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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO EDUARDO BELO VIANNA VELLOSO Velhos e Novos Dilemas da Cidadania no Brasil: a dignidade na encruzilhada Rio de Janeiro 2007

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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO

EDUARDO BELO VIANNA VELLOSO

Velhos e Novos Dilemas da Cidadania no Brasil: a dignidade na encruzilhada

Rio de Janeiro 2007

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EDUARDO BELO VIANNA VELLOSO

Velhos e Novos Dilemas da Cidadania no Brasil: a dignidade na encruzilhada

Dissertação apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Sociologia. Orientadora: Maria Alice Rezende de Carvalho

Rio de Janeiro 2007

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ÍNDICE

Resumo ................................................................................................................................04 Introdução... .........................................................................................................................05

Capítulo 1 - Evolução da Cidadania.....................................................................................07

Capítulo 2 – Cidadania e as modernidade central e periférica.............................................22

2.1 – Indivíduo, Sociedade e Estado.............................................................................22

2.2 – O Processo de Juridificação.................................................................................34

2.3 – Tendências Modernas do direito: formalismo, materialização e

responsividade.....................................................................................................41

2.4 – Uma Utopia Pós-Moderna....................................................................................50

Capítulo 3 - Modernidade Periférica – O caso brasileiro.....................................................56

Capítulo 4 – Cidadania no Brasil.........................................................................................81

4.1 – A dimensão política da cidadania.........................................................................81

4.2 – Direitos sociais e sua interface com o quadro político.........................................86

4.2.1 – A emergência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)......................87

4.2.2 – Da ‘cidadania regulada’ à ‘americanização perversa’ da cidadania.............91

4.3 – A Informalidade ontem e hoje..............................................................................97

4.4 – A cidadania na cidade.........................................................................................101

Considerações Finais..........................................................................................................111

Anexo.................................................................................................................................124

Bibliografia.........................................................................................................................125

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Resumo

Na presente dissertação, examinamos alguns dos dilemas antigos e atuais da

cidadania no Brasil, a partir da elaboração teórica de T. H. Marshall (1967), então

apresentada e criticada.

A análise da modernidade central permite identificarmos as afinidades entre

os aspectos da sociedade moderna e os traços adquiridos pela cidadania, como definida por

Marshall. Igualmente, são as mudanças que se abatem sobre a modernidade que nos

revelam os dilemas que atingem aquele marco conceitual, ou seja, os novos dilemas, os

quais afetam também os países periféricos.

Quanto aos velhos dilemas, mostramos que a cidadania marshalliana

configura-se como um padrão específico aos países centrais (especialmente à Inglaterra) e,

portanto, nunca se configurou plenamente no Brasil. Nesse sentido, ao abordarmos nosso

processo de modernização, mostramos que um pressuposto básico da cidadania aqui se

desenvolveu apenas parcialmente: o reconhecimento de um senso mínimo de igualdade.

Por isso, as demandas por dignidade, resolvidas de modo razoável pelo Welfare State em

países centrais, constituem um velho dilema brasileiro, como provam a evolução dos

conteúdos e do alcance social dos direitos de cidadania, a informalidade e a ordenação do

espaço urbano em nossas grandes cidades.

Velho e novo firmam relações complexas que, de um lado, minam o padrão

ideal de cidadania que residia na concepção marshalliana concretizada empiricamente nos

países centrais e, de outro, não nos permitem ter claro qual o caminho a seguir para

construirmos uma sociedade democrática, onde a liberdade, a igualdade e o respeito se

conjuguem e sirvam de esteio à dignidade dos cidadãos.

Palavras-chave: cidadania – direitos – modernidades central e periférica – dignidade –

liberdade – igualdade – reconhecimento – democracia.

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Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar os dilemas atuais da cidadania

moderna. Adotando como referência a clássica concepção de T. H. Marshall (1967),

defendemos que a emergência de uma miríade de problemas impõe a redefinição de seus

termos. Ademais, verificaremos a adequação desse modelo ao caso brasileiro e a forma

como aqui se manifestam as novas questões debatidas.

Note-se que apresentaremos problemas ‘objetivos’, como mudanças no

mundo do trabalho ou as novas formas de interação entre os espaços local, nacional e

global; e teóricos, como as lutas por reconhecimento (dignidade e autenticidade), às quais a

literatura sociológica e política não conferia a devida atenção, ou reflexões sobre a

materialização da justiça, com temas como a responsividade do direito.

Entendemos que, se as sociedades não enfrentarem praticamente os

problemas sociais apontados, e se a cidadania não for redefinida teoricamente, ela poderá

perder sentido ou adquirir tantos que não se saberá mais do que falamos. Ainda, se o

escopo e a efetividade da cidadania não forem ampliados, ela poderá ver minada sua

capacidade de promover a integração social, como o fez, sobretudo nos países centrais,

baseando-se na noção de igual valor e de um mínimo comum.

No primeiro capítulo, mostraremos como a cidadania, entendida como um

status concedido aos membros integrais de uma comunidade política, se desenvolveu

historicamente. Analisando a eclosão dos direitos civis, políticos e sociais, abordaremos

pontos como as relações igualdade-liberdade e igualdade-desigualdade, mudanças no

escopo da atuação estatal e problemas de integração social. Serão apontados ainda temas

contemporâneos que indicam o esgotamento do padrão marshalliano de cidadania.

No segundo capítulo, traçaremos o entrelaçamento entre as características da

modernidade e a evolução observada pela cidadania. O complexo de relações entre

indivíduo, sociedade e Estado nos permitirá identificar as condições institucionais, morais

e societais para a configuração e o exercício da cidadania, bem como prospectar seus

desenvolvimentos futuros. Também será abordada a relação entre conflito social e a

emergência de direitos, sobretudo os políticos e sociais. Com efeito, a aparente resolução

daquele, com a emergência do Welfare State no século XX, permitiu a Marshall

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desenvolver sua concepção de cidadania. A erosão desse quadro institucional e a reflexão

sobre fenômenos que caracterizam uma pós-modernidade (surgimento de novos valores,

fracionamento de identidades, questões ecológicas, mudanças no regime de acumulação, e

lutas por reconhecimento) afetam aquelas concepções, demandando nosso esforço

reflexivo. Nesse contexto, merece atenção, igualmente, o desenvolvimento do sistema

jurídico moderno.

No terceiro capítulo, a partir do quadro geral sobre a modernidade central,

ressaltaremos as peculiaridades que marcaram nosso desenvolvimento sócio-histórico.

Temas presentes há muito no pensamento social brasileiro serão debatidos através de

autores consagrados. Escravidão, clientelismo, autoritarismo, dependência externa,

industrialização, crescimento econômico e desigualdade serão fatores levantados para

compreendermos as razões por que não logramos alcançar os níveis de cidadania e de bem-

estar de países centrais. Veremos que o problema da difusão de um sentido de igualdade

mínima acompanhou nossa modernização. E sobressai da análise de todos os autores, por

vezes valendo-se de categorias sobremaneira diversas, que os benefícios da modernização

acabaram confluindo para uma minoria.

No quarto capítulo, à luz do processo de modernização brasileiro,

analisaremos as características que a cidadania assumiu em nosso país. Mostraremos os

contornos que aqui assumiu a dimensão política da cidadania, bem como a evolução dos

direitos sociais e a sua interface com o quadro político. Dado nosso foco privilegiado sobre

as demandas por dignidade, refletiremos como, no passado e nos dias atuais, a

informalidade impacta o exercício da cidadania. Por fim, nos remetermos ao exemplo das

favelas cariocas para problematizar a configuração da cidadania nas cidades brasileiras.

Em nossas Considerações Finais, faremos um apanhado dos principais

temas apresentados ao longo do trabalho. Sem a pretensão de fornecer respostas,

levantaremos algumas questões que se impõe a todos que prezam pela igualdade, liberdade

e fraternidade.

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Capítulo 1: Evolução da Cidadania

A cidadania moderna desenvolveu-se através da paulatina integração de

setores da população que tiveram reconhecidos novos direitos e a capacidade legal de

usufruí-los. Esse processo não ocorreu de modo linear, sofrendo recuos e avanços em meio

a tensões políticas e sociais. Além disso, variou de acordo com as especificidades dos

diversos países e, no interior de cada qual, com as diferenciações locais e regionais.

No período medieval havia íntima ligação entre posições hereditárias ou

espirituais, o controle sobre a terra e o exercício da autoridade pública. Ademais, os

direitos e liberdades aplicavam-se a grupos e corporações, com a representação nos corpos

judiciários e legislativos materializando-se por meio de estados. Para Bendix (1996),

romperam esse sistema a Revolução Francesa (política) e a Revolução Industrial inglesa 1.

Emergiu um novo padrão de relações de classe, onde a antiga dependência foi substituída

por relações de autoridade individuais, erigidas num contexto de direitos iguais para todos

os cidadãos. Se no período medieval a autoridade soberana limitava-se aos grandes homens

do reino, no Estado Moderno cada cidadão relaciona-se diretamente à autoridade soberana

do país. Esse processo relacionou-se à construção do Estado-nação e envolveu a

codificação de direitos e deveres dos adultos considerados cidadãos, conforme uma

classificação mais ou menos inclusiva. Inicialmente restrita a poucos notáveis, estendeu-se

gradualmente a cidadania até tomar proporções de massa.

Bendix analisa essa evolução recorrendo a um par de princípios: o

funcional, relativo a direitos e deveres peculiares a um grupo; e o plebiscitário, decorrente

da destruição de todos os poderes (estados, corporações, ...) entre o indivíduo e o Estado.

Para o autor, as leis e codificações que tornaram nacional a cidadania envolveram

acomodações entre esses dois princípios. E, para melhor comparar o desenvolvimento dos

vários direitos de cidadania, Bendix considera útil a tipologia de Marshall.

Entendemos que, além de fundamental para compreendermos a evolução da _________________________________________________________________________________________________ 1 O autor ressalta que a industrialização e a democratização são dois processos distintos. Embora estritamente vinculados na Inglaterra, as idéias democráticas e os direitos de cidadania espalharam-se pelo mundo, mesmo em lugares onde a estrutura política não sofria maciços impactos oriundos de mudanças socioeconômicas. Mas se o princípio de direitos iguais para todos foi formulado no bojo do Iluminismo e do despotismo esclarecido, a industrialização auxiliou a sua divulgação; e notaremos que, no Welfare State, estabeleceu-se um vínculo entre o gozo de direitos sociais e o desempenho da economia.

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cidadania moderna, a concepção apresentada por T. H. Marshall (1967), em 1949, é chave

para identificarmos as fissuras que acossam a cidadania nos dias atuais. O autor a definiu como

“um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade” (Marshall,

1967: 76) e esquematizou o desenvolvimento histórico dos direitos de cidadania na

Inglaterra. Assim, no século XVIII, este país observou o desabrochar dos direitos civis,

entendidos como os necessários à fruição da liberdade individual (direito de ir e vir;

liberdade de imprensa, de pensamento e de fé; direito à propriedade e a firmar contratos

válidos e o direito à justiça). Já os direitos políticos ligam-se à possibilidade de participar

do exercício do poder político e, em verdade, não eram direitos novos, mas prerrogativas

que foram estendidas a novos setores da população durante o século XIX. Por fim, no

século XX, os direitos sociais foram incorporados ao status de cidadania, compreendendo

um mínimo de garantias contra a pobreza, fornecido por serviços sociais implementados

pelo denominado Welfare State (Estado de Bem-Estar).

Com efeito, o autor preocupou-se com a igualdade. Afirmou que, associada

à participação integral na comunidade, há uma espécie de igualdade humana básica que,

enriquecida e investida de um conjunto de direitos, tem sido identificada ao status de

cidadania. A igualdade de cidadania, desde que reconhecida, admite a desigualdade do

sistema de classes sociais, mas impede que se instaure um sistema onde as culturas de

classe não desfrutem de um mínimo comum. Ao contrário, torna possível, embora não de

todo satisfatório, medir os diferentes níveis de bem-estar econômico por referência a um

padrão de vida comum. As diferenças de classe não se fixam em leis e costumes, mas em

fatores como educação, propriedade e estrutura da economia nacional. Sobre o ‘status’

uniforme da cidadania a estrutura de desigualdade pode ser edificada.

Marshall enfatiza que os direitos civis, embora reconhecidos nos séculos

XVIII e XIX, não funcionavam na prática.

As barreiras entre os direitos e remédios eram de duas espécies: a primeira se originava nos preconceitos de classe e parcialidade; a segunda, nos efeitos automáticos da distribuição desigual de renda que opera através do sistema de preços. Os preconceitos de classe que, indubitavelmente, caracterizavam a distribuição da justiça no século XVIII, não podem ser abolidos por leis, mas somente pela educação social e a edificação de uma tradição de imparcialidade. Este é um processo difícil e moroso que pressupõe uma mudança no modo de pensar nos escalões superiores da sociedade. Mas é um processo que ocorreu (...)” (Marshall, 1967: 80).

O autor afirma que este processo se consumou e a tradição de

imparcialidade (em relação às classes) está presente na justiça civil inglesa, dada “a difusão

em todas as classes, de um sentido mais humano e realista de igualdade social” (idem:81).

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O sociólogo também atentou para a relação liberdade-igualdade. Nas cidades

inglesas livres do século XVII, liberdade e cidadania se confundiam. A expansão do foro

local para o nacional significou a universalização da liberdade, transformando-a numa

instituição nacional.

O primeiro passo foi a igualdade perante a lei. Afastando privilégios

herdados, cada qual pôde agir como uma unidade independente. Conforme a definição

legal, observou-se a extensão dos direitos civis a setores inarticulados da população,

conferindo um significado libertário e positivo ao reconhecimento legal da individualidade.

