre sujeitos e objetos, e em

consequência delas, são criadas as conexões de uma rede.

Nesta comunicação, uma rede se movimenta, se estabiliza e se refaz, com o

objetivo de produzir fatos.

Simetria generalizada

O conceito parte do princípio de que todos os actantes têm igual importância

na criação dos grupos e formação da rede. Figurino, iluminação, atriz, autor,

emissora de televisão, site, loja, lojista e telespectador desempenham cada um

papel único na rede de conexão do figurino estudado. A ausência de um deles

modificaria a rede, sem haver privilégio em relação ao outro.

É o pressuposto de que se deve dar a mesma importância a sujeitos e objetos [...]. Esse princípio foi o que diferenciou a TAR dos outros Estudos de Ciência e Tecnologia (Science and Technology Studies – STS) e lançou uma alternativa à sociologia estruturalista, fugindo dos grandes enquadramentos teóricos explicativos do social e identificando redes, mediadores, intermediários em movimento, atuando em uma determinada associação. (LEMOS, 2013, p. 52)

Controvérsia

A controvérsia é o momento de reflexão e observação da rede de conexão, no

qual se percebe a sua construção. É o momento dos questionamentos que revelarão

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quem são os actantes, quais os vínculos, estratégias e parcerias desenvolvidas para

a criação da rede.

Na controvérsia, negociações se estabelecem e engajamentos são desenhados para futuras resoluções. Como uma sociologia da mobilidade, a TAR tem nas controvérsias o momento e o lugar privilegiados para observar a circulação, a criação e o término das associações, para observar a “agregação social”. (LEMOS, 2013, p. 106)

É o momento de observar a rede em movimento e em sua estabilização. Da

observação surgem os questionamentos que possibilitarão a descrição da rede,

identificando cada um dos actantes e suas ações para a criação da rede. Na criação

da rede de conexão do figurino da pesquisa serão levadas em consideração as

questões existentes no momento de observação; a qualidade dos questionamentos

trará respostas às associações e estratégias delineadas no movimento da rede.

2.3.3 Contribuição da TAR para o entendimento do figurino de telenovela

A TAR é conhecida como a “sociologia da mobilidade”. É possível afirmar que

a comunicação é também feita de movimento. Esse princípio da ação move a TAR e

a telenovela, incluindo o figurino de seus personagens. Os bons resultados de uma

telenovela ou personagem não são mérito apenas de um actante, pois há um

trabalho conjunto que envolve atores, roteiristas, maquiadores, iluminadores,

figurinistas, estratégias de exposição da telenovela, índices de audiência, entre

outros aspectos, detalhados no capítulo seguinte.

O figurino terá na dissertação destaque semelhante aos demais actantes em

toda a rede, e a descrição do processo que transforma o figurino em moda fará a

rede “aparecer”.

Descreva, descreva, descreva e você encontrará os principais mediadores (actantes) [...] as ideologias, as forças, os poderes, as razões, as estruturas e as agências circulando. (LEMOS, 2013, p. 91)

A simetria generalizada permitirá a construção da rede do figurino estudado,

com isenção de preferência a algum actante, rastreando e identificando quem são os

actantes, quais suas conexões, debatendo as relações entre eles, com frequência

carregadas de interesses comerciais e comunicacionais.

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Creditar a mesma importância aos actantes contribuirá positivamente para a

discussão do papel do figurino de telenovela na comunicação, na moda e na

comercialização da comunicação e da moda.

De fato, só há aquilo que é produzido por múltiplos olhares, diferentes visões e pontos de vista que emergem do objeto-sujeito, do sujeito-objeto, dos “quase-objetos”, ou “quase-sujeitos”. O objetivo não é o que está do lado do objeto, assim como o subjetivo não é o que está do lado do sujeito. Não há sujeito sem objeto, nem objeto sem sujeito, e quanto mais temos um, mais temos o outro. (LEMOS, 2013, p. 92)

Reciprocamente, figurino e comunicação se valorizam e se complementam,

da concepção à apropriação, em movimento incessante, respeitando determinado

tempo-espaço, que é o planejamento e duração da telenovela.

Identificar os actantes que fazem parte da rede do figurino da delegada,

construir a rede de conexão com seus vínculos e interesses expostos por meio da

mediação, sabendo explorar questões para levantar controvérsias e respeitar a

simetria generalizada entre os humanos e não humanos são os objetivos da

pesquisa.

A TAR proporciona maior racionalidade e equilíbrio ao debate, pois não é

significativo relacionar as razões intangíveis da apropriação do figurino da delegada,

mas descrever como a concretude dos objetos e de suas conexões auxilia a

construção da possibilidade de consumo.

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3 REDE DE CONEXÃO DO FIGURINO DA PERSONAGEM HELOÍSA

3.1 Caminhos do objeto midiático

A organização libera o fluxo para o bom funcionamento de algo,

principalmente quando existem vários elementos envolvidos em determinada

execução. A produção de uma telenovela é extremamente delicada e necessita ser

planejada e organizada para as cenas serem gravadas, editadas e colocadas no ar

no tempo exigido. É grande o número de profissionais envolvidos, materiais

tecnológicos, figurinos, camareiras, maquiadores, cabeleireiros, locações, atores e

redatores, e a fim de cada um desempenhar seu papel e obter resultados, a

organização é fundamental. Para a produção da novela Salve Jorge, estiveram

envolvidos aproximadamente 489 profissionais, durante os quase sete meses de sua

exibição; somente no figurino foram 33 profissionais, entre figurinista, figurinistas

assistentes e apoio ao figurino11, além dos profissionais mobilizados para colocar à

disposição os objetos de figurino para o consumo.

A ordem é constante no trabalho de qualquer autor, e fica evidente sua

influência. Como publicitária (propagadora de ideias e princípios) e professora de

Planejamento (definidora de rumos), a necessidade de identificar o processo e

elementos envolvidos é a base de todos os trabalhos executados. Organizar, no

Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, significa “dar as partes de (um corpo) a

disposição necessária para as funções a que ele se destina” (AURÉLIO, 2006, p.

596).

Para desenvolver este projeto de pesquisa, em que o objetivo é identificar

qual rede de conexão possibilita o figurino de telenovela se tornar moda, pelo

figurino da delegada, a TAR permite o olhar racional sobre o processo

comunicacional que é a telenovela, processo de moda que é o figurino e processo

de consumo que se refere a ambos.

Neste capítulo será criada a Rede de Conexão do figurino da delegada

Heloísa; pretende-se rastrear os caminhos percorridos pelos objetos do figurino em

11

Fonte: Memória Globo. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/salve-jorge.htm. Acesso em 11/09/2013.

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questão, identificando os actantes (humanos e objetos), mediações (negociação e

diálogos) e controvérsias (questões) levantadas para a rede existir. A fim de facilitar

o entendimento e o debate, a rede (que é única) foi dividida em três estágios

equivalentes e em vários momentos simultâneos:

1) Concepção do figurino - serão rastreados os caminhos da criação dos

objetos do figurino da delegada e as discussões fundamentadas na criação

do figurino com o objetivo estético da personagem para a comunicação e/ou

com o objetivo comercial de criar moda para o consumo.

2) Expressão do figurino – serão rastreados os caminhos da exibição dos

objetos do figurino da delegada nos diversos meios de comunicação, e as

discussões se fundamentarão na força da mídia em propagar os objetos e

na importância dos bons resultados da telenovela (enredo, personagem,

audiência) na divulgação e consumo dos objetos de figurino.

3) Organização das plataformas para o consumo – serão rastreados os

caminhos da organização das plataformas para tornar disponíveis os objetos

do figurino da delegada para o consumo do telespectador; as discussões

serão fundamentadas na utilização da mídia para alavancar a moda e no uso

da moda para sustentar a visibilidade do objeto de figurino na mídia.

Depois de visualizar a rede de conexão do figurino da delegada, descrita no

final do capítulo, as possibilidades de debates e entendimento do processo que

envolve mídia e moda serão facilitadas pela materialidade de todos os envolvidos

(humanos e objetos) e em quais momentos eles se conectam. Visualizar os

componentes da rede em “ação” é o resultado final da pesquisa; a partir daí haverá

as análises, deixando que cada actante “fale” por si.

3.2 Concepção do figurino – criação do objeto

3.2.1 Corpo e figurino

O ser humano busca entender-se e encontrar-se, independentemente da

comunidade em que vive. Uma complexa busca “travada” diariamente, em todos os

lugares e situações diversas. A imagem que cada um tem de si é fator essencial e

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determinante nas escolhas e comportamento. Entre as relações, o ser humano usa a

comunicação para “caminhar”, comunicação feita verbalmente ou não, presencial ou

não, mas há algo inegável: a primeira e mais concreta forma de expressão é o

corpo, por ser físico, material e tangível. A massa, que é individual, usada para nos

diferenciar, mostra-se repleta de oportunidades de adornos, carregados de

significados, que refletem conhecimento, história, cultura e pertencimento. Como

afirma Baitello:

Afinal, a comunicação começa muito antes dos meios de comunicação de massa, muito antes da imprensa, do rádio, da televisão. Antes mesmo da invenção da escrita. A mídia começa muito antes do jornal, da televisão e do rádio. A primeira mídia, a rigor, é o corpo – e por isso chamamos o nosso corpo, portanto, de mídia primária. (BAITELLO, 2005, p. 31)

E o que mais se destaca no pensamento de Baitello é considerar o corpo, a

mídia primária, como começo e fim de qualquer processo de comunicação. A mídia

primária se relaciona de forma integrada ao vestuário, obtendo perfeita sintonia para

a representação, conforme Leite e Guerra ressaltam:

O ato de vestir, pura e simplesmente, parte de uma ideia que se materializa pelo objeto roupa e tudo aquilo que se relaciona com a atitude de ornamentar, desde penteados até as intervenções feitas diretamente sobre o próprio corpo, constituindo um sistema de representação. (LEITE; GUERRA, 2002, p. 29)

Adriana Leite vai mais longe quando frisa que a roupa não apenas envolve o

corpo, “mas a ele se incorpora”.

Sendo a roupa elemento presente e marcante na individualidade, refletindo

sua personalidade, os objetos são sempre carregados de significados e, por

essência, são comunicacionais. Quando os objetos entram em cena na telenovela,

por meio do figurino, a comunicação se amplia, pois, além do corpo, nos

favorecemos do meio televisão e do produto de entretenimento telenovela, para a

“mensagem do objeto” ser assertiva e sedutora.

O figurino é parte integrante de uma produção de entretenimento no cinema,

teatro ou televisão. Cada produção possui características e processos de criação e

execução diferentes. Esta pesquisa prende-se ao processo de figurino de telenovela,

mas a definição do elemento é a mesma para cada arte da comunicação.

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É uma arte que envolve com a mesma intensidade o que cria e o que produz, bem como a personagem e o telespectador numa relação de complementaridade. (VIANA; MUNIZ, 2012, p.167)

Além das roupas, o figurino é responsável pela caracterização da

personagem, o que envolve sapatos, acessórios, maquiagem, adereços,

enchimentos; sua grande responsabilidade é dar vida à personagem, ajudando a

contar a história do melhor modo possível.

Por ser o “cartão de visita” do personagem, a importância do figurino é tal que com um primeiro olhar sobre um personagem, antes mesmo de este emitir qualquer palavra, já processamos algumas informações sobre ele, conseguimos identificar elementos que o compõem, como pertencentes a uma determinada época ou contexto social. (VIANA; MUNIZ, 2012, p.167)

A fim de na televisão a imagem da personagem e das cenas em termos

estéticos ser perfeita, é imprescindível a parceria entre o figurinista e o cenógrafo

para os elementos não entrarem em conflito e o resultado final ser harmonioso. Mas

o resultado não depende apenas dos dois profissionais. Para ser produzido um

figurino de telenovela, é essencial relacionar-se com uma cadeia produtiva do

entretenimento, a qual veremos a seguir.

3.2.2 Produção da telenovela e figurino

O figurino materializa a vida das personagens da telenovela, resposta a um

texto do autor que conta uma história. Por isso, antes de discutir o processo de

criação do figurino, deve-se entender o produto telenovela.

A câmera capta o movimento, inova a arte da encenação: pode-se recortar as cenas, mostrá-las com variações de ângulos, criar planos e organizá-las da maneira que quiser. (LEITE; GUERRA, 2002, p.103)

Na telenovela as cenas são gravadas, editadas e exibidas, e o que mais

impacta o figurino é o close-up12. O fato de a telenovela ser obra aberta,

desenvolvida ao longo da exibição - fragmentação da produção -, exige grande

flexibilidade por parte do figurinista.

12

É o plano de filmagem que enfatiza um detalhe.

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Da equipe envolvida na produção de uma telenovela participam mais de 60

profissionais em dez áreas (LEITE; GUERRA, 2002, p.133), existindo hierarquia a

ser respeitada, o que a autora chama de “núcleo básico”. Algumas particularidades

talvez tenham sido alteradas na estrutura geral de produção de uma telenovela, mas

o núcleo básico permanece. As áreas e profissionais são:

- Texto: colaborador, autor e pesquisador;

- Produção: gerente de produção, coordenador de produção, assistente de

produção, assistente executivo, coordenador de serviço, analista de

suprimentos, assistente de estúdio, diretor de TV, continuísta, produtor de

elenco e produtor musical;

- Direção: diretor-geral, diretor de programa, assistente de direção e editor

de texto;

- Fotografia: diretor de fotografia, auxiliar de iluminação, iluminador e

operador de câmera;

- Cenografia: cenógrafo, cenógrafo assistente, produtor de cenografia,

orçamentista, analista de projeto e cenotécnico;

- Produção de arte: produtor de arte, assistente de produtor de arte,

contrarregra de cena e contrarregra de rua;

- Figurino: figurinista, figurinista-assistente, guarda-roupeiro, camareiro,

costureiro e alfaiate;

- Técnica: diretor de fotografia, auxiliar de iluminação, iluminador, operador

de câmera;

- Caracterização: caracterizador, maquiador e cabeleireiro;

- Pós-produção: editor artístico, sonoplastia e ruideiro.

Dos profissionais, quatro influenciarão diretamente o processo de criação do

figurino e como a rede de conexão será montada. São autor, diretor, produtor e

atriz. O autor é responsável pela criação da história, tramas e entrega do texto com

as cenas escritas em tempo hábil para a organização do figurino para a gravação. O

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diretor é responsável pela coordenação-geral da concepção plástica e produtiva da

telenovela. O produtor realiza a gestão financeira e logística das variáveis,

viabilizando o produto telenovela.

Resumindo, para produzir uma telenovela

É preciso, sim, uma grande estrutura que requer funções com características financeira (administração de custos), logística (responsável pelas estratégias de produção), técnica (na operação dos aparatos tecnológicos) e artística (referente aos aspectos plásticos do produto). (LEITE, GUERRA, 2002, p.121)

3.2.3 Processo de criação do figurino de telenovela

A responsabilidade do figurinista de telenovela é criar um guarda-roupa para

uma personagem, desenvolvendo roupas e acessórios, inclusive a caracterização,

que será executada pela equipe de caracterização, mas pensada em conjunto,

concretizando o que o figurinista Lessa de Lacerda (1 8) chama de “vestir a

palavra”.

O início do processo de criação do figurino se dá com o texto da telenovela, e

a sinopse da história entregue à equipe pelo autor. De acordo com a direção-geral,

há reuniões com a equipe do núcleo básico da produção da telenovela para a

apresentação da sinopse e discussão dos interessados. Nas reuniões são definidas

prioridades e principais informações que direcionarão o trabalho do figurinista: o

texto propriamente dito, as personagens e seus respectivos atores, o tempo de

produção até o lançamento da telenovela e o orçamento destinado ao figurino.

A inspiração para a criação do figurino, que deve seguir o texto, se origina de

várias fontes:

A inspiração para a criação dos figurinos vem das mais variadas fontes: filmes, pinturas, fotografias, todo e qualquer texto ou suporte iconográfico se transforma em material de pesquisa. O importante é servir ao personagem. (MEMÓRIA GLOBO, 2007, p.28).

O texto de uma produção televisiva, incluindo a telenovela, é a variável que

mais influencia a criação do figurino; de acordo com Adriana Leite e Lisette Guerra

(LEITE, GUERRA, 2002, pg. 105 - 108), ele se divide em:

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- Localização – espaço geográfico e temporal onde se passa a trama, que

pode ser de época ou atual, urbana ou regional.

- Gênero – estilo de texto, classificação narrativa, podendo ser humorístico,

musical, infantojuvenil, aventura, drama, auditório ou jornalístico.

- Formato – obra aberta ou fechada; é aberta quando a entrada do texto,

gravação e exibição acontecem concomitantemente, e fechada se a

entrada do texto, gravação e exibição são fases distintas e o público só

assiste à obra já acabada.

Portanto, com as variáveis definidas, texto e personagens, ator, tempo e

orçamento, o figurinista inicia as pesquisas para a criação do guarda-roupa, não

perdendo de vista os formatos de produção a que pode lançar mão na obtenção de

roupas.

São seis as possibilidades de obtenção de roupas, especificadas a seguir: 1.confecção: desenhar e providenciar a feitura das roupas. Envolve a escolha e obtenção de todos os insumos desejados. 2.compra: pesquisar no mercado, escolher as peças adequadas e comprá-las. Essas peças, prontas ou semiprontas, podem ser encontradas em lojas dos mais variados tipos, de butiques de grife até lojas populares e até mesmo em brechós. 3.acervo: reaproveitar roupas já usadas em outros produtos e que se encontram adequadamente armazenadas pelas produtoras. 4.aluguel: recorrer a firmas que alugam determinados trajes para uso temporário. 5.empréstimo: encontrar no mercado ou em acervo particular as peças desejadas e tomá-las emprestadas, devolvendo-as posteriormente. 6.doação: utilizar roupas que a indústria da moda oferecem como doação, com o interesse em divulgação e venda. (LEITE; GUERRA, 2002, p.207)

A definição de um formato de obtenção de roupas para o figurino de

telenovela é diretamente influenciado pelas variáveis do texto, personagem, ator,

tempo e orçamento. Aqui começam as negociações e influência da moda no

figurino, principalmente se o texto for urbano e atual. Nesta pesquisa, para formar a

rede de conexão do figurino de telenovela, analisaremos a obtenção de roupas pela

doação, de acordo com a classificação de Adriana Leite, como forma de divulgação

e venda, possibilitando a relação entre mídia e moda.

Figurino não é moda, mas inclui moda; e esta, por sua vez, constrói personagens da moda através do traje e dos comportamentos que podem representar modos de ser e estar na sociedade, que são comunicados através de códigos expressos/impressos, inclusive, na roupa, mas também em quem a usa. (VIANA, MUNIZ, 2012, p.182)

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A figurinista Marília Carneiro, que iniciou seus trabalhos na Rede Globo de

Televisão em 1973, introduziu a conexão entre moda e figurino de telenovela

utilizada até hoje nas produções, pois era dona de uma butique de roupas em

Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro.

