21
O ENCARCERAMENTO DA MISÉRIA: Breves considerações sobre a crise do sistema penal brasileiro IMPRISONMENT OF MISERY: Basic considerations about the crisis of Brazilian’s Penal System Beatriz Silva Urel – [email protected] Graduanda em Direito – UNISALESIANO/ Lins Juliano Napoleão Barros – [email protected] Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Professor do curso de Direito do Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium – UniSALESIANO/Lins. Professor do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM. RESUMO O presente artigo discute a situação calamitosa e alarmante do sistema penitenciário brasileiro. Valendo-se da tese do sociólogo Loic Wacquant (2011), o trabalho procurou investigar a realidade do sistema carcerário brasileiro e sua consonância com o fenômeno do encarceramento da miséria descrito pelo autor. Foram examinados e expostos os dados obtidos pelo Mutirão Carcerário, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (BRASIL, CNJ, 2012). Trata-se, em última análise, de um pedido de socorro daqueles que lotam as carceragens pelo país. Palavras-chave: SISTEMA PENAL BRASILEIRO. FUNÇÕES DA PENA. ENCARCERAMENTO DA MISÉRIA. Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul- dez de 2016

Universitári@ · Web viewSistema Penitenciário em Foco: Aspectos Importantes sobre a Crise da Pena de Prisão. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Sintese

Embed Size (px)

Citation preview

1

O ENCARCERAMENTO DA MISÉRIA: Breves considerações sobre a crise do sistema penal brasileiro

IMPRISONMENT OF MISERY: Basic considerations about the crisis of Brazilian’s

Penal System

Beatriz Silva Urel – [email protected]

Graduanda em Direito – UNISALESIANO/ Lins

Juliano Napoleão Barros – [email protected]

Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Professor do curso de Direito do Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium – UniSALESIANO/Lins. Professor do Programa de

Mestrado em Direito do Centro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM.

RESUMO

O presente artigo discute a situação calamitosa e alarmante do sistema penitenciário brasileiro. Valendo-se da tese do sociólogo Loic Wacquant (2011), o trabalho procurou investigar a realidade do sistema carcerário brasileiro e sua consonância com o fenômeno do encarceramento da miséria descrito pelo autor. Foram examinados e expostos os dados obtidos pelo Mutirão Carcerário, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (BRASIL, CNJ, 2012). Trata-se, em última análise, de um pedido de socorro daqueles que lotam as carceragens pelo país.

Palavras-chave: SISTEMA PENAL BRASILEIRO. FUNÇÕES DA PENA. ENCARCERAMENTO DA MISÉRIA.

ABSTRACT

In this article, we discuss the calamitous and alarming situation of the Brazilian penitentiary system. From the thesis of the sociologist Loic Wacquant (2011), we investigate the reality of the Brazilian prison system and its consonance with the phenomenon of mass incarceration of the poor described by the author. In this purpose, we analyze the data obtained from a research conducted by the National Council of Justice (BRASIL, CNJ, 2012). Ultimately, this is a call for help from those who crowd the jails across the country.

Keywords: BRAZILIAN PENAL SYSTEM. PUNISHMENT’S FUNCTION. MASS INCARCERATION OF THE POOR.

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

2

1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa procurou evidenciar as falhas do sistema carcerário

brasileiro, bem como fazer uma análise das questões que permeiam este cenário.

Dessa maneira, baseia-se no documento apresentado pelo Conselho

Nacional de Justiça (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça, 2012) acerca das

condições, tanto físicas quanto processuais do sistema penitenciário dos estados

brasileiros, que apresentam um cenário dantesco, descumprindo todos os preceitos

constitucionais relacionados principalmente com a dignidade da pessoa humana,

bem como pactos internacionais, dos quais o Brasil é signatário, relacionado com as

condições nas penitenciárias.