Mas se a lei firmou a capacidade legal, não considerou a habilidade dos cidadãos em usá-

las, num contexto em que extintas as proteções do sistema hierárquico medieval. Além

disso, como já referido, os preconceitos de classe e as desigualdades econômicas impediam

o gozo de direitos pelas classes populares. Por conseqüência, o apelo contra as iniqüidades

legais surgiu como uma nova dimensão dos distúrbios sociais durante os séculos XVIII e

XIX e ocupou os debates políticos sobre a construção da nação, na Europa.

A questão envolvia os graus de desigualdade ou insegurança toleráveis e os

métodos para debelar os limites considerados intoleráveis. Os defensores do laissez-faire

propugnavam uma solução conforme a estrutura legal de direitos. Nesse sentido, as

primeiras leis de segurança no trabalho destinaram-se apenas a crianças e mulheres, pois

não eram reconhecidas legalmente como cidadãos. Já os adultos do sexo masculino, como

cidadãos livres, poderiam engajar-se no esforço econômico e cuidar de si próprios. Na

verdade, “direitos formalmente garantidos beneficiam o afortunado e, mais

esporadicamente, aqueles que são definidos legalmente como desiguais, enquanto toda

uma carga de rápida mudança econômica cai sobre o ‘pobre trabalhador’, fornecendo,

desse modo, uma base para a agitação, muito em breve” (Bendix, 1996: 113).

Bendix enfatiza que essa agitação foi desde o início política. De fato, a

proteção legislativa da liberdade de contrato era acompanhada pela proibição dos

sindicatos. Os direitos civis atuavam como base da economia de mercado, onde cada

indivíduo seria uma unidade independente e igualmente capaz de defender seus interesses.

Nesse contexto, reconhecer aos trabalhadores o direito de reunião para efeito de

negociação coletiva ante o empregador negaria tal princípio. Qual a contradição? Os

direitos civis não se restringem aos direitos de propriedade e de contrato, mas incluem a

liberdade de palavra, pensamento e confissão, bem como a de juntar-se a outras pessoas na

busca de fins privados (direito de associação).

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O declínio do sistema de guildas e o progresso econômico fomentaram a

necessidade de novas regulamentações das relações patrão-empregado e das associações de

artífices. Esquematicamente, três foram as políticas fixadas pelos países europeus: (1) o

tipo escandinavo e suíço preservou o direito de associação segundo os moldes tradicionais

de organização dos ofícios. A liberdade aproximou-se de privilégios, reforçando

estatutariamente os arranjos existentes; (2) o tipo absolutista encontrou exemplo na

proibição prussiana de todos os tipos de associação de trabalhadores, destruindo todos os

poderes entre o rei e os súditos; (3) a política liberal, presente na Inglaterra, tentava superar

os privilégios de associação do período medieval assegurando o direito de associação, mas

mantinha elementos absolutistas quando vedava o direito de reunião aos trabalhadores.

Bendix nota que o direito de associação combina os princípios funcional e

plebiscitário. Enquanto este último reside no direito reconhecido formalmente a todos os

cidadãos que gozam da capacidade de agir; o primeiro tem por base os interesses comuns,

diversamente dos estados medievais, que gozavam de privilégios coletivos.

Com o posterior reconhecimento da legitimidade dos sindicatos, a cidadania

começou a ampliar seu escopo, pois então se utilizou o direito de reunião para vindicar

pretensões básicas de justiça social. “Em outras palavras, os direitos civis são aqui usados

para habilitar as classes baixas a participar mais efetivamente do que de outro modo

aconteceria na luta econômica e política sobre a distribuição da renda nacional” (Bendix,

1996: 121). Mas, para o autor, se o direito de reunião beneficiou os trabalhadores

organizados em sindicatos, impulsionando seus interesses econômicos, deixou

desamparada a parcela das classes populares que não conseguiu dele se valer para auferir

os mesmos benefícios, ou ainda foi bloqueada por expedientes exclusivistas ou

neocorporativos dos sindicatos estabelecidos.

No século XIX, os direitos políticos eram um subproduto dos direitos civis.

Dessa forma, o cidadão, exercendo sua liberdade e gozando de seus direitos civis, poderia

receber remuneração e adquirir propriedades que o habilitariam ao gozo dos direitos

políticos. Só no início do século XX associaram-se diretamente os direitos políticos à

cidadania, promovendo sociedades políticas mais inclusivas (Marshall, 1967).

O exercício dos direitos políticos demandou a alteração da cultura política.

Se o voto secreto diminuiu a intimidação das classes inferiores pelas superiores, demorou

para entre elas se dissipar a noção de que os membros do governo deveriam ser recrutados

entre as elites. Nesse sentido, a quebra do monopólio de classe na política foi decisiva.

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Foco de tensão, a universalização dos direitos de participação política teve

como pré-requisito a unificação do sistema de representação nacional. No fim da Idade

Média a representação era por estados, que possuíam assembléias em separado e enviavam

seus representantes à autoridade territorial central. A Revolução Francesa alterou esse

quadro, tornando o cidadão individual a unidade básica, estabelecendo ainda uma

assembléia nacional unificada de legisladores, em lugar de corpos funcionais separados.

A democracia representativa difundiu-se pela maior parte da Europa 2, mas

cada país seguiu um caminho, observando-se ao menos cinco critérios reguladores do

direito de voto durante o período de transição (principalmente século XIX): (1) critério de

estados tradicionais, cabendo o voto a chefes de família dentro de grupos de status

delimitados; (2) regime censitário, com restrições baseadas no valor da terra, capital ou

renda; (3) regime de capacidade, exigindo as habilidades de ler e escrever ou certo nível de

educação formal; (4) critério de responsabilidade familiar, restringindo o voto a chefes de

família de acordo com requisitos determinados; e (5) critérios de residência, como as

exigências de registro e tempo de domicílio.

O regime censitário conformava-se à ascensão do capitalismo comercial e

industrial segundo o argumento de Benjamin Constant de que os negócios da comunidade

nacional competiriam aos que tinham interesses “reais”, ou seja, proprietários e

investidores. O princípio da capacidade era uma aplicação dessa idéia aos que investiram

em sua capacitação. “A noção implícita é que apenas esses cidadãos podem fazer

julgamentos racionais das políticas a serem seguidas pelo governo” (Bendix, 1996: 131).

A independência intelectual era o centro das disputas entre liberais e

conservadores acerca da organização do sufrágio. Enquanto os primeiros defendiam o

regime censitário e temiam as possíveis manipulações eleitorais advindas da extensão do

voto a cidadãos economicamente dependentes; os conservadores defendiam a

universalização do voto porque acreditavam que os dependentes votariam nos notáveis

locais, mantendo o poder em bases locais. Com efeito, o autor, recorrendo ao caso alemão,

firma que na área rural as extensões de sufrágio tendiam a reforçar os conservadores. Mas

as conseqüências da ampliação do direito de voto eram diversas nas áreas urbanas, onde

crescia uma classe de assalariados independente politicamente dos empregadores e que

lutava pela universalização do sufrágio.

_________________________________________________________________________________________________ 2 Só a Inglaterra manteve a representação territorial, onde a Câmara dos Comuns era formada por representantes das localidades do reino (os condados e os burgos) (Bendix, 1996).

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Problemas de administração das eleições emergiram, como o desenho dos

distritos eleitorais, ou o peso dos votos. O ponto mais interessante referia-se à salvaguarda

da independência eleitoral individual, ou seja, o sigilo do voto. Nessa questão, Bendix

identifica um princípio nacional e plebiscitário de integração cívica. Com o voto secreto, o

indivíduo é colocado ante uma escolha pessoal e livre dos constrangimentos do ambiente

circundante; “na cabine de votação, ele pode ser um cidadão nacional”, em outros termos,

“as disposições para o sigilo isolam o trabalhador dependente não só de seus superiores,

mas também de seus pares” (Bendix, 1996: 134).

Logo, a extensão da cidadania às classes populares envolveu tendências

simultâneas à igualdade e à instauração de uma autoridade governamental de âmbito

nacional. O Estado-nação atuou como origem dos direitos de cidadania, e estes são um

símbolo da igualdade na esfera nacional. Mas esse sistema não bloqueou a diferenciação

social e a ação de grupos de interesse que modificam o princípio plebiscitário e

estabelecem novas desigualdades que, por sua vez, podem gerar contramedidas em prol do

princípio igualitário plebiscitário. Em comparação ao antigo regime, reduziu-se a

solidariedade social, que antes se assentava sobre grupos secundários. Antes não havia a

cisão que agora há entre sociedade e Estado. A solidariedade passou a fluir da

estratificação econômica da sociedade, combinada à igualdade formal e ao processo

eleitoral. Portanto, dá-se “(...) um hiato entre as forças que conduzem à solidariedade ou ao

conflito social independentemente do governo e as forças que respondem pelo exercício

contínuo da autoridade na comunidade política nacional” (idem: 173). Com isso,

compreende-se que “um alto grau de consenso no nível nacional pode ser totalmente

compatível com uma decrescente habilidade para alcançar acordo em questões de políticas

nacionais. Exceto em emergências, o consenso no nível nacional possui, portanto, uma

qualidade impessoal que não satisfaz ao persistente anseio por fraternidade ou sentimento

de solidariedade” (idem: 171). É que o governo nacional moderno representa um princípio

relativamente autônomo de tomada de decisão e de implementação administrativa (aqui é

chave o domínio burocrático).

A universalização da cidadania expandiu as demandas sociais e, por

conseqüência, as atividades governamentais. As desigualdades sócio-econômicas

tornaram-se alvo de políticas redistributivas hábeis a assegurar o exercício de direitos e

deveres de cidadania. As atividades do governo então se desenvolveram para satisfazer

demandas públicas, encorajando “(...) a formação de grupos baseados nos princípios do

interesse comum e na capacidade de organização, mais do que no privilégio herdado”.

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(Bendix, 1996: 164). Tanto partidos políticos de massa como grupos de interesse diversos

se formaram e se tornaram ativos como causa e conseqüência da proliferação do governo.

Note-se que, ao final do século XIX, a cidadania contribuiu pouco para

reduzir a desigualdade social, mas ela foi fundamental para disseminar uma concepção de

igual valor dos homens, não limitada aos direitos naturais. E assim ela serviu de cimento

para as políticas igualitárias do século XX. Enfim, ela promoveu a integração social.

A cidadania exige um elo de natureza diferente, um sentimento direto de participação numa comunidade, baseado numa lealdade a uma civilização que é um patrimônio comum. (...) Seu desenvolvimento é estimulado tanto pela luta para adquirir tais direitos quanto pelo gozo dos mesmos, uma vez adquiridos (Marshall, 1967: 84).

Os direitos sociais convergem com princípios de justiça social. Destinam-se

a ampliar para muitos nacionais os componentes de uma vida civilizada e culta, antes

restrita a poucos, alterando o padrão de desigualdade social. Marshall questionou-se sobre

os limites da tendência a uma maior igualdade social e econômica, bem como sobre a

possibilidade de se combinar num só sistema princípios de justiça social e de preço de

mercado. Afinal, os “direitos sociais, em sua forma moderna, implicam uma invasão do

contrato pelo status, na subordinação do preço de mercado à justiça social, na substituição

da barganha livre por uma declaração de direitos” (Marshall, 1967: 103).

Marshall aponta ainda a necessidade de se descobrir os efeitos combinados

de três fatores. O primeiro consiste em compreender a escala de distribuição de renda. O

segundo refere-se à grande extensão da área de cultura comum e experiência comum. E,

por fim, “o enriquecimento do status universal de cidadania, combinado com o

reconhecimento e a estabilização de certas diferenças de status principalmente através dos

sistemas relacionados de educação e ocupação. Os dois primeiros tornaram o terceiro

possível” (idem: 108).

Maria Lúcia Werneck Vianna (2000) ressalta que o entrelaçamento

reconhecido por Marshall entre os direitos políticos e sociais torna estes últimos (sociais)

um complemento da cidadania, ante um quadro onde o Estado age como protetor da esfera

pública, espaço de conquista e luta pelos direitos, e não como um benfeitor.

Se fizemos referência aos direitos de cidadania nos moldes propostos por T.

H. Marshall, vale destacarmos certas relações e diferenças de “natureza” entre eles.

Marshall firma que, antes da era moderna, os direitos sociais decorriam da

participação em comunidades locais e associações funcionais. Com o desenvolvimento da

economia capitalista competitiva, eles foram associados à velha ordem, dando lugar à

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emergência dos direitos civis. Um passo inicial e importante para seu ressurgimento foi a

implantação da educação primária pública durante o século XIX, embora só no século XX

foram de fato incorporados à cidadania, gerando impacto sobre a desigualdade social.

Quanto à educação básica, para Bendix (1996), ela é precondição para o

exercício de outros direitos. O direito à educação básica tornou-se mesmo um direito-dever

nas sociedades ocidentais, de modo que os pais são obrigados por lei a providenciar que os

filhos freqüentem a escola, variando apenas o grupo etário conforme o país.

Provavelmente, essa extensão da educação às classes populares foi resultado da ação do

absolutismo esclarecido, recorrendo o autor aos exemplos da Dinamarca e da Prússia.

Depois, os trabalhadores industriais passaram a vindicar maior educação, pois percebiam

que ela podia aumentar suas chances na vida, ou de seus filhos, além de contribuir para o

êxito de suas demandas. Os conservadores temiam o desgoverno de um povo que não

tivesse os rudimentos de instrução, enquanto os liberais consideravam que um Estado-

nação requer cidadãos educados por órgãos estatais. Estabeleceu-se então um sistema

nacional e compulsório de ensino, em luta com a Igreja e congregações religiosas, nos

países onde essas instituições ofereciam oportunidades educacionais a seus adeptos.