Em entrevista a Fernanda Junqueira Rodrigues em 2009, Marília Carneiro

afirma: “eu realmente fiz esse link entre o mundo da moda e a televisão”.

(RODRIGUES, 2009, p.188).

Na mesma entrevista, Marília Carneiro enfatiza a utilização da moda como

ferramenta a favor da dramaturgia e não dependente dela.

A moda pra mim, ela não pode existir como moda, ela tem que existir como ferramenta. Para servir à dramaturgia, porque se não ela não serve pra nada. É igualzinho eu ter botado Chanel no Ossos do Barão, eu não botei pra me exibir, eu botei porque eu conhecia aquele tipo de velhinha, elas usavam Chanel. (VIANA; MUNIZ, 2012, p.182).

Após muitos anos da introdução no formato de criação nos figurinos de

telenovela, ainda existe a visão de que a criatividade diminuiu em função das

escolhas de marcas para compor a personagem, como no início, quando Marília

Carneiro enfrentou e alterou o processo de criação.

Para os figurinistas mais antigos, além da ameaça de competitividade que poderia representar uma novata como Marília Carneiro – competitividade essa permanente em uma estrutura empresarial como a Rede Globo – esse tipo de produção de roupas e acessórios ficcionais possivelmente era visto apartado do processo criativo, já que se apresentava sem originalidade o trabalho de aquisição dos figurinos em lojas de rua, fornecedores da empresa e grandes marcas da moda nacional e internacional. (RODRIGUES, 2009, p.124)

Em entrevista13 à jornalista Manuela Carvalho na Rádio Jovem Pan FM, no

programa Jovem Pan Morning Show, em 18 de abril de 2012, a figurinista Karla

Monteiro, uma das responsáveis pelo figurino da telenovela Salve Jorge, afirmou:

A televisão é uma grande vitrine do que está na moda, eu acho que a gente (figurinista) só aumenta um pouco as tendências, mas isso tem de “caber” dentro do personagem. Tem muito mais curiosidade da imprensa perguntando o que você acha que vai virar moda, você acha que é esse personagem, você acha que é aquele, mas a gente não sabe e o nosso trabalho não é esse. Nosso trabalho é funcionar para a dramaturgia, para que o figurino seja a pele do personagem. (grifo nosso)

13

Disponível em http://blog.jovempan.uol.com.br/vitrine/entrevista-com-a-figurinista-de-salve-jorge-jovem-pan-fm/ acesso em 06/02/2014.

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A figurinista trabalha da forma mais artística e convincente possível na

caracterização das personagens, buscando a arte para sustentar a trama. O que não

impede que a partir da definição se busque no mercado parceiros para a obtenção

dos objetos do figurino, caracterizando a parceria comercial, que resultará na

divulgação da marca da peça escolhida.

O figurino continuará como processo artesanal e totalmente criativo, mas sua

execução sofre as alterações de acordo com a telenovela – texto, prazo, orçamento,

tempo e equipe envolvida – autor, diretor, produtor e figurinista. Porém, as variáveis

para a montagem do guarda-roupa são as mesmas, criando-se um padrão de

execução do figurino.

3.2.4 Criação do figurino da delegada Heloísa

Glória Perez, autora de Salve Jorge, é conhecida por investir em temáticas

multiculturais. Na telenovela deste estudo ela abordou como temáticas dominantes:

A interculturalidade, o crime organizado, busca de origem familiar, adoção ilegal e relacionamentos familiares, e como temática social o tráfico de pessoas, exploração sexual, pacificação do Morro do Alemão, alienação parental e oneomania (vício em compras). (LOPES E GÓMEZ, 2013, p.148)

O diretor-geral da telenovela foi Marcos Schechtman, repetindo a parceria

com a autora Glória Perez após os trabalhos em telenovelas como O Clone (2001) e

a premiada Caminho das Índias (2009), vencedora da 37ª edição do Emmy

Internacional, ao qual concorreu com o título de India – A Love Story; o diretor de

produção foi Flavio Nascimento.

As figurinistas responsáveis pela obra foram Helena Gastal e Karla Monteiro;

especificamente a personagem Heloísa ficou a cargo de Helena Gastal, e a atriz

escalada para viver a personagem foi Giovanna Antonelli.

A personagem Heloísa foi inspirada nas delegadas existentes no Brasil, mas

especialmente na delegada Monique Vidal, conhecida no meio como “delegata”, com

a qual Giovanna Antonelli fez uma imersão na delegacia, uma das fontes de

pesquisa da autora. Em reportagem na Revista Veja, a 6 de março de 2013, a

jornalista Leslie Leitão observou:

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Com cabelos cobertos por tintura loiríssima, bijuterias que resplandecem a distância e uma inseparável pistola calibre 40 na cintura, a delegada Monique Vidal não é apenas a consultora para assuntos policiais. Dela veio a inspiração para a personagem Helô, interpretada por Giovanna Antonelli, que ganhou até mesmo o apelido pelo qual Monique é conhecida no meio: Delegata”. (VEJA, 2013, p.98).

O figurino da personagem Heloísa possui elementos básicos que

complementam o estilo “perua”, superextragavante e elegante, cabelos e

maquiagem sempre impecáveis na caracterização: calças pantalonas coloridas ou

estampadas, camisas estampadas e, entre as estampas, várias “animal print”,

arrematados por acessórios maximalistas.

Figura 1 – Cenas da personagem Heloisa em ação.

Fonte: http://revistamarieclaire.globo.com/Moda/noticia/2013/02/giovanna-antonelli-em-salve-jorge-os-

truques-de-estilo-da-delegada-heloisa.html. Acesso em 07/02/2014.

Em março de 2013, o CAT – Central de Atendimento ao Telespectador da

Rede Globo de Televisão, registrou que três dos cinco objetos14 mais pedidos eram

do figurino da delegada Heloísa; em primeiro lugar, a calça pantalona amarela, da

marca Apartamento03; em segundo, os dois cintos com placas douradas, marca

Echob, e em terceiro a camisa de seda com estampa de São Jorge, da marca Fill

Sete.

14

Disponível em http://gshow.globo.com/programas/mais-voce/O-programa/noticia/2013/03/figurino-da-helo-e-campeao-de-audiencia-veja-os-looks-mais-solicitados.html

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Figura 2 – Calça pantalona amarela da marca Apartamento03.

Fonte: http://modadetv.com.br. Acesso em 07/02/2014.

Figura 3 – Cinto duplo marrom com placas douradas da marca Echob.

Fonte: http://modadetv.com.br. Acesso em 07/02/2014.

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Figura 4 – Camisa de seda com estampa de São Jorge da Fill Sete.

Fonte: http://modadetv.com.br. Acesso em 07/02/2014.

A figurinista Helena Gastal afirma que se inspirou em pesquisas com

delegadas reais. Em entrevista15, afirma que “temos uma pesquisa enorme que

mostra que as delegadas são supervaidosas e femininas”, e que “muitas delegadas

têm cabelão até mais comprido que o que a Giovanna usa na novela, são

superloiras e usam roupa colada”.

O que não fica claro em nenhum momento é o critério adotado pelas

figurinistas para selecionar ou preterir alguma peça ou marca. Pela pesquisa fica

evidente que a caracterização da personagem vem em primeiro lugar, porém, pela

experiência comercial, acredito que o relacionamento que as marcas possuem com

as figurinistas e o acesso a tais profissionais fazem a diferença, não definem o

objeto, mas o colocam em evidência.

O desafio da figurinista é não fugir da sua criação, da sua autenticidade na

caracterização da personagem em detrimento de determinada marca, principalmente

com o sucesso da personagem em andamento.

15

Fonte: http://quasesarada.blogspot.com.br/2013/03/figurino-de-helo-giovanna-antonelli-na.html

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50

A atriz participa do processo de criação e principalmente de exposição do

figurino, assunto que discutiremos no decorrer deste capítulo. Na criação do figurino

da delegada, Giovanna Antonelli declarou em entrevista16 ao programa Mais Você,

no dia 8 de março de 2013:

Eu curto muito o figurino da Helô, eu acho que o figurino dela foi uma sacada genial, porque a gente tem várias mulheres dentro de uma só, então eu acho que o figurino da Helô passa desde uma mulher conservadora a uma mulher moderna, uma mulher sexy, as peças elas são bem misturadas, então acho que toda mulher pode escolher uma peça e levar para o seu guarda-roupa, eu, por exemplo, já elegi várias.

A atriz afirma ainda ter sugerido a utilização de dois cintos no mesmo look,

além do case soco inglês, que é importado, comprado pela atriz na Knucklecase.

Figura 5 – Case soco inglês da marca Knucklecase.

Fonte: Foto divulgação TV Globo Knucklecase. Acesso em 07/02/2014.

16

Disponível em: http://gshow.globo.com/programas/mais-voce/O-programa/noticia/2013/03/figurino-da-helo-e-campeao-de-audiencia-veja-os-looks-mais-solicitados.html

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Na criação do figurino, o responsável é o figurinista, porém todos são

unânimes em dizer que a felicidade da atriz ou do ator é essencial para o sucesso

do figurino e para cumprir o papel, dando vida à personagem.

Nas páginas seguintes estão relacionados alguns exemplos do figurino da

personagem Heloísa. São peças que a personagem usou nas cenas, as mesmas

nos editoriais de moda de divulgação da marca. Há ainda a personagem usando

alguma peça em cena e os editoriais divulgando peças inspiradas no estilo da

delegada.

Figura 6 – Uma das calças pantalonas que a delegada Helô usou; animal print é da marca Cholet.

Fonte: http://modadetv.com.br. Acesso em 07/02/2014.

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Figura 7 – Um dos conjuntos usados é da marca A.Cult.

Fonte: http://modadetv.com.br. Acesso em 07/02/2014.

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Figura 8 – Onça na estampa das camisas Le Lis Blanc.

Fonte: http://modadetv.com.br. Acesso em 07/02/2014.

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Figura 9 – Camisa com estampa de cobra da coleção Alphorria, primavera 2012.

Fonte: http://modadetv.com.br. Acesso em 07/02/2014.

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Figura 10 – Camisa da marca Alphorria.

Fonte: http://modadetv.com.br. Acesso em 07/02/2014.

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Figura 11 – Camisa de cetim de seda na cor grafite e botões de cristal Swarovski da marca Dudalina

Fonte: http://modadetv.com.br. Acesso em 07/02/2014.

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Figura 12 – Camisa de cetim de seda com estampa mesclando tecidos lisos e botões em

Swarovski, da marca Dudalina.

Fonte: http://modadetv.com.br. Acesso em 07/02/2014.

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Figura 13 – Camisas estampadas da marca Fill Sete.

Fonte: http://blogs.diariodonordeste.com.br/desenroladas/estilo-2/da-novela-para-a-vitrine/. Acesso

em 07/02/2014.

3.2.5 A rede de conexão do figurino da delegada Heloísa em Salve Jorge –

parte I – Concepção do figurino

É importante ressaltar e relembrar que o objetivo deste trabalho é a descrição

da rede de conexão do figurino da delegada Heloísa em Salve Jorge, utilizando as

premissas da TAR. Em seguida detalharemos quem são os actantes – humanos e

não humanos, dessa fase de concepção do figurino, quais as mediações - quem

dialoga com quem e quais as controvérsias – questões levantadas para o

entendimento e descrição da rede.

Actantes

- Humanos: autor, diretor, produtor, atriz, figurinista, telespectador;

- Não humanos: texto, trama, personagem, tempo, orçamento, tecidos dos

objetos de figurino, objetos de figurino – cinto, calças, camisas, vestidos,

sapatos, joias, bolsa e marcas doadoras dos objetos de figurino, internet

para pesquisa, ruas e parceiros para a pesquisa de moda;

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Mediações

O figurinista está no centro das mediações e controla ou participa das

negociações que possibilitarão a criação do figurino, agindo como maestro ou, como

diz André Lemos, “um-sendo-com-o-outro”. (LEMOS, 2013, pg. 160). Essas

mediações variam de acordo com cada telenovela e profissionais envolvidos; as

funções e elementos são os mesmos, mas cada profissional mantém vínculos e

parcerias que facilitam ou dificultam o processo de comunicação, que precisa atingir

o objetivo: criar o guarda-roupa para a personagem, respondendo às premissas do

texto, personagem, ator, tempo e orçamento.

Mediação, comunicação é toda ação que uma actante faz a outro, implicando aí estratégias e interesses próprios na busca da estabilização futura da rede ou da resolução da estratégia ou do objetivo. (LEMOS, 2013, p. 48)

A mediação é movimento e circulação entre os elementos da rede, e essa

circulação mede a complexidade da rede. Vejamos as mediações da rede de figurino

de telenovela.

O figurinista dialoga com:

- O autor - busca entender o texto e as personagens;

- O diretor - sobre os prazos de entrega de cada fase e o final;

- O produtor - sobre os orçamentos e prazos de entrega para não prejudicar

a produção da telenovela;

- O ator - para a prova e discussão dos objetos de figurino em si, buscando

o entendimento entre a personagem e as características físicas do ator;

- Internet, ruas e parceiros de moda a fim de pesquisar referências para a

criação do figurino;

- As marcas doadoras de objeto de figurino, para negociar a participação

dos objetos no guarda-roupa da personagem;

- Objetos de figurinos - cinto, calças, camisas, vestidos, sapatos, joias,

bolsa, e verifica se estes respondem às características da personagem e

do texto;

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- Tecidos dos objetos de figurino e como se acoplam ao corpo do ator/atriz

para responder à caracterização da personagem e do texto;

- Orçamento e tempo e como ele impacta a escolha da forma de obtenção

dos objetos de figurino, favorecendo ou não a decisão para a escolha da

doação das marcas, mais rapidamente e com custo menor;

- Personagem e texto, tentando dar vida às palavras e ideias do autor,

antecipando uma pessoa e história que ainda não existem;

Além dos diálogos mediados pelo actante figurinista, os demais actantes se

comunicam entre si, sempre buscando produzir um guarda-roupa com os objetos do

figurino para a personagem.

- O produtor controla a estratégia de execução, para não ser prejudicada

pelo tempo e orçamento;

- O diretor organiza e dá as diretrizes ao produtor, autor e a todos os

demais actantes participantes dessa fase de planejamento da telenovela,

para ser o mais produtiva e enriquecedora possível para todos os

envolvidos, ator, figurinista;

- O texto dialoga com a personagem e com os objetos do figurino para

responderem à caracterização da personagem, e que ele consiga marcar

sua posição na história por meio desses objetos;

- O ator dialoga com objetos de figurino e com os tecidos para se

acoplarem ao seu ator, auxiliando a transmissão das características das

personagens em sua atuação, sendo auxiliar do figurinista no processo de

criação dos objetos de figurino.

A TAR auxilia a organização da complexa rede de figurinos, e uma de suas

premissas é detalhar ao máximo todas as ações, actantes e conexões (mediações)

para facilitar a visualização dos actantes e sua importância no processo. Nessa fase

de criação do figurino, a rede conta com mais de 15 actantes (humanos e não

humanos) e 15 conexões entre si por meio da mediação. A qualidade da

comunicação e negociação entre os actantes mantém a rede em movimento, e o

acordo entre eles estabiliza a rede, chegando ao resultado das ações: o guarda-

roupa das personagens.

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No caso da descrição e mediação da rede de conexão do figurino da

personagem Heloísa, fica evidente a predileção da figurinista por doação de roupas,

ou seja, ela buscou roupas de empresas parceiras para compor o figurino da

delegada. Um dos fatores que impactariam a decisão é a personagem ter saído de

coadjuvante para protagonista da história, aumentando o seu espaço na trama e

consequentemente na tela, necessitando de acréscimos em seu guarda-roupa.

Controvérsias

As controvérsias ou questões principais dessa fase da rede de conexão do

figurino remetem aos pensamentos do que é desejável fazer e o que é possível

realizar, levantando a polaridade entre o artístico e o real.

As respostas ao texto e a caracterização da personagem devem seguir, na

fase de concepção do figurino da rede de conexão do figurino da delegada, a

criação pura e artística, mas a sua execução ou produção se adaptam aos demais

actantes que fazem parte da fase, buscando uma forma realista, mas não menos

criativa, de escolha dos objetos de figurinos prontos, pela doação das peças de

roupas de marca, conhecida ou desconhecida.

Essa fase da rede de conexão do figurino de telenovela, a concepção, mostra,

após detalhada, que a telenovela como produto midiático de resultados operacionais

elevados torna mais técnico e operacional o processo de concepção de um figurino,

até mesmo para ser possível sua execução. O processo técnico e operacional da

concepção do figurino não torna menos glamoroso o processo de concepção do

figurino, apenas redefine prioridades.

A utilização das doações de roupas de marca para produzir um guarda-roupa

de um personagem não desmerece o trabalho artístico do figurinista. O cuidado deve

existir para o processo não ser inverso. Primeiramente o figurinista cria o figurino e a

caracterização da personagem, respondendo ao texto do autor, em suas pesquisas,

e depois executa o figurino, por meio da aquisição dos objetos de figurino para o

guarda-roupa da personagem com as marcas parceiras. O inverso desvalorizaria o

seu trabalho e certamente deixaria a desejar na concepção da personagem,

afetando o resultado da trama.

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Quanto à existência de um padrão nessa fase, não resta dúvida de que existe

um padrão nos actantes humanos e não humanos (autor, diretor, produtor, ator,

figurinista, texto, personagem, tempo, orçamento, tecidos dos objetos de figurino,

objetos de figurino – cinto, calças, camisas, vestidos, sapatos, joias, bolsa e marcas

doadoras dos objetos de figurino, internet para pesquisa, ruas e parceiros para a

pesquisa de moda). Transformam-se a qualidade da mediação entre eles, a forma

de comunicação, o diálogo e vínculos que facilitariam ou dificultariam o processo e

eventualmente o resultado.

O figurinista definirá entre os objetos de figurino das marcas que melhor

caracterizam a sua personagem, tomando o cuidado de não beneficiar algum

parceiro, sem as peças terem condições mínimas de caracterização. Se acontecer, a

mídia servirá à moda, e não a moda servirá à mídia, lembrando que a moda serve à

mídia e a mídia sustenta a moda.

3.3 Expressão do figurino – divulgação e comunicação do objeto

3.3.1 Ficção e realidade

Acompanhamos diariamente a capacidade de mobilização e integração da

mídia17 em torno de determinado assunto. Basta algo relevante (ou não) acontecer

que nos deparamos com as emissoras de televisão, em vários programas,

noticiando o fato, o mesmo valendo para rádios, jornais e portais de notícias da

internet. Independentemente do conteúdo, observamos o fato sob vários ângulos,

em opiniões diferentes, apresentadores e jornalistas com discursos distintos.

