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v- · normas jurídicas 19 Jete Jane Fiorati ... (Obras Completas de Rui Barbosa, v.36, t. 1, 1909). 6 Revista de Informação Legislativa ... gulo da estrutura do Estado, pelo sistema

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Brasília • ano 33 • nº 130abril/junho – 1996

Revista deInformaçãoLegislativa

Editor:

João Batista Soares de Sousa, Diretor

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Revista deInformaçãoLegislativa

© Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte destapublicação será permitida com a prévia permissão escrita do Editor.

Solicita-se permuta.Pídese canje.On demande l´échange.Si richiede lo scambio.We ask for exchange.Wir bitten um Austausch.

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. - -Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria deEdições Técnicas, 1964–v.Trimestral.Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº 11-

33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela Subsecretariade Edições Técnicas.

1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretariade Edições Técnicas.

CDD 340.05CDU 34(05)

FUNDADORES

Senador Auro Moura AndradePresidente do Senado Federal – 1961-1967Isaac BrownSecretário-Geral da Presidência – 1946-1967Leyla Castello Branco RangelDiretora – 1964-1988

ISSN 0034-835-xPublicação trimestral daSubsecretaria de Edições Técnicas

Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio IIIPraça dos Três Poderes70.165-900 – Brasília, DF

EDITOR

Diretor: João Batista Soares de SousaREVISÃO DE ORIGINAIS

Angelina Almeida Silva, Maria Idalina A. da Cruz e Yara Gontijo AraujoREVISÃO DE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fabiana Gomes de AzevedoEDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Mônica Monteiro Cocus e Paulo Henrique Ferreira NunesIMPRESSÃO: Centro Gráfico do Senado FederalCAPA: Cícero Bezerra e Paulo Cervinho

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Revista deInformaçãoLegislativaBrasília · ano 33 · nº 130 · abril/junho · 1996

Josaphat Marinho Rui Barbosa e a Federação 5Limites jurídicos da correção monetária trabalhista 13José Pitas

A Convenção Interamericana sobre Eficácia Extra-territorial das Sentenças e Laudos Arbitrais Es-trangeiros: um paralelo com o direito interno bra-sileiro e com o projeto de lei de aplicação denormas jurídicas 19

Jete Jane Fiorati

Manoel Adam Lacayo Valente Cláusula de convalidação em medidas provisórias 35

Reeleição do Presidente da República 49Sérgio Sérvulo da Cunha

Sindicalização, negociação coletiva e direito de grevedos servidores públicos 55

Amandino Teixeira NunesJúnior

Costume – redemocratização, pluralismo e novosdireitos 69

José Reinaldo de Lima Lopes

A incorporação dos tratados e convenções inter-nacionais de direitos humanos no direitobrasileiro 77

Fernando Luiz Ximenes Rocha

Os direitos humanos no Brasil e a sua garantiaatravés dos instrumentos processuais consti-tucionais 83

Osvaldo Agripino de CastroJúnior

Violência no campo 99Luiz Almeida Miranda

A terceirização no serviço público 115Jorge Ulisses Jacoby Fernandes

A elaboração do BGB: homenagem no centenário docódigo civil alemão 121

Carlos David S. Aarão Reis

O direito de parceria 133Arnoldo Wald

Recolhimento de contribuição previdenciária eimposto de renda na fonte em processos judiciaistrabalhistas 139

Paulo Fernando de AlmeidaCabral

Solução de controvérsias e efetividade jurídica: asperspectivas do Mercosul 143

Jorge Luiz Fontoura Nogueira

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Ação direta de inconstitucionalidade 151Ricardo Rodrigues Gama

Direito de resposta 155Lourival de Jesus Serejo Sousa

Marcelo da Fonseca Guerreiro Inconstitucionalidade do artigo 4º da Lei Comple-mentar nº 70/91 161

Iris Eliete Teixeira Neves dePinho Tavares

O Presidente da República no sistema presidencialistabrasileiro 165

Rubens Pinto Lyra Os conselhos de direitos do homem e do cidadão e ademocracia participativa 175

Alfonso de Julios Campuzano Problemas de legitimidad en el sistema de partidos 183

Leila Ollaik Esclarecimento a respeito da viabilidade econômicada capital do Brasil 203

Marcelo Dias Varella e MárciaCristina Pereira

Propriedade intelectual sobre produtos da Biotec-nologia 209

Gaspar Vianna A exploração dos serviços de telecomunicações naConstituição brasileira: interpretação da Emen-da Constitucional nº 8 de 1995 219

Despacho saneador 231Adriana de AlbuquerqueHollanda

Crimes e seguridade social 245Fábio Bittencourt da Rosa

A responsabilidade por dano moral no Direito doTrabalho 253

Pinho Pedreira

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5Brasília a. 33 n. 130 abril/jun. 1996

Rui Barbosa e a Federação

JOSAPHAT MARINHO

Josaphat Marinho é Senador, Advogado eProfessor da Universidade Federal da Bahia.

SUMÁRIO

1. Rui e os princípios. 2. Rui e a Federação. 3.Resistência às deformações. 4. Repulsa à intervençãonos Estados. 5. Construtor do regime federativo.6. Objetividade de pensamento e ação. 7. Inspiradordo futuro.

1. Rui e os princípiosA fidelidade de Rui Barbosa aos princípios,

como idéias regentes das ações, é verdade his-tórica, longamente demonstrada pelos fatos, enão panegírico. Variou de pensamento, atenuouconvicções, cedeu na aplicação de diretriz, po-rém preservou sempre a substância das cren-ças adotadas. Refletindo e observando, quan-do necessário comparando, submetia suas opi-niões ao crivo da lógica e da realidade, paraapurar e fixar o limite em que devia mantê-las oudar-lhes outro conteúdo. Não era o ideólogoalheio ao mundo circundante, mas o pensadorque caldeava as idéias com os fatos. Por isso,muitas vezes, críticos apressados, ou revesti-dos de paixão, acusaram–no de contraditório.Confundiam a verdade pesquisada, e assim sus-cetível de variações, com a subserviência a dog-mas. Por falta de serenidade ou de investigaçãoséria, não atentaram em que o pensamento e aação de Rui tinham alicerces inalteráveis. Podedizer-se, em resumo, que assentou seu modode pensar e de agir nesta reflexão, de amplaabrangência, que assim enunciou: “No mundomoral como no mundo físico, todas as cousasmudam sempre sobre uma base que não mudanunca”1. A força da inteligência e a visão deobjetividade das “cousas” conciliaram-se para

1 BARBOSA, Rui. Excursão eleitoral.Rio deJaneiro: Ministério da Educação e Cultura, 1965. p.81. (Obras Completas de Rui Barbosa, v.36, t. 1, 1909).

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traçar a linha fundamental de interpretação dosproblemas. À luz da variabilidade das situaçõesexamináveis e da firmeza de idéias cardeais, es-tabelecia ou formulava o juízo de valor.

Nessa orientação de raciocínio e proceder,manteve um ideário permanente, do reconheci-mento da superioridade incontrastável da Cons-tituição à defesa da ordem democrática e dosdireitos e garantias individuais e sociais, semabdicar do anseio de reforma da Carta de 1891.Mencionando acontecimentos e datas, ele nãoexagerou ao proclamar, já no entardecer, em1919: “Sou assim de bem moço, dos mais ver-des anos da vida, pertinaz e testudaço nas mi-nhas idéias do bem e da verdade”2. Dessa per-tinácia deu exemplos singularmente educativos,sacrificando oportunidades e postos por amorde convicções, inclusive ao alienar apoios comocandidato à Presidência da República e não ce-der na proposta de revisão constitucional. Nãosendo idólatra das “formas de governo”, se-gundo declarou no Senado em 18963, já haviaoptado, contudo, ainda na Monarquia, do ân-gulo da estrutura do Estado, pelo sistema fede-rativo. E não experimentou vacilação, mesmoquando as instituições republicanas emergen-tes foram abaladas nas suas raízes.

2. Rui e a federaçãoEm junho de 1889, na iminência, portanto,

da República, salientou que a federação, sendomedida “essencialmente liberal”, era, “ao mes-mo tempo, nas circunstâncias atuais do país,uma reforma eminentemente conservadora”,porque, diante do “descontentamento”, da “des-confiança” e do “desalento” das províncias como Império centralizador, “consolidaria em grani-to a unidade da pátria”. Em setembro, escreviaque “a idéia federal”, decerto, não empolgariacomo o abolicionismo, que, para vencer umaresistência sobre-humana, precisara de “todoum exército combatente”. E, sentindo a energiada realidade, advertiu:

“A federação, porém, tudo a prepara,tudo a facilita, tudo a exige: o meio ameri-cano, a natureza física, a heterogeneidade

dos interesses regionais, o ódio acumu-lado das províncias, a convergência qua-se unânime dos partidos. E que obstácu-los a encontram? Apenas algumas pre-venções de espíritos atrasados, ou pes-simistas, e o zelo áulico de um gabinetemais imperialista que o Imperador”.4

Apontava, dessa maneira, os motivos e osfundamentos políticos sobre que se instituía afederação.

Também em junho de 89 demonstrava suadesambição e a robustez de seu espírito federa-lista. Como relembra João Mangabeira, subin-do, então, o Partido Liberal ao poder, e designa-do Ouro Preto para organizar o gabinete, incluio nome de Rui entre os ministros, com a aquies-cência do Imperador. O Conselheiro Dantascomunica-lhe o fato e ouve a indagação: – e“Afonso Celso já admite, no seu programa, afederação?” Não obstante o próprio AfonsoCelso lhe haver dito que no seu programa esta-va “a descentralização, que é meio caminho dafederação”, Rui recusou o Ministério. Rematan-do os entendimentos, afirmou: “Não amarro atrouxa de minhas convicções, por amor de umMinistério”5.

Defensor, na teoria e na prática, da armadu-ra federalista, resistiu, no Ministério da Fazen-da do primeiro governo republicano, às defor-mações intentadas, provindas sobretudo daAssembléia Constituinte. Diante de “exagera-da concepção federalista, que hipertrofia atéquase os limites da soberania a autonomia dosEstados”, observa Aliomar Baleeiro que

“Rui prevê, desde logo, os perigosque essa doutrina engendraria para aunidade nacional e para vários outrosinteresses magnos do país, como, porexemplo, o sistema de bancos e impostos”.

Em resguardo da federação autêntica e não-desfigurada, ou seja, da federação geradora deUnião fortalecida com Estados titulares dedireitos próprios, sem risco de desequilíbrioameaçador da coexistência consentida, pugnoudecisivamente. “A sua ação na Constituinte, aessa luz” – acrescenta Baleeiro com a autoridadede professor de Finanças –, “deve ser contabi-lizada entre os seus mais inestimáveis serviços2 BARBOSA, Rui. Uma campanha política : a

sucessão governamental na Bahia, 1919–1920. Textoorganizado por Homero Pires. São Paulo : Saraiva,1932. p. 84.

3 BARBOSA, Rui. Tribuna parlamentar. Rio deJaneiro : Casa de Rui Barbosa, 1954. V. 5 v. 2, p.326-327: República. (Obras seletas de Rui Barbosa,v. 2). Discurso no Senado em outubro de 1896.

4 BARBOSA, Rui. Campanhas Jornalísticas.Rio de Janeiro : Casa de Rui Barbosa, 1956. 3 v. V. 6,p. 169-175 e 215-220 : Império, 1886-1889. (Obrasseletas de Rui Barbosa, v. 6). Artigos no Diário deNotícias.

5 MANGABEIRA, João. Ruy, o estadista daRepública. 3. ed. São Paulo : Martins, 1960. p. 31-33.

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7Brasília a. 33 n. 130 abril/jun. 1996

ao país, resguardando a própria integridade dotodo nacional contra a ignorância de uns e aobstinação regionalista de vários”. De anotar,ainda, é que agia com o senso do político, tran-sigindo “num momento, como o fez acerca dapluralidade dos bancos emissores, (...) para re-conquistar o campo meses depois, tendo dian-te dos olhos o Banco Federal de Hamilton”, eassim evitar a “anarquia monetária” e conter as“aspirações dos que pretendiam copiar os pre-cedentes dos Estados Unidos sem conhecê-losnas suas raízes históricas e na sua realidadefuncional”.6

3. Resistência às deformaçõesCrescia, porém, a tendência ultrafederalista

na Assembléia Constituinte. Era forte a inclina-ção a construir-se um regime com grave cercea-mento dos poderes da União, inclusive no cam-po tributário, e em favor da ampliação da órbitados Estados. Pinto de Aguiar, no extenso e por-menorizado estudo Rui e a Economia Brasilei-ra, ao lado de sua apreciação, invoca o teste-munho de José Maria Belo e Felisbelo Freiresobre esse movimento de ampliação excessivada competência dos Estados.7

Diante disso, o Ministro da Fazenda doGoverno Provisório não se limitou à ação admi-nistrativa. Autor principal do Projeto de Cons-tituição, que nessa perspectiva seria profunda-mente alterado, compareceu à Constituinte econvocou os representantes eleitos à conside-ração da realidade. Salientando que “era fede-ralista, antes de ser republicano”, realçou que“na União nascemos”. À vista da demonstra-ção financeira que fez, observou: “fora da Uniãonão há conservação para os estados”. Basea-do em dados históricos e concretos, desenvol-veu a doutrina correta:

“A federação pressupõe a União, edeve destinar-se a robustecê-la. (...) Osque partem dos estados para a União, emvez de partir da União para os estados,transpõem os termos do problema”.

Daí não se há de imaginar que admitisse a tiraniado centro sobre as unidades consorciadas. Fielà pureza do regime, sabia que na prática de freiose contrapesos residia a forma de manter a

harmonia. Como esclareceu,“a União deixou de ser a opressão siste-matizada das localidades pelo centro. Sobo regímen federal, a União não é mais quea substância organizada dos estados, aindividualidade natural constituída poreles, desenvolvendo-se pelo equilíbriodas forças de todos”.

Tinha, pois, visão nítida da estrutura e dofuncionamento da federação, vendo a União eos Estados como forças interdependentes. Arelativa preponderância da União não signifi-cava tipo de vassalagem dos Estados, porémmecanismo de garantia da unidade instituída.Tanto que censurou a teoria criadora de con-traste entre ela e eles: “os que põem de umaparte os estados, de outra a União”, – ponde-rou – “estabelecem uma discriminação arbitrá-ria e destruidora. Os estados são órgãos; aUnião é o agregado orgânico. Os órgãos nãopodem viver fora do organismo, assim como oorganismo não existe sem os órgãos”. E depoisde salientar que o político não pode proceder“como o anatomista, que opera sobre o cadá-ver”, e sim na posição “do biólogo, que inter-preta a natureza viva”, aconselhou: “Não veja-mos na União uma potência isolada no centro,mas o resultante das forças associadas dissemi-nando-se equilibradamente até às extremidades”.

Preocupado, assim, com a correlação devalores na federação, ameaçada por idéias eemendas correntes na Assembléia Constituin-te, entrou a examinar a razoabilidade do Projeto,que deferia aos Estados, privativamente, decre-tar impostos sobre a exportação de mercadori-as, sobre a propriedade territorial e sobre trans-missão de propriedade (art. 8º). À União foi re-servada a competência exclusiva de decretarimpostos sobre a importação de procedênciaestrangeira e de direitos de entrada, saída e es-tada de navios, bem como taxas de selo e con-tribuições postais e telegráficas, a criação emanutenção de alfândegas e a instituição debancos emissores (art. 6º). Sem dúvida, vistahoje, essa distribuição de competência tributá-ria não impressiona. É de ver, porém, que Rui asustentava no começo da República, noutraconfiguração econômica e quando as provínci-as do Império unitário apenas se transforma-vam em Estados autônomos. Além disso, dan-do relevo às “três fontes de renda” atribuídasàs unidades federadas, ele divisou procedi-mentos destinados a aumentar a arrecadação,observando: “muitos ramos de matéria tributável

6 BALEEIRO, Aliomar. Rui, um estadista noMinistério da Fazenda. Rio de Janeiro : Casa de RuiBarbosa, 1952. p. 106-107.

7 AGUIAR, Pinto de. Rui e a economia brasileira .Rio de Janeiro : Casa de Rui Barbosa, 1973. p. 491-510.

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Revista de Informação Legislativa8

estão por aí ainda virgens” em campo “de con-siderável fecundidade”. Com ânimo de pesqui-sador, asseverava:

“Não havemos de cingir-nos, emmatéria de impostos, aos instrumentosenferrujados, às fontes escassas, de quese sustentavam as províncias no antigoregímen”.

Não se restringiu, aliás, a essa observaçãoda realidade. O reformador social acrescentouque “o imposto geral sobre a propriedade” – enão estritamente o imposto territorial – deviarecair “englobadamente sobre o total dos ha-veres do contribuinte”. Era de abranger “a pro-priedade real e pessoal, não só a terra, as cons-truções, todas as expressões diretas da rique-za, como o conjunto dessas representaçõesconvencionais dela, a que os americanos cha-mam propriedade intangível: os títulos, asações, as dívidas de livro, a renda”. Com baseno direito comparado, apontava outras fontesde receita, como o imposto sobre o álcool e so-bre o fumo, indagando: “Que obstáculos nosinibem de romper caminho por esses rumos inex-plorados?” Mentalidade renovadora, via à frentede seus contemporâneos, e o espírito público olevava, também, a reclamar dos Estados “oscortes possíveis, necessários, urgentes na suadespesa”.8

Como se vê, Rui era homem que não se sub-metia, em forma de rotina, às idéias e aos costu-mes vigorantes e criticava as omissões, tantoquanto os excessos, o que ele denominou, jus-tamente com referência à federação, “precon-cepções aéreas de teoristas, que nem a história,nem a ciência, nem a relatividade das circuns-tâncias podem justificar”.

4. Repulsa à intervenção nos EstadosSe defendeu a legítima ordem federativa no

tecido da Constituição, guardou a postura devigilante de sua prática regular. Não houve in-teresse político, partidário ou pessoal, que odemovesse de resistir às deformações do regi-me. Para varrê-las, procedia destemidamente,mesmo que sua atitude beneficiasse um adver-sário. Com determinada impessoalidade, já des-dobrava seu “curso de educação constitucional”.

A intervenção federal nos Estados, embora

prevista em estilo restritivo na Carta de 1891(art. 6º), tornou-se praxe política, destruidorada autonomia dos Estados, por vezes em con-chavo com situações locais. Ao analisar a “gran-de adulteração” desse dispositivo, no caso daintervenção de 1920 na Bahia, Rui opôs

“a reivindicação do direito constitucio-nal nas suas intenções exatas, nas suasnormas legítimas, nas suas verdades es-senciais, contra os interesses do poder,que o tem abastardado em grosseirasdeturpações”.

Argüindo sua qualidade de elaborador daConstituição, objetou que a cláusula interven-tiva pressupõe sempre a verificação de motivosreais que a autorizem. O preceito constitucional,frisou,

“quer dizer que não basta alegar-se ainvasão dos Estados, não basta argüir-se a transgressão da forma republicanafederativa, não basta acusar-se inexe-cução de leis ou sentenças federais, paraque o governo da União deva logointervir. Quer dizer que a esse governo anorma constitucional ensancha a discri-ção necessária, para só intervir, quando,não somente estiver averiguada a exis-tência de qualquer desses casos, mas asua realidade e gravidade forem tais, quenão tenham a resolver-se por si mesmos,e exijam absolutamente a interposição damedida extraordinária, para o restabele-cimento da ordem legal”.

E especificou, evitando dúvida:“A forma republicana federativa pode

sofrer, em qualquer Estado, violaçõesacidentais e transitórias, que não deman-dem a ingerência do poder federal, para amanter”.

Se nessa época, no caso que propiciou taisponderações, havia antes admitido a interven-ção, Rui expõe que assim opinara prevendo anomeação de um interventor sem paixões, “comos poderes do costume”, para restabelecer atranqüilidade pública e a legitimidade eleitoraldiante do governo estadual desenvolto, querejeitara a medida. A posterior intervenção, porpedido do poder local, refletia o conchavo quea desnaturava: “isto é – escreve ele – recusandoa intervenção, para manter a forma republi-cana, e concedendo-a, para manter a ausênciadessa forma, sustentando o governo estadual,que a excluía, fez o presidente o contrário, dia-metralmente o contrário, do que a Constituição

8 BARBOSA, Rui. A Constituição de 1891. Riode Janeiro : Ministério da Educação e Saúde, 1946. p.141-204. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 17, t.1, 1890) cits. p. 148, 158, 161, 188, 190-194 e 202.

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9Brasília a. 33 n. 130 abril/jun. 1996

lhe requeria”. Ainda, porém, que a presença dele,na hipótese referida, envolvesse-o em suspeiçãoquanto aos fatos discutidos, as idéias expostascondizem com a natureza da federação, e eraverdade incontraditável a degeneração do regi-me, entre a “ditadura central” e as “ditaduraslocais”9. Já antes, e também na Bahia, em 1912,havia-se projetado a desfiguração do regimerepublicano e federativo, embora sem ato for-mal de intervenção, com o bombardeio de áreasda capital por tropas federais e a ação abusivade oficiais militares no meio político, reduzindoos governantes estaduais a situação constran-gedora. Tais acontecimentos originaram suces-sivos habeas corpus ao Supremo Tribunal Fe-deral, em que Rui pediu a proteção constitucio-nal para diversas autoridades, em face da “oni-potência armada”, que atribuía à responsabili-dade do Presidente da República10.

Em Pernambuco e no Amazonas, Rui nãotinha interesse político, senão de ordem insti-tucional, mas reagiu à subversão com a mesmaenergia. No caso do Amazonas, analisou e criti-cou a violência, em discursos e pareceres, com-provando que

“o bombardeio de Manaus, a deposiçãodo Governador pelas armas federais sãoextremos de anarquia e selvageria, cujaexplosão inesperada nos acabrunha”.

Depois de demonstrar que a solução legalestaria entre as autoridades locais, sobretudono Legislativo, condenou a hipertrofia dospoderes da União, sua “tendência absorvente”de “converter o Governo Federal em interventorcontínuo da vida constitucional do Estado”11.Marca superior dessa atitude, do ponto de vistapolítico e moral, é que Rui, “assim procedendo,colocava-se contra Jônatas Pedrosa, baiano eseu amigo de infância”, (...) “e, em contraposi-ção, defendia o direito de Antônio Bittencourt,seu desafeto”, como informa João Mangabeira,com o conhecimento direto dos fatos. Dele tam-bém é o testemunho pessoal sobre a postura deRui quanto à intervenção em Pernambuco. “Por

cerca de quatro horas, – recorda o discípulo – a12 de dezembro de 1911, ocupa a tribuna doSenado, examinando em todos os seus porme-nores o caso de Pernambuco, já perturbado pro-fundamente pela desordem”. E, logo ao come-ço de sua oração, pondo em relevo a atuaçãode Rosa e Silva, na vitória da candidatura Her-mes, assim falava:

“Diante desses fatos, muitos supori-am que eu me houvesse de estar banhan-do em águas de rosas. Serão sentimen-tos alheios, não serão os meus. Não ha-veria sentimentos ou ressentimentos pes-soais que me demovessem de estar, coma mesma firmeza, com a mesma devoção,ao lado daqueles que, neste momento,representam, aos meus olhos, a causa dalei, da justiça e do regime constitucional”.

Ao comportamento edificante do apóstolo dosprincípios correspondeu o gesto decente de Rosae Silva, no aparte de louvor como na iniciativa deir, em seguida, à cadeira do orador para agradecer-lhe – “por mim e pelo meu Estado”12.

Defendendo com tal nobreza a integridadeda Federação, era Rui, ainda uma vez, o educa-dor político, em dimensão incomparável entreseus contemporâneos e patrícios.

5. Construtor do regime federativoO que imortaliza, porém, a cultura jurídica e

política é a capacidade de seus agentes de cons-truir as instituições e prever os mecanismos desua complementação para que possam renovar-se dentro das mudanças supervenientes. Ine-xistindo essa visão do futuro, falta seiva às cri-ações delineadas para seu desdobramento re-gular. Rui Barbosa, sem ter sido administradorpúblico antes do Governo Provisório, revelouexcepcional poder criativo e de execução dasmedidas necessárias na transição do Impériounitário para a República federativa. O Relató-rio do Ministro da Fazenda, de janeiro de 1891 –que forma dois volumes das Obras Completas– é expressivo do conhecimento doutrinário ede legislação estrangeira, bem como da percep-ção experimental dele quanto aos problemasfinanceiros e de seus vínculos com as decisõespolíticas. No contexto desse Relatório, desde ocomeço, salienta que, vitoriosa a federação,

9 BARBOSA, Rui. O art. 6º da Constituição e aintervenção de 1920 na Bahia. Rio de Janeiro :Ministério da Educação e Cultura; Casa de RuiBarbosa, 1975. p. 3, 21, 93, 100 e 112-113. (ObrasCompletas de Rui Barbosa, v. 47, t. 3, 1920).

10 BARBOSA, Rui. O caso da Bahia: petiçõesde habeas corpus. Rio de Janeiro : Ministério daEducação e Saúde, 1950. (Obras completas de RuiBarbosa, v. 39, t. 1, 1912).

11 BARBOSA, Rui. Discursos Parlamentares :o caso do Amazonas. Rio de Janeiro : Ministério da

Educação e Cultura, 1965. p. 18-19. (ObrasCompletas de Rui Barbosa, v. 40, t. 4, 1913).

12 MANGABEIRA, João, op. cit. , p. 146-147 e169-170.

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Revista de Informação Legislativa10

“tem o nosso regímen financeiro de pas-sar pelas transformações mais profundas,especialmente quanto às fontes dereceita, algumas das quais hão detransferir-se inevitavelmente da Uniãopara os Estados, obrigando-nos a recons-tituir o nosso sistema tributário”.

Partindo dessa observação, examina os tributosa seu ver adequados ao sistema nacional, comoo imposto de renda, o territorial, o imposto sobreálcool e o sobre o fumo, a tarifa aduaneira, reve-lando, a respeito de cada qual, perfeita ciênciade sua natureza e de seus efeitos. A propósitodo imposto de renda, que analisa longamente,faz observações sócio-políticas, atuais hoje. Deum lado, realçando o “princípio de eqüidade”,adverte que

“as rendas provenientes da atividadepessoal, do trabalho diuturno do indiví-duo não devem ser tão oneradas, quantoas que espontaneamente emanam do ca-pital acumulado”.

Acentua a disparidade:“A diferença estabelecida entre as

primeiras pelo seu caráter aleatório e pe-recível e as segundas pela sua fixidez,pela sua certeza, pela sua perpetuidadereclamam distinção correspondente naproporção das taxas”.

Mostrando a inconveniência na demora dacriação desse tributo e denunciando os queviajam exageradamente, apontou-os:

“Muitos, desocupados e opulen-tos, passam a vida a despender forado país, em excursões mais ou menosociosas, os frutos e a substância decapitais, que não contribuem, na pá-tria, onde foram adquiridos, para asustentação das instituições nacio-nais. Outros, enfim, libertam-se intei-ramente desse dever de solidariedadecom o povo e o Estado, a que perten-cem, empregando a sua opulência emtítulos do Tesouro imunes de qualquercontribuição”.

O estudioso de profundidade era, também, comoMinistro, o observador da realidade socialgeradora de abusos e desigualdades, quecriticava.

Portador dessa acuidade, ao tratar da “tarifaaduaneira”, não se limitou aos aspectos do gra-vame em si, mas buscou sua repercussão no meioeconômico. Atentou, assim, na necessidade de

preservar a indústria nacional. Lucidamenteassinalou que “o desenvolvimento da indústrianão é somente, para o Estado, questão econô-mica: é, ao mesmo tempo, uma questão políti-ca”. E condenando o “regímen decaído”, inca-paz de inquietar a bem-aventurança dosposseiros do poder, “verdadeira exploração abenefício de privilegiados”, reagiu:

“não pode ser assim sob o sistema repu-blicano. A República só se consolidará,entre nós, sobre alicerces seguros, quan-do as suas funções se firmarem na demo-cracia do trabalho industrial, peça neces-sária no mecanismo do regímen, que lhetrará o equilíbrio conveniente”.

Tinha o olhar posto na construção de novasociedade, distante do Estado abstencionista.Tanto que no mesmo Relatório, em passagemanterior, aludiu aos “sacrifícios do Tesouro”,resultantes de motivos diversos, inclusive “daexpansão orgânica do Estado moderno, por in-fluxo do desenvolvimento natural da sua vidafísica, moral e econômica”. Em passo adiante,cuidou do auxílio à lavoura, entre outros objeti-vos, para que cessasse

“o monopólio da exportação dos nossosprodutos, exercitada privativamente pe-las casas estrangeiras no Brasil, filiais acasas matrizes situadas nos mercadoseuropeus e americanos, as quais explo-ram o comércio dos frutos da nossa cul-tura a preços ditados pelo arbítrio dosinteresses de uma especulação sem cor-retivos”.

A cultura universal dos problemas não lheperturbava, pois, o espírito, na fixação e defesados interesses nacionais.

Desdobrando todas essas considerações emfunção da ordem federativa, não o fez com âni-mo de parcialidade em favor da União. Preocu-pou-se com a “garantia de empréstimos aos Es-tados”, lembrando o esforço de “consolidaçãofederativa” de Hamilton nos Estados Unidos.Delineando a situação brasileira, argumentou:

“Não pode haver boas finanças naUnião, se os Estados, que a compõem,impossibilitados de acudir a compromis-sos instantes e sagrados, inibidos deconsolidar a sua dívida dispersa, virem-se paralisados entre as conseqüênciasfunestas do regímen extinto e as severasexigências de novo regímen”.

Simultaneamente, e para não deixar dúvida

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11Brasília a. 33 n. 130 abril/jun. 1996

de que a União é um poder fiscalizado, des-creveu a importância do Tribunal de Contas,como guardião do orçamento no “caráter derealidade segura, solene, inacessível a trans-gressões impunes”13.

Era, portanto, o construtor do regime nas-cente, introduzindo-lhe as práticas e os meca-nismos complementares, indispensáveis a seufuncionamento adequado e renovador. Se aevolução foi incompleta, não lhe coube respon-sabilidade, dado que lutou até morrer pelo aper-feiçoamento das instituições políticas.

6. Objetividade de pensamento e açãoSobrelevante notar é a visão objetiva de Rui

sobre os problemas, não obstante ser o Minis-tério da Fazenda o primeiro – e seria o único –cargo executivo que ocupou. Por isso, ainda nodiscurso na Assembléia Constituinte, opôs aseus contraditores o grave problema da des-proporção entre a receita e a despesa. E, ao lheser observado que “cada um gasta o que podee não o que deseja”, rebateu com descortino deestadista:

“O meu interruptor desconhece, nesteponto, regras cardeais de administraçãoem matéria financeira. Há despesas neces-sárias, sagradas, fatais no orçamento dasnações; e é só depois de ter avaliado aimportância desses sacrifícios inevitáveis,que o legislador vai fixar a receita. As na-ções não podem eximir-se a encargos quan-do as necessidades de sua existência lhosimpõem. Sua condição não é idêntica à dopai de família, à do indivíduo previdente emorigerado, que pode até reduzir-se à fome,para manter a sua honra e satisfazer osseus compromissos”14.

A consciência social das questões fazia-o sobre-pujar os adversários e lhes dar lição de bemperceber a realidade, com uma clarividência queainda hoje esmagaria governantes e financistasde estreita compreensão dos deveres do Estado.

Não admitindo, entretanto, procedimentoarbitrário, logo viu a necessidade de instituir-seum Tribunal de Contas, “como magistratura

especial, envolta nas maiores garantias dehonorabilidade, ao pé de cada abuso, de cadagérmen ou possibilidade eventual dele”15. Des-se modo, conjugava o reconhecimento das exi-gências de ordem pública e as limitações dopoder democrático em benefício da sociedade.Na era do liberalismo, afirmava o Estado repu-blicano e federativo limitado, porém atuante,promotor do bem público.

Sempre na linha de transformações naturais,interpretadas à luz da experiência, louvou a so-brevivência centenária da Constituição ameri-cana e seus reflexos. Manifestando, ao mesmotempo, suas convicções, acentuou que aquelenotável estatuto permite

“interpretar ou restringir as exigênciasoriginárias da forma federativa, modifi-cando o desenvolvimento de suas insti-tuições, conforme o variar de certas cir-cunstâncias dominantes e as necessida-des de consolidação do laço nacional,pela harmonia política e econômica entreos interesses muitas vezes contraditóri-os dos estados”16.

Assim antecipou, no ocaso do século XIX,o ensinamento ou a observação a que GastonBérger deu relevo, na metade do século XX, em1956, ao enunciar que o federalismo, por suaflexibilidade e por conciliar a soberania da Uniãoe a autonomia do Estado-membro, assegura a“unidade de civilização”17, ou seja, o equilíbrioentre disparidades acentuadas.

Viu tanto mais imperiosa essa “unidade decivilização” em face da complexa composiçãogeográfica, econômica, social e política do nos-so país. Diante da “vastidão” territorial diversi-ficada, divisou, com a precisão de um sismó-grafo,

“um mundo completo no âmbito das suasfronteiras, com todas as zonas, todos osclimas, todas as constituições geológi-cas, todos os relevos do solo, uma natu-reza adaptável a todos os costumes, atodas as fases da civilização, a todos osramos da atividade humana, um meio

13 BARBOSA, Rui. Relatório do Ministro daFazenda. Rio de Janeiro : Ministério da Educação eSaúde, 1949. t. 3, p. 6, t. 2, p. 38, 51, 132, 143, 218,349, 352, 356, 361-362. (Obras Completas de RuiBarbosa, v. 18,6..2-3, 1891).

14 OBRAS Completas de Rui Barbosa. v. 17, t. 1,1890. cit. p. 152-153.

15 OBRAS Completas de Rui Barbosa. v. 18, t. 3,1891. cit. p. 361 e ss., e p. 380.

16 OBRAS Completas de Rui Barbosa. cit. p. 177-178.

17 BÉRGER, Gaston et al. Federalisme. Paris :Presses Universitaires de France, 1956. p. 28 : Intro-duction psychologique et philosophique aux problè-mes du federalisme. (Bibliotheque des Centresd’Etudes Superieures Specialises, 1).

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Revista de Informação Legislativa12

físico e um meio moral variáveis na maisindefinida escala”.

Daí inferiu, contrariando o processo de fáceisgeneralizações, que “o regímen da administraçãolocal necessita variar também ilimitadamente,segundo esses acidentes incalculavelmentemúltiplos, heterogêneos, opostos, como umaespécie de liga plástica”. Atento a essa diferen-ciação, ainda agora muito desprezada, advertiuque “não bastaria decretar uma Constituiçãogeral para os municípios rurais e uma Constitui-ção geral para os municípios urbanos”. Pene-trantemente observou que

“entre esses dois termos decorrem gra-dações inumeráveis, desde o litoral atéàs fronteiras, desde a bacia do Amazonasaté à do Prata, desde as costas até ossertões, desde as baixas regadas pelosgrandes rios até às regiões serranas, osvastos planaltos interiores”.

E assinalando, assim, a impossibilidade de “darorganização idêntica” a cidades do Norte, doNordeste e do Sul, concluía:

“O mais idealmente perfeito de todosos planos de governo municipal falseia,esteriliza-se, oprime, desde que se pro-cura aplicar às cegas, como estúpidarasoira, a situações tão diferentes”.

Feitas essas observações em 4 de outubrode 1889, no Diário de Notícias, pôde Rui rema-tar que não haveria “reorganização municipalséria, inteligente, fecunda antes da federação”18.

Tinha ele razão, pois, ao declarar, já no Ministé-rio da Fazenda, que fora federalista, antes deser republicano. Justo é acrescentar–se: e deuvida, na República, ao regime federativo.

7. Inspirador do futuro

Enfim, pela dimensão de suas idéias e porsua capacidade de as explicar e executar, consi-derando os fatores peculiares ao país, como odemonstrou nas funções de Ministro, Rui foium pensador e praticante do federalismo evo-lutivo. Desprezou abstrações e excessos. Pre-conizou e adotou soluções de irrecusável obje-tividade, logicamente fundadas.

O exemplo de seu pensamento e de sua ati-vidade, diante do destino do Brasil para o regi-me federativo, é fonte permanente de ilustraçãono exame dos problemas institucionais de hoje.Nem sempre suas advertências, teses e propo-sições serão aceitáveis, perante a variação decircunstâncias. Mas, mesmo quando não pre-valecentes, são valiosas como dados compara-tivos e de reflexão, por sua força informativa edialética. Inspiram a busca das conclusões maisconvenientes ao país. Em face da persistentediversidade sócio-econômica e cultural das re-giões, que divide brutalmente as populações,os ensinamentos magistrais que nos legou ser-vem de bússola no caminho de correção dasdesigualdades. É a projeção da inteligência queconstruiu para o futuro.

18 BARBOSA, Rui. Queda do Império : Diáriode Notícias. Rio de Janeiro : Ministério de Educaçãoe Saúde, 1948. p. 29-37. (Obras Completas de RuiBarbosa, v. 16, t. 7, 1889). cits. p. 35-37.

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13Brasília a. 33 n. 130 abril/jun. 1996

Limites jurídicos da correção monetáriatrabalhista

JOSÉ PITAS

SUMÁRIO

Introdução: a) legitimidade da correção mone-tária. 1. Da instabilidade legislativa: a) situação atualda questão. 2. Dos métodos de atualização: a) métodosintético e método analítico. 3. Das ressalvas àstabelas: a) época própria, b) tendência jurídica etendência econômica, c) aplicação da Lei nº 6.899,de 8.4.81. 4. Do fundamento jurídico: a) fatoeconômico e fato jurídico, b) diretrizes herme-nêuticas. 5. Dos Juros de Mora: a) conceito leigo econceito técnico, b) títulos inconfundíveis, c)obrigações vencidas e vincendas, d) taxas.

1. Introdução

a) legitimidade da correção monetária

Na aplicação da Lei nº 8.177, de 1º de marçode 1991, torna-se prudente não incidir no equí-voco induzido pelo raciocínio pré-lógico, con-fundindo aparência e conteúdo do Direito, umavez que, por motivação político-legislativa,adotou-se forma literal com objetivo peda-gógico de eliminação da “inflação inercial”,pela substituição, no artigo 39, da expressão“correção monetária” por “juros de mora”(conceito leigo).

Deve-se atentar que o fato econômico, porsi, é insuficiente para conferir o direito de exi-gência coercitiva da atualização monetária, pois,desde os bancos acadêmicos, sabe-se que ofato comum só se convola em fato jurídico pelaconvergência de dois fatores essenciais: inte-resse e norma jurídica válida.

Não é a preferência do aplicador do Direito,mas, sim, a opção do legislador, que dirá qualcritério deve ser adotado para a correçãomonetária.

José Severino da Silva Pitas é Juiz do trabalho,Presidente da 2ª JCJ de Franca-SP, Professor convi-dado da Faculdade de Direito de Franca e membro doInstituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Jr.

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Essa inteligência revela-se pela evidênciahistórico-sistemática da matéria e foi confirmadapelo § 6º do artigo 27 da Lei nº 9.069, de 29 dejunho de 1995 (norma de interpretação autêntica).

Existe uma tabela que possa demonstrar aatualização monetária, de forma transparente,simples, sob estrita observância do Direito, li-berando o usuário da dependência de especia-listas ou de publicações mensais?

Os coeficientes das tabelas expressam fiel-mente as taxas oficiais da inflação, representama correta variação temporal e correspondem aoconceito legal de época própria?

O fator TR/TRD constitui índice idôneo,padrão jurídico legítimo de correção monetária?

Os coeficientes trazem embutida, em seusfatores, a taxa de juros?

Qual o termo inicial de sua contagem?

1. Da instabilidade legislativaAs várias alterações havidas no Sistema

Monetário Nacional têm gerado confusões,inseguranças e dificuldades ao tormentosoprocedimento da liquidação de sentença.

A estabilidade das relações – fundamentoprincipiológico e teleológico da autoridade dodireito – chega a ser desestruturada ante a cons-tante elaboração de normas jurídicas sobre amesma relação.

a) situação atual da questão

Desde a instituição da correção monetária,pelo Decreto-Lei nº 75, de 21 de novembro del966, até o advento do Plano Cruzado, no pri-meiro trimestre de l986, a Secretaria do Planeja-mento do Governo Federal – Seplan – vinhapublicando, regularmente, tabelas trimestraispara a atualização dos débitos judiciais traba-lhistas.

Neste segmento, a unicidade de taxa e aoficialidade de sua publicação conferiramsustentação à estabilidade do mecanismo decorreção monetária ao ponto de muitos ig-norarem, mais tarde, a revolução trazida pelaLei nº 6.899, de 8 de abril de l98l, no critériotemporal de variação da ORTN – índiceoficial aplicável à correção monetária – quepassara de trimestral para mensal.

Em face da omissão do Governo, tabelassupletivas surgiram com o objetivo de sinteti-zar toda legislação e dar apoio ao usuáriocomum. A primeira tabela publicada nestaesteira, pelo que consta, foi divulgada pela Editora

Ltr, no Suplemento Trabalhista nº 81-388/86, deautoria de José Pitas, com apoio técnico do peritoFrancisco Cassiano Teixeira, de Jaboticabal-SP,fundamentada em tese aprovada no II Encontrode Juízes do Trabalho do TRT da 2ª Região, noano de 1986.

2. Dos métodos de atualização

a) método sintético e método analítico

O método sintético fornece os coeficientespara aplicação direta sobre o valor nominal su-jeito à correção. O produto resultante da multi-plicação dos respectivos fatores (valor nomi-nal e coeficiente de atualização) converterá ovalor nominal original em valor nominalcorrigido para o dia a que se refere a publicaçãodo respectivo coeficiente.

Exemplares desse método são as publica-ções das tabelas trimestrais da Seplan, asTabelas Mensais Pitas-Diva, Pitas-Sylvio, TRTda 2ª Região, Juarez Varallo, e Tabelas DiáriasPitas-Diva e Pitas-Sylvio Rodrigues.

O método sintético, introduzido por JoséPitas (Revista Ltr, São Paulo, nº 171/94, p. 953-962. Suplemento Trabalhista; Revista BIT, nº48, p. 47-52, abr. 1995) corresponde à TabelaPermanente, aplicável, alternativamente, apóso advento da Lei nº 8.l77, de 1º de março de l99l.

3. Das ressalvas às tabelas

a) época própriaHá tabelas cujos coeficientes tornam

inexato o produto da atualização monetária,por desconsiderar o conceito de época pró-pria, após o advento da Lei nº 8.l77/91, queadotou a correção monetária pela variaçãodiária do índice inflacionário.

Época própria para o Decreto-Lei nº 75/66, segundo as tabelas da Seplan, correspon-dia ao trimestre em que a obrigação teve seuvencimento. Época própria, após o adventoda Lei Geral nº 6.899/8l e Decreto-Lei nº 2.322/87, correspondia ao mês em que houve ovencimento da obrigação.

E, época própria, para o artigo 39 da Leinº 8.l77/9l, que adotou as disposições daMedida Provisória nº 294, de 31.1.91, define-se pela data em que o empregador deveriapagar a obrigação prevista em lei, acordoou convenção coletiva, sentença normativa,

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15Brasília a. 33 n. 130 abril/jun. 1996

cláusula contratual, além das sentençashomologatórias e acordos extrajudiciais vá-lidos (as duas últimas figuras não se encon-tram na literalidade do artigo 39).

As únicas tabelas que atendem à exigên-cia legal de época própria, após fevereiro de1991, são as Tabelas Diárias e a TabelaPermanente.

b) tendência jurídica e tendência econômica

A elaboração das tabelas de Correção Mo-netária sofre influência, ora da tendênciajurídica, ora da tendência econômica.

Ponto que ilustra a tendência econômicaverifica-se nas tabelas do economista e as-sessor do TRT da 9 ª Região Juarez Varallo enas tabelas do perito Décio de Oliveira emrelação ao período que vai de 3 de março del986 a 1º de março de l987, em que o Decreto-Lei nº 2.283, de 28 de fevereiro de l986, emseu art. 6º, determinou a estabilidade (con-gelamento) do índice utilizado para indica-ção da inflação aplicável aos débitos judici-ais trabalhistas. Nesse segmento essas ta-belas adotaram coeficientes variáveis atribu-indo-se às OTNs valores economicamenteproporcionais.

Adotaram entendimento divergente dasduas tabelas citadas e aplicaram o dispostono artigo específico a Tabela do TRT da 2ªRegião e as Tabelas Pitas-Diva/ Pitas-Sylvio.

c) aplicação da Lei nº 6.899 de 8.4.81

Há tabelas, como a de Juarez Varallo, quemantêm o critério da trimestralidade da ORTNaté o advento do Plano Cruzado, enquanto asoutras substituíram este segmento temporal pelavariação mensal da ORTN após a publicação daLei Geral nº 6.899, de 8 de abril de 1981, como asTabelas Pitas-Diva/ Pitas-Sylvio e a Tabela doTRT da 2ª Região.

A Lei nº 6.899 foi introduzida no ordena-mento jurídico nacional com o objetivo de “de-terminar a aplicação da correção monetária nosdébitos oriundos de decisão judicial”, confe-rindo ao instituto caráter universal.

Este atributo jurídico, bem como a cargade intensa eficácia reclamada pelos fatos econferida pela lei, à época, encorajou a juris-prudência a reconhecer o efeito derrogatórioao Decreto-Lei nº 75/66, que mantinha a varia-ção trimestral do índice oficial de correçãomonetária, a ORTN.

4. Do fundamento jurídico

a) fato econômico e fato jurídico

Com o devido respeito a entendimentoscontrários, há equívoco elementar de interpre-tação quanto ao índice oficial medidor dainflação nas relações trabalhistas, por descon-sideração a lições preliminares aprendidas nosbancos da escola e conseqüente heresia àJurisprudência pelo desuso da metodologia eobjeto próprio do Direito.

Os fatos jurídicos (objeto do Direito) cons-tituem o “ponto de apoio” sobre o qual a “ala-vanca do Direito” afirma a autoridade do inte-resse juridicamante protegido, ante a multifa-riedade conflituosa de vontades e valores.

A inflação é originariamente um fato mera-mente econômico e seus efeitos variam em pro-porção direta ao universo de artigos e serviçosconsumidos, bem como em relação à populaçãoconsumidora, razão por que, como todo fatonão-jurídico, sua medida é fluida no tempo eno espaço.

O fato econômico, por si só, não é necessa-riamente fundamento suficiente para convertero interesse geral em interesse juridicamente exi-gível perante o Estado. Todo fato jurídico passaa existir no universo do Direito pela confluên-cia de dois elementos: a) interesse, e b) normadisciplinadora do direito.

Conseqüentemente, não será a interpretaçãodo aplicador da lei com tendência a escolherum índice em detrimento de outro, porque jul-gue mais próximo da inflação, que conferiráautoridade à sua decisão, pois a validade, a le-gitimidade de interesse juridicamente protegidoe elevado ao mínimo ético, coercivamente exigí-vel perante o Estado, só encontra autoridadena norma jurídica.

É a lei que diz se este ou aquele índice consti-tui padrão de correção monetária, ou não, antesua positivação por motivos políticos, sociais eeconômicos. Ao aplicador da lei cabe utilizar-se,predominantemente, do raciocínio dedutivo parareconhecer o padrão selecionado pelo legisladore não, indutivamente, colocar-se no lugar do le-gislador, desprezando a lucidez da lei.

Habemus legem, e, por interpretação autênti-ca, o § 6º do artigo 27 da Lei nº 9.069, de 29 dejunho de 1995, reiterou de forma soberana que:

“Continua aplicável aos débitos trabalhistaso disposto no art. 39 da Lei nº 8.177, de 1º demarço de 1991.”

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Revista de Informação Legislativa16

Por outro lado, sabe-se que, tecnicamente,o artigo 39 da citada lei, em seu caput, ao refe-rir-se a “juros de mora”, está tratando deatualização monetária e, evidentemente, não dizrespeito à remuneração do capital, conteúdotécnico dos juros, cuja parcela está excluída docálculo da TR. Os juros de mora, stricto sensu,como evidencia a exegese histórica, sistemáticae o conteúdo material do título, estão discipli-nados no § 1º do artigo 39 da Lei 8.177/91.

O intérprete da lei não pode ser seduzido eiludido pela aparência do Direito. Aprende-se,desde cedo na escola, que o nomen iuris nãocorresponde necessariamente ao conteúdo doDireito.

Deve-se reconhecer, portanto, como fatojurídico pacífico que os débitos judiciais traba-lhistas:

“(...) quando não satisfeitos, nas épocaspróprias, serão monetariamente corri-gidos pela variação da TRD acumuladano período compreendido entre a datado vencimento da obrigação e o seuefetivo pagamento.” (deduzido do art. 39referido).

A lei alude, expressamente, à Taxa Referen-cial Diária. A variação, portanto, deve ser dedia a dia.

b) diretrizes hermenêuticas

Pelos postulados e vetores inerentes à her-menêutica jurídica, tem-se como verdadeiro que,na interpretação da lei, o exegeta não deverá:

1. substituir a explicação simples pelacomplexa;

2. substituir a conclusão razoável pelaabsurda;

3. substituir o efeito mais eficaz pelo de efi-cácia insuficiente;

4. substituir o possível pelo impossível;5. substituir o fato jurídico pela pretensão;6. substituir o conteúdo do Direito pelo

nomen iuris;7. substituir a exigência dos princípios

estruturais do Direito por sua aparência literal.O fundamento lógico do Direito pressupõe

a existência de princípios diretivos da retainterpretação, dentre eles, o de que o legisladoré o transmissor da consciência coletiva jurídicae histórica do povo. Conseqüentemente, as nor-mas jurídicas devem ser lidas sob o postulado

de que expressam inteligência, justiça e coerên-cia, e principalmente se deve ter como premissaque o legislador não cuida do óbvio, não cuidado incontrovertido, não cuida do absurdo, nemcuida do impossível.

No caput do artigo 39 onde o legisladormenciona “juros de mora” toda razão jurídicarevela que significa, portanto, “correção mone-tária”. A interpretação sistemática do próprioartigo assinala para esse fato. A necessidadepolítica, principalmente na época de sua edi-ção, esclarece o uso pedagógico da lei para seeliminar a chamada inflação inercial.

5. Dos juros de mora

a) conceito técnico e conceito leigo

Juros de mora não se confundem com cor-reção monetária. Tecnicamente, correspondema acessório, fruto, remuneração, “aluguel for-çado” ou convencional do capital.

A propósito, a ficta parcela (conseqüenteda correção monetária) destinada a reajustar ocapital original, não deixa, por isto, de ser capi-tal principal. Há quem erroneamente distingaesta parcela como título diverso, classificando-ocomo acessório. Capital nominal original oucapital nominal atualizado mantém a mesma na-tureza jurídica de capital principal. Os juros demora, sim, constituem título acessório.

A parcela correspondente à correção mo-netária, objetiva satisfazer o mecanismo de re-denominação do valor original da obrigaçãopara nova denominação (valor atualizado, va-lor derivado) tal que se mantenha o valor real(poder de compra), juridicamente protegido.

A parcela correspondente aos juros de moraobjetiva remunerar o capital licitamente usado(empréstimo), ou ilicitamente retido (débitojudicial), segundo a taxa ajustada, ou a taxaprevista na lei.

As próprias Tabelas de Correção Monetáriatornam evidente que os seus coeficientes sedestinam, estritamente, a atualizar os débitos, oque por si exclui juros de mora.

Revela-se evidente, portanto, não se con-fundir a acepção técnica de juros de mora coma opinião leiga, para a qual se inclui na idéia dejuros de mora toda e qualquer parcela acresci-da ao capital original, seja a remuneração docapital, a correção monetária ou parcela relativaao custo de expediente.

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b) juros e correção: títulos inconfundíveisAlgumas dúvidas surgiram à época em que

a correção monetária era feita coincidentemen-te pelas mesmas taxas aplicáveis à poupança;contudo, exame atento revelará que a coinci-dência excluía, evidentemente, a taxa de jurossobre o capital. Da mesma forma, a TRD, mal-grado receba o apelido de juros de mora (art. 39/Lei 8.177/91), de fato, como se observa em seucálculo pelo Banco Central, por suas normas epela interpretação sistemática e evolutiva doDireito, corresponde à variação inflacionária.

c) obrigações vencidas e obrigações vincendas

Os juros de mora devem ser contados, naforma do artigo 883 da CLT e parágrafo primeirodo artigo 39, desde o ajuizamento da ação.

O legislador poderia exigir sua contagem desdeo vencimento da obrigação, como seria lógico;contudo, preferiu penalizar a inércia do interes-sado. Conseqüentemente, por evidência lógico-jurídica, o termo inicial dos juros de mora paraas obrigações vincendas coincidirá com a datade exigibilidade destas obrigações.

d) taxas legais:a) Código Civil, art. l.062: taxa de 0,5% ao

mês até 26.2.87;b) Decreto-Lei nº 2.322, de 26.2.87: taxa de

1% capitalizado ao mês até 31.1.91;c) Medida Provisória nº 294, de 31.1.91 (Lei

nº 8.177/91): taxa de 1% ao mês, simples, ou prorata die, de 4 de fevereiro de 1991, em diante.

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19Brasília a. 33 n. 130 abril/jun. 1996

JETE JANE FIORATI

Jete Jane Fiorati é Professora de Direito Interna-cional dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação daUNESP, Mestre e Doutora em Direito.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. As convenções interamericanasde direito internacional privado. 3. A ConvençãoInteramericana sobre a Eficácia Extraterritorial deSentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros. 4. Odireito brasileiro atual e o reconhecimento e execuçãode sentenças e laudos arbitrais. 5. O Projeto de Leinº 4.905/95 sobre a aplicação de normas jurídicas.6. Conclusões.

1. IntroduçãoNa sociedade global atual, de caráter

complexo, estratificado, especializado e amorfo,composta por diversos e diferentes Estados,necessário o intercâmbio entre estes, seja paradisciplinar a ocupação pacífica do espaçocomum, seja para possibilitar as relações entrepessoas oriundas de Estados diversos, relaçõesestas referentes à circulação de serviços,produtos, capitais e trabalho, essenciais paraque todos possam ter acesso a melhores condi-ções de vida. Assim a sociedade internacionalorganizou-se e busca estruturar-se por inter-médio de tratados multilaterais que traduzem atentativa de criação de um direito internacionaluniformizado como o mais poderoso instrumentopara tornar realidade o sonho de uma sociedadeestruturada, devotada ao ideal de manutençãoda paz e afeita à diminuição dos desequilíbriosregionais. Tratados internacionais convivemcom normas internas elaboradas pelos Estados-Partes para disciplinar relações internacionaisdo próprio Estado, bem assim as relações entrepessoas submetidas aos ordenamentos internosno cenário internacional, relativas às trocasinternacionais de bens, produtos, serviços ecapitais.

Observa-se que o Estado moderno tem

A Convenção Interamericana sobre EficáciaExtraterritorial das Sentenças e LaudosArbitrais EstrangeirosUm paralelo com o direito interno brasileiro e com oprojeto de lei de aplicação de normas jurídicas

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como detentor da soberania o povo, que nãopode, salvo raríssimas exceções, exercê-la dire-tamente. Em feliz expressão Kompetenz de laKompetenz, Jellineck abarcou a soberania comoo poder incontrastável do Estado de auto-regulamentação por meio da exclusividade naelaboração, execução e aplicação das leis1. Apóslonga evolução, sangrenta em alguns períodos,a soberania passou a ser exercida por meio darepresentação, que tem seu corolário mais forte,hodiernamente, no princípio da igualdadeperante a lei, no sistema eletivo e na tripartiçãode funções do poder estatal.

Se assim é, indefectível a proposição de queo Poder Legislativo, como detentor precípuoda função de legislar, exerce parcela da sobe-rania do Estado ao editar suas normas, quepodem ser diversas das normas de outrosEstados. Destarte, cada Estado tem suas pró-prias normas, incluindo-se, entre elas, aquelasque disciplinam o Conflit of Law, do direitoconsuetudinário, que os doutrinadores alemãesdenominam Überrecht ou Recht des Rechtsor-denungen , influenciados pelos empiristasmedievais que compreendiam o direito interna-cional privado ou conflito de leis como LegumLeges – leis que disciplinam a aplicação e ainterpretação de outras leis. Conexas às regrasque disciplinam a resolução do conflito de leisno espaço ou direito internacional privado estãoas regras que se reportam ao reconhecimentode sentenças e laudos arbitrais estrangeiros paraefeitos de sua execução no território nacional.

Por outro lado, o Poder Judiciário, como odetentor precípuo da função de julgar, tambémexerce parcela da soberania, estando suas deci-sões confinadas aos limites de determinadoterritório e sob a égide da lei vigente nestemesmo território em determinado tempo. Aindependência dos Estados e a incontrastabi-lidade da soberania cedem espaço à prática dedeterminados atos oriundos do estrangeiro porforça da comitas gentium, da reciprocam utili-tatem e da realização dos imperativos da Justiçavigentes na sociedade internacional. Dentreestes atos, destaca-se, pela importância de quese reveste, o reconhecimento de sentençasjudiciais e laudos arbitrais provenientes deoutros Estados para efeitos de execução noterritórrio nacional. Se a doutrina da comitasgentium justifica o reconhecimento e execuçãode sentenças e laudos estrangeiros nos Estados

que se filiam à tradição jurídica continental, entreos doutrinadores do direito consuetudinário édominante a idéia de que a sentença estrangeiratem semelhança com os vested rights e comotal deve ser internamente reconhecida2.

Apesar de os Estados modernos como umtodo reconhecerem e concederem execução àssentenças judiciais e laudos arbitrais em seuterritório, estes atos não se fazem automáticos:mister a sua submissão à apreciação da jurisdi-ção local para que esta lhe conceda a eficáciaplena. Configura-se essa apreciação no pro-cesso denominado exequatur, embora a deno-minação seja inapropriada, uma vez que, em sen-tido estrito, exequatur é a ordem proferida pelajurisdição local para a execução da sentençaestrangeira e não o procedimento que lhe deuorigem. Para a concessão da executoriedade àssentenças e laudos estrangeiros, portanto, hánecessidade de prévio exame judicial, que noBrasil recebe a denominação de homologação.Em outros Estados a regra é a mesma: exige-seprévio exame do juiz ou tribunal local para que asentença estrangeira possa ter sua execuçãogarantida no Estado que não o de origem. Adiferença vem à luz quando é feita a compara-ção, relativamente aos critérios adotados pelosdiversos tribunais e juízes, acerca do âmbito eda amplitude que deva ter precitado exame.

Hodiernamente, três são os sistemas adota-dos para a concessão do exequatur: actiojudicati, revisão de mérito e delibação. Adotadosobretudo nos Estados que se filiam à tradiçãodo direito consuetudinário, a actio judicati con-substancia-se na ausência de valoração pelajurisdição local da sentença estrangeira, exi-gindo do beneficiário que promova nova ação,juntando a decisão estrangeira como prova dosfatos e direitos alegados. Em suma, pela actiojudicati a sentença estrangeira é tomada comofato notório, mas fato, peculiar ao sistemafrancês, e sua jurisprudência é o sistema darevisão de mérito, onde a jurisdição local aceitaa sentença ou laudo estrangeiro se, após reexa-minado o mérito da decisão, esta se encontrarconsentânea ao direito do Estado de origem eao direito local. Comum aos Estados Latino-Americanos, como o Brasil e a Argentina, e aosEstados que sofreram influência da doutrinaalemã em sua legislação, o sistema da delibaçãoprescreve a aceitação para efeitos de exequaturda sentença ou laudo estrangeiros após a

1 JELLINEK, G. Teoria General do Estado.Tradução de Fernando de Los Rios. Buenos Aires :Albatros, 1954. p. 356-379.

2 BATALHA, W.C.S. Tratado Elementar de DireitoInternacional Privado. 2. ed. São Paulo : RT, 1977. V.2, p. 345-346.

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verificação do cumprimento das formalidadeslegais no Estado de origem e a ausência de con-trariedade entre estes atos e a ordem públicalocal.

Passíveis de críticas são os dois primeirossistemas. No que tange a actio judicati, esta,além de ser uma ofensa às regras de solidarie-dade internacional, configura-se também numatentado ao princípio da economia processual:força-se a obtenção de um título judicial portudo e em tudo semelhante ao já possuído pelointeressado, uma vez ser difícil a qualquertribunal decidir contrariamente a um fatonotório. Quanto à revisão de mérito, a críticaque se lhe impinge é a seguinte: ao rejulgar omérito da decisão, a jurisdição local termina porreconhecer, de fato, a jurisdição estrangeiracomo mera instância inferior, cujas decisões sãosujeitas a reexame. Tanto a actio judicati quantoa revisão de mérito possuem natureza de juris-dição contenciosa, uma vez que implicam novojulgamento ou rejulgamento, respectivamente,da mesma questão objeto da sentença estran-geira.

Na doutrina brasileira também a homolo-gação tem natureza de jurisdição contenciosa,possuindo efeito constitutivo, uma vez queconcede exeqüibilidade à sentença estrangeira,criando, a partir de sua data, direitos e deveresa autor e réu no território nacional. Nesse senti-do se posicionam Pontes de Miranda3, WílsonBatalha4, Osíris Rocha5 e, com algumas ressal-vas, Frederico Marques6. Amílcar de Castroqualifica a delibação como jurisdição voluntá-ria, acreditando inexistir lide a compor entre osinteressados, uma vez não se tratar de novojulgamento7.

Ao ser homologada, a sentença estrangeiratorna-se nacional, da mesma forma que a normade direito estrangeiro aplicável por força dasregras do conflito de leis8. Destarte, é possívela rescisão de uma sentença homologatória dedecisão estrangeira porque é a homologaçãoque torna apta a sua produção interna de

efeitos. No entanto, é impossível a rescisão desentença estrangeira pela jurisdição local. Estaafirmativa é válida para os três sistemasexistentes para a concessão do exequatur,mesmo na actio judicati onde as sentençasestrangeiras são tomadas como fatos, torna-seimpossível a rescisão de fatos.

Analisadas estas questões introdutórias,cumpre um estudo aprofundado acerca daConvenção Interamericana sobre a EficáciaExtraterritorial de Sentenças e Laudos Arbitrais.

2. As convenções interamericanas dedireito internacional privado

Na segunda metade do século passado, coma publicação dos estudos de Savigny sobre anatureza da ordem pública em direito interna-cional privado, da obra de Mancini acerca dasnacionalidades e da obra de Jitta, desenvol-vendo os estudos de Savigny, acerca dautilização dos métodos em direito internacionalprivado, solidificou-se a doutrina prevalescentee inconteste até tempos muito recentes sobre anatureza jurídica do direito internacionalprivado: este é um ramo do direito público einterno de cada Estado. Destarte, cada Estadopossui suas normas específicas acerca doconflito de leis, normas estas que podem dife-renciar-se em relação a outros Estados. Observa-se que os estudos de Savigny, Jitta, Bartin eKahn, além do trabalho dos tribunais franceses,favoreceram o reconhecimento dos problemasgerais do direito internacional privado inci-dentes sobre as grandes questões especiais, oque gerou a necessidade de sistematização dosprincípios gerais do conflito de leis em meio àstentativas de codificação da parte especial.

Se assim é, qualquer tentativa de unificaçãodas regras ligadas à disciplina do conflito deleis somente poderia advir por intermédio dostratados internacionais. Dessa realidadeconscientizaram-se, ainda no final do séculopassado, europeus e latino-americanos. NaEuropa, apesar do impulso das idéias de codifi-cação das regras gerais de direito internacionalprivado com os estudos de Bartin e Kahn acercada qualificação e com a sistematização, pelaCorte de Cassação Francesa, da doutrina doreenvio, pouco se fez relativamente à unificaçãodas normas do conflito de leis até a metade desteséculo. Recentemente a Convenção de Bruxelas(1967) sistematizou alguns tópicos referentesaos aspectos especiais de direito internacional

3 MIRANDA, Pontes de. Tratado das Ações. SãoPaulo : Saraiva, 1972. V.3, p. 527.

4 BATALHA, W.C.S. Tratado Elementar de DireitoInternacional Privado. 2.ed. São Paulo : RT, 1977. V.2, p. 438.

5 ROCHA, O. Curso de Direito InternacionalPrivado. 4. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1986. p. 166.

6 MARQUES, J.F. Ensaio sobre a Jurisdição Volun-tária. São Paulo : Saraiva, 1955, V.2, p. 257-258.

7 CASTRO, A. Direito internacional privado. Riode Janeiro : Forense, 1956. V.2, p. 292.

8 MIRANDA, Pontes de. Op. cit., p. 530 e 602.

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privado no âmbito da União Européia, podendoser citada como exemplo a unificação de regrassobre o reconhecimento e execução de sen-tenças e laudos arbitrais estrangeiros e sobrequestões ligadas à competência.

Por outro lado, Mancini, quando ministrodas relações exteriores da Itália Unificada, pro-pôs aos Estados da Europa e da América Latinaa unificação das normas do conflito de leis atra-vés de tratados internacionais. Sob a influênciade Pradier-Fodini, discípulo de Mancini, foirealizada a primeira tentativa de codificaçãopelos Estados da América Latina através da ela-boração do Tratado de Lima, que somente foiratificado pela Costa Rica e pelo Peru em 1877.Outros Estados não o ratificaram tendo em vistaque o Tratado adotava teses personalistas emflagrante contrariedade à tradição dos EstadosLatino-Americanos, especialmente a Argentinae o Uruguai, que sempre defenderam o domíciliocomo regra de conexão para as questõespessoais. Apesar de praticamente não terentrado em vigor, boa parte das disposições doTratado de Lima foram reproduzidas no Tratadode Quito, firmado, já neste século, entre Equadore Colômbia.

Dez anos depois, a não-ratificação dosTratados de Lima e o desejo de criar normasque sistematizassem o conflito de leis no âmbitoda América Latina motivaram a celebração deum congresso em Montevidéu, ao qual sefizeram presentes representantes do Brasil,Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia.Nove foram os tratados celebrados, em suamaioria ratificados por todos os Estados parti-cipantes do Congresso, à exceção do Brasil, queficaram conhecidos como Tratados de Monte-vidéu. Celebrando o cinqüentenário doCongresso de Montevidéu, em 1939 foi convo-cado o Segundo Congresso de Montevidéu,do qual participaram os mesmos Estados, comexceção do Brasil. Este Congresso incluiu umarevisão dos tratados celebrados no primeirocongresso, além da conclusão de tratados sobreasilo político e direito comercial e navegação.Apesar da revisão, permaneceram os Tratadosde Montevidéu de 1889 com o mesmo espírito esistemática originais.

Simultaneamente aos trabalhos do PrimeiroCongresso de Montevidéu, foi convocada,em 1885, a Primeira Conferência InternacionalAmericana, da qual nasceu a Oficina Inter-nacional Americana em 1890 e que, sofrendoalgumas modificações em 1910, transformou-se, em 1948, na Organização dos Estados

Americanos. As resoluções da Primeira eSegunda Conferências tinham estreita rela-ção com temas de direito internacional pú-blico. As três conferências seguintes (1906,1912 e 1913) estiveram envolvidas nos estu-dos sobre temas específicos de direito inter-nacional privado, orientados os seus partici-pantes pela Junta Internacional de Juriscon-sultos, que se transformou em Comissão deJurisconsultos a partir de 1923. Esta Comis-são foi presidida pelo cubano Antônio Bus-tamante y Siryen e encarregou-se de prepa-rar um código de direito internacional priva-do que foi o primeiro código completo elabo-rado acerca das regras do conflito de leis nomundo, aprovado em 1928 na Sexta Confe-rência Internacional Americana realizada emHavana. O Tratado de Havana adotou, prati-camente sem modificações, o texto do Proje-to de Código elaborado pela Comissão pre-sidida por Bustamante y Siryen, o que tor-nou o Tratado conhecido como Código deBustamante. O Brasil ratificou o Tratado deHavana, que, devido às suas divergênciascom a Lei de Introdução ao Código Civil,motivou a revogação da mesma e a promul-gação da Lei de Introdução de 1942, aindaem vigor.

Terminada a Segunda Grande Guerra,coube à Organização dos Estados America-nos aprofundar os estudos no campo da uni-ficação das regras do conflito de leis, visan-do a compatibilização entre as três grandescodificações americanas: os Tratados deMontevidéu, o Código de Bustamante e oRestatament. Ao adotar a linha das escolasitaliana e francesa, o Código de Bustamanteterminou por destoar dos Tratados de Mon-tevidéu, o que motivou a não-ratificação doCódigo pelos Estados da Bacia do Prata e doRestatament, filiado ao direito consuetudi-nário, levando os Estados Unidos e o Cana-dá a não aderirem ao Tratado. Surgiram en-tão as conferências especializadas intera-mericanas de direito internacional privado,cujo objetivo é a disciplina de temas técni-cos especializados na área do conflito de leis,segundo a recomendação da Oitava Confe-rência Pan-Americana de 1938 acerca de umacodificação gradual e progressiva do direitointernacional privado, visando a uma inte-gração econômica como fruto do desenvolvi-mento do comércio internacional entre osEstados-Partes.

Com esses objetivos, foi convocada a

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Primeira Conferência Interamericana Especializadade Direito Internacional Privado em 1975, quese realizou no Panamá, da qual resultaram seisconvenções: Convenção Interamericana sobreconflito de leis em Matéria de Letras de Câmbioe Duplicatas; Convenção Interamericana sobreConflito de leis em Matéria de Cheques;Convenção Interamericana sobre ArbitragemComercial Internacional; Convenção Interame-ricana sobre Cartas Rogatórias; ConvençãoInteramericana sobre Recepção de Provas noEstrangeiro e Convenção Interamericana sobreMandatos no Exterior. Tendo em vista a não-discussão de todo o temário da Primeira Confe-rência Interamericana Especializada de DireitoInternacional Privado (CEDIP), nova conferênciafoi convocada e realizada em Montevidéu em1979. Os temas propostos para a discussãoforam quase que integralmente debatidos,resultando as seguintes convenções: Conven-ção Interamericana sobre Sociedades Mer-cantis; Convenção Interamericana sobreEficácia Extraterritorial de Sentenças e LaudosArbitrais Estrangeiros; Convenção Interameri-cana sobre Prova e Informação de DireitoEstrangeiro; Convenção Interamericana sobreCumprimento de Medidas Cautelares; Conven-ção Interamericana sobre Domicílio das PessoasFísicas em Direito Internacional Privado;Convenção Interamericana sobre Normas Geraisde Direito Internacional Privado e ProtocoloAdicional sobre Cartas Rogatórias.

Após a Segunda CEDIP, foram realizadas trêsnovas conferências especializadas: em 1984,realizou-se a Terceira CEDIP em La Paz, onde,dentre outras, foi aprovada a Convenção Intera-mericana sobre Eficácia Extraterritorial dasSentenças, versando especificamente sobrequestão da competência; a Quarta e QuintaCEDIPs foram realizadas em Montevidéu em 1989e 1994, e resultaram na celebração de três e duasconvenções respectivamente.

Algumas dessas convenções, como aConvenção Interamericana sobre EficáciaExtraterritorial de Sentenças e Laudos ArbitraisEstrangeiros, foram ratificadas pelo Brasil nofinal do mês de novembro de 1995; outrasencontram-se no Congresso Nacional à esperade aprovação pelos membros daquela Casa.Também a Argentina, Colômbia, Equador, Peru,Uruguai e Venezuela ratificaram a Convençãosobre a Eficácia Extraterritorial de Sentenças eLaudos Arbitrais Estrangeiros. No âmbito doMercosul, apenas o Paraguai não é signatárioda Convenção.

3. A Convenção Interamericana sobre aEficácia Extraterritorial das Sentenças e

Laudos Arbitrais EstrangeirosA Convenção Interamericana sobre Eficácia

Extraterritorial das Sentenças e Laudos ArbitraisEstrangeiros teve seu nascimento na II CEDIP,em Montevidéu, e foi elaborada de formaflexível, visando a compatibilização entre ossistemas jurídicos consuetudinário e continen-tal, que terminam por diferenciar sensivelmenteos ordenamentos jurídicos vigentes na AméricaLatina daqueles em vigor nos Estados Unidosda América e Canadá, e, dentro do sistema jurí-dico continental, o Código de Bustamante e osTratados de Montevidéu, trazendo oposição,no âmbito do Mercosul, entre o Brasil, queratificou o Código de Bustamante, e seusvizinhos da Bacia do Prata, que ratificaram osTratados de Montevidéu.

Por outro lado, existem diversos tratadosacerca do reconhecimento de sentenças estran-geiras entre os Estados americanos que exigemcritérios amplos, por parte da Convenção Inte-ramericana, para efeitos de compatibilização eharmonização entre esta e os tratados bilaterais.O Brasil, por exemplo, possui tratados bilate-rais sobre reconhecimento e execução desentenças estrangeiras com a Argentina (1991)e com o Uruguai (1992) e, em âmbito diverso daAmérica, possui tratados de reconhecimento desentenças estrangeiras com a França (1985),Espanha e Itália (1992), além de outros Estadoseuropeus. Com o impulso de integração econô-mica entre os Estados do Cone Sul, Brasil epaíses da Bacia do Prata, foi elaborado umprojeto acerca do reconhecimento e execuçãodas sentenças estrangeiras no âmbito doMercosul, a ser firmado pelos Estados-Partes.

Em âmbito global, iniciou-se em Haia, em1992, a elaboração de projetos e estudos para areformulação da Convenção de Haia sobre oReconhecimento de Sentenças Estrangeiras, daqual são signatários todos os Estados-Membros do Mercosul, à exceção do Brasil.Observa-se, portanto, uma profusão de diplomasjurídicos internacionais que versam sobre otema do reconhecimento e execução de senten-ças no continente americano. Se assim, é previ-sível a possibilidade de que cláusulas de umaconvenção estejam em flagrante contrariedadeàs cláusulas de outra.

Algumas convenções interamericanaspossuem cláusulas que possibilitam a compatibi-lização de sua aplicação com outras convenções

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divergentes. Exemplo de divergência éflagrado entre a Convenção Interamericanasobre Arbitragem Comercial Internacional ea Convenção Interamericana sobre EficáciaExtraterritorial de Sentenças e LaudosEstrangeiros, que traz no seu bojo, precisa-mente no seu art. 1º, uma cláusula de compa-tibilização extremamente duvidosa. Segundoesta cláusula, aplica-se a Convenção sobre aEficácia Extraterritorial de Sentenças eLaudos Arbitrais, no tocante aos laudos, atudo o que não estiver previsto na Convençãosobre Arbitragem Internacional.

O primeiro problema que se nota é o verifi-cado em relação à subsidiariedade da Conven-ção sobre Eficácia Extraterritorial das Sentençase Laudos Arbitrais em cotejo com a Convençãosobre Arbitragem Internacional. Ora, se doisEstados ratificaram a Convenção sobre EficáciaExtraterritorial de Sentenças e Laudos Arbitraise não ratificaram a Convenção sobre ArbitragemInternacional, a subsidiariedade na aplicaçãoda primeira convenção torna-se impossível, umavez que a subsidiariedade efetivar-se-á quandoa ratificação de ambas as convenções se derpelos dois Estados envolvidos.

Em segundo lugar, a Convenção sobreArbitragem Internacional não possui normasmuito amplas sobre a exigência do reconhe-cimento dos laudos arbitrais, não especifi-cando a documentação necessária parainstruir o pedido de exequatur de um laudoestrangeiro, uma vez que o objetivo destaConvenção é dispor sobre a obrigatoriedadedos laudos entre as partes para que possater eficácia extraterritorial. Este fato força ointérprete a retornar à Convenção sobre Efi-cácia Extraterritorial de Sentenças e Laudos,que exige ter o laudo condição de executori-edade no local de origem para efeitos deexequatur, conforme seu art.1 º.

Segundo Santos Belandro, cláusulascomo esta do art. 1º da Convenção sobre Efi-cácia Extraterritorial das Sentenças e LaudosArbitrais Estrangeiros são chamadas decláusulas de compatibilização específicas oupermissivas, porque permitem a remissão aoutras convenções. A cláusula permissiva,segundo o autor, termina por excluir o crité-rio da predominância da lei posterior sobre aanterior, permitindo critérios mais latos paraa sua interpretação como o favor negotii , aeqüidade ou o critério da finalidade perse-guida, conforme preceitua o disposto no art.9 º da Convenção Interamericana sobre

Normas Gerais de Direito internacionalprivado9.

A Convenção tem como objeto jurídico oreconhecimento de sentenças judiciais e lau-dos arbitrais proferidos em processos civis,comerciais ou trabalhistas provenientes de umEstado-Parte da Convenção. Portanto, seu âm-bito de aplicação são decisões oriundas de li-des relativas a conflitos de natureza privadaentre Estados que reciprocamente aderiram àConvenção.

No momento da ratificação, os Estadospodem restringir, por meio de reservas, o âmbitode aplicação da Convenção às sentençascondenatórias em matéria patrimonial (é o casodo Brasil), ou ampliar expressamente a abran-gência da Convenção às decisões interlocu-tórias ou que terminam o processo, às decisõesoriginadas em feitos de jurisdição voluntária ouàs sentenças penais relativamente às suas pres-crições acerca da indenização dos prejuízosdecorrentes do delito. Persistem dúvidas nocaso da restrição de um Estado acerca do âmbitode aplicação da Convenção, como, por exemplo,se esta restrição se estende ao reconhecimentodas sentenças originadas em seu território porparte de outros Estados que não impuseram amesma restrição. Em face da reciprocidade, épossível que o Estado que impôs reservas àConvenção sofra as mesmas reservas sobresuas sentenças no momento de seu reconhe-cimento por outros Estados-Partes.

O art. 2º da Convenção estabelece as con-dições para que as sentenças e laudos arbitraispossuam eficácia extraterritorial. Algumasexigências não demandam maiores dificuldades,como aquelas ligadas ao cumprimento deformalidades externas ao ato para efeitos de suaautenticidade, à tradução para o idioma doEstado receptor, à devida autenticação confor-me a lei do Estado receptor e ao caráter de coisajulgada e da imutabilidade da sentença oulaudo. Outras exigências possuem caráterprocessual, como a realização do contraditóriopara a garantia da defesa das partes, da seme-lhança do procedimento de citação entre as leisdo Estado de origem do laudo ou sentença e asleis do local do reconhecimento e execução edo trânsito em julgado da decisão.

Preceitua ainda o art. 2º que a sentença e o

9 BELANDRO, R.B.S. Vigencia de los Tratados deMontevideo de 1889 y 1940 a la Luz de las CIDIPI,II,III. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v.26, n. 103, p. 295-310, jul./set. 1989.

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e extensão do benefício de justiça gratuita aoprocesso de reconhecimento da sentença oulaudo estrangeiros quando este foi concedidono processo principal.

4. O direito interno atual e o reconheci-mento e execução de sentenças e laudos

arbitrais estrangeirosO sistema de delibação é adotado pelo Bra-

sil desde a entrada em vigor do Decreto nº 6.982/1878, que prescrevia os requisitos para o reco-nhecimento, cumprimento e execução dassentenças estrangeiras no território nacional.Posteriormente a Lei nº 221 de 1894 estabele-ceu o processo de homologação como requisi-to prévio para a execução das Cartas deSentenças proferidas por tribunais estrangei-ros e a competência do Supremo Tribunal Fe-deral para realizá-la, prevendo audiência daspartes e do Procurador-Geral da República. Em1898, o art. 8 º do Decreto nº 3.018 veio aclarar oDecreto nº 6.982/1878, prescrevendo como re-quisitos necessários à homologação de umasentença estrangeira as formalidades internassegundo o Estado sentenciador, observando-se a competência do juiz, a citação das partes, otrânsito em julgado da sentença e a autentica-ção, pelo cônsul brasileiro, dos documentos ede sua tradução por intérprete. O art. 9º vedavao exequatur de sentença contrária à ordempública ou ao direito público interno da União.

Com a promulgação do Código Civil e suaentrada em vigor em 1917, expressamentepreviam os arts. 16 a 17 da Lei de Introdução aexeqüibilidade das sentenças estrangeiras não-contrárias à ordem pública e aos bons costumes,mediante o cumprimento de condições. Estascondições foram descritas nos arts. 790 a 796do Código de Processo Civil promulgado em1939, que disciplinavam, ainda, todos os proce-dimentos e formalidades necessários à realizaçãodo processo de homologação. Em 1942 houve apromulgação de nova Lei de Introdução aoCódigo Civil, que traz, no seu art. 1510, os

laudo, para efeitos de exequatur, não podemser manifestamente contrários aos princípios eleis do Estado que deverá reconhecê-los eexecutá-los. Trata-se de uma exigência comumàs demais convenções interamericanas dedireito internacional privado, ligada à ordempública como exceção à aplicação de lei estran-geira e ao reconhecimento de sentenças estran-geiras, ínsita à problemática de todo o direito,seja como substrato valorativo do ordenamentojurídico, seja como limite, quer à manifestaçãode vontade, quer à prática de diversos atos quecom ela se chocam.

A Convenção exige também que o juiz outribunal sentenciador tenha competência paraconhecer do assunto e julgá-lo de acordo coma lei do Estado que irá conceder o exequatur.Observa-se, portanto, que a Convenção permiteum reexame da competência do juiz ou tribunalque prolatou a sentença ou laudo pelo juiz outribunal do Estado que irá reconhecê-los eexecutá-los, segundo critérios de sua lei interna.Esta disposição, consubstanciada no art. 2º,letra “d”, da Convenção, difere frontalmente dopreceito contido no art. 6º, que disciplina osprocedimentos e competência dos tribunaissobre o reconhecimento e execução de senten-ças e laudos do Estado onde deverão surtirefeito. Essa competência será regulada pelasleis internas do Estado reconhecedor. Sobrecompetência, foi elaborada, durante a III CEDIP,uma Convenção Interamericana sobre Compe-tência na Esfera Internacional para a EficáciaExtraterritorial das Sentenças Estrangeiras, que,no seu art. 12, ao disciplinar a competência dojuiz ou árbitro que prolatou o laudo, tambémpermite o reexame da competência segundo oscritérios da lei interna do Estado reconhecedor.

Ambas as convenções possuem sistemasopostos ao da Convenção de Bruxelas de 1967:nesta convenção, no âmbito da União Européia(ex-CEE), o juiz ou tribunal do Estado queconcede o exequatur não está obrigado aoreexame da competência do juiz ou tribunalsentenciador. O sistema da Convenção deBruxelas é o único, ainda hoje, a permitir aausência do reexame da competência, paraefeitos de exequatur.

A Convenção possui ainda disposiçõestradicionalmente contidas em quase todos ostratados acerca da ratificação, depósito, entradaem vigor e denúncia, prescrevendo, também,possibilidade de reconhecimento, para efeitosde exequatur, de parte do laudo ou da sentença,se não puderem ser integralmente reconhecidos,

10 Lei de Introdução ao Código Civil, art. 15: “Seráexecutada no Brasil a sentença proferida no estran-geiro, que reúna os seguintes requisitos: a) haver sidoproferida por juiz competente; b) terem sido as partescitadas ou haver-se legalmente verificada a revelia; c)ter passado em julgado e estar revestida das formali-dades necessárias para a execução no lugar em que foiproferida; d) estar traduzida por intérprete autorizado;e) ter sido homologada pelo Supremo Tribunal Federal.

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requisitos necessários ao reconhecimento, paraefeitos de exequatur, da sentença estrangeira.Nossa legislação atual sobre o reconhecimentoe homologação das sentenças estrangeirascompletou-se com a entrada em vigor do novoCódigo de Processo Civil em 197311, queestabelece as linhas mestras do processo dehomologação, delegando ao Regimento Internodo Supremo Tribunal Federal o poder denormatizar a matéria relativa ao processo dehomologação de sentenças e laudos arbitraisestrangeiros12.

Não ocorreram grandes mudanças no quetange à disciplina jurídica do exequatur nalegislação brasileira desde a sua primeira regu-lamentação em 1878, observando-se que a mai-or modificação ocorreu no âmbito da técnicajurídica utilizada na elaboração das leis e nãoem seu conteúdo. Por outro lado, ao ratificar oCódigo de Bustamante, o Brasil incorporou àsua legislação sobre o exequatur também ospreceitos contidos nos arts. 423 a 433 do referido

diploma interamericano13, que em nada diver-giam do direito interno, originário das leisinternas.

No que tange aos laudos arbitrais, estes têmos seus requisitos de validade disciplinadospelo Código de Processo Civil, arts. 1.072 a 1.102,que se consubstanciam na exigência do com-promisso entre as partes, nas obrigações e de-veres dos árbitros, na disciplina dos procedi-mentos do juízo arbitral e na exeqüibilidade doslaudos. Estas disposições referem-se aos lau-dos arbitrais proferidos em território nacional,aplicando-se aos laudos arbitrais estrangeiros

Parágrafo Único: Não dependem de homologaçãoas sentenças meramente declaratórias do estado depessoas”.

11 Código de Processo Civil de 1973. “Art. 483 : Asentença proferida por tribunal estrangeiro não teráeficácia no Brasil senão depois de homologada peloSupremo Tribunal Federal.

Parágrafo Único: A homologação obedecerá aoque dispuser o Regimento Interno do Supremo TribunalFederal.

Art. 484: A execução far-se-á por carta de sentençaextraída dos autos da homologação e obedecerá às regrasestabelecidas para a execução da sentença nacional demesma natureza”.

12 Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal:“Art. 215 : A sentença estrangeira não terá eficácia noBrasil sem a prévia homologação pelo Presidente doSupremo Tribunal Federal.

Art. 216 : Não será homologada sentença que ofendaa soberania nacional, a ordem pública e os bonscostumes.

Art.217 : Constituem requisitos indispensáveis àhomologação de sentença estrangeira: I) haver sidoproferida por juiz competente; II) terem sido as partescitadas ou haver-se legalmente verificado a revelia;III) ter passado em julgado e estar revestida das forma-lidades necessárias à execução no lugar em que foiproferida; IV) estar autenticada pelo cônsul brasileiro eestar acompanhada de tradução oficial.

Art.218: A homologação será requerida pela parteinteressada devendo a petição inicial conter as indica-ções constantes da lei processual, a ser instruída com acertidão ou cópia autêntica do texto integral da sen-tença estrangeira e com outros documentos indispen-sáveis, devidamente traduzidos e autenticados.

Parágrafo Único: O pedido de homologação da sen-tença de separação ou divórcio será também instruído

com a prova do casamento, e, no caso de estrangeirodomiciliado no Brasil, com a prova do domicílio.

Art.219: Se a petição inicial não preencher osrequisitos exigidos no artigo anterior ou apresentardefeitos ou irregularidades que dificultem o julgamento,o Presidente mandará que o requerente emende ou com-plete, no prazo de dez dias, sob pena de indeferimento.

Parágrafo Único: Será indeferida a petição quandohouver ilegitimidade de parte ou falta de interesseprocessual e das demais condições previstas em lei.

Art. 220 : Autuados a petição e os documentos, oPresidente mandará citar o requerido para, em quinzedias, contestar o pedido.

Parágrafo Primeiro: O requerido será citado poroficial de justiça, se domiciliado no Brasil, expedindo-se, para isso, carta de ordem; se domiciliado no estran-geiro, pela forma estabelecida na lei do País, expedindo-se carta rogatória.

Parágrafo Segundo: Certificado pelo oficial dejustiça ou afirmado, em qualquer caso, pelo requerente,que o citando se encontra em local ignorado, incertoou inacessível, a citação far-se-á mediante edital.

Art.221: A Contestação somente poderá versarsobre a autenticidade dos documentos, a inteligência dasentença e a observância dos requisitos indiciados nosarts. 217 e 218.

Parágrafo Primeiro: Revel ou incapaz o requerido,dar-se-lhe-á curador especial que será especialmentenotificado.

Parágrafo Segundo: Apresentada a contestação, seráadmitida réplica em cinco dias.

Parágrafo Terceiro: Transcorrido o prazo dacontestação ou réplica, oficiará o Procurador-Geral noprazo de dez dias.

Art.222: Se o requerente não promover, no prazoque lhe for marcado, mediante intimação ao advogado,o ato ou diligência que lhe competir, o Presidente julgaráextinto o processo e ordenará o arquivamento dos autos.

Art.223: Da decisão do Presidente que conceder ounegar homologação cabe agravo regimental.

Art.224: A execução far-se-á por carta de sentença,no juízo competente, observadas as regras estabecidaspara a execução de julgado nacional de mesma natureza”.

13 Código de Bustamante. “Art. 423: Toda senten-ça civil ou contenciosa administrativa proferida em

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apenas as disposições contidas nos arts. 1.097a 1.102 do supracitado diploma legal14, uma vezreferirem-se ao reconhecimento, para efeitos deexequatur, do laudo arbitral estrangeiro. Impres-cindível evidenciar, ainda, que se aplicam aoreconhecimento e execução do laudo arbitralestrangeiro as mesmas exigências legais refe-rentes ao exequatur de sentenças judiciaisestrangeiras.

Para que se possa inferir a interpretação eaplicação dos dispositivos legais supracitadose, conseqüentemente, analisar o efetivo reco-nhecimento das sentenças e dos laudos arbi-trais estrangeiros, imprescindível uma análisejurisprudencial da prática do Poder Judiciário

acerca de sua respectiva homologação. Tradi-cionalmente no Brasil, o Supremo TribunalFederal sempre teve deferida, pelas sucessivasConstituições, a competência para o exequaturdas sentenças estrangeiras. O Supremo Tribu-nal Federal desenvolveu uma jurisprudênciafirme e pacífica nos mais de cem anos de suaexistência, período em que foram pleiteadas maisde três mil homologações.

Algumas questões, diretamente relacio-nadas com o objeto dos estudos que nestetrabalho se desenvolvem, mereceram ampladiscussão pelo Plenário do Supremo TribunalFederal, questões estas de natureza cível,especificamente ligadas ao reconhecimento desentenças estrangeiras proferidas no âmbito do

um dos Estados contratantes terá força e poderá serexecutada nos demais se reunir as seguintes condições:I) que tenha competência para conhecer do assunto ejulgá-lo, de acordo com as regras deste Código, o juiz outribunal que a haja proferido; II) que as partes tenhamsido citadas pessoalmente ou por seu representante legal,para o juízo; III) que a decisão não contravenha à ordempública, ou ao Direito Público do país em que se queiraexecutar; IV) que seja executória no Estado em que seprofira; V) que se traduza autorizadamente por um fun-cionário ou intérprete oficial em que se há de executar,se ali for distinto o idioma empregado; VI) que o docu-mento em que conste reúna os requisitos necessáriospara ser considerado como autêntico no Estado de queproceda e os que exige para que faça fé a legislação doEstado em que se pretende cumprir a sentença.

Art.424 : A execução da sentença deverá ser soli-citada ao juiz ou tribunal competente para levá-la aefeito, depois de satisfeitas as formalidades requeridaspela legislação interna.

Art.425: Contra a resolução judicial, no caso a queo artigo anterior se refere, serão admitidos todos osrecursos que as leis desse Estado concedam a respeitoda sentença definitiva proferida em ação declaratóriade maior quantia.

Art.426: O juiz ou tribunal a quem se peça a execu-ção ouvirá, antes de decretá-la ou denegá-la, e no prazode vinte dias, a parte contra quem se dirige o procu-rador ou Ministério Público.

Art. 427: A citação da parte que deva ser ouvidaserá praticada mediante carta ou comissão rogatória,segundo o disposto neste Código, se tiver o seu domicíliono estrangeiro e não tiver no país, representaçãobastante, ou na fórmula estabelecida pelo Direito local,se tiver domicílio no Estado deprecado.

Art. 428: Passado o prazo que o juiz ou tribunalestabeleça para o comparecimento, prosseguirá o feito,haja ou não comparecido o citado.

Art.429: Se o cumprimento for denegado,devolver-se-á a carta de sentença a quem a tiverapresentado.

Art.430: Quando se concorde em cumprir asentença, sua execução será submetida aos trâmitesdeterminados pela lei do juiz ou tribunal para as suapróprias decisões.

Art.431: As sentenças definitivas, proferidas porum Estado contratante, cujas disposições não sejamexeqüíveis, produzirão nos demais efeitos de coisa jul-gada, se reunirem as condições que para esse fim deter-mina este Código, salvo as relativas à sua execução.

Art.432: O processo e os efeitos regulados nosartigos anteriores serão aplicados nos Estados contra-tantes às sentenças proferidas em qualquer deles porárbitros ou compositores amigáveis sempre que o as-sunto que as motiva possa ser objeto de compromisso,nos termos da legislação do país em que a execução sesolicite.

Art.433: Aplicar-se-á também este mesmo pro-cesso às sentenças cíveis proferidas em qualquer dosEstados contratantes, por um tribunal internacional,que se refiram a pessoas ou interesses privados”.

14 Código de Processo Civil. “Art. 1.097: O laudoarbitral, depois de homologado, produz entre as partese seus sucessores os mesmos efeitos da sentença judici-ária; e contendo condenação da parte, a homologaçãolhe confere eficácia de título executivo (art. 584, III).

Art. 1.098: É competente para a homologação dolaudo arbitral o juiz a que originariamente tocar o julga-mento da causa.

Art. 1.099: Recebidos os autos, o juiz determinaráque as partes se manifestem, dentro de dez dias, sobre olaudo arbitral; e em igual prazo o homologará, salvo seo laudo for nulo.

Art. 1.100: É nulo o laudo arbitral: I) se nulo ocompromisso; II) se proferido fora dos limites do com-promisso, ou em desacordo com o seu objeto; III) senão julgar toda a controvérsia submetida ao juízo; IV)se emanou de quem não podia ser nomeado árbitro; V)se os árbitros foram nomeados sem a observância dasnormas legais ou contratuais;

VI) se proferido por eqüidade não havendo a auto-rização prevista no art. 1.075, IV; VII) se não contiveros requisitos essenciais exigidos pelo art. 1.095; VIII)se proferido fora do prazo.

Art.1.101: Cabe apelação da sentença que homo-logar ou não o laudo arbitral.

Parágrafo Único: A cláusula “sem recurso” nãoobsta à interposição da apelação, com fundamento emqualquer dos vícios enumerados no artigo antecedente;o tribunal, se negar provimento à apelação, condenará

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direito de família e da indenização ex delito e dahomologação de laudos arbitrais proferidos noestrangeiro.

No que tange às sentenças cíveis relacio-nadas ao direito de família, muito se discutiu noPlenário do Supremo Tribunal Federal acercado reconhecimento de sentenças estrangeirasque versavam sobre concessão do divórciodurante o período em que a legislação brasileiranão permitia a dissolução completa do vínculoconjugal. Como, a partir de 1978, a legislaçãobrasileira passou a disciplinar o divórcio, essadiscussão perdeu hodiernamente grande partede sua importância, que se referia justamente àcontrariedade da sentença estrangeira de divór-cio à ordem pública interna.

Outra questão ligada às sentenças estran-geiras na área de direito de família que geroualgumas polêmicas foi o reconhecimento, paraefeitos de exequatur, das decisões que permiti-am o repúdio, que é uma forma de dissoluçãodo vínculo conjugal, comum no direito de ori-gem religiosa como o muçulmano, e que se dápor iniciativa única e exclusiva do marido, res-guardando-se os direitos patrimoniais da mu-lher e permitindo a ambos a possibilidade decontrair novo matrimônio. Como a lei brasileiranão disciplinava a separação unilateral, a dis-cussão, nos anos quarenta, centrava-se na con-trariedade do repúdio à ordem pública interna,uma vez este possuir características discrimi-natórias ao sexo feminino. Fundamentando-seem parecer de Haroldo Valladão, que afirmavanão existir a ofensa à ordem pública brasileiradesde que o repúdio fosse decretado perantejuiz civil, com todas as formalidades legais, semfraudes e com a efetivação do contraditório, euma vez que o Brasil adota o sistema de deliba-ção e não cabia ao Supremo perquirir as causasda separação litigiosa proposta pelo maridoperante o direito brasileiro, o Excelso Pretóriofirmou jurisprudência. Como exemplo pode sercitada a seguinte decisão:

“Repúdio – Sentença Estrangeira –Divórcio – Cônjuges Estrangeiros –Legislação Muçulmana. Repúdio peranteo juiz civil e com todas as formalidadeslegais. Homologação deferida”.

Requerente: Hirmayan Mirza.Requerido: Shahing Mirza.Relator: Ministro Thompson Flores15.

No âmbito das sentenças cíveis oriundasde condenações criminais para efeitos de inde-nização ex delito, o Supremo Tribunal Federaltem acolhido pedidos que se harmonizam comos dispositivos da lei brasileira, quer quanto àindenização, quer quanto ao teor da sentençapenal condenatória e sua compatibilidade como direito penal brasileiro. Como exemplo, podeser citada a homologação de uma sentença penalprocedente da Suécia:

“Sentença Penal Estrangeira – Crimede Apropriação Indébita: Produto decrime depositado em estabelecimentobancário no Brasil – Pedido de homolo-gação de decisório para os efeitos civis,formulados pela vítima dos danos sofri-dos – Harmonia da pretensão com osdispositivos da lei brasileira. PedidoDeferido”.Requerente: Helsingborgs VillaplaneringAktiebolagRequerido: Jan Erik EkstrandRelator: Ministro: Thompson Flores16.

Versou precitada decisão sobre o crime deapropriação indébita cometido pelo requeridocontra a requerente, que era uma massa falida,tendo o requerido sido condenado pelos tribu-nais suecos a dois anos e meio de prisão. Arequerente solicitou a homologação da decisãopara reaver o capital, depositado em bancobrasileiro pelo requerido. O Supremo TribunalFederal, durante o exame do pedido de homolo-gação, averiguou se a condenação não ofendiaa ordem pública, se não era excessiva, se a apli-cação da lei brasileira produziria na espécie asmesmas conseqüências, se o requerido teveefetivado, durante o processo de condenação,o contraditório e a ampla defesa, enfim, se eramsemelhantes os procedimentos preestabele-cidos pelas leis brasileiras e suecas.

A questão mais polêmica, no que se refere àhomologação de sentenças, versa sobre asexigências das leis e da jurisprudência doSupremo Tribunal Federal acerca dos requisitosdos laudos arbitrais estrangeiros. Previamente,é necessário enfatizar que a falta de práticainterna de solucionar os conflitos por intermédioo apelante na pena convencional.

Art.1.102: O tribunal, se der provimento à apela-ção, anulará o laudo arbitral: I) declarando-o nulo e denenhum efeito, nos casos do art. 1.100, I, IV, V e VIII;II) mandando que o juízo profira novo laudo, nos demaiscasos.

15 REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRU-DÊNCIA, v.87, p. 358.

16 REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRU-DÊNCIA, v. 82, p. 57.

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da arbitragem, ocasionada pela tradição judi-cialista-forense herdada do colonizador portu-guês e pela inserção incompleta do Brasil nogrande mercado das trocas internacionais, oca-sionadas pela globalização dos mercados, ondeé comum a arbitragem como forma principal deresolução de conflitos entre as partes contra-tantes, dificulta sobremaneira o aclaramento dasdisposições normativas presentes em nossodireito interno.

A arbitragem, como principal meio parasolucionar conflitos de interesses entre pessoase empresas ocorridos no cenário internacionaldas trocas de mercadorias, possui vantagensinequívocas sobre o procedimento judiciário,como a celeridade e o sigilo, essenciais numaeconomia que se fundamenta nos investimen-tos internacionais, nas rápidas transferênciasde valores de um local para outro e no comérciode bens materiais e imateriais, notadamente atecnologia, e a especialidade, uma vez que oárbitro é pessoa ligada direta ou indiretamenteao ramo de negócios a que se dedicam as partes.Para que a arbitragem conserve suas caracte-rísticas vantajosas, é mister estabelecer proce-dimentos que garantam o cumprimento dadecisão, sem, contudo, tornar lenta a suaexeqüibilidade. Não se têm pautado por estepríncipio a prática jurisprudencial do ExcelsoPretório e a legislação brasileira em geral.

É sabença geral que o direito brasileiro,conforme preceituam os arts. 1.097 a 1.099 doCódigo de Processo Civil, exige a homologaçãopelo juiz para que o laudo arbitral tenha validadee possa ser executado, contrariamente à grandemaioria dos Estados, cujos ordenamentos jurí-dicos concedem validade ao laudo a partir daciência das partes da decisão da qual não caibarecurso, quer a outro tribunal arbitral, quer aoJudiciário. Essa diferença resulta em sérioproblema: proferido um laudo estrangeiro, ointeressado em executá-lo no Brasil deverásubmetê-lo a um processo de homologação quese utilize de procedimento semelhante ao dodireito brasileiro perante o Judiciário estran-geiro, mesmo que o direito do Estado alienígenanão preceitue a exigência e os procedimentosdesta homologação, concedendo validade aolaudo independentemente da chancela do Judi-ciário local, para depois pedir o exequatur destelaudo já devidamente homologado ao SupremoTribunal Federal. Destarte os primeiros laudosarbitrais estrangeiros objeto de exequatur,tiveram denegado aos autores o pedido de ho-mologação. Dois exemplos podem ser citados:

“Sentença estrangeira – Pedido dehomologação negado – Proferida a deci-são por juízo arbitral, órgão privado –American Arbitration Association – semhomologação de qualquer tribunal judi-ciário ou administrativo do país de origemnão merece a homologação pelo SupremoTribunal Federal”Requerente : Northern International Co.Inc.Requerida: Curtume Kern Mattes S/ALaudo procedente dos Estados Unidosda América.Relator: Ministro Thompson Flores17.

“Sentença Estrangeira – Decisão pro-ferida por juízo arbitral, sem haver sidohomologada por tribunal do país de ori-gem Pedido de homologação indeferido”.Requerente: Otraco S/ARequerido: Cia. Nacional de ÓleosvegetaisLaudo Procedente do Reino UnidoRelator : Ministro Oswaldo Trigueiro18.

Nesta última decisão o Ministro Trigueiroacentua:

“Se a doutrina destes precedentesnão está muito afinada com a tendênciageneralizada de solucionar pela arbi-tragem as questões mercantis no planointernacional, parece que ela é um impe-rativo da tradição judiciarista do Brasil,que, além de não excluir da apreciaçãodo Poder Judiciário qualquer lesão dedireito individual, só considera executóriaa sentença arbitral aqui proferida depoisde homologada pelo juiz”.

Após estes casos, onde foi denegado opedido de homologação, para efeitos deexequatur, a laudos estrangeiros não-chance-lados pelo Poder Judiciário do local onde foramprolatados, outras questões ligadas às formali-dades da homologação no Judicário local, comocondição de validade dos laudos estrangeiros,foram examinadas pelo Excelso Pretório,podendo ser citadas as seguintes decisões:

“Sentença Estrangeira – Arbitragema que procedeu o Tribunal ArbitralAmigável de Hamburgo, Alemanha, paradirimir controvérsia de natureza mercantil

17 REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRU-DÊNCIA, v. 54, 714.

18 REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRU-DÊNCIA, v. 60, p, 28.

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suscitada no cumprimento de contratode compra e venda comercial em que avendedora é sociedade brasileira e a com-pradora é sociedade que tem sua sedeem Lausanne, Suíça. Caso em que as par-tes acordaram em dirimir suas divergên-cias mediante arbitragem de um colégioextra-oficial de árbitros e em que o laudo,ou ato de arbitramento, foi homologadopela Justiça da Alemanha. A sentençajurisdicional que homologou a arbitragemtransmite a esta sua qualidade. Sentençaestrangeira homologada para produzirefeitos jurídicos no Brasil. Agravo regi-mental em que a agravante insiste nasmesmas razões formais desprezadas nahomologatória de referida sentençagermânica. Desprovimento do Agravo emuniforme votação.”Agravante: La Pastina S/A.Agravada : Centrofin S/A.Relator : Ministro Antonio Neder19.

Curiosamente, em seu relatório, o MinistroAntônio Neder cita a Convenção Interamericanasobre Eficácia Extraterritorial de Sentenças eLaudos Arbitrais Estrangeiros e afirma:

“pelo que se lê do texto da ConvençãoInteramericana, a sentença judicial e olaudo arbitral são igualados na mesmacategoria jurídica de atos ratificáveispelos Estados que assinaram sobreditaConvenção, desde que sejam editadosmediante observância das regras indi-cadas naquele documento internacional,ainda não ratificado pelo Brasil”.

Tal assertiva foi utilizada para justificar a homo-logação pelo Poder Judiciário do Estado ondefoi prolatado o Laudo como condição de suaexeqüibilidade, o que demonstra inadequaçãodas premissas, uma vez que em nenhum mo-mento a Convenção Interamericana sobre Efi-cácia Extraterritorial das Sentenças e LaudosArbitrais exige o procedimento da homolo-gação:ela apenas se refere, no seu art. 2º, aofato de que o laudo arbitral estrangeiro deverápossuir caráter de executoriedade, sendo queeste não depende necessariamente da homolo-gação, como se vê nos Estados que dão ao laudoforça executória independentemente dechancela judicial.

“Sentença Estrangeira – Comércio

Exterior. Fretamento de navio. Contrato aque se vinculam duas pessoas jurídicasde direito privado, uma no Brasil, outrana França, e no qual as partes acordaramem resolver,por meio de arbitragem a serprocedida em Londres, as controvérsiasa ele inerentes. Caso em que o arbitra-mento foi homologado pela Justiça daInglaterra sem a citação da contratantebrasileira para responder ao processo.Ação homologatória da sentença ingle-sa proposta pela contratante francesa ena qual a contratante brasileira susten-tou: a) in competência daquela justiça parahomologar o arbitramento; b) falta de suacitação para responder ao mencionadoprocesso inglês. Competência indiscutí-vel da Justiça Inglesa para homologar oarbitramento. Citação para a demanda emque foi proferida a sentença estrangeira.Se o réu conhecido tem domicílio certono Brasil, deve ser diretamente citadoneste País para responder à ação. É prin-cípio de ordem pública. Doutrina e Juris-prudência na matéria. Não é admissívelno Brasil a citação do réu pela forma in-glesa do affidavit, pois, no tocante à for-ma do ato de procedimento, o direito bra-sileiro impõe que se observe a que é pre-vista no seu texto (art. 12, par. 2º, da Leide Introdução ao Código Civil Brasilei-ro). Agravo regimental a que o Plenáriodo Supremo Tribunal nega provimento.”Agravante: Société Nouvelle D’Affre-tement et de CourtageAgravada: Representações Caldas Ltda.Relator: Ministro Antônio Neder20.

Também neste affair é citado o art. 2º daConvenção Interamericana sobre a EficáciaExtraterritorial das Sentenças e Laudos Arbi-trais Estrangeiros, que prescreve como condi-ção de exequatur do laudo estrangeiro acitação do réu de forma substancialmente equi-valente àquela prevista pela lei do Estado ondeo laudo deva surtir efeito. A citação daConvenção Interamericana foi utilizada comopremissa para argumentar que o affidavit (noti-ficação particular do demandante ao deman-dado) não é semelhante à citação exigida pelalei brasileira.

Para finalizar esta breve análise sobre odireito interno acerca do reconhecimento e

19 REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRU-DÊNCIA, n. 92. p. 515.

20 REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRU-DÊNCIA, n. 95, p. 23.

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execução das sentenças e laudos arbitraisestrangeiros, é imprescindível a citação de umpedido de homologação de um laudo arbitralestrangeiro, proveniente da Alemanha, que foiindeferido devido à ausência de citação por cartarogatória pela requerente, Bremer Handelsge-sellschaff MB H. Import Export, para que arequerida, José Ber Ltda.,se manifestasse noprocesso de homologação do laudo pela JustiçaAlemã, que não é obrigatório, uma vez que naAlemanha, assim que as partes tomarem ciênciado conteúdo do laudo, este se torna executório.No seu relatório, o Ministro Aldir Passarinhocita um parecer do Ministro Franciso Rezek queclarifica a atual posição do Supremo Tribunalacerca da homologação dos laudos:

“A homologação é procedimento queoferece comodidade à pretensão da parteinteressada. Seus ritos hão de ser cum-pridos fielmente, ou então a parte deverábuscar executoriedade intentando a açãoab initio ante o judiciário nacional. Oobjeto da homologação, de todo o modo,é a sentença enquanto prestação juris-dicional do Estado, não o laudo arbitral.”(grifos nossos)21

5. O Projeto de Lei nº 4.905/95 sobre aaplicação de normas jurídicas

Em seus aspectos formais a ConvençãoInteramericana sobre Eficácia Extraterritorial deSentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros, oCódigo de Bustamante e os diplomas jurídicosinternos do Brasil, quais sejam a Lei de Introdu-ção ao Código Civil, o Código de Processo Civile o Regimento Interno do Supremo TribunalFederal, são coincidentes no que se refere aoreconhecimento de sentenças e laudos arbitraisestrangeiros: exigência de citação na forma dalei do Estado reconhecedor, efetivação docontraditório, não-contrariedade à ordempública do Estado onde deva a sentença oulaudo surtir efeitos, exigência do caráter execu-tório da sentença ou laudo arbitral. Tambémsuas prescrições coincidem no âmbito dacompetência: esta será sempre reexaminadaobservando-se critérios internos do Estadoreconhecedor, acerca da competência do juizou tribunal que proferiu a sentença ou laudo.

A Convenção Interamericana e o Código deBustamante diferem-se quanto ao âmbito deaplicação: a Convenção pode ter seu âmbito de

aplicação alargado às questões de jurisdiçãovoluntária e de indenização decorrente decondenação criminal, enquanto o Código deBustamante prescreve o reconhecimento dedecisões administrativas, diversamente daConvenção Interamericana que nada preceituaneste aspecto.

O maior conflito entre as normas oriundasde tratados e convenções e os diplomas jurídi-cos internos ocorre no que se refere à exigên-cia, feita pelas leis nacionais, de homologaçãodo laudo arbitral por tribunal estrangeiro comoquesito de validade deste para a homologaçãopelo Supremo Tribunal Federal, como condiçãoessencial do exequatur desta decisão arbitralem território brasileiro. O conflito ocorre porquea Convenção Interamericana e o Código deBustamante igualam a sentença estrangeira e olaudo arbitral, não exigindo qualquer chancelajudicial por parte do tribunal do local onde foiproferido o laudo para dar-lhe o caráter deexecutoriedade, exigência esta prefigurada pelalei brasileira: entre nós, o laudo somente torna-se válido após a homologação judicial, que irátransmitir-lhe a qualidade de sentença e oatributo de executoriedade.

A diferença nesse caso não é apenas formal,mas sim de caráter substancial, haja vista que olaudo arbitral estrangeiro não-homologado peloJudiciário do Estado em que foi prolatado não éconsiderado válido e, portanto, inexeqüível,mesmo que neste Estado não haja quaisquerexigências, ou mesmo procedimentos jurídicosestabelecidos para que esta homologação seefetive. Por outro lado, em alguns desses laudosarbitrais estrangeiros, como o do Caso LaPastina X Centrofin (vide nota 19), a inexistênciade homologação judicial do laudo alemão, anecessidade de homologá-lo em tribunal alemãonos mesmos moldes exigidos pelo direito brasi-leiro e o posterior exequatur consumiram dezanos de marchas e contramarchas judiciais,contados da data da prolação do laudo peloTribunal Arbitral Amigável de Hamburgo.Prazos tão longos para a resolução de um conflitoe sua execução, possibilitando a satisfação dosdireitos de contratantes, colocam-se na contra-mão da inserção econômica global do Brasil e,principalmente, prejudicam os próprios agen-tes do comércio internacional, haja vista queespecialidade e confiança representam a essên-cia do comércio internacional, conjuntamentecom a celeridade na resolução dos conflitos,que permite a fruição rápida dos negócios.

21 REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRU-DÊNCIA, n. 135, p. 949; também n. 137, p. 132.

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Com a ratificação, pelo Brasil, da Conven-ção Interamericana sobre Eficácia Extraterritorialdas Sentenças e Laudos Arbitrais Estrangeirosem novembro de 1995, o Brasil passou a pos-suir um tríplice regime jurídico para disciplinar aexecutoriedade dos laudos arbitrais no Brasil:os laudos proferidos por tribunais arbitrais cons-tituídos no território brasileiro deverão serhomologados pelo Poder Judiciário deste local;os laudos proferidos por tribunais arbitrais cons-tituídos em outros Estados não-participantesda Convenção Interamericana (notadamenteEstados Unidos da América e Estados euro-peus) deverão estar previamente homologadospelo Poder Judiciário do país de origem, comocondição essencial para o pedido de exequaturperante o Supremo Tribunal Federal, mesmo quenestes Estados não se exija esta homologaçãopara garantir a executoriedade ao laudo; e, porúltimo, os laudos arbitrais prolatados por tribu-nais arbitrais constituídos em Estados partici-pantes da Convenção como Argentina ouUruguai, onde, para efeitos do pedido deexequatur, somente se exigirá a homologaçãoprévia para dar caráter auto-executório ao laudopor juiz ou tribunal judiciário do local de origemse as leis do país de origem assim o exigirem. Acomplexidade desnecessária deste regimetriplíce trouxe a necessidade de que mudançasfossem efetuadas. A primeira delas encontra-se no Projeto de Lei nº 4.905/95, que está emdiscussão no Congresso Nacional e estabeleceo texto da Lei de Aplicação das NormasJurídicas, que virá a substituir, se aprovado, aatual Lei de Introdução ao Código Civil.

Em 1962, percebendo a inadequação da atualLei de Introdução ao Código Civil no que serefere à aplicação de normas estrangeiras, aosprincípios mais modernos de direito interna-cional privado e a outras questões conexas,como a homologação de sentenças, foi nomeadoo Professor Haroldo Valladão para elaborar umanteprojeto de lei que viesse a substituir a atualLei de Introdução. O resultado foi um projetoamplo e autônomo, versando sobre uma sériede matérias não-disciplinadas pela Lei de Intro-dução, nos moldes do Código Suíço deAplicação de Normas. O projeto, apresentadono Congresso em 1970 e reapresentado em 1984,não logrou sucesso em sua aprovação. Perma-necia, no entanto, a necessidade de atualizar esistematizar as matérias objeto da atual Lei deIntrodução, e, em 1987, no encerramento do ICongresso Brasileiro de Direito InternacionalPrivado, foi aprovada uma moção no sentido

de sugerir ao Governo Federal a nomeação deuma comissão de juristas para elaborar umanteprojeto de lei que visasse à substituição daLei de Introdução.

Em 1994 foi nomeada, no âmbito do Minis-tério da Justiça, uma comissão composta porquatro juristas – Professores Grandino Rodas,Jacob Dolinger, Limongi França e InocêncioMartins – para elaborar referido anteprojeto, aoqual se deu o nome de Projeto de Lei sobre aAplicação de Normas Jurídicas. Em suaspróprias palavras, a comissão enfatiza que“preparou um Anteprojeto em que procuroufundamentalmente atualizar a LICC”, ade-quando aos novos tempos e sistematizandotoda a temática referente à aplicação das normas,seja a aplicação das normas em si mesmasconsideradas, ligadas à interpretação e finali-dades da norma; a aplicação das normas no tem-po, ou direito intertemporal; a aplicação denormas no espaço, ou direito internacionalprivado, e as questões a eles conexas, como asreferentes às homologações de sentenças elaudos arbitrais estrangeiros.

O Projeto de Lei sobre a Aplicação deNormas Jurídicas introduziu mudanças nasistematização jurídica, trouxe embutido no seutexto um sistema conceitual moderno ligado aodireito intertemporal, trouxe igualmente grandesmodificações conceituais e de conteúdo no quese refere ao direito internacional privado, espe-cialmente no que se refere à lei aplicável às obri-gações e contratos internacionais, e adequouaos princípios modernos e aos tratados inter-nacionais que o Brasil ratificou a sistemáticareferente à homologação de sentenças e laudosarbitrais.

O art. 22 do Projeto de Lei nº 4.905/95mantém a mesma orientação da Lei de Intro-dução ao Código Civil no que se refere à neces-sidade de homologação, para efeitos deexequatur, pelo Supremo Tribunal Federal, desentenças judiciais, laudos arbitrais e atos comforça de sentença judicial. Enfatiza a necessi-dade de citação do réu para o processo dehomologação, exige que a sentença estejarevestida das formalidades necessárias àexecução no local de origem, esteja traduzida eautenticada pelo cônsul, tal qual exige a atualLei de Introdução. A grande modificação dizrespeito à exigência de homologação do laudoarbitral pelo Judiciário do local da constituiçãodo tribunal arbitral, se a lei estrangeira o exigir.Ou seja, o atual Projeto reduz o tríplice sistemade executoriedade dos laudos arbitrais nacionais

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e estrangeiros a um duplo sistema, tal qual es-tabelecido pela Convenção Interamericana so-bre Eficácia Extraterritorial de Sentenças e Lau-dos Arbitrais: os laudos arbitrais nacionais de-verão ser homologados pelo Judiciário do localde sua prolação como condição para sua exe-qüibilidade, enquanto os laudos estrangeirosdeverão seguir a exigência ou não dessa homo-logação conforme a lei do local onde for consti-tuído o tribunal arbitral.

As conseqüências dessa modificação sãomuito grandes. A simplificação do procedimentopara a homologação dos laudos arbitrais peloSupremo Tribunal beneficia todas aquelasempresas que atuam no comércio internacional,uma vez que torna mais rápida a solução dosconflitos e a satisfação dos interesses dos preju-dicados, reforçando a confiança internacional nacapacidade de empresas brasileiras de cumpri-rem os compromissos firmados. Por outro lado, amodificação trazida pelo Projeto tem conseqüên-cias práticas imediatas, bastando mencionar quea grande maioria dos pedidos de exequatur delaudos arbitrais perante o Supremo TribunalFederal tem como objeto laudos provenientes detrês Estados que não exigem a prévia homologa-ção do Judiciário local para efeitos de executorie-dade do laudo: Estados Unidos da América, Ale-manha e Reino Unido, o que tornará mais célere asua execução em território nacional.

Para finalizar, deve-se notar que a mudançaintroduzida pelo Projeto não atinge os raros laudosarbitrais proferidos em território nacional, quedevem ser homologados pelo Judiciário local paraatingirem a executoriedade, mas poderá influen-ciar para que futuramente seja reformado o Códigode Processo Civil e para que seja abolida estaexigência, o que poderia dar um impulso, em terri-tório nacional, à prática de solucionar conflitosde caráter econômico, ligados ao comércio inter-nacional ou não, através da arbitragem, possibili-tando uma diminuição do número de processosjudiciais e, em consequência, uma melhoria naprestação jurisdicional do Brasil, morosa, dentreoutros fatores, pelo acúmulo excessivo deprocessos, muitos dos quais poderiam ser resol-vidos pela arbitragem por versarem sobreinteresses disponíveis.