Já Cabral (2003) firma que, onde reconhecidos, os direitos civis tendem a

ser usufruídos passivamente, sem que os beneficiários precisem se mobilizar. O mesmo se

aplica aos direitos sociais fundados no bojo do Welfare State, pois os serviços e benefícios

sociais são disponibilizados àqueles que reúnem as condições legais. Para o autor, os

direitos políticos (cidadania política) assumem um caráter específico, porque, ao contrário

dos direitos civis e sociais, seus atributos não são automáticos, dependendo do exercício

ativo do indivíduo para se efetivarem. As liberdades políticas precisam ser, não só

garantidas, mas também exercidas 3.

Outra singularidade notada pelo autor é que, mais do que os direitos civis e

sociais, os direitos políticos vinculam-se à nacionalidade, excluindo os imigrantes, o que, a

seus olhos, configura uma discriminação contestável à luz dos direitos humanos.

Deve-se ter em conta, porém, que em cada sociedade os direitos políticos

são exercidos em diferente extensão pelo conjunto da população. Não se pode prescindir,

igualmente, das vicissitudes históricas e sociais da conquista e/ ou concessão desses

direitos. Nessa esteira, Bogeá-Câmara (2004) defende a necessidade de se cotejar a relação

Estado/ sociedade compreensivamente. Combate o formalismo de teorias como a de R. Dahl, _______________________________________________________________________________________ 3 Por outro lado, Cabral (2003) ressalta que o voto obrigatório revela certo caráter contraditório, pois confere conteúdo passivo à cidadania política.

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pois, ao associarem certas precondições institucionais a uma conseqüente disposição dos

sujeitos para o exercício da cidadania política, velam um hiato entre o “cidadão abstrato” e

o “real”. Complementando o argumento de Cabral (2003), o autor ressalta que o exercício

dos direitos políticos exige mais do que o cumprimento das prerrogativas legais, já que

“não esgota a multiplicidade de atributos e de requisitos concernentes à pletora da vida

política nas sociedades democráticas liberais” (Bogeá-Câmara, 2004: 114). Participar do

sufrágio, embora relevante para a consolidação da democracia, não é suficiente para

configurar uma cultura cívica democrática.

Quanto à análise de Marshall, para Bogeá-Câmara (2004), embora ela sirva

de referência, merece os devidos cuidados. Seu modelo se aplica à Inglaterra, de modo que

a seqüência historicamente linear de direitos civis, políticos e sociais não pode ser

automaticamente estendida a outros países. Mesmo nos modernos Estados da Europa

Ocidental, a cidadania foi construída por avanços e retrocessos que marcaram a relação

entre Estado-nação e sua sociedade. Em cada Estado, a cidadania observou vicissitudes

específicas que tornaram maior ou menor a extensão de direitos e a incorporação política

dos cidadãos. Nesse sentido, em cada país, a cultura cívica e as características da esfera

pública geraram distinções qualitativas e desiguais desempenhos das instituições

democráticas contemporâneas (e a confiança nelas depositadas).

Bendix (1996) acrescenta que, se o reconhecimento das classes populares

como iguais participantes na comunidade política inglesa foi fruto de uma luta prolongada,

essa incorporação cívica provavelmente foi facilitada pela preeminência da Inglaterra

como uma potência mundial e pelo compartilhamento de uma prática religiosa comum na

sociedade. Esses elementos tornam o desenvolvimento da cidadania inglesa mais uma

exceção do que um modelo de evolução dos direitos de cidadania.

Lavalle (2003) atenta que o elemento dinâmico (linearidade histórica) da

concepção marshalliana, de resto aplicável ao caso inglês, não é o mais importante. Vale

sim extrair dela as características constitutivas da cidadania moderna:

(1) universalidade – status atribuído em termos de direitos universais a categorias

sociais formalmente definidas, e não a estamentos com qualidades substantivas inerentes;

(2) territorialização – o território (nacional) como critério horizontal para a atribuição

de direitos, ao invés de critérios corporativos;

(3) princípio plebiscitário (individualização) – vínculo direto entre o indivíduo e o

Estado como forma legítima de reconhecimento e subordinação política;

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(4) índole estatal-nacional – vínculo constitutivo entre cidadania e edificação do

Estado-nação, graças ao desenvolvimento histórico concomitante de um poder centralizado

único num território e à concepção de identidade cultural ou nacional encarnada num

Estado, a partir de uma população constituída como comunidade política.

Frise-se que a concepção marshalliana de cidadania figura cognitivamente

como conceito sintético-descritivo, e não normativo, sem comportar, portanto, qualquer

afirmação sobre a substância ou dever ser da cidadania. Marshall (1967:76) acrescenta que

“não há nenhum princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão,

mas as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criaram

uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode ser medido e em

relação à qual a aspiração pode ser dirigida”. No entanto, não é raro a cidadania aparecer

revestida de carga normativa nos debates contemporâneos (Lavalle, 2003).

A preocupação desse autor recai sobre as forças desestabilizadoras da

cidadania no mundo atual. Nesse sentido, reconhece dois conjuntos: um abrange as

mudanças socioculturais e a diferenciação social, tornando carente de plausibilidade

simbólica a linguagem universal dos direitos e gerando o descrédito de categorias

totalizadoras. Nesse contexto, ampliam-se as reivindicações por novos princípios de

representatividade e proliferam políticas de alteridade. Não obstante, o autor considera que

a universalização processada sob condições de heterogeneidade não constitui um obstáculo

intransponível ao desenvolvimento da cidadania. O risco maior reside na “desestruturação

dos pressupostos macroinstitucionais ou estatais que viabilizaram politicamente a

ampliação efetiva desse status” (Lavalle, 2003: 90/91). Dentro desse segundo conjunto de

forças localiza-se o problema da eqüidade. O Estado encontra-se sob constrangimentos que

reduzem a sua capacidade de absorver as demandas e de efetivar os direitos, provocando a

heterogeneização da “substância” da cidadania entre a população.

Essas observações convergem com a análise de Kowarick (2003), que,

pesquisando a vulnerabilidade socioeconômica e civil nos Estados Unidos, na França e no

Brasil, afirma que suas “reflexões não ignoram que os grupos, as categorias e as classes

sociais se movimentam no sentido de se mobilizarem e lutarem pela conquista de seus

direitos. [Suas reflexões] Enfatizam, simplesmente, que, no cenário atual de nossas

cidades, estão em curso vastos processos de vulnerabilidade socioeconômica e civil que

conduzem ao que pode ser designado de processo de descidadanização” (idem: 78).

Com efeito, o desenvolvimento da cidadania coincide com o

desenvolvimento capitalista. Sua configuração mais acabada contempla os direitos civis,

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políticos e sociais e encontrou guarida no Welfare State dos países capitalistas avançados,

com características institucionais diversas. No plano internacional, institucionalizados tipos

de Welfare em dados países, suas inovações difundiram-se sobre outros. No plano interno,

o desenvolvimento socioeconômico, a mobilização da classe operária e o desenvolvimento

institucional (extensão do sufrágio, características do regime político) tanto produziram

efeitos que explicam a emergência do Welfare como a diferenciação entre seus tipos. Vale

mesmo trazer à baila a tipologia de Esping-Andersen (1987), sintetizada por Vianna

(2000). A partir do grau de democratização do capitalismo alcançado por cada Welfare

State, aquele autor os divide nas modalidades liberal, conservadora e social-democrata.

No primeiro caso (liberal), também chamado de residual, o Estado só

intervém quando o mercado impõe demasiadas penas a determinados segmentos sociais e

onde o esforço individual, a família, o mercado e as redes comunitárias mostram-se

insuficientes para satisfazer as necessidades. O mercado atua como espaço de distribuição.

Esse modelo é dominante nos EUA, Austrália, Canadá e em parte na Suíça.

O tipo meritocrático ou conservador vincula a ação protetora do Estado ao

desempenho dos grupos protegidos, usualmente os que contribuem para a riqueza nacional

e/ ou inserem-se como legítimos no cenário social. O direito aos benefícios diferencia-se

conforme o trabalho, o status ocupacional, a capacidade de pressão,... Trata-se de um

padrão hierarquizante e segmentador, presente na Alemanha, Áustria, França e Itália.

O padrão social-democrata (ou modelo Beveridge) tem caráter institucional-

redistributivo, onde bens e serviços extramercado são garantidos a todos os cidadãos em

moldes igualitários. Foi implantado na Inglaterra e nos países nórdicos 4.

Mas o Welfare State atravessa uma crise que se apresenta de, pelo menos,

três ângulos 5: (1) crise econômica, manifesta em termos de recessão, redução do PIB e

aumento do desemprego; (2) mudanças demográficas, com diminuição relativa da

população ativa frente à inativa, tornando mais pesados os encargos previdenciários; e (3)

crise política, expressa na insatisfação frente à ação estatal. As necessidades advindas da

nova divisão internacional do trabalho vis-à-vis o movimento de globalização da

economia promovem um descompasso entre a economia do bem-estar e os processos sociais

vigentes nas economias desenvolvidas (Vianna, 2000). Note-se que países emergentes não se _______________________________________________________________________________________ 4 Descabe aqui nos reportarmos às configurações sócio-históricas que permitiram a emergência diferencial desses modelos. A menção aos mesmos justifica-se apenas para marcarmos brevemente a evolução que a cidadania sofreu e vem sofrendo no Brasil.

5 Note-se que esses processos se apresentam do ponto de vista estrutural, não afastando a possibilidade de conjunturas favoráveis.

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encontram imunes a tais processos. Ao contrário, eles são mais vulneráveis, como já

ressaltado através das reflexões de Kowarick (2003).

Diante desse quadro, merece destaque o processo de informalização, por

guardar relação com a crise da sociedade salarial (Castel, 1998). Este autor reporta-se à

“questão social”, que envolve o grau de coesão de uma sociedade e a sua luta por conjurar

os riscos de fratura societal, e investiga tanto a desqualificação social sofrida pelos

rejeitados do processo produtivo, como a desinserção, que é fator de esgarçamento dos

laços sociais e de promoção de identidades estigmatizantes que conduzem à rebeldia ou à

resignação (Castel, 1998; Kowarick, 2003) 6.

Outro ponto que abala as estruturas do Welfare State, e mais amplamente do

Estado-nação, encontra guarida nas reflexões de Habermas, ao esclarecer conceitualmente

alguns pontos normativos sobre a relação entre cidadania e identidade nacional, à luz de

três movimentos históricos recentes na Europa: (1) o papel do Estado nacional, dada a

unificação alemã, e os conflitos de nacionalidade observados nos Estados do leste europeu

após liberados da tutela soviética; (2) a relação entre democracia e Estado nacional, face à

progressiva integração econômica da Europa; e (3) tensões entre princípios universalistas,

identidade nacional e culturas particulares, desencadeadas pelos maciços fluxos

migratórios direcionados à Europa.

Segundo o autor, com o Estado nacional conformou-se uma infra-estrutura

administrativa organizada pelo direito, oferecendo um espaço livre às ações individuais e

coletivas. Mas a democratização assentou-se sobre uma homogeneidade cultural e étnica

(nacionalismo), que em boa medida oprimiu minorias culturais. Assim, a consciência

nacional moderna é uma manifestação de integração cultural. E ela só pôde eclodir quando

a população foi mobilizada e individualizada por meio dos processos de modernização

econômica e social que a liberaram do antigo regime. Nesse contexto, o nacionalismo

representa uma consciência formada a partir de filtros reflexivos que se apropriaram de

tradições culturais e se espraiaram pelos canais da moderna comunicação de massas. Ele

comporta, portanto, “características artificiais, tornando-o presa fácil do abuso e da

manipulação através de elites políticas” (Habermas, 1997: 282).

Habermas ressalta que, na terminologia dos juristas, “cidadania” esteve por muito

tempo restrita ao sentido de nacionalidade ou pertença a um Estado. No entanto, atualmente,

além desta conotação, ela é utilizada para caracterizar direitos e deveres daqueles que têm o _______________________________________________________________________________________ 6 No quarto capítulo reportaremos como a questão ganhou contornos diferenciados segundo países centrais e periféricos.

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status de cidadão. O autor nota aqui a presença do modelo republicano, centrado na auto-

organização da comunidade política a partir do exercício cidadão dos direitos de

participação e comunicação. Fazendo uso reflexivo dos direitos democráticos, o cidadão

pode modificar sua situação jurídica material, influenciando o campo de ações concretas

do Estado. Por seu turno, o modelo comunitário elucida algumas condições para tanto: a

autonomia política deve ser um fim em si mesmo, e redes igualitárias de reconhecimento

mútuo devem estruturar a posição jurídica do cidadão. Essas condições não podem ser

impostas pela legislação. O direito serve para garanti-las, mas elas não se viabilizam sem

um pano de fundo concordante (intersubjetivo), sem a cooperação fundada numa prática

cidadã. “Por isso, os comunitaristas insistem no fato de o cidadão ter que identificar-se

‘patrioticamente’ com sua forma de vida” (Habermas, 1997: 288).

Essa conclusão não vincula conceitualmente republicanismo e nacionalismo.

Firma apenas que os princípios universalistas inscritos no Estado democrático de direito

demandam um fundo político-cultural. Trata-se aqui de uma cultura política comum que

habilite inclusive indivíduos portadores de tradições e histórias nacionais diferentes a

interpretar similarmente os mesmos princípios jurídicos.

Passemos então ao segundo ponto: a relação entre cidadania e identidade

nacional à luz das tensões que acompanham a integração européia.

