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BH/UFC o o SSI Ê UTOPIAS SELVAGENS: NARRATIVAS DE FUNDAÇÃO EM JOSÉ DE ALENCAR E DARCY RIBEIRO o maestro controla a sua impaciência. "Senhor Villani, Peri é um índio, os índios são glabros. Eles não têm pêlo no rosto! Eles também não cantam óperas. Senhor Gomes, cortar o meu bigode seria para mim como cortar uma perna. Ou canto com o bigode, ou não canto. Rubem Fonseca, O Selvagem da Ópera DE HERÓi SACRIFICIAL A HERÓi CANIBAL IOILVA GERMANO leira dedicada à decifração dessa imensa "terra igno- ta-. Essas tentativas se ins- crevem numa tradição das nossas elites letradas que passa por colorações ro- mânticas, realistas, cienti- ficistas ou antropofágicas, sempre na busca agonística do mesmo fim de compre- ensão da alma nacional. José de Alencar e Darcy Ribeiro se encaixam nessa missão literária apai- xonada e apaixonante de dizer o Brasil brasileira- mente. Cada um toma para si a difícil tarefa de colocar em palavras o que é essa terra e quem é a sua gente. Convergências marcam os dois autores: o interesse simultâneo pela ficção e pela política, o vigor no exercício de atividades variadas, a fecundidade da produ- ção literária, o carisma pessoal, o sentimento nacionalista e, principalmente, a consciência da importância das origens nativas do povo brasileiro, objeto de amor e ciência de suas obras. É certo que seus horizontes de consci- ência são diferentes, como o são as suas solu- ções estéticas: de um lado, o político do Império, de outro, O senador da República; RESUMO o grande projeto de invenção simbólica do Brasil en- contra na literatura de José de Alencar e de Darcy Ribeiro dois momentos privilegiados. Suas obras cons- tituem documentos preciosos de como a nação tem sido pensada e desejada historicamente. De um lado. O Guarani e Iracema representam o esforço programático de Alencar em prol de uma expressão literária autónoma, elaborada com as tintas românticas do século XIX. De outro, O Povo Brasileiro e Utopia Selvagem concretizam em dois gêneros distintos a reflexão de Darcy Ribeiro sobre as origens do povo brasileiro e o difícil curso da descolonização. Professora do Departamento de Psicologia da UFC e doutoranda em Sociologia. (Agradeço ao Profes- sor Dr. Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes pela sugestão do tema e pela leitura crítica da 1- ver- são deste trabalho) A brasilidade tem sido criada e recriada por gerações sucessivas de intelectuais brasileiros que tentam decifrar o enig- ma do ser nacional. Os re- sultados dessas tentativas de compreensão da nacio- nalidade são os variados retratos do Brasil que com- põem a imensa galeria de imagens ora explicitamente ficcionais, ora in- tencionalmente etnográficas da nossa produ- ção literária. O termo retrato cabe bem, já que as sínteses que buscam dar inteligibilidade ao ser brasileiro são pictóricas, tornando visí- veis e bem delineados conteúdos informes e talvez inconscientes sobre o Brasil. Os retra- tos da terra brasileira e do homem que a ha- bita são inventados a partir de um amálgama de realidade percebida, mundo subjetivo do autor e significações coletivas que permeiam o chão social de uma determinada época. Os retratos do Brasil são invenções; são cons- tructos imaginários criados pela gente brasi- GERMANO, IDILVA. UTOPIAS SaVAGENS: NARRATIVAS DE FUNDAÇÃO EM ... P. 7 A 18 7

UTOPIAS SELVAGENS: NARRATIVAS DE FUNDAÇÃO EM … · de colocar em palavras o que é essa terra e quem é a sua gente. Convergências marcam ... tencionalmente etnográficas da nossa

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BH/UFC

o o S S I Ê

UTOPIAS SELVAGENS:NARRATIVAS DE FUNDAÇÃO EM JOSÉ DE ALENCAR E DARCY RIBEIRO

o maestro controla a sua impaciência. "Senhor Villani, Peri é um índio, osíndios são glabros. Eles não têm pêlo no rosto! Eles também não cantamóperas. Senhor Gomes, cortar o meu bigode seria para mim como cortaruma perna. Ou canto com o bigode, ou não canto.

Rubem Fonseca,O Selvagem da Ópera

DE HERÓi SACRIFICIAL A HERÓi

CANIBAL

IOILVA GERMANO leira dedicada à decifraçãodessa imensa "terra igno-ta-. Essas tentativas se ins-crevem numa tradição dasnossas elites letradas quepassa por colorações ro-mânticas, realistas, cienti-ficistas ou antropofágicas,sempre na busca agonísticado mesmo fim de compre-ensão da alma nacional.

José de Alencar eDarcy Ribeiro se encaixamnessa missão literária apai-xonada e apaixonante dedizer o Brasil brasileira-

mente. Cada um toma para si a difícil tarefade colocar em palavras o que é essa terra equem é a sua gente. Convergências marcamos dois autores: o interesse simultâneo pelaficção e pela política, o vigor no exercício deatividades variadas, a fecundidade da produ-ção literária, o carisma pessoal, o sentimentonacionalista e, principalmente, a consciênciada importância das origens nativas do povobrasileiro, objeto de amor e ciência de suasobras. É certo que seus horizontes de consci-ência são diferentes, como o são as suas solu-ções estéticas: de um lado, o político doImpério, de outro, O senador da República;

RESUMOo grande projeto de invenção simbólica do Brasil en-contra na literatura de José de Alencar e de DarcyRibeiro dois momentos privilegiados. Suas obras cons-tituem documentos preciosos de como a nação temsido pensada e desejada historicamente. De um lado.O Guarani e Iracema representam o esforçoprogramático de Alencar em prol de uma expressãoliterária autónoma, elaborada com as tintas românticasdo século XIX. De outro, O Povo Brasileiro e UtopiaSelvagem concretizam em dois gêneros distintos areflexão de Darcy Ribeiro sobre as origens do povobrasileiro e o difícil curso da descolonização.

