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Segundo uma perspectiva que já faz parte do senso comum, vivemos uma época de fim das uto- pias. O colapso do chamado “socialismo real”, emblematizado pela queda do muro de Berlim, há quinze anos, deu força à idéia de que não existe no horizonte nenhuma alternativa viável ao capita- lismo. Em suas diferentes variedades, unido a algu- ma forma de democracia eleitoral, ele seria uma condição inextirpável do mundo moderno. A esquerda voltou suas atenções para propostas de aprimoramento do convívio político, sob rótulos como democracia deliberativa (ou radical) e mul- ticulturalismo. No entanto, como anotou Nancy Fraser (1997, p. 2), tais propostas são fracos substi- tutos para o ideal do socialismo, uma vez que não enfrentam uma questão-chave, a economia política. De fato, não há disponível nenhuma visão de sociedade alternativa com a penetração e a abrangência que o socialismo, em seus diversos matizes, demonstrou entre, digamos, 1880 e 1980. No entanto, estão em circulação inúmeras pro- postas utópicas, que reorganizam a vida social por inteiro. Algumas possuem certo impacto no debate político, sobretudo europeu; outras per- manecem na condição de meras fantasias intelec- tuais. Nenhuma alcançou a mesma centralidade UTOPIAS DO PÓS-SOCIALISMO Esboços e projetos de reorganização radical da sociedade * Luis Felipe Miguel RBCS Vol. 21 nº. 61 junho/2006 Artigo recebido em janeiro/2005 Aprovado em maio/2005 * Uma versão inicial foi apresentada no XXVIII Encontro Anual da Anpocs (Caxambu, outubro de 2004). O texto beneficiou-se dos comentários e sugestões de Regina Dalcastagnè, bem como dos pareceristas anônimos da RBCS, mas continuo como único responsável por eventuais erros e omissões. Ele faz parte da pesquisa “Modelos alter- nativos de representação política”, apoiada pelo CNPq com uma bolsa de Produtividade em Pesquisa.

UTOPIAS DO PÓS-SOCIALISMO Esboços e projetos de ... · UTOPIAS DO PÓS-SOCIALISMO 93 Para nós, são utopistas aqueles que separam as for-mas políticas de seu fundamento social

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Segundo uma perspectiva que já faz parte do

senso comum, vivemos uma época de fim das uto-

pias. O colapso do chamado “socialismo real”,

emblematizado pela queda do muro de Berlim, há

quinze anos, deu força à idéia de que não existe

no horizonte nenhuma alternativa viável ao capita-lismo. Em suas diferentes variedades, unido a algu-ma forma de democracia eleitoral, ele seria umacondição inextirpável do mundo moderno. Aesquerda voltou suas atenções para propostas deaprimoramento do convívio político, sob rótuloscomo democracia deliberativa (ou radical) e mul-ticulturalismo. No entanto, como anotou NancyFraser (1997, p. 2), tais propostas são fracos substi-tutos para o ideal do socialismo, uma vez que nãoenfrentam uma questão-chave, a economia política.

De fato, não há disponível nenhuma visãode sociedade alternativa com a penetração e aabrangência que o socialismo, em seus diversosmatizes, demonstrou entre, digamos, 1880 e 1980.No entanto, estão em circulação inúmeras pro-postas utópicas, que reorganizam a vida socialpor inteiro. Algumas possuem certo impacto nodebate político, sobretudo europeu; outras per-manecem na condição de meras fantasias intelec-tuais. Nenhuma alcançou a mesma centralidade

UTOPIAS DO PÓS-SOCIALISMOEsboços e projetos de reorganizaçãoradical da sociedade*

Luis Felipe Miguel

RBCS Vol. 21 nº. 61 junho/2006

Artigo recebido em janeiro/2005Aprovado em maio/2005

* Uma versão inicial foi apresentada no XXVIII

Encontro Anual da Anpocs (Caxambu, outubro de

2004). O texto beneficiou-se dos comentários e

sugestões de Regina Dalcastagnè, bem como dos

pareceristas anônimos da RBCS, mas continuo

como único responsável por eventuais erros e

omissões. Ele faz parte da pesquisa “Modelos alter-

nativos de representação política”, apoiada pelo

CNPq com uma bolsa de Produtividade em

Pesquisa.

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que o socialismo teve, o que se deve, talvez, menosà incipiência das formulações do que à ausência deconexões com um movimento social. Seu valor,muitas vezes, reside mais na indicação dos pontosproblemáticos do ordenamento capitalista e nodesafio de pensar diferente do que nas instituiçõespropostas.

Este artigo analisa quatro propostas utópicas,representativas de diferentes correntes de pensa-mento. Há um projeto de socialismo de mercado,cujo principal teórico é o cientista político estadu-nidense John Roemer, que busca combinar a pre-tendida eficiência econômica do mercado com agarantia de real igualdade social, que seria o cora-ção ético do socialismo. Mais ousado, o filósofofranco-austríaco André Gorz quer realizar os obje-tivos do comunismo desenvolvido, segundo Marx,por meio de uma sociedade de tempo liberado. Auniversalização da possibilidade de dispor detempo livre, entendido como tempo de não-traba-lho, também está no cerne das propostas de rendabásica universal, que encontram diferentes versõese que examino aqui na obra de seu maior expoen-te, o economista belga Phillipe Van Parijs. Demaneira muito mais provocativa, a filósofa britâni-ca Barbara Goodwin concebe uma sociedade loté-rica, em que todos os bens sociais seriam distri-buídos de forma aleatória e provisória.

Todas as quatro propostas pertencem clara-mente ao campo da esquerda, na medida em quebuscam realizar uma sociedade que amplie aigualdade material de seus integrantes, ficando aomenos implícito que a privação relativa geradapela desigualdade é um obstáculo para o desfru-te da liberdade. Todas também indicam – emmaior ou menor medida, mas ao menos indicam –que é necessária uma intervenção estatal correti-va permanente, restringindo a esfera das trocaseconômicas e, assim, impedindo o retorno dadesigualdade.

Como contraponto, uma quinta utopia éacrescentada, correspondendo ao extremo opostodo espectro político. Os anarcocapitalistas desejama universalização do mercado, que passaria a pro-ver mesmo as funções estatais mais básicas, comojustiça e segurança.1 Diferindo até de economistasultraliberais como Ludwig von Mises, FriedrichHayek, Milton Friedman e James Buchanan – que,no entanto, formam o alicerce intelectual da dou-

trina – e de filósofos como Robert Nozick, semfalar de figuras mais bizarras como a influenteescritora de ficção científica e líder messiânica AynRand, eles defendem a abolição do Estado. Emboraa formulação mais elaborada esteja provavelmentena obra de Murray Rothbard, a melhor síntese foiformulada por outro economista estadunidense,David Friedman (filho de Milton Friedman).

Nas próximas seções, apresentarei e discuti-rei brevemente as cinco correntes, resumindo suasdiferenças na conclusão. Começo com os anarco-capitalistas, passando em seguida pelo socialismode mercado, sociedade de tempo liberado, rendabásica universal e, por fim, sociedade lotérica,numa ordem que segue apenas os caprichos daargumentação. Antes, porém, é necessário enten-der o significado de “utopia” e situar a discussãoem outra, mais ampla, sobre justiça e organizaçãosocial.

Justiça e utopia

Embora seja arriscado fazer esse tipo de ava-liação sem um prévio estudo aprofundado, érazoável pensar que a carga semântica associada àpalavra utopia é antes negativa do que positiva. Àdireita, há a célebre crítica de Karl Popper ao cará-ter inerentemente totalitário do pensamento utópi-co, que “tenta realizar um estado ideal, usando umprojeto de sociedade como um todo; e isso exige oforte regime centralizado de uns poucos” (Popper,1974 [1945], vol. I, p. 175). Uma crítica que vai rea-parecer, por exemplo, em Ralf Dahrendorf, paraquem a utopia “é, pela natureza da idéia, umasociedade totalitarista” (Dahrendorf, 1991 [1990], p.81); e que é desenvolvida sobretudo por RobertNozick, crítico do caráter uniformizante e inflexí-vel da utopia, uma sociedade “estática e rígida,sem oportunidades ou expectativas de mudançaou progresso e nenhum meio de seus próprioshabitantes escolherem novos padrões” (Nozick,1991 [1974], p. 352).

À esquerda, o utopismo foi anatematizado porMarx, que o via como uma etapa anterior do pen-samento operário, superada na época do socialismocientífico. Enquanto os utopistas fantasiavam sobrea sociedade futura, Marx julgava que era necessáriodepreendê-la do movimento histórico real:

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Para nós, são utopistas aqueles que separam as for-mas políticas de seu fundamento social e as apre-sentam como dogmas abstratos e gerais. [...] Ocomunismo alemão é o inimigo mais determina-do de todo utopismo e, longe de excluir o desen-volvimento histórico, ele se funda em primeirolugar sobre tal desenvolvimento (Marx, 1976[1848], p. 79).

Embora, no seio do socialismo ou mesmodo marxismo, seja possível encontrar pensadoresque concedem uma valoração positiva à utopia,como Ernst Bloch, a vertente dominante pareceser a adesão ortodoxa ao campo oposto, da “ciên-cia”.2 A linguagem corrente, por sua vez, associautopia e utópico predominantemente ao sentidode “irrealizável” e “quimérico”.

Neste artigo, no entanto, uso o termo utopiade uma forma que se pretende agnóstica em rela-ção à viabilidade das propostas de transformaçãoda sociedade. Utopia adquire o significado de umnorte para a organização/reorganização da estrutu-ra social: “a visão de futuro sobre a qual uma civi-lização baseia seus projetos, estabelece seus obje-tivos ideais e constrói suas esperanças” (Gorz,1988, p. 22). A definição realça o aspecto de inde-terminação histórica e o caráter normativo da pro-posta utópica. No sentido que Gorz empresta aotermo, uma utopia provavelmente não será passí-vel de concretização plena. Mas é útil por fornecerdiretrizes que orientam a produção de uma novasociedade, mais próxima do ideal. A utopia dire-ciona a ação política e potencializa a insatisfaçãocom o mundo existente.

Um crítico da utopia – neste sentido da pala-vra – pode argumentar que a busca do ideal ina-tingível acaba por fechar os olhos do utopistapara ações mais corriqueiras que podem surtirefeitos benéficos no imperfeito mundo concreto(Nove, 1989 [1983], pp. 364-365). A resposta a estacrítica passa pela demonstração do caráter realistada utopia, que deve ser uma extrapolação a partirde um movimento real. O “político em ação” dafórmula de Antonio Gramsci define o utopista nosentido proposto por Gorz: “O político em ação éum criador, um suscitador; mas não cria do nada,nem se move no vazio túrbido dos seus desejos esonhos. Baseia-se na realidade fatual” (Gramsci,1929-1935, p. 43).

Por outro lado, é preciso observar que a de-núncia do caráter totalitário da utopia, feita pelopensamento conservador, exclui, ela própria, odever-ser da esfera política. Como afirma um his-toriador do pensamento utópico,

[...] a invenção utópica mostra-se cúmplice dainvenção do espaço democrático. De fato, é apenascom a invenção deste espaço que a sociedade sedá a representação de ser fundada apenas sobre elamesma, sobre sua “vontade” livremente expressa efundadora de sua ordem. De pronto, este espaço seoferece como um espaço social a modelar, a gerar,a reinventar (Baczko, 1984, p. 144).

