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Universidades e integração regional:
Reflexões sobre a descentralização da Política Externa Brasileira
Raissa Lorena Malcher Sena*1
Resumo
Apesar das diferentes ênfases conferidas à integração da América Latina, com momentos de aproximação e outros de “esfriamento”, o regionalismo latino-americano tem se distanciado cada vez mais de conceitos puramente econômicos e tem se voltado para novas formas de cooperação e integração regional. É nesse contexto que a Educação passa a ser inserida na agenda das políticas externas para a integração, chamando a atenção para o surgimento de novos atores e alterações do arranjo institucional de formulação e implementação de política externa. Admite-se, aqui, a existência de um processo de descentralização horizontal da Política Externa Brasileira (PEB), no qual a educação extrapola os domínios domésticos e estabelece canais de comunicação na esfera internacional. Baseando-se nessa ampliação de escopo, a presente pesquisa visa investigar o papel que a Educação pode desempenhar no processo de integração, especificamente da América Latina, e o lugar conferido pela Política Externa Brasileira à essa problemática. Caberá analisar, então, em que medida as universidades brasileiras atuam internacionalmente na promoção da integração latino-americana, e entender o papel dessas instituições no processo de descentralização da PEB. A metodologia pensada para o desenvolvimento do estudo pode ser definida da seguinte maneira: primeiramente, contará com uma vertente descritiva, na medida em que irá expor históricos e conceitos. Na sequência, apresentará um eixo analítico, a partir do qual se estabelecerá a relação entre as características da PEB voltadas à integração regional via Educação, a diversificação de atores nessa temática, e as transformações no papel e na atuação das universidades. Os instrumentos de pesquisa que poderão viabilizar a consecução dos objetivos pretendidos são, principalmente, pesquisa documental e bibliográfica.
Palavras-chave: Internacionalização da Educação Superior. Política Externa Brasileira. Integração Regional.
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). E-mail: [email protected]
Introdução
Na atual conjuntura do Sistema Internacional, dificilmente a relação entre os
países irá se limitar apenas a questões estratégicas em que o Estado ocupa posição
central. O que se vê, em contrapartida, é um cenário tomado pela pluralidade de atores
internacionais que passam a ganhar importância cada vez maior. A diplomacia de um
país não deixa de ser conduzida, prioritariamente, pelo seu governo central, mas
novos atores conquistam espaço notável nas políticas externas. Surge a noção de
“paradiplomacia”2, que representa as atividades internacionais conduzidas por
entidades subnacionais.
Desde o fim da Guerra Fria, a relação de subordinação dos chamados “agentes
subnacionais” ao governo central tem sido modificada. A transformação foi motivada,
principalmente, pela caracterização do Sistema Internacional como sendo resultado
de dois fenômenos: globalização e regionalização. Enquanto que a globalização
remete ao grande fluxo global de pessoas, ideias e capital que pode levar a um
predomínio da concepção de transnacionalização frente à soberania do Estado-
nação; a regionalização se apresenta como uma busca por cooperação entre
diferentes atores em uma determinada região, com vistas a alcançar benefícios
mútuos.
A regionalização é comumente relacionada a questões econômicas a partir de
processos integracionistas e acordos de livre comércio. Essa concepção, contudo,
tem sofrido considerável ampliação, passando a abranger, também, questões ligadas
à política e à cultura, por exemplo.
Baseando-se nessa ampliação de escopo, a presente pesquisa voltará sua
atenção ao papel que a Educação pode desempenhar no processo de integração,
especificamente da América Latina, e ao lugar conferido pela Política Externa
Brasileira à essa problemática. Além disso, discutirá sobre a atuação internacional das
universidades brasileiras e a estratégia de internacionalização da educação superior.