No desenvolvimento da pesquisa, assumiu-se como, opção metodológica a

técnica de pesquisa bibliográfica, com predominância do raciocínio dedutivo. Trata-

se de pesquisa de vertente jurídico sociológica, que problematiza a legitimidade e

efetividade do sistema penal. Pela adoção do procedimento de análise de conteúdo,

o presente trabalho discute as relações existentes entre a seletividade do sistema

penal brasileiro e o controle social das camadas marginalizadas da população, na

concretização do que Loïc Wacquant (2011, p. 104) descreveu como sendo o

encarceramento da miséria. Segundo sua descrição, “o sistema penal contribui

diretamente para regular os segmentos inferiores do mercado de trabalho”.

2 O NEOLIBERALISMO ECONÔMICO E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA POLÍTICA PENAL

Partindo de uma análise materialista histórica (metodologia de interpretação

histórica que busca compreender as mudanças sociais mediante o reconhecimento

da divisão da sociedade em classes e das repercussões das transformações dos

meios de produção), pode-se dizer que o modelo de sistema econômico adotado por

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

3

um Estado, reflete e influencia diretamente em toda a composição do mesmo. Sendo

o capitalismo o sistema econômico vigente - a infraestrutura da sociedade - e o

Neoliberalismo o ideário que norteia a política organizacional deste, a ordem jurídica

do Estado seria parte da superestrutura, a qual ecoa diretamente aspirações

capitalistas neoliberais.

Neste quadro, o Direito Penal, parte da composição da ordem jurídica estatal,

também corresponde a um reflexo de seu arranjo político e econômico:

Toda manifestação do direito penal corresponde a uma determinada orientação política para o tratamento da criminalidade. Às ações políticas orientadas ao controle da delinquência chamamos política criminal; e toda política criminal decorre da política geral do Estado a que corresponde. Dessa forma, é possível afirmar que o direito penal é reflexo da organização econômica e política do estado que o produz (BOZZA, 2015, p. 65).

O Neoliberalismo corresponde a ideias de organização estatal de natureza

econômica capitalista que defendem a retomada do ideário de livre mercado do fim

do século XVIII e século XIX, o laissez-faire, mediante a convicção de que a

liberdade seria o meio mais efetivo de promoção de igualdade e do bem-estar.

Contrapõe-se a teoria econômica keynesiana, rejeitando a interferência do Estado

tanto na produção quanto na distribuição, propondo a entrega do social às leis do

livre mercado (FERRARO, 2005, p. 103 e 104).

O programa neoliberal prega que o Estado deve, no âmbito da economia, tão

somente proteger o livre mercado e intervir minimamente, de modo que caberá ao

Estado apenas as funções consideradas indispensáveis à sua manutenção.

Segundo Bozza (2015), baseando-se na crítica marxista acerca da economia

burguesa, assim como a natureza estrutural da criminalidade é reflexo do modo de

produção capitalista, a pena privativa de liberdade aparece em resposta às

exigências de manutenção da ordem do mercado.

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

4

Ao surgir, a burguesia necessita e utiliza o poder estatal para regular o salário, prolongar a jornada de trabalho e manter o trabalhador em situação de dependência, de forma conveniente a quem deseja acumular mais-valia (BOZZA, 2015, p. 67).

De acordo com o autor, a pena criminal na contemporaneidade passa a ter

caráter apenas retributivo, pois, uma vez que sobram pessoas para laborar e gerar

mais-valia tornou-se desnecessária a disciplina do excesso de mão-de-obra e as

prisões não tiveram mais como finalidade a inclusão dos cidadãos no mercado de

trabalho.

É nesse sentido a teoria exposta pelo sociólogo Loic Wacquant em seu

estudo “As Prisões da Miséria” (2011). O autor examina a orientação de repressão

ao crime advinda do Neoliberalismo, aquilo que chama de "Estado Penal".