6. ConclusõesNo moderno cenário internacional, que

deve ter como norteador o princípio dasolidariedade internacional, indispensáveissão os tratados internacionais, uma vez que

consubstanciam regras comuns a todos ou aum grupo de Estados e, em conseqüência, aseus súditos em suas relações múltiplas, paraque atinjam o objetivo maior da paz e do in-tercâmbio entre os povos.

Se assim é, factível a existência de trata-dos internacionais para normatizar a práticade atos internos comuns a um grupo de Esta-dos, uma vez decorrer a existência destes atosdo exercício do poder soberano, e quenecessitem, por razões diversas, terem reco-nhecidos os seus efeitos na esfera internade outro Estado. Dentre estes atos seencontram o reconhecimento e a execuçãode sentenças e laudos arbitrais estrangeiros,objeto de inúmeros tratados e de umaconvenção no âmbito da América.

A Convenção Interamericana sobreEficácia Extraterritorial de Sentenças eLaudos Arbitrais Estrangeiros, já ratificadapelo Brasil, procurou traçar critérios flexíveis,compatibilizando diversos sistemas norma-tivos e diversos tratados e convenções exis-tentes anteriormente acerca da matéria.

Em seus aspectos formais, a Convençãopossui as mesmas exigências para o reconhe-cimento e execução da sentença presentesnos diplomas jurídicos brasileiros, possuindoapenas incompatibilidade no que se refere àexigência de homologação do laudo arbitralpor tribunal ou juiz do Estado de origem daarbitragem, como condição de validade eexeqüibilidade do laudo para efeitos dopedido de exequatur ao Supremo TribunalFederal, mesmo que as leis deste local nãoexijam a realização desta homologação.

Com a aprovação, pelo Congresso Nacio-nal, do Projeto de Lei sobre a Aplicação deNormas Jurídicas (Projeto nº 4.905/95), estadiscrepância será sanada, uma vez queestenderá a aplicação das normas sobrereconhecimento e execução dos laudos arbi-trais presentes na Convenção Interamericanaa todos os pedidos de exequatur de laudosestrangeiros, simplificando o procedimentoatual, moroso e prejudicial à inserção com-pleta do país no comércio internacional,inserção esta fundamentada na confiança, nosigilo e na rápida e eqüitativa solução dosconflitos.

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1. IntroduçãoO tema das medidas provisórias está, nova-

mente, na ordem do dia. A excessiva produçãolegislativa, por meio de medidas provisórias, temestimulado o debate sobre esta espécie de normaque integra o processo legislativo brasileiro. Oreiterado emprego de medidas provisórias, paranormatizar matérias de qualquer naturezajurídica, além da controversa questão da suareedição ilimitada, mantém aceso o clamor peladelimitação regulamentar desse diploma legal.

Na anterior ordem constitucional, o desco-medimento na utilização dos decretos-leisfortaleceu o consenso político que contribuiupara a sua extinção.

“Desnecessário repisar a deterioraçãodesse instituto e a violação persistenteque, com ele, se fez da ordem jurídica,convertido que foi em instrumento prin-cipal do arbítrio, na quadra autoritáriaexperimentada pela Nação brasileira.Tanto e de tal forma foi o clamor contra oseu degenerado abuso, que o expungirda ordem constitucional se converteu embandeira das principais forças políticasresponsáveis pela transição coroada coma Constituição de 1988.”1

Cláusula de convalidação em medidasprovisórias

MANOEL ADAM LACAYO VALENTE

Manoel Adam Lacayo Valente é bacharel emDireito, com habilitação em Direito Público, e bacharelem Comunicação Social. Possui curso de especiali-zação em Processo Legislativo e Relações Executivo-Legislativas, ministrado pela Universidade de Brasília,e é Assessor Legislativo, da área de AdministraçãoPública, da Assessoria Legislativa da Câmara dosDeputados.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Situação jurídica da legislaçãoanterior atingida por medida provisória e a formaçãodo direito adquirido. 3. Cláusula de convalidaçãoem medidas provisórias. 4. Conclusão.

1 FIGUEIREDO, Fran. As medidas provisóriasno sistema jurídico-constitucional brasileiro. Revistade Informação Legislativa, Brasília, v. 28, n. 110,p.138-139, abr./jun. 1991.

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Historicamente, procura-se justificar ainclusão de instrumentos legislativos deformação atípica na ordem constitucional como argumento da morosidade, que seria umavariável presente no processo legislativorotineiro. Assim, a administração pública nãoficaria impedida de adotar medidas legaisexcepcionais, em situações de relevanteinteresse coletivo ou de emergência.

“As vicissitudes do processo legis-lativo ordinário nem sempre conferem àadministração pública os instrumentos deque necessita para acudir aos interessesda coletividade, em situações de emer-gência.

Essa circunstância levou muitossistemas constitucionais modernos aadotarem mecanismos de rápida utili-zação por parte do Poder Executivo, emcaso de situações excepcionais, cujosefeitos são, na realidade, de verdadeirosdecretos-leis, embora subordinados àratificação do Parlamento.”2

A utilização de medidas provisórias deveser norteada pelos requisitos da relevância e daurgência, previstos no caput do art. 62 daConstituição Federal, o que sinaliza para aexcepcionalidade do seu emprego. Fazer daexceção a regra não só descaracteriza oselementos informadores da admissibilidade demedidas provisórias, como também retira doCongresso Nacional, como representanteprivilegiado da cidadania brasileira, a possibili-dade da iniciativa legítima da atividade legisla-tiva, razão essencial de sua existência.

A banalização do emprego de medidasprovisórias nos conduz a uma situação demanifesta ilogicidade, pois, tendo em conside-ração os pressupostos autorizadores da suaadoção, teríamos de acreditar que quase tudono universo governamental nacional, além derelevante, é urgente, o que, como sabemos, nãocorresponde efetivamente à realidade institu-cional.

Este ensaio, como se depreende de seu título,não pretende esmiuçar todos os assuntosvinculados com o tema das medidas provisórias,mas, na amplitude e complexidade da matéria,analisar e estimular a reflexão sobre a utilizaçãoda denominada cláusula de convalidação nocontexto normativo dos procedimentos provi-sórios, previstos no art. 62 da ConstituiçãoFederal.

2. Situação jurídica da legislação anterioratingida por medida provisória e a formação

do direito adquiridoO legislador constituinte, ao substituir o

antigo decreto-lei pela possibilidade de adoçãode medida provisória, estabeleceu um recursode eficácia temporal que funciona como verda-deira salvaguarda da ordem jurídica vigente, emface da excepcional competência legislativa doPoder Executivo. Com efeito, o parágrafo únicodo art. 62 da Constituição Federal contémdeterminação normativa que condiciona aeficácia das medidas provisórias ao prazo detrinta dias, caso não sejam convertidas em leinesse interregno:

“Art. 62...................................................Parágrafo único. As medidas provi-

sórias perderão eficácia, desde a edição,se não forem convertidas em lei no prazode trinta dias, a partir de sua publicação,devendo o Congresso Nacional disci-plinar as relações jurídicas delas decor-rentes.”

Dessa forma, a característica distintiva damedida provisória, em confronto com o anteriordecreto-lei, repousa na sua precariedade reso-lutiva, que é condicionada ao trintídio deeficácia, com perda ex tunc de seus efeitos. Essaperda de aptidão para produzir efeitos jurídicosab initio permite a sobrevida da legislaçãoanterior atingida pela medida provisória quecaduca. Ocorre nesse caso não a repristinaçãoda legislação anterior, já que a mesma não forarevogada com definitividade, mas a sua reapli-cação, temporariamente afastada pela normaprovisória cujos efeitos se extinguiram. Por forçadessa situação jurídica singular, há que serentendido que, durante o trintídio de vigênciada medida provisória, a anterior legislação, porela atingida, fica, transitoriamente, sem aplica-ção, não resultando daí nenhuma revogação oualteração definitiva no universo legal, salvo seconvertida em lei a respectiva norma provisória.

Esse entendimento, de suspensão temporalda eficácia da legislação anterior atingida pormedida provisória, é confirmado pela doutrinaconstitucionalista pátria.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em estudoprecursor sobre o tema das medidas provisórias,posicionou-se da seguinte forma:

“Tendo esta ‘força de lei’, deve-seentender que derroga ou revoga a leianterior com ela incompatível. Isto é2 Ibid., p. 138.

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inexorável, pois somente assim poderia amedida provisória chamar para o seuimpério os atos ou fatos que, do contrário,estariam sujeitos a outra normação. Mas,rejeitada a medida provisória, ocorrerá arepristinação da lei derrogada ou revo-gada? Como se sabe, não há repristinaçãosem norma expressa que a comande e aConstituição vigente não cuidou doassunto.

A meu ver, a questão deve ser postanoutros termos. A derrogação ou revo-gação da lei anterior por uma medidaprovisória seria apenas aparente. Estasuspenderia a vigência e a eficácia destalei anterior, sobrepondo-lhe a norma queedita, mas a derrogação ou revogaçãopropriamente ditas apenas viriam da con-versão em lei da medida provisória peloCongresso. Assim, inocorrendo a con-versão, perderia efeito a medida provi-sória, restituindo-se plena vigência eeficácia ao direito anterior. Note-se queesta solução se coaduna com o texto doart.62, parágrafo único, primeira parte: ‘Asmedidas provisórias perderão eficáciadesde a edição’(...) Perder eficácia desdea edição, retroatividade, é fazer como sea medida provisória não tivesse tido efi-cácia, portanto, não tivesse tido a forçade derrogar ou revogar leis. Esta já era asolução que apresentei, para a hipótesede rejeição do decreto-lei, no meu DoProcesso Legislativo (p. 258).”3

Caio Tácito, por sua vez, em outro ensaiosobre as medidas provisórias, manifestou-secom as seguintes palavras a respeito daquestão:

“Questão de importância sobre a efi-cácia da medida provisória se coloca, emtermos objetivos, quanto à revogação delei anterior com ela incompatível. A regrageral aplicável ao conflito de normas notempo induz a que a eficácia imediata damedida provisória, dotada de força de lei,faça prevalecer a norma legal mais recen-te. Todavia, como a eficácia desta ficapendente da confirmação pelo Con-gresso, sem a qual ficam anulados, a partirde seu início, todos os seus efeitos, a

doutrina tende a uma solução de com-promisso: até ser convertida em lei (o quelhe confere definitividade), a medidaprovisória não revoga a lei anterior, masapenas suspende-lhe a vigência e eficácia,que se restauram se não subsiste amedida provisória, tanto pela rejeiçãocomo pela inércia do Congresso após ovencimento do prazo de apreciação. Fica,por essa exegese, superada a objeção deque a lei, quando revogada, somente érepristinada mediante norma expressaque a restaure.”4

Pinto Ferreira, em comentário ao art. 62 eparágrafo único da Constituição Federal, adotao mesmo posicionamento com relação à matéria:

“A medida provisória possui vigên-cia e eficácia imediatas, mas destas nãoresulta a revogação dos atos legislativoscom ela conflitantes ou incompatíveis.Ela possui eficácia temporal limitada detrinta dias, tendo efeitos paralisantes enão revocatórios em face das leis que lhesão anteriores e conflitantes.

Caso não se opere a conversão legis-lativa, fica restaurada a eficácia jurídicados diplomas legislativos suspensos,afetados pela medida provisória.

Tal restauração da eficácia não seidentifica nem se confunde com a repris-tinação; será ex tunc, isto é, desde a datada medida provisória não convertida.”5

Brasilino Pereira dos Santos, em sua obraAs Medidas Provisórias no Direito Comparadoe no Brasil, além de ratificar os posicionamentosanteriores, apresenta a doutrina, defendida peloMinistro do Supremo Tribunal Federal, JoséCarlos Moreira Alves, sobre a revogação da leianterior por medida provisória:

“Ensina o Professor Moreira Alvesque: o texto constitucional estabelece quea medida provisória tem força de leiapenas por trinta dias. Durante essestrinta dias, ela atua como se fosse lei. E,conseqüentemente, revoga a lei anteriorcom ela incompatível. Só que essa revo-gação se faz sob condição resolutiva.

E prossegue. Há alguns autores

3 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Asmedidas provisórias com força de lei. Repertório IOBde Jurisprudência, São Paulo, n. 5, p. 86-87, 1ª quin.mar. 1989.

4 TÁCITO, Caio. Medidas provisórias naConstituição de 1988. Revista de Direito Público,São Paulo, v. 22, n. 90, p. 54, abr./jun. 1989.

5 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituiçãobrasileira. São Paulo : Saraiva, 1992. V. 3, p. 293-294.

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brasileiros que preferem dizer que amedida provisória não revoga propria-mente a legislação ordinária anterior comela incompatível. Apenas suspende aeficácia dessa legislação.

Confesso que não gosto de usarcircunlóquios – diz o Professor MoreiraAlves –, pois o que é certo é que todarevogação implica a extinção de uma lei.

E mais, implicando a extinção de umalei, obviamente, retira a sua eficácia. Coma revogação, a lei anterior deixa de existire, conseqüentemente, perde a suaeficácia.

O problema aqui – continua o Pro-fessor Moreira Alves – é mais ou menosaquele que nós encontramos com relaçãoaos negócios jurídicos, com referênciaaos seus três planos de eficácia, em queapenas um deles fica fora de jogo, que éjustamente o intermediário, que é o davalidade, tendo em vista a circunstânciade que, com a revogação, há uma extin-ção. E havendo uma extinção, o que existiadeixa de existir, sendo que esta inexis-tência superveniente, por extinção,acarreta não obviamente a invalidade,que não é problema decorrente dessaextinção, mas acarreta a perda da vigênciae, conseqüentemente, a perda da eficáciadessa norma.

Prossegue o Professor MoreiraAlves. Mas veja-se que é uma perdade eficácia sob condição resolutiva,porque, se porventura não vier uma leide conversão, esta perda de eficáciase resolve. E, conseqüentemente, aque-la lei anterior não se repristina. Aquelalei anterior se tem como se jamaistivesse deixado de existir. Isto, tendoem vista a circunstância de que a nossaConstituição, na segunda parte do art.62, afastou, quanto às medidas provi-sórias, o princípio da irretroatividade,ao dizer que perderão eficácia desdea edição, se não forem convertidas emlei, no prazo de trinta dias a partir desua publicação , o que implica dizerque a medida provisória, porque é umato com força de lei sob condiçãoresolutiva, que se resolve na medidaem que não é convertida em lei, ouporque foi expressamente rejeitada, ouentão porque, dentro do prazo de trintadias, houve a omissão do Congresso

Nacional quanto à sua apreciação, oupara rejeitá-la expressamente ou paraconvertê-la em lei.

Na realidade, temos uma revogaçãosob condição resolutiva. Continua. Essacondição resolutiva – como acontececom as condições em geral, quando elasocorrem – tem eficácia, e, conseqüente-mente, a lei que fora revogada revivecomo se jamais tivesse sido revogada. Eé exatamente o mesmo fenômeno queocorre quando a lei revogadora é decla-rada inconstitucional, desde que o orde-namento jurídico admita que a declaraçãode inconstitucionalidade opera ex tunc,o que significa dizer que a lei se considera,no caso da inconstitucionalidade, comoinválida ab ovo, ou seja, desde o início.E, por via de conseqüência, é como sejamais tivera existido. E, conseqüente-mente também, se jamais existiu a leirevogadora, é óbvio que a lei aparente-mente revogada, em verdade, jamais foirevogada.”6

Por fim, vale registrar a visão de SauloRamos sobre a mesma questão:

“A medida provisória, enquanto equi-valente constitucional da lei, possuivigência e eficácia imediatas, sem quedisso decorra, no entanto, a revogaçãodos atos legislativos com ela incompa-tíveis. Por dispor de eficácia temporallimitada (trinta dias), enquanto não seder a conversão, em lei, da medida provi-sória, esta somente paralisará os efeitosdas leis a ela anteriores e com ela confli-tantes, iniluindo-as completamente emseu conteúdo eficacial. Não se operando,porém, a conversão legislativa, restaurar-se-á a eficácia jurídica, até então mera-mente suspensa, dos diplomas afetadospela edição do ato normativo provisório.Essa restauração de eficácia – inconfun-dível com o instituto da repristinação –enfatize-se será ex tunc. Portanto, desdea data de edição da medida provisórianão convertida.

Só após a conversão da medidaprovisória em lei é que se consumará arevogação dos atos legislativos com elaincompatíveis. Até que isso ocorra,

6 SANTOS, Brasilino Pereira dos. As medidasprovisórias no direito comparado e no Brasil. SãoPaulo : LTr, 1994. p. 538-539.

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nenhum será o efeito derrogatório.”7

Releva mencionar que a manifestação deSaulo Ramos foi expendida no Parecer nº SR-92, da então Consultoria Geral da República,que foi aprovado por despacho do Presidenteda República, publicado no Diário Oficial daUnião, Seção I, de 23 de junho de 1989, vincu-lando a Administração Federal, cujos órgãos eentidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumpri-mento, tendo em vista a determinação constantedo art. 40, § 1º, da Lei Complementar nº 73, de10 de fevereiro de 1993.

Assim, em razão da não-conversão demedida provisória em lei, no prazo constitu-cional, a legislação anterior se restabelece e,com sua eficácia, passa novamente a produzirefeitos jurídicos, incidindo, inclusive, noperíodo de vigência da medida provisória não-convertida. O desaparecimento da suspensãomomentânea, da anterior legislação atingida pormedida provisória, reabre o rotineiro processode aplicação das normas legais, com a obser-vância dos princípios basilares, insertos naConstituição Federal e na Lei de Introdução aoCódigo Civil, pertinentes à vigência, eficácia eaos limites da retroatividade das leis, os quaistambém são válidos e aplicáveis no trintídio devigência das medidas provisórias.

Ora, se as medidas provisórias não-conver-tidas em lei perdem eficácia ex tunc e, porconseqüência, no período do respectivotrintídio, volta a ser operante a anteriorlegislação, dessa particular condição podemresultar atos jurídicos perfeitos e direitosadquiridos, que se consubstanciariam comrespaldo na ordem normativa pretérita querecobra sua eficácia. Por outro lado, umapossível reedição da medida provisória quecaducou não poderá retroagir para prejudicaros direitos adquiridos e os atos jurídicosperfeitos que se concretizaram antes de sua pu-blicação. Em que pese a clareza e a lógicajurídica que informam essa argumentação, valeinsistir na sua defesa e difusão como posturapreventiva de preservação dos direitos integra-lizados e das relações jurídicas acabadas.

Ainda sobre o tema dos direitos adquiridose a sua relação com as medidas provisórias,parece-nos oportuna a apresentação de mais

algumas considerações, embora sob a forma deexemplos a seguir expostos.

No primeiro dia de um determinado mês, umamedida provisória, adotada pelo Presidente daRepública, extingue vantagem pecuniária deservidores públicos, cuja aquisição se faz pelotranscurso do tempo a termo legal. Até o trigé-simo dia desse mesmo mês, a medida provisóriaem questão não é convertida em lei. Como passoseguinte, no primeiro dia do mês subseqüente,o Chefe do Poder Executivo faz editar novamedida provisória, como reedição da anterior,com a pretensão de considerar extinta a mesmavantagem pecuniária ex facto temporis, a contardo primeiro dia do mês anterior, como o fizera aantecedente medida provisória. Nesse caso, semdúvida, descortina-se a contrariedade dessadisposição temporal, da vigente medida provi-sória, com a garantia constitucional de proteçãoaos direitos adquiridos e da vedação da inci-dência retroativa da lei sobre esses, conforme odisposto no art. 5º, inciso XXXVI, da Consti-tuição Federal, e o previsto no art. 6º, caput, doDecreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942(Lei de Introdução ao Código Civil):

“Art. 6º. A lei em vigor terá efeito ime-diato e geral, respeitados o ato jurídicoperfeito, o direito adquirido e a coisajulgada.”

Em outra situação, um pouco distinta daanterior, nova medida provisória, editada comoreedição, propõe a extinção da vantagem pecu-niária citada, a contar da sua vigência, mas, emoutro artigo, preconiza a convalidação dos atospraticados sob a égide da anterior medidaprovisória, o que importaria, no entendimentode seus idealizadores, na impossibilidade daconquista, como direito adquirido, da mesmavantagem pecuniária, também extinta, notrintídio antecedente pela norma provisória jáineficaz. Nesse segundo exemplo, a medidaprovisória vigente peca por inconstituciona-lidade por tentar projetar ultra-atividade legal aanterior medida provisória, elastecendo, de for-ma inadequada, o período de eficácia fixado naCarta Política para os provimentos provisóriose subtraindo do Congresso Nacional o discipli-namento das relações jurídicas deles decor-rentes. No nosso entendimento, em função dasdisposições inscritas no texto constitucional,pertinentes à eficácia das medidas provisóriase à proteção dos direitos adquiridos, a republi-cação sucessiva de normas provisórias não temo condão de interromper a formação de direitosadquiridos, após o decurso dos trintídios

7 BRASIL. Consultoria Geral da República.Parecer n. SR-92, de 21 de junho de 1989. MedidaProvisória instituída pelo artigo 62 da Constituição.Consultor: José Saulo Ramos. Diário Oficial daUnião, Brasília, p. 10182, 23 jun. 1989. Seção I.

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respectivos in albis.Agora, em sentido contrário, cabe perguntar

se a medida provisória pode proporcionar osurgimento de direitos adquiridos. Sendo amedida provisória uma norma pendente deresolução para sua efetiva entrada no ordena-mento jurídico e com possibilidade real dedesconstituição ab initio, não vemos comopodem surgir direitos adquiridos desse instru-mento legal, salvo na ocorrência de suaconversão em lei.

“Diante das considerações ora vistas,no caso de uma hipótese de incidênciaem medida provisória, a rigor, não hádireito adquirido ou situação jurídica inal-terável a arbítrio de outrem. O CongressoNacional pode suprimir a situação jurídicaprevista em medida provisória. Há ape-nas ‘expectativa’ do titular de umasituação jurídica prevista nela. Há simples‘esperança’ de que ela seja convertidaem lei. Não tem o destinatário da medidaprovisória nem a faculdade de exercer emjuízo a pretensão de sua incidência, tãoprecária ela é. Norma não plenamenteeficaz, dependente de uma condiçãoresolutiva. Não introduz a medida provi-sória norma vigente plenamente. Suavigência depende de ato positivo doCongresso Nacional. A simples omissãodo Congresso Nacional já implica arejeição da medida provisória. E pior aindaem certas hipóteses em que as normasinscritas em medidas provisórias soframresistência com base em valores hospe-dados pela sociedade, a exemplo demedidas provisórias que introduzammedidas impopulares ou qualquerespécie de sacrifício, como quase sempreacontece.”8

“É mister, porém, recordar que a rejei-ção da medida provisória, tornandoinexistentes os seus efeitos, exclui ahipótese de que sua aplicação condi-cional tenha gerado direito adquirido ouato jurídico perfeito, que a lei não poderáprejudicar ( CF, art. 5º, XXXVI).”9

“Patente está que o direito adquiridosó pode arrimar-se em norma estávelcomo a lei, entendida em seu sentidoestrito, nunca em uma norma temporária,excepcional, sujeita, ainda, à apreciação

final do Congresso. A norma excepcionalé transitória, só alcançando caráter firmepelo acolhimento do Congresso.”10

“A incompatibilidade teórica entre odireito adquirido e as relações jurídicassob condição adviria da circunstância deser o implemento desta (por naturezaincerto) um dos requisitos indispensá-veis à complementação do fato aquisitivoespecífico. Com efeito, enquanto amesma não se verificasse, não haveriade falar em direito adquirido.”11

Dessa maneira, não há possibilidade de aqui-sição de direitos adquiridos sob o pálio norma-tivo de medidas provisórias, considerando suaprecariedade jurídica. Contudo, o direito adqui-rido surge com respaldo na legislação anterior,posta em suspensão pela medida provisórianão-convertida em lei.

3. Cláusula de convalidação em medidasprovisórias

A regra imperativa imposta pela Consti-tuição, no parágrafo único do art. 62, é a daperda da eficácia ex tunc das medidas provisó-rias não-convertidas em lei no prazo de trintadias, a contar de sua edição. Se da eficácia danorma jurídica decorre a possibilidade deprodução de efeitos no universo do Direito, emsentido contrário, a norma tornada ineficaz nãopossui força legal para gerar direitos ouobrigações.

“O ato inexistente, e mesmo o atonulo, não tem eficácia, pois eficácia, emmomento algum, advém do nada ou donulo, pois o ato nunca pode ser comple-tado, somado, pela simples razão de quenão existe. Não é.”12

Assim, se há perda de eficácia ab initio dasmedidas provisórias não-convertidas em lei nostrintídios respectivos, além da reaplicação daanterior legislação com elas incompatível, bemcomo a observância indeclinável da irretroati-vidade prejudicial aos direitos adquiridos e aosatos jurídicos perfeitos, é de se indagar da

8 SANTOS, op. cit., p. 517.9 TÁCITO, op. cit., p. 56.

10 RAMOS, Carlos Roberto. Da medida provi-sória. Belo Horizonte : Del Rey, 1994. p. 93.

11 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade dasleis e o direito adquirido. São Paulo : Revista dosTribunais, 1994. p. 247.

12 CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários àConstituição de 1988. Rio de Janeiro : ForenseUniversitária, 1992. p. 2744.

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constitucionalidade das denominadas cláusu-las de convalidação que figuram, em regra, nostextos das medidas provisórias reeditadas. Comoconvalidar o inexistente, o nulo, o que deixoude existir no mundo jurídico por expressa deter-minação constitucional? A impropriedadeabsoluta da convalidação, nesses casos, resul-ta da inexistência do seu objeto. Não há comoconvalidar o inexistente. Na verdade, o legisladordo provimento provisório, com a cláusula deconvalidação, pretende manter operantes osefeitos, agora ineficazes, de anterior medidaprovisória, o que, sem embargo, representamanifesta contrariedade ao texto constitucional(art. 62, parágrafo único).

“Se os atos administrativos afrontamo ordenamento jurídico e, por essa razão,são tidos como inválidos, não cabe falarem convalidação (supressão da ilegali-dade de um ato administrativo). Não seconvalida o que é inválido.”13

Por outro lado, além da nossa posição con-trária ao emprego da cláusula de convalidaçãoem medidas provisórias, não podemos deixarde registrar nossa discordância, também, quantoao uso da expressão “convalidação”. Comefeito, o termo convalidação, no campo doDireito Administrativo, pressupõe a existênciade ato anterior defeituoso, que viria a ser sane-ado pela incidência da convalidação. Autilização do termo convalidação, nessecontexto, sinalizaria para a conclusão de que osatos praticados, com fulcro em medidas provi-sórias antecedentes, estariam eivados de vícios,daí a necessidade do seu saneamento. Noentanto, essa situação não corresponde aoacontecido efetivamente no nosso universojurídico. Se admitida fosse, pela Constituição,qualquer operação destinada a preservar a vali-dade dos efeitos produzidos por atos editadoscom base em medida provisória não-convertidaem lei, certamente que a técnica jurídica recla-maria pela substituição do termo convalidaçãopelo vocábulo confirmação. “A confirmaçãodifere da convalidação, porque ela não corrigeo vício do ato; ela o mantém tal como foi prati-cado.”14 Independentemente da questãoterminológica, o que se almeja com a cláusulade convalidação é a preservação da eficácia dosatos produzidos durante a vigência de provimento

provisório anterior ao atual. Contudo, essa de-sejada prorrogação de validade do provimentoprovisório antecedente não encontra amparoconstitucional, pois a única forma válida de atin-gir esse objetivo é pela conversão daquela pri-meira medida provisória em lei. Caso contrário,a provisoriedade dessa medida seria desfigura-da por meio de cláusula de convalidação inscri-ta em outra medida da mesma espécie.

A precariedade temporal das medidasprovisórias resultou de escolha soberana daAssembléia Nacional Constituinte, precursorada Carta Política de 1988. A sua característicamarcante é a de assegurar a observância doslimites das competências próprias dos poderesconstituídos. A legitimação do emprego decláusulas de convalidação em medidas provi-sórias contribui para a usurpação de encargosprivativos do Poder Legislativo, como o previstono parágrafo único, in fine, do art. 62 daConstituição Federal. Por outro lado, a cláusulade convalidação expurga o caráter provisóriodos provimentos de urgência, atribuindo-lhesuma falsa roupagem de efetividade própria dalei formal. Voltamos a enfatizar que, se olegislador constituinte de 1988 o desejasse,poderia ter adotado uma prescrição de validaçãodos atos praticados com base em medidasprovisórias não-convertidas em lei, comovigorava na revogada Constituição em relaçãoaos decretos-leis:

“Art. 55........................................................................................................................

§ 2º A rejeição do decreto-lei nãoimplicará a nulidade dos atos praticadosdurante a sua vigência.”

Note-se, entretanto, que a vigente Consti-tuição Federal reservou ao Congresso Nacionala competência exclusiva para disciplinar asrelações jurídicas decorrentes de medidasprovisórias.

“Com isso, não é de admitir a substi-tuição, por unilateral declaração devontade do Presidente da República, dopróprio Congresso Nacional, que, a partirdas cláusulas de convalidação referidas,vê-se afastado do exercício de umacompetência que, nessa matéria, somentea ele a Constituição defere.”15

15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Despa-cho em pedido de Medida Liminar decorrente daADIn 365-8/600. Relator: Ministro Celso de Mello.1 out. 1990. Diário da Justiça, Brasília, p. 10.718, 5out. 1990. Seção I.

13 GASPARINI, Diogenes. Direito administra-tivo. São Paulo : Saraiva, 1995. p. 100.

14 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direitoadministrativo. São Paulo : Atlas, 1996. p. 204.

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Brasilino Pereira dos Santos, em seu livroAs Medidas Provisórias no Direito Comparadoe no Brasil, registra trechos do artigo do SenadorAlfredo Campos, intitulado Medida Provisória,que foi publicado no Jornal de Brasília, de 3de junho de 1990, do qual transcrevemos partereferente ao tema da convalidação:

“Negamos, também, prossegue oSenador Alfredo Campos, a possibilidadede convalidação dos efeitos jurídicos damedida provisória rejeitada pela suareedição, não obstante isso tenha sidotentado, recentemente, com a MP nº 184/90, que em seu artigo 3º assevera:

‘Ficam convalidados os atos pratica-dos com base nas Medidas Provisóriasns. 172, 174 e 180...’.

Recorremos, para embasar o nossoentendimento, explica o Senador AlfredoCampos, a dois argumentos jurídicos. Oprimeiro diz respeito à irretroatividade dalei brasileira, consagrada no artigo 5 º, XL,da Lei Maior e no artigo 6º da Lei deIntrodução ao Código Civil. E o segundoconsiste na previsão do parágrafo únicodo artigo 62 da Constituição, que, aopreceituar a regulamentação, pelo Con-gresso Nacional, das relações jurídicascriadas em razão da vigência provisóriada norma, inviabiliza toda e qualquertentativa de convalidação.”16

Por estrita pertinência com o tema da cláu-sula de convalidação, vale também transcrevero inteiro teor do despacho do Ministro Celsode Mello, do Supremo Tribunal Federal, profe-rido no pedido de medida liminar decorrente daAção Direta de Inconstitucionalidade 365-8/600-D.F.:

“Despacho: A Confederação Nacio-nal da Indústria, entidade sindical de grausuperior, ajuíza ação direta de inconsti-tucionalidade, impugnando a InstruçãoNormativa nº 102, de 31.7.90, editada peloDepartamento da Receita Federal daSecretaria da Fazenda Nacional.

Alegando que a Instrução Normativaatacada cria novas hipóteses de inci-dência do IOF, a autora aponta comoviolados os arts. 146, III, a, e 150, I, daConstituição.

Requer, por fim, medida liminar, para

suspensão da eficácia do diploma impug-nado, de forma a evitar, até o julgamentofinal da ação, a incidência do tributo.

O pedido, contudo, carece de objeto.Fundamento de existência e validade

da Instrução Normativa impugnada é oart. 5º da Medida Provisória 195/90. Esta,porém, editada em 30 de junho de 1990,não chegou a ser apreciada em tempohábil pelo Congresso Nacional, o queimporta – como assinala o eminente Min.Paulo Brossard (ADIn 295-DF) – a suarejeição tácita ou presumida.

Mesmo, porém, que assim não se en-tenda, não há como recusar que a deca-dência da Medida Provisória 195/90, pelodecurso in albis do prazo constitucionalde 30 dias, operou a desconstituição, comefeitos ex tunc, dos atos produzidos nasua vigência, dentre os quais a própriainstrução normativa emanada da Secre-taria da Fazenda Nacional e editada –como claramente emerge do seu própriopreâmbulo – com fundamento no ato pre-sidencial não-convertido em lei.

O Prof. Manoel Gonçalves FerreiraFilho (As Medidas Provisórias com For-ça de Lei, in Repertório IOB de Juris-prudência, nº 5, 1ª quinzena de março/89, p. 86) assim apreciou a questão con-cernente ao valor dos atos praticados comfundamento em medidas provisórias não-convertidas em lei:

‘Do art. 62 da Constituição resulta aeficácia imediata da medida provisória.Portanto, sua imediata aplicabilidade.Conseqüentemente, se rejeitada a medi-da provisória, havendo sido suas nor-mas aplicadas provavelmente a numero-sos casos concretos, qual será o valordestes atos de aplicação? Serão descons-tituídos, como se nulos fossem? Serãoválidos e perfeitos, como ocorria em rela-ção aos atos praticados com base emdecreto-lei desaprovado?’

‘(...) A perda de eficácia de medidaprovisória desaprovada ocorre desde aedição... Desse modo, não tendo tido efi-cácia (válida) desde a edição, a medidaprovisória não teria aplicabilidade (váli-da). Os atos em que tiver sido aplicadadeverão assim ser desconstituídos comose nulos fossem. A perda de eficácia extunc da medida provisória importaria na16 SANTOS, op. cit., p. 444-445.

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perda de eficácia ex tunc de suasaplicações.’

De outro lado, não é de admitir a rati-ficação do ato ora impugnado mediantecláusula de convalidação inscrita, respec-tivamente, nos arts. 9º e 10 das MedidasProvisórias 200 e 212/90, que disciplinama mesma matéria, reproduzindo, ipsisverbis, o conteúdo do art. 5º da MedidaProvisória 195/90.

A convalidação, por deliberaçãoexecutiva, de atos praticados comfundamento em medidas provisórias não-convertidas afronta o preceito consubs-tanciado no art. 62, parágrafo único, daConstituição, que prevê a sua descons-tituição, integral e radical com eficácia extunc. A preservação, no tempo, dosefeitos de medidas provisórias não-apreciadas pelo Congresso Nacionalrevela-se em manifesta colidência não sócom o que expressa e literalmente dispõeo texto constitucional, mas, também, coma própria mens constitutionis, que quissuprimir a possibilidade de sua subsis-tência no mundo jurídico.

Ao contrário do que ocorria com odecreto-lei, cuja rejeição não acarretavaa nulidade dos atos praticados durante asua vigência (CF/69, art. 55, § 2º), arejeição – e igualmente a não-conversão– da medida provisória despoja-a deeficácia jurídica desde o momento de suaedição.

Esse aspecto, por si só, revela que acláusula de convalidação, ao conferirverdadeira perpetuidade aos efeitosdecorrentes de medidas provisórias não-convertidas, atribui, à ausência deconversão legislativa desses atos caute-lares, conseqüências jurídicas contras-tantes – porque desautorizadas – com aprópria disciplina constitucional doinstituto. Isso tanto mais se evidencia apartir da previsão constitucional inseri-da no art. 62, parágrafo único, no sentidode que, não convertida a medida provi-sória em lei no prazo de 30 dias, a partirde sua publicação, deverá o CongressoNacional ‘disciplinar as relações jurídicasdela decorrentes’.

A ratificação, pelo Poder Executivo,dos atos editados sob a égide de medidaprovisória não-convertida, por tradu-zir usurpação daquela competência

constitucional deferida privativamenteao Congresso Nacional, revela-se írrita enula em sua indisfarçável desvaliajurídica.

Para Antonio D’Andrea (Le NuoveProcedure Regularmentari per l’esame deiDecreti Legge in Parlamento: Un primoBilancio, in Revista Trimestrale di DirittoPubblico, 1/86-87, 1983), esse procedi-mento – anomalamente substitutivo dacompetência do Parlamento – insere-se,consoante observa, na praxis ‘degene-rativa del decreto legge’, que constitui oresultado de ‘una serie di distorsioniistituzionali’, motivada pela ‘prolifera-zione dei decreti legge’.

Ao acentuar a tendência que moder-namente se registra no cenário político-institucional da Itália, em que se desen-volve o ‘processo di riappropriazione daparte del Parlamento delle propriefunzioni e sopratuto di quelle di indirizzoe di controllo’, esse mesmo autor lançagrave advertência, assinalando que o usoreiterado desse excepcional instrumento– a que correspondem as nossas medidasprovisórias – implicará ‘un mutamentosostanziale della forma di governo nelsenso di un progressivo rafforzamentodell’ ‘Esecutivo connesso a un crescenteindebolimento del Parlamento’ (op. cit.,p. 87/88).

A disciplina das relações jurídicasformadas com base no ato cautelar não-convertido em lei constitui obrigaçãoindeclinável do Congresso Nacional, quedeverá regrá-las mediante procedimentolegislativo adequado.

O exercício dessa prerrogativa congres-sional deriva, fundamentalmente, de umprincípio essencial de nosso sistemaconstitucional: o princípio da reserva decompetência do Congresso Nacional.

A disciplina de que trata o parágrafoúnico do art. 62 da Carta Política tem, porisso mesmo, na lei formal, de exclusivaatribuição do Congresso, seu instrumentojurídico idôneo , sendo relevante observarque, de seu processo de formação, co-participará o Presidente da República,pelo exercício da competência constitu-cional de que dispõe para sancionar ouvetar os projetos de lei aprovados peloLegislativo.

Cabe aqui invocar, por sua extrema

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pertinência, o magistério de ManoelGonçalves Ferreira Filho (ob. loc. cit.), aotratar da exclusividade da atuação aposteriori do Congresso Nacional,verbis: ‘Claramente, o texto, ao prescre-ver a perda de eficácia ex tunc da medidaprovisória não convertida em lei, fixouum princípio: o de que as normas editadaspor esse meio não deveriam ter efeitosválidos. Assim, deve-se entender que, emprincípio, os atos conseqüentes de umamedida provisória rejeitada são denenhum valor, devem ser consideradoscomo írritos.

É indubitável, todavia, que o textomencionado permite que o CongressoNacional, ao rejeitar as medidas provi-sórias, discipline ‘as relações jurídicasdelas decorrentes’. Isto significa que elepode regular as conseqüências de medidaprovisória, reconhecendo-lhe, no todo ouem parte, validade. A situação, então,muito se assemelharia à que a Constitui-ção anterior previa, no art. 55, § 2º, emrelação aos decretos-leis não aprovados.Entretanto, como se trata de uma exceção,apenas em deliberação expressa, por viade lei, poderá o Congresso Nacionalreconhecer validade a ato praticado combase em medida provisória não aprovada.Esta é, aliás, a solução prevista na partefinal do art. 77 da Constituição da Itália.’

Com isso, não é de admitir-se a subs-tituição, por unilateral declaração devontade do Presidente da República, dopróprio Congresso Nacional, que, a partirdas cláusulas de convalidação referidas,vê-se afastado do exercício de uma com-petência que, nessa matéria, somente aele a Constituição defere.

Cessada a eficácia da Medida Provi-sória 195/90, operou-se a conseqüenteextinção da própria Instrução Normativa102/90, que não pode subsistir, autono-mamente, uma vez que editada com oespecífico objetivo de viabilizar e ensejara integral aplicabilidade daquele diplomaquase-legislativo. Uma norma regula-mentar não pode encontrar fundamentoem ato normativo que juridicamente jánão mais existe.

Essa natureza acessória da InstruçãoNormativa 102/90, de todo modo, desau-toriza a sua impugnação pela via da ação

direta de inconstitucionalidade. Isso,porque a contestação possível do seuconteúdo material induz, ordinariamente,a um juízo de legalidade, formulado emface do art. 5º da Medida Provisória 195/90. Eventuais violações à Constituiçãoassumirão caráter meramente oblíquo,insuficiente para legitimar o controleconcentrado de constitucionalidade.

A jurisprudência do Supremo Tribu-nal Federal tem-se orientado no sentidode repelir a possibilidade de controlejurisdicional de constitucionalidade, porvia de ação, nas situações em que aimpugnação in abstracto incide sobreatos que, inobstante veiculadores deconteúdo normativo, ostentam carátermeramente ancilar em função das leis aque aderem e cujo texto pretendem regu-lamentar. Em tais casos, o eventual extra-vasamento dos limites impostos pela leicaracterizaria situação de mera ilegali-dade, inapreciável nesta sede.

Nesse sentido, a decisão proferidanos autos da ADIn 311-DF, ajuizada pelamesma autora contra ato normativo deigual hierarquia (Instrução Normativa 62/90, também do Departamento da ReceitaFederal), em que o Ministro CarlosVelloso, Relator, estatuiu: ‘A instruçãonormativa tem por finalidade estabelecerinterpretação de lei ou de regulamentarno âmbito das repartições fiscais.Destarte, se essa interpretação discrepa,vai além ou fica aquém da lei ou do regu-lamento, a questão é puramente de ilega-lidade e não de inconstitucionalidade’.

Nego seguimento ao pedido (Lei8.038, art. 38).

Publique-se.Brasília, 1º de outubro de 1990 -

Ministro Celso de Mello, Relator.”17

Da decisão negatória da concessão demedida liminar nos autos da ADIn 365-8/600-DF resultou a interposição de Agravo Regi-mental, ao qual, em Sessão Plenária, por unani-midade de votos, foi denegado provimentopelos Ministros do Supremo Tribunal, em 7 denovembro de 1990. A ementa desse julgado

17 O conjunto de elementos que integram estareferência bibliográfica encontra-se explicitado na notade rodapé de número 15. Deve apenas ser registradaa página inicial de sua publicação no Diário da Justiça;10.717.

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também expõe um entendimento valioso sobreos atos decorrentes de medidas provisórias nãoconvertidas em lei:

“EMENTA – Ação Direta de Incons-titucionalidade – Agravo Regimental –Impugnação de Instrução Normativa doDepartamento da Receita Federal –Alegada Vulneração de Princípios Cons-titucionais Tributários – SeguimentoNegado – Natureza das InstruçõesNormativas – Caráter Acessório do AtoImpugnado – Juízo Prévio de Legalidade– Matéria Estranha ao Controle Concen-trado de Constitucionalidade – MedidaProvisória - Disciplina Constitucional dasRelações Jurídicas Fundadas em MedidaProvisória Não-Convertida em Lei –Efeitos Radicais da Ausência de Conver-são Legislativa – Insubsistência dosAtos Regulamentares Fundados emMedida Provisória Não-Convertida –Agravo Não-Provido.

- A jurisprudência do SupremoTribunal Federal tem-se orientado nosentido de repelir a possibilidade decontrole jurisdicional de constituciona-lidade, por via de ação, nas situações emque a impugnação in abstracto incidesobre atos que, inobstante veiculadoresde conteúdo normativo, ostentam carátermeramente ancilar ou secundário, emfunção das leis, ou das medidas provisó-rias, a que aderem e cujo texto pretendemregulamentar. Em tais casos, o eventualextravasamento dos limites impostos pelalei, ou pela medida provisória, caracteri-zará situação de mera ilegalidade, inapre-ciável em sede de controle concentradode constitucionalidade.

- Crises de legalidade, que irrompemno âmbito do sistema de direitos positi-vo, caracterizadas por inobservância,pela autoridade administrativa, do seudever jurídico de subordinação norma-tiva à lei, revelam-se, por sua naturezamesma, insuscetíveis do controle juris-dicional concentrado, cuja finalidadeexclusiva restringe-o, tão-somente, àaferição de situações configuradoras deinconstitucionalidade.

- As Instruções Normativas, editadaspor órgão competente da AdministraçãoTributária, constituem espécies jurídicasde caráter secundário, cuja validade e

eficácia resultam, imediatamente, de suaestrita observância dos limites impostospelas leis, tratados, convenções interna-cionais, ou decretos presidenciais, de quedevem constituir normas complemen-tares. Essas instruções nada mais são,em sua configuração jurídico-formal, doque provimentos executivos cuja norma-tividade está diretamente subordinadaaos atos de natureza primária, como asleis e as medidas provisórias, a que sevinculam por um claro nexo de acesso-riedade e de dependência. Se a instruçãonormativa, editada com fundamento noart. 100, i, do Código Tributário Nacional,vem a positivar em seu texto, em decor-rência de má interpretação da lei oumedida provisória, uma exegese quepossa romper a hierarquia normativa quedeve manter com estes atos primários,viciar-se-á de ilegalidade e não de incons-titucionalidade.

- Medidas Provisórias. A rejeição damedida provisória despoja-a de eficáciajurídica desde o momento de sua edição,destituindo de validade todos os atospraticados com fundamento nela. Essamesma conseqüência de ordem consti-tucional deriva do decurso in albis doprazo de 30 (trinta) dias, sem que, nele,tenha havido qualquer expressa manifes-tação decisória do Congresso Nacional.A disciplina das relações jurídicasformadas com base no ato cautelar não-convertido em lei constitui obrigaçãoindeclinável do Poder Legislativo daUnião, que deverá regrá-las medianteprocedimento legislativo adequado. Oexercício dessa prerrogativa congres-sional decorre, fundamentalmente, de umprincípio essencial de nosso sistemaconstitucional: o princípio da reserva decompetência do Congresso Nacional. Adisciplina a que se refere a Carta Políticaem seu art. 62, parágrafo único, tem, nalei formal, de exclusiva atribuição doCongresso Nacional, seu instrumentojurídico idôneo.

- Os atos regulamentares de medidasprovisórias não-convertidas em lei nãosubsistem autonomamente, eis que nelasreside, de modo direto e imediato, o seupróprio fundamento de validade e deeficácia. A ausência de conversão legis-lativa opera efeitos extintivos radicais e

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genéricos, de modo a afetar todos os atosque estejam, de qualquer modo, casual-mente vinculados à medida provisóriarejeitada ou não-transformada em lei,especialmente aqueles que, editados pelopróprio Poder Público, com ela mantinham– ou deveriam manter – estrita relação dedependência normativa e de acessorie-dade jurídica, tais como as InstruçõesNormativas.”18

Todos esses comentários e decisões judi-ciais vêm demonstrar a clara inconstituciona-lidade das denominadas cláusulas de convali-dação em medidas provisórias, que imprimemcaráter de validade a atos que não podemsubsistir em face da sua dependência hierá-quico-normativa com os provimentos provisó-rios não-transformados em lei. Cabe aoCongresso Nacional, detentor da exclusivacompetência para disciplinar as relações decor-rentes de medidas provisórias, exercer essemúnus, reconduzindo a possibilidade de adoçãodessa espécime legal ao seu arcabouço original,como previsto no texto constitucional.19

4. ConclusãoNo Estado Democrático de Direito o Parla-

mento Nacional ocupa lugar de destaque e deimportantes responsabilidades públicas. Se oprincípio da legalidade figura como a pedraangular dessa forma de organização política,impende que o Poder Legislativo exerça suasmissões na plenitude da outorga que lhe foiatribuída pela Constituição Federal. Nas demo-cracias modernas é indiscutível a necessidadede ter-se um instrumento legal que, atendendoao interesse público, possibilite, em casos decomprovada relevância e urgência, imediataresposta jurídica ao repentino fato social quevenha a reclamar regulação normativa. A práticadessa faculdade legislativa excepcional, entre-tanto, deve ser rigorosamente parcimoniosa,guardando efetiva proporcionalidade com oexercício do processo legislativo ordinário. Adescaracterização da singularidade extrava-

gante, que informa a possibilidade de utilizaçãode formas atípicas de produção legislativa,compromete, em primeiro plano, a juridicidadedo instrumento de exceção e, em segundo nível,fragiliza os fundamentos do próprio EstadoDemocrático de Direito, pelo afastamento davontade popular da ambiência política deformação das leis.

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18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AgravoRegimental não provido nos autos da ADIn 365-8-DF. Relator: Ministro Celso de Mello. 7 nov. 1990.Diário da Justiça, Brasília, p. 2645, 15 mar. 1990.

19 Reedições recentes de medidas provisórias jáultrapassaram o limite anterior de convalidação deatos praticados com base em normas provisórias não-convertidas em lei. Na Medida Provisória nº 1.347,de 12 de março de 1996, por exemplo, o seu art. 14preconiza a convalidação dos atos praticados com

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Reeleição do Presidente da República

Parecer elaborado para o Instituto dos AdvogadosBrasileiros, atendendo a indicação de seu presidente,o Dr. Benedito Calheiros Bomfim.

Sérgio Sérvulo da Cunha é Advogado.

SÉRGIO SÉRVULO DA CUNHA

A oligarquia deseja um Estado mínimo comsimbolismo máximo. Um presidente que pareceum rei se encaixa à maravilha nesse projeto.

A eletividade, a rotatividade, a despersona-lização do poder são características republi-canas. Rousseau dissera, dos ingleses, que sãolivres somente no instante de votar. Ao fixar emdois anos a duração do mandato dos deputados,o constituinte norte-americano tinha certamenteem vista a maior proximidade possível entre arepresentação e a democracia direta.

Entretanto, com relação ao Presidente daRepública, não se agiu assim. Fixou-se em quatroanos a duração do seu mandato, talvez porque,na concepção original da separação dospoderes, fosse ele apenas o executor daspolíticas ditadas pelo parlamento, este sim,considerado como expressão da soberania eórgão máximo do poder. O presidente parecia,então, uma espécie de sucedâneo real, sem osatributos da nobreza e sujeito ao parlamento.

Apenas com o correr do tempo se iria deli-neando aquilo que, chamado a princípio regimepresidencial (Bagehot), evoluiria para o que osfranceses (Vedel) passaram a designar, com rigortécnico, como regime presidencialista (ou pre-sidencialismo) e que na América Latina seconfigurou como hiperpresidencialismo (Nino)ou presidência imperial (Schlesinger).

O silêncio do pacto de Filadélfia sobre apossibilidade de reeleição do presidente nãosignifica que tivessem os constituintes descu-rado do tema. Hamilton (Federalist papers)defende a reelegibilidade. Segundo Corwin (AConstituição norte-americana e seu signi-ficado atual. Rio: Zahar Ed.,1986), o sentimentoda Convenção era pela reelegibilidade indefinida,mas Jefferson objetou que isso equivaleria àvitaliciedade.

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Até a edição da 22ª emenda, em 27.2.51, (quelimitou a um só período a possibilidade de re-eleição), não havia regra, senão costumeira, arespeito.

No Brasil, ao elaborar-se a primeira Consti-tuição republicana, tínhamos já o precedenteda América espanhola e sua experiênciacontrária à reelegibilidade. Os historiadorescostumam apontar, como exceção, apenas oocorrido no México, onde, afinal, a presidênciapraticamente vitalícia de Porfírio Diaz levaria àenfática vedação da reeleição, inserta naConstituição de 1917.

Embora não associassem república e regimepresidencial (v.Afonso Arinos, A históriavivida, ed. O Estado, III/395), nossos constitu-intes de 1891 adotaram esse regime, consensu-almente. Também praticamente de modo con-sensual – o que viria a repetir-se em todas asnossas constituintes – vedou-se a reeleição dopresidente. O debate restringiu-se ali à duraçãodo mandato presidencial e à duração da irreelegi-bilidade (se indefinida, se passados dois perío-dos, ou se vigorando apenas para o período ime-diato). O Deputado paulista Almeida Nogueira,embora favorável a um mandato longo, mani-festou-se contrário à possibilidade de reeleição:

“... a realizar-se esta, não será feita comliberdade, porque exatamente um presi-dente que não tiver bem exercido o seumandato, mas que tiver apego ao cargo,não hesitará em lançar mão de todos osmeios oficiais para comprimir a liberdadedo voto e alcançar a vitória das urnas...”(Agenor de Roure, A Constituinte Repu-blicana. Brasília: Senado Federal, 1979,1/465).

Não obstante a prudência nessa matéria, osconstituintes – e congressistas – de 1891, teri-am motivos para se arrependerem, logo no pri-meiro mandato, e não só por haverem eleito,como presidente, o Chefe do Governo Provisó-rio. (Este, aliás, ao conhecer o texto do projetode Constituição, reclamara de Rui não se en-contrar, nele, a faculdade de dissolução do par-lamento, pelo chefe do executivo). No mesmís-simo erro viriam incidir os constituintes de 1934,e em arrependimento maior, pois que, desta fei-ta, foi o Congresso, e não o presidente, a vestiro pijama do ostracismo.

Todavia, nem Getúlio – que fechou o Con-gresso e outorgou uma Carta de vitrine – nem opróprio regime militar, instaurado em 1964,ousaram romper, explicitamente, a tradição da

ireelegibilidade do presidente. O que mais sefez, aí, foi alargar para seis anos o mandatopresidencial (Emenda nº 8, de 1977).

Durante a malograda revisão constitucionalde 1994, quatro propostas pretendiam suprimiro parágrafo 5º do art. 14 da Constituição de1988, que faz inelegíveis, no período subse-qüente, os ocupantes de cargos eletivos doPoder Executivo. Treze propostas admitiam areeleição por um só período, sem exigência derenúncia prévia, e quinze admitiam a reeleição,com renúncia prévia seis meses antes do términodo mandato.

Quarenta e nove propostas retiravam, ao art.82 da Lei Magna, a proibição de reeleição. Des-tas, 43 reduziam para quatro anos o mandatopresidencial.

O relator condensou essas propostas numsubstitutivo que alterava o art. 14, parágrafo5º, para permitir a reeleição por um períodosubseqüente, suprimindo, do art . 82, aexpressão “vedada a reeleição para o períodosubseqüente”.

Esse substitutivo – na forma de uma “emen-da aglutinativa” apresentada pelas liderançasdo PMDB, PPR e PFL – foi rejeitado por 269votos a 160, e 3 abstenções.

Agora tem curso, no Congresso brasileiro,a Proposta de Emenda à Constituição nº 54/95,encabeçada pelo Deputado Edinho Araújo,objetivando a reelegibilidade.

Diz a justificativa da proposta que“a possibilidade de reeleição vem de en-contro (sic) à aspiração da população quedeseja ver seu mandatário reconduzidoao exercício do Poder Executivo. Tendoo governante atendido às necessidadesdo povo, nada mais justo que possa serreeleito, para que possa dar continuida-de, com maior experiência, a seu trabalho”.

A justificativa não colhe. Quanto mais des-pótico ou ambicioso um governante, tanto maisbajuladores se acharão, para aclamá-lo como o“pai dos pobres”, o “condor dos Andes”, o “ca-çador de marajás” ou o salvador da pátria. Nãocolhe, sobretudo, porque se aplicaria com igualforça à reelegibilidade indefinida do presidente:pois se ele continua agradando, por que estancaresse manancial de felicidade? Nenhum presiden-te norte-americano foi mais louvado, nenhum foimais prestigioso do que Franklin Roosevelt. E,entretanto, o fato de haver conquistado um ter-ceiro quatriênio consecutivo fez soar o alarmeque resultou na 22ª Emenda, de 27.2.51.

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Por outro lado, o mais forte argumento con-tinuísta (a possibilidade de planejar e de arre-matar o que se planejou) já foi batido irretorqui-velmente por Hermes Lima. Na Constituinte de1945, ao votar – juntamente com Prado Kelly eMilton Campos – a favor de um mandato dequatro anos , disse o notável jurista que

“fazer a continuidade e a excelência daadministração federal dependerem de ummandato mais longo do Presidente daRepública é colocar mal o problema. Essacontinuidade não pode depender, subs-tancialmente, primacialmente, de pesso-as, mas da organização da vida políticanacional, através da atuação de partidosnacionais. O Presidente deve encontrarno país os verdadeiros elementos de umbom governo, e não, principalmente, nummandato longo, como se pretende” (cf.José Duarte, A Constituição Brasileirade 1946, 2/203).

Na verdade, é no tecido político, jurídico eadministrativo, mais do que nos personagens,que as políticas de longo prazo encontramsustentação.

O tema da reelegibilidade do presidente,porém, não pode ficar circunscrito, como atéaqui, ao âmbito personalístico do desempenhopresidencial. A par dos efeitos que a reelegibi-lidade produziria nos costumes políticos, com adiminuição do espaço crítico (plano da efetivi-dade), há que ponderar seus efeitos desestabi-lizadores do ordenamento (plano da eficácia).

Veja-se, por exemplo, a Lei das Inelegibili-dades (Lei Complementar nº 64, de 18.5.90). Casose tornasse reelegível o Presidente da República,impossível manter-se a inelegibilidade que al-cança, hoje, a) os ministros de Estado; b) oschefes dos órgãos de assessoramento direto,civil e militar, da Presidência da República; c) ochefe do órgão de assessoramento de informa-ções da Presidência da República; d) o chefedo Estado-Maior das Forças Armadas; e) oadvogado-geral da União e o consultor-geralda República; f) os chefes do Estado-Maior daMarinha, do Exército e da Aeronáutica; g) oscomandantes do Exército, Marinha e Aeronáu-tica; h) os presidentes, diretores e superinten-dentes de autarquias, empresas públicas, so-ciedades de economia mista e fundações públi-cas e as mantidas pelo poder público; i) osinterventores federais; j) o diretor-geral doDepartamento de Polícia Federal; l) os secretá-rios-gerais, os secretários-executivos, os secre-tários nacionais, os secretários federais dos

ministérios e as pessoas que ocupem cargosequivalentes.

O alfabeto não dá conta de todos os casosde inelegibilidade estabelecidos pela lei combase na presunção de que, independentementeda isenção do seu ocupante, a mera detençãode alto cargo na administração pública – oumesmo em entidades privadas ou corporativasque tenham estreito contacto com a administra-ção pública – é suficiente para favorecer ocandidato, em detrimento dos concorrentes eda lisura do processo eleitoral. Mais do queuma presunção, essa inafastável conclusão defato constitui um dos princípios estruturadoresdo nosso Direito Político.

Outro exemplo é o da repercussão dessaalteração em nosso arcabouço federativo. Difí-cil admitir-se reelegibilidade do presidente daRepública sem carrear a dos governadores eprefeitos. Bem por isso, aliás, a PEC 54/95, oraem exame, fala na possibilidade de recondução,não apenas do presidente, mas também dos go-vernadores e prefeitos. Para a formação de umjuízo sobre a desejabilidade da reeleição dosgovernadores, bastaria rever as páginas do cau-dilhismo nacional, onde, durante a república ve-lha, essa prática foi permitida.

Forma-se assim a teia dos interesses fede-rais, estaduais e municipais, aliados aos inte-resses congressuais, que permite ao presidenteromper uma tradição centenária, a qual dáexpressão concreta, entre nós, ao princípiorepublicano.

A PEC 54/95 prevê sua vigência imediata,com o que se aplicará, tão logo aprovada, aosatuais presidente, governadores e prefeitos.

Amolda-se, dessa forma, ao contexto casu-ístico que a explica. A possibilidade de reelei-ção, sempre temida em nossos países, vem sen-do oferecida aos presidentes sul-americanoscomo uma espécie de sobremesa no banquetedas reformas neoliberais. O presidente –Fujimori, Menem, ou quem mais for – é aponta-do como a personalidade imprescindível, a úni-ca que pode congregar as forças políticas e darseqüência ao programa de estabilização. O con-flito entre esses sentimentos alimentados pelooficialismo e a regra proibitiva é apresentadocomo um “paradoxo”. A partir desse paradoxo,fulmina-se como “arbitrária” a regra proibitiva,tal como se fez alhures :

“A origem de todos esses movimen-tos paradoxais encontra-se no art. 77 daConstituição atual, pois proíbe a reeleição

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do governante e determina um tempo demandato de seis anos. É um princípiorestritivo sábio e prudente. Dá um tempode mandato suficientemente prolongadoe cria um corte para evitar o continuísmoe as aventuras que a sedução do poderprovoca”.

Mas ... “em virtude desta particular etapa histó-rica o art. 77 se transforma numa arbitrá-ria e impolítica proibição sobre os dese-jos da maioria para conservar o mais legí-timo representante da vontade popular.Ao menos para uma porção significativada sociedade. É certo, além disso, queessa situação se entrelaça com o desejode continuidade e vontade de poder doelenco menemista. E também com osinteresses dos diversos circuitos de poderpolítico e econômico que se foram forman-do ao seu redor”. (Sergio Labourdette.Las paradojas de la reforma constitu-cional, in Política y Constitución. B.Aires: A. Z. Edit.).

Ora, o art. 77 da Constituição argentina sefez para incidir nessas “particulares etapas his-tóricas”, que oferecem risco às instituições. Épena que haja sucumbido exatamente frente àsforças em razão das quais existia. O mais para-doxal nisso é que a Argentina, no passado(1949), já sofreu reforma constitucional permis-siva da recondução do seu presidente.

Se é para falar em paradoxos, apontemosum outro mais gritante.

A doutrina francesa demora-se sobre aexperiência latino-americana para concluir queas deformações do regime presidencial geraramum outro tipo de regime, arredio à classificaçãotradicional, ao qual chama de “presidencialis-mo” (v. Richard Moulin. Le présidentialisme etla classification des regimes politiques. Paris:Libr. Gén. de Droit et de Jurisprudence, 1978).

Carlos Santiago Nino chama de presidenci-alismo hipertrofiado, ou de hiperpresiden-cialismo, o regime vigente na Argentina. Apósanalisar os poderes que detém o presidente,dentre os quais a edição de leis e decretos denecesidad y urgencia, conclui :

“essa sumária revisão das faculdadesque os presidentes foram adquirindo poruma interpretação extensiva de cláusu-las constitucionais, por claudicação deoutros poderes do Estado, ou pelo puroexercício da musculatura política, mostra

que, do simples ponto de vista normati-vo, o presidente argentino é, como pre-via Alberdi, um verdadeiro monarca”(Fundamentos de Derecho Constitucio-nal. Buenos Aires: Astrea, 1992).

O inventário dos desequilíbrios presidencia-listas – aqui e ali degenerando em golpes e dita-duras – vem sendo feito, há bastante tempo, naAmérica Latina. Desse tema ocupou-se o I Con-gresso Latino-Americano de Direito Constitu-cional, realizado de 25 a 30 de agosto de 1975 naCidade do México (v. El predominio del poderejecutivo en Latinoamerica, Unam, 1977). Asexposições aí apresentadas não deixam de apon-tar a vedação da reeleição presidencial comofator moderador dos abusos. É o que fez, porexemplo, o uruguaio Héctor Gros Espiell: apósassociar o presidencialismo “à forte tendênciade personalizar o poder e exercê-lo de maneirapaternalista, em muitos casos com certo popu-lismo demagógico”, afirma que o predomíniopresidencial se teria acentuado ainda mais exa-gerada e perigosamente caso se houvesse ad-mitido a possibilidade de reeleição presidencial(ob. cit., p.11). “O sistema de não-reeleição pre-sidencial” – diz o panamenho César Quintero –“iniciado no século passado e acentuado noatual, teve sem dúvida um valor bastante posi-tivo. Pois ainda que não limite as múltiplas fun-ções atribuídas ao Presidente da República,impede que um mesmo indivíduo seja eleitosucessivamente para a máxima magistraturaexecutiva, com o que se evita uma das princi-pais fontes do monopólio e abuso do poder”(id., p. 399).

Entretanto, nunca foram tão cerrados os ata-ques ao presidencialismo, designado no Brasilcomo “imperial”, quanto no recente debate – apropósito do plebiscito de 1993 – entre parla-mentarismo e regime presidencial.

Aqui o paradoxo: os mesmos grupos políti-cos que desejavam, ontem, instituir o parlamen-tarismo pleiteiam, hoje, o reforço do poder pre-sidencial. Haveria, por trás dessas posiçõesantagônicas, um ponto comum que identifiqueambos os propósitos?

A adoção do voto majoritário (distrital puroou misto), a cláusula de barreira (nesta circuns-tância rebatizada como “cláusula de desempe-nho”) e a proibição de coligações nas eleiçõesproporcionais – cada uma dessas propostasgolpeando as minorias e o pluralismo partidário– integram o pacote neoliberal no tocante às“reformas” políticas.

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A justificativa para quase todas essas pro-postas – cujos verdadeiros objetivos sãoreduzir a dois ou no máximo três o número departidos, tornar as eleições não-competitivas eencastoar um grupo indefinidamente no poder– é a governabilidade, que só seria possívelmediante a existência de maiorias sólidas noparlamento.

A esse sofisma já respondeu, entre nós,Wanderley Guilherme dos Santos (Crise e cas-tigo – partidos e generais na política brasilei-ra, 1987). A ele também Kelsen dedicou algumaslinhas:

“... O sistema proporcional indubitavel-mente consolida essa tendência à liber-dade, que deve impedir um domínio in-contestado da vontade da maioria sobrea vontade da minoria.

Contra o sistema proporcional obje-tou-se especialmente que ele favorece aformação de pequenos partidos, oumelhor, de partidos minúsculos, compor-tando assim o perigo de um desmembra-mento dos próprios partidos. Isso écorreto e tem como consequência a pos-sibilidade de nenhum partido dispor damaioria absoluta no parlamento e de, comisso, a formação da maioria, indis-pensável ao procedimento parlamentar,vir a se tornar essencialmente mais difí-cil. Mas o sistema eleitoral proporcional,nesse aspecto implica apenas que a ne-cessidade de coalizão dos partidos, istoé, a necessidade de superar as diferen-ças menos importantes entre os grupose de unir-se pelos interesses comunsmais importantes, desloca-se do âmbitodo eleitorado para o âmbito do parla-mento... O sistema da proporcionalidadepressupõe, mais do que qualquer outrosistema, a organização dos cidadãos empartidos políticos e, onde a organizaçãodos partidos não estiver suficientemen-te evoluída, terá forte tendência a acele-rar e reforçar essa evolução. Esse é umpasso decisivo para a transformação dospartidos políticos em órgãos constituci-onais da formação da vontade do Esta-do. A proporcionalidade, portanto, mes-mo onde não levou a esse resultado,produziu um efeito que identificamoscomo o resultado do jogo de forças queconstitui a essência do Estado democrá-tico de partidos”.

(O princípio da maioria, in Essência

e valor da democracia; coletânea de tex-tos de Hans Kelsen, publicados em por-tuguês pela Martins Fontes Ed., 1993, sobo título “A democracia”).

Seria difícil restaurar uma aliança oligárqui-ca, semelhante à existente na república velha,sem regredir a um quadro eleitoral-partidárioanálogo. O Deputado João Almeida, porta-vozdesse programa no Congresso, chegou a propor,recentemente, a extinção da Justiça Eleitoral, como retorno à prática da “verificação de poderes”e à validação (“reconhecimento”) dos diplomaseleitorais por uma comissão do próprio Con-gresso.

Entretanto, mesmo a república velha – queconvivia com o voto majoritário, as atas falsas,o sufrágio restrito, a verificação dos poderes –jamais tolerou a reeleição do presidente,rejeitada pela unanimidade da doutrina. ParaAníbal Freire, em sua obra clássica sobre o PoderExecutivo, a reeleição seria uma arma poderosa,facilitando graves adulterações do sistemaconstitucional.

Carlos Maximiliano, reportando-se a Esmein,afirma que

“o estabelecimento de um regime repu-blicano representa a vitória dos que re-ceiam que a longa posse da autoridadenas mãos de um indivíduo produza a hi-pertrofia do poder pessoal” (Com. àConst. Bras., Ed. Globo, 1929, p. 519).

E acrescenta (p. 523) :“Nos próprios Estados Unidos, mui-

tos pensam dever ser vedada a reeleiçãoimediata. Ainda mesmo que se abstenhada corrupção e da violência, dispõe detal prestígio o Presidente que só por siconstitui sério embaraço à vitória de ou-tro candidato. (...) Nos países novos operigo é maior. Permitida a reeleição, to-dos a disputariam, e a vitória caberiasempre ao governo, como acontece emtodos os pleitos. Dever-se-ia o primeirotriunfo à persuasão, o segundo à cor-rupção, e os demais à violência”.

Talvez dissesse alguém, pouco atento àrealidade, que o predomínio eleitoral do governonão é, hoje, tão grande quanto na repúblicavelha. De fato, os números, nesta, são revela-dores: Rodrigues Alves, na sua segunda eleição(1918), obteve 99,1% dos votos. WashingtonLuis, 98%, e assim por diante. As performancesmais pálidas foram do marechal Hermes (64,4%),ao disputar com Rui, e de Júlio Prestes (57,7%),

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ao disputar com Getúlio, em 1930. Na segundaeleição de Rodrigues Alves, votou 1,5% dapopulação, na de Washington Luis, 2,3%, nado marechal Hermes 2,8%, e na de Júlio Prestes,5,7%.

O que, no fragor da vitória, é exibido comoadesão maciça dos desejos e das consciências,o tempo vai desnudando como fruto da coerção,manipulação, ou abuso do poder.

Reservamos para este fecho a condenaçãomais peremptória que se fez, nos primórdios daRepública, contra a reelegibilidade do presiden-te. Isso porque seu autor é muitas vezes apon-tado, por equívoco, como favorável à reeleição.Diz João Barbalho:

“De que poderosos meios não pode-rá lançar mão o presidente que pretendese fazer reeleger? Admitir presidente can-didato é expor o eleitorado à pressão,corrupção e fraude na mais larga escala.... O que não se dará quando o candidatofor o homem que dispõe da maior somade poder e força, pela sua autoridade,pelos vastos recursos que pode pôr emação para impor a sua reeleição? E queperturbação na administração pública, eque enorme prejuízo para o país no

emprego de elementos oficiais para essefim? Não há, pois, incompatibilidade maisjustificada”. (Coment. à Const. Fed. Bra-sileira. Rio: F. Briguiet & Cia. Edit., 1924,p. 226).

Em resumo, e concluindo :A tradição constitucional brasileira

e latino-americana é pela irreelegibi-lidade do Presidente da República.Essa tradição representa, entre nós,expressão do princípio republicano,defesa contra os excessos do presi-dencialismo e do golpismo. O sistemade inelegibilidades, vigente em nossoordenamento jurídico, preveniu sempreo perigo, consistente na apresentação,como candidato a cargo público, dequem ocupa altos postos na adminis-tração. O projeto de emenda constitu-cional, objetivando a reeleição dopresidente, governadores e prefeitos,é casuístico e continuísta; integra-sena estratégia neoliberal, que objetivaamoldar as instituições políticas aoprocesso de concentração do poder.Nada justifica sua aprovação, e tudo,na democracia, aconselha sua rejeição.

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1. IntroduçãoDentre as questões mais ricas e polêmicas

do Direito Público, a sindicalização, a negocia-ção coletiva e a greve dos servidores públicosvêm despertando a atenção e o cuidado dosestudiosos.

Pretendemos oferecer neste artigo umaanálise dessa temática, num esforço que venhaa abarcar os seus aspectos fundamentais e,ainda, suas questões mais intrincadas, inclusiveem sede de direito comparado, que vêm demons-trando a necessidade da adequação do DireitoAdministrativo à realidade fática em quevivemos.1

Inicialmente, examinamos a AdministraçãoPública e a atividade administrativa, enfocandoas diferentes posições dos doutrinadores dianteda problemática conceitual, bem como osprincípios que informam a ação do administradorpúblico.

Adiante, analisaremos os serviços e agentespúblicos, abordando as sínteses oferecidas

Amandino Teixeira Nunes Júnior é Mestre emDireito pela Universidade Federal de Minas Gerais –UFMG, Professor Universitário, Assessor Legisla-tivo da Câmara dos Deputados.

Sindicalização, negociação coletiva edireito de greve dos servidores públicos

AMANDINO TEIXEIRA NUNES JÚNIOR

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Administração Pública eatividade administrativa. 3. Serviço público. 4.Agente público. 5. Servidores públicos e regimejurídico único. 6. Direito de sindicalização dos ser-vidores públicos. 7. Negociação coletiva no serviçopúblico. 8. Direito de greve dos servidores públicos.9. Conclusões.

1 O presente artigo integra a monografia apresen-tada pelo autor no Curso de Especialização em DireitoPúblico, latu sensu , realizado pela Ordem dosAdvogados do Brasil, Seção do Distrito Federal(OAB/DF), em convênio com a Universidade deBrasília (UnB).

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pelos autores no que concerne à conceituação,à classificação e às relações daí decorrentes.

Noutra parte, examinamos a relação entre oEstado e os servidores públicos em face doregime único de pessoal, bem como as discus-sões no campo doutrinário relativamente à suanatureza jurídica.

Finalmente, o trabalho se completa com adiscussão, inclusive em nível de direitocomparado, das questões atinentes à sindi-calização, à negociação e à greve dos servidorespúblicos, que têm merecido diferentes posicio-namentos doutrinários, fontes de divergênciase controvérsias.

2. Administração pública e atividadeadministrativa

No campo do Direito Público, a locução“Administração Pública” tem suscitado dife-rentes posições dos doutrinadores diante daproblemática conceitual.

Adotando este ou aquele critério, situando-se neste ou naquele ângulo, apresentaram ossistematizadores do Direito Público as maisdiversas definições sobre AdministraçãoPública.

Como observa Hely Lopes Meirelles:“O conceito de Administração

Pública não oferece contornos bem defi-nidos, quer pela diversidade de sentidosda própria expressão, quer pelos dife-rentes campos em que se desenvolve aatividade administrativa.”2

Assim, a expressão “AdministraçãoPública” comporta dois sentidos: o formal e omaterial.

Administração Pública, em sentido formal,é o conjunto de atividades e órgãos administra-tivos instituído para a consecução dos obje-tivos do Estado; em sentido material, é oconjunto das funções necessárias aos serviçospúblicos em geral.

Conciliando o conceito formal e o conceitomaterial, é possível obter-se a definição com-pleta de Administração Pública, conjugando,no definido, as atividades e órgãos executorescom a própria atividade administrativa.

Há que distinguir, ainda, na problemáticaconceitual da Administração Pública, a suaposição no conjunto dos elementos queconstituem a estrutura política e administrativa

do Estado. Nesse sentido, incluem-se, naAdministração Pública, todos os órgãos queexecutam os serviços do Estado, excluídosapenas os judiciários e os legislativos. Assim,Administração Pública designa o complexo deórgãos e entidades do Poder Executivo, sendoequivalente a este.

Vê-se, assim, que o Direito Administrativonão estuda a Administração Pública tão-somente como o conjunto de pessoas e órgãosadministrativos, mas também como a atividadeadministrativa em si mesma.

A atuação da Administração Pública estásujeita a observância permanente e obrigatória,entre outros, de quatro princípios funda-mentais, consagrados pela doutrina e atual-mente previstos no art. 37, caput, da ConstituiçãoFederal, a saber: legalidade, impessoalidade,moralidade, e publicidade.

Hely Lopes Meirelles assevera:“Por esses padrões é que se hão de

pautar todos os atos administrativos.Constituem, por assim dizer, os funda-mentos da validade da ação administra-tiva, ou, por outras palavras, os susten-táculos da atividade pública. Relegá-losé desvirtuar a gestão dos negóciospúblicos e olvidar o que há de maiselementar para a boa guarda e zelo dosinteresses sociais.”3

O princípio da legalidade significa que aatividade administrativa não é livre, está limitadapela obrigação de respeitar a regra de direito.

É na lei que a Administração Públicaencontra seu fundamento, orientação e limite,dela não podendo se afastar, sob pena depraticar ato inválido.

Atualmente, o princípio da legalidade sofreugrande transformação. Neste sentido, a Admi-nistração só pode fazer aquilo que estiver deacordo com o Direito.

Celso Antônio Bandeira de Mello observa,a propósito:

“A expressão legalidade deve, pois,ser entendida como conforme o direito,adquirindo, então, sentido mais extenso.”4

O princípio da impessoalidade constituidesdobramento do anterior. Impõe que a Admi-nistração não abra espaço à vontade pessoaldo agente que, subordinado aos ditames legais,não pode se desviar da finalidade pública para

2 MEIRELLES, H.L. Direito administrativobrasileiro. São Paulo : Malheiros, 1993. p. 79.

3 MEIRELLES, H.L., op. cit., p. 82.4 MELLO, C.A.B. Curso de direito adminis-

trativo. São Paulo : Malheiros, 1993. p. 25-26.

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satisfazer móvel pessoal e interesses privados.Favoritismos e perseguições não são toleráveis.

O princípio da moralidade constitui pressu-posto de cujo conceito, na lição de MauriceHauriou, significa:

“O conjunto de regras de condutatiradas da disciplina interior da Adminis-tração.”5

Assim, a Administração Pública deveobservar os valores morais que a norma jurídicaconsagra. Atenta à finalidade pública, a moraladministrativa é composta por regras de boaadministração, além de traduzir a vontade deobter o “máximo de eficiência administrativa”,no ensinamento abalizado de Antônio JoséBrandão6.

A moralidade administrativa está ligada aoconceito de “bom administrador”, que, segundoFranco Sobrinho:

“É aquele que, usando de sua competêncialegal, se determina não só pelos preceitosvigentes, mas também pela moral comum.”7

O princípio da moralidade integra o direitocomo elemento indissociável na sua aplicaçãoe na sua finalidade, constituindo-se em fator delegalidade e de validade da atividade adminis-trativa. Daí por que sua observância se sujeitaao controle judicial, como já vinha sustentandoa doutrina mais atual.

O princípio da publicidade visa a assegurara divulgação oficial dos atos e contratos admi-nistrativos para conhecimento público e iníciode seus efeitos externos.

Além do requisito de eficácia e moralidadeda atividade administrativa, o princípio dapublicidade propicia o seu controle pelos inte-ressados diretos e pela população em geral, pormeio dos instrumentos constitucionais, a saber:mandado de segurança (art. 5º, LXIX), direitode petição (art. 5º, XXXIV, “a”), ação popular(art. 5º, LXXIII) e habeas data (art. 5º, LXXII).Decorrente desse princípio é, também, o direitodo cidadão à obtenção de certidões em reparti-ções públicas (art. 5º, XXXIV, “b”).

Como se viu, o art. 37, caput, da Consti-tuição reportou expressamente à AdministraçãoPública apenas quatro princípios: da legalidade,

da impessoalidade, da moralidade e da publi-cidade. No entanto, vários outros mereceramtambém tratamento constitucional: uns, porconstarem explicitamente da Carta Magna,embora não mencionados no referido disposi-tivo; outros, por nela estarem abrigadosimplicitamente como conseqüências lógicas dopróprio Estado de Direito.

Nesse sentido, citem-se os princípios darazoabilidade, da finalidade, da motivação, daresponsabilidade civil do Estado, da propor-cionalidade e do controle judicial dos atosadministrativos.

3. Serviço públicoA noção de serviço público não é uniforme

na doutrina. Não há, entre os autores, coinci-dência de opiniões para se conseguir umacompreensão clara e sintética do que se devaentender por essa expressão.

Sendo assim, não é de estranhar que, porvezes, alguns estudiosos corram o risco deincidir, por exemplo, na identificação do “serviçopúblico” com a “função pública”, que consti-tuem, na verdade, aspectos bem distintos damesma realidade, se bem que com algunsnecessários pontos de contato.

A conceituação que a doutrina nos oferecede serviço público apresenta diferentesacepções: ora uma orgânica, tendente a identi-ficá-lo como o que é prestado por órgãos eentidades públicos, ora outra formal, tentandodefini-lo por atributos extrínsecos; e, final-mente, a acepção material, visando a identificá-lo por seu objeto.

Realmente, o conceito de serviço público éincerto e flutuante. É fixado segundo as neces-sidades e realidades históricas, políticas,econômicas e culturais de cada país. O naturalincremento das atividades estatais levou aoespraiamento da noção de serviço público. Nosmomentos em que o Estado se mantinha àdistância de tudo que era considerado assuntode interesse privado, os serviços públicos eramprestados diretamente à comunidade, privati-vamente pelo Estado, até porque no geralexigiam atos de império e medidas compulsórias.

A noção de serviço público se liga, portanto,ao âmbito de atuação do Estado. Concreta-mente, da observada evolução dos contornosdo Estado, resultou sua onipresença na vidasocial. Os objetivos tradicionais do Estado, quereduziram a noção de serviço público à

5 HAURIOU, M.. apud MEIRELLES, H.L., op.cit. p. 83.

6 BRANDÃO, A.J. apud MEIRELLES, H.L.,op. cit., p. 84.

7 FRANCO SOBRINHO, M.O. apud . MEI-RELLES, H.L., op. cit., p. 85.

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satisfação das necessidades básicas da comu-nidade, foram substituídos por outros objetivossubordinados a valores e ditames novos,tornando flutuante e instável o conceitoclássico de serviço público.

O inegável é que na noção de serviçopúblico é que se traduz a atividade com que aAdministração se exterioriza no mundo concretopara cumprir sua finalidade.

Para Hely Lopes Meirelles:“Serviço público é todo aquele pres-

tado pela Administração ou por seusdelegados, sob normas e controle esta-tais, para satisfazer necessidades essen-ciais ou secundárias da coletividade, ousimples conveniência do Estado.”8

José Cretella Júnior observa que:“Serviço público é toda atividade que

o Estado exerce, direta ou indiretamente,para a satisfação do interesse público,mediante procedimento de direito pú-blico.”9

Celso Antônio Bandeira de Mello oferece aseguinte definição:

“Serviço público é toda atividade deoferecimento de utilidade ou comodidadematerial fruível diretamente pelos admi-nistrados, prestado pelo Estado ou porquem lhe faça as vezes, sob um regimede direito público – portanto consagra-dor de prerrogativas de supremacia e derestrições especiais – instituído peloEstado em favor dos interesses quehouver definido como próprios nosistema normativo.”10

De resto, como salienta Jean Rivero:“A tese fundamental é a de que todo

o direito administrativo se explica pelanoção de serviço público.”11

Claro está que, como o próprio nome indica,o fim precípuo do serviço público é servir à co-letividade e, secundariamente, produzir rendaou lucro a quem o explore. Cabe ao Estadofiscalizar, controlar e intervir no serviço conce-dido, permitido ou autorizado, sempre que não

estiver sendo prestado satisfatoriamente aopúblico a que se destina.

Hely Lopes Meirelles, com inteira proprie-dade, preleciona que:

“A regulamentação e controle doserviço público e de utilidade públicacaberão sempre e sempre ao poderpúblico, qualquer que seja a modalidadede sua prestação aos usuários. O fato detais serviços serem delegados a terceiros,estranhos à Administração Pública, nãoretira do Estado o seu poder indeclinávelde regulamentá-los e controlá-los,exigindo sempre a sua atualização e efici-ência, de par com o exato cumprimentodas condições impostas para a suaprestação ao público.”12

Do ponto de vista de formas e meios de pres-tação, e considerando a nomenclatura doDecreto-Lei nº 200/67, alterado pelo Decreto-Lei nº 900/69, a prestação do serviço públicoou de utilidade pública pode ser “centralizada”e “descentralizada” e sua execução, “direta” e“indireta”.

Serviço centralizado é o que o Poder Públicopresta por seus próprios órgãos, em seu nomee sob sua inteira responsabilidade. Nessesentido, o Estado é ao mesmo tempo titular eprestador do serviço, constituindo o que seentende por Administração Direta.

Serviço descentralizado é o que o PoderPúblico transfere a sua titularidade, ou simples-mente a sua execução, por outorga (mediantelei) ou delegação (mediante contrato ou atoadministrativo), às autarquias, fundaçõespúblicas e entidades paraestatais (empresaspúblicas, sociedades de economia mista eserviços sociais autônomos), bem como àsempresas privadas ou particulares individual-mente. No primeiro caso, tem-se a chamadaAdministração Indireta.

4. Agente públicoComo se vê, a Administração Pública realiza

suas atividades por meio dos serviços que prestaà coletividade. Para tanto, utiliza-se de pessoasque executam tais atividades. Daí a noção deagente público, que, de modo idêntico, dámargem a diferentes conceituações entre osautores, com repercussão no ordenamentopositivo.

Sem embargo, a expressão “agente público”

8 MEIRELLES, H.L., op. cit., p. 294.9 CRETELLA JUNIOR, J. Curso de direito

administrativo. Rio de Janeiro : Forense, 1983. p.457.

10 MELLO, C.A.B., op. cit., p. 348.11 RIVERO, J., apud MELLO, C.A.B., op. cit.,

p. 149. 12 MEIRELLES, H.L., op. cit., p. 298.

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deve ser tomada como ponto de partida paradesignar, genérica e indistintamente, as pessoasque desempenham o exercício de alguma funçãoestatal, ainda que o façam apenas ocasional oueventualmente.

Conforme salienta Antônio Álvares da Silva:“Nela compreendem todas as pessoas

capacitadas a exercerem uma parcela dopoder estatal, quer através de vínculo decaráter legal e profissional, em caráterdefinitivo ou transitório (servidorespúblicos civis e militares), ou de naturezacontratual (empregados), quer comoagentes políticos eleitos ou não membrosdo Congresso Nacional (Magistrados),quer finalmente como executores detarefas eventuais ou precárias: mesárioseleitorais, jurados, concessionários,permissionários e cooperadores.”13

Na conformidade da sistematização propostapor Celso Antônio Bandeira Mello, os agentespúblicos podem ser classificados em trêsgrandes grupos:14

a - os agentes políticos, que, como repre-sentantes dos Poderes, mantêm com o Estadovínculo de natureza política;

b - os servidores públicos, que entretêm como Estado vínculo de natureza profissional,estabelecido em lei, mediante remuneração.Podem estar sujeitos ao regime estatutário, con-tratados sob a égide da legislação trabalhista,ou contratados por tempo determinado paraatender a necessidade temporária de excep-cional interesse público;

c - os particulares em colaboração com oPoder Público, que prestam serviços ao Estado,com ou sem remuneração, mediante delegação,requisição ou designação.

5. Servidores públicos e regimejurídico único

A Constituição de 1988 trouxe no seu bojoprofundas transformações relativamente aosservidores públicos, destacando-se aí aobrigatoriedade de a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípiosinstituírem, no âmbito de sua competência,regime jurídico único para os servidores daAdministração Direta, autárquica e fundacional.

A adoção do tipo de regime pelos entes

políticos deu ensejo a acirradas discussõesdoutrinárias.

Autores como Diógenes Gasparini, IvanBarbosa Rigolin e Toshio Mukai filiam-se àcorrente de que o constituinte conferiu plenaliberdade de escolha no tocante à instituiçãodo regime único pelo ente político destinatáriodo comando inserto no caput do art. 39,devendo este ater-se tão-só aos princípios enormas que o Texto Fundamental consagra.

Nesse sentido, o constituinte não elegeuqualquer dos sistemas como próprio daAdministração, seja o estatutário, seja o da CLT.

Para esses autores, a Constituição de 1988revigorou o sistema federativo, restaurando oprincípio da autonomia política, administrativae financeira das entidades estatais. Assim,estas são livres para organizar seu pessoal parao melhor atendimento dos serviços a seu cargo.

No entendimento conclusivo de IvanBarbosa Rigolin:

“Pelo que entendemos, então, cadaMunicípio poderá (e deverá eleger umregime jurídico ou implantar um novo),cada Estado idem, e também a União.”15

De outro lado, autores como Hely LopesMeirelles, Celso Antônio Bandeira de Mello,Diogo de Figueiredo Neto e Antônio AugustoJunho Anastasia propugnam pela adoção doregime estatutário como próprio da Adminis-tração e, portanto, o eleito pelo constituinte.

A posição adotada por tais autores leva emconta o fato de que, embora a Constituição nãofaça menção expressa do regime estatutário, éele de direito público e, conseqüentemente, oúnico aplicável à Administração como próprioe inerente à sua condição de detentora deprerrogativas públicas.

Conforme salienta Antônio Augusto JunhoAnastasia:

“O regime único, árdua conquista detodos aqueles que, durante anos, serevelaram inimigos da multiplicidadecaótica em que se haviam transformadoas relações jurídicas entre o PoderPúblico e o servidor, não pode ser objeto,nesta altura, de interpretações equivo-cadas. Procuramos demonstrar que avontade do constituinte, expressa emdiversos dispositivos constitucionais, éno sentido de identificar, no regime único,um regime de direito público, caracte-rizado por relação unilateral, que,13 SILVA, A. A. Os servidores públicos e o direito

do trabalho. São Paulo : Ltr., 1993. p. 16-17;14 MELLO, C.A.B., op. cit., p. 123.

15 RIGOLIN, I.B. O servidor público na Consti-tuição de 1988. São Paulo : Saraiva, 1989. p. 122.

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classicamente, se denomina estatutá-rio.”16

É oportuno trazer à colação a visão críticade Antônio Álvares da Silva, resultado deexaustiva análise do assunto:

“Todos estes fatos mostram que asafirmativas sobre a superioridade doregime estatutário sobre o privado é meraquestão de tradicionalismo, baseado emprincípios que não geram nenhum efeitoprático concreto. As condições de efici-ência e êxito de uma AdministraçãoPública devem ser buscadas numa sériede fatores, muito mais complexos do queo regime de seus servidores.”17

Diante disso, vê-se a grande controvérsiaatinente à matéria. Em que pese os argumentosexpendidos pelos autores integrantes daprimeira corrente, entendemos mais acertada asegunda que propugna o regime jurídico únicocomo sendo o regime estatutário, que deflui dalei e não do contrato.

Assim é que o constituinte, ao estabelecera regra do caput do art. 39, pretendeu unificar,no âmbito de cada ente político (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), oregime jurídico dos servidores da Administra-ção direta, autarquias e fundações públicas,eliminando a multiplicidade de regimes até entãoexistente.

A propósito, Maria Sylvia Zanella Di Pietroobserva que:

“(...) pela interpretação literal, é issoprecisamente o que está escrito nodispositivo; e, pela interpretação siste-mática, essa conclusão é a que melhor seenquadra com o princípio da isonomiaque inspirou basicamente o constituintenesse capítulo da Constituição. Com aadoção do regime jurídico único, osservidores da Administração Direta,autarquias e fundações públicas terãoigualdade de direitos e obrigaçõesperante a entidade política a que servem;a sua isonomia diante da lei estará asse-gurada.”18

A promulgação da Lei nº 8.112, de 11 dedezembro de 1990, que instituiu, no planofederal, o regime de seus servidores, veio

incorporar o entendimento do regime jurídicocomo único e como sendo de natureza estatu-tária.

A opção uniformizadora do constituinte de1988 tem sofrido críticas, sob o argumento deque teria provocado o engessamento daAdministração Pública, em detrimento dasestratégias descentralizadoras que, no passado,inspiravam a criação de autarquias e fundaçõespúblicas.

Importante consignar que o regime jurídicoúnico não tem – e nunca terá – o condão deresolver os problemas que afetam a gestão dosrecursos humanos no serviço público. Oretorno à situação anterior à promulgação daCarta vigente, caracterizada pela diversidade esuperposição de regimes jurídicos e situaçõesfuncionais entre os servidores públicos e pelaliberdade dos dirigentes de admitir, promover,ascender e até mesmo dispensar, poderá serdanoso à boa gerência da coisa pública.

6. Direito de sindicalização dos servidorespúblicos

A deteriorização dos vencimentos dosservidores públicos e das condições de trabalhooferecidas pela Administração, bem como oclima de liberdade propiciado pela redemocrati-zação do País, levaram ao surgimento de movi-mentos reivindicatórios no serviço público,alguns de grandes proporções, nascendo daíuma nova forma de relacionamento entre aAdministração e seus servidores.

Tal o contexto, e os reclamos dele originadostraduziram-se em demandas dos servidorespúblicos quando da elaboração da Constituiçãode 1988 pela Assembléia Nacional Constituinte,resultando nos dispositivos que lhes estende-ram o direito à livre associação sindical e odireito de greve, permitidos na sistemáticaconstitucional anterior apenas aos trabalha-dores do setor privado.

Assim é que, embora não tenha ratificadoas Convenções da Organização Internacionaldo Trabalho (OIT) nºs 87, de 1948, e 151, de1978, o Brasil passou a reconhecer aosservidores públicos civis o direito de sindicali-zação, a partir da promulgação da Carta de 1988(art. 37, VI). No nível infraconstitucional,todavia, o reconhecimento desse direito sóaconteceu com o advento da Lei nº 8.112, de 11de dezembro de 1990 (art. 240).

A sindicalização do servidor público é, hoje,uma tendência universal. Poucos são os países

16 ANASTASIA, A.A.J. Regime jurídico únicodo servidor público. Belo Horizonte : Del Rey, 1990.p. 98-99.

17 SILVA, A.A., op. cit., p. 57.18 ZANELLA DI PIETRO, M.S. Direito

administrativo. São Paulo : Atlas, 1994. p. 360.

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que negam esse direito, a saber: Bolívia (LeiGeral do Trabalho, de 1939), Chade (Ordenança,de 1976), Chile (Decreto-Lei de 1979), RepúblicaDominicana (Código do Trabalho, de 1949),Equador (Lei sobre o Serviço Civil), El Salvador(Código do Trabalho), Etiópia (Proclamação, de1982), Guatemala (Código do Trabalho),Jordânia (Código do Trabalho), Libéria (Leisobre Práticas em Matéria de Trabalho), Nica-rágua (Código do Trabalho), Iêmen (Código doTrabalho) e Zimbábue (Lei sobre a Conciliaçãoem Matéria Trabalhista).

Como acentua Antônio Álvares da Silva:“Vê-se, pelos países que não a

permitem, que a exceção dificilmente faráescola no mundo civilizado contempo-râneo.”19

As Forças Armadas e a Polícia são as únicascategorias profissionais em relação às quais osordenamentos jurídicos vedam, em maior oumenor escala, o direito de sindicalização.

A questão é examinada com propriedade porArion Sayão Romita:

“Quanto aos servidores militares, aConstituição brasileira de 1988 expres-samente contempla a proibição (art. 42, §5º). Argumenta-se que a proibição derivada responsabilidade que tais servidoresassumem na manutenção da segurançainterna e externa do Estado. A despeitoda proibição geral, há países que reco-nhecem aos membros das Forças Arma-das o direito de organizar-se para defen-der seus interesses profissionais, emalguns casos com restrições específicas,tais como Alemanha, Áustria, Dinamarca,Finlândia, Luxemburgo, Noruega, ReinoUnido e Suécia. Em relação aos policiais,certos países lhes asseguram o direitode sindicalização igual ao reconhecidopara as demais categorias de servidorespúblicos ou por força de uma legislaçãoespecial, tal como sucede na Alemanha,Austrália, Áustria, Bélgica, Costa doMarfim, Dinamarca, Finlândia, França,Guiné, Irlanda, Islândia, Luxemburgo,Malawi, Nigéria, Noruega, Nova Zelân-dia, Holanda, Reino Unido, Senegal,Suécia e Tunísia.”20

Note-se, pois, que a sindicalização do

servidor público é uma tendência crescente nomundo hoje em dia. No Brasil, é uma realidadeinafastável, na medida em que a Carta Magna adefere expressamente no seu art. 37, VI, inverbis:

“Art.37....................................................................................................................VI - é garantido ao servidor público

civil o direito à livre associação sindical.”No plano da legislação infraconstitucional,

o preceito de superior hierarquia é regulamen-tado pelo art. 240 da Lei nº 8.112, de 11 dedezembro de 1990, que assim dispõe:

“Art. 240. Ao servidor público civil éassegurado, nos termos da ConstituiçãoFederal, o direito à livre associaçãosindical e os seguintes direitos, entreoutros, dela decorrentes:”

Observe-se que o citado dispositivo legalassegura também aos servidores públicos civisalguns direitos decorrentes da livre associaçãosindical. Dentre eles, citem-se os previstos nasalíneas: “a”, “b”, e “c”, quais sejam: a) o deserem representados pelo sindicato, inclusivecomo substituto processual; b) o de inamovibi-lidade do dirigente sindical, até um ano após ofinal do mandato, exceto se a pedido; c) o dedescontar em folha, sem ônus para a entidadesindical a que forem filiados, o valor dasmensalidades e contribuições definidas emassembléia geral da categoria.

A inteligência do art. 240 da Lei nº 8.112, de1990, orienta-se no sentido de que a enumera-ção de tais direitos não é taxativa, permitindoque outros sejam reconhecidos por diplomaslegais supervenientes.

As alíneas “d” e “e” do sobredito disposi-tivo legal, que prevêem, respectivamente, odireito à negociação coletiva e ao ajuizamento,individual e coletivo, frente à Justiça doTrabalho, nos termos da Constituição, foramdeclaradas inconstitucionais pelo SupremoTribunal Federal na Ação Direta de Inconstitu-cionalidade nº 492-1-DF, proposta pelo Procu-rador-Geral da República, cujo relator fora oMinistro Carlos Velloso.

7. Negociação coletiva no serviço públicoFatores econômicos e sócio-políticos têm

sido apresentados para explicar a participaçãodos sindicatos de trabalhadores na gestãodos negócios públicos. Em diversos países,o Direito reconhece a legitimidade do sindi-cato para participar, mediante processos deconsulta, da negociação ou co-gestão, nos

19 SILVA, A.A., op. cit., p. 6820 ROMITA, A.S. Servidor público : sindicaliza-

ção, negociação coletiva, conflitos coletivos, direitode greve. Revista Ltr, v. 56, n. 07, p. 795, jul. 1992.

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assuntos públicos.Paulatinamente, passou-se da negociação

informal para a formal, no que concerne àscondições de trabalho no serviço público. Osmétodos e procedimentos adotados no setorprivado exerceram grande influência sobre ainstitucionalização da negociação coletiva nosetor público, observadas, é certo, as peculia-ridades concernentes ao processo de formaçãoda vontade do Poder Público.

Nas palavras de Arion Sayão Romita:“A negociação das condições de

trabalho tornou-se um expedientecomum, reconhecido aos servidorespúblicos, que passaram a participar daelaboração das normas destinadas a regersua atividade. A situação do funciona-lismo público tornou-se semelhante àdos trabalhadores do setor privado.”21

O Brasil ainda não ingressou no grupo denações em que a negociação coletiva constituium instrumento democrático de participaçãodos servidores no processo decisório. AAdministração Pública brasileira insiste naspráticas autoritárias que determinam as relaçõesde trabalho pela via unilateral.

Ao prever a negociação coletiva como umdireito dos servidores públicos, a Lei nº 8.112,de 1990, no seu art. 240, alínea “d”, consagrouuma tendência moderna presente nos ordena-mentos positivos de numerosos países.

Tal dispositivo foi vetado pelo Presidenteda República, sob justificativa de inconstituci-onalidade. O veto foi rejeitado pelo CongressoNacional e promulgado pelo Presidente doSenado Federal em 18 de abril de 1991. OSupremo Tribunal Federal, ao julgar a AçãoDireta de Inconstitucionalidade nº 492-DF,ajuizada pelo Procurador-Geral da República,suspendeu liminarmente sua eficácia. Em 12 denovembro de 1991, o Excelso Pretório decidiu amatéria em caráter definitivo, declarando a citadaalínea inconstitucional.

Sem embargo, o Direito comparado vemdemonstrando a necessidade da adequação doDireito pátrio à realidade sócio-política em quevivemos. Não podemos estagnar no tempo eacreditar que somente o Estado sabe o queconvém aos servidores – este é o entendimentoque, infelizmente, ainda informa as relações detrabalho no serviço público em nosso País.

Os exemplos de numerosos países demons-tram tal assertiva.

Na França, onde o servidor se acha, em face

da Administração, numa relação estatutária, o§ 2º do art. 8º da Lei nº 634, de 13 de julho de1983, dispõe que as associações sindicais dosservidores públicos podem estabelecer com ogoverno negociações de decisões ou alteraçõesna remuneração e discutir com as autoridadesresponsáveis, nos diferentes níveis, questõesalusivas às condições e à organização dotrabalho.

Na Inglaterra, os Conselhos Withley, criadospor lei, constituídos paritariamente por repre-sentantes do governo e dos servidores,discutem as relações entre ambos, inclusive apolítica salarial, conjugando o aumento daeficiência do setor público ao bem-estar dosseus empregados.

Na Alemanha, onde se faz uma distinçãorígida entre funcionário e servidor, o Estadorealiza consulta oficial ao sindicato de funcio-nários públicos (Beamte) sobre as condiçõesde trabalho desejadas antes da intervenção legalfinal.

Na Espanha, a Lei nº 9, de 12 de maio de1987, prevê, no seu art. 32, que a remuneração,a preparação dos planos de oferta de empregos,a classificação dos empregos, as condições deingresso, provimento e promoção dos servi-dores públicos, bem como os assuntos denatureza econômica e a prestação de serviçossindical e assistencial, podem ser objeto denegociação em cada setor da AdministraçãoPública.

Na Suécia, o “Act Public Employment”autoriza a participação dos servidores públicosnos processos de negociação coletiva.

Nos Estados Unidos, a União e cerca dequarenta Estados-membros já vêm concedendoformas, ainda que restritas, de negociação aosseus servidores.

Na América do Sul, notadamente na Argen-tina e na Venezuela, a negociação coletiva,diante das constantes greves no serviçopúblico, vem se desenvolvendo de fato. Osgovernos, embora sem obrigatoriedade, em faceda inexistência de norma legal, passaram arespeitar os resultados da negociação, aindaque em parte ou com adaptações.

Destarte, observamos que a tendência doDireito moderno é estender, de forma crescente,a negociação coletiva a todos os setores daatividade laboral, inclusive ao serviço público.

Não obstante, respeitados o princípio dareserva de lei e a iniciativa do Chefe doExecutivo, entendemos que o regime estatutário,de per si, não repele a negociação coletiva,21 ROMITA, A.S., op. cit., p. 796.

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podendo com ela coexistir harmonicamente,como ocorre na França e na Alemanha.

Conforme salienta Antônio Álvares da Silva:“Entretanto, foi exatamente o contrá-

rio que se viu no direito comparado,segundo a exposição acima feita. Nestecaso, a convenção coletiva é perfeita-mente possível. O que se tem de modificaré o modo de realização, adaptando-a ànova finalidade a que procura servir. Aquestão está, pois, no modus e não naimpossibilidade da aplicação.

Primeiramente, a lei, convençãocoletiva ou contrato coletivo de âmbitonacional estabelecerão a forma pela qualse fará a negociação coletiva com oEstado. Poderá ser criada uma Comissão,conselho ou mesmo um órgão para estefim, composto dos segmentos interes-sados: representantes dos servidores, doPoder Executivo e do Congresso.

Caso haja acordo, os servidores secomprometem a aceitar as determinaçõesda lei que o Presidente da República teráa iniciativa de apresentar ao Congresso,que se compromete, pelos representantesna negociação, a aprová-la.”22

Portanto, entendemos que os servidorespúblicos, no Brasil, estão perfeitamente aptos ànegociação coletiva, até porque, ao incluir noTexto Básico, dentre outros, o direito dos servi-dores à livre associação sindical, o legisladorconstituinte, automaticamente, reconheceu-lheso direito à negociação coletiva.

Referindo-se ao assunto, diz Arion SayãoRomita:

“(.....) pode afirmar-se, sem receio de errar,que o reconhecimento, pela Constituição,do direito de sindicalização importanecessariamente o de negociação coletiva.

Se a Constituição Federal, no art. 37,VI, assegura ao servidor público o direitoà livre associação sindical, implicitamentereconheceu ao sindicato dos servidorespúblicos o poder de negociar condiçõesde trabalho, já que é obrigatória a partici-pação nas negociações coletivas detrabalho (art. 8º, VI).”23

Há, apenas, que se estabelecer o modo derealização da negociação coletiva com a Admi-nistração Pública, o que poderá ser objeto denorma legal, convenção ou contrato coletivode trabalho.

8. Direito de greve dos servidores públicosA greve é, por excelência, um fenômeno

social, com causas e efeitos os mais diversos.Por isso, do ponto de vista sociológico, a grevenão é apenas a simples paralisação do trabalhocoletivo. A realidade social é bem maiscomplexa.

Como adverte López-Monis de Cavo:“Por greve, deve-se entender, em

sentido amplo, qualquer perturbação noprocesso produtivo, com abstençãotemporária do trabalho ou sem ela.”24

Assim, a greve, com raízes bem fundadasna realidade social, é a principal forma de conflitoentre as duas categorias mais importantes dosistema produtivo: capital e trabalho. É aprincipal forma de luta dos trabalhadores con-tra pressão e opressão econômicas e desu-manas.

Ora, sendo a greve, acima de tudo, um fenô-meno social, pode ser abordada de váriasmaneiras: política, econômica e juridicamente.No nosso enfoque, porém, a greve será tratada,especificamente, nas sua relações com o Direito,salvo incidente e supletivamente.

Começamos por ressaltar que, na doutrinajurídica, são muitas as definições de greve.Selecionamos várias entre os diversos autoresnacionais e estrangeiros.

Greve, para Gerhard Boldt, é:“Uma interrupção coletiva e combi-

nada do trabalho por um certo númerode trabalhadores da mesma profissão ouempresa, tendo um objetivo de luta, a fimde que os seus fins venham a ser atin-gidos.”25

Paul Durand adota a seguinte definição:“Toda interrupção de trabalho, de

caráter temporário, motivada por reivin-dicações suscetíveis de beneficiar todoou parte do pessoal e que é apoiada porum grupo suficientemente representativoda opinião obreira.”26

22 SILVA, A.A. da., op. cit., p. 98.23 ROMITA, A. S., op. cit., p. 798.

24 LÓPEZ-MONIS DE CAVO, C. O direito degreve : experiências internacionais e doutrina da OIT.São Paulo : LTr/IBRART, 1986. p. 11.

25 BOLDT, G. Gréve el le lockout em droitalemmand. In: LE DROIT DU TRAVAIL DANSLA COMMUNAUTÉ. Luxemburgo : CommunautéEuropéen du Charbon e de L’acier, 1961. v. 5, p. 96.

26 DURAND, P., La Gréve et le lockout em droitfrançais. In: LE DROIT DU TRAVAIL DANS LACOMMUNAUTÉ. Luxemburgo : CommunaitéEuropéen du Charbon e de L’acier, 1961, V. 5, p.207.

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Para Mozart Víctor Russomano, greve, emsentido próprio, consiste na:

“Suspensão transitória do serviço,provocada pela maioria dos trabalha-dores de uma empresa ou de umacategoria profissional, tendo por finali-dade as alterações das condições detrabalho.”27

Segadas Vianna assim a define:“O abandono coletivo e temporário

do trabalho, deliberado pela vontade damaioria dos trabalhadores de uma seção,de uma empresa ou de várias empresas, erealizada nos termos previstos na lei, como objetivo de obter reconhecimento dedireitos ou o atendimento de reivindica-ções que digam respeito à profissão.”28

Por outro lado, do ponto de vista legal, agreve pode ser considerada um delito, umaliberdade ou um direito.

Se o ordenamento jurídico tem a greveenquanto delito, esta será considerada ilícita,acarretando conseqüências do ponto de vistapenal e trabalhista. No primeiro caso, poderáhaver a cominação de pena ao grevista; nosegundo, o despedimento.

Se a greve for considerada como uma mani-festação do exercício da liberdade, não há quese falar em delito strictu sensu, mas poderáconstituir motivo suficiente para a demissão dogrevista.

Por fim, se a greve for reconhecida como umdireito do trabalhador, não constituirá delito nemmotivará a dispensa do grevista. Nesta últimahipótese, poderá haver a suspensão do contra-to de trabalho e o não-pagamento do saláriodurante a greve. Mas, ao término dessa, ostrabalhadores terão direito à reincorporação aotrabalho, com todas as garantias.

Como lembra López-Monis de Cavo:“Estes três modelos normativos têm,

de alguma maneira, correspondência comos três estágios de evolução históricanos diferentes países. Num primeiromomento se considera delito; mais tardese tolera; finalmente, se reconhece comoum direito.”29

De todo modo, atribuir à greve um delito,

uma liberdade ou um direito dependerá de cadasistema normativo. Podemos dizer, generica-mente, que a greve, nas sociedades democrá-ticas, é considerada direito e não delito, salvocasos excepcionais, ou quando algumasexigências prescritas por lei não são observadas,tais como: o aviso prévio ao empregador, aobservância do procedimento formal rigoroso,etc.

No serviço público, a greve tem sido objetode controvérsias na doutrina e na ordem jurídica.

Cumpre ter presente que, tradicionalmente,a greve no serviço público tem sido vedada oudelimitada em face da legislação, mediantealguns argumentos, a saber:

a) o princípio da continuidade, que se traduzpela ininterrupção da atividade da Adminis-tração, não se admitindo a paralisação dosserviços públicos;

b) a relação jurídica da Administração comseus funcionários, que, sendo de direito públicoe de natureza estatutária, é incompatível com oexercício da greve: as condições de trabalhoficam subordinadas à lei e não à vontade daspartes;

c) a situação dos funcionários públicos emrelação aos trabalhadores privados: entre outrasgarantias, possuem estabilidade no emprego e,portanto, deve-se deles exigir, em contrapartida,uma lealdade irrestrita à Administração, o queimplica a restrição dos seus direitos, entre osquais o direito de greve.

Conforme observa Antônio Álvares daSilva:

“As estatísticas da OIT mostram que,em mais de 36 países, a greve nos servi-ços públicos é proibida. Em cerca de 26,é permitida. Em outros, há um meio termoentre proibição e a permissão: a autori-zação com limitações, geralmente emrelação a serviços considerados essen-ciais e necessários prestados pelo Estadoà sociedade.”30

Na França, a Lei nº 63 -777, de 31 de julho de1963 (hoje integrante do Código de Trabalho,arts. L-521-2 a 521-6), reconhece o direito degreve do pessoal civil que trabalha para oEstado, dos Departamentos e dos Municípioscom população superior a 100.000 habitantes,bem como dos trabalhadores das entidades, dedireito público e privado, responsáveis pelagestão de um serviço público.

Para determinados funcionários públicos,

27 RUSSOMANO, M. V. Direito sindical: prin-cípios gerais. Rio de Janeiro : Konfino, 1957. p.233.

28 VIANNA, S. Greve: Direito ou violência. Riode Janeiro : FB, 1959. p. 66.

29 LÓPES-MONIS DE CAVO, C., op. cit., p.12. 30 SILVA, A.A., op. cit., p. 108.

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porém, a legislação francesa proíbe expressa-mente a greve. Incluem-se nessas modalidadesos magistrados (Ordenança de 28.12.58), aPolícia (Lei de 13.7.72), os membros dasCompanhias Republicanas de Segurança (Leide 27.12.47), os controladores aéreos (Lei de3.7.64), os agentes de administração de prisões(Ordenança de 6.8.58) e os funcionários dosserviços de transmissão do Ministério doInterior (Lei de 31.7.69).

Na Espanha, a regulamentação do direitode greve se encontra no Decreto-Lei de 4 demarço de 1977, que dispõe sobre as Relaçõesde Trabalho (o DLRT). Essa foi a norma básicaque democratizou as relações de trabalhonaquele país, após a derrocada do regimefranquista.

No que concerne aos funcionários públicos,estes não são considerados legalmente traba-lhadores (art. 13-a do Estatuto dos trabalha-dores) e, por consequência, não gozam dodireito de greve. No entanto, o Tribunal Consti-tucional, na Sentença nº 11-13, decidiu que odireito de greve dos funcionários públicos nãoestá regulamentado e, portanto, tampoucoproibido pelo Decreto-Lei sobre Relações doTrabalho – DLRT.

Nos Estados Unidos, a regulamentação dodireito de greve no setor privado está consti-tuída basicamente pelo Labor ManagmentRelations Act (LMRA) ou Taft Hartley Act, de23 de junho de 1947 (que emendava o WagnerAct de 1935), emendado, por seu turno, peloLabor Managment Reporting and DisclousureAct (LMRDA) ou Landrum Griffin Act.

Relativamente aos serviços públicos, osEstados Unidos têm uma legislação distinta,conforme se tratem de funcionários federais, dosEstados-membros, ou das comunidades locais.

No caso da União, há uma proibição geraldo exercício de greve. A legislação federalamericana prevê severas penalidades, que vãodesde a dispensa imediata do grevista até a proi-bição de ser readmitido ao emprego públicodurante um período de três anos (Labor Mana-gement Relations Act-LMRA, Seção 305).

Quanto aos funcionários estaduais e locais,quarenta Estados e o Distrito de Colúmbiaproíbem a greve; os demais Estados a toleram,mas dentro de limites estreitos e rigorosos,principalmente se o movimento atingir setorescomo a segurança e a saúde públicas.

No Brasil, as Constituições de 1891 e de 1934silenciavam sobre o direito de greve, mas a de1937 considerava a greve um recurso anti-social,

nocivo ao trabalho e ao capital (art. 139). Oslíderes do movimento incorriam na prática decrime (art.725, da Consolidação de 1943).

O legislador, além de estar fora da realidade,não reconhecendo a greve como fato social,impunha à ordem jurídica uma conotaçãoautoritária e fascista.

A Constituição de 1946, curvando-se anteos atos, assegurava o direito de greve, reme-tendo à lei ordinária a regulação do seuexercício.

A Constituição de 1967, com a redação dadapela Emenda nº 1, de 1969, previa, entre osdireitos dos trabalhadores, o direito de greve(art. 165, XX), mas não a permitia nos serviçospúblicos e atividades essenciais, definidas emlei (art. 162).

A atual Carta Magna, promulgada em 1988,prevê, entre os direitos dos trabalhadoresurbanos e rurais, o direito de greve, cabendo-lhes decidir sobre a oportunidade de exercê-loe sobre os interesses que devam por meio deledefender, devendo a lei definir os serviços ouatividades essenciais e dispor sobre o atendi-mento das necessidades inadiáveis da comu-nidade (art. 9º, caput e § 1º).

A Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, dispõesobre o exercício da greve no setor privado.

No caso dos servidores públicos, a Consti-tuição de 1988 garante o direito de greve, a serexercido nos termos e nos limites definidos emlei complementar (art. 37, VII). Portanto, asse-gura o direito, mas condiciona o seu exercícioaos “termos” e “limites” estabelecidos pelolegislador complementar.

Duas correntes têm se posicionado emrelação ao art. 37, VII, da Constituição.

A primeira sustenta que a norma constitu-cional é de eficácia contida, dependendo de leicomplementar para que tenha eficácia. Assim,enquanto esta não for editada, a greve não épermitida no serviço público.

A segunda entende que a norma constitu-cional, embora de eficácia contida, incide ime-diatamente, por afastar o óbice representadopela proibição da greve prevista na Cartaanterior. Assim, ela autoriza a greve dos servi-dores públicos, independentemente da ediçãode lei complementar.

Como lembra Arion Sayão Romita;“A consagração da tese sustentada

pela primeira corrente doutrinária acimareferida conduzirá à recusa do exercíciode um direito que a Constituição prometeao servidor. Teríamos uma inconstitucio-

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nalidade por omissão do legislador,enquanto faltasse a lei complementar aque alude o preceito em foco. Tal soluçãonão encontra amparo no próprio textoconstitucional, pois o exercício do direitode greve não depende da explicitação depormenores ou do fornecimento deparâmetros aptos a torná-lo efetivo.”31

A jurisprudência pátria parece direcionar-se à primeira corrente, entendendo que a normado art. 37, VII, da Carta Magna não é auto-aplicável, não se podendo cogitar da greve noserviço público (v. STJ, Rec. MS nº 2.671, junho/93, RDA 194, p. 107/9).

É inegável que a lei complementar poderáestabelecer condicionamentos e restrições aoexercício do direito de greve no serviço público.Contudo, sustentar o entendimento de que,durante o período em que a norma não foieditada, inexiste o direito implica negar a própriaConstituição.

O certo é que as greves de servidorespúblicos, na prática, vêm se sucedendo emtodos os níveis das administrações públicasfederal, estadual, municipal, desde a promul-gação da Carta de 1988, abrangendo diversasáreas, entre as quais a saúde, educação, previ-dência social, segurança e justiça.

Esta é a realidade em que vivemos e maisadequado parece considerá-la para adotar asegunda corrente.

9. ConclusõesEm síntese conclusiva, não há que se negar

que:a) A Administração Pública é um complexo

instrumento de prossecução do bem-comum,sujeito aos princípios da legalidade, impessoa-lidade, moralidade, publicidade, razoabilidade,finalidade, motivação, dentre outros.

b) A noção de serviço público se traduz nooferecimento, aos administrados em geral, deutilidades, que se caracterizam pelos bens eserviços resultantes da atividade estatal.

c) A expressão “agente público” é a maisampla que se pode conceber e designa todas aspessoas que, definitiva ou transitoriamente,desempenham alguma função estatal.

d) Há controvérsia doutrinária sobre anatureza do regime jurídico único, parecendo-nos mais acertada a corrente que o define comosendo o regime estatutário, que deflui da lei enão do contrato.

e) Embora não tenha retificado as Conven-ções da OIT nº 87, de 1948, e 151, de 1978, oBrasil passou a reconhecer o direito de sindica-lização dos servidores públicos a partir dapromulgação da Constituição de 1988; em nívelinfraconstitucional, o reconhecimento dessedireito só veio com o advento da Lei nº 8.112,de 11 de dezembro de 1990.

f) A negociação coletiva tornou-se, hoje emdia, um expediente comum, reconhecido aosservidores públicos, que passaram a participardas decisões sobre as condições de trabalhono serviço público.

g) O direito comparado vem demonstrandoa necessidade de a Administração Públicabrasileira ajustar-se à realidade em que vivemose abandonar a crença de que, onde existe apresença estatal, devem ser afastados a nego-ciação coletiva, o direito de greve e tantas outrasconquistas sociais.

h) Sem embargo, respeitados o princípio dareserva de lei e a iniciativa reservada ao Chefedo Executivo, o regime estatutário, de per si,não repele a negociação coletiva, podendo comela coexistir harmonicamente, como mostra oDireito comparado, notadamente na França ena Alemanha, e a realidade fática em nosso País.

i) A greve é, por excelência, um fenômenosocial, com causas e efeitos os mais diversos,podendo ser abordada sob vários ângulos; doponto de vista legal, é considerada um delito,uma liberdade ou um direito, consoante o orde-namento positivo vigente em cada país.

j) Tradicionalmente, a greve no serviçopúblico tem sido vedada ou delimitada em faceda legislação; de acordo com as estatísticas daOIT, é proibida em mais de trinta e seis países epermitida em vinte e seis.

l) No Brasil, a Constituição de 1988 afastoua proibição contida no ordenamento constitu-cional anterior, assegurando o direito de greveaos servidores públicos civis, a ser exercido nostermos e nos limites a serem definidos em leicomplementar.

m) A norma constitucional, embora deeficácia contida, incide imediatamente, porafastar a proibição anterior, ou seja, permite queos servidores públicos façam greve desde logo;sustentar entendimento contrário significanegar a própria Constituição.

n) Na prática, as greves de servidorespúblicos vêm se sucedendo em todos osníveis das Administrações Públicas federal,estadual e municipal, desde a promulgaçãoda Constituição de 1988.31 ROMITA, A.S., op. cit., p. 808.