A narrativa utópica afirma a sociedade huma-na como auto-instituída, isto é, regida por normasque as mulheres e os homens se deram e, se qui-serem, podem modificar. Em qualquer projeto po-lítico transformador existe, ao menos em germe, aprojeção de uma sociedade nova, que nunca serealizou. Caso isto não esteja presente, a disputapolítica se reduz à mera alocação de recursos.3

Considerando adequada a caracterização daspropostas em discussão como utópicas, é possívelpassar para a análise de sua relação com o debatesobre justiça, que é um dos eixos principais da teo-ria política das últimas décadas. Seu ponto de par-tida é, como se sabe, Uma teoria da justiça, oinfluente livro de John Rawls (1997 [1971]), que sus-citou uma diversidade de interpretações e polêmi-cas. Sem entrar nos meandros da teoria rawlsiana e,muito menos, nas transformações que ela sofre atése cristalizar numa síntese posterior (Rawls, 2000[1993]), é razoável destacar dois aspectos. Primeiro,embora seja delineada uma estrutura básica justapara a sociedade em termos bastante abstratos, elase ajusta bem à combinação entre economia capi-talista e Estado de bem-estar. De fato, apesar deRawls produzir uma teoria igualitária da justiça, oprincípio da diferença admite desigualdades que,no final das contas, revertem em favor dos maisdesafortunados – o que é a justificativa padrãopara a manutenção da propriedade privada e dacompetição mercantil, que combateriam a pregui-ça e a acomodação, beneficiando a inovação, oprogresso e a prosperidade para todos. Os meca-nismos de bem-estar, por sua vez, garantem a cadaum o usufruto das liberdades básicas.

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Os pensadores à direita, entre os quais sedestacou Nozick, criticaram Rawls por ele se com-prometer com um padrão final de distribuição queexigiria uma intervenção constante para retificar osresultados da livre interação dos agentes (Nozick,1991 [1974], cap. 7). De acordo com esta concep-ção, dado um ponto de partida equânime, seguidopor trocas livres, qualquer resultado alcançadodeve ser considerado como justo – ainda que oazar ou a incompetência condenem alguns a situa-ções muito piores do que as de outros. O pensa-mento utópico e o modelo de Rawls são criticadosindistintamente, por afetarem a liberdade dosagentes na busca por uma padrão “adequado” dedistribuição dos bens sociais.

À esquerda, a igualdade postulada pela teo-ria rawlsiana da justiça é, em geral, julgada insu-ficiente. Nem todos os autores, cujas propostasutópicas são discutidas aqui, se engajaram numainterlocução explícita com Uma teoria da justiça –é mais clara em Barbara Goodwin e em PhilippeVan Parijs, cuja defesa mais conhecida da rendabásica universal nasce em resposta a um artigo deRawls (Van Parijs, 1997 [1991]) –, mas ela está pre-sente em todo o ambiente da discussão.

O segundo aspecto a ser destacado, aindamais importante para a presente discussão, é queo esforço de Rawls se dirige à formulação de umateoria da justiça que seja neutra em relação àsdiversas concepções de bem existentes na socie-dade. A boa sociedade não é aquela que realizaalgum valor, mas a que permite que cada um per-siga livremente o bem que deseja. A neutralidadevalorativa de Uma teoria da justiça foi questiona-da, uma vez que se apóia em pressupostos forte-mente individualistas (e que faz implicitamente datolerância a virtude social por excelência). Demaneira ainda mais aguda, o artifício apresentadopor Rawls para alcançar a neutralidade – a famo-sa posição original, sobre a qual se estende o “véuda incerteza” quanto às preferências individuais –foi acusado de introduzir concepções insustentá-veis sobre a constituição do self e a relação entreindivíduos e coletividades (Sandel, 1998).

Como norma, no entanto, a busca da neutrali-dade valorativa triunfou. Com duas notáveis exceções– a proposta de sociedade de tempo liberado deGorz e a sociedade lotérica de Goodwin –, as utopiasaqui analisadas manifestam-se como neutras em rela-

ção aos valores que realizariam. Elas permitiriam aampliação do espaço de liberdade de cada indivíduo,que então buscaria promover seus próprios objetivos.Gorz, ao contrário, preenche essa busca com umconteúdo – o autodesenvolvimento humano – reve-lando, assim, sua vinculação com a tradição marxista.E Goodwin recusa validade à própria idéia de umaconcepção pessoal de bem, estabelecendo comovalor a diversidade de experiências de vida.

Cabe notar, por fim, que as propostas aquicaracterizadas como utópicas desenvolvem as ins-tituições sociais que gostariam de ver implantadascom muito maior detalhamento do que fazemRawls e teóricos similares. Mais do que princípiosabstratos, elas indicam mecanismos concretos quegerariam determinados efeitos. O plano, decerto,é apresentado com grande dose de vagueza e oreconhecimento de que ainda restam muitos pas-sos antes de ser possível levá-lo à prática; nadapróximo de um Fourier, que já assinalava os quar-teirões de Paris em que seriam erguidos os seusfalanstérios. Ainda assim, há uma diferença mar-cante, que permite lhes atribuir o adjetivo “utópi-cas” como característica distintiva em relação aconstruções teóricas mais abstratas.

Mercado sem Estado

Um dos traços fundantes do pensamentoliberal, em suas diversas vertentes, é a contraposi-ção entre o espaço das relações impositivas (oEstado) e o espaço das trocas consensuais entreagentes livres (o mercado); ou, para usar as pala-vras de Milton Friedman (1985 [1962], p. 21), a“direção central usando a coerção” e a “coopera-ção voluntária dos indivíduos”. Aceitando estacaracterização das duas esferas e também o pres-suposto de que a liberdade individual é o bem aser maximizado, segue-se que o Estado deve serminimizado – o menor Estado que seja capaz degarantir a continuidade da vida social é o melhorpossível. O problema é saber onde se encontraeste mínimo, que às vezes pode ser bastante alar-gado. No protoliberalismo de Thomas Hobbes, porexemplo, as forças centrífugas presentes nas cole-tividades humanas são tão poderosas que, paraalcançarmos um mínimo de coesão social, precisa-mos abdicar a quase toda liberdade pessoal.

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Os anarcocapitalistas chegam à conclusãooposta: o Estado pode ser abolido, não como nosonho de anarquistas e comunistas, porque suasfunções seriam desempenhadas pela livre asso-ciação dos produtores, mas porque todas as fun-ções do Estado seriam assumidas pelo mercado.O raciocínio subjacente às suas propostas é deuma simplicidade estonteante; um de seus divul-gadores diz que se limita a levar algumas afirma-ções familiares da retórica política “à sua conclu-são natural” (D. Friedman, 1989 [1973], p. xiii). Asimplicidade, que consiste muitas vezes em ignorarquaisquer efeitos colaterais e não recuar um milí-metro da estrita aplicação de um número reduzidode princípios, é a fonte do fascínio que o projetoanarcocapitalista desperta em muita gente – e tam-bém, é claro, de muito de sua fraqueza teórica.

O primeiro princípio é o antipaternalismo,que se expressa na crença absoluta na máxima uti-litarista de que cada um é o melhor juiz de seus pró-prios interesses4 – isto é, qualquer medida que impli-que uma proteção externa às pessoas é inaceitável.Isto inclui, por exemplo, a proibição de determina-das drogas, o veto ao comércio de órgãos ou aimposição do uso de cinto de segurança, mas tam-bém a previdência social compulsória ou a legisla-ção trabalhista. Se alguém prefere consumir todasua renda a garantir algum tipo de aposentadoriano futuro, trata-se de uma decisão presumivel-mente esclarecida e cabe ao próprio indivíduoarcar com as conseqüências, esperando pela cari-dade alheia ou, caso esta esteja ausente, padecen-do de privações na velhice. Da mesma forma, tra-balhadores e patrões são livres para aceitarem ounão os termos de seus contratos, sendo inadmissí-vel que existam cláusulas impostas externamente.5

Um pensador liberal mais sofisticado, comoStuart Mill, debate-se com o problema das conse-qüências sociais das decisões individuais, o que oleva a buscar o melhor equilíbrio entre o máximode liberdade pessoal e a manutenção do bem-estar coletivo (Mill, 1991 [1859]) – uma questãoque não existe para os anarcocapitalistas, com suavisão atomística da sociedade. Essa visão tambémexila a solidariedade como componente atuante enecessário dos agregados humanos; mesmo queela possa existir, na forma da caridade ou doamor ao próximo, trata-se sempre de uma escolhapessoal do agente, reversível a cada momento (D.

Friedman, 1989 [1973], pp. 15-16). Não há nadaque implique a responsabilidade mútua entre osparticipantes de uma mesma sociedade. Por fim,é uma moldura teórica que impede que se colo-que em pauta a formação das preferências, vistasimplicitamente como emanações naturais de cadaindivíduo.

O princípio que complementa o antipaterna-lismo é a inviolabilidade da propriedade privada,um conceito que se estende o suficiente paraincluir o controle sobre o próprio corpo e, dessaforma, todas as liberdades individuais. Trata-se deuma versão do “individualismo possessivo”, identi-ficado no pensamento de Hobbes e Locke porMacpherson (1962): meu corpo é minha proprie-dade e, se eu posso movimentá-lo livremente, éporque posso dispor livremente de todas asminhas propriedades. Daí já se depreende o coro-lário da ausência de Estado, uma vez que a extra-ção compulsória de impostos, sem a qual nenhumEstado sobrevive, atinge a propriedade privada.Sobretudo, a intervenção estatal, regulando o com-portamento dos indivíduos, fere sua liberdade.

Os ultraliberais têm em comum a proposta deredução extrema das áreas da vida social em que oEstado se faz presente, mesmo aquelas em que aação estatal é considerada indispensável por quasetodos. Milton Friedman, por exemplo, não julgaadequado coibir o que hoje se chama de “exercícioilegal da medicina”: se alguém se faz passar pormédico e prejudica um doente, “trata-se de exem-plo de contrato voluntário, e de trocas entre opaciente e o médico. Sob esse ponto de vista, nãohá motivo para intervenção” (1985 [1962], p. 135).Como princípio abstrato, caberia ao Estado apenasgarantir o cumprimento dos contratos e proteger oscidadãos contra o uso da força por parte de outros:“o Estado mais amplo [do que o mínimo] violará osdireitos das pessoas” (Nozick, 1991 [1974], p. 9).Apenas como princípio abstrato, convém notar, jáque na prática (e a associação de Milton Friedmancom o regime de Pinochet serve de perfeita ilus-tração) seus aplausos costumam ir para Estadosaltamente repressivos, que coíbem a ação dos gru-pos que perturbariam o funcionamento do merca-do, como os sindicatos de trabalhadores.

A diferença dos anarcocapitalistas é que elesjulgam que mesmo essas funções mais básicas po-dem ser cumpridas pelo mercado. David Fried-

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man e Murray Rothbard imaginam um esquemaem que agências privadas de proteção venderiamseus serviços aos particulares, cumprindo as fun-ções hoje reservadas a organismos estatais comoa polícia. Já que existiriam várias firmas compe-tindo entre si, todas teriam incentivos para proveros melhores serviços aos menores custos. Numasociedade livre, a proteção

[...] deve ser suprida por pessoas ou firmas que (a)ganham seu rendimento voluntariamente, e nãopor coerção, e (b) não se arrogam, como fazem osEstados, um monopólio compulsório da polícia ouda proteção judicial. Apenas esta provisão libertá-ria do serviço de defesa seria compatível com ummercado livre e uma sociedade livre. Assim, firmasde defesa deveriam ser tão livremente competiti-vas e não-coercivas contra não-invasores quantotodos os outros fornecedores de bens e serviço nomercado livre. Serviços de defesa, da mesmaforma que todos os outros serviços, seriam vendi-dos no mercado e apenas vendidos no mercado(Rothbard, 1970, pp. 1-2).

O risco de uma guerra entre as agências deproteção também é esconjurado graças às virtu-des intrínsecas do mercado: guerras são custosase, portanto, empresas que visam ao lucro as evi-tariam (D. Friedman, 1989 [1973], p. 116). Em vezda guerra, elas buscariam árbitros para resolver osconflitos. Mais uma vez, haveria um mercadocompetitivo de árbitros, isto é, de sistemas legaise de cortes de justiça. Os árbitros fazem a lei, asagências de proteção escolhem árbitros caso acaso, para cada um de seus conflitos, e os indiví-duos privados escolhem agências de proteção.(Um modelo similar geraria um mercado depadrões monetários concorrentes.)