Habermas lembra que, na era moderna, a economia e a administração

desenvolveram uma lógica sistêmica própria, que concorre com a integração social

mediada pelo mútuo entendimento. Um dos aspectos da integração social é a integração

política informada pela cidadania democrática. Como Bendix, Habermas não vincula

democratização e modernização capitalista. Assim, se a União Européia teve início como

uma união alfandegária de mercados (união de economias), os direitos dos cidadãos ainda

não ultrapassaram o quadro do Estado nacional. O autor preocupa-se menos com as

soberanias nacionais, e sim com os processos democráticos ainda restritos aos contextos

nacionais, levando-nos a indagar sobre as possibilidades de configuração de uma cidadania

européia. Mas adverte Habermas (1997: 291): “Ao referir isso, eu não tenho em mente as

possibilidades da ação política coletiva, que ultrapassam as fronteiras, mas a consciência

que sente obrigações para com o bem comum europeu”.

Ao analisar as chances de uma cidadania européia, o autor lembra que é

restrita a concepção de que os direitos de cidadania resultaram da luta de classes, pois

outros movimentos como guerras e migrações contribuíram para a sua institucionalização

no âmbito do Estado nacional. Nesse sentido, Habermas acredita que elementos como a

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mobilidade horizontal advinda da integração de mercados, as migrações oriundas do Leste

europeu e de países pobres do Terceiro Mundo, bem como movimentos sociais de tipo

novo (ecológico, feminista, pela paz, ...), contribuirão para fortalecer temas públicos afetos

ao mundo da vida 7.

Enquanto a União Européia não enfrentar problemas efetivos de

legitimação, as esferas públicas nacionais poderão continuar isoladas. Mas problemas e

movimentos como os acima referidos contribuem para o desenvolvimento de uma cultura

política comum, em nível europeu, que, respeitando as diversas histórias nacionais e sem

recorrer a origens comuns de uma Idade Média européia, forme uma nova autoconsciência

política, adequada à Europa do século XXI. Para esse processo têm papel capital, segundo

Habermas, as elites culturais e a mídia, ao contribuírem para fomentar um patriotismo

constitucional europeu, lastreado por princípios universalistas de direito e alimentado por

distintas interpretações assentadas nas tradições nacionais.

O terceiro ponto da presente reflexão habbersiana aprofunda os dilemas

advindos da maciça imigração rumo à Europa. Tanto os refugiados como aqueles que

migram por razões econômicas levantam a questão atinente à possibilidade de se priorizar

obrigações referidas à pertença a um Estado, em detrimento de obrigações universais.

Habermas (1997) desenvolve então o argumento normativo de que os

Estados europeus devem promover, conjuntamente, uma política liberal de imigração,

baseada no direito democrático à autodeterminação, mas entrelaçando uma cultura política

comum aberta aos influxos de variadas formas de vida. Esse desenho se compatibiliza com

uma cidadania mundial, cujos contornos começam a se configurar nas comunidades

políticas. De acordo com o autor: “O estado de cidadão do mundo deixou de ser uma

simples quimera, mesmo que ainda estejamos muito longe de atingi-lo. A cidadania em

nível nacional e a cidadania em nível mundial formam um continuum cujos contornos já

podem ser vislumbrados no horizonte” (idem: 305). Isso o autor apreende das

comunicações políticas de nível mundial. No entanto, trata-se de uma afirmação polêmica,

que, de fato, encontra correspondência com os movimentos do mundo, embora muitos

achem que, “a despeito de ocupar vasto espaço na agenda de muitos movimentos alternativos,

a idéia de uma “cidadania global” ainda não ultrapassou os limites de uma postulação fortemente

_________________________________________________________________________ 7 O mundo da vida é o espaço social em que a ação comunicativa permite a realização da razão comunicativa, assentada no diálogo e na melhor argumentação em contextos interativos livres de coação. Já os sistemas (economia e Estado) referem-se à reprodução material da sociedade; neles a linguagem é secundária, predominando a ação instrumental ou estratégica (Freitag-Rouanet, 2004; Habermas, 1987).

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normativa” (Nogueira, 2001: 97/98). O certo é que a globalização nos obriga a repensar em

novos moldes a cidadania.

O breve esboço apresentado serve para nos revelar os flancos que, ante as

características do mundo contemporâneo, levam a um redimensionamento, ou mesmo

crise, da cidadania moderna. Dessa forma, se o reconhecimento da igualdade formal entre

os indivíduos permitiu a universalização de direitos e pôs fim à hierarquização estamental,

mascarou desigualdades materiais e diferenciações de gênero e de raça. Essa

universalização teve ainda caráter restrito, porque atendeu apenas aos nacionais de cada

Estado, conformando um tipo de cidadania que apresenta limitações cada vez maiores

frente ao processo de globalização. Suas insuficiências também são evidenciadas por lutas

pelo direito de viver num ambiente não poluído, ou por questionamentos acerca dos efeitos

da pesquisa biológica que permitirá a manipulação do patrimônio genético de cada pessoa,

compondo, respectivamente, o que Bobbio (1992) denominou de direitos humanos de

terceira e de quarta geração.

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Capítulo 2: Cidadania e as modernidades central e periférica

Nesta parte, deslindaremos o complexo de relações que envolve o indivíduo,

a sociedade e o Estado. As múltiplas interfaces que entre eles se estabelecem permitem-nos

visualizar tanto as características da modernidade como algumas de suas tendências. Esse

esforço de análise envolve, por excelência, a compreensão e o reconhecimento das

condições institucionais, morais e societais para o exercício da cidadania.

2.1 – Indivíduo, Sociedade e Estado

Inicialmente, reportamo-nos às relações entre emancipação política e

emancipação humana, traçadas por Marx em A Questão Judaica, texto editado em 1844.

Na Alemanha, àquela época, como o Estado adotava o cristianismo, a não atribuição de

direitos aos judeus assumia caráter teológico. Como Marx (1991; 2002) considera a

religião um defeito ou falsa consciência, o autor cita o exemplo norte-americano para

demonstrar a problemática relação entre emancipação política e emancipação humana, pois

lá o Estado tornou-se laico (emancipação política da religião), mas os homens não se

emanciparam da religião (não se consubstancou a emancipação humana), confinando-a à

esfera privada.

Do mesmo modo, a supressão do aspecto riqueza para o direito ativo e

passivo de sufrágio implica a supressão ideal da propriedade, mas essa mesma anulação

política da propriedade a pressupõe de fato. Frente ao Estado foram anuladas as diferenças

de nascimento, de status social, de cultura e de ocupação, proclamando todo o povo, em

bases igualitárias, como co-partícipe da soberania popular. No entanto, o Estado permitiu a

atuação de fato desses mesmos elementos. Mais ainda, “longe de acabar com estas

diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político

e só faz valer sua generalidade em contraposição a estes elementos seus” (Marx, 1991: 25).

Segundo o autor, quando o homem se reconhece como um particular, um

indivíduo, vislumbra os outros homens como meios, negando assim seu caráter genérico.

Já, perante o Estado, é considerado como ser genérico, mas sem qualquer referência à sua

vida individual real, o que implica uma generalidade irreal e uma soberania imaginária.

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Criticando os direitos humanos, o pensador afirma que neles a vida genérica

e a sociedade aparecem como elementos exteriores aos indivíduos, em sua tentativa de

preservar os interesses particulares. Restam como nexos com a sociedade e elementos de

coesão a necessidade e o interesse particular. A comunidade política vê-se rebaixada à

conservação dos direitos humanos, e o cidadão torna-se um servo do homem egoísta.

A base do Estado Moderno é a sociedade burguesa composta pelo indivíduo

independente e ligado aos demais pelo interesse particular. Essa configuração societal

desenvolveu-se historicamente, e o Estado moderno, produto dessa sociedade burguesa,

apenas reconheceu nos direitos gerais do homem a sua base natural.

No mundo moderno, cada qual é a um só tempo escravo e membro da comunidade. É precisamente a escravidão da sociedade burguesa, na aparência, a sua maior liberdade. E isto ocorre por ser aparentemente perfeita a independência do indivíduo, que toma o movimento desenfreado dos elementos alienados de sua vida – inteiramente desvinculados quer dos nexos gerais, quer do homem; por exemplo, o movimento da propriedade, da indústria, da religião, etc. – por sua própria liberdade, quando se trata justamente de sua sujeição e de sua falta de humanidade acabadas. O privilégio é substituído, aqui, pelo direito (Marx, 1991: 99).

A crítica marxiana visa restaurar a unidade entre Sujeito e Objeto (S – O),

pois, em sua concepção filosófica, o ser só se realiza caso se reconheça no que faz. No

comunismo primitivo, havia a unidade S – O no seio da comunidade, mas o homem vivia

premido pela necessidade. No capitalismo, criam-se as condições para superação desta; no

entanto, com o desenvolvimento de forças produtivas exteriores ao homem, dá-se a cisão S

– O (o homem se torna escravo do movimento das coisas). O problema se resolverá, então,

no comunismo, onde, além de superada a escassez, restaura-se a unidade S – O, liberando

o indivíduo para realizar suas potencialidades no seio da espécie.

O par liberdade-igualdade também atravessa o pensamento de Tocqueville.

Nos termos de sua análise, a relação entre Estado e sociedade é marcada pela progressiva

democratização, por isso o autor preocupa-se com a compatibilidade entre essa marcha

para a igualdade e a preservação da liberdade, construindo seus argumentos a partir da

oposição aristocracia versus democracia (Tocqueville, 2001; Furet, 1998; Jasmin, 1997).

Em sua obra A Democracia na América, três são os eixos causais para a

manutenção da democracia americana: as causas físicas, as leis e os costumes. Entre eles

há uma ordem de importância, onde “as leis servem mais à manutenção da república

democrática nos Estados Unidos do que as causas físicas, e os costumes mais que as leis”

(Tocqueville, 2001:359).

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Na América, algumas instituições ajudaram a temperar a maioria, como o

poder judiciário, protegendo o indivíduo contra arbitrariedades, a periodicidade das

eleições, que também modera a combatividade da minoria, e a descentralização

administrativa, que divide a vontade popular. Esses elementos pressupõem a disseminação

de direitos civis e políticos entre os cidadãos, tornando possível, v. g., a formação de

associações e a liberdade de impressa. Ambas, ao agregarem vários sujeitos em torno de

opiniões e interesses específicos, além de servirem como elos intermediários frente ao

poder central, afastam as pessoas do privatismo promovido pelo individualismo moderno.

Este deve ser moderado através da difusão da doutrina do interesse bem compreendido,

que faz coincidir o interesse individual com o interesse geral, servindo como fonte de

cultura cívica.

Com efeito, individualismo (privatismo), gosto pelo bem-estar material e

desejo de galgar posições, oriundo da constante mobilidade, são tendências modernas, a

juízo de Tocqueville. Vale moderá-las através de instituições políticas e civis e da

promoção de certos costumes e modos de pensar, como foi o caso da religião na América.

Assim, se a experiência religiosa não pode ser generalizável, ela indica que qualquer

transformação da sociedade não pode ser fruto apenas da razão, mas sim da prática e dos

costumes, ou seja, da razão temperada pelos costumes. A nova ciência política, ao elucidar,

não deve descurar deste princípio que os homens do antigo regime pareciam desconhecer

quando tentavam reformá-lo: “(...) pensam que a total e repentina transformação de uma

sociedade tão antiga e tão complicada pode ser realizada sem abalos com a única ajuda da

razão e sua eficiência” (Tocqueville, 1979: 138).

Portanto, se o processo histórico conduziu à democratização, é preciso

considerar, a partir da igualdade, o melhor meio de preservar a liberdade. Da combinação

desses termos devem sair as instituições políticas adequadas ao bom funcionamento da

democracia. Para tanto, o poder social deve estruturar-se “de baixo para cima”, emergindo

a partir dos indivíduos e seus interesses e conforme as condições sociais presentes.

Já Weber (1993) indagou-se sobre as conseqüências do processo de

democratização (entendido aqui como eleições de massa) dos meios e das formas

organizacionais do embate político. Massificação e burocratização são processos

concomitantes que, presentes nas sociedades modernas, podem promover irracionalidades,

por comportarem tendências que minam o acesso de dirigentes políticos responsáveis ao

poder e favorecem o controle emocional das massas por demagogos.

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O autor descreve um quadro em gestação de burocratização das estruturas

partidárias, onde ascende o político profissional e declinam personalidades honoríficas.

Progressivamente, quem decide os rumos da tática partidária é o funcionário do partido, e o

eleitor comum fica afastado de qualquer atividade.

Também a burocracia estatal observa grande crescimento, daí a necessidade

de um órgão independente e hábil a controlá-la, como o parlamento. Em Estados

parlamentaristas, onde os cidadãos só escolhem os partidos dirigentes, o voto pode educar

politicamente os cidadãos, se a transparência e o controle administrativo habituá-los à

observação contínua de como são administrados os seus negócios.

Como organismo de controle do funcionalismo e da informação ao público sobre a administração, como meio de desligamento de funcionários incompetentes em funções dirigentes, como instância de dotação orçamentária e como agente de condução de acordos partidários, o parlamento é indispensável também nas democracias eleitorais (Weber, 1993: 125).

Merece ser assinalado que efetivos órgãos de representação favorecem a

continuidade política, entendida como não ruptura da ordem civil pelo respeito a garantias

legais. Diversamente, o poder cesarista é mais suscetível à ascensão, declínio ou queda em

momentos conturbados. Para Weber, o parlamento opera três funções salutares para o bom

funcionamento das democracias: (1) controla a administração pública; (2) promove o

necessário consenso entre as correntes de interesse e de opinião; e (3) permite, via

representação política, a manifestação da vontade popular.

A Inglaterra aparece como um modelo em que dirigentes políticos se

destacam, sem ficarem submersos sob a burocratização administrativa e partidária e sem se

sujeitarem ao caráter emocional e irracional das massas. Qual a fórmula? Um parlamento

forte e partidos parlamentares organizados e responsáveis. Assim, torna-se possível

elaborar uma política consistente, funcionando o parlamento como órgão de recrutamento e

aperfeiçoamento de líderes de massas transformados em dirigentes de Estado.

