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Velhice e caridade: relações de alteridade em uma Instituição de Longa
Permanência para Idosos
JESSICA GLEYCE DOS REIS FELIX
O presente trabalho tem como objetivo primordial discutir as relações entre velhice e
caridade estabelecidas entre sujeitos inseridos em uma Instituição de Longa
Permanência para Idosos situada na cidade de João Pessoa, a partir dos relatos orais dos
mesmos. Para tal, dialogaremos com as concepções e perspectivas teóricas de autores
essenciais às nossas reflexões, sendo assim recorreremos ao conceito de representações
proposto por Chartier (1990), memória por Halbwachs (1990) e Bosi (1994), no que se
refere às questões relativas ao processo envelhecimento e a velhice nos apoiaremos em
Debert (2004), e por fim, no que tange a postura metodológica, apresenta-se como
elemento indispensável a utilização da história oral; para tanto, faremos uso das
contribuições de Alberti (2005) Meihy e Holanda (2007).
Palavras-chave: Velhice, Caridade, História Oral.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo essencial apresentar algumas discussões
referentes à pesquisa de mestrado ainda em andamento, enriquecidas a partir das leituras
que se desenvolveram no transcorrer das disciplinas durante o segundo semestre de
2016 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba; e
embora esteja inserida primordialmente no campo da história cultural, o diálogo com
referenciais de outras modalidades historiográficas configurou-se como profícua
Mestranda - PPGH-UFPB
2
contribuição e apresentou novas possibilidades de análise ao objeto, com especial ênfase
para as “noções operatórias” de Pierre Bourdieu, nesse caso específico com o “habitus”.
Isto posto, considerando a abordagem de Benjamin, o que se propõe neste
trabalho é uma história a contrapelo1, onde cabe ao historiador o desafio de ouvir, e dar
vazão a outras vozes, as vozes dos silenciados, daqueles que foram submetidos,
reduzidos ao estigma de marginais, excluídos do espaço social e por consequência
levados a um estado de exceção.
Neste sentido, o autor também dialoga com Bourdieu, quando conclama os
historiadores para o que ele chama de um exercício de des-historicização2, onde é
preciso identificar as representações, as imagens e os mitos construídos em torno dos
indivíduos e/ou grupos. Exercício este, aqui realizado quando nos referimos às imagens
dadas a ler acerca da velhice e dos sujeitos senescentes.
Em consonância com tais pressupostos, é importante pontuar que o campo
histórico outrora voltado exclusivamente à narrativa dos caminhos trilhados pelas
civilizações ocidentais, cujo protagonista essencial é o homem, branco, católico,
europeu, continuamente vem solapando as frestas por onde os sujeitos ditos “marginais”
adentraram. Sendo assim, torna-se impossível ao historiador (re) silenciá-los; a mulher,
a criança, o homossexual, o pobre, o negro, o louco e o idoso reivindicam seu lugar de
direito na história e na historiografia.
A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com
quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A
resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado
dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o
vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores.(...)Todos os que até
agora venceram participam do cortejo triunfal, que os dominadores de hoje
conduzem por sobre os corpos dos que hoje estão prostrados no chão.
(BENJAMIN, 1987: p. 244 -245)
Analisar historicamente o conceito de velhice possibilita pensá-la a partir dos
variados contextos de sua inserção, pois assim como pondera Philippe Ariés (1978) em
1 Ver: BENJAMIN, 1987: p.225. 2 Ver: BOURDIEU, 2012: p. 122.
3
sua famosa obra sobre a infância, as idades da vida correspondem às funções sociais e
não apenas às etapas e determinantes biológicos. Neste sentido a invenção de grupos
etários e a consequentemente as divisões as quais eles correspondem estão diretamente
relacionadas a instituições como a família, a escola e igreja. Como elucida Gusmão
(2003, p. 16) tanto a infância quanto a velhice são alvos de olhares tortuosos, pois
situam-se no liame entre o passado e o futuro que tornam o seu presente em certa
medida enigmático, suas imagens inspiram o estabelecimento de relações de alteridade,
a percepção do outro, do diferente, que paradoxalmente o pensamento ocidental tenta
absolutizar, negligenciando o fato de que diferentes indivíduos e culturas constroem
diferentes universos para e da velhice.