As deficiências do modelo são evidentes – asrespostas a uma questão mais espinhosa, porexemplo a possibilidade de as agências tiraniza-rem seus clientes, “vendendo” proteção à maneirada Máfia, são sempre insuficientes. Baseiam-se nacrença não-embasada de que a ação “honesta” ésempre mais lucrativa do que a criminosa (Idem,pp. 121-122) ou, então, de que o mercado é em simesmo um sistema de controle, com as agênciasconcorrentes se mobilizando para impedir a açãoda que se tornou fora-da-lei (Rothbard, 1970, p.5). Mesmo dentro do campo do ultraliberalismo,

foi demonstrado que há uma tendência natural detransformação da proteção (e da lei) num mono-pólio, caso em que está formado um Estado defato (Nozick, 1991 [1974], pp. 27-32).

Há ainda o problema da defesa externa,outra área em que mesmo os ultraliberais reco-nhecem a necessidade da presença estatal (mono-polística, aliás). David Friedman o deixa em sus-penso e apresenta o único momento de dúvidade sua construção teórica, admitindo que talvezalguma forma rudimentar de Estado fosse inevitá-vel enquanto persistisse a ameaça soviética (D.Friedman, 1989 [1973], cap. 46).

Assim, a obstinação cega com que os anar-cocapitalistas se aferram a seus princípios faz comque sua teoria tenha um grande grau de simplici-dade – tudo é apenas deduzido de uns poucosargumentos iniciais. A principal pressuposição, deque as trocas mercantis são sempre livres de coer-ção e mutuamente vantajosas (Rothbard, 1962,vol. I, pp. 71-72), nunca é questionada. Masmesmo para o mercado ideal com que operam aafirmação é insustentável; e os mercados reaisestão sempre muito longe do ideal (ver Boron,1994 [1991]). A desigualdade material representauma séria limitação das possibilidades de açãopara os que estão no seu pólo negativo, cons-trangendo-os ao engajamento em trocas que, emoutras circunstâncias, não aceitariam. Na ausênciade qualquer mecanismo de proteção social ou dedistribuição de riqueza, que o modelo veta ex-pressamente, uma parcela significativa da popula-ção ficaria em situação de penúria.

Um subtexto importante do argumento dosanarcocapitalistas, assim como de outros ultralibe-rais, é a denúncia da democracia. Sua inferioridadecomo forma de alocação de recursos é ressaltadacom freqüência, com auxílio de uma literatura pró-xima, que assinala a irracionalidade inerente aosprocessos de decisão pelo voto (Riker, 1982). Asdecisões democráticas ferem o dogma da liberda-de individual, pois são impostas a todos, mesmoaos que discordam delas, e tendem a ser irrespon-sáveis, na medida em que o voto é um recurso semcustos para quem o usa. Além disso, num argu-mento surpreendente, David Friedman (1989 [1973],p. 104) diz que a democracia maximiza as desi-gualdades, em comparação com o mercado. Afinal,se eu tenho o dobro da renda de outra pessoa, eu

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posso comprar apenas o dobro de bens, não todos;mas quem pertence a um partido com o dobro devotos vence todas as eleições. O argumento é espe-cialmente capcioso, quaisquer que sejam as críticasque as democracias majoritárias possam merecer:um partido torna-se vitorioso com os votos de umamultiplicidade de pessoas, ao passo que a riquezapode estar concentrada nas mãos de um único oude pouquíssimos indivíduos.

Na utopia anarcocapitalista, todas as relaçõesinterpessoais são, em princípio, instrumentais. Oslaços entre os indivíduos se resumem àqueles queeles estabelecem voluntariamente, por intermédiode seus contratos. Esta total independência, imagi-na-se, leva ao máximo de liberdade, sempre enten-dida em seu sentido negativo, de ausência de coer-ção externa. Os benefícios esperados, portanto,concentram-se na ampliação da liberdade indivi-dual. Os argumentos que, por vezes, indicam osbenefícios econômicos esperados pela ausência deintervenção estatal na esfera produtiva são estrita-mente secundários. A sociedade esperada – se éque o termo “sociedade” ainda se aplica de manei-ra legítima – é vantajosa por ser livre, e continuariasendo vantajosa caso, por algum motivo, se tornas-se menos próspera.

Como desenho de uma nova forma de orga-nização humana, a proposta exige uma transfor-mação bastante radical do mundo que temoshoje. Friedman e Rothbard não se preocupamcom a questão da transição – como, partindo dassociedades atuais, poderemos chegar na utopia.O caráter radicalmente anticonservador do anar-cocapitalismo é expresso na afirmação de que,como o pior que pode acontecer é ter que rees-tabelecer o Estado, nada se perderia tentando(Rothbard, 1970, p. 6). Trata-se da perfeita nega-ção do elemento central do credo do conserva-dorismo político, de Burke a Oakeshott, que é oentendimento da fragilidade da construção deuma ordem social estável, fruto da experiênciaacumulada de gerações, e, portanto, da necessi-dade da maior cautela ao alterá-la.

Socialismo de ações

Para os anarcocapitalistas, como visto, ovalor do mercado reside antes na liberdade que

ele proporciona do que em sua eficiência supe-rior. O mesmo é verdade para outros liberaisextremados. Em meados do século XX, esta era alinha principal de argumentação dos integrantesda Sociedade de Mont Pèlerin, como se evidenciapela leitura do panfleto fundador sobre O cami-nho da servidão (Hayek, 1944). Sua doutrina foiconstruída no momento em que políticas de inter-venção estatal levavam o capitalismo a uma fasede acelerado crescimento (Anderson, 1995), aomesmo tempo em que os países do socialismoreal, sob regime de planejamento centralizado,também experimentavam um rápido desenvolvi-mento econômico. Não era nada evidente, muitopelo contrário, que a competição mercantil fossea forma mais eficaz de organização econômica.

Décadas depois, com a estagnação e o fimdo socialismo real e a crise do modelo keynesia-no de gestão do capitalismo, firmou-se rapida-mente um quase consenso de que os mecanismosde mercado eram imprescindíveis para a condu-ção eficiente da economia e que, por trás da“anarquia da produção capitalista” criticada pelomarxismo, escondia-se uma racionalidade sutilque nenhuma outra forma de gestão seria capazde alcançar. A concorrência garantiria, sobretudo,o incentivo à inovação e o feedback sobre as pre-ferências do público. Mesmo adversários do capi-talismo julgavam necessário garantir o funciona-mento do mercado numa sociedade alternativa.Ao contrário dos liberais, não depositavam fé emsuas virtudes emancipadoras e temiam a desi-gualdade gerada por ele. O mercado era tidocomo necessário exclusivamente por seus efeitosna produção econômica.

A questão que se impõe, desta perspectiva, écomo conciliar uma economia mercantil com aigualdade social. As soluções mais simples são tam-bém as que apresentam com maior nitidez suas defi-ciências. Por exemplo, impor um teto ao cresci-mento das empresas, como propôs Miliband (1994),significa refrear o incentivo à inovação exatamentedaqueles que se mostraram mais eficientes.

A proposta de John Roemer (1994, 1996) éuma tentativa criativa de superar o problema. Emresumo, seu projeto de socialismo com mercadopassa pela universalização da propriedade dosmeios de produção, mediante um sistema enge-nhoso que isola o mercado de capitais do mercado

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de bens de consumo. Existiriam dois tipos demoeda em circulação na sociedade. Com uma, odinheiro comum, seriam pagos os salários e com-prados os bens de consumo. A outra (“cupons”)serviria apenas para a aquisição de ações de empre-sas. Para os cidadãos, as duas moedas seriam estri-tamente inconversíveis entre si. Apenas as firmaspoderiam trocar cupons por dinheiro do Tesouro,para investir. Trata-se, portanto, de um retorno àidéia de pluralidade monetária, presente no debatepolítico ao menos desde os anos de 1930, quandofoi lançada na França por Jacques Duboin.

Os cupons seriam distribuídos de formaigualitária; cada cidadã ou cidadão receberia umacerta quantidade ao nascer (ou ao atingir a maio-ridade), para ingressar no mercado de ações. Deacordo com a competência e a sorte com que fos-sem feitos os investimentos, o indivíduo alcança-ria menor ou maior participação no mercado;porém, não poderia utilizar seu dinheiro-de-con-sumo para comprar mais ações. Aquelas que pos-suía, por sua vez, poderiam ser reconvertidas emcupons, mas não seriam transmitidas a outras pes-soas por nenhum meio – nem venda, nem doa-ção, nem herança. A propriedade das ações gera-ria o direito de receber dividendos, estes sim emforma de dinheiro-de-consumo, e de eleger aomenos parte da direção da empresa.

No modelo, os incentivos da competiçãomercantil estão plenamente mantidos, paraempresas e investidores. Estes últimos preferirãoinvestir nas firmas que apresentam melhores pers-pectivas de geração elevada e continuada de divi-dendos. As empresas, por sua vez, precisam apre-sentar um desempenho satisfatório para atrair osinvestidores. Além disso, o direito de participaçãona escolha da direção garante que nenhuma firmaserá indiferente aos interesses daqueles que nelainvestiram os seus cupons.

O modelo também garantiria a realização dosocialismo. Não a forma tradicional de socialismo,que exige a propriedade pública dos meios deprodução, mas pelo menos a realização daquelesque seriam os três objetivos principais de umasociedade socialista, definidos como igualdade deoportunidades para a auto-realização e o bem-estar, igualdade de oportunidades para a influên-cia política e igualdade de status social (Roemer,1996, p. 10). O primeiro objetivo seria uma igual-

dade de oportunidades para a auto-realização e obem-estar, não a igualdade efetiva, pois, casocontrário, seria necessário despender recursossociais gigantescos para aqueles que buscassemobjetivos demasiado caros e irrealistas. Assim,cabe a cada um optar por formas de realizaçãopessoal e padrões de bem-estar mais razoáveis. Ainfluência política também só é igualitária naoportunidade, na medida em que dependerá daescala de prioridades de cada cidadã ou cidadãoo esforço despendido para transformá-la em pre-sença real na arena política.

Apenas a igualdade de status é substantiva.O resultado é um ideário socialista bastante simi-lar ao liberal, no qual também é valorizada a exis-tência de oportunidades iguais, complementadapela igualdade “perante a lei”, isto é, uma igual-dade de status legal. Embora o valor da igualda-de de oportunidades não seja desprezível, ela écompatível com uma desigualdade real gritante.Como observa Phillips (1999, p. 60), “uma igual-dade de recursos inicial, combinada com umaoportunidade igual de fazer o que quisermos comeles, não é capaz de satisfazer os requerimentosda igualdade” real. A autora está comentando pro-postas como a de Ronald Dworkin, que enfatizama responsabilidade moral pelas escolhas, mas acrítica vale também para a utopia de Roemer.

Como o espaço da política está em aberto emseu projeto, nada impede a construção de umarede de proteção social, ao estilo do Welfare State.Mas tampouco algo o exige. Na ausência atémesmo de uma cláusula rawlsiana de diferença, osocialismo de ações pode lançar na miséria aque-les que manejaram mal seus investimentos,enquanto os mais habilidosos ou afortunados fica-rão ricos com os dividendos recebidos. Seus filhosnão receberão uma parcela maior do controle dasempresas, já que cupons ou ações não são trans-missíveis por herança, mas herdarão outras pro-priedades e serão beneficiados pelas vantagensadvindas da condição material dos pais – educaçãode qualidade superior, acesso a bens culturais etc.