Se, nas modernas sociedades de massas, Tocqueville propõe meios de evitar

a tirania da maioria e o isolamento privatista dos indivíduos; Weber aposta no controle das

tendências autonomizantes da burocracia estatal e na seleção de dirigentes políticos

responsáveis; Durkheim sugere uma reforma corporativa, condição primeira para remediar

o malaise instaurado nas relações entre Estado e sociedade.

O mal deriva do desmedido desenvolvimento da vida econômica, que ocupa

lugar central na vida social, em detrimento de outras dimensões. Vige então um estado de

anomia, caracterizado por uma rudimentar e imprecisa moral profissional, onde não há

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claros limites entre o permitido e o proibido, o justo e o injusto, e os conflitos são

resolvidos pela subordinação dos vencidos. O estado anômico mina o exercício da

liberdade individual. Esta, para Durkheim, só é justa quando é fruto de regulamentação.

Só posso ser livre na medida em que outrem é impedido de tirar proveito da superioridade física, econômica ou outra de que dispõe para subjugar minha liberdade, e apenas a regra social pode erguer um obstáculo a esses abusos de poder (Durkheim, 1999: VIII).

Para o autor, a nova regulamentação poderá ser promovida pelas corporações

(grupos profissionais), desde que vinculadas ao órgão central e coordenador: o Estado.

A importância das corporações liga-se à questão mais geral: a ação moral

que as associações (as corporações são um tipo) promovem. Gerando um sentimento do

todo e de união, as associações são uma fonte de vida moral, onde o interesse individual

subordina-se ao interesse coletivo. Elas geram coesão e evitam a anarquia geral, já que é

mais fácil regrar as atividades de grupos. São boas para o indivíduo, pois, a partir do

momento em que socializado à regra e à vida no seio do grupo, tornam-se para ele uma

fonte de alegrias e evitam tensões oriundas de estados de desordem e desconfiança mútua.

Atente-se que também Tocqueville enfatiza, além do papel das associações como corpos

intermediários, o fato de elas retirarem os cidadãos do privatismo a que tendem os

indivíduos na modernidade. Ademais, elas permitem realizar obras e negócios impossíveis

de serem feitos isoladamente, agindo como substitutos funcionais da aristocracia, já que

nesta a ação de cada nobre tinha atrás de si uma cadeia de pessoas vinculadas.

Durkheim nota uma irresistível tendência à ampliação das funções do

Estado. Conferindo menor atenção à guerra, ele se volta para o interior, regulando os

direitos individuais. Aliás, tal tendência afina-se ao desenvolvimento da personalidade

individual no mundo moderno, que perdida de início no seio da massa social, dela se

destaca. O círculo da vida individual, restrito e pouco respeitado no começo, se estende e

se torna o objeto eminente de respeito moral. Por isso, “se o indivíduo é a realidade moral,

ele é que deve servir de pólo, tanto para a conduta pública quanto para a conduta

particular; e é a revelar-lhe a natureza que deve tender o Estado” (Durkheim, 1980: 52).

Mas deve-se observar que, se o indivíduo passa a ser a realidade moral a

servir de base às instituições políticas e sociais, os direitos do indivíduo não são dados, ou

seja, não são inerentes a este; eles são reconhecidos e instituídos pelo Estado. A atividade

deste longe de constranger o indivíduo o libera.

Ora, que a história autorize, efetivamente, a admitir essa relação de causa e efeito entre a marcha do individualismo moral e a marcha do Estado, é o que brota, com evidência, dos fatos. Tirante casos anormais, dos quais

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teremos ocasião de falar, quanto mais forte o Estado, tanto mais o indivíduo é respeitado (Durkheim, 1980: 53).

Explorando o tema da individualidade, Habermas (1987a) a identifica como

um fenômeno gerado socialmente, ou seja, fruto de um processo de socialização. E lembra

que G.H. Mead e Durkheim entendem a identidade pessoal como uma estrutura forjada

pela adoção de expectativas de comportamento socialmente generalizadas.

A partir das reflexões de Durkheim, Habermas aponta que um grupo social

estabiliza sua identidade coletiva e sua coesão projetando uma imagem idealizada de sua

sociedade. Foi como pensamento coletivo (religioso) que o pensamento impessoal se

revelou à humanidade. Na semântica sacra subjaz um consenso normativo partilhado pelos

membros do grupo sob a forma de um acordo idealizado que transcende as mudanças

espaço-temporais. Este acordo constitui o modelo de todos os conceitos de validez e da

idéia de verdade, decorrentes, portanto, de ideações imanentes à identidade coletiva.

Para Habermas, a “linguicização” do consenso normativo básico garantido

pelo rito gera o desencantamento do sagrado, liberando o potencial de racionalidade

presente na ação comunicativa. A força vinculante do acordo moral de base sagrada vê-se

substituída por um acordo moral que expressa racionalmente o mesmo simbolismo

sagrado: a universalidade do interesse subjacente. Assim, a força obrigatória do interesse

geral reside em seu caráter imparcial e impessoal.

O autor aponta que, para Durkheim, os Estados Modernos, em lugar de

fundamentos sagrados de legitimidade, adotaram uma vontade geral comunicativamente

formada e ilustrada discursivamente no seio de uma opinião pública política. Nesse

contexto, a obrigatoriedade da lei advém de um sistema jurídico legitimado, em última

instância, pela formação da vontade política. O direito evolui em conexão com a mudança

na forma de integração da sociedade, configurada por uma passagem de uma solidariedade

mecânica à uma orgânica segundo três planos: a racionalização das imagens do mundo; a

universalização das normas morais e jurídicas; e a progressiva individualização dos

sujeitos. Compreende-se, então, no direito moderno, a emergência dos direitos subjetivos

individuais e a força vinculante derivada do caráter legal do contrato privado.

Para Durkheim (1980), a democracia é a forma de governo apropriada à

sociedade moderna, face às alterações do meio social (complexidade a demandar maior

reflexão) e às idéias morais emergentes (individualismo, que é refratário a formas

impositivas). Mas o autor não aprova nem o mandato imperativo, nem eleições diretas.

Enquanto nestas os escolhidos são escravizados pelas massas, o que pode ser moderado

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com mais de um grau eleitoral, aquele impede a “reflexão estatal”, pois o “dever do Estado

é servir-se de todos esses meios, não, simplesmente, para extrair o que pensa a sociedade,

mas para descobrir o mais útil à sociedade” (Durkheim, 1980: 84). Nesse quadro, os

grupos territoriais poderiam servir como elo entre o indivíduo e o Estado, mas, segundo a

tendência moderna, os mais adequados para tanto seriam os grupos profissionais.

Pode-se concluir que no pensamento durkheimiano a garantia da ordem

social reside na moralidade, entendida como um conjunto de regras de conduta que: são

dirigidas ao grupo (impessoais); sua obrigatoriedade incide sobre os indivíduos, mas é

também por eles desejada; e comportam como sanção uma interdição social (Araújo, 2000).

Dumont (2000) também enfatiza o papel da obrigação moral, a qual

substitui a subordinação que regia a ordem anterior à moderna. É a obrigação moral que

impede a degeneração da liberdade em desregramento. Comparando valores holistas e

individualistas, o autor firma que a maioria das sociedades prioriza a ordem em termos

holistas, ou seja, onde cada elemento conforma-se ao todo. Já a sociedade moderna

valoriza o ser humano individual, considerando-o como a encarnação da humanidade

inteira e, como tal, livre e igual a qualquer outro indivíduo – trata-se do individualismo.

É uma revolução nos valores que diferencia a sociedade moderna das

tradicionais. Dumont supõe então que, na obra Dois Tratados do Governo, Locke só pôde

conceber a sociedade como justaposição de indivíduos abstratos, porque ele substituiu os

vínculos concretos da sociedade por uma moralidade hábil a aglutinar os indivíduos

sempre sob o olhar de Deus. “Em outros termos, suponho que, neste caso, a substituição do

homem como ser social pelo homem como indivíduo foi possível porque o cristianismo

garantia o indivíduo como ser moral” (Dumont, 2000: 92).

Ainda em Locke, o econômico é hierarquicamente superior ao político;

hierarquia fruto da transição do holismo, onde predominavam as relações entre homens,

para o individualismo, onde prevalece a relação entre homens e coisas – a propriedade.

Dumont (2000) ressalta que igualdade e liberdade são valores gerais,

englobantes; distintos, portanto, de um simples traço ou idéia restritos a um plano da

sociedade. Deve-se ainda considerar que, embora a igualdade seja um valor predominante

nas sociedades modernas, em todo sistema social ela se combina com a hierarquia.

Note-se que, para o autor, o avanço ilimitado do sistema individualista de

valores apresenta efeitos deletérios à sociedade. O individualismo extremado, ao ponto de

recusar toda e qualquer hierarquia, pode limitar a manutenção da ordem ao uso de coerção.

Por seu turno, a ênfase na igualdade pode limitar a percepção das diferenças (limitando-a a

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uma operação de exclusão), o que implicaria, ao cabo, na negação dos valores

individualistas de igualdade e liberdade. Desse modo, aflora a necessidade de um consenso

mínimo de valores, o que impõe a aceitação de algum tipo de hierarquia (Araújo, 2000).

Serve como complemento a essas reflexões a preocupação de Inglehart

(2000) com o exercício da democracia nas últimas décadas. Valendo-se de rico material

empírico, o autor investiga as precondições culturais e axiológicas contemporâneas.

Para o autor, o desenvolvimento econômico é o promotor de dois processos:

o de modernização e o de pós-modernização. Construindo sua teoria a partir da hierarquia

das necessidades humanas, elaborada por Abraham Maslow (psicólogo), Inglehart defende

a tese de que, desde o fim da 2ª Guerra Mundial, a cultura (sobretudo a cultura política)

dos países ocidentais industrializados (especialmente os centrais) sofreu radicais

transformações que estariam redirecionando essas sociedades para uma ênfase crescente

em valores não-econômicos e imateriais (Souza e Hoellinger, 2000).

A chave do novo padrão cultural encontra-se numa mudança geracional

observada. A emergência do Welfare State e o declínio do senso de vulnerabilidade,

associados às inovações tecnológicas e ao aumento generalizado dos níveis educacionais,

remodelaram o panorama político, as orientações religiosas, as relações de gênero e os

hábitos sexuais. O senso de segurança ampliou as orientações pós-modernas, voltadas para

a auto-expressão individual, especialmente nos segmentos da população cuja socialização

primária ocorreu nos períodos de segurança 8.

Em síntese, para Inglehart, as avançadas sociedades industriais sofrem

mudanças em suas trajetórias sócio-políticas segundo dois eixos: (1) no sistema de valores

– se a modernização foi possibilitada pela crescente ênfase nas realizações econômicas

individuais, na pós-modernização, enfatiza-se cada vez mais a qualidade de vida; (2) na

estrutura institucional – atinge-se limites ao desenvolvimento de organizações burocráticas

hierarquizadas que contribuíram para criar a sociedade moderna. Esses limites referem-se à

sua efetividade funcional e à sua aceitação pelas pessoas.

No novo quadro, os movimentos sociais requerem pouca institucionalização,

de modo a privilegiar as preferências individuais dos participantes. Ademais, o elemento

cognitivo passa a ser predominante em lugar da manipulação emotiva e sentimental, ponto

que, para Souza e Hoellinger (2000), conflui com as reflexões de Habermas sobre o

potencial emacipatório da livre argumentação na esfera pública. Mas os autores criticam o _________________________________________________________________________________________________ 8 Em contextos tradicionais, o senso de segurança advinha da religião e das normas culturais de caráter absoluto.

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“economicismo filosófico” de Inglehart, consubstanciado na adoção da auto-preservação

material como o princípio básico condicionante do comportamento dos agentes, ou seja, só

quando estes são libertos das amarras das necessidades aflorariam às suas consciências

questões imateriais ou pós-materiais, vagamente definidas por Inglehart. O estímulo

fundamental advém, portanto, da necessidade econômica e não da sua transformação

simbólica em valores e normas.

Embora firme o sucesso empírico da perspectiva de Inglehart, Araújo (2000)

ressalta sua insuficiência teórica, na medida em que não consegue prospectar nada além da

linearidade modernização/ pós-modernização (materialismo/ pós-materialismo).

Sobremaneira formal e descritiva, a análise é incapaz de explicar o caso brasileiro.

Outra dimensão fundamental para a compreensão do exercício da cidadania

democrática refere-se às reivindicações de respeito. Vidal (2000, 2003) a considera

primordial atualmente, ressaltando que problemas de acesso à cidadania das camadas

populares brasileiras podem ajudar a compreender certas formas de necessidade de

reconhecimento nas sociedades do Norte.

Vale então nos reportamos a Honneth (2003), que, em sua obra Luta por

reconhecimento, propõe-se investigar: (1) se a hipótese hegeliana de uma seqüência

ordenada de etapas de reconhecimento pode resistir a considerações empíricas; (2) se é

possível atribuir às formas de reconhecimento recíproco experiências correspondentes de

desrespeito social; e (3) se há comprovações históricas e sociológicas para a idéia de que

essas formas de desrespeito social servem como fonte motivacional de confrontos sociais.

Segundo o autor, o uso da psicologia social de G.H.Mead permite tornar as

idéias do jovem Hegel o fio condutor de uma teoria social de teor normativo, cujo

propósito é esclarecer os processos de mudança social reportando-se às pretensões

normativas estruturalmente inscritas na relação de reconhecimento recíproco.