Wacquant (2011) narra que o discurso neoliberal foi difundido pelos EUA, ao

final dos anos 70, com o surgimento de uma rede formadora de opinião da qual fazia

parte organismos estatais, institutos acadêmicos, organizações sociais, bem como a

mídia. Além destes, os institutos de consultoria, tanto do governo dos EUA, como da

Inglaterra, sob comando de Reagan e Thatcher, respectivamente, contribuíram para

a difusão dessas ideias.

Estes institutos, conforme Wacquant (2011, p. 29 e 30), denunciam os ideais

do Estado de Bem-Estar social através de um paciente trabalho de sabotagem

intelectual das noções e das políticas keynesianas na frente econômica e social,

preparando terreno para o liberalismo real, e, por fim, pregando a ideia de um

Estado socialmente mínimo e penalmente forte.

Surge uma postura de forte repressão frente à criminalidade, a qual acaba por

desconsiderar os fatores exógenos sociais e econômicos que influenciam na

existência de delitos e delinquentes. Por conseguinte, esse modo de controle da

criminalidade, que elege uma forte repressão policial quanto a qualquer tipo de

subversão, mesmo as mais simples, repercute muito mais em violência e opressão

contra cidadãos marginalizados e pobres do que na promoção de segurança pública.

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

5

Essa ideia desloca a atenção das pessoas (individualmente consideradas) e dos motivos que as levaram a cometer algum crime, para as categorias e grupos sociais considerados propensos à pratica de crimes. Deste modo, tal postura política afeta o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei com o fim de executar políticas de repressão e de controle sempre mais severos, direcionados a uma parte da sociedade geralmente marginalizada por não acompanhar o ritmo imposto pela competitividade sempre maior do mercado (SANTORO, 2002, APUD OLIVEIRA, 2009, p. 22).

Consequência da globalização, a difusão de tais teorias americanas, bem

como da política neoliberal, em que o Estado social é mínimo e o Estado punitivo é

forte, também se disseminam com facilidade perante todo o globo. As políticas

penais advindas do Neoliberalismo passam a exercer influência direta sobre os

países capitalistas ocidentais:

Mesmo países que não adotaram materialmente o anterior modelo de Estado de bem-estar, como o Brasil, paulatinamente começaram a abandonar políticas penais de natureza preventivas e passaram a adotar modelos meramente punitivos e repressores (PASTANA, 2013, p. 30).

O sistema carcerário acaba por deixar de cumprir, concomitantemente com

seu papel punitivo e preventivo, passando a assumir um caráter de regulador da

miséria, instrumento de controle de populações desviantes e dependentes. Na crítica

de Wacquant (2011), o Direito Penal nos Estados Unidos revela-se vinculado à

dupla função de retirar das ruas uma massa de empregados e gerar lucro às

empresas de segurança privadas, já que no país elas se valem da mão-de-obra

carcerária e, desta foram, obtém de lucro.

Essa política penal ostensiva reflete uma ideologia que, de modo simplista

propõe como única e melhor solução para tanto, o encarceramento dos excluídos.

Tal situação, analisada e estudada por Wacquant (2011) no Estado

americano, é similar ao que ocorre no Brasil. Mesmo levando em conta as

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

6

particularidades de cada país, é possível observar, em ambos, a presença de um

forte Estado punitivo, o qual encarcera segmentos específicos da sociedade como

maneira de manutenção da ordem econômica e social.

Wacquant (2011, p. 10), em nota feita aos brasileiros em sua obra As prisões

da miséria, demarca as especificidades do Brasil. De acordo com o sociólogo, por

diversas razões ligadas à história deste país e pela “posição subordinada na

estrutura das relações econômicas internacionais (estrutura de dominação que

mascara a categoria falsamente ecumênica de ‘globalização’)” do mesmo, bem

como a despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industrialização:

A sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades (WACQUANT, 2011, p. 10).

Ainda sobre o Brasil, Wacquant (2011, p. 11 e 12) chama a ao recorde da

hierarquia de classes e da estratificação etnorracial e a discriminação baseada na

cor, característicos do funcionamento das burocracias policiais e judiciárias. De

modo que, regularmente, os negros são punidos com mais severidade que os

brancos.