Como solução parcial para esses problemas,Roemer estabelece que os investimentos nãoseriam feitos em empresas específicas, mas obri-gatoriamente em fundos mútuos, administradospor especialistas. A medida contempla dois objeti-vos. O primeiro, “paternalista”, é impedir que os

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cidadãos invistam muito mal os seus cupons. Osegundo é evitar que surjam firmas de fachada,que reinvistam muito pouco ou quase nada egerem muitos dividendos, o que seria uma formadisfarçada de conversão dos cupons em dinheiro-de-consumo (1996, p. 21). A preocupação é voltadasobretudo para os mais velhos, que – dada a proi-bição da herança dos cupons – teriam um horizon-te temporal drasticamente reduzido e pouquíssimoincentivo para aguardar retornos de longo prazo.6

Portanto, os fundo mútuos são obrigados a incluirinvestidores de idades variadas.

A obrigatoriedade dos fundos mútuos reduzos benefícios esperados pelo modelo, uma vezque a figura do investidor ousado e inovador,apostando na multiplicação do seu próprio patri-mônio, é substituída pelo gerente de fundos,burocrata que cuida da riqueza alheia. A partici-pação do cidadão-acionista na gestão das empre-sas também é descartada, substituída por umimplausível monitoramento dos fundos (Simon,1996, p. 53). Além do mais, o gerente é pressio-nado para adotar uma postura mais conservado-ra, já que uma de suas funções é impedir a dila-pidação dos investimentos dos cotistas.

O mix de investidores de idades diferentesnos fundos não impediria uma preferência gene-ralizada por retornos rápidos, isto é, pela conver-são dos cupons em dinheiro-de-consumo. Osmais jovens podem receber grandes dividendosde imediato e aplicar o dinheiro para consumofuturo (Idem, pp. 47-48) – isto sem levar em contaum viés muito comum na escala de preferências,que leva os indivíduos a optar por uma gratifica-ção imediata e segura em lugar de outra, poste-rior e incerta, ainda que maior. Em suma, a pro-posta exige tamanho controle público, para evitarfraudes ou irracionalidade excessiva no investi-mento, que as vantagens esperadas em termos deinovação e concorrência tendem a desaparecer.

Há ainda o problema da transição. Embora,como diz um crítico, seja “autoconscientementeconservadora pelos padrões socialistas”, aindaassim a proposta exige uma transformação socialradical, que afeta os interesses cruciais da classecapitalista (Brighouse, 1996, p. 192). Afinal, é ne-cessário expropriar os meios de produção, antesde distribuir seu controle entre a população, pormeio dos cupons. De início, Roemer imaginava

que as sociedades em transição do mundo ex-comunista estariam em boas condições para imple-mentar o projeto. Nelas, não havia nenhum capita-lista privado a ser prejudicado; era a propriedadepública que seria distribuída. Mas aquele momen-to histórico passou.

As críticas mais graves à proposta deRoemer, porém, dizem respeito aos valores queela promove. De forma geral, o socialismo demercado é criticado por remover apenas umafonte de injustiça e desigualdade (a propriedadedo capital), mantendo outras, como as causadaspela diferença de talentos; e, sobretudo, por man-ter um “misto de ganância e medo” como moti-vação para os atores econômicos (G. A. Cohen,apud Callinicos, 2000, p. 121). Isto é insatisfatórioporque, no ideal que norteia seus projetos dereconstrução da sociedade, os socialistas buscam“não apenas novas formas de propriedade, mastambém um novo mecanismo dirigente, umanova racionalidade, uma nova lógica econômica”(Wood, 1995, p. 292).

O socialismo de ações não contempla nadadisso. Como observa um de seus comentaristas,enquanto alguns socialistas julgam que o mercadopode ser permitido para sanar falhas do controledemocrático da economia, para Roemer é o contrá-rio: as relações mercantis predominam, com as inter-venções democratizantes servindo para corrigir even-tuais desfuncionalidades (Wright, 1996, pp. 123-124).

Sua utopia prevê a manutenção, entre osagentes econômicos, das mesmas motivaçõesexistentes sob o capitalismo – como se elas nãopudessem ser transformadas, isto é, como se asmotivações humanas fossem dissociadas das insti-tuições sociais existentes. De fato, na medida emque todos se tornariam jogadores da bolsa devalores, ela criaria uma “cultura de loteria”, poucocompatível com a solidariedade ou com a partici-pação política ampliada (Simon, 1996, pp. 51-52).

Em comparação com outros projetos utópi-cos – como o de Gorz, analisado na próximaseção –, o de Roemer mostra-se mais “realista” etambém mais factível, em especial se é deixado delado o problema da transição. Sua sociedade émoldada para o indivíduo auto-interessado da filo-sofia utilitarista, em busca da ampliação de seusbenefícios ao menor custo. O preço a pagar pelo“realismo”, porém, é alto. Objetivos como a supe-

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ração da alienação e do fetichismo da mercadoria,a ampliação da liberdade individual ou mesmo aigualdade material substantiva são deixados delado, em prol da promoção de um único e limita-do valor, a igualdade de oportunidades.

A sociedade dual

Do ponto de vista dos valores que promove,do ideal que deseja alcançar, a utopia propostapor André Gorz representa uma atualização docomunismo desenvolvido marxista. A sociedadedual que ele propõe, na qual o tempo livre é omaior bem social, apresenta-se, tal qual o comu-nismo de Marx, como uma possibilidade históricaaberta pelo desenvolvimento das forças produti-vas. Num caso como no outro, a nova sociedadepropiciaria a superação da alienação e a realizaçãodas múltiplas potencialidades dos seres humanos.Embora os sobrelanços utópicos sejam maioresem Marx do que em Gorz – Marx tende a ver ocomunismo como uma inevitabilidade histórica edesenha-o com um nível muito mais elevado deauto-realização dos indivíduos –, o sentido ético éo mesmo (Miguel, 1999b).

Seguindo Josué Pereira da Silva (2002), érazoável distinguir três momentos na obra de Gorz.Os primeiro livros, redigidos nos anos de 1950,têm uma perspectiva sartreana e foco no problemada alienação. A segunda fase preocupa-se com aformulação teórica de uma estratégia revolucioná-ria apropriada para as sociedades capitalistasdesenvolvidas, nas quais a classe operária deixoude viver em situação de pobreza extrema. Apósum período de transição, em meados dos anos de1970, quando publicou obras com preocupaçãoecológica, o terceiro momento da reflexão deGorz é inaugurado com Adeus ao proletariado, em1980. É quando ele rompe com a identificação doproletariado como agente revolucionário, questio-na a centralidade do trabalho nas sociedades con-temporâneas e apresenta seu projeto utópico.

Ele parte da avaliação de que o desenvolvi-mento recente das forças produtivas, sobretudocom a informática e a automação, tornou possí-vel, pela primeira vez na história da humanidade,o triunfo – ainda que parcial – da liberdade sobrea necessidade. A reprodução de “uma sociedade

viável, que disponha de tudo o que é necessárioe útil à vida”, exige cada vez menos trabalho(Gorz, 1980, p. 91). Mas o surgimento das condi-ções materiais que permitem libertar mulheres ehomens de uma grande parcela do fardo do tra-balho não reverteu concretamente em ampliaçãoda liberdade para os trabalhadores. Há, de umlado, a permanência da “ideologia do trabalho”,que faz do pleno emprego a bandeira maisimportante do movimento sindical. E, de outro, asclasses dominantes têm interesse na manutençãodas relações de dominação que caracterizam otrabalho assalariado.

O resultado é uma situação sem sentido –mas cujo nonsense por vezes nos escapa, tão cor-riqueira se tornou: o trabalho deixou de ser meiopara se tornar fim, isto é, a sociedade produz paratrabalhar (para “gerar empregos”), em vez de tra-balhar para produzir (Idem, p. 92). O reconheci-mento cabal desse paradoxo deve levar à consta-tação de que é necessário substituir a busca dopleno emprego por um projeto de sociedade maiscondizente com as novas realidades produtivas. Talprojeto é, para Gorz, o de uma “sociedade dual”.

A proposta prevê a criação de dois setoresprodutivos distintos, um “autônomo” e outro “hete-rônomo”. O setor heterônomo da economia perma-neceria guiado pela necessidade, com produtoressubordinados e trabalho anônimo, indiferenciado.Utilizando as mais modernas técnicas industriais,este setor produziria em massa os produtos essen-ciais, que seriam distribuídos a toda população.Todo o cidadão teria o dever de fornecer algumashoras de trabalho socialmente útil, produzindo nosetor heterônomo. Gorz fala em 20 mil horas de tra-balho em toda a vida – contra as mais de 57 milhoras atuais de alguém que trabalhe quarenta horaspor semana, durante trinta anos, onze meses porano. O indivíduo poderia concentrar suas horas“socialmente úteis” em períodos de trabalho intensoou dispersá-las em parcelas diárias suaves.

Esse setor heterônomo (ou alienado) éimprescindível porque “as forças produtivasdesenvolvidas pelo capitalismo trazem a suamarca impressa a tal ponto que não podem sergeradas ou colocadas em operação segundo umaracionalidade socialista” (Idem, p. 26). A alienaçãoé inerente à fábrica com linha de montagem – e,ao mesmo tempo, esta fábrica é necessária por

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proporcionar economias crescentes de trabalhohumano. Não se trata, portanto, da apropriaçãocapitalista: a lógica própria da grande indústria éalienante. O trabalho morto força o trabalho vivoa servi-lo. “Em resumo”, diz Gorz, sumarizandoteses de Marx sobre a grande indústria, “o pro-cesso de dominação da natureza pelo homem(através da ciência) torna-se a dominação dohomem pelo processo de dominação” (Gorz,1988, p. 74, ênfase suprimida).7

Ele acredita que “a única chance de abolir asrelações de dominação é reconhecer que o poderfuncional é inevitável e conceder-lhe um lugar cir-cunscrito” (Gorz, 1980, p. 81). O trabalho heterô-nomo seria restrito à sua esfera imprescindível – agrande indústria – permitindo o surgimento de umsetor livre, de trabalho autônomo, que propiciaria aauto-realização humana. Nele são abolidos ou mini-mizados os critérios “econômicos” de produtivida-de, eficiência e massificação. A atividade é criativa,porque ali se produz o que não é necessário:

As atividades do tempo livre, na mesma medidaem que são produtivas, têm como objeto a auto-produção do facultativo, do gratuito, do supér-fluo, em suma, do não-necessário que dá à vidaseu sabor e seu valor: tão inútil quanto a vidamesma, ele [o “não-necessário”] a exalta como ofim que funda todos os fins (Gorz, 1983, p. 117).

No tratamento que dá à relação entre os doissetores da economia, Gorz reelabora uma idéiapresente em O capital: é além do trabalho deter-minado pela necessidade que “começa o desen-volvimento das forças humanas, considerado umfim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade,que, porém, só pode florescer com aquele reino danecessidade como sua base” (Marx, 1988 [1861-1879], livro III, p. 1044). A proposta de sociedadedual também apresenta amplas semelhanças comHabermas; a manutenção de um setor de trabalhoheterônomo corresponde, na obra de Habermas,ao reconhecimento da legitimidade de uma esferadominada pela razão instrumental, o mundo sistê-mico (das relações econômicas e de poder). Aesfera da atividade autônoma, na qual Gorz enfati-za os aspectos da convivencialidade, é similar ao“mundo-da-vida”, onde deve florescer a ação comu-nicativa. Gorz assinala tais semelhanças, embora cri-

tique o conceito habermasiano de mundo-da-vida,que designa

[...] não, de fato, o mundo da experiência vividaoriginal, mas o do vivido mediado pelos meiossociais de sua expressão formalizada, em particu-lar pelos estereótipos da linguagem, e despojadade sua negatividade (Gorz, 1988, pp. 217-218).

Tal diferença é importante “numa situaçãoem que não se trata de reproduzir a sociedade,mas de concebê-la em nova base e nova pers-pectiva” (Idem, p. 213). Mas, ainda assim, perma-nece uma concordância essencial entre Gorz e oHabermas da fase crítica. Para ambos, a deturpa-ção essencial da vida moderna é a transferênciade critérios próprios à esfera heterônoma para aesfera autônoma – a “colonização do mundo-da-vida pela razão instrumental”, no jargão haberma-siano; a instrumentalização das atividades gratui-tas pela racionalidade econômica, segundo Gorz.