As análises de Mead e Hegel convergem ao apontar que a reprodução da

vida social se efetua sob o imperativo de um reconhecimento recíproco, porque os sujeitos

só podem chegar a uma auto-relação prática quando aprendem a se conceber, da

perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus destinatários sociais. Essa

tese demanda a inclusão de um elemento dinâmico, qual seja o de que os indivíduos só

podem conferir expressão social às pretensões de sua subjetividade através da deslimitação

gradual do conteúdo do reconhecimento recíproco. Assim, o processo de individuação,

transcorrendo no plano da história, liga-se ao pressuposto de uma ampliação simultânea

das relações de reconhecimento mútuo. Mas essa hipótese evolutiva, para se configurar

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como uma teoria da sociedade, remete a processos no interior da praxis da vida social, pois

são as lutas moralmente motivadas de grupos sociais, ou seja, sua tentativa coletiva de

estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco, o

que promove a transformação normativamente gerida das sociedades.

As teorias de Hegel e de Mead distinguem três formas de reconhecimento

recíproco: (1) a dedicação emotiva, como a identificada nas relações amorosas e de

amizade; (2) o reconhecimento jurídico e (3) o assentimento solidário. Note-se que a estas

correspondem três esferas distintas de interação.

Sem adentrarmos nos resultados de pesquisas científicas de que Honneth

(2003) se vale para ratificar essas formas de reconhecimento, apresentaremos algumas de

suas conclusões sobre o reconhecimento jurídico e a estima social. Ambas centrais

(especialmente a primeira), a nosso juízo, para o deslinde da cidadania democrática. Não se

deve perder de vista, porém, que o autor considera a dedicação emotiva – oriunda das

relações amorosas – um suporte para as outras duas formas de reconhecimento.

Na análise das propriedades estruturais do reconhecimento jurídico sob

condições modernas destacam-se dois pontos: (1) a emergência de um tipo de respeito que

exige uma operação de entendimento puramente cognitiva e que, se deve desligar-se de

sentimentos de simpatia e afeição, deve ser hábil a dirigir o comportamento individual; e

(2) o direito moderno deve apresentar uma abertura estrutural a ampliações e precisões

gradativas, dada a indeterminidade do que constitui o status de uma pessoa imputável.

Sobre o plano do reconhecimento jurídico confluem duas operações de

consciência. Perante pessoas autônomas, faz-se mister um prévio saber moral sob as

obrigações jurídicas. Por outro lado, só a interpretação empírica da situação permite inferir

se o defrontante reúne os requisitos para a aplicação das normas jurídicas. Dessa forma, na

estrutura do reconhecimento jurídico, constituída em moldes universalistas sob as

condições modernas, está inscrita a tarefa de aplicação específica à situação, e é nessa zona

de interpretação da situação que as relações jurídicas modernas constituem um dos lugares

em que pode suceder uma luta por reconhecimento.

Do reconhecimento da pessoa enquanto tal se distingue a estima por um ser

humano. Nesta não entra em jogo a aplicação de normas gerais, mas sim a avaliação

gradual de propriedades e capacidades concretas. Portanto, a estima pressupõe um sistema

referencial valorativo que informa sobre o valor de tais traços de personalidade.

Honneth (2003) reporta-se à tentativa de T. H. Marshall de reconstruir o

nivelamento histórico das diferenças sociais de classe, considerando-o um processo gerido

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de ampliação de direitos individuais fundamentais. Importa, para Honneth, demonstrar que,

na “imposição” de cada nova classe de direitos fundamentais, encontram-se argumentos

referidos implicitamente à exigência de ser membro com igual valor da coletividade

política. Da análise de Marshall extrai-se como a ampliação sucessiva dos direitos

individuais ligou-se ao princípio normativo que, desde o início, atuava como idéia diretriz:

todo enriquecimento das atribuições jurídicas do indivíduo pode ser entendido como um

passo além no cumprimento da concepção moral de que todos os membros da sociedade

devem poder ter assentido por discernimento racional à ordem jurídica estabelecida e deles

deve-se esperar a disposição individual à obediência. Então, o respeito fundado no

reconhecimento jurídico só pode manifestar-se caso o sujeito goze do nível mínimo de vida

necessário para adquirir a capacidade abstrata de orientar-se por normas morais.

Partindo do princípio de igualdade inscrito no direito moderno, Honneth

(2003) distingue dois fios evolutivos no esquema histórico de Marshall: o status de uma

pessoa de direito ampliou-se pelo acúmulo de novas atribuições (conteúdo material); e ele

foi estendido a um número sempre crescente de membros da sociedade (alcance social). O

autor acrescenta que tanto Mead quanto Hegel identificam um prosseguimento da luta por

reconhecimento no interior da esfera jurídica, pois os confrontos práticos, advindos do

reconhecimento denegado ou do desrespeito, representam conflitos em torno da ampliação

do conteúdo material e do alcance social do status de uma pessoa de direito.

Quanto à estima social, depende dos objetivos éticos predominantes na

sociedade, variáveis historicamente. Atente-se que, à medida que os objetivos éticos se

abrirem a diferentes valores, e a ordenação hierárquica ceder espaço a uma concorrência

horizontal, mais a estima social assumirá um traço individualizante e criará relações

simétricas. Ademais, com a modernidade, observa-se uma transição do conceito de honra,

medida pelo valor previamente fixado de propriedades atribuídas a grupos inteiros

(tipificados), para as categorias de prestígio ou reputação social, cuja ênfase recai no

sujeito, considerado uma grandeza biograficamente individualizada.

O prestígio, ou reputação, refere-se ao grau de reconhecimento que o

indivíduo merece para sua forma de auto-realização, porque esta de algum modo contribui

para a implementação prática dos objetivos da sociedade, abstratamente definidos. Na nova

ordem individualizada do reconhecimento, tudo depende, portanto, de como se determina o

horizonte universal de valores, que, ao mesmo tempo, deve estar aberto a formas distintas

de auto-realização e servir a um sistema predominante de estima.

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Dessa forma, as idéias diretrizes, tornadas abstratas, nos impedem de medir

o valor social de determinadas propriedades e capacidades sem primeiro realizar

interpretações culturais complementares. Dá-se, assim, uma praxis exegética secundária

que configura um conflito cultural de longa duração, já que as relações de estima social

ficam sujeitas a uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, com os

meios da força simbólica e em referência às finalidades gerais, o valor das capacidades

associadas à sua forma de vida. Ademais, como as relações de estima social estão

acopladas indiretamente aos padrões de distribuição de renda, os confrontos econômicos

pertencem constitutivamente a essa forma de luta por reconhecimento (Honneth, 2003).

A contraface do reconhecimento é a experiência de desrespeito. Como a

auto-imagem normativa de cada ser humano (seu Me) depende da possibilidade de um

resseguro constante no outro, a experiência do desrespeito pode gerar uma lesão capaz de

destroçar a identidade da pessoa. Mas o desrespeito, ou a ofensa, como na linguagem

corrente, pode envolver graus diversos de profundidade na lesão psíquica de um sujeito.

No caso dos direitos, estes são pretensões individuais com cuja satisfação

social uma pessoa pode contar de maneira legítima, por participar como membro de igual

valor da ordem institucional da sociedade. Por isso, denegar ao indivíduo pretensões

jurídicas socialmente vigentes implica lesá-lo na expectativa intersubjetiva de ser

reconhecido como sujeito capaz de formular um juízo moral, levando à perda de auto-

respeito, ou seja, a uma perda da capacidade de referir-se a si mesmo como parceiro em pé

de igualdade na interação com todos os próximos. Essa forma de desrespeito também varia

historicamente e, ao analisá-la, deve-se considerar que, dadas as variações da

imputabilidade moral promovidas pelo contínuo desenvolvimento das relações jurídicas, a

experiência de precariedade de direitos deve ser medida tanto pelo grau de universalização

quanto pelo alcance material dos direitos institucionalmente garantidos.

Em relação ao desrespeito, Honneth (2003) levanta a questão de como essa

experiência, ancorada nas vivências afetivas dos sujeitos humanos, pode gerar, no plano

motivacional, o impulso para a resistência social e para o conflito, isto é, para uma luta por

reconhecimento. Com efeito, para o autor, na experiência de desrespeito de pretensões de

reconhecimento reside a possibilidade de que a injustiça sofrida se revele cognitivamente

ao sujeito, motivando-o à resistência política.

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2.2 - O Processo de Juridificação

Para fazer uma aproximação empírica do que denomina de colonização do

mundo da vida, Habermas (1987b) utiliza, como exemplo, a juridificação de áreas de ação

comunicativamente estruturadas. Trata-se de analisar o desenvolvimento do direito,

demonstrando, analiticamente, o vínculo entre efeitos reificadores e tipos específicos de

juridificação, divididos em quatro movimentos, conforme a relação entre mundo da vida e

sistemas econômico e político-administrativo 9.

Durante o período absolutista, deu-se o primeiro desenvolvimento europeu

do direito, com a institucionalização das mídias que serviram à diferenciação da economia

e do Estado em sistemas. Naquele contexto, as fontes de legitimação do Estado eram

extraídas do mundo da vida. O segundo movimento correspondeu ao Estado constitucional

burguês. Em termos analíticos: aos indivíduos seriam conferidos direitos civis que

poderiam ser opostos ao soberano, embora sem participarem da formação de sua vontade.

A terceira onda referiu-se ao Estado constitucional democrático forjado

durante a Revolução Francesa e objeto da teoria política desde Kant e Rousseau até o

presente. A democratização seguiu o curso da constitucionalização. O mundo da vida

afirmava-se contra os imperativos da estrutura de dominação que desconsideravam as

relações concretas de vida. Mas assim a mídia poder enraizou-se mais no mundo da vida.

Na quarta etapa emergiu o Welfare State. Seguiu-se a linha do Estado

constitucional democrático, com uma juridificação assecuratória da liberdade e a

institucionalização legal de relações sociais fundadas numa estrutura de classes.

Habermas (1987b) considera que os efeitos negativos do Welfare State

resultam do modo de juridificação, ou seja, os próprios meios de garantir a liberdade

ameaçam a liberdade dos beneficiários. O problema consiste no fato de a juridificação em

tela não permitir reações apropriadas, especialmente preventivas, direcionadas às causas

que promovem as demandas por compensação. A introdução de uma estrutura legal

condicional (benefícios exigem o preenchimento de certos pré-requisitos) acrescenta um

elemento estranho às relações sociais, separando-as dos mecanismos consensuais de

coordenação da ação e as substituindo pelas mídias poder e dinheiro (incapazes de garantir

a reprodução simbólica do mundo da vida). As formas concretas de vida são submetidas a

um violento processo de abstração, não só para serem subsumidas à lei, mas, igualmente, para

_________________________________________________________________________ 9 Sobre o mundo da vida e os sistemas, confira-se a nota nº 07.

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que possam ser administradas. Dessa forma, quanto maior a intervenção estatal para

pacificar o conflito de classe expresso na esfera produtiva, maiores são os efeitos

patológicos da juridificação, dada a maior burocratização e monetarização do mundo da

vida. A discussão envolve aqui os aspectos que garantem a liberdade e os que a restringem.

Nesse sentido, para o autor, os que a garantem são os relativos a uma atuação negativa do

Estado, ao passo que a sua atuação positiva levaria às conseqüências perversas em comento.

Outro critério pode ser utilizado para ampliar esse debate, qual seja a

classificação das normas legais segundo a forma de legitimação que obedecem: se apenas

através de procedimentos; ou se abertas a justificativas de teor substantivo. Neste trilha, o

autor distingue duas formas assumidas pelo direito (ou pela lei). Uma refere-se ao direito

como instituição, implicando que, além do procedimento, as normas legais, para serem

legítimas, devem possuir conteúdos substantivos, cujas bases normativas dependem dos

mecanismos de mútuo entendimento que deitam raízes no mundo da vida. São exemplos:

os fundamentos de direito constitucional, princípios de direito criminal, normas sobre

padrões morais (estupro, aborto, assassinato,...). A outra forma trata-se do direito como

meio, servindo para organizar os subsistemas governados pelo dinheiro e poder, caso em

que o procedimento é critério suficiente de legitimação. Essa divisão do direito exemplifica

o que Habermas (1987b) chama de desacoplamento entre mundo da vida e sistema.

Note-se que o problema da liberdade coloca-se da perspectiva do mundo da

vida e tem relação apenas com o direito como instituição, pois, atuando como um meio,

importa se ele é funcional aos sistemas. Nesse quadro, as garantias de compensação social

do Welfare representam um problema, porque, embora conforme a instituições jurídicas,

sua implementação ocorre quando o direito é utilizado como um meio. Desse modo, as

normas legais do Welfare são ajustadas para servir a mecanismos sistêmicos, mas se

aplicam a situações do mundo da vida marcadas por relações não formais.

As políticas de bem-estar são apenas um exemplo da tese da colonização

interna do mundo da vida pelos subsistemas tornados mais complexos com o crescimento

capitalista. As ambivalências encontradas na legislação de bem-estar também marcam a

juridificação do direito de família e a regulação da educação escolar; áreas envoltas em

processos formativos objeto de ações comunicativas. Com a juridificação, surgem

controles administrativos e judiciais que, não só suplementam os contextos socialmente

integrados às instituições jurídicas, como os transformam num meio de consecução do

direito, gerando distúrbios. As pessoas tornam-se mais sujeitos subordinados aos

procedimentos do que participantes deles, argumenta Habermas (1987b: 370):

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Em quase todos os casos pode-se ver quão pouco o juiz é hábil a acompanhar a contenda com seus meios especificamente jurídicos, sempre que está em jogo uma questão de comunicação relativa à criança e que é essencial para os procedimentos, ou de entendimento de fatores importantes para o desenvolvimento da criança. É o meio da lei em si que viola as estruturas comunicativas da esfera que foi juridificada.