A articulação dos meios de comunicação acontece de forma ativa, organizada

e estruturada pelos grupos de comunicação, ou passivamente: o interesse do

público é grande o suficiente para o assunto ser discutido e analisado

independentemente do grupo de comunicação.

Trazendo a realidade da mídia para nosso estudo, a telenovela como produto

da comunicação e entretenimento, observamos a capacidade de mobilização que

possui, mas que depende dos assuntos discutidos pelos autores, gerando maior ou

17

Mídia refere-se a todos os meios de comunicação: televisão (aberta ou fechada), rádio, jornal, revista e internet (incluindo os dispositivos móveis).

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menor interesse do público, especialmente o brasileiro, que tem o hábito de

consumir telenovelas.

Um exemplo das discussões e capacidade de interesse do público nas

novelas foi o relacionamento homoafetivo e o relacionamento entre pai homofóbico e

o filho homossexual tratados na novela Amor à Vida18, sendo o desenrolar da trama

responsável por um marco nas telenovelas: a transmissão do primeiro beijo gay em

uma telenovela na Rede Globo de Televisão, entre o casal homossexual Félix e

Niko19, fazendo a emissora encerrar a transmissão do último capítulo com média de

4820 pontos de audiência na Grande São Paulo e 44 pontos na Grande Rio de

Janeiro, os dois principais mercados do Brasil.

A capacidade de mobilizar em torno de um assunto ou tema desafia os

autores em sua busca criativa, a fim de conquistar o público, fazendo a telenovela,

como produto, ter o sucesso desejado pela emissora. Vários temas são inspirados

na realidade e retratados com realismo na telenovela, provocando a discussão entre

realidade e ficção.

A distribuição de símbolos e imagens, seja ela feita pelos códigos da visualidade ou por outros códigos, cria grandes complexos e vínculos comunicativos – grupos, tribos, seitas, crenças, sociedade e culturas – e, com isto, cria realidades que não apenas podem interferir na vida das pessoas, como de fato determinam seus destinos, moldam sua percepção, impõem-lhes restrições, definem recortes e janelas para o seu mundo. (BAITELLO, 2005, p.42)

Em Salve Jorge, a delegada Heloísa foi inspirada nas delegadas brasileiras,

principalmente a delegada carioca Monique Vidal, que, além de ser a consultora da

autora para os assuntos técnicos da profissão, tornou-se referência para a criação

do figurino da personagem, abrindo vínculo comunicativo entre realidade e ficção.

18

Novela escrita por Walcyr Carrasco, transmitida pela Rede Globo de Televisão, que substituiu Salve Jorge no horário das 21h, sendo o último capítulo exibido no dia 31 de janeiro de 2014.

19 Félix, interpretado Mateus Solano, e Niko por Thiago Fragoso.

20 Fonte: http://rd1.ig.com.br/televisao/ultimo-capitulo-de-amor-a-vida-repete-recorde-de-audiencia-e-

supera-salve-jorge-e-fina-estampa/237316. Sendo que 1 ponto de audiência refere-se a 65 mil domicílios na Grande de São Paulo e 40 mil domicílios na Grande Rio de Janeiro.

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64

3.3.2 Construção do ídolo e celebridade da telenovela

Por distintos fatores, a trama de Salve Jorge foi reconhecidamente confusa e

complicada: discutir um assunto complexo e violento como o tráfico de mulheres

para a Turquia, a falta de empatia e sinergia com a história do núcleo turco e a

decrescente conexão do casal protagonista. Por ser obra aberta, os resultados de

audiência e opinião do público sobre a telenovela levaram autora e emissora a

diversos ajustes na trama, abrindo e fechando espaços a personagens.

A delegada Heloísa conquistou seu espaço, muito bem interpretada pela atriz

Giovanna Antonelli, e aumentou sua participação, passando de coadjuvante a

praticamente protagonista da história. Como enfatiza a jornalista Patrícia Kogut em

seu blog21, no portal globo.com, em 16 de fevereiro de 2013:

Giovanna Antonelli vem chamando a atenção desde o primeiro capítulo de Salve Jorge. Agora, passados meses da estreia, não restam dúvidas de que a novela é dela. Isso é resultado de uma correlação de fatores positivos. Depois de anos na televisão — com personagens de destaque e diferentes, como a Capitu de Laços de família e a Jade de O clone, citando apenas duas —, ela aprendeu muito. Além disso, criativa, não se repete. Sua presença no ar é invariavelmente cheia de frescor. Com a Helô de Salve Jorge, o público nota isso no gestual, na linguagem corporal, na composição cheia de sutilezas, resultado do bom trabalho da atriz. Finalmente, ela tem porte de estrela. Por mais injusta que seja essa qualificação com as atrizes aplicadas e sem carisma, ela existe. A personagem inventada por Gloria Perez, claro, é outra razão desse sucesso. Numa trama em que a verdade grita, mas ninguém liga lé com cré ou faz uma denúncia, a delegada é uma exceção. Ela ainda não chegou ao coração do crime, mas ao contrário de todos os outros personagens, possui um radar que funciona. Não é difícil imaginar que será ela a desbaratar a quadrilha que atua no ramo de tráfico humano. Com essa vocação para o salvamento dos oprimidos, Helô é uma heroína nata. O público já torce por ela, mais ainda do que pelas vítimas.

A vocação para heroína, justiceira, inteligente e provável peça-chave para o

desenrolar da trama chamou a atenção do público e fez da personagem uma das

mais importantes da história. A visibilidade da personagem contou com o trabalho e

a imagem da atriz Giovanna Antonelli, que em entrevista22 ao site mdemulher assim

se manifestou:

21

Disponível em: http://kogut.oglobo.globo.com/noticias-da-tv/critica/noticia/2013/02/com-personagem-delegada-giovanna-antonelli-rouba-novela.html. Acesso em 15/09/2013.

22 Disponível em: http://mdemulher.abril.com.br/tv-novelas-famosos/reportagem/acontece/giovanna-

antonelli-televisao-me-satisfaz-eu-amo-fazer-novela-711494.shtml. Acesso em 15/09/2013.

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65

Eu adoro fazer essas mulheres comuns, porque elas retratam e desvendam o universo feminino como ele é na realidade. Já fiz personagens mais inacessíveis, como a Jade (de O Clone), mas amo interpretar a mulher "normal", pois me aproxima totalmente do público. Falar das dificuldades que temos, dos defeitos [...]. Isso provoca identificação instantânea (risos). E a Heloísa tem essa coisa de mulher comum, embora exerça uma profissão geralmente considerada masculina. Acho que isso desmistifica a posição dela.

Identificação gera admiração e aproximação com o público, dando “vida” à

personagem e a tudo o que a ela diz respeito, inclusive o figurino. Os elementos

comunicativos passam a fazer parte do dia a dia do telespectador enquanto durar a

telenovela, conferindo à personagem status de ídolo, e à atriz o de celebridade.

A celebridade é a “autoridade” do provisório. Seus representantes sociais são os que sabem aliar moda e tecnologia a serviço da moral do entretenimento. Afinada com esta moral, a celebridade é programada para idolatrar o momentâneo e desaparecer com ele. Sua posição simbólica na cultura é a de um nome em torno do qual orbita uma legião de seguidores, imitadores, aduladores, detratores e comentadores que jamais se cansam de louvá-lo ou denegri-lo, até que outro nomearraste consigo todo o séquito, fazendo com que o primeiro seja completamente esquecido. (COSTA, 2004, p.169)

Sentimentos e emoções do telespectador com a personagem e atriz se

misturam, mas, como tudo o que há na comunicação, eles serão efêmeros. A

delegada permeou o imaginário e a realidade das telespectadoras: o imaginário pela

postura, comportamento e ações, dignas de admiração e reprodução, e a realidade

pelo consumo dos objetos de seu figurino, criando moda com seu estilo e

personalidade.

Para que sirvam ao seu propósito, os ídolos devem ser brilhantes a ponto de ofuscar os espectadores e formidáveis a ponto de ocupar inteiramente o palco; mas devem ser também voláteis e móveis – de maneira a poderem desaparecer rapidamente da memória, deixando a cena para a multidão dos ídolos à espera da vez. Não deve haver tempo para a sedimentação de laços duradouros entre ídolos e seus fãs, e nenhum ídolo em particular deve ter uma presença duradoura. (BAUMAN, 2003, p.65)

3.3.3 Comunicação do objeto de figurino – sua materialidade e tangibilidade

“Todo objeto é social. Ele comunica de alguma forma, troca e se associa”

(LEMOS, 2013, p.254). Os objetos do figurino da personagem têm em essência

códigos comunicacionais, que associados aos da telenovela ampliam significados e

expressões, pela composição física e dos sentidos.

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66

A associação dos objetos de figurino com os demais actantes humanos e não

humanos da telenovela (ator, câmera, luz, edição, texto) reafirma sua missão como

objeto que compõe a encenação do entretenimento. O que não invalida a

responsabilidade e características intrínsecas, desde a criação “apenas” roupa ou

“apenas” acessório. E quando vira moda, na rede de conexão do figurino de

telenovela do trabalho, as associações com os telespectadores ficam carregadas de

significados da personagem, mas se misturam com a personalidade de quem usa

tais objetos.

[...] da mesma forma que se articula a composição do traje de cena, falar sobre moda é muito mais abrangente do que falar de roupas, é refletir sobre como os comportamentos dos indivíduos se constituem, se engendram e se refletem numa determinada estética, materializada através da roupa [...] (VIANA; MUNIZ, 2012, p.170)

No desenvolvimento dos objetos, a eles são conferidos códigos

comunicacionais, uma espécie de “DNA”; mesmo reproduzidos em massa, não

perderão sua essência, mas se associarão ao “DNA” as características pessoais e

comportamentais de quem os usa. Falamos de quatro actantes que interagem,

criando vínculos específicos e comuns, pessoais e sociais: ator, personagem,

telespectador e objeto (roupas e acessórios).

A materialidade – cor, textura, comprimento, estampa - do objeto de figurino

de telenovela em conjunto com sua intangibilidade – elegância, segurança,

delicadeza, feminilidade, compõe o principal eixo da pesquisa, que é a relação entre

os actantes humanos e não humanos, baseada na TAR. O olhar na “vida” dos

objetos do figurino da delegada evidencia que se trata de processo retroalimentado

por todos os actantes, que varia de acordo com os interesses gerais, registrando as

duas pontas da rede de conexão, a emissora e o telespectador.

Exemplificando o pensamento da comunicação do objeto de vestuário que se

torna objeto do figurino e retorna ao status de objeto de vestuário do telespectador,

ressalte-se a camisa de cetim de seda da marca Dudalina (imagem abaixo). À

direita, a modelo no editorial de divulgação da marca, o objeto – camisa, destaca-se

pelo bom gosto nas estampas e tecidos finos, sinônimo de elegância e sucesso

profissional. O slogan da marca Dudalina feminina é “Dudalina – camisas para

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mulheres que decidem”.23 O corte ajustado valoriza o corpo feminino sem tirar a

formalidade e contemporaneidade que a usuária necessita. À esquerda, a delegada

veste a camisa e seus atributos, pertencentes ao objeto, associados aos demais

objetos do figurino, os acessórios brincos e colares, maquiagem e caracterização

completa da personagem. Por ser delegada, exige seriedade, sem deixar de lado a

feminilidade, atributos oferecidos pela camisa e acessórios, fortalecidos pelo

comportamento da personagem, que é decidida, inteligente e que comanda.

O “DNA” do objeto foi mantido e exaltado pelas características da

personagem; quando a telespectadora consumir o objeto, estará mantendo a

materialidade e a intangibilidade, do objeto e da personagem, reunindo

materialidade e intangibilidade próprias.

Figura 14 – Camisa de cetim de seda com estampa mesclando tecidos lisos e botões em Swarovski da marca Dudalina.

Fonte: http://modadetv.com.br. Acesso em 07/02/2014.

23

Fonte: http://www.dudalina.com.br/pt/marcas/feminina

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A importância dada na pesquisa aos objetos de figurino é de que não são

meros coadjuvantes. Aliás, não existem coadjuvantes, pois um dos princípios

básicos da TAR é a simetria generalizada, em que todos os actantes são

protagonistas e compõem uma ou várias histórias, a que chamamos de rede de

conexão.

3.3.4 Organização da mídia e moda pela comunicação do objeto de figurino

A mobilização e a força da mídia para difundir uma informação foram o

assunto abordado no início deste tópico do trabalho, e aqui observaremos como a

mídia se articulou para divulgar os objetos de figurino da personagem e

consequentemente da telenovela, entre o período de janeiro a maio de 2013,

lembrando que sua exibição ocorreu de outubro de 2012 a maio de 2013.

A Rede Globo possui uma das mais articuladas estratégias de divulgação de

seus programas dentro da grade de programação. Apostando na fidelidade do

telespectador, busca-o em seus momentos de conexão com a emissora. No caso

das telenovelas, a estratégia baseia-se na participação dos atores da telenovela nos

principais programas da emissora. Giovanna Antonelli participou do Programa do

Faustão em 9 de fevereiro de 2013 para falar sobre sua personagem e seu trabalho;

em 21 de março de 2013 participou do Programa Mais Você, comandado pela

apresentadora Ana Maria Braga, com o mesmo objetivo.

Sua participação mantém a visibilidade da personagem e divulgam não

somente o trabalho da atriz, mas a personagem, o figurino e a própria telenovela.

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Figura 15 – Giovanna Antonelli em sua participação no programa Domingão do Faustão, exibido em 09/02/2013.

Fonte: http://globotv.globo.com/rede-globo/domingao-do-faustao/v/giovanna-antonelli-e-alexandre-

nero-contam-tudo-sobre-salve-jorge/2425161/ . Acesso em 11/09/2013.

Figura 16 – Giovanna Antonelli em sua participação no programa Mais Você, exibido em 21/03/2013.

Fonte: http://globotv.globo.com/rede-globo/mais-voce/v/giovanna-antonelli-analisa-relacao-de-mae-e-

filha-na-ficcao/2472087/ . Acesso em 11/09/2013.

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A identificação do público com a personagem gerou interesse na trama e no

figurino, rendendo diversos editoriais de moda em revistas especializadas. Revistas

como Estilo, Elle, Manequim e Quem evidenciaram a força que os objetos

adquiriram. Alguns editoriais mencionaram o figurino da personagem, outros

mostraram os elementos do figurino reutilizados, mas seguindo a moda que estava

em evidência.

Editoriais

Figura 17 – Revista Estilo de maio de 2013, com opções de calça estampada, peça muito usada pela personagem Heloisa em Salve Jorge.

Fonte: Revista Estilo, edição n. 0128, de maio de 2013. Disponível em: http://www.hbf.com.br/midia,

foto 61 de 113 do ano de 2013. Acesso em 10/01/2014.

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Figura 18 – Revista Estilo, de março de 2013, com referência ao conjunto estampado, peça-chave no guarda-roupa da personagem Heloísa.

Fonte: Revista Estilo, edição n. 0126, de março de 2013. Disponível em: http://www.hbf.com.br/midia, foto 77 de 113 do ano de 2013. Acesso em 10/01/2014.

Figura 19 – Revista Elle, de abril de 2013, com referência às estampas “animal print”, tendência explorada em todo o figurino da personagem.

Fonte: Revista Elle, edição n. 299, de abril de 2013. Disponível em: http://www.hbf.com.br/midia, foto

66 de 113 do ano de 2013. Acesso em 10/01/2014.

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Figura 20 – Revista Quem, março de 2013, com referência às estampas “animal print”, tendência explorada em todo o figurino da personagem Heloísa e também

pela atriz Fernanda Lima, utilizando peça com essa moda, influenciando o consumo.

Fonte: Revista Quem, edição especial n. 654, de março de 2013. Disponível em:

http://www.wernercalcadosblog.com.br/tag/sandalias-werner/. Acesso em 07/02/2014.

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Figura 21 – Revista Manequim, de fevereiro de 2013, com referência às estampas “étnicas”, tendência explorada em todo o figurino da personagem, e também pela atriz Camila Pitanga, utilizando peça com essa moda, influenciando o consumo.

Outra informação são os acessórios

Fonte: Revista Manequim, edição n.0646, de fevereiro de 2013. Disponível em:

http://www.wernercalcadosblog.com.br/tag/revista-manequim/. Acesso em 07/02/2014.

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Com a consolidação da personagem e de seu trabalho, a atriz Giovanna

Antonelli ficou em evidência, e a utilização de sua imagem contribuiu para manter o

interesse na personagem e em seu figurino. A atriz foi capa de duas revistas nesse

período- Cláudia e Estilo.

A exposição aumenta o interesse do público na celebridade e o instiga a

“participar” do cenário da ficção, mostrando a personagem, suas características e

materialidade por meio dos objetos de figurino, para o convívio do público nos

lugares onde ele se encontra.

Capa de revista

Figura 22 – Capa da revista Cláudia, em fevereiro de 2013.

Fonte: Revista Cláudia, edição n. 617, de fevereiro de 2013. Disponível em:

http://claudia.abril.com.br/materia/claudia-edicao-de-fevereiro-de-2013/?p=/participe/arquivo. Acesso em 07/02/2014.

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Figura 23 – Capa da revista Estilo, em março de 2013

Fonte: Revista Estilo, edição n. 0126, de março de 2013. Disponível em:

http://claudia.abril.com.br/materia/claudia-edicao-de-fevereiro-de-2013/?p=/participe/arquivo. Acesso em 07/02/2014.

Os consultores de moda se mobilizaram em torno dos objetos do figurino da

delegada Heloísa, criando tutoriais com o “estilo Helô”, que ensinavam o

telespectador a combinar objetos, roupas, acessórios e calçados. Os tutoriais se

espalharam pela internet, em blogs de moda, portais e emissoras de televisão, na

Rede Globo e concorrentes, programas femininos e jornalísticos.

Os exemplos selecionados foram o blog moda de tv, que nos meses de maior

exposição (janeiro a maio de 2013) apresentou dicas de como usar e onde comprar

os objetos do figurino. O portal UOL – Universo on line, em abril de 2013 publicou

tutorial de modas composto por 38 fotos do figurino da personagem, a fim de revelar

como combinar os objetos.

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O último exemplo é uma reportagem no telejornal MGTV 1a edição – emissora

afiliada da Rede Globo em Belo Horizonte, Minas Gerais. No quadro “Banho de loja”,

apresentado pela repórter Karina Sommerfeld, a consultora de moda Carla

Mendonça apresentou várias formas de utilização dos objetos no dia a dia,

buscando adaptá-los à realidade da telespectadora.

Tutoriais de moda

Figura 24 – Tutorial do portal UOL, com 38 fotos de combinações de todo o figurino da personagem Heloísa, em 26 de abril de 2013.