Entendida como uma possibilidade histórica,a sociedade dual precisa sobrepor-se a outraspossibilidades igualmente presentes. Gorz identi-fica uma saída conservadora para a crise da socie-dade do trabalho, que passa pela ampliação dahegemonia da razão instrumental (ou “racionali-dade econômica”, em seus termos) em todos osespaços da vida humana. Os empregos estáveisde tempo integral tornam-se privilégio de umaelite de trabalhadores bem-pagos. À sua volta,uma periferia de subempregados executa os ser-viços subalternos. A borda externa dessa periferiainclui marginalizados permanentes, mantidos pormecanismos do Estado de bem-estar, como oseguro social.

Até aqui, a imagem é semelhante à do merca-do de trabalho sob o regime de acumulação capita-lista flexível, tal como apresentada, por exemplo, porDavid Harvey (1989, pp. 143-144). A esse quadro,Gorz acrescenta a expansão do campo das ativida-des assalariadas, proposta por economistas comosolução para a crise de desemprego. Isso inclui,numa ponta, o pagamento de salários às donas-de-casa e às mães; na outra, a expansão do mercadode mães de aluguel, prostitutas, serviçais, genteque fica à disposição da elite empregada nas ati-vidades produtivas (Gorz, 1988). Essa imagem é ade uma sociedade em que todo o avanço tecno-

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lógico não resulta em um segundo a mais detempo livre para ninguém. A elite trabalha semcessar para manter seu consumo suntuoso e seusserviçais. Estes estão presos à necessidade imperio-sa de “ganhar a vida”. E os desempregados, entre-gues à boa-vontade do Estado, não têm condiçõesmateriais de transformar o tempo de não-trabalhoem tempo de autodeterminação.

A manutenção artificial de uma sociedadedo trabalho também está ligada à difusão de umaideologia de “mais é melhor”, núcleo da própriaracionalidade econômica (Idem, p. 154).8 Damesma forma que produz para criar trabalho, ocapitalismo contemporâneo passa a “produzirconsumidores para suas mercadorias, necessida-des que correspondam aos produtos de produçãomais rentável” (Gorz, 1983, p. 50). Essa ideologiaimpregna os trabalhadores que, por isso, se man-têm acorrentados ao trabalho, mais horas do queo necessário, para consumir mais do que preci-sam ou mesmo podem. Esses trabalhadores trans-ferem a racionalidade econômica para a esfera dotempo livre, do lazer, das atividades que deveriamutilizar outra racionalidade, que deveriam perse-guir fins em si mesmos. Inverter essa direção,subordinar o setor heterônomo à atividade auto-determinada, é o objetivo da utopia dualista.

Fica evidente que os operários não podemser os promotores da instauração de uma socieda-de de tempo liberado. Ao menos nos países cen-trais, uma parcela cada vez menor da populaçãoencontra-se empregada em período integral naindústria de transformação. Os operários remanes-centes, orgulhosos de sua posição, permanecemfiéis à ideologia do trabalho e não se identificamcom o projeto de uma sociedade de tempo libera-do (Idem, p. 78). A utopia proposta por Gorzencontraria ressonância no que ele chama de“não-classe dos não-trabalhadores”: desemprega-dos e semi-empregados que cumprem tarefas deocasião, intercambiáveis e com vínculos emprega-tícios precários. O trabalho, para eles, não é umespaço de realização e sim “um tempo morto àmargem da vida” (Gorz, 1980, p. 89). Mas a “não-classe” não está dotada de nenhuma missão teleo-lógica similar à do proletariado. Ao mesmo tempoem que prega a transformação da sociedade, Gorzconfessa não saber “que forma pode tomar essaação nem que força política é capaz de conduzi-

la” (Idem, p. 22). A noção de “não-classe dos não-trabalhadores”, avançada provocativamente emAdeus ao proletariado, é abandonada nas obrasposteriores.9

Além da ausência de um sujeito coletivocapaz de encampar o projeto, existem problemasno próprio funcionamento da sociedade projetada.O mais importante deles diz respeito à existênciade toda uma gama de serviços socialmente úteis,embora não estritamente produtivos, que conso-mem muita mão-de-obra, como ocorre nas áreasde saúde e educação. A solução é a criação demais uma esfera de trabalho, “comunitária” (Gorz,1983, p. 126) – um terceiro setor, dito intermediá-rio, para a utopia dualista. O cumprimento de tare-fas na esfera comunitária não seria obrigatório,como no setor heterônomo. Haveria um incentivo:quem participasse do setor intermediário ganhariao direito de receber bens ou serviços numa quan-tidade equivalente às horas trabalhadas.

Essa solução, na verdade, expande o espaçodo trabalho heterodeterminado, alienado, que nãoé um fim em si mesmo. O objetivo seria externo àtarefa: a obtenção dos bens e serviços trocáveispelas horas despendidas. Por isso, Gorz acabareduzindo sua idéia de setor intermediário oucomunitário à posição de “segunda melhor opção”.A plena realização da utopia exige que essas ativi-dades sejam assumidas pelo setor autônomo.Professores, médicos e profissionais semelhantes,bem como artistas e cientistas, encontrariam – comohoje, em certa medida, já encontram – no cumpri-mento de suas tarefas uma satisfação que independeda recompensa monetária. É a satisfação proporcio-nada pelo reconhecimento do discípulo, do pacienteou do público. A universalização dessas relaçõesexige uma generosidade recíproca alheia à racionali-dade econômica hoje hegemônica (Gorz, 1988).

Mas Gorz também procura mostrar que tra-balhos especializados como o do médico, do jor-nalista ou do professor não exigem dedicaçãopermanente. Esta seria uma idéia difundida pelaelite dos especialistas bem-pagos, desejosos demanter seu monopólio sobre fatias do mercadode trabalho. Portanto, esses especialistas devemobter tempo para desenvolver outras atividades –e, inversamente, suas especialidades devem ficarao alcance de qualquer indivíduo desejoso deencontrar nelas alguns de seus caminhos para a

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auto-realização. Não se trata de eliminar a espe-cialização necessária ao cumprimento de tarefascomplexas, mas de democratizar o acesso a essessaberes (Gorz, 1983, p. 77).

A utopia dualista de Gorz mantém, assim,um compromisso essencial com a concepçãomarxista da auto-realização humana, que ocorrepor intermédio do trabalho (entendido em oposi-ção ao consumo):

A exigência de “trabalhar menos” não tem porsentido e por finalidade “descansar mais”, mas“viver mais”, o que quer dizer: poder realizar porsi mesmo muitas coisas que o dinheiro não podecomprar e mesmo uma parte das coisas que eleatualmente compra (Gorz, 1980, p. 11).

Também como Marx, Gorz aposta no surgi-mento de um novo homem, capaz de usufruir aspossibilidades que lhe são abertas pelo campo daatividade autônoma. Esse surgimento seria possi-bilitado pela limitação da racionalidade econômi-ca à sua esfera própria. O não-surgimento dessenovo homem acabaria por transformar a utopiadualista em algo semelhante à sociedade do tra-balho alienado atual – pela via da esfera interme-diária de trabalho “comunitário” monetarizado.Neste caso, o triunfo da racionalidade econômicaocorreria sem constrangimentos sistêmicos, porescolha dos indivíduos. Eles usariam a liberdadeconquistada para optar livremente pela servidão.Essa eventualidade pode ser descartada a prioriapenas na medida em que se tenha a visão deuma “natureza humana” que, uma vez liberadados constrangimentos atuais, ansiaria por oportu-nidades de pleno desenvolvimento de suaspotencialidades criativas. Tal é a visão que, mal-grado as críticas reiteradas à noção de “naturezahumana”, subjaz à percepção de Gorz, como deMarx, sobre a auto-realização das mulheres e doshomens.

Renda para todos

De todas as propostas analisadas aqui, arenda básica incondicional (ou “salário cidadão”)é a que encontra maior receptividade entre inte-

lectuais e políticos, sobretudo nos países daEuropa ocidental. É necessário, em primeiro lugar,diferenciá-lo de outras políticas de transferênciadireta de renda do Estado para os cidadãos. Osprojetos de “imposto negativo”, patrocinados porultraliberais como Milton Friedman, visam a subs-tituir os serviços prestados pelo Estado (educaçãoe saúde públicas, por exemplo) por uma quantiaem dinheiro entregue àqueles com menor renda.O seguro-desemprego é um auxílio presumivel-mente temporário para quem se encontra sem tra-balho, pensado ainda dentro da lógica de um idealde pleno emprego. Medidas como bolsa-escola ourenda mínima, defendidas no Brasil por líderespolíticos como (respectivamente) os senadoresCristovam Buarque e Eduardo Suplicy, são paliati-vos destinados aos mais pobres, em alguns casosobjetivando assegurar-lhes condições para a inser-ção no mercado de trabalho. O “segundo cheque”de Guy Aznar, que será discutido adiante com umpouco mais de detalhe, busca a redução da jorna-da de trabalho daqueles que estão empregados.

A renda básica incondicional ou universal,por sua vez, é aquilo que seu nome indica – umatransferência de renda permanente do Estadopara todo e qualquer cidadão, independentemen-te de suas características pessoais, de possuir ounão outras fontes de renda, de estar ou não dis-posto a aceitar um emprego, caso tenha esta pos-sibilidade. Todos recebem pelo simples fato deserem cidadãos. A renda básica incondicional seestabelece como alternativa tanto à utopia esbo-çada por Gorz como à saída conservadora para acrise da sociedade do trabalho.

Seu objetivo é libertar as pessoas da imposi-ção do trabalho assalariado – ou devido a umapostura filosófica, ou por se considerar, como Offe,Mückenberger e Ostner (1996 [1989], pp. 208-209),que tentativas de retorno ao pleno emprego sãoilusórias, economicamente indesejáveis e ecologi-camente nefastas. Embora compartilhe do objetivo,Gorz mostrou-se avesso à alternativa, recusando odesenho de sociedade que ela projetava. Na basedesta rejeição, estava seu entendimento de que aparticipação na atividade produtiva funda o direi-to de cidadania.

De forma algo bombástica, o principal difu-sor da renda básica universal, o filósofo belgaPhilippe Van Parijs, secretário do Basic Income

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European Network (BIEN), afirma que a propostapode realizar o “velho ideal emancipatório asso-ciado ao movimento comunista, sem exigir paratanto nada semelhante a um modo socialista deprodução” (Van Parijs, 1992, p. 466) – ou, então,que seria “uma via capitalista para o comunismo”(Van Der Veen e Van Parijs, 1987). O salário cida-dão aboliria o jugo da necessidade, já que nin-guém mais seria obrigado ao trabalho para suprirsua subsistência – na medida do desenvolvimen-to econômico, estaria garantido até mesmo o con-forto, já que a idéia é oferecer aos cidadãos a“maior renda possível”. Quem desejasse, porém,poderia buscar um emprego, trocando parte deseu tempo livre por maiores possibilidades deconsumo. A organização capitalista ou socialistada economia é, a princípio, indiferente, emboraVan Parijs julgue que, por motivos práticos, seriacapitalista. Nenhum dos países de economia esta-tizada remanescentes no final do século XX pos-suía um grau de desenvolvimento suficiente paratentar implementar um tal projeto.

O caráter universal da renda básica impedeque seus beneficiários sejam estigmatizados, comoocorre com os recebedores de seguro-desempre-go, ou que se tornem presas do clientelismo polí-tico. Também garante o respeito à privacidade e àsliberdades civis de todos, ao passo que muitosprogramas sociais hoje existentes envolvem omonitoramento dos favorecidos, para garantir queeles atendam aos critérios de elegibilidade para oprograma, quando não os obrigam a cumprir algunsdeveres (Van Parijs, 1997 [1991], p. 178). Assim, be-neficiários do seguro-desemprego são vigiados paraque não exerçam atividade remunerada ou, então,não podem recusar qualquer oferta de trabalho quelhes seja feita; famílias que recebem bolsa-escoladevem provar que seus filhos não faltam às aulas;agentes do governo verificam as condições de po-breza dos candidatos aos programas assistenciais.