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Costume - redemocratização, pluralismo enovos direitos

JOSÉ REINALDO DE LIMA LOPES

José Reinaldo de Lima Lopes é Professor daUniversidade de São Paulo - Faculdade de Direito eProfessor Visitante da Universidade da Califórnia,San Diego.

SUMÁRIO

1. O costume como tradição e o direito no antigoregime. 2. Os dilemas latino-americanos: moderni-zação autoritária e cultura. 3. Constitucionalismo elegalidade contra o costume. 4. Universalismo eparticularismo: direitos redistributivos (direitossociais) e direitos ao reconhecimento (auto-discriminação).

“Dicendum quod multitudo, in qua consuetudointroducitur, duplicis conditionis esse potest. - Sienim sit libera multitudo, quae possit sibi legemfacere, plus est consensus totius multitudinis adaliquid observandum quod consuetudo manifestat,quam auctoritas principis, qui non habet potestatemcondendi legem, nisi inquantum gerit personam mul-titudinis. Unde licet singulae persoane non possintcondere legem: tamem totus populus condere legempotest. - Si vero multitudo non habeat liberampotestatem condendi sibi legem vel legem a superioripotestate positam removendi: tamem ipsa consue-tudo, in tali multitudine praevalens, obtinet vim legis,inquantum per eos toleratur ad quos pertinet multi-tudini legem imponere: ex hoc enim ipso videnturapprobare quod consuetudo introduxit.” (“A multi-dão em que se introduz o costume pode ter duplacondição. Se for livre e capaz de legislar, vale mais oconsenso de toda a multidão, para o fim de se observaralguma disposição manifestada pelo costume, do quea autoridade do chefe, que não tem o poder de legislarsenão enquanto representa a personalidade damultidão. Por onde, embora pessoas singulares nãopossam legislar, contudo a totalidade do povo pode.- Outro caso é o da multidão que não tem poder livrede legislar para si ou de remover a lei estabelecida porum poder superior. Em tal caso, contudo, o própriocostume, que prevalece na multidão, obtém força delei por ser tolerado por aqueles a quem pertence impora lei à multidão. Pois, por isso mesmo, são conside-rados como tendo aprovado o que o costume intro-duziu.” Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIae,q. 97, art. 3).

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“In political speculations the tyranny of themajority is now generally included among the evilsagainst which society requires to be on its guard” (p.129).“But reflecting persons perceived that whensociety is itself the tyrant – society collectively overthe separate individuals who compose it – its meansof tyrannising are not restricted to the acts which itmay do by the hands of its political functionaries.Society can and does execute its own mandates: andif it issues wrong mandates instead of right, or anymandates at all in things wit which it ought not tomeddle, it practises social tyranny more formidabletanth may kinds of political oppression, since, thoughnot usually upheld by such extreme penalties, itleaves fewer means to escape, penetrating much moredeeply into the details of life, and enslaving the soulitself. Protection, therefore, against the tyranny ofthe magistrate is not enough: there needs protectionalso against the tendency of society to impose, byother means than civil penalties, its own ideas andpractices as rules of conduct on those who dissentfrom them; to fetter the development, and if possible,prevent the formation, of any individuality not inharmony with its ways, and compels all charactersto fashion themselves upon the model of its own.There is no limit to the legitimate interference ofcollective opinion with individual independence: andto find that limit, and maintain it againstencroachment, is as indispensable to a goodcondition of human affairs, as protection againstpolitical despotism.” (p. 130) “Over himself, overhis own body and mind, the individual is sovereign.”(p. 135) “The only freedom which deserves the name,is that of pursuing our own good in our own way, solong as we do not attempt to deprive others of theirs,or impede their efforts to obtain it.” (p. 138) (MILL,John Stuart. On Liberty)

“Cultural heritages and the forms o lifearticulated in them, normally reproduce themselvesby convincing those whose personality structuresthey shape, that is, by motivating them toappropriate productively and continue traditions.The constitutional state can make this hermeneuticachievement of the cultural reproduction oflifeworlds possible, but it cannot guarantee it.For to guarantee survival would necessarily robthe members of the very freedom to say yes orno that is necessary if they are to appropriateand preserve their cultural heritage. When a culturebecomes reflexive, the only traditions and formsof life that can sustain themselves are those thatbind their members while at the same timesubjecting themselves to critical examination andleaving later generations the option of learningfrom other traditions or converting and settingout for other shores.” (HABERMAS, Jurgen.Struggles of Recognition. In: The DemocraticConstitutional State. TAYLOR, Charles, GUTMAN,Amy Multiculturalism. Princeton : PrincetonUniv. Press, 1994.)

1. O costume como tradição e odireito no antigo regime

Durante o antigo regime, sob o qual viveu oBrasil por quase trezentos anos, a ordem jurídicaaceitava o costume como fonte de direito e nãoapenas como subsidiária. Questões de direitoprivado poderiam ser legitimamente decididascom fundamento nos costumes do reino (Orde-nações Filipinas, Livro 3, título 64), nos estilosda Corte e nas leis: secundariamente, em casode lacunas diríamos, poder-se-ia recorrer aodireito romano (leis imperiais). As questões dedireito público também se prendiam ao costume,uma espécie de costume constitucional: osdireitos reais (régios) podiam ser resultado decostumes, caso em que eram ditos direitos reaismenores e adventícios (em contraste com osdireitos essenciais, ditos majestáticos oumaiores) (Coelho de Sampaio apud Almeida, v.2, p. 440). Os privilégios corporativos (Hespa-nha) conquistados ao longo do tempo formavamo arcabouço do antigo regime e muitos deleseram costumeiros.

No sistema jurídico português durante operíodo colonial, o costume se classificava emvárias categorias: costume propriamente dito,foros locais, façanhas (decisões dos juízesmunicipais – juízes de câmara), estilos da Casade Suplicação (Tripoli, 1936, p. 61). Os costumesdividiam-se por classes (fidalgos, clero, judeus,mouros), por locais, em oposição ao costumedo reino (geral), além dos costumes jurispru-denciais (Caetano, 1992, p. 352). Conformenoticia Tripoli, os costumes praeter legem vali-am uma vez decorridos 10 anos e os costumescontra legem valiam uma vez decorridos 40 anos,desde que não fossem contrários ao bem comumou lei de ordem pública (p. 62). Num sentidosemelhante, na América espanhola, Eyzaguirrenoticia que o costume contra a lei valia quandoprovado seu uso por dez anos ininterruptos(Eyzaguirre, 1991, p. 151). Segundo Hespanha(1994, p. 359), a questão do costume ligava-senão apenas à capacidade ativa do povo de dar-seleis, mas também à capacidade passiva de recu-sar as leis que lhe eram dadas (negando o requi-sito da firmatio pelo usus utentium).

“A opinião comum é a de que ocostume local deve ser atendido, mesmoquando contrário ao direito comum,desde que se verifiquem certos requisitosda sua validade (nomeadamente a suaprescrição e racionalidade).” (Hespanha,1994, p. 362)

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É fácil compreender como o advento domodelo liberal de estado e direito, revolucio-nário, universalista, tenta abolir o costume, oupelo menos relegá-lo à função de fontesecundária. Clóvis Bevilacqua, autor de nossoCódigo Civil, (Bevilacqua, 1976, p. 30-39)classifica-o como fonte secundária, mencio-nando, em seguida, como fonte secundáriaestancada, o direito romano. O costume, nestavisão, passa a ocupar posição estrutural seme-lhante à do direito romano no período históricopré-liberal, ou seja, de fonte secundária, sóutilizável para justificar decisões em casos muitodifíceis para o direito legislado.

Durante as primeiras décadas de vida inde-pendente, o Estado nacional brasileiro procuraconsolidar-se também legislando. Mas atradição do direito consuetudinário sobrevivee por várias razões. Uma delas, claramente, é ainacessibilidade dos meios estatais em regiõesdistantes. Seria uma incapacidade horizontal ougeográfica de o Estado estender-se sobre oterritório nacional. Outra seria a incapacidadevertical ou social de o Estado impor-se sobretodas as classes. O período imperial é umperíodo de lutas também entre o poder imperialcentral e as províncias: uma das reivindicaçõesliberais era a da proximidade do poder junto aoscidadãos. Os costumes locais deveriam ter algoa dizer ao poder central. Importante lembrar quea discussão no século XIX não é uma discussãosobre a tolerância das diferentes culturas:século do progresso e da confiança no futuroda civilização branca, o pluralismo (exceto quantoàs divergências políticas) não está na pauta.

2. Os dilemas latino-americanos:modernização autoritária e cultura

O período republicano, especialmente apartir da era Vargas (1930-1945), é marcado pelatentativa de modernização autoritária do País.O esforço se retoma no governo JuscelinoKubitschek (com a Constituição liberal de 1946)e também sob o regime militar (Estado de Segu-rança Nacional). O Estado não é apenas inter-vencionista no sentido de regulador daconcorrência intersetorial na economia e arbi-trador dos conflitos sociais: é promotor dedesenvolvimento, é dirigista, como é tambémum Estado de segurança. A forma usada paratal intervenção e dirigismo é a lei: a tradiçãoprecisa ser revisitada e reformada pela lei. Noperíodo de desenvolvimentismo, pode-se comclareza verificar que há levas e levas de reformas.

O processo civil é reformado duas vezes (1939e 1973). De 1942 é a Lei de Introdução ao CódigoCivil. De 1940, o Código Penal e de 1941, a Leidas Sociedades Anônimas e a Lei de Falências(lei de quebras). Com este instrumental jurídico,o poder do costume é diminuído. Tanto a Lei deIntrodução quanto o Código de Processorelegam o costume a uma posição secundária.No direito privado o costume é instrumento deintegração (em caso de lacunas), mas é mencio-nado depois da analogia. Certo que no direitocomercial os costumes podem ter força de leiquando registrados na praça, mas a criação deum mercado nacional (como no caso do sistemafinanceiro) dificulta esta espécie de formalidade,presa ainda ao conceito de praça localizada. Nodireito público, o princípio da estrita legalidadetorna-se um obstáculo ao uso do costume (nãose definem crimes ou impostos por costume).

O avanço do Estado dirigista promoveutransformações sociais; no Brasil, especial-mente o grande deslocamento populacional paraas cidades industriais. Esta transformação causaum impacto cultural e social. O impacto é culturalna medida em que as populações que se deslo-cam (1) procedem de regiões diferentes e (2)transferem-se do campo para a cidade. Oimpacto é social, pois se trata de um processode integração numa nova classe (de campone-ses a operários) e de exclusão econômica(pobreza) e cultural (preconceito, discrimi-nação). Um dos resultados deste processo foio desenvolvimento de comunidades de vizi-nhança (nos bairros) e de família que preser-varam formas de solidariedade e regras deconvivência distintas das formas legalmenteprevistas. Numa forma de resistência e deestratégia de sobrevivência, as classes popu-lares desenvolveram suas formas de legalidade.Do ponto de vista do direito legalizado, trata-sede simples costumes: podem, portanto, sercontra legem e não gerar qualquer validade.Sem ter acesso à justiça formal (por váriasrazões que aqui não se discutirão), desenvol-veram também formas alternativas de resoluçãode controvérsias.

Estes costumes têm aspectos conflitantes eoutros concorrentes com uma concepçãodemocrática universalista de direito. Encaradoo regime da vida das aldeias e comunidadescomo um regime não de controles recíprocos elimitações ao poder absoluto, mas como umsistema de imposição de vontades e poderesparticulares, o liberalismo propõe-se a desataros nós que tal sistema cria para a autonomia

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individual. Nestes termos, o desenvolvimentodo Estado liberal no Brasil é um desafio não-completado. O direito legislado modernopresume que a aplicação da lei será igual paratodos: isto exige, como mínimo, que o poder deexecução, administração pública e jurisdiçãotenham uma eficácia global de modo queninguém possa justificar o descumprimento dalei com o fato de que, em casos semelhantes aoseu, a lei não foi aplicada. Isto deslegitimariacompletamente o direito, pois então, como dizWanderley Guilherme dos Santos (1993), a apli-cação da lei torna-se lotérica, ou seja, depen-dendo da sorte, ou da influência ou da “esper-teza”, ou da inteligência de cada um. O resultadoseria – como tem sido – que a aplicação da leigeral é continuamente distorcida.

3. Constitucionalismo e legalidade

contra o costumeQuando se imagina o Estado e a Constituição

como um sistema, as coisas ainda se complicammais. O objetivo de uma constituição republi-cana democrática pode ser controlar o poder eo seu exercício. Nessa linha de idéias, o consti-tucionalismo moderno serve às mesmasfunções do constitucionalismo antigo, emboracom características diferentes. O Estado corpo-rativista do antigo regime conhecia formas decontrole do poder por meio das autonomiascorporativas e estas, muitas vezes, fundavam-se no costume local. Na França pré-revolucio-nária os parlamentos recusavam muitas vezes aaplicação das ordonnances reais (Picardi, 1995p.38) e em Portugal havia queixas contínuascontra os magistrados que se atinham mais aoscostumes do que às ordens do rei. No regimeliberal, concebida a lei como expressão dasoberania, o problema dos limites do poderresolve-se pela tripartição dos poderes doEstado e pelo mecanismo eleitoral competitivo.A base do sistema é a universalidade da lei e dacidadania, de tal modo que – exceto quanto aoscomerciantes e aos escravos – tendem a desa-parecer as distinções pessoais, embora sobre-vivam distinções de sexo, riqueza (o votocensitário) e a própria escravidão.

Na história do Brasil em particular, osprimeiros anos do Estado nacional são anos dedisputa também entre governo central eprovíncias. Os partidos se definem em torno detais temas: os liberais propondo maior poderdescentralizado ou maior poder para as

províncias, os conservadores propondo maiorpoder para o governo central. Tavares Bastos(Bastos, 1937) insiste, em 1870, que a autonomiaprovincial é condição da liberdade do cidadão.Por outro lado, dado que os poderes locaisguardavam fortes traços patrimonialistas e deoligarquia familiar, muitos adeptos de certasmudanças e reformas tendiam a ver a neces-sidade de um governo central forte.

O costume cede pouco a pouco lugar para alegislação e esta, de modo geral, em matériasrelevantes concentra-se no governo central. OCódigo Civil é imaginado como um códigonacional, e, para redigi-lo, Teixeira de Freitas écontratado pelo governo imperial para elaborarum esboço de código civil. Tentando consolidaras leis civis (antes de redigir o projeto de códigopropriamente dito), queixa-se ele do caráterconfuso do corpo de direito civil brasileiro:sobretudo, lamenta que as leis – já em si mesmasconfusas e numerosas – são a parte menosestudada do direito pátrio. Além disso, dizia que

“a legislação civil é sempre dominada pelaorganização política. Uma legislaçãomoldada para uma monarquia absoluta,sob o predomínio de outras idéias, deveem muitos casos repugnar às condiçõesdo sistema representativo. Quantas leisentre nós não incorrerão desde logo emvirtual e necessária revogação, por setornarem incompatíveis com as bases daCarta Constitucional? Quantas outrasnão se acham inutilizadas, ou modifi-cadas, só por efeito das leis novas? Aforça do hábito, entretanto, tem-nasperpetuado, e para muitos é sempregrande argumento a falta de disposiçõesdesignadamente revocatórias” (Freitas,1896, p. 33).

O Código Civil, finalmente editado na PrimeiraRepública (1916), expressamente revogou todosos usos e costumes que lhe fossem contrários(art. 1807). No art. 1.210 sobreviveram os usoslocais nos contratos de locação de imóveisquanto ao tempo (duração), coisa tambémdesaparecida quando, por lei, passou-se aregular o aluguel como matéria de interessesocial. Os costumes só foram admitidos comomeios de integração do direito, ao lado da ana-logia e dos princípios gerais do direito (art. 4ºda Lei de Introdução ao Código Civil).

No desenvolvimento do Estado nacional eliberal, portanto, o costume apresentava carac-terísticas e coloração política de contradiçãocom um direito novo e libertador. Se avançamos

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na história, o estado social (welfare state,regulatory state) foi construído com uma pers-pectiva antitradicional e anticostumeira. Aseguridade social, o direito do trabalho e oplanejamento econômico do desenvolvimentoforam frutos de deliberada intervenção doEstado sobre a sociedade civil, como meio deinterferir na inércia da acumulação e da crisecapitalista. O fato é que, no Brasil, esta inter-venção foi centralizadora e concentradora derenda. O modelo político e o modelo econômicoadotados, seja no período Vargas (1930-45), sejano ciclo militar autoritário (1964-84), afastaramos poderes locais (dando ao governo federal acondução da política econômica e social) e aparticipação popular (por vários mecanismoscujo efeito final foi o afastamento quase totalde oposições substanciais e institucionali-zadas). Era a época da expansão do mercadonacional, inserido no mercado internacional.

Teria sido possível a criação e consolidaçãodo estado social de direito sem um afastamentodos costumes anteriores, da prática cotidianacostumeira e tradicional? Teria sido possívelsem que alguma forma de centralização sefizesse, dado o caráter centralizador do mercado(uma moeda, um sistema bancário, etc.)? O fatohistórico é que, tanto na cultura do direito civi-lista, romano-germânico-canônico, quanto nacommon law, o papel da legislação cresceu,como cresceu o papel do executivo. Houve maislegislação e, aparentemente, menos lugar parao costume. Se assim se pode dizer, o costumesobreviveu e adquiriu alguma força apenas pormeio da jurisprudência, das decisões judiciaisque finalmente interpretaram e aplicaram as leis.Neste sentido, é notável que nos países dedireito civilista seja crescente o papel da juris-prudência: é que a ela coube calibrar o direitouniversal e abstrato da lei. Mas se por um ladoela é flexibilizadora do direito abstrato, por outrocorre o risco de perpetuar privilégios sob a capado direito adquirido, ou estender – pela analogia– benefícios que a crise fiscal do Estado impedede tornarem-se direitos universais.

4. Universalismo e particularismo: direitosredistributivos (direitos sociais) e direitos

ao reconhecimento (antidiscriminação)Na dialética entre costume e lei, surgem hoje

algumas novas questões, e alguns fenômenosmerecem nossa atenção.Em primeiro lugar, a glo-balização e a flexibilização da economia capita-lista mundial, que dizem respeito aos direitos

sociais (de redistribuição). Em segundo lugar,os movimentos em defesa das diversidades eidentidades (direitos antidiscriminação oudireitos ao reconhecimento).

O processo de globalização e de flexibili-zação parece reagir contra o Estado social econtra o direito legislado. Contra o estadosocial, pois a flexibilização exige, muitas vezes,que se desconstitucionalizem os direitos sociaise os direitos trabalhistas. É o que vemos comclareza passar-se no Brasil, mas é também o quese passa nos EUA (embora ali os direitos sociaisredistributivos não fossem propriamente cons-titucionais). Ao mesmo tempo a globalizaçãoparece impor que os regimes de produção sejamsensíveis às condições particulares e regionaisde produção e consumo. Essa perspectiva podefazer crer que o costume – em oposição à lei –volte a crescer. Uma análise diferente pode serfeita, no entanto, se definirmos a globalizaçãocomo um processo superior de disciplinamento,na linha de Foucault, caso em que os costumes– normalmente imaginados como espontâneos– seriam na verdade a forma típica de organiza-ções transnacionais imporem suas pautas deconduta fora da expressão normativa da lei.Globalização pode ser homogenização na esferaglobal, antes que respeito a diversidades. Podeser também uma forma de escapar aos constran-gimentos legais impostos pela democraciasocial.

Mas não só de homogenização vive omundo de hoje. Os processos de fragmentaçãosocial e do Estado nacional também são evi-dentes. Ao contrário da reivindicação dosdireitos sociais e redistributivos, em que oprimeiro apelo se faz à igualdade (identificaçãoem torno de uma classe universal, como cida-dãos ou trabalhadores, e em torno de necessi-dades comuns e iguais – alimentação, moradia,transporte, educação, oportunidades de vida,etc.), os direitos à identidade fazem-se em nomeda diferença: diferenças étnicas, de gênero eorientação sexual, de origem nacional e de cor,e assim por diante. No caso de direitos ao reco-nhecimento, a afirmação da categoria básica dorespeito dá-se com a afirmação também básicadas desigualdades de identidade (Fraser, 1995 -comunicação pessoal)*. Nosso tempo é umtempo em que estas identidades minoritárias,dentro dos estados nacionais, reivindicam uma

* Comunicação pessoal feita em 5 de abril de1995 em colóquio realizado na UCSD. Fromredistribution to recognition in the 90s.

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igualdade de respeito fundada na idéia demo-crática da universalidade dos direitos funda-mentais e, ao mesmo tempo, requerem autono-mia. Como compatiblizar tais reivindicações?

A questão não pode ser respondida demaneira simples sem que se perceba claramenteque o que está em jogo é, a meu ver, umprocesso de expansão da democracia. Istoporque, ao reivindicarem as diferenças, nenhumgrupo minoritário pode imaginar-se num estadode isolamento: trata-se de redefinir a relação damaioria com a minoria. O costume pode ter umfuturo por aí? Creio que sim, desde que sejabem entendido. Tomo aqui o exemplo do estudofeito por Boaventura Sousa Santos numa favelado Rio de Janeiro. Impossiblitados de ter acessoao sistema legal oficial, por inúmeras razões, osmoradores desenvolvem seus próprios meiosde resolução de controvérsias. Trata-se deverdadeiros costumes, que respondem a neces-sidades reais daquele grupo com instituiçõespossíveis. Mas tal resposta é por si mesma oresultado de uma falta de eficácia do sistemalegal: este só estende sua proteção a uma classesocial. Seria equivocado supor que, podendodispor de uma justiça impessoal e rápida, segurae eficaz, os moradores de Pasárgada se dessemao trabalho de criar seu próprio juizado. De outrolado, ao serem obrigados a criar seu juizado,fundam um novo espaço político e público, noqual se colocam todas as questões da política:quem decide, quem tem legitimidade, quais asregras aplicáveis, etc.

Em tempos de desregulamentação será pos-sível falar na volta do costume como elemento dedemocracia e liberdade? Num certo sentido sim,pois pode-se imaginar que a flexibilização do di-reito dará mais autonomia para os poderes locaise, portanto, para manifestações plurais de experi-ências jurídicas. No entanto, alguns campos sãomuito problemáticos. Tomemos o exemplo da de-fesa do consumidor. De um lado, grandes organi-zações fornecedoras de produtos e serviços, ca-pazes de impor cláusulas de contratação. De outro,os consumidores, obrigados a aceitar tais cláu-sulas. Para contrapor-se a isso será necessáriaou a lei, ou alguma instância crítica que julgue ocostume, como diziam os medievais, julgue suarazoabilidade e aceitabilidade. O que aplicar: o“costume” dos fabricantes e prestadores de ser-viços? O “costume” de introduzir nos contratoscláusulas de exoneração de responsabilidade érazoável e jurídico?

Um segundo exemplo: os direitos funda-

mentais da pessoa humana, cuja discussão emViena, na Conferência das Nações Unidas, foiilustrativa. Alguns costumes que a tradiçãomantém são inaceitáveis hoje em dia, quandosubmetidos a certas instâncias críticas. Acusartais julgamentos de etnocentrismo (eurocen-trismo) não basta para desqualificá-los. Opluralismo jurídico no qual o costume tem umpapel importante ao mesmo tempo exige certasdefinições mínimas, acordadas e discutidas, umius gentium da pessoa humana.

Finalmente, imaginemos que a democraciaexige não só ideais nobres de liberdade, senãotambém mecanismos políticos adequados. Nocaso do costume, como introduzir controlespúblicos adequados, capazes de submetê-lo àcrítica. A saída dos estados nacionais foi, natu-ralmente, abandonar, a pouco e pouco, ocostume como fonte do direito, substituindo-opela legislação (discutida e votada nos parla-mentos). O resultado também deixou a desejar.Com os inúmeros problemas da representativi-dade política, o costume contra ou praeterlegem se desenvolve quase que inevitavelmente.No Brasil, 67% das pessoas envolvidas em con-flitos não recorrem ao sistema judicial, pordiversos motivos. Isto significa que algumaoutra forma de solução foi usada (Santos, 1993,p. 102). A distância entre estruturas formais epovo é enorme. A volta da valorização docostume é, nestes pontos, quase inevitável.Numa sociedade urbanizada e industrial, porém,os “costumes” que se desenvolvem paralela-mente ao direito estatal oficial não chegam a serum direito tradicional costumeiro (Santos, 1988,p. 59), entre outros motivos, porque este direito“alternativo” nem sempre se opõe ao oficial:muitas vezes o imita e o supre, na falta dapresença efetiva do Estado. Os tribunais depequenas causas e de conciliação tendem a umaabertura maior para as práticas costumeiraslocais. Eles têm sido introduzidos na legislaçãobrasileira desde 1984, e a Constituição de 1988expressamente mandou criar juizados especiaispara casos de menor complexidade. Vejo aí outrainstância de abertura para o costume.

Historicamente, há dois exemplos impor-tantes no direito brasileiro. O primeiro é o doregime parlamentarista, de gabinetes e partidosque se formam no Brasil imperial (a partir de1850 aproximadamente). O regime parlamentarnão era uma criação da Carta Constitucional de1824, nem os partidos. E no entanto, por quasequarenta anos, é assim que funciona a políticabrasileira, com um sentido jurídico bastante

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claro. O segundo é o do casamento de fato, oumelhor, do divórcio de fato, que foi sendo aceitosob a forma da sociedade de fato entre homeme mulher. Os tribunais, lenta e costumeiramente,aceitaram uniões estáveis como sociedades atéque chegasse o divórcio. E a atual Constituição(art. 226) facilita o reconhecimento, como matri-mônio, da união estável entre homem e mulher.

Em resumo, o processo de fragmentação podeser o espaço de onde brotam os costumes outravez, se encararmos tal fragmentação do seu pontode vista positivo: autonomia do local e do parti-cular diante do central e abstrato. Mas pode serque tal autonomia seja, por seu turno, não o sinalpositivo de uma comunidade viva, mas o sinalnegativo de uma sociedade que deixa a muitos deseus membros (como pessoas e como grupos)marginais, oprimidos, explorados e sem acessoaos mecanismos universais de cidadania, acomeçar pela justiça. Este é o caso dos novosdireitos ao reconhecimento e à identidade: osdireitos civis das minorias étnicas, dos negros eíndios na América, das mulheres e dos homosse-xuais. Contra a tradicional intolerância – baseadana simples tradição, no preconceito, na fobia, nopoder da maioria, no interesse de certo status quo– o costume puro e simples pode ser invocadono sentido da continuidade da opressão antesque da liberdade e florescimento da dignidade dapessoa humana (Dworkin, 1980, p. 240-265; Noel,1991; Taylor, 1994, p. 25-73).

No entanto, os juristas de hoje, com exceçãotalvez dos internacionalistas, já não aprendema técnica do costume: como se cria, como seprova, como se revoga, como se aplica, comose interpreta o costume. Alguma volta docostume certamente está a caminho. No casodo Brasil, será preciso recuperar o saber insti-tucional a seu respeito.

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1. IntroduçãoÉ crescente o número de celebrações de

tratados e convenções internacionais, multipli-cando no mundo hodierno as relações entre asordens jurídicas e a ordem jurídica internacional.Daí a importância do conhecimento do direitointernacional pelos diversos profissionais dodireito, haja vista a repercussão das questõesexternas no âmbito de cada Estado, onde osdiplomas internacionais, por força de suaspromulgações, passam a fazer parte da ordemjurídica interna dos Estados.

Urge, ademais recuperar o prestígio dadisciplina direito internacional nos cursos jurí-dicos, hoje relegada injustificavelmente a umsegundo plano.

Nesta breve exposição, tencionamos fazeruma análise sucinta e despretenciosa dasdoutrinas confrontantes sobre as relações entreo direito internacional e o direito interno, bemcomo do possível conflito entre suas regras,com realce para as posições e soluçõesadotadas pelo sistema jurídico brasileiro, à luzda nova ordem constitucional e do posiciona-mento da doutrina e da jurisprudência pátria,voltando a atenção, em especial, para osinstrumentos internacionais de proteção dosdireitos humanos e sua incorporação ao direitointerno brasileiro.

A incorporação dos tratados e convençõesinternacionais de direitos humanos nodireito brasileiro

Fernando Luiz Ximenes Rocha é Desembargadordo Tribunal de Justiça do Ceará e Professor de DireitoConstitucional da Universidade Federal do Ceará.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. As relações entre o direitointernacional e o direito interno. Teorias confron-tantes. 3. O conflito entre a norma internacional enorma interna. 4. Os instrumentos internacionais deproteção dos direitos humanos. 5. Conclusão.

FERNANDO LUIZ XIMENES ROCHA

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2. As relações entre o direito internacionale o direito interno. Teorias confrontantes

A questão da incorporação dos tratados econvenções internacionais no direito internode determinado país continua sendo assuntoque ainda gera muita dúvida e polêmica.

O certo é que, inobstante as freqüentescelebrações de tratados e convenções interna-cionais, estes são pouco invocados em nossacomunidade jurídica, ora pelo próprio desco-nhecimento dos textos aludidos ora por ignorar-se o alcance de sua força normativa no âmbitodo direito interno.

Com efeito, como já se disse, é precisochamar a atenção para a necessidade de recu-perar o prestígio do direito internacional nosbancos acadêmicos, a fim de que as normasinternacionais, principalmente as pertinentesaos direitos humanos, possam ser efetivamenteconhecidas e aplicadas.

De princípio, cumpre-nos examinar se ostratados ou convenções internacionais formamum ordenamento jurídico autônomo, distinto ouse os mesmos se incorporam à ordem jurídicainterna.

Como se sabe, a discussão sobre a matériaé antiga, emergindo dela duas teorias clássicas:de um lado, os dualistas; de outro os monistas.Os primeiros, tendo como principais arautosTriepel e Anzilotti, sustentam a independênciado direito internacional frente ao direito interno.Afirmam tratar-se de ordens jurídicas diferentesa regularem relações distintas, não podendo,por consequência, haver conflito entre suasnormas, já que não é possível uma norma sersimultaneamente obrigatória em ambas asordens jurídicas.

Os segundos, que têm como precursor HansKelsen, dividem-se em duas correntes. Umasustenta a existência de uma ordem, compostade regras internacionais e internas, sob oprimado do direito internacional; e a outradefende a primazia do direito nacional, argu-mentando ser uma faculdade do Estado sobe-rano a adoção de regras de direito internacional.

No fundo, o cerne dessa discussão é saberse os tratados ou conveções internacionais têmforça vinculante para os Estados signatários eseus súditos, ou se, ao contrário, servem tão-somente de recomendação para que os Estadossoberanos legislem sobre a matéria de que tratamos diplomas internacionais, e só então é que asnormas de direito internacional se incorporamao direito interno.

Atualmente, não se discute a força norma-tiva dos tratados e convenções internacionaisem relação aos Estados pactuantes e seussúditos. Encontra-se de todo superado a teoriade que as regras internacionais são meramentedecorativas ou orientativas em relação aodireito interno; ao revés, têm elas forçacogente para o direito nacional a partir domomento em que são inseridas no ordena-mento jurídico de determinado país. O quese há de questionar é se sua vigência se dáde modo automático ou se é necessária aadoção de certas formalidades.

Aqui, mais uma vez, surge a polêmica entremonistas e dualistas. Os primeiros apregoamque a incorporação das regras internacionaisno direito interno se dá automaticamente com aratificação do tratado; enquanto os segundossustentam que tais regras só vigoram interna-mente caso transformadas em norma jurídicanacional.

No Brasil, adotou-se uma solução maisconsentânea com a doutrina dualista, emborasem o radicalismo da exigência de elaboraçãode lei formal, para que se desse a incorporaçãodo direito internacional no direito interno.Todavia, não se contentou o legislador consti-tuinte com a simples ratificação.

Consoante ensina o Ministro FranciscoRezek,

“a vontade nacional, afirmativa quanto àassunção de um compromisso externo,repousa sobre a vontade conjugada dosdois poderes políticos. A vontade indi-vidulizada de cada um deles é necessária,porém não suficiente”1.

De fato, é atribuição do CongressoNacional (art. 49, I, da Constituição Federal)examinar e aprovar o conteúdo do tratado,iniciando pela Câmara e depois pelo Senado.Uma vez aprovado o compromisso nas duasCasas Legislativas, mister se faz formalizar adecisão do Parlamento, o que é feito por de-creto legislativo expedido pelo Presidente doSenado e publicado no Diário Oficial daUnião, sendo o texto aprovado e em seguidapromulgado pelo Presidente da Repúblicaatravés de decreto publicado no orgão oficial,com texto completo do tratado em anexo. Sóentão é que o diploma internacional passa avigorar internamente.

1 RESEK, J. F. Direito internacional público : cursoelementar. 5. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva,1995, p. 69.

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3. O conflito entre a norma internacional ea norma interna

O direito internacional clássico tinha objetobastante limitado, pois praticamente cuidava deregular as situações de paz e guerra, as rela-ções diplomáticas e a determinação das liber-dades de navegação, dentre outras poucasatividades dos Estados.

Hoje, contudo, o que se vê é um alargamentodos temas cuidados nos tratados e convençõesinternacionais, o que aumenta a possibilidadede eventual conflito entre a norma internacionale o direito interno.

Jean Michel Arrighi, examinando o assunto,assevera que no direito internacional clássicoera

“poco probable un conflicto entre unanorma internacional, reguladora de rela-ciones entre Estados, y una norma dederecho interno, reguladora de lasrelaciones entre particulares o entreparticulares y el Estado, sometidas éstasa su soberania exclusiva”.

E conclui:“Hoy la situación es muy otra. Si bien

la Carta de las Naciones Unidas, en suartículo 2, párrafo 7, se refiere a los‘asuntos que son esencialmente de lajurisdicción interna de los Estados’, lasmodificaciones sufridas por el ordenjurídico internacional los restringen cadadia. Asuntos hasta ayer relados por elderecho interno son hoy, también, objetode regulación por el derecho interna-cional. Es claro el caso en materia dederechos humanos, en materia de relaci-ones laborales, en materia de telecomu-nicaciones, para sólo citar algunosejemplos”2.

Em verdade, ante a amplitude dos temastratados nos instrumentos internacionais, émuito provável a ocorrência de conflitos entreas regras externas e as normas de direito interno.Então, é preciso definir qual a estatura da nor-ma jurídica internacional no ordenamentonacional.

Não havendo norma internacional que

assegure o primado do direito das gentes, talestatura há de ser definida pela lei fundamentaldo Estado soberano.

Como afirma Rezek,“dificilmente uma dessas leis funda-mentais desprezaria, neste momentohistórico, o ideal de segurança e estabili-dade da ordem jurídica a ponto de subpor-se, a si mesma, ao produto normativo doscompromissos exteriores do Estado.Assim, posto o primado da Constituiçãoem confronto com a norma pacta suntservanda, é corrente que se preserve aautoridade da lei fundamental do Estado,ainda que isto signifique a prática de umilícito pelo qual, no plano externo, deveaquele responder”3.

Respeitada a supremacia da Constituição doEstado, resta buscar a solução para o confrontoentre o tratado e as leis infraconstitucionais.Alguns países têm adotado a primazia da normainternacional sobre a norma interna, como severifica na França, Grécia, Peru e Holanda;enquanto outros têm consagrado o tratamentoparitário entre o tratado e a lei nacional.

A Constituição brasileira, embora nãofazendo de modo expresso, deixa claro a adoçãodo sistema paritário quando submete os tratadosao controle de constitucionalidade (art. 102, III,b), a exemplo das leis infraconstitucionais.

A jurisprudência brasileira, num primeiromomento, chegou a conceber a primazia dotratado sobre o direito interno infraconstitu-cional, tendo, posteriormente, assentado oSupremo Tribunal Federal, no julgamento doRecurso Extraordinário nº 80.004, por maioria,que, ante o conflito do tratado com lei posterior,esta é de prevalecer perante a Justiça, aindaque o Estado venha a sofrer, no plano interna-cional, as conseqüências do descumprimentodo tratado.

4. Os instrumentos internacionais deproteção aos direitos humanos

No que se refere à proteção internacionaldos direitos humanos, é preciso que se digaque, à proporção que o direito internacional foise desenvolvendo, sua preocupação com ohomem foi aumentando, e o ser humano passoua adquirir, a cada dia, maior relevância nocenário internacional.

2 ARRIGHI, Jean Michel. La solución decontroversias entre normas internacionales y nor-mas nacionales. Boletim da Sociedade Brasileira deDireito Internacional, v. 47, n. 91/92, p. 40, jan./jun.1994. 3 Op. cit., p. 103-104.

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Presentemente, a questão de saber se ohomem é ou não sujeito de direito na esferainternacional está ultrapassada; negar-lhepersonalidade nesse campo seria negar edesvirtuar a existência de uma gama de institutosdo direitos das gentes.

A propósito, colhe-se a irretocável lição doProfessor Celso D. de Albuquerque Mello,verbis:

“O direito, seja ele qual for, dirige-sesempre aos homens. O homem é a finali-dade última do Direito. Este somenteexiste para regulamentar a vida entre oshomens. Ele é produto do homem. Ora,não poderia o DI negar ao indivíduo asubjetividade internacional. Negá-la seriadesumanizar o DI e transformá-lo em umconjunto de normas ocas sem qualqueraspecto social. Seria fugir ao fenômenode socialização que se manifesta emtodos os ramos do Direito”4.

Com o perpassar dos tempos, foi realmenteo homem crescendo de importância na vidainternacional, vencendo os obstáculos do pas-sado, o que resultou no reconhecimento de quea proteção dos direitos humanos é algo inerenteà própria dignidade da pessoa humana, não sederivando do Estado, não podendo, pois, ficaradstrita a seu “domínio reservado”.

Augusto Cançado Trindade, com muitapropriedade, leciona que:

“O desenvolvimento histórico daproteção internacional dos direitoshumanos gradualmente superou barreirasdo passado: compreendeu-se, pouco apouco, que a proteção dos direitosbásicos da pessoa humana não se esgota,como não poderia esgotar-se , na atuaçãodo Estado, na pretensa e indemonstrável‘competência nacional exclusiva’. Estaúltima (equiparável ao chamado ‘domí-nio reservado do Estado’) afigura-secomo um reflexo, manifestação ou parti-cularização da própria noção de sobera-nia, inteiramente inadequada ao plano dasrelações internacionais, porquanto origi-nalmente concebida tendo em mente oEstado in abstracto (e não em suasrelações com outros Estados) e comoexpressão de um poder interno, de umasupremacia própria de um ordenamento

de subordinação, claramente distinto doordenamento internacional, de coorde-nação e cooperação, em que todos osEstados são, ademais de independentes,juridicamente iguais”5.

Realmente, não se pode nos dias atuaispretender que a proteção dos direitos humanosrecaia tão-somente no campo da jurisdiçãointerna dos Estados, como outrora defendidopor certas correntes doutrinárias.

De feito, o que se quer é que as normasinternacionais e as normas internas de proteçãodos direitos humanos andem sempre de mãosdadas, buscando-se a melhor forma de resguar-dar os direitos fundamentais da pessoa humana.

Não devemos, pois, perder-nos no antago-nismo da primazia entre a regra internacional e anorma interna, vez que os instrumentos inter-nacionais de proteção aos direitos humanos nãose enquadram na moldura dos tratados clás-sicos, compreendendo restrições e compromis-sos. Os mecanismos adotados por tais diplomastranscendem aos interesses dos Estadospactuantes, na medida em que dão ênfase ainteresses gerais e estabelecem obrigações aserem implementadas de forma coletiva.

Mais uma vez, recorremos às lições doProfessor Cançado Trindade, quando assevera:

“No domínio da proteção dos direi-tos humanos, interagem o direito inter-nacional e o direito interno movidos pelasmesmas necessidades de proteção,prevalecendo as normas que melhorprotejam o ser humano. A primazia é dapessoa humana”6.

Cumpre, portanto, reconhecer a anterio-ridade dos direitos humanos frente ao direitoestatal. Como já tivemos oportunidade deobservar alhures,

“o indivíduo possui direitos anteriores esuperiores aos do Estado, e este deverespeitá-los, porquanto o Estado existeem função do homem, com o fim de

4 MELLO, Celso de Albuquerque. Curso dedireito internacional público. 4. ed. rev. e aum. Rio deJaneiro : Freitas Bastos, 1976. v. 1, p. 416.

5 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Aproteção internacional dos Direitos Humanos:Fundamentos e Instrumentos Básicos. São Paulo :Saraiva, 1991. p. 3-4.

6 Idem. A evolução da proteção dos direitoshumanos e o papel do Brasil. In : A PROTEÇÃO dosdireitos humanos nos planos nacional e internacional:perspectivas brasileiras. Brasília : Instituto Inter-americano de Derechos Humanos, 1992. p. 34.Seminário de Brasília de 1991.

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realizar suas necessidades, proteger seusdireitos sem jamais usurpá-los. Destemodo, os direitos da pessoa humana nãopodem deixar de ser reconhecidos erespeitados pelo Estado”7.

5. ConclusãoÀ guisa de conclusão, cumpre destacar a

identidade de objetivos entre o direito interna-cional e o direito nacional no que concerne àproteção dos direitos humanos, merecendodestaque a preocupação de evitar-se conflitoentre as duas ordens, sempre presente naelaboração dos instrumentos internacionais,podendo ser citado, como exemplo, a adoçãodo princípio do prévio esgotamento dosrecursos internos, o que não deixa de realçarque essa proteção desponta como responsabi-lidade primeira dos órgãos nacionais. Daí dizerCançado Trindade:

“não pode restar dúvida de que a imple-mentação internacional dos direitoshumanos depende, em última análise, dofuncionamento eficaz dos órgãos (de pro-teção) internos dos Estados”8.

Outrossim, merece relevo a adesão do Brasil,ainda que seródia, à Convenção Americanasobre os Direitos Humanos, também conhecidapor Pacto de San José de Costa Rica, forma-lizada pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de

7 ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. Paralelismoda Liberdade Individual e da Soberania Estatal. Rev.do Curso de Direito, Fortaleza, n. 23, jan./jun. 1982.p. 154.

8 Op. cit., p. 531.

1992, e a posição feliz do nosso constituinte de1988, ao consagrar que os direitos garantidosnos tratados de direitos humanos em que aRepública Federativa do Brasil é parte e recebetratamento especial, inserindo-se no elenco dosdireitos constitucionais fundamentais, tendoaplicação imediata no âmbito interno, a teor dodisposto nos parágrafos 1º e 2º do art. 5º daConstituição Federal.

Assim sendo, embora contemos com osinstrumentos de proteção dos direitos humanosnos planos nacional e internacional, nem porisso estamos seguros da efetivação dessesdireitos fundamentais da pessoa humana, casonão se crie uma cultura dos direitos humanosem que os órgãos públicos de todos os poderesdo Estado e os diversos setores da sociedadecivil sintam-se co-responsáveis pela concretudeda proteção dos direitos humanos, o que não étarefa fácil num país que não consegue reduzirseus contrastes, permitindo que continuemosa conviver com a vergonha e a humilhação damiséria que atinge a grande maioria dos nossosirmãos.

É preciso, portanto, sonhar com a criaçãodessa cultura que tanto almejamos, mas énecessário sonharmos todos juntos para que osonho possa tornar-se realidade, pois, como jádisse o poeta do nosso cancioneiro popular,

“sonho que se sonha só é só um sonhoque se sonha só. Mas, sonho que sesonha junto é realidade”.

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Os direitos humanos no Brasil e a suagarantia através dos instrumentosprocessuais contitucionais

Trabalho apresentado no XXII Curso de DireitoInternacional da OEA, em agosto de 1995.

Osvaldo Agripino de Castro Júnior é Advogado,membro do Instituto Victus, Mestre em DireitoConstitucional (PUC-RJ) e Pesquisador do Depar-tamento de Pesquisa e Documentação da OAB/RJ edo CNPq.

OSVALDO AGRIPINO DE CASTRO JÚNIOR

Introdução. Justificativa. 1.Os direitos humanos.1.1. Origem e evolução. 1.2. O conceito de direitoshumanos no Brasil. 1.3. A interação entre o DireitoInternacional e o Direito Interno na garantia dosdireitos humanos. 2. A política do governo brasileiroe as reivindicações dos movimentos de direitoshumanos no Brasil. 2.1. A Política dos direitoshumanos no Governo Fernando Henrique Cardoso.2.2. As propostas do I Fórum Nacional de ComissõesLegislativas de Direitos Humanos. 3. Os instru-mentos processuais constitucionais para a garantiados direitos humanos. 3.1. O habeas corpus. 3.2.O mandado de segurança. 3.3. O habeas data.3.4. A ação popular. 3.5. A ação civil pública. 3.6. Omandado de injunção. 3.7. O direito de petição.4. conclusão.

IntroduçãoNo qüinquagésimo aniversário das Nações

Unidas, que coincidentemente inaugura aDécada Internacional da Educação em direitoshumanos1, e cerca de dois anos após a confir-mação consensual da universalidade dosdireitos humanos pela Conferência de Viena de1993, observamos que os mesmos, de acordocom J. A. Lindgren Alves2, encontram-se emquarentena na esfera internacional, de modo quecabe a todos os estudiosos da matéria envida-rem esforços para consolidarem os direitoshumanos na órbita interna dos Estados, comorequisito básico para que estes atinjam umadimensão internacional e, portanto, universal.

1 Proclamada pela Resolução 49/184 da Assem-bléia Geral da ONU, em 23 de dezembro de 1994.

2 ALVES, J.A.L.1995: Os direitos humanos emSursis, Lua Nova; Revista de Cultura e Política, SãoPaulo, n. 35, p. 149-165, 1995.

SUMÁRIO

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que esta tem para cumprir as suas decisões.Neste sentido, no plano jurídico interno,

tendo em vista a necessidade de mudarmos amentalidade dos operadores do direito quetrabalham com direitos humanos, trataremos daintrumentalização da reivindicação dos direitosexpressos nos textos internacionais ratificadospelo Brasil, através da utilização dos instru-mentos processuais constitucionais quegarantem tais direitos.

1. Os direitos humanos

1.1. Origem e evolução

A prática dos governos no que concerneaos direitos humanos, ou seja, o respeito àliberdade de associação e de expressão, ao dueprocess of law, à igualdade perante a lei, aosdireitos dos seus cidadãos de não estaremexpostos à cruel e degradante punição, tem sidoum fator importante nas relações entre asnações ao lado de tradicionais temas comosistemas de segurança e práticas comerciais.

De acordo com Aryeh Neier4, os direitoshumanos começaram a ser definidos sistemati-camente no século XVII; os direitos eram rela-cionados à cidadania de um determinadoEstado, e eram estes Estados que tinham a obri-gação de respeitar os direitos. O Bill of Rightsinglês de 1688 começou com uma demandacontra o Rei James II pelo fato de ter tentadosubverter tais direitos, com a exigência de que apartir de então os mesmos deveriam ser respei-tados pelo Princípe de Orange. A DeclaraçãoAmericana de Independência de 1776 criticouas violações do Rei George III e declarou aindependência por um novo governo a serformado pelas colônias unidas sob o princípiode que “a tirania é inadequada para ser ogoverno de um povo livre”. A DeclaraçãoFrancesa de Direitos de 1789 declarou a inalie-nabilidade dos direitos, mas assegurou orespeito aos deveres da nação, o que proclamouser a fonte de toda a soberania.

Segundo Maurice Cranston5, direitoshumanos é um novo nome para o que erachamado primeiramente de the rights of man,

4 NEIER, Aryeh. Humans Rights . IN: THE

OXFORD COMPANION TO POLITICS OF THE WORLD. NewYork : Oxford University Press, 1993. p. 401-402.

5 CRANSTON, Maurice. Are There Any HumanRights? Journal of the American Academy of Artsand Sciences, v. 112, n. 4, p.1-17. 1983.

3 Sobre a eficácia do direito, ver importante artigodo Prof. José Eduardo Faria, “A eficácia do direitona consolidação democrática”, Lua Nova; Revista deCultura e Política, São Paulo, n. 30, p. 35-72, 1993.

Assim, a presente monografia pretende, emseu primeiro capítulo, conceituar e discorrersobre os direitos humanos para, no segundocapítulo, tratar da política de direitos humanosdo atual governo brasileiro, bem como dasreivindicações do movimento de direitoshumanos no Brasil. No terceiro capítulo,trataremos da origem e da evolução dos instru-mentos processuais com assento na Constitui-ção Federal brasileira de 1988, que podem serutilizados para a garantia dos direitos humanos.

JustificativaA escolha do tema decorre da necessidade

de contribuir para a defesa dos direitos humanosna estrutura interna do sistema jurídico brasi-leiro, tendo em vista que, no âmbito interna-cional, elaboramos em grupo a monografia ElSistema Interamericano de Protección de losDerechos Humanos, apresentada no XXIIICurso de Direito Internacional da OEA, na qualtratamos da origem, evolução, tratados, acor-dos, declarações, versando sobre o tema dosdireitos, com ênfase na estrutura de funciona-mento do sistema interamericano, de modo queacreditamos que, nesta fase, seja importantesabermos quais os instrumentos processuaisque garantem, no ordenamento jurídico interno,a efetividade e a eficácia dos direitos humanos.3

No ensaio acima ressaltamos a importânciados chamados órgãos interamericanos de pro-moção e proteção dos direitos humanos.Referimo-nos à Comissão Interamericana deDireitos Humanos (CIDH) e à Corte Inter-americana de Direitos Humanos. O primeiro dosmencionados órgãos de proteção foi criado em1959 e teve seus estatutos aprovados em 1979.A Corte foi criada em 1969 e iniciou as suasfunções em 1979.

No que tange ao trabalho da CIDH e da Corte,podemos informar que a CIDH recebe denúnciasindividuais que requerem o desenvolvimentode uma operação de investigação que, geral-mente, não conta com a colaboração e apoio doEstado denunciado. Este aparente paradoxo, noqual o denunciado tem de colaborar com umainvestigação contra ele, decorre da submissãovoluntária dos Estados à competência da CIDH.No âmbito da Corte, também se observa esta faltade colaboração, que se expressa nas dificuldades

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pois foi Eleanor Roosevelt que na década de1940 promoveu o uso da expressão humanrights quando descobriu, através da sua ativi-dade política nos Estados Unidos, que osdireitos dos homens em algumas partes do mun-do não incluíam os direitos da mulher6. Osdireitos do homem muito antes tinham absor-vido o termo original natural rights, em parte,talvez, devido ao conceito de direito natural,com o qual o conceito de direitos naturais estavalogicamente conectado, o que se tornou assuntode controvérsia.

A idéia de novas práticas governamentais edo tratamento de que seus próprios cidadãosdeveriam preocupar-se com o resto do mundocomeçou a difundir-se e ganhar adeptos, a partirdo período seguinte à II Guerra Mundial, assimque o mundo tomou consciência das barbari-dades que foram praticadas pelos nazistas.

A Carta da ONU de 1945, dispõe em seu Art.55, alínea c, que as Nações Unidas favorecerão:

“o respeito universal e efetivo dosdireitos humanos e das liberdadesfundamentais para todos, sem distinçãode raça, sexo, língua ou religião.”

Além disso, o art. 56 dispõe que:“Para a realização dos propósitos

enumerados no art. 55, todos os Mem-bros da Organização se comprometem aagir em cooperação com esta, em con-junto ou separadamente.”

Em 1948, a ONU descreveu o significado dedireitos humanos da Declaração Universal deDireitos Humanos, que foi adotada sem discor-dância, mas com abstenções das nações dobloco soviético, África do Sul e Arábia Saudita.Nos anos seguintes, as nações do mundopromoveram os direitos humanos através de umnúmero de acordos internacionais, entre eles aConvenção Européia de Direitos Humanos(1950); o Pacto Internacional de Direitos Civis ePolíticos (1966); a Convenção Interamericanade Direitos Humanos (1969); os Acordos deHelsinki (1975); e a Carta dos Povos Africanose Direitos Humanos (1981).

Em seguida, cidadãos em vários paísesestabeleceram organizações não-governa-mentais para efetivar os dispositivos destesacordos, de modo que tornaram-se uma forçana formação da opinião pública para condenaras nações que flagrantemente violam os direitos

humanos. Assim, antes de 1980, abusos degovernos contra seus próprios cidadãos,freqüentemente, tornaram-se fatores relevantesno modo como outros países relacionam-se comestes países, no que se refere à políticainternacional.

Na década de 1970, por exemplo, um períodode relativa tolerância pela divergência chegouao fim na União Soviética, sem interferência,com a disputa Leste-Oeste; os Estados Unidosestabeleceram relações com a China, enquantoMao vivia e a extrema repressão da RevoluçãoCultural progredia; golpes militares, acompa-nhados de severa perseguição, ocorreram naprimeira metade da década de 1970 no Chile eno Uruguai, além disso, a repressão militarintensificou-se no Brasil, auxiliada por agênciasinternacionais e pelos Estados Unidos emdecorrência da Guerra Fria.

1.2. O conceito de direitos humanosno Brasil

No sentido lato, a conceituação de direitoshumanos assemelha-se à dos direitos da cida-dania que, no caso brasileiro, são os Direitos eGarantias Fundamentais.7

Os cientistas sociais, de acordo com MarizaG. S. Peirano,8 têm grande dificuldade paradefinir cidadania, pois, mesmo reconhecendo ofenômeno como resultado de um processohistórico, há uma inevitável tendência paradiscorrer sobre uma tipologia dos direitos docidadão, de modo que, classicamente, essatipologia originou-se dos trabalhos de T.H. Marshall que, embora afirme que sua análiseé ditada “mais pela história do que pela lógica”9,divide o conceito em três partes:

6 D.D., Raphael. Political theory and the rightsof man. London : Macmillan, 1967. p. 54.

7 Adotamos, como os elementos que compõemos direitos humanos, os Direitos e Garantias Funda-mentais dispostos na Constituição Federal de 1988,para fins de adequação à tipologia adotada porMarshall, T. H., para definir a cidadania, no seu livroCidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro :Zahar, 1967, quais sejam:

a) Os direitos civis (Dos Direitos e DeveresIndividuais e Coletivos - Art. 5º da CF/88);

b) Os direitos políticos (Dos Direitos Políticos -Arts. 14/16 da CF/88);

c) Os direitos sociais (Dos Direitos Sociais - Arts.6/11 da CF/88).

8 PEIRANO, M. Sem lenço, sem documento:reflexões sobre cidadania no Brasil. Sociedade e Es-tado, Brasília, v.1, n.1, p. 49-63, jun. 1986.

9 MARSHALL, T. H. op. cit., p. 63.

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a) “os direitos civis, compostos dosdireitos necessários à liberdade indivi-dual – liberdade de ir e vir, liberdade deimprensa, pensamento e fé, o direito àpropriedade e de concluir contratosválidos e o direito à justiça;”

b) “os direitos políticos, como odireito de participar no exercício do poderpolítico como um membro de um orga-nismo investido de autoridade política oucomo um leitor dos membros de talorganismo;”

c) “os direitos sociais, que sereferem a tudo o que vai desde o direitoa um mínimo de bem-estar econômicoe segurança ao direito de participar, porcompleto, na herança social e levar avida de um ser civilizado de acordo comos padrões que prevalecem na socie-dade.”10

Marshall demonstra, ainda, que os trêselementos da cidadania se formaram naInglaterra no decorrer de três séculos: os direitoscivis podem ser atribuídos ao século XVIII, ospolíticos ao XIX e os sociais ao XX, de modoque observa-se uma tendência implícita aconceber tais direitos como “um modelo decidadania”.

No caso brasileiro, os direitos políticosforam concedidos antes que tivéssemosadquirido, por nossa conta e vontade própria,os direitos civis, tendo em vista, dentre váriasoutras causas, que a República foi procla-mada sem a participação efetiva da sociedadecivil, ou seja, foi um processo de cima parabaixo. O Estado paternalista concedeudireitos sem que houvesse uma ativa vonta-de para reivindicá-los, o que prejudicousobremaneira a consolidação da nossaconsciência da cidadania.

Deste modo, comparando-se com o modeloclássico adotado por Marshall, poderíamos dizerque, no Brasil, o processo histórico de constru-ção da cidadania iniciou-se com os direitospolíticos, no século passado, e evoluiu com osdireitos civis e sociais, de forma que acreditamosque ainda sofremos grandes dificuldades paraa consolidação da cidadania, tendo em vista asseqüelas deste processo histórico atípico.

Na Inglaterra, onde liberdade civil e liberdadepolítica tornaram-se sinônimas e associadas,pois uma era condição da outra, ocorreu ocontrário, como leciona Oliveira Vianna:

“os ingleses conquistaram estas liber-dades, vivendo-as, nos comícios, nosmotins, nas revoluções, nos cada-falsos, jogando a vida, ora com aespada na mão, ora com o mosquetede pederneira e a pólvora seca deCromwell. Já o nosso método caboclofoi outro, menos trabalhoso, semdúvida: estas garantias e liberdadessempre as tivemos on paper e ‘porcópia uniforme’. Toda diferença – imen-surável diferença! – entre eles e nósestá nisto: – e , entretanto, isto éinsuprível...”11

Assim, reconhecemos que a cidadaniadecorre de um processo histórico e que sofreum processo de construção ideológica, junta-mente com outras categorias, tais como Estadoe Nação, de modo que concordamos comMarshall quando este leciona que não hánenhum princípio universal que determine quaisos direitos e as obrigações da cidadania, “masas sociedades nas quais a cidadania é umainstituição em desenvolvimento criam umaimagem de uma cidadania ideal”.12

Para Celso Lafer13, os direitos humanos14

representam, no plano jurídico, uma inver-são da figura deôntica originária, ou seja,significam uma passagem do dever do súditopara o direito do cidadão. Como lembraBobbio, toda a tradição jurídica, até asDeclarações dos Direitos do século XVIII,visava a estabelecer os deveres como nosDez Mandamentos. São as Declarações quecriam, para falar como Hannah Arendt, odireito do indivíduo a ter direitos, pois partemdo pressuposto de que a pessoa humana temuma dignidade e uma singularidade que nãose dissolve no todo da boa gestão dacomunidade política.

Além disso, no que concerne à políticainternacional, Celso Lafer15 leciona que osdireitos humanos são e devem ser um tema

10 MARSHALL, T.H. op. cit., p. 64.

11 VIANNA, O. Instituições políticas brasileiras.2. ed. Rio de Janeiro : José Olympio , 1955. V.2, p.633-634.

12 MARSHALL, T. H. op. cit., p. 76.13 LAFER, C. A soberania e os direitos humanos.

Lua Nova, São Paulo, n. 35, p. 140, 1995.14 Para uma melhor abordagem sobre as violações

do direitos humanos no Brasil, ver Relatório Anual1995, da Human Rights Watch/Americas, 1995 e FinalJustice, Police and Death Squad Homicides of Brazil,Humans Rights Watch, United States, 1994.

15 Idem, p. 145.

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legítimo da agenda internacional, que não deveser excluído com base na alegação de ferir oprincípio da não-intervenção, por estar naesfera do domínio reservado da esfera doEstado.

1.3. A interação entre o Direito Internacional e oDireito Interno na garantia dos direitos humanos

Como trataremos da garantia dos direitoshumanos pelos instrumentos jurídico-proces-suais com assento na Constituição Federalde 1988, é imprescíndivel discorrermos comoo ordenamento jurídico recepciona a Con-venção Americana de Direitos Humanos(Pacto de San Jose), a Carta da OEA e aDeclaração Americana dos Direitos e Deveresdo Homem.

Neste sentido, a Constituição de 1988, apósproclamar que o Brasil rege-se em suas relaçõesinternacionais pelo princípio, inter alia, daprevalência dos direitos humanos (art. 4º, II),constituindo-se em Estado Democrático deDireito e tendo como fundamento a dignidadeda pessoa humana (art. 1º, III), dispõe que osdireitos e garantias nela expressos não excluemoutros decorrentes do regime e dos princípiospor ela adotados, ou dos tratados internacionaisem que o Brasil seja parte (art. 5º, § 2º).

Cabe, portanto, o ensinamento do Pro-fessor A. A. C. Trindade16, segundo o qual odisposto no art. 5 º, § 2 º, da CF/88 se inserena nova tendência das constituições latino-americanas recentes no sentido de concederum tratamento especial ou diferenciado tam-bém no plano do direito interno aos direitose garantias individuais internacionalmenteconsagrados. Assim, a especificidade e ocaráter especial dos tratados de proteçãointernacional dos direitos humanos encon-tram-se reconhecidos e sancionados pelaConstituição brasileira de 1988, passando osdireitos fundamentais neles dispostos,consoante os §§ 1º e 2º do art. 5º da CF/88, aintegrar o elenco dos direitos constitucio-nalmente consagrados e direta e imediata-mente exigíveis no plano do ordenamentojurídico interno.

2. A política do Governo brasileiro e asreivindicações dos movimentos de direitos

humanos no BrasilA situação atual dos direitos humanos no

Brasil encontra-se em fase de consolidação etem tido amplo apoio do Governo FernandoHenrique Cardoso; todavia, há muito a ser feito,já que as violações desses direitos ainda fazemparte do cotidiano dos brasileiros, seja por partedo aparelho repressivo estatal (Polícias Federal,Civil e Militares), seja por parte das violaçõesde membros da sociedade civil, em sua maioriamiseráveis ou capangas de latifundiários.

Neste sentido, o presente capítulo tratarádos seguintes temas: 1) a política dos direitoshumanos do Governo brasileiro; 2) as propostasdo I Fórum Nacional de Comissões Legislativasde Direitos Humanos.

2.1. A política dos direitos humanos doGoverno Fernando Henrique Cardoso

A temática dos direitos humanos está naagenda do Governo brasileiro, tanto na políticainterna quanto na externa. Neste sentido, emsua recente visita oficial aos Estados Unidosda América, no período de 18 a 22 de abril de1995, o Presidente da República FernandoHenrique Cardoso demonstrou enorme preocu-pação com a promoção do respeito aos direitoshumanos, conforme discurso realizado emsessão solene do Conselho Permanente daOrganização dos Estados Americanos emWashington, no dia 21 de abril de 1995:

“Em combinação harmoniosa com adefesa da democracia está a atividade daOrganização na promoção do respeitoaos direitos humanos. Reconheço a rele-vância dos trabalhos da Comissão e daCorte Interamericanas de Direitos Huma-nos, bem como reitero a determinação doGoverno brasileiro de cooperar com estase outras entidades internacionais na pro-moção dos direitos fundamentais dapessoa humana.

Está claro que o trabalho dessasentidades será tão mais efetivo quantomais universal for a adesão dos Estadosdo Hemisfério ao Pacto de São José e aocumprimento de suas disposições.

A situação dos direitos humanos emmeu país apresenta hoje sensíveis

16 TRINDADE, A. A. C. A interação o DireitoInternacional o Direito Interno na Proteção dosDireitos Humanos, Arquivo do Ministério da Justiça,Brasília, 46, p. 27-54, jul/dez 1993.

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progressos. Meu Governo está decidido aencaminhar o país para soluções definiti-vas para conter a violência e a impunidadenos grandes centros e zonas rurais.

As violações dos direitos humanossão, em grande parte, resultado da con-dição de pobreza e de miséria ainda rei-nantes no Continente. A Comunidadeinteramericana tem um papel a desem-penhar nesse tema tão sensível à quasetotalidade dos Estados-membros destaOrganização.”17

Além disso, o Ministro da Justiça doGoverno Fernando Henrique Cardoso, Dr.Nelson Jobim, no discurso de encerramento doI Fórum Nacional de Comissões Legislativas deDireitos Humanos, manifestou-se da seguintemaneira:

“O Ministro manifestou seu apoio àproposta de federalização dos direitoshumanos, sugerindo que esta se dê pormeio da intervenção do Conselho Nacio-nal de Direitos Humanos em casos espe-cíficos. Apoio também à transferência dacompetência para a Justiça Comum dojulgamento dos policiais militares.Advertiu, no entanto, para a possibi-lidade de conflitos resultantes do fato deque os inquéritos contra policiais militaresseriam conduzidos por policiais civis, oque poderia vir a acirrar a animosidadeexistente entre ambas as corporações.

O Ministério pretende continuar ademarcação das terrras indígenas. Noentanto, está procedendo no momento àrevisão do decreto que estabelece o pro-cedimento de demarcação, visandoadequá-lo ao princípio constitucional docontraditório. O Ministro advertiu para aimportância da discussão do Estatuto doÍndio na Câmara dos Deputados, já queele estabelecerá o regime e as condiçõesde exploração destas terras.

A questão dos desaparecidos polí-ticos está sendo estudada, havendosimpatia pelas propostas apresentadaspela Comissão de Direitos Humanos daCâmara dos Deputados.

A fim de propiciar um maior detalha-mento e de firmar compromissos, foisugerida pelo Fórum e aceita peloMinistro a proposta de elaboração de um

Plano Nacional de Direitos Humanos, quedeverá ser debatido em uma ConferênciaNacional de Direitos Humanos, da qualdeverão participar representantes da so-ciedade civil, cuja pauta e condições derealização deverão ser estabelecidas decomum acordo entre o Ministério da Jus-tiça e a Comissão de Direitos Humanosda Câmara dos Deputados.”18

2.2. As propostas do I Fórum Nacional deComissões Legislativas de Direitos Humanos

O Fórum Nacional de Comissões Legislativasde Direitos Humanos, promovido pela Comissãode Direitos Humanos da Câmara dos Deputados,realizou-se nos dias 18 e 19 de maio de 1995.

O evento contou com a presença de repre-sentantes das Assembléias Legislativas dosEstados de São Paulo, Rio Grande do Sul,Paraíba, Santa Catarina, Rio de Janeiro, MinasGerais, Mato Grosso, Ceará, Pernambuco, Acre,Maranhão, Espírito Santo, Bahia, Mato Grossodo Sul, Roraima, Amazonas, Sergipe, Pará e daCâmara Legislativa do Distrito Federal.

Neste Fórum considerou-se da maior impor-tância a estruturação de um sistema nacionalde proteção aos direitos humanos, que envolvaos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciáriodos três níveis da Federação, em permanentearticulação com a sociedade civil e os órgãosinternacionais.

Os elementos deste sistema são os Conse-lhos e as Comissões de Direitos Humanos, nasesferas dos Poderes Executivo e Legislativo,respectivamente. O Fórum propõe a criação deComissões de Direitos Humanos em todas asAssembléias Legislativas e Câmaras Muni-cipais. Além de instituírem suas própriasComissões de Direitos Humanos, as Assem-bléias Legislativas devem tomar a iniciativa depromover encontros análogos na esferaestadual, para os quais seriam convidadosrepresentantes das Câmaras Municipais.Propõe-se também a criação de uma Comissãode Direitos Humanos no Senado.

Em face da variedade de nomes entre ascomissões já existentes, sugeriu-se a unificaçãoda terminologia, mediante adoção da expressão“direitos humanos”.

Na esfera do Poder Executivo, o Fórumpropôs a criação de Conselhos de Direitos

18 DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL,Brasília, 24 mar. 1995, Seção I, p. 14.142.

17 DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL,Brasília, 12 ago. 1995, Seção I, p. 17.605.

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Humanos, compostos por representantes dosPoderes Públicos e da sociedade civil, respon-sáveis por formular políticas de proteção epromoção aos direitos humanos e dotados deamplos poderes para investigar denúncias.

O Fórum Nacional de Comissões Legislati-vas de Direitos Humanos decidiu constituir-seem instância permanente de articulação e deverávoltar a se reunir no segundo semestre de 1995.

Os eventos promovidos por cada comissãoestadual deverão ser avisados com antece-dência às demais, a fim de que o maior númeropossível de comissões se possa fazer presente,fortalecendo, assim, a solidariedade entre ascomissões. Sugeriu-se também a promoção deencontros regionais, uma vez que o perfil dasviolações dos direitos humanos é diferente emcada Estado, mas tende a se assemelhar numaregião do país. Os membros da Comissão deDireitos Humanos da Câmara dos Deputadosdeverão visitar as várias regiões, a fim de quepossam ter uma visão abrangente dos pro-blemas.

Uma vez articuladas, as Comissões deverãopromover ações entre si, já que muitas das prin-cipais violações têm caráter interestadual. Nestesentido, levantou-se a possibilidade depromover a criação de CPIs simultâneas sobretrabalho escravo e prostituição infantil nosestados em que estes problemas são maisgraves.

No que se refere a uma proposta delegislação de políticas públicas relativa aosdireitos humanos, o Fórum destacou o seguinte:

“Dentre as inúmeras violações siste-máticas de direitos humanos no Brasil, oFórum destaca a invasão das terras habi-tadas pelos índios, o trabalho escravoinfantil, a prostituição infantil estimuladapelo sexo-turismo, o assassinato detrabalhadores rurais em conflitos agrários,a superlotação dos presídios, as execu-ções extra-judiciais, a tortura praticadapelo aparato policial, a atuação de gruposde extermínio, agindo livremente nasprincipais cidades, e o não-esclareci-mento do destino dos desaparecidospolíticos pelas autoridades.

Diante deste quadro, o Fórum apro-vou o seguinte conjunto de propostasde legislação e políticas públicas:• Federalização da apuração e dojulgamento das violações de direitos

humanos.• Desmilitarização das Polícias Militaresestaduais.• Apoio ao relatório do Senador RobertoFreire ao projeto de lei que transfere daJustiça Militar Estadual para a JustiçaComum a competência para julgamentode crimes praticados por policiais mili-tares.• Apoio ao substitutivo da Comissão deDireitos Humanos da Câmara dosDeputados para o projeto de lei quereformula o Conselho de Defesa dosDireitos da Pessoa Humana.• Apoio ao projeto de lei da Comissão deDireitos Humanos da Câmara dosDeputados que estabelece a respon-sabilidade do Estado pelos desapareci-dos políticos durante o regime militar.• Tipificação penal da tortura.• Revisão da legislação referente ao trá-fico de drogas.• Maior controle das empresas desegurança privada e do uso de armas pelapopulação.• Estabelecimento de um programa deproteção a vítimas e testemunhas.• Autonomia dos Institutos Médico-Le-gais e Institutos de Criminalística comrelação aos órgãos policiais.• Abertura de escritórios do MinistérioPúblico e de Defensorias Públicas emtodos os municípios.• Controle externo do Poder Judiciário,do Ministério Público e das Polícias,mediante participação da sociedade civilnas respectivas corregedorias.• Inclusão do ensino dos direitos humanosnas academias de polícia.• Estabelecimento da Semana dos DireitosHumanos na rede escolar, com a promo-ção de atividades de sensibilização.

• Divulgação das normas de proteção dedireitos humanos, como as ConvençõesInternacionais e o Estatuto da Criança edo Adolescente.• Promoção, pelo Ministério da Justiça,de uma campanha de promoção dos direi-tos humanos pelos meios de comunicaçãoda massa.”19

19 Idem, p. 14.142/14.143.

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3. Os instrumentos processuais constitucio-nais para a garantia dos direitos humanos

Segundo a professora Ada PellegriniGrinover, em seu livro Novas Tendências doDireito Processual20, o termo garantia temabrangência maior do que a de remédio consti-tucional, porque por garantia se costuma indi-car todo e qualquer instrumento necessário àconcretização dos direitos declarados pelaConstituição, de modo que, neste sentido,compreende-se a própria ação e defesa, comopoder de ir à Juízo e defender-se.

A Constituição Federal de 1988 inclui entreas garantias individuais o habeas corpus, omandado de segurança, o habeas data, a açãopopular, o mandado de injunção, a ação civilpública, o direito de petição e a representaçãoperante os Poderes Públicos. Todavia, na dou-trina e na jurisprudência, vem dando-se a esteso nome de remédios de Direito Constitucional,ou remédios constitucionais, no sentido demeios postos à disposição dos indivíduos ecidadãos para provocar a intervenção dasautoridades competentes, visando sanar ecorrigir a ilegalidade e abuso de poder emprejuízo de direitos e interesses individuais.

No Brasil, os remédios constitucionaisprocessuais tradicionais, correspondendoaos writs do direito anglo-saxão, são o man-dado de segurança, o habeas corpus e, emcerta medida, a ação popular constitucional,esta apenas em certa medida, porque origi-nariamente a ação popular não era instrumen-to para assegurar liberdades públicas, tendonascido como instrumento do cidadão a ser-viço da correção administrativa. Todavia, aevolução do instituto, principalmente nessesúltimos anos, tem feito com que tenha sidoutilizado para a proteção de certos interes-ses coletivos, difusos, metaindividuais, so-ciais, de maneira que hoje, mais do que nun-ca, entendemos que é possível considerar aação popular constitucional como remédioconstitucional-processual.

Na América do Norte, a colônia da Virgínia,em 12 de junho de 1776, proclamou a famosaBill of Rights, contendo em seus dezesseisartigos um grupo de direitos e garantias consti-tucionais capazes de imprimir respeito aosdireitos, sendo este o primeiro texto legal

relativo às liberdades públicas e que forneceuas bases para o desenvolvimento futuro dasgarantias constitucionais das liberdades.

Em 1789, a Déclaration des Droits del’Homme et du Citoyen, aprovada em 26 deagosto, representou o rompimento de umnefasto sistema absolutista e feudal, em que osdireitos do homem eram freqüentementeviolados, tendo a mesma, em 1791, servido deintrodução à própria Constituição Francesa.Assim, em que pese as dificuldades práticasque se seguiram à declaração dos direitos dohomem e do cidadão, não há como negar suaextraordinária influência, em todo o mundoocidental, na elaboração das diversas declara-ções constitucionais de direitos e garantias dohomem.

Há que se acrescentar que, inobstante aDeclaração Universal dos Direitos do Homem,patrocinada pela ONU e proclamada solene-mente pelos Estados que a firmaram em 10 dedezembro de 1948, paralelamente, grandenúmero de Estados tratou de aparelhar seussistemas jurídicos positivos, na proporçãoem que neles foi adotado o entendimentorelativo à importância e à necessidade de seproteger o homem contra arroubos de auto-ritarismo e prepotência do próprio Estado,ou de se reconhecer a ele a pertinência deuma série de direitos necessários ao atingi-mento de um padrão mínimo de condições devida – educação e saúde, por exemplo –, pas-sando a adotar sistemas constitucionais den-samente carregados de dados referentes àsliberdades públicas do homem; assim, atri-buíram-se determinadas garantias, capazesde fazer valer os direitos já reconhecidosconstitucionalmente.

No caso brasileiro, a Constituição Federalnão foi exceção, vez que criou diversos instru-mentos destinados a assegurar o gozo dedireitos violados ou em vias de ser violados ousimplesmente não atendidos, segundo JoséAfonso da Silva21. Por outro lado, para ManoelGonçalves Ferreira Filho, rigorosamentefalando, as garantias dos direitos fundamentaissão as limitações, as vedações, impostas peloconstituinte ao Poder Público.

Neste sentido, trataremos, nos itensseguintes, dos institutos processuais consti-tucionais de garantia da cidadania.

20 GRINOVER, A. P. Novas Tendências doDireito Processual. Rio de Janeiro :  ForenseUniversitária, 1990.

21 SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitu-cional Positivo. 9. ed. São Paulo : Malheiros, 1994.

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3.1. O habeas corpusComo garantia máxima da liberdade de loco-

moção do ser humano, o habeas corpus temsuas raízes na Magna Charta Libertatum,outorgada pelo filho de Henrique II, João, quese tornou famoso como João Sem Terra. No seucapítulo 29, segundo Pontes de Miranda,

“se calcaram, através das idades, asdemais conquistas do povo inglês para agarantia prática, imediata e utilitária daliberdade física. A moral individualística,que caracteriza, flagrantemente, o grandepovo (cuja psicologia tanto se enquadranas idéias gerais de suas instituições),soube tirar do velho e bárbaro latimdaquele trecho o germe de várias leisinestimáveis, que os tempos e as lutasaprimoravam.”

Cabe acrescentar que, no início, o habeascorpus não era vinculado à idéia de liberdadede locomoção, mas ao conceito de due processof law, sendo usado até em matéria de direitocivil, tendo adquirido várias modalidades, comohabeas corpus ad prosequendum, habeascorpus ad satisfaciendum, habeas corpus addeliberandum, habeas corpus ad faciendum etrecipiendum, para levar alguém perante o tribunal.Em 1679, o Habeas Corpus Amendement Acttornou-o um remédio destinado a assegurar aliberdade dos súditos e prevenir os encarcera-mentos nas colônias britânicas.

Embora inglês, o instituto passou para odireito norte-americano, com maior amplitude,como garantia, também, da segurança individual,posto que admitido contra qualquer espécie deviolência ou de constrição ao ius libertatis.

Com o passar do tempo, foi trasladado paraoutros ordenamentos jurídicos, sendo introdu-zido, segundo Pontes de Miranda, implicita-mente no Brasil na época do Império e seqüen-temente à afirmação da liberdade individualcomo direito subjetivo no caput do art. 179 eseu § 8º, da Constituição outorgada de 25 demarço de 1824, nos seguintes termos:

“Art. 179. A inviolabilidade dosdireitos civis e políticos dos cidadãosbrasileiros, que tem por base a liberdade,a segurança individual e a propriedade, égarantida pela Constituição do Império.

..................................................................§ 8º Ninguém poderá ser preso sem

culpa formada, exceto nos casos decla-rados em lei; (sic)”

Todavia, formalmente, só foi instituído noCódigo de Processo Criminal de 1832 (art. 340)e constitucionalizou-se por meio do § 22 do art.72 da Constituição de 1891 que, de forma abran-gente, deu margem à doutrina brasileira dohabeas corpus, concebido como remédio tutelardos direitos subjetivos de qualquer natureza,conforme Ruy Barbosa, nos seguintes termos:

“Logo o habeas corpus hoje não estácircunscrito aos casos de constran-gimento corporal: o habeas corpus hojese estende a todos os casos em que umdireito nosso, qualquer direito, estiverameaçado, manietado, impossibilitado noseu exercício pela intervenção de umabuso de poder ou de uma ilegalidade.”

Tal entendimento possibilitava que as vio-lações de direitos civis também se sujeitassemà correção pelo habeas corpus. Todavia, aEmenda Constitucional de 1926 limitou o seucabimento à proteção da liberdade de loco-moção, com um enunciado semelhante ao art.5º, LXVIII, in verbis:

“conceder-se-á habeas corpus sempreque alguém sofrer ou se achar ameaçadode sofrer violência ou coação em sualiberdade de locomoção, por ilegalidadeou abuso de poder”.

Assim, verifica-se que a atual Carta Magnasancionou o espírito da Emenda de 1926, querestaurava o habeas corpus em seu sentidooriginário e clássico de proteção constitucionala quem estivesse debaixo de ameaça de violênciaou coação em sua liberdade de locomoção,conforme a lição de Paulo Bonavides22, desca-bendo, somente nos casos de punições disci-plinares militares, por determinação do art. 142,§ 2º. Todavia, nos demais casos de transgressãodisciplinar ou coação, mesmo de ato departicular, é cabível a impetração do instrumentofundamental para a consolidação da cidadaniano país.

3.2. O mandado de segurança

O mandado de segurança, que muitos que-riam fosse uma espécie de habeas corpus civil,enraizou-se no direito constitucional brasileiropor criação do constituinte de 1934, que o crioupara proteger o direito individual certo e incon-testável do cidadão contra atos manifestamenteinconstitucionais ou ilegais de qualquer

22 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitu-cional. 5. ed. São Paulo : Malheiros, 1994.

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autoridade administrativa.A Carta autoritária de 1937 omitiu aquela

garantia constitucional, rebaixando-a a meradisposição infraconstitucional, através doDecreto-Lei b.6 de 16 de novembro de 1937, quemanteve-a com restrições, assim como o Códigode Processo Civil de 1939. Naquele Decreto-Leias restrições tinham natureza política, vez queproibia a impetração de mandado de segurançacontra atos das mais altas autoridades execu-tivas federais e estaduais (Presidente da Repú-blica, ministros de Estado, governadores einterventores do Estado); além disso, havialimitações impostas ao emprego do instituto quese estendiam à esfera tributária, tais comoimpostos e taxas.

Assim, exceto a Carta de 1937, todos osdemais textos constitucionais jamais retiraramo mandado de segurança do seu corpo, demodo que a Constituição de 1946, em seu art.141, § 24, assim determinava:

“Para proteger direito líquido e certonão amparado por habeas corpus,conceder-se-á mandado de segurança,seja qual for a autoridade responsávelpela ilegalidade ou abuso de poder.”

Com ligeira alteração, a Constituição de 1967também incorporou no seu texto o mandado desegurança, inobstante ter sido a Carta quepraticamente sustentou o nefasto regime militaraté o advento da atual Carta Política.

A Constituição de 1988 foi aquela que maisprocurou inovar tecnicamente em matéria deproteção aos direitos fundamentais; não o fezsem um propósito definido, que tacitamente seinfere do conteúdo de seus princípios e funda-mentos: a busca, em termos definitivos, de umacompatibilidade do Estado Social com o Estadode Direito mediante a introdução de novasgarantias constitucionais, seja de direitoobjetivo, seja de direito subjetivo.

Desta forma, a Constituição de 1988contempla duas formas de mandado de segu-rança: a) mandado de segurança individual (art.5º, LXIX), tal como previram as Constituiçõesanteriores, desde a de 1934, com a finalidade deproteger direito individual líquido e certo; e b)o mandado de segurança coletivo (Art. 5 º, LXX),instituto novo, tendente a ter grande influênciana realização de direitos de coletividadesinteiras, para que o primeiro se releve a instru-mento insatisfatório, podendo ser impetradopor partido político com representação no Con-gresso Nacional ou por organização sindical,

entidade de classe ou associação legalmenteconstituída e em funcionamento há pelo menosum ano, em defesa dos interesses de seusmembros e associados.

Ressalte-se que o conceito de mandado desegurança coletivo assenta-se em dois elemen-tos: um, institucional, caracterizado pela atri-buição da legitimação processual a instituiçõesassociativas para a defesa de interesses de seusmembros ou associados; outro, objetivo,consubstanciado no uso do remédio para adefesa de interesses coletivos.

Neste sentido, segundo a doutrina majori-tária, em especial a de Rogério Laura Tucci eJosé Rogério Cruz e Tucci23, o cabimento domandado de segurança, por ostentar a naturezajurídica de ação, resta adstrito à concorrênciade alguns pressupostos para a sua efetivação,quais sejam:

a) que o direito subjetivo, individualou coletivo, cuja tutela é invocada doórgão jurisdicional, seja líquido e certo –incontestável;

b) que a lesão, ou a ameaça de lesão,a esse direito decorra de ilegalidade ouabuso do poder;

c) que a atuação ou omissão, a serenfrentada pelo mandamus, seja de auto-ridade pública ou de agente de pessoajurídica no exercício de atribuições doPoder Público.

Além disso, embora o art. 5º da Lei nº 1.533de 31 de dezembro de 1951 expresse algumasexceções para impetração do mandado desegurança, acreditamos que, em decorrência daconstitucionalização do mandamus, é cabível aimpetração do referido instrumento desde quepreenchidos os requisitos acima mencionados.

3.3. O habeas data

Uma das distorções mais graves do períodomilitar-autoritário foi o uso e, sobretudo, oabuso na utilização de informações que dife-rentes organismos armazenavam sobre a vidadas pessoas, vez que a criação de diversosórgãos de segurança do Estado, em decorrênciada famigerada Política de Segurança Nacional,de inspiração norte-americana, tais como DOI-CODI, SNI, DOPS, dentre outros, fez com quese iniciasse um período de “caça às bruxas”, jáque tais órgãos, elementos da comunidade de

23 TUCCI, R. L. et al. Constituição de 1988 eProcesso. Rio de Janeiro : Saraiva, 1989.

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informações, provocaram diversas persegui-ções a adversários ou críticos do regime,operando freqüentemente na fronteira damarginalidade.

Tal comunidade, com essa nefasta práticamedieval, passou a constituir-se num poderparalelo, ou seja, um poder dentro do próprioPoder que, por vezes, sobrepunha-se ao poderpolítico institucional, valendo-se de meios ilíci-tos para fins condenáveis. Assim, a condenaçãoformal dessa prática, que se entranhara na culturado poder no Brasil, correspondia a um anseiopolítico expressivo, que foi atendido pelo consti-tuinte por via do habeas data, abrigado na CartaPolítica no art. 5º, LXXII, da seguinte forma:

“Conceder-se-á habeas data:a) para assegurar o conhecimento de

informações relativas à pessoa do impe-trante, constantes de registros ou bancosde dados de entidades governamentaisou caráter público;

b) para a retificação de dados, quandonão se prefira fazê-lo por processosigiloso, judicial ou administrativo.”

Neste sentido, verifica-se que é duplo oobjeto do habeas data: assegurar o conheci-mento de informações e ensejar sua retificação,de modo que, segundo o entendimento doProfessor Luís Roberto Barroso24, ao qual nosfiliamos, não é necessário o ajuizamento de duasações distintas para uma e outra providências.Em um único habeas data o requerente terá,inicialmente, acesso às informações. Esta faseterá rito sumário, que poderá ser o do mandadode segurança enquanto não há lei específica;prestadas as informações, se o impetrante sesatisfizer, será extinto o processo.

Caso ele deseje retificar as informações,instaura-se uma segunda fase, não mais decaráter mandamental, mas cognitivo, onde entãorealizar-se-á a instrução do feito, em regimecontraditório, sendo que a jurisprudência járejeitou o cabimento de habeas data preventivo.

Por outro lado, consolidou-se que somenteé cabível o habeas data se em via administrativativer ocorrido a negativa no fornecimento dasinformações; além disso, faltará interesse de agirse o interessado não houver previamente for-mulado requerimento ao detentor da informaçãopretendida, exigindo-se, ainda, para a sua impe-tração, a constituição de advogado.

O direito de impetrar habeas data paraconhecer e retificar dados é personalíssimo,embora exista pelo menos um precedenteperante tribunal superior em que se reconhe-ceu legitimidade a herdeiro e a cônjuge supérs-tite. Legitimados passivos (réus) são os órgãosda Administração Direta e Indireta, bem comoas pessoas privadas que prestem serviçospúblicos ou de utilidade pública, ou prestemserviços ao público, como, e.g., os de proteçãoao crédito, descabendo, ainda, a apuração e aresponsabilização civil ou penal do autor dainformação objeto da impetração.

É importante, como estudo comparativo,acrescentar que em Portugal a Lei nº 1/89 e oart. 268/2 da constituição portuguesa consa-graram instituto semelhante – o direito aoarquivo aberto, ou seja, o direito de acesso –aos arquivos e registros administrativos.

Note-se que a Constituição não faz dependera liberdade de acesso aos documentos admi-nistrativos da existência de um interesse pes-soal. Salvaguardados os casos de documentosnominativos ou de documentos reservados pormotivo de segurança ou de justiça, a idéia dedemocracia administrativa aponta não só paraum direito de acesso aos arquivos e registrospúblicos para defesa de interesses individuais,mas também para um direito de saber o que sepassa no âmbito de esquemas político-buro-cráticos, possibilitando o acesso a dossiers,relatórios, atas, estudos, estatísticas, instruções,circulares, notas etc.

Deste modo, segundo o nobre ensinamentodo Professor Joaquim José Gomes Canotilho25,a operatividade prática desse direito dependeráda criação de procedimentos (exemplo: recursoa uma “comissão de acesso aos documentosadministrativos) e de processos adequados(ações judiciais para efetivar o direito ao arquivoaberto).”

3.4. A ação popular

A ação popular tem origem no Direitoromano, vez que havia ações populares desti-nadas à defesa da legalidade, da moralidadeadministrativa, do patrimônio estatal, da segu-rança pública e dos interesses de menores eausentes.

O nome ação popular deriva do fato de24 BARROSO, L. R. O Direito Constitucional e

a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro : Ed.Renovar, 1992.

25 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional,Coimbra, Almedina, 1992.

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atribuir-se ao povo, ou a parcela dele, legitimi-dade para pleitear, por qualquer dos seusmembros, a tutela jurisdicional de interesse quenão lhe pertence, mas à coletividade.

Segundo o ensinamento de AlcidesMendonça Lima26, trata-se de ação

“de índole ética e como expressão deregime democrático, visando a preservara moralidade (sentido amplo) da atividadedo Estado e bens cuja destruição oudanificação lesem interesses públicos ouprivados, por serem necessários à convi-vência social.”

Para José Afonso da Silva, trata-se de umagarantia coletiva e político-constitucional, namedida em que autor popular faz valer um inte-resse que só lhe cabe, ut universis , comomembro de uma comunidade, agindo propopulo, ao invocar a atividade jurisdicional nadefesa da coisa pública, visando sempre à tutelade interesses coletivos, não de interessepessoal.

É, pois, uma forma de participação docidadão na vida pública, no exercício de umafunção que lhe pertence primariamente, vez quedá oportunidade de o cidadão exercer direta-mente a função fiscalizadora que, em regra, éexercida com dificuldade pelos parlamentares.Deste modo, a ação popular é judicial porqueconsiste num meio de invocar a atividadejurisdicional visando à correção de nulidade deato lesivo: a) ao patrimônio público ou de enti-dade de que o Estado participe; b) à moralidadeadministrativa; c) ao meio ambiente; d) aopatrimônio histórico e cultural.

Assim, a sua finalidade é corretiva, nãopropriamente preventiva, mas a lei pode dar,como deu, a possibilidade de suspensão liminardo ato impugnado para prevenir a lesão.

No ordenamento jurídico brasileiro, aConstituição de 1934 introduziu o dispositivoconsagrador da ação popular em seu art. 113, §38, que assim previa:

“Qualquer cidadão será parte legí-tima para pleitear a declaração de nuli-dade ou anulação dos atos lesivos dopatrimônio da União, dos Estados ou dosMunicípios.”

Cabe acrescentar que na ConstituiçãoImperial de 1824, em seu art. 157, havia a dispo-sição que possibilitava a propositura de açãopopular em face de atos de juízes de direito e

oficiais de justiça, nos casos de suborno, peita,peculato e concussão, que poderia ser intentadadentro de ano e dia, pelo próprio queixoso ouqualquer do povo.

A Constituição de 1937 foi omissa quanto àação popular; por outro lado, o dispositivo legalfoi reeditado nas Constituições de 1946 (art. 141,§ 38), 1967 (art. 150, § 31) e na Emenda de 1969(art. 153, § 31), sendo que, na Constituição queresultou dessa Emenda, a ação popular foiprevista da seguinte maneira: “Qualquercidadão será parte legítima para propor açãopopular que vise anular atos lesivos ao patri-mônio de entidades públicas”. Além disso, emdecorrência da repercussão social do instituto,o legislador ordinário, através da Lei nº 4.717de 29 de junho de 1965, regulamentou a açãopopular, sendo tal lei recepcionada nos suces-sivos textos constitucionais.

Acrescente-se que a lei acima foi alteradapela Lei nº 6.513 de 20 de dezembro de 1977,que passou a considerar como elementos inte-grantes do conceito de patrimônio público, parao fim de constituir objeto de ação popular, “osbens e direitos de valor econômico, artístico,estético, histórico ou turístico.”

Ressalte-se que a Carta Magna de 1988 am-pliou enormemente o quadro relativo ao objetoda ação popular, vez que em seu art. 5º, LXXIII,assim determina:

“qualquer cidadão é parte legítima parapropor ação popular que vise a anularato lesivo ao patrimônio público ou deentidade de que o Estado participe, àmoralidade administrativa, ao meio ambi-ente e ao patrimônio histórico e cultural,ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônusda sucumbência;”

Trata-se, portanto, de instrumento valiosode que dispõe o cidadão para o seu legítimodireito de controlar e fiscalizar a AdministraçãoPública em todos os seus níveis.

3.5. A ação civil pública

O objeto da ação civil pública situa-se numazona de confluência com a ação popular, vezque o art. 1º da Lei nº 7.347 de 24 de julho de1985, que regulamenta a referida ação, determinaque se regem pelas disposições da citada lei,sem prejuízo da ação popular, as ações deresponsabilidade por danos causados: I - aomeio ambiente; II - ao consumidor; III - a bens e26 LIMA, A. M. Revista do IAP, v. 13, p. 50-51.

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direitos de valor artístico, estético, histórico,turístico e paisagístico; IV - a qualquer outrointeresse difuso ou coletivo.

Além disso, o art. 129, III, da CF/88, refere-se à ação civil pública ao tratar da competênciado Ministério Público para promover o inquéritoe a ação civil pública para a proteção do patri-mônio público e social, na forma da lei. Ressalte-se que o art. 5º da Lei nº 7.347 amplia a legitimi-dade ativa da referida ação à autarquia, empresapública, fundação, sociedade de economia mistae a associação que esteja constituída há pelomenos um ano e que tenha finalidade relativaao disposto no art. 1º, especialmente aquelasrelativas à defesa dos interesses difusos ecoletivos.

Desnecessário, portanto, discorrermos maissobre a ação civil pública, tendo em vista odisposto no art. 1º da lei que a regulamenta,acima citado, bem como a sua semelhança coma ação popular, ressaltando-se que a sua utili-zação é de extrema relevância para a tutela dosinteresses da comunidade.

3.6. O mandado de injunção

A omissão legislativa tem sido uma cons-tante na história brasileira, seja pela ineficiênciadas Casas Legislativas em editar lei integradorade um comando constitucional, seja pelaomissão do Poder Executivo, caracterizada pelanão-expedição de regulamentos de execução deleis, segundo o ensinamento de Anna Cândidada Cunha Ferraz.27

Dos dois últimos casos referidos, a doutrinajá tem cuidado, em alguma medida, e há inúmerosprecedentes jurisprudenciais em que taisdisfunções foram construtivamente remediadas;deste modo, a criação de um instrumentoprocessual que equacionasse essa omissão dolegislador tornava-se imperiosa, pois não haviaentre nós um remédio eficaz para neutralizar ainércia inconstitucional do legislador.

Na República Federal da Alemanha, teveinício um ciclo evolutivo de injunção do PoderJudiciário sobre o Legislativo, nos casos emque sua inércia obstaculizava o exercício dedireitos fundamentais assegurados constitu-cionalmente.

É importante demarcar o conceito de

omissão legislativa, in casu, pois a simples inér-cia, o mero não fazer por parte do legislador,não significa que se esteja diante de uma omis-são inconstitucional, já que esta se configuracom o descumprimento de um mandamentoconstitucional no sentido de que atue positiva-mente, criando uma norma legal. Assim, a in-constitucionalidade resultará, portanto, de umcomportamento contrastante com uma obriga-ção jurídica de conteúdo positivo.

Em decorrência da discricionariedade dolegislador acerca da edição ou não de uma normajurídica, vez que este tem a faculdade de legislar,e não o dever, cabe a tutela do direito do cidadãonos casos em que a Lei Maior impõe ao órgãolegislativo o dever de editar norma regulamen-tadora de determinado preceito constitucional.

Deste modo, o legislador constituinte de1988 insculpiu na Carta Magna, em seu art. 5º,LXXI, o mandado de injunção, nos seguintestermos:

“Conceder-se-á mandado de injunçãosempre que a falta de norma regulamen-tadora torne inviável o exercício dosdireitos e liberdades constitucionais e dasprerrogativas inerentes à nacionalidade,à soberania e à cidadania”.

A primeira questão que se pôs em relaçãoao mandado de injunção foi determinar se o novoremédio seria imediatamente aplicável ou sedependeria, para tornar-se efetivo, de normaregulamentadora nos seus aspectos proces-suais, tendo inclusive defensores da infeliz tesede que tal instituto não seria auto-aplicável,conforme entendimento de Manoel GonçalvesFerreira Filho28 e do Procurador da RepúblicaInocêncio Mártires Coelho29. Felizmente,prevaleceu, tanto na doutrina quanto na juris-prudência, a tese oposta, considerando-se onovo writ como garantia prontamente utilizável,regendo-se, conforme o caso, pelo procedi-mento do mandado de segurança (Lei nº 1.533/51) e pelo CPC.

Quanto aos pressupostos do mandado deinjunção, defendemos a tese de que: a) é neces-sária a existência de uma indicação de um direitoou liberdade constitucional, ou de prerrogativainerente à nacionalidade, à soberania ou à

27 FERRAZ, A. C. da C. Inconstitucionalidadepor Omissão : Uma Proposta para a Constituinte,Revista de Informação Legislativa, Brasília, v.23, n.89, p. 49-62, 1986.

28 FERREIRA FILHO, M. G. Notas sobre oMandado de Injunção. Repertório IOB de Jurispru-dência, São Paulo, p. 297, 2ª quinzena de out.1988.

29 COELHO, I. M. Mandado de Injunção 107-3-DF. Cuja conclusão, no particular, foi aprovadapelo Procurador-Geral da República.

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cidadania, cujo exercício esteja inviabilizado; e,b) haja ausência de norma regulamentadora dodireito, liberdade ou prerrogativa demandada.

Por fim, é importante salientar a diferençasutil entre o mandado de injunção e a ação deinconstitucionalidade. O Ministro Carlos Márioda Silva Velloso30 ensina que na ação deinconstitucionalidade por omissão há ocontencioso jurisdicional abstrato, de compe-tência exclusiva do STF, de modo que a matériaé versada apenas em abstrato; declarada ainconstitucionalidade por omissão, será dadaciência ao Poder competente para adoção dasprovidências necessárias e, em se tratando deórgão administrativo, para fazê-lo no prazo de30 (trinta) dias (CF, art. 103, § 2º).

No mandado de injunção, reconhecendoo juiz ou tribunal que o direito que a Consti-tuição concede é ineficaz ou inviável em razãoda ausência de norma infraconstitucional,fará ele, juiz ou tribunal, por força do própriomandado de injunção, a integração do direitoà ordem jurídica, assim tornando-o eficaz eexercitável.

Inobstante a intenção do constituinteoriginário, observa-se que a jurisprudênciado Tribunal de Justiça tem verificado a utili-zação desvirtuada do mandado de injunção,vez que tem sido usado para a defesa deinteresses corporativos, reivindicandoisonomia salarial através do referido instru-mento processual, cujo objeto é fundamentalpara a criação de uma consciência rei-vindicatória de direitos fundamentais peran-te o Poder Judiciário, inobstante a inércialegislativa de nossos parlamentares.

3.7. O direito de petiçãoCriado na Inglaterra durante a Idade Média,

o right of petition resultou das revoluçõesinglesas de 1628, especialmente, embora já insi-nuado na Magna Carta de 1215, consolidando-se com o Bill of Rights da Revolução de 1689.Inicialmente consistia em um simples direito doGrande Conselho do Reino, depois o Parla-mento, pedir ao Rei a sanção das leis. Emboranão tendo sido previsto na Declaração francesade 1789, veio a constar, enfim, das Constituiçõesfrancesas de 1791 (§ 3º do Título I): “La libertéd’adresser aux autorités constituées despetitions signées individuellement”; e de 1793

(Declaração de Direitos, art. 32): “Le droit deprésenter des pétitions aux dépositaires del’autorité publique ne peut, en aucun cas, êtreinterdit, suspendu ni limité.”

Para Joaquim G. Canotilho, o direito depetição é um direito político que tanto se podedirigir à defesa dos direitos pessoais (queixa,reclamação) como à defesa da constituição, dasleis ou do interesse geral. Pode exercer-se indi-vidual ou coletivamente perante quaisquer ór-gãos de soberania ou autoridade.

Além disso, a invocação da atenção dospoderes públicos sobre uma questão ousituação pode servir para denunciar uma lesãoconcreta e pedir uma reorientação da situação,bem como solicitar uma modificação do direitoem vigor no sentido mais favorável à liberdade.Tal direito está consignado no art. 5º, XXXIV,letra a, da Carta Política, onde há, inclusive, umadimensão coletiva consistente na busca ou de-fesa de direitos ou interesses gerais da coletivi-dade, e vinha ligado ao direito de representação,não sendo este repetido, vez que se insere noobjeto do direito de petição.

Tal direito se reveste de dois aspectos: podeser uma queixa, uma reclamação, e então apare-ce como um recurso não-contencioso (não-jurisdicional) formulado perante as autoridadesrepresentativas; por outro lado, pode ser amanifestação da liberdade de opinião e revestir-se do caráter de uma informação ou de umaaspiração dirigida a certas autoridades.

Pode ser utilizado por qualquer pessoa físicaou por pessoa jurídica; por indivíduos ou porgrupos de indivíduos; por nacionais ou por es-trangeiros, não podendo ser formulado pelasforças militares, como tal, o que não impede,todavia, reconhecer aos membros das ForçasArmadas ou das polícias militares o direito in-dividual de petição, desde que observadas asregras de hierarquia e disciplina, não podendo aautoridade a quem é dirigido escusar, pronunciar-se sobre a petição, quer para acolhê-la quer paradesacolhê-la como a devida motivação, da qualpossibilita a impetração de mandado de segu-rança. Ressalte-se, ainda, que, quando a petiçãovisar corrigir abuso, cabe a abertura de processode responsabilidade administrativa, civil e penal,na forma da Lei nº 4.898/65.

4. ConclusãoAcreditamos que, resumidamente, discor-

remos sobre a origem e a evolução dos direitoshumanos, bem como sobre a interação entre oDireito Internacional e o Direito Interno na

30 VELLOSO C. M. da S. As Novas GarantiasConstitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo,v. 78, n. 644, p.7-17, jun. 1989.

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garantia dos direitos humanos, com ênfase noart. 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988que recepciona para o ordenamento jurídicobrasileiro os direitos fundamentais dos tratadosratificados pelo Brasil.

Além disso, tratamos da política de direitoshumanos do Governo e das propostas do IFórum Nacional de Comissões Legislativas deDireitos Humanos.

Por fim, lecionamos sobre a origem, a evolu-ção e aplicação dos instrumentos processuaisconstitucionais de garantia dos direitoshumanos no Brasil.

Assim esperamos ter contribuído para adifusão do conhecimento referente à eficácia eefetividade dos direitos humanos, bem comosobre a situação atual das medidas que vêmsendo tomadas pelo Governo brasileiro, PoderLegislativo e entidades da sociedade civil quemilitam em setor tão relevante para a conso-lidação da cidadania no Brasil.

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Luiz Almeida Miranda é Bacharel em Direito eem Ciências Contábeis; Assessor Legislativo daCâmara dos Deputados.

1 BERGAMO, Mônica. Executados, torturadose humilhados. Veja, São Paulo, v. 28, n. 36, p. 38-41,set. 1995.

Violência no campo

LUIZ ALMEIDA MIRANDA

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. A violência e o Estado deDireito. 3. Conceito de violência rural. 4. As causasda violência. 5. O poder público e a violência. 6. Ostrabalhadores sem terra. 7. A violência aos direitostrabalhistas. 8. Violência física. 9. Os “brasiguaios”e os “brasilianos”. 10. Conclusão e sugestões.

1. IntroduçãoA violência no meio rural é um fenômeno

social que se faz presente no Brasil desde ostempos da colonização. Foi, e ainda é, conse-qüência de um injusto modelo de dominação.No período colonial, a violência rural realizava-se principalmente contra populações indígenas,mediante o seu aprisionamento, maus-tratos ea sua escravização. Na seqüência, oficializou-se o trabalho escravo. Uma multidão de negrosaqui aportou, conduzidos nos tormentososnavios negreiros. Negociados como mercadoria,eram propriedade dos Senhores que tinhamsobre eles absoluto poder. Abolida a escravidão,os trabalhadores “livres” passaram por novasformas de violência, desde o cerceamento deseus direitos individuais até às agressões físicase assassinatos.

Hoje, a violência no campo está disseminadapor todo o território nacional. A imprensa estásempre a noticiar fatos inimagináveis para estefinal de século, como o conflito na FazendaSanta Elina, em Corumbiara, município deRondônia, a 750 quilômetros de Porto Velho,que resultou em 12 mortos, nove desapareci-dos, e mais de uma centena de feridos.1

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O presente estudo tem por finalidade traçarum quadro panorâmico e atual da violência pra-ticada no meio rural. Partindo do pensamentocontratualista, em que se fundamentaram osEstados modernos, investiga-se, em seguida, aprática da violência no meio rural brasileiro esuas principais manifestações. Finalmente, apre-sentam-se subsídios para a ação parlamentarno combate a este terrível mal que, infelizmente,ainda perdura em nosso país.

2. A violência e o Estado de DireitoPara a compreensão do comportamento do

homem moderno em face do fenômeno da vio-lência, é importante investigar o pensamentocontratualista de autores clássicos comoThomas Hobbes e Rousseau. Segundo estesfilósofos, a origem do Estado ou da sociedadeestá num contrato: os homens viveriam, natu-ralmente, sem poder e sem organização – quesomente surgiriam depois de um pacto firmadopor eles, estabelecendo as regras de convíviosocial e de subordinação política. Segundo aspalavras de Hobbes,

“na natureza do homem encontramos trêscausas principais de discórdia. Primeiro,a competição; segundo, a desconfiança;e terceiro, a glória. A primeira leva oshomens a atacar os outros tendo em vis-ta o lucro; a segunda, a segurança; e aterceira, a reputação. Os primeiros usama violência para se tornarem senhores daspessoas, mulheres, filhos e rebanhos dosoutros homens; os segundos, para de-fendê-los; e os terceiros, por ninharias,como uma palavra, um sorriso, uma dife-rença de opinião, e qualquer outro sinalde desprezo, quer seja diretamente diri-gido a suas pessoas, quer indiretamentea seus parentes, seus amigos, sua na-ção, sua profissão ou seu nome. Com istose torna manifesto que, durante o tempoem que os homens vivem sem um podercomum capaz de os manter a todos emrespeito, eles se encontram naquela con-dição a que se chama guerra; e uma guerraque é de todos os homens contra todosos homens.”2

Desta forma, por razão de segurança, oshomens instituíram governos e a eles sesubmeteram em troca de segurança e ordem.

A teoria contratualista, apregoada nos séculosXVI a XIX, influiu decisivamente na formaçãodos Estados modernos. Seria, então, o Estadouma entidade destinada a regular, em todos osseus aspectos, a vida social de dada comunida-de. A constituição do Estado, considerada sualei fundamental, seria, então, a organização dosseus elementos essenciais: um sistema de nor-mas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regu-la a forma do Estado, a forma de governo, o modode aquisição e o exercício do poder, o estabeleci-mento de seus órgãos e os limites de sua ação.3

Desta forma, o Estado é dotado de poderpara impor sua decisão sobre todos os gover-nados, cabendo uma sanção em caso dedescumprimento das normas estabelecidas. Porsua vez, ao cidadão é garantido o direito desolicitar efetiva providência do Estado, quandosentir ameaçados seus próprios interesses.

O Brasil de hoje é um Estado democráticode direito, e o seu diploma constitucional temcomo princípios fundamentais, entre outros, acidadania, a dignidade da pessoa humana e osvalores sociais do trabalho e da livre iniciativa.A Constituição Federal, promulgada em 1988, aConstituição Cidadã, na expressão de UlissesGuimarães, aprimorou a ordem social em vigorno Brasil. Estabeleceu princípios fundamentais,direitos e garantias individuais e coletivos, assimcomo direitos sociais dos trabalhadores. Oordenamento jurídico brasileiro – constituídopela Lei Maior e por todo o conjunto de leiscomplementares e ordinárias, decretos e porta-rias – garante a igualdade entre os brasileiros,proíbe a prática de qualquer ato que possa des-pojar alguém de quaisquer de seus direitos, ouque, de alguma forma, venha a constituir-se emviolência aos seus direitos individuais.

Enfim, a convivência social pacífica implicaa monopolização da violência pelo Estado, pois,no dizer de Geymonat,

“este consiste em um poder superior aosindivíduos, dotado da capacidade de re-primir e impedir o recurso à violência in-dividual, capaz, portanto, de pôr umtérmino ao estado de guerra e de instaurara paz”.4

2 RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo ea esperança. In: WEFFORT, Francisco C.(Org.)Os Clássicos da Política. v. 1, São Paulo: Ática,1989. p.53-56.

3 SILVA, José Afonso da. Curso de DireitoConstitucional Positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros,1993. p. 40.

4 GEYMONAT, Ludovico. Historia de laFilosofia y de la Ciencia. Barcelona: Crítica, 1985,Tomo II, cap. 10, item 4, p.174. Citado por: SANTOS,José Vicente Tavares dos. Violência no Campo: Odilaceramento da cidadania. Revista Reforma Agrária .Campinas. v. 22, p. 8, jan./abr. 1992.

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3. Conceito de violência ruralPretende-se aqui abordar a violência prati-

cada no meio rural e que tenha como origem osconflitos de interesses, gerados nas atividadesagrícolas e em outras atividades conexas. Trata-se, assim, de um conflito social em que o grupomais fraco é constituído de trabalhadores ecamponeses desassistidos. Para melhor com-preensão desse fenômeno, é imprescindível umaampla visão da realidade rural brasileira.

No período da colonização portuguesa, aspopulações nativas já sofriam as investidas dosaventureiros daquela época. Adotou-se aescravidão, com todos os seus malefícios. E,desde então, desenvolveu-se no País uma prá-tica de domínio denominada coronelismo, pelaqual os poderosos usam a força e a violênciapara impor o seu domínio. O malsinado corone-lismo envolve um complexo de característicasda política municipal, onde o líder local, em ge-ral fazendeiro ou comerciante de renome,comanda um lote considerável de votos decabresto. A força eleitoral empresta-lhe prestí-gio político, e, por força de sua influência, eleresume em sua pessoa importantes instituiçõessociais, substituindo eventualmente o poder pú-blico. Exerce, assim, uma ampla jurisdição sobreseus dependentes, compondo rixas e desaven-ças e proferindo, às vezes, verdadeiros arbitra-mentos5. Concebeu-se, assim, uma tétrica cul-tura no País: a impostura. Formou-se, portanto,um ambiente propício para o aviltamento dacidadania, para a violação dos direitos indivi-duais e coletivos, e para a prática de ameaças,agressões físicas, como também para a torturae assassinatos.

A violência realizada no campo apresenta-se de várias formas. Podemos reuni-las em doisgrandes grupos, quais sejam: violência física eviolação de direitos. O primeiro grupo compre-ende o mau-trato, a ameaça, seqüestro, tortu-ras, atentados, assassinatos, as milícias priva-das, a pistolagem e a repressão policial. Estãoincluídos no segundo grupo o desrespeito aosdireitos e garantias individuais, transgressõesàs normas trabalhistas, a prática do trabalhoescravo, o trabalho infantil e a grilagem. Damesma forma constituem-se violência ao cam-ponês a ausência e omissão do poder públicono meio rural, a concentração fundiária e oconflito pela posse da terra, a pobreza e a misé-ria. Estas são as manifestações mais conhecidas.

No entanto, considera-se como violência todae qualquer agressão ao direito de outrem. Todoato assim praticado virá sempre despojar alguémde algum bem, material ou não. Alinham-se aqui,além dos crimes contra a vida, contra a integri-dade física e a dignidade de cada ser humano,todo ato que agrida os direitos à igualdade, àliberdade, à saúde, à segurança, à educação, aotrabalho e à justa remuneração, entre outros.

Seria oportuno indagar: qual a diferença,enfim, entre a violência urbana e a violênciarural? Embora estatisticamente a violênciaurbana tenha uma incidência maior do que aviolência rural, a sua essência é a mesma. Pode-mos, assim, asseverar que a tipologia criminalnão se altera em função do local em que o ato épraticado. A diferença está, na realidade, na suamotivação: enquanto o crime urbano tem as maisdiversas causas, no campo a violência tem suaorigem na prática do poder e do domínio. O querealmente distingue a violência do campo daviolência urbana é a sua correlação com os con-flitos gerados na atividade rural. Isto porque,enquanto na violência urbana o agente ativo é,na maioria das vezes, o homem comum, movidopor razões as mais diversas, na violência rural oagente ativo, geralmente o proprietário de ter-ras, é integrante de um grupo social dominante,e o exercício do poder e da dominação é a suaúnica razão para agir, por si ou por seu mandado.

4. As causas da violênciaO Brasil vem enfrentando problemas eco-

nômicos crônicos, e, embora o chamado PlanoReal tenha proporcionado um certo alívio nastaxas de inflação, a recessão já não é mais umaameaça, mas uma realidade. A população sofreo efeito causado pelas medidas de contençãoadotadas pelo governo, e estas terminam porrefletir sobre as condições de vida da população.Em conseqüência destes permanentes desequi-líbrios e da política oficial vigente, as dificul-dades da população menos favorecida aumen-tam, gerando grandes frustrações.

No meio rural, além das dificuldades impos-tas pelas normas de contenção da economia, asituação se agrava com a concentração progres-siva das propriedades rurais. De acordo com orelatório final da CPI (Comissão Parlamentar deInquérito) destinada a apurar as origens, cau-sas e conseqüências da violência no campobrasileiro, em 1989 estavam cadastrados3.094.034 minifúndios (64% dos imóveis cadas-trados), com área média de 17,4 hectares, perfa-zendo uma área de 53.644.750 hectares,

5 LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, enxada evoto. São Paulo: Alfa-Omega, 1975. p. 23.

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equivalente a 9,7% da área cadastrada. Por outrolado, os imóveis classificados como latifúndiospor exploração somavam um total de 1.167.412unidades cadastradas (24,5% dos imóveis ca-dastrados), perfazendo um total de 355.657.320hectares, equivalente a 64,4% da área geralcadastrada. Tais imóveis tinham uma área mé-dia de 304,6 hectares.6 E, segundo o DeputadoAlcides Modesto, em Relatório Final Aditivoda CPI da Violência no Campo,

“existem 275 latifúndios classificados‘por extensão’ que controlam sozinhoscerca de 37 milhões de hectares, com umamédia de 135.640 hectares por proprieda-de. Os 20 maiores latifúndios do país con-trolam em torno de 17 milhões de hecta-res. Segundo estatísticas oficiais, cercade 45% das terras nas mãos de latifun-diários são agricultáveis, mas completa-mente abandonadas, sem exploraçãoalguma, e hoje representam mais de 160milhões de hectares.”7

Estes números demonstram a gravidade e agrandeza da concentração fundiária.

Nas palavras de Francisco Graziano,“a historiografia consagrou o latifúndiocomo o maior dos males de nossa forma-ção social. Originário do latim, significan-do os grandes domínios privados da aris-tocracia na Roma Antiga, o conceito delatifúndio vincula-se à idéia de imensidão,da terra improdutiva, do atraso, do traba-lho malpago, do coronel, do conflito, damonocultura, do subdesenvolvimento. Éa grande propriedade rural, característicados países latino-americanos, terreno ondea oligarquia agrária tradicional ostenta suadominação política.”8

Há um consenso geral de que a grande cau-sa dos conflitos no campo é a estrutura agráriaconcentradora, pela qual um pequeno grupo deempresários rurais detém a propriedade dasmelhores e mais bem localizadas glebas. A con-centração da propriedade rural na mão de umseleto grupo provoca o agravamento da crise

agrária, gera excedentes populacionais e con-duz à luta pela posse da terra. Desalojados, oumorando em glebas mínimas, os camponeses,não tendo onde plantar o suficiente para seusustento, engrossam as fileiras dos cadastradoscomo “sem-terra”, posseiros ou invasores. E,desta forma, todo este processo de desequilí-brio social leva ao agravamento da pobreza eao aumento do fluxo migratório para as grandescidades.

Acrescente-se ao problema fundiário a mal-conduzida política agrícola do governo, pelaqual, no dizer de Alberto Passos Guimarães, agrande propriedade e a agricultura de expor-tação recebem estímulos, incentivos, favoresconsideravelmente mais vultosos do que apequena agropecuária e a agricultura para omercado interno.9

A concentração fundiária e a falta de umapolítica de apoio oficial à pequena propriedadefamiliar são certamente os principais elementosalimentadores da situação de desequilíbriosocial e econômico no meio rural brasileiro.Entendemos, assim, que o acesso à proprieda-de da terra, somado a uma eficiente política deapoio oficial, é, sem dúvida, o principal instru-mento para o combate à injustiça social existenteno campo.

A sociedade brasileira, pelas dificuldadesde ordem econômica e social, está repleta deobstáculos que lhe provocam grande frustra-ção. Nesse contexto, determinam-se as causaspara a acentuação da violência entre nós. Aineficácia do Estado para garantir emprego, edu-cação, saúde, lazer e, principalmente, segurançaprovocou um acúmulo de frustrações que des-truíram a convicção no ideal de respeito àsnormas e submissão à tutela do Estado.

5. O poder público e a violênciaAo lado das causas sociais e econômicas

provocadas, em parte, por uma política públicamal-orientada, não se pode deixar de apontar aomissão, em alguns casos, e a ação, em outros,das instituições oficiais.

A omissão ou má atuação do poder públi-co, se não é a causa imediata da violência, é,certamente, uma fonte alimentadora. No queconcerne, por exemplo, às terras devolutas, aomissão do Estado em discriminá-las permiteque sua ocupação se torne causa de um sem-número de conflitos, em que são partes

6 Projeto de Resolução nº 85, de 1991, (CPI daViolência no Campo), Diário do CongressoNacional, 19 maio, 1992. Seção I, Suplemento ao nº69, p. 5.

7 Brasil. Congresso. Câmara dos Deputados.Relatório Final Aditivo da CPI da violência no campo.Brasília, Diário do Congresso Nacional, 19 maio,1992. Suplemento, p. 12.

8 GRAZIANO NETO, Francisco. A Tragédiada Terra. Jaboticabal,SP: Iglu, 1991. p.27.

9 GUIMARÃES, Alberto Passos. A Crise Agrá-ria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p.331.

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posseiros, invasores, grileiros e falsificadoresde títulos.

Há, ainda, uma forma de violência que é pra-ticada pelo Estado: esta expressa-se no desca-so com que são tratados os problemas e inte-resses do homem do campo. O coronelismoainda está presente no meio rural, a autoridadeoficial caminha pari passu com os interessesdos poderosos fazendeiros locais. Vejamos oexemplo da atuação da polícia, cuja função é,por lei, manter a ordem e dar segurança à popu-lação. Sua missão, nos casos de cumprimentode uma liminar em ações possessórias, é agirnos limites da lei. No entanto, a polícia, além depraticar excessos, fecha os olhos diante dosabusos praticados pelos proprietários ou seuscapatazes. Recente despejo de “sem-terras”, naFazenda Santa Elina, em Corumbiara-RO, queterminou em tragédia, é um triste exemplo. Ojornalista Márcio Aith, da Gazeta Mercantil,em reportagem sobre esses fatos, relata que:

“A operação foi iniciada na madrugadada última quarta-feira, com ‘sucesso’. Em-bora em menor número do que se imagina-va, o incidente provocou quase um terçodas 34 mortes ocorridas em conflitos porterra em todo o País no ano passado. Istosem contar os 60 feridos, alguns a bala eoutros visivelmente espancados.”10

Mas, não se pode culpar somente a polícia.Outros órgãos oficiais, responsáveis pelo cum-primento dos mandamentos legais, pecam poromissão. É o caso da atuação dos agentes fis-cais do Ministério do Trabalho, que, por medoou conivência, nem sempre autuam os infratoresdas leis trabalhistas. Segundo publicação daComissão Pastoral da Terra sobre trabalhoescravo no Brasil, as ações fiscalizadoras desseórgão federal variam de um estado para outro,demonstrando a heterogeneidade de condutados seus funcionários. Numa citação sobre otrabalho desenvolvido em alguns Estados, cons-ta, por exemplo, que, enquanto em Minas Geraisa DRT desenvolveu um trabalho conjunto coma FETAEMG (Federação dos Trabalhadores naAgricultura) e fiscalizou cerca de 110 estabele-cimentos, lavrando aproximadamente 125 autosde infração, a DRT do Pará concluiu pela ine-xistência de trabalho escravo em todos os 15estabelecimentos fiscalizados em 1993.11

Por outro lado, existem inúmeras denúnciasde casos em que as autoridades não dão omesmo tratamento para as partes envolvidasem conflito. Enquanto agem com todo o rigorcontra os trabalhadores e camponeses, são,inexplicavelmente, condescendentes com ospoderosos coronéis e fazendeiros envolvidos.