Dessa análise, Habermas (1987) extrai a conclusão cujo teor normativo se

afigura evidente, e que informa em boa medida as tarefas de sua teoria crítica. Trata-se de

“proteger áreas da vida que são funcionalmente dependentes da integração social através

de valores, normas e formação de consensos, para preservá-las de serem aprisionadas pelos

imperativos sistêmicos dos subsistemas econômico e administrativo que crescem segundo

dinâmicas próprias” (idem, 372/373). Importante é que a esfera pública se reproduza

autonomamente, sem ser submetida a imperativos sistêmicos.

Na esfera pública, as associações são centrais para a formação de opiniões.

Mas sua criação (de associações), reprodução e influência depende da existência de uma

cultura política liberal e igualitária espraiada por uma sociedade de cidadãos ativos e

sensíveis aos problemas da coletividade. Habermas (1997b) preocupa-se em não

sobrecarregar moralmente os cidadãos com um ethos republicano tão caro a Rousseau.

Os cidadãos não precisam ser virtuosos, mas ativos e sensíveis aos problemas coletivos. Esse

relaxamento da virtude é possível, pois a formação procedimental da vontade se dá em

fragmentos e sem sujeitos definidos. Basta que a sociedade mantenha-se “animada”.

Torna-se mais fácil também compatibilizar o interesse próprio e a moral do cidadão (afinal,

a formação da vontade depende de processos intersubjetivos, e não mais centrados nos

sujeitos).

Já Boaventura de Sousa Santos (2001), identificando uma crise do

paradigma moderno, propõe-se elaborar uma teoria crítica pós-moderna e especula sobre o

paradigma emergente: o de um conhecimento prudente para uma vida decente. Sustenta que

só a partir da modernidade será possível transcendê-la 10, recorrendo a suas representações

10 Para o autor, modernidade e capitalismo são dois processos históricos diferentes e autônomos. O primeiro surgiu antes do segundo, entre o século XVI e o fim do século XVIII, e, provavelmente, desaparecerá antes de o capitalismo perder sua posição dominante.

Esquematicamente, o paradigma da modernidade assenta sobre dois pilares: o da regulação e o da emancipação, cujos desenvolvimentos harmoniosos e recíprocos se traduziriam numa completa racionalização da vida coletiva e individual e na consecução de valores sociais potencialmente incompatíveis, tais como justiça e autonomia, solidariedade e identidade, igualdade e liberdade. Cada pilar é informado por três princípios ou lógicas. O da regulação observa os princípios do Estado, do mercado e da comunidade. Já a emancipação constitui-se por “três lógicas da racionalidade definidas por Weber: a racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura, a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia e a racionalidade moral-prática da ética e do direito” (idem: 50).

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mais abertas e inacabadas, que então se apresentam como horizonte de soluções possíveis.

Para o autor, essas representações “são, no domínio da regulação, o princípio da

comunidade e, no domínio da emancipação, a racionalidade estético-expressiva” (Santos,

2001: 74/75).

Quanto à racionalidade estético-expressiva, o autor considera-a “tão

permeável e inacabada como a própria obra de arte e, por isso, não pode ser encerrada na

prisão flexível do automatismo técnico-científico” (idem: 76).

No caso das comunidades, não se sujeitaram à especialização e à

diferenciação técnico-científica que serviu à racionalidade cognitivo-instrumental para

colonizar os demais princípios de regulação (o mercado e o Estado). Na verdade, isso só

ocorreu parcialmente, como em duas dimensões do princípio da comunidade: a

participação e a solidariedade. Quanto à primeira, a teoria política liberal tentou

circunscrevê-la rigidamente com a cidadania e a democracia representativa, mas ela se

manteve como uma competência não especializada e indiferenciada da comunidade em

outras esferas da vida social que não a política. Em relação à solidariedade, a colonização

se deu pelas políticas sociais do Welfare State, mas esse desenvolvimento, além de

incompleto, observou a permanência da solidariedade comunitária não especializada,

especialmente em Estados periféricos. Ao contrário do colonialismo, a solidariedade

envolve a reciprocidade e a incapacidade de conceber o outro como um objeto.

Atualmente, com a desterritorialização das relações sociais não cabe

confinar a comunidade ao imediato, ou ao local. Com efeito, como se fazem presentes

nexos locais-globais e imediatos-diferidos, a comunidade deve ser entendida como “um

campo simbólico em que se desenvolvem territorialidades e temporalidades específicas que

permitem conceber o nosso próximo numa teia intersubjetiva de reciprocidades” (Santos,

2001: 81). Assim, vale mais a reciprocidade (intersubjetiva) do que a identidade. Além

disso, observam-se redes de comunidades, de modo que é possível perscrutar os

elementos e pontos de vista comuns entre elas. O autor denomina esses tópicos comuns de

topoi gerais. Neste sentido, uma política epistemológica emancipatória deve voltar-se para

a formação de um senso comum emancipatório, o que ocorrerá “quando os topoi

emancipatórios desenvolvidos numa dada comunidade interpretativa encontrarem tradução

adequada nos topoi de outras comunidades e se converterem, assim, em topoi gerais”

(idem: 110).

Frise-se ainda a necessidade de reformar o princípio da responsabilidade que

informa a ética liberal moderna. Para o autor, hoje não se podem assentar direitos

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exigindo-se os correspondentes deveres. Nesse sentido, cabe invocar um princípio pós-

moderno de responsabilidade, onde a natureza e o futuro têm direitos sem ter deveres.

Difícil aqui é definir o sujeito de responsabilidade que não pode ser estritamente

individualista, sob pena de não comportar a responsabilidade por conseqüências coletivas

presentes e futuras; nem uma coletividade indiferenciada a ponto de impedir a atribuição

de responsabilidade.

No campo jurídico, a tensão entre regulação e emancipação remonta à

recepção do direito romano na Europa, durante o século XII. A sociedade feudal abrigava

um pluralismo jurídico incompatível com as demandas por liberdade e garantias contratuais

da classe emergente. Nesse contexto, a recepção do direito romano, ao propor uma

racionalização jurídica da vida social, servia aos propósitos emancipatórios da classe

emergente, ou seja, as exigências de regulação, além do aspecto técnico-instrumental,

comportavam uma nova ética política e social afim aos novos ideais de autonomia e

liberdade. No entanto, gradativamente os dispositivos de emancipação foram absorvidos

pela regulação, até que no século XIX, reduziu-se a um formalismo técnico a complexa

simbiose entre autoridade, racionalidade e ética que era característica do direito romano.

Também as teorias do contrato social representaram uma manifestação da

tensão entre regulação e emancipação na origem do campo jurídico moderno, ao ligarem a

universalidade da obrigação jurídico-política às pretensões de verdade da ciência moderna.

Isso aparece mais em Hobbes do que em Rousseau, este crítico da ciência moderna, dada a

incapacidade desta em resolver os problemas éticos e políticos da época, sintetizados na

primeira frase de O Contrato Social: “O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se

a ferros” (Rousseau, 1997: 53). A questão era fundar a obrigação política na liberdade. A

idéia de contrato social era a solução iluminista. Mas em que termos fixar o contrato? Para

Rousseau, a solução era o exercício da soberania indivisível e inalienável por meio da

vontade geral. Segundo Boaventura, Rousseau concebe a vontade geral como uma síntese

da tensão entre regulação e emancipação, donde o par de idéias: “só obedecer a si próprio”

e “ser forçado a ser livre”. Mais do que o número é o interesse comum que une a vontade,

por isso “a fundação do corpo político assenta numa obrigação política horizontal, de

cidadão para cidadão, em relação à qual a obrigação política vertical, do cidadão para o

Estado, é necessariamente secundária ou derivada” (Santos, 2001: 131). Direito e educação

cívica formam uma síntese, sobrelevando a racionalidade prático-moral. Tem-se um

projeto de racionalização das vidas individual e coletiva, onde se equilibram liberdade e

igualdade, autonomia e solidariedade, razão e ética, autoridade e consentimento.

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Enquanto em Rousseau a soberania estatal é derivada e precária, em Hobbes

ela é absoluta, por este autor entender que, quando o povo a renuncia ao Estado, importa a

garantia da paz 11. Se em Hobbes não há proteção contra a tirania, em Locke o governo age

por consentimento, merecendo destaque dois momentos: quando o povo decide abandonar

o estado de natureza e fundar a sociedade civil, e outro quando ele incumbe o governo de

regular a sociedade civil de acordo com a regra da maioria. Aqui, o direito vincula o governo

e serve de garantia contra os abusos de poder e a tirania.

Cada um desses autores representou “uma dimensão arquetípica de um

projeto revolucionário global. O princípio do Estado (Hobbes), o princípio do mercado

(Locke) e o princípio da comunidade (Rousseau) são constitutivos, em pé de igualdade, de

um novo paradigma social que, para estar à altura das suas promessas, tem de assegurar o

desenvolvimento equilibrado dos três princípios” (Santos, 2001: 137). Mas não foi isso que

se observou no “mundo real”, após a associação entre o paradigma da modernidade e o

capitalismo. Delinearam-se então três períodos: o do capitalismo liberal (século XIX); o do

capitalismo organizado, iniciado ao final do século XIX e cujo auge se deu no período entre-

guerras e no pós-guerra; e o terceiro período, correspondendo ao capitalismo desorganizado,

que se estende do final dos anos 1960 aos dias atuais.

No primeiro período, desenvolveu-se o Estado Constitucional. Ideais éticos

e promessas políticas foram ajustadas às necessidades regulatórias do capitalismo liberal.

A ordem positivista procurava garantir a previsibilidade e o controle da natureza e da

sociedade. Instaurou-se uma dominação jurídica racional, baseada num sistema de leis

universais e abstratas emanadas do Estado, aplicado segundo a racionalidade lógico-

formal. O direito estatal, então considerado desvinculado de conteúdos sociais e políticos,

liberava as relações sociais dos vínculos e hierarquias do antigo regime 12.

Durante o capitalismo organizado veio a lume o Welfare State (Estado-

Providência, ou de Bem-Estar), onde a obrigação política horizontal entre os cidadãos

tornou-se uma dupla obrigação vertical: entre os contribuintes e o Estado; e entre os

beneficiários das políticas sociais e o Estado. Note-se que, à medida que o Estado passou a

_______________________________________________________________________________ 11 Boaventura esclarece que a elaboração teórica do estado de natureza pelos contratualistas é um artifício lógico para justificar a institucionalização da sociedade civil. Por isso, as diferentes concepções de estado de natureza entre esses autores são simétricas às concepções de sociedade civil após a “celebração” do contrato social. Nesse sentido, confira-se Macpherson (1979). 12 Não se deve olvidar, porém, que o século XIX, além do positivismo jurídico e científico, aprofundou o idealismo romântico do século XVIII e observou a emergência do socialismo como movimento político, além de diversos projetos utópicos.

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gerir processos econômicos e sociais, o direito estatal foi se tornando menos formalista e

abstrato, ganhando ênfase o equilíbrio e o compromisso entre interesses conflitantes

visando à materialização do direito. Dava-se curso à politização do direito, sobrevelando

seu papel distributivo na promoção da integração social e política. Enquanto no Estado

liberal a racionalidade jurídico-formal era fonte e princípio de legitimação, a

instrumentalidade do direito durante o capitalismo organizado transferiu a função de

legitimação para o desenvolvimento econômico e para as formas de sociabilidade que o

Estado-Providência procurava fomentar.

A juridicização da prática social significou a imposição de categorias, interacções e enquadramentos jurídicos estatais, relativamente homogêneos, nos mais diversos e heterogêneos domínios sociais (família, vida comunitária, local de trabalho, esfera pública, processos de socialização, saúde, educação, etc.). A manejabilidade do direito estatal pressupunha a maleabilidade dos domínios sociais a regular juridicamente. Sempre que a prática social não pôde validar este pressuposto, o resultado foi o que Habermas designou por ‘colonização do mundo da vida’, isto é, a destruição das relações sociais sem a criação de equivalentes funcionais jurídicos adequados. Sempre que tal aconteceu, o benefício jurídico do Estado-Providência converteu-se num bem humano condicional. Condicional pelo facto de poder destruir as dimensões eventualmente benéficas das relações sociais a serem reguladas, sem garantir a sustentabilidade da benevolência jurídico-estatal, dada a dependência desta em relação às necessidades variáveis de reprodução do capital (Santos, 2001: 151).

No terceiro período (capitalismo desorganizado), presenciamos a ruína das

estruturas do período anterior e a impossibilidade de discernir o perfil das novas formas

organizativas. As promessas de distribuição justa de benefícios sociais e de sistemas

políticos estáveis e democráticos erodiram-se, sendo muitas as evidências:

(...) desigualdades sociais crescentes, aumento alarmante da pobreza, aparecimento de “Terceiros Mundos interiores”, redução dos recursos e do âmbito das políticas sociais, deslegitimação ideológica do Estado facilitador, novas formas de exclusão social e de autoritarismo sob a capa de promoção de autonomia e de liberdade, “patologias” da participação e da representação no processo político, novo populismo e clientelismo na política, etc. Além disso, os dois paradigmas políticos da transformação social disponíveis no início do segundo período – revolução e reforma – parecem estar ambos igualmente esgotados (idem: 154).

O princípio do mercado tem se sobressaído, com a interligação mundial de

mercados e de sistemas de produção minando a capacidade estatal de regulação. Cada vez

mais se interligam o local e global sem a intermediação do espaço nacional. A erosão do

princípio do Estado ainda se manifesta na perda de protagonismo estatal nas políticas sociais.

Num contexto de crescente desigualdade entre o Norte e o Sul, os países

periféricos são acossados por determinações do capital financeiro e industrial

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transnacional, determinações essas comumente estabelecidas por organizações

internacionais controladas pelos países centrais. Não raro essas diretivas são revestidas por

uma combinação de liberalismo econômico e proteção dos direitos humanos.