Fonte: Portal UOL. Disponível em: http://mulher.uol.com.br/moda/album/2013/04/26/figurino-de-helo-

de-salve-jorge-faz-sucesso-copie-os-looks.htm. Acesso em 07/02/2014.

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Figura 25 – Tutorial da consultora de moda Carla Mendonça para o telejornal MGTV – Belo Horizonte 1a edição, com as combinações do figurino da personagem, e

principalmente como adaptar os objetos à realidade da telespectadora, em fevereiro de 2013.

Fonte: Portal globo.com. Disponível em: http://globotv.globo.com/rede-globo/mgtv-1a-edicao/v/banho-

de-loja-ensina-a-montar-visual-igual-ao-de-atriz-da-novela-salve-jorge/2481366/. Acesso em 07/02/2014.

A articulação da mídia e da moda é essencial para gerar e manter o interesse

do telespectador na telenovela, personagens e principalmente nos objetos do

figurino, ou é possível afirmar, por meio dos objetos de figurino. A verdade é que a

composição física do objeto lhe garante vida, na ficção e na realidade,

movimentando os negócios do entretenimento e do vestuário e acessórios. O

processo é cíclico, começa no desenvolvimento do objeto por parte da indústria têxtil

e termina em sua utilização pelo telespectador, traçando um caminho que passa

pela mídia – entretenimento ou informação - que acrescenta valor ao objeto e lhe

prolonga a vida, mas não lhe dá a vida.

3.3.5 Rede de conexão do figurino da delegada – parte II – Expressão do

figurino

Nessa fase da rede de conexão, o número de actantes aumenta sua

complexidade e ajuda a compreender quais são os objetos e sujeitos que se

articulam para acionar os vínculos que transformam o objeto do figurino em moda.

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Actantes

- Humanos: autor, diretor, produtor, atriz, figurinista, gestor de marketing,

apresentador de TV, blogueiros, jornalistas, consultores da moda,

telespectador, cenógrafo, câmera, editor e continuísta;

- Não humanos: personagem, objeto de figurino, texto, marca Globo,

iluminação, câmera, cenografia, fotografia, ilha de edição, efeitos

especiais, revista, internet, blog, redes sociais, portais e televisão;

Mediações

As mediações se tornam mais complexas nessa fase, na qual o objeto de

figurino torna-se conteúdo para entretenimento e moda, em uma rede em constante

movimento e exposição.

- O autor se conecta com personagem, texto, efeitos especiais, diretor,

cinegrafista, figurinista e produtor para continuar a produção da telenovela

e promover os ajustes imprescindíveis à trama, aos personagens, cenário

e figurino;

- O gestor de marketing se conecta com o produtor e diretor para definir as

ações da estratégia de divulgação da telenovela;

- Apresentadores de programas de televisão, jornalistas, blogueiros e

consultores de moda se conectam com a atriz para compreender o

trabalho e divulgar o figurino da personagem;

- Câmera, editor, continuísta e cinegrafista se conectam com o diretor e

produtor para produzir a telenovela e com os aparelhos tecnológicos que

permitem tal produção (iluminação, ilha de edição, câmera, cenografia e

efeitos especiais) e com a atriz, objetos de figurino e cenografia para a

captação das imagens da trama da telenovela;

- Atriz se conecta com a personagem, texto, objetos de figurino, para dar

vida à personagem e continuidade à trama;

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- Telespectador se conecta com a atriz, personagem e objetos do figurino,

para auxiliá-lo na construção da sua identidade e comportamento no dia a

dia; conecta-se ainda com os apresentadores de televisão, jornalistas,

blogueiros, consultores de moda, portais, redes sociais, blogs e revistas,

buscando atualização, entretenimento e orientações sobre moda;

- Marca Globo (Rede Globo de Televisão) se conecta com os meios de

comunicação (televisão, revista, blogs, portais, redes sociais e outras

emissoras de televisão) para divulgar a telenovela, personagens e

consequentemente os objetos de figurino.

Conexões e articulações existem para instaurar o diálogo entre os actantes

com o objetivo de criar vínculo com o telespectador, por meio do produto de

comunicação telenovela, usando a força da comunicação com os demais meios de

comunicação, materializado e mediado pelo figurino de telenovela.

Controvérsias

As questões principais dessa fase da rede de conexão do figurino de

telenovela centralizam-se no poder da comunicação, do objeto e do telespectador. O

poder não é somente dos produtores de comunicação, mas se origina igualmente

dos receptores da comunicação, papel que se inverte em constante sintonia.

É inegável a força da mídia para construir um ídolo ou celebridade, porém, a

força do público telespectador muda a relação entre produtor e emissor de

comunicação. Os telespectadores, produtores de comunicação, principalmente na

internet24 - blogs, redes sociais e centrais de atendimento ao telespectador - fazem

sua voz ter valor e emitem opiniões sobre personagens, trama e seu desenrolar –

materializado em pesquisas de audiência - e alteram os rumos da telenovela e

personagens. A divisão do poder provoca nos autores a necessidade de flexibilidade

para alterar os rumos da história e seus personagens, refletindo na produção da

telenovela.

24

Um total de 55% da população brasileira teve acesso à internet nos últimos 30 dias. Fonte: Mídia Dados 2013, página 636. Disponível em: http://midiadadosrdp.digitalpages.com.br/html/reader/119/15659. Acesso em: 17/02/2014.

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As modificações também acontecem no figurino. Como afirma Adriana Leite:

As modificações imprevistas representam novas contribuições por parte do figurino. O figurino sofre um impacto causado por qualquer situação extra, pois a roupa, representando um elemento comunicador, é sempre um forte indicativo de alteração da normalidade da trama. (LEITE; GUERRA, 2002, p. 199)

O reconhecimento pelo desempenho e bom trabalho de uma equipe de

telenovela acontece pela valorização da personagem. Na valorização incluem-se a

atriz, pela interpretação, o autor, pelo texto e trama, e os demais profissionais

envolvidos na produção. Todavia, a materialização do reconhecimento acontece por

meio do consumo do objeto de figurino, em que o telespectador utiliza em sua

realidade “parte” da comunicação ficcional.

A mídia explora o reconhecimento, mantendo o objeto de figurino em

exposição, valorizando a telenovela e sua personagem, mas principalmente

explorando a conexão do telespectador com tais objetos e tramas, para sua própria

sobrevivência, melhorando os resultados com os assuntos que interessam à

audiência.

3.4 Organização das plataformas de consumo do figurino – comercialização do

objeto

3.4.1 Consumo na rede de conexão do figurino de telenovela

Moda e telenovela têm o efêmero como característica semelhante na

composição de ambas. Deve-se ressaltar o desafio de criar moda ou telenovela que

faça o público se apaixonar, mas não amar. Precisa ser interessante o suficiente

para a telenovela ser acompanhada, e consumido o produto, mas que não fique com

ele “para sempre”. É preciso se “desapaixonar” e abrir caminho para a próxima

telenovela ou a coleção seguinte. A dualidade marca a rede de conexão.

A moda busca o novo, a superação do antigo e traz em si dinâmicas velozes que a caracterizam como o reino do efêmero. (LEITE; GUERRA, 2002, p. 33)

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A capacidade de renovação, ou necessidade de renovação, da moda e da

telenovela, gera no telespectador a urgência do imediato, pois se o consumo da

moda de telenovela não acompanhar o tempo de exibição, perderá o sentido. O que

está no conceito de vida líquida de Zygmunt Bauman, aplicado à moda de

telenovela, denominando-a de “moda líquida”.

A vida líquida é uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e as dores de cabeça mais inquietantes. Entre as artes da vida líquido-moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las. (BAUMAN, 2007, p. 8)

A criação do objeto de figurino de telenovela e a articulação com a mídia para

sua exibição geram identificação do telespectador por meio da personagem, como

visto anteriormente. A identificação desperta no telespectador o desejo de consumo

dos objetos específicos.

“Obter” as características da personagem pelos objetos de seu figurino e suas

razões de compra não serão tema central da análise do trabalho. A discussão nessa

etapa da rede de conexão se concentrará na organização da indústria da moda para

permitir o consumo. É a etapa mais racional de toda a rede de conexões do figurino

de telenovela.

Nesta construção que toma como base o outro, é possível associar esses personagens da moda com imitações que podem ocorrer tanto a partir do corpo das modelos como das atrizes que servem de suporte expressivo para essa composição. Poderá, assim, ser imitado pelos indivíduos comuns submetidos ao aspecto simbólico da moda, criado por produtos, gestos e atitudes. E, nesse movimento de tomar para si parte daquilo que aprecia e que gostaria que fizesse parte do seu mundo, a imitação o aproxima desses ídolos e do modo de vida destes, criando uma autoimagem por intermédio do consumo, que vai, nesse caso, além do seu aspecto funcional e comercial. (VIANA; MUNIZ, 2012, p. 173)

3.4.2 Comunidade real e imaginária

A telenovela é uma comunidade, na qual as personagens se conectam na

trama para resolver ou não os dramas criados pelos autores, vivenciando momentos

diversos ao longo de seis ou sete meses de exibição diária. O formato permite ao

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telespectador organizar comunidades em torno da telenovela em função da

identificação com personagens e trama.

Como “comunidade” significa entendimento compartilhado do tipo “natural” e “tácito”, ela não pode sobreviver ao momento em que o entendimento se torna autoconsciente, estridente e vociferante. (BAUMAN, 2003, p. 17)

A comunidade real formada e vivida pelos telespectadores em seu dia a dia

reflete os valores da comunidade ficcional da telenovela; e a comunidade ficcional

da telenovela, por sua vez, se inspira nas comunidades reais para criar personagens

e dramas. A relação entre o real e o ficcional, vivenciada pelo telespectador, muitas

vezes sem se ater, permite que o objeto de figurino “transite” de forma natural entre

os dois mundos, ou duas comunidades.

Os ídolos, pode-se dizer, foram feitos sob encomenda para uma vida fatiada em episódios. As comunidades que se formam em torno deles são comunidades instantâneas prontas para o consumo imediato. (BAUMAN, 2003, p. 66)

O consumo do objeto do figurino da delegada materializa as características da

personagem na telespectadora. Como se ela, a partir do consumo e utilização,

possuísse os atributos da delegada, que é bonita, inteligente, profissionalmente

bem-sucedida, comanda seus funcionários e sua vida. Os atributos intangíveis da

personagem estão embutidos nos objetos de consumo, além dos atributos próprios

do objeto, tangíveis, como tecido, estampa e cores, e os intangíveis, que são a

elegância e delicadeza, como nas camisas utilizadas pela personagem e

comercializadas exaustivamente.

3.4.3 Trânsito do objeto entre a comunidade real e imaginária

O objeto do figurino transita livremente entre as duas comunidades, real e

imaginária, trazendo o imaginário para o real e levando o real para o imaginário,

mediado pelo objeto que é a parte concreta da relação. Como diz Costa,

Os objetos não são, de forma “intrínseca”, impróprios ou irredutíveis à conversão afetiva. Na relação do sujeito com o mundo, todo objeto cede parte de sua concretude física à imaginação emocional e toda intencionalidade emocional recorre à matéria física dos objetos para ganhar consistência e durabilidade culturais. (COSTA, 2004, p. 162)

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A última parte da rede de conexão do figurino de telenovela apresenta

actantes específicos, que são os profissionais da indústria da moda, e como se

organizam em torno de um produto de comunicação e entretenimento que é a

telenovela, para desenvolver e comercializar os objetos do figurino da personagem

em destaque.

Na organização, podemos dividir a indústria em duas categorias:

- Privilegiada – marcas e empresas que têm objetos do figurino (roupas e

acessórios) escolhidos pelas figurinistas na concepção do figurino no início

ou no decorrer da telenovela; essas marcas, além de divulgar o seu

produto em horário nobre na televisão brasileira, têm o privilegio de

planejar a produção e distribuição para venda dos produtos originais;

- Beneficiada – marcas e empresas que reproduzem os objetos de figurino

(roupas e acessórios) escolhidos pelas figurinistas na concepção do

figurino, no início ou decorrer da telenovela; a reprodução pode ser o mais

próximo possível da peça original ou apenas “inspirada” nos tecidos,

formatos, cores e estampas; essas marcas e empresas não divulgam o

seu produto ou marca no horário nobre, mas se beneficiam da

comunicação para aumentar vendas e resultados.

Essas indústrias correm contra o tempo, pois produção, distribuição,

divulgação e comercialização dos objetos deverão ocorrer no período de exposição

da telenovela e da sua utilização pela personagem; caso contrário perderão o sentido

e o empresário ficará com a produção em estoque.

A luta pela singularidade agora se tornou o principal motor da produção e do consumo de massa. Mas, para colocar o anseio por singularidade a serviço do mercado de consumo de massa (e vice-versa), uma economia de consumo também deve ser uma economia de objetos de envelhecimento rápido, obsolescência quase instantânea e veloz rotatividade. E assim, também, de excesso e desperdício. A singularidade é agora marcada e medida pela diferença entre “o novo” e o “ultrapassado”, ou entre as mercadorias de hoje e as de ontem que ainda são “as novas” e, portanto, estão nas prateleiras das lojas. O sucesso e o fracasso na corrida da singularidade dependem da velocidade dos competidores, da destreza em se livrar prontamente das coisas que foram rebaixadas para a segunda divisão [...]. (BAUMAN, 2007, p. 36)

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3.4.4 Organização da indústria da moda para possibilitar o consumo do

figurino de telenovela

A indústria da moda se organiza para disponibilizar os objetos de venda para

o telespectador, utilizando a internet como meio de aproximação e contato. Muitas

vezes o telespectador compra diretamente no site, outras apenas consulta preços e

endereços onde os objetos do figurino estão disponíveis.

As imagens selecionadas mostram como é possível estar à disposição o

figurino da delegada, e como o telespectador encontra várias opções entre as

marcas parceiras, escolhidas pela figurinista para compor o guarda-roupa da

personagem e peças das marcas que se beneficiam da procura pelos objetos de

figurino, reproduzindo-as ou apenas seguindo o estilo da delegada.

Lojas virtuais

Figura 26 – Imagem da loja virtual Moda de Novela, onde os objetos da moda são inspirados no estilo da personagem Heloísa, fabricados e comercializados pela

própria loja.

Fonte: Moda de Novela. Disponível em: http://www.modadenovela.com.br/salve-jorge.html?p=2. Acesso em 28/04/2013.

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Figura 27 – A Rede Globo possui o site para comercializar os objetos de figurino e do cenário das telenovelas. Esta imagem mostra os objetos de outras personagens

da telenovela Salve Jorge, nenhum objeto do figurino da personagem Heloísa foi comercializado pelo site.

Fonte: Globomarcas. Disponível em:

http://www.globomarcas.com.br/globomarcas/pages/secao/secao.jsf. Acesso em 29/04/2013

Redes sociais

Figura 28 – A loja virtual Moda de Novela possui um perfil da rede social Facebook para divulgar os objetos do figurino de telenovela e se relacionar com as

telespectadoras, com mais de 31 mil curtidores.

Fonte: Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/modadenovela. Acesso em 13/02/2014.

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Lojas de rua

25 de Março – São Paulo - SP

Figura 29 – Liderando a lista dos objetos mais procurados nas lojas da rua 25 de Março, centro comercial de São Paulo, em dezembro de 2012 estava o bracelete com a oração de São Jorge usado pela delegada. Reportagem de Higor Dorta em

10.12.2012.

Fonte: Blog de Moda Chic Gloria Kalil. Foto 3 de 9 de Charles Naseh. Disponível em: http://chic.ig.com.br/moda/noticia/saiba-quais-os-acessorios-das-personagens-de-salve-jorge-sao-os-

mais-procurados-na-rua-25-de-marco-em-sao-paulo. Acesso em 10/02/2014.

Figura 30 – O anel de São Jorge usado pela delegada foi um dos objetos mais procurados nas lojas da rua 25 de Março, centro comercial de São Paulo, em

dezembro de 2012. Reportagem de Higor Dorta em 10.12.2012

Fonte: Blog de Moda Chic Gloria Kalil. Foto 4 de 9 de Charles Naseh. Disponível em: http://chic.ig.com.br/moda/noticia/saiba-quais-os-acessorios-das-personagens-de-salve-jorge-sao-os-

mais-procurados-na-rua-25-de-marco-em-sao-paulo. Acesso em 10/02/2014.

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Figura 31 – Outro objeto do figurino da delegada: pingente de São Jorge, entre os mais procurados nas lojas da rua 25 de Março, centro comercial de São Paulo, em

dezembro de 2012. Reportagem de Higor Dorta em 10.12.2012.

Fonte: Blog de Moda Chic Gloria Kalil. Foto 5 de 9 de Charles Naseh. Disponível em:

http://chic.ig.com.br/moda/noticia/saiba-quais-os-acessorios-das-personagens-de-salve-jorge-sao-os-mais-procurados-na-rua-25-de-marco-em-sao-paulo. Acesso em 10/02/2014.

José Paulino - SP

Figura 32 – O estilo do figurino da personagem Heloísa invadiu as vitrines das lojas do bairro de compras de atacado e varejo - Bom Retiro, em março de 2013. Na

vitrine da loja Lulu Concept, há duas tendências do figurino: calças estampadas e “animal print”. Endereço da loja: Lulu Concept - 11.33312866 - Rua José Paulino,

132/25 de março de 2013.

Fonte: Blog de moda sweet-cheer, da Bianca Ramuth. Disponível em: http://www.sweet-cheer.com/2013/03/como-garimpar-na-rjose-paulino.html. Acesso em 10/02/2014.

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Figura 33 – Na mesma José Paulino, em março de 2013, na loja Just Lulu, revela-se a tendência do figurino com as calças estampadas. Endereço: Just Lulu -

11.33313103 - Rua José Paulino, 138

Fonte: Blog de moda sweet-cheer, da Bianca Ramuth. Disponível em: http://www.sweet-cheer.com/2013/03/como-garimpar-na-rjose-paulino.html. Acesso em 10/02/2014.

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Blogs de moda e lojas de varejo

Figura 34 – No portal MSN, em março de 2013, na página de moda, Vanessa Andrade separou os principais objetos do figurino da delegada Heloísa, com endereço das lojas e o preço das peças, para as telespectadoras internautas

adquirirem os objetos. Nesta imagem ela sugere uma camisa inspirada no estilo das camisas usadas pela personagem com estampa “animal print”. Onde comprar:

lojavirtual lojasrenner.com.br. Preço R$ 89,90.

Fonte: MSN – Tempo de Mulher, 19 de março de 2013. Foto: divulgação TV Globo e Renner. Disponível em: http://estilo.br.msn.com/tempodemulher/moda/onde-comprar-as-peças-do-look-da-

helô-de-salve-jorge#image=1. Acesso em 10/02/2014.