Aliás, levantamento realizado pelo Núcleode Estudos da Violência (NEV)12 da Univer-sidade de São Paulo demonstra que, de um to-tal de 923 casos de violações de direitos ocor-ridos entre 1976 e 1991 na zona rural do Brasil,apenas 515 chegaram, à época, ao conhecimentodo Estado. Dos delitos denunciados, somente291 (31,5% do total) receberam algum tipo deencaminhamento, nem sempre satisfatório. Aseventuais punições recaíram, proporcio-nalmente, com maior freqüência, sobre lavrado-res e posseiros, favorecendo proprietários deterra e pistoleiros. O levantamento indica aindaque lavradores, posseiros e tratoristas corres-pondem a 3,9% dos agentes causadores doscrimes, mas detêm 13,8% do total de instaura-ções de processos. Proprietários de terras,pistoleiros, gatos (agenciadores de mão-de-obra) e empreiteiros são apontados como fon-tes em 61% dos delitos. Mas o percentual deprocessos contra essas categorias profissio-nais é de 35%.13 (vide quadro demonstrativo)

Sobre a impunidade reinante no meio rural,o jornalista Jorge Antônio Barros, do Jornaldo Brasil, relata o seguinte:

“Pela primeira vez, a Comissão Pas-toral da Terra (CPT) do Maranhão realiza,em parceria com entidades internacionais,um projeto que pretende provar definiti-vamente que a Justiça em casos de vio-lência rural é relativa. Depende de quemfor o agressor. Se a vítima estiver do ladodos lavradores, é lenta. Só é rápida quan-do a alegação for legítima defesa: o agres-sor é rapidamente julgado e absolvido,como ocorreu com os assassinos dolavrador Pedro Mota de Souza, morto emCoroatá, em 18 de novembro de 1987.Coordenado pelo assessor jurídico daCPT do Maranhão, o advogado José doCarmo Siqueira, o projeto se chamaPesquisa e Acompanhamento JurídicoCriminal e abrange 129 dos 270 crimesde morte ocorridos entre 1964 e outubro

12 RYDLE, Carlos. Estudo revela omissão doEstado. O Estado de São Paulo, São Paulo, 20 jun.1993. p.31.

13 RYDLE, Carlos. Ob. cit.

10 AITH, Márcio. Um conflito com muitos res-ponsáveis. Gazeta Mercantil, 14 ago. 1995. p. A-1.

11 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA.Conflitos no Campo: Brasil 1994. Goiânia: Secreta-riado Nacional da CPT, 1995, p.29.

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de 1994 no Maranhão. Os 129 casos foramselecionados porque os coordenadoresacham que se pode chegar aos respon-sáveis pelos crimes ocorridos nos últi-mos 20 anos e que ainda não estão pres-critos. As 129 vítimas eram trabalhadoresrurais e seus aliados. Apenas três acusa-dos foram julgados.”14(nosso grifo)

Outrossim, veja-se que de 1964 a outubrode 1991 foram registrados 1.630 assassinatosde trabalhadores rurais, índios, advogados ereligiosos vinculados aos movimentos popula-res de luta pela terra. No entanto, foram reali-zados apenas 29 julgamentos e, destes, apenas13 resultaram em condenações.15

Todo esse processo acaba por reunirdesconfiança e frustração. A sensação deimpunidade, alimentada pelos ilícitos que nãoacarretam penalidades para o transgressor, podelevar o indivíduo a uma opção radical e perigosapela volta à tutela de seus próprios interesses.

Nas considerações preambulares do Rela-tório Final da CPI da “Pistolagem” consta:

“Convencido de que o Estado não écapaz de defender seu direito ameaçadoou contrariado e, ainda, seguro de queuma eventual atitude de sua parte visan-do a essa defesa, mesmo que usando deviolência, não sofrerá a reação represso-ra ou punitiva desse mesmo Estado im-potente, não é de estranhar que o cida-dão se deixe seduzir pela idéia de fazerjustiça com as próprias mãos.”16

Pesa, ainda, contra o Judiciário a crítica feitapelas entidades ligadas à causa agrária de queos juízes concedem facilmente liminares nasações possessórias propostas por proprietárioscontra lavradores que detêm a posse da terrapor trinta ou mais anos. A estratégia dosproprietários é fazer uso das possessórias, emdetrimento da ação mais apropriada que é areivindicatória, pois assim é possível a conces-são de liminar. O juiz, com base no princípio do

periculum in mora, concede a liminar, deixandoo julgamento do mérito para depois. A conse-qüência é que a execução destas liminares éfeita por oficiais de justiça e por um aparelhopolicial violento, ambos comprometidos com osinteresses dos latifundiários.

Por outro lado, segundo alguns críticos, oJudiciário vem adotando, em seus julgamentos,um critério legalista da propriedade, em detri-mento do preceito constitucional da funçãosocial. É importante que a função social da pro-priedade seja igualmente considerada, pois,desta forma, as sentenças seriam coerentes comos princípios constitucionais em vigor. Acon-tece que, nas faculdades de Direito, os futurosadvogados e juízes recebem uma formaçãoessencialmente civilista, pela qual se defende odireito quase absoluto da propriedade. Éfundamental que uma cadeira de Direito Agrárioseja obrigatória, para que sejam difundidos entreos futuros profissionais os conceitos sociaisque lhe são peculiares.

Desta forma, numa ação possessória quetivesse como objeto um imóvel rural, o PoderJudiciário deveria considerar as peculiaridadesjurídicas que envolvessem a questão agrária.Enquanto, em ação idêntica que tivesse comoobjeto um imóvel urbano, o Judiciário adotariaum critério essencialmente civilista, pelo qualseria considerado apenas o princípio dapropriedade.

Em verdade, o direito de propriedade vemsofrendo modificações conceituais desde oinício do século, quando foi promulgado nossoCódigo Civil. De lá para cá, o princípio da fun-ção social da propriedade vem ganhando força.A Constituição Federal vigente, em seu artigo5º, inciso XXIII, estabelece que “a propriedadeatenderá a sua função social”.

“Ademais” – escreve Domingos Dutra – “aLei de Introdução ao Código Civil, em seu arti-go 5º, orienta ao julgador que, ao aplicar a nor-ma ao caso em exame, sejam considerados osfins sociais a que ela se destina e as exigênciasdo bem comum, ou seja, o julgador não podeesquecer em suas decisões os aspectos e arepercussão social.”17

É necessário, pois, que os conflitos agrári-os sejam julgados por juízes de entrância espe-cial, com competência exclusiva para questõesagrárias, pois assim é que determina o art. 126da Constituição Federal.

14 BARROS, Jorge Antônio. Pesquisa vai provarimpunidade no campo. Jornal do Brasil, Rio deJaneiro, 27 nov. 1994. p. 16.

15 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA.Conflitos no Campo:1989. p.63. citado por SAN-TOS, José Vicente Tavares dos. Violência no Campo:O dilaceramento da cidadania. Reforma Agrária.Campinas. v. 22, n. 1. p. 7. jan./abr. 1992.

16 Brasil. Congresso. Câmara dos Deputados. CPIda pistolagem, Matadores de Aluguel. Brasília:Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações,1994. p.40.

17 DUTRA, Domingos. Poder Judiciário e aviolência no campo. Reforma Agrária, Campinas. v.22, n. 1. p. 133, jan./abr. 1992.

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6. Os trabalhadores sem terraNelson Ribeiro, ao referir-se ao problema

agrário, define o homem rural brasileiro daseguinte forma: “Proletário, sub-cidadão,destituído, marginalizado, peão, bóia-fria, es-cravo”. Estes são os qualificativos de gran-de parte dos camponeses que, segundo oautor, formam um contingente de sem-terras,que, não sendo absorvidos pelo meio urba-no, acampam em áreas públicas ou priva-das.18 Para o Movimento dos TrabalhadoresSem Terra – MST, os trabalhadores ruraissão: a) assalariados rurais que desejam maisdo que benefícios trabalhistas, que queremterra; b) parceiros, meeiros e arrendatários,que vivem de atividade agrícola em terra deterceiros e que pagam ao proprietário pelouso da terra com parcela da produção; bói-as-frias, empregados contratados por tarefa;proprietários rurais com área de até cincohectares – ou sete campos de futebol; filhosde proprietários rurais cujas famílias tenhamaté 30 hectares, sem condição de dividir apropriedade com os filhos.

Espalhadas pelo Brasil, existem, atualmente,4,8 milhões de famílias de agricultores espe-rando pela reforma agrária, que, nos últimos dezanos, assentou apenas 135 mil famílias. A omis-são do Estado em promover a reforma já perdu-ra por muitos anos, e, em face da inoperânciagovernamental, os conflitos agrários tendem aagravar-se, pois aumentaram progressivamenteas invasões de fazendas.

Segundo líderes do MST e da Comissão Pas-toral da Terra – CPT19, existem 31.400 famíliasenvolvidas em conflitos e acampadas em 199áreas, sendo que a maioria dos acampamentostêm mais de quatro anos. Os primeiros gruposde sem-terra surgiram em 1979. (vide gráficodemonstrativo)

A incidência de invasões é maior nos esta-dos do Nordeste, onde pelo menos 34 fazendasestão ocupadas. Segundo Gilberto Portes deOliveira, coordenador nacional do MST, a lutapela posse da terra “já matou mais de 1.700pessoas”.20

Entidades ligadas à defesa das propriedadesmovimentam-se para tentar deter as invasões,recorrendo ao confronto jurídico e, até mesmo,à defesa armada. Os proprietários entram naJustiça com ações possessórias de reintegraçãode posse. Diante da possibilidade, prevista noCódigo de Processo Civil, de medidas liminaresque visem a proteção de direitos ameaçados ouviolados, a elas recorrem para conseguir odespejo das famílias invasoras, antes do julga-mento do mérito, que é mais demorado. As limi-nares têm caráter provisório e não decidem aquem pertence o direito. A questão do méritoserá, então, julgada depois. Em geral, os juízesconcedem as liminares, cuja execução fica soba responsabilidade de oficiais de justiça e doaparelho policial. Estes despejos nem sempretêm um desfecho satisfatório. O resultado

“é quase sempre o mesmo: despejos vi-olentos com prisões, torturas, assassi-natos, destruição de casas e benspúblicos (colégios, igrejas, postos desaúde, etc.), destruição de plantaçõespermanentes e temporárias e utensíliosdomésticos, matança de animais, subtra-ção de bens e outras atrocidades.”21

Embora cause maior impacto na opiniãopública o noticiário sobre os conflitos proveni-entes de ocupações realizadas por integrantesdo Movimento Sem Terra, as violências contraos posseiros e suas famílias são praticadas qua-se na clandestinidade e constituem-se atos devandalismo e atrocidades da maior gravidade.

7. A violência aos direitos trabalhistasEntre as formas de violência no meio rural

merece especial destaque a violação dos direi-tos do trabalhador. Por falta de opção, nummercado de trabalho restrito, o agricultorsubmete-se às condições impostas pelos fazen-deiros locais. E, pior, em muitos casos recebesalário inferior ao mínimo legal. Em abril de 1992,a CPI da Violência no Campo informou que 1,3milhão de trabalhadores, no meio rural, nãorecebe nenhuma remuneração e 5,2 milhõesrecebem até um salário mínimo mensal.22

17 ago. 1995. p. 18.21 DUTRA, Domingos. Poder Judiciário e a

violência no campo. Reforma Agrária. Campinas,SP, v. 22, n. 1. p. 133, jan./abr. 1992.

22 Brasil. Congresso. Câmara dos Deputados.Relatório Final Aditivo da CPI da violência no campo,Diário do Congresso Nacional, Brasília, 19 maio,1992. Suplemento p.12.

18 RIBEIRO, Nelson de Figueiredo. Caminhadae esperança da reforma agrária. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1987. p. 29.

19 ALONSO, George. Sem-terra fogem a controlede entidade ligada ao PT e radicalizam as invasões.Folha de São Paulo, São Paulo, 24 set. 1995. p. 1-12.

20 ASSIS, Luciene de. Conflitos de terra atin-gem 86 fazendas. Correio Braziliense, Brasília,

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Numa situação de dependência e de contin-gência pela farta oferta de mão-de-obra, oagricultor não tem alternativa a não sersubmeter-se aos mandos e desmandos dopoderoso proprietário. À realidade da vida dotrabalhador rural está inerente o clima de pobrezae miséria, a prática da exploração absoluta dotrabalho e a negação dos seus direitos mais fun-damentais. Esta violência costumeira configura-se na dinâmica de dominação entre classes egrupos sociais, incorporada às relações dotrabalho desde o período escravocrata.

Ilustra a face triste do assalariado rural areportagem da Folha de São Paulo, de 10 dejulho de 1995 sob a legenda A lei da neces-sidade. Segundo a Folha, trabalhadores ruraisde uma destilaria, com sede no Estado doMaranhão e construída com recursos do BancoMundial, cortam cana-de-açúcar das 7h às 17he recebem em troca duas refeições por dia –uma pequena tigela com arroz, feijão e carne,servida na plantação. No final do mês, o custodas refeições e dos demais gastos na cantinaequivalem ao valor do salário de grande partedos trabalhadores, que, no final, não recebemnada.23

De modo geral, as reivindicações traba-lhistas não são vistas com bons olhos e osdireitos dos trabalhadores são permanentementedescumpridos. Os sindicatos rurais não têm anecessária autonomia e liberdade para gerir osinteresses de seus filiados. A justiça do traba-lho, embora tenha mecanismos operacionaismais dinâmicos do que as justiças cível e criminal,não consegue ser suficientemente eficaz noprocessamento das ações trabalhistas e não sefaz presente em todo o território nacional.Segundo a CPI da Violência, quando os traba-lhadores “querem fazer uma reclamação traba-lhista faltam varas de justiça do trabalho”.24

A fiscalização realizada pelos fiscais doMinistério do Trabalho tem dado poucos resul-tados pelo fato de que as extensões territoriaissão enormes e o número de fiscais é insuficiente.Existem multas previstas para as violações aosdireitos do trabalhador consubstanciadas emvários artigos da Consolidação das Leis doTrabalho – CLT. Entretanto, os valores das

multas são pouco significativos e, por isso, nãotêm o efeito inibidor desejado.

Alison Sutton, em seu livro TrabalhoEscravo, ao discorrer sobre o assunto, descreveque:

“Os fiscais que visitaram usinas deaçúcar em Mato Grosso em agosto de1991 informaram que, apesar das multasjá aplicadas em maio de 1991, a situaçãonão melhorara. De fato, a DestilariaCachoeira fora multada nove vezes entrejunho de 1990 e março de 1992, e mesmoassim trabalhadores de Alagoas e doCeará continuavam a ser enviados paralá, e a trabalhar em condições ilegais. Emagosto de 1992, um caso particularmentegrave de detenção de trabalhadores foidescoberto na usina de açúcar IndustrialMalvinas, em Bocaiúva, Minas Gerais,que fora multada por fiscais do trabalhono ano anterior.”25

Entretanto, entre as mais graves trans-gressões à dignidade do trabalhador rural estãoo trabalho infantil e o trabalho escravo, temasque trataremos em tópicos especiais, devido àsua relevância no contexto.

7.1. O trabalho rural infantilA Constituição Federal veda o trabalho do

menor de quatorze anos, “salvo na condição deaprendiz”. A partir desta idade até aos dezoitoanos, o trabalho do menor é permitido, mantida,no entanto, a sua proibição quando se tratar detrabalho noturno, perigoso ou insalubre. As-sim, é possível afirmar que o menor de quatorzeanos é um trabalhador fora da lei. A participaçãodo menor de idade no processo produtivo nãoé um fato novo. Secularmente utilizado no setoragrícola, o trabalho infantil está presenteprincipalmente nas propriedades rurais dereduzida base tecnológica. Tem como pano defundo a ajuda aos pais, sejam eles trabalhadoresassalariados, meeiros ou empreiteiros. Sob oargumento de que estão ajudando os pais, elesaram, adubam, plantam, limpam e fazem, enfim,todos os serviços típicos de adultos. A realidadeé que o agricultor, quando contratado, ofereceao patrão a força de trabalho de toda a família,inclusive dos filhos menores.

No entanto, os menores de quatorze anostrabalham sob o manto da clandestinidade, pois,sendo ilegal o seu trabalho, não são registrados

23 GUTKOSKI, Cris. A lei da necessidade:Comida é o salário de trabalhador no MA. Folha deSão Paulo, São Paulo, 10 jul. 1995. p.1-8.

24 Brasil. Congresso. Câmara dos Deputados.Relatório Final Aditivo da CPI da Violência noCampo. Diário do Congresso Nacional, Brasília, 19maio, 1992. Suplemento, p. 18.

25 SUTTON, Alison. Trabalho Escravo. SãoPaulo: Loyola. p. 125.

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como trabalhadores. Ou, quando registrados,figuram, na maioria das vezes, fraudulentamente,como aprendizes. Dados do Instituto Brasileirode Geografia e Estatística – IBGE indicam a exis-tência de 7,5 milhões de trabalhadores menoresno Brasil. Desses, três milhões têm de 10 a 14anos. Na área rural, 59,3% dos menores, entrecinco a dezessete anos, trabalham 40 horassemanais, sendo que a maioria não tem a carteirade trabalho assinada. Desses, 57,8% não sãoremunerados. Segundo a Confederação Nacio-nal dos Trabalhadores na Agricultura –CONTAG, 490 mil menores, de 10 a 14 anos,trabalham no campo brasileiro.26

Quando o menor é remunerado, o que é raro,podem ocorrer três hipóteses de relações detrabalho: a) assalariado registrado em carteira,em geral maior de 14 anos, quando o vínculo éformal; b) assalariado não registrado em carteira,remunerado mediante controle de ponto, nãosendo neste caso beneficiário da PrevidênciaSocial nem de outros direitos que lhe são asse-gurados por lei, quando o vínculo empregatícioé informal; c) indiretamente assalariado, medi-ante inclusão da remuneração do menor na folhade pagamento do pai, e com o consentimentodeste, quando não há um vínculo empregatício,e a remuneração pelo seu trabalho se traduz emum “agrado”, geralmente de valor inferior aoseu correspondente legal, funcionando comoum complemento da renda familiar.27

Impressionam as notícias veiculadas naimprensa sobre o trabalho infantil. Recente re-portagem do jornal Correio Braziliense, porexemplo, traz a público fantásticas informaçõessobre a produção de sisal, no interior da Bahia,onde crianças trabalham em média 12 horas pordia, e uma família precisa produzir 1,2 toneladade fibras para ganhar um salário mínimo. Odepoimento da menina Vaneice do Carmo, de 11anos, retrata bem a situação. Ela estende sisalno varal, trabalha das 7 h às 17 h, almoça fari-nha e um pedaço de charque: –”Não sei quantoeu ganho. O patrão acerta isso com minha mãe”.O periódico relata, ainda, a pior sorte do meninoAguinaldo Pereira de Jesus, de 11 anos, que, aexemplo de outros, perdeu o braço direito emuma máquina desfibradora de sisal, conhecida

como “Paraíba”.28

Segundo o coordenador da área de preven-ção de riscos e promoção de direitos doUNICEF, José Roberto Santoro, a maioria dasatividades, exercidas por menores, não exigemqualificação e não treinam para o futuro; assim,o trabalho precoce condena crianças e adoles-centes à morte civil. Quando se tornam adultas,essas crianças não têm lugar no mercado detrabalho.29

7.2. O trabalho escravo no campoJá não mais existe a escravidão nos moldes

do período colonial. As atuais técnicas dedomínio são diferentes daquelas anteriormentepraticadas. O que se vê, agora, é uma prática decompleta dominação sobre o trabalhador rural,mediante a utilização de métodos fraudulentosde endividamento contínuo, impedindo que elepossa retirar-se do emprego antes de quitar oseu débito. Preso pelos compromissos finan-ceiros, o empregado transforma-se numa vítimasubmissa. E o patrão, por sua vez, aproveita-sedesta situação para impor sua total dominação.Quando a propriedade rural está situada em lo-cal de difícil acesso, os trabalhadores ficamaprisionados, pois só podem retirar-se mediantea utilização de veículos da fazenda. Aquelesque tentam fugir são perseguidos pelos peões.

Em todos esses casos, a liberdade é supri-mida, e o trabalhador é posto sob absolutasujeição, numa condição análoga à de escravo.

O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 149,tipifica tal situação como crime, cuja pena é dedois a oito anos de reclusão. De acordo com adoutrina corrente, para a tipificação não se exigeque haja uma verdadeira escravidão, nos mol-des antigos. Contenta-se a lei com a completasubmissão do ofendido ao agente. O crime podeser praticado de vários modos, sendo maiscomum o uso de fraude, retenção de salários,ameaça ou violência.30 Segundo Damásio deJesus, o tipo penal não visa a uma situaçãojurídica, mas sim a um estado de fato. Não setrata de submeter alguém à escravidão, mas simà situação análoga, em que o agente transformaa vítima em pessoa totalmente submissa à sua

26 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA.Conflitos no Campo: Brasil 1994. Goiânia: Secreta-riado Nacional da CPT, 1995. p.23.

27 D’ALENCAR, Raimunda Silva. O menor decatorze anos e as formas de inserção como traba-lhador agrícola. Reforma Agrária. Campinas, v. 21.n. 2. p. 44, maio/ago. 1991.

28 COSIBRA exporta sisal cortado por meninosno interior da Bahia. Correio Braziliense, Brasília,20 set. 1994. p. 13.

29 UNICEF quer acabar com trabalho infantil.Correio Braziliense, Brasília, 19 set. 1994. p. 12.

30 DELMANTO, Celso. Código Penal Comen-tado. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1991. p.254.

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vontade, como se fosse escravo.31

Proprietários, administradores e empreiteirosde estabelecimentos que utilizam trabalhoescravo optam, muitas vezes, por aliciar traba-lhadores em lugares distantes das sedes dasempresas. Estes, por sua vez, sem serviço e semperspectivas de sobrevivência no local deorigem, iludidos pelas excelentes propostas quelhe são apresentadas pelos aliciadores – ou“gatos”, como são conhecidos –, emigram naesperança de dias melhores.

Fiscais do Ministério do Trabalho e inte-grantes do Grupo Especial de FiscalizaçãoMóvel, formado por representantes da socie-dade, constataram a existência de trabalhoescravo em diversas regiões do país. Os Estadosmais atingidos pelo trabalho forçado são MinasGerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul eMaranhão.32

Em Minas Gerais, por exemplo, em visita àscarvoarias localizadas no norte do Estado, nomês de agosto de 1995, os fiscais do Ministériodo Trabalho ouviram 325 trabalhadores e fize-ram 135 autuações. Foram constatadas váriasirregularidades, como falta de anotação emcarteira de trabalho, jornadas excessivas, faltade intervalos para descanso e repouso sema-nal, não-pagamento de salário, falta de equipa-mento de proteção individual, alojamentos ehabitações inadequadas, não-fornecimento deágua potável e transporte irregular em caminhãomovido a gás. Constatou-se que menores, entre14 e 18 anos, estavam trabalhando em ativi-dade insalubre, e apurou-se, também, o traba-lho de menores de 14 anos, o que é proibido.33

A Comissão Pastoral da Terra, ligada àConferência Nacional dos Bispos do Brasil –CNBB, municiada na maioria das vezes comdenúncias veiculadas na imprensa, publicaperiodicamente uma estatística e os númerosque lhe chegam ao conhecimento. Entretanto,as tentativas de fornecer cifras esbarram conti-nuamente em dificuldades, pois as ocorrênciasnem sempre são registradas.

Segundo a CPT, os números das vítimas detrabalho escravo no ano de 1994 indicam oagravamento do problema, apesar de todas asdenúncias feitas, inclusive em instâncias

internacionais. A quantidade de vítimas puloude 19.940, em 1993, para 25.193 em 1994. Esteaumento deve-se, principalmente, ao fato de tersido constatada a prática de trabalho escravonas carvoarias da região de Montes Claros, emMinas Gerais, envolvendo aproximadamente10.000 trabalhadores.34 (vide quadro compa-rativo)

Há de se acrescentar, no entanto, que, nointuito de suprir um vazio em nossa legislação,foram realizados esforços no sentido de coibira prática de trabalho escravo no país. Cite-se,por exemplo, a Instrução Normativa Intersecre-tarial nº 1, de 24 de março de 1994, que dispõesobre procedimentos da Inspeção do Trabalhona Área Rural e estabelece normas coercitivasda prática de trabalho escravo.

Premido pela opinião pública, o GovernoFederal vem manifestando preocupação comesta prática. O mesmo acontece no CongressoNacional, onde está tramitando mais de umaProposta de Emenda à Constituição (PEC), como objetivo de alterar as disposições do artigo243 – que pune com a expropriação, sem qual-quer indenização, as glebas em que seja cons-tatado o cultivo de plantas psicotrópicas –incluindo em seu caput as glebas em que seconstatem situações análogas à escravidão.

8. Violência físicaManifesta-se a violência rural, particular-

mente, nos conflitos pela posse da terra. Masesta não se constitui tão-somente de agressõesfísicas. Apresenta-se, sem dúvida, de váriasformas. Elizabete Perosa expõe, com precisão, overdadeiro dimensionamento desta prática:

“Em muitas vezes está impregnada nocotidiano dos camponeses ameaçados emanifesta-se de formas diferentes. Àsvezes é uma violência simbólica que pas-sa pela afirmação do poder do fazendeirofrente ao posseiro, ao agregado, ao mo-rador, que é freqüentemente obrigado atirar o chapéu na presença do fazendeiro,chamá-lo de doutor, e prestar-lhe honras.Essas diferenciações servem para mostraro verdadeiro lugar de cada personagem,ou seja, reafirma a inferioridade e subser-viência daquele camponês frente aodono, ou suposto dono, da terra. Outraforma de violência bastante presente

31 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 17. ed.São Paulo: Saraiva, 1995. v. 2. p.231.

32 Trabalho escravo dará punição. Jornal doBrasil, Rio de Janeiro, 7 set. 1995.

33 Ministério investiga trabalho escravo. Estadode Minas, Belo Horizonte, 12 ago. 1995. p.15.

34 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA.Conflitos no Campo: Brasil 1994. Goiânia: Secreta-riado Nacional da CPT, 1995. p. 23.

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neste processo é a violência material, quese expressa em atos desencadeadospelos latifundiários ou seus jagunços quevisam destruir as condições materiais deexistência e trabalho do camponês. Sãoatos de poluir regatos, interromper o fluxodos rios que banham a terra do camponêsou fechar-lhe as saídas e acesso àsestradas de circulação na área, a queimade suas roças e suas moradias.”35

A coação do agricultor ocorre medianteameaças e perseguição, ou se materializa porlesões corporais e assassinatos. A opressão,nestes casos, é exercida por ordem de proprie-tários, que contratam pistoleiros profissionais,organizados – ou não – em milícias privadas.Outrossim, a própria polícia, a pretexto de estarexecutando um mandado judicial de despejo,age com furor e selvageria e, em evidente abu-so de poder, agride, tortura e mata posseirossem-terra.

Os conflitos fundiários e os assassinatossão estatisticamente elevados: em 1985, foramregistrados 636 conflitos e 125 mortes; em 1986aconteceram 634 conflitos com 105 mortos; em1987, 582 conflitos e 109 mortes; em 1988, 621conflitos e 93 mortes; em 1989, 500 conflitos e56 mortes e em 1990, 401 conflitos e 75 assassi-natos;36 em 1991, 453 conflitos e 54 assas-sinatos; em 1992, 433 conflitos e 46 assassina-tos; em 1993, 545 conflitos e 52 assassinatos;em 1994, 485 conflitos e 47 assassinatos37.

Os menores são, também, vítimas da violên-cia rural. Entre 1980 e 1991, foram registrados100 assassinatos de crianças e adolescentes emconflitos de terras, em conseqüência de tiros,golpes de armas brancas, espancamentos e fogo.Incluam-se aí casos de abortos provocados porações violentas, crianças intoxicadas pelafumaça de casas incendiadas e vítimas deenfermidades mortais contraídas nas condiçõesinsalubres freqüentes nos processos de fugas.

Destes, 31 assassinatos tiveram pistoleiroscomo responsáveis. Em 19 casos estiverampresentes policiais militares.38

As tentativas de homicídios e as ameaçasde morte são prática comum no meio rural, nasáreas de conflito. Os dados divulgados pelaComissão Pastoral da Terra demonstram, inclu-sive, um crescimento estatístico dessas práticas.

Em 1994, entre os atos de violência contra apessoa, foram constatados 485 conflitos,308.619 pessoas envolvidas, 47 assassinatos,62 tentativas de assassinato, 212 ameaças demorte, 39 casos de tortura, 1.017 agressões físi-cas, 333 prisões, 151 casos de lesões corporais,5.567 ocorrências de terrorismo. Entre conflitospela posse da terra e violência contra a posse ea propriedade, foram registrados os seguintesdados: 379 conflitos, envolvendo 1.819.963 hec-tares e 47.179 famílias; 388 vítimas de expulsão;17.687 vítimas de despejo judicial; 13.182 víti-mas de ameaça de despejo; 4.535 vítimas deameaça de expulsão; 1.901 vítimas de destrui-ção de casa; 5.239 vítimas de destruição deroças; 1.685 vítimas de destruição de pertencese 1.118 casos de roubo.39(vide gráficos demons-trativos)

Os estados em que mais ocorreram confli-tos e assassinatos localizam-se nas regiõesNorte e Nordeste, com destaque para os Esta-dos da Bahia, Tocantins, Pará e Maranhão.

9. Os “brasiguaios” e os “brasilianos”Quando se fala em violência no campo, não

se pode deixar de mencionar a situação aflitivade brasileiros que sofrem violência e opressãoem países vizinhos. Os casos mais comuns têmcomo protagonistas os brasileiros que, à pro-cura de trabalho e sobrevivência, partiram parao Paraguai e a Bolívia.

São conhecidos como brasiguaios os brasi-leiros que migraram para o Paraguai, em buscade terras para plantar. Iniciada na década de 50,a transferência de cerca de quinhentos mil tra-balhadores rurais do sudoeste e oeste do Paranáteve como causa principal a grilagem, ainstalação de grandes empresas agroindustriaise a concentração fundiária na região. O povoa-mento da fronteira paraguaia por brasileirosocorreu em dois momentos: o primeiro entre os

35 PEROSA, Elizabete P. A violência no campo ea luta pela posse da terra no vale do Ribeira, SãoPaulo. Reforma Agrária, Campinas, v. 22, n. 1, p.26.jan./abr. 1992.

36 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA.Conflitos no Campo: Brasil 1990. Goiânia, 1991,p.44. citado por SANTOS, José Vicente Tavaresdos. Violência no Campo: O dilaceramento dacidadania. Reforma Agrária , Campinas, v. 22, n.1, p. 6. jan./abr. 1992.

37 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Con-flitos no Campo: Brasil 1994. Goiânia: SecretariadoNacional da CPT, 1995. p. 8.

38 PINASSI, Maria Orlanda. Menores: Vítimasda Terra e do Trabalho. Reforma Agrária, Campinas,v. 21, n. 2, p.72-73 maio/ago. 1991.

39 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA.Conflitos no Campo: Brasil 1994. Goiânia: Secreta-riado Nacional da CPT, 1995. p. 40-42.

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anos de 1950 e 1969, quando se deram emigra-ções de curta distância, e o segundo entre 1970e 1979, quando a emigração aumentou signifi-cativamente.

Cácia Cortêz expressa com particularrealismo esse fenômeno:

“Mesmo assim, o Brasil continuou aignorar a dura realidade de dezena demilhares de agricultores e suas famílias,exilados da história recente, banidos desuas terras pelo poder econômico e pelapolítica econômica e agrícola dos gover-nos pós-64. Em 1984, já eram 400 mil osbrasileiros que haviam transposto a fron-teira com o país vizinho, fugindo damarginalidade e buscando do outro ladoo que lhes continuavam negando aqui: odireito à terra e de continuarem produ-zindo como cidadãos nacionais.”40

Nos anos de 1980 a 1984, o processo demodernização da agricultura, que, antes, haviaocorrido no Brasil, atravessou as fronteiras einstalou-se nas terras paraguaias. E os agricul-tores que haviam “amansado” as terras foramnovamente molestados em suas posses. A ins-talação, naquela região, de empresas – muitasdelas pertencentes a brasileiros – colonizado-ras, madeireiras e agroindústrias, constituiu-senuma das principais causas da substituição daprodução de subsistência dos pequenos e mé-dios agricultores pela pecuária de grande portee pela monocultura mecanizada. Acrescente-seo fato de que os pequenos lavradores paraguai-os que trabalhavam na região foram, também,afastados pela concentração de terras em mãosde grupos empresariais.

“Os brasiguaios passaram a ser cada vezmais rejeitados pelos grandes proprietários,muitos deles brasileiros, que estão preferindoocupar fazendas com gado, montar lavourasmecanizadas e empregar mão-de-obra local. Osque conseguiram comprar um pedaço de terrasofrem a investida dos sem-terra nativos,concentrados principalmente na fronteira como Paraná.”41 Referindo-se aos brasiguaios, odiplomata José Martinez, lotado na embaixadado Paraguai em Brasília, admitia à Revista IstoÉ, que eles “já foram um tema, hoje são umproblema”. E, em 1991, o IBR – Instituto de Bem-estar Rural, órgão do governo paraguaio quetrata das questões fundiárias, reconhecia a

ocorrência de invasões “por toda a parte nopaís”.42

Muitos agricultores viram-se, assim, numasituação de penúria e não tiveram outra alterna-tiva a não ser retornar ao Brasil, estabelecendo-se precariamente em acampamentos, sobretudonas terras do Mato Grosso do Sul, à espera dosassentamentos da reforma agrária. A realidadedos brasiguaios confunde-se com a mesmavivida pelos sem-terra brasileiros. São vítimasda mesma violência rural, praticada, há déca-das, no País. São contundentes os termos deuma carta dos acampados, endereçada àsentidades de defesa dos direitos humanos,nacionais e estrangeiras:

“O Brasil já nos rejeitou há mais detrês décadas, quando nos arrancou daterra e nos obrigou a buscar refúgio noParaguai. Hoje o Paraguai, da mesma for-ma, não nos dá condições de sobrevi-vência e uma cidadania digna. Estamossem terra e sem pátria. Nem brasileiros(pois não temos nossa cidadania reco-nhecida) e nem paraguaios, pois lá somosestrangeiros. Somos os brasiguaios elutamos pelo direito de voltar ao Brasil edar aos nossos filhos uma pátria que osreceba”.43

Viver em situação semelhante à dos brasi-guaios parece ser o destino de dez mil brasileirosque vivem sob ameaça na Bolívia, em condi-ções precárias, e sob pressão das ForçasArmadas bolivianas. Os militares bolivianosconsideram que a migração dos brasilianos parao Departamento de Pando, na divisa de seu paíscom o Acre e Rondônia, constitui-se em umaespécie de “invasão branca”. Pretendem, porisso, construir um forte militar em Cobija, capitalde Pando.

Segundo o bispo de Rio Branco (AC), domMoacir Grechy,

“os brasileiros que estão na Bolívia vi-vem em condições subumanas, vítimasde todo o tipo de arbitrariedade e pres-são. Eles chegaram por opção de sobre-vivência. Os brasileiros não têm nenhumdireito lá. Agora, nós tememos repre-sálias”.

No entanto, de acordo com informações dadiplomata Maria Dulce Silva Barros, conselheira

40 CORTÊZ, Cácia. Brasiguaios, os refugiadosdesconhecidos. São Paulo: Agora. p. 45.

41 OLIVEIRA, Malu. Expulsão Branca. Isto é,São Paulo, 1 jul. 1992. p. 33.

42 FELDENS, Marta. Sonho de “brasiguaios”tem fim com invasão camponesa. Jornal do Brasil,Rio de Janeiro, 1 dez. 1991. p.18.

43 CORTÊZ, Cácia. Brasiguaios, os RefugiadosDesconhecidos. São Paulo: Agora. p.182.

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da Embaixada do Brasil em La Paz, ao jornalFolha de S. Paulo, os Ministérios das Rela-ções Exteriores do Brasil e da Bolívia decidiramdiscutir a situação dos brasilianos de Pando.44

Em outubro deste ano, trabalhadores brasi-leiros, recrutados na periferia de Campo Grande,foram escravizados na Bolívia. Atraídos porpromessas atraentes para trabalhar na extraçãode madeiras, transportados por um caminhão-boiadeiro, foram abandonados nas florestas,sem documentos e sem meios de transportes,distantes de quaisquer vilarejos bolivianos.45

10. Conclusão e sugestõesAs medidas de combate à violência no

campo pressupõem um prévio conhecimentodas suas causas e das suas manifestações. Estebreve estudo pode certamente contribuir paraque se compreendam as causas, as origens e assuas variadas modalidades. Diante dessespressupostos, pode-se chegar a algumas con-clusões. E as medidas de combate à violênciaserão mais facilmente deduzidas.

Pelo que se viu, a medida imediata é a pre-sença governamental, através de seus órgãoscompetentes. De fato, a Constituição Federalconsagra os direitos e as garantias funda-mentais, consubstanciados no art. 5º e seussetenta e sete incisos. Por outro lado, no art.144, estabelece como dever do Estado a segu-rança pública e, por conseguinte, a preservaçãoda ordem, da incolumidade das pessoas e doseu patrimônio. No entanto, o Estado vemdemonstrando incapacidade para cumprir osmandamentos constitucionais.

Torna-se oportuno evocar reportagem doJornal do Brasil, de junho de 1991, quandoJarbas Passarinho era Ministro da Justiça:

“Segundo o ministro, a falta de umapresença efetiva do Estado no interiordo país cria condições favoráveis àimpunidade, o que acaba estimulando aviolência. Passarinho disse que, para aca-bar com a violência no campo, sãonecessários três requisitos básicos:democratização do acesso à terra, com aimplantação da reforma agrária; criaçãode uma justiça agrária; e a presençaefetiva do Estado no interior do país, para

que sejam garantidas a lei e a ordem.”46

Mas todos os cidadãos devem empenhar-se na luta contra a violência, agindo comoverdadeiros fiscais da lei. A sociedade brasileira,mediante os instrumentos democráticos de quedispõe, deve dar a sua valiosa contribuição.Unidos no mesmo objetivo, o Estado e a socie-dade devem combater toda e qualquer forma deviolência.

A Câmara dos Deputados, através deComissões Parlamentares de Inquérito – CPIs –,vem demonstrando grande preocupação. Aofinal de cada CPI, são elaboradas recomen-dações para o enfrentamento desse fenômeno.Assim é que a CPI da Pistolagem recomendaque a legislação penal seja aperfeiçoada, consi-derando como crime hediondo o homicídiocometido mediante recompensa, e que o execu-tor pago (ou sicário), o mandante e o inter-mediário – ou seja, aquele que agenciapistoleiros – sejam todos considerados autoresdo crime de homicídio e sejam “enquadradostodos, por disposição expressa, na qualificadorado parágrafo 2º, inciso I, do art. 121 do CódigoPenal”. Esclareça-se que atualmente existedivergência doutrinária quanto ao enquadra-mento do mandante do crime, ou seja, se esteresponde ou não pela forma qualificada.

Propõe, ainda, a CPI da Pistolagem que sejarevogada a Lei nº 5.941, de 22 de novembro de1973, a chamada Lei Fleury, por considerá-lacontrovertida.

“Os efeitos nocivos da Lei Fleury sãosurpreendentes, podendo ser facilmentedetectados. Já se pode mesmo afirmar queem várias regiões do País a instituiçãodo júri popular está em vias de extinção,ou pelo menos se encontra em estadoletárgico, distanciando-se a cada dia dacultura jurídica do nosso povo, em razãoprincipalmente da impossibilidade práti-ca dos julgamentos. Temos testemunhode que em determinada comarca dePernambuco o Conselho de Sentença foiconvocado para julgar uma dezena deprocessos concluídos, não sendo,contudo, possível a realização de um sójulgamento. Motivo: ausência de réus.Todos haviam deixado o distrito, a grandemaioria beneficiada pela Lei Fleury.Este quadro se repete em todo o País,44 MALAVOLTA, Luiz. Brasileiros vivem sob

ameaça na Bolívia. Folha de São Paulo, São Paulo,25 jun. 1995. p.1-18.

45 Brasileiros sofrem na Bolívia. Correio Brazili-ense, Brasília, 7 out. 1995. p. 14.

46 Governo admite parte de culpa na violênciado campo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14jun. 1991. p.5.

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notadamente nas pequenas comu-nidades.”47

Outra sugestão diz respeito à criação de umórgão de controle externo das atividades doPoder Judiciário e do Ministério Público, com oobjetivo de fiscalizar as suas atividades admi-nistrativas. Não se trata, pois, de ingerência naautonomia da função jurisdicional dos juízes etribunais, pois esta deverá permanecer intan-gível. Esta idéia não é recente, já foi discutidapor ocasião da Assembléia Nacional Consti-tuinte, mas foi abortada pela vigorosa atuaçãode “poderosos lobbies promovidos por juízese promotores”.

Sugere a referida CPI que seja criada umasubcomissão permanente na estrutura daComissão de Constituição, Justiça e de Reda-ção, conforme previsto no Regimento Internoda Câmara dos Deputados, art. 29, inciso I, queteria como objetivo acompanhar as apuraçõesdos crimes contra a vida, especialmente os casosde “pistolagem” ocorridos em todo o País.

A CPI da Violência no Campo, em relatóriofinal, sugere, por sua vez, que os Tribunais deJustiça dos estados dêem cumprimento aodisposto no art. 126 da Constituição Federal,que prevê a designação de juízes com compe-tência exclusiva para questões agrárias. Talmedida é de suma importância, pois muitosjuízes que atuam em comarcas localizadas emcidades interioranas, onde há o predomínio daatividade agrícola, embora sejam probos ecapacitados, têm uma formação universitáriafundada predominantemente nos preceitosestabelecidos pelo Código Civil brasileiro, ou,como afirmam alguns autores, têm uma forma-ção civilista. Reclama-se, pois, que, para dirimirconflitos fundiários, sejam designados juízesde entrância especial, como prevê o nossoordenamento constitucional.

E, no relatório final aditivo, recomenda-seque os estados criem as defensorias públicaspara a defesa dos despossuídos, conforme de-terminação do art. 134 da Constituição Federal,pois é dever do Estado prestar “assistência ju-rídica integral e gratuita aos que comprovareminsuficiência de recursos”, como dispõe o art.5º, inciso LXXIV, da Carta Magna.

Outras sugestões apresentadas pelo relatorad hoc Deputado Alcides Modesto dizemrespeito: à elaboração de norma legal que

determine a obrigatoriedade da participação doMinistério Público em todas as fases proces-suais, quando se tratar de litígios pela posse daterra; à apresentação “de um novo Código Civil,tendo em vista que o atual de 1916 não maisatende a realidade nacional, especialmente noque se refere à propriedade, à posse, direitosreais e outros correlatos”; à reformulação doscursos de Direito nas universidades brasileiras,com ênfase ao Direito Agrário; à adoção decursos de formação e capacitação para osquadros de entrância especial, com competênciaexclusiva para questões agrárias.

Em agosto de 1994, realizou-se, no EspaçoCultural da Câmara dos Deputados, um semi-nário sobre o trabalho escravo no Brasil,promovido pelo Fórum Nacional Permanentecontra a Violência no Campo. No relatório final,foram apresentadas várias propostas, entre asquais destacamos as seguintes:

a) apresentação de emenda constitucionalque disponha sobre a desapropriação semindenização das propriedades rurais em que seconstatar a existência de situações análogas àescravidão;

b) a liberação de incentivos fiscais, osfinanciamentos e outros subsídios somente se-riam aprovados após consulta à Comissão deEliminação do Trabalho Escravo e Forçado;

c) realização da reforma agrária.A reforma agrária é, realmente, uma provi-

dência indispensável ao progresso e seguran-ça do País. Embora uns façam açodadamente asua defesa, mediante um discurso radical, eoutros se neguem a reconhecer nela um instru-mento de justiça social, a verdade é que,enquanto não houver reforma agrária, milharesde famílias de agricultores continuarão sobpermanente tensão. “A elite brasileira, sobre-tudo a do campo, precisa encarar de vez o tema.Enquanto fugir dele, fá-lo-á bandeira de gruposdemagógicos, interessados tão-só em alimen-tar os conflitos no campo e deles tirar proveitopolítico. Reforma agrária não é causa da direitaou da esquerda: é uma imposição do bom senso,acima de tudo”.48

A violência no meio rural, cuja principalcausa é o conflito gerado pela dominação, sópode ser combatida pelo Estado, com a partici-pação de toda a sociedade civil.

A presença efetiva do Estado no meio rural,por meio de seus órgãos competentes, é indis-pensável para que sejam reprimidos os atos de

48 Reforma agrária. Correio Braziliense, Brasília,19 jun. 1994. p. 6.

47 Brasil. Congresso. Câmara dos Deputados. CPIda pistolagem, Matadores de Aluguel. Brasília:Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações,1994. p.131.

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arbitrariedades. Faz-se urgente uma açãoeficaz do poder público para a repressão deações que venham a trazer humilhação esofrimento para a classe dos menos favore-cidos. Exige-se, pois, que os poderes consti-tuídos sejam atuantes e não se omitam. OPoder Legislativo, em sua atividade legife-rante, pode dar grande contribuição atravésdo aprimoramento das leis que dizem respeitoà matéria. O Poder Executivo, por seus órgãosligados à segurança pública e, no caso espe-cífico das relações trabalhistas, pelos órgãosfiscalizadores, pode atuar com mais eficáciano combate aos abusos praticados. E o PoderJudiciário, aplicando critérios que levem emconta a função social da propriedade, poderá,sem dúvida, proporcionar maior justiça socialno campo brasileiro.

Por outro lado, a sociedade organizada, aIgreja, os sindicatos, os partidos políticos,organizações não-governamentais e outrasassociações que se disponham a enfrentar os

arbítrios praticados no campo podem certamentedar uma grande contribuição, no momento emque seus membros participem ativamente nocombate às violações dos direitos do cidadão etrabalhador rural.

Outro salutar instrumento de combate àviolência é a imprensa. A divulgação dos atosde violência, através de redes de rádio, televisãoe jornais, é imprescindível para que a opiniãopública possa tomar conhecimento e, assim,conscientizar-se da gravidade das condiçõesde vida do camponês brasileiro. As reper-cussões no seio da sociedade brasileira produ-zirão, fatalmente, grandes reflexos no compor-tamento humano, e funcionarão, sem dúvida,como um obstáculo à prática de novasarbitrariedades.

A violência praticada no campo brasileiro é,sem dúvida, uma triste realidade que macula osprincípios democráticos da Constituição Federalde 1988 e renega os direitos fundamentais nelaconsolidados.

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JORGE ULISSES JACOBY FERNANDES

SUMÁRIO

1. Contexto histórico-político. 2. Alternativas deterceirização. 3. Evolução das idéias no DireitoPrivado. 4. A relação de emprego. 5. A terceirizaçãono serviço público. 6. A nova ordem constitucional.7. Posição do TCU a respeito. 8. Algumas peculia-ridades dos contratos de terceirização de serviços.9. Possibilidades de contratar diretamente semlicitação. 10. Conclusões.

Jorge Ulisses Jacoby Fernandes é Procuradordo Ministério Público junto ao Tribunal de Contasdo Distrito Federal, Professor de DireitoAdministrativo da AEUDF e do Centro Brasileiropara Formação Política e Instrutor do InstitutoSerzedello Corrêa do TCU.

A terceirização no serviço público

1 MARTINS, Sérgio Pinto. A terceirização e oDireito do Trabalho. São Paulo : Malheiros, 1995.119 p.

A terceirização constitui, ao lado de outrosinstrumentos bastante em voga, uma possibi-lidade, no âmbito da Lei, estabelecida pararedução da participação do Estado em tarefasimpróprias. Os limites desse instrumentopermitem vislumbrar a fronteira final do serviçopúblico, em precisa consonância com a atualpolítica que vem sendo implementada pelo atualgoverno e cujas raízes no direito positivo pátrioem breve completarão 30 anos de existência e,lamentavelmente, de incompreensão e inobser-vância.

Segundo o autorizado magistério doProfessor Sérgio Pinto Martins1, a terceirizaçãoconsiste na possibilidade de contratar terceiropara a realização de atividades que não consti-tuem o objeto principal da empresa. Essacontratação, esclarece o mesmo jurista, podeenvolver tanto a produção de bens, como deserviços, como ocorre na necessidade decontratação de serviços de limpeza, de vigilânciaou até de serviços temporários.

1. Contexto histórico-políticoO crescimento desmesurado do Estado,

fenômeno mundial que caracterizou o século

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passado e o início deste, estendeu com bastanteamplitude a dimensão do conceito de serviçopúblico, gerando um intervencionismo queprocurava suprir a ausência de participação dainiciativa privada e, por outro lado, implementá-la, e sempre que possível desenvolver o papelsócio-assistencial.

Sem laivo de dúvida, essa atuação semlimites provocou uma reação nos detentores docapital que passaram a enfrentar até umaconcorrência do Estado com a iniciativa privada,lançando um ideário, nem sempre verdadeiro,que contrapõe o dilema “Estado burocrata”versus “particular eficiente”, fazendo germinara busca de alternativas no Direito Privado paratratar problemas da Administração Pública emais tarde gizar uma fronteira do interven-cionismo estatal.

Hoje, a questão do agigantamento doEstado encontra resistência e reação, notada-mente quando o País elege um Presidente daRepública com modelo neoliberal. O neolibera-lismo consiste precisamente na idéia derestringir a atividade do Estado ao extremomínimo necessário, deixando o exercício daatividade econômica para a iniciativa privada.Corolário dos postulados do neoliberalismo é aredução do paternalismo estatal e das “ditas”conquistas sociais, para que os que detêm ocapital possam fortalecer sua atividade. Soboutra ótica, o fenômeno da privatização étambém um reflexo desse ideário.

2. Alternativas de terceirizaçãoA redução da atividade do Estado, além da

privatização, encontra diversos caminhos, comoesquematicamente segue:

I - delegação do serviço público:a - concessãob - permissão

II - de atividade meio da Administraçãoa - para outra pessoa jurídica, integranteda Administraçãob - para outra pessoa jurídica, não-integrante da Administração

b.1. o serviço passa a ser prestadono estabelecimento do contratadob.2. o serviço passa a ser prestadono estabelecimento da Administração

c - para pessoa física, com as mesmaspossibilidades da alínea “b”

Nesse estudo interessam de perto as possi-bilidades indicadas em II, que são propriamenteterceirização.

3. Evolução das idéias no Direito PrivadoComo foi assinalado, o Estado adota com

freqüência o paradigma da iniciativa privada e,nessa área, deve-se observar o desenvolvimentodo Direito do Trabalho.

Nesse ramo, a idéia da intermediação damão-de-obra foi repelida, havendo notícias nodireito comparado de que, em 1º de março de1848, a França haveria abolido o marchandage,o qual consistia precisamente na intermediaçãode mão-de-obra, sob o argumento de que, nãosendo o trabalho mercadoria, descaberia a suaintermediação.

A segunda guerra mundial, segundo relatao já nominado jurista, trouxe a noção dedesverticalização da indústria bélica, fenômenoque guarda exata simetria com a terceirização.

No Brasil foi seguida a mesma trilha quecondenava a intermediação da mão-de-obra atémeados da década de 60, quando, pelosDecretos-Leis nº 1.212 e 1.216, nasce a possibi-lidade da contratação de serviços de segurançabancária. Paralelamente, com a instalação dasindústrias automobilísticas, verdadeirasmontadoras, ocorre a desverticalização da linhade produção, mas sem qualquer óbice do Direitodo Trabalho, porque o serviço era prestadodiretamente aos fornecedores de tais indústrias,ficando o prestador de serviço vinculadoapenas ao seu verdadeiro empregador, forne-cedor de peças.

Mais tarde, copiando uma recém-editada leifrancesa, o Brasil permite a contratação dotrabalho temporário, nos moldes da Lei nº 6.019,de 3 de janeiro de 1974, e, nessa linha evolutiva,da Lei nº 7.102, a qual, revogando o Decreto-Lei nº 1.034/69, melhor disciplinou a contrataçãode empresas de segurança.

A Justiça do Trabalho, buscando assegurara plenitude dos direitos trabalhistas, repeliudiversas iniciativas de terceirização, evitando comisso o aviltamento da mão-de-obra. De fato, oTribunal Superior do Trabalho, em mais de umaoportunidade, expressamente declarava que,como a mão-de-obra no Brasil era muito barataem comparação com países mais adiantados, per-mitir a terceirização significaria acolher um inter-mediário na relação de emprego, que unicamentese remuneraria de parcela do salário já aviltado.

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117Brasília a. 33 n. 130 abril/jun. 1996

4. A relação de empregoDando suporte jurídico à posição da Justiça

do Trabalho estava o próprio conceito deempregado, uma das vigas mestras do Direitolaboral.

Conforme doutrina e jurisprudência solida-mente edificada, considera-se empregado quemmantém relação de trabalho com os seguintesatributos:

– pessoalidade – os serviços devem serprestados pessoalmente;– onerosidade – os serviços devem serremunerados;– continuidade – os serviços devem serprestados de forma não-eventual;– subordinação – na prestação dosserviços, o agente deve acatar ordens,ou ficar aguardando-as;

– intencionalidade na relação de emprego.Estando presentes esses requisitos, o

Direito do Trabalho reconhece a existência derelação de emprego tácita ou expressa.

Nesse diapasão, a terceirização que se operacom prestação de trabalho no estabelecimentodo prestador de serviços foi ampliando seushorizontes, como ocorreu, e já foi referido, coma indústria automobilística.

Em linha diametralmente oposta, a tercei-rização que se opera com a subordinação diretada pessoa física, prestadora do serviço, aocontratante deste foi repelida. Nessa dimensão,a terceirização que se efetiva no estabelecimentoda empresa que pretende ver sua atividadeterceirizada, ou que gerencia diretamente ogrupo de trabalho, foi atrofiada.

Sempre se admitiu, contudo, a terceirizaçãodos serviços de vigilância e conservação,conforme retrata o enunciado nº 256 dajurisprudência uniforme do C. Tribunal Superiordo Trabalho, que estabelecia que:

“Salvo os casos de trabalho tempo-rário e de serviço de vigilância, previstosnas Leis nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974,e 7.102, de 20 de junho de 1983, é ilegal acontratação de trabalhadores por empre-sa interposta, formando o vínculo empre-gatício diretamente com o tomador deserviços.”

5. A terceirização no serviço públicoO verdadeiro marco evolutivo da tercei-

rização deita raízes no Decreto-Lei nº 200/67, oqual, no art. 10, § 7º, recomendava a terceiri-zação, nos seguintes termos:

“Capítulo III - Da descentralização(...)Art. 10. A execução das atividades

da Administração Federal deverá seramplamente descentralizada.

(...)§ 7º Para melhor desincumbir-se das

tarefas de planejamento, coordenação,supervisão e controle e com o objetivo deimpedir o crescimento desmesurado damáquina administrativa, a Administraçãoprocurará desobrigar-se da realizaçãomaterial das tarefas executivas, recorrendo,sempre que possível, à execução indireta,mediante contrato, desde que exista, naárea, iniciativa privada suficientementedesenvolvida e capacitada a desempenharos encargos de execução.”

Ocorre que a Administração tambémcontratava mediante a CLT, e a Justiça doTrabalho julgava tendo em conta os princípiosgerais desse ramo do Direito, entre os quais aobservância dos requisitos da relação detrabalho.

Não tardou para que o contratado, medianteinterposta pessoa, viesse a pleitear a relação deemprego diretamente com o tomador dosserviços, e torrencial jurisprudência, ignorandoo referido dispositivo, firmou-se, aplicando-seo enunciado referido.

A Justiça Federal trilhou o mesmo entendi-mento, consagrando a Súmula nº 214 doTribunal Federal de Recursos que dispõe:

“A prestação de serviços em carátercontinuado, em atividades de naturezapermanente, com subordinação, obser-vância de horário e normas da repartição,mesmo em grupo-tarefa, configurarelação empregatícia.”

A origem do problema estava pois napossibilidade de a Administração contratarmediante o regime da Consolidação das Leis doTrabalho que, ao contrário do que hoje algunspretendentes à reforma do Estado sustentam,não é o regime jurídico adequado para reger asrelações de trabalho dos servidores públicos.

É consabido que as raízes do Direito doTrabalho situam-se na transmudação do laborescravo para o trabalho livre, gerando osconflitos entre capital, nas mãos do empregador,

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Revista de Informação Legislativa118

e trabalho, forma de sobrevivência do hipos-suficiente.

Esse contexto conflitual que o Direito doTrabalho agasalha e pacifica, e tem na CLT seualicerce refletido, é incompatível com a relaçãoque o Estado mantém com seus agentes, ondenão há espaço para disputa, mas colaboração.

A atuação do Estado na atividade econô-mica, hoje, pela Constituição Federal, constituiexceção, e só no âmbito dessa exceção é que seadmite a aplicação do regime contratual,balizado pela CLT.

A deformação jurídica da intervençãodesmesurada e abusiva e a aplicação inconse-qüente da CLT, a que lamentavelmente hoje seassiste pretender ressuscitar, foram e são a causade grandes conflitos jurídicos.

6. A nova ordem constitucionalA Constituição Federal de 1988, acolhendo

a classificação dos agentes públicos deOswaldo Aranha e Bandeira de Mello, estabe-leceu a categoria dos servidores públicos,subdividindo-a entre servidores públicos civis(Administração direta, autárquica e fundacional)e servidores públicos empregados (Adminis-tração indireta).

Surge a noção de Regime Jurídico Único(RJU) para servidores públicos civis e a pos-sibilidade da aplicação da CLT para servido-res públicos empregados, conforme dispôso art. 173, § 1 º, do Estatuto Político Funda-mental, que, a propósito lembre-se, permite aexploração de atividade econômica peloEstado nas duas restritíssimas hipóteses queelenca no caput.

Para ambos os regimes de trabalho – RJU eCLT – foi estabelecida, no art. 37, inciso II, aobrigatoriedade da prévia participação e a apro-vação em concurso público.

Com essa exigência, de índole constitu-cional, a caracterização da relação de empregocom a Administração passou a requerer oconcurso público.

Resultado dessa evolução, o enunciado nº256, transcrito, foi revisto pelo enunciado nº331, com a seguinte redação:

“Contrato de prestação de serviços -legalidade - revisão do enunciado nº 256.

I - a contratação de trabalhadores porempresa interposta é ilegal, formando-se

o vínculo diretamente com o tomador dosserviços, salvo no caso de trabalhotemporário (Lei nº 6.019, de 3 de janeirode 1974).

II - a contratação irregular detrabalhador, através de empresa inter-posta, não gera vínculo de emprego comos órgãos da Administração Públicadireta, indireta ou fundacional (art. 37,inc. II, da Constituição da República).

III - não forma vínculo de empregocom o tomador a contratação de serviçosde vigilância (Lei nº 7.102, de 20 de junhode 1983), de conservação e limpeza, bemcomo a de serviços especializadosligados a atividades-meio do tomador,desde que inexistente a pessoalidade e asubordinação direta.

IV - o inadimplemento das obrigaçõestrabalhistas, por parte do empregador,implica a responsabilidade subsidiária dotomador dos serviços quanto àquelasobrigações, desde que este tenha parti-cipado da relação processual e constetambém do título executivo judicial.”

Promovida essa mudança na jurisprudência,hoje não mais existe o perigo do reconhecimentojudicial da relação de emprego com o Estado,diante da terceirização, vez que para o êxito deuma eventual demanda é imprescindível que oreclamante tenha se submetido previamente aoconcurso público, exegese que por certo facilitaa terceirização.

7. Posição do TCU a respeitoA Administração Pública está sujeita ao

controle externo por parte dos tribunais decontas, e o presente estudo estaria incompletose não se procedesse ao exame das possibili-dades de terceirização sob a perspectiva docontrole.

Em reiteradas decisões o Tribunal de Contasda União vem julgando irregular a contrataçãode empresas para prestação de serviços quandoas tarefas a serem desenvolvidas integram oelenco das atribuições dos cargos permanentes.

Nesse sentido, cumpre destacar o julga-mento dos processos TC - 225.096/93-5, TC -475.054/95-4, TC - 000.384/90-9, entre outrosinúmeros, entendendo aquela Corte que, emrazão dos Decretos nº 71.236/72 e 74.448/74 eLeis nº 5.645/70 e 5.845/72, não é possível

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terceirizar atividades típicas de cargos perma-nentes.

Mesmo tendo em linha de consideraçãoessa firme jurisprudência, parece possívelterceirizar quando se tratar de tarefa previstapara cargo colocado em extinção ou quandoocorrer aumento substancial da demanda, emcaráter temporário, como, por exemplo, na ativi-dade de digitação na Justiça Eleitoral, em épocasde sufrágio.

8. Algumas peculiaridades dos contratos deterceirização de serviços

No amplo espectro da terceirização, assumerelevância capital a participação do órgão derecursos humanos na gestão de recursos semsubordinação direta ao tomador de serviços.

Ao contrário do que ocorria no passado,quando o órgão de pessoal se traduzia comomantenedor da folha de pagamento, hoje oagente de recursos humanos é verdadeirogerenciador de conflitos interpessoais, e nãohá desafio maior do que buscar o estreitamentodos vínculos entre o órgão e o pessoal daempresa da atividade terceirizada.

Estabelece a Lei nº 8.666/93, que trata daslicitações e contratos, a obrigatoriedade doprojeto básico para a contratação de qualquerobra ou serviço.

Efetivamente o art. 7º, notadamente no § 2º,inciso I, da Lei em epígrafe fixa a necessidadeda prévia elaboração do projeto básico, estabe-lecendo que somente poderão ser licitados osserviços e as obras depois de atendida essaexigência.

Projeto básico para obras e serviços corres-ponde ao detalhamento do objeto de modo apermitir a perfeita identificação do que épretendido pelo órgão licitante e, com precisão,das circunstâncias e modo de realização.

Quando o objeto inclui a prestação doserviço no estabelecimento do contratante, oprojeto básico é um instrumento essencial paraa integração entre as áreas. Nesse sentido, porexemplo, o conhecido contrato para conser-vação e limpeza de uma unidade integrarádiversas áreas, como recursos humanos, segu-rança e todos os locais a serem conservados.

Nesse exemplo, o contrato trará para dentroda organização pessoas estranhas à intimidade,não sendo raro a ocorrência de conflitos inter-pessoais decorrentes de cultura administrativa,muitas vezes de difícil equacionamento. Aí

destaca-se o gerente de recursos humanos que,desenvolvendo o treinamento introdutório, pormeio de sua equipe, sensibilizará o pessoal dacontratada com relação ao ambiente organiza-cional, para desde a adequação de posturas eproibições, até os corriqueiros e inevitáveisproblemas como comércio informal e clandes-tino, que freqüentemente ocorrem. Na área desegurança, com o conhecimento das normasinternas de guarda de bens e vigilância sobre oque entra e sai, formas de identificação, horáriose até mesmo, se for o caso, a revista eventual,que, como já decidiu a Justiça, pode ser legítimapara quem detém a obrigação de zelar pelopatrimônio público. Nas outras áreas, familiari-zando-os com problemas corriqueiros, comonão eliminar documentos, a menos que estejamno cesto de lixo, não jogar clipes em fendas decomputadores, terminar o trabalho até o horáriode início de expediente.

Como se vê, em breves linhas, a precisadefinição do objeto, que se coloca no projetobásico, aliado a um treinamento introdutório,recomendável quando há contato entre osservidores e o pessoal do contratado, podefuncionar para o aperfeiçoamento da Adminis-tração Pública.

Outro importante aspecto a considerar é afigura do executor do contrato. “Executor docontrato” é o agente da Administração respon-sável pela fiscalização e fiel acompanhamentodo ajuste, constituindo-se em verdadeiropreposto. Os órgãos de controle mais recente-mente têm procurado questionar e responsa-bilizar os executores dos contratos imperfeitos,de obras inexistentes, de desperdícios e errosna execução. Não raro, é nomeado executor docontrato um agente de escritório que jamaisfiscaliza o serviço ou não detém capacidadetécnica para promover com eficácia o acompa-nhamento do ajuste. Alguns órgãos chegarama criar uma espécie de executor de contratoscomo uma função sobre cujo ocupante recairiaa responsabilidade de atestar todas as faturas,num verdadeiro ato absurdo. Atestar umafatura, como todo ato administrativo, faz atraira responsabilidade pela regularidade e fideli-dade das declarações e coloca o agente que opratica diante do ônus de arcar com as provasde suas declarações. Veja a propósito o quedispõe o art. 67 da Lei nº 8.666/93 e o art. 10, inc.IX e XI, da Lei nº 8.429/92 – que dispõe sobreas sanções aplicáveis aos agentes públicos, noscasos de enriquecimento ilícito no exercício demandato, cargo, emprego ou função pública.

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9. Possibilidades de contratar diretamentesem licitação

A terceirização pode, em alguns casosrestritos, ocorrer sem licitação, conforme étratado em livro de nossa autoria Contrataçãodireta sem licitação , editado pela EditoraBrasília Jurídica.

Entre essas hipóteses, versadas na Lei nº8.666/93, cabe destacar do art. 24 os seguintesdispositivos:

I - inc. VIII, que estabelece os seguintesrequisitos para que se opere legitimamente acontratação direta:

a) que o contratante seja pessoa jurídica dedireito público interno;

b) que o contratado seja órgão ou entidadeque integre a Administração Pública;

c) que o contratado tenha sido criado parao fim específico do objeto pretendido pelaAdministração contratante;

d) que a criação do órgão ou entidadecontratada tenha ocorrido antes da vigência daLei nº 8.666/93;

e) que o preço seja compatível com o prati-cado no mercado.

II - inc. XIII, que estabelece os seguintesrequisitos para que se opere legitimamente acontratação direta:

a) que o contratado seja instituição brasi-leira;

b) que no estatuto ou no regimento docontratado seja expressamente declarado queo objetivo da instituição:

b.1.) constitua-se na dedicação à pesquisa,ensino, ou desenvolvimento institucional;

b.2.) alternativamente ao requisito da alínea

anterior, seja a recuperação social do preso;c) que o futuro contratado detenha inques-

tionável reputação ético-profissional;d) que o futuro contratado não tenha fins

lucrativos.III - inc. XX, que estabelece os seguintes

requisitos para que se opere legitimamente acontratação direta:

a) o primeiro, atinente às qualificações docontratado, que deverá ser:

- associação de portadores de deficiênciafísica;

- sem fins lucrativos; e- de comprovada idoneidade.b) o segundo, referente ao objeto pretendi-

do, qual seja:- prestação de serviços;- fornecimento de mão-de-obra.c) o terceiro, referente ao preço do contrato,

que deve ser compatível com o praticado nomercado.

10. ConclusõesA terceirização no serviço público constitui

tema novo e desafiador, exigindo dos quealmejam alcançar essa fronteira, uma visãointegrada da legislação e da jurisprudência, alémde um esforço coordenado de diversos seg-mentos da Administração.

Os caminhos estão abertos e insinuadosdesde o Decreto-Lei nº 200/67, mas agora forta-lecidos e aclarados pela evolução jurispru-dencial, constituindo em etapa inexorável de umalonga linha evolutiva que encontrará umperfeito equilíbrio entre o verdadeiro papel doEstado e da iniciativa privada na concretizaçãodo interesse público.

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A elaboração do BGBHomenagem no centenário do Código Civil alemão

CARLOS DAVID S. AARÃO REIS

Carlos David S. Aarão Reis é Juiz Federal.

SUMÁRIO

1. Introdução: a unidade da Alemanha e de seuDireito Civil. 2. A Comissão Preparatória. 3.APrimeira Comissão e o Primeiro Projeto. 4. A con-trovérsia sobre o Primeiro Projeto. 5. A SegundaComissão e o Segundo Projeto. 6. O Terceiro Projetoe o Conselho Federal. 7. A aprovação do Projeto noReichstag. 8. Promulgação, publicação e vigênciado BGB.

1. Introdução: a unidade da Alemanha e deseu Direito Civil

O Reich alemão1 nasceu a 1º de janeiro de1871 em conseqüência dos denominadosTratados de Novembro (de 1870), celebradosentre a Norddeutsche Bund (Confederação daAlemanha do Norte)2, Baden, Hessen,Württemberg e Baviera. Com a proclamação doRei da Prússia, Guilherme I, Kaiser (Imperador),dias depois, a 18 de janeiro de 1871, data esco-lhida conscientemente3, completava-se a fun-dação do Reich. Entretanto, esta unidade polí-tica da Alemanha não acarretou a de todo oDireito Civil, “empresa enorme, eriçada dedificuldades, parecendo mais insuperáveis que

1 A expressão Reich traduz-se, geralmente, por“Império”. Como se trata de noção especificamentealemã, com conteúdo próprio, prefere-se mantê-la notexto sem tradução.

2 Termos e expressões jurídico-políticos alemãessão mencionados no original, ao aparecerem a primeiravez no texto, acompanhados da tradução, de preferên-cia a consagrada pelo uso, embora não totalmente fiel.Posteriormente, utiliza-se apenas a versão vernácula,facilitando a leitura.

3 SCHOEPS, Hans-Joachim. Preussen : Geschichteeines Staates : Bilder und Zeugnisse. Frankfurt/M –Berlin : Ullstein, 1992, p. 266. Neste dia, em 1701, nacidade de Königsberg, o Eleitor do BrandenburgoFrederico III coroava-se rei na Prússia como FredericoI, criando-se assim o reino prussiano.

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Revista de Informação Legislativa122

as da unificação política e militar”4.Desde a célebre controvérsia a respeito da

codificação entre Thibaut e Savigny, em 18145,o problema da unidade do Direito Civil naAlemanha foi intenso e até apaixonadamentedebatido, apesar da diversidade política e atéeconômica6.

Em 1849, o projeto da Assembléia Nacional,reunida na Igreja de São Paulo, em Frankfurt,declarava incumbir ao Reich promulgar “códi-gos gerais sobre Direito Civil, Direito Comerciale Cambiário, Direito Penal e procedimentojudicial para estabelecer a unidade jurídica dopovo alemão”7. O fracasso da tentativa de inte-gração política naquela época impediu fosse oprojeto convertido em texto constitucional, frus-trando-se a conseqüente unidade jurídico-civil.

Melhor sorte teve o Direito Mercantil, já queas diferenças jurídicas prejudicavam sensivel-mente a atividade comercial, desde a uniãoaduaneira. Assim, nos anos posteriores, obteve-se a unificação do Direito Comercial, inclusiveem matéria cambiária8.

Também para atender às necessidades dotráfico, mais prementes com a progressiva inte-gração econômica dos Estados alemães, e ainda

no âmbito da existente Deutsche Bund (Confe-deração Germânica)9, procurou-se unificar oDireito das Obrigações. Por iniciativa dosEstados pequenos e médios, apesar da oposi-ção prussiana, decidiu-se elaborar um projetode Direito Obrigacional único. E, em 1866, foiapresentado o “Projeto de Dresden”, poucoantes de dissolver-se aquela Confederação10.

Em seu lugar surgiu a Confederação daAlemanha do Norte, sob liderança prussiana,após a “Guerra Fratricida” de 1866 e a derrotaaustríaca em Königgratz-Sadowa, represen-tando antes uma “transição” de uma confede-ração de Estados para um Estado federal11. Masseu poder central poderia disciplinar apenas oDireito das Obrigações, como o Direito Comer-cial, mais fácil de unificar pelo seu caráter técnicoe abstrato12. O Reichstag constituinte recusoua proposta de Miquel, estendendo tal atribuiçãoa todo o Direito Civil13.

No regime anterior da Confederação Germâ-nica, as leis deveriam ser votadas por cada umdos Estados dela integrantes, vigorando comoDireito Territorial, como ordem jurídica de cadaunidade daquela. Mas, com a criação do Reich,em 1871, o pressuposto político para a unidadedo Direito Civil, inexistente em 1814 e 1849,estava preenchido. A Alemanha deixava de sersomente uma confederação de Estados, tornan-do-se um Estado federal dotado de órgãos

Derecho Privado, 1941. p. 199 e seg., § 18 e Molitor-Schlosser. Perfiles de la nueva Historia del DerechoPrivado . Trad. Ángel Martínez Sarrión. Barcelona.Bosch, 1980. p. 104-107.

9 O Deutsche Bund consistia em uma união deDireito Internacional dos príncipes soberanos e cidadeslivres da Alemanha (art. I da Ata da ConfederaçãoGermânica de 8 de junho de 1815 e art. I da Ata Finalde Viena de 15 de maio de 1820), portanto não era umEstado federal. Como observa Schwerin, “os membrosdo Bund chamavam-se membros federais, os Estados,Estados federados. Isto estava em contradição com aterminologia jurídico-estatal de hoje, que compreendesob este [nome] um Estado composto”. (Schwerin,Claudius Freiherr von. Grundzüge der deutschenRechtsgeschichte. 4. Afl. besorgt von Hans Thieme.Berlin und München: Duncker und Humblot, 1950. p.317, nota 4, § 82).

10 MOLITOR-SCHLOSSER, Op. cit., p. 109.11 SCHWERIN, Claudius. Op. cit., p. 324 e

MITTEIS, Heinrich. Deutsche Rechtsgeschichte.Neubearbeitet von Heinz Lieberich. 12. ergänzte Afl.München : Beck, 1971. p. 265.

12 WIEACKER, Franz. Privatrechtsgeschichte derNeuzeit unter besonderer Berücksichtigung der deutschenEntwicklung. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht,1952. p. 275, § 23.

13 DERNBURG, Heinrich. Das bürgerliche Rechtdes Deutschen Reichs und Preussens. 3. Afl. HalleWaisenhaus, 1906. B. 1. (Die allgemeinen Lehren), p.1, § 1.

4 BRAUN, Alexander. Traité Pratique de Droit CivilAllemand. Bruxelles : Bruylant, 1893. p. XXXII, acres-centando: “on abaisse les frontières; on soumet 50millions d’hommes aux mêmes lois sur le recrutement,sur les finances, sur les douanes, les impôts, les affairesétrangères, la presse, l’indigénat, aux mêmes lois com-merciales et répressives; on assujettit à la même règleles droits des auteurs sur l’oeuvres de l’esprit; mais onn’extirpe pas aussi facilement ce qui tient aux entraillesde la nation, c’est-à-dire, les lois qui ont consacré degénération en génération la transmission héréditairedes biens et le régime matrimonial”.

5 Anton Friedrich Justus Thibaut, Ueber dieNothwendigkeit eines allgemeinen bürgerlichen Rechtsfür Deutschland (Sobre a necessidade de um DireitoCivil geral para a Alemanha) e Friedrich Carl vonSavigny, Vom Beruf unsrer Zeit für Gesetzgebung undRechtswissenschaft (Da Vocação de nossa época para alegislação e a ciência do Direito), 3. Afl. Heidelberg :Mohr, 1840. Jacques Stern reuniu ambas as obras novolume intitulado La Codificación. Trad. Jose DiazGarcia. Madrid : Aguillar, 1970.

6 Mesmo o processo de integração econômica, eli-minando-se as fronteiras alfandegárias (Zollverein, uniãoaduaneira), foi problemático (DÜRIG, Günter,RUDOLF, Walter. Texte zur deutschen Verfassungsges-chichte. München : Beck, 1967. p. 34 e HATTE-NHAUER, Hans. Los fundamentos histórico-ideoló-gicos del Derecho Alemán : entre la jerarquía y lademocracia. 2. ed. Trad. Miguel Izquierdo Macias-Picavea. Madrid : Rev. de Derecho Privado, 1981. p.233 e seguintes.

7 Art. XIII, § 64.8 Sobre a unificação do Direito Comercial, detalha-

damente, Paul, Rehme. Historia Universal del DerechoMercantil. Trad. E. Gómez Orbaneja. Madrid : Rev. de

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centrais, que poderiam superar mais facilmentea variedade jurídico-civil.

No entanto, a Constituição da Alemanhaunificada, de 1871, só atribuía ao Reich o poderde legislar sobre Direito das Obrigações, DireitoPenal, Direito Comercial e Cambiário e procedi-mento judicial (art. 4º, inciso 13), segundo omodelo da Confederação anterior. Além disso,algumas matérias isoladas, referentes ao DireitoCivil, como patentes de invenção e direitosautorais (art. 4º, incisos 5 e 6), também eramobjeto de legislação federal. Ao Reich igual-mente cabia regular pesos e medidas, moeda epapel-moeda, sistema bancário e correios,assuntos que poderiam conduzir, de váriasmaneiras, a disposições de Direito Civil14.

Ou seja,“pessoas, Direito Matrimonial e deFamília, propriedade imobiliária e DireitoHereditário deviam permanecer, segundoas bem calculadas intenções do fundadordo Reich [Bismarck], domínio dos gover-nos conservadores dos Estados, sobre-tudo da Prússia, e das antigas forçassociais, que eles representavam”15.

Entretanto, as disposições constitucionaisreferidas não atendiam às expectativas eexigências da nação alemã. Em cinco ocasiões(1867, já mencionada, 1869, 1871, 1872 e 1873),os Deputados Johannes Miquel e Eduard Lasker,do Partido Nacional-Liberal, tentaram alterar aConstituição, alargando a competência legisla-tiva do Reich para abranger todo o Direito Ci-vil. Finalmente, na última, obtiveram maioria noParlamento e a concordância do Bundesrat(Conselho Federal), e, pela lei de 20 de dezembrode 1873 (conhecida como Lex Lasker ou LexMiquel-Lasker), modificou-se o texto constitu-cional, apesar da resistência conservadora e doZentrum16, o partido católico. Conforme o art.4º, inciso 13, da Constituição de 1871, o Reichpassava a dispor sobre “a legislação comumsobre a totalidade do Direito Civil, o Direito

Penal e o procedimento judicial”. Como se dissena época, foi “o mais precioso dos presentesde Natal que poderia ser dado ao povoalemão”17.

A aprovação da mudança constitucional ea completa unidade jurídica, como lembraWieacker, só se tornaram possíveis graças a uma“fugaz combinação [de circunstâncias] nomomento oportuno”18. De um lado, a criação doReich, de outro, a aliança entre Bismarck e osliberais – o início da década de 1870 seriaconhecido como a “Era Liberal” – ensejaram aunificação de todo o Direito Civil19. Posterior-mente, o Chanceler buscaria apoio em outrospartidos políticos, mas aquele processo deunificação teria adquirido irreversibilidade. Ele“correspondia muito bem às tendências funda-mentais de seu século para ser paralisado pormuito tempo”20.

Em suma, “só o unitarismo e o liberalismodos nacionais-liberais impuseram a legislaçãodo Reich” no Direito Civil, além do Direito Obri-gacional, vencendo a variedade jurídica. “Nestadecisão política, que caracteriza a cultura jurídicaexterna da Alemanha, desde esta época, comoobra de forças liberais e nacionais, atuaram maisintensamente interesses econômicos e jurídico-políticos por um Direito livre e unificado, inte-resses liberais em um Direito Matrimonial laico,sobre o qual a futura Kulturkampf já lançarasuas sombras e os interesses econômico-liberaisem um Direito Imobiliário livre e uniforme”21.

2. A Comissão PreparatóriaCumprindo a lei de 1873, o Conselho Fede-

ral22 nomeou uma Vorkommission (Comissão

14 WINDSCHEID, Bernhard. Lehrbuch des Pan-dektenrechts. 9. Afl. unter vergleichender Darstellungdes deutschen bürgerlichen Rechts bearbeitet von The-odor Kipp. 2. Neudruck der Ausgabe Frankfurt am Main1906. Aalen : Scientia, 1984. p. 21, § 6a.

15 WIEACKER, Franz. Der Kampf des 19. Jahrhun-derts um die Nationalgesetzbücher. In: Industriegese-llschaft und Privatrechtsordnung. Kronberg Scriptor,1975. p. 91. As próximas citações desta obra serãoacompanhadas da abreviatura Der Kampf ...

16 Tal partido tinha receio de um Direito de Famíliainspirado na Kulturkampf (WIEACKER, op. cit., p.279), a política hostil de Bismarck diante da IgrejaCatólica.

17 SALEILLES, R. Introdução a Code Civil Alle-mand . Traduit e annoté par Bufnoir, et al... Paris :Imprimerie Nationale, 1904. p. XIII/XIV (obra publi-cada com a colaboração da Société de législation com-parée).

18 WIEACKER, Franz. Op. cit., (Der Kampf ...), p.91.

19 O verdadeiro partido da instituição do Reich foio dos nacional-liberais (SCHOEPS, Hans-Joachim. Op.cit., p. 258), que defendia em seu programa, comcrescente firmeza, a unificação do Direito alemão(DERNBURG, Heinrich. Op. cit., p. 2).

20 WIEACKER, Franz. Op. cit. (Der Kampf ...), p.91.

21 WIEACKER, Franz. Op. cit., p. 279.22 Ao Bundesrat (Conselho Federal), composto de

representantes dos Länder , das unidades federadas,também cabia decidir sobre os projetos de lei a seremapresentados ao Reichstag (Constituição de 1871, arts.6 e 7, inciso 1 e Albert, Pfitzer. El Bundesrat. Trad. H.Arntz. Oficina de Prensa e Información del GobiernoFederal, 1966. p. 31.

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Revista de Informação Legislativa124

Preparatória), a 28 de fevereiro de 1874,composta de cinco juristas: Meyer (em virtudede doença substituído mais tarde por vonSchelling, que a presidiu), von Neumayer, oProfessor Comercialista Levin Goldschmidt,von Kübel e von Weber. Predominavam osjuízes na Comissão, os três últimos mencio-nados. A Comissão reuniu-se a partir de 18 demarço de 1874, apresentando seu relatório aoConselho Federal a 15 de abril do mesmo ano.

Cabia-lhe estabelecer um plano de código,elaborar um método para realização do projeto,traçar as diretivas de trabalho e indicar quais asmatérias a incluir naquele. A Comissão Prepa-ratória rejeitou o ALR prussiano como funda-mento imediato do projeto23, resolvendo tomarcomo base para o novo código o Direito vigentena Alemanha, especialmente o Direito Comume, quanto à forma, preferiu a expressão correta eexata ao estilo popular24.

3. A Primeira Comissão e o PrimeiroProjeto

Aprovando no essencial as propostas daComissão, o Conselho Federal, na sessão de 2de julho de 1874, baseando-se no decididoanteriormente a 24 de junho do mesmo ano25,constituiu uma outra encarregada de redigir oprojeto de código civil (conhecida como PrimeiraComissão).

Integravam-na onze membros: seis magis-trados, três conselheiros ministeriais e doisprofessores de Direito, sob a presidência dePape, também presidente do Tribunal MercantilSuperior do Reich. Dois já haviam participadoda Comissão Preparatória: von Kübel, deStuttgart, vice-presidente do Tribunal Superiordo Württemberg (depois de sua morte, substi-tuído por von Mandry, professor e especialistaem regime patrimonial do casamento), e vonWeber, presidente do Tribunal Superior do Saxe(que também faleceu durante os trabalhos,sendo seu lugar ocupado por Rüger). Ainda damagistratura vinham Derscheid, Johow eGottlieb Planck, os dois últimos de tribunaisprussianos. Funcionários administrativos eramGebhard, de Carlsruhe, e von Schmitt, conse-lheiros ministeriais, respectivamente, de Bade e

da Baviera, e Kurlbaum II, do Ministério daJustiça prussiano26. Completavam a ComissãoBernhard Windscheid, o grande pandectista, eRoth, professor de Direito em Munique egermanista.

Os principais círculos jurídicos da Alemanhaestavam representados na Comissão: o ALRprussiano por Johow, Planck e Kurlbaum II; oDireito saxão por von Weber; o Direito de Badepor Gebhard; o Direito Francês por Derscheide, finalmente, o Direito Comum por Windscheide von Kübel27.

Dentre os juízes, Pape e Planck tiveram mai-or influência nos trabalhos da Comissão. “Comsua atividade incansável e seriedade”28, parti-cipando das deliberações posteriores, inclusiveparlamentares, considera-se este último “o paiespiritual do BGB”.

No entanto, Windscheid foi a figura principalda Comissão, nela exercendo um papel decisivodireta ou indiretamente. “No meu entender”,escreveu Jhering, quando designaram seu amigopara integrá-la, “ninguém entre nós romanistasseria mais indicado que tu para representar oDireito Romano naquela ocasião”29.

Windscheid gozava de considerável prestí-gio na época: quando se constituiu a Comissão,seu clássico Lehrbuch des Pandektenrechts(Tratado de Direito das Pandectas) alcançara aterceira edição, sendo estimado como “farol daprática do Direito Comum”30. Embora só tenhaparticipado das discussões a respeito da Parte

23 DERNBURG, Heinrich. Op. cit., p. 4, § 2.24 TUHR, Andreas von. Der allgemeine Teil des

deutschen bürgerlichen Rechts. Leipzig : Duncker undHumblot, 1910. B. 1, p. 2.

25 Datas mencionadas por DERNBURG, op. cit., p.5, § 2.

26 A respeito dos integrantes da Comissão e de seuscargos, DERNBURG, Heinrich, op. cit., p. 5-7 e nota1; ENNECCERUS, Ludwig. Lehrbuch des bürgerlichenRechts. 13. Bearbeitung von H.C. Nipperdey. Marburg: Elwert, 1931. V. 1 (Einleitung, Allgemeiner Teil), p.28, nota 2 e LEHR, Ernest. Traité Élémentaire de DroitCivil Germanique. (Allemagne et Autriche), Paris :Plon, 1892. V. 1, p. 21-22.

27 LEHR, Ernest. Op. cit., p. 21-22.28 DERNBURG, op. cit., p. 6. Planck (1824-1910),

ainda jovem, ingressara na magistratura do Hannover.Por suas opiniões liberais e patrióticas, mais de umavez foi removido como punição disciplinar, inclusivepara Aurich, a “Sibéria hannoveriana”. Em 1855, comojuiz, entendeu que um decreto real contrariava a Cons-tituição. Repreendido, sofreu uma série de processos e,em 1860, foi aposentado compulsoriamente comvencimentos reduzidos. Seu ostracismo só terminouem 1866, com o fim da monarquia do Hannover, v.Hattenhauer, Hans, op. cit., p. 126/127.

29 Apud Wolf, Erik. Grosse Rechtsdenker derdeutschen Geistesgeschichte. 3. Neubearbeitete Afl.Tübingen : Mohr, 1951. p. 653. Apesar de estilos epersonalidades diferentes, uma sólida amizade uniuJhering a Windscheid.

30 DERNBURG, op. cit., p. 6.

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Geral, afastando-se dos trabalhos a partir de1883, quando voltou ao magistério em Leipzig,sua influência científica estendeu-se à ParteEspecial, sobretudo através do Tratado famoso.Pois os demais integrantes da Comissão, tinhamsido “educados na rigorosa escola desta obra”31.Ou seja, apesar da maioria numérica de“práticos”, revelava-se a superioridade espiri-tual da teoria.

Não havia qualquer advogado na Comissão,dela estando ausentes juristas ilustres e respei-tados, como Rudolf von Jhering, o qual, aliás,“não sentia necessidade de exercer atividadelegislativa”32; Heinrich Dernburg33, que aplicarao método pandectista a matérias estranhas aoDireito Comum, como o Direito Prussiano doALR; os germanistas Beseler e Otto von Gierke;o pandectista Carl Georg Bruns; e Otto Bähr, naépoca membro do Tribunal Mercantil Superiordo Reich. Quando, ainda no seio da ComissãoPreparatória, sugeriu-se convidar alguns dessesnomes, o Ministro da Justiça da Prússia,Leonhard, respondeu: “querem mais profes-sores?”34.

Incumbiu-se a Comissão, “com uma fé naexatidão lógica e sistemática característica dopositivismo científico”35, de uma vasta e ambi-ciosa tarefa. Ela deveria “investigar a conveni-ência, verdade intrínseca e conseqüência lógicado Direito Privado vigente na Alemanha, exa-minar a justificação das divergências, sobre-tudo das maiores legislações, com relação aofundamento romano-germânico, procurar umaharmonização onde fosse possível e, assim,compor um projeto coerente, correspondendoàs exigências da ciência moderna”36.

A Comissão reuniu-se pela primeira vez a 17

de setembro de 1874, traçando seu plano detrabalho. Adotada a estrutura da Pandectística– separada a Parte Geral da Parte Especial e o“sistema dos cinco livros” –, a elaboração doanteprojeto de cada um destes foi confiada aum diferente relator (ainda que em contato per-manente com os demais, colaborando aComissão em seu conjunto nas questõesprincipais)37. A Parte Geral ficou a cargo deGebhard, o Direito das Coisas coube a Johow,confiou-se o Direito de Família a Planck e oDireito Hereditário, a von Schmitt. Com o faleci-mento do redator do anteprojeto parcial deDireito das Obrigações, von Kübel, em 1884,utilizou-se o Projeto de Dresden para completarseu trabalho.

A partir de 1º de outubro de 1881, iniciaram-se as discussões plenárias, por toda a Comis-são, dos anteprojetos parciais para fundi-losem um só. Os debates se prolongaram por seisanos. Em fins de 1887, estava pronto o Projetode Código Civil, denominado Primeiro Projeto.

A 27 de dezembro de 1887, o Presidente daComissão entregou-o ao Chanceler Bismarck,acompanhado de cinco volumes de Motivos,com mais de 4000 páginas, “para o bem ou parao mal, talvez o documento mais significativo dopositivismo científico do século que entãoacabava”38.

Tais Motivos foram elaborados por auxilia-res de cada relator39 com fundamento nos redi-gidos para os projetos parciais e segundo asatas das sessões da Comissão, sem que estaassumisse responsabilidade nos pormenores40.

Nem os anteprojetos parciais nem osdebates na Comissão foram divulgados, mas,segundo o decidido pelo Conselho Federal, a31 de janeiro de 1888, publicaram-se o Projeto eseus Motivos. Duraram os trabalhos quase 14anos e, por vezes, censura-se o tempo nelesdispendido, “demasiado para a impaciência dopovo alemão”41. Uma tarefa daquela magnitude,

31 WOLF, Erik. Op. cit., p. 607-608, valendo aafirmação relativamente a Planck, com quemWindscheid logo estabeleceu relações amistosas, comoescreve Wolf no mesmo local.

32 WOLF, Erik. Op. cit., p. 653. Teorias e opiniõesmuito características talvez afastassem Jhering dasComissões, de qualquer modo. Segundo Wieacker, seutemperamento vivo e originalidade, como ele própriosentiu, impediram-no de participar dos trabalhos(WIEACKER, Franz. Op. cit., p. 283).

33 Dernburg (1829-1907) era judeu, mas estacircunstância não deve ter sido suficiente para afastá-lo das Comissões. Vários juristas judeus, de grande valor,contribuíram para o progresso da ciência jurídica alemãe um deles, Goldschmidt, integrou a Comissão Prepara-tória. Além disto, um dos autores da Lei de 20 dedezembro de 1873, Eduard Lasker, também era judeuprussiano. (Hattenahuer, Hans. Op. cit., p. 70-71).

34 Apud Dernburg, Heinrich. Op. cit., p. 6, nota 4.35 WIEACKER, Franz. Op. cit., p. 280.36 Apud Enneccerus, Ludwig. Op. cit., p. 28, § 12.

37 Enneccerus, Ludwig. Op. cit., p. 29.38 WIEACKER, Franz. Op. cit., p. 280.39 Livros I, Börner; II, Egge; III, Achillies e von

Liebe; IV, Struckmann e V, Neubauer, Enneccerus, op.cit., p. 29, nota 4.

40 Foram apresentados, como se afirmava em seuprefácio, “com fundamento nos motivos elaboradospelos redatores para os anteprojetos, assim como combase nas atas das deliberações aprovadas pela Comissão”,“não sujeitos ao exame e aprovação de seu plenário”,Apud Windscheid-Kipp, p. 25, nota 17, § 6a.

41 OERTMANN, Paul. Introducción al DerechoCivil. Trad. Luis Sancho Seral. Barcelona : Labor, 1933.p. 18, § 2.

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levada a cabo pela Comissão com “extremaminudência” 42, não poderia ter sido abreviada.

4. A controvérsia sobre o Primeiro ProjetoA divulgação do Projeto provocou uma viva

reação na opinião pública alemã, não só entreos especialistas – juristas teóricos e práticos –, mas também em outros setores da sociedade.Centenas de estudos foram publicados, comolivros, monografias e artigos em revistasjurídicas, econômicas, literárias e até em jornais.Apresentou-se um “contraprojeto” inteiro (hojeseria denominado “projeto alternativo”), devidoa Otto Bähr 43, manifestando-se igualmentegovernos das unidades federadas, dos Länder,como Prússia, Baviera e Mecklemburg-Schwerin.Enfim, “uma colaboração de toda a nação comojamais ocorreu com uma obra legislativa”44.

Alguns se pronunciaram favoravelmente.Outros, como Bekker, reconhecendo seusdefeitos, pediam sua adoção inalterada oquanto antes, por razões políticas45. No entanto,a maioria foi de graves censuras, “uma críticamuito viva e mordaz do lado de gente compe-tente e de não tão competente”46.

Acusou-se a obra de doutrinarismo exces-sivo, com desproporcional influência romanis-ta, especialmente da Pandectística, ignorandoo Direito alemão com suas antigas instituições.Chegou-se a afirmar que “tinham sido reduzidasa artigos de lei as Pandectas de Windscheid”,que o Projeto seria “Windscheid vertido emparágrafos”47. Ou, mais exatamente, comoescreveu Otto Bähr, que “o Projeto é uma obradoutrinária, está sob o domínio de um tratado, éum Windscheid menor. O que não está emWindscheid falta também no código”48.

Do ponto de vista formal, seu estilo foiconsiderado pouco “popular”, com uma termi-nologia obscura, dificilmente compreensível,mesmo para os juristas, uma técnica maisconveniente a um tratado científico do que a umcódigo e um número exagerado de remissões.

Da perspectiva jurídico-sociológica, criti-cou-se o Projeto por seu distanciamento domundo e da vida, pouco adequado às neces-sidades sociais, sobretudo às das classesmenos favorecidas. Faltava nele a célebreTropfen sozialen Öls, a gota de óleo social49.

Em suma, tratar-se-ia de “produto de umpuro trabalho de gabinete”50.

Não houve manifestação oficial do Chan-celer do Reich, mas um escritor, mencionadopor Dernburg (que não pôde apurar a autenci-dade da assertiva), refere-se a uma severa críticade Bismarck ao Projeto – embora não fosse umespecialista, nem de longe51.

49 A famosa expressão, corrente na época, pode tersido inspirada por outra, de um poeta: “constitui talvezuma réplica inconsciente do célebre dito de LudwigUhland na Igreja de São Paulo em 22 de janeiro de1849 – não haveria de brilhar sobre a Alemanhanenhuma cabeça que não estivesse temperada com umagota de óleo democrático –, mas sem a força expressivapoética do jogo de palavras de Uhland, que aludia àunção do rei com os óleos sagrados”. WIEACKER,Franz. História do Direito Privado moderno. Trad.A.M. Botelho Hespanha [da 2ª ed. alemã de 1967]Lisboa : Gulbekian, 1980. p. 539, nota 7 (não constaeste trecho do original da 1ª ed. alemã, citada nesteestudo). O período completo é o seguinte: “Acreditem,não brilhará sobre a Alemanha nenhuma cabeça, quenão estiver ungida com uma gota completa de óleodemocrático” (“Glauben Sie, es wird kein Haupt überDeutschland leuchten, das nicht mit einem vollenTropfen demokratischen Öles gesalbt ist”), discurso naAssembléia Nacional, a 23 de fevereiro de 1849, apudSchoeps, Hans-Joachim. Op. cit., p. 363, reproduzindouma grande parte do mesmo. O futuro rei da Prússia,Guilherme I, respondeu na ocasião: “Sim, eu tambémacredito, uma gota. Mas aqui temos toda uma garrafa”,Apud Schoeps, Hans Joachim. Op. cit., p. 210.

50 LARENZ, Larl. Op. cit., p. 13.51 DERNBURG, Heinrich. Op. cit., p. 8 e nota 7. O

chanceler estudara Direito em Göttingen e Berlim. Noentanto, anota Jhering, na primeira universidade“parece ter estado em contato mais com os bedéis quecom os docentes”. V. Losano, Mario G. Bismarck parladi Savigny con Jhering. Quaderni Fiorentini per la storiadel pensiero giuridico moderno. Milano : Giuffrè, 1981.V. 9 (1980 – Su Federico Carlo di Savigny), p. 528-529, 533 e 537. Não seria esta a primeira vez que aincontinência verbal do Chanceler do Reich, falandodepreciativamente sobre pessoas ou assuntos, semreduzir a escrito suas opiniões, assumindo a responsabi-lidade, provocaria obscuras controvérsias no âmbitodo Direito, v., a propósito de suas acres referências aSavigny, que teriam sido ouvidas por Jhering. (LOSANO,Mario G. Op. cit., p. 523-539).

42 LARENZ, Karl. Allgemeiner Teil des deutschenbürgerlichen Rechts. München : Beck, 1967. p. 12, §1, II. O próprio autor do reparo mencionado na notaanterior reconhece, em seguida, que precisamente poristo trabalhou a Comissão “de uma maneira mais sólidae conscienciosa” (Oertmann, op. cit., p. 18).

43 GEGENENTWURF ZU DEM ENTWURFEINES B.G.B. Contraprojeto ao Projeto de Código Civil(1891-1892).

44 ENNECCERUS, Ludwig. Op. cit., p. 29.45 DERNBURG, Heinrich. Op. cit., p. 8.46 MOLITOR-SCHLOSSER. Op. cit., p. 111.47 Apud Ruggiero, Roberto de. Istituzioni di Diritto

Civile. 7. ed. riveduta. Messina-Milano : Principato,1934. V. 1, p. 103, nota 1 e CONRAD, Hermann.Privatrechtsgeschichte der Neuzeit. In: Einführung indie Rechtswissenschaft. Herausgeben V. RudolfReinhardt. Marburg : Elwert, 1949. p. 292.

48 Apud Wolf, Erik. Op. cit., p. 608.

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Duas críticas se tornaram mais famosas,embora de desigual repercussão.

De um lado, a de Otto von Gierke em OProjeto de um Código Civil e o Direito Alemão(1883-1889). Também na conferência, pronun-ciada na Sociedade Jurídica de Viena, a 5 deabril de 1889, sobre a função social do DireitoPrivado (Die soziale Aufgabe des Privatrechts),em estreita ligação com a obra anterior, ogermanista censurava o Projeto. Em intenção,ainda que sem o êxito final, compara-se seutrabalho ao de Savigny sobre a vocação de seutempo para a legislação52. Gierke se opunha aoProjeto pelo caráter pouco germânico deste,afastado do Direito alemão e acentuadamenteindividualista. Na conferência mencionada,chega a empregar expressão semelhante à deUhland, já citada, Tropfen sozialistischen Öl,gota de óleo socialista53.

De outro lado, a de Anton Menger (1841-1906), catedrático de Direito Processual Civilem Viena, geralmente considerado um “socia-lista de cátedra”54, no livro Das bürgerlicheRecht und die besitzlosen Volksklassen (ODireito Civil e as classes do povo sem posses,1890)55. Menger condenava o Projeto porentender que, vinculado ao liberalismo econô-mico, ignorava os interesses dos mais pobres,

os quais não teriam sido ouvidos na elaboraçãodaquele56.

Até hoje, os reparos ao Projeto são difun-didos e constantemente assinalados, ocupandomais espaço que o reconhecimento de seusméritos. Repeti-los revelaria até falta de imagi-nação, sendo necessário fazer-lhe justiça,ressaltando seus aspectos positivos.

Por um lado, o movimento resultante de suapublicação foi saudável, indicando eferves-cência intelectual na cultura alemã, especial-mente na ciência do Direito Civil, proporcio-nando o Projeto oportunidade para que toda anação colaborasse em obra de tal envergadura.

Por outro lado, a Comissão, na verdade umaoutra e segunda Comissão Preparatória57, nãorealizara trabalho definitivo. Além de elaborarum projeto, sistematizou a ciência e o Direitovigente, reunindo e comparando os diversospreceitos jurídicos das diferentes regiões daAlemanha, deles extraindo conclusões. Assim,forneceu uma base sólida para o futuro. Foi apartir desse Projeto – um notável empreendi-mento – que se pôde efetuar aperfeiçoamentosde fundo e de forma para, finalmente, chegar-seao BGB (Bürgerliches Gesetzbuch).

Já esse projeto, escreveu Sohm, participanteda comissão posterior, significava uma reali-zação excelente, não apenas como obra cuida-dosamente conscienciosa, mas também comoexpressão de um Poder Legislativo. O núcleodo BGB foi criado por ele58.

Quanto à técnica, a Comissão Preparatóriajá se preocupara com ela, exagerando Goldsch-midt seu valor59.

Os contemporâneos, inclusive estrangeiros,tiveram uma viva impressão da obra, reconhe-cendo o esforço intelectual imenso e sério, queordenou e preparou o enorme material existente,conferindo-lhe unidade, e a coerência naaplicação dos princípios60.

52 WOLF, Erik. Op. cit., p. 693/694.53 “Em nosso Direito Público precisa soprar um

hálito daquela esfera de liberdade postulada pelo jusna-turalismo, e nosso Direito Privado precisa suavizar-secom uma gota de óleo socialista” (apud Wolf, Erik.Op. cit., p. 697). Não se pense, no entanto, ter sidoGierke socialista, simpatizante da causa socialista oualgo semelhante. Manteve-se longe do partido social-democrata e “muitas vezes pensava de modo notoria-mente conservador”. No mesmo trabalho mencionadoafirmava: “as idéias sistematizadas nas doutrinassocialistas, que concebem e valoram o homem exclusi-vamente como membro da sociedade, ameaçam trans-formar todo o Direito em ordenação administrativa doEstado”; e, mais adiante: “a estatização de todo oDireito, no sentido do socialismo, significa escravidãoe barbárie” (Apud Wolf, Erik. Op. cit., p. 695 e 696).

54 Menger não era marxista, nem revolucionário:teórico em suas doutrinas – não sabemos se militou emgrupos ou partidos de sua época –, afastou-se muitocedo do socialismo de Marx e Engels para pugnar pelamaterialização das reivindicações proletárias mediantea reforma gradual da legislação (HATTENHAUER,Hans. Op. cit., p. 225 e a introdução de Diego Lamas àobra de Menger, citada na nota posterior, p. 10-11). Opróprio Menger escreveu: “De outro lado, por causa dainfluência de Lassalle, Marx e Engels, a crítica dosocialismo alemão se dirige quase exclusivamente aoaspecto econômico de nossa condição, sem reparar quea questão social é, na realidade, antes de tudo esobretudo, um problema da Ciência do Estado e doDireito”. (MENGER, Anton. Op. cit., p. 32.).

55 Há tradução espanhola sob o título El Derecho

Civil y los pobres. Trad. Adolfo G. Posada. BuenosAires : E. Atalaya, 1947.

56 “Só um ponto de vista não foi sustentado talveznaquela ampla discussão, e o grupo popular, a quem elaafeta, compreende pelo menos quatro quintos da naçãointeira: tal ponto de vista é o que interessa às classespobres”, (MENGER, Anton. Op. cit., p. 32.).

57 WIEACKER, Franz. Op. cit., p. 279.58 SOHM, Rudolph. Bürgerliches Recht. In: Syste-

matische Rechtswissenschaft. 2. verbesserte Afl.herausgeben von Paul Hinneberg. Leipzig-Berlin : B.G.Teubner, 1913. p. 77.

59 DERNBURG, Heinrich. Op. cit., V.1, p. 4, nota 1.60 Ibidem, p. 7.

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são, von Cuny, Spahn, Hoffmann e Wilke (a partirde 1891) assistiram sempre às sessões. RudolphSohm, von Gagern (proprietário rural), Conrad(professor de Economia Política) e Danckelmann(inspetor florestal) intervieram na maioria dasmatérias. Os demais se limitaram a opinar sobreassuntos isolados (Leuschner, especialista emmineração, Russel, diretor de banco, von Man-teuffel e von Helldorf, igualmente proprietáriosrurais)64.

Na escolha dos integrantes da Comissão,Miquel, então Ministro de Estado e das Finan-ças da Prússia, exerceu grande influência, coma nomeação de deputados do Partido Conser-vador e do Zentrum65.

Entre todos, destacaram-se Planck, relator-geral, o germanista Sohm66 e o conselheiro mi-nisterial bávaro von Jacubezky67. Relatores doscinco livros foram Gebhard, von Jacubezky,Küntzel, von Mandry e Rüger (mais tarde subs-tituído por Börner).

Repetindo Ferrara, pode-se dizer que, nes-sa Comissão, concentraram-se todas as forçasespirituais da nação alemã68.

Ao contrário do ocorrido com os trabalhosda Primeira, as sessões da Segunda Comissãoforam públicas, assistindo a uma delas o Kai-ser Guilherme II69. Divulgavam-se igualmenteas deliberações, no periódico oficial do Reich,as atas (“protocolos”) e, quando concluídos,os projetos parciais. As discussões se inicia-ram a 1º de abril de 1891, estendendo-se atéjunho de 1895. Posteriormente, debateu-se a Leide Introdução até o final do mesmo ano. A par-tir de 6 de maio de 1895, o Segundo Projetosofreu uma revisão, resultando em um segundotexto, geralmente designado como SegundoProjeto, segunda versão ou Segundo Projeto

Apreciando os Motivos, Lehr, ao escreverseu livro nesta época, observou constituíremum dos tratados mais completos e profundosexistentes sobre o conjunto do Direito Civil ale-mão e mais adiante:

“Il est impossible de lire le Projet etles Motifs sans se sentir pénetré derespect pour l’immense science qui s’ytrouve condensée. Mais nous ne pensonspas être dementi, du mois par les juris-consultes français habitués à la limpiditéde nos lois, en nous hasardant à dire qu’ila peu de Codes, mêmes allemands, dontla lecture exige une tension d’esprit plusénergique et plus soutenue”61.

5. A Segunda Comissão e o SegundoProjeto

Diante da controvérsia, o Reichsjustizamt(Departamento de Justiça do Reich)62 organi-zou uma compilação das propostas de emen-da63, e, a 4 de dezembro de 1890, o ConselhoFederal formou outra Comissão, com a incum-bência de rever o Projeto.

A Segunda Comissão, como foi denomi-nada, constituía-se de 22 membros, dos quais10 permanentes e 12 não-permanentes. Entreestes, nem todos eram juristas, a maioria com-punha-se de leigos, dedicada principalmente aatividades econômicas. A presidência cabia aoSecretário de Estado do Departamento deJustiça, inicialmente von Oelschläger, depoisBusse, em seguida Hanauer, e, desde 1893,Nieberding, sendo substituído por Küntzel (apartir de 1893, exerceu este regularmente aquelecargo).

Quatro dos demais membros permanentesjá haviam participado da Primeira Comissão:Gebhard, von Mandry, Rüger (substituído porBörner, em 1895). Os outros eram Eichholz, vonJacubezky, Dittmar, Wolffson, Hanauer (a partirde 1891) e Struckmann (desde 1892). Este últimoe Börner, ambos magistrados, foram colabora-dores da Primeira Comissão, auxiliando aredação dos Motivos da Parte Geral e do Direitode Família.

Dos membros não-permanentes da Comis-

64 Nomes e atividades dos membros da Comissãoem Enneccerus, op. cit., p. 30 e notas 8 e 9.

65 DERNBURG, op. cit., p. 8-9, § 3.66 Sua clássica exposição do BGB tem sido injusta-

mente esquecida, nota Radbruch. GUSTAV, Vorschuleder Rechtsphilosophie. Heidelberg : Scherer, 1948. p.51, § 19, mas citada neste trabalho.

67 DERNBURG, op. cit., p. 9, § 3.68 FERRARA, Francesco. Trattato di Diritto Civile

Italiano. Roma : Athenaeum, 1921. p. 172.69 A 13 de novembro de 1895. Nesta sessão, Sohm

discursava sobre o Direito Agrário, salientando comeloqüentes palavras que a conservação do estamentode camponeses na Alemanha dependeria menos da lei emais do espírito idealista destes. Neste momento, oKaiser observou a um vizinho: “Pois eu gostaria deapresentar ao professor alguns dos meus camponesespara procurar seu espírito idealista”. Dernburg, narrandoo episódio, acrescenta: “isto é autêntico” (op. cit., p.9, nota 8).

61 LEHR, Ernest. Op. cit., V. 1, p. 22-23.62 Segundo a Constituição de 1871, o único minis-

tro do Reich era seu Chanceler, não existindo portanto“Ministério da Justiça” propriamente dito, subordina-dos àquele Secretários de Estado e Departamentos doReich. SCHWERIN, Claudius. Op. cit., p. 327, § 84.

63 ENNECCERUS, op. cit., p. 29.

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revisto70. Terminada esta redação a 21 de outu-bro de 1895, no dia seguinte era apresentado aoChanceler do Reich.

Antes de tudo, esse Projeto representou“uma espécie de reabilitação do Primeiro”.Quando alguns acreditavam poder prescindirdele como coisa inútil, demonstrou a SegundaComissão a possibilidade de convertê-lo emcódigo útil.71

Manteve-se a linguagem abstrata e dogmá-tica, continuou prevalecendo o Direito dasPandectas: a persistência destes traços é muitocaracterística do vigor e da força de convicçãodo espírito científico da época72 – o que nãodeixa de ser um elogio.

Conservou-se o plano fundamental e aestrutura sistemática do Primeiro Projeto, mas oSegundo harmonizava-se mais com as exigên-cias da época. Aperfeiçoou-se aquele, levando-se em consideração críticas e concepçõesjurídicas alemãs, com o esforço de fazerprogredir o Direito, em contato maior com asrelações vitais e oferecendo a necessáriaproteção aos economicamente mais fracos. Otexto ganhou em clareza, reduzindo-se o númerode remissões73.

Mesmo assim, em alguns pontos, como noâmbito do regime patrimonial do casamento eda tutela, que deveriam ter aspirado à máximapopularidade, menos se eliminaram as defici-ências criticadas do Primeiro Projeto.74

6. O Terceiro Projeto e o ConselhoFederal

Enviado o Projeto ao Conselho Federal,em seguida, nele foi submetido à apreciaçãode sua Comissão Judicial. Propôs esta váriasmodificações, tendo sido aceitas. A maisimportante dizia respeito ao Direito Interna-cional Privado. Os dispositivos correspon-dentes constavam de um sexto livro, mas, noessencial, foram incluídos na Lei de Introduçãoao Código Civil.

Aprovado por aquele Conselho, passou aser denominado Terceiro Projeto ou propostaao Reichstag (correspondente à Câmara dosDeputados).

7. A Aprovação do Projeto no ReichstagA 17 de janeiro de 1896, esse Projeto era

apresentado ao Reichstag, com uma declaraçãoverbal do Chanceler75 e acompanhado de umaExposição de Motivos do Departamento deJustiça do Reich , elogiada por Dernburg,“esclarecendo e recomendando os princípiosmais importantes”76.

Dificuldades surgiram no Reichstag, porém,mais consistentes em questões políticas do quepropriamente técnicas, de natureza jurídica. Porum lado, o destino do Projeto dependia daatitude do Zentrum, pois sem ele não se alcan-çaria a maioria necessária para aprová-lo, comolembra Dernburg77. De outro, a oposição social-democrata exigia uma lei especial para o contratode trabalho, completando a disciplina, conside-rada insatisfatória, do Dienstvertrag (correspon-dente, embora diverso, ao contrato de locaçãode serviços)78.

Além disso, o Projeto, no seu conjunto, nãodeveria ser desfigurado com o oferecimento deemendas por cada parlamentar. Uma propostade aprová-lo na sua totalidade, sem discussão,não teve acolhida favorável, mas os deputadoschegaram a um entendimento tácito. Não sesuprimiu o poder de apresentar emendas, masos debates ficaram limitados a certos pontosmais sensíveis, respeitando-se a obra realizadana sua integridade79.

Os temas mais controvertidos encontravam-se no Direito de Família, especialmente noâmbito das relações não-patrimoniais entre oscônjuges. Uma tentativa de substituir ocasamento civil obrigatório pelo meramentefacultativo não logrou êxito80. No entanto, aPrimeira Seção do Livro IV (Direito de Família)passou a ser designada bürgerliche Ehe, casa-mento civil, e não somente “casamento”. Aolado do divórcio, introduziu-se a figura da “su-pressão da comunidade conjugal” (§ 1.575)81.Admitiu-se também o divórcio por insanidademental na terceira discussão (§ 1.569)82.

70 Saleilles considerou mais simples denominá-lo deTerceiro Projeto, numeração adotada na traduçãofrancesa, op. cit., p. XVI-XVII.

71 OERTMANN, Paul. Op. cit., p. 19-20, § 2.72 WIEACKER, op. cit., p. 281, considerando-os

defeitos do Primeiro Projeto para nossa sensibilidade.73 DERNBURG, op. cit., p. 9 e ENNECCERUS, op.

cit., p. 30.74 MOLITOR-SCHLOSSER, op. cit., p. 112.

75 WINDSCHEID-KIPP, op. cit., p. 26.76 DERNBURG, op. cit., p. 10, § 4.77 Ibidem, p. 10.78 MOLITOR-SCHLOSSER, op. cit., p. 113. BGB,

§§611 e seguintes, Código Civil brasileiro, arts. 1216 eseguintes, respectivamente.

79 SALEILLES, op. cit., p. XVII; DERNBURG, op.cit., p. 10; OERTMANN, op. cit., p. 21 e Code Civilallemand. Traduit et annoté avec une introduction parRaoul de la Grasserie. 2. ed. rev aug. Paris : A. Pedone,1901. p. XVII.

80 OERTMANN, op. cit., p. 21.81 GRASSERIE, Raoul de la, op. cit., p. XV.82 GRASSERIE, Raoul de la, op. cit., p. 327, nota 2.

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Revista de Informação Legislativa130

Esclareceu-se, igualmente, que os deveres daIgreja, atinentes ao casamento, não seriamafetados pelas disposições da seção (§ 1.588,conhecido como “parágrafo do Kaiser”)83.

Também foram acrescentadas importantesdisposições na Parte Geral, no Direito Obriga-cional e no Direito Hereditário. A lesão passoua ser causa de nulidade do ato jurídico (§ 138,2ª parte)84. A impossibilidade superveniente dodoador em prover sua subsistência autorizarevogar a doação (§ 528). O regime do Diens-tvertrag foi melhorado, em favor dos presta-dores de serviço, sem que a oposiçãosocialista contribuísse para tal. Criou-se umanova forma de testamento, o ológrafo(eingenhändige Testament, §§ 2.231, alínea2 e 2.247, testamento de mão própria, corres-pondente ao testamento particular do CódigoCivil brasileiro, art. 1.645)85.

Entretanto, por vezes ocorreram debatesveementes a respeito de pontos insignifican-tes, como a respeito do § 835 (danos causadospor caça). Trinta oradores, número superior aonormal, discutiram se a responsabilidade portais prejuízos estender-se-ia aos danos causa-dos por lebres86.

Uma reação retardada contra a unidade jurí-dica produziu-se no “combate de retirada” pelasreservas da Lei de Introdução em favor doparticularismo jurídico, dos Direitos dasunidades federadas (Lei de Introdução ao BGB,3ª seção, artigos 55 a 152). Várias disposiçõesdestes permaneceram vigentes e nesta “lista debaixas da unidade jurídica” manifestava-se agrande importância política não só das tradi-ções jurídicas particulares, mas também das doEstado autoritário, feudais e conservadoras,assim como as de proteção estatal, especial-mente das classes possuidoras ou vinculadasà terra, e das tradições administrativas dosLänder, que a ciência das Pandectas jamaisabsorvera completamente”87.

Depois de uma primeira discussão, qualifi-cada de notável por Oertmann, em virtude do

excelente discurso de Planck88, já quase cego89,de 3 a 6 de janeiro de 1896, constituiu-se umacomissão de 21 membros para apreciar o Projeto.Nesta, foram relatores Enneccerus, von Buchka,Bochem e von Schröder, respectivamente paraos Livros I e II, III, IV e V90.

Apresentado o relatório da Comissão a 12de junho, a segunda discussão plenária duroude 19 a 27 do mesmo mês.

A terceira e última discussão iniciou-se a 30de junho, terminando a 1º de julho de 1896,sendo finalmente aprovado o Projeto. Votarama seu favor 222 deputados, contrariamente 48(dos quais 42 social-democratas), 18 se absti-veram, estando ausentes 91 membros doReichstag.

8. Promulgação, publicação evigência do BGB

A 14 de julho de 1896, o Conselho Federaltambém aprovou o Projeto votado pelo Reichs-tag. Em seguida, a 18 de agosto do mesmo ano,aniversário da batalha de Gravelotte91, o Kaiserpromulgava o Bürgerliches Gesetzbuch (Códi-go Civil, conhecido abreviadamente como BGB)com 2.385 parágrafos. No número 21 da Reichs-gesetzblatt (Diário Oficial do Reich ), quecirculou em Berlim a 24 de agosto de 1896, erampublicados o Código (páginas 195 a 603) e suaLei de Introdução (páginas 604 a 650)92. Noentanto, a primeira daquelas leis não adquiriuvigência imediata. Conforme o art. 1º da Lei deIntrodução, o BGB só vigoraria a partir de 1º dejaneiro de 190093. Julgou-se necessária umavacatio legis tão longa, de quase quatro anos,para adaptação de outras leis ao Código, assim

83 Incluiu-se no Código por desejo do Kaiser, Hans,Hattenhauer. Conceptos Fundamentales del DerechoCivil . Trad. Gonzalo Hernández. Barcelona : Ariel,1987. p. 149.