2 Termo desenvolvido por Ivo Duchacek e Panayotis Soldatos (1990).
Internacionalização da Educação Superior: conceitos e breve histórico
A internacionalização da Educação Superior pode significar mobilidade
acadêmica de estudantes e professores, redes internacionais, associações e projetos,
ou novos programas acadêmicos e iniciativas de investigação. Pode, ainda, ser
sinônimo de transmissão da educação a outros países através, por exemplo, de
sucursais ou franquias de universidades; e da inclusão de uma dimensão
internacional, intercultural e/ou global dentro do currículo e do processo de ensino-
aprendizagem. (KNIGHT, 2012)
Nesse contexto, a mobilidade acadêmica se apresenta como uma estratégia da
internacionalização da educação superior. De acordo com Luce et. al (2016), apesar
do desenvolvimento desse processo não se limitar à mobilidade acadêmica, esta
acaba por configurar-se como o elemento mais visível e amplamente analisado
quando se fala em internacionalização do ensino superior. Os autores arrazoam,
também, sobre a tipificação da mobilidade internacional de estudantes, que pode ser
de grau ou de crédito. A primeira acontece quando os alunos cursam seus estudos de
maneira integral no exterior, e a segunda quando os alunos cursam apenas uma parte
do seu programa acadêmico no exterior, sendo que os créditos lá obtidos são
reconhecidos pela instituição de origem. Além disso, a mobilidade pode ser externa,
quando o país envia estudantes; ou interna, quando o país recebe estudantes.
Dentro dessa discussão, surgem outros dois conceitos: internacionalização
ativa e internacionalização passiva. (LIMA; MARANHÃO, 2009) A ativa está limitada
a poucos países, e se inclina à criação de condições que favorecem a emergência de
uma espécie de internacionalização hegemônica capaz de exercer influência sobre a
organização do sistema mundial de educação superior; enquanto que a passiva está
presente na maioria dos países semiperiféricos e periféricos da economia-mundo, em
que a capacidade de oferecer serviços educacionais no exterior é limitada, uma vez
que esses países sequer respondem quantitativa e qualitativamente à demanda
interna.
Ao contextualizar mundialmente a internacionalização da educação superior,
observa-se que é a partir da década de 90, com a globalização, que a prática se
fortalece. Morosini (2006) chama atenção para alguns fatores que levam a esse
fortalecimento, como a tendência de categorizar a educação como um serviço, ao ser
regulamentada pela Organização Mundial do Comércio, e o predomínio da concepção
de transnacionalização frente à soberania do Estado-nação.
Quando a atenção se volta ao contexto latino-americano de internacionalização
da educação superior, Daniela Perrota (2012) aponta que por muitos anos o padrão
tradicional de cooperação educacional foi Norte-Sul. Nem sempre a região latino-
americana foi considerada como destino para a cooperação acadêmica dos próprios
países que dela fazem parte, o que acabou por reforçar um padrão colonial
eurocêntrico e anglo-cêntrico na produção de conhecimento.
Esse panorama gerou preocupações entre fins da década de 50 e o início da
década de 70, levando à criação de organizações para acolher e formar os
acadêmicos da América Latina em âmbito regional. A mobilidade dos investigadores
latino-americanos por esses circuitos regionais de produção de conhecimento permitiu
o encontro e teve como principal resultado a consolidação de uma ciência latino-
americana. Na década de 80, tem destaque a aproximação entre Brasil e Argentina
em matéria de cooperação bilateral nuclear e cooperação em biotecnologia. Na
década de 90, entretanto, o padrão de cooperação educacional se volta ao eixo Norte-
Sul, e promove processos de mercantilização da educação e privatização do
conhecimento. No início do século XXI, a partir do aprofundamento da unidade
regional pela via dos acordos de integração, a educação superior e o desenvolvimento
da ciência, da tecnologia e da inovação recebem importantes investimentos.
(PERROTA, 2012)
Em decorrência do processo de internacionalização da educação superior, as
universidades passam a adquirir as seguintes atribuições: cooperação
interuniversitária; sensibilização na matéria de desenvolvimento; financiamento de
ações de desenvolvimento ou de ações humanitárias; formação e investigação em
matéria de desenvolvimento e cooperação para o desenvolvimento; e realização de
estudos e assistência técnica relacionados ao desenvolvimento e à prática da
cooperação. (ALONSO, 2006)
Política Externa Brasileira, Educação e Integração Regional
Diplomacia Educacional
Letícia Pinheiro e Gregory Beshara (2011) acreditam que a Educação pode ser
vista como um instrumento da Política Externa Brasileira para a construção de
aparatos multinacionais e de uma identidade regional. Dessa forma, tanto a Educação
quanto a política externa são centrais para o processo de consolidação do Estado-
nação. O Diplomata Alessandro Candeas (2011) chega, inclusive, a inferir que a
educação é condição indispensável para o fortalecimento do processo de integração
regional na América Latina, em especial no Mercosul.
Além da ampliação da agenda da PEB para a integração regional, Pinheiro e
Beshara (2011) discutem sobre a diversificação de atores na condução internacional
dos assuntos educacionais. Sobre isso, partem do pressuposto de que a atuação
estatal, juntamente com os ministérios das relações exteriores, ainda são parte
fundamental na determinação dos sistemas nacionais de educação e na
implementação da política externa. No entanto, chamam a atenção para o surgimento
de novos atores e alterações do arranjo institucional de formulação e implementação
de política externa.