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Figura 35 – Vanessa Andrade, nesta imagem, sugere a calça pantalona da Zeit, usada em cena pela delegada. Onde comprar: loja.zeitsp.com.br. Preço R$ 151,20

Fonte: MSN – Tempo de Mulher, 19 de março de 2013. Foto: divulgação TV Globo e Zeit. Disponível em: http://estilo.br.msn.com/tempodemulher/moda/onde-comprar-as-peças-do-look-da-helô-de-salve-

jorge#image=1. Acesso em 10/02/2014.

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Figura 36 – Aqui, Vanessa Andrade sugere o macacão com estampa de píton, inspirado no traje de cena da personagem. Onde comprar: www.equus.com.br.

Preço R$ 379,00

Fonte: MSN – Tempo de Mulher, 19 de março de 2013. Foto: divulgação TV Globo e Equus.

Disponível em: http://estilo.br.msn.com/tempodemulher/moda/onde-comprar-as-peças-do-look-da-helô-de-salve-jorge#image=1. Acesso em 10/02/2014.

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Figura 37 – Vanessa Andrade sugere a sandália de gladiadora, a mesma usada em cena pela personagem. Onde comprar: luizabarcelos.com.br. Preço R$ 410,00

Fonte: MSN – Tempo de Mulher, 19 de março de 2013. Foto: divulgação TV Globo e Luiza Barcelos. Disponível em: http://estilo.br.msn.com/tempodemulher/moda/onde-comprar-as-peças-do-look-da-

helô-de-salve-jorge#image=1. Acesso em 10/02/2014.

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Figura 38 – A blogueira Vanessa Endringer postou, em março de 2013, no blog Blogosfera Fashion, matéria escrita por Polyanna Polycarpo, sugerindo algumas

combinações de uso dos objetos de figurino da delegada. Os objetos são inspirados nos usados pela personagem, e a blogueira selecionou as peças, com o nome das

lojas e custo de cada uma. Nesta imagem, calça estampada das lojas Renner, camisa da Colcci, entre outros acessórios.

Fonte: Blogosfera Fashion, 6 de março de 2013. Disponível em: http://www.folhavitoria.com.br/entretenimento/blogs/modaebeleza/2013/03/06/blogosfera-fashion-

delegada-que-lanca-moda.html. Acesso em 10/02/2014.

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Figura 39 – Vanessa Endringer publicou imagem da calça das lojas Renner, blazer “animal print” da Bo.Bô, entre outros acessórios.

Fonte: Blogosfera Fashion, 6 de março de 2013. Disponível em:

http://www.folhavitoria.com.br/entretenimento/blogs/modaebeleza/2013/03/06/blogosfera-fashion-delegada-que-lanca-moda.html. Acesso em 10/02/2014.

Mega Polo Moda

O Mega Polo Moda é um shopping de atacado e pronta entrega, direcionado

aos empresários da moda, que abastecem suas lojas com as peças produzidas

baseadas nas principais tendências.

O shopping fechou um contrato com a Rede Globo: os lojistas doam peças às

figurinistas para compor o visual de alguma personagem em qualquer programa,

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principalmente em novela. A loja que tiver sua peça selecionada receberá uma

etiqueta “Aqui tem peça de novela”, promovendo a coleção e peças da loja.

Constantemente teremos em nosso shopping a visita de figurinistas que vão identificar entre as marcas peças para vestir os personagens das novelas. Você, lojista, quando vir uma etiqueta “Peça da Novela” corra para garantir a compra dessa peça que em breve estará vestindo as principais atrizes e atores da dramaturgia brasileira (MEGA POLO MODA). Disponível em: http://www.megapolomoda.com.br/projeto-peca-de-novela/?page_id=1141.

Figura 40 – Etiqueta que ficará nos objetos de moda que farão parte do figurino de uma personagem em telenovela na Rede Globo, e a aplicação desta na vitrine de

uma loja

Fonte: Mega Polo Moda. Disponível em: http://www.megapolomoda.com.br/projeto-peca-de-novela/.

Acesso em 13/02/2014.

3.4.5 Rede de conexão do figurino da delegada Heloísa em Salve Jorge – parte

III – Organização das plataformas para o consumo

A fase final da rede de conexão do figurino da delegada é a mais racional das

três - criação, exposição e organização. Racional por necessitar organizar a indústria

da moda com o objetivo de propiciar o consumo dos objetos de figurino da

telenovela, por meio de ferramentas do marketing e administração, usufruindo dos

bons resultados de uma comunicação eficiente. Neste caso, os bons resultados

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vieram do reconhecimento da personagem delegada Heloísa, transformando objetos

do figurino em peças de desejo das telespectadoras. Organizar a indústria, no tempo

de exibição da telenovela e personagem, requer uma estratégia que esteja em

sintonia com a demanda e a oferta, recursos e prazos, distribuição e

comercialização.

Actantes

- Humanos: empresários da indústria da moda, consultores de moda,

telespectador;

- Não humanos: personagem, objeto de figurino, trama, redes sociais, blogs

de moda, lojas de rua ou shoppings, lojas de atacado ou varejo, marcas de

moda reconhecidas ou não.

Mediações

As mediações são mais simples nesta fase, pois as principais conexões são

feitas entre a telespectadora, a indústria da moda e consultores de moda.

- A telespectadora se identifica com a personagem e seus objetos do

figurino, alimentados pela trama, buscando os objetos na indústria da

moda;

- Os empresários da indústria da moda utilizam o meio de comunicação

mais próximo da telespectadora, que é a internet, por meio de blogs, lojas

virtuais, redes sociais, para seduzi-la e levá-la ao ato da compra;

- As telespectadoras buscam informações sobre os objetos de figurino da

personagem principalmente na internet, em redes sociais, blogs de moda,

encontrando respostas detalhadas sobre os objetos, formato de uso e

custos.

As conexões possuem caráter informativo e sedutor para as telespectadoras,

que já se convenceram da importância do objeto de figurino em sua vida pela

identificação com a personagem e trama. Cabe aqui aos empresários da moda se

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articular com os meios de comunicação de massa, usando atributos da personagem

e dos objetos de seu figurino, para efetivamente produzir e vender tais objetos, e se

articularem com os meios de comunicação segmentados, chegando à

telespectadora, independentemente de onde ela esteja.

Controvérsias

Uma das principais controvérsias dessa fase da rede de conexão do figurino é

a falta de controle da Rede Globo sobre a comercialização dos objetos de figurino da

personagem, selecionados e conectados pelos figurinistas da emissora com a ajuda

da moda, como vimos, mas reproduzido e comercializado pela indústria da moda,

seja de marca parceira ou reprodução seguindo o estilo.

O fato de uma figurinista ter escolhido um objeto para o figurino de um de seus

parceiros comerciais (roupas ou acessórios), não confirma que a marca terá garantia

nas vendas. Porém, é inegável que como estratégia de divulgação da marca ao

público-alvo funciona muito bem, e com custo somente de produção dos objetos.

Para se ter a dimensão da vantagem dessa estratégia de exposição da marca, um

comercial de 30 segundos, na novela das 21h da Rede Globo, custa R$

595.400,0025.

Existe liberdade de escolha do público-alvo de onde e como consumir os

objetos do figurino. Decide-se entre as marcas parceiras ou as reproduções, entre a

compra nas lojas de rua, de shopping ou nas virtuais, entre usar os objetos como a

personagem ou compor sua própria forma de utilizá-los. Mesmo que a liberdade

esteja condicionada à “ditadura da moda” criada pela telenovela e divulgada pelos

meios de comunicação.

A relação mais importante dessa fase está na dualidade entre a realidade e o

imaginário. No imaginário, pela relação desenvolvida entre a personagem e a

telespectadora, gera-se a identificação de valores, dramas vividos e

comportamentos, “transportados” para o objeto de figurino. Na realidade, pela

concretude do objeto de figurino, sua materialidade, ou seja, se o objeto existe

próximo à telespectadora, ela consegue comprá-lo e usá-lo, e é natural que a sua

25

Fonte: Jovedata. Disponível em: http://www.jovedata.com.br/. Acesso em 10/02/2014.

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sensação é de que as características que ela admira na personagem agora lhe

pertencem. A telespectadora passa a ser a personagem da sua realidade, vivendo o

espetáculo diário da sua vida, apoiada nos objetos de figurino.

[...] ideais morais e emocionais não se sustentam sem objetos materiais, porque são eles que dão visibilidade e mundanidade aos sentimentos. (COSTA, 2004, p. 180)

Com a união das três fases da rede de conexão do figurino da delegada

Heloísa em Salve Jorge, concepção, expressão e organização para o consumo,

temos a rede completa para visualização da sua estrutura e complexidade, facilitando

assim a sua análise.

Figura 41 – Rede de conexão do figurino da personagem Heloísa da telenovela Salve Jorge.

Fonte: Autora.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao visualizar a rede de conexão do figurino de telenovela completa, constatei

que alguns actantes que formam a rede se movimentam em todas as fases, na

concepção do objeto de figurino de telenovela, exposição do objeto de figurino de

telenovela e organização do objeto de figurino de telenovela, caso do telespectador,

do personagem e do próprio objeto de figurino; outros em duas fases, caso do

figurinista e ator, que aparecem na concepção do objeto de figurino de telenovela e

exposição do objeto de figurino de telenovela, enquanto outros aparecem em

apenas uma das fases, os empresários da indústria da moda, que estão na fase da

organização do objeto de figurino de telenovela e lojas de rua ou de shopping.

Independentemente da fase que o actante aparece ou interage, sua ação

impactará em toda a rede de conexão, e seus vínculos e diálogos possibilitam a

“transformação” do figurino do personagem de telenovela em moda do

telespectador.

O projeto resultou na criação da rede de conexão do figurino de telenovela

que possibilita o figurino do personagem de telenovela se tornar moda, com seus

actantes, mediações e controvérsias. É certo que ao analisar a rede pronta, incluem-

se ou excluem-se outros actantes, verificam-se e se encontram novas mediações

entre eles, e mais controvérsias seriam identificadas nos vínculos. Portanto, é fato

que a rede é movimento, mas um movimento em cadeia, pois o início e o final serão

os mesmos, mas é certo afirmar que de acordo com o analista e com novos

actantes, as possibilidades de conexão e diálogo serão outras, mas o “núcleo

central” da rede será sempre o mesmo.

Respondendo à questão central da pesquisa, existe um padrão dos actantes

e das ações da rede, mas muda a forma e o tempo de conexão entre eles.

A dualidade comercial e artística da telenovela que impacta a rede de

conexão do figurino de telenovela será parte intrínseca de todo o processo. Uma

alimenta a outra, e uma não existe sem a outra. De acordo com os dados

analisados, é possível desenvolver um figurino que valorize a arte do

entretenimento, respeitando a caracterização da personagem, e utilizar elementos e

objetos do mundo da moda para dar respostas ao tempo e custo de produção. Do

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mesmo modo, é possível criar uma estratégia de consumo no mundo da moda,

baseada no figurino da personagem, divulgando o produto telenovela. Os limites

devem ser respeitados, mas talvez esteja aqui a razão de anos de discussão: quem

estabelece os limites?

O objeto de figurino é o único que transita livremente em toda a rede de

conexão do figurino de telenovela, criação, divulgação e organização para o

consumo. Ele, pela sua materialidade, conecta o universo real e o ficcional, o

telespectador e a personagem.

A rede de conexão do figurino de telenovela possibilita que os objetos do

figurino se tornem moda, e todos os actantes possuem igual importância no fluxo,

mas evidenciou-se na análise da rede que no início do processo algumas apostas

são feitas em determinadas personagens, que podem ou não dar certo. Aqui, a

característica básica da rede e da telenovela se mistura, pois estão em constante

movimento; a depender da resposta do telespectador, as apostas e investimentos

são alteradas, como as conexões na rede. Toda a movimentação permite que o

objeto saia da ficção e chegue à realidade. O movimento evidencia o poder do

telespectador dentro da rede, embora todos tenham igual importância.

O figurino é desenvolvido com o objetivo de caracterizar a personagem, no

tempo e custo necessários de cada telenovela, mas precisa “convencer” o

telespectador que pretende acompanhar a telenovela. Para acompanhar, precisa se

identificar com a trama, conflitos e textos dos personagens. Por meio da

identificação o acompanhamento se torna realidade. Se a identificação não

acontece, mudanças na telenovela acontecem, e em toda a sua estrutura,

principalmente na trama e no texto, refletindo na produção e no figurino.

Nota-se o poder do telespectador na forma como a indústria da moda se

organiza para colocar à disposição os objetos de figurino ao consumo. São utilizadas

ferramentas próximas ao telespectador, que fazem parte do seu dia a dia, se

posicionando como um auxílio nos “problemas de moda”. Surgem os tutoriais do

figurino da personagem, endereço de compra, objetos iguais ou que seguem o estilo

da personagem e os custos dos objetos. Uma verdadeira fonte de informação na

qual o telespectador costuma estar - internet, redes sociais e mesmo com as donas

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de lojas que se inspiram nas ferramentas para divulgar sua mercadoria e conquistar

o telespectador.

O padrão da rede de conexão é realidade, sendo aplicado no final da

pesquisa, como uma fórmula. Analisando a nova telenovela da Rede Globo, Em

Família, que estreou na emissora no início de fevereiro de 2013, as apostas

começam a ser feitas em determinadas personagens, como Luiza, vivida pela atriz

Bruna Marquezine. Filha da protagonista, Luiza é uma adolescente linda, de espírito

jovem e jeito franco26. O movimento dos meios de comunicação para divulgar a atriz

e sua personagem se evidencia, pois Bruna Marquezine é capa da revista Estilo,

edição 0137, de fevereiro de 201427. Resta saber se o telespectador se identificará

com a personagem e se seu figurino se transformará em moda para as

telespectadoras.

Mas a aplicação da rede de conexão como uma fórmula é base para outras

oportunidades de pesquisas.

26

Fonte: Gshow. Dispnível em: http://gshow.globo.com/novelas/em-familia/personagem/luiza-bruna-marquezine.html#perfil. Acesso em 15/02/2014.

27 Fonte: mdemulher. Disponível em: http://mdemulher.abril.com.br/revistas/estilo/sumarios/capa-

estilo-edicao-137-bruna-marquezine-772646.shtml . Acesso em 15/0/2014.

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ANEXOS

1. ENTREVISTA COM A FIGURINISTA MARÍLIA CARNEIRO

Entrevista com a figurinista Marília Carneiro, concedida a Fernanda Junqueira

Rodrigues na cidade do Rio de Janeiro em maio de 2009, como material para sua

pesquisa para a dissertação do Mestrado da Unicamp.

Equipe:

Fernanda Junqueira (FJ) – entrevistadora

José Gabriel (JG) – câmera e som direto

(Fernanda Junqueira) Eu gostaria de começar conversando um pouco sobre os

figurinos na década de setenta.

) A sua pesquisa é sobre década de setenta?

(FJ) A minha pesquisa é sobre figurinos de telenovela nos anos 60 70. Trabalho a

transição de um figurino cênico para um figurino de moda, a passagem daqueles

figurinos dos anos 60, cheios de detalhes, estilo novela Era Magadan Glória

Magadan , que você caracteriza em seu livro como figurinos das oficinas de costuras

para os figurinos com uma linguagem de moda mais forte.

(MC) Era assim que se fazia.

(FJ) Exatamente, eu acho que faz parte desse processo que foi se diluindo no final

da década de sessenta.

(MC) Isso, eu acho que é por isso que eu me destaquei, porque eu era a pessoa

certa no lugar certo - the right man in the right place. Porque eu realmente fiz esse

link, entre o mundo da moda e a televisão.

(FJ) A primeira questão que eu queria que você falasse um pouco é sobre o início da

década de 1 70 na televisão. Com uma mudança muito grande, não só no setor de

figurino da Globo, mas um momento de consolidação da emissora e do Padrão

Globo de Qualidade, que hoje é a marca da Globo.

(MC) Em plena censura ainda.

(FJ) Exatamente, então Marília, eu queria começar com você perguntando o que é

esse padrão de qualidade, como isso se reflete no figurino?

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(MC) Se reflete de uma maneira muito positiva, porque eu acho que o tal padrão de

qualidade ele vicia, não só quem está olhando como quem está fazendo. Então você

fica num nível de exigência, às vezes, quase insuportável. Eu vejo quando eu vou

fazer um filme e eu não tenho as condições que a Globo me oferece, eu fico

atacada, não sei como eu vou chegar lá. Entendeu Então eu comecei meio que me

especializar nos filmes que tudo pode, como Xangô de Baker Street filme de 1 ,

dirigido por Miguel aria r., baseado na obra homônima escrita por ô Soares , que

eu fui pra Londres, Se Eu osse Você Daniel ilho, 2005 , que eu também podia

trabalhar com bastante largueza e agora, no exato momento, eu estou fazendo um

filme do Paulo Cezar Saraceni, que é um poema do Drummond que ele está

filmando. E, aí o que é que eu faço pra atingir meu padrão de qualidade sem zero de

money Aí eu começo a pedir emprestado tudo a todo mundo. Sabe todo mundo

que eu já fui caridosa quando eu estou com o dinheiro da Globo Tem obrigação de

me emprestar, senão eu levo para o lado pessoal.

(FJ) E dá pra fazer figurino de cinema junto com o da novela Como você está

fazendo agora?

(MC) Olha, é muito cansativo, eu estou completamente exaurida, eu só faço

trabalhar. Ontem eu saí pra ver um sho e pra mim isso já foi uma aventura. Porque

eu vou de casa pro trabalho, do trabalho pra casa, porque tem que concentrar. De

manhã eu dou um plantão no cinema, porque a novela só começa a uma hora da

tarde, e de tarde dou um plantão no Projac, que é muito longe. Então eu ando muito

de carro, por exemplo, com um trânsito horrível.

(FJ) Marília, retomando a questão sobre o padrão Globo, você quis dizer que tem

relação com a questão financeira, de você ter uma verba muito grande para o

figurino?

(MC) Eu acho que o mundo já não está com verbas muito grandes. O mundo não é a

Globo, a Globo é um reflexo do que está acontecendo. Então, é claro que tem um

sentido de apertar cintos, mas é um apertar cintos bastante generoso, NE? E depois

existe uma vontade das grifes e do mundo da moda enorme de lançar coisas na

Globo. Claro, porque aquilo é uma vitrine inacreditável, então a facilidade de arranjar

roupa é extraordinária, quando você está fazendo uma novela de sucesso,

sobretudo. Então, Belo Horizonte me acode, São Paulo me acode, sabe?