84 ENNECCERUS, op. cit., p. 587, § 179, § 138, doBGB. Com redação semelhante, v. o art. 4º, b da Lei deEconomia Popular.

85 OERTMANN, op. cit., p. 21; GRASSERIE, op.cit., p. XV; op. cit., p. 73 e 133-135. V. 2.

86 TUHR, op. cit., p. 3, nota 8 e Grasserie, op. cit.,p. XVII.

87 WIEACKER, op. cit., p. 281-282.

88 OERTMANN, op. cit., p. 21.89 DERNBURG, op. cit., p. 6.90 ENNECCERUS, op. cit., p. 30-31, nota 12.91 Combate na Guerra Franco-Alemã de 1870/1871,

vencido pelos alemães.92 WINDSCHEID-KIPP, op. cit., p. 27/28, § 6º. O

seu nome oficial é apenas Bürgerliches Gesetzbuch semo acréscimo “für das Deutsche Reich” (para o Reichalemão). Originalmente, planejou-se tal aditamento(títulos dos 1º e 2º Projetos), mas o apresentado aoReichstag não mais o continha. Ibidem, p. 27, nota 31a. Além das traduções francesas, citadas neste estudo,acessíveis ao público brasileiro, existe uma versãoportuguesa, Código Civil alemão . Trad. diretamentedo alemão por Souza Diniz. Rio de Janeiro : Record,1960.

93 Na mesma data vigorariam leis modificadoras daLei de Organização Judiciária, do Código de ProcessoCivil e da Lei de Falências, uma lei sobre execução eadministração forçadas, uma Lei do Registro Imobiliá-rio e uma Lei sobre assuntos de jurisdição voluntária,art. 1º, Lei de Introdução.

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como para conhecimento e estudo pelos juristase interessados.

Com o Código Civil, finalmente, a Alemanhaunificada tinha também um só Direito Civil: “aoEstado unitário nacional alemão correspondiao Direito unitário nacional alemão: um povo,uma vida econômica, um Reich, um Direito!”94.

94 SOHM, op. cit., p. 77.

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O direito de parceria

Arnoldo Wald é Advogado e Professor Cate-drático da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

ARNOLDO WALD

A formulação atual do direito do desenvol-vimento está vinculada a uma idéia que é, aomesmo tempo, antiga e nova. Antiga na suaconcepção, nova na sua densidade e nasdimensões que está alcançando. É a idéia deparceria. Parceria entre as nações, parceria entreo Estado e a iniciativa privada, parceria entreempresas concorrentes, parceria entre mora-dores do mesmo bairro, parceria entre o produtore o consumidor, parceria entre acionistas e diri-gentes de empresa, parceria entre empregadose empregadores, com a participação nos lucrose com a função social atribuída à empresa.

O conceito de parceria que encontrávamosmeio perdido em alguns artigos do Código Civil,que tratam da parceria rural (artigos 1.410 a1.423), tornou-se hoje um novo instrumentojurídico da mais alta importância nas relaçõesexistentes em todos os ramos do direito.

No campo do direito internacional, asrelações econômicas entre os Estados foramsendo complementadas pela parceria dentro deregiões, que passaram a constituir uma verda-deira unidade econômica, como o Mercosul, aUnião Européia, o acordo entre os EstadosUnidos, o Canadá e o México que constituiu oNafta. Formaram-se, assim, parcerias entrepaíses que se uniram, com espírito empresarial,para alcançar finalidades comuns, que em nossocontinente se limitam ao setor econômico, mas,na Europa, já abrangem, ou pretendem abranger,a própria moeda, ou seja, em certo sentido,constituir uma verdadeira unidade política.

“A crescente parceria com o setor privado napropriedade e gestão da infra-estrutura nacionalexigirá a redefinição do papel do Estado.”

PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

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Revista de Informação Legislativa134

A parceria também está se sedimentandonas relações entre o Estado e a iniciativa priva-da, substituindo a antiga relação de comando ede obediência por consultas prévias mútuas eensejando manifestações de vontade quepassam a ser o fruto do diálogo entre ambas aspartes, colocando-as numa verdadeira basecontratual. A privatização dos serviçospúblicos, o direito das concessões e a reformu-lação do equilíbrio que deve existir entreacionistas majoritários e minoritários nassociedades de economia mista comprovam estaevolução.

Se formos procurar a palavra mais empre-gada nos últimos meses pelos representantesdo poder público e, em particular, pelo Presi-dente da República, talvez seja a palavraparceria. Efetivamente, no seu programa, oPresidente da República propõe um novomodelo de desenvolvimento “que gere empre-gos de qualidade superior, impulsione ina-diáveis transformações sociais e alcancepresença significativa na economia mundial.” Eexplica que, para tanto:

“será fundamental estabelecer uma ver-dadeira parceria entre setor privado egoverno, entre universidade e indústria,tanto na gestão quanto no financiamentodo sistema brasileiro de desenvolvimentocientífico e tecnológico”.1

E em seguida, complementando o seupensamento, afirma o Presidente da Repúblicaque:

“A crescente parceria com o setorprivado na propriedade e gestão de infra-estrutura nacional exigirá a redefiniçãodo papel do Estado como instância regu-ladora, com poder de evitar monopóliose abusos que tendem a ocorrer em situa-ções de concentração do poder econô-mico. É preciso que o governo tenharealmente a capacidade de regular a pres-tação de serviços públicos no interessedo cidadão e dos objetivos estratégicosdo país”.2

Este entendimento deixou de ser meramenteteórico e platônico para transformar-se numarealidade dinâmica, na medida em que sepretende utilizar recursos privados e gestãoempresarial, para a realização de serviços

públicos. Por outro lado, a privatização significaa assunção do controle das empresas estataispor acionistas privados, entre os quais figuramsempre os empregados da empresa e os fundosde pensão, sem prejuízo da eventual presençado Estado, seja como participante de acordo deacionista, seja como titular de uma ação especial,inspirada na golden share do direito inglês,como aconteceu no caso da Embraer.

Em todos os países, e inclusive no Brasil,revê-se a própria estrutura do Estado, tanto nassuas relações externas, como na sua própriaformação, para também admitir um maior lequede parceria entre a União, os Estados e osMunicípios.

No direito comercial, a própria sociedadeanônima deixa de ser um conjunto de bens,utilizados por um empresário ou grupo empre-sarial, para transformar-se numa verdadeiraparceria entre acionistas, administradores eempregados, para realizar um fim social comum,ao qual aliás alude a legislação societária, comum equilíbrio adequado entre os interesses ime-diatos e os mais remotos, entre a pretensãoválida e legítima de obter lucros no presente e adecisão, não menos importante, de assegurar oreinvestimento e o desenvolvimento futuro daempresa, com a geração de maior número deempregos e uma melhor qualidade de vida paratodos aqueles que colaboram no empreendi-mento.

A revolução empresarial justifica, pois, quea empresa não mais se identifique exclusiva-mente com o seu proprietário ou controlador,mas represente também a sua diretoria, seusexecutivos, seus técnicos, seus trabalhadores,ou seja, as equipes e os equipamentos que cons-tituem o todo. Tal fato também decorre de nãomais se considerarem como únicos fatores deprodução o capital e o trabalho, mas de se incluir,entre os mesmos, dando-lhe a maior relevância,o saber, ou seja, a tecnologia, que assegura aprodutividade da empresa, abrangendo tantoas técnicas industriais e comerciais como aprópria técnica de gestão, que caracteriza aempresa contemporânea, que é essencialmenteflexível.3

A visão realista do mundo contemporâneoconsidera que não há mais como distinguir oeconômico do social, pois ambos os interessesse encontram e se compatibilizam na empresa,núcleo central da produção e da criação da1 CARDOSO, Fernando Henrique. Mãos à obra

Brasil. Brasília : [S.n.], p. 15.2 Ibidem, p. 17.

3 TOFFLER, Alvin. A empresa flexível. Rio deJaneiro : Record, 1995.

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riqueza, que deve beneficiar tanto o empresáriocomo os empregados e a própria sociedade deconsumo. Não há mais dúvida que, na síntesefeliz de um estadista europeu, são os lucros dehoje que, desde logo, asseguram a melhoria dossalários e que, em seguida, ensejam a criaçãodos empregos de amanhã, em virtude doreinvestimento de parte do capital.

Por outro lado, é a educação e a formaçãode empresários, de técnicos e de trabalhadoresque permitem o progresso e o desenvolvimentodas empresas e dos países, numa fase em queos fatores mais importantes de crescimentoeconômico são o conhecimento e a aquisiçãoda tecnologia. Assim sendo, do mesmo modoque ocorreu uma transformação da função doempresário, houve uma reestruturação ou atéuma reengenharia da empresa, que se preparapara o ano 2000.

Para o empresário, o ciclo da evoluçãotecnológica, que se iniciou com a máquina avapor e prosseguiu com a utilização de novasformas de energia e a introdução da informática,provocou uma verdadeira nova revoluçãoindustrial, com repercussões na economia, nasrelações humanas e na própria estrutura daempresa. A globalização da economia, a veloci-dade crescente dos fatos econômicos, a trans-missão de informação em tempo real, a incertezageneralizada quanto ao futuro e a multiplicação,em progressões geométricas, das operaçõespermitidas pelo uso do computador exigem doadministrador contemporâneo público ouprivado que tenha, ao mesmo tempo, um espíritoempresarial e a consciência de estar exercendosua função no interesse público.4

Uma vez ultrapassada a concepção doEstado-Providência, que desaparece em todosos países5 com a falência das instituições deprevidência social e a redução do papel doEstado nas áreas que não são, necessária eexclusivamente, de sua competência, amplia-sea missão da empresa, como órgão intermediárioentre o poder público e o Estado. É criadora deempregos e formadora de uma mão-de-obraqualificada, produtora de equipamentos maissofisticados, sem os quais a sociedade não podeprosseguir, e interlocutora ágil e dinâmica, quedialoga constantemente com os consumidores

dos seus produtos, numa outra forma deparceria.6

Tanto na Europa, como nos Estados Unidos,advoga-se, hoje, uma evolução do capitalismoque dê a primazia à empresa, fazendo prevaleceros seus interesses a médio e longo prazo sobreos de cada um dos vários grupos nela interes-sados, que geralmente tendem a pensar no curtoprazo e de modo mais egoístico e individualista.

Inspirados, em parte, no capitalismo alemão,japonês e suíço, em oposição ao norte-ameri-cano, autores tão diferentes como o economistado M.I.T. de Boston Lester Thurow (Head tohead), o patriarca dos estudos de managementPeter Drucker (The frontiers of management emais recente Post-capitalist society), o soció-logo Michel Albert (Capitalisme contre capi-talisme) e o empresário Jean Peyrelevade (Pourun capitalisme intelligent) defendem o fortale-cimento institucional das empresas, que são asverdadeiras criadoras da riqueza nacional,devendo caber ao Estado tão-somente a fun-ção de catalisador de um ambiente propício aodesenvolvimento do espírito empresarial e defiscal da boa conduta das entidades quefuncionam de acordo com as leis do mercado.

Peter F. Drucker apontou os problemasespecíficos da empresa, na fase atual da crisemundial, mostrando as suas dificuldades no seulivro Administração em tempos turbulentos, eacrescentando, em entrevista recente, que oadministrador devia saber que as coisas nuncamais serão como antes, cabendo-lhe aproveitar,de modo adequado, os dados fundamentais daempresa, redefinir a sua política de crescimento,utilizando, sempre que cabível, a parceria comoinstrumento do desenvolvimento empresarial.

Em certo sentido, pode-se afirmar que odrama das entidades hodiernas em geral e, emparticular, das empresas decorre do fato deafrontarem os problemas atuais com estruturasdo passado, que se tornaram obsoletas, nomomento em que as transformações tecnoló-gicas fizeram com que não mais prevalecesse aeficiência das antigas técnicas de gestão eorganização do trabalho de Taylor e Ford.7

A sociedade atual pressupõe a descentrali-zação, a informação fluindo rapidamente, maior

4 SHAPIRO, Irving S. America’s third revolution.New York : Harper and Row, 1984. p. IX-XII epassim.

5 ROSANVALLON, Pierre. La crise de l’ÉtatProvidence, Paris : Éd. du Seuil, 1981.

6 NAPOLITANO, Georges. Adu delà de la certi-fication : le partenariat. Paris : Les Editionsd’Organisation, 1995. Especialmente a terceira par-te, p. 119 e segts.

7 SÉRIEYX, Hervé. Le Big Bang des organisati-ons. Paris : Calmann-Levy, 1993. p. 14.

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autonomia dos executivos e empregados, aformação de um consenso e a criação de novamentalidade, de nova forma de pensar e até deuma outra escala de valores.

Enquanto no passado o fabricante condi-cionava o cliente, agora precisa adivinhar quaissão as suas necessidades e até os seus desejosmais secretos. Assim, também no mercado, aorganização de ontem, baseada no comando,está sendo substituída pelo diálogo entreparceiros, com a criação de uma ponte estraté-gica que tem como pilares o interesse do con-sumidor, a rapidez de fluxo das informações ede tomada das decisões, a flexibilidade paraatender às mudanças de circunstâncias e de con-dições do mercado, uma estrutura empresarialbaseada no diálogo e a criação de um verdadeiroengajamento entusiasmado por parte dosempregados e executivos que se devemidentificar com a empresa.8

Este novo espírito também se aplica às rela-ções entre os empresários. As empresasconcorrentes se associam, hoje, sob a forma deconsórcio ou de joint venture, algumas vezesaté criando sociedades específicas (specialpurpose companies), com a finalidade de juntaresforços na produção, na distribuição, ou aténa pesquisa e na exportação. Os maioresdesafios técnicos do mundo moderno, osinvestimentos mais importantes que sãoexigidos pela tecnologia e a preocupação delimitar ou dividir riscos transformaram oscompetidores de ontem em sócios, tendo deter-minadas legislações, como a francesa, criado,por exemplo, novas fórmulas como o grupo deinteresse econômico, que atende a determinadasfunções exercidas pela parceria.

Os próprios indivíduos, na medida em queo Estado não mais consegue assegurar-lhestodos os serviços, nem mesmo a segurança deque necessitam, associam-se para, numafórmula de parceria, garantir a sua segurançanos bairros das cidades ou em determinadosquarteirões.

Haveria muito mais a dizer quanto à parceria,e ao seu novo regime jurídico, devendo-se, nomomento, nessa análise panorâmica, afirmar trêsteses que nos parecerem importantes.

A primeira é a referente à construção dodireito do desenvolvimento, ou seja, ao com-promisso de juristas, magistrados e advogados

de não fazer da ciência jurídica, nem do ordena-mento legislativo, uma camisa-de-força. Maisdo que isso, é a mobilização do direito para setornar um fator de desenvolvimento econômico,como foi, e ainda é, o ingrediente básico queassegura a democracia política. Na realidade, omundo jurídico está ciente de que a democraciapolítica só subsiste e só progride quandocomplementada pela democracia econômica epela democracia social. É uma primeira revolu-ção, que significa o fim da época dos “donosdo poder” aos quais aludiu em excelente mono-grafia um ilustre sociólogo gaúcho.9

Por outro lado, a nova fórmula para garantiro desenvolvimento, de forma dialogada econsensual, é a parceria, que substitui o autori-tarismo do antigo Estado onipotente.

Não se trata de diminuir o papel do Estado,mas sim de dar-lhe maior eficiência nos camposde interesse social nos quais pode e deve atuare excluí-lo de atividades que melhor são atendi-das pela iniciativa privada, mantido o poder-dever de fiscalização das autoridades públicas.

Na realidade, a parceria é o modo pelo quala sociedade civil revê o seu contrato social como Estado, é a fórmula de garantir o equilíbrioentre a economia e o direito, entre os interessesindividuais e os interesses sociais, entre aeficácia e a ética, entre a rigidez do comando e aeqüidade.

Cabe, pois, repensar, também em termosjurídicos, a parceria, dando-lhe a formaadequada, revendo conceitos e repensandoregimes jurídicos, diante de uma nova escala devalores e de um espírito novo, que exigem areformulação dos institutos jurídicos, em todosos setores, desde o direito administrativo e odireito comercial até o direito do trabalho e opróprio direito civil.

O mundo jurídico brasileiro continuou pormuito tempo refletindo a família patriarcal, apolítica dos governadores, que se inspirou nascapitanias hereditárias de outrora, a onipotênciade uma burocracia que, em nome do Estado, e,algumas vezes, no seu próprio interesse corpo-rativo, desconhecia e desrespeitava interessesindividuais e sociais, e que não tinha qualquerparcela de espírito empresarial.

Chegou a hora de construir uma novadogmática jurídica que possa corresponder aodireito do desenvolvimento e ao espírito daparceria, sem sacrificar a segurança jurídica e8 CROZIER, Michel, SÉRIEYZ, Hervé. Du

management panique à l’entrepise du siècle. Paris :Maxima, 1994. p. 35-36.

9 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. PortoAlegre : Globo, 1958.

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sem descambar para o perigo de decisões sub-jetivas que caracterizam o direito alternativo.

Os juristas que analisaram a sociedadeanônima e o papel que desempenhou na históriamais recente do mundo nela viram um instru-mento tão importante, para permitir o desenvol-vimento dos homens e dos povos, quanto o foia utilização da máquina a vapor ou da eletri-cidade.

Talvez, inspirando-se parcialmente nosprincípios que regem o direito societário e a jointventure, possa a parceria, no mundo atual,caracterizado pela economia das massas,renovar o direito em geral e o direito adminis-trativo, em particular, para permitir que o Estado,que sofre em virtude da limitação dos seusrecursos, possa, não obstante, oferecer osmelhores serviços, mediante delegação ouparceria com os particulares. Uma melhorconceituação da parceria também poderiarenovar o direito privado, especialmente o

direito mercantil, e até o direito internacional,dando novas bases ao entendimento entre ospovos.

No momento em que sociólogos, adminis-tradores e economistas recorrem à reengenhariae pregam as virtudes do espírito empresarial,cabe ao jurista reestruturar em termos jurídicosa parceria, definir os seus requisitos e os seusefeitos, fazer as distinções cabíveis, deduzir oalcance dos princípios que lhe são inerentes,enfim construir uma nova dogmática jurídicainspirada no papel que pode e deve exercer aparceria, sob todas as suas formas no mundohodierno.

Se estamos assistindo a uma revoluçãosilenciosa e construtiva da sociedade brasileira,o direito dela não pode estar ausente, cabendoao jurista, ao advogado e ao magistrado fazer asua reciclagem e preparar o futuro das nossasinstituições e das novas técnicas jurídicas.

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Recolhimento de contribuição previdenciáriae imposto de renda na fonte em processosjudiciais trabalhistas

O tema abordado consiste na discussão emtorno do recolhimento de contribuição previ-denciária e do imposto de renda nos processosem seara trabalhista, quando o juiz da execuçãodetermina a expedição de alvará ao exeqüente,autorizando-o a levantar o depósito integral, semas devidas retenções.

Inicialmente, oportuno esclarecermos queem sede trabalhista a liquidação de sentençadestoa em alguns aspectos do processo comum.

Na esfera trabalhista a execução é discipli-nada pelo artigo 876 da CLT e seguintes,possuindo procedimentos próprios que se afas-tam daqueles contidos no Código de ProcessoCivil.

Ressalta-se que a CLT, em seu artigo 8º,parágrafo único, reza que, por possuir o Direitodo Trabalho regras próprias, incabível aaplicação subsidiária das regras de direitocomum, contidas no Código de Processo Civil.

Hodiernamente, em sede de Direito Previ-denciário e Tributário, determinadas regrasjurídicas têm repercussão direta na esferatrabalhista.

Tais regras encontram-se disciplinadas noCódigo Tributário Nacional e na Lei nº 8.212 de24 de julho de 1991, que dispõe sobre a organi-zação da seguridade social.

Os artigos 43 e 45 do CTN rezam que:“Artigo 43 – O imposto de compe-

tência da União, sobre a renda e proven-tos de qualquer natureza, tem como fatogerador a aquisição da disponibilidadeeconômica ou jurídica.

Artigo 45 – Contribuinte do impostoé o titular da disponibilidade a que serefere o artigo 43, sem prejuízo de

Paulo Fernando de Almeida Cabral é Advogado daPetrobrás Distribuidora S/A, Advogado Trabalhistamilitante no Rio de Janeiro e Professor de LegislaçãoTributária da Faculdade Moraes Junior - RJ.

PAULO FERNANDO DE ALMEIDA CABRAL

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qualquer título, dos bens produtores derenda ou dos proventos.”

Conseqüentemente, o entendimento predo-minante é no sentido de que o recebimento deindenizações trabalhistas no âmbito da Justiçado Trabalho, quer sejam em decorrência de umasentença, ou homologação de acordo, sofrem aincidência de Imposto de Renda, consoante oprescrito no artigo 43 do CTN.

Uma corrente minoritária entende que orecebimento dessas indenizações, por não gerarrendas ou acréscimos patrimoniais (proventos)de qualquer natureza, nem riquezas novasdisponíveis, mas sim reparações em pecúnia porperda de direitos, ou não-pagamento de direitos,não gera a incidência do recolhimento doimposto de renda.

Enfatizam os adeptos desta corrente mino-ritária que o patrimônio da pessoa lesada nãoaumenta de valor, mas é apenas reposto aoestado em que se encontrava antes do adventodo gravame. Sustentam ainda que na indeni-zação inexiste riqueza nova, e sem riqueza novanão pode haver incidência de IRRF ou de qual-quer outro imposto da competência residual daUnião, neste último caso por ausência de indíciode capacidade contributiva, que é o princípioinformador da tributação por meio de impostosex vi do artigo 145, parágrafo 1º, da CF/88.

No caso específico, os empregados recla-mantes é que teriam o legítimo interesse de sus-tentar tais teses em juízo, a fim de não recolheremo imposto de renda sobre as indenizações rece-bidas, não havendo obviamente qualquer inte-resse por parte das empresas reclamadas.

Com relação à Lei nº 8.212 de 24 de julho de1991, que dispõe sobre a organização da segu-ridade social, os contornos de incidência naesfera trabalhista são mais evidentes, conformese verifica através da leitura dos artigos 43,parágrafo único, e 44, do referido diploma legal,a saber:

“Artigo 43 – Nas ações trabalhistasde que resultar o pagamento de direitossujeitos à incidência de contribuiçãoprevidenciária, o juiz, sob pena deresponsabilidade, determinará o imediatorecolhimento das importâncias devidasà seguridade social.

Parágrafo Único – Nas sentençasjudiciais ou nos acordos homologadosem que não figurem discriminadamente

as parcelas legais relativas à contribuiçãoprevidenciária, esta incidirá sobre o valorapurado em liquidação de sentença ousobre o valor homologado.

Artigo 44 – A autoridade judicialvelará pelo fiel cumprimento do dispostono artigo anterior, inclusive fazendoexpedir notificação ao Instituto Nacionaldo Seguro Social – INSS.”

Na fase de execução trabalhista,havendo impugnação aos cálculos apre-sentados pelo reclamante, exeqüente,algumas precauções devem ser tomadas,como, por exemplo, as deduções relativasà contribuição previdenciária e aoimposto de renda, e a observância doprazo de 10 (dez) dias para impugnação.

Isto porque, com o advento da Lei nº8.432 de 11 de junho de 1992, o artigo 879da CLT passou a ter a sua redação acres-cida do parágrafo segundo, a saber:

“§ 2º Elaborada a conta e tomadalíquida, o juiz poderá abrir às partes prazosucessivo de 10 (dez) dias para impug-nação fundamentada com a indicação dositens e valores objeto da discordância,sob pena de preclusão.”

O problema maior surge quando o magis-trado da execução, inadvertidamente, determinao levantamento do depósito judicial garantidordos embargos à execução julgados improce-dentes, de forma integral, causando sériosprejuízos à empresa reclamada.

Seria oportuno, a fim de evitar que taissituações ocorram, que a empresa reclamada, jána sua peça contestatória, requeresse que, emcaso de uma sentença procedente in totum ouparcialmente, a MM. Junta desde então discri-minasse as parcelas legais relativas à contri-buição previdenciária a serem deduzidas, bemcomo a quota do imposto de renda.

Caso houvesse alguma omissão na sentença,a empresa reclamada poderia opor embargos dedeclaração, obrigando que a MM. Junta sepronunciasse a respeito.

Concluindo, os procedimentos acima trans-critos evitariam uma possível autuação daempresa reclamada pelo Fisco, uma vez que overdadeiro contribuinte de fato e de direito é oempregado reclamante, segundo correntemajoritária.

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Bibliografia

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição daRepública Federativa do Brasil : promulgada em

5 de outubro de 1988. Organização dos textos,notas remissivas e índices por Juarez de Olivei-ra. 13. ed. atual. e ampl. São Paulo : Saraiva,1996. 200 p.

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Solução de controvérsias e efetividadejurídica: as perspectivas do Mercosul

Texto atualizado de conferência apresentada noseminário Solución de Controversias y Resoluciónde Conflicto de Intereses, do Ministério de RelaçõesExteriores, da Argentina e da União Européia, BuenosAires, 15 de novembro de l995.

JORGE LUIZ FONTOURA NOGUEIRA

Jorge Luiz Fontoura Nogueira é Doutor em DireitoInternacional Público, Consultor da Comissão deRelações Exteriores do Conselho Federal da Ordemdos Advogados do Brasil e Consultor Legislativo doSenado Federal.

Conforme o Professor Wolff Grabendorff,diretor do IRELA, Instituto de Relações com aAmérica Latina, da União Européia, sempreafirma em suas conferências, com procedenteautoridade, não há modelos para processos deintegração econômica e cada caso apresentatodo um conjunto próprio de idiossincrasias ecircunstâncias. Não podemos descartar, noentanto, o fato de que uma das vantagens dacivilização é a que nos desobriga a inventar duasvezes a mesma coisa.

Também é certo que não nascemos em ummundo vazio de História, na feliz expressão doProfessor Estevão Chaves de Rezende Martins,da Universidade de Brasília.1

Nesse sentido, no momento em que oMercosul ultrapassa a sua fase de decisõesseminais, para conformar-se como a terceirazona aduaneira de toda a História,2 é imponde-rável que lancemos os olhos para a experiênciaeuropéia e procuremos aproveitar suas liçõesde passado recente.

No que diz respeito ao tema específico dasolução de controvérsias no âmbito das inte-grações, o modelo União Européia nos mostracom clareza meridiana que o mesmo se constituino elemento fundamental de toda a dinâmicacomunitária, edificando-se como verdadeira

1 Correio Braziliense. Brasília, 14 nov. l995. SérieEstudos.

2 Os outros dois processos de zona aduaneiraregistrados historicamente são os que se referem àUnião Aduaneira dos Estados Alemães, ZOLLVE-REIN, a partir da ação política prussiana, no processode Unificação Alemã, no século passado, e a recenteUnião Aduaneira, protagonizada pelos Estadoseuropeus aderentes ao Tratado de Roma.

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pedra angular de um sistema de direito comuni-tário, garantia da eficácia e do sucesso doprocesso de integração como um todo.

Podemos ainda haurir da experiência européiaque o modelo de solução de controvérsias aliinstituído, corolário do próprio ordenamentojurídico comunitário europeu, constitui-se, semdúvida, em um dos mais profícuos trabalhos deelaboração jurídica, onde a hegemonia das idéiasimpôs-se a inúmeros preconceitos e credu-lidades pretensamente dogmático-jurídicas, coma inscrição de uma das mais criativas páginasda ciência do Direito.

Quando os países do Mercosul buscam,agora, a implementação das linhas previstasprogramaticamente no Concerto de Assunçãoe desdobradas nos Protocolos de Brasília e OuroPreto, urge que façamos algumas reflexõesinadiáveis e de grandes implicações em relaçãoao tema solução de controvérsias.

A velocidade de implantação do Mercosulfoi fulminante. Mercê, é verdade, de uma tessi-tura conjuntural absolutamente favorável, mastambém, e indubitavelmente, graças ao bomtrabalho dos “mercocratas” e da diplomacia deresultados que se impôs ao projeto (que tãobem soube acomodar o irresolúvel, com osregimes de exceção e salvaguardas providen-ciais), em um breve lapso de tempo, passou-sedas primeiras reuniões preparatórias à elabo-rada personalidade jurídica de Direito Públicoexterno, como está insculpido no art. 37 doProtocolo de Ouro Preto.3

Observe-se ainda que o Mercosul, comoneonato sujeito de Direito Internacional Público,já de imediato exprimiu formalmente sua voz,com a assinatura em l5 de dezembro de l995 doAcordo de Madri, acordo-quadro de coope-ração com a União Européia, na presença solenede todos os chefes de Estado de ambos osblocos, à exceção do Presidente da RepúblicaFederativa do Brasil, que subscreveu o docu-mento somente em 20 de dezembro de l995, trêsdias após a ratificação pelo seu país, verificada

em l7 de dezembro.Quando os críticos da França commu-

nautaire reclamavam, no segundo pós-guerra,que o Ministro Schuman queria desfazer empoucas décadas o que os capetíngios haviamconstruído por quase mil anos, em referência àconstrução da nação gálica, provavelmente nãose imaginava a celeridade do iter Mercosul, con-forme temos assistido nesta última década doséculo XX.

Uma das conseqüências do avassaladorprocesso foi, no entanto, a falta de tempo paraa maturação da idéia da integração e, especifi-camente no campo do Direito, a ausência deuma massa crítica apta a compreender a abran-gência e o significado da mundialização da eco-nomia e de suas ingentes demandas jurídicas.

Ao enfrentarmos criticamente a questão dasolução de controvérsias, constatamos a grandedificuldade, e mesmo nosso despreparo comooperadores jurídicos, diante do admirávelmundo novo que se nos auspicia, em que anovidade dos desafios contrasta fragorosa-mente com a mesmice das atitudes.

Agravando essa situação, incide o poucointeresse que desperta o Direito InternacionalPúblico, e isso em toda a América Latina,conforme demonstram reiterados estudos doComitê Jurídico Interamericano da OEA e daAssociação Interamericana de Advogados.

Toda integração parte necessariamente deum tratado entre Estados, o que conduz à atitudede base para o primeiro approach com o DireitoComunitário. Tal atitude será inexoravelmente aque concerne ao Direito Internacional Públicoe, como todos sabemos, comumente ainda se oconsidera em nosso meio “como uma disciplinapseudojurídica, de pouca utilidade prática e quese insere no notório rol das perfumariasjurídicas”. Sabe-se também que em muitos dosnossos cursos e faculdades de Direito a matériaé opcional, não-obrigatória ou simplesmenteignorada na graduação. No âmbito de pós-graduação, o quadro é ainda mais grave, poisraríssimas são as ofertas de cursos com habili-tação específica na área, o que traz irreparáveis

3 O Brasil foi o último país a ratificar o Protocolode Ouro Preto, tendo em vista algumas dificuldadespolíticas em sua apreciação legislativa, especialmenteno Senado Federal, onde foram levantadas subs-tanciais questões de constitucionalidade, consideradoo preceito constitucional brasileiro que determina quese proceda a outorga legislativa em todos os “...trata-dos, acordos e atos internacionais que acarretemencargos ou compromissos gravosos ao patrimônionacional”, art. 49, inciso I, da Carta de 1988. A auto-

aplicação de algumas decisões comunitárias, comopoderia ser interpretado em algumas passagens doProtocolo de Ouro Preto, independendo de ratifi-cação dos Estados signatários, conformaria violaçãoao preceito constitucional arrolado. No entanto,acabou prevalecendo o entendimento contrário,conducente ao Decreto Legislativo nº 188, de 1995,autorizativo da ratificação e publicado no DiárioOficial da União de 18 de dezembro de 1995.

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conseqüências na formação de professores ena produção doutrinária. Enfim, escreve-seminimamente sobre o “direito das gentes”,produzindo-se pouquíssima doutrina, com a dis-ciplina ainda se inserindo no âmbito do exóticoe pouco difundido.4

Como conseqüência inevitável desse quadrode abandono, há uma grande perplexidade emrelação a temas básicos de Direito Internacionalem suas relações com o Direito Constitucional,como, por exemplo, à questão da hierarquia dotratado no ordenamento jurídico interno e aoque ocorre no caso do conflito entre a normainternacional e a norma interna antitética, como estudo das clássicas concepções doutrináriasdo monismo e do dualismo.

No Direito brasileiro, por exemplo, não hátradição de constitucionalização do tratado,sendo a questão formulada pela via jurispru-dencial, através de julgamentos pregressos doSupremo Tribunal Federal. Conforme o casopadrão, Recurso Extraordinário-PR 71.154/1971,tendo sido relator da matéria o Ministro Oswal-do Trigueiro, consagrou-se em um primeiromomento o monismo jurídico, nos termos daseguinte ementa:

“...Aprovada a Convenção peloCongresso e regularmente promulgada,suas normas têm aplicação imediata,inclusive naquilo em que modificarem alegislação interna”.5

Em seu voto, acolhido por unanimidade, o ilustrerelator assinalou:

“A Constituição inclui, na compe-tência do Supremo Tribunal, a atribuiçãode julgar, mediante recurso extraordinário,causas oriundas de decisão da instânciainferior quando for contrária à letra dotratado ou lei federal. A meu ver, essanorma consagra a vigência dos tratadosindependentemente de lei especial.

Porque se essa vigência dependesse delei, a referência a tratado, no dispositivoconstitucional, seria de todo ociosa. Poroutras palavras, a Constituição prevê anegativa de vigência da lei e a negativada vigência do tratado, exigindo para avalidade deste a aprovação pelo Con-gresso Nacional, porém não sua repro-dução formal em texto de legislaçãointerna”.

Em outro julgamento, seis anos após, aExcelsa Corte entendeu, no Recurso Extra-ordinário 80.004-SE -1977,6 tendo sido venci-do o relator, Ministro Xavier de Albuquerque,que a lei nacional contrária ao tratado, posteriora sua ratificação, prevalece e afasta a aplicaçãodo primeiro, negando a primazia da norma inter-nacional, contrariando, desta forma, a grandetendência do Direito moderno de privilegiar omonismo com prevalência do Direito Internaci-onal.7 São exemplos a Constituição da Repúblicada França de l958, em seu art. 55, e a Constitui-ção da República Italiana de l946, em seu art.10.A mais antiga disposição constitucional comeste teor se verifica na Carta dos Estados Unidosda América, que equipara os tratados às leisfederais, reconhecendo a característica que lhesé ínsita de supreme law of the land. Mereceriareferência ainda a posição do Uruguai, onde,conforme assinala Plá Rodriguez, a ratificaçãodo tratado, que decorre de sua aprovação porato legislativo, tem efeitos internos diretos eimediatos, sem necessidade de qualquer atolegislativo posterior. Convém salientar que aRepública Argentina, após reiterada elaboraçãojurisprudencial no sentido de privilegiar omonismo com prevalência da norma interna-cional (no qual o caso Cafés La Virgínia S.A.,sentença de 9 de junho de l994, destaca-se),8 aca-bou por incorporar expressamente tal princípio

4 Em recente artigo em Direito e Justiça, CorreioBraziliense, 5 de fevereiro de 1995, o Professor CarlosFernando Mathias de Sousa, da Universidade deBrasília, assinalou interessante tendência do direitocontemporâneo à internacionalização dos tribunais,vale dizer, à valorização do Direito InternacionalPúblico, citando a experiência da Corte de Justiçadas Comunidades Européias, lembrando que suacompetência se estende a conflitos em que sejampartes tanto os Estados, órgãos das comunidades,como ainda os próprios indivíduos, empresas e demaispessoas jurídicas.

5 REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRU-DÊNCIA, Brasília : STF, n. 58, p. 71.

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE80.004. Acórdão de 1 de junho de 1977. RevistaTrimestral de Jurisprudência, Brasília, n. 83, p. 809.

7 Tal posição, negando a primazia da normainternacional sobre a nacional, colidiu também com opróprio Direito Tributário brasileiro que, no seuCódigo Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25 deoutubro de 1966, estabelecia em seu artigo 98: “Ostratados e as convenções internacionais revogam oumodificam a legislação tributária interna e serãoobservados pela que lhe sobrevenha.”

8 BOGGIANO, Antonio. Relaciones exterioresde los ordenamientos jurídicos, Buenos Aires : LaRey, 1995. p.638 . Apéndice : Jurisprudencia de laCorte Suprema.

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De toda sorte, a questão é muito interes-sante e atualíssima, trazida constantemente àbaila, à proporção que países integram-se àrealidade mundial, propondo-se a projetos deintegração econômica. Não podemos nos eximirde afirmar, nesse sentido, que muitos profis-sionais do Direito, surpreendidos pela veloci-dade de implantação do Mercosul, encontram-se em um certo estado de perplexidade, redes-cobrindo ou mesmo descobrindo o DireitoInternacional, no vórtice de inovações trazidaspelos novos tempos.

Em relação específica à questão da constru-ção de um sistema de solução de controvérsiasem meio a uma cultura jurídica pouco afeta oumesmo refratária ao Direito Internacional Públi-co, verificam-se, em conseqüência, grandesdificuldades iniciais, até porque os própriosinstitutos de solução de controvérsias, típicosda prática internacional, são no mais das vezesalheios às práticas de Municipal Law. Na atualrealidade jurídica brasileira, por exemplo, falar-se em mediação ou arbitragem, mesmo emdemandas jurídicas exclusivamente comerciais,ainda é considerar prática longínqua e impro-vável,10 aparentemente inaplicável a efetivasnecessidades sociais, não obstante os trabalhosque se tem desenvolvido junto às própriasinstituições de advocacia organizada dos paísesdo Mercosul11.

Com todos os perigos que as esquematiza-ções engendram, podemos classificar, grossomodo, as formas de solução de controvérsiasdos processos de integração em dois grandessistemas: o primeiro de blocos intergoverna-mentais e o segundo de blocos supranacionais.

A supranacionalidade, sem sombra dedúvidas, é o sistema mais apto à sofisticaçãodos mercados comuns e o que mais se adequaàs características de um direito comunitário ideal,

no próprio permissivo constitucional, após arecente reforma de 1994.9

Não se pode ainda desconsiderar que aConvenção de Viena sobre o direito dostratados, em vigor na Argentina desde 27 dejaneiro de 1980, aprovada pela Lei nº 19.865,e no Brasil em fase de apreciação legislativapara efeitos de autorização de ratificação,após ter sido assinada em 23 de maio de 1969,estabelece a primazia do direito internacionalconvencional sobre o direito interno. Tal pos-tura, contida nos termos de seu art. 27, esta-belece que uma parte não poderá invocardisposições de seu direito interno como justifi-cação do não-cumprimento de um tratado.

Nesse passo, é fundamental que osEstados que se propõem a conviver emespaços jurídicos comunitários definam-seclaramente com relação à questão da forçavinculante dos tratados vis-à-vis ao ordena-mento jurídico interno, seja pela via consti-tucional de definição da norma de conflito,seja pela via da elaboração jurisprudencial,com a criação de uma convicção político-jurídica sem a qual nenhum processo deintegração pode edificar-se. Não é de seesperar, a propósito, que investidores edemais operadores econômicos se interessempor um mercado onde não se saiba, comrazoável segurança jurídica, quais sejam asleis aplicáveis e quais suas efetividades emrelação a hipotéticos conflitos de interesses.

9 Outro importante caso antecedente, na Justiçaplatina, julgado dois anos antes, em 7 de julho de1992, Ekmekdjian versus Sofovich, também marcoua construção jurisprudencial da prevalência do tratadointernacional. Neste específico julgamento, a CorteSuprema argentina decidiu nos seguintes termos:

“que un tratado internacional constitucionalmentecelebrado, incluyendo su ratificación internacional,es orgánicamente federal, pues el Poder Ejecutivoconcluye y firma tratados (art. 86, inc. 4, C.N.), elCongreso Nacional los desecha o aprueba medianteleyes federales (art. 67, inc. 19, C.N.) y el PoderEjecutivo Nacional ratifica los tratados aprobadospor ley, emitiendo un acto federal de autoridadnacional. La derogación de un tratado internacionalpor una ley del Congreso violenta la distribución decompetencias impuesta por la misma ConstituciónNacional, porque mediante una ley se podríaderogar el acto complejo federal de la celebración deun tratado. Constituiría un avance inconstitucionaldel Poder Legislativo Nacional sobre atribuicionesdel Poder Ejecutivo Nacional, que es quien conduceexclusiva y excluyentemente, las relaciones exterio-res de la Nación (art. 86, inc. 14, C.N.).”

10 Tramita no Senado Federal brasileiro o Projetode Lei nº 78, de l992, que dispõe sobre a fixação denormas e hipóteses para a arbitragem, bem comosobre o reconhecimento e a execução de decisõesarbitrais estrangeiras, através de homologações peloSupremo Tribunal Federal.

11 Há também, com referência à arbitragem,estudos que estão sendo realizados pelas entidadesde advocacia organizada dos países do Mercosul,reunidas no órgão que congrega representantes doColégios e Ordem dos Advogados dos países doMercosul, COADEM, que deverão propor umdocumento básico de regulamentação da conciliaçãoe arbitragem em relação às questões de DireitoPrivado, comum aos países do Mercosul.

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que inclua todas as características da neodis-ciplina, a saber: efeito direto e primazia em rela-ção aos ordenamentos jurídicos dos Estadoscomunitários, exigibilidade e cogência nosespaços jurisdicionáveis dos Estados-partes,bem como a uniformidade de interpretação eaplicação, mediante as mais sofisticadas técni-cas, como, por exemplo, o criativo reenvio pre-judicial que, no modelo da União Européia, faz-se nos termos do art. l77 do Tratado de Roma12.

É de fato muito difícil cogitarmos uma estru-tura comunitária, com a implantação das quatroliberdades típicas dos mercados comuns (semnunca esquecer a quinta liberdade, a daconcorrência, como costuma lembrar o Pro-fessor Werter Faria, Presidente da AssociaçãoBrasileira de Estudos da Integração), sem aflexibilização da livre circulação de bens ou detarifa externa comum, desprovida de uma cortede justiça comunitária. Na ausência desta,poder-se-ia vislumbrar, no mínimo, um tribunalarbitral permanente, outra instituição comfeições cristalinamente supranacionais ou detransição à supranacionalidade.

No modelo Mercosul que temos adotado,por motivos de fácil percepção, seguiu-se atrilha “soberanófila” do sistema intergoverna-mental, consubstanciado à exaustão nos artigos16 do Tratado de Assunção e 37 do Protocolo

de Ouro Preto.13 Como decorrência, nadahaveria no ordenamento mercosuliano que nospermitisse vislumbrar sequer resquícios de umaefetividade jurídica comunitária, com o princípioda primazia das normas do Mercosul sobre asnormas internas conflitantes. Não há, porconseguinte, uma clara e sólida definição dahierarquia das normas comunitárias, quepermanecem dependendo dos “ventos e marés”do tratamento constitucional ou, no silêncio daCarta, da fluidez e inconstância da elaboraçãojurisprudencial.

A inelutável decorrência da opção políticaque gerou o Mercosul intergovernamental, comuma estrutura funcional de grande simplicidadee com instituições comunitárias muito singelas,determinou inclusive o curioso fato de não ter ainstituição quadro funcional próprio. Todos osseus operadores técnicos e mesmo políticos,em verdade, são ou funcionários de seuspróprios governos ou autoridades estatais.

Tudo isto conduz a um sistema de solução decontrovérsias igualmente simplificado, como querser o próprio Mercosul, mesmo após o Protocolode Ouro Preto, formalmente designado deProtocolo Adicional ao Tratado de Assunçãosobre a Estrutura Institucional do Mercosul.

No que concerne à eficácia de tal sistema desolução de controvérsias, a rigor ainda nada sepode adiantar, tendo em vista não ter sido acio-nado sequer uma vez. Diante da possibilidadede controvérsias de natureza essencialmentecomercial, os cristais foram extremamente bemembalados, com salvaguardas e flexibilizaçõesque geraram, de fato, uma zona parcial de livrecomércio e uma união aduaneira de tarifa externaincomum. Tal acomodação, que minimizou apossibilidade de controvérsias, impossibilitou,no entanto, que concretamente se colocasse àprova o sistema do Mercosul, consubstanciadono Protocolo de Brasília para a Solução de

12 “Art. l77. O Tribunal de Justiça é competentepara decidir, a título prejudicial:

a) sobre a interpretação do presente tratado;b) sobre a validade e interpretação dos actos

adotados pelas instituições comunitárias;c) sobre a interpretação dos estatutos dos orga-

nismos criados por um acto do Conselho, desde queestes estatutos o prevejam.

Sempre que uma questão desta natureza sejasuscitada perante qualquer órgão juridiscional de umdos Estados-membros, esse órgão pode, se considerarque uma decisão sobre essa questão é necessária aojulgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiçaque sobre ela pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza sejasuscitada em processo pendente perante um órgãojurisdicional nacional cujas decisões não sejamsusceptíveis de recurso judicial previsto no direitointerno, esse órgão é obrigado a submeter a questãoao Tribunal de Justiça.”

Certamente a parte final do dispositivo, que cons-trange à via prejudicial em casos de julgamentosnacionais de última instância (“tale giurisdizione étenuta a...”, na versão em italiano do Tratado deRoma) é a que mais estupefaz a nossa visão latino-americana do exercício da jurisdição.

13 A professora Martha Lucía de Olivar Jimenezregistrou em recente artigo: “Que gran paso se habríadado em prol de la fomación de un orden jurídicocomunitario si el Protocolo hubiese consagrado undispositivo garantizando la primacía de las normasdel Mercosur sobre las normas internas contrarias através de la imposibilidad del Estado de emitir legis-lación contraria.” In : MERCOSUL : seus EfeitosJurídicos, Políticos e Econômicos nos Estados-Membros. Organizadora Maristela Basso. PortoAlegre : Livraria do Advogado, 1995. Comprensióndel concepto de derecho comunitario para unaverdadera integración en el Cono Sur.

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Revista de Informação Legislativa148

Controvérsias, de 17 de dezembro de l99l.14

Fruto de projeto básico apresentado peladelegação argentina, chefiada pelo consultorjurídico da chancelaria platina Ministro AlbertoDaverede e contando com a participação ativado Embaixador Jorge Perez Otermin, Diretor doInstituto Artigas de Serviço Exterior, do Uruguai,o grupo ad hoc encarregado de redigir o Projetode Solução de Controvérsias para o períodotransitório, conforme previa o próprio Tratadode Assunção em seu anexo III, laborou eficaz erapidamente. Assim, oito meses após a assina-tura do Tratado de Assunção, em março de l99le antes mesmo de sua entrada em vigor, entrega-va-se o Projeto ao Grupo Mercado Comum, pron-to para ser firmado, no dia l7 de dezembro de l991,na reunião de Presidentes ocorrida em Brasília.

Optando pelo modelo de negociação direta,na primeira fase, com a intervenção da autori-dade comunitária, Grupo Mercado Comum(GMC), na segunda fase, e, por último, peloprocedimento arbitral ad hoc, o Projeto descar-tou a utilização de corte permanente, emboratenham sido detalhadamente estudados osmodelos da Corte do Luxemburgo da UniãoEuropéia e do Tribunal Andino de Justiça.15

Vocacionado à transitoriedade até a UniãoAduaneira, quando deveria ser redimensionadocom as instituições permanentes, o Protocolo de

Brasília acabou sendo preservado pelo Protocolode Ouro Preto (Cap. VI, art. 43), com o intuitoexpressamente consignado de criar-se um defini-tivo sistema de solução de controvérsias ao finalda convergência da Tarifa Externa Comum, ouseja, forma elegante de dizer-se “não se sabequando”, ou por outra “quando for possível”.

Embora, conforme já salientamos, o SistemaTransitório não tenha sido utilizado praticamen-te em nenhuma ocasião (na verdade em umaúnica vez na qual não foi necessário ir-se alémda fase de consultas, por ocasião da questãodos automotores), inúmeros são os seuscríticos, em face de razões que se resumembasicamente na convicção da impossibilidadedo progresso comunitário sem um tribunalpermanente, que possa constituir-se a pedraangular de um direito comunitário, sine qua nonao sucesso de qualquer processo de integração.

No Brasil, os grandes emuladores da idéiada Corte de Justiça Comunitária, e ao mesmotempo, et pour cause, críticos do Protocolo deBrasília, seguem, grosso modo, a posição doProfessor Werter Faria, que suscita ainda aquestão da hermeticidade do sistema oficial,diante da dificuldade de utilização pelos parti-culares,16 bem como a questão da pouca experi-

14 O Protocolo de Brasília foi ratificado pelo Brasil,após uma tramitação legislativa não isenta dequestionamentos quanto à sua constitucionalidade elegalidade, tendo em vista o tratamento constitucionalbrasileiro já comentado, tendo sido, no entanto,promulgado em 10 de setembro de 1993 e publicadono Diário Oficial da União em 13 de setembro de1993, às folhas 13.552 e seguintes.

15 O Professor Guido Fernando Silva Soares assi-nala que, não obstante os mecanismos de solução decontrovérsias previstos originariamente no Protoco-lo de Brasília serem inovadores em relação aos meca-nismos da ALADI e do Tratado de Integração e Co-operação e Desenvolvimento estabelecido entre Bra-sil e Argentina (1988), ainda são muito tímidos dian-te da realidade e das potencialidades do processo.Acrescenta ainda o eminente diplomata e Professor-Titular de Direito Internacional da Faculdade de Di-reito do Largo São Francisco que “as soluções extra-judiciárias contempladas, embora tímidas, podem re-presentar a semente de um futuro Poder JudiciárioTransnacional, à semelhança do que ocorre em ou-tras organizações internacionais regionais de integra-ção econômica e de comércio.” (As Instituições doMercosul e as Soluções de Litígios no seu Âmbito –sugestões de lege ferenda, in: Mercosul, das Negoci-ações à Implantação, São Paulo, LTR, 1994)

16 Em declaração ao jornal Gazeta Mercantil, 21de julho de 1995, o Dr. Carlos Eduardo Caputo Bas-tos, representante brasileiro no Colégios e Ordemdos Advogados do Mercosul (COADEM), conside-rou que “o Protocolo de Brasília foi criado com re-gras tão complexas que praticamente inviabilizam asua aplicação. Há em qualquer tipo de processo aexigência de que o Estado-membro apoie a acusaçãoda empresa instalada em seu território, o que tornasua utilização muito difícil.”

Assinala ainda o Dr. Caputo Bastos que com oadvento do Protocolo de Brasília introduziu-se apossibilidade de os particulares valerem-se do pro-cedimento nele preconizado para solução de confli-tos com os Estados-Partes. Trata-se de um procedi-mento complicado, e em nada dinâmico, por issomesmo objeto de muitas críticas. Manteve-se a dis-posição referente às negociações diretas e, não resol-vido o conflito, submissão da controvérsia ao GrupoMercado Comum.

O pleito particular submete-se, previamente, aojuízo de admissibilidade pela Secretaria Nacional doseu respectivo Estado-Parte, e, somente após a suaavaliação, é que estará hábil a percorrer o procedi-mento estabelecido pelo Protocolo de Brasília, e che-gar, quem sabe, ao Juízo Arbitral.

A par disso, que poderá ensejar, à toda evidên-cia, o ingresso em juízo todas as vezes que a autori-dade administrativa recusar fundamento à infração

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ência brasileira no emprego da arbitragem, quede resto conta com muitos críticos também naArgentina , onde o tema é bem mais debatido econhecido.

Dessa mesma linha também compartilhamas Professoras Maristela Basso, da Faculdadede Direito da Universidade de São Paulo, BeatrizDuraes e Elizabeth Accioly Pinto de Almeida,da Universidade Federal do Paraná e daFaculdade de Direito de Curitiba, respectiva-mente, tendo esta última em recente artigo acer-bamente registrado que é impossível cogitar-sea existência de um mercado comum, na ausên-cia de instâncias judiciais supranacionais nosmoldes de um Tribunal de Justiça comunitário.17

Tratam-se de argumentos absolutamenterazoáveis e escorreitamente formulados, contraos quais muito pouco ou quase nada há de sepoder formular, abstraídos os porquês políticosque rigidamente condicionam os caminhos daintegração.

Em outro tom, mais compreensivo para asinjunções políticas e os limites institucionaisdentro dos quais podem se mover os “merco-cratas”, o Professor Luiz Olavo Baptista, daUniversidade de São Paulo, tem procuradomostrar que o Mercosul possível, fundado narealidade dos fatos, é o caminho mais seguropara o sucesso do Tratado de Assunção, quenão é um Tratado de constituição de mercadocomum, mas um tratado para a constituição demercado comum, com timbre, portanto,manifestamente programático e proposto àdistensão no tempo.

Adverte ainda o Professor Luiz OlavoBaptista para a imponderabilidade de umaestrutura supra-estatal na atual conformaçãoconstitucional brasileira, bem como para todauma gama de fatores políticos, jurídicos e

culturais facilmente compreensíveis e queestariam a impedir a adoção de outros caminhos.

Claro que esta transitoriedade referida cons-tantemente no tratado institutivo do Mercosule seus Protocolos reflete o próprio espíritoprogressivo que estruturas de integração inter-governamental invariavelmente comportam.

Bem a propósito, ao falar em Brasília nareunião dos representantes dos partidospolíticos do Mercosul, em Seminário denomi-nado O que pensam do Mercosul, em outubrode l995, o chanceler brasileiro Luis FelipeLampréia resumiu em poucas palavras o queparece ser o comum entendimento dos mentorespolíticos que conduzem a integração merco-suliana. Há, como se depreende, um manifestointeresse em seu aprofundamento e consoli-dação paulatina, em absoluta convergência como que manifestou o chanceler Guido di Tella,poucos dias depois, ao falar na abertura doseminário Solución de Controversias y MediosInstitucionales para la Resolución de losConflictos de Intereses, realizado em BuenosAires, em novembro de l985, sob os auspíciosdo Governo argentino e da União Européia.

Tal convicção comum, que de resto deveser partilhada por Argentina e Paraguai, poderiaser sintetizada no que disse o Ministro deRelações Exteriores do Brasil:

“... Creio não haver dúvidas de que osavanços que fomos capazes de alcançar,durante este período de consolidação,definirão a necessidade ou não de criar-mos novas instituições para administraro Mercosul, ou de reade- quarmos as jáexistentes...”.

Uma das vantagens do exercício universitá-rio é que o princípio da liberdade acadêmicapermite ao professor transitar livre e ilimitada-mente na lucidez ou delírio de suas opiniões,podendo gostar ou não gostar, elogiar ou criticar,sem as injunções do dever-ser político-formalou funcional.

Permito-me lembrar, neste sentido, que naiminência de fragorosas controvérsias quehaverão de surgir, à proporção em que se foreminexoravelmente “desembalando os cristais”,com a redução ou supressão das salvaguardasà livre circulação de bens e a convergência datarifa externa comum, controvérsias, aliás, semas quais nenhum processo de cooperaçãohumana se edifica e fortalece, seria inadiável ainstauração de um tribunal arbitral permante.

Caso isso viesse a ocorrer, não haverianecessidade de gastos imponderáveis ouadequações ou transformações jurídicas impos-

denunciada pelo particular, o Protocolo de Brasíliaimpõe-se-lhe que seja tutelado pelo seu respectivoEstado-Parte, na medida em que não dispõe (o parti-cular) do poder de iniciativa, submetendo-se a umlitisconsórcio necessário.

Não se trouxe, nesso Protocolo, qualquer disci-plina que oriente os conflitos entre os particularesdos diferentes Estados-Partes, presumindo-se que,no tocante a eles, as soluções de controvérsias de-vem observar as regras tradicionais do direito inter-nacional privado. (In: O Advogado nos processos deIntegração, Anais do Seminário “O Direito e o Mer-cosul”, promovido pela Escola Superior de Advoca-cia, da OAB/Mato Grosso do Sul, maio de 1995).

17 In El Mercosur en el nuevo orden mundial,Ediciones Cuidad Argentina, Buenos Aires, 1996.

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ao Direito Internacional Público, o que poderiafomentar e facilitar a sua efetiva aplicação.

Por derradeiro, cumpre lembrar que, em severificando dificuldades na execução das deci-sões de um tribunal arbitral permanente por partedos Estados comunitários do Mercosul ou dosdemais destinatários, poder-se-ia fazer operar oaparato sancional previsto no Protocolo deBrasília tout court, suficientemente vinculantee consistente.

Não se faz integração sem se modificaremos livros e as lições convencionais da escolaprimária.

Talvez hoje, no específico âmbito da soluçãode controvérsias, a instauração de um tribunalarbitral permanente do Mercosul fosse, sempreno campo do possível, um novo livro para umavelha escola.

síveis, conforme também opina o Professor LuizOlavo Baptista.18 Instituição desse porte, commuitas das qualidades de um tribunal de justiçacomunitário, constituída por juristas indicadospelos Estados-partes e não necessariamente comuma sede fixa, permitiria um substancial progressorumo a instituições mais desejáveis, possibilitandoinclusive à elaboração de um corpus jurispru-dencial comunitário, o que as atuais instânciasarbitrais meramente ad hoc não permitem.

Um tribunal arbitral permanente, não supra-nacional e, logo, assimilável mesmo pelasconcepções político-jurídicas mais “estató-latras” provocaria, ademais, o cultivo dapercepção não-convencional e diferenciada queo direito de integração requer, contribuindodecididamente à formação da mentalidade daintegração. Suas decisões, por decorrerem demanifestação de vontade consubstanciada emtratado, disporiam da própria efetividade ínsita

18 BAPTISTA, Luiz Olavo. Solução de diver-gências no Mercosul. Revista de InformaçãoLegislativa, v. 31, n. 124, p. 155-167, out./dez. 1994.

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Ação direta de inconstitucionalidade

RICARDO RODRIGUES GAMA

SUMÁRIO

Ricardo Rodrigues Gama é ex-Professor daUniversidade Estadual de Maringá-PR, ProfessorTitular de Direito Civil e Direito Constitucional daUniversidade do Oeste Paulista e Advogado.

1 CONSTITUIÇÃO da República Federativa doBrasil. art. 103.

1.Noções. 2. Legitimidade ativa. 3. Medida cau-telar. 4. Ato administrativo. 5. Procedimento. 6.Efeitos. 7. Estados-Membros.

1. NoçõesA ação direta de inconstitucionalidade é o

direito subjetivo de submeter uma lei ou ato nor-mativo federal ou estadual à apreciação do PoderJudiciário. O Supremo Tribunal Federal decidiráse a lei ou ato normativo ofende, ou não, a Cons-tituição Federal. Afrontando a Lei Maior, a qualdeve prevalecer sobre a lei ou ato normativo, oSupremo declarará a sua inconstitucionalidade.

Pelo disposto no artigo 102, inciso I, alíneaa, da Constituição, compete ao Supremo Tri-bunal Federal, precipuamente, a guarda daConstituição, cabendo-lhe processar e julgar,originariamente, a ação direta de inconstitu-cionalidade de lei ou ato normativo federalou estadual (...). Nos termos do citado artigo,para o Supremo Tribunal Federal deve ser en-dereçada ação direta de inconstitucionalidade.

2. Legitimidade ativaSão partes legítimas para propor a ação de

inconstitucionalidade: o Presidente da Repú-blica, a Mesa do Senado Federal, a Mesa daCâmara dos Deputados, a Mesa de AssembléiaLegislativa, o Governador de Estado, o Procu-rador-Geral da República, o Conselho Federalda Ordem dos Advogados do Brasil, o partidopolítico com representação no CongressoNacional, a confederação sindical ou entidadede classe de âmbito nacional.1

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De forma inovadora, a Constituição Federaldo 1988 ampliou os titulares da ação direta deinconstitucionalidade. Pela ConstituiçãoFederal de 1969, somente o Procurador-Geralda República poderia, nos termos da Carta re-vogada, representar acerca da inconstitucio-nalidade de lei ou ato normativo federal ouestadual.2

Ao ser proposta a ação, o autor devedemonstrar o seu interesse jurídico, o qualdetermina a sua legitimidade para agir; faltandoesta, o Supremo indefirirá a petição inicial,julgando o autor carecedor de ação.

A extensão da representatividade de partidopolítico já foi interpretada pelo SupremoTribunal Federal. Não importa haver um únicorepresentante na Câmara dos Deputados ou noSenado Federal, mas este deverá ter sido eleitono partido político que ajuíza a ação direta deinconstitucionalidade.3 Considerando-se arepresentatividade popular atribuída constitu-cionalmente ao partido político, faltará a legiti-midade ao partido que não eleger, no mínimo,um representante de uma das casas doCongresso Nacional. Observe-se que nãobasta ter um ou mais representantes. Exige-se que o congressista tenha sido eleito pelopartido político que propõe a ação direta deinconstitucionalidade. Existindo represen-tante no Congresso Nacional, o presidente doDiretório Nacional do Partido poderá intentar aação.

A confederação sindical4 deve ser a repre-sentante de, no mínimo, três federações.5 So-mente a confederação tem legitimidade para pro-por a ação direta de inconstitucionalidade. Aotentar definir a entidade de classe com âmbitonacional, o Supremo Tribunal Federal tem vaci-lado. Dentre os seus julgados, vários são osseus entendimentos: a entidade de classe não

tem caráter sindical;6 o sindicato, caso tivessebases em todas as unidades da federação, po-deria ser entidade de classe;7 a associação civilvoltada à finalidade altruísta de promoção edefesa de aspirações cívicas não é entidade declasse;8 a Confederação das AssociaçõesComerciais do Brasil não é entidade de classe,porque representa entidades de natureza hete-rogênea;9 a associação constituída pela reuniãode órgãos públicos e diferentes categorias deservidores públicos não deve ser entedida comoentidade de classe;10 a associação de empre-gados de determinada empresa não se identificacom a entidade de classe.11

3. Medida cautelarA concessão de medida cautelar também é

de competência originária do Supremo TribunalFederal.12 A liminar será concedida somente naação direta de inconstitucionalidade por ação,devendo estar presentes o fumus boni iuris e opericulum in mora. Observe-se que, com adecisão final do STF na ação direta de incons-titucionalidade, a geração de efeitos só teráinício depois que o Senado Federal retirar aeficácia ou o efeito da lei ou ato normativo im-pugnado. Com o aparente direito e a lentidãono trâmite da ação e do processo de suspensãoda eficácia da sentença, é de se conceder aliminar. Na ação direta de inconstitucionalidadepor omissão, por ser incompatível com a suanatureza, não é cabível a concessão de liminar.É impossível adiantar os efeitos que nem mesmoa sentença poderia alcançar. Ao final da açãopor omissão, com a decisão final, ainda nãoexiste a norma regulamentando o direito, oJudiciário não legisla. Com a decisão final, o

2 CONSTITUIÇÃO Federal de 1969. art. 119, I, 1.3 STF - ADInconst 109-4 (Questão de Ordem) -

DF - TP; Rel. Min. Paulo Brossard. RT 651/200.4 As confederações e as federações são associa-

ções sindicais de grau superior. Enquanto a federaçãoé fruto da união de um mínimo de cinco sindicatos,a confederação é produto da união de três confede-rações.

5 A Confederação deve ser constituída por ummínimo de três federações (art. 535, CLT). Cada fede-ração deve representar, pelo menos, cinco sindicatos(art. 534, § 1º, CLT). Em princípio, a base territorial dafederação é a estadual, mas pode ela ser, também,interestadual ou nacional (§ 2º, art. 534, CLT).

6 (...) 2. A entidade de classe a que também serefere o mesmo inciso IX não se situa na área sindical(...) (STF - ADIn 17-9 (MC) - DF - TP; Rel. Min.Sydney Sanches, DJU 24.05.91.

7 RT 645/189.8 STF - ADIn 61.6 - DF - TP; Rel. Min. Sepúlveda

Pertence. DJU 28.09.90.9 STF - AOr. 8-4 - CE - (Questão de Ordem) - TP;

Rel. Min. Carlos Velloso. DJU 13.12.91.10 STF - ADInconst 67-5 (Questão de Ordem) -

DF - TP; Rel. Min. Moreira Alves. DJU 15.6.90, RT659/207.

11 STF - ADIn 34-9 (Cautelar) - TP; Rel. Min.Octávio Gallotti. RJ 140/65.

12 CF. art. 102, I, p.

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Judiciário limita-se a dar ciência ao Podercompetente para legislar.

Concedida a liminar em ação direta deinconstitucionalidade, não caberá o incidentede declaração de inconstitucionalidade13

previsto pelo Código de Processo Civil.14 Nocontrole difuso, o juiz ou tribunal não deveafrontar o controle concentrado do SupremoTribunal Federal. Julgando pela procedênciada ação direta de inconstitucionalidade, oSupremo estará atribuindo eficácia ex tunc eerga omnes. Retroagindo e gerando efeitosobre todos, a apreciação do incidentepoderia ocasionar vários problemas de ordemprática, como o conflito de decisões judici-ais, o dispêndio de tempo e de dinheiro doslitigantes... Diante da liminar concedida e daargüição de inconstitucionalidade, o juiz outribunal deve suspender o processo eaguardar a decisão final da ação direta deinconstitucionalidade.

4. Ato administrativoA ação direta de inconstitucionalidade só

pode invalidar o ato normativo. Não pode elanulificar o ato administrativo, praticado peloadministrador. Ao julgar uma ação direta deinconstitucionalidade por omissão, merecendoaplausos, o Supremo Tribunal Federal enten-deu ser descabível esta ação para exigir a expe-dição de ato administrativo para o exercício dedireito.15

5. Procedimento Proposta a ação direta de inconstituciona-

lidade, o Ministro relator abrirá vistas à Advo-cacia-Geral da União e ao Ministério Público

Federal (Procurador-Geral da República).16

Enquanto aquela defende a constitucionali-dade da lei ou do ato normativo, este pro-pugna pela aplicação da Constituição. Amanifestação da Advocacia-Geral da Uniãoé obrigatória, pouco importando se a lei ou oato normativo for federal ou estadual.Declarada a inconstitucionalidade da lei oudo ato normativo por ação, caberá ao SenadoFederal suspender a sua execução.17 Na açãopor omissão, com a decisão definitiva, aoPoder competente para legislar será dada aciência para a adoção das providênciasnecessárias; sendo órgão administrativo, eledeverá fazê-lo em trinta dias.18 Não existindonorma a ser defendida na ação por omissão,a participação da Advocacia-Geral da Uniãonão é necessária,19 não devendo ela ser citadapara defender a constitucionalidade de normainexistente.

6. EfeitosAo suspender a execução, o Senado Federal

retira a eficácia da lei ou ato normativo declaradoinconstitucional. A lei inconstitucional seriainexistente, inválida ou ineficaz? A inconstitu-cionalidade foi reconhecida porque a lei afron-tou uma lei maior; em verdade, houve umdesrespeito aos limites impostos a todas as leise atos normativos. Quanto à existência,observe-se que a lei contestada ingressouno ordenamento; por este motivo ela existe.A retirada da eficácia da lei consideradainconstitucional é uma conseqüência da suainvalidação. Conclui-se que a sentença prola-tada pelo Supremo Tribunal Federal nulifica alei ou ato normativo impugnado. Com naturezadesconstitutiva,20 a sentença do Supremo temefeitos erga omnes. Na ação por omissão, asentença poderá ser mandamental ou declara-tória. Quando couber ao Executivo complemen-tar a norma constitucional, a sentença serámandamental; agora, será somente declaratóriaquando a obrigação for do Legislativo.21

16 CF. art. 103, §1º17 CF. art. 52, X.18 CF. art. 103, § 2º.19 STF - ADInscont 23-3 (Questão de Ordem) -

SP - TP; Rel. Min. Sydney Sanches. RT 659/205.20 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves.

Curso... p. 33.21 SILVA, José Afonso da. Curso... p. 56.

13 TRF 4ª R - AC 95.04.00514-4 - (AMS) - RS -TP. RJ 215/92.

14 CPC. art. 480-82.15 LEI - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCI-

ONALIDADE POR OMISSÃO - Propositura vi-sando à prática de ato administrativo em caso con-creto, cuja omissão ofende preceitos constitucionais.Descabimento. Possibilidade de ajuizamento somentese se objetivar a expedição de ato normativo necessá-rio ao cumprimento de preceito constitucional que,sem ele, não poderia ser aplicado. Seguimento negado.

Inteligência e aplicação dos arts. 102, I, e 103, §2º, da CF (STF - ADInconst. 19-5- AL - TP - RT645/184).

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7. Estados-MembrosDentro das limitações da Constituição Federal,

os estados da federação possuem constituiçõespróprias.22

No Judiciário, as ações de controle da consti-tucionalidade das leis e atos normativos estaduaise municipais é de competência do Tribunal deJustiça, perante o qual a ação direta de inconstitu-cionalidade é processada e julgada.23 A ação diretade inconstitucionalidade de lei estadual ou muni-cipal que afrontar a Constituição Federal deve serproposta perante o Supremo Tribunal Federal.

A Constituição do Estado de São Paulo, emseu art. 74, XI, dispõe que compete ao Tribunalde Justiça a representação de inconstituciona-lidade de lei ou ato normativo municipal, con-testados em face da Constituição Federal. Em 20de março de 1991, refletindo o citado artigo, oTribunal de Justiça de São Paulo admitiu sercompetente para apreciar lei municipal transgres-sora da Constituição Federal.24 Tivesse oTribunal paulista atentado para o disposto no§ 2º, do art. 125, da Constituição Federal,certamente, o respeitável acórdão seria outro;dispõe o parágrafo ut supra que cabe aosEstados a instituição de representação deinconstitucionalidade de leis ou atos norma-tivos estaduais ou municipais em face daConstituição Estadual, vedada a atribuiçãoda legitimação para agir a um único órgão .Não bastasse as letras da lei, o Tribunal de

Justiça de São Paulo afrontou a decisão doSupremo Tribunal Federal,25 o qual já haviadeterminado a suspensão liminar da expres-são federal do inciso XI, art. 74, da ConstituiçãoEstadual.

A medida cautelar será, também, conce-dida ou denegada pelo Tribunal de Justiça.A legitimidade ativa tem variado de umestado para outro; por este motivo, aconsulta da Constituição Estadual é obriga-tória. No Paraná, o Deputado Estadual temlegitimidade para propor a ação;26 em Goiás,o Tribunal de Contas do estado e dos muni-cípios.27 Em geral, são partes legítimas parapropor a ação direta de inconstituciona-lidade: o Governador de Estado, a Mesa daAssembléia Legislativa, o Procurador-Geralde Justiça, o Prefeito e a Mesa da Câmara domunicípio quando se tratar de lei ou atonormativo local, o Conselho Seccional daOrdem dos Advogados do Brasil, os partidospolíticos com representação na AssembléiaLegislativa.

O Procurador-Geral de Justiça deverá serouvido previamente. O Procurador-Geral doEstado será citado para defender o texto legalsobre o qual pende a ação de inconstituciona-lidade. Reconhecida a inconstitucionalidade, oTribunal de Justiça comunicará à AssembléiaLegislativa ou à Câmara Municipal para a sus-pensão da execução da lei ou do ato normativo.

25 STF - ADInconst 374-0 (liminar) - SP - TP - j.15.8.90; Rel. Min. Moreira Alves. RT 664/189.

26 CE- PR. art. 111, VII.27 CE-GO. art. 60, caput.

22 CF. art. 25.23 CONSTITUIÇÃO Estadual de São Paulo. art.

74, VI; Constituição Estadual do Paraná. art.101, VII,f; Constituição Estadual de Goiás. art. 46, VIII, a.

24 TJSP - ReprInconst 11.838-0 - TP; Rel. Des.Silva Leme. RT 671/78.

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LOURIVAL DE JESUS SEREJO SOUSA

SUMÁRIO

1. O poder da imprensa. 2. A propagandaeleitoral. 3. O direito de resposta. 3.1. O direito deresposta como direito fundamental. 3.2. O direito deresposta nas leis eleitorais. 3.3. Requisitos do direitode resposta. 4. Conclusão.

1. O poder da imprensaA imprensa tornou-se efetivamente um

poder. A evolução dos meios de comunicaçãosuperou a expectativa do homem e reduziu omundo a uma aldeia global. As grandes redesde comunicação fazem e desfazem ídolos,constroem e destroem reputações, tudo numavelocidade incontrolável.

As conseqüências desse avanço nascomunicações podem ser positivas ou nega-tivas conforme o uso que se pretende alcançar.No aspecto positivo, destacamos as campanhasfilantrópicas, educativas, aquelas utilizadas peloMinistério da Saúde, etc. No aspecto negativo,ressaltam-se casos como o da Escola Base, emSão Paulo, as acusações sem provas, a invasãode privacidade, inclusive através de fotos, etc.Os telejornais arvoraram-se em tribunais quejulgam inaudita altera parte. Essa ambiva-lência de efeitos desafia uma conclusão sobresua finalidade e um disciplinamento maisresponsável que tanto assegure o direito àinformação quanto o do respeito à pessoahumana.

A ascensão e a queda do Presidente Colloré um exemplo recente que reflete todo o alcancedesse poder, que Montesquieu não imaginouque um dia viesse surgir para além da sua divi-são tripartida. Os técnicos em comunicaçãofalam no fenômeno de vitimização coletiva, para

Lourival de Jesus Serejo Sousa é Juiz, MembroSubstituto do TRE-MA.

Direito de resposta

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indicar as manobras de formação de opiniãopública com matérias falsas.

No período eleitoral, a imprensa também tempapel importante, tanto na propaganda oficialcomo em outras atividades que dificultam ocontrole pela Justiça Eleitoral. Nesse ponto, alegislação deveria ser mais rigorosa com osinfratores e prever uma repressão mais efetiva,pois essa atuação paralela e tendenciosa fere oprincípio da isonomia na disputa das eleições,provocando conseqüências imprevisíveis, aponto de um estudioso do assunto advertir:

“ o que existe de mais recente e contem-porâneo na relação meios de comuni-cação/Poder é tão-somente a constataçãode que o abuso de poder da mídia, emmatéria político-eleitoral, tornou-se tão in-tenso e eficaz, que não seria exagero afir-mar que no Brasil de hoje quem deci-de uma eleição é justamente a mídia,através dos abusos de poder por elacometidos”(grifos do original).1

2. A propaganda eleitoralO início da propaganda eleitoral marca o

ponto mais alto da disputa eleitoral. Nessa fase,que às vezes atinge momentos tensos, é que oscandidatos expõem seus planos, publicam suaspromessas, defendem suas idéias e, comfreqüência, atacam seus adversários.

A propaganda atingiu requintes sofistica-dos de expressão. Dependendo de suastécnicas, os candidatos tidos por impopularesatingem elevados níveis na pesquisa.

A complexidade da propaganda eleitoral,justamente devido ao grau de desenvolvimentoque alcançou, exigiu tratamento destacadotanto nas leis eleitorais como em instruçõesespecíficas do Tribunal Superior Eleitoral.

A Justiça Eleitoral ressente-se de meiosmais enérgicos e eficientes para coibir a propa-ganda que contraria as previsões legais. Mesmoassim, a interferência da Justiça Eleitoral temevitado os abusos, que a cada eleição seapresentam maiores e mais ofensivos.

Candidatos afoitos não se contentam emesperar o início do período de propaganda.Saem à frente, levando a lei de roldão, pensandoque assim vencerão melhor seus adversários.

Agem mal, prejudicando a si mesmos e contri-buindo para retirar da disputa o equilíbrio in-dispensável para garantia do regime demo-crático.

A regulamentação rigorosa da propagandaé imprescindível para permitir um tratamentoigual para todos os candidatos. É meio ético deassegurar a escolha dos candidatos, de acordocom o livre convencimento de cada eleitor.

3. O direito de respostaPara reparar o comportamento ofensivo dos

candidatos na mídia, criou-se o direito de res-posta, verdadeira legítima defesa da honra, as-segurada pela lei em benefício dos ofendidos. Éum instituto que equilibra a liberdade de im-prensa com o direito de cada cidadão ter suahonra preservada.

Consumado o agravo, nasce o direito deresposta, que tem efeito de um desagravo. “ Aresposta é um desagravo”.2

Difícil se apresenta para o juiz o deferimen-to do direito de resposta àquele que se diz ofen-dido em sua honra subjetiva. Até que pontoessa interferência do julgador é permitida?Cretella Júnior, em seus Comentários, já cita-dos, leciona:

“Não interessa o conteúdo ou o sen-tido do artigo, crítico ou elogioso, citan-do dados exatos ou não, porque o direitode resposta nasce no momento em quealguém é descrito, no artigo, sendo o cri-ticado o único juiz da oportunidade ouconveniência de exercer o direito de res-posta, desde que seu nome foi citado”.3

Creio que nesses momentos o julgador deveusar seu tirocínio para aferir essa conveniên-cia, o grau de ofensa, para sentir se ali não estáuma mera leviandade, uma honra exagera-damente sensitiva. Especificamente sobre esseproblema assim se pronunciou, em voto, o entãoMinistro Vilas Boas, do TSE:

“Entendo, por isso, que eventuaisconsiderações a propósito desse oudaquele candidato, ainda que mediantelinguagem enfática ou mesmo mais dura,mas que se situem dentro de níveis

1 BARRETO, Lauro. Escrúpulo & Poder : oabuso de poder nas nas eleições brasileiras. Bauru(SP) : Edipro,1995. p. 91.

2 CRETELLA JÚNIOR, J. Comentários à Cons-tituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro : ForenseUniversitária, 1992. V.1, p. 213.

3 Id., ibid.

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toleráveis, em campanha eleitoral como aque se trava no momento, não podem serequiparadas a ofensas, para fins deaplicação do referido preceito.”4

Vamos a um exemplo. Um candidato de nomeJosé Murilo é alvo de ironias pelo seu adversá-rio que o trata, no programa eleitoral, por “Zé”.Alterna acusações e críticas com a expressão“e agora, Zé?”. No outro dia, o candidato pededesagravo por considerar o tratamento de Zécomo ofensivo à sua honra, pela insistência etonalidade empregadas pelo adversário. Houveinjúria? Seria válido esse julgamento do próprioofendido sentindo-se injuriado?

Não resta dúvida, diz o mestre Darcy ArrudaMiranda, que o juiz da oportunidade, necessi-dade ou interesse da resposta é o acusado ouatingido pelo escrito que lhe possa ocasionardano patrimonial ou moral, seja ele pessoanatural ou jurídica, mas – adverte o autor – essedireito não é indiscriminado nem absoluto, comopretende Chassan, porque está condicionadopor certas regras cuja inobservância acarretaráa sua ineficácia.5

Serrano Neves contribui para o esclareci-mento do tema com a seguinte lição:

“O direito de resposta, como sepercebe, não é um instrumento banal, aserviço de vaidades, melindres, segundasintenções ou discussões sem causa. Háde ser usado com parcimônia e renovadaprudência, até mesmo porque, notada-mente em relação ao homem público, aimprensa goza, em geral, de maior dosede liberdade. O interesse público, comefeito, reclama dos órgãos de divulgaçãoo exame dos atos e das atitudes de taisindividualidades”.6

3.1. Direito de resposta como direitofundamental

O direito de resposta mereceu, em nossoordenamento jurídico, o prestígio de suaconstitucionalização, alinhando-se entre osdireitos fundamentais da pessoa humana,conforme está no artigo 5º , inciso V, daConstituição Federal:

“é assegurado o direito de resposta, pro-porcional ao agravo, além da indenizaçãopor dano material, moral ou à imagem.”

Celso Ribeiro Bastos observa que pelaamplitude com que foi tratado o tema, em nossaConstituição, o direito de resposta deve serassegurado em quaisquer de suas manifes-tações, seja na imprensa falada, escrita, televi-sionada ou, até, numa assembléia.7

Da dicção do texto constitucional percebe-se que o direito de resposta surge de um agra-vo, notadamente um agravo que atinja a hono-rabilidade do ofendido, sua auto-estima e suarespeitabilidade na comunidade.

A Constituição da República Portuguesa,ao tratar da liberdade de expressão e informa-ção, assegura o direito de resposta “ em condi-ções de igualdade e eficácia” (art.37, nº 4 ). Nes-ses termos, aponta para dois fatores intrínse-cos ao exercício do direito de resposta: a pro-porcionalidade e a eficácia da reação, capaz deinibir os efeitos desgastantes à honra, à ima-gem, ao nome e à reputação do ofendido.

Nessa mesma orientação e como acréscimoà força constitucional do direito de resposta, oartigo 14 do Pacto de San José da Costa Rica(Convenção Americana Sobre Direitos Huma-nos) traz a seguinte redação:

Art. 14. Direito de retificação ouresposta

1. Toda pessoa atingida por informa-ções inexatas ou ofensivas emitidas emseu prejuízo por meios de difusão legal-mente regulamentados e que se dirijamao público em geral tem direito a fazer,pelo mesmo órgão de difusão, sua retifi-cação ou resposta, nas condições queestabeleça a lei.

2. Em nenhum caso a retificação ou aresposta eximirão das outras responsa-bilidades legais em que se houver incor-rido.

3. Para a efetiva proteção da honra eda reputação, toda publicação ou empre-sa jornalística, cinematográfica, de rádioou televisão deve ter uma pessoaresponsável que não seja protegida porimunidades nem goze de foro especial.

Apenas para informação, esse Tratado foireferendado pelo Congresso Nacional em

7 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários àConstituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 1989.V.2, p. 46.

4 JTSE 02/90/143.5 MIRANDA, Darcy Arruda. Comentários à

Lei de Imprensa. 2.ed. rev. e atual. São Paulo : Revistados Tribunais, 1994. T. 2, p. 541.

6 NEVES, Serrano. Direito de Imprensa. S.P.:Bushatsky, 1972. p. 230.

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novembro de 1992, obtendo, por conseguinte,eficácia em nosso ordenamento legal, ex vi doart. 5º, § 2º, da CF.

3.2. O direito de resposta nas leis eleitorais

Nosso Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de 15de julho de 1965) assegura o direito de respostaa quem for injuriado, difamado ou caluniado,através da imprensa, rádio, televisão ou alto-falante (art. 243, § 3º). Esse direito vem sendoassegurado em todas as “leis do ano” e pelasresoluções do TSE que tratam de instruçõessobre a propaganda eleitoral.

A Lei nº 9.100, de 29.9.95, traz em seu artigo66 a previsão geral sobre o direito de resposta:

Art. 66. A partir da escolha de candi-datos em convenção, é assegurado o di-reito de resposta a candidato, partido oucoligação atingidos, ainda que de formaindireta, por conceito, imagem ou afirma-ção caluniosa, difamatória, injuriosa ousabidamente inverídica, difundidos porqualquer veículo de comunicação social.

A comparação desse texto com o da Lei nº8.713, de 30.9.93, que regulamentou as últimaseleições, constata um aperfeiçoamento em suaredação e alcance. No art. 68 da referida lei, lia-se o seguinte:

“A partir da escolha de candidatosem convenção, é assegurado o exercíciodo direito de resposta ao partido,coligação ou candidato atingidos por afir-mação caluniosa, difamatória ou injuriosapraticada nos horários destinados à pro-gramação normal das emissoras de rádioou televisão.”

A normatização atual ampliou o alcance dodireito de resposta para alcançar inclusive asformas indiretas de ofensas, como exibição deimagem ou declarações caluniosas, difamatóriase injuriosas. E mais: alcançou, também, as afir-mações “ sabidamente inverídicas, difundidaspor qualquer veículo de comunicação social”.

Essas afirmações inverídicas são constan-tes no período de propaganda eleitoral, comresultados, às vezes, irreversíveis para o candi-dato prejudicado. A prática de difundir velei-dades e versões mentirosas de fatos ocorridosé o ápice da falta de ética no debate eleitoral. Éo momento que denota o desespero do candi-dato que se sente derrotado e apela para osmais sórdidos meios ao seu alcance; é quandoa Justiça Eleitoral deveria estar mais alerta e mais

fortalecida para reprimir imediatamente essesabusos.

Voltando ao texto da Lei nº 9.100/95, temosde fazer as seguintes observações: a) o momentoinicial da legitimidade para pleitear direito deresposta, como candidato, é a partir da escolhaem convenção; b) essa legitimidade se estendeaos partidos e às coligações.

Ainda sobre o artigo citado, o que se entendepor imagens ofensivas? Acredito que sãoaquelas capazes de levar o candidato ao ridículo,ou por meio de trucagens, montagens ou algumacena íntima. A exibição de fotos com comentá-rios desairosos pode atingir o decoro e a repu-tação de um candidato. Por exemplo, nas últimaseleições, em pleno escândalo dos “anões doorçamento”, a exibição de fotos de candidatosjunto a um deles, em confraternização ou inti-midades, foi motivo para muitas insinuações,com o objetivo de envolvimento, de compro-metimento daquele candidato com o esquemade corrupção.

Ponto delicado que se impõe distinguir, por-que freqüente nas campanhas, é a jocosidade(animus jocandi ) e a ofensa à honra. Às vezes,essa prática denota inteligência arguta no usode trocadilhos e situações engraçadas de bomgosto. Em outras, entretanto, a pretexto dessaintenção jocosa, o ofensor torna-se maledi-cente, levando o adversário ao ridículo. E oridículo, como dizia Nelson Hungria, “ é umaarma terrível, pois uma piada malévola podedestruir toda uma reputação”.8 Não devem serpermitidas as piadas de baixo nível, com tonsinjuriosos, que pretendem ridicularizar ocandidato.

A linguagem de uma campanha mostra onível de seus candidatos, e essa imagem epostura deve ser reclamada pelos eleitores queprecisam auferir idéias e projetos dos seuscandidatos e não insultos recíprocos.

3.3. Requisitos do direito de resposta

Os requisitos do direito de resposta sãodeterminados pela Lei de Imprensa e pelas leiseleitorais, notadamente as que são promul-gadas, no Brasil, para disciplinar as eleições(art.16 da CF ).

Em cada pleito, a jurisprudência e a doutrinavêm avaliando e traçando as balizas do direitode resposta, em contínuo aperfeiçoamento, pois

8 NEVES, Serrano. op. cit., p. 209.

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se trata de um tema delicado, que deve seranalisado no contexto em que é reclamado.

Uma análise da orientação jurisprudencial,colhida em diversos julgados, fornece-nos asseguintes lições:

a. “a honra tutelada, na espécie, é aquelaque tem como referência as qualidades éticasda pessoa” ( Min. Octávio Gallotti, JTSE 2/90/155 );

b. “Penso que o direito de resposta revesteexcepcionalidades que a Corte não pode deixarde considerar, isto é, esse direito só seria dedeferir-se quando as acusações assacadascontra qualquer pessoa, candidato ou não, re-vistam-se de gravidade suficiente para caracte-rizar uma das três figuras contempladas pelostextos da lei e da Resolução”. ( Min. Vilas Boas,JTSE 02/90/143 );

c. “Tendo a fala natureza injuriosa, atin-gindo diretamente a dignidade e a honorabili-dade do requerente, é de lhe ser deferido direitode resposta” ( Min. Vilas Boas, JTSE 2/90/1611- Res. 15.775);

d. “Caracterizada a ofensa à honra subjeti-va do representante, é de lhe ser concedido opretendido direito de resposta” ( JTSE 2/90/172);

e. “Não configurado o teor ofensivo dasdeclarações, nega-se o pretendido direito deresposta” ( JTSE 2/90/156 );

f. “Reconheço que é bastante contundentea declaração recriminada; como, também, que échocante a exibição daquela cena de uma pes-soa agredida. Mas a campanha não pode sercontida, a ponto de não abranger uma ou outraexacerbação” ( Min. Bueno de Souza, JTSE 2/90/160 - Res. 15.772);

g. “O indivíduo, quando entregue a umacampanha eleitoral e pedindo a representaçãopopular, não pode entender como ofensa à suapessoa comentários sobre fatos devidamentepublicados por órgãos de imprensa e referidos

por terceiras pessoas. Tais circunstâncias de-monstram a posição em que se encontram oscandidatos e não se trata de indivíduos comprivacidade a ser defendida. Pelo contrário, tra-ta-se de cidadãos que colocam suas vidas aoexame dos eleitores” ( Des. Luiz Carlos Santini -TRE-MS, Informativo Eleitoral do TRE/MS nº3/148 ).

4. Conclusão

Desde a Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de1967 (arts. 29 a 36), a garantia do direito de res-posta vem merecendo mais atenção e sendousado com freqüência.

Pelo alcance que chegou o poder da im-prensa hoje, ratificar o direito de resposta comodireito fundamental do cidadão foi uma decisãoelogiável dos nossos constituintes.

Exercido prontamente, o direito de respostapode minorar os abusos que os candidatos eos meios de comunicação cometem em cadapleito.

Ao lado da Lei de Imprensa e, especifica-mente, a chamada “lei do ano”, em matéria elei-toral, a jurisprudência e a doutrina têm contri-buído para estabelecer os requisitos para a con-cessão do direito de resposta. Esses requisitosgiram em torno da necessidade de proteger apersonalidade dos candidatos, buscando res-guardar sua imagem e evitando prejuízos irre-paráveis.

Não pretende a Justiça Eleitoral coibir aliberdade de pensamento dos candidatos, masgarantir os princípios democráticos da disputaeleitoral, cobrando a responsabilidade de cadacidadão para a preservação desses valores.

Não há dúvida de que o direito de respostaé uma defesa legítima a serviço do cidadão paraexercê-la, com proporcionalidade à ofensa,sempre que for ofendido em sua honorabilidade.

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O art. 4º da Lei Complementar nº 70/91, queinstituiu contribuição social sobre o fatura-mento para financiamento da Seguridade Social(Cofins), reza que a contribuição mensal devidapelos distribuidores de petróleo e álcool etílicohidrante para fins carburantes, na condição desubstitutos dos comerciantes varejistas, serácalculada sobre o menor valor, no País, cons-tante da tabela de preços máximos fixados paravenda a varejo, sem prejuízo da contribuiçãoincidente sobre suas próprias vendas.

Ao nosso ver, o dispositivo sobredito estáacoimado de inconstitucionalidade material.Passemos, pois, a apontar as razões destaafirmação.

Propedeuticamente, cumpre destacar que adoutrina mais abalizada reconhece, hodierna-mente, a natureza tributária da contribuiçãosocial.

E, na trilha desse entendimento, já decidiu oPretório Excelso:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº158.577-PE (PRIMEIRA TURMA)

Relator: O Sr. Ministro Celso de MelloRecorrente: União Federal - Reque-

rida: Indústria e Comércio Megaó Ltda.Contribuição social sobre o lucro das

pessoas jurídicas. Lei nº 7.689/88. Natu-reza jurídica. A questão da lei comple-mentar. Princípio da irretroatividade dasleis tributárias. Período-base de 1989.Recurso Extraordinário a que se dáprovimento.

- A qualificação jurídica da exaçãoinstituída pela Lei nº 7.689/88 nela permiteidentificar espécie tributária que, embora

Inconstitucionalidade do art. 4º da LeiComplementar nº 70/91

MARCELO DA FONSECA GUERREIRO

Marcelo da Fonseca Guerreiro é Advogado daPetrobrás Distribuidora S.A. e Professor de DireitoConstitucional da Faculdade Moraes Júnior-RJ.

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não se reduzindo à dimensão conceitualdo imposto, traduz típica contribuiçãosocial, constitucionalidade vinculada aofinanciamento da seguridade social.

- Tributo vinculado, com destinaçãoconstitucional específica (CF, art. 195, I),essa contribuição social sujeita-se, den-tre outras, às limitações instituídas peloart. 150, I e III, a, da Carta Política, queconsagra, como instrumentos de prote-ção jurídica do contribuinte, os postu-lados fundamentos da reserva legal e dairretroatividade das leis tributárias.

- Revela-se legítima, por ofender oprincípio da anterioridade mitigada a quese refere o art. 195, parágrafo 6º, da CartaPolítica, a incidência da contribuiçãosocial instituída pela Lei nº 7.689/88 sobreos lucros das empresas apurados nobalanço encerrado em 31/12/89.”

Por outro lado, reza o art. 155, parágrafo 3ºda Lex Mater, com a redação que lhe deu a ECnº 3/93:

“Art.155.(Omissis)..............................Parágrafo 3º. À exceção dos impos-

tos de que tratam o inciso II do caputdeste artigo e o art. 153, I e II, nenhumoutro tributo poderá incidir sobre ope-rações relativas à energia elétrica,serviços de telecomunicações, deri-vados de petróleo, combustíveis eminerais do País.”

Com efeito, o que determina o preceptivoconstitucional é que o ICMS, o II e o IE são osúnicos tributos incidentes sobre as referidasoperações. Nenhum outro imposto ou espécietributária pode sobre elas recair.

Em comento ao art. 155, parágrafo 3º, daCarta Magna, preleciona Ives Gandra Martins(texto anterior à EC nº 3/93) que:

“À evidência, a restrição materialaos quatro impostos não implica res-trição a uma única operação, visto que,pela teoria da não-cumulatividade, oICMS poderá incidir sobre operaçõesrelativas à energia elétrica, combus-tíveis líquidos e gasosos, lubrificantese minerais, tantas vezes quantas forem asoperações. A explicitação complementarnão deixa de hospedar a exclusão detodos os tributos, entre eles taxas,contribuições sociais incidentes sobrefaturamento, inclusive os próprios tribu-tos diretos. À falta de explicitação,

entendo que todos os tributos, semexceção, estão incluídos” (COMENTÁ-RIOS à Constituição do Brasil. São Paulo :Saraiva, 1990. v. 6, t. 1, p. 517.).

Ademais, a Lei Complementar nº 70/91preceitua que a Cofins incidirá sobre o fatura-mento mensal, assim considerada a receita brutadas vendas de mercadorias, de mercadorias eserviços e de serviços de qualquer natureza (art.2º). Portanto, o fato gerador da Cofins é auferirfaturamento.

Com efeito, no caso dos comerciantes vare-jistas de combustíveis, o faturamento é a receitabruta das vendas de combustíveis.

Acresça-se, também, que a expressão“operações relativas a combustíveis” contidano art. 155, parágrafo 3º, da CF nada mais signi-fica que a prática de atos jurídicos envolvendocombustíveis.

Dessarte, a imunidade tributária insculpi-da no art. 155, parágrafo 3º, da Carta Políticaalberga a impossibilidade de incidência daCofins sobre o faturamento decorrente dasvendas de combustíveis. A uma, porque aCofins é tributo, e, a duas, porque vendercombustíveis corresponde a realizar opera-ções com combustíveis.

Neste momento, impende registrar acórdãodo TRF da 5ª Região, Ap. em mandado desegurança nº 45.631-PE (94.05.29259-5), assimementado:

“Constitucional e tributário. Naturezada contribuição social denominadaCofins. Isenção para as empresas queproduzem álcool carburante.

1. O enquadramento das contri-buições sociais no capítulo do sistematributário nacional e a observância, nasua criação, de regras típicas e específicasdo tributo, conferiram-nas naturezatributária.

2. As empresas que produzem álcoolcarburante estão isentas da Cofins, porforça do parágrafo 3º, do art. 155 daConstituição.

3. Apelação voluntária e remessaoficial providas.”

Concluindo, a cobrança da Cofins, atravésda sistemática da substituição tributária, aoscomerciantes varejistas de combustíveis éinconstitucional. Com efeito, a imunidadetributária torna inconstitucional a lei que adesafia.

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O Presidente da República no sistemapresidencialista brasileiro

IRIS ELIETE TEIXEIRA NEVES DE PINHO TAVARES

Iris Eliete Teixeira Neves de Pinho Tavares éMestre e Doutora em Direito Constitucional,Professora Adjunta da UFMG.

As atividades pelas quais o governo de umEstado se manifesta são exercidas, segundo ateoria germânica, com Laband e Jellinek, porinstituições que se denominam órgãos. Duguit1,analisando a teoria francesa dos órgãos do es-tado, parte do princípio de que o órgão verda-deiro, que ele chama de “l’organe directsuprême”, é um corpo que compreende “todosos indivíduos capazes de exprimir consciente-mente a sua vontade”, o qual não é, “naverdade, um órgão do Estado; não é nem mesmoum órgão da nação – é a nação enquantoexpressão de sua vontade; é o intérprete diretoda vontade soberana da nação” (p. 557).

A forma que se encontra para se fazer inter-pretada a vontade soberana da nação numasociedade complexa e democrática tem por basea teoria da representação. Num Estado demo-crático de direito, para a preservação dasgarantias dos direitos dos indivíduos, acres-centa-se ao processo político-jurídico o funda-mento da teoria da separação dos poderes,advinda de Locke e de Montesquieu, a qualprevê que o governo de um Estado se faça pormãos distintas, de tal forma que se evite o mando

1 DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel.Paris : Fontemoing, 1928. T. 2, p. 556.

“Y junto a todas estas magistraturas está la su-prema sobre todas, que muchas veces tiene en sumano la decisión final o la implantación de una me-dida, u ocupa la presidencia de la multitud, dondetiene la sabiduria el pueblo, porque tiene que haberalgo que concentre la saberanía del regimen”.

ARISTÓTELES, A POLÍTICA, LIVRO VIII, 1322 B.

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de um só, através de um sistema de equilíbriode forças para que o poder detenha a si próprio,impondo limites mútuos a seus detentores. Osistema complexo político-jurídico se esquema-tiza para, através de um processo representativo-eleitoral, instituir uma Assembléia Constituinteque expressa a vontade popular e elabora umaconstituição na qual se estruturam os órgãosque exercem o governo. Nesse contexto, estão,de um lado, os representantes da vontade danação – o Poder Legislativo – e, de outro, osagentes que executam essa vontade – osPoderes Executivo e Judiciário.

O Poder Executivo da União – no caso doBrasil – é exercido pelo órgão Presidência daRepública, cujo agente, o Presidente da Repú-blica, é o chefe do Estado e de Governo: Cons-tituição brasileira, art. 76, verbis: “O PoderExecutivo é exercido pelo Presidente da Repú-blica, auxiliado pelos Ministros de Estado”.

É comum empregarem-se associadamente asexpressões Presidente da República e PoderExecutivo. A própria Constituição Federal utiliza,em algumas situações, uma linguagem queengloba os dois conceitos. Exemplos se encon-tram no texto constitucional. O Conselho daRepública é órgão superior de consulta doPresidente da República (art. 89). O § 1º do art.90 autoriza o Presidente da República a convocarMinistro de Estado para participar da reuniãodo Conselho quando constar da pauta questãorelacionada ao respectivo Ministério – idéia queamplia a assessoria solicitada pelo Presidenteaos seus auxiliares no exercício de chefia doPoder Executivo. Em sentido inverso, mas coma mesma intenção, o art. 131 estabelece a atri-buição da Advocacia-Geral da União quandolhe cabem as atividades de “consultoria eassessoramento jurídico do Poder Executivo”,o que, é claro, inclui o Presidente da Repúblicauti singuli. O Poder Executivo é exercido peloPresidente da República, auxiliado pelosMinistros de Estado. A Presidência da Repú-blica é exercida pelo Presidente. O Presidenteda República é sempre o chefe do Executivo, e édaí que advêm as deferências, obrigações eproibições que lhe são impostas ou devidas.

A figura do Presidente da República surgiucom a criação dos Estados Unidos da América.Quando se reuniram em Filadélfia, os autoresdos artigos da Confederação, segundo oshistoriadores americanos2, tinham em mente um

sistema de governo extremamente simples, compoderes de proporções tão pequenas que nãoseria necessário um executivo fora do Con-gresso e suas comissões. Mas a experiênciamostrou logo que um chefe de Executivonacional era tão necessário quanto os dosgovernos estaduais, e, quando a convenção deFiladélfia reconstruiu o sistema federal, osprincipais planos apresentados, emboravariando em muitos aspectos, concordaram emconsiderar um braço executivo distinto. Váriasquestões foram levantadas.

Uma delas, objeto de vários debates, discu-tida com grandes dificuldades, foi a decisão afavor de um executivo único ou plural. Algunsdos Estados conviviam já com um único gover-nador, o que trazia as vantagens de unidade,força e concentração de responsabilidade. Aomesmo tempo, o medo de um executivo tirânicoe de tendências monárquicas fez pensar naprescrição de um termo fixo para o governo, nadefinição dos poderes e na possibilidade deremoção do indicado pelo processo do impea-chment.

“Se o executivo se tivesse tornado,como alguns membros queriam, somenteuma agência para levar a efeito a vontadedos legisladores, a forma plural terialevado a uma forma de governo parla-mentar ou de gabinete, à moda inglesa”3.

Tendo optado pela solução não-parlamentarista,os convencionais mostraram tendência para umexecutivo único que pudesse equilibrar as defi-ciências de um governo legislativo.

“Os excessos e deficiências dogoverno legislativo levaram o povo aconsiderar as instituições executivas quetinha rejeitado antes e a criar um chefeexecutivo com autoridade adequada parao trabalho”4.

Decidiu-se que o Executivo seria um ramo dogoverno, retirando sua autoridade do povo, eencarregado de muitas tarefas, ao lado de umcongresso forte, e cujo poder e responsabili-dade estariam postos nas mãos de um únicohomem.

O título a ser dado ao chefe do Executivoseria o de Presidente. O professor OrlandoCarvalho ensina que, ingleses por formação etradição, os americanos, concebendo um novo

2 OGG, Frederic A. Introduction to americangovernment. Colaboração de P. Orman Ray. 2. ed.rev. New York : Century, 1925.

3 Ibid., p. 198.4 CRONIN, Thomas E. The origin of the

American Presidency. in : THIS Constitution for theUSA a Bicentennial Chronicle, 12, 1986.

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tipo de governante, relegando os privilégios eintroduzindo a imagem do Presidente, tinham,mesmo assim, um verdadeiro respeito pela figurado rei e transplantaram, conscientemente ounão, a personificação poderosa do rei para opresidente. Informa terem acontecido discus-sões sobre a forma pela qual se deveria tratar oPresidente – His Majesty, the President, ou,simplesmente, Mr. President, tendo sido,evidentemente, adotada a última opção5.

Outra questão surgida, que considerava aum tempo a abolição de privilégios e o caráterdemocrático do novo sistema, foi a do tempodo exercício do mandato. Relegado o sistemamonárquico, se a França fundamentou suademocracia na liberdade, os Estados Unidos daAmérica, como o notou Tocqueville, fizeram-nona igualdade. Abolidos os privilégios, a escolhado chefe do Executivo se faria por eleição e portempo limitado. A primeira discussão resultouna determinação de um período de sete anos demandato, não se permitindo a reeleição.Discussões posteriores levaram à conclusão deque o Presidente não seria escolhido peloCongresso, mas por um corpo de delegados, eassim surgiu a possibilidade da reeleição. Ogge Ray6 informam que, ao longo do tempo, atradição fixou, praticamente, o limite de doismandatos.

Nos Estados Unidos é tão importante afigura do Presidente como chefe do Executivoque ele se torna inviolável. Não pode ser presofor any offense, not even murder; nenhumacorte tem jurisdição sobre ele e de nenhumaforma pode ser restringida sua liberdade. Só peloprocesso do impeachment pode ser removidoe só depois disso lhe pode ser imputado umprocesso judicial.

A escolha do Presidente é um processo

complexo (CONSTITUTION OF USA, section2, art. 2.). Woodrow Wilson7 afirma que a maneiraamericana de escolher os presidentes é umexemplo marcante da observação de que o povoamericano “emenda a Constituição na práticasem emendá-la constitucionalmente”. (Lamanière légale de changer la Constitution estsi lente et si pénible que nous sommescontraints d’adopter une série de fictionscommodes qui nous permettent de conserverles formes sans obéir labourieusement à l’espritde la Constitution, qui s’elargira à mesure quela nation grandira).

A eleição pelo Congresso seria a mais aceita,especialmente por aqueles que consideravam oPresidente um mero agente de execução das leis,com preponderância do Legislativo. Vingava,entretanto, a idéia de que deveria haver um equi-líbrio de poderes entre Legislativo e Executivo– o que dificilmente ocorreria se o chefe destefosse eleito por aquele. Esta questão políticaestá diretamente ligada ao sistema de governoe à teoria constitucionalista do Estado demo-crático de direito, com a separação de poderes.Os convencionais americanos optaram por umplano de eleição pelo povo, não diretamente,mas através de um colégio eleitoral. Cada estadodetermina um número de eleitores igual aonúmero de senadores e representantes que têmno Congresso. Assim, segundo Wilson8, oExecutivo americano é escolhido por umaassembléia representativa e deliberante. NaInglaterra e na França, a câmara eleitora é acâmara legislativa permanente. Nos EstadosUnidos, a câmara eleitora existe só para o fim aque se propôs – ela desaparece assim que o fimé atingido.

O sistema é o de partidos, em que odelegado fica comprometido com seu partido.Um antigo presidente, como conta EdwardCorwin9, opinou que “um eleitor que votassecontra o seu partido seria objeto de execraçãoe, em tempo de grandes convulsões, poderiaser sujeito a linchamento”. A maneira originalpela qual os eleitores do Presidente exercem suaatividade está descrita no parágrafo 3, seção I,artigo II, da Constituição dos Estados Unidos.

5 Hamilton escreveu no Federalista: (HAMIL-TON, e JAY. The Federalist. Washington : EdwardEarl, 1938. p. 322) “The writers against the Consti-tution... calculating upon the aversion of the peopleto monarchy, they have endeavored to enlist all theirjalousies and misapprehensions in opposition to theintended President of United States... He has beendecorated with attributes superior in dignity andsplendor of those of the king of Great Britain. Hehas been shown to us with his diadem sparking onhis brow and the imperial purple flowing in in histrain”...

6 OGG, op. cit., p. 199. Alguns presidentesamericanos pretenderam ou chegaram a ser indicadospara um 3º mandato, mas não o logaram por motivosvários.

7 WILSON, Woodrow. Le Gouvernement Con-gressionel... Paris : V. Giard & E. Brière, 1900.

8 WILSON, op. cit., p. 263.9 CORWIN, Edward. The President : office and

powers 1787-1957... 4. ed. rev. New York : NewYork University Press, 1957, p. 41.

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Estados Unidos da América, da qual o sistemapresidencialista seria apenas um corolário, jáque a centralização é um fato político maispróprio dos estados unitários, como no sistemamonárquico. Deve também ser lembrado que oImperador D. Pedro II era um homem queimpunha respeito e era admirado pela maioriados seus súditos. Foram apenas as contin-gências políticas, resultado exatamente dosmovimentos federalistas, que levaram à suadeposição. Sendo federativa a escolha política,a opção presidencialista foi dela corolário.

O Poder Executivo, que se confundia com oImperador, foi substituído pelo Poder Executivo,que se confunde com o Presidente da República.

O órgão principal do exercício do PoderExecutivo é o Presidente da República. Àmaneira norte-americana, o caminho utilizadopara se estabelecer a relação Executivo/presi-dente da República com o Poder Legislativo foio da democracia dos poderes autônomos.Pontes de Miranda aponta as linhas mestrasdos poderes do Presidente da República.12

a) “O Presidente da República deve ter opoder da ordenação política da nação, nãoexclusivo, mas em sistema que não exclua aordenação política da função integrativa daJustiça constitucional nem a vigilância daAssembléia quanto à lei fundamental” – poderque dá a tônica, tantas vezes observada naevolução do sistema presidencialista brasileiro,da supremacia do Executivo, justamente pelaforça política de que se investe;

b) “O Chefe de Estado precisa ter o poderde intervenção nas coletividades interiores ede ação emergencial (estado de sítio, suspensãodas garantias constitucionais)” – o primeirodeles, pilar e garantia do Estado federal “punc-tum dolens do Estado federal, onde se entre-cruzam as tendências unitaristas e as tendênciasdesagregantes”13, e o segundo, a garantia dasinstituições jurídicas em “situações que indicama necessidade da instauração da corresponden-te legalidade de execução (extraordinária) parafazer frente à anormalidade manifestada”14 –sempre com base na Constituição;

c) “O Poder Executivo, através de seus

Corwin, em The President, descreve as ativida-des do Presidente dos Estados Unidos emdiversos capítulos ressaltando suas diversasfunções como: a) chefe administrativo; b) chefeexecutivo; c) órgão de relações exteriores; d)comandante em chefe em tempo de guerra; e)líder legislativo e f) instituição. A Presidênciainstitucionalizada é, para Corwin (p. 299 e seg-ts.) a Presidência despersonalizada.10

Por ocasião da elaboração da constituiçãofrancesa de 1848, como nos ensina MichelTroper,11 o sistema escolhido pelos constituintesfoi o da separação absoluta. O Presidente daRepública era investido só da função executiva.Ele não poderia ser demitido, com a ressalva deque a inexecução de leis era um crime do qual aAssembléia poderia acusá-lo. Ele só poderia agirpelos Ministros que, estes sim, poderiam serdemitidos pela Assembléia. Tocquevillecaracterizou com essas palavras o poder doPresidente francês: “na esfera do poder legisla-tivo, impotência; naquela que lhe é própria,estreita dependência.” (apud Troper, op. cit.)

No Brasil, o perfil do Presidente da Repúblicafoi influenciado diretamente pelo do Presidenteamericano. É fato notório que a grande movi-mentação política ocorrida no fim do Impérioteve uma conotação muito mais federalista doque, propriamente, presidencialista. PedroCalmon narra que os estadistas dos meados doséculo passado, em vista da heterogeneidadedas condições econômico-geográficas dasprovíncias do Império, tinham em vista a formafederativa de Estado, como ocorrera nos

10 Os presidentes americanos, configurando à suamaneira o governo, favoreceram o “culto da persona-lidade”, dando características próprias à instituição.

O professor Benoit Jeanneau (Droit Constitu-tionnel et Institutions politiques. Paris : Dalloz, 1972)vê no governo uma tendência atual de personificaçãodo poder (p. 77 e segts) “Quelle que soit la formejuridique que revête l’éxécutif, le pouvoir gouverna-mental tende aujourd’hui à se concentrer et às’exprimer dans une individualité. C’est le phénomènequ’on appelle la personalisation du pouvoir”.

Ele distingue o poder pessoal ou potência quenão conhece limites à sua ação – do poder personali-zado, isto é, a individualização da ação governamen-tal, enquanto contida nos limites constitucionais,fenômeno que atribui à propensão natural do públicode aspirar a que a autoridade se incarne em umapersonalidade.

11 TROPER, Michel. La séparation des pouvoirset l’histoire constitutionnelle française. Paris :Générale de droit et jurisprudence, 1973. p. 201.

12 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Cons-tituição de 1967. São Paulo : Revista dos Tribunais,1970. T. 2, p. 267.

13 MIRANDA, op. cit., t. 2, p. 200. SILVA, JoséAfonso. Curso de direito constitucional positivo. SãoPaulo : Revista dos Tribunais, 1990. p. 417.

14 SILVA, J. Afonso, op. cit., p. 640.

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órgãos, deve deliberar sobre matérias cujacognição lhe seja permitida decidir administra-tivamente, em caso de controvérsia, se a lei lheatribui tal competência” – o que não exclui aposição do Judiciário, conforme o art. 5 º, XXXV,da Constituição de 1988;

d) “O Poder Executivo teria função precípuade administrar”. A função administrativaimplica, muitas vezes, a adoção de medidasgraves e imperiosas para a consecução de seusobjetivos. Para favorecer o exercício da funçãoadministrativa, a Constituição brasileira de 1988inclui em seu texto a adoção de medidas provi-sórias com força de lei, em caso de relevância eurgência (art. 62). Paradoxalmente, as medidasprovisórias inserem-se no domínio da atividadenormativa do Poder Executivo, a que se refereMortati, caracterizando o exercício da legislaçãogovernamental, que Burdeau qualificou de“fenômeno geral e irreversível”, conformeensina Raul Machado Horta15.

Pelo que se deduz deste contexto de ativi-dades, o Poder Executivo, independente,partilha harmoniosamente, nos moldes daConstituição brasileira, (art. 2º) as funções comos demais poderes16.

A legitimação jurídica do primeiro chefe doexecutivo republicano brasileiro – o Chefe doGoverno Provisório Marechal Deodoro daFonseca – foi feita através da Proclamação doGoverno Provisório de 15 de novembro de 1889:“para comporem este governo, enquanto anação soberana, pelos seus órgãos compe-tentes, não proceder à escolha do governodefinitivo, foram nomeados pelo chefe do poderexecutivo da nação os cidadãos abaixo mencio-nados”, cujo primeiro signatário é o próprioMarechal.

A primeira referência ao Presidente daRepública encontra-se no capítulo I, Do Presi-dente e do Vice-presidente, da seção II daConstituição de 1891, cujo art. 41 diz: “exerce oPoder Executivo o Presidente da República dosEstados Unidos do Brazil, como chefe electivoda nação”. No constitucionalismo brasileiro, aeleição direta do Presidente da República,vedada a reeleição para o próximo período,consta dos textos constitucionais de 1891, 1946

e 1988. Exceções ocorreram em momentos decrise, de que é exemplo a constituição de 1934.O artigo 52, § 1º, estabelece a eleição presi-dencial por sufrágio universal, direto, secreto emaioria de votos. Entretanto, o art. 1º dasDisposições Transitórias estabelece a eleiçãodo Presidente, para o primeiro quadriênioconstitucional, pela Assembléia NacionalConstituinte.

A Constituição de 1937, cuja característicapredominante foi inserir-se na categoria queLoëwenstein chama de nominal,torna-se numaConstituição normativa no que se refere aoPresidente da República: ele é considerado aautoridade suprema do Estado (art. 73); entresuas prerrogativas está a de indicar um doscandidatos à presidência (art. 75, a); ele participado Poder Legislativo que é exercido pelo Parla-mento Nacional com a colaboração do Conselhode Economia Nacional e do Presidente daRepública (art. 38), além de que uma das câmarasdas quais se compõe o Parlamento – o ConselhoFederal (art. 38, § 1 º) – é composta por membrosdos quais dez são nomeados pelo Presidenteda República (art. 50); a decisão de tribunal quedeclarar a inconstitucionalidade de lei ou de atodo Presidente da República, os quais, a juízodeste, sejam considerados necessários, poderáser, por ele, submetida novamente ao Parlamentoe, se aprovada, tornada sem efeito.

A eleição presidencial se faz através de umcolégio eleitoral composto dos eleitores que oart. 82 e parágrafo determinam. Como o própriotexto constitucional declara o país em estadode emergência, nem mesmo estas eleições ocor-reram. (O art. 186 que declara o estado de emer-gência só foi revogado pela Lei Constitucionalnº 16, de 30 de novembro de 1945.)

Nova exceção à eleição presidencial diretaestabelecida pela Constituição de 1946 ocorreucom o Ato Institucional nº 1, de 10.4.64, cujoartigo 2º determina a eleição de presidente evice-presidente pela maioria absoluta dosmembros do Congresso, além de conferir aoPresidente muitos outros poderes. Esse AIestabelece a data para nova eleição presidencialem 1965.

O Ato Institucional nº 2 (art. 26) marca novadata para a primeira eleição presidencial e esta-belece a inelegibilidade do então Presidente paraa mesma função.

Na vigência da Constituição de 1946, emperíodo de turbulência política, a EmendaConstitucional nº 4, de 2 de setembro de 1961,instituiu o sistema parlamentar de governo,

15 HORTA, Raul Machado. Estudos do direitoconstitucional. Belo Horizonte : DelRey, 1995. p.573.

16 MALBERG, R. Carré de. Contribution à lathéorie générale de l’E´tat : specialement... Paris :Recueil Sirey, 1920.

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atribuindo o Poder Executivo ao Presidente daRepública e ao conselho de Ministros, cabendoa direção e a responsabilidade política dogoverno a este último. O Presidente da Repú-blica seria eleito pelo Congresso Nacional e teriaatribuições de chefe de Estado. Esta emenda nº4 foi revogada pela de nº 6, de 23.1.1963, querestabeleceu o sistema presidencial.17

A Constituição Federal de 1967 e a EmendaConstitucional nº 1, de 1969 (arts. 76 e 74,respectivamente), determinam a eleição atravésde um colégio eleitoral composto de membrosdo Congresso e das Assembléias Legislativasdos Estados.

A Constituição Federal de 1988 retoma aeleição direta como forma de exercício da sobe-rania popular, exercida pelo sufrágio universale pelo voto direto e secreto (art. 14). A eleiçãose faz simultaneamente com a do vice-presi-dente, o que pretende evitar dissenções entreambos, gerando um colapso na linha política,caso venha o vice-presidente a governar (art.77 e parágrafos). A eleição é direta, em que pesea mordacidade do comentário de CarlosMaximiliano18.

“Nos países de regime presidencial,em que a divisão de poderes mais se apro-xima do modelo clássico, o Executivo éeleito pelo povo, ao menos na aparência.Na prática, é o Presidente escolhido peloschefes do partido dominante nos grandesestados da federação”.

Em verdade, nos sistemas eleitorais vigentes, aescolha dos nomes se faz através de lobbies osmais variados, inclusive econômicos, nomomento das convenções partidárias. A faseseguinte – a da congregação do eleitorado emtorno desse nome – corre por conta da “mídia”e do peso político do partido.

O mandato presidencial é de 4 anos, exce-ções feitas em 1937, em que a Constituiçãoestabeleceu um mandato de 6 anos; em 1946, 5anos; em 1969, em que a Emenda Constitucionalnº 1 determinou o prazo de 5 anos; e em 1988,cujo prazo de 5 anos foi revogado pela Emenda

Constitucional nº 5/1994.19

A condição de elegibilidade do Presidenteda República está exposta no art. 14, quando daaquisição plena dos direitos positivos políticos.Segundo alguns autores brasileiros, a maio-ridade política se faz, no Brasil, em escalas esua perfeição é atingida somente aos 35 anosde idade – época em que a Constituição admitea candidatura à Presidência da República: “Ocandidato há de ter a idade mínima no dia emque se faz a eleição”20.

Só se admite a candidatura de brasileironato. Os doutrinadores exploram a idéia de queum cidadão naturalizado traria muitos vínculosque o ligariam à sua terra de origem, o que opoderia tornar dividido em situações deconflito. A história mostra a aversão muitasvezes demonstrada a reinantes estrangeiros. Aprópria literatura do Império confirma a formareticente pela qual era vista a possível ascensãoao trono da Princesa Isabel, herdeira legítimade D. Pedro II, por causa de seu casamento como Conde d’Eu, francês de origem.

Por esse motivo, só podem ser, também,brasileiros natos o Vice-Presidente, o Presidenteda Câmara de Deputados, o Presidente doSenado Federal e os Ministros do SupremoTribunal Federal. É nessa ordem que estasautoridades substituem o Presidente da Repú-blica, no caso de ausência, ou de vacância dapresidência (artigos 79, 80). Não há restrições àeleição de deputados e senadores naturalizados.Eles apenas não podem concorrer à presidênciadas respectivas casas, pois o presidente delaspoderá, eventualmente, substituir o Presidenteda República. Quanto aos Ministros do STF,exercem eles a presidência do Tribunal em rodí-zio e qualquer um deles pode estar em exercíciono momento em que se fizer necessário chamá-lo para ocupar a cadeira presidencial.