Professora do Departamento de Psicologia da UFCe doutoranda em Sociologia. (Agradeço ao Profes-sor Dr. Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes pelasugestão do tema e pela leitura crítica da 1- ver-são deste trabalho)

A brasilidade tem sidocriada e recriada porgerações sucessivas

de intelectuais brasileirosque tentam decifrar o enig-ma do ser nacional. Os re-sultados dessas tentativasde compreensão da nacio-nalidade são os variadosretratos do Brasil que com-põem a imensa galeria deimagens ora explicitamente ficcionais, ora in-tencionalmente etnográficas da nossa produ-ção literária. O termo retrato cabe bem, jáque as sínteses que buscam dar inteligibilidadeao ser brasileiro são pictóricas, tornando visí-veis e bem delineados conteúdos informes etalvez inconscientes sobre o Brasil. Os retra-tos da terra brasileira e do homem que a ha-bita são inventados a partir de um amálgamade realidade percebida, mundo subjetivo doautor e significações coletivas que permeiamo chão social de uma determinada época. Osretratos do Brasil são invenções; são cons-tructos imaginários criados pela gente brasi-

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num, a linguagem perolada e bem comporta-da do romantismo, no outro, a linguagem irô-nica, incontida e polêmica do modernismo;num, o canto poético e mítico de raças no-bres já extintas, no outro, a descrição natura-lista do etnocídio da nossa matriz tupi.

Ambos volvem o olhar para o projetocolonizador ocidental, porém o fazem comdiversos pontos de vista. José de Alencar nosparece hoje mais contemporizado r, buscandoalianças ideológicas entre brancos e índios,entre civilizados e selvagens. É assim, quePeri, apesar de selvagem, é um verdadeiroherói de façanhas inigualáveis em sua adora-ção à jovem ama Ceci. Peri abandona sua mãe,sua tribo e seus costumes para viver subalter-no mas feliz, protegendo a moça que é aencarnação de Nossa Senhora.

A intriga alencariana costuma apresen-tar explicitamente uma polaridade entre o bomíndio (nativo conciliador) e o homem brancomau (vilões, traidores) e entre o bom índio eo mau índio (os rebeldes que se opõem aocolonizador, como os aimorés de OGuarani).Essa oposição ajuda a ressaltar a força e ovalor moral do bom selvagem e dispor o nati-vo num status de igualdade ante o "bom" co-lonizador. Com freqüência, o narrador comentaas virtudes do espírito e a coragem do herói,comparando-as às dos homens civilizados:

A sua inteligência sem cultura, mas bri-lhante como o sol de nossa terra, vigorosacomo a vegetação deste solo, guiava-o nesseraciocínio com uma lógica e uma prudên-cia, dignas do homem civilizado; previa to-das as hipóteses, combinava todas asprobabilidades, e preparava-se para realizaro seu plano com a certeza e a energia de açãoque ninguém possuía em grau tão elevado(O Guarani: 120).

Como José de Alencar concilia as ima-gens contraditórias sobre o índio que se apre-

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sentam à sua mente, muito tempo depois deconsumado o etnocídio? Como homem do seutempo, aceita a idéia de que os indígenaseram primitivos ou bárbaros e que deveriammais cedo ou mais tarde adaptar-se à corren-te civilizatória européia. Mas, como artista ro-mântico, amante de sua terra e da exuberânciade sua natureza tropical e defensor tenaz deum projeto de literatura nacional, não poderiaexpressar o habitante dessas paragens demodo insignificante. O índio deveria de fatocorresponder ao superlativo dessa natureza,equiparando-se à superioridade do estrangei-ro dominador. Para empreender a conciliação,o autor, portanto, enobrece o selvagem e, sepossível, minimiza a crueldade do coloniza-dor. É assim que Peri abdica da vida ao ladode seu grupo, reduzindo-se a um serviçal e,por fim, no ápice da abnegação, batizando-separa ter o direito de salvar Ceci da morte.Seus silenciosos atos de coragem e lealdadeo elevam à condição de um cavalheiro, à al-tura de D. Antônio de Mariz e Álvaro. Quantoao fidalgo, representante da dominação por-tuguesa, com direito de vida e de morte den-tro de seus territórios, sua figura não é tãofeia quanto deve ter sido a de um dono desesmaria no Brasil real do século XIX:

Pela força da necessidade, pois o fi-dalgo se havia constituído senhor de baraçoe cutelo, de alta e baixa justiça dentro de seusdomínios; devemos porém declarar que raravez se tornara precisa a aplicação dessa leirigorosa; a severidade tinha apenas o efeitosalutar de conservar a ordem, a disciplina ea harmonia (O Guarani: 16).