Não se trata, portanto, de um programacompensatório, destinado a garantir condições devida aos “excluídos” ou a resolver a crise da ofer-ta de emprego. É a busca da ampliação da liber-dade efetiva de todos os cidadãos, incluindo aliberdade de não ganhar o pão com o suor dorosto, hoje desfrutada apenas por alguns poucosrentistas ou herdeiros. Nesse sentido, se distanciade projetos de garantia de emprego, pelo qual o

Estado assumiria a responsabilidade de oferecertrabalho e salário a todos os que necessitassem(Mitchell e Watts, 2004). Ao contrário do que afir-mam mesmo alguns de seus defensores (Noguera,2001), a renda básica não seria apenas mais exe-qüível e facilmente aplicável do que a garantia deemprego. Na perspectiva de Van Parijs, ela apre-senta um ideal superior, passando do direito aotrabalho para o direito ao não-trabalho.

De início, a renda básica universal poderiaaté ser inferior ao montante socialmente conside-rado necessário para uma vida digna (Van Parijs,1992, p. 472). No entanto, é possível objetar que,neste caso, o projeto não atingiria seus fins. As pes-soas continuariam constrangidas a procurar empre-go assalariado e a alocação universal de renda ser-viria apenas para reduzir o custo da mão-de-obra,beneficiando o capital, mas não os trabalhadores.Apenas quando atinge o limiar do “mínimo neces-sário” o salário-cidadão cumpre a função de forta-lecer os (possíveis) assalariados, que estão emmelhor posição de barganha, já que passam a tera opção de não aceitar nenhum emprego. A partirdaí, quanto mais alta a alocação de renda, maior opoder de negociação dos trabalhadores.

Apesar do que afirma Van Parijs, é difícil vis-lumbrar a convivência, a longo prazo, dessemodelo com o capitalismo. Um dos traços funda-mentais da ordem capitalista é a desigualdadeestrutural que força os não-possuidores de meiosde produção a venderem sua força de trabalho aocapital, premidos pela necessidade de subsistên-cia e pela existência do exército industrial dereserva. A renda básica vive, então, um dilema,pois, quando está abaixo do nível de subsistência,funciona “como um subsídio para empregadorespagando baixos salários”, e se sobe acima da sub-sistência “rompe o funcionamento da economiacapitalista” e passa a enfrentar a oposição ferozdos interesses contrariados (Callinicos, 2000, p.118). A avaliação da força da oposição da bur-guesia é essencial para considerar as dificuldadesde implementação do projeto – se é uma meraquestão tributária (qual o nível de imposto neces-sário para a concessão de renda básica a todosem determinado patamar, um problema técnicodo qual Van Parijs e outros se ocupam bastante,mas que aqui não interessa) ou praticamente umadesapropriação.

UTOPIAS DO PÓS-SOCIALISMO 105

Cumpre observar ainda que o modelo exigeque uma determinada quantidade de pessoas acei-te os incentivos para se integrarem ao trabalhoprodutivo e, assim, gerar a riqueza necessária parasustentar a renda universal de todos. Isto significaa manutenção do padrão aquisitivo que caracteri-za os homens e as mulheres das sociedades capi-talistas. Por outro lado, há a preocupação dedefender a legitimidade ética da opção por nãotrabalhar, em termos do respeito liberal às dife-rentes concepções do que é a boa vida. Aquelesque decidem permanecer apenas com o salário-cidadão não são parasitas que vivem às custas dariqueza produzida por outros, mas indivíduos que,ao perseguirem sua própria concepção do bem –que valoriza o tempo livre, acima do consumo oudo conforto material –, permitem que outros, comconcepções de bem diversas, se assenhorem dospostos de trabalho existentes (Van Parijs, 1991).

Numa veia diversa, o sociólogo polonêsZygmunt Bauman apresentou uma defesa da rendabásica universal em termos de suas conseqüênciaspolíticas. Ela reduziria a incerteza existencial que,hoje, mina o espaço público e “reintroduziria padrõesmorais na vida social, substituindo o princípio dacompetição pelo da participação” (Bauman, 2000[1999], p. 186).10 No momento em que o Estado secompromete a garantir a todos os cidadãos o neces-sário para sua sobrevivência digna, ele reassume seupapel de promotor do bem comum. Ao que parece,Bauman julga que, assegurado o provimento de suasnecessidades, as pessoas vão, como que automatica-mente, ampliar a participação política. Para susten-tar tal conclusão, ele afirma que “o direito universalà renda vai baixar as apostas no jogo do consumo,uma vez que entrar nele não será mais uma ques-tão de sobrevivência” (Idem, p. 190). A idéia de quea sociedade de consumo é fundada na busca desobrevivência de suas vítimas, porém, soa bizarra enão é explicada pelo autor.

Gorz criticou duramente a proposta derenda básica, encarando suas conseqüências polí-ticas de forma oposta à de Bauman. Ela contri-buiria para a atomização dos indivíduos, eliminan-do o espaço público associado às atividadeseconômicas, sem apresentar outro em troca (Gorz,1991, p. 174). Mais importante ainda, de seu pontode vista, era a objeção moral. A alocação universal“permite à sociedade não se ocupar da repartição

eqüitativa do fardo” do trabalho (Idem, p. 176). Asociedade seria cortada em dois, alguns permane-cendo vinculados a um ethos aquisitivo, buscandomaior retribuição monetária e, assim, maiores pos-sibilidade de consumo, e outros se eximindo dedar sua contribuição para o bem-estar coletivo.

Embora pudesse até eliminar a condenaçãoda maioria da população ao assalariamento, arenda básica permaneceria compatível com a mone-tarização das relações sociais e não contribuiria paraa geração de uma nova solidariedade, que superas-se o individualismo egoísta das sociedades capitalis-tas. Excluídos pela sociedade, que os condena àmarginalidade, os beneficiários do rendimento uni-versal receberiam do Estado um auxílio destinandoa garantir sua subsistência, sem reinseri-los no teci-do social. Em suma, o projeto desempenharia umpapel conservador, visando apenas a “tornarsocialmente suportável a dominação [da racionali-dade econômica] sobre a sociedade” (Gorz, 1988,p. 165) e negando a uma parcela da população o“direito de acesso à esfera econômica pública pormeio do próprio trabalho [que] é indissociável dodireito à cidadania” (Idem, p. 175).

Aceitável, no máximo, como medida de tran-sição, enquanto o trabalho é redistribuído, a medi-da reaparece de forma bem diferente na figura do“segundo cheque”, a proposta de Guy Aznar (1995[1993]) endossada por Gorz. Trata-se de uma com-pensação social, que recompõe a renda caso aredução da jornada implique em redução do salá-rio. Mas, ao contrário da renda básica universal, orendimento concedido pelo Estado não está des-vinculado da participação de todos na esfera pú-blica do trabalho. Trata-se de um incentivo para aredução da jornada nas empresas, de forma quemais pessoas participem da produção; “seu objeti-vo não é a distribuição de renda, mas a distribui-ção de trabalho” (Silva, 2002, p. 191).

Em sua obra mais recente, porém, Gorzrecuou desta posição. Ele passou a admitir que osprojetos de renda básica universal são politica-mente mais viáveis; ao mesmo tempo, reconhe-ceu que a realidade das economias contemporâ-neas, “pós-fordistas”, impõe graves obstáculos aocálculo do tempo de trabalho, necessário em seuesquema anterior. Embora sejam acrescentadascertas condições para a boa implementação deuma política de alocação incondicional de renda,

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incluindo a busca de novas formas de cooperaçãoe de sociabilidade, tal mudança representa umsério aviltamento – em nome do “realismo” – doprojeto utópico desenvolvido nos escritores ante-riores, fato do qual, aliás, o autor demonstra estarconsciente (Gorz, 1997, pp. 130-156).11

Como visto, a desvinculação entre o trabalhoe o direito à subsistência, que está no cerne daproposta de renda básica incondicional, ampliariade forma substantiva a capacidade que a maioriadas pessoas tem de decidir como deseja tocar aprópria vida, isto é, “a liberdade real de levar aprópria vida da forma como se desejar” (VanParijs, 1992, p. 470). Mas tal liberdade é entendidacomo pertencendo exclusivamente à esfera priva-da, sem que sejam previstas medidas de amplia-ção da autonomia coletiva no Estado ou na gestãoda economia.

Da mesma forma que o modelo de Gorz, arenda básica universal pressupõe uma sociedadealtamente industrializada, com elevadíssima pro-dutividade, de modo que o trabalho de alguns sejasuficiente para suprir as necessidades de todos.Para o resto do mundo, parece que a única alter-nativa é trilhar o mesmo caminho dos países capi-talistas desenvolvidos e, lá chegando, adotar seupróprio sistema de renda incondicional. Por vezes,os autores que defendem a proposta apresentamum reconhecimento protocolar dos problemas dajustiça internacional, apenas para afirmar que elesnão serão abordados (Van Parijs, 1991, p. 102). Noentanto, trata-se de uma questão importante, aindaque se deixe de lado a idéia de imperialismo, istoé, a investigação sobre o papel da transferência deriquezas dos países pobres na prosperidade dochamado “primeiro mundo”.

Um dos mais graves problemas enfrentadosnos países para os quais a proposta de renda bási-ca se dirige é a presença de um vasto contingentede imigrantes de países pobres, que não são admi-tidos à cidadania, estão submetidos a condiçõesprecárias de vida e tornam-se o bode expiatóriodo discurso xenófobo da extrema-direita. Umapolítica de salário-cidadão não pode acolhê-los,pois pressionariam em excesso os recursos dispo-níveis – ainda que admita os atuais residentes, nãoteria como absorver novas levas de imigrantes,seguramente ainda mais numerosas, pois atraídaspela própria existência da renda incondicional.

Restam duas alternativas: um extremo rigorpolicial, para impedir a entrada e permanência deestrangeiros, ou um sistema com duas castas, noqual os estrangeiros não receberiam o benefício darenda básica e continuariam dependentes da vendada sua força de trabalho para sobreviver. No pri-meiro caso, a utopia tomaria a estranha forma deuma sociedade de vigilância permanente, com umaparato repressivo alargado. (Não custa observarque, nas condições de liberdade da obrigação detrabalhar que o modelo produz, a manutenção detal aparato seria extremamente dispendiosa.) Nosegundo caso, há a geração de uma profunda desi-gualdade social, um verdadeiro apartheid entrecidadãos e imigrantes. E a simples presença dostrabalhadores estrangeiros, ainda constrangidospelo aguilhão da necessidade, anularia um dosbenefícios esperados, o fortalecimento da posiçãodos vendedores de mão-de-obra vis-à-vis o capital.

A loteria total

A proposta utópica mais radical, que implicana transformação mais extensa da ordem social, éa de Barbara Goodwin. Ela consiste em fazer dossorteios o meio universal de alocação de recursosescassos, a começar pelas posições de poder eprestígio. O apelo ao acaso é, em geral, conside-rado uma confissão da falência no uso da razão.No entanto, a escolha aleatória é um método útilem situações nas quais os custos da decisão sãodemasiado elevados ou ninguém quer arcar com aresponsabilidade moral por ela (Elster, 1991[1988]). As loterias são igualitárias, imunes à cor-rupção e evitam o conflito sobre critérios de mere-cimento (Elster, 1992, p. 72). Nas últimas décadas,diversos pensadores têm proposto a adoção desorteios como forma de combater os vícios encon-trados na seleção eleitoral dos representantes polí-ticos (Miguel, 2000).