Presentes as condições de elegibilidadeexpostas no art. 14 da Constituição federal,algumas situações especiais tornam inelegíveisos candidatos à Presidência.

“As inelegibilidades têm por objetoproteger a normalidade e a legitimidadedas eleições contra a influência do podereconômico ou o abuso do exercício de17 Foram eleitos indiretamente os Presidentes

Getúlio Vargas (legitimação do 1º mandato), CastelloBranco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, ErnestoGeisel, Tancredo Neves, com o vice José Sarney.

18 MAXIMILIANO, Carlos. Comentários àConstituição brasileira. 5. ed. atual. Rio de Janeiro :Freitas Bastos, 1954. p. 197. Nota de pé de página,acompanhada de referência à eleição indireta.

19 Cfr. Constituição de 1891, art. 43; 1934, art.52; 1937, art. 80; 1946, art. 82; 1967, art. 75; 1969,art. 74, alterado pela Emenda Constitucional nº 2/1972; 1988, alterado pela Emenda Constitucional nº5/1994.

20 MIRANDA, op. cit., t. 3, p. 278.

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função, cargo ou emprego na adminis-tração direta e indireta”.21

Estão elas previstas nos parágrafos 4º a 7º domesmo artigo.

São inelegíveis para a função de Presidenteda República os analfabetos e inalistáveis – nocaso específico, os privados dos direitos políti-cos somente; os possíveis candidatos à reelei-ção; os que tenham exercido a função de presi-dente até seis meses antes do pleito; oscônjuges ou parentes do Presidente ou de quemo tenha substituído dentro de seis mesesanteriores ao pleito.

Por outro lado, o Presidente da República emexercício poderá concorrer a outro cargo eletivo,mas, para fazê-lo, deverá desincompatibilizar-seaté seis meses antes das eleições. A desincom-patibilização se faz por renúncia anterior ao regis-tro da candidatura. O cônjuge ou parentes con-sangüíneos ou afins até o 2º grau ou por adoçãodo Presidente da República, não sendo titularesde mandato, não podem pleitear eleição para cargoou mandato algum (art. 14, § 7 º).22

A vacância da Presidência resulta de não-aceitação do cargo, renúncia, morte, pronúnciaou condenação em processo comum ou deresponsabilidade, abandono de funções, saídado território nacional sem licença das câmaraspor tempo maior que o determinado, suspensãode direitos de cidadão brasileiro, incapacidadefísica incurável durante o mandato ou demoraexcessiva de tomada de posse. Outras hipó-teses poderão ser verificadas pelo CongressoNacional, que é o órgão competente para decla-rar vago o cargo de Presidente da República.23

Ocorrendo a vacância da Presidência e da Vice-Presidência, far-se-á eleição noventa diasdepois de aberta a última vaga; se ocorreu nosúltimos dois anos do período presidencial, aeleição para ambos os cargos será feita peloCongresso Nacional, na forma da lei (art. 81 eparágrafos).

Investido do poder de ordenação políticada nação, é de suprema importância a atividadenormativa do Poder Executivo, sobre a qual seencontra ampla bibliografia, e que o Presidenteda República realiza através da iniciativa dosprojetos de lei, do poder de veto e da sanção, dapromulgação e publicação das leis, atividades

que, na complexidade de suas relações com oPoder Legislativo, constituem fases doprocesso legislativo, ao lado da emissão demedidas provisórias e da competência delegadapara elaboração de leis.

O “poder legiferante” do Presidente daRepública se faz por meio de:24

– iniciativa das leis;– sanção ou veto;– promulgação e publicação das leis;– poder regulamentar;– leis delegadas;– medidas provisórias.Machado Paupério25 vê na Constituição de

1967/69 a possibilidade de iniciativa do Presi-dente da República nos projetos:

“a) de emendas à Constituição; b) de leisordinárias; c) em caráter exclusivo, de leisque disponham sobre matéria financeira,criem cargos, funções ou empregospúblicos ou aumentem vencimentos oudespesas públicas; fixem ou modifiquemefetivos das Forças Armadas; dispo-nham sobre servidores públicos da União,concedam anistia a crimes políticos, ou-vido o Conselho de Segurança Nacional”.

A Constituição de 1988 eliminou a referência àanistia e aos crimes políticos, mantendo a com-petência privativa do Presidente da Repúblicapara conceder indultos e comutar penas (art.84, XII), o que se constitui uma excepcional prer-rogativa do Presidente da República de interfe-rência nas atividades do Judiciário. Trata-se deato administrativo do Executivo que tem o con-dão de modificar a decisão do Judiciário extin-guindo ou comutando penas impostas em sen-tenças transitadas em julgado – modificaçõesque, concedidas, o juiz deve declarar.

Entre as formas de participação do Presi-dente da República no processo legislativo, aolado da iniciativa dos projetos de lei, está o vetoou negação da sanção.

“Quanto ao veto, que representouinicialmente a diminuição do poder dacoroa quando se desenvolvia o poderparlamentar, é, em toda parte, válido e faz

21 SILVA, op. cit., p. 334.22 Lei de Inelegibilidades: Lei Complementar nº

64 de 18/5/90.23 MAXIMILIANO, op. cit.

24 GIL, Otto. O poder legiferante do Presidenteda República. Revista jurídica, v. 18, n. 120, p. 23-54, jan./mar. 1973. Com referência aos decretos-leis,anteriores às medidas provisórias.

25 PAUPÉRIO, Machado. Relações entre o poderlegislativo e executivo. Revista de Informação Legis-lativa, Brasília, v. 17, n. 67, p. 111-118, jul./set. 1980.

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parte da mecânica de freios e contrapesosconstitucionais; apesar de extinto no seupaís de origem, a Inglaterra, do mesmomodo que na França, a partir de 1845” (p.114).

O veto tanto pode basear-se em motivo de ordemconstitucional quanto em razões de conveni-ência ou interesse público, caso em que deveráser autorizado expressamente pela Constituição.

Hamilton, ao defender a conveniência doveto, afirma que o poder de vetar conferido aoPresidente

“não só serve de defesa ao executivocomo também fornece garantia adicionalcontra a decretação de leis inconveni-entes. Estabelece o controle salutar sobreo poder legislativo (...) O motivo primor-dial para conceder-se ao executivo opoder em questão consiste em capacitá-lo a defender-se e, em seguida, aumentaras probabilidades a favor da comunidadecontra a aprovação de leis más em virtudede pressa, inadvertência ou intenção”.26

Manoel Gonçalves Ferreira Filho27 consi-dera ser o veto a recusa da sanção.

“É a manifestação de discórdia doPresidente da República em relação aoprojeto aprovado pelo Congresso Nacio-nal. Há de ser sempre expresso e motiva-do. Tem efeito meramente suspensivo.Para alguns, o veto não é apenas a con-trariedade da sanção – é a negação dasanção, que só existe porque ela, asanção, existe”.

O poder regulamentar, ainda segundoMachado Paupério, instituído na França sob oconsulado, tem sido objeto de uso e abuso. OExecutivo vem fazendo crescer tal poder, implí-cito, segundo alguns, em suas atribuições.Entende-se, hoje, constitucional a delegação defunções regulamentares, necessárias à execuçãodas leis, só vedada em casos penais.

A Constituição Federal de 1988 faz referên-cia expressa ao Presidente da República 46vezes no texto e mais 6 vezes no Ato dasDisposições Constitucionais Transitórias. OPresidente da República recebe, deles, atribui-ções e deveres vários, como:

Conferir patentes aos oficiais das ForçasArmadas (art. 42). prestar compromisso frenteao Congresso Nacional e convocá-lo extraordi-nariamente (art. 57); apresentar contas paraserem apreciadas anualmente pelo Legislativo,auxiliado pelo TCU (arts. 71-166); escolher umterço dos Ministros do Tribunal de Contas, comaprovação do Senado Federal (art. 73); tomarposse em sessão do Congresso Nacional (art.78); exercer atividades de competência exclusiva(art. 84); autorizar atos de atribuição dosMinistros de Estado e apreciar-lhes os relatórios(art. 87); aconselhar-se com o Conselho daRepública (art. 89) e com o Conselho de DefesaNacional (art. 91); convocar Ministros paraparticipar das reuniões do Conselho da Repú-blica (art. 90); escolher integrantes da lista paracompor o quinto constitucional nos Tribunais(art. 94); ser julgado pelo STF e ter julgados porele os mandados de injunção cuja norma regu-lamentadora for de sua competência (art. 102);propor ação de inconstitucionalidade (art. 103);nomear Ministros de Tribunais (arts. 104, 107,111, 119, 123), Procurador-Geral da União (art.128) e Advogado- Geral da União (art. 131);decretar estado de defesa (art. 136) e solicitarautorização para decretar estado de sítio (art.137); comandar as Forças Armadas (art. 142);28

Rousseau, referindo-se aos legisladores,afirmou que “seriam precisos deuses para darleis aos homens”. Considerando-se a complexi-bilidade das funções e o muito que se espera deum Presidente da República, seria necessárioum “super-herói” para esta função? WoodrowWilson já se referia às dificuldades que seencontram para escolher e eleger um homem:ele é julgado por suas habilidades anterioresentre as quais nunca (ou quase nunca) está osupremo governo de seu Estado. “Jackson foieleito porque ganhara a batalha de NovaOrleans; Washington era um soldado; Monroeera diplomata”.29 Deodoro da Fonseca, um sol-dado, Getúlio Vargas, um caudilho; FernandoHenrique, um professor. O fato de alguns delesterem exercido anteriormente funções legisla-tivas, se ajuda, não os torna administradores.

28 Os seguintes artigos referem-se nomeadamenteao Presidente da República.: 12, § 3º; 14, §§ 3º, 5º, 6º,7º; 42; 48; 49; 51; 52; 57, §§ 5º, 6º; 60; 61; 62; 63; 64,§ 1º; 66, §§ 1º, 3º, 5º, 7º; 68; 71; 73; 76; 77, §§ 1º, 2º,3º; 78; 79; 80; 81; 82; 83; 84; 85; 86; 87; 89; 90; 91;101; 102; 103; 104; 107; 111; 119; 123; 128; 131;136; 137; 142; 166, §1º e no ADCT: 1º; 4º; 9º; 13, §3º; 16; 29.

29 WILSON, op. cit., p. 272.

26 ROSA, Mauro Andrade. O veto nos estadospresidencialistas. Revista de Informação Legislativa,v. 23, n. 89, p. 139-168, jan./mar. 1986.

27 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves.Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo :Saraiva, 1977. V. 2, p. 28.

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Ao mesmo tempo, bons administradores nemsempre são hábeis políticos e ao Presidente daRepública cabe a ordenação política da nação.As ocupações do Presidente elevam-se muitoalém da simples rotina; têm que estar emharmonia com o plano geral da Constituição eem consonância não apenas com as necessi-dades atuais, mas com os prognósticos derealização do Estado que governa.

“A administração é uma coisa que oshomens são obrigados a aprender, elesnão nasceram para brilhar nessas funções(...) Nós somos levados a crer que todohomem razoável e enérgico pode fazer derepente, sem preparação, o trabalho do

legislador ou do administrador” (p. 276).Wilson sugeriu que seria melhor escolher

os presidentes entre aqueles que já se houves-sem experimentado em governos de Estados ouem cargos administrativos inferiores. E mais: quese fizesse a escolha de seu secretariado (ouMinistério) competente, que lhe servisse deapoio eficiente e profícuo.

Muito antes, a sofocracia de Platão jápretendia que o governante fosse sábio, ou,pelo menos, se cercasse de sábios.30

A Constituição traça-lhe o perfil político-jurídico. A experiência e formação do homemnão se incluem no campo que ela delimita.

30 PLATÃO. A República. Introdução RobertBaccon. São Paulo : Difusão Européia do Livro, 1965.p. 30.

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1. A Constituição Federal e a democraciaparticipativa

É consabido que um dos aspectos maisinovadores, do ponto de vista da democra-cia, introduzido pela Constituição Federal(CF) de 1988, reside na “participação direta epessoal da cidadania nos atos de Governo”1.Esta se fundamenta no art. 1 º, parágrafo úni-co, da Lei Maior: “Todo o poder emana dopovo, que o exerce por meio de represen-tantes eleitos ou diretamente , nos termosdesta Constituição”.

Antes do processo constituinte, somente oJudiciário admitia, ainda que excepcionalmente, aparticipação direta do povo no exercício da judi-catura, fosse através do júri popular, fosse

Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito, na áreade Política, pela Universidade de Nancy (França).Professor de Teoria Política do Mestrado em CiênciasSociais e do Mestrado em Ciências Jurídicas daUniversidade Federal da Paraíba. Presidente doConselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homeme do Cidadão (CEDDHC) e 1º Vice-Presidente daAssociação Brasileira de Ouvidores (ABO).

Os conselhos de direitos do homem e docidadão e a democracia participativa

RUBENS PINTO LYRA

SUMÁRIO

1.A Consituição Federal e a democracia partici-pativa. 2. Os conselhos estaduais de direitos dohomem e do cidadão: conselhos da cidadania ouconselhos do Governo? 3. A questão da autonomianos colegiados da democracia participativa. 3.1.Teses conflitantes sobre a paridade. 3.2. A compo-sição dos conselhos estaduais de cidadania. 4. Osconselhos estaduais de direitos humanos de SãoPaulo e da Paraíba: uma análise comparativa.

1 A escolha dos juízes classistas é consideradauma manifestação de democracia direta pelo doutorPaulo Guimarães Leite, Ouvidor Público de Campi-nas, no seu artigo Aprimorando a Democracia (SãoPaulo : mimeo, 1995. 4 p.), do qual retirei valiosasindicações para esta pesquisa. Todavia, no caso aci-ma referido, trata-se de uma forma de participaçãopropriamente corporativa, que se diferencia qualita-tivamente do direito de “participação da comunida-de” com vistas à preservação do interesse público, aque aludimos na seqüência deste trabalho.

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mediante a escolha, por entidades represen-tativas de empregadores e empregados, dejuízes classistas (CF, arts. 11, § 1º e 113).2

A partir de 1988, a Justiça abre-se mais efe-tivamente à participação da cidadania, com aampliação do objeto da ação popular, que passaa compreender não somente a defesa dopatrimônio público, mas também a da moralidadeadministrativa, a do meio ambiente e a do patri-mônio cultural. Já no Legislativo a participaçãodireta do cidadão na formação da lei veio a seconcretizar, destacadamente, através da inicia-tiva popular, do plebiscito e do referendo (CF,art.14, I e II, c/c o art. 49, V, art. 14, III, c/c o art.61, § 2 º ).

Todavia, é no âmbito do Poder Executivoque as inovações alcançam maior amplitudee profundidade. A Constituição Federal con-tém vários dispositivos que fazem mençãoexpressa à “participação da comunidade” nagestão pública, notadamente na área da saúde(CF, art. 198, III), da seguridade social (CF,art. 194, VIII), da política agrícola, “envol-vendo produtores e trabalhadores rurais” noseu planejamento e execução (CF, art. 187,caput), e da assistência social, onde se esta-belece, de forma específica, a participaçãoda população “por meio de organizaçõesrepresentativas” na formulação das políticase no controle das ações em todos os níveis(CF, art. 204, II).3

O Estatuto da Criança e do Adolescentetalvez seja a primeira lei a atribuir à cidadaniao exercício direto da gestão pública. Esta,aliás, cabe-lhe com exclusividade no caso dosconselhos tutelares, órgãos mais importan-tes previstos no estatuto, conforme o dis-posto no seu art. 132:

“Em cada Município, haverá, no mí-nimo, um Conselho Tutelar, compostode cinco membros, escolhidos pela co-munidade local para mandato de trêsanos, permitida uma recondução 4.”

2. Os conselhos estaduais de direitos dohomem e do cidadão: conselhos da cidada-

nia ou conselhos do Governo?A Constituição do Estado da Paraíba (CE/

PB), promulgada conforme os princípios daConstituição Federal de 1988, tem como esco-po “instituir uma ordem jurídica autônoma parauma democracia social participativa” (CE/PB,Preâmbulo, 1988). Inspirado nesta concepçãode democracia, foi criado o Conselho Estadualde Defesa dos Direitos do Homem e do Cida-dão (CEDDHC)

“ao qual incumbe articular as ações dasociedade civil organizada, defensorados direitos fundamentais do homem edo cidadão, com as ações desenvolvi-das nessa área pelo Poder PúblicoEstadual”(CE/PB, art. 75 do Ato das Dis-posições Transitórias, 1989).5

Já o Conselho Estadual de Defesa dos Di-reitos da Pessoa Humana (Condepe) ficou es-truturado com base no art. 10 da Constituiçãodo Estado de São Paulo (CE/SP), o qual deter-mina que este Conselho

“será criado por lei com a finalidade deinvestigar a violação dos direitos huma-nos no território do Estado, de encami-nhar as denúncias a quem de direito e depropor soluções gerais a esses proble-mas” (CE/SP, 1989).6

Esses dois Conselhos são os únicos, atéagora, no país, a funcionarem de forma inde-pendente do Governo, tendo na sua composi-ção a presença hegemônica de órgãos eentidades, públicos e privados, independentesdo Poder Público estadual e diretorias eleitaspelos conselheiros. Isto porque a maior parteda “classe política” e, por vezes, membros doPoder Judiciário demonstram total incapacidadede aceitar, na prática, os princípios da demo-cracia participativa. Não admitem que a gestãogovernamental possa ser fiscalizada e politica-mente monitorada por um órgão independente.

Assim, mesmo os conselhos com essascaracterísticas, que lograram aprovação,tiveram que enfrentar dificuldades para garantiro seu funcionamento. No caso do Conselho

2 SILVA, José Afonso da. Curso de DireitoConstitucional Positivo. São Paulo : Malheiros,1995. 820 p.

3 BRASIL. Constituição. Constituição da Repú-blica Federativa do Brasil : artigos. São Paulo : Atlas,1988. 180 p.

4 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescen-te. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobreo Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outrasprovidências. João Pessoa : Defensoria Pública doEstado da Paraíba, 1995. 140 p.

5 PARAÍBA. Constituição. Constituição do Es-tado da Paraíba : preâmbulo e artigos. João Pessoa :Assembléia Legislativa da Paraíba, 1989. 193 p.

6 SÃO PAULO. Constituição. Constituição doEstado de São Paulo : artigos. São Paulo : IMESP,1989. 48 p.

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Estadual de Defesa dos Direitos do Homem edo Cidadão (CEDDHC) da Paraíba, foi necessá-rio “recriá-lo”, através da Lei estadual nº 5.551,de 15 de janeiro de 1992, e finalmente instalá-loem 26 de março do mesmo ano.

Porém, já instalado e com um ano de funcio-namento, o CEDDHC teve o livre exercício de seuspoderes de fiscalização obstado pelo Juiz dasExecuções Penais de João Pessoa, que preten-deu condicionar o acesso de seus integrantes àsdependências do sistema penitenciário à suaautorização prévia.7 Foi preciso aguardar cincomeses para que esta pretensão arbitrária, con-substanciada em portaria, fosse sepultada pormeio de despacho administrativo do Corregedor-Geral do Tribunal de Justiça do Estado da Paraí-ba. Este reconheceu, em 20 de agosto de 1993,ser direito incontrastável dos conselheiros doCEDDHC terem livre acesso a qualquer unidadeou instalação pública estadual para a realizaçãode vistorias, exames ou inspeções.8

É interessante sublinhar que a exigência destasprerrogativas constituiu, e não por acaso, o pivôda disputa entre o Governo de São Paulo e asentidades da sociedade civil paulista que estive-ram na origem da criação do Conselho Estadualde Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Con-depe).

Com efeito, a Lei estadual nº 7.576, de 27 denovembro de 1991, foi aprovada com três artigosvetados, entre os quais o que garantia

“acesso (ao Condepe) a todas as depen-dências de unidades prisionais estaduaise estabelecimentos destinados à custódiade pessoas, para o cumprimento dediligências”.9

Não obstante, o ponto de vista das entidades dedireitos humanos acabou por prevalecer, medi-ante a aprovação da Lei estadual nº 8.032, de 28de setembro de 1992, que contém precisamenteos três artigos anteriormente vetados.10

As resistências aos conselhos de direitoshumanos independentes do Poder Executivo semanifestaram também na indiferença e veladahostilidade com que o seu funcionamento foirecebido pelas autoridades estaduais.

No caso da Paraíba, meses após a instala-ção do CEDDHC, a sua direção nada haviaobtido junto à Secretaria de Justiça e Cidadaniae ao Governo, faltando-lhe sede, móveis, tele-fone e recursos financeiros. Somente um anoapós a sua instalação, graças à “teimosia” deseus dirigentes, foi possível obter condiçõesmateriais que tornassem viáveis as suasatividades.11

Estes dois Conselhos – o da Paraíba e o deSão Paulo – conseguiram superar os obstáculosiniciais e conquistar credibilidade e respaldo paraas suas iniciativas. Permanecem, todavia, sendoos únicos do país a serem estruturados de modoa garantir que a sua atuação se faça de formaindependente do Poder Executivo.

A resistência dos políticos conservadoresà criação de conselhos estaduais com essascaracterísticas determinou, em Sergipe, arejeição, em duas legislaturas, do projeto doDeputado Renato Brandão12. Alegou-se – erro-neamente – que seu projeto estaria contempladona proposta do Poder Executivo, referente àcriação do Conselho Estadual de Defesa daComunidade (CEDC) – já transformado em lei.13

Ora, este Conselho, presidido pelo Gover-nador do Estado, é composto de uma maioriade órgãos públicos sem vínculo com asociedade civil. Além do mais, não conta com aparticipação de entidades de direitos humanos(esta expressão nunca é, aliás, empregada notexto proposto). Além de independência, carecede eficácia, visto que não dispõe, como osConselhos da Paraíba e de São Paulo, do poderde fiscalização dos órgãos integrantes daadministração pública do Estado.

A inocuidade do CEDC contrasta com ospoderes conferidos pela Constituição do Estadode Sergipe (art. 133, § 1º ) ao Conselho Estadualde Defesa da Pessoa Humana, in verbis:

11 PARAÍBA. Conselho Estadual de Defesa dosDireitos do Homem e do Cidadão (CEDDHC). Men-sagem da Presidência aos Conselheiros do CE-DDHC. João Pessoa, 5 de julho de 1992.

12 BRANDÃO, Renato. Anteprojeto de Lei nº102/93 de 4 de agosto de 1993. Aracaju : AssembléiaLegislativa, 1993.

13 SERGIPE. Lei estadual nº 3.641, de 3 de agos-to de 1995.

7 PARAÍBA. Poder Judiciário. 7ª Vara Privativa dasExecuções Penais. Portaria 1/93, de 18 de março de 1993.João Pessoa, 1993.

8 PARAÍBA. Poder Judiciário. Corregedoria-Geralde Justiça. Despacho Administrativo do Corregedor-Ge-ral do Tribunal de Justiça, de 20 de agosto de 1993. JoãoPessoa, 1993.

9 SÃO PAULO. Lei estadual nº 7.576, de 27 de no-vembro de 1991. Cria o Conselho Estadual de Defesa dosDireitos da Pessoa Humana e dá providências correlatas.Diário Oficial (do Estado de São Paulo), São Paulo, 101(225), 28 nov. 1991.

10 SÃO PAULO. Lei estadual nº 8.032, de 28 desetembro de 1992. Altera a Lei nº 7.576, de 27 de setem-bro de 1991. Legislação, São Paulo, set. 1992. 3 p.

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Revista de Informação Legislativa178

“No exercício de suas funções, e afim de bem cumprir suas finalidades, oConselho Estadual de Defesa dos Direi-tos da Pessoa Humana terá poderes depolícia administrativa, de convocarpessoas e de ordenar perícias”.14

Obedecendo ao mesmo diapasão oficialis-ta, foram criados, em 29 de dezembro de 1987, oConselho Estadual de Defesa dos DireitosHumanos em Minas Gerais e, em 27 de março de1995, no Paraná, o Conselho Permanente deDireitos Humanos. Este, apesar de compostoparitariamente por entidades, órgãos governa-mentais e não-governamentais (ONGS), épresidido pelo Secretário de Justiça e da Cida-dania, o que, associado ao voto de qualidadeconferido ao Presidente, subordina o seufuncionamento ao Governo.15

Já o Conselho de Defesa dos Direitos Hu-manos de Minas Gerais tem a sua sujeição aoPoder Executivo estampada na própria lei que ocriou. Esta, no seu artigo primeiro, qualifica oreferido conselho de “órgão consultivo subor-dinado à Secretaria de Estado da Justiça”16.

Subordinação confirmada pelo seu Regi-mento Interno, aprovado em 27 de julho de 1994,ao estipular que o presidente e a maioria de seuscomponentes são de livre escolha do Governa-dor do Estado. Por fim, nulo é o poder de fisca-lização desse conselho, já que todas as inspe-ções, visitas e diligências que pretenda efetuarnos estabelecimentos públicos estão sujeitos“à prévia autorização dos titulares a que estãosubordinados”.17

Dentro do mesmo padrão de dependênciaem relação ao Governo, foi criado, em 16 de de-zembro de 1994, na Bahia, o Conselho Estadualde Proteção aos Direitos Humanos.

14 SERGIPE. Constituição. Constituição doEstado de Sergipe : artigos. Aracaju : SGRAF, 1989.134 p.

15 PARANÁ. Lei estadual nº 11.070, de 27 demarço de 1995. Diário Ofícial (do Estado do Paraná),Curitiba, n. 4.476, p. 2-3.

16 MINAS GERAIS. Lei estadual nº 9.516, de 20de dezembro de 1987. Transforma em Secretaria deEstado da Justiça a Secretaria de Estado de Interior eJustiça, cria o Conselho Estadual de Defesa dos Di-reitos Humanos e dá outras providências. Legislação(do Estado de Minas Gerais), Belo Horizonte, p.612, dez. 1987.

17 MINAS GERAIS. Poder Executivo. Decretonº 35.661, de 27 de Junho de 1994. Aprova o Regi-mento Interno do Conselho Estadual de Defesa dosDireitos Humanos. Diário do Executivo, Belo Hori-zonte, p. 4, 16 jul. 1994.

18 BAHIA. Lei estadual nº 6.699, de 16 dedezembro de 1994. Dispõe sobre o Conselho Estadualde Proteção aos Direitos Humanos e dá outrasprovidências.

19 ESPÍRITO SANTO. Governo do Estado.Secretaria de Justiça e Cidadania. Anteprojeto de Lei,sob forma de minuta, referente à criação do ConselhoEstadual de Direitos Humanos.

20 DISTRITO FEDERAL. Centro de Referênciade Direitos Humanos. Anteprojeto de Lei, sob formade minuta, referente à criação do Conselho Estadualdos Direitos Humanos.

Com efeito, o art. 3º da lei que o criou pre-ceitua que “o Secretário de Justiça o presidirá”.Além do mais, dos treze integrantes que ocompõem, somente cinco são indicados porentidades de sociedade civil, embora os órgãosdo Governo estadual sejam minoritários noConselho.

Enfim, os nomes indicados para teremassento no referido Conselho devem passar pelocrivo da Assembléia Legislativa do Estado antesda nomeação pelo Governador, o que retira aplena autonomia de suas escolhas.18

Já os anteprojetos de lei que estão na imi-nência de serem encaminhados à AssembléiaLegislativa do Espírito Santo e à Câmara Legis-lativa do Distrito Federal, respectivamente,pelos Governadores Victor Buaiz19 e CristovamBuarque20, prevêem a instalação de conselhoscom dirigentes eleitos, efetivo poder de fiscali-zação e maioria de integrantes constituída porentidades da sociedade civil.

Queremos assinalar, à guisa de conclusão,que os conselhos do Paraná, da Bahia, de MinasGerais e de Sergipe existem apenas no papel.Não foram instalados até agora exatamenteporque são atrelados aos respectivos governos,dominados por dirigentes pouco comprome-tidos, na prática, com a defesa dos direitoshumanos e a promoção da cidadania.

3. A questão da autonomia nos colegiadosda democracia participativa

3.1. Teses conflitantes sobre a paridade

A participação popular na gestão pública,ou na fiscalização desta, para ser idônea,necessitaria, em todos os casos, nos órgãoscolegiados, de uma paridade entre órgãosgovernamentais e não-governamentais? Ou,mais do que isso: de uma maioria de entidadesrepresentativas da sociedade civil? E ainda:

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estas seriam, necessariamente, “organizaçõesnão-governamentais” (ONGS)?

Alguns procuradores da República defen-dem a tese de que, em quaisquer dos colegiadosonde a lei prevê a “participação da comunidade”por meio de organizações representativas, talparticipação deveria garantir a essas organiza-ções uma presença paritária, sem o governo terdireito ao voto de Minerva ou ao poder dehomologação.

Caso contrário, segundo esse raciocínio, sefosse admitida a hegemonia do Poder Executivo,a participação direta da população nos órgãosde Governo não passaria de mera figuração. Opoder não seria exercido diretamente, conformeo preceito constitucional, já que as decisõescontinuariam a ser tomadas pelo Governo,sendo apenas caucionadas pelos exercentes dademocracia direta com participação nosconselhos e órgãos assemelhados.21

Pensamos diferentemente. A tese dos pro-curadores da República, acima referidos, denecessidade de uma composição sempre pari-tária para legitimar, do ponto de vista jurídico epolítico, a participação direta da população nosórgãos do Estado, nas condições acima referi-das, contrasta com a diversidade do controleda gestão pública envolvendo a participaçãodireta da cidadania, prevista na ConstituiçãoFederal, nas Constituições estaduais e nalegislação ordinária.

Como ensina o Professor Manoel EduardoAlves Camargo e Gomes:

“É possível localizar na Constituição Federalde 1988 um verdadeiro sistema de mecanismosextra e interorgânicos de participação e controleda gestão pública. Todavia, nos moldes em queestes mecanismos foram contemplados, é im-possível atribuir-lhes uma natureza especifi-camente deliberativa, consultiva ou fiscal.

O que pode ser constatado, sem muitoesforço hermenêutico, é que todo este alarga-mento do universo subjetivo de participaçãona Administração Pública, realizado pelo legis-lador constituinte, tem seu esteio exatamenteem um amplo plexo de normas através das quaiso cidadão é situado como núcleo de todo umsistema de controle, o que demonstra apreponderância da natureza fiscal destesmecanismos”.22

No nosso entendimento, a existência de uma

maioria de órgãos independentes do PoderExecutivo apenas constitui pré-requisito de ido-neidade no caso de colegiados dotados exclu-sivamente do poder de fiscalização, como osconselhos estaduais de direitos humanos.

Assim, quando se trata de Conselhos comoos de Saúde, de Habitação, de Ciência e Tecno-logia e de outros do mesmo gênero, que defi-nem estratégias e elaboram políticas para o se-tor, alocam recursos, em suma, tomam decisõesde Governo, entendemos que, nesses casos, élegítimo e até necessário que o Poder Executivodisponha de uma representação majoritária (ou,sendo o colegiado paritário, do voto de Miner-va). Isto porque o titular do Executivo (Presi-dente, Governador ou Prefeito) foi eleito pelopovo para governar.O que obviamente, poderianão ocorrer em um Estado em que os órgãosresponsáveis pela formulação das políticas pú-blicas fossem, não os do Governo, mas conse-lhos integrados paritariamente por entidades doPoder Executivo, não tendo este maioria ou di-reito ao voto de desempate.

A ocorrência dessa hipótese poderia gerar,como subproduto, a substituição da legitimida-de derivada do sufrágio universal pela de orga-nizações com base social limitada, idôneas paraexercerem influência e poder de pressão no seiodo Estado e para conferirem transparência àgestão pública. Mas não para governarem emlugar do Governo.

Se tal acontecesse, estaríamos em presençada ressurreição do vanguardismo: uma minoriade “iluminados” representantes da sociedadecivil, escolhidos por uns poucos, governariaem lugar dos mandatários eleitos pelo voto damaioria da população. Ou então, prevalecendoo desacordo, a ausência do voto de Minervapoderia conduzir ao virtual engessamento daadministração.

3.2. A composição dos conselhos estaduaisde cidadania

Examinemos agora, mais detidamente,quais os elementos necessários à configura-ção da autonomia dos conselhos, que delanecessitam para exercer, com independência,o seu mister de órgão de fiscalização do ser-viço público e de defensor dos direitos hu-manos.

21 Entrevista com os Procuradores da RepúblicaFabiano Silva e Delson Lyra. Brasília, 28 nov. 1995.

22 GOMES, Manoel Eduardo Alves Camargo e.O controle da administração pública : os pressu

postos teóricos para uma revisão conceitual. Disser-tação de mestrado. Curso de mestrado em Direito daUniversidade Federal de Santa Catarina. Florianó-polis : Mimeo, 1992. 100 p.

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Estado que presidir o colegiado, pois dele de-penderá tanto a convocação para as reuniões,quanto a obtenção da infra-estrutura necessá-ria ao funcionamento do órgão em questão.

O quarto requisito, o poder de fiscalização– já referido anteriormente –, somente é efetivoquando o seu exercício não depender de qual-quer autorização dos governantes.

4. Os conselhos estaduais de direitoshumanos de São Paulo e da Paraíba: uma

análise comparativaVimos, precedentemente, que os conselhos

estaduais da Paraíba e de São Paulo são órgãoscongêneres, já que compartilham aspectos que,no essencial, conferem-lhes uma identidadecomum. Assim, em ambos os casos, a maioriadas entidades que os compõem são indepen-dentes, suas diretorias são eleitas e possuemefetivo poder de fiscalização. Além do mais, nosdois conselhos, as entidades da sociedade ci-vil, ou a elas assemelhadas, como as represen-tações autônomas das universidades, são he-gemônicas.

Dispõem, portanto, dos elementos substan-tivos, formais e operacionais, que lhes permi-tem exercer uma função de monitoramento dagestão pública estadual, com vistas a fazer va-ler o respeito pelos direitos humanos.

Existem, todavia, importantes especifici-dades que conformam diferentemente os doisconselhos, tanto no que se refere à sua com-posição quanto às suas atribuições e, con-seqüentemente, ao seu campo de atuação.

São Paulo optou por compor o ConselhoEstadual dos Direitos da Pessoa Humana(Condepe) com a presença esmagadoramen-te dominante de entidades da sociedade ci-vil, tendo os poderes de Estado uma partici-pação apenas simbólica (um representantedo Executivo e um do Legislativo). O Judici-ário decidiu não tomar assento no Condepepor considerar existirem dúvidas quanto àcompatibilidade entre sua participação nes-se órgão e o exercício de suas funções judi-cantes.

Outra foi a opção da Paraíba, que fez doConselho Estadual de Defesa dos Direitos doHomem e do Cidadão (CEDDHC) uma institui-ção híbrida, composta de sete órgãos ligadosao Estado e oito representantes da sociedadecivil ou a eles assemelhados (entre estes a OAB/PB e a Universidade Federal da Paraíba).

Vimos que o primeiro requisito é o de quetais conselhos congreguem uma maioria deentidades independentes do Poder Executi-vo. Na verdade, se a autonomia formal podeser assim assegurada, a capacidade, o empe-nho e a disposição de se confrontar, quandonecessário, com o Governo, assim como orespaldo social para tal enfrentamento,depende de um segundo requisito: o daexigência de uma maioria de entidades repre-sentativas de diferentes segmentos da soci-edade civil interessados na defesa e promo-ção dos direitos da cidadania.

Preenchido esse requisito, que confere umaautonomia real aos conselhos – sobretudo seas entidades da sociedade tiverem um compro-misso prático e efetivo com a luta pelos direi-tos humanos –, pouco importa que as entida-des referidas sejam públicas ou privadas. Im-porta que elas não sejam “entidades governa-mentais” no sentido estrito do termo, isto é,que elas não sejam subordinadas ao Governo.

Assim, tanto faz que sejam organizaçõesgovernamentais no sentido amplo – pois exer-cem poderes próprios do Estado –, como a Or-dem dos Advogados do Brasil (OAB), os Con-selhos Regionais de Medicina, Economia e ou-tros, que aglutinam importantes setores dasociedade civil, ou que sejam simplesmente en-tidades privadas, como associações estaduaisde imprensa, entidades ecológicas, centros dedireitos humanos, etc.

Vale assinalar que existem representaçõesde órgãos públicos participantes de conselhoscom características bastante peculiares, comoa Comissão de Direitos do Homem e do Cida-dão (CDHC) da Universidade Federal da Paraí-ba. Eleita pelo órgão máximo da instituição, oConselho Universitário congrega militantes dacidadania – com força de representação socialde uma instituição prestigiosa –, que agem complena autonomia, pois deliberam livremente so-bre sua ação, não recebendo ordens de nenhumórgão da Universidade. A CDHC apresenta,portanto, elementos essenciais que a asseme-lham às entidades representativas da socieda-de civil.

O terceiro requisito diz respeito à existênciade diretorias eleitas, por duas razões: primeiro,porque, se o papel do Presidente é crucial navida associativa brasileira, ele se torna aindamais decisivo nos órgãos públicos cujo funcio-namento fica na dependência da autoridade do

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Vê-se que a composição do CEDDHC refle-te um relativo equilíbrio entre Estado e socieda-de, a despeito da presença hegemônica desta,atendendo assim ao que dispõe a Constituiçãoparaibana, que concebeu o conselho comosendo o locus por excelência da articulação dasações da sociedade civil organizada com aatuação desenvolvida pelo poder públicoestadual na esfera dos direitos do homem e docidadão.

A opção de São Paulo explica-se possivel-mente pelo maior peso de sua sociedade civil,que praticamente sozinha consegue garantir ofuncionamento do Condepe e a credibilidadedeste.

Aliás, não é propriamente a sociedade civilpaulista que está, através de seus segmentosmais expressivos, representada no Conselho deSão Paulo, mas apenas os conselhos, comis-sões e grupos mais importantes de direitos hu-manos – além da OAB/SP, que não deixa de serda área.

Na Paraíba, e em boa parte dos Estados bra-sileiros, tal composição seria inimaginável, hajavista a pouca expressividade das entidades dedireitos humanos na sociedade. Daí o CEDDHCincorporar, entre os seus membros, os setoresmais representativos da sociedade civil parai-bana: Ordem dos Advogados, associações ouconselhos de ecologistas, médicos e economis-tas, entre outros.

Todavia, se considerarmos a própria debili-dade da sociedade civil da Paraíba no seu con-junto, parece ter sido correta a proposta, con-sagrada na Constituição daquele Estado e nalei que o criou, de conceder ampla participação,no seu Conselho de Direitos Humanos, não sóaos setores organizados da sociedade, mastambém aos órgãos públicos encarregados dadefesa e da promoção da cidadania, como oMinistério Público Estadual e Federal, a Corre-gedoria de Justiça, a Procuradoria-Geral daDefensoria Pública e as Secretarias de Justiça ede Segurança do Governo.

Tão importante revelou-se esta participaçãoque a Polícia Militar do Estado foi convidada,posteriormente, pela unanimidade dos integran-tes do CEDDHC, a tomar assento no conselho.

Trata-se, com essa configuração, do únicoconselho de direitos humanos do país que vemdesenvolvendo uma experiência sui generis eexitosa de articulação entre os órgãos públicose privados interessados na questão dos direitoshumanos.

Na esteira deste “modelo”, o anteprojeto delei que será apresentado pelo Governador Cris-tovam Buarque à Câmara Legislativa de Brasíliacontempla a participação de um número ex-pressivo de órgãos do Estado ligados à áreade direitos humanos (oito) apesar da nítidamaioria de representantes da sociedade civilbrasiliense.

Um outro aspecto relevante que distingueos conselhos estaduais de direitos humanosna Paraíba de seu congênere paulista é a abran-gência de seus respectivos campos de atua-ção. Assim, o Condepe é um Conselho dos Di-reitos da Pessoa Humana, enquanto o CEDDHCocupa-se dos Direitos do Homem mas também“do cidadão”.

A diferença não é apenas semântica. A gran-de maioria das entidades interessadas na ques-tão dos direitos humanos se preocupam, exclu-sivamente ou quase, com as violações, em ge-ral relacionadas com a violência, de caráter in-dividual, de grupo ou de etnia, ou social, aosdireitos fundamentais da pessoa humana.

As propostas aprovadas no seminário sobre“A Proteção Nacional e Internacional deDireitos Humanos”, realizado em Brasília, emdezembro de 199423, que reuniu as entidades epersonalidades mais representativas no campodos direitos humanos, bem como o II FórumNacional de Comissões Legislativas deDireitos Humanos, também realizado emBrasília, em novembro de 199524, comprovamessa assertiva. Com efeito, as suas resoluçõessão direcionadas quase que unicamente para aproteção aos direitos humanos contra as dife-rentes formas de violência e as medidas de ca-ráter institucional ou educativo que devem seradotadas para melhor combatê-las. As exceçõescorrem por conta das propostas formuladas, nosdois eventos, pelo representante do CEDDHC,relativas à criação de conselhos estaduais dedireitos humanos e de ouvidorias públicas.

A análise dos dispositivos da Lei estadualnº 7.576, que criou o Condepe, demonstra que

23 MARIANO, Benedito Rodrigues, FECHIO,Fermino. A proteção nacional e internacional dosDireitos Humanos. Brasília : Forum Interameri-cano de Direitos Humanos - FIDEH; Centro SantoDias de Direitos Humanos da Arquidiocese deSão Paulo, 1994. 127 p. Seminário de Brasília.

24 II FORUM Nacional de Comissões Legis-lativas de Direitos Humanos. Brasília : Comissãode Direitos Humanos da Câmara Federal. nov.1995. 4 p.

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as suas atribuições giram em torno de uma açãocorretiva ou punitiva em face do desrespeitoaos direitos humanos assegurados na Consti-tuição. O regimento interno do Condepe acres-centa, como sua atribuição, o acompanhamen-to das políticas públicas na área social.25

Assim, não é por acaso que a Lei estadualnº 8.032, que garantiu ao Condepe o poder defiscalização, restringe o direito de acesso às ins-talações públicas estaduais, “às dependênciasde unidades prisionais e estabelecimentos des-tinados a custódia de pessoas”, exatamente nossetores em que funcionam os serviços públi-cos de caráter repressivo-punitivo, onde por-tanto é indispensável a ação do conselho comvistas ao combate à violência dos agentes doEstado.

Já o Conselho da Paraíba, como referido emtópico anterior, tem atribuições mais abrangen-tes. Estas se estendem a todos os aspectos deuma cultura de direitos do homem e do cidadãolastreada nos valores da ética republicana edemocrática, que visam, entre outros objetivos,ao aprimoramento do serviço público, mediantea participação crescente da sociedade na gestãodo Estado e no monitoramento de sua adminis-tração.

Assim, o art. 5º da Lei nº 5.551, que criou oCEDDHC, confere-lhe a atribuição de “propordiretrizes para o poder público atuar nas ques-tões dos direitos do homem e do cidadão”, oque habilita o conselho a se manifestar e a for-mular propostas sobre todas as esferas de açãodo Estado, na ótica da promoção da cidada-nia.26

A este dispositivo de caráter abrangentecorresponde um poder de fiscalização que nãose restringe aos estabelecimentos de custódia,mas que se estende a “qualquer unidade ouinstalação pública estadual para realização de

vistorias, exames ou inspeções”, o que sujeitavirtualmente todo o funcionamento do serviçopúblico ao monitoramento do CEDDHC.

Daí a lei em foco garantir a esse conselhonão somente os poderes necessários à investi-gação de denúncias relativas à violação dosdireitos humanos, mas também à formulação depropostas que permitam a institucionalizaçãoda promoção dos direitos do homem e do cida-dão.

Com base nesses dispositivos, o CEDDHCdesenvolveu toda uma intervenção positivanos mais diferentes domínios. Desde estudos,posicionamentos e propostas relacionados como respeito e o aprimoramento das liberdadespúblicas e do regime democrático até campa-nhas e eventos sobre temas específicos comoo da criação e disseminação das ouvidoriaspúblicas no país.

Nenhum dos conselhos de direitos huma-nos – sejam eles autênticos fóruns de cidada-nia ou expressões maquiadas do Poder Executi-vo – dispõem de um campo de atuação tão ex-tenso quanto o do CEDDHC.

Todavia, o anteprojeto elaborado pela Con-sultoria Jurídica do Distrito Federal, seaprovado, criará um Conselho de Defesa dosDireitos da Pessoa Humana – apesar de suaaparente similitude com o de São Paulo – comuma esfera de competência e poder de fiscalizaçãoda mesma amplitude do CEDDHC.

Resta esperar que a instalação dos conse-lhos de direitos humanos do Espírito Santo edo Distrito Federal venha imprimir uma novadinâmica à disseminação de conselhos de cida-dania independentes do Poder Executivo, con-cretizando, desta forma, nesse campo específicoda esfera pública, os princípios da democraciaparticipativa.

25 SÃO PAULO. Secretaria da justiça e da defesada cidadania. Direitos Humanos : um novo caminho.São Paulo : Conselho Estadual de Defesa da PessoaHumana, 1994. 122 p.

26 PARAÍBA. Lei Estadual nº 5.551, de 14 dejaneiro de 1992. Dispõe sobre a criação do ConselhoEstadual de Defesa dos Direitos do Homem e doCidadão. Diário Oficial (do Estado da Paraíba), p. 4-5, 15 jan. 1992.

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Problemas de legitimidad en el sistemade partidos

ALFONSO DE JULIOS CAMPUZANO

SUMARIO

1. El triunfo de la democracia. 2. La crisis delsistema de partidos. 3. Algunas constataciones. 4.Apuntes para una reforma. 5. La dinámica emanci-patoria y los movimientos sociales. 6. La democra-cia como tarea inconclusa.

Universidad de Sevilla (España).

1 Para una aproximación al problema de las élitesen la democracia moderna, a su caracterización, mo-dos, símbolos y prácticas puede verse LASSWELL,Harold. Política : Quem ganha o que, quando, como.Brasília : Universidade de Brasília, 1984.

1. El triunfo de la democraciaUn análisis superficial de la historia recien-

te nos puede llevar a la conclusión de que elgran triunfador de nuestro tiempo es el sistemademocrático como forma de organización polí-tica. Pero, desafortunadamente, no parece queésta sea una conclusión correcta. Cierto es quela democracia moderna -entendida como siste-ma de organización política que distribuye elpoder entre la ciudadanía mediante formasrepresentativas de gobierno- es hoy una reali-dad triunfante, generalmente extendida más alládel contexto geográfico en que vino a nacer.Pero podemos plantearnos si ese sistema deorganización democrática responde efectiva-mente a las exigencias de articulación de for-mas esencialmente democráticas de organizaci-ón social, esto es, si la democracia es en nues-tros días un modelo de organización social queobedece a los postulados emancipatorios delibertad e igualdad reales o quizás sea tan sólouna forma de reparto de cuotas de poder entreélites dominantes1. A lo largo de este trabajointentaremos demostrar que la democracia

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capitalista articulada en el sistema de partidos2

entra en colisión con las exigencias de legitimi-dad de un modelo auténticamente democráticode organización social. Nuestro análisis, pues, sedirigirá hacia la constación de los problemas delegitimidad que el sistema de partidos genera para,a partir de ahí, intentar vislumbrar algún atisbo deesperanza que permita recuperar ese horizonteemancipatorio que el modelo democrático repre-senta, desde la propuesta de formas alternativasde organización democrática que virtualicen losprincipios democráticos en la estructura social.

Partimos, para ello, de una idea que resultaconsabida, los problemas de legitimidad de lasdemocracias contemporáneas que llevaron aHabermas a referirse a un olvido de la idea delegitimidad en el horizonte político de nuestro

tiempo3. En efecto, en las sociedades contem-poráneas la idea de soberanía popular viene si-endo desplazada del ámbito político en benefi-cio de una legitimación técnica4 por razones deeficacia de las decisiones legítimas que sonabsorbidas por el ordenamiento jurídico en fun-ción de un análisis técnico de la repercusión delas medidas en la productividad del sistema ca-pitalista5. El problema de legitimidad se muestraasí como una de las características de nuestrotiempo pues, como bien describe Faria, en lamedida en que el pluralismo procura compatibi-lizar las crecientes exigencias sociales, políti-cas, económicas de las sociedades modernaslas decisiones no atienden a las necesidadesdel Estado moderno, cuya eficiencia presupo-ne rapidez y flexibilidad en el proceso deciso-rio. Esto nos revela que todo proceso decisorio

2 Aunque son muchas y variadas las definicionesque se han proporcionado del partido político comofenómeno nos parece muy sugerente la definiciónproporcionada por Max Weber en The theory of socialand economic organization. Nova Iorque : The FreePress. 1947. p. 407 (apud CHARLOT. Os partidospolíticos. Brasília : Universidade de Brasília,1982, p.38-39): “O termo ‘partido’ será empregado paradesignar relações sociais de tipo associativo, umaparticipação fundada em um recrutamento livre. Seuobjetivo é assegurar o poder a seus dirigentes no seiode um grupo institucionalizado, a fim de realizar umideal ou obter vantagens materiais para seusmilitantes”. Otro acercamiento conceptualizador queconsideramos interesante se puede encontrar enLAPALOMBARA, Joseph y WEINER; Myron. The Originand Development of Political Parties. In Lapalom-bara, Weiner, Political Parties and Political Develop-ment, Princeton : Princeton U. P. , 1966, p. 5-7. Segúnestos autores el partido se caracterizaría por unaorganización durable, entendiendo por tal una orga-nización cuya esperanza de vida política sea superiora la de sus dirigentes en el poder; en segundo lugaresa organización debe ser bien establecida, manteni-endo una estructura no sólo a nivel local sino tambiéna nivel más amplio desde el punto de vista geográfico;el tercer elemento sería la voluntad deliberada de losdirigentes nacionales y locales de la organización dellegar al poder y ejercerlo y, por último, la preocupa-ción por el logro de un apoyo popular, generalmentea través de las elecciones. Según estas característicaslos autores añaden que los pequeños grupos oligár-quicos que ostentan el nombre de partidos en deter-minados paises latinoamericanos, africanos o asiáti-cos, están más próximos de las facciones de notablesde la República romana que de los partidos políticosde las democracias modernas. Personalmente creoque esta apreciación puede extenderse, con matizaci-ones, a algunos partidos de las democracias occiden-tales que, bajo una apariencia democrática, ocultancon frecuencia los oscuros inteses de determinados

sectores del poder económico y de la minoritaria yprivilegiada clase dirigente. Claro está que hay casosmenos alarmantes que otros (CHARLOT, Jean. Op. cit.,p. 19-20). Y desde el punto de vista funcional resultade obligada referencia la definición de Raymond Aronen Introduction à l’étude des partis politiques. In:ASSOCIATION française de science politique. Paris :F.N.S.P., 1949. p. 11, apud Charlot, J. Op. cit., p. 41:“A organização regular ou durável (ou o agrupamentoregular ou durável) de determinado número de indiví-duos com vistas ao exercício do poder, isto é, seja daconquista, seja da conservação do poder”.

3 Pérez Luño, A.E, Derechos humanos, estado dederecho y constitución, Madri : Tecnos, 1990, p. 198.

4 Sobre la problemática de la tecnocracia en lassociedades democráticas de nuestro tiempo puede con-sultarse el volumen colectivo Tecnocracia e ideologia.Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1975. Especialmenteinteresantes dentro de esta obra resultan los trabajosde Claus Offe (O dilema da tecnocracia , p. 70-84) yde Hans Lenk (Tecnocracia e tecnologia : Notas sobreuma discussão ideológica, p. 121-144).

5 Este aspecto ha sido ya objeto de mi atenciónen el trabajo Universalidad y Estado: un dilema de lamodernidad, en curso de publicación. Sobre estemismo particular Warat pone de manifiesto que elsistema capitalista necesita de una forma de goberna-bilidad sin política, de una simbología meramenteretórica de la democracia en la que queden excluidas -por absorbidas pero irresueltas- las demandassociales. En otras palabras, entiende el autor que laexpansión internacional del modo de produccióncapitalista está intentando generar la convicción deque existe una incompatibilidad funcional -y en cuantotal irresoluble- entre el desarrollo del capital y laradicalización de la democracia a través del ejerciciopleno del Estado de derecho (WARAT. L.A., Laciudadanía sin ciudadanos : tópicos para un ensayointerminable. Revista Brasileira de Filosofia, v. 42,p. 142-168, abr.-jun. 1995).

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ocurre en un espacio social concreto en el queactúan elementos materiales, individuales,actitudes, grupos, clases, sindicatos, influenciasy presiones6.

Pero la constación fáctica de esta realidadconlleva a la vez un reto para quienes practicany teorizan sobre la democracia. Se trata de unaexigencia que requiere de respuestas urgentessi queremos recuperar ese horizonte emancipa-torio que el modelo democrático encarna. Y estademocracia contemporánea descansa sobre unaestructura de representación y articulación delpoder que necesita ser analizada. El análisis delsistema de partidos es la clave para la compren-sión del funcionamiento real de los sistemasdemocráticos, y también el punto de partida decualquier propuesta superadora de las disfun-ciones que el sistema de partidos creó en elmodelo democrático. Y para ello puede resultarun buen punto de partida la distinción deGeorges Burdeau entre “regímenes de podercerrado” que hacen de la institución estatal elinstrumento de una idea de poder monolítica,inmutable y rebelde a cualquier ajuste con con-cepciones diferentes, y “regímenes de poderabierto” que son los que admiten que la idea dederecho se compone de representaciones evo-lutivas y, por tanto, importa que el poder que deellos emane tenga una configuración flexiblepara que su acción pueda adaptarse a las fluc-tuaciones de la conciencia colectiva y para darcabida en sus proyectos a todas las exigenciasválidas formuladas por otras fuerzas políticas7.A partir de esta distinción la relación entre elEstado y los partidos se muestra de una impor-tancia decisiva para comprender la articulación

interna del poder y su estructuración con el prin-cipio legitimador de la soberanía popular. Com-prender el sistema de partidos es la clave parala comprensión de la estructura de reparto depoder en una determinada sociedad y, en sucaso, para la verificación de la adaptación deesa estructura a una ordenación auténticamentedemocrática. Por eso, cualquier empeño teóricoo práctico en la superación de las carencias dela democracia contemporánea para por un acer-camiento a la realidad estructural de los parti-dos políticos; un análisis que necesita de pers-pectivas interdisciplinares, tanto de la cienciapolítica, como de la sociología, como de la propiafilosofía del derecho. Desde esa perspectivaintentaremos mostrar que en alguna medidaasistimos en la actualidad a un sistema estáticoy fosilizado de representación a través de parti-dos que, en general, encubre un simulacro dedemocracia, y que, por tanto, esa distincióncategorial entre sistemas abiertos y cerradoses, en nuestros días, bastante confusa, ya que,salvada la apariencia formal de la democraciaen los regímenes constitucionales, el sistemade partidos ha generado prácticas que atentanprofundamente contra los principios democrá-ticos de igualdad, autogobierno y representa-ción de la voluntad de los ciudadanos. El triun-fo de la democracia es, así, una imprecaciónvictoriosa de los saciados de poder que lleva-dos de un triunfalismo interesado proclaman laderrota definitiva de los sistemas totalitarios yse apresuran a tomar posiciones en la toma delpoder por las minorías oligárquicas de los parti-dos políticos. Gran paradoja del sistema demo-crático que a todos nos afecta. Si de verdadcreemos en los contenidos emancipatorios dela democracia nuestro compromiso deberá estarpor la recomposición de una estructura socialque garantice que el pluralismo social y políticoseguirá siendo el baluarte más inamovible denuestros sistemas democráticos.

2. La crisis del sistema de partidosCon razón podría decirse que la democracia

contemporána padece de indolencia. Unaenfermedad que anega el espíritu de las socie-

6 FARIA, José Eduardo. Poder e legitimidade.São Paulo : Perspectiva, 1978, p. 105-114.

7 Tomamos así la distinción que Georges Burdeauestablece en su obra O Estado. Lisboa : Europa-America, 1986, en la que dedica un apartado a lasrelaciones entre Estado y partidos políticos (O Estadoe os partidos, p. 103-113). Para el tratadista francéslos conceptos de poder cerrado y poder abierto hacenemerger las relaciones del Estado con los partidospolíticos.Y este tema, destaca el autor, es uno deaquellos cuya solución determina el estilo de lascolectividades nacionales modernas. Burdeau esta-blece así una distinción básica para la comprensióndel funcionamiento del régimen de partidos en lasdemocracias contemporáneas. Su tipificación de losdistintos regímenes de partidos y su análisis de lasrelaciones con el Estado como estructura de poder dela comunidad es de gran valor para el análisis metódicode las manifestaciones contemporáneas. El únicosistema compatible con las exigencias de una

organización genuinamente democrática de la convi-vencia es el régimen de poder abierto que está com-prometido con el pluralismo social y político, condi-ción sine qua non de la democracia. La concurrenciade una pluralidad de fuerzas -entiende Burdeau- animala vida política y proporciona a la oposición la posi-bilidad de contestar el orden establecido.

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dades y que hace abdicar a la ciudadanía de lasmetas colectivas. Esta dolencia es generalizadaen las sociedades de nuestros días. Y sin em-bargo no parece afectar gravemente a la estabi-lidad del sistema democrático. Quizás porque lademocracia contemporánea no depende ya tantode la participación efectiva de la ciudadaníacuanto de la estabilidad de las estructuras sobrelas que se asienta. Por eso, aunque la participa-ción popular en los comicios no alcance cuotasaceptables o aunque el nivel de legitimación delas decisiones políticas no sea precisamente alto,esto no parece afectar a la regularidad delfuncionamiento democrático.

Lo que está ocurriendo en nuestras demo-cracias es un fenómeno complejo que tiene cau-sas diversas y que queda bien descrito por LuisAlbertoWarat en su trabajo La ciudadanía sinciudadanos. Convivimos hoy – dice el autor –con la figura triste y nebulosa de una ciudada-nía que no quiere ser representada. Su ambici-ón es escapar de lo político para asistir al es-pectáculo de la representación. Es una ciuda-danía indiferente, incrédula y pasiva que no sepreocupa con la corrupción, el quebrantamien-to de la legalidad y la búsqueda de la justicia.En definitiva, pertenecemos a una ciudadaníaque está lejos de los compromisos participativosy próxima al grado cero de la energía política8.

Una sociedad perpleja ante la imagen de supropia decadencia que renuncia a cualquierposibilidad real de acción. El fenómeno no dejade ser inquietante. Habría que preguntarse, sinembargo, por qué esto ha ocurrido? Qué suce-dió para que el espacio público quedara en ma-nos de oscuros intereses inconfesables? Cuáles la causa de ese descreimiento y abdicación

general de las responsabilidades públicas?Podemos volver nuestra mirada con seguri-

dad de no equivocarnos al fenómeno individu-alista de las sociedades del bienestar: un indi-vidualismo narcisista que termina por recluir alindividuo en los ámbitos más estrechos de sudesarrollo personal: lo privado –familia yamigos– y la economía –la búsqueda incesantede los pequeños placeres materiales–. La soci-edad democrática, el Estado del bienestar, hanengendrado un sentimiento en los ciudadanosque les impulsa a dejar de serlo. El individua-lismo ejerce una fuerza dispersiva sobre la soci-edad y atrae a cada hombre al terreno de susmás ruines intereses. La apatía acaba apode-rándose de los hombres y el desinterés por laconstrucción del espacio común invade suespíritu. El individualismo contemporáneogenera un sentimiento de contemplación antelos grandes problemas de la vida y acaba porsumir al individuo en una suerte de vago instintode lucha por el bienestar que le lleva a abdicarde su condición de ciudadano9. De esta manera,como advierte Touraine, la ciudadanía se

8 El autor denuncia el abandono de la ciudadaníay la fagocitación del espacio público por un poderaún más ávido de poder. Esto provoca un cinismoindiferente en la ciudadanía. Pero existen, sin embar-go, síntomas positivos, micro esfuerzos para resti-tuir el sentido ético a la justicia y a la política. Poreso, entiende Warat, existe en nuestros días un retor-no al Estado de derecho como método para salvar laracionalidad en las sociedades democráticas. Y eseEstado de derecho es también una invitación a parti-cipar: “La gente siente que puede volver a participarluchando por su derecho a la participación. Apareceun sentimiento de que se puede participar política-mente, luchando para que la sociedad vuelva a serpolítica (en una forma de sociedad que amenaza conel fin de la política) éticamente regida por el “Estadode derecho” y jurídicamente instituida en torno areglas racionales”. (WARAT, L.A. Op. cit., p. 151).

9 He desarrollado todos estos aspectos en mitrabajo Individualismo y modernidad: una lecturaalternativa (en curso de publicación en la revistaespañola Anuario de Filosofía del Derecho). En éldesarrollo ampliamente lo que he denominado indi-vidualismo del bienestar por coincidencia lógica ycronológica por la forma política en cuyo seno esanueva forma de individualismo se desarrolla, el Esta-do del bienestar. Los antecedentes teóricos de esteabandono del espacio público fueron ya anunciadospor Tocqueville en su obra La Democracia en Américaquien vaticinó ya en 1840, una nueva forma de tota-litarismo con base en esa visión radicalmente indivi-dualista de la sociedad que el orden democráticoestaba propiciando. El individuo de nuestro tiempo,decía Tocqueville, estaría atenazado por un individu-alismo que deseca el germen de las virtudes públicasy que le lleva a recluirse en el estrecho espacio de suprivacidad: “Quiero imaginar bajo qué rasgos nuevosel despotismo podría darse a conocer en el mundo;veo una multitud innumerable de hombres iguales ysemejantes, que giran sin cesar sobre sí mismos paraprocurarse placeres ruines y vulgares, con los quellenan su alma.

Retirado cada uno aparte vive como extraño aldestino de todos los demás, y sus hijos y sus amigosparticulares forman para él toda la especie humana;se halla al lado de sus conciudadanos, pero no los ve;los toca y no los siente; no existe sino en sí mismo ypara él solo, y si bien le queda una familia, puededecirse que no tiene patria” (TOCQUEVILLE, A.,La Democracia en América, v. 2, cuarta parte, cap.6. Edicão portuguesa: A Democracia na America,São Paulo : Itatiaia, 1987).

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mejor ejemplo de ello lo constituye, sin duda, elprincipio de eficacia que termina por agostar elhorizonte de la legitimidad en la democraciacontemporánea, y que es utilizado con frui-ción por los grupos de intereses para hacervaler sus pretensiones12. En efecto la tomaprogresiva de los mecanismos estatales poruna élite de tecnócratas y expertos, junto conla globalización creciente de la economíamundial, ha creado una instancia superior delegitimación, excluida normalmente del con-trol democrático, que determina la plausibili-dad de las decisiones en función de un aná-lisis técnico de eficacia en términos de pro-ductividad del sistema capitalista.

El primado de la eficacia termina por generaruna especie de mito cuyo conocimiento sólo esdado a quienes, imbuidos de la autoridad queconfiere el rango de experto, desvela a la granmayoría el sentido real de las decisiones. Peroocurre además que esa invocación de la efica-cia, con frecuencia, puede carecer de controlesdemocráticos. Entonces, la eficacia termina porconvertirse en un dogma cuasirreligioso, vacíode contenidos concretos, y que bajo la aparien-cia de una ficticia razón técnica termina por con-vertirse en un obstáculo insalvable para lasdemandas sociales democráticamente legitima-das. Y lo peor de ello es que la eficacia termina,en última instancia, por anegar los cauces de laparticipación democrática. Se produce un des-plazamiento de los contenidos ideológicos enel ámbito político. Los partidos mudan así enaliados de esa razón técnica llamada “eficacia”y esa fractura entre la clase dirigente y la socie-dad tiene también consecuencias en la dinámi-ca legitimadora desde el punto de vista de laciudadanía: ya no importa tanto quién gobierneni de qué manera lo haga, sino de los resulta-dos económicamente cuantificables que se ob-tengan, contemplados éstos desde una pers-pectiva individual de bienestar personal. Seconsuma así el primado de la eficacia en perjui-cio de la legitimación democrática de las decisi-

debilita, ya sea porque muchos individuos sesienten más consumidores que ciudadanos omás cosmopolitas que nacionales, o ya sea tam-bién porque algunos de ellos se sienten exdui-dos de una sociedad de la que no tienen conci-encia de formar parte ya sea por razones econó-micas, étnicas, culturales o políticas10. Pero sieste fenómeno viene ocurriendo es porque tam-bién hay algunos factores concurrentes queresultan alarmantes.

Habría que preguntarse si, en definitiva, noes el sistema representativo el que está en crisis.Es más, habría que inquirir si ese alejamientodel espacio público tiene también otras causasmás concretas que con frecuencia no se apun-tan porque resulta más fácil señalar al individu-alismo como fenómeno social genérico cuyaresponsabilidad es, por tanto, difusa.

Yo entiendo que sí, que efectivamente eldesencatamiento de la ciudadanía tiene otrascausas que a veces deliberadamente se ocul-tan, quizás porque su existencia ponen en telade juicio la propia estructura de las democraciascontemporáneas, y hace emerger de inmediatola pregunta definitiva y recurrente sobre elfuturo de la democracia. Pero hay algo más: per-sonalmente estoy persuadido de que la demo-cracia contemporánea ha terminado generandoformas de irracionalismo que limitan el alcancedel valor de la legitimidad, esto es, que hay prác-ticas sociales y principios prácticos de actuaci-ón que constituyen la piedra de toque de laaceptabilidad de las decisiones, con indepen-dencia de que éstas sean o no legítimas11. El

10 Este fenómeno ha sido objeto de la atención deTouraine en sus dos trabajos más recientes, Críticade la Modernidad, Madrid : Temas de Hoy, 1993, yQué es la democracia? Madrid : Temas de Hoy,1994. En ambas obras el autor aborda un proyectode renovación y reconstrucción del panorama escin-dido de la modernidad, a través de la reconstruccióndel espacio democrático en el que puedan integrarse,superando las polaridades, la razón técnica y la ra-zón teórica, el universo cerrado de las identidadesparticulares y la aspiración liberal a la universalidad.La cita está extraída de la segunda de las obras citadas,p. 22-23.

11 En este sentido la tecnocracia puede llegar a serun serio obstáculo a la plena realización de los conte-nidos democráticos. La complejidad de nuestrassociedades post-industrializadas ha hecho posible ynecesario que toda decisión sea avalada por el dicta-men de un comité de expertos que se pronunciansobre la viabilidad de la propuesta. Pero esto entrañaun riesgo en cuanto al vaciamiento del principio desoberanía popular y su progresiva subordinación aldictamen técnico de los expertos. Conciliar estos dos

aspectos, el recurso a la tecnocracia y la vigenciaefectiva del valor legitimador del principio de sobe-ranía popular es un de los grandes retos de nuestrasdemocracias. Sobre este particular puede verse,SOUSA, José Pedro Galvão de. O Estado Tecnocrá-tico, São Paulo : Saraiva, 1973, cap. 4 e 5, p. 83-143.

12 Sobre los grupos de interés y su incidencia enel proceso de decisión política puede verseLINDBLOM, Charles E. O Processo de decisãopolítica. Brasilia : Universidade de Brasília, 1981,cap. 10, p.75-84.

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ones. La soberanía popular queda vaciada:desde el poder, porque las exigencias materialeshan quedado desplazadas por la eficacia -quefrecuentemente sólo será una coartada de quie-nes intentan preservar situaciones de dominio-;y desde la ciudadanía, porque ya no importa quepoder se ejerza legítima -es decir, fundado no sóloen consentimiento sino de acuerdo con los valoresasumidos colectivamente por la sociedad- ydemocráticamente -de acuerdo con las exigenciasde participación real de la ciudadanía que el prin-cipio democrático impone-, sino que también aquíel punto de vista imperante es el de la eficacia, deuna eficacia interpretada en clave individual querechaza la afirmación de valores colectivos yotorga carta de naturaleza a las apetencias ydeseos privados de los individuos. Falto así elEstado de estructuras democráticas, los conte-nidos emancipatorios han sido descartados porexigencias técnicas de eficacia y la soberaníaopera en el reducido espacio político a través deelecciones periódicas como fundamento y legiti-mación de la estructura económica a la que sesupeditan todos los demás ámbitos vitales. Lademocracia de nuestros días termina así porconvertirse, en palabras de Marcuse, en una pseu-dodemocracia13, de manera que cualquier intentode realizar plenamente la democracia deberásuponer la superación del irracionalismo delespectro de las democracias modernas.

Todo este panorama, sin embargo, no estáocurriendo a espaldas de los partidos, sino queson éstos los principales protagonistas de unaescena que tiene sin duda un toque melodra-mático. La ciudanía retirada, al margen de laescena, contempla desde el patio de butacas elespectáculo. Su función en todo esto es bienlimitada: comer palomitas mientras los persona-jes, con los papeles bien repartidos, represen-tan con una impronta ficticia de espontaneidad,los pasajes de una representación cuyo finalestá escrito. En el escenario los protagonistasse mueven con facilidad y desevoltura, cono-cen muy bien el papel que representan y sabenque, si la memoria les traicionase, no faltará lavoz amiga del apuntador -omnisciente e infalible

poder económico- que podrá la palabra exacta enel momento idóneo. Entretanto, la afluencia, cadavez más ajena a la representación, agota el pa-quete de palomitas y se preocupa, más que poraplaudir o reprobar, por satisfacer su insaciableapetencia de seguir comiendo palomitas.

Esta fabulación no dista mucho de la reali-dad, aunque tenga, esa era mi intención, un tonoa la vez cómico y preocupante. Lo cierto es queen el fondo de este planteamiento lo que seestá debatiendo es la capacidad de respuestadel sistema de partidos a las demandas demo-cráticas de la ciudadanía y su adecuación a unmodelo social realmente democrático. La expe-riencia hasta ahora es más bien tristemente elo-cuente. El sistema representativo se revela en lacompleja sociedad de nuestros días quizás el únicorealizable pero es también evidente que suconcreción práctica provoca un distanciamientoentre la ciudadanía y la clase dirigente que limitalas posibilidades reales de la democracia.

El fenómeno resulta complejo y tiene variascausas. Entre ellas podemos resaltar especial-mente la fosilización de las estructuras. Un clásicode la literatura sobre los partidos políticos reveló,hace ya más de ochenta años, algo que en nues-tros días se vuelve evidente. Para Michels unode los acontecimientos más preocupantes de lasmodernas democracias es la ocupación progresi-va de la cúpula dirigente de los partidos por unaclase profesional que aparta a los militantes. Suconocimiento de las estrategias de comunicacióny su dominio sobre las masas les hace adquiriruna inmovilidad casi absoluta, y la centraizaciónadministrativa evita que las iniciativas de las basespuedan tener éxito. De esta manera, cualquierposibilidad de regeneración o de cambio está deantemano condenada. La democracia deja así deejercerse en el interior de los partidos y éstospasan de ser estructuras coyunturales para larealización de fines colectivos, a ser fines en símismos que concentran las ambiciones de lasminorías todopoderosas. Ante esto, Michels sepregunta si la enfermedad oligárquica de lospartidos es o no curable y manifiesta su esperanzaen que las carencias puedan superarse. Pero ade-más de la oligarquía14 hay que luchar tambiéncontra la burocracia, de manera que la fosilizaciónde las estructuras hace que cualquier lucha por

13 “Dialéctica de la democracia: si la democraciasignifica autogobierno del pueblo libre, con justiciapara todos, la realización de la democracia presu-pondría entonces la abolición de la pseudodemocraciaexistente. En la dinámica del capitalismo empresarial,la lucha por la democracia tiende así a asumirformas antidemocráticas”(MARCUSE, Herbert.Un ensayo sobre la liberación. México : JoaquimMortiz, 1975, p. 70).

14 Para Bobbio el defecto de la democracia repre-sentativa comparada con la democracia directa con-site en la tendencia a la formación de estas pequeñasoligarquías que son los comités dirigentes de los par-tidos; tal defecto sólo puede ser corregido por la

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las ideas que surge dentro del partido se con-temple como un obstáculo a la realización desus fines, esto es, como un obstáculo que debeser evitado por todos los medios posibles. Deesta manera la estructura oligárquica y buro-crática de los partidos acaba por engendrar unatendencia perversa y contraria a la democraciacon base en un egoísmo justificado. La acciónde los miembros dirigentes del partido quedacomprometida no por sus sentimientos ni porsus convicciones ideológicas sino por un inte-rés personal de millares de individuos cuya vidaeconómica está indisolublemente ligada a laexistencia del partido y que temen sólo con laidea de perder su empleo. Como consecuenciade ello, a medida que las estructuras se fosili-zan y los integrantes del partido aspiran a laestabilidad dentro del sistema, el partido renun-cia a las grandes realizaciones y se torna unpartido profundamente conservador que, aúnmanteniendo una ideología revolucionaria enla práctica no ejercerá otra función que la deuna oposición conformista15. La consecuenciadefinitiva de todo este fenómeno de concen-tración del poder en una oligarquía es la exclusiónde las masas, la impotencia de quienes no puedenacceder a los mecanismos de control y de poder:

“Reunidos en masa, los pobres se encuentrancompletamente impotentes y desarmados frentea su líder, y su inferioridad intelectual no lespermite tener una idea exacta de la dirección queél sigue, ni juzgar de antemano el alcance de susacciones”16. Se genera así lo que Randolph Lucasdenomina autocracia electiva que, aún poseyendoapariencia democrática, es profundamenteantidemocrática ya que la forma y el contenidode las decisiones es contraria a la libertad y a lajusticia. Este sistema evita toda participación,salvo el mecanismo pasivo del voto con ocasiónde las elecciones, y no concede a los probablesparticipantes opciones en el proceso decisorio.Las decisiones no son tomadas abiertamente,después de una discusión con los partidos afec-tados, sino de manera secreta por los funcionariospúblicos que son responsables sólo ante el gobi-erno y que no tienen que someter los motivos deactuación a votación pública17.

Este análisis, con ser pesimista, no deja detener trazos de incuestionable actualidad. De élpodemos tomar la caracterización de algunosfenómenos que aquejan a las democraciascontemporáneas, especialmente su tratamientode las oligarquías, la burocracia y las élitesdominantes dentro de las estructuras del partidoque termina por convertirse en un fin para laexistencia de una pluralidad de oligarquías en concur-

rencia entre sí. Tanto mejor, por tanto, si esas pe-queñas oligarquías, a través de una democratizaciónde la sociedad civil y de la conquista de los centros depoder de la sociedad civil por parte de los individuoscada vez más participantes, se vulven menos oligár-quicas haciendo que el poder sea no sólo distribuido,sino también controlado (BOBBIO, Norberto, Ofuturo da Democracia: uma defesa das regras dojogo. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1986, p. 61)

15 Todos estos aspectos son tratados por RobertMichels en su obra Sociologia dos Partidos Políti-cos. Brasília : Universidade de Brasília, 1982. Enesta obra ya clásica del pensamiento y de la literaturasobre los partidos políticos, pese a ser publicadainicialmente en 1914, se contienen planteamientosde indudable actualidad. Especialmente interesanteresulta la sexta parte en la que a modo de síntesis elautor se refiere a las tendencias oligárquicas de laorganización (p. 217-243) : “A organização deixaassim de ser um meio, para tornar-se um fim. Asinstituções e as qualidades que no início eram desti-nadas simplesmente a assegurar o funcionamento damáquina do partido -subordinação, cooperação har-moniosa dos membros individuais, relações hierár-quicas, discrição, correção- acaba-se atribuindo maisimportancia que ao grau de rendimento da máquina”(p. 223). La misma idea, en lo referente al carácteroligárquico de las democracias y a la creación de unaclase política que se impone al país mediante un pro-ceso electoral de gobierno, es destacada por ARON,

Raymond. Estudos Políticos. Brasília : Universidadede Brasília,, 1985, p. 335. Para una crítica deexposición de Michels sobre la oligarquía puede verseSARTORI, G., Teoria Democrática, Rio de Janeiro :Fundo de Cultura, 1965, p. 135-140.

16 MICHELS, Robert, op. cit., p. 242.17 LUCAS, Randolph. Democracia e Partici-

pação. Brasília : Universidade de Brasilia, 1985, cap.9. Governo Representatitivo e Autocracia Eletiva,p. 139-159. La autocracia electiva es, para el autor,una deformación del sistema de partidos en lasdemocracias contemporáneas que anula los conte-nidos propiamente democrárticos del sistema y man-tiene las elecciones como forma de justificar la per-petuación del sistema. La autocracia electiva atrofiala conciencia de ciudadanía. No genera oposiciónporque no comete grandes maldades. Es una garantíacontra las revoluciones sangrientas y es eficaz paraimpedir que el gobierno ignore sistemáticamente lavoluntad de los ciudadanos. Evita abusos peores perono puede distinguir lo suficiente para tener en cuentalas necesidades de los individuos concretos. Es difícildecir lo que está errado porque no hay grandes erroressino muchos pequeños que no son suficientes parallamar la atención pero que crean innumerables frus-traciones e injusticias sobre los individuos. Existenpocas quejas específicas pero sí una aprehensióngeneral, pocos escándalos, pero sí una sensacióngeneral de alienación.

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satisfacción de ambiciones personales abando-nando así su concepción instrumental origina-ria. Hemos de reconocer que estamos muy lejosde la democracia gobernante18.

Los partidos, en cuanto organización socialde ciudadanos que concuerdan en la realizaciónde determinados fines a través de cauces políti-cos, deben suponer la existencia de cauces abso-lutamente democráticos de acceso y participa-ción en sus estructuras. Sólo así la exigencia delpluralismo político podrá encontrar una plasma-ción efectiva en la práctica democrática. El plura-lismo político supone la existencia de diversasopciones, de diferentes puntos de vista y solu-ciones a los problemas igualmente legítimos de laciudadanía y esto implica el reconocimiento jurí-dico de la realidad de los partidos políticos, peroprecisamente esta estructuración democrática através del sistema de partidos exige que no seanuna fuerza sin control y que se sometan por tantoa una legislación exhaustiva y precisa sobre suorganización interna, financiación y derechos desus miembros para evitar la formación de oligar-quías entre sus dirigentes19. Pero esta exigenciano siempre encontró cumplida respuesta ennuestros ordenamientos jurídicos y con frecuen-cia los partidos quedaron alejados del controldemocrático de sus miembros para entretejer unaenmarañada red de ocultos intereses entre losintegrantes de la clase dirigente. Cuando estefenómeno se generaliza es la democracia la quequeda amenazada.

La ausencia de mecanismos democráticos enla organización de partidos es, así, factor determi-nante del pluralismo político y de la propia demo-cracia. La ocultación de los partidos al controldemocrático de las bases favorece un alejamien-to progresivo de los dirigentes con respecto a laciudadanía que tienden a asegurar su posicióndentro del partido, evitando la actuación efectivade los mecanismos democráticos de legitimación.Esto tiene como consecuencia la fosilización delas estructuras de los partidos que quedan en

buena medida aprisionada por prácticas históri-cas de liderazgo que distorsionan un discursointerno auténticamente democrático. Además, lafosilización de las estructuras tiene también comoconsecuencia el surgimiento de la clase políticaen cuanto grupo corporativo cerrado de dirigen-tes políticos, que conforman un cuerpo aparte yajeno a la sociedad y que, con independencia desu adscripción a distintos partidos, mantienencaracterísticas comunes, principalmente, la con-ciencia de clase -esto es, la conciencia de perte-nencia a un cuerpo social privilegiado y superiorcuyo poder es inmanente y no delegado por lavoluntad popular- y la profesionalización de lapolítica -entendiendo por tal no el servicio esme-rado y cualificado a la sociedad, sino la perma-nencia continuada en los cargos con el propósitode hacer de la actividad política una profesión entoda la extensión de la palabra-. Este panoramapermite explicar la fractura entre la clase dirigentey la ciudadanía, el corporativismo de la clasepolítica, y el uso abusivo del aparato estatal y delas instituciones democráticas como muros decontención para la salvaguarda de los privilegiosde la clase dirigente. Por este camino, la sobera-nía termina convirtiéndose en una plausiblecoartada teórica para la perpetuación de los privi-legios de clase y el vaciamiento de los contenidosemancipatorios de la democracia.

Esta situación generalizada con mayor o menorgravedad en los países democráticos nos permiteconstatar la evidencia de un hecho: la crisis delsistema de partidos como forma de articulaciónde la democracia representativa20.

3. Algunas constatacionesPero conviene detenerse a contemplar un

poco el escenario de la historia más reciente. Enél podemos encontrar la verificación irrefutablede los hechos, y sólo desde los hechos pode-mos realizar una crítica que se pretenda rigurosa.Nuestra más reciente historia está plagada detodo un amplio repertorio de síntomas quepermiten diagnosticar la crisis del sistema departidos. En todos estos casos es la propiademocracia quien se ve amenazada y, por tanto,

20 Sobre la distinción entre democracia represen-tativa y democracia directa puede verse el trabajo deBOBBIO, op. cit., p. 41-64. Personalmente entiendoque es preciso concebir modelos conciliadores queintegren mecanismos participativos de la ciudadaníadentro de un modelo de democracia representativaque debe ser reformado para virtualizar el potenciallegitimador de la soberanía popular.

18 Nos recuerda Sartori que en las democraciascontemporáneas cuando hablamos del pueblo comogobernante exageramos o le otorgamos al término unsignificado vago e impreciso. Aunque el ideal exigiríauna democracia gobernante la observación del mundoreal nos muestra que lo que poseemos realmente esuna democracia gobernada (SARTORI, Giovanni, op.cit., p. 94).

19 Sobre el valor y consecuencias del pluralismopolítico en una organización democrática de partidosy su regulación en la Constitución española, puedeverse, PECES-BARBA, Gregorio. Los valoressuperiores. Madrid : Tecnos, 1984, p. 163-169.

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la pervivencia de la democracia pasa necesaria-mente por la reforma del sistema de organizaciónde partidos.

Recientemente vivimos con estupor eldescubrimiento de una tupida red de corruptelasa gran escala que alcanzó a todos las grandesfuerzas políticas italianas. La “tangentopoli”desveló todo tipo de irregularidades cometidaspor los representantes más egregios de lavoluntad popular, unas veces para financiar lasarcas de los partidos, otras, para enriquecer suspatrimonios personales. El sistema democráticoitaliano se mostró así ante los ojos de la ciuda-danía como un sistema corrupto. Era comomostrar de repente, a la vista del pueblo, quetodo había sido una farsa. Que las promesasvertidas en programas electorales y en cam-pañas eran nada más que el reclamo para laperpetuación de una realidad inconfesable, quelos desvelos de los políticos por mejorar lascondiciones de sus ciudadanos eran, sencilla-mente, una gran burla. La confianza popularhabía sido defraudada. De repente todo parecíadesmoronarse. No había ideologías, ni dignidad,ni valores, no había instituciones sino tan sólouna sombra desvaída, una conciencia remota,una solemne proclamación constitucional quepermenecía invariable para sorpresa de todoslos ciudadanos. Dónde estaba entonces laRepública, dónde la democracia? Había queretomar el horizonte de una organizaciónauténticamente democrática, había que fundarnuevamente las bases de la convivencia demo-crática. No era que la democracia estuvieraherida, era que, sencillamente, hacía tiempo quela clase política había firmado su certificado dedefunción a espaldas del pueblo. El caso italianoes un buen ejemplo de cómo una clase políticapuede terminar entretejiendo una estructura depoder alejada de los intereses generales de lasociedad y utilizar la confianza popular paraerigirse en grupo aparte, fuera de todo control einvestido de privilegios vitalicios.

Junto a la constatación de este hecho nosinteresa detenernos en otro de no poca impor-tancia. La experiencia es también conocida yrefleja uno de los problemas principales del sis-tema de partidos. En lo que toca a la existenciade una democracia puramente formal con la exis-tencia de un partido dominate que anula el plu-ralismo político, el caso mejicano resulta para-digmático. Como destaca Jean Charlot, el peli-gro específico del partido dominante es exacta-mente que el poder sin división de un solo

partido acaba por minar la legitimidad del sistemaen perjuicio de su base democrática21.

La práctica del sistema de partidos en elEstado mejicano terminó por concentrar el poderde las élites dominantes y de los grandesempresarios en un partido que se cierra a laposibilidad de un acceso democrático a lasestructuras partidarias. El pluralismo político noqueda formalmente anulado, porque se admitela posibilidad de que otros partidos puedancrearse y competir por el poder, pero sí quequeda materialmente descartado. La estructurasocio-política de Méjico hace que el partidodominante tienda una amplia red de clientelasentre la ciudadanía que no sólo lo hacen irresis-tible sino que hace prácticamente inviable laposibilidad de un relevo pacífico en el poder.En esta circunstancia la democracia termina porser un puro expediente formal para la preserva-ción de intereses contrarios a los intereses dela mayoría. Y la posibilidad de una transfor-mación social constitutivamente democrática entérminos de emancipación humana no deja deser una hipótesis teórica inalcanzable. En estecaso estamos ante la negación fáctica delpluralismo político y, con él, de la democraciacomo forma de organización social.

Citemos, también, un caso aún más reciente.En este supuesto la crisis del sistema de partidostiene también mucho que ver con la corrupción.Pero, a mi juicio, tiene más que ver aún, con laformación de una clase política como cuerpoorgánico que utiliza el poder para atrincherarsefrente a la ciudadanía. Se trata de una actitudantidemocrática de determinada clase políticaque termina por hacer del poder una barricadade resistencia frente a las presiones sociales. Yello invocando la legitimidad que las urnasconfirieron. El problema tiene, por tanto, conno-taciones éticas importantes, pues se invoca lalegitimidad que la confianza popular otorgó está-ticamente en las urnas cuando es precisamenteesa confianza popular la que después se reveladefraudada. Cuando la confianza ha sido generaly sistemáticamente defraudada no parece acep-table desde el punto de vista moral invocar preci-samente esa confianza para continuar en el po-der. Sobre todo cuando las transgresiones entranen colisión directa no sólo con los valores

21 De esta manera el partido dominante tiende aconfundirse con el sistema político que encarna ymodela a lo largo de los años. Sobre el partidodominante pude verse CHARLOT, Jean. Du partidominant. Projet 48, p. 942-951, set./out. 1970.

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éticamente mayoritarios de la sociedad sino conla propia literalidad de la norma constitucional.Ese es el caso de la democracia española. Losrecientes escándalos de corrupción alcanzaron aaltos cargos de la administración del Estado y semostraron como un fenómeno generalizado alafectar indistintamente a diversas y variadas ins-tituciones: al governador del Banco Central, alDirector general de uno de los cuerpos de la se-guridad del Estado -la Guardia Civil-, a la CruzRoja, a la dirección del Boletín Oficial del Estado,etc. En todos estos casos el poder fue usadoabusivamente para atesorar importantes patrimo-nios personales. Igualmente la confianza popularfue utilizada para realizar un uso abusivo de losfondos reservados y para constituir una tramailegal de recaudación de comisiones y blanqueode dinero para la financiación del partido en elpoder. Pero, además de ello, existen dos casosque hacen quebrar los principios constituciona-les: en primer lugar, la implicación de altos cargosdel Ministerio del Interior en una trama de terro-rismo de Estado y, en segundo lugar, la evidenciade que el máximo órgano de la seguridad nacionalescuchó, grabó y almacenó durante un largoperiodo de tiempo conversaciones telefónicas depersonajes relevantes de la vida española. Preci-samente todos estos acontecimientos encierranalguna lección positiva que la ciudadanía notardará en aprender, pero es difícil imaginar que laherida abierta por la confianza defraudada puedacicatrizar con facilidad. Parece poco probable queel distanciamiento, la incredulidad y el escepti-cismo de la ciudadanía con respecto a la activi-dad política y a quienes a ella se dedican puedaser resuelto en poco tiempo. Y lo peor de ello esque estas situaciones perjudican seriamente a lademocracia.

Pero no podemos concluir este apartado sinhacer, aunque sea, una mínima referencia a losproblemas de legitimidad que el sistema de parti-dos genera en las sociedades subdesarrolladas.En efecto, todos estos problemas alcanzan mag-nitudes difíciles de describir en las sociedades delos países democráticos del Tercer Mundo. Enestos casos, a los problemas ya reseñados hayque añadir todo un amplio repertorio de proble-mas específicos que agrava considerablementela situación y que amenaza con hacer de la formademocrática de gobierno algo puramente formal.El subdesarrollo, la carencia de condiciones eco-nómicas y culturales, la situación precaria de gran-des masas de la población nacional junto con laconcentración de la riqueza en unas pocas manosy la connivencia del poder político con el poder

económico agrava considerablemente los proble-mas de legitimidad de los gobiernos elegidos porla ciudadanía en estos países. La situación alar-mante de grandes masas de la población influyedecisivamente en la formación de las mayorías yla legitimidad democrática queda así profunda-mente mermada. En un trabajo de tesis doctoralaún inédito el Profesor Ramos Ulgar22 mostró, através de un estudio sociológico con trabajo decampo, cómo la abstención crece considerable-mente en las zonas donde habitan las clases másdeprimidas, de tal modo que se puede estableceruna relación directa entre el nivel de vida y laparticipación popular mediante el ejercicio delvoto. La conclusión de este trabajo resulta evi-dente: quienes están en peor situación económi-ca, quienes carecen incluso de lo más elementalpara su subsistencia difícilmente llegan a ejercersu derecho al voto. La democracia se convierteen estos casos en una mera declaración solemne,sin contenido alguno para los más desfavore-cidos, y se asienta sobre la exclusión sistemáticade grandes masas de población. Esta realidadacrecienta el problema de las oligarquías, quevenimos señalando, y hace que los partidos seconviertan con frecuencia en un aparato buro-crático que alberga los intereses de los máspoderosos23. En esta coyuntura los partidos

22 Del Bolsillo a la Urna, tesis de doctorado inéditadefendida en la Faucltad de Derecho de la Universidadde Sevilla en el curso académico 1993/94.

23 En un estudio recientemente publicado bajo lacoordinación de Helio Jaguaribe se hace notar que enun país como Brasil el 35% de las familias se encuen-tran en una situación de extrema pobreza con ingresosper cápita iguales o superiores al salario mínimomedio, en tanto que un 65% de los brasileños tieneningresos per cápita iguales o inferiores a un salariomínimo. El 80% de la fuerza de trabajo gana menos dedos salarios mínimos y el analfabetismo de la poblaciónadulta brasileña es todavía del 20% (LA SOCIEDAD,el estado y los partidos en la actualidad brasileña, H.Jaguaribe (comp.). México : F. C. E., 1992. p. 16.

La causa de esta situación se ha de buscar en eldesigual reparto de las rentas entre la población. Lasociedad brasileña es lo que podríamos denominaruna sociedad desequilibrada ya que, como nos indicael estudio anteriormente citado, cerca del 40% parti-cipa en las actividades relacionadas con una modernasociedad industrial, viviendo en condiciones similaresa la de algunos países europeos, en tanto que el 60%de la población depende de una miserable agriculturade subsistencia, o integra los inmensos cinturones demiseria que rodea a todas las grandes ciudades brasi-leñas, viviendo de un precario sector terciario informalen condiciones equivalentes a las observables en lospaíses africanos y asiáticos más pobres (op. cit., p. 42).

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dejan de ser plataformas sociales abiertas para laplasmación de determinados objetivos genera-les para convertirse en estructuras cerradas depoder, de las que participan grupos minoritarios ypoderosos, carentes de contenidos ideológicosy cohesionados únicamente por intereseseconómicos individuales o de grupo24.

En suma, todas estas experiencias recientesnos ponen en antecedentes de algo que, porconsabido, no deja de ser un hecho alarmante:el sistema de partidos está en crisis. El partidopolítico en nuestros días ha dejado de cumplircon su misión originaria en cuanto plataformade intereses sociales de un sector de la ciuda-danía para devenir en una estrcutura cerrada,oligárquica y estática que convierte el poder enun medio para la satisfacción de intereses de laclase dirigente. Los datos corroboran cuantodecimos. Así lo atestiguan las tramas de finan-ciación ilegal de los partidos mediante la creaci-ón de toda una estructura financiera al margende la legalidad que se sustenta sobre prácticascorruptas, la creciente burocratización de lospartidos que devienen estructuras estáticas depoder y que fagocitan los movimientos ydemandas de las bases: los partidos políticosen nuestros días han creado una especie deestamento superior que, sustentado en lasbases del partido, hacen de la democracia unaforma meramente postulada desde el punto devista teórico. Y qúe decir de los caudillismos delos líderes carismáticos, del vaciamiento de loscontenidos ideológicos o de la claudicación dedemandas sociales generalizadas de la ciuda-danía ante razones técnicas de eficacia? Ahíestán algunos de los grandes problemas de lademocracia contemporánea. Y la posibilidad desuperarlos pasa necesariamente por la búsqueda

de alternativas a un sistema de partidos quepese a haber cumplido una importante misiónhistórica, necesita en la actualidad, una reno-vación profunda, pues caso de no producirseel sistema de partidos terminará siendo uno delos más grandes obstáculos a la virtualizaciónefectiva del principio democrático.

4. Apuntes para una reformaCualquier tentativa de reforma deberá tener

en cuenta que si la ciudadanía abdicó de susresponsabilidades políticas no fue tanto porfactores coyunturales sino, sobre todo, porprácticas viciadas permanentes que hicieroncundir el desencanto entre la ciudadanía. Y lasvías de solución vienen dadas precisamente porla corrección de las prácticas perversas. Evitarla profesionalización de la actividad política es,en ese sentido, una de las tareas primarias arealizar, cerrando el paso a quienes, ociosos yambiciosos, no tienen otro objetivo que perse-guir su permanencia como clase asentada en elpoder, más allá incluso de los cambios de rumbode la voluntad popular, pues con frecuenciacarecen del pudor suficiente para mantenersefieles a un partido cuando éste ya no esdepositario de la confianza popular.

Y en conexión con ello hemos de contemplarque la burocratización de la estructura de lospartidos ha contribuido decisivamente a fosilizarla actividad política como algo no al servicio dela ciudadanía sino de la pervivencia del sistema.En este óptica los partidos se terminan vaciandode contenidos ideológicos y acaban porconvertirse en fines en sí mismos, aban-donando su primigenia concepción instru-mental de cambio social. Con ello los partidos

24 En el caso de Brasil esta situación era descriptaen 1981 por Fernando Withaker Cunha, en Repre-sentação, Politica e Poder (Rio de Janeiro : FreitasBastos, 1981). Para este autor los partidos en Brasilcarecen de ideología y de programación doctrinariadefinida. Los votos recaen así sobre las personas, nosobre las ideas: “Os partidos, no Brasil, têm sidoagrupamentos econômicos de diferentes bases, semindividualidade teórica, que lutam, exclusivamente,por uma hegemonia sem horizontes e sem real parti-cição popular”(p. 70). Este mismo problema es abor-dado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho en A Re-construção da Democracia (Ensaio sobre ainstitucionalização da democracia no mundo contem-porâneo, e em especial no Brasil). São Paulo : Saraiva,1979. En esta obra el autor estudia el modelo demo-crático con especial referencia al régimen brasileño,

abordando en la segunda parte de la obra el análisisde los factores condicionantes del orden político; yrefiriéndose a la incidencia del factor autocrático enla configuración del poder en el Brasil en cuanto factorhistórico que ha determinado la propia evoluciónpolítica. Entiende el autor que esos condicionanteshistóricos vinieron a formar en Brasil una tradiciónautocrática contraria a cualquier noción de igualdadentre los hombres (p. 55). Sobre la influencia de losfactores económicos sobre lo político puede verse elcap. IV, p. 69-84. Y sobre el sistema de partidos enBrasil entiende que es inviable ya que procede deconcepciones inexactas como la de que el elector decidesegún el programa de los partidos; y que esos pro-gramas, siempre vagos y genéricos, pueden servirpara la orientación efectiva del gobierno en su actividadcotidiana (p. 120).

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se convierten en los sustentadores de la conti-nuidad del sistema y dejan de ser motores delcambio social. Por eso es preciso que la revita-lización democrática contemple una reforma enprofundidad de estos aspectos: impidiendo lapermanencia en cargos de servicio públicodurante largo tiempo, agilizando el funciona-miento y la regeneración de la clase dirigentepara evitar que se convierta precisamente eneso, en una clase con conciencia de sus privile-gios y alejada de la sociedad que la sustenta ylimitando el número de cargos políticos en laestructura del Estado, con lo cual se reduciránlas posibilides de que los “buscadores de mejorfortuna” puedan ganar terreno en su carreraascendente y sin descanso.

También deberá tenerse en cuenta la articu-lación de un sistema legal que garantice plena-mente el pluralismo social y político, clave debóveda de la pervivencia de la democracia. Estoquiere decir que debe evitarse a toda costa lacreación de bloques mayoritarios monolíticos,pues ellos suponen un riesgo serio para lapervivencia de la libertad crítica de los indivi-duos y minorías disidentes. El sistema de parti-do dominante acaba por deformar el principiodemocrático y hacer de él sólo una fachada,una forma de legitimidad de pretensionescarentes de contenidos emancipatorios. Por ello,esta preservación del pluralismo requiere de unapoyo legal explícito de las leyes electorales,teniendo en cuenta que la estabilidad del siste-ma de gobierno no puede ser coartada suficientepara cercenar la manifestación originaria de lavoluntad popular, creando mayorías artificialesen función de un sistema proporcional ydesproporcionado de representación mayori-taria. El compromiso con el pluralismo requiereasí de una determinación legal explícita delrégimen electoral25. No basta con declaraciones

retóricas y solemnes sino que se han de esta-blecer mecanismos reales de tutela de lascreencias y convicciones de los distintos gru-pos que articulan una sociedad democráticaviva. Y esos mecanismos reales deben serinterpretados en sentido positivo, es decir, nocabe ya identificar la consagracaión legal delpluralismo con una actitud meramente pasivadel Estado, consistente en un “dejar hacer”,sino que la salvaguarda de las diferencias, delas convicciones y de las creencias heterogé-neas de la sociedad requiere de un compromisoactivo del Estado en la remoción de los obstá-culos que impiden un discurso plenamente li-bre entre la ciudadanía. Pluralismo significa asícompromiso real y efectivo en la mejora de lascondiciones que permitan un discurso libreentre los sujetos, un discurso, al modo haber-masiano, no dominado por posiciones deprivilegio que interfieran la comunicación libre.

25 Sobre los sistemas electorales de las demo-cracias contemporáneas es interesante la exposicióncompartiva, en el marco de la ciencia poliítica, queofrece Arend Lijphart en As Democracias contem-porâneas (Lisboa : Gradiva, 1989, cap. 6, Sistemaseleitorais, os métodos de maioria e maioria relativae a representação proporcional, p. 201-222). Lipjhartparte de la distinción entre dos modelos democráticosfundamentales: de un lado, las democraciasmayoritarias, que se construyen sobre el gobierno delas mayorías y, de otro, las democracias consensuales,que descansan sobre el reconocimiento fáctico de lapluralidad de formas y prácticas de vida. En estemodelo de democracia de consenso el pluralismosocial y las profundas divisiones sociales imponenuna restricción de la regla de las mayorías. En el caso

particular de sociedades pluralistas en las cuales severifica una clara compartimentación basada endiferencias religiosas, ideológicas, lingüísticas, cultu-rales, étnicas o raciales que dan origen a subsociedadesvirtualmente separadas con sus propios partidos,grupos de presión y medios de comunicación, noexiste la flexibilidad necesaria para la viabilidad de lademocracia mayoritaria (p. 41). Particularmentepienso que este segundo modelo de democraciarepresentativa es más acorde con el respeto a losderechos de las minorías y con el reconocimiento delpluralismo inherente a las sociedades democráticas.El principal problema de los modelos de represen-tación proporcional consiste precisamente en latendencia que revelan los sistemas electorales a pro-ducir resultados no proporcionales que favorecen alos grandes partidos, y que adquiere especial impor-tancia cuando los partidos que no consiguen la mayorparte de los votos obtienen, sin embargo, mayoríaparlamentaria absoluta. Estas mayorías son denomi-nadas “construidas”, es decir, creadas artificialmentepor el sistema electoral (p. 220). Este fenómenopermite la formación de un gobierno de un solo partidocon apoyo parlamentario mayoritario, lo cual, en miopinión, supone un desplazamiento del pluralismoinherente a las sociedades democráticas, con laconsiguiente quiebra del efectivo valor legitimadorde la voluntad popular que no encuentra fiel reflejoen la composición del mapa parlamentario, en bene-ficio de la invocación de la gobernabilidad como prin-cipio sobre el que descansa el menoscabo del alcancereal de la voluntad popular. El retorno a sistemaselectorales más acordes con la voluntad popular efec-tivamente expresada es, en mi opinión, uno de losgrandes retos de la democracia representativa departidos pues el sistema proporcional de mayoríasprovoca una disfunción entre el pluralismo políticoy el pluralismo realmente existente en la sociedad.

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Resulta obligado, por tanto, mencionar algoque se desprende de todo ello: si el pluralismoimplica un compromiso positivo con la remociónde obstáculos que impiden el libre desarrollo deopiniones absolutamente espontáneas y nomediadas por posiciones de dominio, ese plura-lismo -que es puntal sobre el que se sustenta unasociedad auténticamente democrática- exige nosólo que se garanticen las condiciones para ellibre desarrollo de individuos y grupos, en elsentido de evitar el predominio ficticio de unafuerza política mayoritaria en aras de una preten-dida estabilidad del sistema, sino un compromisocon el pluralismo social como condición básicade la convivencia libre. El pluralismo político noes más que una expresión de una sociedad diversa,plural y comprometida con la promoción integraldel sujeto. Y ese pluralismo social exige tambiénuna recuperación del vínculo comunitario medi-ante la creación de nuevos espacios de lo públicoen los que puedan desenvolverse libremente lasopiniones de individuos y grupos. Esto tiene unainmediata repercusión práctica con respecto alfuncionamiento del sistema de partidos: nopodemos vivir más atrapados por la aparienciaque nos devora, no podemos seguir soportandoque el espacio público sea territorio privado deoligarcas. Hay algo que nos impulsa a exigir quela democracia nos impregne y nos invada. Poreso si no queremos dejar que la democracia senos muera entre las manos en un final dramáticoque, aunque remoto comenzamos a aventurar, espreciso poner un hálito de esperanza en lasestructuras. Es urgente abrir nuevos espacios delo público democratizando realmente el sistemade partidos, sus estructuras internas y sus funci-ones, estableciendo vínculos reales entre las ba-ses -la ciudadanía militante- y los que ostentanresponsabilidad directa en los órganos dedirección. Si queremos hacer de la democraciaalgo más que un mero postulado formal tenemosque ser conscientes que la democratización pasapor la democratización de los partidos, de susestructuras, de sus métodos y, sobre todo, desus contenidos ideológicos. Es necesario, portanto, ganar espacios de espontaneidad y deintercambio, de mediación y de diálogo, liberandoámbitos mediatizados por intereses económicoso de clase.

5. La dinámica emancipatoria y losmovimientos sociales

Ya no podemos seguir viviendo presos deesta parodia, aplaudiendo con indolencia unespéctaculo que no deja der una burda

representación de democracia. Es el momentode decidir si queremos seguir siendo cautivos denuestro pasado más miserable y aborrecible.Nuestro futuro sólo puede depender de nosotrosmismos y tenemos recursos a nuestro alcance.De nada valen las evasiones individualistas nilas actitudes timoratas. Recuperar el contenidoemancipatorio de la democracia es algo que sólopuede hacerse desde la ciudadanía. No podemosseguir esperando una solución providencialistay milagrera. Por eso creo que es urgente recuperarel espacio público pero ahora ya desde unadimensión nueva que comienza a tomar forma.Las estructuras tradicionales del sistema departidos deben ser reformadas y pueden ser aúnexpedientes útiles a la democracia, pero hay unterreno por recuperar que es el de la imaginación,el del vínculo concreto e inmediato de la ciudada-nía implicada ya en causas emancipatoriasespecíficas.

El discurso del partido, aún reformado en clavegenuinamente democrática, es insuficiente. Lacomplejidad de las sociedades contemporáneashace emerger multitud de intereses específicos,permanentes o coyunturales. Y estos interesesconcretos avivan la ciudadanía y la democracia,son el pálpito de una sociedad viva y de unaciudadanía activa. Los lazos sociales de coope-ración se fortalecen y se consolida así una nuevaforma más dinámica y más agil de hacer política,desde la calle, desde la conciencia ciudadana. Losmovimientos sociales son esa nueva dimensiónde lo público que hemos de rescatar para lademocracia. Su valor reside en que son, precisa-mente, estructuras instrumentales, a veces espo-rádicas, que privilegian la consecución de un finespecífico. Nuestra democracia contemporáneanecesita de este aliento de lo concreto, porquelas ideologías se nos fueron de nuestras manos yquedaron aprisionadas en las estructuras pesa-das del aparato. Y contribuyen a crear espaciosabiertos donde el vínculo comunitario se reesta-blece desde un programa concreto de actuación.Los movimientos sociales26 recuperan así para la

26 Para una aproximación histórica al fenómenode los movimientos sociales, a su génesis y a lasexperiencias históricas concretas en que se plasmó,puede verse la obra de Werner Hofmann, A Históriado pensamento do movimento social dos séculos 19e 20, Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro,1984. Parauna aproximación a los movimientos sociales enLatinoamérica puede verse el volumen colectivo edi-tado bajo la coordinación de Sônia Laranjeira, Classese movimentos sociais na America Latina, São Paulo :Hucitec, 1990. Sobre los movimientos sociales enBrasil puede verse el volumen colectivo Alternativas

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democracia esa visión de lo temporal concreto, yla legitimidad estática de las elecciones periódicasy de los grandes objetivos generales y abstra-ctos de los partidos encuentra así su contrapunto:frente a esa legitimidad estática de las eleccionesperiódicas el movimiento social establece una víadinámica de legitimación de las decisiones quehace de la democracia un test permanente para laciudadanía y para los dirigentes políticos, por-que la democracia comienza así a tener la impron-ta de algo dinámico, que se está haciendo colec-tivamente y, por tanto, la legitimidad tiene tambiénahora una dimensión dinámica, no fosilizada, através de la confrontación permanente y esenci-almente democrática de las decisiones políticas;frente a esa generalidad y abstracción desideolo-gizada del sistema de partidos, los movimientossociales constituyen ahora ya una respuestaespecífica a demandas sociales de la ciudadaníay suponen, por ello, la revitalización de los lazosde empatía, de coperación y de solidaridad másinmediatos entre la ciudadanía, al tiempo quereintroducen en el espacio público un discursoinconformista y emancipatorio que es esencial ala sociedad democrática pues no están compro-metidos con la pervivencia y conservación de unorden ya dado -como los partidos-, sino que alorientarse a la consecución de objetivos especí-ficos hacen de su pretensión también un objetode discusión social, recuperando la visión con-flictiva de la sociedad que es esencial a la demo-cracia. Y esto es algo que no puede ser ignorado:si la democracia tiene un valor especialmente re-señable ese es el de posiblitar que el conflictosocial surja libre y espotáneamente al tiempo quearticula mecanismos para la resolución pacífica -no violenta ni coercitiva- de los compromisos. Elsistema de partidos ha hecho del conflicto socialun tabú, algo no deseado y que, por ende debeser evitado, ignorando con ello que el conflictoes el punto de inflexión del progreso social.

En un trabajo anterior27 ya resalté lanecesidad de recuperar una dimensión dinámicade la legitimidad democrática que sustenta, asu vez, una concepción diacrónica del poder.Esta concepción necesita de esa redimensiona-lización del espacio público como una estruc-tura abierta y espontánea. Se trata en definitiva

de reconquistar los conceptos de ciudadanía ylegitimación. Esa comprensión dinámica de lalegitimidad y, en consecuencia, del poder,rehuye el encasillamiento de las estructurascuyo carácter instrumental sólo se justifica enla medida en que establece la continuidad entrelos espacios y mundos de vida. Por eso me pa-rece interesante el planteamiento de Negri ycoincido con él parcialmente cuando opone a lasoberanía estatal, como concepto acabado deun poder prescrito y reglado y de una legitima-ción histórica y fosilizada, la noción más audazy anticipadora de poder constituyente -algodinámico, abierto, indeterminado y expansivo-.Pero el poder constituyente tiene un potencialrevolucionario que no puede ser despreciadopues allí donde hay poder constituyente hayrevolución28. Me parece que lo acertado de esteplanteamineto reside en su invocación de un

populares da democracia: Brasil, Anos 80, Petró-polis : Vozes, 1982. Dentro de esta obra merecenespecial atención el trabajo de Tilman Evers, Osmovimentos sociais urbanos: O caso do Movimentodo Custo de Vida, p.73-98, y el de Ximena Barraza,Por uma Subjetivação da Sociedade, p. 121-125.

27 Op. cit., nota 5.

28 Todos estos aspectos sobre tratados por Negri,A., El poder constituyente. Ensayo sobre lasalternativas de la modernidad. Madrid : Libertarias/Prodhufi, 1994, donde expone su concepción delpoder constituyente en los términos que a conti-nuación expresamos:

“...el paradigma del poder constituyente es el deuna fuerza que irrumpe, quebranta, interrumpe,desquicia todo equilibrio preexistente y toda posiblecontinuidad (...). Es, por consiguiente, el del poderconstituyente, como fuerza impetuosa y expansiva,un concepto ligado a la preconstitución social de latotalidad democrática. Esta dimensión, preformativae imaginaria, tropieza con el constitucionalismo demanera precisa, fuerte y durable.(...). La pretensióndel constitucionalismo de regular jurídicamente elpoder constituyente no es sólo estúpida porque ycuando quiere dividirlo; lo es sobre todo cuando quierebloquear su temporalidad constitutiva. El constitu-cionalismo es una doctrina jurídica que conoce sola-mente el pasado, en una contínua referencia al tiempotranscurrido, a las potencias consolidadas y a su inercia,el espíritu replegado; por contra, el poder constituyentees siempre tiempo fuerte y futuro” (p. 29).

Para Negri existe una absoluta contradicción entreel concepto de soberanía y el de poder constituyente:el poder constituyente “...es el acto de la elección, ladeterminación puntual que abre un horizonte, eldispositivo radical de algo que no existe todavía ycuyas condiciones de existencia preven que el actocreativo no pierda en la creación sus características.Cuando el poder constituyente pone en funciona-miento el procedimiento constituyente, toda deter-minación es libre y permanece libre. La soberanía,por el contrario, se presenta como fijación del poderconstituyente, luego como término de él, comoagotamiento de la libertad de que es portador.”(p.42). Por eso el poder constituyente “Significa antesque nada establecer una contínua relación entre poder

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nuevo terreno dinámico de legitimidad que eviteel encasillamiento y la fosilización de las formashistóricas. Pero no podemos desconocer queese poder constituyente es, esencialmente,anticonstitucionalista pues rehuye el estable-cimiento de formas precisas y predefinidas.Creo que esta es la gran carencia de la idea depoder constituyente anticipada por Negri: si nohay estructuras, si no hay procedimientos,quién garantiza que ese poder no devendrátiránico? Me parece por ello más acertado con-cebir una idea de legitimación dinámica a travésde los movimientos sociales, no como espaciosajenos a un control democrático y constitu-cional, sino como lugares de revitalización delo público - a través de los lazos de cooperacióny solidaridad-, de liberación y transformaciónde las conciencias ciudadanas y espaciosdinámicos donde los intereses, ideológicos enel sentido más concreto del término, seidentifican en la realización de un objetivoespecífico que constituye demanda social.

El movimiento social recupera así esa dimen-sión dinámica de la legitimidad de lo político yredimensiona el valor de pluralismo social comofuente del progreso colectivo, insertandonuevamente el conflicto en la dinámica demo-crática de la que había sido desplazado29. Y eneste sentido la recuperación de una concepci-ón esencialmente conflictiva de la sociedad esuna tarea pendiente y decisiva para el futuro dela democracia. En efecto, la democracia capita-lista de partidos ha tendido a anular el conflicto,a reconducirlo dentro de cauces bien regladosde desarrollo que permitan su neutralización apartir de la asimilación de las demandas socialesen que el conflicto se concreta por la estructuraestatal; otra cosa será que la fuerza expansiva

del conflicto pueda servir realmente para trans-formar la sociedad pues el sistema crea unacompleja red jurídico-política en la que losconflictos quedan reabsorbidos por el mismosistema. Se anula así una de las precondicionesde la democracia: si las posibilidades de conflictoquedan reducidas y cualquier demanda sociales canalizada a través de procedimientosreglados de neutralización, de manera que elproblema no se resuelve, la demanda no sesatisface pero sí que se consigue desarticularla presión que la reivindicación social de lademanda generó; la democracia se convierte noen un medio de resolución de las controversiassociales sino sobre todo en una estrategia deanulación de las fuerzas sociales disconformescon el sistema. Veamos esto: el sistema capita-lista abomina del conflicto porque incide nega-tivamente sobre su eficacia, sobre la producti-vidad de bienes y servicios. El conflicto es asíalgo no deseable que debe ser a toda costaevitado. Por eso las estrategias conflictualesde las democracias capitalistas no apuntan a laresolución real del conflicto, porque en buenamedida su resolución requeriría una transfor-mación parcial del statu quo, de la reestructura-ción del sistema productivo o de la limitación osubordinación del sitema económico a lasdemandas sociales emergentes. La estrategiaconflictual de la democracia capitalista es biendistinta: no consiste en la resolución del con-flicto porque esto podría alterar gravemente lapropia estabilidad del modo de producción, perotampoco puede consistir en su sofocamientosistemático porque con eso también quedaríaamenazada la propia estabilidad del sistema alaumentarse considerablemente el índice de

constituyente y revolución, una relación íntima ycircular: así que allí donde hay poder constituyentehay revolución. Ni la revolución ni el poder consti-tuyente tienen fin jamás cuando están interiormenteconexionados.” (p. 44).

29 Al movimiento social y a otros fenómenosasociativos específicos se refiere Bobbio como fenó-menos esencialmente pluralistas de las sociedadesdemocráticas. Por eso estos fenómenos asociativosdeben respetar las reglas del juego democrático pues,de lo contrario, los movimientos sociales podríanconvertirse en estrategias antidemocráticas tendentesa la negación de derechos. Las conquistas de la demo-cracia no pueden ser menoscabadas. Cualquierestrategia de transformación social deberá no sólo serrespetuosa con los principios de la convivencia demo-crática sino convertirse en agentes de una virtualizacióndemocrática plena orientada a la realización de un

horizonte de emancipación humana que sólo será talen la medida en que sea compatible con los triunfosconsolidados del sistema democrático. Por eso diceBobbio que el discurso sobre las vías de la política enun sistema democrático no sería completo si no setuviesen en cuenta las formas de agregación en tornoa intereses relativos a las condiciones de desenvolvi-miento de la personalidad. El autor hace menciónexpresa a los movimientos sociales, como los movi-mientos feministas, los movimientos de jóvenes y losde homosexuales y a las ligas en defensa de minoríaslingüísticas o raciales. Estos movimientos son recono-cidos con base en los dos principios fundamentales delibertad de asociación y libertad de opinión, los cualesdeben ser interpretados como verdaderas precon-diciones para el funcionamiento de las reglas del juego,particularmente de la regla fundamental según la cualninguna decisión colectiva puede ser tomada e imple-mentada si no reposa en última instancia sobre elconsenso. (Bobbio, N. Op. cit., p. 72).

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insatisfacción social y con ello, la posibilidadde amotinamiento o rebelión. Por ello el conflictono termina de ser resuelto pero tampoco essofocado: senciallamente se neutraliza, y con élla posibilidad de abrir un debate profundo sobrelas causas que lo generaron y que permiten lacreación de una situación que provoca insatis-facción y da origen a la demanda social. Lademocracia capitalista no resuelva la pobreza,ni las bolsas de miseria y de marginación que seacumulan en las diásporas de los grandesnúcleos urbanos. El sistema capitalista no faci-lita una igualdad real de condiciones en el acce-so a la salud o a la educación, tan sólo aseguraque en principio todos tendrán una educacióno una salud gratuita pero no resuelve elproblema estructural que subyace al propiocapitalismo: la exclusión sistemática de unaminoría que carecen de posibilidades reales deintegrarse en el sistema. Tampoco, por tanto,abre la vía para una democratización del propiosistema de organización económica. Lo queinteresa es asegurar su propia estabilidad. Ypara ello, nada mejor que medidas socialesconcretas, pequeñas concesiones que son comolas migajas que quedaron en la mesa tras lacomida, ya sea en forma de subvenciones a bajointerés o mediante subsidios, pensiones nocontributivas o cualquier otra medida que actúade manera redistributiva y no reestructuradora.Y entre tanto se tiende a crear una gran mayoríade clases medias que tienen acceso al sistema,que se halla plenamente inserta en él y que cons-tituye la más sólida garantía de que el sistemase perpetuará por vía democrática. La perviven-cia del sistema queda así asegurada: losexcluidos son contentados con actuacionesesporádicas que no resuelven el problemaestructural que generó la demanda social peroque neutraliza la posibilidad de conflicto, ydispersa a las masas ante la satisfacción parciale inmediata de algunas de sus necesidades másapremiantes, y entre tanto el sistema se conso-lida y aleja cada vez más la posibilidad de que elconflicto pueda renacer pues la gran mayoríade los ciudadanos ven mejorar sus condicionesde vida sin llegar a pensar que esa mejoría puededeberse a la exclusión de otros del sistema.

Ante esto es preciso revitalizar el espaciopúblico, reivindicando el carácter constituti-vamente democrático del conflicto social. StuartMill podría afirmar que, donde no hay conflicto,o bien hay una sociedad intelectualmentemuerta, o bien esa sociedad vive bajo el totali-tarismo más feroz. Se hace preciso articular

cauces concretos a través de los cuales elconflicto pueda emerger en la vida social. Setrata de liberar espacios al libre desenvolvi-miento individual, de ampliar el horizonte de lopúblico y de reconquistar el espacio políticopor una ciudadanía ya no más inhibida. Esurgente rehacer el espacio público, entretejernuevamente los vínculos de la solidaridad y dela cohesión social ahora disueltos por ladispersión del individualismo consumista yrecalcitrante del Estado del bienestar. En esteterreno la tarea está por hacer y sólo puedellevarse a la práctica si se lucha desde el ámbitode las conciencias individuales. La dinamizacióndel espacio público, la creación de esos nuevosespacios de ciudadanía requiere de la libera-lización de ámbitos invadidos por la hipermer-cantización del mundo de la vida, pero exigesobre todo una labor específica de concien-ciación: nos interesa no un concepto abstractoy difuso de ciudadanía sino cada ciudadano enparticular, con sus conflictos, con sus inquie-tudes y sus frustraciones: nos interesa sobretodo cada hombre, convertido fácilmente enmercancía por el capitalismo o enmascarado porlos códigos informáticos de una burocraciaestatal; nos interesa, por tanto, revelar al hombresu condición más intrísecamente humana y elvalor de su propia dignidad como sujeto moral.Y esto exige una concepción abierta, radical ydiacrónica de la democracia. Como punto departida: porque es exigencia derivada de la igual-dad moral de los sujetos; como cauce, porquesólo a través de la democracia cabe un desarrollopleno de cada uno de los sujetos morales, ycomo punto de llegada porque la realizaciónplena de la autonomía moral exige la realizaciónplena de la democracia.