Não existe uma velhice, mas maneiras singulares de envelhecer. Cada
velhice é consequência de uma história de vida que à medida que o tempo
passa, vai acrescentando processos de desenvolvimento individual e da
socialização, junto ao grupo em que se insere: internalizando normas,
regras, valores, cultura (PEIXOTO apud GUSMÃO, 2003: p.18)
Em harmonia com o panorama delineado, nas últimas décadas presenciamos a
transformação da velhice, do processo de envelhecimento e dos sujeitos envelhecidos
em assuntos de interesse e relevância para os mais diversos segmentos da sociedade,
ocasionada por fatores variados que perpassam tanto às significativas mudanças no
caráter demográfico do país, quanto sua percepção enquanto mercado consumidor, e
conseqüentemente como alvo de políticas públicas específicas. Em síntese, o que se
verifica é uma espécie de ruptura na atmosfera de silêncio que circunda a velhice,
apontada por Simone de Beauvoir em sua obra “A velhice: a Realidade Incômoda”
ainda na década de 70. Todavia, como sugere Guita Grin Debert (2004, p. 12), expoente
fundamental nos estudos sobre a velhice no Brasil, analisar a velhice e suas novas
formas de gestão apenas a partir de tais questões é deixar à revelia a oportunidade de
uma reflexão pormenorizada acerca de uma série de processos que conferem
legitimidade e expressividade aos sujeitos senescentes.
Segundo a autora, tal movimento de ressignificação do ser velho acenando para
uma “terceira” ou “melhor” idade não são suficientes para englobar as variadas formas
4
de experienciação da velhice, e delata tais discursos como elementos que desfavorecem
a instrumentalização para o defrontamento por parte destes indivíduos e dos que os
cercam, para com as perdas sofridas em seus diversos âmbitos de vida. Por conseguinte,
a extinção do “problema”, ocorre apenas no que se refere ao discurso, distanciando as
rugosidades e reelaborando a ideia de envelhecimento sob uma perspectiva positiva.
A dissolução desses problemas nas representações gratificantes da terceira
idade é um elemento ativo na reprivatização do envelhecimento, na medida
em que a visibilidade conquistada pelas experiências inovadoras e bem
sucedidas fecha o espaço para as situações de abandono e dependência.
(DEBERT, 2004: p. 15)
Em acordo, Almeida (2013, p. 15) reflete como no avançar nos anos 1990
ocorreu um boom de estudos relacionados aos direitos humanos que evidentemente
incluiu as temáticas relacionadas à velhice e ao envelhecimento, assegurando a
institucionalização de eufemismos no que se refere ao tratamento dos velhos, que
passam agora a ser chamados oficialmente de idosos. Nesse sentido pensar o ser idoso
enquanto categoria e/ou público homogêneo é negligenciar tal multiplicidade, formas de
ver, sentir e dizer a velhice, objeto da caridade e do abandono, do silêncio e de
discursividades, intervenções e disciplina.
SOBRE O ESPAÇO DA PESQUISA
A ILPI Vila Vicentina Julia Freire surgiu em 1943 em decorrência da doação de
glebas de terra a Sociedade São Vicente de Paula – SSVP3, pela família da Senhora
Julia Freire, em cumprimento a manifestação expressa em testamento de sua vontade,
destinadas a construção de residências para famílias carentes, que tomaram posse das
3 A sociedade São Vicente de Paulo foi criada em 1833, na França por um grupo de jovens universitários
católicos e um senhor que pretendiam minimizar o sofrimento das pessoas em condição de
vulnerabilidade e fortalecer a fé de seus membros. Uma organização civil de homens e mulheres leigos
dedicados ao trabalho cristão de caridade que está presente em cerca de 150 países. Fundada no Brasil em
1872, conta com aproximadamente 153 mil confrades e consocias que mantêm escolas, creches, projetos
sociais, lares de idosos e famílias necessitadas. Internacionalmente é membro das Nações Unidas
participando também do Conselho Econômico e Social (Ecosoc).