Do mesmo modo, Iracema, nossaAriadne, se entrega de corpo e alma ao es-trangeiro Martim, abandonando suas raizespara se unir ao branco conquistador. Figurasedutora e seduzida, Iracema segue fielmen-te o esposo para uma vida longe dos seus,

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renunciando à sua condição de guardiã dosegredo da jurema e aceitando juntar-se à na-ção pitiguara, inimiga dos tabajaras. Do en-contro amoroso e étnico, capaz de relevar aenorme distância entre os dois mundos, nas-ce o primeiro filho da mestiçagem, represen-tativo dos primórdios da nacionalidade. Deforma emblemática, Moacir, o filho do amorentre raças, nasce em meio à luta racial, lon-ge do pai. A vitória de Martim e seu amigoPoti - outro bom selvagem - sobre nativosrecalcitrantes é a coroação da aliança entrecolonizadores e colonizados que o narradorexalta:

Nessa hora em que o canto guerreirodos pitiguaras celebrava a derrota dosguaraciabas, o primeiro filho que o sangueda raça branca gerou nessa terra da liberda-de, via a luz nos campos da Porangaba (Ira-cema: 108).

Negligenciada pelo esposo, a filha deAraquém vem a morrer de tristeza e saudadeem páginas comoventes. Com efeito, a prosapoética de José de Alencar canta em Iracemae Peri a grandiosidade do povo autóctone,matriz do povo brasileiro. São heróis belos,puros e sacrificiais que aceitam e desejam oencontro do outro, submetendo-se aos seusdesígnios, mas guardando os traços de honra edignidade reveladores de uma origem brasilei-ra superior. É o amor o fio condutor das narra-tivas e não a luta racial. O amor sublime edorido da poesia alencariana vence as barrei-ras étnicas de forma inverossímil, se o textofor tomado no seu sentido literal. Metaforica-mente, no entanto, o gesto de Iracema podeser interpretado como a aceitação de um mun-do novo e inexorável que surge e que exige adestruição de toda pureza original:

Iracema, unida ao flanco de seu guer-reiro e esposo,viu de longe Caubi efalou assim:

- Senhor de Iracema, ouve o rogo detua escrava; não derrama o sangue do filhode Araquém. Se o guerreiro Caubi tem demorrer, morra elepor esta mão, não pela tua.

Martim pôs no rosto da virgem olhosde horror:

- Iracema matará seu irmão?- Iracema antes quer o sangue de

Caubi tinja a sua mão que a tua; porque osolhos de Iracema vêem a ti, e a ela não (Ira-cema: 69).

Melhor entre os melhores de seu povo,Peri usa todo seu conhecimento e bravura paraa alegria caprichosa de Ceci. ada o detémem sua adoração à mulher branca, nem oslimites ponderados pelo honrado pai e pelopretendente nobre da moça. O heroísmo dePeri segue em crescendo conforme o exigemas circunstâncias, chegando ao plano insólitode matar todos os inimigos aimorés por enve-nenamento, quando a sua carne fosse digeridano ritual antropofágico. Fracassado o plano,aceita o batismo para tornar-se salvador desua amada no dilúvio que se segue. Vence asleis da física, arrancando uma palmeira imersaque os levará nas águas. Esse momento deconotações míticas simboliza um tempo pri-mordial da nação brasileira, forjada a partir deum casal edênico e mestiço que unirá mun-dos aparentemente inconciliáveis.

O reconhecimento orgulhoso das virtu-des de nossa matriz indígena não se esgotana visão do índio puro. As imagens de honrae dedicação se mostram também no homemmestiço que dela surge. O sertanejo, filho dasterras áridas, herda do índio a plena adapta-ção à natureza e o sistema de valores basea-do na lealdade. Adotando uma fórmula similaràquela adotada n' O Guarani, José de Alencarvai narrando o espírito livre, destemido e sa-gaz do homem dos sertões brasileiros, atra-vés de aventuras costuradas em volta de umatrama romântica. O núcleo dessa trama é a

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relação impossível de um casal marcado pordiferenças sociais (ou étnicas, nas obrasindigenistas), apesar da reconhecida superio-ridade do sertanejo brasileiro. O áspero cená-rio dos sertões é descrito majestosamente, deforma a hospedar o espírito solitário e honra-do do vaqueiro Arnaldo:

É este um dos traços do sertanejo cea-rense. gosta de dormir ao sereno, em céuaberto, sob essa cúpula de azul marchetadode diamante, como não a têm os maissumptuosos palácios.

Aí, no seio da natureza, sem murosou tectos que se interponham entre ele e oinfinito, é como se repousasse no puro rega-ço da mãe pátria, acariciado pela graça deDeus, que lhe sorri na luz esplêndida dessascascatas de estrelas (O Sertanejo: 41).

Na ensaística de Darcy Ribeiro, ao con-trário, o que mais ressalta é justamente o con-fronto sangrento entre partes essencialmenteantagônicas, onde coube à gente nativa o piordestino. A narrativa de Alencar é idílica, atémesmo nas descrições de guerra e conflito. Ade Darcy jorra sangue e indignação pelagastança de tanta carne humana, ciente deque a colonização foi uma barbárie: a destrui-ção de povos, movida por interesses mercan-tis poderosos disfarçados de missão religiosasalvadora. Está claro para Darcy que não po-deriam conviver mundos materiais e simbóli-cos tão opostos entre si. Para reconstituir aorigem do povo brasileiro - caracterizada porextraordinário etnocídio e igualmente extra-ordinária mestiçagem - Darcy mobiliza todoo seu talento retórico. A linguagem é viva einflamada ao falar do grande projetoexpansionista europeu que nos gerou e doenfrentamento dramático dos dois mundos:

... Um somatório de violência mortal,de intolerância, prepotência e ganância. To-

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das as qualidades mais visse conjugaram paracompor o programa civilizador de Nóbrega.Aplicado a ferro e a fogo por Mem de Sâ, esseprograma levou o desespero e a destruição acerca de trezentas aldeias indígenas na costabrasileira do século XVI. (O Povo Brasileiro:51)