A proposta de Goodwin é bem mais ousadado que o mero sorteio de legisladores. Seu ele-mento básico é o entendimento radical de quenossas vidas são em grande medida condiciona-das por um acaso inicial, a “loteria do nascimen-to”. Ela determina nossas características genéticase, muito mais importante, a posição de onde par-timos na sociedade, que faz com que herdemos

UTOPIAS DO PÓS-SOCIALISMO 107

não apenas bens, mas status, formação cultural,títulos e contatos com outras pessoas. A família éo mais renitente instrumento de perpetuação dedesigualdades sociais, justamente por desempe-nhar múltiplas funções – afetivas, econômicas,educacionais e outras –, o que faz com que suges-tões para que seja abolida, à la Platão, em geralpareçam muito pouco atraentes.

Se não é possível eliminar a loteria do nas-cimento, então o caminho é reduzir ao máximo asua influência. Ela deixa de ser “a” loteria, aquelaque define de uma vez por todas as possibilida-des de cada um no espaço social, para se tornarapenas a primeira de uma longa série. A inspiraçãode Goodwin é “La lotería en Babilonia”, um contode Borges (1974 [1944]), que ela lê, com exagero,como uma sátira ao capitalismo, denunciando queas hierarquias sociais não refletem mérito ou esco-lhas, mas apenas o acaso (Goodwin, 1992, p. 28).No conto, insatisfeitos com o método convencionalde premiação das loterias, os babilônios adotam ummodelo mais emocionante, em que passam a sersorteadas também punições. Ao final, toda a ordemsocial está dependente dos resultados lotéricos.

À maneira das narrativas utópicas renascen-tistas, Goodwin abre seu livro com a descrição deAleatoria, sociedade imaginária na qual tudo édecidido pela sorte, do recrutamento das forçaspoliciais ao número de filhos de cada mulher, dequem serão os magistrados à casa em que cadaum vai residir. Nos capítulos seguintes, analisa ospontos fortes e fracos do projeto, avaliando po-tencialidades e limites da introdução da loteriacomo mecanismo de distribuição de bens e posi-ções nos diversos campos sociais.

A sociedade lotérica representa uma tentati-va de combinação entre os valores da diversidadee da igualdade. Os projetos socialistas tendem,muitas vezes, a uma equalização excessiva dascondições de existência, o que, na concepção deGoodwin, representa uma perda. A convivênciacom uma multiplicidade de modos de vida é umvalor em si mesma e deve ser preservada; comoela depende da diferença não apenas cultural,mas também de recursos materiais, implica namanutenção de um grau razoavelmente elevadode desigualdade econômica.

Para garantir que o caráter igualitário da uto-pia vingará, Goodwin imagina três mecanismos

principais. Primeiro, a dissociação entre as diver-sas vantagens de cada posição no espaço social.Uma das peculiaridades mais perversas do mundoem que vivemos é que os desprivilegiados e osprivilegiados tendem a se manter como tal emtodas as dimensões. Os trabalhos mais gratifican-tes são em geral aqueles com maior prestígiosocial e com melhores salários; portanto, seus ocu-pantes costumam morar em casas maiores e maiscômodas, que são também mais bem localizadas;os ocupantes destas casas melhores possuem maisitens de conforto e consomem produtos de melhorqualidade, têm mais acesso ao lazer e à cultura eviajam com mais freqüência. A lista de vantagenscumulativas é quase interminável. O projeto deGoodwin separa trabalho de renda (e, portanto,de consumo) e também de moradia. Os diferen-tes empregos – estimulantes ou enfadonhos, satis-fatórios ou desgastantes – serão distribuídos deforma aleatória e os diferentes salários também,mas em sorteios independentes. O mesmo valepara as habitações.

O segundo mecanismo é a rotatividade. Asdiferentes posições serão redistribuídas periodica-mente, o que garante que a diversidade de modosde vida não será experimentada apenas ao nívelsocial, mas também pessoal. Embora, num determi-nado momento, A esteja em situação inferior a B,em termos de status ou renda, em seguida as posi-ções podem se inverter. A rotação é caracterizadacomo sendo o método justo de distribuição parabens indivisíveis de uso exclusivo (Goodwin, 1992,p. 58), como é o caso dos bons empregos e dasboas moradias. (A renda poderia sofrer divisão eqüi-tativa, mas feriria a diversidade procurada e enfra-queceria o primeiro mecanismo compensatório.)

O terceiro mecanismo, enfim, é a limitaçãoda aleatoriedade. Não será possível que a sorte(ou o azar) perpetue alguém numa posição; afinal,o objetivo é fazer com que cada pessoa experi-mente diferentes tipos de trabalho e de modos devida, recebendo uma parcela equilibrada das van-tagens e desvantagens (Idem, p. 9). O resultado éuma espécie de “aleatoriedade vigiada”. Embora aautora critique Rawls por postular implicitamenteque todos os participantes de sua “posição origi-nal” teriam aversão ao risco, evitando produziruma sociedade injusta por temor de ficar no pólonegativo da injustiça (Idem, p. 32), este mecanis-

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mo reduz de forma brutal as incertezas existentesem sua utopia lotérica.

Embora o ponto não seja discutido porGoodwin, a implementação de sua utopia exige aestatização dos meios de produção – ainda quealguns possam ficar na posição de rentistas eoutros, de administradores de empresas, as posi-ções devem estar disponíveis para outros no mo-mento do sorteio seguinte. Além dos proprietários,a proposta enfrentaria a oposição dos detentores dopoder políticos, assalariados com alta renda, ocu-pantes dos melhores empregos, enfim, de todosaqueles que de alguma maneira se encontram emposições de elite. A autora está consciente do fato,mas evita qualquer discussão sobre a transição.

Os dois principais problemas da sociedadelotérica são identificados com facilidade. O pri-meiro diz respeito às ocupações especializadas(algo que também afeta, embora em menor medi-da, a utopia de Gorz). Seria razoável preencherpor sorteio funções delicadas e que exigem anosde preparo prévio, como, digamos, as de enge-nheiro nuclear ou neurocirurgião?

Em favor da proposta de Goodwin, é neces-sário dizer que, por mais vistosas que sejam, taisprofissões ocupam uma parcela bastante minoritá-ria da população economicamente ativa. Os pos-tos de trabalho mais numerosos exigem relativa-mente pouca qualificação – trabalhos braçais,empregos de escritório e assemelhados. No entan-to, são em geral as ocupações mais especializadasque atraem a imaginação das pessoas e conferemcharme à alternativa lotérica. Pouca gente se entu-siasmaria com a possibilidade de experimentarposições sucessivas de pedreiro, motorista, bancá-rio, porteiro e faxineiro, sonhando antes em sercosmonauta, médico, piloto de avião, violoncelis-ta ou trapezista.

Por um lado, é possível argumentar que, damesma forma que atividades hoje corriqueirasforam no passado exclusivas de especialistas (lere escrever, dominar uma língua estrangeira, usaro computador), podemos banalizar várias compe-tências que ainda se mantêm exclusivas, muitasvezes por pressão de profissionais desejosos demanter seus privilégios – um ponto que é desen-volvido por Gorz (1988, pp. 101-102). Por outro,a sociedade deve estar adaptada à polivalência deseus integrantes. Por exemplo, um sistema legal

simplificado facilita o trabalho de juízes e advo-gados selecionados por sorteio (Goodwin, 1992,p. 8). Mas restam muitos casos que não são pas-síveis de resolução nem pela disseminação dossaberes necessários, nem pela redução da com-plexidade das tarefas. Para estes, o que se apon-ta é uma solução intermediária: os profissionaistambém executarão, eventualmente, trabalhosnão-especializados (Idem, p. 11).

Fica claro que a utopia é projetada para umasociedade extremamente próspera, capaz tanto deprover os múltiplos treinamentos necessários paraque cada indivíduo exerça suas atividades sucessi-vas, como de dispensar o trabalho de profissionaiscom alta qualificação. Mesmo no caso de profis-sões menos especializadas, o custo da anulaçãosistemática da experiência acumulada pode sersignificativo. O desperdício de recursos humanosé alto, bem como o risco de incompetência noexercício das diversas funções – este último, agra-vado pela inexistência de grupos com continuida-de significativa em qualquer campo de atividade.12

O segundo grande problema da utopia lotéri-ca é a ausência de liberdade individual. Mesmodeixando de lado as medidas mais extremas –como a imposição do número de filhos por mulher–, a ausência da possibilidade de escolher uma car-reira ou o local de moradia reduz, de forma muitosignificativa, a capacidade que cada pessoa tem deescolher o rumo da própria vida (ou, para usar alinguagem da filosofia política, de perseguir suaprópria concepção de bem). A resposta à críticapassa pela negação da possibilidade de liberdadereal, com uma radicalização da denúncia (marxis-ta, mas não só) da vacuidade das liberdades for-mais sob as condições da sociedade capitalista.

O que limita a liberdade é a escassez, o fatode que, para darmos curso às nossas escolhas, pre-cisamos de meios de que muitas vezes não pode-mos dispor. Hoje, a escassez é “resolvida” pelomercado, isto é, em prejuízo sistemático dos maispobres e dos mais frágeis (Idem, p. 178). Paraestes, a liberdade de controlar a própria vida é umaquimera. De maneira esquemática, é razoável dizerque o comunismo marxista imaginava a completasuperação da escassez (e, portanto, a liberdadetotal para todos). O igualitarismo socialista distribuiriqueza e escassez entre todos, em parcelas idênti-cas, gerando uma sociedade com baixa diversida-

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de. Descrente na abundância absoluta vislumbradapor Marx e descontente com a mediocridade quedetecta no socialismo, a utopia lotérica descarta aliberdade individual como valor, por irrealizável.Em seu lugar, deseja dar a cada um e a cada umaoportunidades para seguir variados caminhos, emvez de ter uma única trajetória de vida, determina-da pela loteria do nascimento.

Conclusão

A exposição evidenciou que as cinco pro-postas utópicas aqui discutidas são bastante dife-renciadas quanto ao estatuto político que pos-suem. O projeto de Barbara Goodwin é umaprovocação intelectual, sem intenção de se tornaruma diretriz para a ação política, destinada arevelar as perversidades da ordem liberal. Emsentido oposto (e com maior repercussão), oanarcocapitalismo cumpre função similar. Longede ser um modelo que almeja ser implementado,é um reforço ideológico para a equação que igua-la o mercado à liberdade e o Estado, à opressão.Numa curiosa transformação, quando se lembradas denúncias contra o “comitê gestor dos inte-resses da burguesia”, no século XIX e primeirametade do século XX, são as propostas vinculadasao ideário histórico da esquerda que exigem umaparelho estatal consideravelmente fortalecido,capaz de reger toda a organização social.

Já o projeto de renda básica universal,desenvolvido em grande detalhe e com diversassimulações por redes de pesquisadores e ativistascomo o BIEN de Phillipe Van Parijs,13 é uma pla-taforma atuante no ambiente europeu ocidental,impondo-se como uma alternativa a ser levada asério no campo político. As utopias de Gorz e,ainda mais, de Roemer não conseguiram alcançartal patamar, embora aspirassem a isso.

O Quadro 1 sintetiza as principais caracterís-ticas dos cinco modelos utópicos estudados. O deGorz destaca-se pela aposta na redução do espaçodas relações instrumentais entre as pessoas, valori-zando a convivencialidade mais solidária, aprecia-da por si mesma e “desinteressada”. Uma preocu-pação similar pode ser vislumbrada no projeto derenda básica universal, mas apenas de forma tênue,e está ausente por completo nos outros.

A solidariedade presente na proposta de VanParijs é “fria”, mediada pelo aparato estatal, reali-zando-se na transferência de riqueza que permitea alguns dispensarem uma obrigação de trabalharque encaram como um fardo. Não há a aposta em– e o estímulo a – trocas diretas generosas entreos integrantes da sociedade, como ocorre na uto-pia dualista. Nesse sentido, o modelo apresenta-do por Gorz implica um desafio muito mais ele-vado, na busca pela construção de um mundosocial diferente. Seu esforço tem como núcleo aredução ao mínimo possível do espaço destinadoà operação dos mecanismos de mercado, enten-didos como alienantes em si mesmos e opostos àinteração humana solidária. Ele se contrapõe nãoapenas aos anarcocapitalistas, como é óbvio, mastambém às outras propostas de esquerda, quemantêm as trocas mercantis, ainda quando asconstrangendo severamente (como no caso deGoodwin).