Corroborando com tais ideias, Lenio Streck (2013) infere que, no caso

brasileiro, o intervencionismo estatal, condição de possibilidade para a realização da

função social do Estado de bem-estar, consistiu em um simulacro. O “Estado

interventor-desenvolvimentista-provedor” gerou primordialmente acumulação de

capital e renda para as elites brasileiras e um intenso processo de exclusão social.

O fenômeno do encarceramento da miséria descrito por Wacquant não é

experiência exclusivamente norte-americana, verificando-se com nitidez na realidade

contemporânea brasileira. Como o próprio autor enfatiza, a violência policial

brasileira também se mostra como ferramenta de contenção das camadas sociais

mais pobres e de cor (WACQUANT, 2011). O Direito Penal já não se justifica como

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

7

meio de punição, prevenção de crimes e reinserção social do egresso, mas se reduz

a instrumento de exclusão e controle daqueles à margem do sistema capitalista.

3 SUPERLOTAÇÃO, VIOLÊNCIA E DESUMANIDADE: Considerações sobre o Relatório do Mutirão Carcerário promovido pelo Conselho Nacional de Justiça

De modo recente, desde o ano de 2008, é realizado no Brasil o Mutirão

Carcerário, programa do Conselho Nacional de Justiça que consiste na reunião de

vários magistrados os quais percorrem os estados brasileiros para analisar a

situação processual dos apenados, além de inspecionar unidades carcerárias, a fim

de constatar irregularidades, de modo a saná-las, e garantir o cumprimento da Lei

de Execuções Penais (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça, 2012).

Em 2012, após o Mutirão passar por todos os estados brasileiros verificando

cada unidade carcerária neles contida, foi divulgado um relatório geral. Intitulado

“Mutirão Carcerário – Raio X do Sistema Penitenciário Brasileiro”, o relatório

apresentou dados carcerários de todas as regiões do país.

De modo geral, o que se nota com a análise do Mutirão é que a maioria

devastadora dos cárceres brasileiros encontra-se superlotada e as condições de

vida dentro das prisões são insalubres, violentas e desumanas, não havendo

qualquer preocupação em assegurar a reintegração do apenado na sociedade, ou

mesmo garantir o mínimo de dignidade ao mesmo.

No norte, região caracterizada pelo clima quente, atributo marcante das

prisões é a insalubridade. “Prisões sujas com celas escuras e mal ventiladas

compõem o cenário no qual dezenas de milhares de pessoas cumprem pena nos

estados da Região Norte” (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça, 2012, p. 11).

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

8

Tal fato só contribui para a revolta e insatisfação do detento que se encontra

abandonado no “depósito de gente que é nosso sistema penitenciário” (KHALED,

2014, p.47).

Além disso, não há efetivo desempenho do Estado em ressocializar o

indivíduo e assim, muitas vezes, não resta outra alternativa ao ex-detento, senão

voltar ao mundo do crime. De acordo com levantamento do Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada, a cada quatro ex-condenados, pelo menos um (24,4%) volta a

cometer crime no prazo de cinco anos (IPEA, 2015). O resultado soa como baixo,

entretanto o estudo realizado pelo instituto considera apenas o conceito de

reincidência legal, ou seja, só é reincidente quem volta a ser condenado no período

de cinco anos depois do cumprimento da pena, deixando de lado os processos que

ainda estão em fase de investigação ou instrução.

Voltando ao Mutirão, na região Nordeste,

[...] calor, escassez de água, sujeira e esgoto a céu aberto revelam a situação crítica das unidades, nas quais os presos precisam disputar um metro quadrado ou criar esquemas de revezamento para dormir (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça, 2012, p. 61).

A superlotação e alta proporção de presos provisórios também são fatores

comuns na região. Outra característica marcante dos presídios nessa região é a

desordem e o descontrole sobre os detentos. Rebeliões violentas são comuns neste

cenário.