5
áreas externas sob o sistema de comodato4, já o centro do terreno com o passar do
tempo ficou reservado ao público específico dos idosos, antes destinado aos moradores
de rua. No ano seguinte foi lançada a pedra fundamental para a construção de um
casarão abrigo que incorporou a Capela de Nossa Senhora da Conceição hoje
administrada pela Paróquia São Judas Tadeu. Localizada na Rua Etelvina Macedo de
Mendonça no bairro da Torre em João Pessoa-PB, ocupando uma área de 2000 m2, a
instituição abriga cerca de 64 idosos dos sexos masculino e feminino, sendo alguns
deles independentes e outros com variados graus de dependência física e psicológica.
Obra unida a SSVP, a instituição é beneficente, filantrópica5 e sem fins
lucrativos, sua direção e administração é composta por membros voluntários, todos
vicentinos: presidente, cargo eletivo cujo mandato tem duração mínima de dois anos,
podendo haver uma reeleição, responsável por designar os demais membros que
compõem a direção em geral formada por vice-presidente, tesoureiros e secretários. A
VVJF conta ainda com cerca de 25 funcionários remunerados das áreas administrativa,
de saúde e serviços gerais, além de profissionais voluntários de variadas instituições
parceiras que desenvolvem atividades diárias com os idosos. Dentre tais instituições,
merece ênfase aqui as atividades que foram e são realizadas através de projetos de
extensão6 por estudantes do bacharelado em Arquivologia da Universidade Estadual da
Paraíba sob coordenação da Profª Suerde de Brito cujo objetivo primordial é a seleção,
conservação e organização, do acervo iconográfico da Vila Vicentina contribuindo para
preservação da memória institucional, e que já resultou em alguns trabalhos acadêmicos
que também são tomados como referenciais em nossa pesquisa. O mesmo é igualmente
responsável pelo acondicionamento de outros documentos institucionais e pelo registro
atual das celebrações e atividades diárias e também serão utilizados como fontes.
A fonte primordial de recursos da casa são as aposentadorias, que se constitui de
cerca de 70% do salário do idoso residente, insuficientes para cobrir todas as despesas
4 O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Onde o comodatário tem por obrigação
conservar a coisa emprestada não podendo usá-la senão de acordo com o contrato ou natureza dela. 5 Para obtenção do certificado de filantropia a direção não pode ser remunerada. 6 Respectivamente: “ Memória da Vila: preservação do acervo fotográfico de uma instituição de Longa
Permanência para Idosos” e “Preservação da Memória Institucional: o caso do arquivo iconográfico da
Vila Vicentina Julia Freire” Ver: BRITO & QUEIROZ, 2015: p. 156.
6
diárias, sendo muito comum a prática de doações em dinheiro, roupas, bens materiais,
alimentação e produtos de higiene. Em 1999 a Vila Vicentina Julia Freire adquiriu
personalidade jurídica para fins legais, e foi declarada de utilidade pública através de
leis municipal, estadual e portaria federal7.
HABITUS: OS VICENTINOS E UMA REDE DE CARIDADE
Segundo Elias (2001, p.10) a morte é um problema pertinente aos vivos, e a
forma como a mesma é encarada diz muito acerca das práticas e visão de mundo de
determinadas sociedades, seja ela mitologizada ou não, com as ideias de passagem para
uma vida reservada à eternidade no inferno ou no paraíso, ou ainda de transformação e
ascendência espiritual; o fato é que a velhice comumente é associada aos estigmas da
inatividade, doença, e por consequência proximidade iminente com a morte, “A
fragilidade dessas pessoas é muitas vezes suficiente para separar os que envelhecem dos
vivos”. (ELIAS, 2001, p. 8).