Assim, Gorz e, em menor medida, Van Parijsencontram-se num pólo, em oposição ao qual estãoos anarcocapitalistas e, com feições bem maismoderadas, Roemer. É a escala relativa à continui-dade ou à transformação das motivações humanasdominantes nas sociedades atuais – questão que,em si, sempre foi crucial para o pensamento utópi-co. Goodwin mantém-se numa posição excêntrica;para ela, a questão das motivações é irrelevante, jáque se trata de impelir todos a experimentaremuma diversidade de modos de vida.

Em todos os cinco modelos utópicos, osproblemas sem resposta são grandes o suficientepara comprometer a realização dos benefíciosesperados. Mas o mesmo pode ser dito das socie-dades em que vivemos; suas promessas (dedemocracia, de liberdade, de segurança, de igual-dade, de abundância, de paz) permanecem emlarga medida não-cumpridas. Talvez seja exagera-do dizer, como fez retoricamente um colaboradorde Gorz, Gunnar Adler-Karlsson, que os proble-mas das propostas utópicas seriam solucionadosse dessa tarefa se ocupasse “um centésimo dopessoal e dos economistas” que hoje se empe-nham na salvação da sociedade atual (apud Gorz,1988, p. 262). Não resta dúvida, por outro lado,que os impasses existentes hoje dificilmente serãoresolvidos no quadro institucional existente – oque não quer dizer que o “sistema” seja incapaz

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de se reproduzir por um período indeterminado,e sim que ele é cada vez mais incapaz de realizaros valores que abraça ostensivamente.

Ao criticar o mundo presente e mostrar queoutras opções são possíveis – ainda que com lacu-nas –, o pensamento utópico cumpre o seu papel,

Quadro 1Comparação entre os Modelos Utópicos

MODELOSBEM A

SER DISTRIBUÍDOMECANISMOS

BENEFÍCIOS

ESPERADOSPROBLEMAS

Anarcocapitalismo(Friedman,Rothbard)

Independência – Universalização das relaçõesde mercado.

– Inexistência deaparatos coercitivos– Plena liberdadeindividual.

– Insegurança social.– Exacerbação dasdesigualdades.– Penúria material reduzcapacidade de gozar dosbenefícios esperados.– Defesa externa.

Renda básicaincondicional(Van Parijs)

Renda – Renda suficiente para umavida digna, distribuída a todosos cidadãos.

– Efetiva liberdade deescolha (trabalhar ounão trabalhar).

– Necessidade demanutenção de incentivosmateriais, sob risco de crisede produção.– Absorção ou contenção deimigrantes.

Socialismode ações(Roemer)

Propriedadedos meiosde produção

– Duplo padrão monetário.– Dissociação entre controledo capital e riqueza material.– Extinção do direito deherança para o controle docapital.

– Efetiva igualdade deoportunidades.– Manutenção dasvantagens da economiade mercado sem adesigualdade que elaproduz.

– Possível incompetênciados investidores ou gestãoburocrática do mercado deações.– Possibilidade de crise dedesinvestimento devido àimpossibilidade de herdar ocapital.– Permanência daalienação no trabalho.

Sociedadedual(Gorz)

Tempo livre – Alocação eqüitativa dotrabalho socialmentenecessário.– Economia “dual”, comsetores heterônomo eautônomo.

– Possibilidade dedesenvolvimento plenodas capacidadesindividuais, graças aotrânsito entre múltiplasocupações.– Justa distribuição dosencargos sociais.– Redução das relaçõespessoais mediadas pelamoeda.

– O modelo não lida acontento com as tarefas queconsomem mão-de-obra deforma intensiva (educação,saúde).– Perda de eficiência edesperdício de recursoshumanos decorrente daausência de especialização.– Absorção ou contenção deimigrantes.

Sociedadelotérica(Goodwin)

Chance – Alocação de bens sociais porsorteios.– Dissociação entre renda,status e conforto.

– Multiplicação dasexperiênciasindividuais.– Combinação deefetiva igualdade comdiversidade social.

– Autoritarismo.– Incerteza extrema.– Perda de eficiência edesperdício de recursoshumanos decorrente daausência de especialização.

UTOPIAS DO PÓS-SOCIALISMO 111

espanando a acomodação diante de conceitos,categorias e formas de reflexão dominantes. Maisdo que legitimar a ordem existente, o discurso daideologia muitas vezes nega viabilidade a qual-quer alternativa: faz com que pensemos que “omundo é mesmo assim” e, por conseqüência, nosconformemos com o jeito que ele é. Por isso, odiscurso anti-ideológico carrega necessariamenteum componente utópico (como já dizia o velhoMannheim). Com suas limitações, com suas imper-feições, em muitos casos mesmo com sua falta deousadia, as propostas de Roemer, Gorz, Van Parijse Goodwin reafirmam este fato.

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Notas

1 Uma observação terminológica: os anarcocapitalis-tas e outros fundamentalistas do mercado gostamde chamar a si mesmos de libertarians, termo queno Brasil vem sendo traduzido por “libertários” (ouentão pelo neologismo “libertarianos”). Mas a pala-vra evoca uma tradição política diversa, dos anar-quistas de esquerda, e contrabandeia a percepçãoideológica de que as relações de mercado são, pordefinição, livres, com a opressão residindo noEstado. Por esses motivos, não será usada no texto.

2 É possível aventar a hipótese de que a maior atra-ção que a utopia vem despertando na esquerdanas últimas décadas – basta lembrar do slogan doFórum Social Mundial, “um outro mundo é possí-vel”, de inegável sabor utopista – está ligada àfalência de seus projetos históricos, motivando aesperança em alternativas aparentemente maisirrealistas.

3 Discuti a trajetória do pensamento utópico emtexto anterior (Miguel, 1999a).

4 Embora a norma principal da ética utilitarista, “amaior felicidade para o maior número”, seja con-denada pelo individualismo radical dos anarcoca-pitalistas.

5 Nozick – que, no entanto, pára um passo antes doanarcocapitalismo, defendendo não a abolição doEstado, mas um “Estado ultramínimo” – chega aafirmar expressamente que uma sociedade livrenão pode impedir que seus cidadãos se vendamem escravidão (Nozick, 1991 [1974], p. 155).

6 Embora freqüentemente ignorada pela discussãopolítica corrente, os horizontes temporais diferen-ciados dos diversos grupos etários levantam umasérie de problemas interessantes para a organiza-ção da democracia e a realização da justiça. Parauma síntese do debate, ver Van Parijs (1998).

7 Gorz revela concordância com uma idéia de Engels,muito criticada, segundo a qual a tirania da grandeindústria é uma necessidade técnica “independente detoda organização social” (Engels, s.d. [1873], p. 186).

8 A visão de Gorz é, neste aspecto, limitada. Mais doque uma ideologia, trata-se de uma necessidadeprópria do capital: “A expansão em si não é ape-nas uma função econômica relativa (mais oumenos louvável e livremente adotada sob esta luzem determinadas circunstâncias, e conscientemen-te rejeitada em outras), mas uma maneira absolu-tamente necessária de deslocar os problemas econtradições que emergem no sistema do capital”(Mészáros, 1995, p. 176).

9 Em seu livro mais recente, ele anota que um “neo-proletariado pós-industrial”, correspondente à não-classe antes indicada, é o protagonista das contes-tações radicais ao capitalismo mundializado (Gorz,2003, pp. 92-93).

10 Na citação, corrigi o equívoco evidente da tradu-ção brasileira, que substitui “competição” por “par-ticipação” e vice-versa.

11 Em seu livro mais recente – no qual o tema é tra-tado apenas superficialmente –, o autor já apre-senta uma adesão à proposta de renda básicaincondicional bem mais desprovida de ressalvas(Gorz, 2003, pp. 99-104).

12 Uma das conseqüências negativas esperadas emcaso de aumento da rotatividade nos cargos públi-cos, por exemplo, é a ampliação do poder da buro-cracia, que teria maior familiaridade com seu traba-lho e, portanto, um saber superior. Como na utopialotérica a burocracia também carece de permanên-

114 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

cia, tal problema não existe, mas ao mesmo tempodesaparecem os benefícios advindos da presençade um grupo com experiência nas suas funções.

13 Parte dos estudos pode ser encontrada na páginado BIEN na internet (www.basicincome.org).

222 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60

UTOPIAS DO PÓS-SOCIALISMO:ESBOÇOS E PROJETOS DEREORGANIZAÇÃO RADICAL DASOCIEDADE

Luis Felipe Miguel

Palavras-chave: Utopia; Socialis-mo; Mercado; Liberdade; Igualdade.

Este artigo analisa propostasutópicas apresentadas nas últimasdécadas, que projetam alternativasao capitalismo diante do colapso daexperiência socialista. Nenhumaalcança a centralidade que o socialis-mo teve, o que se deve menos à inci-piência das formulações do que àausência de conexões com um movi-mento social. São discutidas quatropropostas: o socialismo de mercado(Roemer), que busca combinar a “efi-ciência” do mercado com a garantiade igualdade real; a sociedade detempo liberado (Gorz), que realizariaos objetivos do comunismo desenvol-vido de Marx; a renda cidadã (VanParijs), que também universalizaria apossibilidade de dispor de tempo livre;e a sociedade lotérica (Goodwin), emque os bens sociais seriam distribuídospelo acaso. Como contraponto, é dis-cutida também a utopia anarcocapita-lista, que prevê a absorção de todas asfunções estatais pelo mercado.

POST-SOCIALISM UTOPIAS:PATTERNS AND PLANS OFRADICALLY REORGANIZINGSOCIETY

Luis Felipe Miguel

Keywords: Utopia; Socialism;Market; Freedom; Equality.

This article analyzes utopianproposals presented in the last deca-des that devise alternatives to capi-talism in face of the failure ofSocialism. None of them attains thecentrality that Socialism had, whichis less a sign of their theoreticalweakness than it is a sign of theabsence of connections towardssocial movements. Four proposalsare discussed: market Socialism(Roemer), which attempts to combi-ne market “efficiency” and the gua-rantee of real equality; the society ofliberated time (Gorz), which will rea-lize the aims of Marx’s developedCommunism; basic income (VanParijs), that could also universalizethe possibility of disposing free time;and the lottery society (Goodwin), inwhich chance would distribute allsocial goods. As a counterpoint, it isdiscussed also the anarcho-capitalistutopia, which foresees the absorp-tion of all State functions by market.

UTOPIES DU POST-SOCIALISME:ÉBAUCHES ET PROJETS DEREORGANISATION RADICALE DELA SOCIÉTÉ

Luis Felipe Miguel

Mots-clés: Utopie; Socialisme;Marché; Liberté; Égalité.

L’article analyse quelques pro-positions utopiques qui ont été pré-sentées pendant les dernières décen-nies et qui proposent desalternatives au capitalisme suite àl’écroulement de l’expérience socia-liste. Aucune d’elles ne parvient aucentralisme du socialisme, ce quipeut indiquer la faiblesse de leursformulations et, surtout, l’absence derapport avec un mouvement social.Quatre propositions y sont discutées:le socialisme de marché (Roemer),qui veut combiner l’“efficacité” dumarché avec une garantie d’égalitéréelle ; la société de temps libéré(Gorz), qui accomplirait les buts ducommunisme développé par Marx ;le revenu citoyen (Van Parijs), quiuniversaliserait aussi la possibilitéd’avoir du temps libre ; et la sociétéde loterie (Goodwin), dans laquelleles biens collectifs seraient tous dis-tribués au hasard. Comme contre-point, l’article aborde égalementl’utopie anarchiste capitaliste, selonlaquelle toutes les fonctions de l’Étatdoivent être absorbées par le mar-ché.