Dessa maneira, o conceito de “Diplomacia Educacional” pressupõe a existência
de um processo de descentralização horizontal da Política Externa Brasileira, no qual
a educação extrapola os domínios domésticos e estabelece canais de comunicação
na esfera internacional. Nessa perspectiva, Pinheiro e Beshara (2011) avaliam que o
Itamaraty, além de ter sua atuação acompanhada por outros órgãos da administração
pública, perde a exclusividade na condução das relações exteriores do país. Isso
devido ao número crescente de atores estatais e não estatais que passam a adquirir
interface externa em suas atividades.
Um desses atores é o Ministério da Educação, que vem se engajando em
assuntos externos, e protagoniza o exercício da chamada Diplomacia Educacional,
apesar de não possuir uma agenda própria de política externa. Assim sendo, mesmo
que algumas instituições não detenham o grau de autonomia necessária na PEB para
serem caracterizadas como unidade decisória de política externa, seu impacto sobre
o conteúdo da política deve ser reconhecido. (PINHEIRO; BESHARA, 2011)
A fim de analisar a governança da Educação Superior3, no que se refere ao
Mercosul, Daniela Perrota (2016) assevera que as agências nacionais tem elaborado
uma densa rede de regulações que afetam as instituições e os atores universitários,
como resultado do desenvolvimento das funções transnacionais. O Mercosul tem
colocado em prática políticas regionais para a Educação Superior, que acabam por
ultrapassar a política territorial do Estado.
Com o objetivo de aprofundar a questão da diversificação de atores, e para
basear a discussão proposta pelo presente artigo a respeito da atuação internacional
das universidades no âmbito da integração da América Latina, considera-se
necessária a apresentação de estudos que versam sobre a paradiplomacia.
Paradiplomacia Educacional
Serão utilizados, aqui, as contribuições de Ivo Duchacek (1990), Panayotis
Soldatos (1990), Guy Lapachelle e Stéphane Paquin (2005), Michael Keating (2013)
e Mónica Salomón (2011) para o entendimento do conceito e da dinâmica desse tipo
peculiar de diplomacia, que aborda a atuação internacional de entidades
subnacionais.
Duchacek (1990) arrazoa sobre a existência de três tipos de paradiplomacia: a
regional transfronteiriça, a transregional e a global. O primeiro tipo diz respeito ao
contato entre unidades fronteiriças de países diferentes; o segundo, ao contato entre
3 A concepção de governança da Educação Superior, utilizada pela autora, busca entender a organização e a administração dos sistemas e instituições de educação superior. (PERROTA, 2016, p. 3)
unidades não fronteiriças, mas de países limítrofes; e o último ao contato entre
unidades de diferentes países, mesmo que distantes. Dessa maneira, o termo
“paradiplomacia” parece apropriado, de acordo com o autor, na medida em que “para”
indica algo que é paralelo e associado a uma “capacidade subsidiária”.
Em consonância às ideias apresentadas por Ivo Duchacek (1990), Panayotis
Soldatos (1990) argumenta que a atividade externa de atores subnacionais e
transnacionais pode apresentar elementos constitutivos de uma política externa, na
medida em que possui objetivos, estratégias, instrumentos, instituições e processos
de tomada de decisão. Além disso, as manifestações dessas atividades, a exemplo
das visitas e missões internacionais, bem como os acordos com atores externos, são
geralmente similares à política externa dos Estados-nação.
Guy Lapachelle e Stéphane Paquin (2005) indicam que a autoridade se
“espalha” cada vez mais entre os diferentes atores públicos e privados nos níveis
internacional, nacional e regional, fazendo com que o Estado passe por um processo
de redefinição de seu papel no Sistema Internacional.
Ao explorar o surgimento da paradiplomacia e a atuação internacional das
regiões, Michael Keating (2013) alega que a integração passa a ser vista como um
novo espaço, a partir do qual é possível projetar programas sociais e econômicos.
Existem, de acordo com o autor, três tipos de motivações que levam as regiões
atuarem internacionalmente, sendo elas: econômicas, culturais e políticas. As regiões
podem operar, dessa forma, através de empresas, sindicatos, movimentos sociais, e
organizações transnacionais. Intercâmbios entre universidades também são
percebidos, pelo autor, como manifestações regionais que geram efeitos para a
paradiplomacia.