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(FJ) Marília, recentemente eu li uma entrevista com o Daniel Filho, e ele estava

falando sobre as dificuldades passadas após a sua saída da Globo – telefone que

para de tocar etc.- e depois de um tempo fazendo cinema, enfim, ele percebeu que

esse negócio todo de padrão Globo de qualidade na verdade estava nele, no sentido

de que o tal padrão relacionava-se com os profissionais, funcionários que

trabalhavam na Globo no período.

(MC) Você levantou uma questão muito interessante, porque eu acho que o Daniel

inventou o padrão Globo de qualidade, se você quer saber. Sabe como? Reunindo

pessoas, porque ele é o maior aglutinador de talentos que eu conheço. Entendeu

Então, o que não tinha na Globo ele catava fora, eu fui uma dessas abençoadas.

Isso ele fazia não só no figurino, como em tudo. Era a melhor câmera, ele ia procurar

não sei onde. O melhor profissional, inclusive, no cinema novo, de onde eu vinha.

(FJ) Você era casada com o Mário Carneiro.

(MC) Isso. Ele apanhou o cinema para a televisão. O padrão é ele. Agora, claro, que

a Globo se viciou no padrão, e não é por ele ter saído que vai cair nada.

(FJ) Aproveitando a referência ao Daniel ilho, ele diz em seu livro que ao participar

da escalação do elenco para a novela Ossos do Barão novela de orge Andrade,

1 73 74 , se não me engano ele também dirigiu a novela por um tempo.

(MC) Ele sempre “startava” e depois ele saía, e dava os outros capítulos. Foi

Avancini [Walter Avancini] que dirigiu. Ah, não, o Ossos do Barão foi o Régis

Cardoso. Avancini era a Gabriela [novela escrita por Walter George Durst, 1975].

(FJ) Então, o Daniel ilho conta o seguinte: que quando foi fazer o convite para a

Dina Sfat, que era a estrela da novela, ela não estava querendo fazer novela

naquele momento, depois de algumas conversas entre eles, a Dina aceita e já que a

sua personagem Izabel tinha o charme do “bem vestir” e que o figurino da Globo era

“fraco”, propõe...

(MC) Era a Magadan ainda. Adorei essa historia de dividir com a Madagan, o antes e

depois. Era completamente Magadan e ela era a estrela absoluta, e ela

particularmente não gostava daquilo. Ela queria ser jovem e fashion.

(FJ) Outra questão que eu acho importante também tem a ver com o padrão de

qualidade, em alguns livros sobre a história da Globo encontramos a ênfase na

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importância do Departamento de Pesquisa, chefiado por Homero Sanchez, para a

formação da emissora, de seu padrão.

(MC) É porque não tinha, por exemplo, em Gabriela não tinha, em Ossos do Barão

também não tinha departamento de pesquisa, ainda. Cedoc, né Eu me lembro de ir

à biblioteca pesquisar livro, aqueles livros que davam alergia, sabe? Cheios de

poeira.

(FJ) Não, Marília, pesquisa de audiência. E que esse departamento era tão

importante que chegava a interferir na autoria e direção de telenovelas da época.

(MC) A pesquisa que você diz é se está agradando ou não? Eu pensei que fosse

pesquisa tipo Cedoc, perdão. Não, agora eu sinto muito mais do que naquela época.

Naquela época...

(FJ) Você tinha total liberdade?

(MC) Tinha total liberdade como ainda tenho total liberdade, mas você sente que -

deixa eu ver o que eu sinto de diferente - que eu agora me censuro, sabia? Quando

eu invento um personagem, digamos Caras & Bocas [novela de Walcyr Carrasco,

ainda no ar no momento da entrevista], eu inventei a roupa da Dafne [personagem

interpretada pela atriz Flávia Alessandra], que é essas sobreposições que você está

e tal. Quando eu fiz a Dafne de cabelo cortado, que nem o seu, curto,

desglamourizada, entre aspas, eu falei, “ esus será que o povo vai gostar disso ”

Entendeu? Eu jamais teria tido esse pensamento na década de setenta.

(José Gabriel) Mas nunca houve, por exemplo, uma maneira de a audiência

determinar o personagem ou de alguma forma isso chegar até vocês?

(MC) Claro que houve. O Dono do Mundo [novela de Gilberto Braga do início da

década de 1990] eu tive que modificar o figurino da personagem da Malu Mader,

porque ela estava tendo oitenta por cento de reprovação, porque ela era virgem e na

lua de mel, em vez de dar pro marido ela dá pro Fagundes [Antonio Fagundes].

(FJ) Mas aí é uma questão moral, não é?

(MC) Sim, mas daí tudo, tudo, tudo, foi afetado, inclusive o figurino. É louco isso,

mas até então eu não tinha sentido na pele nada, nada, nada. Aí eu fiquei com as

antenas ligadas e agora eu tive essa coisa com a Dafne. alei “meu Deus, será que

eu acendo uma vela pra Deus e outra pro diabo ” Decoto ela nas costas e faço as

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costas aqui [gestos], eu quis contemporanizar e graças a Deus o autor, o Carrasco ,

falou: “Epa! está uma maravilha, deixa assim. Tapa, tapa”. Eu precisava tapar

porque ela tava vindo daquela personagem sexy, eu tinha que radicalizar a falta de

cor, a falta de decote, a falta de tudo, né?

(FJ) Mas acho que você conseguiu chegar numa elegância que a personagem pede

mesmo.

(MC) Lógico, eu consegui, mas eu titubeei um minuto, entendeu? Porque eu pensei,

meu Deus, será que o público vai dizer “acabaram com a mulher!”

(FJ) Essa preocupação também não se relaciona com a necessidade de sedução

que tem que ser passada pelas atrizes?

(MC) Nada, nada, muito pelo contrário, essa menina [referência a Flávia Alessandra]

em especial é um caderno em branco. Ela se deixa redesenhar, é uma coisa

impressionante. Nunca tinha visto assim na idade dela, uma entrega. Se quiser

colocar ela de freira, tapada até aqui, cortar o cabelo dela, como eu cortei, sem

glamour nenhum, tudo ela topa. Ela é de uma disciplina incrível, quando ela dá um

palpite é uma coisa muito educada, tipo “olha, lembra que eu vou jantar com ele,

quem sabe era melhor um casaquinho, sabe ” Não fica apegada.

(FJ) Marília, em seu livro você diz que no início dos anos 70 há uma guinada nos

figurinos de telenovelas, você usa o termo guinada mesmo, das oficinas de costuras

para as lojas de rua, e que essa era previsível.

(MC) Eu digo isso, não me lembro mais. E por quê? Eu continuei o raciocínio ou

não...

(FJ) Eu queria justamente perguntar de onde vem essa sua ideia de previsibilidade.

(MC) Ai, que pena que eu não trouxe o livro! Aí eu saberia. Exatamente o que eu

queria dizer com isso. Será que é previsível ou inevitável?

(FJ) Você usa o termo previsível. Marília, foi a partir desse momento de mudança,

da guinada em suas palavras, que os antigos profissionais do setor de figurino da

Globo, como, por exemplo, Carlos Gil, que fez O Bem-Amado, Arlindo Rodrigues,

entre outros figurinistas, saem da emissora?

(MC) Não, não, não, não. Quer dizer, o Arlindo acho que fica só com as novelas de

época, se é que ele já tinha feito novelas atuais. Tenho a impressão que não.

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(FJ) O Arlindo Rodrigues vinha da escola de samba, se eu não me engano.

(MC) Exatamente. Mas ele era um homem de cultura, conhecia profundamente os

figurinos do século XIX, Dona Beija [novela transmitida pela antiga TV Manchete em

1986, escrita por Wilson Aguiar Filho], que está passando é dele, é tão bonito, e eu

acho que a coisa focou assim, ele ficou com essa parte, o Carlos Gil ficou como

chefe de ateliê, ele não parou de trabalhar. Você vê, acho que a minha entrada foi

um pouco bombástica, pensando bem, né?

(FJ) E você se ocupa das novelas de temáticas contemporâneas?

(MC) Eu comecei a me ocupar, eu e mais algumas outras pessoas.

(FJ) Então, o Carlos Gil se torna chefe de costura?

(MC) Aliás, um chefe memorável que dá uma saudade até hoje, porque ele

administrava aquilo como uma grande família e tudo dava certo.

(FJ) Marília, dentro dessa transformação das novelas nos anos 70, que eu acho que

você é um dos símbolos no setor de figurinos, quais foram os maiores reflexos para

outros setores, como o de cenografia, por exemplo?

(MC) Eu acho que foi inventada uma coisa chamada produção de arte, que não

pode ser chamada de direção de arte, porque essas moças são consideradas

produtoras de arte. O Daniel Filho, que chamou a Lila Bôscoli, que era a mulher do

Vinicius [Vinicius de Moraes], e uma menina veio com ela, a Tisa de Oliveira, que

está lá até hoje, e elas duas vieram fazer uma novela que chamava O Rebu [novela

de Bráulio Pedroso, 1974/75]. Até O Rebu, a coisa sobrava muito pra mim. Porque

eu ficava sentada no caminhão, e eu ficava dizendo “olha lá, aquele ator está

comendo com a faca levantada! Pelo amor de Deus, Régis! Manda baixar!”; ”É

assim, não é assim que se fala!”; “Serve pela esquerda, tira pela direita”. Essas

coisas que a gente sabe do nosso dia a dia, eu ia passando, entendeu? Eu me

lembro tanto de uma cena que tinha que jogar brigde, ninguém nunca tinha ouvido

falar em brigde, eu jogava bem à beça! Então eu montei a mesa, entendeu? Quando

tinha alguma coisa em francês eu traduzia, enfim. Quando a Lila e a Tisa entraram, a

Tisa é uma das minhas melhores amigas, a Lila morreu, e a Tisa me diz que eu a

recebi com bala! Armada, entendeu Esse é meu terreno e se aproximar daqui leva

bala! Eu acho que é mentira da Tisa! Mas eu nego! Porque eu me lembro que fiquei

num alívio, eu pensei “eu nunca mais vou ter que dizer essas coisas, eu posso ficar

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pensando em roupa”. Tudo muda, tudo muda, tudo muda. E fica, o jantar do Rebu,

se você vir até hoje, é impecável. A distribuição de mesa, os pratos, os copos, é uma

coisa!

(FJ) E vocês conseguem essa integração nesse momento?

(MC) Nessa novela que eu estou fazendo ero, se você quer saber! Mas acho que

é o modo do núcleo do orge ernando diretor de Caras Bocas trabalhar. Eu

venho de núcleos que a direção de arte e figurino se integram, eu vejo todas as

locações, por exemplo, que têm a ver locação com vestido, né Mas o orginho não,

ele setoriza. Você cuida da arte, você cuida do cenário e você cuida do figurino.

Resultado: tem um sofá roxo no meu cenário que eu quase morri quando eu vi.

Porque a tendência é roxo, é uma cor maravilhosa pra eu botar na minha vilã, que é

a Maria ilda, e eu não posso usar porque ela some no sofá. Entendeu Isso é falta

de quê De papo. Mas eu também sei dançar conforme a música. Trabalho nos

neutros, entendeu?

(FJ) Marília, outra coisa que eu queria te perguntar é o seguinte: infelizmente, a

novela Ossos do Barão não existe mais, dizem na Globo que queimou e...

(MC) Queimou O Rebu também. Não, O Rebu acho que aconteceu uma coisa muito

pior, eles usaram as fitas, reutilizaram!

(FJ) Mas isso era comum.

(MC) Mas isso é um acesso de loucura, não?!

(ZG) É. Inclusive, nós fizemos uma série de entrevistas com o pessoal que fez o

Globo Repórter, o Maurice Capovilla, João Batista de Andrade.

(MC) Walter Lima fazia!

(ZG) Luiz Lobo, todos eles falaram que reutilizavam as fitas na época.

(MC) Pois é, eu fiquei chocadérrima quando eu soube, porque O Rebu,

independente do meu figurino, era uma coisa, um produto como eles chamam agora,

ninguém chama mais de novela. É produto, absolutamente.

(FJ) Produto?

(MC) Chamam! Nem me fale! Eu fico tão desgostosa! Produto pra mim é Bombril,

né?! Então, produto, absolutamente genial, de vanguarda, entendeu? Do Bráulio que

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já morreu. Um elenco excepcional, onde é que você reúne as pessoas, Zé Lewgoy,

Tereza Raquel, entendeu?

(FJ) Aliás, é realmente impressionante a qualidade dos elencos das novelas nos

anos 70. Fui rever Dancin’days e fiquei impressionada com a atuação dos atores.

(MC) Pois é, é porque eu acho que a TV Globo acolhia as pessoas de teatro e

cinema que estavam precisando de um salário melhor e tal. Aí o Paulo José, que

não deixava a gente ver televisão, ele dizia “agora pode fazer, mas não pode ver!”

[risos] Porque ele tinha produzido, ele já tinha produzido aquele filme do Ruy Guerra

que o dinheiro era dele e foi muito mal de grana. Era, ai meu Deus, que era com a

Dina, Os Deuses, não, Os Fuzis! Nossa, famosíssimo! Então, agora pode fazer

televisão, porque ele precisava pagar o banco, né? Mas não pode ver.

(FJ) Marília, outra questão também na década de 70, que é a seguinte: você fala

dessa guinada das oficinas de costura para lojas de rua. Ossos do Barão, quando

você entra, é a segunda novela em cores, que eu entendo que essas novelas, na

verdade as experimentações, sejam elas quais forem, vão parar no horário das dez

da noite.

(MC) É verdade, O Rebu, tudo. Até a Gabriela.

(FJ) Exato. Então os Ossos, a novela Os Ossos do Barão é a segunda, a primeira

em cores é o Bem-Amado. Em sua opinião, quais são as principais diferenças nos

figurinos dessas duas novelas, tanto no resultado que a gente vê na TV, como no

modo de produção de uma novela para outra?

(MC) Olha, é complicado comparar esses dois trabalhos, porque o Bem-Amado era

passada numa cidadezinha imaginária do interior, com três solteironas, lembra? Um

coronel. Então era uma coisa rural, que talvez essa coisa caseira do Carlos Gil, de

desenhar e fabricar na costura foi realmente o método ideal. Quando eu entrei nos

Ossos do Barão, eu falava da elite, eu falava da chegada dos Matarazzo, eu falava

da Avenida Paulista e dos casarões da Avenida Paulista, então não só do urbano

como da elite, do poder econômico, entendeu? Que os Matarazzos, eles em si,

quando chegaram eram os carcamanos, digamos. Eram italianos populares, como

fica bem limpo na história do personagem de Lima Duarte. Mas o personagem do

Paulo Gracindo representava a aristocracia. Então eu lidava com coisa que

transcendiam a costura, as meninas tinham que lançar moda e ...

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(FJ) Mas você acha, por exemplo, que no Bem-Amado você ainda tem uma estética

de excesso, de fantasia? Você consegue enxergar isso?

(MC) Eu tenho pouca intimidade com o Bem-Amado, eu vi pequenos takes, o Paulo

José não deixava [risos]. Mas o que eu vejo agora são pequenos flashzinhos,

entendeu? Eu devo ter visto muito menos do que você. Então você me pergunta se

era caricato? É isso que você quer dizer?

(FJ) Não, não caricato, porque eu acho que caricato era. Porque fazia parte da

narrativa a caricatura. O que é o personagem do Paulo Gracindo que não seja uma

caricatura de um coronel? Não é isso o que eu estou querendo dizer. Estou

querendo saber se, na sua opinião, como figurinista de televisão, você identifica nos

figurinos de O Bem-Amado um certo exagero nos detalhes e...

(MC) Eu nunca parei pra pensar nisso naquela ocasião, porque quando eu entrei, eu

tinha uma tarefa que era botar uma novela no ar, eu pesquisava sem Departamento

de Pesquisa [referência ao Cedoc], eu pesquisava nos álbuns de família, eu me

lembro que tinha um primo que me ajudava muito, ele falava “tem a tia fulaninha,

deve ser igual a essa senhora”. E eu não tinha tempo de pensar no Bem-Amado.

Agora, hoje em dia, isso tudo pra mim é passado, flashback. Então eu acho que era

assim, era ainda uma maneira Magadan de fazer, de fazer o pobre. Que depois

evoluiu tanto, né?! Eu estou pensando agora no Cao Albuquerque que revolucionou

um pouco isso. A Grande Família é fashion.

(FJ) Desculpe, mas é que eu queria marcar essa coisa com você das diferenças.

(MC) Porque era rudimentar, é isso? Sem querer falar mal de ninguém.

(FJ) Não, não é rudimentar.

(MC) Caseiro? Pronto, caseiro. Nos Ossos há a elegância. Porque eu acho que deve

ter até o kitsch quando se vê hoje em dia. Porque a parte toda de moda deve ter

passado de moda, mas ela não era caseira, ela não era caseira de jeito nenhum nos

Ossos, e eu acho que Bem-Amado era caseiro, como era caseira toda aquela parte

de Selva de Pedra, você não acha?

(FJ) Exatamente.

(MC) A rica tinha um robe com boá, eu que tinha vindo de família rica nunca tinha

visto uma coisa daquela na minha vida. Nunca vi, fui ver um boá na TV Globo. Sabe

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o que é um boá É uma coisa de peninha que fica gordo assim gestos , que você

põe no pescoço, ou põe aqui gestos . Todas as ricas da TV Globo eram assim, elas

acordavam e colocavam o penhoar com aquilo na manga. Eu pensava “mas esus

Cristo! Tia fulana não tem isso, tia ciclana não tem, eu nunca tinha visto isso na

vida”. Depois, se você for pesquisar bem, isso é puro Holly ood. Porque em

Holly ood você vê boá nos anos 30, aquelas mulheres de cabelo louro.

(FJ) Aproveitando essa questão de estética, tem um figurinista teatral que naquele

livro da Rosane Muniz, Vestindo os nus, diz que existe um estilo no figurino teatral,

também no de cinema, mas que na tevê não, não há um estilo definido.

(MC) Quem é ele, hein?

(FJ) É o Gianni Ratto.

(MC) Ah, mas o Gianni Ratto está falando dos anos 60, que é o que ele viveu. Ele

era um gênio, mas ele pegou uma televisão incipiente, então ele morreu. Acho que

ele hoje em dia morreria de vergonha dessa frase, o Ratto.

(FJ) Mas esse depoimento, ou melhor, esse livro, é de 2006, se não me engano, e

de coletas de entrevistas.

(MC) Então ele já tava vendo televisão Com preconceito! Eu acho que ele está

igualzinho ao Paulo osé, que não podia ver [risos].

(FJ) Você acha que tem estilo?

(MC) É claro! Eu não estou nem defendendo se é bom ou se é ruim. Tem um estilo,

às vezes, lamentável. Mas tem. Não tem? As granfinas não usam mais boá aqui,

mas elas tomam café da manhã com salto dez. Não é? Colar, blusa de seda, eu não

conheço isso em lugar nenhum! Tem um estilo que muito tempo na Globo se

chamou de “Holly ood sem filtro”.