Na região Centro-Oeste os problemas carcerários vão de desrespeito aos

direitos humanos à Lei de Execução Penal.

Afronta aos direitos humanos é evidente nos presídios mato-grossenses, onde o Mutirão Carcerário encontrou celas metálica e unidades comparadas a “bombas-relógio” e “depósitos humanos”, tamanha a precariedade das instalações. (BRASIL, 2012, p. 111).

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

9

Não há qualquer preocupação com a vida e dignidade do detento, o que

corrobora com a ideia de que o sistema penitenciário brasileiro vem servindo apenas

como ferramenta de descarte humano.

Passa-se à região Sudeste, que possui mais da metade das pessoas que

cumprem pena no Brasil. Em alguns presídios o cenário é similar ao do resto do

país: falta estrutura, higiene e tratamento digno aos detentos.

O cenário na região não é diferente do constatado no resto do Brasil,

condições absurdas em total desrespeito com o princípio da dignidade da pessoa

humana. Tão gravosa era a situação no Espírito Santo que o Conselho Nacional de

Justiça não viu outra saída, senão recomendar o fechamento de diversas

instalações (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça, 2012). Graças às constatações

do Mutirão foram criadas novas instalações. Sem o Mutirão, provavelmente o

cenário ainda seria o mesmo.

A situação é absurda, injustificável: em São Paulo, por exemplo, foi

constatado que havia 400 réus presos irregularmente, pois já haviam cumprido pena

(BRASIL. Conselho Nacional de Justiça, 2012, p. 167).

Por fim, constatou-se na região Sul, realidade similar ao que ocorre no resto

do país. “Nas inspeções a cadeias, presídios e delegacias, os magistrados

depararam-se muitas vezes com situações de violência e com o descaso das

autoridades com relação aos presidiários”. (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça,

2012, p. 169).

Verifica-se um padrão nacional de descaso com o preso e desumanidade.

Por todos os recantos do país são cometidas violências e atrocidades inimagináveis para instituições que são administradas pelo Estado, demonstrando que o poder punitivo ainda impera de forma irrestrita, sem que a normatividade voltada para a redução de danos encontre qualquer condição de permeabilidade (KHALED JR., 2014, p. 47).

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

10

Enfim, apura-se através da análise dos dados fornecidos pelo Conselho

Nacional de Justiça que o Sistema Carcerário encontra-se muito distante de efetivar

seus objetivos. O Estado pouco demonstra preocupação com o apenado: o submete

a condições desumanas e degradantes, deixando de garantir-lhes integridade física

e mental dentro das celas. Em sua maioria, os presídios no Brasil são precários e se

mostram apenas como um depósito de gente.

Os egressos são despejados em cárceres cruéis que, ao invés de recuperá-

los, os apresenta a uma realidade de violência, instruindo-os eficazmente para o

mundo criminoso.

3.1 A seletividade do sistema carcerário brasileiro

Segundo o já mencionado Relatório do Infopen (2014), o perfil

socioeconômico dos detentos mostra que 55% têm entre 18 e 29 anos, 61,6% são

negros e 75,08% têm até o ensino fundamental completo, havendo a predominância

de baixa escolaridade, o que indica que esta população já era vulnerável ou

marginalizada antes de serem presas.

Nesse sentido, sobre a população carcerária brasileira, Dewes e Marques

(2015, p. 123):

A população carcerária é constituída de pessoas jovens, de raça negra, de baixa renda ou desempregadas, com pouco ou nenhum estudo. Porém, essas pessoas são, geralmente, marginalizadas pela sociedade, vítimas de uma segregação econômica, social e cultural, sendo que essa condição de marginalidade acaba refletindo na prática do delito.

Esta seletividade do sistema penal nos remete novamente à teoria de

Wacquant (2011). O sistema carcerário abandona as finalidades teóricas da pena e

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

11

assume um caráter de regulador da miséria, controlando populações desviantes,

dependentes e marginalizadas. Joga os delinquentes em prisões, sem qualquer

preocupação com as condições da qual será executada a pena ou com a

recuperação dos mesmos.