6. La democracia como tarea inconclusaPor todo ello no parece posible seguir

sosteniendo una concepción frustrante del sis-tema democrático articulada a través de unarestructura petrificada de partidos. No nosparece posible seguir auspiciando esta defor-mación de los contenidos emancipatorios de lademocracia a través de la concentración delpoder en una élite oligárquica de tecnócratas oprofesionales de la política, sino que nece-sitamos explorar vías alternativas y complemen-tarias. Porque no podemos ser tan idealistascomo para pensar que podemos prescindir deun alto grado de tecnificación en la gestión ygobierno de los asuntos colectivos, pero es

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evidente que los resultados de este predomioabsorbente de la funcionalidad del sistema noresultan ser emancipatorios ni acordes con loscontenidos de una democracia real. Por esohemos de reivindicar cauces concretos a travésde los cuales pueda concretarse esa recupera-ción de los espacios de ciudadanía para hacerde la democracia algo más que un sistema pací-fico de preservación del statu quo y de repartode las cuotas de poder entre las élites domi-nantes. Se trata de postular la democracia comoproyecto de identidad ética, como realizaciónefectiva de la libertad y la igualdad en condi-ciones de desarrollo de la plenitud moral delsujeto. Por ello, sin ser tan ingénuos como parapensar en un retorno a las viejas formas demo-cráticas del mundo clásico, sin dejarnos llevarpor la nostalgia trasnochada de tiempos queefectivamente no fueron mejores, debemosarticular mecanismos reales de participacióncompatibles con la funcionalidad del sistemarepresentativo sobre el que descansa la demo-cracia capitalista contemporánea y que nospermitan recuperar para todos el espacio de lopolítico.

Cualquier empeño por reconstruir el espaciopolítico de la ciudadanía sólo puede apoyarseya sobre la necesidad de incorporar la iniciativaespontánea de los ciudadanos a través delmovimiento social. Porque las cerradas estruc-turas de los partidos ahogan el espacio dedesenvolvimiento de la ciudadanía y la limitana una concepción reglada y formal del ejerciciode las responsabilidades públicas que consisteúnicamente en el ejercicio del derecho al voto.La recreación de esos espacios nuevos de lopúblico es una tarea pendiente de la propiaciudadanía. No podemos seguir albergandoesperanzas irrealizables, no podemos continuarapostados sobre las quimeras de las realiza-ciones espontáneas. Necesitamos recuperar undiscurso democrático, pero, sobre todo, nece-sitamos recuperar una práctica democráticaplena.

Si hay demandas concretas de grupossociales éstas deben canalizarse a través de eseespacio público liberado. Las demandas de losmovimientos sociales son el aliento nuevo dela democracia porque especifican exigenciasconcretas y, por ende, ideológicas: son el com-promiso de un sector de la ciudadanía con larealización de un valor y eso supone que estánimpregnadas de ideología. Y en un momento enque todo el horizonte político parece difuminadoante la turbia constitución de un espacio

desideologizado es necesario reintroducir eldebate ideológico si queremos recuperar unhorizonte más diáfano de lo político30. El movi-miento social es, a la vez, el complemento nece-sario a las visiones genéricas, abstractas yglobales de las posiciones políticas programá-ticas de los partidos pues contrarrestan elnecesario equilibrio, fruto del compromiso entrelas distintas fuerzas dentro de un partido y delos partidos entre sí, que se establece entrepretensiones que se quieren harmonizar. Peroademás el movimiento social constituye unafuerza expansiva de la conciencia ciudadana,de modo que las demandas sociales de losmovimientos acaban tras un largo periodo rei-vindicativo implementando los programas polí-ticos de los partidos y entrando así en el terrenode las medidas políticas realizables. Ese es elcaso, por ejemplo, de los movimientos ecolo-gistas que se instituyeron como fuerza críticade la ciudadanía ante los abusos constantes yla degradación permanente de la naturaleza porlos Estados y por las grandes compañías delcapitalismo internacional. En nuestros días estoda la sociedad la que se ha beneficiado deesa demanda social sectorial de respeto a lanaturaleza de manera que lo que comenzó siendouna aspiración sectorial de grupos marginalestermina por conformar una conciencia críticageneralizada en la ciudadanía y fuerza laadmisión de contenidos ecologistas en lasdisposiciones programáticas de los partidos.Otro tanto ocurrió en España recientemente conel movimiento de l0’7 que reclamaba, comomedida de solidaridad con los países del TercerMundo, la cesión del 0’7% del producto interi-or bruto en concepto de ayuda a estos países.El movimiento sirvió para despertar la conci-encia atrofiada y conformista de una ciudadaníapasiva, y pronto la petición prendió en la ciuda-danía. El movimiento del 0’7 no consiguió todocuanto se proponía pero alcanzó un especta-cular resultado: hizo despertar el valor de lasolidaridad en las conciencias individuales delos ciudadanos consumistas y su presión sirviópara que el gobierno adoptara medidas urgentesde solidaridad con el Tercer Mundo.

30 Para un estudio de las ideologías modernas yuna perspectiva de futuro de la política ante el ocasode las ideologías en la contemporaneidad puede versela obra de Frederick M. Watkins e Iaac Kramnic, AIdade da Ideologia , Brasília : Universidade de Brasilia,1981. Especialmente interesante es en particular elcapitulo XII, Rumo ao ano 2000 : o futuro daideologia, p. 93-107.

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Es así como esos aspectos de una conci-encia ciudadana sectorial acaban por revertiren valores sociales, demandas sociales genera-lizadas de la ciudadanía que recaba su incorpo-ración al plano de las medidas políticas comobien que debe ser tutelado. El movimiento socialhuye así de una concreción estática de la legiti-mación y de los valores y se constituye en con-ciencia crítica de la ciudadanía. Su compromisoconcreto termina revertiendo en progresosocial, como fuerza expansiva que alimenta laconciencia crítica de la ciudadanía. Pero elmovimiento social tiene también una misiónmucho más concreta porque acerca lo políticoal ciudadano a través de la estimulación de suconciencia ante un hecho concreto. Crea así unestímulo en la ciudadanía ante el cual no se suelepermanecer indiferente y contribuye a unarecreación del espacio público. Supone por ellouna forma de revitalizar la democracia y, portanto, de poner la discusión política al alcancedel ciudadano pero también de reivindicar elpapel creativo del espacio político que corres-ponde a la ciudadanía, tantas veces arrebatadopor estructuras oligárquicas, tecnocráticas ygrupos de presión que determinan el horizontede lo político.

De esta forma el ciudadano vuelve a sentir-se protagonista de la representación, ya no másun espectador pasivo e indolente que aplaudesin prestar atención a lo que ocurre sobre elescenario, y ahora sí un nuevo elemento de laescena que hará cambiar el final que ya estabaescrito. Por eso sólo podemos responder con laperplejidad a quienes sostienen la vigencia yvirtualidad del sistema de partidos, pues aun-que resultan estructuras imprescindibles parala democracia, no creo que en su configuraciónactual puedan contribuir al avance de la demo-cracia como proyecto de emancipación humana;máxime cuando las políticas globales respon-den a un proceso selectivo de aspectos quepuedan ser generalmente admitidos con facili-dad en un proceso de negociaciones y conce-siones mutuas entre distintas fuerzas socialesdominantes, grupos de presión y poderesfácticos. El movimiento social introduce, frentea esta concepción frustrante de la democracia,un elemento crítico en la ciudadanía conformis-ta y revitaliza el debate político colocandoproblemas candentes al alcance de un debate sinposiciones de privilegio entre los ciudadanos.

Me parece, por ello, que los planteamientosgenerales no es que no sirvan sino que resultaninsuficientes, o sea, que necesariamente la

política debe integrar una visión integral de lasrelaciones humanas, una cosmovisión de laordenación social, pero esto no termina deresolver los problemas concretos de lascomplejas sociedades de nuestros días:tenemos que reconocer que hay identidades eintereses sectoriales y que el progreso generalde la democracia como proyecto de realizaciónplena del pluralismo social, condición de la plenaautonomía moral de los sujetos, requiere de lainserción de un espacio colectivo, inmediato,conflictivo e inconformista, sectorial pero nofragmentado que representa el movimientosocial.

La recreación de un espacio público abiertoexige por tanto una reforma profunda delsistema de partidos a fin de que su estructura yfuncionamiento sea plenamente acorde con lasexigencias de democracia real de la ciudadanía.El partido político, como institución dinámicaaglutinadora de las demandas sociales, estodavía un instrumento necesario para la de-mocracia. Pero en las sociedades contempo-ráneas la complejidad del sistema tiende a alejarla democracia de la ciudadanía y a provocar unfenómeno de concentración del poder en lasélites -tecnócratas o plutocráticas- dominantes.Si hemos de continuar reconstruyendo lademocracia, en una labor permanente por laemancipación humana, hemos de explorarnuevas vías de reconstrucción del espaciopúblico y en esto el movimiento social parecemostrarse como el complemento necesario a laactividad más general, abstracta y, en buenamedida, desideologizada de los proyectosglobales que encarnan los partidos. Esta tareade recuperación del espacio de ciudadanía exige,por tanto, de estructuras adecuadas a las soci-edades de nuestros días. Parece evidente porello que en el umbral del segundo milenio elhombre no puede seguir pensando el partidopolítico con los mismos esquemas y estructurasdel siglo XIX. La reforma del sistema de parti-dos debe orientarse pues a redimensionar lavirtualidad emancipadora de la democracia comoproyecto común de la sociedad. Ello exige abrirvías de comunicación en el espacio de ciuda-danía que articulen la legitimidad democrática através de la soberanía popular. Nuestraspropuestas van dirigidas en ese sentido, perono son un programa cerrado, antes bien,constituyen propuestas para el debate y lareflexión. La recuperación de la función eman-cipadora de la democracia requiere, en miopinión, de la articulación de un sistema de

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partidos que responda a exigencias radical-mente democráticas, sin desconocer el papelde orientación que debe corresponder a losexpertos en las complejas sociedades denuestros días, pero exige también un modelonuevo de relación con lo público que huya dela estandarización y la homogeneidad deestructuras pétreas y fosilizadas; el movimiento

social, en cuanto agrupación temporal o establede ciudadanos para la consecución de objetivosespecíficos, constituye la savia nueva quenecesita la democracia. Es no sólo un modelocomplementario de articulación de la partici-pación popular, sino, sobre todo, un atisbo deesperanza para quienes aún soñamos con eltriunfo definitivo de la democracia.

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O “custo-Brasília” revisitadoEm ensaio publicado pela revista Conjun-

tura Econômica, da Fundação Getúlio Vargas,em maio de 1996, o jornalista e economista IbTeixeira defende que a construção da atualcapital do Brasil foi um erro. Segundo ele, Brasíliacustou bilhões aos cofres públicos e não gerouretorno, prejudicando o desenvolvimento deoutras áreas, como educação e saúde.

O presente texto tem por objetivo analisaralguns argumentos apresentados pelo ensaísta.

1. Da argumentação lógicaHá algumas afirmações, no ensaio, que

demonstram que o autor não foi informado deaspectos, pouco relevantes, da história e darealidade de Brasília. Alega que foram constru-ídos “dezessete edifícios com cinco blocos de10 pavimentos, abrigando 372 apartamentos detrês quartos”. Tal obra não existe em Brasília.Em outro trecho, refere-se ao Teatro Nacionalcomo Teatro Municipal. Mas esses pequenosdetalhes pouco afetam a qualidade do Ensaio.

Ib Teixeira escreve:“se ignora por que um funcionáriopúblico federal, que no Rio ou em SãoPaulo ganha pouco mais de um saláriomínimo, deve ser contemplado em Brasíliacom um vencimento, no mínimo, cincovezes maior.”

Ora, servidores (e não funcionários) públicos

LEILA OLLAIK

SUMÁRIO

O “custo-Brasília” revisitado. 1. Da argumen-tação lógica. 2. Dos números. 3. Da metodologia.4. Conclusão.

Esclarecimento a respeito da viabilidadeeconômica da capital do Brasil

Leila Ollaik é economista pela Universidade deBrasília, Analista de Finanças e Controle e assessorado Gabinete do Secretário de Fazenda e Planejamentodo GDF.

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federais ganham o mesmo salário em Brasília ouem qualquer outro estado. Qualquer variaçãodepende apenas de diferenças entre carreiras ecargos. Um analista de finanças e controle emBrasília, por exemplo, ganha a mesma remune-ração que um analista de finanças e controle emManaus. Como o custo de vida em Brasília émais alto do que em outros estados, os daquiganham até menos, do ponto de vista real. Oque ocorre é que há determinados cargos quesão referentes apenas ao primeiro escalão doGoverno, e esses, apesar de servirem a todo opaís, só existem na Capital.

O autor argumenta, com muita propriedade,que o Governo Federal oferece mordomias eostentações aos servidores públicos. Noentanto, essas mordomias (carros, residências,reformas e equipamentos por conta do Estado)existem apenas para altos postos do Governo enão para todos que residem na Capital. Alémdisso, não há nenhuma conexão entre as mor-domias e o planalto Central, isto é, não são osares do local que fazem com que os políticoseleitos pela maioria do povo brasileiro desfrutemde mordomias e sejam despreocupados com osgraves problemas da população. É indiscutívela existência de mordomias e ostentações, mas ocomportamento dos tomadores de decisão nãopode ser atribuído à localização da Capital.

“Aboletados num trator, percor-ríamos os canteiros de obras, recebendoa informação oficial de que boa parte daconstrução de Brasília estava sendofinanciada pela Previdência Social”.

Já antes de 1960, a Previdência Social era utili-zada para outros objetivos que não os para oqual existe. A Previdência já teve seus recursosdestinados a bancos de diversos estados.Realmente, a construção de Brasília não deveriater sido financiada pela Previdência Social.Infelizmente, essa prática de modificarem osobjetivos da Previdência Social persiste até hoje,o que esclarece ainda mais que não foi aconstrução da nova Capital que gerou osproblemas da Previdência.

A construção de Brasília esteve inserida napolítica de desenvolvimento da época, queprevia grandes obras. Brasília não foi a únicaobra e muito menos o fator decisivo para asituação econômica e social que se seguiu a1960.

“O mundo estava perplexo em sabercomo um país pobre, do pobre hemisférioSul, se dava ao luxo de construir uma

‘cidade interplanetária’, uma cidade doentão longínquo ano 2000”.

Essa afirmativa equivale a perguntar como onosso país, com tantos problemas de pobreza,desemprego e violência, proporciona o maravi-lhoso espetáculo do carnaval todos os anos.O carnaval é parte de todo um contexto culturalbrasileiro, assim como a construção faraônicade Brasília foi parte de um contexto de políticade desenvolvimento adotada na época.

No entanto, o modelo de grandes obras, queinvertia as prioridades, adotado pelo paísquando da construção da nova Capital, resultahoje na exportação de modelos de políticassociais, especialmente na área de educação. Oprograma Bolsa-Escola, iniciado em Brasília em1995, é aplaudido e copiado nas mais diversaslocalidades, sempre com o objetivo de melhorara educação em nosso país.

2. Dos númerosO ensaio tomou como base a estimativa do

ex-Ministro da Fazenda Eugênio Gudin, feitalogo após a inauguração da cidade, de que ocusto inicial de Brasília foi de US$ 1,5 bilhão.Esse valor teria sido corrigido pela inflação dosEstados Unidos da América nos últimos 35 anos.Assim, o autor chegou ao montante de US$ 35bilhões. Caso esses cálculos estivessem certos,a inflação norte-americana teria sido de 2.234%no período, ou seja, 9,42% ao ano em média.

Entretanto, o Índice de Preços ao Consu-midor dos Estados Unidos da América1 revelaque a inflação acumulada nos últimos 35 anos,de 1960 a 1995, foi de 413,66%, ou seja, 4,79%ao ano em média. Portanto, pela taxa de inflaçãomedida nos EUA, US$ 1,5 bilhão equivale hojea US$ 7,7 bilhões, e não a US$ 35 bilhões.

Acresceram-se a esse montante de US$ 1,5bilhão juros de 3% ao ano por 35 anos,chegando-se, incompreensivelmente, a maisUS$ 35 bilhões. Fato é que o montante de US$1,5 bilhão corrigido com juros de 3% ao ano por35 anos resulta em US$ 4,2 bilhões, e não nosUS$ 35 bilhões divulgados no ensaio.

Outros US$ 36 bilhões teriam relação com ocusto das transferências de recursos doGoverno Federal para o Distrito Federal desde1960, pouco mais de US$ 1 bilhão por ano,

1 Fontes: Banco Central do Brasil e índices norte-americanos que estão disponíveis na Internet.(http://stats.bls.gov/cpiovrvw.htm).

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estimativa esta bastante razoável.Já o outro valor citado é o de US$ 59 bilhões,

supostamente gasto pela iniciativa privada naCapital. Teixeira calculou o investimento dainiciativa privada com a relação US$ 0,50 paracada US$ 1 de dinheiro público investido.Mesmo considerando que fosse correta apremissa do autor, aplicação de meio para cadainteiro, seu cálculo estaria errado, pois o setorprivado teria investido metade de US$ 106bilhões, ou seja, US$ 53 bilhões, ao invés dosUS$ 59 bilhões apresentados ao leitor. Issoconsiderando os resultados apresentados, poiso montante de US$ 106 bilhões é a soma dosnúmeros encontrados pelo próprio autor, 35bilhões de custo inicial somados a 35 bilhõesde juros e somados a 36 bilhões de transfe-rências. Como já ficou claro que, seguindo ametodologia proposta, os resultados são US$7,7 bilhões de custo inicial, US$ 4,2 bilhões dejuros e US$ 36 bilhões de transferências, o totalde dinheiro investido pelo setor público seriade US$ 48 bilhões, e, portanto, o total de inves-timento do setor privado seria equivalente àmetade, ou seja, US$ 24 bilhões.

Para finalizar, o ensaio apresenta uma tabelaonde 35+35+36+59 totalizam 155 bilhões dedólares, ao invés da soma correta, que seria US$165 bilhões.

Utilizando os mesmos argumentos e a mesmametodologia do autor, porém efetuando cálculoscorretos, o custo total encontrado seria US$ 72bilhões. Ou seja, menos da metade do custoinformado ao leitor.

35,0035,0036,0059,00

7,704,2236,0023,96

165,00 71,88

Resultadosapresentados no ensaio

Resultado correto, considerando a metodologia

do ensaio

E o autor, em seguida, escreve:“Considerando-se, porém, somente a

estimativa do Dr. Gudin, que incluiriadespesas orçamentárias e não-orçamen-tárias e outros agregados, só os primeirospassos de Brasília como capital estariamcustando, em meados dos anos 60, emtermos monetários, uns US$ 5 bilhões”.

Caso o autor tenha considerado o valor de US$5 bilhões, ao invés de US$ 1,5 bilhão, para inici-ar os cálculos, vejamos: US$ 5 bilhões corrigidospela inflação norte-americana equivale hoje aUS$ 26 bilhões, e a juros reais de 3% ao anoresulta em mais US$ 14 bilhões. Portanto, con-siderando a mesma metodologia, mas iniciandoa conta pelo valor inicial de meados dos anos60, tem-se o seguinte:

Resultado correto,considerando a metodologiado ensaio, iniciando com o

valor de meados dos anos 60

Resultadosapresentados no ensaio

35,0035,0036,0059,00

25,6814,0736,0037,88

165,00 113,63

O custo total encontrado seria US$ 114bilhões. Ou seja, menos de setenta por centodo custo informado ao leitor.

3. Da metodologiaAlém de todos esses pontos questionáveis,

o referido estudo apresenta também falhasmetodológicas graves ao considerar apenas umtipo de transferência, o que impossibilita acomparação do “custo-Brasília” com o custode outros estados.

Todas as unidades da federação recebemtransferências da União. Essas transferênciasassumem formas outras que as simplesmenteorçamentárias. Algumas destas formas sãoempréstimos do Banco do Brasil, da CaixaEconômica Federal, do BNDES, para citarapenas algumas que se encaixam na modalidadede federalização das dívidas estaduais. Taisempréstimos são muitas vezes negociados paraserem pagos em 30 anos, sem juros e semcorreção monetária.

O ensaio cita o seguinte trecho, escrito peloSr. Gudin:

“Nestes últimos 8 anos, as dotaçõese os dispêndios têm sido da ordem de200 a 300 bilhões de cruzeiros, por ano,sejam cerca de 100 milhões de dólarespor ano. Total até agora, portanto, umbilhão e meio de dólares”.

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2 Código Tributário Nacional, artigos 86 a 91.

3 Decisão Normativa nº 008/95 do Tribunal deContas da União, anexo II.

4 De acordo com a Folha de São Paulo em 22 deabril de 1996, artigo de Francisco Santos, da sucursaldo RJ.

Há outras modalidades, como, por exemplo,os repasses constitucionais (Fundo de Partici-pação dos Estados e dos Municípios e salário-educação) e os incentivos e benefícios conce-didos ao setor privado dos diversos estados.

O economista e jornalista Ib Teixeira consi-dera os investimentos do setor privado na capitaldo Brasil para calcular seus custos. Com oobjetivo de seguir a mesma lógica, ao analisarquanto cada unidade da federação recebe detransferências da União, deve-se considerartambém a parcela referente a incentivos gover-namentais a indústrias privadas de cada estado.

Em uma tentativa de esboçar o que deve serconsiderado para comparar-se a quantidade derecursos federais que é destinada a cada estado,pode-se considerar os seguintes recursosfederais:

a) BNDES = Valor dos desembolsos efe-tuados pelo sistema do Banco Nacional deDesenvolvimento Econômico e Social.

b) BB = Valor dos créditos concedidos peloBanco do Brasil às atividades econômicas.

c) CAIXA = Empréstimos da Caixa Econô-mica Federal.

d) FPE + FPM = Fundo de Participação dosEstados e dos Municípios

e) SALÁRIO- EDUCAÇÃOf) TESOURO = Despesa realizada pelo

TesouroTodos esses dados podem ser encontrados

no Anuário Estatístico do Brasil, elaboradopelo IBGE.

O Fundo de Participação dos Estados e doDistrito Federal e o Fundo de Participação dosMunicípios (item d) estão de acordo com asvinculações constitucionais relativas à partici-pação na receita da União. Por estes fundos, osestados, o DF e os municípios recebem parcelado imposto de renda e do imposto sobreprodutos industrializados.

Tais fundos têm como objetivo reduzir asdisparidades regionais no nível de renda,obedecendo a critérios de população e rendaque colocam o Distrito Federal em posiçãodesfavorável (diretamente proporcional àpopulação e inversamente proporcional ao nívelde renda)2. O DF recebe menos de 1% dos re-cursos destes fundos. Para 1996, cabem ao DF0,6902% dos recursos do FPE e 3,5% dosrecursos do FPM, enquanto cabe, por exemplo,

ao Estado da Bahia 9,3962% e à cidade deSalvador 8,0% dos respectivos fundos3. Astransferências referentes ao salário-educaçãodos estados e do Distrito Federal (item e)seguem critérios igualmente desfavoráveis àCapital.

O BNDES continua transferindo recursosaos estados. De novembro de 1995 a abril de1996 foram financiados R$ 135 milhões para aBahia e R$ 764 milhões para quatro estados:Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Rio Gran-de do Sul4.

Consultando o Anuário Estatístico doBrasil de 1994, nos itens citados acima, nota-seque treze estados receberam mais recursosfederais, em 1993, do que o Distrito Federal. OEstado de São Paulo recebeu dez vezes maisrecursos do que a capital do Brasil. Enquanto oDistrito Federal recebeu 2,3 % do total dosrecursos federais para os estados, Minas Geraisrecebeu 9,8 % destes mesmos recursos, RioGrande do Sul recebeu 9,9 %, Paraná recebeu10,7 % e São Paulo recebeu 23,2 %.

É importante notar que não se estão consi-derando as transferências federais referentesàs entidades de desenvolvimento (comoSUDENE), à abdicação de receita (como zonasfrancas) e à ajuda a bancos estaduais — tãofreqüentes em nossa recente história. Casoessas modalidades de transferências tambémfossem computadas, tornariam o custo dacapital do Brasil ainda mais barato em relação aoutros estados.

4. ConclusãoA capital do Brasil é viável economicamente.

Caso seja interessante discutir o “custo-Brasília”, é necessário o desenvolvimento deanálise mais séria e mais extensa do que aapresentada no ensaio publicado, em maio de1996, pela revista Conjuntura Econômica, daFundação Getúlio Vargas.

O ensaio levanta fatos reais para chegar aconclusões errôneas, transmitindo a falsa ima-gem que a Capital proporciona mordomias atodos os que aqui residem, usando argumentosque não condizem com a realidade. Enumera

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ostentações e privilégios como causados pelamudança da Capital para o interior, conside-rando que Brasília é a causa da conduta não-ideal de nossos políticos, raciocínio este quenão apresenta sustentação lógica.

Além disso, os cálculos apresentadoscontêm falhas técnicas, levando a resultadosdistorcidos. O ensaio divulga taxas de inflaçãopara a correção dos números que são incompa-tíveis com dados oficiais e comete incorreçõesmatemáticas.

A metodologia adotada não aborda todos osaspectos do tema tratado, apresentando falhalógica, pois considera apenas as transferências

orçamentárias, impossibilitando a comparação doconjunto de transferências (diretas e indiretas)que a União faz às unidades da federação,tornando a análise superficial e inconsistente.

Para se avaliar a viabilidade da constru-ção da Capital seria necessário considerar,pelo menos, o desenvolvimento social eeconômico proporcionado à região. E quantoa sua manutenção, a soma dos dados quedeveriam ser considerados para uma com-paração inicial mostra que outros estadosrecebem mais recursos do Governo Federaldo que Brasília, o que comprova a viabilidadeda Capital.

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Propriedade intelectual sobre produtos daBiotecnologia

MARCELO DIAS VARELLA E MÁRCIA CRISTINA PEREIRA

Projeto de Pesquisa dos Departamentos deDireito e Biotecnologia da Universidade Federal deViçosa, sob a orientação dos Professores EvaldoFerreira Vilela, Ph.D, UFV; Fabiana de MenezesSoares, MS, UFV e Joaquim Carlos Salgado, DS(UFMG).

SUMÁRIO

1. Noções gerais. 2. Histórico. 3. Fundamentaçãojurídica das modalidades de proteção. 3.1. Patentes.3.2. Patentes de cultivares e de microrganismos. 3.3.Legislação de proteção de cultivares. 4. Perspectivassócio-econômicas da adoção de cada modalidade deproteção. 4.1. Patentes de seqüências de DNA. 4.2.Patentes de cultivares. 4.3. Legislação de Proteçãode Cultivares. 4.4. Patentes de microrganismos.

1. Noções geraisNos últimos anos, desde o início das

discussões sobre a aprovação do Projeto deLei nº 824/91, conhecido popularmente comoLei de Patentes, muito se tem falado sobre otema, embora com pouco embasamento filosó-fico e jurídico, o que se deve principalmente ànão-existência, no Brasil, de doutrina e mesmode estudo mais aprofundados sobre o assunto.Neste trabalho, pretendemos realizar umaanálise histórica da propriedade intelectual emterritório pátrio e em outros países de variadosníveis de desenvolvimento, bem como elaborarum estudo crítico dos diversos modos de pro-teção existentes sobre plantas e microrganismosem todo o mundo e das possíveis conse-qüências da adoção de cada modalidade deproteção em âmbito nacional.

2. HistóricoO início do desenvolvimento industrial no

Brasil, embora de maneira insipiente, deu-se coma entrada da família real e a posterior aberturados portos em 21/1/1808. Pouco mais de doismeses após a abertura dos portos, em 1º de

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abril de 1808, publicou-se um alvará permitindoa proteção de inventos, ou seja, garantindo omonopólio sobre a comercialização do mesmoao seu inventor, privilégio que tinha a duraçãode 14 anos.

Contudo, durante muitos anos, pouco sefez para estimular a concessão de registros. Em1830, uma nova lei, baseada na Constituição de1824, foi feita para tornar efetiva a proteção dosinventores, regulando os privilégios e osdireitos deles decorrentes. As patentes eramconcedidas gratuitamente, cobrando-se apenaso selo e o feitio, cabendo ao interessado provarpor modelos, planos e desenhos, descrevendotodo o processo e depositando tudo no arquivopúblico. O privilégio durava de cinco a vinteanos e a violação dos direitos tinha por sançãouma pena de multa equivalente a 1/10 do valordos produtos fabricados, além da perda dosmesmos.

Posteriormente, outros decretos e regula-mentos vieram a modificar essa legislação, massem alterações substanciais, o que somenteocorreu após a Convenção de Paris em 1883. AConvenção de Paris teve a participação dediversos países, como Bélgica, Espanha, França,Guatemala, Itália, Holanda, Portugal, SãoSalvador, Sérvia e Suíça, e como objetivo formaruma união internacional para a proteção dapropriedade industrial. O Brasil tornou-sesignatário em 28 de julho de 1884. Nesse docu-mento protegia-se não somente as invenções,mas também as marcas de fábrica e de comércioe dispunha-se sobre a “criação de um depósitocentral das marcas estrangeiras e dos regis-trados nas províncias”, um órgão ancestral doatual Instituto Nacional de Propriedade Indus-trial (INPI).

Em 1923, com o Decreto nº 16.264, tornou-se exclusivamente federal o registro das marcas,e em 1945 um decreto-lei regulamentou os crimesem matéria de propriedade industrial. Contudo,somente com a Lei nº 5.772, de 21 de dezembrode 1971, é que o Brasil veio a ter uma legislaçãomais adequada às necessidades nacionais(legislação esta que vige até os dias de hoje).

No mundo, as diversas legislações foramcriadas também de acordo com as convençõesinternacionais, em especial com a Convençãode Paris, nas suas diversas versões.

Com relação à biotecnologia, a primeiralegislação que se tem conhecimento data de1883, na Alemanha, em Kischenshof. Quarentaanos mais tarde surgia na Inglaterra a Lei sobreSementes, que tinha como objetivo permitir o

patenteamento de sementes de variedadesvegetais; em outros países, como o Canadá,também foram criados dispositivos permitindoo patenteamento, embora quase não tenhamsido utilizados na prática.

Foi somente na década de 60, com a criaçãoda União Internacional para a Proteção dasObtenções Vegetais, que se criou um sistemaadequado para o setor agrícola. Neste acordo,proibia-se o patenteamento vegetal, dada a suainadequação às necessidades fáticas dosagricultores. A legislação aprovada foi a deProteção de Cultivares ou Direitos de Melho-rista, como também é conhecida, que, emboracom algumas variações, como veremos adiante,vige até os dias de hoje em dezenas de países.

3. Fundamentação jurídica das modalidadesde proteção

Quando nos referimos à propriedadeimaterial, queremos dizer que o bem jurídicotutelado é composto de bens incorpóreos,intocáveis, ou seja, “que não têm existênciatangível e são relativos aos direitos que aspessoas têm sobre as coisas, sobre os produtosde seu intelecto (...) tais como direitos autorais”.1

Ou ainda, aqueles que têm existência ideal,abstrata, mas que o ordenamento jurídico reco-nhece2. Fisicamente só podemos concluir pelaexistência de bens móveis incorpóreos, o quedecorre da impossibilidade de um bem incor-póreo ser imóvel.

A Patente e a Proteção de Cultivares são,portanto, formas de aquisição da propriedadeimaterial. São modos, indicados pelo ordena-mento jurídico, de se adquirir a propriedadesobre determinado bem móvel, e não a proprie-dade em si, como consideram alguns. A mobili-dade do bem é expressamente estipulada pelopróprio ordenamento jurídico. Limongi Françaconsidera que este modo de propriedade é umdireito pessoal e não real3, o que é muito deba-tido pela doutrina, graças aos direitos instituídospela lei ao seu titular.

1 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civilbrasileiro. São Paulo : Saraiva, 1989. V. 1 : Teoriageral do direito civil, p. 151.

2 MONTEIRO, Whashington de Barros. Cursode Direito Civil. São Paulo : Saraiva, 1968. V. 1: Partegeral.

3 FRANÇA, Limongi apud ALVES, VilsonRodrigues. Uso nocivo da propriedade. São Paulo :Revista dos Tribunais, 1992. p. 60.

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No campo biotecnológico, diferem de outrosmeios de proteção, como os híbridos, que seconfiguram como um modo natural de “prote-ger” a planta, mais especificamente a semente.Neste ponto, é de essencial importância adistinção entre semente e grão, que em muitoscasos se faz apenas quanto à destinação domesmo. Se para o plantio, semente, se para oconsumo, beneficiamento, grão. O sistema depatentes e o de proteção de cultivares sãomodos artificiais de proteção, fruto do laborhumano. Como a propriedade imaterial somentefoi considerada como passível de aquisição hápoucos séculos, este modo de proteção é muitorecente se compararmos com a propriedadesobre coisas móveis, cuja origem remonta aoinício da humanidade.

3.1. Patentes

O sistema de proteção por patentes nocampo biotecnológico é muito recente. Emborainicialmente elaborado no começo do século,pode-se dizer que somente na década de 80 éque começou a ser utilizado realmente paraplantas e microrganismos. Foi nos EUA, com ocaso ex part Chackhabarty, em 1980, que sedeu o passo definitivo para a disseminaçãodeste sistema para o mundo, principalmentedevido à força da indústria norte-americana nocontexto econômico mundial.

Embora em muitas outras disputas, comoem 1976, na Austrália, e em 1978, na Irlanda, osrespectivos órgãos oficiais de registro depatentes tenham sido vitoriosos judicialmente,mantendo a negativa da adoção deste sistemapara seres vivos, naquela disputa judicial, oEscritório de Patentes dos EUA foi derrotadona Suprema Corte, sendo obrigado a aceitar apatente de uma bactéria e, cinco anos mais tarde,com o caso ex part Hibberd, a aceitar também apatente de plantas.

A patente na área vegetal se dá com oregistro da planta no órgão competente, que,em geral, é vinculado ao Ministério da Indústriae Comércio. No Brasil, tem-se o InstitutoNacional de Propriedade Industrial.

Os critérios para a aceitação do pedido econseqüente registro são os mesmos utilizadospara invenções industriais, ou seja, novidade,originalidade, viabilidade industrial e distingüi-bilidade, embora este, específico para a áreavegetal, varie de país para país.

É considerada nova a variedade que não

está registrada, que ainda não caiu em domíniopúblico, ou, como preferiu o Legislador doCódigo de Propriedade Industrial, ao tratar deinvenções, “que ainda não foi compreendidapelo estado da técnica”. O parágrafo 2º do artigo6º assim explica:

“O estado da técnica é constituídopor tudo que foi tornado acessível aopúblico, seja por uma descrição escritaou oral, seja por uso ou qualquer outromeio, inclusive conteúdo de patentes noBrasil e no estrangeiro, antes do depósitodo pedido de patente”.

Caso um inventor venha a descobrir umproduto totalmente novo e original, se colocarà disposição de terceiros, deixará de ser novo e,por conseguinte, não poderá ser patenteado4.

É original aquele de que não se tem conhe-cimento, que não está em domínio público.Desse modo, nem toda variedade nova éoriginal5. O critério originalidade é talvez o maiscomplexo e mais difícil de se identificar em umainvenção. Embora internacionalmente consa-grado, como bem aborda o ilustre jurista JoãoGama Cerqueira, citado por Rubens Requião6, éomitido em muitas legislações, o que decorrede sua inerência a toda e qualquer atividadeinventiva.

Viável industrialmente é a variedade vegetalque tiver um fim econômico determinado,suscetível de aplicação industrial. Distinguívelé a variedade que se distinga claramente dequalquer outra conhecida quando da data dopedido.

Em algumas legislações, percebemos quenão se explicita a expressão “entre as variedadesconhecidas”, quando referente à originalidade,tratando o critério de modo amplo, como se ohomem tivesse total ciência das milhões devariedades existentes em toda a flora mundial.

4 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comer-cial. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. V. 1, p. 230.

5 O conceito de novidade varia conforme a legis-lação estudada. O ilustre Professor Fran Martins, noseu Curso de Direito Comercial, 2ªed., p. 509,classifica a novidade em absoluta e relativa. É absolutaaquela invenção que nunca teve contato com terceiros.Será relativa nos moldes da antiga legislação, admi-tindo a patente, mesmo que a mesma já tivesse sidoconcedida no estrangeiro até um ano antes do depósitono Brasil.

6 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado depropriedade industrial apud REQUIÃO, Rubens.Ibidem. p. 229.

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Revista de Informação Legislativa212

A orientação moderna, mais humilde e cons-ciente da realidade, indica que se use a expres-são, impedindo problemas judiciais futuros,como poderia ocorrer no caso de se “redesco-brir” a variedade na natureza anos mais tarde.Se isto acontecesse, para se chegar à justiçadever-se-ia realizar um estudo minucioso paraaveriguar se o pesquisador da planta patenteadaagiu ou não de má-fé. Se agiu, o registro seránulo, gerando efeitos ex tunc7 Se de boa-fé, anosso entender, não ocorreria nulidade pois,embora o texto legal se refira “dentre as existen-tes”, devemos utilizar de boa hermenêutica einterpretar a expressão como “dentre as conhe-cidas”, adequando o texto do legislador à reali-dade fática e considerando as relações jurídicasrealizadas como atos jurídicos perfeitos.

Como vimos acima, pode-se patentear servivo como um todo ou em partes, neste caso,através de seqüências de DNA. Quando se pa-tenteia através de seqüências de DNA, faz-seum registro de todas as bases nitrogenadas(elementos que o formam), como Adenina,Guanina, Citosina, Timina e Uracila, represen-tado-as por A, G, C, T, U, respectivamente. Cadaseqüência de bases nitrogenadas dá origem auma característica independente. Destarte, épossível a existência de diversas patentes namesma planta, uma para cada característica.

Os direitos abrangem todas as fases da co-mercialização, além da proibição existente paraa reprodução da matéria viva em causa. Deve-se considerar cada fase da comercialização dassementes como uma incidência do fato geradorque dá origem à obrigação de pagar os royalties.Se houver mais de uma característica patentea-da (várias seqüências de DNA), cada fase de-verá pagar royalties a cada detentor do regis-tro e cada comerciante deverá obter a autoriza-ção de todos os detentores para vender o pro-duto.

O royaltie é fixo e, de modo geral, calculadoproporcionalmente ao uso ou exploraçãoquantitativa à produção8. A legislação, todavia,não estipula limites máximos para a cobrançade royalties. Assim, se houver muitas patentes

sobre o mesmo cultivar, cada detentor dapatente poderá cobrar royalties como se fosseo único, gerando um acúmulo no preço final, oque se deve principalmente a ser esta possibi-lidade quase uma exclusividade do sistema depatentes de plantas e, portanto, não previstapelo legislador. Esta situação é possível quandoda patente de seqüência de DNA; o mesmo nãoocorre quando da patente de cultivares, ondesomente há uma patente para toda a planta, acar-retando menor burocracia e menores taxas decessão ou concessão.

Há países que fixam limites para a cobrançade royalties, que normalmente variam de 1% a5%. Mesmo nos países tradicionalmente liberaiscomo a Inglaterra, o limite para fixação daporcentagem é 4%, e houve casos em que ogoverno inglês, na década de 60, obrigoudeterminada empresa a baixar o teto para 2,5%.

Como o sistema de patentes foi elaboradoinicialmente para invenções, proíbe-se a repro-dução do bem protegido. Assim, se Pedroinventa uma máquina de engarrafar vasilhamesde vidro, ninguém poderá confeccionar outraigual ou muito semelhante, sob pena de come-ter um ato ilícito. Como na adaptação ao sistemapara a proteção a plantas não se alterou quasenada, continua a proibição de reproduzir o bemprotegido. Desse modo, o agricultor não poderáfazer novas sementes, ou, caso as faça, já quegrande parte das culturas são autógamas, ouseja, os frutos servem como sementes9, não aspoderá utilizar como tal, sob pena de cometer omesmo crime indicado acima.

Para que qualquer pesquisador possaestudar o bem patenteado, com objetivo demelhorar o produto para novamente colocá-lo àvenda, deve obter a autorização do detentor dapatente. Se houver mais de um, deverá ter aautorização de todos, o que normalmente é feitomediante o pagamento de uma quantia exigidapelo titular da patente. No entanto, se nãohouver intuito de lucro, mas apenas finsdidáticos, como objetivam as universidadesbrasileiras e outras instituições de pesquisa semfins lucrativos, não serão devidos os royalties.

No Projeto de Lei nº 115/93, no SenadoFederal, já se previa, no artigo 43, V e VI, adesnecessidade de permissão do titular dapatente a terceiros quando a utilização for semfinalidade econômica e quando servir como

7 Diz-se que o efeito é ex tunc quando ocorrenulidade de todos os atos desde do início. Assim,todos os contratos com que sabia da condição denulidade são nulos, exceto os realizados com terceirosde boa fé, que devem ser respeitados. O efeito será extunc quando gerar nulidade somente a partir de suadeclaração, preservando as relações jurídicasanteriores.

8 idem, p. 279.

9 Henk Hobelink in O Escândalo das Sementes,revela que 85% das culturas do terceiro mundo sãoformadas a partir dos campos de replantio.

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“fonte inicial de variação ou propagação paraobter outros produtos”. O mesmo ocorrequando terceiros

“utilizem, ponham em circulação oucomercializem um produto patenteadoque haja sido introduzido licitamente nocomércio pelo detentor da patente ou pordetentor de licença desde que o produtopatenteado não seja utilizado para multi-plicação ou propagação comercial damatéria viva em causa”.

Para obter a proteção, faz-se uma requisiçãoao órgão competente. Após a análise dosrequisitos e a sua aprovação, formula-se umcertificado de proteção, que tem os dadosprincipais sobre a patente e o prazo de suaduração. Os campos seguem critérios interna-cionalmente estipulados, respeitando tratadosdos quais o Brasil faz parte.

Após a expedição do certificado, seudetentor poderá negociá-lo, como bem móvelque é. Quando perto do termo final10, poderápedir renovação de seu direito. O prazo parapedido de renovação varia de acordo com alegislação.

3.2. Patentes de cultivares e de microrganismos

O sistema de patentes de cultivares é muitosemelhante ao anterior, por DNA, que, aliás,configura-se como um aperfeiçoamento deste.Difere-se principalmente no fato de que ocultivar é protegido como um todo e não maisem partes, como na patente de seqüências deDNA. O detentor do registro tem direito a todosos royalties referentes ao cultivar, uma vez queele detém todos os direitos referentes aomesmo. Esta modalidade de proteção foi a ini-cialmente pretendida pelo Executivo, quandodo oferecimento do Projeto de Lei nº 824/9111.

Não se patenteia uma característica inde-pendente de uma planta, mas a planta como umtodo, com o conjunto de suas características.

É adotado por poucos países, entre eles oMéxico, através da Lei de Fomento e Proteçãoda Propriedade Industrial. Quando do início dosistema de patentes para a agricultura, na década

de 20, esta modalidade de proteção foi utilizada,embora, como explicamos acima, de modo poucosignificativo, concretizando-se somente nosanos 80, após o julgamento do caso ex partChackhabarty.

No Brasil, foi inicialmente proposto peloExecutivo durante o Governo do PresidenteFernando Collor e teve como relator o DeputadoFederal Ney Lopes (PFL). Contudo, graças àspressões de diversas correntes de centro-esquerda e esquerda do Congresso Nacional,como PT, PSDB, PC do B, PDT e outros, a matériafoi retirada do Projeto de Lei de PropriedadeIndustrial.

Neste sistema seguem-se os mesmoscritérios do anterior, como novidade, origina-lidade, distingüibilidade e utilidade do bem aser protegido.

Com relação aos microrganismos, o Projetode Lei nº 115/93 somente o admite quando omesmo estiver dentro de um processo determi-nado, gerando um produto específico. Nosprimeiros projetos de lei (824/91 e substitutivos),no art. 18 previa-se a patente para um microrga-nismo desde que fosse novo, independente daaplicação prática para a qual pudesse vir a serutilizado, o que pode ser interpretado devido àomissão de maiores requisitos para a conces-são da patente. A conseqüência seria o direitodo detentor do registro sobre qualquer utilidadeprática que se desse ao mesmo, o que seria umainjustiça. Exemplificando, se alguém descobreuma bactéria, mesmo que desconheça suasaplicações seja na indústria de alimentos,cosmética ou qualquer outra, poderia patenteá-la. Um dia, se outro pesquisador, após longaspesquisas, viesse a decifrar suas característicase conseguisse uma aplicação industrial para abactéria, deveria pagar royalties ao detentor dapatente.

Os critérios de estar inserido em umprocesso determinado e gerando um produtoespecífico são utilizados em grande parte nospaíses que aceitam o sistema de patentes paraestes seres. Na Comissão de Constituição eJustiça, aceitou-se uma emenda alterando otexto, considerando patenteáveis os microrga-nismos transgênicos, ou seja, aqueles quetiveram seus códigos genéticos alterados pelohomem.

Todos os demais efeitos do direito conti-nuam, como a necessidade de autorização parao desenvolvimento de pesquisas, de concessãopara venda das sementes, de pagamento de

10 Termo final, neste caso, representa a data deexpiração do prazo da concessão.

11 Deputado Federal Ney Lopes, relator do PL824/91,(que regula direitos e obrigações relativos apropriedade industrial). Entrevista concedida emagosto de 1993.

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royalties a cada comercialização e de repro-dução da matéria viva em causa, ou seja, daformação dos campos de replantio paraformação de novas sementes.

3.3. Legislação de Proteção de Cultivares

No caso da Legislação de Proteção deCultivares ou Direitos de Melhorista, temos umacompleta inversão dos efeitos do registro. Estalegislação é o mais utilizada em todo o mundo,principalmente por não ser uma adaptação feitade um setor econômico para outro, mas umsistema de proteção especialmente criado parao setor de produção de sementes, analisandoseus problemas e necessidades. Entre os paísesque mais a utilizam estão os membros da Comu-nidade Econômica Européia112 Austrália,Argentina, Chile, Uruguai e outros. No Brasil,no mês de agosto de 1995, foi proposto, pelaEmbrapa, Abrasem13 e outras entidades não-governamentais, um anteprojeto de lei, agorana Câmara dos Deputados, e, pelo SenadorOdacir Soares, em uma versão um pouco distintada anterior, o Projeto de Lei do Senado nº 199/95.

Os critérios utilizados para o registro sãomuito semelhantes ao sistema de patentes,quando não os mesmos. Basicamente, a varie-dade deverá ser nova e original, ou seja, não tersido posta à venda ou não ser de domíniopúblico e não haver nenhum registro anteriorda mesma. A variedade não pode ter sido colo-cada à venda nos últimos 24 meses, embora esteprazo varie para cada país e para cada variedade,observando-se principalmente se é perene,semi-perene etc.

Também se exige a distingüibilidade, homo-geneidade e estabilidade14 Será distinguívelquando for claramente distinta das demaisconhecidas, quando da data de pedido deregistro. Evita-se assim, além dos problemasdestacados acima, com o uso da expressão “exis-tentes na natureza” presente em algumas legis-lações de patentes, o melhoramento cosmético.Importante ressaltar que o melhoramentocosmético, fraude biotecnológica ou simples-

mente “maquiagem” como preferem alguns,ocorre quando um outro pesquisador ou grupoeconômico, distinto do detentor do registro,altera pontos insignificantes da planta, mas que,por ser distinta, pode ser protegida, possibili-tando ao novo detentor do registro comerci-alizar livremente a variedade, independente delicenças do titular do registro da planta originale com custos de pesquisa muito inferiores aodaquele.

Dessa forma, há uma série de descritores,que são estipulados pelo órgão controlador,visando caracterizar ao máximo possível as qua-lidades da planta. Deverá haver um númerosignificativo de descritores diferentes da plantaoriginal sob pena de não ser possível o registro.

Será homogênea quanto às suas caracte-rísticas ao longo de suas gerações. Será estávelquando, ao longo dos seus ciclos reprodutivos,não sofrer alterações genéticas significativas,mantendo suas características principais, comdescritores estáveis, ou seja, mantendo suahomogeneidade. Caso a planta sofra alteraçõessensíveis, não há porque manter a proteção,pois, basicamente, estar-se-ia protegendo outraplanta.

O órgão controlador é vinculado, normal-mente, ao Ministério da Agricultura e não aoMinistério da Indústria e Comércio, como nocaso do sistema de patentes. Utiliza-se oMinistério da Agricultura devido à sua maiorinserção no setor econômico objetivado, parao possível fomento à utilização do registro15 eainda para controle mais efetivo dos pagamentosdos direitos.

O retorno do capital investido advém, comono sistema de patentes, da comercialização doproduto, que é um direito do seu titular, emborapossa conceder de forma gratuita ou onerosa aterceiros. Contudo, os direitos somente sãodevidos quando da comercialização dassementes protegidas ao agricultor, não dediversas fases, como no sistema de patentes.

Em cada país, são notáveis algumasdiferenças com relação a quem deve ou nãopagar os royalties. Inicialmente criados naInglaterra e hoje consagrados em toda a Comu-nidade Européia, os pequenos agricultores nãoprecisam pagar os direitos de royalties, o quese configura como um incentivo indireto do

12 A matéria é normatizada pelo Regulamento8.167/94 do Conselho Europeu.

13 ABRASEM significa Associação Brasileira dasEmpresas Produtoras de Sementes.

14 No Brasil o teste de Distinguibilidade, Homo-geneidade e Estabilidade é conhecido como DHE.

15 Entrevista com Elmar Wagner. Assessor doSecretário de Políticas Agrárias do Ministério daAgricultura. Entrevista realizada em 09/09/94.

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Estado ao pequeno agricultor. As definiçõesde quem é ou não pequeno agricultor estão noRegulamento nº 8.167/93 do Conselho Europeu.

É permitida a livre circulação da sementeprotegida quando o fim for a realização depesquisas, ainda que realizadas por empresascom fins lucrativos, sendo desnecessária aautorização do detentor do registro, o que nãoocorre com o sistema de patentes.

Também de modo distinto ao sistema depatentes é possível a formação de campos dereplantio para sementes, uma vez que não seproíbe a reprodução da matéria viva em causa.Assim o agricultor poderá comprar uma semen-te protegida, plantá-la e utilizar os melhoresgrãos de sua safra como sementes para opróximo plantio.

4. Perspectivas sócio-econômicas da adoçãode cada modalidade de proteção

Com base nas experiências dos demaispaíses que adotam legislações referentes àproteção intelectual de produtos vegetais e demicrorganismos e suas posições no cenáriosócio-econômico mundial, procuramos traçar asconseqüências da adoção de cada legislaçãoem âmbito nacional. Assim, procuramos obter,de maneira lógica, os resultados esperadosindividualizando cada modalidade de proteção.

4.1. Patentes de seqüências de DNA

Como vimos acima, esta forma de proteçãofoi uma adaptação de um sistema previamenteelaborado para proteger inventos e marcasindustriais para uma realidade totalmentedistinta e que, por isso, traz uma série de conse-qüências indesejáveis.

Do ponto de vista do primeiro pesquisador,o sistema de proteção por patentes oferecediversas vantagens, uma vez que, para muitosatos na cadeia de pesquisa, produção e comer-cialização de sementes, será necessária suaautorização e, portanto, será possível obter umrápido retorno do capital investido com umaboa margem de lucro.

Como se protege uma determinada cadeiade DNA, responsável por uma característicadeterminada da planta, é possível a existênciade várias patentes na mesma planta. Exemplifi-cando, imaginemos que Paulo, melhoristavegetal no Rio Grande do Sul, descubra uma

seqüência de DNA que seja responsável pelamaior resistência do feijão a determinada praga.Se Pedro, outro melhorista vegetal, quiserutilizar a variedade de feijão de Paulo paradesenvolver pesquisas objetivando aumentarsua produtividade, deverá ter autorização dePaulo. Se obtiver êxito e o agricultor quiserplantar a variedade, somente poderá fazê-lopagando royalties aos dois, e assim por diante.

Do ponto de vista do agricultor, o sistematambém oferece desvantagens. Além doacúmulo de royalties, o que eleva o preço dasemente, não é permitido utilizar os frutosobtidos na própria safra como sementes para oplantio seguinte, o que é conhecido por camposde replantio, pois proíbe-se expressamente areprodução da matéria viva em causa. Assim, acada safra o agricultor é obrigado a recorrer aomercado para nova compra de sementes, o queacarreta, em nível mundial, um incremento noscustos da produção agrícola de U$ 6 bilhões16.

Como imaginar que seja possível controlaros agricultores brasileiros, muitas vezesisolados e sem assistência alguma, que possamser fiscalizados se estão ou não formandocampos de replantio? Ou ainda, como conven-cer que uma técnica que o agricultor utilizadesde que nasceu, a partir deste momento, éilícita, sujeita a sanções? Pensamos que sejaimpossível na realidade nacional.

Com relação ao consumidor final, tambémhaverá prejuízos, pois, com o acúmulo deroyalties, o aumento dos custos para a produ-ção agrícola e o aumento da burocracia para odesenvolvimento de novas pesquisas, haveráum aumento dos preços dos produtos, a curtoprazo, sem grande melhoria na qualidade eprodutividade dos produtos agrícolas.

Por estes motivos, consideramos o sistemade patentes de seqüências de DNA nãoindicado para fomentar o desenvolvimentonacional.

4.2. Patentes de Cultivares

O Sistema de Patentes de Cultivares,basicamente, tem o mesmo fundamento daspatentes de seqüências de DNA. Contudo, nãose protegem características da planta, mas sima planta como um todo.

Como não há a possibilidade de se patentearvárias características simultaneamente, não é

16 HOBELINK, Henk. O Escândalo dasSementes. Nobel, 1987.

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possível existirem várias patentes na mesmaplanta, o que garante somente um titular paracada variedade. Deste modo, torna-se mais fácila concessão de licença para o desenvolvimentode pesquisas, a circulação do conhecimento nacomunidade acadêmica e a própria comercia-lização do produto.

Contudo, as patentes de cultivares trazemtodos os vícios de um sistema de patente naárea agrícola. Será necessária autorização dotitular do registro para o desenvolvimento denovas variedades mais produtivas, mais resis-tentes; continuam proibidos os campos dereplantio para formação de sementes, elevandoos custos da produção agrícola, como vimosacima, além de onerar sensivelmente o consu-midor final, que, por ser o último da cadeia decomercialização, acaba por absorver todos oscustos de produção.

4.3. Legislação de Proteção de Cultivares

A Legislação de Proteção de Cultivares,como vimos nos itens anteriores, difere-sesubstancialmente dos sistemas de patentes. Aocontrário daqueles, onde se adaptou umamodalidade de proteção industrial, inicialmenteelaborada para máquinas, a uma realidadecompletamente distinta, aqui temos uma formade proteção criada especialmente para o setoragrícola.

Como há participação do melhorista vegetalna comercialização do produto, através dacobrança de direitos, haverá retorno do capitalinvestido e conseqüente estímulo à realizaçãode novas pesquisas, colaborando com odesenvolvimento tecnológico nacional.

Não existe proibição à reprodução da matériaviva em causa, aliás, nos textos referentes à pro-teção de cultivares, normalmente vem expressaa possibilidade de o agricultor utilizar os frutosde sua safra como sementes para formar oscampos de replantio. Assim, não haveráaumento dos custos agrícolas, como nossistemas de patentes.

Não há restrições à circulação do conheci-mento entre a comunidade científica. Qualquerpesquisador poderá fazer melhoramentos naplanta protegida, mesmo se com finalidadecomercial. Contudo, para protegê-la novamente,a nova planta deverá ser distinta da original emaspectos significativos, o que visa coibir o“melhoramento cosmético”.17 Os direitos ficam

entre 2% e 7%, conforme a variedade vegetal18.Desse modo, o consumidor não será

onerado sensivelmente, e a curto prazo, com oestímulo às pesquisas, tem-se variedades maisresistentes, que necessitam de menos agrotó-xicos, e mais produtivas, melhorando a quali-dade e reduzindo os preços para o consumidorfinal.

Sendo assim, consideramos esta forma deproteção altamente positiva para o cenáriobrasileiro, uma vez que fomenta as pesquisas,gera produtos melhores e mais baratos, estimulaa produção agrícola, ou seja, promove o desen-volvimento nacional.

4.4. Patentes de microrganismos

A questão do patenteamento de micror-ganismos, a nosso ver, foge da seara ética,sendo uma questão quase totalmente do âmbitoeconômico. O Brasil, há muito, deixou de travardisputas filosóficas com relação ao tema juntoàs fontes de pressão para a aprovação damatéria.

Como bem demonstra o Professor DouglasGabriel Domingues,19 o Brasil é um país relati-vamente atrasado, se compararmos com ospaíses desenvolvidos, na área biotecnológica,muito devido à falta de verbas para pesquisas etreinamento de profissionais. Assim, com aadoção de um sistema de patentes para estesetor, teremos amplo domínio das multina-cionais, concedendo-lhes monopólios paraexploração, o que prejudicará a livre circulaçãodo conhecimento em âmbito nacional.

Por outro lado, o não-patenteamento acar-retará a sobretaxação das exportações brasi-leiras, em destaque para os Estados Unidos,trazendo grandes prejuízos para o setor decalçados e suco de laranja, principalmente.

Com base nesta relação custo/benefício é

17 Melhoramento cosmético é uma expressão

utilizada para designar um tipo de fraude ocorrida naárea biotecnológica. Um terceiro modifica pontosinsignificantes na planta protegida e protege sua novaplanta, podendo comercializá-la livremente. Comonão teve grandes gastos com pesquisas, poderávender seu produto a um preço inferior, prejudicandoo verdadeiro pesquisador, detentor do registro inicial.

18 Dr. Márcio Miranda (CENARGEN). Entre-vista realizada em julho de 1995.

19 DOMINGUES, Douglas Gabriel. Privilégiosde invenção, engenharia genética e biotecnologia.Rio de Janeiro : Forense, 1989. p. 221.

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que vem sendo negociada a aprovação ou nãodo Projeto de Lei de Patentes, e, pelo decorrerdos fatos, percebemos que o Executivo, desdeo Governo de Fernando Collor de Melo,passando por Itamar Franco e mesmo o deFernando Henrique Cardoso, vem preferindo opatenteamento às perdas nos demais setoresda economia.

Europeu. Regulamento 8.167/94.DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasi-

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COMUNIDADE Econômica Européia. Conselho

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219Brasília a. 33 n. 130 abril/jun. 1996

A exploração dos serviços de telecomunicaçõesna Constituição brasileiraInterpretação da Emenda Constitucional nº 8 de 1995

Gaspar Vianna é Advogado e Membro Efetivodo Instituto dos Advogados Brasileiros.

GASPAR VIANNA

A Emenda Constitucional nº 8, de 15 deagosto de 1995, que altera a Constituiçãobrasileira no tocante à competência para aexploração de serviços de telecomunicações,tem o seguinte teor:

“Art. 1º O inciso XI e a alínea a doinciso XII do artigo 21 da ConstituiçãoFederal passam a vigorar com a seguinteredação:

‘Art. 21. Compete à União:......................................................................

XI - explorar, diretamente ou medianteautorização, concessão ou permissão, osserviços de telecomunicações, nostermos da lei, que disporá sobre a orga-nização dos serviços, a criação de umórgão regulador e outros aspectos insti-tucionais;

XII - explorar diretamente ou medi-ante autorização, concessão ou permis-são:

a) os serviços de radiodifusão sonorae de sons e imagens;

Art. 2º É vedada a adoção de medidaprovisória para regulamentar o dispostono inciso XI do artigo 21 com a redaçãodada por esta emenda constitucional.”

A leitura desta Emenda Constitucionalevidencia, desde logo, que a exclusividadeconferida à União para explorar todo e qualquerserviço de telecomunicações continua a existir.O “monopólio constitucional” (como de formaimprópria e simplista alguns preferem chamar)não acabou. O direito à exploração de serviçosde telecomunicações permanece sendo daUnião que, se desejar, e só se desejar, poderádividi-lo com terceiros. Se isto ocorrer, isto é, se

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a União vier a delegar a terceiros a exploração dealguns de seus serviços, ou de todos os seusserviços, isto não significará que ela tenha perdi-do o direito de, simultaneamente, explorá-los.

O que se convencionou chamar de “mono-pólio” continua e continuará a existir, enquantopermanecerem em vigor o Código Brasileiro deTelecomunicações de 1962 e a atual política deexploração dos serviços públicos de telecomu-nicações, introduzida pela Lei nº 5.792 de 1972.A Emenda Constitucional não revogou umúnico artigo sequer destas duas leis. Para fazê-lo, elegeu, com clareza, um instrumento ade-quado: a nova Lei Regulamentar das Teleco-municações Brasileiras. Enquanto este ato nãoexistir, as leis e a política que elas introduzemcontinuarão em vigor.

Houve, apenas, a desconstitucionalizaçãoparcial da matéria. Em outras palavras, a exclu-sividade até então reservada à União para, dire-tamente ou por empresas sob controle acionárioestatal, explorar serviços públicos essenciais(dentre os quais os telefônicos, telegráficos ede transmissão de dados) deixou de ser matériaconstitucional. Agora, estes serviços, comoquaisquer outros, poderão continuar a serexplorados pela União, mas também poderãoser delegados à iniciativa privada, medianteconcessões, permissões ou autorizações.

A Emenda Constitucional poderia dizerapenas isto, repetindo a redação que foraadotada pela Constituição de 1967 e mantidapelo texto de 1969, verbis:

“Art. 8º Compete à União:................................................................XV - explorar, diretamente ou medi-

ante autorização ou concessão:a) os serviços de telecomunicações.”

Caso acolhesse esta redação sintética egenérica, o Congresso Nacional estaria consa-grando, com pequenas alterações formais, aproposta de emenda constitucional que lhe foraencaminhada pelo Poder Executivo.

Entendeu, todavia, o Poder Legislativo quea “flexibilização” do texto constitucional nãopoderia ser feita nos termos incondicionaissolicitados. Se, por um lado, o Parlamentopermitiu que, na organização dos serviços detelecomunicações, a participação da empresanão-estatal pudesse vir a ser ampliada, poroutro lado, exigiu que esta maior participa-ção passasse a obedecer a um conjunto decondições.

A primeira condição é de que qualquer

mudança no regime jurídico hoje vigente se faça“nos termos da lei”. “Etimologicamente – ensinaDe Plácido e Silva em seu Vocabulário Jurídico– ‘termo’ assinala os pontos em que se limitam,ou em que terminam as coisas, para que se fixemas condições, as determinações, as imposições,que as demarcam e as governam” (op. cit., Riode Janeiro: 1. ed. Forense, 1963. V. 4, p. 1538).Logo, quando se diz que determinada ação deveser desenvolvida “nos termos da lei”, pretende-se dizer que, para ter legitimidade, ela deverárespeitar a forma, as condições, a sistemáticaestabelecida na lei.

Segundo o Dicionário de Direito editadopela Academia Brasileira de Letras Jurídicas, aexpressão “nos termos da lei”, embora possaparecer redundante, é de larga utilização emDireito Constitucional e tem o propósito deretirar a auto-executoriedade de uma dispo-sição, subordinando expressamente a suaeficácia às condições que vierem a ser estabe-lecidas pelo Poder Legislativo. O seu uso,portanto, transforma uma norma de eficáciaplena em norma de eficácia contida, isto é, quesó passa a ter aplicação prática depois que fordevidamente regulamentada.

O artigo 21, inciso XI, letra a da Constituiçãobrasileira, agora com a nova redação que lhedeu a Emenda Constitucional nº 8 de 1995, énovo alicerce sobre o qual deverá ser construídoum novo “prédio”: a nova política nacional detelecomunicações. O “primeiro andar” deste“prédio” é a nova Lei Regulamentar das Tele-comunicações Brasileiras. Só que este andarainda não existe.

O Poder Executivo, como é acaciano, apenasexecuta. Ele existe para transformar em açãoadministrativa o que a lei determina. AoExecutivo compete executar as políticas exis-tentes, elaborando para este fim planos de açãoou planos de metas, nos quais estabeleceprioridades, fixa prazos, aloca recursos huma-nos e financeiros e fiscaliza a execução. Conse-qüentemente, ele não tem competência paralegislar, formulando políticas públicas. Damesma forma que ninguém pode subir a esca-daria de um prédio e chegar ao terceiro andarsem antes passar pelo segundo andar, não éadmissível que o Presidente da República expeçaum decreto executivo, ou que um Ministro deEstado edite uma instrução de serviço (porta-ria) para assegurar a fiel execução de uma leisem que esta lei exista.

Portanto, ainda que de forma redundante,mas para evitar qualquer dúvida quanto ao seu

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firme propósito de estabelecer, ele próprio, ostermos (a extensão e a profundidade) da “flexi-bilização” das telecomunicações, o povo brasi-leiro, por seus representantes, julgou indispen-sável incluir no texto da Emenda Constitucionalque a reforma institucional do setor terá de serfeita “nos termos da lei”, negando, assim,expressamente, o “cheque em branco” que haviasido solicitado pelo Poder Executivo.

A Emenda Constitucional define, comclareza, a forma e o conteúdo da nova lei dastelecomunicações brasileiras. A forma: uma leinova, o que elimina a idéia de aproveitar leispretéritas. E uma lei ordinária, o que afasta, deum lado, os rigores da lei complementar e, deoutro, as facilidades da medida provisória.

Se a Emenda Constitucional proíbe, expres-samente, em seu artigo 2º, a edição de medidaprovisória para a definição do novo regime jurí-dico das nossas telecomunicações, é indiscu-tível que tal regulamentação, por razões aindamais consistentes, não pode ser feita por meiode atos administrativos, como os decretos exe-cutivos e as instruções de serviço (portariasministeriais). Portanto, a edição de qualquer ato“regulamentar” ou “normativo” que não sejauma lei de natureza ordinária estará maculadade inconstitucionalidade.

Quanto ao conteúdo, a desconstituciona-lização está condicionada ao balizamento a serestabelecido por uma lei geral, o que afasta,conseqüentemente, a idéia de leis parciais, tem-porárias ou mínimas. O novo inciso XI do arti-go 21 da Constituição, após exigir que qualquerconcessão, permissão ou autorização somenteseja outorgada “nos termos da lei”, dá conti-nuidade ao texto, acrescentando-lhe uma vírgulae o pronome relativo “que”, introduzindo umaoração subordinada.

Vejamos, então, o que isto significa.A oração subordinada – sabe-se – funciona

“como termo de outra oração” (CUNHA, Celso.Gramática do Português Contemporâneo. 9.ed. Rio de Janeiro : Padrão, 1981. p. 404). Nestecaso, como termo de uma oração principal eintroduzindo “termos essenciais”, que sãocomandados pelo verbo dispor.

Dispor, ensina o Novo Dicionário daLíngua Portuguesa, de Aurélio Buarque deHolanda Ferreira, vem do latim disponere e,como verbo transitivo direto, significa estabe-lecer regras, estatuir normas de conduta, reco-nhecer direitos e impor obrigações. Empregadona 3ª pessoa do singular do futuro do presente

– disporá – e tendo como sujeito da oração alei, não deixa dúvidas quanto ao aspecto impo-sitivo e imediato da obrigação de fazer.

O emprego da oração subordinada adjetivaexplicativa encerra naturalmente um motivo, elaali está inserida por uma razão. E esta razão éclara: fica-se sabendo que a nova lei não poderáser uma lei qualquer. A oração esclarece que anova lei “disporá” (logo, não é uma faculdade,mas sim uma obrigação, uma exigência, umacondição) sobre “aspectos institucionais” (noplural, logo, mais de um). E, dentre outros, forammencionados, a título de exemplo, dois aspectos,a saber, um de natureza técnica (a “organizaçãodos serviços”) e o outro de natureza adminis-trativa (a criação de um “órgão regulador”).

Organizar é colocar em ordem. Organizarserviços de telecomunicações é ordenar, enqua-drar, fazer a distribuição de competências, ouseja, dividir o enorme “bolo” chamado serviçosde telecomunicações em “fatias”, destinandocada uma delas aos diferentes “comensais”.

A exploração de todos os serviços de tele-comunicações, sem exceção, compete à União.E quem fala em nome da União, quem legislasobre telecomunicações, é o Congresso Nacio-nal. Logo, esta tarefa de “divisão do bolo” ouenquadramento dos serviços em grupos ématéria de lei. Dela é a missão de definir, emprimeiro lugar, as “fatias do bolo” que serãoreservadas para consumo direto e exclusivo dasforças armadas, ministérios, autarquias ouempresas estatais da União. Só a lei poderáconceituar e estabelecer os limites do SistemaNacional de Telecomunicações e definir ogrupo de serviços que é considerado funda-mental para o desenvolvimento, segurança edefesa nacionais.

Da mesma forma, é responsabilidade da leiindicar as “fatias do bolo” que serão entreguesà iniciativa privada, através de concessões. E édela, também, a missão de definir em que casosse recomenda o regime concorrencial e em quecasos o regime de exclusividade deve sermantido. Finalmente, só a lei pode dizer quaisserviços serão delegados por permissão e quaisserão delegados por simples autorização de uso.

Como se vê, esta é uma tarefa das maisdifíceis, que envolve muita polêmica, muitosinteresses econômicos e até políticos. Talvezeste seja o ponto central da nova Lei Regula-mentar das Telecomunicações Brasileiras. Aorganização dos serviços envolve tambémquestões estratégicas a serem definidas, tais

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como dar resposta às seguintes perguntas: quempoderá explorar a telefonia celular? O serviçoserá explorado sob o regime de duopólio, entredois competidores em uma mesma área de ope-ração? A competição será entre uma empresaestatal e uma empresa privada? Como a leipoderá assegurar a interiorização do serviço? Ea “fatia” das comunicações por satélite, a quempoderá ser entregue? Sob que condições?

Interessa, pois, aos próprios empresários einvestidores que esta matéria – “organizaçãodos serviços” – seja tratada com profundidadee seriedade pelos agentes competentes – osparlamentares – e através do instrumento apro-priado – a lei. Ninguém de boa-fé fará investi-mentos substanciais a médio ou longo prazono Brasil com base em solo instável e alicercesfrágeis como decretos executivos e portariasministeriais. Estes atos administrativos podemser revogados ou inteiramente alterados,bastando para tanto apenas a vontade e ohumor dos eventuais ocupantes do PoderExecutivo. Esta preocupante fragilidade aumentaainda mais quando se sabe que este mesmoPoder Executivo é parte interessada nesteenquadramento dos serviços em grupos, umavez que ele próprio explora inúmeros serviçosde telecomunicações.

A “organização dos serviços” é talvez o maisimportante dentre os múltiplos “aspectos insti-tucionais” a serem tratados na nova Lei Regu-lamentadora, a exemplo do que já fizera em 1962o Código Brasileiro de Telecomunicações.

A exigência constitucional de “criação deum órgão regulador” decorreu da generalizadainsatisfação com a ilegítima e insatisfatória auto-investidura do Poder Executivo nas funções deórgão regulador. Agride a lógica que um mesmopoder explore serviços e, ainda, edite normasregulando a exploração destes mesmos servi-ços. É evidente que as funções de execuçãodevem ser separadas das funções de normati-zação.

Se o povo brasileiro, por seus represen-tantes, estivesse satisfeito com a ação normativadesenvolvida pelo Poder Executivo, sequerteria a lembrança de criar um órgão paraestabelecer normas regulatórias sobre teleco-municações.

A edição de portarias e outros atos admi-nistrativos aprovando “normas técnicas” que,na verdade, simulavam a edição de verdadeirosatos regulamentares de serviços de telecomu-nicações foi tolerada até 1988. Todavia, a partir

da Constituição brasileira, tal prática tornou-seflagrantemente inconstitucional. Afinal, ins-creve nossa Carta Magna, só o CongressoNacional pode dispor, editar atos normativos,enfim, legislar sobre telecomunicações (Cons-tituição, art. 22, inciso IV).

Por ser assim, o “órgão regulador” nãopoderá ser um apêndice da burocracia doMinistério das Comunicações ou da Presidênciada República, sob pena de inconstituciona-lidade. Tudo continuaria igual – exatamente oque a Constituição quis banir. Haveria umadesconformidade entre os fins que a Consti-tuição buscou alcançar e o texto da LeiRegulamentar.

O “órgão regulador” deverá ser necessaria-mente um agente especializado do PoderLegislativo. E a lei, ao instituí-lo, poderá criarum sistema regulador inovador e fecundo, quepropicie, a um só tempo, competência profis-sional, legitimidade e rápida resposta normativaàs exigências das novas tecnologias. A leipoderá incumbir o órgão regulador da tarefa deelaborar os regulamentos de serviços destina-dos a assegurar a sua fiel execução. Tais atosnormativos seriam aprovados por decretoslegislativos. A lei poderá, ainda, reconhecercompetência ao órgão regulador para editarnormas técnicas complementares aos referidosdecretos. Legítimos, porque emanados de umagente especializado do próprio Poder Legis-lativo, tais atos terão eficácia externa e, comotal, deverão ser compulsoriamente observadospor toda a sociedade brasileira.

O Poder Executivo não perderia, obviamente,a sua competência constitucionalmente reco-nhecida de editar atos de eficácia interna, istoé, destinados apenas aos órgãos da adminis-tração direta e indireta, como as instruções deserviço (portarias) ministeriais e os decretos doPresidente da República.

Impõe-se, igualmente, definir qual a compo-sição e competência deste órgão e, sobretudo,se ele substituirá o Ministério das Comunica-ções (que deixaria de existir), assumindo asfunções executivas de outorga e fiscalização,ou se ele coexistirá com aquele Ministério,ficando apenas com funções regulatórias(hipótese em que o Ministério das Comunica-ções continuaria a existir, mas apenas com asfunções executivas de outorga e fiscalização).

Qualquer que seja a competência do novoórgão, parece ser apropriado que seus conse-lheiros (comissários ou qualquer que venha a

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ser a designação de seus membros) sejam indi-cados pela sociedade civil, por processos ecritérios que a lei indicará – o que, evidente-mente, elimina a simples nomeação ou escolhapessoal do Presidente da República.

Como nenhuma lei tem palavras ou expres-sões inúteis, e muito menos a Lei Constitucional,a Lei Regulamentar disporá (logo, obrigatoria-mente, e não facultativamente) sobre outrosaspectos institucionais.

O que são “aspectos institucionais”?“Aspectos” são ângulos, assuntos ou

matérias relativas às instituições, as quais sãodefinidas no Repertório Enciclopédico doDireito Brasileiro, organizado por J. M. deCarvalho Santos, como sendo o “conjunto deregras estabelecidas, quer pelo legislador, querpelos particulares, em vista da satisfação deinteresses coletivos ou privados”. (Rio deJaneiro : Borsoi, v. 27, p. 241.)

Segundo De Plácido e Silva, em seu sempreconsultado Vocabulário Jurídico , o termo “ins-titucional” exprime “o sentido de fundamental,orgânico, vital, necessário, indispensável” . Ecompleta:

“Regras, fatos ou formalidades insti-tucionais entendem-se as que se regis-tram ou se anotam como fundamentais,vitais, ou indispensáveis à legitimidadeda instituição a ser estabelecida ou a serformada.” (op. cit., v. 2, p. 840)

À vista destes conceitos, chega-se mais umavez à conclusão que a nova lei regulamentarexigida pela Constituição Federal para as tele-comunicações brasileiras não poderá ser umalei ordinária e parcial. Necessariamente há deser extraordinária e abrangente, pois deverádispor sobre o conjunto de princípios e regrasindispensáveis para a satisfação dos interessescoletivos e privados no que diz respeito àutilização de telecomunicações. E o termo“utilização” é empregado aqui em sua significa-ção gramatical mais ampla. Significa não só asserventias que se destinam ao público em geral,como aquelas que buscam suprir as necessi-dades de uma determinada coletividade,empresa ou indivíduo. Abrange a exploraçãodas potencialidades das telecomunicações porempreendimentos comerciais, bem como porindivíduos e entidades que não visam ao lucro,mas apenas à satisfação de suas necessidadesde intercomunicação. Portanto, utilização a qual-quer título, eventual ou permanente, gratuitoou oneroso, para satisfação de necessidades

próprias ou de terceiros.Portanto, para a Lei Constitucional, são

considerados “aspectos institucionais” todasas regras jurídicas ou formalidades legais que,em maior ou menor proporção, integram oregime jurídico de exploração de serviçospúblicos de telecomunicações. Desta forma,novas concessões e permissões para a explo-ração de serviços públicos de telecomunicaçõessó poderão ser delegadas após a entrada emvigor da nova lei regulamentar que disponhasobre tal matéria.

Além dos dois “aspectos institucionais”exemplificados no texto constitucional – o“órgão regulador” e a “organização dosserviços” –, quais são as outras matérias denatureza institucional que deverão ser expres-samente tratadas na lei regulamentar?

A Constituição brasileira responde a estapergunta. Em seu artigo 175, a Carta Magnaincumbiu o Poder Público da responsabilidadede prestar todos os serviços públicos –inclusive os de telecomunicações. Para desin-cumbir-se de tal responsabilidade, o PoderPúblico foi autorizado a agir de duas maneiras:diretamente, lançando mão de seus própriosrecursos, ou indiretamente, lançando mão derecursos da iniciativa privada.

Caso o Poder Público opte por esta segundahipótese, deverá seguir fielmente um modeloinstitucional específico, denominado regimejurídico das concessões e permissões para aexploração dos serviços públicos. Aindasegundo a nossa Constituição, este modelodeverá ser instituído por lei. O parágrafo únicodo citado artigo 175 enumera alguns itens(aspectos) que compõem o modelo institu-cional a ser fiel e necessariamente observado.São eles:

a) o caráter especial do contrato de conces-são e do termo de permissão, aí incluídas asquestões relativas à transferência da outorga eoutras cláusulas essenciais;

b) as condições a serem cumpridas peloprestador do serviço para obter do PoderPúblico a prorrogação do contrato de concessãoou permissão;

c) as formas de extinção da concessão, taiscomo a caducidade, a rescisão, a encampação eo advento do termo contratual;

d) a fiscalização dos serviços concedidosou permitidos (indicação do órgão fiscalizador,

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sua competência e seus recursos humanos emateriais);

e) os direitos e obrigações dos usuários edo prestador do serviço;

f) a política tarifária, estabelecendo o meca-nismo que assegurará ao prestador do serviçoobter a verba necessária para cobrir os custosde operação, a justa remuneração do capitalinvestido e a expansão e o melhoramento dosserviços prestados à sociedade;

g) a obrigação de manter serviço adequado;h) as características peculiares das licita-

ções, tais como condições de participação,elaboração do edital, sua publicidade, documen-tação para habilitação e critérios para o julga-mento.

A Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995,que dispõe sobre o regime de concessão epermissão da prestação de serviços públicos,regulamentando o artigo 175 da ConstituiçãoFederal, trata de todas estas matérias institu-cionais acima enumeradas. Em princípio, todosos serviços públicos concedidos ou permitidosestariam sujeitos ao regime introduzido por estalei geral.

Para reforçar este entendimento e eliminarqualquer tentativa de interpretação que exclu-ísse este ou aquele setor do campo de abran-gência da Lei nº 8.987, o Presidente daRepública, no mesmo dia 13 de fevereiro de 1995em que sancionou a referida lei, editou a MedidaProvisória nº 890 que, já em seu artigo 1º, enu-merou vinte e duas atividades que se sujeita-riam ao novo regime. Dentre elas, expressamente,no inciso III, constava “telecomunicações, nostermos do inciso XI do artigo 21 da Consti-tuição”.

Ocorre que houve precipitação. A referidaMedida Provisória foi examinada pelo Con-gresso Nacional, com vistas a sua conversãoem lei, antes da promulgação da EmendaConstitucional nº 8, de 1995. Logo, naquelemomento, em julho, o inciso III do artigo 1º erade uma inconstitucionalidade aberrante: comosubmeter as “telecomunicações, nos termos doinciso XI do artigo 21 da Constituição”, aoregime de concessões à iniciativa privada se,naquele momento, tais serviços ainda eramexclusivos das empresas sob controle acionárioestatal?

Para evitar que este detalhe, relativo apenasao setor de telecomunicações, tornasse incons-titucional a lei que surgiria como resultado daconversão da Medida Provisória nº 890, bem

como para compatibilizar o texto da nova lei como da Emenda Constitucional que entraria emvigor, desenvolveu-se uma ampla negociaçãoentre o Executivo e os partidos de oposição.

A solução encontrada foi simples: osserviços de telecomunicações foram expressa-mente excluídos da enumeração de serviços eobras públicas que se sujeitam à Lei nº 8.987,de 13 de fevereiro de 1995. Para tanto, a novalei, que recebeu o número 9.074, de 7 de julhode 1995, ao ser decretada pelo CongressoNacional, retirou de seu artigo 1º o inciso quecolocava os serviços de telecomunicaçõesdentre aqueles sujeitos ao regime jurídicoinstituído por aquelas duas leis.

E, se alguma dúvida ainda existisse quantoa esta exclusão, bastaria ler dois outros artigosda Lei nº 9.074. O artigo 2º proíbe, a partir dasua vigência (8 de julho de 1995), a outorga denovas concessões e permissões “sem lei quelhes autorize e fixe os termos” (logo, novas con-cessões e permissões para serviços de teleco-municações não obedecerão aos termosprevistos naquelas leis gerais e terão deobedecer aos termos de uma lei específica detelecomunicações). Por outro lado, o artigo 26excetua os serviços de telecomunicações dareestruturação dos serviços concedidos nosmoldes previstos por tais leis gerais (logo, talreestruturação deverá ser feita também nostermos da lei específica de telecomunicações).

Como se vê, antes mesmo da vigência daEmenda Constitucional nº 8, de 1995 (16 deagosto), a organização dos serviços de teleco-municações (regulamentação da outorga deconcessões e permissões) já estava condicio-nada à edição de uma nova lei específica paralhes autorizar e fixar todos os aspectos institu-cionais (e não apenas alguns deles).

Portanto, a nova Lei Regulamentar dasTelecomunicações Brasileiras, a exemplo doque já fizera há mais de trinta anos o CódigoBrasileiro de Telecomunicações, terá de disporobrigatória e especificamente sobre todos osaspectos institucionais que, devidamentesistematizados, formam o regime jurídicopeculiar às concessões e permissões para aexploração de serviços públicos de telecomu-nicações.

Além de dispor sobre as matérias institu-cionais a que se referem os artigos 21, incisoXI, letra a, e 175 da Constituição Federal, a LeiRegulamentar deverá dispor ainda sobre outrasmatérias de idêntica natureza, só que não

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expressamente citadas naqueles dispositivos.São matérias hoje tratadas nas leis em vigor eque, por absolutamente inadequadas, precisamser atualizadas, isto é, não podem continuar avigorar simultaneamente com o novo modeloinstitucional a ser implantado com a Lei Regu-lamentar. Estas matérias são as seguintes:

a) infrações e penalidades administrativasa que estarão sujeitas as empresas privadas que,por força da “flexibilização” autorizada pelaEmenda Constitucional, poderão passar àcondição de concessionárias e permissionáriasde serviços públicos essenciais de telecomuni-cações. A matéria, hoje tratada no Código deTelecomunicações, alterado pelo Decreto nº 236,de 1967, de inspiração autoritária e editado du-rante a República Militarista, está absoluta-mente inadequada ao Estado de Direito e,sobretudo, aos novos tempos anunciados detelecomunicações globais e de regime competi-tivo;

b) crimes de telecomunicações, tais como ocrime de violação de telecomunicações e o crimede instalação ou utilização não-autorizada deestação ou equipamento de telecomunicações,hoje tratados insatisfatória e inadequadamenteno Código de Telecomunicações de 1962;

c) reestruturação do Sistema Telebrás –STB, tendo em vista a exclusão a que se refere oartigo 26 da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995 (oSTB continuará como está ou será reestrutu-rado? A empresa holding continuará a existir,com um novo objetivo social, ou será extinta?Quais as transformações jurídicas que a leireservará à Embratel? E quanto às demaisempresas estaduais do Sistema Telebrás, serãotransformadas em empresas regionais? Por queprocesso?);

d) política de exploração de serviços detelecomunicações por satélite – trata-se dematéria estratégica para qualquer país, espe-cialmente para aqueles de dimensão continentale grande contingente de miseráveis como oBrasil. A matéria sugere uma profunda reflexãoem torno das potencialidades do veículo e dasua utilização para alavancar um processo dedesenvolvimento. A Agência Espacial Brasileiraprecisa ser chamada a contribuir para a cons-trução desta política. Lastimavelmente, porém,desde o Governo Collor este assunto vem sendo“regulamentado” por instruções de serviço(portarias).

Se a Lei Básica e Regulamentar vier a sereditada sem dispor expressamente sobre todas

estas matérias “institucionais” (ou seja,fundamentais), será inequivocamente uma leiincompleta. Desta forma, será editada como umalei frágil, incapaz de resolver todos os conflitosde interesse, sobre ser ainda passível de argüi-ção de inconstitucionalidade, pelo descumpri-mento formal de uma condição essencial,inscrita na Constituição Brasileira.

A nova lei básica e regulamentar das tele-comunicações terá de ser, na verdade, um novoCódigo Brasileiro de Telecomunicações.Embora isso não esteja expressamente escritona Emenda Constitucional nº 8, de 1995, a inter-pretação de seu texto só pode conduzir a talconclusão.

As leis nascem da necessidade de regulardeterminado assunto. Ao longo do tempo,aquele mesmo assunto passa a exigir atualizaçãoou complementação. Então, são editadas outrase mais outras leis. Em um dado momento, ovolume de leis sobre aquele assunto torna-setão grande e desordenado que reclama consoli-dação e sistematização. E o ato legislativodecorrente desta evolução natural chama-secódigo. Não é, pois, sem propósito que o termocódigo, derivado do latim codex, tirado docaudex (tronco de árvore) primitivamente, coma significação de tábua ou prancha, passou adesignar toda a espécie de coleção de escritossobre determinados assuntos.

O código é, portanto, uma lei tal qual qual-quer outra lei. Notabiliza-se em relação a outrasleis ordinárias pelo fato de nele estarem contidas,de forma ordenada, todas as disposições de ummesmo assunto, até então dispersas eminúmeras leis. Daí, definir Planiol como código“un récueil unique, non seulement pour tout unpays, mais pour toute une partie du droit”.(PLANIOL, M. F. Traité élementaire de droitcivil. Colaboração de G. Repert. 10. ed., Paris :1925. V. 1, p. 7-8 ).

Na terminologia jurídica, ensina o Reper-tório Enciclopédico do Direito Brasileiro, deJ. M. de Carvalho Santos, código

“é uma coleção, um corpo de leis,contendo todas, ou a maior parte, dasnormas jurídicas que disciplinam deter-minada matéria, sendo sistematicamentedispostas num todo orgânico, de modo asimplificar-lhes a procura, facilitando ainterpretação.” (op. cit. V. 9, p. 84)

Em tese de doutorado para a FaculdadeNacional de Direito da Universidade do Brasil,depois revista, ampliada e, em 1976, transformadaem livro, demonstramos cientificamente a

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autonomia legislativa, constitucional, formale substancial do direito brasileiro de telecomu-nicações. Registramos ali que o primeirodiploma legal regulando a utilização das comu-nicações por processo eletromagnético foi oDecreto Imperial nº 2.614, datado de 21 de julhode 1860.

Nos setenta anos seguintes, um expressivovolume de atos normativos foram, por si sós,suficientes para assegurar ao novo direito a suaautonomia legislativa. Em 27 de maio de 1931,editou-se a primeira consolidação das leis detelecomunicações, o Decreto Executivo nº20.047. Tal ato manteve-se por trinta anos, atéque, em 5 de outubro de 1962, entrou em vigor aLei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962, que insti-tuiu o Código Brasileiro de Telecomunicações.Com ele, o direito de telecomunicações ganhavaautonomia formal e equiparava-se à maioriados países do mundo que possuem lei específicapara regular suas atividades no campo das tele-comunicações (VIANNA, G.L.G. Direito deTelecomunicações. 1. ed., Ed. Rio, Rio de Janeiro :1976. p. 30/40).

As vantagens de uma lei básica, sistemati-zada, específica para o setor foram compro-vadas ao longo de mais de três décadas. OCódigo Brasileiro de Telecomunicações, toda-via, envelheceu e reclama a sua substituição.Mas, evidentemente, por um outro instrumentojurídico de igual hierarquia.

A Constituição determina a elaboração deuma única lei regulamentar (e não várias), comotambém que tal lei trate de todas as matériasinstitucionais do setor (e não de algumas). Logo,um novo código.

Admitir o contrário nos remeteria para ainterpretação equivocada de que o CongressoNacional teria patrocinado um retrocesso insti-tucional: o setor de telecomunicações (que, aolongo de cento e trinta e quatro anos, já evoluiuo suficiente para dispor de uma legislação codi-ficada) teria sido condenado pela Lei Consti-tucional a retroceder no tempo e voltar a serregulado por leis provisórias, esparsas eincompletas.

O setor de telecomunicações, que conta,hoje, com um código orientado por interessesnacionais e objetivos estratégicos bem defi-nidos, teria sido condenado pela ConstituiçãoFederal a perder o rumo, o norte, o referencial,uma vez que ficaria à mercê de leis avulsas econjunturais, de conteúdo mínimo, dispondosó o necessário para atender aos interesses

comerciais de poderosos grupos de pressãointeressados em segmentos de serviços alta-mente rentáveis.

O vigente Código Brasileiro de Telecomu-nicações, sancionado pela Lei nº 4.117, de 27de agosto de 1962, foi um instrumento legalexemplar. Não se limitou a dispor sobre direitose deveres do Estado, dos cidadãos e dasempresas no tocante à prestação de serviçosde telecomunicações. Além dos “aspectosinstitucionais” – o indispensável balizamentoentre os sujeitos da relação jurídica tripartite(concedente-concessionários-usuários) –,lançou bases para o futuro das telecomunica-ções, tendo sido uma alavanca fundamentalpara o desenvolvimento do nosso País.

Mais do que um passivo repositório jurídico,destinado a evitar e a solucionar eventuaisconflitos de interesses, a Lei nº 4.117, de 1962,instituiu uma política pública para os serviçosde telecomunicações. Traçou um plano de ação,projetou instrumentos e previu recursos parafinanciar os objetivos claramente fixados. Elaera, portanto, um instrumento jurídico atualiza-díssimo em relação às tecnologias da época,delegava poderes normativos a um órgão cole-giado, o Conselho Nacional de Telecomuni-cações, e dava ao Governo os instrumentosnecessários para implementar uma políticapública estatizante.

Passaram-se, todavia, implacáveis trinta equatro anos.

O Código Brasileiro de Telecomunicaçõesestá tecnologicamente revogado. Ele projetouuma arquitetura de serviços coerente com adécada de sessenta, quando destacavam-se astecnologias eletromecânicas, as válvulas termo-iônicas e as radiocomunicações por ondasmédias e curtas. Ele é, portanto, anterior àfreqüência modulada, ao conhecimento e explo-ração das potencialidades das tecnologiaseletrônicas e digitais, bem como ao empregocomercial do transistor e do chip. Também ossatélites de telecomunicações, os circuitosintegrados miniaturizados, a tecnologia celulare a transmissão de dados vieram bem depoisque ele entrou em vigor.

Para o Código de 1962, a televisão é umserviço de âmbito local e, como tal, recebe omesmo tratamento jurídico de uma pequenaemissora de rádio. Afinal, àquela época não setinha nenhum referencial sobre as potenciali-dades daquele que era um novíssimo serviço.Não se falava, ainda, em microondas, videotape,

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televisor em cores, som estereofônico, televisãopor assinatura e transmissão via satélite em redede âmbito nacional.

Como o poder regulamentar assegurado aoExecutivo não pode ir ao ponto de inovar emrelação às tecnologias existentes, tampouco delegislar originariamente sobre tecnologias tãorecentes que sequer foram citadas no texto dalei de 1962, só há um caminho para a atualizaçãodas normas jurídicas às novas tecnologias: umnovo código.

O setor de telecomunicações deixou de terum órgão com competência normativa dele-gada pelo Poder Legislativo. Por meio de umórgão regulador – o Conselho Nacional deTelecomunicações, Contel –, o setor podia acom-panhar a rapidez tecnológica, editando resolu-ções que, fiéis ao espírito estatizante do Código,tinham natureza normativa. Presentemente, sóo Congresso Nacional pode legislar sobre tele-comunicações. É certo que o Presidente da Re-pública pode editar decretos regulamentares eo Ministro de Estado pode editar instruções deserviço, mas tais atos administrativos só po-dem ser editados para a “fiel execução” do Có-digo de 1962 e só têm eficácia interna (só seaplicam aos servidores públicos).

Esta fidelidade restringe a quase nada ocampo de ação reservado ao Poder Executivo.Só pode detalhar a execução de serviçosexpressamente previstos no Código e regula-mentados antes da Constituição de 1988. E, aoinstruir os órgãos e entidades integrantes daadministração de telecomunicações, o PoderExecutivo deverá observar o espírito, a vontade,a índole das Leis nº 4.117, de 1962, e 5.792, de1972. Tais leis foram editadas com o propósitode transferir da iniciativa privada para o setorestatal a prestação dos serviços públicosessenciais de telecomunicações. Logo, sóestarão em conformidade com o espírito e como texto estatizante daquelas leis os atos admi-nistrativos que tiverem por objetivo manter ouaumentar o grau de participação do Estado naprestação de serviços. Se, todavia, tais leisvierem a ser invocadas como “fundamentolegal” para a edição de decretos e instruções deserviço de índole liberalizante, na qual serviçosaté então desenvolvidos com exclusividade porempresas sob controle acionário estatal passama ser explorados também pela iniciativa privada,teremos um aberrante desvio de finalidade, queé causa de nulidade do ato e responsabilizaçãodo agente que o praticou.

Portanto, pelo que se demonstrou, a edição

do novo Código de Telecomunicações torna-se indispensável também pelo fato de que asvigentes leis de telecomunicações são impres-táveis como alicerces para a edição dequalquer ato administrativo (decretos eportarias) de índole privatizante.

Os países europeus e asiáticos se dedicaram,nesta última década do século, à elaboração denovos códigos de telecomunicações, jáadaptados às novas tecnologias, às modernasestruturas administrativas e às suas estratégiasde desenvolvimento econômico e social.Através da Internet, podemos “navegar”diretamente à Biblioteca do Congresso Norte-Americano. Pode-se acessar ali a volumosa,casuística e impressionantemente protecionistalegislação americana de telecomunicações. Ésurpreendente a vastidão e a riqueza de detalhesdaqueles atos.

A HR3626, só a título de exemplo, vai afundo nos poderes das empresas de telecomu-nicações, chegando ao refinamento de estabe-lecer (seção 104) que uma operadora local queoperar com poder monopolista em qualquerserviço não poderá, em hipótese alguma, exigirque o seu usuário compre outros produtos ouserviços por ela fornecidos, onde existamterceiros fornecedores. E este é apenas umdetalhe de uma legislação preocupada em evitarquaisquer práticas inibidoras da concorrência.

O Telecommunications Act of 1996 – a novalei de telecomunicações norte-americana,sancionada no dia 8 de fevereiro do correnteano – é um belíssimo exemplo a ser seguido. Eleadapta as regras jurídicas às novas tecnologias,à fusão da informática com as telecomunicaçõese às novas oportunidades de negócios quenascem deste novo paradigma.

No que respeita à forma, o Telecommuni-cations Act of 1996 é, sem sombra de dúvida,vinte vezes maior do que os inopiosos 129artigos do Código Brasileiro de Telecomuni-cações. São 710 seções, o que projeta algo emtorno de 3.000 “artigos” (nomenclatura nãoutilizada no direito norte-americano), 12.000linhas ou 300 páginas escritas.

No que respeita ao conteúdo, é um textovoltado para os objetivos estratégicos do país.Internamente, as empresas são estimuladas acompetir, mas sob maior fiscalização doGoverno e da sociedade, municiados por umalegislação aperfeiçoada e voltada para impedira formação de monopólios setoriais e cartéis

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eletrônicos. Externamente, a nova lei projeta eestimula uma política expansionista, em direçãoaos mercados emergentes, como o latino-americano.

Aspirar, portanto, para o Brasil, ao mesmocaminho seguido pelos países desenvolvidos,isto é, a um pacto nacional sob a forma de umconjunto metódico de normas jurídicas, quecondense o essencial sobre o assunto teleco-municações, subordinando-o aos objetivosestratégicos do país, é dar correta interpretaçãoà mens legis da Emenda Constitucional nº 8, de1995.

Como se vê, ainda que formalmente nãovenha a se denominar “Código Brasileiro deTelecomunicações”, a nova lei terá de ter subs-tância e abrangência de um código. Só assimestaremos acompanhando os procedimentosadotados pelos países desenvolvidos.

Ao longo deste trabalho procurou-se fazera “autópsia” da Emenda Constitucional nº 8, de1995. Ao seu final, presume-se, resultou abun-dantemente provado que os congressistas apro-varam um texto cheio de condicionantes.

Qual a razão disso?Para dar resposta a essa pergunta, torna-se

oportuno buscar os magistrais ensinamentosextraídos dos Estatutos da Universidade deCoimbra de 1772. Um antigo texto, que jamaisenvelhece, pois contém valores permanentes.Ali se aprende que só se descobre o sentido e oalcance de uma regra de Direito, “depois de exa-minar as circunstâncias e os sucessos históri-cos que contribuíram para a sua confecção eperquirir qual seja o fim do negócio de que seocupa o texto”. Põe-se em contribuição, por-tanto, dois elementos: a occasio legis e a ratiolegis. E conclui aquele repositório de ensina-mentos jurídicos: “este é o único e verdadeiromodo de acertar com a genuína razão da lei, decujo descobrimento depende inteiramente acompreensão do verdadeiro espírito dela”.

Carlos Maximiliano, na sua obra funda-mental, Hermenêutica e Aplicação do Direito,registra que

“toda prescrição legal tem provavelmenteum escopo, e presume-se que a este preten-deram corresponder os autores da mesma, istoé, quiseram tornar eficiente, converter em reali-dade o objeto ideado. A regra positiva deve serentendida de modo que satisfaça aquelepropósito: quando assim não se procedia,construíam a obra de hermenêutica sobre a areiamovediça do processo gramatical”.

“Considera-se o Direito como uma ciênciaprimariamente normativa ou finalística, por issomesmo a sua interpretação há de ser, naessência, teleológica. O hermeneuta sempre teráem vista o fim da lei, o resultado que a mesmaprecisa atingir em sua atuação prática. A normaenfeixa um conjunto de providências, prote-toras, julgadas necessárias para satisfazer acertas exigências econômicas e sociais; seráinterpretada de modo que melhor correspondaàquela finalidade e assegure a tutela de interessepara a qual foi redigida.” (9. ed., 3. tir. Rio deJaneiro : Forense, 1984. p. 151/52)

Instruídos por estes ensinamentos básicos(que se mantêm até os nossos dias, e sãoseguidos, na essência, por todos os tratadistasde Direito), devemos indagar: em que circuns-tâncias a Emenda Constitucional n º 8, de 1995,foi confeccionada?

Os jornais e revistas da época, se consul-tados, mostrarão os motivos pelos quais odispositivo não é meramente declaratório, comotalvez fosse tecnicamente mais aconselhávelem um texto constitucional de um país deestruturas estáveis e comportamentos previsí-veis.

O artigo 21, inciso XI, letra a, da Constituiçãotornou-se programático, condicional, finalís-tico, devido a temores de que o Poder Executivopudesse iniciar a chamada “flexibilização” semobservar questões essenciais que necessaria-mente devem preceder a qualquer processo deliberalização. Tal receio adensou-se por causade declarações do Ministro das Comunicações,Sr. Sérgio Motta, que soaram aos ouvidos doslegisladores como uma verdadeira ameaçaà competência legislativa do CongressoNacional.

A autoridade máxima das telecomunicaçõesbrasileiras não anunciou, como era de se esperar,o início de um trabalho sério e cauteloso deexame da legislação comparada e de levanta-mento do “entulho normativo” expresso porcentenas de decretos e portarias de índoleautoritária, para, a partir deste material, elaboraro novo modelo institucional para as telecomu-nicações brasileiras. Modelo que, devidamenteformatado como um novo Código Brasileiro deTelecomunicações, seria, em seguida, submetidoao exame e deliberação do Congresso Nacio-nal. Segundo inúmeras declarações, publicadasem todos os jornais, e não desmentidas, “nodia seguinte” ao da aprovação da mudança dotexto constitucional, o Ministério das Comuni-cações daria início à “flexibilização”, publicando

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editais para a telefonia celular e permitindo oamplo acesso da iniciativa privada na exploraçãode satélites e de transmissão de dados. Tudo,surpreendentemente, através de atos adminis-trativos...

Diante de tal circunstância (ameaça de usur-pação da competência normativa do PoderLegislativo), o Congresso Nacional atendeu àfinalidade que se pretendia alcançar (flexibili-zação na organização dos serviços), mas, para-lelamente, estabeleceu condições (um conjuntode providências protetoras, julgadas necessá-rias para satisfazer a certas exigências econô-micas e sociais).

A resposta do Poder Legislativo foi clara,através do texto final da Emenda Constitucionalnº 8, de 1995: assuntos como “flexibilização” e“quebra de monopólio” terão de ser amplamentedebatidos pelos agentes certos, os parlamen-tares, no lugar apropriado, o CongressoNacional, e formalizados pelo instrumentocabível, a lei.

Não é necessário um grande esforço deinterpretação do texto constitucional para seconcluir que a nova lei de telecomunicaçõesnão poderá trazer o retrocesso, representadopor leis esparsas, diversificadas e conjunturais,destinadas exclusivamente a suprir uma neces-sidade avaliada como de maior urgência do queas demais. Seria, pois, inconstitucional uma leique, por exemplo, viesse a regular a licitaçãopara a telefonia celular sem, paralelamente, dis-por sobre o órgão regulador do serviço, o regimetarifário, as infrações, as penalidades e outros“aspectos institucionais” já apontados nestetrabalho. A Emenda Constitucional nº 8, de1995, não proíbe apenas medidas provisórias,mas também “leis provisórias”.

Se o texto constitucional buscasse comofinalidade a liberalização incondicional, não teriaincluído nenhuma restrição. Prevaleceria oprincípio da auto-executoriedade. Quandomuito, o texto exigiria apenas a edição de umalei. Mas uma lei qualquer. De qualquertamanho ou conteúdo.

No entanto, a Emenda Constitucional agiuinversamente: estabeleceu com riqueza dedetalhes a forma e o conteúdo da lei que deverádar eficácia à flexibilização. A lei a que ela se refereé básica, é regulamentar, é sistemática . Não háespaço para uma um amontoado desordenadode leis mínimas, provisórias e incom pletas.

É hora de o Congresso Nacional lançar-seao trabalho fecundo de elaborar uma nova lei

para o setor de telecomunicações. Uma leimodernizadora, que flexibilize a exploração detodos os serviços de telecomunicações erevogue expressamente onde couber os dispo-sitivos estatizantes em vigor. Uma lei nova, que,ao nascer, não seja compelida a conviver comleis ultrapassadas. Uma lei completa, que nãocause inevitáveis dúvidas de interpretação epossibilite intermináveis pendências judiciais.Só com uma lei assim, que abranja todos osaspectos institucionais, teremos uma lei legí-tima e , como tal, imune a qualquer argüição deinconstitucionalidade.

Poderá o Brasil, todavia, produzir umpouco mais do que uma lei formalmente perfeitae juridicamente inquestionável. Mais ainda doque fazem as novas leis que acabam de ser edi-tadas nos países desenvolvidos, a nossa leipoderá servir, também, como instrumento paragerar novos empregos, expandir nossas micro-empresas e ampliar gradativamente os poucosnichos industriais e tecnológicos existentes.Afinal de contas, dispomos de um exemplohistórico, que nos mostra as vantagens daopção por um código exemplar, que incorporeuma audaciosa política nacional de telecomu-nicações.

A elaboração de uma lei com tais caracterís-ticas há de ser mais demorada, sem dúvida.Talvez exija mais alguns meses de debates e detramitação legislativa. Temos pressa, é verdade.Mas sempre tivemos pressa e essa pressa temsido, muitas das vezes, causadora dos nossosgrandes desastres. Além disso, é precisodistinguir, com nitidez, a pressa que estimulano sentido de resolver os grandes problemasnacionais da pressa gerada pelos interessadosem resolver os seus interesses particulares ecomerciais.

É hora de respeitar o nosso passado ou, seisso não for relevante, de, pelo menos, copiar oprocedimento das grandes potências mundiais.Precisamos produzir uma lei de verdade, na quala “flexibilização” seja utilizada como uma pode-rosa alavanca para o desenvolvimento brasi-leiro no próximo milênio e não como uma algemapara nos manter, agora de forma inexorável,como uma nação tecnologicamente desprezível,economicamente colonizada e estrategicamenteperiférica.

É hora de elaborar uma lei completa, íntegrae sistêmica, e não um remendo improvisado,destinado simplesmente a legitimar a divisãodo “bolo” mais cobiçado do mundo dos

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negócios em “fatias”, entregando-as ao apetitede “famintos comensais”. Precisamos produziruma lei exemplar, que seja uma barreira àformação de monopólios privados e cartéiseletrônicos, e não um papelote vulgar, geradopara legitimar negociatas e a dilapidação dopatrimônio público.

As tecnologias são neutras: o uso que oser humano lhes dá pode servir para salvar vidasou para destruí-las. Nas mãos de Hitler, naAlemanha, as ondas radioelétricas foraminstrumento de ódio, destruição e morte.Entregues à Roquete Pinto, no Brasil, servirampara a difusão da educação e da cultura para onosso povo. O raio laser, uma ampliação da luzpor meio de radiação intensificada, pode salvarvidas, se aplicável à medicina, e pode destruí-

las, se utilizado como arma.Agora, no limiar do Terceiro Milênio, assis-

timos à fusão das telecomunicações com ainformática, gerando possibilidades infinitas,um imenso desafio à imaginação. As tecno-logias, em permanente mutação, podem salvaro Brasil do subdesenvolvimento e da misériacrônica, mas podem igualmente contribuir deforma decisiva para manter ou ampliar o vigentesistema de servidão. Os efeitos sociais não sãodeterminados pela tecnologia, que é sempreneutra, mas pela norma institucional que rege asua aplicação, que objetiva sempre algumacoisa, ou seja, é finalista.

A norma institucional, aqui, chama-seCódigo Brasileiro de Telecomunicações.

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1. IntroduçãoO presente trabalho foi objeto de monografia

apresentada para a conclusão do curso de pós-graduação na Escola Superior do MinistérioPúblico do Distrito Federal e Territórios, tendosido adaptado para atender a esta publicação eà alteração sofrida na disciplina quanto aosagravos pelo advento da Lei nº 9.139/95.

O despacho saneador vem sendo objeto deestudo por parte dos doutrinadores desde a suaorigem. Como um instituto originário dosdireitos português e brasileiro, encontramosaqui uma das melhores soluções para a proble-mática da economia processual.

Com a presente pesquisa pretendemos fazeruma abordagem sobre o progresso históricoapresentado por esta figura processual.

O despacho saneador foi o produto da prá-tica dos direitos português e brasileiro em apri-morar técnicas para desobstruir o processo dasquestões formais, buscando a solução cada vezmais ágil para dirimir um conflito.

Como o Professor Galeno Lacerda expõe, oprocesso será sempre uma forma de aflição paraas partes, sendo o nosso objetivo abreviar aomáximo este sofrimento, evitando um constran-gimento maior que o próprio processo em si.Através deste pensamento, as técnicas desen-volvidas por nosso direito acabaram por nosproporcionar a figura do despacho saneador,

1. Introdução. 2. Antecedentes históricos. 3.Objeto do despacho saneador. 4. Atividade sanea-dora do juiz. 5. Efeitos no despacho saneador. 6.Recursos no despacho saneador. 7. Conclusão.

SUMÁRIO

Despacho saneador

Adriana de Albuquerque Hollanda é Bacharel emDireito, formada pela Universidade de Brasília e pós-graduada pela ESMPDFT.

ADRIANA DE ALBUQUERQUE HOLLANDA

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cujo desenvolvimento se estende a cada dia,como podemos observar com as últimas novi-dades do Código de Processo Civil.

Desta forma, ao introduzirmos esta ques-tão, buscamos prestar homenagem ao ilustredoutrinador Galeno Lacerda, que de formapioneira se aprofundou nesta matéria, cujacontribuição a nossa cultura jurídica é imensa-mente inegável.

2. Antecedentes históricosA origem do despacho saneador não é

unívoca, vez que encontra diferentes fontesentre os nossos doutrinadores. Alguns acredi-tam achar esta figura nas mais antigas civili-zações, outros acreditam que esta só podeadmitir um início no direito português.

Galeno Lacerda, um dos maiores estudiososno assunto em nosso direito, alia-se à correntedaqueles que visualizam o início deste institutoaté nas civilizações primitivas. Assim, afirma queo marco inicial para o despacho saneador éanterior ao próprio direito romano, pois encon-tramos vestígios desta atividade em outrassociedades do mundo antigo, apesar desta apre-sentar-se de forma primária. Tais atividades,segundo Lacerda, caracterizavam-se mais pelaqualidade da decisão proferida que por suanatureza, porquanto, realmente, não há comoconsiderarmos que as questões ali decididasguardem semelhança com o que definimosatualmente como preliminares.

Quanto ao direito romano, encontramos umgrande número de teóricos que consideram adivisão do processo romano em in jure e injudicio como a semente que originou a figurado despacho saneador no processo civil comoo conhecemos. Esta tese é fortemente criticadapor Enrico T. Liebman, pois o mesmo a consideraum equívoco. Tal divisão, que visava levar omérito da causa a ser julgado sem mácula dequalquer preliminar, não guarda outra seme-lhança que não esta, sendo consideradas comopreliminares algumas questões cuja doutrinaatual as teria como mérito da causa. A outrajustificativa de Liebman para desconsiderá-lacomo precursora do despacho saneador estáno fato de esta divisão dever-se mais a razõespolíticas e históricas do que processuais, sendotão características da cultura romana, que nãohá qualquer hipótese de comparação semcairmos num grande equívoco.

O direito germânico, juntamente com odireito romano e o canônico, formaram o quedefinimos como direito medieval. Com a forteinfluência da cultura bárbara, encontramosnesse período o formalismo em seu modelo maisexacerbado, sendo admissível a anulação de umprocesso pelo menor vício, desaparecendo afigura do princípio da economia processual.

Enrico T. Liebman1 vislumbra a figura dasexceções dilatórias, dessa fase, como formasde se argüir um vício no processo. Introduzidapelos glosadores na Idade Média, possuía forterigidez, como é característico em tal momento,só encontrando uma reação na Idade Moderna.Já Pontes de Miranda, ao analisar o instituto,encontra justamente neste período o marcoinicial para o despacho saneador, acreditandoque nas exceções dilatórias estaria o embriãopara que se decidissem questões preliminaresanteriormente ao mérito. Sua posição encontracríticas pela parte de Alfredo Buzaid, queconcorda existirem estas figuras, mas não asencontra sistematizadas, sendo na realidadesomente fruto de mera aplicação empírica, nãopodendo então servir de base para considerar-se como o ponto de partida para a formação doinstituto do despacho saneador.

Com a superação da Idade Média, o pro-cesso retorna aos princípios clássicos do direitoromano, sendo fruto da reação ao formalismoexacerbado que predominou durante o direitomedieval. Tal resposta partiu inicialmente daFrança, sendo seguida posteriormente pelaAlemanha, com o que verificamos não seformarem mais distinções entre questões preli-minares e de mérito, cabendo às partes argüiremuma eventual nulidade do processo a qualquertempo, conforme as circunstâncias e oportu-nidades. Esta técnica acabou sendo abandona-da pelo fato de as próprias partes terem o poderde imprimir ao processo o ritmo que lhesconvinha, contrariando o princípio da econo-mia processual.

Assim, verificamos que a origem dodespacho saneador não tem opinião pacífica;encontramos, entretanto, uma maioria conside-rável de doutrinadores com o pensamento deque, realmente, este instituto tem sua base nodireito português e contém originalidade sufi-ciente para justificar ser este o seu berço, e nãosomente a herança de outro país.

Esta figura surgiu no direito português como1 LIEBMAN, Enrico T. Estudos sobre o Processo

Civil Brasileiro. p. 100.

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uma reação ao formalismo, como também foiencontrada na França e Alemanha, despontandocom o nome de “despacho ordenador” noprocesso sumário, onde o juiz podia, de ofício,julgar antecipadamente as nulidades queporventura existissem no processo. Definitiva-mente esta é a origem direta do despachosaneador.

Quanto a este instituto jurídico no Brasil, asua origem é obviamente portuguesa, já quefomos sua colônia. Após a independência, odireito brasileiro continuou recepcionando asregras do regime jurídico anterior em nossoterritório, havendo uma inovação a partir de1939, quando se unificou a matéria de direitoprocessual civil em um código somente.

O Código de Processo Civil de 1939 estabe-leceu a matéria de forma generalizada, pois antescada estado possuía a sua própria legislaçãoprocessual. Esta disciplina introduziu o sanea-mento do processo através do despachosaneador, diferentemente do instituto no direitoportuguês, onde era denominado inicialmentede despacho ordenador. Desta forma, o institutofoi introduzido na legislação pátria.

No Código de Processo Civil de 1973 nãohá mais a denominação de despacho saneador,mas há a previsão do saneamento do processo,ficando superada a discussão que se estabe-leceu a respeito da nomenclatura deste instituto.Esta atividade, prevista como uma fase, teriaseu momento oportuno através de despachoescrito, exarado nos autos, em que o magistradodeclararia o processo saneado, ou tão-somentemarcaria audiência de instrução e julgamento,definindo quais as provas que foram aceitas ecomo deveriam ser promovidas em tal audiência,considerando-se, implicitamente, que o pro-cesso está perfeitamente constituído.

No final do ano de 1994, com o advento daLei nº 8.952/94, houve uma profunda reformano Código de Processo Civil, modificando radi-calmente a estrutura da atividade saneadora dojuiz, sendo criada a audiência preliminar, quepossui três diretrizes: conciliar as partes,concentrar as decisões saneadoras do processoe planejar ordenadamente a instrução da causana audiência de instrução e julgamento. Perma-necem também as hipóteses de julgamentoantecipado da lide, assim como de extinção doprocesso pelas hipóteses do art. 267 do CPC,que dá término ao processo sem o julgamentodo mérito.

Com tais novidades, criou-se na doutrina

divergência a respeito do momento adequadopara o exame de tais questões.

Cândido Dinamarco2 entende que o mo-mento adequado para que a autoridade judi-ciária enfrente as questões versadas comopreliminares se apresenta agora em forma deaudiência, tendo sido o art. 331 do CPC de 1973revogado pela norma superveniente estatuídana Lei nº 8.952/94. Assim, torna-se obrigatórioao juiz verificar, primeiramente, a possibilidadede conciliação, para somente após decidir se oprocesso não será extinto ou se a causa épassível de ser julgada antecipadamente. Taisatos só serão formalizados após a audiênciapreliminar.

Conforme ressalta Cândido Dinamarco, aatividade saneadora se apresenta mais comouma ação residual, por não ter ocorrido nenhumadas duas hipóteses anteriores, ainda duranteesta nova audiência.

Tal posição não é partilhada por J. E. CarreiraAlvim3 nem por Humberto T. Júnior4, quesustentam somente ser possível a audiênciapreliminar se a lide não for julgada antecipada-mente, ou o processo não for extinto peloscasos do art. 267. Carreira Alvim justifica a suaposição em virtude do próprio texto da lei, quedetermina a aplicação do art. 331 unicamentequando não ocorrerem as hipóteses dos tópicosanteriores (extinção do processo ou julgamentoantecipado da lide).

3. Objeto do despacho saneadorNeste momento, começaremos a lidar com a

atividade saneadora do juiz, analisando seuselementos e estabelecendo qual é o campo deatuação do magistrado ao sanear um processo.

Inicialmente, há que se levar em conside-ração quais são os atos do juiz, que vão desdea extinção do processo por algum vícioinsanável até o pronunciamento de mérito como julgamento antecipado da lide. Através destesatos, como se pode perceber, diferentementedo tempo em que Galeno Lacerda escreveu seu

2 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reformado Código de Processo Civil. 1. ed. São Paulo :Malheiros, 1995.

3 ALVIM, J. E. Carreira. Ação monitória e temaspolêmicos da reforma processual. 1. ed. BeloHorizonte : Del Rey, 1995.

4 JÚNIOR, Humberto T. As inovações no Códigode Processo Civil : Juizado Especial Civil. 6. ed. Riode Janeiro : Forense, 1996.

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livro sobre o despacho saneador, a atividadejurisdicional ampliou deveras o seu campo deatuação, principalmente se destacarmos arecente reforma por que passou o Código deProcesso Civil nesta área, sendo criada a audi-ência preliminar, visando abreviar ainda mais ascontendas que possam ser dirimidas através daconciliação. Tais transformações são resultadosde evolução constante, pois quando dapromulgação do próprio Código em 1973,através da possibilidade de julgar antecipada-mente a lide, já houve um grande avanço. Porém,antes de nos atermos a este ponto específico, énecessário que se faça um estudo sobre a legi-timidade da relação processual, que é a atuaçãoverdadeiramente saneadora do processo.

Para se analisar o objeto da atividadesaneadora, a regularidade na relação processual,necessário é que se verifiquem, inicialmente, ospressupostos processuais, que são requisitosindispensáveis a qualquer formação processualperfeita.

Os pressupostos processuais são a primeiraanálise que o juiz deve promover ao verificar arelação jurídica, pois são os requisitos para aboa constituição de qualquer processo. Taispressupostos apresentam-se sob dois aspectos:subjetivo e objetivo. Começaremos com os pres-supostos subjetivos. O primeiro exame é feitosobre a autoridade judicial, uma vez que nadaserá válido se a matéria for apreciada por juizque não tinha habilitação para atuar em deter-minada área. Tais requisitos são avaliados pelasexceções de incompetência, impedimento esuspeição, são argüidas em peça própria e des-tinam-se a apreciar se determinado julgador estáapto a proferir uma decisão sobre a demandaem questão. A exceção de incompetência visa aexcluir autoridade judiciária que não tenhajurisdição sobre determinada matéria, evitandoque se promova toda a instrução novamente.Quanto à exceção de impedimento, esta destina-se a evitar que o princípio da imparcialidadevenha a ser desrespeitado, já que não há comose exigir a isenção de uma pessoa que tenhavínculos familiares com a parte. A últimaexceção é a de suspeição, onde o princípio daimparcialidade é, igualmente, o objeto a serprotegido, mas dessa vez não por laçossangüíneos, e sim por motivos de foro íntimoque venham, de alguma forma, a influenciar adecisão da autoridade judiciária. Todos essespressupostos subjetivos implicam o seu conhe-cimento a qualquer momento, inclusive exofficio. Este requisito não está incluso no art.