No que tange ao Brasil, especificamente, Mónica Salomón (2011) demonstra
que as funções desempenhadas pelas estruturas da paradiplomacia dos entes
subnacionais brasileiros, bem como seus conteúdos e motivações, apontam para
“características peculiares de relações internacionais subnacionais no Sul”. As
principais funções residem em matérias de cooperação internacional, captação de
recursos e promoção comercial e econômica.
Isso posto, conclui-se que, com o conceito de “Paradiplomacia
Universitária/Educacional”, a Universidade passa a ser vista como um ator
internacional, a partir da mudança da estrutura e do papel da Educação Superior,
como consequência da globalização e do processo de internacionalização da
Educação. (RUIZ-GUTIÉRREZ, 2014)
Educação e Cultura como instrumentos de inserção internacional
É com Nye (2004) que entramos em contato com o conceito de Soft Power (ou
“poder brando”, em tradução livre). Esse tipo de poder indica a capacidade de se
alcançar os objetivos através de atração no lugar de coerção; e cresce de maneira
proporcional ao crescimento da atratividade da cultura, dos ideais políticos e políticas.
Tradicionalmente, o poder tem sido relacionado à habilidade de influenciar o
comportamento de outros para se alcançar o que se almeja. Existem, no entanto,
diferentes maneiras para influenciar o comportamento de outros: coerção, através de
ameaças; ou atração. Ao contrário do Hard Power, que se baseia no poder das
sanções econômicas e na força militar, o Soft Power se baseia na habilidade de
moldar as preferências dos outros, através do exemplo. É, portanto, um “poder de
atração”. (NYE, 2004)
O Soft Power de um país depende, principalmente, de três recursos: cultura,
valores políticos e política externa. Quando a cultura do país inclui valores universais
e suas políticas promovem valores e interesses compartilhados por outras nações,
isso aumenta a probabilidade de alcançar seus objetivos devido às relações de
atração criadas. Valores políticos domésticos, como a democracia; e valores
advogados nas instituições internacionais e na política externa, como a promoção da
paz e dos Direitos Humanos, afetam a preferência dos outros atores. Por conseguinte,
o sucesso ou o fracasso das políticas de um país fortalece ou enfraquece a projeção
de Soft Power. (NYE, 2004)
Nye (2004) argumenta, ainda, que muito do Soft Power de um país pode ser
produzido pela educação superior. Nesse contexto, as universidades aparecem como
atores não-governamentais que desenvolvem Soft Power em consonância com a
política externa nacional. Isso, porque, a projeção do “poder brando” pode ocorrer
através de contatos pessoais, visitas e intercâmbios. Dessa maneira, estudantes
internacionais assumem importante papel na construção da imagem positiva ou
negativa de um país. Além do mais, esses estudantes, algumas vezes, passam a
ocupar posições relevantes no país de origem, podendo afetar rumos políticos.
No que se refere ao Brasil, Nye (2004) chega a apontar que o país projeta certa
atração no plano internacional devido, em grande parte, à sua cultura “vibrante” e à
promessa no futuro.4 Procuramos, aqui, demonstrar a quantidade de estudantes
estrangeiros que têm o Brasil como destino, a partir de dados fornecidos pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO).
Figura 1 – Fluxo de estudantes estrangeiros para o Brasil
De acordo com o Instituto de estatísticas da UNESCO (2018), o Brasil
recepciona, atualmente, um total de 19.855 estudantes estrangeiros vindos,
principalmente, de Angola, Colômbia, Peru, Paraguai, Argentina e Guiné-Bissau.
Podemos comparar com os dados referentes a outros países da América
Latina. A Argentina recepciona cerca de 25.000 estudantes estrangeiros; a República
Dominicana, 9.955; o México, 8.020; a Colômbia, 4.323; o Chile, 3.810; o Equador,
3.261; e Honduras, 1.494. Quando a relação de comparação é estabelecida, percebe-
se que o Brasil tem atuado ativamente no que tange ao acolhimento de estudantes
vindos de outros países. Ainda que o total possa parecer pouco, é um dos países que
mais tem acolhido os chamados alunos internacionais, no âmbito da América Latina.
4 Ponto observado no desenvolvimento da pesquisa foi o fato do conceito de Soft Power passar a fazer
parte inclusive do discurso público formulado por atores da Política Externa Brasileira.
Como afirma Daniela Perrota (2012), a promoção da cooperação internacional
em educação superior tem sido uma ferramenta de política exterior dos Estados de
“poder brando”, através das relações culturais internacionais e a promoção de
interesses políticos, econômicos e culturais.