Lidar com a morte e outros aspectos aparentemente inerentes quando se trata da
velhice, no espaço da instituição parece requerer uma série de códigos de conduta que
embora não estejam circunscritos em algum manual, fazem parte do cotidiano desses
sujeitos que a tratam e vivenciam. Neste sentido, consideramos substancial pensar a
dimensão sociológica da noção de habitus e sua instrumentação de extrema relevância,
por conseguinte e no caso específico desta pesquisa utilizamo-lo para compreender
como se constrói uma rede de discursos, valores e práticas que parecem em certa
medida uniformes e são compartilhados entre os vicentinos que se mantêm em
constante formação através de reuniões e conferências da SSVP, bem como por meio dE
diversas atividades religiosas. Tais práticas visam não apenas a manutenção da rede de
caridade através do serviço ao outro, geralmente sujeito dito carente e necessitado, que é
mantida pelos vicentinos, mas também busca, sobretudo avigorar a fé cristã de seus
membros. Tal percepção/condição pode ser identificada também nas falas dos sujeitos
que transitam no espaço da ILPI pesquisada:
7 Respectivamente leis de nº: 9.487/2001; 7.106/2002; 3.940/2009 Ver: BRITO & QUEIROZ, 2015: p.
158.
7
Olha, toda vez que você pergunta isso dá uma travada, viu, por que os
nossos idosos, a gente tem tanta afinidade com cada um deles, que eles
passam a ser nossa família, eu to aqui, segunda, terça, quarta, quinta, sexta,
sábado, domingo, feriado e dia santo, eu to aqui, todo dia o dia todo. Então
assim, a nossa lista de idosos pra entrar na Vila Vicentina ela tá inserida
mais ou menos em 480 pessoas, na fila pra entrar aqui, então a minha maior
tristeza é quando abre uma vaga porque essa vaga só reacende quando
infelizmente a gente perde um idoso, mas por outro lado a gente fica feliz por
que foi um dever cumprido 8
Reconhecidamente um dos maiores intelectuais do século XX o sociólogo Pierre
Bourdieu possui uma vasta obra, cuja contribuição teórico-metodológica ainda
reverbera em inúmeros estudos nas ciências humanas e sociais, e é em varias destas que
ele, dedica-se a discussão/conceituação do habitus. Como esclarece o próprio Bourdieu
a noção de habitus já foi utilizada em diversos contextos por inúmeros intelectuais9 com
intenções teóricas semelhantes entre si, todavia “[...]é possível compreender o recurso a
noção de habitus, um velho conceito aristotélico-temista que repensei completamente
como uma maneira de escapar dessa alternativa do estruturalismo sem sujeito e da
filosofia do sujeito” (BOURDIEU, 2004: p.22) . Em consonância, segundo Setton
(2002) o habitus emerge como um conceito apto para conciliar a suposta contraposição
entre o mundo exterior e a realidade subjetiva individual dos sujeitos.
Habitus é então concebido como um sistema de esquemas individuais,
socialmente constituído de disposições estruturadas no social e estruturantes
nas mentes, adquirido nas e pelas experiências práticas e condições sociais
específicas de existência constantemente orientado para funções e ações do
agir cotidiano (SETTON, 2002: p. 63)
Vale salientar que além de desfazer com a concepção dualista10 que opõe
indivíduo e sociedade, Bourdieu (2004, p. 98) sublinha que embora o habitus enquanto
um “sistema de disposições para a prática” em certa medida ofereça elementos ou uma
base para a tentativa de “prever” condutas em circunstâncias específicas, não pode ser
tomado como mecanismo garantidor da regularidade destas condutas, afinal “o habitus
está intimamente ligado com o fluido e o vago. Espontaneidade geradora que se afirma
8 Entrevista concedida por W.N.C. - presidente da VVJF, a pesquisadora Jessica Gleyce dos Reis Felix
em 26 de abril de 2017. João Pessoa. 1 arquivo gravado - Entrevista transcrita em processo de análise. 9O autor cita, por exemplo, Hegel, Husserl, Weber, Durkheim e Mauss. Ver: BOURDIEU, 1990: p. 24.
Em artigo intitulado “Esclarecer o habitus” o Professor Loic Wacquant também elabora uma
reconstituição da gênese da noção de habitus a partir dos trabalhos do autor. 10 Ver: WACQUANT, 2007: p. 67.