267 do CPC, mais por ter disciplina própria, quepor sua natureza, continuando a ser abordadopela doutrina como um pressuposto processual,devendo, portanto, ainda ser analisado comouma possibilidade de saneamento do processo,ainda que diversamente em relação aos demaispressupostos processuais da atividade sanea-dora propriamente dita.

O outro pressuposto processual subjetivodiz respeito à legitimação das partes, que devemser capazes e devidamente representadas emjuízo. Quanto à capacidade, esta se aufere pelasnormas constantes do Código Civil, no seu art.9º, que permite às pessoas se habilitarem emjuízo para defesa de seus interesses. Quantoaos indivíduos incapazes, os mesmos terão quesuprir essa deficiência através da representaçãode pessoas que tenham, legalmente, permissãopara ajuizar uma ação em defesa dos interessesdaqueles a quem as mesmas representem. Pos-suímos também em nosso ordenamento jurídicoo instituto da substituição processual, onde alei, em casos excepcionais, permite que umapessoa, em nome próprio, promova uma açãoem defesa de interesse de terceiro, não havendoa figura do representante legal, mas do subs-tituto processual.

Além desta capacidade, é necessário quese esteja devidamente representado em juízo, alegitimatio ad processum, onde se exige queuma pessoa, para atuar em juízo, faça-se repre-sentar por profissional habilitado para tanto.Esta regra está inclusa nos arts. 36 e 37, do CPC,e adverte às partes que, na falta da devidaprocuração, os atos serão reputados inexis-tentes. Estes pressupostos são exigíveisdurante todo o período em que permanecer arelação processual. Ainda que este pressupostoseja atendido no início do processo, masdepois, por algum problema superveniente, ve-nha a ocorrer a falta desta representação, estevício processual deverá ser sanado, pois auto-rizará a extinção do processo na hipótese deatingir o autor da demanda, e, sendo o réu,imputar-se-á a este a condição de revel.

Desta forma, finda-se a análise dos pressu-postos processuais subjetivos, permanecendoainda a questão dos objetivos, que passaremosa estudar agora.

Tais pressupostos objetivos subdividem-seem pressupostos extrínsecos e intrínsecos,sendo estes ligados à causa em si e aqueles afatores exteriores que influenciam diretamentea questão e que, caso não sejam atendidos,

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acabam por extinguir a relação jurídica em curso.Como requisitos extrínsecos à boa formação

da relação processual, encontramos a litispen-dência, a coisa julgada e o compromisso arbitral.

A litispendência se verifica quando duascausas idênticas estão sendo julgadas aomesmo tempo, exigindo-se que a última delasseja extinta. Para considerarmos que há litis-pendência é necessário que se verifiquem trêselementos: coincidência entre as partes, oobjeto e a causa petendi. A decisão queextingue o processo por litispendência não temforça de coisa julgada material, mas somenteatende a uma causa que proíbe o prossegui-mento daquele processo.

Humberto Theodoro Júnior, em Curso deDireito Processual Civil, considera que, nahipótese de extinção do processo por litispen-dência, ocorre em verdade um acolhimento decausa objetiva de improcedibilidade, o queautorizaria ao julgador deste processo, repetido,analisar a hipótese de ilidir tal causa através dealgum vício insanável no primeiro processo.

Quanto à coisa julgada, o tratamento éidêntico ao da litispendência, porém a primeiracausa já transitou em julgado, exigindo otrancamento da outra questão, sem que o julga-mento de mérito ocorra.

Ainda há que se pensar na hipótese dosegundo julgamento acabar por transitar emjulgado também, o que poderia nos levar a umimpasse: qual o julgamento que teria validade?O primeiro ou o segundo? A nossa jurispru-dência tem entendido que, nestas hipóteses,prevalecerá o último julgamento.

O terceiro pressuposto processual objetivoextrínseco ao processo é o compromisso arbitral,cuja função significa terem as partes renunciadoao direito de resolver seus litígios através dafunção jurisdicional do Estado, recorrendo aoárbitro que já foi eleito no compromisso arbi-tral, para que esta pessoa habilitada venha adirimir o conflito que se apresenta nesta relaçãojurídica. Este direito é garantido às partes peloart. 1.037 do Código Civil.

Há que se considerar inicialmente que talcompromisso arbitral de forma alguma pode serconfundido com a cláusula compromissória, quenada mais é que a previsão do compromissoarbitral. Nesta hipótese, as partes pactuam emface de uma possibilidade de conflito futuro,onde recorrer-se-á a um árbitro particular para asolução de determinado embate, que já foi eleito

naquela cláusula e que será a pessoa apta àresolução do problema que possa ser apresen-tado. Porém, apesar desta cláusula compromis-sória, não há como impedir que uma pessoarecorra ao Estado para que lhe faça umaprestação jurisdicional por antecipação.

O compromisso arbitral significa que houveum litígio e que as partes recorreram aos árbi-tros habilitados pela cláusula compromissória.Desta forma, será vedado às partes recorrer aoJudiciário, pois já há uma instância arbitral quefoi acionada, causa impediente da instânciajurisdicional estatal. Nesta situação, incidirá aproibição do art. 267, inciso VII, do Código deProcesso Civil.

Quanto aos pressupostos processuaisobjetivos intrínsecos, os mesmos dizem respeitoà observância das normas legais para a formaçãoregular da relação processual, sem atender aum rol específico de hipóteses. Esta subordi-nação, como propriamente expõe GalenoLacerda, traduz-se pela ausência de nulidadesou vícios em geral dos atos processuais em seuaspecto objetivo.

Como um exemplo da satisfação destascondições há a correta propositura da ação, oque significa a regularidade da petição inicial,conforme expõe Rogério Lauria Tucci5. Caso amesma esteja defeituosa, poderá a autoridadejudiciária mandar emendar o pedido, visandodesta forma sanar os defeitos que a mesma apre-senta. Porém, há também a possibilidade de seapresentarem vícios insanáveis, o que leva aoindeferimento da inicial, ocorrendo a extinçãodo processo sem julgamento do mérito. Claro,esta é uma forma de se sanear o processo, jáque não permite sequer que a relação proces-sual chegue a se formar por não ter qualquerpossibilidade de ver sucedida aquela proposi-ção. Outro exemplo de pressuposto processualobjetivo intrínseco está na regularidade dacitação, cujo vício importa em nulidade de todosos atos que dali em diante forem feitos. Portanto,nota-se que tais pressupostos não podem serespecificados, pois não há como determinarquais e quantos serão os vícios que podemsurgir nos procedimentos jurisdicionais, ficandoo julgador a velar pela sua formação regular,atendendo a tais pressupostos intrínsecos ouextrínsecos.

Após a análise dos requisitos genéricos darelação processual, a autoridade judiciária deverá

5 TUCCI, Rogério Lauria. Do Julgamentoconforme o Estado do Processo. 2. ed. 1982.

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examinar os requisitos que se apresentarem deforma específica e individual para cada ação, quedenominamos de condições da ação. Tais condi-ções estão ligadas à própria admissibilidade daação, não mais à conformidade da relaçãoprocessual. Desta forma, são auferidas por trêsaspectos: possibilidade jurídica do pedido,legitimidade das partes e interesse de agir.

De acordo com Enrico Tullio Liebman, emEstudos sobre o Processo Civil Brasileiro,

“as condições da ação, portanto, sãorequisitos que a lide deve possuir parapoder ser julgada. Eles dizem respeito àsrelações entre a lide e o conflito de inte-resses que a fez surgir, porque a lide sópode ser decidida se for adequada e apro-priada àquele conflito”.

Daí concluirmos que as condições da ação sãoprejudiciais ao julgamento do mérito e, no casode haver deficiência em algum de seusrequisitos, impossibilitarão ao julgador conhe-cer a matéria de fato naquele julgamento. A estadeficiência o direito processual denominacarência de ação, sendo o autor da pretensãocarecedor da ação.

Conforme se depreende do que foi expostoaté o momento, tais condições, de acordo como conceito moderno de ação, possuem umvínculo exclusivamente processual, não nospermitindo mais que façamos um juízo de valora respeito do direito pleiteado pela parte, poisisto contrariaria o conceito que apresentamosde atividade saneadora, onde o que se perquireé a regularidade dos atos processuais, não aprocedência ou improcedência de um pedido.A ação, vista atualmente, é um direito comple-tamente independente do direito material, nãonos permitindo que retornemos a velhas bases,já ultrapassadas, para auferir uma condição deprocedibilidade da ação. Portanto, quanto àscondições da ação, há que se verificar somenteos pressupostos em relação à lide, apesar deestarmos ligados à causa em discussão, já quea mesma só deve ser examinada de forma gené-rica e hipotética, pois, caso contrário, ao invésde estarmos manifestando um juízo de admissi-bilidade, estaríamos proferindo entendimento arespeito do litígio em discussão, e a decisãointerlocutória, de forma prematura, tornar-se-iauma sentença de mérito.

A possibilidade jurídica do pedido é oprimeiro requisito destas condições a ser anali-sado e está diretamente ligado ao direito materialobjeto da ação em questão. A atividade domagistrado será a de verificar a viabilidade ju-

rídica do mesmo, sem que isso signifique umjuízo de mérito, como dito anteriormente. Nãohá análise da procedência ou não do pedido daparte, mas se, no caso em tela, há norma jurídicaque respalde o pedido elaborado pelo autor.

Para que se verifique esta possibilidadejurídica, conforme nos demonstra HumbertoTheodoro Júnior6, devemos buscar essa juridi-cidade dentro do próprio direito processual, paraque desta forma não haja confusão entre omérito e a condição da ação. Nesta metodologia,devemos estar cientes de que o pedido do autorse divide em duas partes: o pedido mediato e opedido imediato. O primeiro, dirigido ao réu, dizrespeito à pretensão resistida do autor, que sedirige ao réu no intuito de que, em campo juris-dicional, satisfaça-lhe a reivindicação. Quantoao pedido imediato, este dirige-se diretamenteao Estado, sendo seu objeto a prestação juris-dicional. Será nesta área que analisaremos sehá possibilidade jurídica, pois, caso o autordemande sobre o impossível, este pedido nãoencontrará apoio na norma jurídica, em tese aomenos, não havendo como o Estado satisfazer-lhe a prestação jurisdicional, devendo oprocesso ser extinto de imediato, evitando,desta forma, sejam executadas atividades que,ao final, resultariam inevitavelmente na perdado pedido para o autor.

Assim, sendo a impossibilidade jurídica dopedido um dos requisitos das condições daação, quanto ao efeito desta sentença, que éapenas terminativa, este será o da coisa julgadaformal, possibilitando ao autor demandarnovamente em juízo, desde que adapte o seupedido ao ordenamento jurídico vigente emnosso direito.

Quanto à legitimidade da parte, o segundorequisito das condições da ação, tambémchamado de legitimatio ad causam, esta se ligamais às partes que ao objeto do processo, vol-tando-se a observar a pertinência de determi-nada parte em litigar naquela causa. Conformeverificamos pelo art. 6º do Código de ProcessoCivil, é-nos vedado postular em juízo direitoalheio, o que nos leva a considerar como legíti-ma a parte que não estiver inclusa em tal preceito.Este princípio é válido tanto para o pólo ativocomo para o passivo, pois a tutela jurisdicionalnão terá qualquer valia se a pessoa contra quemo autor demanda não for a adequada a sofrer asanção da sentença, o que, também, autoriza o

6 JÚNIOR, Humberto T. Curso de DireitoProcessual Civil. V. 1, p. 53-54.

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julgador a extinguir o processo sem o devidoconhecimento do mérito. Esta legitimação podeser ordinária ou extraordinária.

A legitimação ordinária será aquela em queobedeceremos ao preceito do art. 6º do CPC, ouseja, teremos por legítimo aquele que se intitulao possuidor do direito material, enquanto olegitimado passivo será aquele que poderá arcarcom a ordem proferida pela autoridade juris-dicional.

No tocante à legitimação extraordinária,encontraremos a mesma somente em casosexcepcionais, em que a pessoa legitimada ademandar em juízo não será aquela que reclamapara si a titularidade de algum direito material,mas demanda em juízo a defesa de direito alheio.Tais casos, devido a sua extravagância, sãoencontrados em dispositivos expressos nanorma processual, em enumeração do tiponumerus clausus, sendo vedado que se autorizeuma pessoa fora dos casos elencados na legis-lação. A tal fenômeno denominamos a figura da“substituição processual”.

O último requisito para satisfazer ascondições da ação é o do interesse de agir, que,igualmente aos dois anteriores, não deve serconfundido com o interesse em relação aodireito material, mas deve ser auferido em searaprocessual, e que pode ser analisado sob doisaspectos: a necessidade e a utilidade daprestação jurisdicional.

Quanto à necessidade, este item significaque só é admitida uma relação processualnaqueles casos em que, pela falta da formaçãode um processo, haverá prejuízo potencial aoseu autor. Como afirma Arruda Alvim, é anecessidade

“que nos leva a procurar uma soluçãojudicial, sob pena de, se não fizermos,vermo-nos na contingência de nãopodermos ter satisfeita uma pretensão (odireito de que nos afirmamos titulares)”.

Conforme se depreende, a instância jurisdicionalsó é admitida nas hipóteses em que o prejuízo éiminente, não se admitindo a sua utilização paraoutras questões de cunho somente interpreta-tivo ou enunciativo, ou como expõe HumbertoTheodoro Júnior7, “como simples instrumentode indagação ou consulta acadêmica”.

Desta forma, verificamos que, da mesmamaneira que os pressupostos processuais, ascondições da ação também possuem caráter

eminentemente processual, estando quase quecompletamente desvinculadas do direitomaterial, que é visto nesta fase somente deforma genérica.

Além destes dois objetos básicos, a ativi-dade saneadora observa outros pontos do pro-cesso, que, igualmente, possuem requisitospassíveis de saneamento, levando alguns, real-mente, a uma sentença de mérito, porém, maispelo objeto sucinto que pela apreciação apura-da dos fatos alegados pelas partes, conformeos casos da prescrição e decadência, que pos-suem somente uma análise do lapso temporalentre a lesão ao direito alegado e a entrada coma demanda judicial, que, caso tenha ultrapas-sado o seu limite temporal permitido, tranca aação judicial. A sentença que admitir estesinstitutos será de mérito.

Outro instituto é a perempção, também abor-dado no art. 267, do CPC, que significa a perdade uma faculdade processual por desídia, oupor inércia da parte em praticar um determinadoato processual. Conforme se verifica dentre ashipóteses elencadas por este Código, haverápossibilidades expressas, como a de ficar oprocesso sem qualquer movimento, por maisde um ano, por inércia das partes; ou quando oautor deixar de praticar um determinado ato pormais de trinta dias8. Quanto à hipótese de o juizjulgar a extinção do processo com base no incisoV, do art. 267, esta significa que o autor deu causaa extinção do processo por três vezes, ficandoproibido de entrar com o mesmo pedido contraaquele réu, de acordo com o art. 268 do CPC.

Outra hipótese está na desistência da ação,quando o autor resolve não prosseguir com talrelação jurídica. Esta desistência será sobre odireito de demandar em juízo naquele momento,não sobre o direito material, possibilitando aoautor que intente novamente este pedido. Esteato pode ser unilateral, desde que o réu aindanão tenha apresentado a sua resposta, ou aindaquando este for revel, já que não podemosconsiderar a hipótese de ouvir o réu que nãocompareceu até aquele momento e, como expõeHumberto Theodoro Júnior9, não haverá

7 JÚNIOR, Humberto T. Op. cit. p. 56.

8 A esta última hipótese, a jurisprudência consi-dera que é vedado ao juiz extinguir o processo deofício, devendo haver alegação do réu para incorrerem tal dispositivo, assim como determina a jurispru-dência que, no caso da falta do autor em cumprir osatos para a citação do réu, ocasionando a extinção doprocesso, sequer deverá o réu ser citado para contra-arrazoar no recurso de apelação.

9 JÚNIOR, Humberto T. Op. cit. p. 322-323.

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qualquer prejuízo para aquele réu revel quedeixou de defender-se até o momento da desis-tência. Porém, caso o réu formule defesa, estaserá o limite da unilateralidade deste ato, mesmoque ainda não tenha decorrido todo o prazopara a sua resposta, pois a relação processualjá está completa, não podendo o autor praticarqualquer ato desta natureza sem a anuência daoutra parte. A desistência da ação é admitidaem qualquer fase do processo, haja vista serum direito que faz parte da esfera dispositivado autor. Entretanto, caso tal manifestação seapresente em grau de recurso, os autos deverãobaixar para o juízo de origem, pois este é o órgãocompetente para homologar a desistência, apósa oitiva do réu. De qualquer forma, para queuma desistência produza efeitos, é impreterívelque a mesma seja homologada por sentença,sob pena de não existir juridicamente.

Quanto ao penúltimo instituto a ser anali-sado como objeto da atividade saneadora dojuiz, este é encontrado no inciso IX, do art. 267,quando considerado o objeto da disputa judi-cial como intransmissível. Esta característica émuito particular de determinadas ações que sãoconsideradas personalíssimas, cuja discussãose funda em direito inerente àquela pessoa, nãopodendo ser transmitido para outrem, nemmesmo na hipótese de sua morte. Um ótimoexemplo que Humberto Theodoro Júnior apre-senta, em seu estudo Curso de Direito Proces-sual Civil, é o da ação de alimentos, quandoocorre a morte do alimentando. Não existindomais o titular do direito, a ação se extingue pornão haver a possibilidade de este direito sertransmitido para qualquer sucessor.

A última hipótese de falha processual quejustifique uma atividade saneadora do juiz aponto de extinguir o processo é a confusão,entendida esta como a eventualidade em que,pelas circunstâncias, não há como determinarquem é o autor, quem é o réu, confundindo-setais figuras em uma só pessoa. Como se conclui,não há mais um conflito, pois tanto o autor comoo réu figuram em uma única pessoa, nãopodendo haver litígio de alguém consigopróprio. Tal questão se afigura muito nas causasem que litigam ascendentes e descendentes, oumais genericamente herdeiros. Daí, quandosobrevem a morte de algum deles, o sobrevi-vente acaba por herdar o bem litigioso, nãohavendo mais sentido em permanecer taldiscussão.

Desta forma, concluímos as explanações

sobre as possibilidades mais comuns queenvolvem atividades saneadoras da autoridadejudiciária. Há outras hipóteses para se extinguiro processo, como a transação entre as partes,que definitivamente não se apresenta como ummeio de sanear o processo, mas contribuisobremaneira para a economia processual, assimcomo para uma solução do conflito da maneiramais adequada para os litigantes. Porém, oobjeto deste estudo visa demonstrar as formaspara a manutenção da instrumentalidade doprocesso, que jamais pode ser um fim em simesmo, mas sim um meio para satisfazer acontrovérsia que originou este pedido deprestação jurisdicional.

4. Atividade saneadora do juizCom a reforma do final de 1994, o princípio

da oralidade ganhou um impulso redobrado, vezque foi instituída, entre outras modificações, aaudiência preliminar, procurando-se reforçar, nodireito processual civil brasileiro, a figura daconciliação.

Com a audiência preliminar, o que se passaa verificar é justamente o fato de o juiz ter odever de tentar promover a conciliação entre aspartes, visando a solução do conflito de formamais amena. Assim, com esta reforma, o art. 331,agora, determina a promoção de audiênciapreliminar para a avaliação da regularidadeprocessual, devendo o juiz proferir decisão oraldurante a mesma. Esta audiência possui trípliceobjetivo: conciliação, saneamento e preparopara a instrução.

Como se percebe, a audiência preliminarpossui três momentos, realizando-se o primeiroquando da tentativa inicial do juiz em conciliaras partes e promover um acordo que solucioneo litígio. Somente após este momento é queestará autorizado o magistrado a verificar aregularidade da relação processual e determinaros pontos controvertidos da lide.

Desta forma, quanto ao princípio daoralidade, este teve um novo impulso em suainfluência sobre o nosso sistema processual.Porém, tal posicionamento, na atualidade,apresenta-se de forma bem diferenciada àestabelecida pelo CPC de 1939, possuindo ojuiz maior agilidade no procedimento, pro-movendo o acordo entre os litigantes, o quepode abreviar muitas contendas. Caso issonão ocorra, ainda assim o magistrado man-terá sua atividade vigilante da atuação das

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partes, como temos demonstrado nesteestudo.

Quanto à aplicabilidade deste novo instituto,encontramos divergências em nossa doutrina.

Situando-se em um ponto, o ilustre doutri-nador Cândido Rangel Dinamarco10 determinaque, com esta inovação, fica o juiz adstrito aanalisar as questões processuais somente apóstal audiência, que, a partir de agora, tornar-se-iaautêntica “audiência saneadora”.

Pela tese de Cândido Dinamarco, tal institutotorna-se obrigatório em todos os processos emque se verifica a vinculação do magistrado empromover o saneamento do processo. Destaforma, o procedimento ordinário possuiria, deagora em diante, a obrigatoriedade desta audi-ência preliminar, mesmo que não haja possibili-dade de conciliação, já que seria neste momentoa oportunidade de o juiz proferir manifestaçãosobre a regularidade do processo, assim comoestabelecer quais são os pontos controvertidosda lide.

Portanto, não haveria que se falar emextinção do processo pelas questões analisadasno tópico anterior antes da tentativa deconciliação, que se observaria logo após a fasepostulatória. Dentro deste parâmetro, ter-se-iacomo nulo o processo, caso a autoridade julga-dora não tivesse realizado o procedimentoadequado, já que o mesmo seria obrigatório.

Cândido Rangel Dinamarco11 deixa isto bemclaro, demonstrando que a antiga forma desaneamento do processo através de despachoescrito foi revogada, só existindo a possibilidadede se proferir oralmente o entendimento sobreas questões enfocadas nesse momento daaudiência preliminar.

Diversa é a posição de Carreira Alvim12, tam-bém compartilhada por Humberto TheodoroJúnior13, que admite tal audiência apenas nahipótese de possibilidade de conciliação,porquanto a realização deste ato com o intuitosomente de sanear o processo e determinar ospontos controvertidos da lide induziria a umatraso em todo o procedimento, sendo muitomais eficaz à economia processual um mero des-pacho escrito, deixando de sobrecarregar a pau-ta de audiências, destinando tal instrumento

para as causas que realmente demonstrem anecessidade deste procedimento ou que tenhampossibilidade de conciliação.

Esta tese é justificada por meio da próprialetra da lei, que determina a aplicação do art.33114 do CPC somente após a verificação daimpossibilidade de julgar antecipadamente a lideou de extinção do processo sem pronunciamentode mérito. A audiência preliminar, assim como aconciliação do litígio, terão característica resi-dual em face do seu cabimento estar adstrito àinexecução das duas atividades anteriormentecitadas. Esta posição, que tem sido acolhidamais amplamente, alivia a carga de audiênciasdos magistrados, tendo a possibilidade da com-posição independente da audiência preliminar,conforme expõe Carreira Alvim15 através do art.125, inciso IV, do CPC.

Ambos os pensamentos têm suas vanta-gens. Inicialmente, quanto ao entendimento deCândido Dinamarco, certamente a promoção deconciliação antes de qualquer outro ato trariapara o procedimento a obrigação do magistradode promover esta conciliação e, conseqüente-mente, a composição do litígio, que é o fimespecífico do processo, assim como tal decisãotransitaria em julgado, encerrando a atividadejurisdicional, enquanto as outras formas dedecisão sempre possibilitam recursos, muitosprotelatórios, prolongando desnecessariamentea jurisdição e o sofrimento das partes. Igual-mente, ainda que haja a previsão de composiçãoa qualquer tempo por parte do juiz pela aplicaçãodo art. 125, inciso IV, do CPC, este dificilmenteserá utilizado pela própria gama de trabalho nasquestões cíveis, ocorrendo mesmo o sacrifícioda conciliação pela aplicação das hipótesesprecedentes ao art. 331.

Quanto à posição de Carreira Alvim, certís-sima a crítica a Cândido Dinamarco quanto àobrigatoriedade de realização da audiência

10 DINAMARCO, Cândido R. Op. cit. p. 118.11 DINAMARCO, Cândido R. Op. cit. p. 113-

137.12 ALVIM, J. E. Carreira. Op. cit. p. 192.13 JÚNIOR, Humberto T. Op. cit. p. 15.

14 Art. 331. Se não se verificar qualquer das hipó-teses previstas nas seções precedentes e a causa versarsobre direitos disponíveis, o juiz designará audiênciade conciliação, a realizar-se no prazo máximo de trintadias, à qual deverão comparecer as partes ou seusprocuradores, habilitados a transigir.

§ 1º Obtida a conciliação, será reduzida a termo ehomologada por sentença.

§ 2º Se, por qualquer motivo, não for obtida aconciliação, o juiz fixará os pontos controvertidos,decidirá as questões pendentes e determinará asprovas a serem produzidas, designando audiência deinstrução e julgamento, se necessário.

15 ALVIM, J. E. Carreira. Op. cit. p. 191.

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preliminar quando verificada a impossibilidadede conciliação, porquanto a pauta de audiênciasdeste gênero também inviabilizaria a atividadejurisdicional, sendo mais sensato o despachoescrito nos autos para proceder ao saneamentodo processo e marcação dos pontos controver-tidos da lide.

Desta forma, a doutrina ainda se mostravacilante quanto aos fatores acima apontados,havendo uma tendência à linha de pensamentode Carreira Alvim, mesmo porque, conformeescrito anteriormente, esta adota literalmente aorientação da norma legal, razão pela qual deveser a adotada.

Conforme se depreende do escrito acima, aatividade saneadora do juiz tem naturezacomplexa, podendo ir de uma simples decisãointerlocutória até alcançar a natureza desentença de mérito, através da conciliação entreos litigantes ou proferindo decisão sobre asprovas produzidas nos autos, e não somentesobre questões procedimentais.

No atual Código de Processo Civil exami-namos duas hipóteses como atividade sanea-dora do juiz. A primeira, quando da extinção doprocesso por vício insanável ou pela ocorrênciade algum fato que torne inviável a prestaçãojurisdicional. A outra possibilidade envolve osaneamento em si, quando o juiz, mesmo verifi-cando algum vício no processo, possui soluçãonos próprios autos, sendo possível salvar osatos praticados até aquele momento, cami-nhando o procedimento para a decisão domérito.

Quanto à primeira possibilidade do juiz, aextinção do processo, este pode ser com ousem julgamento do mérito, estando elencada,em sua maior parte, no art. 267 do CPC. Na hipó-tese de extinção do processo sem que tenha ojuiz analisado a questão fundamental do pedido,esta sentença será terminativa, só possuindo oefeito da coisa julgada formal. Porém, nos casosarrolados no art. 269, incisos II a V, apesar denão ter havido uma análise da procedência dopedido, haverá a extinção do processo comefeito de decisão de mérito, produzindo portantoo efeito da coisa julgada material, impossibili-tando, assim, uma nova apresentação peranteo Poder Judiciário daquele pedido formuladona inicial.

Com relação à atividade saneadora do juizpropriamente dita, esta, antes da Lei nº 8.952/94, pressupunha tão-somente que o sanea-mento do processo era feito durante toda a faseprocessual, culminando com o despacho de se

encontrar o processo saneado, após a fase pos-tulatória.

Este saneamento, após a reforma promovidano final do ano de 1994, tem a possibilidade deestágio próprio para ser feito, a audiência preli-minar ou por despacho escrito conforme expos-to na discussão entre os doutrinadores sobre areforma. Depois de verificada a regularidade darelação processual, deverá o magistrado prepa-rar-se para fixar quais os pontos litigiosos damatéria em questão, visando preparar a audiên-cia de instrução e julgamento, que versarásomente sobre o mérito da causa. Conformeexpõe Humberto Theodoro Júnior16, para situaresta atividade saneadora, devemos considerarque a mesma só será cabível caso não seja oprocesso extinto por terem os contendores seconciliado na audiência preliminar, ou não tenhahavido algum dos motivos elencados no pontoanterior, nem esteja o processo pronto para queseja proferida decisão antecipada da lide.

Além dos exames quanto à regular compo-sição do processo, será nesta audiência preli-minar o momento oportuno para que o juizdecida sobre a questão da produção de provaspericiais e testemunhais, estabelecendo quaisos pontos controvertidos da lide, devendo taisprovas serem produzidas já na audiência deinstrução e julgamento.

Como se verifica, a audiência de instrução ejulgamento é necessária somente para os casoscontrovertidos que exijam prova testemunhalou pericial para comprovação dos fatos queforam expostos durante a fase postulatória; nosdemais casos, sua obrigatoriedade seria umformalismo por parte do direito processual civil,o que, no momento pelo qual passamos, signi-ficaria um retrocesso. A cada dia encontramosno processo somente um instrumento para acomposição da lide, principalmente na área civil,justificando assim até a dispensa, em algunscasos, do princípio da oralidade que, com acomplexidade de nossa sociedade, ao invés deser um fator dinamizador para o processo, acabapor caracterizar-se como um entrave, pois aquantidade de demandas tornaria o sistemajurisdicional inoperável.

5. Efeitos no despacho saneadorSempre que analisamos os efeitos de uma

determinada decisão no processo, estes severificam conforme a natureza da disposição

16 JÚNIOR, Humberto T. Op. cit. p. 15-16.

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proferida pelo julgador. No caso do despachosaneador, ou da atividade saneadora dojulgador, encontramos uma complexidade deformas de decisão, partindo de uma decisãointerlocutória até uma sentença de mérito.

Conforme o nosso estudo, o despachosaneador tem a finalidade de manter a regulari-dade na formalização do processo e, como tal,verifica-se principalmente através da consta-tação dos pressupostos processuais e dascondições da ação.

Caso se verifique um vício insanável, odespacho saneador funcionará como um abre-viador de um processo que não possui meiosde cumprir a sua função de prestação jurisdi-cional. A decisão que põe termo ao processoserá uma sentença terminativa, pois não teráhavido uma apreciação do pedido objeto daquestão litigiosa, tendo como efeito somente acoisa julgada formal, ou seja, apesar de o autornão ter conseguido cumprir o seu intentonaquele processo, poderá propor uma novaação, com maior cautela, visando a uma perfeitarelação processual. Como o objeto verificadoneste momento se limita a questões de âmbitounicamente formal, de acordo com GalenoLacerda, que expôs a questão de maneirabrilhante, há uma preclusão, porém com extinçãoda jurisdição, não podendo aquele juiz rever amatéria. Mas, no momento em que haja umanova proposição da questão, esta poderá serexaminada novamente, mas à luz de um novoprocedimento e não mais do anterior.

Com a reforma da Lei nº 8.952/94, o juizpoderá, nesta fase, promover a conciliação entreas partes durante a audiência preliminar. Casotal tentativa tenha sucesso, o mesmo homolo-gará a composição acordada entre as partes,tendo esta sentença a característica de julga-mento de mérito, cujo efeito será a coisa julgadamaterial, tornando-se lei entre as partes.

Quanto às decisões que envolvem a ativi-dade saneadora propriamente dita, será nesteponto que encontraremos a maior controvérsiadiscutida no passado, pois, como expõe GalenoLacerda, no Código de Processo Civil de 1939,uma decisão que tenha sido proferida sucinta-mente a respeito da regularidade do processonão seria passível de se considerar preclusa notocante aos pressupostos processuais ou àscondições da ação. Isto posto, não haverianecessidade de se recorrer da mesma, pois seriaconsiderada esta como um mero despachoordinatório. Só era considerada passível depreclusão a matéria que fosse decidida de forma

fundamentada, admitindo, neste caso, apossibilidade da preclusão da decisão por inér-cia da parte que eventualmente entendesse quealgum direito seu havia sido prejudicado.

Atualmente, em cima de tal entendimento, oart. 471 do CPC proíbe expressamente que o juizreexamine questão já decidida naquela lide. Aexceção que se faz a este dispositivo está no §3º do art. 26717, que possibilita ao juiz conhecerde tal matéria a qualquer tempo, desde que sejaantes da sentença de mérito. Porém, apesar destamatéria ser conhecida a qualquer tempo, a parteque não alegar no momento oportuno o prejuízoverificado responderá pelo seu atraso. Portanto,o que se conclui é justamente o fato de verifi-carmos a preclusão desta decisão somentequanto à disponibilidade do direito em questão,caso não haja algum apelo da decisão proferida,já que a exigência do recurso para a decisãonão possui exceções.

Este também é o pensamento de José R. Cruze Tucci, em Sobre a eficácia preclusiva daDecisão Declaratória de Saneamento18, ondeapresenta a preclusão, na verdade, comodependente mais da disponibilidade da matériaobjeto da discussão. Mas, mesmo que a partenão tenha recorrido naquele momento, por sera mesma indisponível, não há que se falar emimpossibilidade do seu reexame. Porém, casose verifique o contrário, não tendo a parte inte-ressada manifestado o seu inconformismo, nãohaverá a possibilidade de reconsideração dadecisão, nem pelos litigantes, nem pelo julga-

17 Art. 267. Extingue-se o processo, sem julga-mento de mérito:

(...)IV - quando se verificar ausência de pressupos-

tos de constituição e de desenvolvimento válido eregular do processo;

V - quando o juiz acolher a alegação de peremp-ção, litispendência ou de coisa julgada;

VI - quando não concorrer qualquer das condi-ções da ação, como a possibilidade jurídica, a legiti-midade das partes e o interesse processual;

(...)§ 3º O juiz conhecerá de ofício, em qualquer tem-

po e grau de jurisdição, enquanto não proferida asentença de mérito da matéria constante dos ns. IV, Ve VI; todavia, o réu que a não alegar, na primeiraoportunidade em que lhe caiba falar nos autos, res-ponderá pelas custas de retardamento.

18 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Saneamentodo Processo: estudos em homenagem ao professorGaleno Lacerda, Porto Alegre, 1989. Sobre a eficáciapreclusiva da decisão declaratória de saneamento.

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dor, por mais que o mesmo tenha mudado a suaidéia, pois infringiria o dispositivo do art. 471,não podendo tomar uma iniciativa que a pró-pria parte, que seria prejudicada não tomou,presumindo-se inclusive a satisfação desta, jáque ficou inerte ao que foi decidido pelojulgador inicial, sem interpor qualquer remédioda decisão.

Caso estivéssemos sob a vigência doCódigo anterior, na hipótese da decisão sucinta,o juízo sobre as questões preliminares e preju-diciais só seria emitido no momento da decisãode mérito, juntamente com a análise dasquestões de fato. Esta prática, mesmo naquelaépoca, não era o ideal a ser adotado, pois oinstituto do saneamento do processo visajustamente eliminar tais abordagens na sentençade mérito, que deveria decidir unicamente sobrea procedência do pedido.

Como se pode observar, os efeitos são muitodiversificados, pois há uma grande variedadede decisões possíveis na fase de saneamentodo processo, devendo a parte ficar atenta aoque foi proferido neste momento, permanecendoos seus interesses efetivamente protegidos.

6. Recursos no despacho saneadorQuanto aos recursos possíveis no despacho

saneador, estes dependerão mais da naturezada decisão que é proferida na fase de sanea-mento. Quanto às decisões que extinguem oprocesso, com ou sem julgamento de mérito, orecurso cabível é a apelação, pois a naturezadesta decisão será sempre a de sentença,conforme podemos verificar pelo art. 162 doCPC atual.

Quanto às demais decisões, as mesmasserão sempre interlocutórias, simples ou mistas,cabendo destas sempre o recurso de agravo,igualmente reformado pela Lei nº 9.139, de30.11.95. O presente recurso após esta normajurídica já não mais admite a reconsideração dadecisão proferida, devendo ser dirigido direta-mente ao tribunal competente para decidir aquestão. É admissível nesta matéria tanto oagravo quanto o agravo retido, que nada mais éque o mesmo recurso, devendo somente serapreciado na fase de apelação, como preliminarà matéria principal da causa em discussão.

A questão que se pode indagar nestecampo diz respeito às decisões do magistradoque acabam por excluir alguma parte ou limitar amatéria litigiosa. Ainda aqui o recurso cabívelserá o agravo, pois o processo é uno e não

caberá um recurso de apelação àquela parte.Tal posicionamento se justifica pelo fato de oprocesso não ter efetivamente terminado, únicahipótese do recurso de apelação, não havendoque se falar em término do processo para umadas partes ou para alguma questão. Tais pontosdeverão ser discutidos em tese de agravo, jáque a matéria decidida, ainda que relevante, foiuma questão incidente no processo.

No caso dos processos originários dostribunais superiores, a questão torna-se maiscomplexa, devendo a matéria ser tratada pelosregimentos internos daquelas Cortes, haja vistaa situação diferenciada em que um recurso dasdecisões desta natureza é tratado dentro doâmbito daquele tribunal. Assim, as regras serãoa de que caberá o recurso de agravo regimentalda decisão proferida por despacho monocráticoe das decisões colegiadas e dependerá damatéria e do tipo de procedimento adotado paraa verificação dos recursos possíveis de sereminterpostos.

Desta forma, no atual processo civil, osrecursos possíveis para a decisão do despachosaneador são basicamente dois: a apelação e oagravo, dependendo, tão-somente, de terhavido extinção ou não daquele processo.

7. ConclusãoConforme observamos neste estudo, a

atividade saneadora do juiz possui um campode atuação bem extenso, incluindo a partir dofinal de 1994, com a Lei nº 8.952/94, a audiênciapreliminar, nossa mais recente aquisição aocombate contra o prolongamento das demandasjudiciais.

O despacho saneador, instituto que eraadotado por nosso Código de Processo Civilde 1939, possuía algumas limitações à atividadedo juiz, privilegiando o princípio da economiaprocessual. Atualmente, através do saneamentodo processo, isto não mais ocorre, sendo amplosos poderes do juiz para promover a regularidadeda relação processual, demonstrando-nos comoo instituto possui um papel importantíssimo naatividade jurisdicional.

Com a inovação da audiência preliminar, adiretriz exposta neste trabalho fica ainda maisexplícita, já que a conciliação será uma dasprioridades na atividade do magistrado,porquanto tal atividade acabará por abreviarmuitas contendas através da transigência entreas partes, satisfazendo tanto a questão da

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efetiva prestação jurisdicional como também àeconomia processual, cuja falta é tão criticadaem nossa sociedade.

O instituto do saneamento do processo,como se apresenta atualmente, tem sido ofruto de várias reivindicações, que, certamente,só contribuíram para o engrandecimentodeste estatuto jurídico, mostrando-nos queo processo se tornou um instrumento maiságil na finalidade de resolver a lide de formamais célere.

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SUMÁRIO

FÁBIO BITTENCOURT DA ROSA

1. IntroduçãoEm suas Instituições de Direito Civil ,

volume 1, Caio Mário da Silva Pereira limita-se adizer que o direito é o princípio de adequaçãodo homem à vida social.Tal noção supõe autilidade e a necessidade do direito como regrade convivência com vocação para a ordemindispensável ao progresso em todos osângulos e interesses da comunidade.Sem ordemjurídica imperaria o tumulto e, nesse ambiente,nenhum progresso seria cogitável. A grandesensibilidade do criador da norma jurídica estáem identificar com exatidão essa necessidadeem toda a sua extensão, significado e profun-didade.

O direito material, vivido pelo povo comocrença espontânea, fortalecido pelos laços dacivilização, acreditado como socialmente útil,constitui a realidade que nem sempre os consti-tuintes, ou mesmo os legisladores, conseguemperceber.

O direito formal, como expressão do poderconstituído em determinado momento histórico,nem sempre traduz o direito material. Calculamal, traça contornos errados nas regras, sonegaconceitos indispensáveis, fere o sistema, trai ahistória, satisfaz interesses privados.

Se os homens tivessem exata consciênciade seus deveres, e da utilidade de observá-los,

Crimes e seguridade social

Fábio Bittencourt da Rosa é Juiz do TribunalRegional Federal da 4ª Região, Professor de DireitoPenal da PUC-RS.

1. Introdução. 2. Evolução legislativa. 3. Lei nº8.212/91. 4. Omissão no recolhimento: algunsproblemas. 5. Inconstitucionalidade da lei que cria acontribuição: questão prejudicial. 6. Advento da Leinº 9.249/95. 7. Conclusão.

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inexistiriam regras, ou elas seriam mínimas.A maior ou menor dimensão do direito

escrito de um país corresponde, proporcional-mente, ao grau de civilização e cultura de seupovo.

O direito, portanto, é decorrência de umanecessária regulação de vida, culminando aintensidade dessa necessidade na criação dasleis penais.

Se o ato ilícito desequilibra a ordem doEstado, o ilícito penal, certamente, é aquele quemaior dano social pode causar.

Crime, dessa maneira, não deveria corres-ponder a uma decisão burocrática, fundada nointeresse político de um governo eventual.Crime, em verdade, constitui lesão a um bem devida altamente valorizado pelo povo, quevulnera sua segurança, que atinge sua inte-gridade.

Cada vez mais, em nome de um carátersancionador do direito penal, procura-se crimi-nalizar condutas que nem sempre caracterizamdelitos, segundo o direito material, com a noçãodeste como visto antes.

No Brasil – economia instável dos suces-sivos e milagrosos planos econômicos – acriminalização é excessiva. Parece que tudopode ser solucionado com a criação de uma regrapenal.

Mas, se isso é verdade, não menos corretoé afirmar que, invariavelmente não tem a naçãoo sentimento ético adequado para assimilar oefeito deletério de uma nova criminalidade, nãoconseguindo assimilar a indispensabilidade daincriminação no âmbito da atividade econômica.

O homem comum se traumatiza com a vio-lência urbana. Choca-se com os assaltos,impressiona-se com os seqüetros, os estupros,os furtos. Reage com passionalismo diantedessa situação. Não tem, porém, percepção domaior dano ocasionado pela criminalidade docolarinho branco. É atividade que acontecelonge de seus olhos, não afeta diretamente suaconta bancária, não tolhe sua liberdade ime-diata. Ademais, desvaloriza totalmente a classepolítica do país, o Estado em todas as suasformas de expressão.

O Direito Penal Econômico, como realidadejurídica adequada à repressão, é pesquisareservada a idealistas. Não há grande espaçonesse setor, a não ser na justa medida em que apesquisa tender a favorecer os criminosos.

Se o poder econômico fosse organizado ejusto, seria o primeiro a estimular a pesquisa,

porque o sonegador de tributos, por exemplo,além de lesar o interesse fiscal e tributário, atingeo empresário honesto que tem de suportar oaumento da carga tributária.

Isso, todavia, não acontece assim. E a mídia,como representante do poder econômico, cola-bora eficazmente para a formação da opiniãoem tais termos enganosos.

No Brasil, estamos defasados em matéria delegislação penal econômica. A multa tratadapelos artigos 8º e 9º da Lei nº 8.137/90 foi inde-xada em BTN, indexador extinto pela Lei nº 8.177/91, que criou a TR. Os valores, hoje, sãoirrisórios.

Em matéria previdenciária, como veremosadiante, a regulação apresenta também sériosdefeitos.

2. Evolução legislativaAtravés da Lei nº 3.807, de 26 de agosto de

1960, tratou o Estado brasileiro de organizar commaior eficácia um sistema previdenciário admi-nistrado pelo poder público. Os princípios dejustiça social exigiam tal intervenção estatal,assegurando-se o trabalhador contra o infor-túnio.

Esse diploma legal tipificou uma conduta,em seu artigo 86:

Será punida com as penas de crimede apropriação indébita a falta derecolhimento, na época própria, dascontribuições e de outras quaisquerimportâncias devidas ao InstitutoNacional de Previdência Social e arre-cadadas dos segurados ou do público.

No âmbito penal limitou-se a isso.Outros comportamentos lesivos a interes-

ses da Previdência Social ficavam sob a eficácianormativa do Código Penal e legislação extra-vagante.

O artigo 155 da Lei nº 3.807/60 tratou damulta, e, posteriormente, o Decreto-lei nº 66, de21.11.66, também incriminou como apropriaçãoindébita o fato de não se pagar o salário-famíliaaos empregados, quando já reembolsadas asrespectivas cotas pela Previdência Social.

Esses tipos incompletos tiveram sua regu-lação repetida nas consolidações posterioresda legislação previdenciária.

Severas críticas a esses dispositivos foramfeitas por Manoel Pedro Pimentel em artigopublicado na RT-451, páginas 321 e seguintes:

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Uma coisa, porém, é indubitável: foipreciso que o legislador equiparasse ascondutas descritas na lei especial aocrime de apropriação indébita, pois averdade é que, se assim não agisse,ninguém veria nesse comportamento oselementos constitutivos daquele delito.

Segundo o mestre paulista, o empresárionão era mandatário ou depositário das contri-buições, limitando-se a omitir-se no cumprimen-to de um dever criado pela administração previ-denciária. Logo, era incorreto imputar-lhe oabuso de confiança, que é inerente ao crime doartigo 168 do Código Penal.

Essa espécie de crítica se repetiu, e, talvezpor isso, a modificação do sistema veio com aedição da Lei nº 8.137, de 27.12.90, que definiuos crimes contra a ordem tributária, dizendo noartigo 2º, inciso II:

Constitui crime da mesma natureza:II - deixar de recolher, no prazo legal,valor de tributo ou de contribuiçãosocial, descontado ou cobrado, na qua-lidade de sujeito passivo da obrigaçãoe que deveria recolher aos cofrespúblicos.

A pena, que era de 1 a 4 anos de reclusão(artigo 168 do Código Penal), passou a ser de 6meses a 2 anos de detenção, além da multa.

O artigo 14 dessa lei previu a causa extintivada punibilidade, quando pago o tributo antesdo recebimento da denúncia. A regra foi revo-gada, posteriormente, pelo artigo 98 da Lei nº8.383 de 30.12.91.

Nada mais acertado do que tal revogação.A extinção da punibilidade pelo pagamento é ofator mais estimulante desse tipo de criminali-dade. Com a dificuldade de obtenção de capitalde giro, ao empresário era mais fácil se apro-priar indevidamente de tributos, solvendo odébito se descoberto o ilícito. Porque, emverdade, a autoridade fiscal tem muito poucaeficiência em seu trabalho mercê do enfraque-cimento geral do serviço público em nosso país.Assim, havendo perspectiva favorável de quea sonegação fosse sucedida, ficava o empre-sário estimulado à reincidência.

A discussão deve ser colocada no sentidode ser ou não tipificada uma conduta em matériatributária, mas não que se esvazie a norma exis-tente através de um instituto assegurador daimpunidade.

Pior do que o vazio da lei é sua existência

inválida, trôpega, porque além de não regular avida, gera a descrença no direito.

Obviamente, os fatos ocorridos na vigênciada Lei nº 8.137/91 permanecem sob o abrigo desua eficácia em vista das normas de direitointertemporal. A lei posterior é irretroativa inpejus. Opera-se o efeito da ultratividade da leimais benéfica.

A dúvida surge, por exemplo, se o crimecontinuado da omissão de recolhimento detributos, ato omissivo que pode se repetir pormeses, abrange espaço temporal de vigênciadas leis conflitantes. Seria, no caso, aplicável oartigo 14 da Lei nº 8.137/90?

Se considerarmos que o crime continuado éunidade jurídica (fictio juris), poderemosconcluir que o crime se esgota com o último atoda continuação. Em tal hipótese, seria aplicávela lei vigente à época.

Em matéria de prescrição, o crime continuadotem merecido análise diversificada da doutrina.Uns consideram que o termo inicial do prazo daprescrição da pretensão punitiva seria a datado último ato da continuidade delitiva. Outros,porém, entendem que o termo inicial seria decada ato isoladamente.

A discussão pode ter muito relevo. Se doisatos da cadeia causal tiverem acontecido sob avigência da Lei nº 8.137/90 e o último sob avigência da Lei nº 8.383/91, quid juris? Consi-dere-se a possibilidade de prescrição dos doisprimeiros (sob a vigência da Lei nº 8.137/90).

Hoje, a pena para omissão de recolhimentode contribuições previdenciárias é a do artigo5º da Lei nº 7.492, de 16.6.86, ou seja, 2 a 6 anosde reclusão, e multa.

No exemplo acima, se considerarmos a pres-crição isolada das duas condutas iniciais, ou seentendermos que o valor das contribuições não-recolhidas, e que teriam sido pagas antes dadenúncia, constituísse causa extintiva da puni-bilidade, restaria um ato apenas como materia-lidade do delito. Tal conclusão viabilizaria a apli-cação da pena mínima de dois anos de reclusão,obviamente sem a causa de aumento do crimecontinuado (artigo 71 do Código Penal), dandoensejo à concessão do sursis.

Penso que o fracionamento em referência épossível.

No exemplo dado, se o empresário tivessepago o valor das três competências em relaçãoàs quais houvera o ato omissivo do recolhi-mento, incidiria a regra do artigo 14 da Lei nº

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8.137/90 relativamente aos dois primeiros atosda continuidade delitiva; efeito da ultratividade,que impede o legislador de trair a perspectivado cidadão em sua conduta limitada pela normapenal. Se, no momento em que houve a omissão,sabia que podia pagar e ver extinta a punibili-dade, a regra do jogo não pode ser mudada emprejuízo do cidadão.

Outra questão interessante seria a aplicaçãoda pena, se dois atos tivessem ocorrido quandoem vigor a Lei nº 8.137/90, e o último sob avigência da atual Lei nº 8.212/91. Haveria crimecontinuado, sem dúvida; no entanto, qual apena abstrata aplicável: 6 meses a 2 anos dedetenção, ou 2 anos a 6 anos de reclusão?

Penso que, nessa hipótese, deve ser consi-derada a unidade jurídica que constitui o crimecontinuado, concluindo-se pela aplicação da leivigente no momento do último ato. Não é pos-sível fracionar a conduta quanto a esse aspecto.Confesso, todavia, que a espécie pode geraralguma polêmica, porque a solução, emboratécnica, não parece a mais justa. Especialmenteno crime de que estamos tratando, com umamodificação bem gravosa na resposta penal.

3. Lei nº 8.212/91O novo Plano de Custeio da Previdência

Social, através da Lei nº 8.212, de 24.7.91, comojá se viu, trouxe modificações no âmbito penal.

O artigo 95 dessa lei em seu caput, diz queconstitui crime as condutas que passa adescrever, nas letras a até j.

Os comportamentos definidos nas letras aa f constituem crimes omissivos próprios.Decorrem de infração de um dever legal. O autoromite-se no cumprimento de uma obrigaçãofiscal. É lesão ao interesse da fiscalização dire-tamente e, indiretamente, aos cofres do sistemaprevidenciário.

As demais letras definem crimes comissivos.São falsidades materiais ou ideológicas, tendoa letra j descrito um estelionato contra aSeguridade Social.

Atente-se para que os crimes tutelam aSeguridade Social, conceito mais amplo do quePrevidência Social. A primeira abrange tambémas atividades nas áreas de saúde e assistênciasocial.

A Lei nº 8.212/91 no § 1 º do citado artigo 95,dispõe:

no caso dos crimes caracterizados nas

alíneas d, e e f deste artigo, a pena seráaquela estabelecida no artigo 5º da Leinº 7.492, de 16 de junho de 1986, apli-cando-se à espécie as disposições cons-tantes dos artigos 26, 27, 30, 31 e 33 docitado diploma legal.

A Lei nº 7.492/86 trata dos crimes contra osistema financeiro nacional. Seus artigos 26 eseguintes são, geralmente, normas processuais.

Como se vê, o artigo 95 da Lei nº 8.212/91definiu tipos, mas não disciplinou penas.Limitou-se a reportar-se a outra legislação a fimde sancionar as condutas descritas nas letrasd, e e f.

Se o crime do artigo 86 da Lei nº 3.807/60 eraum tipo incompleto, porque se reportava aoartigo 168 do Código Penal, criando forma equi-parada, o mencionado artigo 95 da Lei nº 8.212/91 porta uma minusvalia ontológica bem maisacentuada.

Norma penal tem preceito e dispositivo, ounão será norma. Funcionaria como um sino sembadalo, estético e inútil.

As falsidades e fraudes estão disciplinadaspelo Código Penal. Não precisaria se dizer nadae já seriam puníveis.

O legislador só complicou as coisas. Seguea causa de aumento de pena do § 3º do artigo171 do Código Penal nos crimes em questão? Aletra j do artigo 95 em referência nada especifi-cou a respeito.

Obviamente, sendo regra inútil, não contémcomando, que permanece expresso no artigo171 do diploma penal com sua causa de aumentode pena, plenamente aplicável.

A capitulação de uma denúncia por crimescontra a Seguridade Social nunca poderia sereportar à referida letra j, mas ao artigo 171 doCódigo Penal.

Mas, se algumas alíneas são simples edesnecessárias descrições de tipos já existentes,como se observou, outras não dizem nada,permanecem quase sem suporte.

Deixar de incluir empregado em folha depagamento, que crime caracteriza? Não existeadequação a normas do sistema punitivo brasi-leiro, a não ser que se force uma interpretaçãoextensiva do artigo 1º da Lei nº 8.137/90.

As alíneas b e c se ajustam aos tipos criadospela citada Lei nº 8.137/90, em seus incisos I e II.

A letra c poderia caracterizar comportamentodefinido pelo artigo 2º da Lei nº 8.137/90, emseu inciso I. A receita e o lucro são fatos

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geradores de contribuições segundo o artigo195, inciso I, da Carta de 1988, que fala em fatu-ramento, termo contábil que em nada se dife-rencia de receita sob um ponto de vista jurídico.

A letra g do artigo 95 não encontra perfeitalógica em sua pretensão punitiva. Quem é olesado? Se o pretenso empregado foi incluídoem folha, e pagas todas as contribuições devi-das, que dano teria sofrido a receita da Previ-dência? Qual a lesividade potencial de uma talespécie de falsidade ideológica? Em que peri-clitaria o sistema?

O artigo 95 da Lei nº 8.212/91 foi um retro-cesso. Não vejo por que não devesse ter per-manecido o regramento da Lei nº 8.137/91, quepune os crimes contra a ordem tributária.Afinal de contas, a contribuição social é tributo,ou pelo menos deve respeitar seus princípiosfundamentais, o que acaba por significar amesma coisa. Essa dicotomia é discussão estérilsob a Constituição de 1988, em vista de seuartigo 149.

A verdade, todavia, é que permanecemoscom essa solução legislativa pouco adequada,porque de uma técnica sofrível.

A omissão no recolhimento das contri-buições descontadas e no pagamento do salário-família com referência às cotas reembolsadaspassou a ter um tratamento de uma rigidezexagerada.

Essa lesão, quando dirigida à PrevidênciaSocial resulta numa pena de 2 a 6 anos dereclusão. Mas, quando a vítima é o erário, apena é de 6 meses a 2 anos de detenção? Naprimeira hipótese, o tributo era a contribuiçãoprevidenciária; na segunda, por exemplo, oimposto sobre produtos industrializados (IPI).

Por que a diferença de tratamento? Lesar osistema previdenciário é tão mais grave assim?Será esse o sentimento ético da nação?

Ademais, as críticas tinham se sucedido arespeito do artigo 86 da Lei nº 3.807/60, comose comentou, porque a forma equiparada à apro-priação indébita era equivocada.

Pois agora praticamente se voltou a incidirno erro. É que a pena à qual se reportou o § 1ºdo artigo 95 da Lei nº 8.212/91 diz respeito aocrime contra o sistema financeiro, que tem estaredação:

Apropriar-se, quaisquer das pessoasmencionadas no art. 25 desta Lei, dedinheiro, título, valor ou qualquer outrobem móvel de que tem a posse, ou

desviá-lo em proveito próprio ou alheio.Não tem o crime contra a Previdência o pre-

ceito da apropriação indébita, mas sua soluçãosancionatória, o que, ao final das contas, acabapor ser uma coisa quase igual.

4. Omissão no recolhimento:

alguns problemasComo se sabe, o crime em questão é formal.

Consuma-se com o não-recolhimento da con-tribuição descontada na data do vencimento,ou seja, na época própria para o cumprimentoda obrigação tributária.

Vencido o prazo, o pagamento da exaçãonão destipifica o crime. E, atualmente, não maisconstitui causa extintiva da punibilidade,conforme já se disse.

No entanto, entendo que deve ser examinadacom muito cuidado a situação do empresárioque pagou após o vencimento, mas antes deficar evidenciada a omissão perante o fisco daSeguridade. Quer dizer: o fiscal em sua visita,constatou que o pagamento fora efetuado diasdepois do vencimento.

Seria punível tal conduta?A circunstância seria um indício manifesto

de que a omissão teria sido fruto de dificuldadesfinanceiras, ou de erro no recolhimento, o queimportaria não se reconhecer o elemento subje-tivo do crime, que é elemento do tipo de acordocom a teoria finalista.

Na primeira hipótese, poderia haver inexigi-bilidade de conduta adequada à norma; nasegunda, erro escusável ou não; mas, em qual-quer caso inexistente a intenção criminosa, nãosendo o crime em questão punido na formaculposa.

É óbvio que a prova incumbirá ao réu,porque o crime se consuma com o fatovoluntário do não-recolhimento no vencimento.A circunstância que modifica a situação definidapela acusação é a excludente de culpa. Logo,aplica-se o princípio sobre a inversão do ônusda prova consubstanciado pelo artigo 156 doCódigo de Processo Penal. Entretanto, como jáse referiu, permanece um indício favorável aoacusado.

Outro problema que pode ocorrer dizrespeito à materialidade do crime.

O tipo penal se refere à omissão no recolhi-mento da contribuição descontada. Logo, senão havia o valor respectivo, inexistiu o crime.

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Imagine-se o empresário que gaste suasúltimas disponibilidades com o pagamento dosalário líquido dos empregados, ou que sótivesse tais disponibilidades no momento detal pagamento. Evidente a inexistência do delito.

A prova, aqui, novamente se submete aoprincípio do artigo 156 do diploma processualpenal.

Se o empresário opta por pagar empregadose fornecedores para viabilizar a manutenção dosnegócios é possível admitir a inexigibilidade deconduta adequada, ou mesmo a dirimente doestado de necessidade?

É muito difícil a hipótese. Teria que se evi-denciar que a omissão teria sido causada parase evitar uma falência, ou algo semelhante.

O valor do bem jurídico tutelado está presu-mido na norma, na opção política do legislador,que não excepcionou a espécie. Nada justifi-caria o empregador lesar o direito do empregadoa um sistema previdenciário adequado, deixandode repassar valores devidos. Para a lei, em prin-cípio, é mais importante se manter a integridadeda Previdência Social do que a saúde financeirade algumas empresas, ou mesmo o salário deseus empregados. É que o sistema depende decálculo atuarial para sua saúde financeira. Se ocusteio decresce, todos os segurados e benefi-ciários sofrem as conseqüências.

O §3º do artigo 95 da Lei nº 8.212/91 atribuiresponsabilidade criminal a titular de firma indi-vidual, sócios solidários, gerentes, diretores ouadministradores.

Essa responsabilidade não é objetiva. Adecisão no sentido da conduta adequada aotipo deve ser consciente e desejada. Dessemodo, acaso seja o sócio traído por seu conta-dor, deverá comprovar a exclusão de sua culpa,destipificando-se o comportamento.

5. Inconstitucionalidade da lei que cria acontribuição: questão prejudicial

Suponha-se que um empresário tivesse des-contada da remuneração paga a um autônomo,por serviços prestados à empresa, a contribui-ção previdenciária. Mas, posteriormente, con-siderando inconstitucional a lei criadora daexação, tivesse devolvido o valor ao autônomo,ao invés de recolhê-lo aos cofres da SeguridadeSocial. Teria praticado crime?

Consoante se notou, o empresário sabia quese estava omitindo, contrariamente ao estabe-lecido em lei. Só que reputou inconstitucional

tal legislação, negando-se a cumpri-la.Sabe-se que a contribuição criada, na forma

do inciso I do artigo 3º da Lei nº 7.787/89, foiconsiderada inconstitucional pelo SupremoTribunal Federal, em controle difuso.

Praticamente a mesma regra foi repetida peloartigo 22, inciso I, da Lei nº 8.212/91. E, na açãodireta de inconstitucionalidade nº 1.102/94, oMinistro Paulo Brossard concedeu liminar nosentido de ser suspensa sua eficácia.

Portanto, hoje seria mais fácil solucionar aquestão posta no início deste item da exposição.

Temos que supor inicialmente, então, quenenhuma manifestação jurisprudencial tivesseocorrido.

Se fosse intentada ação penal pela omissãono recolhimento, e como matéria de defesa sealegasse que não havia contribuição devida àSeguridade Social, sendo atípica a conduta, qualo procedimento do juiz criminal? Aplicável oartigo 93 do Código de Processo Penal.

Não se tratando de questão relativa a estadocivil de pessoas, não fica o juiz do crime subme-tido à decisão do juiz do cível, como acontecena hipótese prevista no artigo 92.

Por tal modo, poderá o juiz criminal optarpor aguardar, ou não, a sentença em eventualação em que o empresário acusado estejapostulando o reconhecimento incidental dainconstitucionalidade da lei.

Se, no momento em que o juiz criminal fosseproferir a sentença, enfrentando a prejudicial, oSupremo Tribunal Federal já tivesse pacificadoa matéria por suas duas turmas, embora sem terhavido a suspensão da eficácia da lei peloSenado, o magistrado deveria se adaptar àorientação do STF, até pelo princípio da efetivi-dade do processo. Logicamente, não há vincu-lação à decisão do Pretório Excelso, na formada lei ou da norma institucional. Unicamente oque não deve o juiz é proferir sentenças inúteis,cujo destino é a reforma.

Se o STF tivesse, no momento antes referido,simplesmente deferido uma liminar em açãodireta de inconstitucionalidade, poderiamdecorrer situações diversas.

O provimento provisório tem efeito ex nuncem tal tipo de ação.

Se a omissão no recolhimento tiver ocorridoem data posterior à concessão da liminar peloSTF, a contribuição não seria devida, porque aeficácia da lei estava suspensa. Logo, não exis-tiria o crime, ficando o juiz criminal vinculado àdecisão da Suprema Corte.

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Se o juiz criminal entendesse constitucional alei, seria forçado a aguardar a decisão do STFquanto ao mérito da ação direta. É que não poderiaconsiderar devida uma contribuição criada poruma lei inválida, segundo o entendimentomanifestado pelo STF com efeito erga omnes.

Caso a data da omissão no recolhimentofosse anterior à da liminar concedida, a vincu-lação não ocorreria, sendo facultado ao juizcriminal enfrentar a prejudicial. Também por umaquestão de utilidade na prestação jurisdicional,deveria se adaptar ao entendimento da ExcelsaCorte, que em apenas um caso, até agora, nãoconfirmou no mérito o conteúdo da liminarconcedida.

Na hipótese, entretanto, de que o STF játivesse julgado o mérito da ação direta, comefeito ex tunc e erga omnes, o juiz criminal ficariavinculado à decisão da prejudicial, porque anorma já estaria fora do mundo jurídico, semvigência. Teria ficado claro que a contribuiçãonunca fora devida.

O julgamento do STF poderia ter aconte-cido em ação declaratória de constitucionali-dade. Em qualquer sentido, tal decisão vinculariao juiz criminal, já que o artigo 102, §2º, da Cons-tituição Federal, com a redação da Emenda Cons-titucional nº 3, de 1993, dispõe que tal julga-mento é vinculante aos demais órgãos do PoderJudiciário.

6. Advento da Lei nº 9.249/95Quando já estava concluído este trabalho,

foi editada a Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de1995. Esse é um fenômeno não muito incomum,atualmente, no Brasil.Difícil é escrever sobretemas específicos em matéria jurídica sem que oautor seja surpreendido, entre a elaboração dotexto e sua publicação, com normatização quemodifica, total ou parcialmente, o objeto docomentário.

O artigo 34 da citada Lei nº 9.249/95 dispõe:Extingue-se a punibilidade dos

crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729,de 14 de julho de 1965, quando o agentepromover o pagamento do tributo oucontribuição social, inclusive acessó-rios, antes do recebimento da denúncia.

A medida tem por finalidade reforçar o caixado Tesouro.

A disposição será revogada quando o

problema se amenizar e, em especial, quandorecrudescer a sonegação na esperança de nãoser descoberta a omissão.

De logo, é de se observar que o dispositivoabrange os crimes contra o caixa da SeguridadeSocial.

Desse modo, a omissão de recolhimento decontribuições previdenciárias poderá ser objetode extinção da pena, desde que o pagamentodos valores devidos se efetue antes do recebi-mento da denúncia.

O legislador referiu-se a tributo ou contri-buição social , numa evidência de que suaintenção não era de dar tratamento diferenciadoà omissão de recolhimento, seja ela de impostosou de contribuição devida à Previdência Social.

A falta de referência expressa aos tipos daLei nº 8.212/91 deve ser atribuída a descuido dolegislador brasileiro, o que pouco surpreende.

Hoje em dia, uma das maiores preocupaçõesda área econômica do governo diz respeito àsaúde financeira da Previdência Social. Nãoseria lógico que ficasse fora da decisão políticade amenizar a punibilidade de condutas lesivasà respectiva receita.

Por outro lado, evidente a retroação dosefeitos da norma às hipóteses de pagamentoanterior ao recebimento da denúncia.

De outro modo, a condutas idênticas seriamassegurados tratamentos diferenciados, o queé difícil conceber, especialmente em matériapenal.

Volta a questão relativa ao parcelamentocomo hipótese de extinção de punibilidade.

Apesar de algumas decisões do EgrégioSuperior Tribunal de Justiça, no sentido de queparcelar caracteriza promover o pagamento,deve-se entender que a norma penal em brancose completa com o conceito de pagamentoinserta no Código Tributário Nacional.

Segundo a lei tributária, pagamento consti-tui forma de extinção do crédito tributário, sendoo parcelamento da dívida simples moratóriaindividual, que não extingue o crédito.

Se com a prova do parcelamento se viabili-zasse a extinção da pena, isso importaria aextinção do processo penal.

A hipótese daria oportunidade a que odevedor parcelasse a dívida em inúmeras pres-tações, e que a mera satisfação de poucasimportasse o benefício penal. Por certo, não foiessa a intenção do legislador.

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7. ConclusãoOs crimes contra a Seguridade Social não

merecem destaque legislativo. São crimes con-tra a ordem tributária, não havendo motivo pararegras próprias de tipificação de condutas.

Observou-se, neste trabalho, que o artigo95 da Lei nº 8.212/91 constitui mera explicitaçãode comportamentos já puníveis, na confor-midade de outros diplomas legais.

Quanto ao mais, a tutela do sistema previ-denciário é suficiente com o arcabouço legisla-tivo do Código Penal e legislação extravagante.

Por outro lado, o bem de vida realizado pela

Seguridade Social não tem valor maior do queaquele de responsabilidade do restante daadministração. Prevenir o infortúnio do empre-gado, sua saúde, nem sempre é mais importantedo que assegurar ao povo uma boa educação,meios materiais para o progresso econômico emtodos os sentidos, como segurança, investi-mentos em atividades produtivas, transporte, etc.

Por que, então, punir os crimes contra aSeguridade Social, conforme se ressaltou antes,com penas bem mais severas do que aquelesque afetam o fisco?

Essas são despretensiosas consideraçõesa respeito de um tema que se abre ao debate.

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A responsabilidade por dano moral noDireito do Trabalho

Pinho Pedreira é livre-docente de Direito doTrabalho da Universidade Federal da Bahia e juiztogado aposentado do TRT da 5ª Região.

SUMÁRIO

1. A responsabilidade e a responsabilidade civil.2. O conceito de dano moral. 3. A natureza da repa-ração do dano moral. 4. Breve notícia histórica sobreo problema da reparação do dano moral no direitobrasileiro. 5. O dano moral e o Direito do Trabalho.6. As formas de reparação do dano moral no Direitodo Trabalho. 7. Os períodos em que se pode verificaro dano moral trabalhista. 8. O dano moral nas fasesde extinção do contrato de trabalho e pós-contratual.9. A reparação do dano moral trabalhista no direitobrasileiro. 10. Bilateralidade do dano moral. 11.Meios preventivos. 12. Ônus da prova. 13. Cumula-ção das indenizações por dano patrimonial e pordano moral. 14. Avaliação do dano. 15. Justiçacompetente.

1. A responsabilidade e a

responsabilidade civilResponsabilidade é a obrigação de reparar

o dano causado a terceiro em conseqüência deuma nova conduta ativa ou omissiva. O funda-mento da responsabilidade é o dever do homemde não prejudicar os demais, o neminem leaderedos romanos, áureo princípio que permaneceíntegro em matéria de responsabilidade,consoante a lição de Aguiar Dias1.

A responsabilidade é uma categoria jurídicaextensiva a todos os ramos do direito, público eprivado, mas alcançou o seu maior desenvolvi-mento numa das disciplinas constitutivas desteúltimo, o Direito Civil, de que um dos maisimportantes institutos é a responsabilidade civil.Consiste esta no dever imposto a quem infligiudano a outrem, em decorrência de violação de

1 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidadecivil. 9. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1983. V. 1, p.10.

PINHO PEDREIRA

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outro tipo de dano. E que este é possíveldemonstra o fato de estar reconhecido na dou-trina e sobretudo na jurisprudência da Itália umtertium genus de dano: o dano biológico, aolado do dano patrimonial e do dano moral. Odano biológico é a lesão à integridade física oupsíquica do indivíduo, enquanto o dano moralseria a conseqüência dessa lesão.

Outra censura às definições negativas, deque teve a primazia Sconamiglio2, é aquelasegundo a qual uma definição negativa somentepode ser admitida quando se trata de operar naesfera de fenômenos homogêneos. Já os danospatrimoniais e os danos morais constituemfenômenos completamente diversos.

Cabe, então, optar pelas concepções deformulação positiva. Destas devem ser descar-tadas as que identificam o dano moral com ossofrimentos experimentados por uma pessoa eque se expressam por meio da dor física oumoral, do “menoscabo dos sentimentos”, dapena moral, dos padecimentos não-suscetíveisde apreciação econômica, como as dos civilistasargentinos Llambías e Bustamante Alsina.Objeta-lhes, com razão, Antonio VasquezVialard que esses efeitos psicofísicos, conquan-to sejam uma conseqüência da lesão provocadapor um dano moral, não se produzem necessaria-mente, como acontece quando o dano afeta umdemente, um menor que não tem compreensãoou um ente ideal3. Devem ser desprezadas tam-bém, conquanto de formulação objetiva, asdefinições que consideram dano moral o cons-trangimento sofrido por alguém por efeito delesão de direito personalíssimo, não obstanteuma delas seja de autor tão categorizado comoOrlando Gomes4. Isto excluiria do conceito dedano moral a lesão de direitos que não sãopersonalíssimos, mas podem constituir objetode dano não-patrimonial, tais os pertinentes agrupos humanos, como a família e as pessoasjurídicas.

Antecedendo a sua definição de dano moral,que adotarei, escreveu, em excelente monogra-fia sobre este, o professor Rafael Garcia Lopez,da Universidade espanhola de Navarra:

“... a esfera do poder jurídico do sujeito

direito deste, de reparar o prejuízo, quer se cau-sado pelo próprio agente, por pessoa sob suaresponsabilidade ou por fato de animal ou coisasob sua guarda. A responsabilidade civil podeser contratual, quando originada de inadimple-mento de contrato, e extracontratual ouaquiliana, quando não há convenção entre aspartes, mas resulta do dever de a ninguémprejudicar. Há de atender a certos pressupostos,que são: fato voluntário do agente, que tantopode ser uma ação como uma omissão; imputa-bilidade ou capacidade de discernimento doagente; ilicitude, que se revela pela prática, porparte do lesante, de ato ou omissão violadorado dever de não prejudicar ou pelo descumpri-mento da regra que impõe esse dever. A ilicitudepressupõe: dolo, culpa ou risco, isto é, exposiçãodos demais a perigo em proveito próprio (teoriaobjetiva); nexo causal entre a ilicitude e o preju-ízo; dano, assim considerado o resultado daofensa feita por terceiro a um direito, patrimo-nial ou não, que acarrete prejuízo ao ofendido,conferindo-lhe, em decorrência, a pretensão auma indenização. O dano pode ser patrimonial,quando passível de avaliação pecuniária, oumoral, quando insuscetível de estimação dessanatureza.

2. O conceito de dano moralEmbora seja verdadeiro que o dano moral é,

como disse, aquele suscetível de ser aquilatadomonetariamente, não esgota essa afirmação oseu conceito. As definições de dano moral sãodivididas em dois grupos: as que adotamformulações negativas e as que adotam formu-lações positivas. As primeiras são as queconceituam o dano moral de forma que ele seriatodo dano extrapatrimonial. Esta concepção,muito difundida e a que, em oportunidadeanterior, aderi, sofre críticas bastante fundadas.Uma delas é a de que, para cobrar valor pleno aesse tipo de definição, deve-se previamentesustentar que os entes ou coisas cujas caracte-rísticas se pretende determinar só admitem doistipos de diversidade; de maneira que, não per-tencendo um dos elementos que se pretendeclassificar a um grupo, deve-se concluir auto-maticamente pela sua inclusão no grupooposto, quando é certo que pode existir umaespécie de dano que, não sendo patrimonial,tampouco possa ser considerado moral. Acontraposição dano patrimonial/dano não-patrimonial exauriria completamente o campo dodano jurídico, no qual não poderia ter ingresso

2 SCONAMIGLIO. Danno morale. Revista diDiritto Civile, n. 1, p. 277-336, 1957.

3 VAZQUEZ VIALARD, Antonio. La respon-sabilidad en el derecho del trabajo. Buenos Aires :Astrea, 1988. p. 753.

4 GOMES, Orlando. Obrigações. 4. ed. Rio deJaneiro : Forense, 1976. p. 332.

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de direito se compõe de bens pessoais(como a vida, o nome, a honra, etc.); benspatrimoniais, que se desenvolvem naesfera de caráter econômico que cerca apessoa; e bens familiares e sociais, querepresentam o poder da pessoa dentrodas organizações em que o sujeito semove.

No conjunto de tais bens jurídicosou relações jurídicas delimitam-se clara enitidamente dois setores perfeitamenteidentificados: por um lado, o formadopelos bens ou relações de valor econô-mico, que se denomina patrimônio; poroutro aquele conjunto de bens e direitosque configuram o âmbito puramente pes-soal do titular da esfera jurídica (bens oudireitos da personalidade, direitos defamília e sociais). O patrimônio determinao que a pessoa tem e o âmbito pessoal oque a pessoa é”.

Depois de outras considerações, define odano moral – atendendo à natureza do seu objetoe à consideração dele como efeito ou conse-qüência perniciosa – nestes termos: “o resul-tado prejudicial que tem por objeto a lesão oumenoscabo de algum dos bens ou direitoscorrespondentes ao âmbito estritamentepessoal da esfera jurídica do sujeito de direito,que se ressarcem por via satisfatória sob ocritério eqüitativo do juiz”5. É assim, compreen-dendo o dano moral, que falarei sobre a suareparação no Direito do Trabalho.

3. A natureza da reparação do dano moralControvertida é, na doutrina, a natureza da

reparação do dano moral. Formaram-se, arespeito, duas correntes, uma das quais lheatribui função punitiva, enquanto a outraconsidera-a compensatória.

Para Ripert, adepto da teoria da pena, o quea condenação ao pagamento de danos moraisrealmente visa não é à satisfação da vítima esim ao castigo do autor da ofensa. “As perdase danos não têm aqui caráter ressarcitório e simcaráter exemplar”6.

A reparação do agravo moral não pode ser

considerada como pena, entre outros motivos,porque esta possui um caráter sancionador,objetiva infligir ao causador do dano um castigo;diferentemente da reparação, que procuraremediar a ofensa causada ao lesionado, que éo fim colimado pelo direito. Ademais, a penatem caráter personalíssimo, sendo, conseqüen-temente, intransmissível, e não pode passar dapessoa do ofensor; reveste-se de “incontagia-bilidade”, para usar a linguagem de Pontes deMiranda; e a indenização do dano moral podeser paga por um terceiro, como, para exempli-ficar, o empregador do preposto que foi seuautor ou uma companhia seguradora.

Von Thur nega que tenha a reparação dedano moral função expiatória, pois sua finalidadenão é acarretar perda ao patrimônio do culpadoe sim proporcionar vantagem ao ofendido paraque possa destiná-la a procurar as satisfaçõesmateriais ou ideais que considere convenientes,acalmando o sentimento de vingança inato aohomem7.

Os partidários da teoria que vê na repara-ção do dano moral uma pena privada partem dopressuposto da necessidade de equivalênciaentre a reparação e o dano, equivalência estaque se observa na reparação do dano patrimo-nial, mas que não se pode verificar na reparaçãodo dano moral, porque não pode haver equiva-lência entre a dor e o dinheiro. Ainda argumen-tam os representantes da teoria da pena, entreos quais avulta Gabba, que, em se referindo odano moral a bens inestimáveis, insuscetíveisde avaliação econômica, a entrega de dinheirocomo conseqüência do evento danoso seriaimoral e importaria, de certo modo, a equivalên-cia do ressarcimento. Não se justificando este,a reparação pecuniária ainda constituiria umenriquecimento sem causa.

A isso respondem os seguidores da teoriada reparação de natureza satisfatória que nãose trata, no caso do dano moral, de equivalên-cia no mesmo sentido em que dela se fala arespeito do dano patrimonial. A reparaçãopecuniária tem, aqui, função satisfatória, sendoo dinheiro apenas um instrumento, um meio,para proporcionar à vítima sensações agra-dáveis, bens morais que contrabalancem osofrimento a ela infligido com o agravo a outrobem moral. Como exemplos de tais sensaçõesagradáveis podem ser apontadas viagens,possibilidade de, na hipótese de perda de um

5 GARCIA LOPEZ, Rafael. Responsabilidadcivil por daño moral. Barcelona : J. M. Bosch, 1990.p. 78-80.

6 RIPERT, Georges. La regla moral en lasobligaciones civis. Bogotá : Universidad La GranColombia, 1946. p. 267.

7 THUR, Andreas Von. Obligaciones. Madri,1934. T. 1, p. 58.

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filho, propiciar a outros filhos a realização decurso superior, ajuda a alguém. A indenizaçãopor dano moral pode não fazer desaparecer ador, nem mesmo atenuá-la, como é viável acon-tecer quando o dano moral consistiu na perdade filho, mas em qualquer caso exerce essafunção de “contrapeso da sensação negativa”,isto é, a função satisfatória. É ela geralmentereconhecida pela doutrina brasileira, a qual,entretanto, propende para uma solução mista,que reconhece à reparação do dano moral ocaráter, ao mesmo tempo, de pena e de ressarci-mento satisfatório. É esta a posição de algunsdos nossos civilistas mais eminentes, como CaioMário da Silva Pereira e Maria Helena Diniz.Mas a Constituição de 1988 assegura o direitoà indenização pelo dano moral decorrente daviolação da intimidade, da vida privada, dahonra e da imagem das pessoas. Comentando-a, não hesita Alcino Pinto Falcão em qualificarcomo “ressarcimento civil” a indenização pordano moral prevista no inciso X do art. 5º8.

Parece-me que, assim, a Carta Magnaexcluiu a possibilidade de considerar-se a inde-nização por dano moral como pena. Aliás, já foiressaltada a incoerência dos que consideramimoral a reparação pecuniária desse dano, masadmitem pagamento de dinheiro em conse-qüência dele, desde que a título de pena. RafaelGarcia, embora partidário da função exclusiva-mente satisfatória da reparação, admite que,indiretamente, a indenização por dano moralproduz um certo efeito intimidativo9.

4. Breve notícia histórica sobre o problemada reparação do dano moral no direito

brasileiroA abordagem do tema que estamos desen-

volvendo não se realizou antes de promulgadaa Constituição Federal de 1988 porque até entãoestava aferrada a jurisprudência, principalmentedo Supremo Tribunal Federal, à tese da irrepa-rabilidade do dano moral, segundo a qual a dornão tem preço. Depois de assinalar, em livro de1983, que o Supremo não aceitara ainda a teseda reparabilidade do dano moral, dizia AguiarDias não lhe parecer aceitável tão forte resis-tência às vozes oraculares de Pedro Lessa,Pedro dos Santos, Filadelfo Azevedo, Orozimbo

Nonato e Aliomar Baleeiro. A reparação do danomoral, segundo informação de Pedro Lessa emvoto vencido a ela favorável, era concedidaantes da vigência do Código Civil10. Após oadvento deste, passou-se a entender que o danomoral não era reparável, não obstante o claropronunciamento de Clóvis Bevilacqua no sen-tido da sua reparabilidade. Assim pronunciou-se o ínclito autor do projeto do Código: “OCódigo Civil não desconhece a satisfação pordano moral”11.

A jurisprudência, entretanto, consolidou-seno sentido de que o dano moral só era indenizávelquando fosse indireto ou, em outras palavras,quando resultasse de dano patrimonial, o quenão era reparar o dano moral, e sim o dano patri-monial com ele cumulado. Fora disso, somenteadmitia a reparação do dano moral quandoexpressamente autorizada em lei, como noscasos excepcionais da Lei de Imprensa e doCódigo de Telecomunicações. No Código Civil,o fundamento para a reparação do dano moralse encontra realmente nos arts. 76 – consoanteo qual, para propor, ou contestar uma ação, énecessário ter legítimo interesse econômico, oumoral – e 159 – em cuja conformidade aqueleque, por ação ou omissão voluntária, negligên-cia, ou imprudência, violar direito ou causarprejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano.

Embora achando que não se encontra noCódigo Civil brasileiro preceito consagrador daresponsabilidade por dano moral, chegavaOrlando Gomes à conclusão de que se tratavade lacuna cujo preenchimento era imperioso“para atualização de nossa lei civil, tanto maisnecessária quanto procedem os argumentosinvocados pelos partidários da responsabi-lidade”12.

A reforma viria, não como preconizado, atra-vés do Código Civil, e sim de fonte de direito dehierarquia mais alta, a Constituição Federal de1988, em seu art. 5º, incisos V e X. O primeiropreceito garante aos brasileiros e estrangeirosresidentes no país “o direito de resposta, pro-porcional ao agravo, além de indenização pordano material, moral ou à imagem”. O segundo,mais abrangente, declara “invioláveis a

8 COMENTÁRIOS à Constituição. 1. ed. Riode Janeiro : Freitas Bastos, 1990. V. 1, p. 186.

9 GARCIA LOPEZ, op. cit., p. 133.

10 DIAS, José de Aguiar. Responsabilidade civilem debate. 1. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1983. p.23.

11 Clovis Bevilacqua apud Augusto Zenun. Danomoral e sua reparação. Rio de Janeiro : Forense,1994. p. 101.

12 GOMES, op. cit., p. 332.

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intimidade, a vida privada, a imagem e a honradas pessoas, assegurando o direito à indeni-zação pelo dano material ou moral decorrentede sua violação”.

Interpretando a segunda parte do inciso X,elucida Celso Ribeiro Bastos que ela “cuida deassegurar o direito à indenização pelo danomaterial ou moral decorrente de sua violação”.E prossegue:

“É óbvio que a Constituição não quisexcluir outras formas de punição tambémcompatíveis com a lesão a estes direitos,haja vista a existência dos crimes contraa honra. O que ela quis deixar certo é que,além da responsabilização administrativa,quando for o caso, cabe também umaresponsabilização de natureza civil.

A novidade que há aqui é a introduçãodo dano moral como fator desencadeanteda reparação.

No entanto essa tradição no caso háde ceder diante da expressa previsãoconstitucional”13.

Tal previsão torna meramente acadêmica avelha discussão sobre a reparabilidade ou nãodo dano moral e oportuno o estudo do problemada reparação do dano moral no Direito doTrabalho.

5. O dano moral e o Direito do TrabalhoEm trecho citado nas conclusões das V

Jornadas Argentinas de Direito do Trabalho eda Seguridade Social, Horacio De La Fuentesublinha que, como é sabido, o trabalhador devecumprir pessoalmente a principal prestação aseu cargo, e, em geral, não de forma ocasional,como ocorre nos outros contratos, mas perma-nentemente, incorporando-se a uma organi-zação alheia com a obrigação de realizar suastarefas em lugar e condições determinados,submetido a todo momento às faculdades dedireção e disciplinares que a lei reconhece aoempregador. Isto quer dizer que, enquanto “nascontratações privadas” acham-se normalmenteem jogo valores econômicos, e, como exceção,podem ser afetados bens pessoais dos contra-tantes, geralmente de forma indireta, no contratode trabalho o trabalhador, pela situação dedependência pessoal em que se encontra,

arrisca permanentemente seus bens pessoaismais valiosos (vida, integridade física, honra,dignidade, etc.). Consta das mesmas conclu-sões que, no ordenamento jurídico argentino, apersonalidade e a dignidade do trabalhadorforam objeto de uma especial proteção, garan-tindo-se assim seus interesses ideais e morais.Conforme os princípios morais, o empregadorhá de responder pelos danos morais que causese por seu dolo ou culpa lesam-se esses inte-resses ou bens patrimoniais.

Em artigo doutrinário o mesmo jurista semanifesta no sentido de que:

“O direito do trabalho aparece, assim,como o ramo jurídico em cujo seio oestudo do dano moral deveria alcançarseu máximo desenvolvimento, já que,como se disse, nesse direito a proteçãoda personalidade adquire especial dimen-são, tanto por sua primordial importância– dado o caráter pessoal e duradouro darelação – como por ter sido objeto de umagarantia jurídica especial”14.

Coincidente é o pensamento de VasquezVialard:

“Se em algum âmbito de direito oconceito de ‘dano moral’ pode ter algumaaplicação é, precisamente, no do traba-lho. A razão da ‘subordinação’ a que estásujeito o trabalhador na satisfação de seudébito leva a que a atuação da outra parte,que dirige essa atividade humana, possamenoscabar a faculdade de atuar quediminui ou até frustra totalmente a satis-fação de um interesse não-patrimonial.

Uma das finalidades fundamentais dodireito do trabalho é a de assegurar o res-peito da dignidade do trabalhador, peloque a lesão que em tal sentido se lhe inflijaexige uma ‘reparação’, quer entendidaesta expressão em sentido lato ou no depena.

Se bem seja certo que esse tipo demenoscabo pode se dar com maiorfreqüência em relação à pessoa do traba-lhador, também pode acontecer pela açãodeste sobre a do empregador ou dos queatuam em seu nome, o que também merece

13 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Cons-tituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 1988-1989. V.2, p. 65.

14 Horacio De La Fuente apud Victor Hugo Alva-rez Chavez. Reparación del Daño Moral en el Dere-cho del Trabajo. Buenos Aires : Lerner, 1987. p. 41-42; El Daño Moral. In: Trabajo y Seguridad Social.Buenos Aires, V. 3, p. 84.

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a devida consideração, com o propósitode estabelecer um equilíbrio na relaçãodireta entre duas pessoas, que seexpressa através dos débitos recíprocosque as vinculam”15.

Do mesmo entendimento partilha a profes-sora da Universidade de Montevidéu CristinaMangarelli, para a qual os princípios sobre aresponsabilidade são de aplicação a todo ocampo do direito, donde resulta que se esten-dem ao Direito do Trabalho. Esclarece que aproteção da personalidade do trabalhador é umdos deveres do empregador, compreendido node previsão. E informa que, em conseqüência,cabe a reparação do dano moral trabalhista, jáconsagrada pela jurisprudência do seu país16.

Não há, pois, como deixar de reconhecer queas disposições constitucionais sobre reparaçãodo dano moral têm aplicação no Direito doTrabalho, que elas não excetuam.

As normas do Código Civil sobre respon-sabilidades civis são aplicáveis subsidiariamen-te no Direito especial referido porque sãoincompatíveis com ele, independendo a repara-ção do dano moral trabalhista de lei outra que aregule, embora essa lei possa vir a existir.

6. As formas de reparação do dano moralno Direito do Trabalho

Rafael Garcia define a reparação específica,também denominada in natura, como aquelaque tem por finalidade repor o prejudicado numestado igual ou similar ao que possuía antes deocorrer a situação danosa17.

A reparação do dano moral trabalhista podeser efetuada por dois modos: através da sançãoin natura ou da sanção pecuniária. A primeirapoderá consistir numa retratação, numa contra-publicação, numa publicação de sentença,enfim, ao menos em teoria, numa retroação dodanificado à sua situação anterior ao dano moral.Faz-se a reparação pecuniária mediante o paga-mento de indenização, obviamente mediante umpagamento em dinheiro. Como esclareceVasquez Vialard, tem-se admitido no Direito doTrabalho a reparação in natura, mas ela nãoesgota a reparação do dano causado, podendo

proceder outra, em dinheiro18. Ernesto A.Martorell é partidário de que, no caso de secomprovar o agravo moral, o julgador ordeneas medidas pertinentes para tentar sua repara-ção natural, procedendo a respeito com sumocuidado, dado que, na generalidade dos casos,o ressarcimento do agravo exigirá uma compen-sação adicional, que deverá ser estimada emdinheiro, isto na inteligência de que rara vezpoderá o direito, pela via natural, retrotrair o estadode coisas ao existente antes do ilícito19. No Brasil,a compensação adicional à reparação in natura ,em pecúnia, será sempre exigível, pois a Consti-tuição da República assegura, em todo e qual-quer caso de dano moral, uma indenização. CelsoBastos, no comentário acima citado, é muito claroao expressar o pensamento de que outra qualquerespécie de sanção pelo dano moral há de sercumulada à indenização20.

7. Os períodos em que se pode verificar odano moral trabalhista

O dano moral, no Direito do Trabalho, podeocorrer nas fases pré-contratual, contratual epós-contratual. Nota Mosset Iturraspe quemuitas são as hipóteses imagináveis de empre-sas que, durante as tratativas, por motivo ouocasião delas, agridem os sentimentos do aspi-rante a um trabalho, seja avançando sua intimi-dade, originando sofrimentos psíquicos etc.21

Assim, causa dano moral o empregador quedivulga, no interior da empresa ou fora dela,que um trabalhador não foi admitido comoempregado por ser homossexual, alcoólatra,aidético, cleptomaníaco, etc. Ainda quando aacusação seja verdadeira, constituirá danoextrapatrimonial por desnecessária a respectivapublicidade. E, se for inverídica, torna-se muitomais grave o dano.

O dano moral pode ainda ser infligido nafase contratual, e o é quando o empregadordeixa de cumprir certas obrigações derivadasdo contrato de trabalho, como as de higiene ede segurança do trabalho e de respeito à perso-nalidade e dignidade do trabalhador.

Prevendo o cometimento de dano moral

15 VAZQUEZ VIALARD, op. cit., p. 755.16 MANGARELLI, Cristina. Daño moral en el

derecho del trabajo. Montevidéu : Acali, 1984.passim.

17 GARCIA LOPEZ, op. cit., p. 113.

18 VAZQUEZ VIALARD, op. cit., p. 762.19 MARTORELL, Ernesto A. Indenizacíon del

daño moral por despido. 2. ed. Buenos Aires :Hammurabi, 1994. p. 221.

20 BASTOS, op. cit., v. 2, p. 65.21 Mosset Iturraspe apud Victor H. Alvarez

Chavez, op. cit., p. 42.

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trabalhista pelo patrão, e sua reparação, judi-ciosamente ensina Délio Maranhão que:

“As obrigações acessórias do empre-gador, e que estão previstas na lei,referem-se, de um modo geral, à preven-ção dos danos que o empregado possasofrer tanto física como moralmente pelaexecução do trabalho; à assistência eindenização quando tais danos ocorrem,às férias anuais para o restabelecimentode energias despendidas no curso daprestação, etc...

O empregador tem, ainda, a obriga-ção de dar trabalho e possibilitar aoempregado a execução normal de suaprestação, proporcionando-lhe os meiosadequados para isso. E, acima de tudo,tem o empregador a obrigação de respei-tar a personalidade moral do empregadona sua dignidade absoluta de pessoahumana. São obrigações que decorremdo princípio geral da execução de boa fédo contrato, que, como dissemos, estána base da disciplina contratual”22.

A obrigação de dar trabalho é muito discutível,mas indubitavelmente, se o empregador nãoproporciona e o faz de forma humilhante para oempregado, infringe o dever de lhe dar trata-mento compatível com a sua dignidade, incor-rendo, assim, na prática de dano moral.

Uma das formas humilhantes é não dar tra-balho, mas exigir que o empregado compareçadiariamente ao serviço no seu horário normal.

Torna-se neste passo oportuno mencionarum acórdão do Tribunal de Apelações doTrabalho de 1º Turno de Montevidéu, em cujaementa se lê:

“Em nosso direito positivo o danomoral é suscetível de reparação. Para istodever-se-á ter lesionado um interesse não-patrimonial, e este dano há de ser produ-zido por um ato ilícito.

Além do pagamento do salário, oempregador tem outras obrigações que,em sua maioria, resguardam bens extra-patrimoniais do trabalhador, como, porexemplo, honra, dignidade, integridadefísica, etc... Assim, por exemplo, a obri-gação de proporcionar tarefas acordescom a categoria profissional e o dever dedar trabalho, especialmente quando o

não-desempenho das tarefas afetemoralmente o trabalhador.

O dever de previsão consiste na obri-gação do patrão de tomar todas asmedidas adequadas para evitar que otrabalhador sofra dano em sua pessoaou em seus bens”23.

Das conclusões das V Jornadas Argentinasde Direito do Trabalho e da Seguridade Socialconsta que a responsabilidade por dano moraldurante a execução do contrato de trabalhopode nascer da violação de algum dos deveresimpostos pela lei de contrato de trabalho, como:respeitar a personalidade do trabalhador, pre-servá-la e melhorá-la; evitar que se lhe causequalquer prejuízo moral; respeitar e salvaguardarsua dignidade tanto ao exercer as faculdadesde direção e disciplinares como ao efetuar oscontroles pessoais; tutelar sua integridadepsicofísica; respeitar sua liberdade de expressãoao mesmo tempo que lhe proporcionar ocupaçãode acordo com sua categoria e qualificaçãoprofissional; e, também, dispensar igual trata-mento aos que se encontram em igualdade decondições, etc.24

Hipótese de dano moral ocasionado nocurso do contrato de trabalho é a enfrentadapela Sala do Social do Superior Tribunal de Jus-tiça da Galícia, que mandou pagar a respectivaindenização a uma empregada em razão de tersido modificado, pelo empregador, o seu horáriode serviço, impossibilitando-a de freqüentar umcurso de Teologia e o Apostolado do Mar, comque estava comprometida, situação que a levoua um estado de acentuada ansiedade.

Ainda no curso do período de execução docontrato, pode o empregador exercer controlesobre seus empregados, fiscalizando-os porintermédio de vigilantes ou por meios audiovi-suais ou outros processos mecânicos. Se essafiscalização exorbita os limites da prestação detrabalho para se converter numa intromissãona esfera privada do trabalhador, imiscuindo-se, por exemplo, na sua intimidade, caracteriza-se o dano moral.

8. O dano moral nas fases de extinção docontrato de trabalho e pós-contratualNa fase de extinção do contrato de trabalho,

também pode caber a indenização por dano23 DERECHO Laboral. Montevidéu, T. 34, n.

161, p. 154-161, jan./mar. 1991.24 apud Alvarez Chaves, op. cit., p. 43.

22 SUSSEKIND, Arnaldo, MARANHÃO, Délio,VIANNA, Segadas. Instituições de Direito doTrabalho. 14. ed. São Paulo : Ltr, 1993. V. 1, p. 249.

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moral. Em alguns países, como Argentina eUruguai, entende-se que a indenização da anti-güidade, sendo tarifária, cobre o dano moralderivado da despedida, não se podendo a elacumular outra indenização a título de reparaçãode prejuízo extrapatrimonial. Mas é assim emprincípio, porque se considera ser, excepcional-mente, devida a indenização por dano moral,cumulativamente com a de antigüidade, quandoà declaração de rescisão do contrato de trabalhopelo empregador se acrescenta “uma atuaçãoexcessiva” (Martorell), por parte deste, ocasio-nadora de um prejuízo moral ao empregado,enfim, um abuso de direito. Em outros Estados,bastando mencionar Itália, Bélgica, França eSuíça, tem-se por devida a indenização por danomoral, independentemente da indenização deantigüidade, quando o empregador exercita oseu direito de despedir sem justa causa de modoabusivo. Como tal pode-se qualificar, por exem-plo, a dispensa com agressão física ou moral. Agrande mestra Luisa Riva Sanseverino ensinavaque o direito ao ressarcimento dos danos resul-tantes da dispensa poderia ser sustentado, nãoa respeito da despedida considerada em simesma, mas tendo-se em vista a forma pela qualhouve a respectiva intimação e as conseqüên-cias, não econômicas e sim morais, que, comotal, ela acarreta para o trabalhador. Se a despe-dida não é, em linha de princípio, consideradacomo um fato injurioso ressarcível, pode-se defato chegar à conclusão oposta quando elarepresentar, para o trabalhador, um ato que diretae sensivelmente lhe ofenda a dignidade e ahonra: neste caso a despedida pode, excepcio-nalmente, dar lugar também ao ressarcimentodos danos segundo os princípios de direitocomum. Cita acórdãos da Corte de Cassaçãoitaliana em abono das suas afirmações25.

Tenho sido questionado se a alegação dejusta causa de despedida rejeitada por decisãoda Justiça do Trabalho trânsita em julgadocaracteriza dano moral. Aqui é necessário frisarque o dano moral, para ser indenizado, precisaser relevante, possuir una certa entidad, comose diz em castelhano. Conforme salientouHoracio de La Fuente, com apoio na doutrina ejurisprudência argentinas,

“o simples desgosto, a contrariedade, odesagrado, a indignação, etc... constituemestados de ânimo que fazem parte dosriscos dos negócios ou que ocorrem

diariamente na cidade e que portanto nãosão reparáveis; como acertadamente foidestacado, nestes casos existe strictosensu um dano moral, embora pequeno,mas sua importância não parece sufi-cientemente significativa para ser com-putada no direito”26.

Assim, se a Justiça conclui não estar provadauma justa causa de improbidade, consistenteem fato imputado pelo empregador a empregadoseu, o dano moral sofrido por este é relevante edeve ser indenizado, salvo se a improcedênciada argüição resultou da aplicação do princípioin dubio pro operario. Mas se a justa causanão-provada foi abandono de emprego ounegociação habitual por conta própria ou alheiasem permissão do empregador, não se meafigura que o dano moral causado ao trabalhadorafete sua personalidade e dignidade em grauque justifique a reparação. É certo que aacusação e o processo podem ter provocadoconstrangimentos ao acusado. Todavia, comoainda La Fuente pondera, só deve ser objeto dereparação o dano que tenha certa relevância,ou seja, o que for capaz de afetar a personali-dade do trabalhador em qualquer de suas mani-festações; indubitavelmente, esses estados deânimo constituem riscos próprios de toda ativi-dade que todos os habitantes estamos expostosa sofrer de uma ou de outra forma27.

Em suma, consoante decidiu o Pretor deBolonha, com a concordância de Vincenzo Poso,em comentário à sentença, o trabalhador injus-tamente dispensado tem direito também aoressarcimento do dano moral em caso dedespedida que, pela forma, conteúdo, tempo emodalidades, seja irremediável e gravementeofensiva da diginidade do trabalhador28.

A indenização por dano moral procede tantoem situações de despedida direta como dedespedida indireta. Neste sentido pronun-ciaram-se as XI Jornadas do Trabalho argen-tinas. Um caso de despedida indireta com direitoda empregada à reparação do dano moral foiobjeto de sentença do Pretor de Milão, sinteti-zada nesta ementa:

“A trabalhadora que tenha se consi-derado despedida por justa causa emseguida a assédios sexuais e atos deviolência realizados pelo representante

25 SANSEVERINO, Luisa Riva. Diritto dellavoro. 14. ed. Padova : Cedan, 1982. p. 422.

26 Op. cit.27 Idem.28 Rivista Italiana di Diritto del Lavoro, Milão,

v. 11, p. 403 e segts., 1992. Pt. 2 e 3.

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da sociedade empregadora tem direito aoressarcimento do dano biológico e dodano moral (na espécie o pretor,acolhendo a demanda proposta pela tra-balhadora, condenou, in solidum, a so-ciedade empregadora e o seu represen-tante legal que havia praticado os atosde violência)”29.

Na fase pós-contratual, acha Vialard pos-sível a ocorrência de violação do dever de,durante ela, uma parte não prejudicar o bomnome ou a honra da outra. Aduz que “deter-minado tipo de atividades e o contato pes-soal que as partes tiveram durante o cursoda relação de trabalho permitiu aos atoresdesta obterem uma série de dados referentesà outra: virtudes, defeitos, vícios, etc”. Esseconhecimento não pode ser difundido entreterceiros quando isto possa causar um dano.Não existe razão alguma que legitime umaparte da relação contratual em vigência ouextinta para que revele defeitos ou costumesde pessoas com as quais se entrou emconhecimento e se esteve mais próximo decertas esferas de sua intimidade, comoconseqüência do desenvolvimento da ativi-vidade laboral. Admite exceção apenas paraa denúncia à autoridade judiciária, ou a reve-lação, a requerimento desta, de delitos decaráter penal.

O mesmo autor se refere ao fato de que osempregadores, com alguma freqüência, costu-mam preparar “listas negras” que difundementre os colegas de atividade, tornando do seuconhecimento fatos certos (se não o são cons-tituem vulgar difamação) referentes aos seusex-empregados, para dificultar que alguém oscontrate como tais, atitude esta injustificável.Se o empregrado cometeu delito, o que cabiaera a comunicação à autoridade policial ou àjudiciária. Entende que nestes casos tem direitoo empregado às indenizações por dano patri-monial e por dano moral30.

Ainda seguindo os ensinamentos de Vialard,a inserção de juízos desfavoráveis ao ex-empregado em atestado ou informação sobre aconduta deste pode constituir um ilícito e,portanto, autorizar a reparação por dano moralquando não se fundar em razões válidas31.

De La Fuente, por sua vez, aponta exemplos

de responsabilidade na fase posterior à extinçãodo contrato de trabalho, mas vigentes ainda osdeveres que a boa-fé impõe aos que estiveramrelacionados. São eles: uma denúncia penaltemerária ou dolosa após a despedida, ofensasfísicas ou verbais no mesmo período, divulgaçãodas causas de despedida sem que interesselegítimo algum justifique, etc....32.

A responsabilidade por dano moral nasfases contratual, de extinção do contrato detrabalho e pós-contratual é extracontratual,fundando-se no dever que se impõe a todapessoa não causar dolosa ou culposamenteprejuízo a outrem.

9. A reparação do dano moral trabalhistano direito brasileiro

Já vimos que a reparação do dano extrapa-trimonial é, hoje, no Brasil, imposição constitu-cional e que dessa imposição não está excetuadoo Direito do Trabalho, com o qual ela combinamelhor do que com qualquer outra disciplinajurídica. Aplica-se em nosso país, quanto aosperíodos pré-contratual e contratual da relaçãode emprego, tudo quanto sobre eles expuse-mos. No tocante ao período de extinção docontrato de trabalho, as indenizações tarifárias,como a de antigüidade, hoje extinta, e a decor-rente de ruptura ante tempus e injustificada docontrato de trabalho de duração determinada,jamais cobriram o dano moral, que só passou aser reparável depois da vigência da Consti-tuição de 1988, salvo as raras exceções previstasem lei, nenhuma das quais concernentes àrescisão do contrato de trabalho. O FGTS nãotem natureza indenizatória e, se tivesse, nenhumdano moral repararia pelos mesmos motivos porque não o reparam as indenizações, mesmoporque na vigência da nova Carta não lhe foiacrescentado, nem às indenizações, um pluscorrespondente ao dano moral. Logo, tambémele não é excludente da indenização por danomoral sofrido pelo trabalhador, assegurada pelaConsituição.

Assim, não cabe a indenização por danoextrapatrimonial nas despedidas “puras”, emque o empregador exerce normal e licitamente oseu direito de dispensa, mas é ela devidanaquelas outras hipóteses em que ele acumulaà declaração de rescisão do contrato de trabalhoum abuso do direito representado por ofensa adireito incluído no âmbito estritamente pessoalda esfera jurídica do trabalhador.

29 Ibidem, v. 10, n. 2, p. 462 e segts., abr./jun.1991.

30 VAZQUEZ VIALARD, op. cit., p. 746-747.31 Ibidem. 32 Op. cit.

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10. Bilateralidade do dano moralO dano moral trabalhista é bilateral. Com isso

quero significar que tanto pode ser causado, emais comumente o é, pelo empregador, ou pelosseus representantes, ao empregado, quantopelo patrão a este. Esta consideração resulta,segundo assinala Vialard, de estabelecer-se umequilíbrio em relação direta entre duas pessoasque se estabelece através dos débitos recípro-cos que as vinculam33. As V Jornadas Argenti-nas do Direito do Trabalho e Seguridade Socialadotaram conclusão no sentido de que “o tra-balhador também há de responder pelo danoque, por dolo ou culpa, ocasione aos bens não-patrimoniais do empregador”. Esse postuladodificilmente passará da teoria à prática, poisserão pouquíssimos os casos em que empre-gados, na sua quase totalidade economicamentedébeis, poderão pagar aos seus empregadoresindenização por dano moral.

11. Meios preventivosUma regra de experiência ensina que é

melhor prevenir do que remediar. Tem ela plenaaplicação ao dano moral, cujos efeitos prejudi-ciais dificilmente são apagados de todo pelareparação, sendo, portanto, da maior conveni-ência evitá-lo. Dois autores argentinos, VasquezVialard e Horacio de La Fuente, sustentam que,por isso mesmo, o trabalhador ameaçado desofrer um dano moral está legitimado pararecorrer à autodefesa privada, recusando-se acumprir sua obrigação. Assim, esclarece Vialard,pode-se negar a submeter-se a revista ouqualquer outro vexame que afete sua dignidadepessoal ou não comparecer ao local de trabalhoou até recorrer à força no exercício do direito delegítima defesa para evitar que o dano seproduza quando exista um perigo atual ouiminente. Tal medida seria legítima se cumpridosos requisitos a que a subordina a doutrina:agressão ilegítima, necessidade racional domeio empregado para a defesa e falta de provo-cação por parte do que usa os meios de autode-fesa. Outra solução seria uma ação judicial parasolicitar que determine o magistrado à outraparte se abstenha de praticar o ato ou omissãoatentatória à dignidade do postulante. Estasituação pode-se apresentar a respeito dadifusão pública (qualquer que seja o veículoutilizado: boletins, informes, listas negras), semque haja uma causa que o legitime, na qual se

comunicam fatos e circunstâncias que afetam odireito da personalidade do trabalhador ou daoutra parte, ainda quando fossem certos, massem que exista razão legítima para sua difusão34.

12. Ônus da provaNo que diz respeito ao ônus da prova do

dano moral, estou com Moisés Iturraspe quandosustenta que sobre a vítima desse dano pesa oônus de prová-lo em sua existência e gravidade,mas acrescenta que essa prova pode serproduzida mediante presunções hominisextraídas de indícios, conforme as regras daexperiência35. Como precisou Jorge Gamarra,nada impede presumir (porque isto concordacom as regras da experiência) a dor dos ascen-dentes, descendentes e cônjuge, o complexode inferioridade do mutilado, o descrédito deri-vado da difamação36. Muitos autores, porém,acham que a prova do dano moral se faz in reipsa.

13. Cumulação das indenizações por danopatrimonial e por dano moral

Prevalece na doutrina brasileira o enten-dimento de que, sendo autônomos o danopatrimonial e o dano moral, podem ser cumu-ladas as indenizações ressarcitórias de um eoutro, ainda que resultantes do mesmo fato.Para Caio Mário, não cabe considerar que sãoincompatíveis os pedidos de reparação patri-monial e indenização por dano moral. “O fatogerador pode ser o mesmo, porém o efeito podeser múltiplo”37. A própria jurisprudência se cris-talizou nesse sentido na Súmula 37 do SuperiorTribunal de Justiça, deste teor: “São cumuláveisas indenizações por dano material e dano moraloriundos do mesmo fato”.

14. Avaliação do danoParece-nos que esse problema pode ser

solucionado recorrendo-se à aplicação subsi-diária do art. 1.553 do Código Civil, na confor-midade do qual, nos casos não previstos no

33 VAZQUEZ VIALARD, op. cit., p. 755-756.

34 Ibidem, op. cit., p. 766.35 Moisés Iturraspe apud Beatriz Venturini. El

daño moral. 2. ed. Montevidéu : Fundación de CulturaUniversitária, 1992. p. 123.

36 Jorge Gamara apud Beatriz Venturini. Ibidem.37 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabili-

dade Civil. 2. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1991. p. 63.

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capítulo II – Da liquidação das obrigaçõesresultantes de atos ilícitos –, fixar-se-á por arbi-tramento a indenização. O abuso de direito étambém ato ilícito, como resulta da interpretaçãoa contrario sensu do art. 152, nº II, do CódigoCivil, que declara não serem ilícitos os atospraticados no exercício regular de um direitoreconhecido. Logo, são ilícitos os atospraticados no exercício irregular ou anormal deum direito, como os abusivos. A indenizaçãopor dano moral não é o preço da dor (retiumdoloris ou pecunis doloris), que nenhumdinheiro paga. Como adverte Agostinho Alvim,

“ninguém imagina de achar o equiva-lente, propriamente tal, da dor moral oufísica.

O dinheiro serve para mitigar, conso-lar, para estabelecer certa compen-sação”38.

Esclarece o mesmo escritor de direito, citandooutros mestres, que os autores estão de acordoem que o dano moral abrange a dor física. Assim,os acidentes de trabalho podem produzir danomoral, sendo no caso objetiva e, pois, indepen-dente de culpa a responsabilidade do emprega-dor pelos mesmos. A respeito do dano moraltrabalhista, Vialard pondera que, no caso dafixação do dano extrapatrimonial, o juiz deveser sumamente prudente para determinar aimportância da reparação.

“Em cada caso deve fazer expressareferência à sua própria experiência, o quenão obsta, em certas circunstâncias,possa utilizar algumas pautas objetivas,tais como a intensidade dos efeitos,tempo em que se projetou o agravo, prazode internamento, seqüelas que provocamuma deterioração na vida de relação, tipode tratamento a que teve de ser subme-tida a vítima”39.

Cristina Mangarelli afirma que a dificuldadepara determinar com exatidão o montante dodano moral sofrido efetivamente pela vítima ésuperada pelo arbítrio discricionário do juiz.E prossegue:

“Mas se bem seja feita referência deforma reiterada ao prudente arbítrio dojuiz para fixar o quantum ressarcitório,nem tudo fica entregue à sua discricio-

nariedade, já que tanto a doutrina comoa jurisprudência assinalaram que existemelementos objetivos que devem sertomados em conta para graduar o mon-tante da indenização. Por exemplo, se fo-ram produzidas lesões físicas, considera-se a importância das mesmas, a extensãodo período de recuperação da vítima, ocaráter doloroso das lesões, os tratamen-tos que teve de suportar, as seqüelas, ocaráter permanente do dano moral, etc...No caso de injúrias toma-se em conta olugar onde elas foram produzidas e apublicidade.

De todos os modos, mesmo utili-zando-se os referidos critérios objetivos,a determinação final do prejuízo ficasujeita ao arbítrio do juiz”.

Levam-se em conta ainda outros fatores, comopersonalidade, sexo e idade da vítima40. Naopinião de Caio Mário, deve a vítima receber

“uma soma que lhe compense a dor ou osofrimento, a ser arbitrada pelo juiz, aten-dendo às circunstâncias de cada caso, etendo em vista as posses do ofensor e asituação pessoal do ofendido. Nem tãogrande que se converta em fonte deenriquecimento, nem tão pequena que setorne inexpressiva”.

As más condições do ofensor, todavia, não oeximem do dever ressarcitório41.

Na Argentina e no Uruguai, tem-se estimadoo montante da indenização por dano moral emfunção da importância estipulada para repararo prejuízo patrimonial. A indenização é fixadaem dez ou vinte por cento do dano patrimonial.Razão parece-nos ter Vasquez Vialard na suaoposição a esse critério, fundamentada em queconstitui ele um grave erro, já que não existeentre ambos os danos uma necessária correlaçãodessa ou de outra índole42. No Uruguai, em casode despedida, fixa-se em duas vezes o valor daindenização por dano moral. A jurisprudênciado trabalho uruguaia enunciou a máxima de queas indenizações em matéria de dano moraldevem se adequar aos valores econômicos domeio, à realidade sócio-econômica do país. Numpaís em desenvolvimento, como o Brasil, as

38 ALVIM, A. N. de A. Da Inexecução das obri-gações e suas conseqüências. São Paulo : Saraiva,1949. p. 209.

39 VAZQUEZ VIALARD, op. cit., p. 763.

40 MANGARELLI, Cristina. Despido abusivo eincumplimiento contractual : criterios para laestimacíon del daño. Montevidéu : J. C. Faria, 1992.p. 33-34.

41 PEREIRA, op. cit., p. 67.42 VAZQUEZ VIALARD, op. cit., p. 764.

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acórdãos, e o próprio Tribunal Superior doTrabalho seguem direção oposta, atribuindo àJustiça comum competência para as causastrabalhistas de dano moral.

Os pronunciamentos do STJ baseiam-se nosseguintes fundamentos:

“I – A competência ratione materiaedecorre da natureza jurídica da questãocontrovertida, que, por sua vez, é fixadapelo pedido e pela causa de pedir.

II – A ação de indenização por perdase danos morais e materiais ajuizada porex-empregados contra ex-empregador,conquanto tenha remota ligação com aextinção do contrato de trabalho, não temnatureza trabalhista, fundando-se nosprincípios e normas concernentes àresponsabilidade civil”45.

Ora, em se tratando de dano moral sobre-vindo quando da extinção do contrato detrabalho, não é certo que tenha “remota” ligaçãocom ele. Por outro lado, o fato de serem aplicá-veis, no caso, os princípios e normas concer-nentes à responsabilidade civil não exclui anatureza trabalhista da ação de indenização pordano moral. Mangarelli demonstrou que aresponsabilidade civil não é instituto exclusivodo direito civil, mas extensiva a outros ramosjurídicos, como o Direito do Trabalho, poraplicação subsidiária daquele. E o próprioSupremo Tribunal Federal, no seu aresto jáinvocado, manifestou-se no sentido de que acircunstância de depender a solução da lide dequestão de direito civil não afasta a competênciada Justiça do Trabalho. O art. 114 da Consti-tuição Federal confere a essa Justiça compe-tência para conciliar e julgar os dissídios indivi-duais e coletivos entre trabalhadores e empre-gadores decorrentes da relação de trabalho.Esse é o caso das reclamações de indenizaçãopor dano moral verificado na vigência da relaçãode trabalho ou quando da sua extinção, queàquela justiça, e não à outra, compete apreciar.O mesmo acontece quando se trata de pedidode reparação de dano moral infligido na fasepós-contratual, por motivo relacionado com ocontrato de emprego, de que constitui umaprojeção. Ficaria excluído da competência daJustiça especializada o dano moral causado nafase pré-contratual quando a relação deemprego não chegasse a se perfazer.

O Tribunal Superior do Trabalho destoou

43 DE LITALA, Luigi. Diritto Processuale delLavoro. 2. ed. Torino : Torinense, 1938. p. 209.

44 MALTA, Cristovão Piragibe Tostes. Dacompetência no processo trabalhista . Rio de Janeiro :Forense, 1960. p. 374.

indenizações por dano moral não podem servultosas como as que se manda pagar, porexemplo, nos Estados Unidos e outros paísesricos.

De qualquer sorte, a indenização por danomoral não pode ser ínfima a ponto de possuirapenas caráter simbólico (tal como na França,quando se mandava pagar apenas um franco),mas também não pode ser de tal modo elevadaque constitua fonte de enriquecimento.

15. Justiça competenteA Constituição Federal, por seu art. 114,

atribui competência à Justiça do Trabalho paraconciliar e julgar os dissídios individuais ecoletivos entre trabalhadores e empregadores.Antes da sua vigência já reconhecíamos,apoiando-nos em Luigi de Litala43 e CristóvãoTostes Malta, a competência da Justiça doTrabalho para ação de perdas e danos quandouma controvérsia que tenha por objeto oressarcimento do dano sofrido por uma daspartes contratantes for estritamente derivadada relação de trabalho. Refere-se o último autor,expressamente, à ação por dano moral derivadodo contrato de trabalho44.

Não infirma essa opinião a circunstância deque tenha o juiz da ação indenizatória pararessarcimento de dano moral de aplicar o direitocomum, recorrendo a disposições do CódigoCivil, pois o direito comum, quando subsidiáriodo Direito do Trabalho, passa a integrá-lo.Nesse sentido julgou o E. Supremo TribunalFederal, que, conduzido pelo voto do MinistroSepúlveda Pertence, concluiu não importar àdeterminação da competência da Justiça doTrabalho o fato de que dependa a solução dalide de questão de direito civil, mas, sim, que ofundamento pedido assente na relação deemprego, inserindo-se no contrato de trabalho(Conflito de Jurisdição nº 6.959-6, DistritoFederal).

Concorda esse entendimento com a opiniãode Cristina Mangarelli, segundo a qual o princí-pio da responsabilidade, quando aplicado parapreencher lacuna do Direito do Trabalho, a esteintegra-se, atendidas as suas especificidades.

O Superior Tribunal de Justiça, em numerosos

45 Conflitos de Competência nºs 11.732-1 (94)0037430-5 - SP, 391-8; São Paulo, 12.718-1 - SP.

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dessa orientação, em acórdão da sua 5ª Turma,entendendo que o art. 114 da Lei Maior restringea competência material da Justiça do Trabalhona ocorrência de litígio que envolva títulolaboral, não obstante as figuras de empregadore empregado46. Mas, a aplicação do direitocomum não exclui que o dissídio envolva títulolaboral, como envolve em se tratando de danomoral trabalhista, consoante vêm reconhecendoacertadamente os tribunais regionais dotrabalho. Esta divergência entre os órgãos doJudiciário sobre a competência está criando

enormes dificuldades para as partes e seusadvogados, que ficam sem saber perante qualjustiça devem propor a ação de dano moralderivado de relação de emprego. A solução seráa aprovação, pelo Congresso Nacional, doProjeto de Lei nº 1.533, de 1996, do DeputadoWaldomiro Fioravante, cujo art. 3º dispõe:“Compete à Justiça do Trabalho apreciar e julgaras ações de reparação de danos morais e mate-riais decorrentes da relação de trabalho”, emboramereça restrições o conceito de dano moral dadono seu art. 1º.

46 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho.Processo TST-RR-63022/92. Relator: MinistroWagner Pimenta.