Para reafirmar ainda mais essa ideia, importante apresentar o seguinte dado:

quanto à natureza dos crimes, apontou o Infopen (2014) que 28% dos detentos

respondiam ou foram condenados por crime de tráfico de drogas, 25% por roubo,

13% por furto, enquanto, do total, apenas 10% respondem por homicídio e 3% por

latrocínio.

Não é difícil perceber que o sistema punitivo no Brasil acaba por punir

severamente a massa subproletária delinquente, sem haver qualquer intenção de

recuperação do apenado ou de diminuição da violência. O Brasil, contrariando o

senso comum, não é o país da impunidade. É o país da superpunição sobre os

pobres. Ante os dados apresentados, dizer que a prisão no Brasil tem qualquer

finalidade preventiva beira o ridículo. A verdade é o direito penal brasileiro acaba por

abandonar os marginalizados em um sistema carcerário falido, servindo apenas aos

interesses neoliberais, convertendo-se em ferramenta de exclusão e opressão sobre

os miseráveis, como denunciado por Wacquant (2011).

4 CONCLUSÃO

A presente pesquisa se dedicou à análise da atual situação do sistema penal

brasileiro, a partir das reflexões de Wacquant sobre o encarceramento da miséria.

Para tanto, mereceu destaque a apreciação crítica da política e das condições

carcerárias brasileiras, mediante a problematização dos dados divulgados pelo

Mutirão Carcerário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, que mapeou os

problemas de ordem material e processual dos presídios brasileiros.

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

12

Como resultado, verifica-se que os ideais políticos econômicos do capitalismo

neoliberal, influenciam sobremaneira na concepção e implementação das políticas

de Estado.

Aceita essa premissa, pode-se inferir que o sistema jurídico, mais

precisamente o Direito Penal, sofre direta influência do neoliberalismo. Assim,

políticas criminais seguem sendo concebidas e implementadas em consonância com

os valores e interesses do mercado.

É impreterível o reconhecimento da falência da política e do sistema

carcerário brasileiro. Torna-se assim necessária uma análise mais aprofundada dos

ideários políticos e econômicos que moldam o funcionamento do Estado o

convertendo em instrumento de concreção de políticas classistas, violentas e

excludentes.

É necessário que se traga a luz às questões que permeiam as formas

pelas quais a sociedade e o Estado brasileiro lida com aqueles que cometem crimes.

É irrefutável que se vive momento de marcada violência e insegurança, mas é

também irrefutável a ineficiência e desumanidade da forma que lidamos com o

problema social da criminalidade. No longo prazo, não há possibilidade de êxito de

qualquer política criminal que não viabilize reais condições de ressocialização para

aquele que comete um crime.

Muitos acreditam que as discussões fomentadas por pesquisa como esta

correspondem à defesa da impunidade ou à passividade perante a violência. Não se

trata disso. O que se almeja é que aquele cidadão que pratique um crime cumpra

sua pena conforme previsto em lei, em consonância com os valores propugnados

pela ordem constitucional. Em síntese, espera-se que aquele que cometa um crime

receba sim uma punição, mas que tal pena não seja desumana, cruel e degradante.

REFERÊNCIAS

BOZZA, Fábio da Silva. Política criminal contemporânea e neoliberalismo. REDES – Revista Eletrônica Direito e Sociedade. Canoas – RS. Vol. 3, n. 1, maio/2015. pp.