8
no confronto improvisado com situações constantemente renovadas, ele obedece a uma
lógica pratica, a lógica do fluido [...] que define a relação cotidiana com o mundo”
DELINEANDO OUTROS CONCEITOS E APONTANDO A METODOLOGIA
A formulação do conceito de representações proposto por Chartier, o qual
também nos apropriaremos, perpassa pelo diálogo e confronto com diversos autores no
contexto de suas reflexões sobre a história da história enquanto disciplina, com especial
ênfase em Pierre Bourdieu. Representações apreendidas aqui como classificações,
categorias que tornam inteligíveis as percepções do espaço pelo sujeito, constroem
sentidos e significados ao real, não obstante, são arraigadas de intencionalidades e
pretensões de universalização dos grupos que as constroem onde por consequência a
neutralidade é um valor inexistente; nas palavras do autor:
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros:
produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a
impor uma autoridade à custa de outros, por ela menosprezadas, a legitimar
um projeto reformador ou a justificar os próprios indivíduos, as suas
escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações
supõem-nas como sempre colocadas num campo de concorrências e de
competição cujos desafios enunciam em termos de poder e dominação.
(CHARTIER, 1990: p. 17).
Assim é imprescindível um constante exercício de reflexão por parte do
historiador acerca dos embates no seio das relações entre as diversas representações
existentes mundo, sem, contudo arrefecer o interesse por outras esferas como social,
política ou econômica.
As relações dos indivíduos com o passado se estabelecem de múltiplas maneiras,
dentre elas está à produção do conhecimento histórico, destarte, a memória, seja ela
individual ou coletiva desempenha um papel considerável nessa construção. Contudo,
acionar o trabalho com a memória no campo da histografia embora ofereça-nos
inúmeras possibilidades requer do historiador uma postura diligente, para que não se
corra o risco de tomá-las enquanto retrato fiel de acontecimentos experienciados em
outras temporalidades, numa perspectiva homogeneizante, afinal “A construção de uma
9
memória segue muitas trilhas, algumas vezes, obedecendo às margens que o tempo lhe
ofereceu, outras vezes rompendo os limites e ocupando vastos territórios”
(MONTENEGRO, 2010: p.101).
Sendo assim recorreremos às concepções propostas por alguns autores, tendo em
vista que estaremos em constante diálogo com a memória através de depoimentos orais
e narrativas dos sujeitos inseridos na Vila Vicentina Julia Freire.
Em prefácio feito a edição da obra de Maurice Halbwachs (1990, p. 14) A
Memória Coletiva, Jean Duvignaud assinala como o autor demonstra a impossibilidade
de pensar o problema da localização da lembrança se não a partir de quadros reais,
referenciais para os exercícios da memória, pontuando que a evocação do depoimento
apresenta sentido apenas quando relacionada ao grupo do qual faz parte; neste sentido, a
memória individual, rememoração pessoal está entrelaçada as diversas “malhas de
solidariedade” com as quais o sujeito interage, o sujeito individual não foge a existência
social, e é a reunião de tais elementos que se manifesta em forma de lembrança e que
por sua vez exprime-se em linguagem.
Por consequência, para Halbwachs a memória se configura como um artifício
que demarca os elementos constituintes das identidades de uma comunidade. “Nossas
lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros mesmo que se
trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só
nós vimos. É porque na realidade nunca estamos sós” (HALBWACHS, 1990: p. 26).
Sendo assim, ainda segundo Halbwachs as afinidades, laços e as trajetórias comuns,
marcada pelas vivências cotidianas com as alegrias e intempéries de um grupo são os
princípios que formulam a memória comunitária, nesse sentido no âmbito da história
oral esses grupos tornam-se portadores de uma “comunidade de destino”11, de uma
coletividade afetiva de pertencimento mútuo.
Ao pensar sobre as relações entre a memória e a identidade social Michael
Pollak (1992) ressalta que as formas como as memórias se estruturam irão ser balizadas
pelas preocupações do momento, tanto individual quanto coletivamente. Em
11 Ver: MEIHY & HOLANDA, 2015: p. 52
10
complemento, para o autor, as identidades coletivas são construídas pelos grupos ao
longo do tempo, pautadas nos exercícios da memória, de modo a produzir em seus
integrantes noções de pertencimento e continuidade. Assim sendo, o exercício do
lembrar/rememorar coletivamente reitera sua importância, já que por meio desta
unidade os grupos elaboram narrativas sobre si, como afirma a seguir:
Em todos os níveis a memória é um fenômeno construído social e
individualmente, quando se trata de memória herdada podemos também
dizer que há uma ligação muito estreita entre a memória e o sentimento de
identidade [...] a memória é um elemento constituinte do sentimento de
identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também
um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de
coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.