Ao mesmo tempo, num ensaio compro-metido com os fatos históricos, Darcy não re-luta em louvar poeticamente a vida nativa,como numa elegia à felicidade edênica per-dida para sempre, muito próxima às descri-ções românticas de Alencar. A intenção étestemunhar a favor das etnias vencidas natorrente histórica e que deixaram a marca deseu desaparecimento na alma nacional:

Para os índios que ali estavam, nus napraia, o mundo era um luxo de se viver, tãorico de aves, de peixes, de raízes, de frutos, deflores, de sementes, que podia dar as alegriasde caçar, depescar, deplantar e colhera quan-ta gente aqui viesse ter. Na sua concepção sá-bia e singela, a vida era dádiva de deuses bons,que lhes doaram esplêndidos corpos, bons deandar, de correr, de nadar, de dançar, de lu-tar. Olhos bons de ver todas as cores, suas lu-zes e suas sombras. Ouvidos capazes da alegriade ouvir vozes estridentes ou melódicas, can-tos graves e agudos e toda a sorte de sons quehá. Narizes competentíssimos para fungar echeirar catingas e odores. Bocas magníficasde degustar comidas doces e amargas, salga-das e azedas, tirando de cada qual o gozo quepodia dar. E, sobretudo, sexos opostos e com-plementares, feitos para as alegrias do amor(O Povo Brasileiro:44-45).

Na ficção, Darcy Ribeiro completa asimagens sobre a nossa matriz indígena, ado-tando plenamente a irreverência como instru-mento de conscientização. Assim, ele podedeixar a linguagem conservadora e unívoca

exigida nos estudos antropológicos para as-sumir à vontade o riso carnavalizante da críti-ca demolidora em Utopia Selvagem (982).

Publicada no ano da morte de SérgioBuarque de Holanda, a obra homenageia omestre com uma nova versão de Raízes doBrasil. ão um ensaio teórico explicativo,como os muitos que Darcy elaborou em ou-tras ocasiões e que viria a reunir no ambicio-so livro de 1995, mas uma obra de gêneroindefinível entre a rapsódia e a fábula. A nar-rativa surrealista e picaresca e sua densaintertextualidade permitem um acesso maisdireto do lado onírico da construção do Brasilpelas elites letradas do país.

O livro conta a história do tenente doExército Brasileiro Gasparino Carvalhal, maistarde negro Pitum ou Orelhão, que se perdemisteriosamente nalgum lugar da fronteiranorte do Amazonas caindo prisioneiro de umatribo de guerreiras, "o povo mulheril". Lá, tor-na-se uma espécie de fornicador oficial coma única função de emprenhar as índias, uma acada noite. Sempre temeroso de ser devora-do por mulheres que podem ser canibais,passado algum tempo, é expulso da tribo,caindo desta vez numa terra de índios co-mandada pelo tuxaua boa-praça Calibã. Aqui,ele encontra duas freiras missionárias, Uxa eTivi, que falam de um Brasil Civilizado, dife-rente daquele que o tenente conhece. Lá,Pitum é introduzido nas práticas selvagens,período no qual vai se adaptando à vida bár-bara e refazendo suas idéias sobre a realida-de pátria.

O livro se apresenta como uma colagemirreverente de imagens fragmentadas que per-meiam o imaginário nacional, construído a par-tir dos documentos históricos que registrarama perplexidade dos conquistadores diante doNovo Mundo, dos textos literários europeus,da tradição modernista no país e da cosmo visãodos povos indígenas. O resultado é um mapade signos emblemáticos da brasilidade, num

exercício bem-humorado de diálogo com tex-tos já lidos: o país das icamiabas-amazonas,esse não-lugar da utopia brasileira; asururucagem, evocando a luxúria descrita porPaulo Prado e sintetizada no Macunaíma deMário de Andrade; Calibã, o anti-herói deShakespeare que se opõe ao processocivilizatório; a embriaguez da caapinagem, alembrar do imperativo oswaldiano de"rebarbabarização do olhar do intelectual bra-sileiro. A escritura da obra é propriamentemodernista, no sentido de que se assume comoum coro estilizado de vozes do passado, umaescrita-leitura. A identificação das referênciasliterárias - abundantes - costuma ser fácil eelas contêm um misto de celebração edessacralização dos textos anteriores.

O texto dá continuidade ao espírito pós-modernista de uma literatura mito-poética queprocura criar mitos representativos da almanacional numa genealogia de personagensalegóricos: macunaímas, cobra-nora tos,capirobas. O recurso à narrativa mítica, aostemas mágicos e aos modos da linguagem oralsegue a tendência da literatura latino-ameri-cana contemporânea de romper com oscânones europeus de representação do conti-nente e de criar uma realidade estética maispróxima do misterioso universo dos povos con-quistados. A intenção não é mais, portanto,uma representação fotográfica do país, mas acriação expressiva da nação. Com efeito, àmedida que o relato avança, as intenções pe-dagógicas do narrador se tornam mais explí-citas: quer ensinar as coisas do Brasil atravésdo riso e da sátira. O sentimento que o moti-va é o patriotismo em sua vertente não ufa-nista, um nacionalismo que rompe com asolenidade dos enunciados, mas que mantémo caráter de arte militante, isto é, uma litera-tura de conscientização política. Subjacenteao ludismo da fábula, repousa a finalidadeúltima de narrar a nação, a partir das versõescarnavalizantes apropriadas pelo autor ao 10n-

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go do tempo. Sempre oscilando entre umalinguagem sisuda e uma burlesca, que fingeestar brincando, o narrador vai interrompen-do o leitor ora para esclarecer fatos históricos(tal como faz nos trabalhos "sérios"), ora paraparodiar o olhar erudito, ora para marcar assuas afinidades ideológicas:

Este é, caro leitor, o substrato histórico eru-dito das verdades e versões em que se assentao caso que aqui se prosa e lê, o qual, poroutro lado, nele tem seu conteúdo de realida-de sustentado e comprovado (Utopia Selva-gem 22).

o surrealismo se articula à História naintenção de expressar uma ontología do Bra-sil. O mundo brasileiro é complexo demaispara ser dito de forma lógica, mediante o usoexclusivo do modelo da racionalidade ociden-tal. O Brasil primevo, abissal, intraduzível nalinguagem sisuda, civilizada e positiva é oque o autor procura mostrar por meio de umaescritura diferente daquela adotada nos en-saios antropológicos e críticos. Enquanto es-tes se valem do viés canônico do bom sensoe da seriedade, Utopia assume na superfícieo viés satírico do riso, como linguagem idealpara realizar sua crítica à nação, dialogandocom os que o antecederam nessa tarefa. Des-sa forma, o discurso arlequinal de Darcy citaprincipalmente Mário e Oswald de Andrade.Como o Macunaíma, Utopia quer concretizaro manifesto antropofágico e o faz adotandoalgumas fórmulas modernistas. Uma é o usoda fábula como modo de "primitivização" doliterário e como gênero adequado a essa via-gem à infância nacional. Como no projeto mo-dernista, é central a necessidade de ummergulho nas raízes étnicas e culturais dopovo. O subtítulo da obra é de fato Saudadesda inocência perdida: uma fábula.

O texto se estrutura basicamente medi-ante um processo de apropriação parafrásica,

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utilizando aqui a conceituação de SantAnna(985). Percebe-se nas citações uma tendên-cia de conservar o sentido original dos textosreferidos. Ou seja, Darcy não procura rompercom os textos que cita, nomeadamente osmodernistas, mas prolongar suas idéias sobreestética e política cultural. Daí que os proces-sos de intertextualidade mais comuns no dis-curso são a estilização e a paráfrase, queapresentam um desvio ideológico mínimo emrelação ao texto anterior. Como os textos dereferência (Macunaíma, Serafim Ponte Gran-de, Manifesto Antropofágico e outros) são fun-damentalmente paródicos, o resultado final semostra como uma recomposição tambémparódica das obras marcantes que construí-ram o Brasil:

Pitum jazia o impossívelpra ver o mu-lherio. As mais delas bonitas, todas limpas depele. Formosas, com suas vergonhas tão al-tas e tão cerradinhas e tão limpas das cabe-leiras e com tanta inocência descoberta quenisso não havia vergonha alguma (UtopiaSelvagem: 24).

Com efeito, Darcy parodia o texto deCaminha, tal como fizera Oswald no trecho"As meninas da gare" em Pau Brasil:

Eram três ou quatro moças bem moças e bemgentisCom cabelos mui pretos pelas espáduasE suas vergonhas tão altas e tão saradinhasQue de nós as muito bem olharmosNão tínhamos nenhuma vergonha (citado porSant'Anna, 1985: 52).

Adotando a postura de narrador oral,Darcy desfia seu saber historiográfico parauma audiência iletrada, tal como na imagemdo velho cego que traduz a história do povoem linguagem mais simples e assimilável.Explica a origem do termo canibal e o efeito

do continente americano sobre a mente euro-péia: passa por "Tornaz, o enforcado" da Uto-pia, por Montaigne e Shakespeare:

Mais ainda se consagra Canibal ao seconverter em Calibã. Assim chamado, vive em1616 um enredo tempestuoso no qual, aoganhar voz e civilização, nosso avô se fode.

Próspero: - É um monstrengo, nemforma humana o enobrece.

Calibã: - Esta ilha minha, tu m 'aroubastes.

Próspero: - Ingrato, te dei fala e enten-dimento.

Calibã: - Falar tua língua me ensi-nastes. Bom e sópara te amaldiçoar (UtopiaSelvagem: 31).

Valendo-se da literatura hispano-ameri-cana, ficcional e crítica, Darcy recupera a re-flexão acerca das figuras de Caliban ePróspero, consagradas como ícones da rela-ção de dominação envolvida no processo decolonização das Américas. Darcy segue deperto as idéias desenvolvidas pelo ensaístacubano Roberto Fernández Retamar, princi-palmente em Caliban e outros ensaios, o qualprefaciou. No ensaio de Retamar, há umasumarização das diversas apropriações dospersonagens de Shakespeare pelos intelectu-ais latino-americanos e uma explanação dochão ideológico que subjaz cada interpreta-ção. O autor explica que o símbolo das Amé-ricas não foi imediatamente identificado como escravo disforme e insolente, mas com afigura etereal e obediente de Ariel (corpori-ficada em Iracema e Peri?), equivocadamentetomado como metáfora do intelectual dos tró-picos. Em Utopia, Darcy reproduz o roteirodessas reflexões em linguagem irônica.

No plano mais estritamente lingüístico,Darcy acompanha a ruptura modernista, fa-zendo uso de recursos tais como as rimas ealiteraçôes (descaramentos manuais e bocais

dos prazeres prologais, gentes que guardamvivas as propriedades das virtudes naturais,únicas verdadeiramente virtuosas), hipérboles,onomatopéias, trocadilhos, duplosentido eneologismos (comando fodetivo) que tornama escritura lúdica, como um jogo. Parodia odiscurso letrado, tal como fez Mário em sua"Carta prás lcamiabas":

As amazonas refulgem, no passado,com o brilho imorredouro, pela tradiçãoinconteste de sua velha estirpe helênica. Maisainda brilham, no presente, pela honra insu-perável de senhoras onomásticas da maiorfloresta e do maior agual do planeta. Matasque, em vão se quer carunchar. Águas que,em vão se quer contaminar. Tanta e tama-nha é a sua pujança (Utopia Selvagem:30).