Integração regional pelas vias da Educação: o papel das universidades
A cooperação educacional na América Latina tem se intensificado nas últimas
décadas, principalmente devido ao estímulo relacionado à necessidade de os países
fortalecerem relações intra-regionais, e aos acordos de integração regional. Assim, o
contexto pede por uma intensificação cada vez maior da internacionalização da
educação superior, da ciência, da tecnologia e da inovação. (PERROTA, 2012)
No Brasil, a administração do presidente Lula da Silva fortaleceu a política
externa de maneira geral, e concedeu ênfase ao estreitamento de relações com os
países da América do Sul. Iniciativas como educação bilíngue em escolas nas áreas
de fronteira, a criação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana
(UNILA) e a promoção do ensino regional de geografia e história foram instrumentos
que levaram à intensificação do regionalismo através da Educação. (CORREA;
LUEDY, 2017)
Apesar do governo de Dilma Rousseff ter levado a um considerado declínio da
inserção internacional do Brasil devido ao enfraquecimento de estratégias (CERVO,
2014), foi durante essa administração que, quase paradoxalmente, como discutem
Paulo Correa e Tiago Luedy (2017), se assistiu ao início do maior programa de
internacionalização da Educação Superior na história brasileira – Ciência sem
Fronteiras (CSF). Em 4 anos de funcionamento do programa – de 2011 a 2015 -, mais
de 100 mil estudantes brasileiros estiveram em universidades dos cinco continentes.
5
5 Não ignoramos o fato de que o Programa Ciência sem Fronteiras serviu como um instrumento de internacionalização passiva e uma ferramenta para o padrão de cooperação Norte-Sul que posiciona a América Latina como periferia na produção e disseminação de conhecimento. Ou seja, não é ilustrativo para tratar a questão da integração regional. No entanto, é importante apontar que, apesar disso, as
Apesar do Ciência sem Fronteiras ter se configurado como a maior experiência
em mobilidade acadêmica do Brasil, outros programas se ocupam da
internacionalização da educação superior e maior atuação das universidades em
âmbito regional e internacional.
O primeiro a ser destacado é o Programa Estudantes-Convênio de Graduação
(PEC-G), que se destina à formação e qualificação de estudantes estrangeiros por
meio de oferta de vagas gratuitas em cursos de graduação em Instituições de Ensino
Superior (IES) brasileiras. Além disso, constitui um conjunto de atividades e
procedimentos de cooperação educacional internacional, preferencialmente com os
países em desenvolvimento, com base em acordos bilaterais vigentes. (BRASIL,
2013) O Programa foi criado como instrumento de cooperação educacional brasileira
em 1965.
Antes da criação do Programa, já existia o intercâmbio de estudantes latino-
americanos. Entretanto, esse fluxo era esporádico e ocorria como consequência de
iniciativas isoladas. De acordo com o MEC (2000), em 1917 registrou-se a presença
de brasileiros estudando no Uruguai; em 1919, estudantes argentinos, chilenos,
paraguaios e uruguaios cursando nível superior no Brasil, inclusive na Escola Militar
e na Escola Naval.
No ano de 1941, surgiu o primeiro contingente de estudantes bolivianos no
Brasil. Isso em decorrência, principalmente, do incremento das relações culturais
entre o Brasil e a Bolívia. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, intensificaram-
se as relações brasileiras com outros países latino-americanos, gerando interesses
comuns e propiciando maior intercâmbio estudantil. (MEC, 2000)
Ainda segundo o MEC (2000), o aumento do número de intercâmbio estudantil
fez sentir a necessidade de se celebrarem os então chamados Convênios de
Cooperação Cultural bilateral, que também incluíam o aspecto educacional. Através
desses convênios, os alunos dos países signatários eram dispensados de algumas
exigências que pesavam sobre os alunos autóctones, a fim de facilitar o ingresso
daqueles estudantes nas IES. No Brasil, essa facilitação era vista, por exemplo, a
partir da isenção do concurso vestibular e do pagamento de taxas e mensalidades.
universidades passam a atuar mais ativamente no campo da internacionalização da Educação Superior.
Daí vem a denominação de estudante-convênio, isso é, selecionado por via
diplomática, com fundamento nesses Convênios bilaterais do Brasil com outros
países, especialmente os latino-americanos.
Em relatório elaborado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada),
determina-se que, entre 2011 e 2013, o PEC-G contemplou 992 estudantes e
envolveu 81 IES de todas as regiões brasileiras.