(POLLAK, 1992: p. 204).
Inserido em um contexto, de mudanças de percepção histórica e de revisionismo
da prática historiográfica o francês Pierre Nora (1993, p. 9), indica a vivência de um
processo de aceleração da história, e ao sistematizar suas reflexões acerca das diferenças
entre a história e a memória, define a história como o ato de reconstruir sempre em
incompletude aquilo que já não é; a memória por sua vez, “é a vida” e está em um
movimento constante de transformação, é dinâmica, na medida em que suscetível a
diversos usos e manipulações, caminhando sobre a linha tênue da lembrança e do
esquecimento.
A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a
história uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a
memória não se acomoda a detalhes que a confortam, ela se alimenta de
lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou
simbólicas, sensível a todas as transferências, cena censuras ou projeções. A
história porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso
crítico. (NORA, 1993: p. 9)
Vale ressaltar que o autor também dialoga com Halbwachs tendo em vista que
aponta o caráter seletivo, individual, coletivo e plural da memória, atrelando sua
emergência aos grupos que ela une e as identidades que ajuda a construir.
Para Roger Chartier as contribuições da obra A memória, a história e o
esquecimento do filósofo Paul Ricoeur no que concernem as representações sobre o
11
passado histórico e as distinções entre memória e história são de extrema relevância,
pois fornecem os elementos necessários para questionar e categorizá-las no seio do
debate historiográfico, [...] o testemunho da memória é fiador da existência de um
passado que foi e não é mais. O discurso histórico encontra ali a certificação imediata e
evidente da referencialidade de seu objeto” (CHARTIER, 2015: p. 23)
Subdividindo este trabalho em três partes de acordo com o tema e o método,
como esclarece em advertência inicial, Ricoeur (2007, p 17) dedica à memória espaço
primordial em suas análises sob a égide de uma perspectiva da fenomenologia,
discutindo-a a partir dos diversos elementos que compõem a lembrança. Como aponta
Ivano (2015) ao analisar sua obra, a diversidade de sentidos atribuídos a memória e ao
esquecimento extingue a possibilidade de estabelecer relações mecânicas entre os
exercícios de lembrar e esquecer. A percepção do contexto e condições históricas em
que a memória está inserida é essencial para pensar as múltiplas questões que a
orientam e envolvem “Para Ricoeur, a fundamentação dessas condições passa pelo
entendimento do tempo, isso quer dizer, do modo como os sujeitos compreendem a si
como históricos com suas posturas diante do passado e do futuro” (IVANO, 2015: p.
09).
Outro importante referencial teórico e metodológico para este trabalho é a densa
obra de Ecléa Bosi Memória e sociedade: lembranças de velhos, que editado pela
primeira vez em 1979, confere visibilidade a velhice a partir das memórias e histórias de
vida e trabalho de oito idosos com mais de 70 anos, tendo como pano de fundo a cidade
de São Paulo, dialogando com as perspectivas de autores como Halbwachs, Bartlett,
Stern e Bergson acerca da memória, a autora discute questões como o lugar do idoso nas
sociedades contemporâneas, e como salienta a seguir transita de forma consciente entre
os dois temas de extrema complexidade “[...] não pretendi escrever uma obra sobre
memória, tampouco sobre velhice. Fiquei na intersecção dessas realidades: colhi
memórias de velhos. (BOSI, 1994: p. 39)
Entre os conceitos que também pretendemos tomar por empréstimo está a noção
de disciplina formulada em Foucault (2005). O autor assinala que embora os processos
12
de controle das operações sobre o corpo já existissem inclusive em diversas instituições
como os conventos e exércitos, é no transcorrer dos séculos XVII e XVIII que as
disciplinas se transformam em “fórmulas gerais de dominação”.
“O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte
do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades,
nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que
no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil e
inversamente [...]A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos ‘dóceis’ (FOUCAULT, 2005: p. 119)
Exercício inequívoco de alteridade, a metodologia principal desta pesquisa é a
história oral, e para uma operacionalização adequada dos seus pressupostos nos
apropriaremos das concepções indicadas por historiadores e profissionais de outros
campos com experiência no tema.