O constante recurso à grosseria do baixocalão e à temática sexual estão a serviço daconstrução do mito fundante da nação e dosurgimento do homo brasilícus. As metáforassexuais têm o papel de reforçar a sua tese doimenso caldeamento étnico e cultural como baseda nacionalidade - a matriz tupi e os maisvariados machos colonizadores - figuras essasque não se limitam à sua fábula, mas que estãopresentes nos ensaios de teoria do Brasil. Umade suas teses é justamente a do imenso "criatóriode gente" levado a cabo pela empresa coloni-zadora, mediante a prática do cunhadismo en-tre os índios. De tantos e tão diferentes laçosde parentesco que fundam a povo brasileiro,surge a constante pergunta que Darcy se pro-põe responder:

Nosso enigma é muitíssimo mais com-plicado. Começa com a tenebrosa invasãocioilizadora. Mil povos únicos, saídos virgensda mão do Criador, com suas mil caras efa-las próprias, são dissolvidos no tacho commilhares de pituns, para fundar a Nova Romamultitudinária. Uma Galibia Neolatina tão

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grande como assombrada de si mesma.Inexplicável. Aqueles tantos povos singelos queaqui eram já intrigaram demais ao descobri-dor e seus teólogos:

- Gentes são ou são bichos racionais?Têm alma capaz de culpa? Podem comun-gar? O enxame de mestiços que deles devieramna mais prodigiosa misturação de raças in-triga ainda mais.

- Quem somos nós? Nós mesmos? Eles?Ninguém?

Acordando como nações no meiodessta balbúrdia, nos perguntamos com o Li-bertador:

- Quem somos nós, se não somos eu-ropeus, nem somos índios, senão uma espé-cie intermédia, entre aborígenes e espanhóis?

Somos os que fomos desfeitos no queéramos, sem jamais chegar a ser o que for-mos ou quiséramos. Não sabendo quem éra-mos quando demorávamos inocentes neles,inscientes em nós, menos sabemos quem se-remos (Utopia Selvagem: 32).

Quem somos nós, os brasileiros, feitosde tantos e tão variados contingentes huma-nos?A fusão deles todos em nós já se comple-tou, está em curso, ou jamais se concluirá?Estaremos condenados a ser para sempre umpovo multicolorido no plano racial e no cultu-ral?Haverá alguma característica distintiva dosbrasileiros como povo, feito que estápor gentevinda de toda parte? (O Povo Brasileiro:246)

Em Utopia, a linguagem do "baixo-ven-e" funciona como uma escritura rebelde, de-.bediente, descontente com a seriedade ermalidade das construções científicas e esté-.as, distantes do universo do povo. Há umairoximação ao mundo do riso, marcado pelo.otesco (veja-se, por exemplo, a sessão deepilação a que é submetido Pitum no paísiS amazonas), pela exaltação dos excessosirnais (a constante fornicação de Pitum e

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Calibã) e coroação da loucura (principalmentena caapinagem). A gula é sistematicamentetematizada na comida de Pitum e na simbologiado canibalismo. A defecação marca o desfe-cho da fábula, com Calibã ca(rre)gando suasarmas lá de cima da ilha voadora. 10 cemedessa linguagem carnavalizante, que inverteos significados estabelecidos até chegar ao"nonsense", está a possibilidade de desvirtuaros modelos (científicos, estéticos, políticos ete.)da cultura ocidental e evitar a sua imitação ser-vil. De fato, a linguagem modernista da litera-tura latino-americana é barroca, uma misturade estilos, épocas e valores, que traduz o pró-prio processo histórico de constituição dessasnações. Citando literalmente o grito antro-pofágíco de Oswald, Darcy apresenta com forteimpacto o seu desejo de uma teoria desco-lonizada do Brasil: "a boca voraz e insaciáveldos prósperos da terra para devorar a estranjae fazer dela o estrume com que florescere-mos." (Utopia Selvagem: 33).

As amazonas "despeitadas" e autárquicastransfiguram o "matriarcado de Pindorama" domanifesto antropófago. Muitas vozes se mes-clam: Pitum é "comido" pelas índias e têmmedo de que depois o devorem de fato (aimagem retoma em Ubaldo Ribeiro com o ho-landês Sinique de Viva o Povo Brasileiro); otenente transfigura Hans Staden (aliás citado)que deixou de ser devorado por ser covarde,portanto, impróprio para o ritual indígena (Pitumé desprezado pelas índias por covardia); Pitumaprende a ser cada dia menos tenente e maisCalibã-Macunaíma. o manifesto de Oswald,o matriarcado é símbolo de uma "inocênciaperdida" para o pai conquistador e autoritário- o "Próspero" de A tempestade. O discurso deUtopia Selvagem perverte a ordem dos aconte-cimentos, mostrando um povo de mulheres semhomem, terra virgem não conquistada, usandoo estrangeiro para "preservar o próprio sumo"e não para aceitar docilmente os seus valores.As guerreiras de Utopia não são filhas de