(FJ) O que ele estava querendo dizer é que a televisão importa, incorpora estilos

que vêm do teatro e cinema e...

(MC) Quer dizer que ela não tem linguagem própria, ela usa, une o teatro e o

cinema? Não, eu acho que o Gianni não tem razão, eu acho que o cinema é uma

linguagem, o teatro é outra, e a TV tem uma linguagem. Até porque são veículos tão

diferentes, pensa bem, é uma câmera aqui [gesto]. De cara, quando eu entrei,

novinha, eu tinha 30 anos, eu pensei “isso é um 3X4, gente!”, ninguém nunca vai ver

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o sapato que essa mulher está usando, vamos caprichar aqui [gesto]! Entendeu? As

gravatas têm que ser maravilhosas, eu via aquele Jornal Nacional, eu dizia “não é

possível”. Porque aí eu comecei a ver televisão de verdade! [risos] Não é possível

alguém fazer aquela gola que sai da pessoa, aqui ó [gestos], lembra? O Jornal

Nacional com aquelas gravatas! Gente, aquilo não pode ser boa televisão. Aí

chegou ao cúmulo de uns dos apresentadores usarem bermuda e chinelinho de

dedo.

(FJ) Mas isso é mais uma lenda, né?

(MC) Mas era verdade absoluta. Mas isso é pra você prestar atenção que o que

conta aqui já é uma linguagem diferente de cinema e teatro, não é não? Ai de você

que não capricha num plano geral de cinema, que vai ampliar o seu sapato, que vai

ampliar a sua bainha, vai ampliar a sua saia. Então é uma coisa de trabalho em

close violento. Para maquiador e para figurinista é muito importante isso.

(FJ) E aí, você acha que esse estilo da TV está justamente nisso? Contradizendo a

visão de Gianni Ratto, que o figurino de TV tem linguagem sim, e que essa está

ligada à proximidade. É isso?

(MC) É um pouco isso e um pouco uma falta de busca do naturalismo, que o cinema

e o teatro buscam muito, até Hollywood eu acho, Hollywood de Nova York, Wood

Allen, eles buscam o dia a dia. A pessoa é mais descabelada, não é? Não tem

maquiagens. Eu acho que a televisão sai correndo disso. A televisão ela vende um

luxo que não existe. E um luxo que você pode chamar de cafona, brega, do que

você quiser. Mas ela vende isso. E eu fico na dúvida se o Joãozinho Trinta tem

razão, aquilo de “que quem gosta de pobre é intelectual, o povo gosta de luxo”, mas

isso forma uma linguagem, constrói uma linguagem. São brincos enormes, sedas ao

amanhecer, aqueles cafés da manhã espetaculares.

(FJ) Marília, outra coisa que eu queria perguntar para você acaba se relacionando

com isso. Você fala no seu livro que na TV “o menos é menos mesmo”. Que a TV

sempre pede uma “estética”, e aí entra nessa questão de linguagem e estilo do

figurino de televisão de que falamos, você diz no livro que o veículo sempre “pede

um charme a mais”.

(MC) É isso que a gente tava discutindo. Agora cada um faz de um jeito. A Glória

Perez faz de um jeito, o Jayme Monjardim faz de outro, não é isso? Cada pedido é

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um pedido. Cada encomenda, que a gente chama o pedido do diretor, é um pedido.

Mas todos visam um pouco isso.

(FJ) Mas você acha que esse charme a mais, como você mesma diz, é o que

algumas pessoas criticam no figurino de telenovelas, por acreditarem ser muito

estilizado?

(MC) É mais complexo do que isso. Eu acho que serve a um ideal. De que o rico

mora no Alto da Boa Vista, tem um gramado, uma piscina. Veste seda, não é isso? E

come muito. O rico não é nada disso. Rico não come, não é isso? Então eu acho

que tem uma idealização muito grande, que não deixa de ser uma venda de produto.

Quando eu crescer vou ser assim. Não é isso?

(FJ) No teu livro você diz que a realidade, muita realidade no figurino, cai na

caricatura dentro da linguagem da televisão. Na caracterização de personagens,

como é que você resolvia esse problema na década de 70 com as “novelas

realistas”

(MC) Mais ou menos, né? Porque Dancin’days não era bem um retrato da realidade.

A figura da disco era uma figura bem livre, digamos. Mas eu acho que as grandes

aulas que eu tomei disso foram com Avancine [Walter Avancine], eu acho que eu

cito isso no meu livro. Porque ele me mandou fazer uma rica e eu fiz uma rica

minimalista, como eram as amigas da minha mãe, por exemplo. Que era um tubinho

preto, básico, um fiozinho de pérola e acabou. Ele falou: “o que é isso ” Eu disse:

“uma rica!” Ele respondeu: “mas não é mesmo!” Eu disse: “mas desde quando você

entende de rica ” Aí ele disse: “de rica não, mas eu entendo de televisão, existe

uma coisa chamada realidade e outra realismo. Você está fazendo realidade.

Realismo é uma forma de se expressar, que você para chegar na rica, em vez de um

fio de pérola (estou caricaturando) você tem que botar dois”. Que é mais ou menos o

que a Globo agora, eu acho, abusa.

(FJ) Então você acha que isso foi incorporado?

(MC) Acho que foi extrapolado! Não é? Eu acho que vai ter que ter um movimento

qualquer de contracultura. De “Vamos! uízo todo mundo de novo!” Não vai

(FJ) É. Mas aí a gente retoma a questão de você ter uma crítica recorrente aos

figurinos de TV, seja de telenovela, seja de telejornal, de serem estilizados em

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excesso. Então, quando você fala de um movimento contrário, é um movimento de

menos estilização? Seria isso? De você ter uma rica menos estilizada?

(MC) É, é. De puxar um pouco o freio. Eu não sei, talvez eu esteja dizendo alguma

bobagem, porque de novo eu pensei no Cao Albuquerque. Vai depender do produto

que você está fazendo. Porque em A Grande amília convencionou-se que pode

tudo. E ficou muito bom. Agora no novelão das oito, supostamente, é pra você

acreditar naquilo. É isso, me organizei. Então acho que quando você está lidando

com uma novela das oito não é um programa do Guel Arraes. Porque Guel pega o

Brasil e decupa, faz outra linguagem. Luiz Fernando faz outra linguagem. A novela

das oito é uma linguagem absolutamente convencional.

(FJ) Marília, vamos entrar um pouco na questão da relação entre figurinos de

telenovelas e moda. Tem aquele Polo de Moda em São Paulo que...

(MC) Aquilo era uma maravilha, você conhece Eu visto todos os meus, claro que

vocês nunca viram a “Novela dos Macacos” referência a Caras & Bocas], mas todos

os meus nordestinos que trabalham no meu...

(FJ) São de lá.

(MC) São de lá. Eu visto lá. Aquela mulher maravilhosa, gostosérrima, eu comprei

tudo lá.

(FJ) Mas eles continuam com aquele negócio com um adesivo amarelo na vitrine

que diz que aquele produto é “produto de novela”?

(MC) Não tenho ideia, porque eu não fui lá em pessoa, não tive tempo, eu mandei

minha equipe lá. Eu fiquei impressionada, porque eles traduziram sem o menor

medo a moda para o povo. Aí depois como a gente foi trabalhar na Lapa e no

Mercadão, sabe que tem aquele mergulhão que fica assim gesto , parece Tóquio de

tanta gente, ali que a novela se passa, todo mundo usa roupa de lá. Lantejoula, de

você ficar ofuscada às oito horas da manhã com sacola. Entendeu As donas de

casa com sacola. Então eu acho que é tudo muito louco, né.? Você querendo vender

e o que será que faz uma coisa cair no gosto ou não cair Não sei. Carisma!

(FJ) Carisma de quem? Carisma do ator?

(MC) De quem usa. Da novela. Da mão de quem faz.

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(FJ) Então, eu queria te perguntar o seguinte, você entra na televisão, vai fazer s

ssos do arão justamente num momento de consolidação de um monte de coisas

na televisão brasileira e também de mudança do figurino. Quando eu leio o livro da

Globo sobre figurinos claramente percebo uma certa legitimidade credenciada aos

figurinos de novelas que lançam moda. Aí, no final da década tem aquele sucesso

todo de Dancin’days, até eu acho que com uns três anos de idade tenho foto vestida

de dancin’days e...

(MC) Dancin’days foi um sucesso, sobretudo que pegou da classe A a C. Porque

normalmente esses fenômenos são mais da B, C, e D do que da A. Mas o Country

Clube que é uma coisa privada aqui no Rio de aneiro, dava festas com o tema

Dancin’days. Entendeu Então aquelas madames que saem na lycra, lindas, tudo

vestida de Julia Matos [protagonista da novela, interpretada pela atriz Sônia Braga .

Isso é um fenômeno que eu nunca tinha visto. Eu achava que novela era para o

povo, e não para elites.

(FJ) E acabou virando um exemplo clássico de lançar moda através da novela.

Marília, já existia esse tipo de preocupação antes, um desejo de lançar moda pela

novela, por exemplo, em s ssos do arão?

(MC) Isso nunca me passou pela cabeça! ssos do arão eu queria cumprir uma

tarefa que me deram e eu queria cumprir da melhor maneira possível! Porque eu

fui uma aluna péssima no colégio, meio medíocre, sempre ia passando, sabe?

Mas no jogo ou eu ganhava ou eu ganhava. Senão eu ficava emburrada. Quando

me deram aquela tarefa eu falei “não, vamos lá!” Entendeu Daniel me fazia

ameaças horrorosas, ele tinha jogado todas as fichas em mim. Me soltou na arena, e

ele dizia “olha tem que dar certo, ou vai dar certo ou vai dar certo!”

(FJ) Mas, Marília, não é aí que pode estar o previsível?

(MC) Como assim?

(FJ) Explico melhor: se o Daniel Filho te contratou e ele já era muito grande na

estrutura administrativa da Rede Globo, você ainda sem experiência, significava

que...

(MC) Os caminhões da Globo, esses que a gente ficava, chamavam UP, eu lia “up”.

O Daniel ilho me dizia assim “não faça isso! Que qualquer dia te dão uma surra

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aqui dentro”. Eu só estou falando isso para ilustrar como eu era um ET no meio,

entendeu?

(FJ) Então, ele , pessoa muito importante dentro da Globo, no setor de

teledramaturgia. Não me lembro se ele já era diretor geral e...

(MC) Ossos do Barão, Ossos do Barão não, mas já tinha uma boa ligação com o

Boni, já era uma pessoa muito especial. Não era um Régis Cardoso, quer dizer ele

tomou o poder. Me deu o poder, que eu deixei escapar por aqui, eu não gosto do

poder. Não gosto! Fiquem bem avisados!

(FJ) Não é isso o previsível: Daniel Filho te chama pra fazer um figurino e você tem

que acertar! Porque a emissora estava em busca dessa mudança de figurino, de

mudança de narrativa, de procura de outra linguagem.

(MC) Eu tinha que acertar! Então, quando você pergunta se eu queria que o povo

copiasse, não tinha isso aí não. Era exatamente, eu não sei se você nadou quando

você era pequena, quando você sobe no trampolim mais alto, você diz “agora eu

tenho que me atirar”, você não pensa na sua mãe, seu pai, seu pé, nada. Se atira!

Foi uma sensação dessas. Eu me lembro que eu ficava, três horas da manhã eu

tava trabalhando, achava normal, não conseguia parar!

(FJ) Marília, você poderia explicar melhor essa coisa do Daniel Filho ter te dado

poder e você não ter aceitado?

(MC) Que quando Daniel ganhou o poder, ele me deu o poder. Então, todos os

figurinos da Globo eu faria. Eu tinha o supremo poder, eu começava tudo. Eu não

gosto do poder, porque eu sou artesanal. Então eu pensava “bom, eu começo essa

novela, você continua”. icavam todas horrorosas, eu acho. Quer dizer, não é que

elas ficavam necessariamente horrorosas, é que não tinham mais o meu jeito. Eu

não consigo ganhar dinheiro como o Daniel consegue. Então, o quê que eu tava

fazendo ali? Se pode me dizer? Me aborreci loucamente com pessoas que

passaram a me odiar.

(FJ) Por quanto tempo esse processo ocorreu, Marília?

(MC) Por dois anos, por dois anos eu fui top de linha! Setenta e nove, quando ele

começou Malu Mulher. Quando ele começou com as minisséries. Caso de Polícia.

(FJ) E aí você não deu conta, achou que não valeria a pena?

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(MC) Eu acho que faltava, quando eu digo que deixei escorrer, me faltou, acho que

foi tesão. Que sobrava nele, né? O Daniel, poder pra ele era uma coisa afrodisíaca.

(FJ) Mas ele larga também. Quando saiu da Globo, disse “chega”.

(MC) Ele falou chega porque o corpo dele falou chega. Ele teve crise de pânico, ele

me ligava todo engravatado e dizia “dá pra você subir aqui?” Eu pensava que era

uma coisa profissional, ele dizia assim “dá a mão pra mim porque eu tomei um troço

– um remedinho lá – e tenho que esperar bater”. Eu falei “Daniel, você vai ficar

doente!” Uma vez por semana ia uma pessoa lá pra ver se ele tava enfartando ou

não. Acho que o corpo dele falou “vamos parar ”

(ZG) Marília, é você quem escolhe as novelas que vai trabalhar?

(MC) Na Globo Não. Eu sou uma funcionária, a partir do momento que eu larguei o

poder e Daniel foi embora eu virei uma pessoa completamente anônima, mais ou

menos, né? Eu estou exagerando também. Mas uma pessoa comum. Nesse

momento mesmo eu estava escalada pra fazer Manoel Carlos, não era pra fazer “O

Macaco” referência à novela Caras Bocas . Alguém me ligou, acho que o Manoel

Matos, não sei bem, um desses chefes aí, e disse “será que você se incomoda de

fazer a novela do orge orge ernando Você se importa de fazer essa novela

porque nós estamos empenhados em levantar esse horário”.

(FJ) Das sete?

(MC) Das sete. Ainda brinquei com ele, disse “se acha que uns vestidinhos

bonitinhos vão aumentar o Ibope, onde ” E eu migrei para a novela das sete, que

numa certa hierarquia dentro da Globo era inferior à das oito.

(FJ) É mesmo? Ainda tem muito isso, Marília?

(MC) Total. Mas é porque você vende seu peixe melhor às oito. Uma diferença de

Ibope, de gente que vê muito maior. Mas aí eu me arrependo cinco minutos, porque

a novela virou um sucesso, está ótima! Estou adorando trabalhar com o orge,

enfim, por que a gente está falando isso?

(FJ) De escolher um projeto de figurino.

(MC) Não escolho nada! Quer dizer, eu acredito. Eu nunca disse não a nada! Eu

esqueço de tirar férias, eu não tiro férias há duzentos anos. Eu não lembro. Eu não

lembro. Sou muito disciplinada, uma ótima funcionária, mas acho que se me botarem

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numa situação que não quero eu vou dizer não. E vou empacar, se eu bem me

conheço.

(FJ) Marília, eu queria entrar com você na novela ssos do arão, são coisas

pontuais, não sei se você vai ter memória disso.

(MC) Vamos, eu posso tentar! Meus neurônios ficaram perdidos em Woodstock,

hein?! Eu sou uma pessoa de Woodstock!

(FJ) A primeira pergunta diz respeito à sua escolha como figurinista, o Daniel ilho

faz aquele comentário sobre a “fraqueza de figurino” e você entra em ssos do

arão...

(MC) Via Dina Sfat, que impôs.

(FJ) Exatamente, sugere.

(MC) É, sugere assim: ela pegou tudo que era figurino que tinha sido feito pra ela e

jogou na mesa do alto executivo e disse: “Sua mulher usaria alguma dessas peças ”

Então não é sugere, ela realmente, a Dina era uma mulher bomba! Então foi assim

que ela me introduziu.

(FJ) E ela era cliente da sua butique, não é?

(MC) Era. E minha amiga.

(FJ) á era sua amiga?

(MC) á! Por causa do Paulo osé e do Mário Carneiro.

(FJ) Verdade. O que é essa fraqueza de figurino?

(MC) Ela passou um reveillon na minha casa, toda de lã, falei “Dina, você está

doente Ela disse, “não, é porque eu só tenho roupa de lã, porque eu sou

paupérrima!” Então ela era uma pessoa muito inteligente, muito engraçada, com

muito humor, e linda, linda! E o corpo? Poder! Nossa, você vê ela correndo, nua.

Uma vez eu disse “você não tem vergonha não, Dina ” E ela respondeu assim: “eu

não, eu não tenho celulite!”

(FJ) Ela era linda mesmo. E retomando, o que era essa fraqueza no figurino de que

o Daniel Filho fala?

(MC) Eu acho que era à Magadan que ele estava se referindo, eram os boás. Acho

que era. Eu acho que ele já tava intuindo que podia ser uma coisa mais interessante,

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né? Podia por exemplo lançar moda. Podia entrar no mundo da moda. Não sei, não

sei. Ele era um intuitivo, ele deve ter intuído que alguma coisa podia acontecer de

melhor ali. Por que ele convidou a Lila Bôscoli e a Tisa para botar uma mesa? Intuiu.

Ele é o grande artista, eu acho. Mas ele é mais um producer excepcional do que um

Bergman, eu acho. Mas ele é um cara que, sei lá, sabe juntar o Toni [Tony Ramos]

com a Glória [Glória Pires] e dar seis milhões.

(FJ) Marília, e o figurino da Isabel em Ossos do Barão? Você se lembra? Isabel,

personagem da Dina Sfat.

(MC) Se sabe que você ficou falando e eu fiquei pensando em como eu faria

diferente hoje em dia!

(FJ) É mesmo? Mas eu acho que isso é normal e acontece com todo mundo, você

sempre vai fazer diferente quando você olha pra trás assim.

(MC) Na Jade [personagem interpretada por Giovanna Antonelli em O Clone, novela

de Glória Perez] eu não mudaria nada! Mas está mais recente, foi em 2000. Mas a

Isabel, acho que eu fiz uns errinhos, eu botei muito jeans porque era moda, agora eu

não sei se era muito bonito jeans pra Dina, eu botei muito cachinho nela.

(FJ) Mas essa caracterização da personagem não teria a ver com a sua condição de

apesar de fazer parte da família nobiliárquica ser uma rebelde e...

(MC) Será que é por isso que eu botei cabelo crespo e jeans Ah é. Então, ó, gol pra

mim! Então tava certa! É porque quando você, hoje, quando você começou a falar

da personagem Isabel, não lembrei do lado protesto, só lembrei que ela tinha que

ser uma chiquerrérrima! Ela era a chique sem dinheiro, não é isso?

(FJ) Mas que tem tradição.