“Memórias, percursos, reflexões” este é o título da entrevista realizada com o
professor, historiador, especialista em relatos orais Antônio Torres Montenegro, no ano
de 2008 que inaugurava a sessão de entrevistas da Revista Saeculum vinculada ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, onde
discorre sobre questões intrínsecas ao fazer historiográfico, como a memória, a pesquisa
e o ensino de história. Entre os problemas que envolvem o uso do termo história oral
Montenegro é enfático ao pontuar:
“[...] a história oral não existe enquanto área do conhecimento- eu pelo
menos estou alinhado com pesquisadores e historiadores que vêem no uso
das fontes orais apenas uma forma de produzir uma fonte para o trabalho do
historiador- e nisso continuo discordando frontalmente daqueles que dizem
que publicar entrevista é fazer um tipo diferente de história chamado história
oral. Para mim, publicar um documento [...] é um trabalho técnico, mas a
pesquisa, o cruzamento de fontes, enfim tudo que enseja a complexa
operação historiográfica, só ocorre na hora em que se faz uma análise,
quando se constrói uma narrativa histórica. (MONTENEGRO, 2008: p. 194)
Como aponta Lozano (2006), aplicada em pesquisas nas diversas áreas do
conhecimento, a prática da história oral, também se utiliza dos instrumentos teóricos de
várias disciplinas das ciências humanas e assim como outros procedimentos
metodológicos contempla com rigor as mesmas fases da análise histórica exigindo do
13
historiador-pesquisador uma postura ética e reflexiva para o desenvolvimento da
entrevista “O historiador oral é mais que um gravador que registra os indivíduos sem
voz, pois procura fazer com que o depoimento não desloque nem substitua a pesquisa e
conseqüentemente a análise histórica” (LOZANO, 2006: p. 17).
Para Verena Alberti (2008: p. 155) a história oral permite o acesso à história
dentro da história estendendo possibilidades de interpretação do passado; já Meihy &
Holanda (2015: p, 17) entre algumas das perspectivas apresentadas em profícuo
trabalho, pontuam que a História Oral é sempre uma história do tempo presente, na
medida em que seu produto é sempre elaborado por colaboradores vivos em seus
exercícios de rememoração, com a mediação do pesquisador que por sua vez segue um
conjunto de regras e procedimentos específicos, de todo modo como sugere a autora,
entrar em contato com o cotidiano de sujeitos comuns através das entrevistas possibilita
agregar uma dimensão de vida ao trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em resumo, embora os estudos acerca da velhice e das múltiplas questões que a
envolvem ainda sejam escassos nas ciências humanas e sociais em geral, refletir sobre
os amplos e profícuos caminhos e possibilidades que o tema nos oferece tornou-se uma
operação de grande importância, tendo em vista inclusive a oportunidade de dialogar
com outras áreas do conhecimento, modalidades historiográficas, e com seus
respectivos conceitos e métodos.
Nesse sentido, pautada nos pressupostos acima mencionados, o presente trabalho
buscou apresentar de forma sucinta algumas das principais discussões que
acompanharão o desenvolvimento da pesquisa, cujo principal objetivo é analisar quais
as práticas e representações sobre e para a velhice elaboradas/construídas pelos sujeitos
inseridos na Instituição de Longa Permanência para Idosos Vila Vicentina Julia Freire,
com ênfase especial aos voluntários vicentinos que a dirigem e coordenam e relações de
alteridade que estabelecem.
14
REFERÊNCIAS
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ALBERTI, Verena. Fontes orais: Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org). Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p.155-202.
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sensibilidades para com os idosos (Cajazeiras, 1990 – 2013). Dissertação (Mestrado em
História) PPGH, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande- PB,
2013.
BEAUVOIR, Simone de. A velhice: a realidade incômoda. 6ª reimpressão. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BENJAMIN, Walter. Magia, Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e
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Paulo: Brasiliense, 1987.
BRITO, Suerde Miranda de Oliveira & Queiroz, Anna Carla Silva de. Memória da
Vila Vicentina: Organização e difusão do acervo fotográfico de uma Instituição de
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