Malinche, a mãe violada descrita por OctavioPaz, mas de uma mãe violadora. Também re-cusam o papel doce e renunciante de Irace-ma, a esposa e mãe gentil. A alegoria desfaz aimagem européia da América como terra sub-missa e imitadora do colonizador. O símbolofeminino é aqui utilizado para referir forçaspara além da ordem e do natural - talvez nãoseja arbitrária a inclusão das amazonas no tex-to, já que a mulher aqui encarna o signo dadesordem e da revolução. Pitum passa o tem-po todo xingando essas mulheres estóicas epouco libidinosas (só transam uma vez na vidaou tr a na morte) de diabas, depravadas,desnaturadas. Enquanto Pitum sonha com oretomo à ordem machista natural de uma mu-lher para cada homem e do sexo diário, entrao narrador explicando cientificamente a exis-tência de tal sociedade, parodiando o idioletomarxista:

Para mim isso começou nos idos emque, aqui nos trópicos, por força da Revolu-ção Agrícola - resultante da domesticação domilho e da mandioca - o nível do desenvolvi-mento das forças produtivas ultrapassou o dasrelações de produção. Criaram-se assim, con-dições objetivaspara a gestação de uma novaformação econômico-social cuja expressãosócio-jurídica seria o matriarcado.

Deu-se, então, o inevitável saltodialético. a quantidade se converteu em qua-lidade.( ..) (Utopia Selvagem: 38).

O enigma da brasilidade parece ultrapas-sar o fôlego das mais variadas teses científicase Darcy compreende esses limites, recorrendoà fabulação e à linguagem metafórica.

A TERCEIRA MARGEM DO RIO

Uma metáfora de fronteira - a margemdo rio - atravessa toda a narrativa, dividindoa seqüência das ações de Pitum. Enquanto

fazia manobras militares em algum ponto nonorte do rio Amazonas, o tenente Carvalhalse viu tragado por uma cortina cinzenta dechuva que não deixava ver o lado de lá dorio. Magicamente se viu transportado para umoutro mundo, o do povo mulheril. Esse mun-do desconhecido nada tem a ver com o Brasildo tenente: aquele do exército em GuerraPermanente com a Guiana, do S [l, da Revo-lução Cubana. A saída de lá também aconteceatravés de uma parede de chuva misteriosaque o faz cair na outra margem, numa tribode gente sexualmente "equilibrada", machistae que vive se drogando com beberagens alu-cinógenas. Sonhando que seja a sua querida"margem plácida", verifica que essa terra tam-bém não é o Brasil que ele conhece. Freirasmissionárias que vieram do Brasil não conse-guem dialogar com o tenente, apesar do por-tuguês. Tido como louco pelas monjas, elasimpõem a Pitum a catequese que tentam sub-meter à tribo. Com o tempo, Pitum aprendeos bons e maus costumes da gente galibi, en-tre eles, o da caapinagem.

A viagem para mundos tão diferentespode ser entendida como uma alegoria daviagem pelos diferentes Brasis a ser empre-endida pela consciência nacional. É, com efei-to, uma peregrinação para espaços simbólicosdesconhecidos, onde a única certeza é queos velhos esquemas conceituais já não dãoconta da complexidade do universo brasilei-ro. O tema da viagem é recorrente: já haviasido explorado no" acunaíma, herói que per-corre todos os quadrantes do país com umarapidez fabulosa (Paes, 1995). Em Macunaímae Utopia Selvagem, correr o Brasil é umaencarnação da missão do intelectual brasilei-ro, que deve desfazer-se das teorias de gabi-nete e dos modismos teóricos estrangeiros paraconhecer os Brasis reais. O aparente parado-xo do recurso à magia para conhecer os fatosbrasileiros se explica pela intenção crítica doautor de iluminar o olhar autóctone do povo

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brasileiro sobre si mesmo. Darcy fala em cons-truirmos espelhos para nos mirarmos. O inte-lectual brasileiro tem o dever de construirinstrumentos teóricos autênticos, quecorrespondam à realidade nacional. Os mo-dos de representação míticos, folclóricos -tão distantes do modo racional, positivista, deconceber o mundo - podem contribuir para oprojeto de decifração do país.

A razão moderna caracterizou-se pela tra-dição explícita de subordinação do poético aoprincípio da realidade CLima, 1984) Como veí-culo de conhecimento, a ficção submete-se àHistória, tornando-se secundária à ciência me-tódica. Esse veto à ficção pode ser apreciadona leitura dos empiristas ingleses, para quemtoda linguagem metafórica reduzia-se às fun-ções de adorno e deleite, além de ser engana-dora e, portanto, imprópria à busca da verdade.A explicação do empirismo é que a linguagemfigurativa carecia de univocidade e rigor descri-tivo, desviando o filósofo do caminho do saber.A tradição filosófica ocidental dirigiu-se, assim,para a condenação do imaginário. Hoje vê-se aprogressiva revalorização da atividade imaginá-ria, como detentora de certa autonomia do realpercebido, e como meio legítimo de apreensãodos fenômenos, presente inclusive na própriareflexão científica. Tal como o discurso literá-rio, a ciência apresenta-se como atividadeficcional, operando sobre a matéria perceptívelmediante a criação de imagens, modelos, ana-logias. "C".)próprio do discurso ficcional - es-tético ou não estético - é ser acolhido comouma articulação de imagens, ser tematizado peloimaginário." CLima,1984: 61).

O resultado dessa virada em relação àvida imaginária é uma modificação na con-cepção de arte, que deixa de tentar imitar arealidade para inventá-Ia. Transforma-se tam-bém o conceito de mímesis, significando agoranão mais a reprodução dos fatos, mas umaapreensão trópica, figurada deles. O moder-nismo literário torna essa mudança evidente

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e eleva às alturas os processos de figuraçãoda linguagem.