O PEC-PG, criado nos moldes do PEC-G, e com o objetivo de possibilitar a
cidadãos oriundos de países em desenvolvimento a realização de estudos de pós-
graduação no Brasil, já selecionou, no período de 2005 a 2016, um total de 2324
estudantes estrangeiros. 6 Através do Programa de Alianças para a Educação e a
Capacitação (PAEC), entre os anos de 2011 e 2018, foram concedidas
aproximadamente 3374 bolsas para estudantes da América Latina e do Caribe (2463
bolsas para cursos de Mestrado, e 911 para cursos de Doutorado), sendo que já
recebeu mais de 26.000 candidaturas. Com participação de 59 universidades
brasileiras associadas ao GCUB, o Programa já ofertou vagas em mais de 600
programas de pós-graduação.
Desde a sua criação, o PAEC é apresentado como uma iniciativa de
cooperação regional no âmbito educacional para o desenvolvimento da América
Latina e do Caribe, tendo como principal objetivo a contribuição para a integração, por
meio da concessão de bolsas de estudos integrais para cursos de pós-
graduação stricto sensu, oferecidas pelas universidades brasileiras associadas ao
GCUB.
Para além dos programas de recepção de estudantes estrangeiros, é
importante que se discuta, ainda, sobre a questão das Instituições de Ensino Superior
(IES) públicas localizadas em zona de fronteira. No Brasil, existem 88 (localizadas em
64 cidades), sendo que somente 14 são sedes de instituições, enquanto que o
restante são campi ou núcleos da instituição. As IES identificadas fazem fronteira com
Argentina, Paraguai, Bolívia, Uruguai, Peru, Guiana, Colômbia, Venezuela e Guiana
Francesa. Observa-se que, apesar da distância não estar diretamente vinculada ao
fluxo transfronteiriço, a maioria das instituições está em até 50 km da fronteira, o que
6 Dados disponíveis na Plataforma digital da Divisão de Temas Educacionais do Ministério das Relações Exteriores. Disponível em: www.dce.mre.gov.br Acesso em 20 de maio de 2019.
realça o potencial de desenvolvimento de ações conjuntas entre os países limítrofes.
(STRUCKES et. al, 2019)
Esse cenário pode oportunizar vantagens às universidades de fronteira no
sentido de se converterem em importantes agentes paradiplomáticos. Nesse caso, as
universidades serão atores capazes de projetar sua internacionalização a partir de
temas que levam em consideração seu entorno geográfico, bem como do
estabelecimento de suas relações com instituições similares, resultando no
fortalecimento do tripé ensino-pesquisa-extensão. (CORREA; LUEDY, 2017)
O que se percebe é que as questões cotidianas das cidades e estados
subnacionais - especialmente daqueles localizados em regiões fronteiriças -, criam
uma agenda que afeta mais diretamente a vida dessas comunidades do que a agenda
criada pela política externa da alta burocracia estatal. Nesse sentido, novos atores
locais ganham proeminência na construção das relações internacionais nos mais
diversos assuntos. Existem vários tipos de agentes nessa dinâmica paradiplomática,
incluindo as universidades. (CORREA; LUEDY, 2017)
Considerações finais
Diante das reflexões apresentadas, é possível confirmar que novos temas e
preocupações têm moldado as relações entre diferentes atores no cenário
internacional. Concomitante à expansão da agenda, o sistema internacional se torna
cada vez mais descentralizado, cedendo espaço a questões de âmbito regional. A
Educação, como um tema, e as universidades, como atores, participam de maneira
crescente nas relações internacionais, e especialmente nas relações regionais como
instrumentos de fortalecimento da integração.
Se analisado mais por um viés de inserção internacional do que de integração
regional, vemos que o papel do Brasil no processo de internacionalização do Ensino
Superior ainda se encontra muito mais voltado à prática da internacionalização
passiva. Os programas que visam a recepção de estudantes estrangeiros no Brasil
surgem como estratégia de internacionalização ativa, mas sua atuação permanece
singela, e o grupo de estudantes em cada IES ainda é pequeno em relação ao total.
Aliado a isso, consideramos que os conceitos de Diplomacia Educacional e
Paradiplomacia Educacional auxiliam no entendimento acerca da mudança do papel
das universidades e dos órgãos ligados à Educação no que tange às relações
internacionais e à aproximação com países latino-americanos. Alguns dos exemplos
apresentados no artigo foram o maior engajamento do Ministério da Educação e o
potencial das universidades de fronteira.
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