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

13

63-82. Disponível em: <http://www.revistas.unilasalle.edu.br/index.php/redes. file:///C:/Users/residencia/Downloads/Dialnet-PoliticaCriminalContemporaneaENeoliberalismo-5402961.pdf>. Acesso em: nov. 2015.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão Carcerário: Raio X do sistema Penitenciário Brasileiro. Brasília – DF. 2012. Disponível em: <http://cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/mutirao_carcerario.pdf>. Acesso em: mai. 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 com pedido de concessão de medida cautelar ao STF, Partido Socialismo e Liberdade. Rio de Janeiro – RJ, 26/05/2015. Disponível em: <http://jota.info/wp-content/uploads/2015/05/ADPF-347.pdf>. Acesso em: mar. 2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, voto Ministro Marco Aurélio. Distrito Federal – DF, 27/08/2015. Disponível em: http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/1693_2._SBDP-Relatorio_e_Voto_Marco_Aurelio_ADPF_347.pdf. Acesso em: mar. 2016.

DEWES, Heloisa; MARQUES, Mateus. Sistema Penitenciário em Foco: Aspectos Importantes sobre a Crise da Pena de Prisão. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Sintese. nº 94, out/nov/2015, p. 115-139.

DIPP, Andrea. Prende Primeiro, Pergunta Depois: 41% dos presos no Brasil são provisórios. 02/05/2015. UOL Notícias. São Paulo – SP. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/02/05/prende-primeiro-pergunta-depois-41-dos-presos-no-brasil-sao-provisorios.htm>. Acesso em: ago. 2015.

FERRARO, Alceu Ravanello. Neoliberalismo e políticas sociais: a naturalização da exclusão. Estudos Teológicos – Programa de pós-graduação em Teologia – Escola Superior de Teologia, São Leopoldo - SR , v. 45, n. 1, p. 99-117, 2005. Disponível em: <http://www3.est.edu.br/publicacoes/estudos_teologicos/vol4501_2005/et2005-1f_aferraro.pdf>. Acesso em: nov. 2015.

INFOPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Departamento Penitenciário Nacional. Ministério da Justiça. Brasília – DF. Junho/2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: mar. 2016.

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016

14

IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Reincidência Criminal no Brasil – Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro-RJ, 2015. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_criminal.pdf>. Acesso em: dez. 2015.

KHALED JR., Salah H. Os Níveis de Dor Intencional e o Holocausto Nosso de Cada Dia: renúncia aos discursos de justificação da pena e ao mito da ressocialização. Revista Síntese Direito Penal e Processual Pena. Porto Alegre: Síntese, v. 14, n. 84, fev./mar. 2014, p. 38-63

OLIVEIRA, Helma Janiele Souza. O Direito Penal Mínimo e a Execução das Penas Alternativas na ótica dos Direitos Humanos. 2009. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas) – Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa – PB. Disponível em: <http://tede.biblioteca.ufpb.br:8080/bitstream/tede/4400/1/arquivototal.pdf>. Acesso em: dez. 2015.

PASTANA, Débora Regina. Estado punitivo brasileiro a indeterminação entre democracia e autoritarismo. Revista Eletrônica Civitas, Porto Alegre. vol. 13, nº 01, jan/abr/2013, p. 27-47. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/viewFile/9039/9685>. Acesso em: jan. 2016.

SANTOS, Helena Maria Pereira et al. Estado de Coisas Inconstitucional: Um Estudo sobre os casos Colombiano e Brasileiro. Quaestio Iuris. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. vol. 08, nº. 04, Número Especial. Rio de Janeiro, 2015. pp. 2596-2612. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/20941/15320>. Acesso em: dez. 2015.

STRECK, Lenio Luiz. Constituição Ou Barbárie? – A Lei como Possibilidade Emancipatória a partir do Estado Democrático de Direito. Ensaios Jurídicos. Doutrina (Processual) Penal. 2013. Nelmon J. Silva Jr. Blog. Disponível em: <https://ensaiosjuridicos.files.wordpress.com/2013/04/constituic3a7c3a3o-ou-barbc3a1rie-e28093-a-lei-como-possibilidade-lenio.pdf>. Acesso em: nov. 2015.

WACQUANT, Loic. As prisões da Miséria. 2. ed. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul-dez de 2016