Foi principalmente o romance hispano-americano que concretizou as formulaçõessurrealistas européias ao ponto de superá-Ias:a realidade deixa de ser um produto da fanta-sia, para constituir uma região anexada à ver-dade ordinária, mas só apreensível pela fé(Chiampi, 1980) O misterioso está na realida-de - da vida, da morte, da dor - e não numescuro túnel da mente. Essas idéias atendemàs necessidades da inteligência latino-ameri-cana forçada a dizer suas pátrias com outralinguagem e outra forma de discurso. O inte-lectual nativo sabe que há algo mais em suagente do que conseguem compreender o olhare a fala estrangeiros. Mas, que é isto que de-fine a cultura latino-americana? Uma naturezaexuberante, inominável? Um homem mestiçoque não é uma coisa nem outra? O lugar deencontro entre Civilização e Barbárie? Umacultura hermafrodita, como pensa Vargas Llosa?

Observa-se, desse modo, a constantepreocupação temática com o estatuto de rea-lidade. Passado/futuro, natural/sobrenatural,civilizado/primitivo, eu/outro, dízível/índízí-vel se entrelaçam para mostrar o caráter con-traditório das nações colonizadas. O signomodernista da antropofagia sintetiza as pola-ridades que estão na base da história da Amé-rica Latina, marcando a atitude a ser adotadapelo intelectual insubmisso para uma autênti-ca expressão de sua sociedade.

Darcy Ribeiro alude às tensões entre osdiversos Brasis e à incomunicabilidade queelas podem gerar para os retratistas do país.Pitum tenta explicar o Brasil de onde veiopara as monjas que vieram de um Brasil futu-rista. O narrador intervém, apelando para ocaráter literário da sua escrita:

Aqui entre nós, leitora, a conclusãoconciliatória a tirar disto é que tudo haven-do e sendo, simultaneamente, de forma tão

diversa, na verdade nada há, nem tem im-portância nenhuma. Mesmo porque isto éuma fábula (Utopia Selvagem.:96-97).

A confusão continua ao se tentar expli-car aos índios o que é a Civilização: casasamontoadas umas sobre as outras, formiguei-ros de gente, luz elétrica, torneira d'água. Aironia serve para criticar os olhares etnocên-tricos sobre o mundo indígena:

... Os índios de tudo querem notícia.O diabo é que, não sabendo, ainda, que sãoselvagens, são inteiramente incapazes de en-tender o que é Civilização. Se acham civili-zados, os idiotas (Utopia Selvagem:98).

À medida que Pitum vai ouvindo coisastão estranhas sobre o seu país, vai tomandoconsciência de que não há certezas sobre essemundo assombrado:

- Mas parece que há, em algum espa-çopróprio, em alguma margem ou banda ouvariação deste mundo desvairado.

Este mundo é mundos - medita Ore-lhão. Passando do meupros outros vim apren-dendo e desaprendendo, sendo e deixandode ser.... (Utopia Selvagem: 101-102).

o tuxaua Calibã se engraça da freiramais nova, Tivi, e da sua catequese só tira oque há de melhor: ler e escrever. Só que usaa escritura apenas para brincar "mandandorecados safados daqui pro mato e do matopra cá". Aliás, está mais interessado emsururucar com Tivi do que ouvi-Ia falar deum Deus bizarro que faz que morre mas nãomorre. Outra vez, Darcy reconstrói o espíritodo primeiro Calibã que usa a língua ensinadapor Próspero para amaldiçoá-Io. Tal como fazJoão Ubaldo Ribeiro com o Caboco Capiroba:perdendo o juízo devido à contradição entreo código religioso nativo e o jesuítico, acaba

aprendendo a comer de verdade carne hu-mana, principalmente a carne macia e brancade holandês. A narrativa é uma alegoria daposição híbrida do intelectual dos trópicos,do entre-lugar do seu discurso.

O tuxaua não fica com o Brasil de Pitum,nem com o da monja, mas aproveita o que osdois trazem de bom. Faz de Pitum seu pau-mandado e seduz finalmente Tivi nacaapinagem. No barato da droga, viram bi-chos da mata e se possuem de todas as ma-neiras. A ilha se destaca do chão e sobrevoaas matas e rios do hemisfério austral. Calibãcomanda o vôo da ilha, atrás das maravilhasda civilização. Passa pelas terras das icamiabas,pelas tropas brasileiras na Guerra Guiana efinalmente parte para o Brasil das monjas.

Que se conclui acerca das narrativasfundantes de José de Alencar e de Darcy Ri-beiro? Os selvagens os civilizados, seus en-contros e desencontros os cenários e enredossão invenções da vida brasileira. Tanto o dis-curso romanesco quanto o ensaio crítico con-cretizam as significações sociais imagináriasproduzidas no intercâmbio entre os fatos histó-ricos, a memória coletiva e a percepção subjeti-va do escritor. Nos dois autores apresentam-seelementos edênicos que fazem parte do uni-verso imaginário ocidental, construído desde oachamento do Novo Mundo. Esse mundo es-tranho, a princípio associado ao Paraíso Terreal,é depois combatido e exterminado em nomedo lucro e da conversão dos pagãos, agoraselvagens e bestiais. Contemporaneamente,coube aos intelectuais brasileiros rever a histó-ria ocidental da qual a sua nação faz parte efabricar novos espelhos para se mirarem. Esseé o papel das elites letradas, mesmo que osíndios assim descritos se mostrem estilizaçõesdo real, próximos ao sublime - como Peri eIracema - ou grotescos como Pitum-Calibã.Mesmo que sejam índios hirsutos. Ainda queos Brasis retratados não sejam o Brasil "real".Acaso, existirão brasileiros?

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