(MC) Que vinha contra, antagonista dos Matarazzo, que chegavam com dinheiro e

sem finesse, não é isso?

(FJ) E como você encontrou o equilíbrio no figurino da personagem entre tradição e

rebeldia? Com o uso do jeans?

(MC) Provavelmente. E os cachinhos. De qualquer maneira, foi um choque, porque

eu acho que ela era aquela heroína de Selva de Pedra, de cabelo liso,

tradicionalmente liso, os olhos muito pintados. É, eu não sei se na época era um

sucesso, eu não me lembro.

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(FJ) E a diferenciação na composição das personagens jovens da família Tacques?

(MC) Eu acho que eu peguei pelo espírito. Na Renata referência à personagem de

Renata Sorrah] eu me lembro que eu botava uns vestidinhos assim, que voavam,

né? Acho que ela era romântica, não era?

(FJ) A que sofre de amor.

(MC) Era a que sofre de amor, então me lembro do vestidinho azul que voava, que

até hoje eu gosto da ideia. A Sandra referência à personagem de Sandra Bréa], eu

me lembro de um terninho da minha loja.

(FJ) Você ainda tinha a loja?

(MC) á tinha acabado, mas ainda tinha um resto de estoque, que foi quando a Dina

falou “poxa, a roupa dela é melhor que a minha!” Talvez um terninho da minha loja

favorecesse mais a beleza do que aquele jeans de guerrilheira que eu botei nela. Eu

tentei realmente fazer personagens sem a menor maldade, no sentido de vamos

embelezar, vamos enfear, eu tava levando a sério aquilo.

(FJ) Mas existia uma provocação, Marília, nesse momento, nesse núcleo jovem De

você buscar o que estava se usando na época, essa moda da época Existia Para

você, não que isso tinha um significado como tem hoje em dia, fazendo um

retrospecto da sua carreira como figurinista, existia essa preocupação sua?

(MC) Existia, porque era uma tal segunda pele minha, eu vinha de uma loja de

vanguarda, em Ipanema, a primeira de Ipanema, não era pouca coisa! Entendeu

Então pra mim tinha um segundo sentido, eu viajava Londres-Rio, Rio-Londres.

Tudo isso eu vivia! Então, acho que mesmo se eu não quisesse teria usado a

linguagem da moda. Era uma segunda natureza minha, eu não botava fulano é

jovem e vai usar, eu botava por intuição, eu acho.

(FJ) Intuição de em universo da moda.

(MC) É! Isso que eu acho que a Globo usou muito bem, que foi pegar isso e botar na

vitrine. E virar veículo de moda, que ela não era antes. Olha só a confusão que eu

tava metida. Eu tava no topo da onda, eu tava no auge da onda, né?

(FJ) Mas isso não vem com Dancin’Days?

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(MC) Não, vem com ssos do arão, não tem nada a ver com Dancin’days.

Dancin’days só solidifica isso. Mas ssos do arão mudou a imagem nesse sentido.

Entendeu? Tinha jeans...

(FJ) Mas você não acha que a emissora já estava procurando por isso mesmo?

(MC) Não sei o que a emissora, através do Daniel Filho, tava procurando, eu sei que

eles acharam. Uma coisa qualquer que eles, não sei nem se estavam procurando,

mas estavam maduros para ter. Acho que começou, de novo Paulo José, que ele é

meu guru risos , ele me ligou e disse assim “Gente! Tem um homem normal na

televisão, você viu ” Ele sentou na frente da televisão e viu um homem normal,

porque os homens eram teóricos. Passaram a ser assim, do jeito que você está,

sabe? Normal! Não tinha homem normal. A era Magadan, que eu adorei esse termo,

vou usar muito, a era Magadan era teórica!

(FJ) Marília, voltando ao figurino de Ossos, ainda sobre a Isabel, aquele vestido de

noiva...

(MC) Aquilo foi ideia do Paulo José, que até hoje eu não sei se eu gosto! Era uma

rede com pérolas que foi sugestão do Paulo. Tem um quadro muito famoso, acho

que do século quattrocento italiano que tem uma boneca. Aquilo era um delírio.

Aliás, nem tinha noiva nos anos 70, era careta casar, era o fim da picada casar! Se

você tivesse que casar, você disfarçava, entendeu [risos]?

(FJ) Ainda sobre Ossos do Barão, você tem a família - eu esqueci completamente o

sobrenome dela! - é a de matriz italiana. Você lembra?

(MC) Os Matarazzo, né?

(FJ) É, os imigrantes. Como você alcançava a diferenciação visual entre as duas

famílias - Tacques (os nobres) e a dos imigrantes?

(MC) Então essa era minha preocupação maior. E para mim a grande questão da

novela era essa. Mas isso é uma preocupação que eu tenho ao longo do tempo, pra

mim não tem novidade nenhuma, eu acho que isso eu tenho. O que é zona sul e

Barra da Tijuca, é apenas isso, né? Inclusive, é um dos temas do meu curso, eu dou

um curso de figurino, quando eu tenho tempo, e um exercício que eu peço pra fazer

é esse.

(FJ) De diferenciação social?

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(MC) É. Quer dizer, como é que você diferencia pelo exterior uma pessoa de

dinheiro velho e dinheiro novo? Entendeu?

(FJ) E como você chega nisso?

(MC) Ah, é tão fácil, pra mim é a coisa mais fácil que tem!

(FJ) É intuição?

(MC) Não. É sabedoria, não sabedoria não, conhecimento! De causa.

(FJ) Conhecimento de classe?

(MC) É conhecimento de causa. Você leu o livro do Chico Buarque chamado Leite

derramado?

(FJ) Que foi lançado agora, ainda não.

(MC) Tem que ler! É só sobre isso, e é uma coisa, pra mim, eu comecei a ler e

acabei de madrugada, não pude parar! Nem liguei pra ele ainda pra dizer que eu

tinha lido num fôlego só. Até não liguei porque eu não tenho a menor intimidade com

ele, mas eu queria mandar uma coisa, um pombo-correio, um email, qualquer coisa,

para que ele soubesse disso. Não consegui parar! É exatamente essa questão, é o

dinheiro velho e o dinheiro novo. Isso existe na minha, eu sou de uma família...

(FJ) Tradicional?

(MC) É. Que perdeu, que foi acabando.

(FJ) Mas seu pai era banqueiro, né?

(MC) Era, mas era há muito tempo. E então, eu sei exatamente como é uma pessoa

educada, com o rei na barriga, que é o caso dessas pessoas assim, do Leite

derramado, da minha família e a do Antenor nos ssos do arão. Então eu sei o

que é conta bancária zero, mas para eles a realidade não conta. Que ele é um rei,

entendeu Então isso pra mim é tão claro, tão transparente. E a grosseria dos

emergentes, era só olhar em volta um pouco porque eu acho que a TV Globo era

muito isso na minha vida. Os patrões, os chefes e tal. Quando eu dizia: “up” não era

à toa. E diziam para eu falar U. P. Eu tava sendo Antenor, não tava Eu tava sendo

Antenor. No sentido de, sei lá, de levar uma realidade besta.

(FJ) Essa novela era um tanto Leopardo, não é mesmo?

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(MC) Mas ela só trata disso, só trata disso. Que é um tema meio eterno, Leopardo,

ssos do arão e Leite derramado. Muito interessante, e eu fiquei absolutamente

fascinada, o texto era maravilhoso, minha primeira novela, a primeira imagem que eu

vi eu chorei. Porque eu falei “meu Deus!”, sabe Tudo que eu inventei está ali

andando, mexendo. E o contraponto pra mim era aquela coisa grosseira que era a

TV Globo. Que continua sendo Mas cada vez a coisa dilui um pouco.

(ZG) Tem umas fotos dessa novela que fizemos lá nas revistas da Biblioteca

Nacional, se você quiser dar uma olhada.

(MC) Ai, que delícia!

(MC) Marília Carneiro olha as fotos Gente, eu não me lembrava dele de escuro, eu

só me lembrava dele de claro, o Antenor interpretado por Paulo Gracindo . Olha o

Wilker personagem Miguel, interpretado por osé Wilker , completamente protesto,

de macacão e oclinhos. Mas aí eu acho, olha eu!

(FJ) Você, o Carlos Gil, e quem é mais aí?

(MC) O Elano, coitadinho, morreu. Isso é o quê?

(FJ) É a revista Amiga da década de 70.

(MC) Agora essa minha foto vocês podem ver o choque. Essas duas criaturas

aqui não eram do meu universo. O Elano era o Magadan geral.

(FJ) Então foi difícil para você no começo?

(MC) Muito difícil. Muito difícil.

(FJ) Você sentia uma resistência?

(MC) Não, eles pintavam comigo. Me chamavam de sacoleira, diziam que eu não ia

durar muito tempo, “isso vai passar, calma, calma, isso passa”. Mas eu também não

gostava de conviver muito com aquela gente, para falar a verdade.

(FJ) Marília, vamos passar para Dancin’days. Como foi a construção das

personagens em Dancin’days e sua relação com a equipe de figurino?

(MC) A minha assistente era a Bete Fillipeck, que hoje em dia é superfamosa. Eu me

lembro disso, eu me lembro que a gente trabalhava na usina da Tijuca, que é um

estúdio que acabou, uma verdadeira ilha, que era longe daqui da civilização. E isso

era bom demais, porque parecia que a gente estava isolado e tava mesmo. Só tinha

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a nossa equipe, mais ninguém. O Daniel era o diretor-geral, o Denis Carvalho dirigia

a novela com ele. Que mais que eu lembro?

(FJ) Só você e a Bete, não tinha mais ninguém?

(MC) Devia ter, mas eu não me lembro quem.

(FJ) Tinha mais uma assistente, então?

(MC) Acho que tinha Paula Lóes, acho. Eu me lembro dela porque ela virou uma

estrela e era a minha assistente. Me lembro do Mário Monteiro que fazia os cenários

que eram lindos. Me lembro das renéticas que era o som. Me lembro do fotógrafo

Antonio Guerreiro que era casado com a Sonia na época. Que mais que eu posso

lembrar Me lembro de um episódio que está no meu livro, eu fiquei supernervosa

quando eu coloquei aquela bendita roupa nela e, sandalinha com a meia, que eu fui

pra casa do Daniel, acordei ele que já estava deitado, falei “Daniel olha aqui, vamos

gravar amanhã, aprova, não ”

(FJ) Mas então no setor de figurino eram quatro profissionais?

(MC) Tinha a Gloria alil. Ah é. A minha interlocutora era a Bete Fillipeck, se tinha

mais gente executando eu não lembro.

(FJ) Outra questão que gostaria de fazer sobre a novela é se havia algum acordo

comercial com as marcas como, por exemplo, a Fiorucci?

(MC) Não, zero! Nós tínhamos até um outro, eu até pensei que você fosse falar

disso. Era uma outra marca de jeans que tinha um outdoor dentro da discoteca, não

era Fiorucci, era Staroup.

(FJ) Vocês tinham acordo comercial?

(MC) Tínhamos, mas eu nunca tomei conhecimento desse acordo.

(FJ) Acontecia em outro setor?

(MC) Ninguém me pressionou a vestir Staroup, eu acho que não gostei, não me

interessei.

(FJ) E a Fiorucci, onde entra nisso?

(MC) Na minha amizade particular com a Gloria Kalil, que é muito minha amiga. (FJ)

E ela era dona da marca.

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(MC) É, ela ia fazer uma franchising, que a marca era italiana, e tinha uma fama

maravilhosa na Europa e não tinha entrado no Brasil ainda. Ela me ligou e disse

assim “Tô trazendo pra São Paulo, venha pra cá”.

(FJ) E você colocava na mão dela?

(MC) Eu colocava uma peça piloto e depois ela desenvolvia. Entendeu? E aquela

coisa assim, que na verdade tinha um [desenha o modelo da roupa] era Adidas. Era

dela.

(FJ) Aquela calça de cetim da Júlia Matos [personagem de Sônia Braga]?

(MC) Exatamente. Que não passava de uma calça Adidas de corrida que eu botei

com a sandalinha. Eu tinha um casaquinho que eu tirei, eu fiz um sutiãzinho pra ela

dançar mais sexy.

(FJ) Houve alguma influência das criações do estilista norte-americano Halston no

figurino de Dancin’days?

(MC) Não, não. Não, porque tudo aquilo é Fiorucci.

(FJ) Marília, ao assistir à novela eu percebo que há um visual muito mais

mundializado do que, por exemplo, se comparado aos figurinos do início da década.

(MC) Quer dizer, na verdade a gente deixou de ser, começou a globalização, é isso?

(FJ) No sentido de aquela preocupação com o “nacional” do início da década já ter

sido ultrapassado, o figurino me pareceu ser um caleidoscópio de referências a essa

cultura mundializada, Nova York, discoteca, Studio 54.

(MC) Sem dúvida nenhuma. Que vai década de 80 adentro. É um trailer da década

de 80. Eu acho que sinceramente é. Acho que foi aquela loucura, que ao mesmo

tempo que não era pra ninguém entender, porque ninguém pode entender uma meia

de lurex com sapato alto e uma calça Adidas. Mas teve uma aceitação! E isso

sempre me espantou, que eu tenho a impressão que isso talvez seja o fato de estar

todo mundo já preparado para uma nova era. Não é isso? Porque se não a coisa

não teria repercussão. Então eu acho que o Dancin’days foi um trailer desse negócio

que definiu a década de 80. Cor, ombreira, lantejoula, eu sei porque eu fiz um peça

agora chamada O Baile e eu pesquisei muito, e quando eu fui pesquisar os anos 80,

eu pesquisei Dancin’days.

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(FJ) Marília, para encerrarmos, tem uma última pergunta sobre o figurino de

Dancin’days. Ao assistir à novela percebo que essa utilização da linguagem da

moda vai além do figurino nessa novela, serve como elemento dramático, por

exemplo, para a construção da protagonista, não é somente ela ter ousado na calça

Adidas e...

(MC) Ali eu não fiz concessão nenhuma. Ali eu peitei bacana. Eu falei “ela vai ser

uma maluca e ponto”. Eu me lembro que o próprio Gilberto Braga falou “mas

como ” É isso, entendeu Ele achou que ela vinha de colado, entendeu Escovão

no cabelo. E graças a Deus eu não me preocupava nada com o Ibope.

(FJ) Mas essa questão da moda como elemento do drama da novela...

(MC) Mas não será esse o trabalho da figurinista sempre?!

(FJ) Mas era um elemento já posto na sinopse da novela ou foi um processo?

(MC) Não, isso é exatamente o meu trabalho. É o trabalho que tem que ser. Quer

dizer, a moda pra mim, ela não pode existir como moda, ela tem que existir como

ferramenta. Para servir à dramaturgia, porque senão ela não serve pra nada. É

igualzinho a ter botado Chanel no ssos do arão, eu não botei pra me exibir, eu

botei porque eu conhecia aquele tipo de velhinha, elas usavam Chanel. Certo

Agora você me diz “Mas Chanel Você botou Chanel na Globo ” Eu não sabia que

eu tinha botado Chanel na Globo!

(FJ) Naquele momento era algo absolutamente impensável.

(MC) Mas eu não prestei a menor atenção nisso, eu pensei que esse tipo de

velhinha usa Chanel. Isso eu tinha certeza, entendeu Então eu acho que tem que

seguir a dramaturgia sempre! Se não, não é figurino. Você não veste a pessoa, você

faz um figurino, você tenta utilizar o exterior dela pra expressar tanto quanto a fala, o

timbre de voz, a expressão corporal.

(FJ) E isso não está posto na sinopse de Dancin’days De que essa personagem vai

se comunicar na narrativa através da moda Através da moda e uma porção de

outras coisas, de tudo que se encontra naquele universo da discoteca e...

(MC) Não. Claro que ela era uma pessoa injustiçada, claro que ela tinha sofrido 11

anos de sofrimento injusto, porque ela tava injustamente presa por um crime que ela

não cometeu, como uma boa heroína. E quando ela sai, ela tem o quê O que é a

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sede dela Vingança! Então ela fica 11 anos fora e ela vem se vingar da irmã dela,

que era a Joana Fomm, que tinha roubado tudo que era dela, inclusive a filha, e uma

sociedade que ela quer que a respeite de qualquer maneira! Agora se ela se

expressou através de um macacão Adidas, isso foi o meu ponto de vista, que o

Daniel endossou, podia ter dito “ficou louca! Tira isso e bota um pretinho básico, bota

brilhantes, ficou rica!” Não, ele falou “é por aí mesmo que a gente vai”. Então ela

ficou, por causa disso, uma menina moderna, certo Até porque eu tinha uma

preocupação enorme com um contraponto que era a irmã dela, clássica, era a

personagem da oana omm. Ela não podia copiar a irmã, ela tinha que fazer o

dela.

(FJ) Marília, agora juro que é a última pergunta: em qual momento você acha que o

trabalho de figurino de televisão se torna um processo industrializado?

(MC) Não entendi a pergunta.

(FJ) Na TV há uma tendência a um processo de racionalização do trabalho, de todos

os setores de trabalho, seja de figurino, seja de direção de arte, enfim, em qual

momento você, como figurinista, sente que isso se torna industrial?

(MC) Qual momento?

(FJ) É, se você sente isso em algum momento do seu processo de produção de

figurinos para telenovelas.

(MC) Eu acho que tem um momento mágico, quando o sucesso acontece, que é

uma coisa que você não tem a menor previsão, se não eles seriam os reis do Ibope

sempre, e não são. Quando isso acontece, esse momento mágico que a gente não

pode definir que é indefinível. É quando eu acho que a indústria dá um bote.

(FJ) Como assim?

(MC) Por exemplo, a casa Olga ficou rica com a minha meinha, agora como é que

eu ia saber que aquela meinha ia emplacar Como é que ela sabia a hora Ela

podia ter feito cem mil e encalhado tudo. Então tem toda uma conjuntura aí de

agilidade que deve ser muito complicada e acontece de eu fazer palestras,

sobretudo no interior e as pessoas perguntarem “qual é a lavagem do jeans que eu

uso esse ano ” Eu sei lá! Eu não tenho uma bola de cristal eu não sei por qual

lavagem eu vou me apaixonar, não é isso Nem sei se vai ter jeans na minha

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novela! Mas você entendeu? A expectativa da indústria é essa. Saber qual é a

lavagem que você vai usar na próxima das oito. Sinceramente eu não parei pra

pensar nisso.

(FJ) É essa a expectativa em relação ao seu trabalho?

(MC) O meu ou de quem quer que seja, sobretudo da Globo, eu aqui representando

a Globo, o que ela vai lançar, não é isso ica todo mundo ligado ali pra saber. Tudo

armado. Agora na meinha eles devem ter levado um susto porque ninguém tinha se

preparado.

(FJ) É isso, Marília, muito obrigada por ter aceitado o meu convite para essa

conversa.