Boaventura conclui que todas essas alterações nos princípios do mercado e

do Estado fragilizaram as políticas de classe reinantes durante o capitalismo organizado.

Também contribui para tanto a transformação da estrutura de classe, fruto de fatores como

a “segmentação nacional e transnacional dos mercados de trabalho, a crescente

diferenciação interna da classe operária industrial, o aumento do desemprego e do

subemprego, qualquer deles estrutural, a expansão do setor informal no centro, na periferia

e na semiperiferia, o extraordinário aumento dos serviços, tanto dos qualificados como dos

não qualificados, a difusão da ideologia cultural do consumismo” (Santos, 2001: 156).

Embora esses elementos fragilizem a solidariedade horizontal base do

princípio da comunidade, o autor aponta indícios de sua reativação mais autônoma, ou seja,

não mais centrada e derivada do Estado. Serve de exemplo o crescimento de um terceiro

setor entre o Estado e o mercado, organizando a reprodução social com base em

movimentos sociais e ONG’s que atuam em nome de uma solidariedade ditada por novos

riscos, contra os quais nem o mercado nem o Estado oferecem uma ação eficaz.

O autor conclui que, no primeiro período, as exigências regulatórias

preponderaram sobre a emancipação, confinada esta a reivindicações de movimentos anti-

sistêmicos. Durante o capitalismo organizado, a regulação estatal dos países centrais tentou

integrar essas demandas, mas, de fato, subordinou os projetos emancipatórios à regulação,

conforme exigido pela dinâmica capitalista. No terceiro período, com o declínio da

regulação fordista, observa-se uma mútua desintegração da regulação e da emancipação,

embora se trate ainda de um período em aberto.

2.3 - Tendências modernas do direito: formalismo, materialização e

responsividade

Weber (1999) reconhece como tendências modernas do desenvolvimento do

direito uma maior especialização de seus conteúdos e, associado a esse incremento técnico,

o crescente desconhecimento pelos leigos das questões jurídicas. Há ainda a tendência de

maior abertura do direito a reivindicações materiais, tornando-o cada vez mais permeável a

fins racionais, mesmo que em detrimento da lógica formalista.

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Na exposição do clássico autor transparece o seu pesar ante esse processo.

Para Weber, as pressões por justiça material minam o edifício formal e racional do direito

positivo, incutindo elementos perturbadores e hábeis a tornar irracional seu funcionamento.

Observaríamos, destarte, uma involução no processo de racionalização formal do direito.

Vale então reportamos os parâmetros do direito formal:

1) que toda decisão jurídica concreta seja a “aplicação” de uma disposição jurídica abstrata a uma “constelação de fatos” concreta; 2) que para toda constelação de fatos concreta deva ser possível encontrar, com os meios da lógica jurídica, uma decisão a partir das vigentes disposições jurídicas abstratas; 3) que, portanto, o direito objetivo vigente deva constituir um sistema “sem lacunas” de disposições jurídicas ou conter tal sistema em estado latente, ou pelo menos ser tratado como tal para fins da aplicação do direito; 4) que aquilo que, do ponto de vista jurídico, não pode ser “construído” de modo racional também não seja relevante para o direito; 5) que a ação social das pessoas seja sempre interpretada como “aplicação” ou “execução” ou, ao contrário, como “infração” de disposições jurídicas (...) (Weber, 1999: 13).

Dentre os elementos que aos olhos de Weber ameaçam a racionalização

formal do direito, vale nos referirmos, primeiramente, aos direitos particulares ou especiais

aplicáveis a certas classes profissionais ou econômicas. Por um lado, essa

compartimentalização não contradiz o direito formal e decorre da crescente diferenciação

econômica e profissional que, conforme a pressão dos interesses, exige tribunais e

procedimentos específicos mais adequados para tratar de assuntos jurídicos especializados

(daí a emergência de novos ramos do direito positivo). Mas essa particularização se faz

acompanhar pelo anseio de alcançar uma resolução rápida e adequada ao caso concreto, em

detrimento dos rigores de procedimentos jurídicos formais, ou seja, interesses materiais

tentam minar o formalismo jurídico.

Outras tendências de dissolução do direito formal, embora de caráter

estritamente técnico, encontram-se no princípio da “livre apreciação das provas”, ou em

categorias éticas como “boa-fé” e “bons costumes comerciais”, que, por pressões advindas

do intercâmbio econômico, invadiram a ceara jurídica.

O autor menciona também que os interessados na aplicação do direito

orientam-se no sentido econômico ou prático, mas a lógica jurídica não raro os frustra, o

que, segundo Weber, não se trata de uma insensatez da jurisprudência moderna, mas sim

de uma “conseqüência inevitável de ser a legalidade intrínseca à lógica de todo

pensamento jurídico formal inconciliável com as ações juridicamente relevantes dos

interessados e com seus acordos, fechados para obter efeitos econômicos orientados em

expectativas economicamente qualificadas” (Weber, 1999: 146). Em outros termos,

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podemos concluir que, embora constate o desenvolvimento de demandas por maior

responsividade do direito, como descrevem Nonet e Selznick (1978), Weber defende aqui,

implicitamente e de forma normativa, o direito positivo e sua aplicação dogmática.

Os conflitos de classe são uma ameaça, pois potencializam demandas materiais

dos trabalhadores frente ao direito. Conjuga-se a esta ação o trabalho de ideólogos do

direito que defendem um direito lastreado por postulados éticos de justiça e dignidade

humana. São pressões por justiça material em lugar da legalidade formal.

As formulações de operadores do direito também reivindicam a atividade

criativa do juiz ao aplicar o direito ao caso concreto. Ou sustenta-se a superioridade dos

precedentes judiciais ante normas objetivas fixadas racionalmente, ou ainda a prevalência

de interesses concretos, segundo uma racionalidade quanto a fins, em detrimento das

normas jurídicas. Weber entende que essas idéias contrárias ao direito formal representam

a resistência dos operadores do direito a uma situação de autômatos ou simples intérpretes

de parágrafos e contratos. São frutos da própria racionalização crescente da técnica jurídica.

Note-se que, para o autor, o direito formal refere-se ao direito legislado,

representando a codificação o ápice da racionalização formal. Essa observação é relevante,

pois confirma que as demandas por justiça material caracterizam uma tendência moderna e

não especificamente econômicas ou capitalistas. Prova disso, para Weber, é que o

pensamento jurídico inglês continuava como uma arte empírica “apesar de toda a

influência pela exigência cada vez mais rigorosa de uma instrução científica (...) Além

disso, [nele] conservou-se, de forma sensível, o genuíno caráter carismático da aplicação

do direito (...). Na prática, os precedentes judiciais têm peso extremamente diverso, e não

apenas, como ocorre por toda parte, segundo a posição hierárquica da instância, mas

também segundo a autoridade pessoal do juiz individual” (Weber, 1999: 149) 13.

Além de motivos de ordem política e de cunho profissional, há outros que

infundem critérios “irracionais” de julgamento em meio ao direito formal, como é o caso

do tribunal do júri, composto por leigos. Mas ainda outra ameaça pesa sobre uma justiça

profissional criminal, conquanto procedimentos racionais podem esbarrar na incapacidade

técnica de outras ciências, como a psiquiatria, inviabilizando a consecução de um veredito

conforme ao direito formal.

Se já falamos de tendências e interessados na racionalização material do direito,

por que e a quem interessaria a manutenção do direito e da justiça estritamente formalistas? _______________________________________________________________________________________ 13 Sobre as tendências contemporâneas de convergência entre os sistemas de direito romano e de Common Law, confira-se Cappelletti (1993).

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Weber (1999) firma que a justiça formal, preocupada com meios de prova racionais e com

uma fundamentação lógica da sentença, comporta uma luta regulamentada de interesses

das partes, com probabilidade ótima de averiguar a verdade. Mas o caráter abstrato do

formalismo jurídico, ao deixar liberadas as desigualdades de poder econômico, pode

resultar em violações de ideais materiais de justiça. No entanto, a justiça formal constitui

obstáculo tanto a poderes autoritários, já que reduz a dependência do indivíduo frente à

graça e ao poder arbitrário de autoridades, como à democracia, já que diminui a

dependência prática dos indivíduos ante seus concidadãos. Assim, se os economicamente

poderosos podem ter interesse no formalismo jurídico, também o terão “todos os portadores

ideológicos de tendências que pretendem justamente a ruptura da sujeição autoritária ou

dos instintos irracionais das massas, em favor do desenvolvimento das possibilidades e

capacidades individuais, [pois] costumam ver precisamente neste caráter abstrato uma

vantagem decisiva da justiça formal, e na justiça não-formal, ao contrário, apenas a

possibilidade de um arbítrio absoluto e de inconstância subjetivista” (Weber, 1999: 103)

Igualmente, terão interesse todas empresas econômicas e políticas de caráter racional

interessadas na constância e calculabilidade proporcionadas pelos procedimentos jurídicos

alheios a ingerências “irracionais”.

É certo que o direito formal pode potencializar as liberdades e gerar

calculabilidade e constância. Weber parece muito preocupado com movimentos

autoritários ou manifestações de massa perturbadoras da liberdade individual e da

racionalidade que ele gostaria de ver regendo a sociedade. Weber oscila entre, de um lado,

uma defesa do formalismo jurídico como mecanismo de proteção da liberdade e, de outro,

o ceticismo, ao reconhecer que o formalismo não mina a manifestação de poderes coativos,

mesmo que de natureza diversa daquela do “Antigo Regime”.

Analisemos então a opinião de Durkheim. Para esse autor, a conformação do

direito tem íntima relação com a realidade moral que serve de base às instituições políticas e

sociais modernas: o individualismo. A proteção ao indivíduo não se limita à sua integridade

física e psíquica, mas se aplica às coisas com as quais ele trava relações legítimas, pois o

individualismo é inviável se não acompanhado de uma esfera material de ação.

Se na pessoa residem os caracteres fundadores da propriedade, como o

caráter sagrado da pessoa pode ser transmitido às coisas? Para responder, Durkheim se

reporta às duas principais formas de aquisição da propriedade: o contrato e a herança.

Enquanto o primeiro afina-se ao mundo moderno, a segunda é uma reminiscência da

propriedade coletiva, destinada a perder importância.

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As obrigações contratuais provinham, em tempos antigos, não da

manifestação de vontade, mas sim de determinadas solenidades ou da tradição da coisa.

Embora o progresso econômico exigisse o contrato consensual, observou-se uma lenta

evolução até alcançá-lo. As solenidades paulatinamente foram reduzidas e substituídas por

outros meios eficientes de manter a declaração empenhada, até se perfazer o lastro legal

que a torna irrevogável. Destarte, o contrato não tem a mesma força obrigatória do contrato

solene de antanho, mas é exatamente sua pouca rigidez e agilidade na celebração que mais

se adaptam à vida econômica moderna.

Vale lembrar que os contratos real (tradição da coisa) e solene

correspondem a uma fase em que os direitos individuais eram parcamente respeitados,

figurando a manutenção da autoridade pública como elemento mais importante:

o laço preciso, presente no contrato, não possuía caráter moral muito pronunciado; só veio a adquiri-lo no contrato consensual, por isso que, nesse contrato, é ele o tudo na relação formada. A sanção dos contratos consiste, então, essencialmente, não em vingar a autoridade pública da desobediência, como no caso do devedor recalcitrante, mas em assegurar, às duas partes, a plena e direta realização dos direitos adquiridos (Durkheim, 1980: 182).

A estrutura interna dos contratos também se modificou, já que, em lugar da

forma, prevalece a vontade das partes. Contratos consensuais exigem a boa fé dos

contratantes. No entanto, Durkheim reconhece que a tendência moderna mais recente

sobrepõe cada vez mais uma condição ao contrato consensual: a eqüidade. Não basta nos

certificarmos do estado subjetivo das partes ao manifestarem sua vontade, a validade dos

compromissos depende das conseqüências objetivas (ou materiais) que deles decorrem.

Logo, se o contrato consensual sucedeu ao solene, o eqüitativo sucederá ao consensual.

Durkheim (1980) lembra que, de certo modo, sempre estamos sujeitos a

certo grau de coerção, daí ser difícil estabelecer quando manifestamos livremente nosso

consentimento. “Premido pela doença, sou obrigado a recorrer a médico cujos honorários

são muito altos; fico tão constrangido a aceitá-lo quanto se tivesse a faca no peito. Seria

possível multiplicar os exemplos” (idem: 190). Ademais, o autor sustenta que a

condenação de contratos obtidos mediante violência não reside na supressão da livre

volição de um dos contratantes, mas na lesão imerecida e injusta a que submetido. Por isso,

prefere o contrato eqüitativo, pois com ele não só as injustiças decorrentes de atos de

violência são condenáveis, mas também expedientes e situações desfavoráveis que

impliquem trocas injustas, segundo o estado de opinião corrente na sociedade.

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Em seu tempo, o autor reconhece que esses juízos de justiça e eqüidade

pouco influíam no direito positivado, tendo ainda caráter moral. Legalmente eram

repudiados contratos de usura, mas a pressão dessas aspirações morais dirigia-se contra

contratos perversos e tendia cada vez mais a positivar-se. Os novos direitos então fixados,

pensa Durkheim, não necessariamente promoveriam maior eficácia nos processos de

trabalho ou maior ordem social, mas seriam tentativas de combater situações iníquas.

Há quem proteste e diga que assim se conferem ao operário verdadeiros privilégios. Em certo sentido, nada de mais verdadeiro; são esses privilégios, todavia, destinados a contrabalançar, em parte, os privilégios contrários, dos quais goza o patrão, e que o poriam em condições de depreciar, à vontade, os serviços do trabalhador. Não examino, aliás, a questão de saber se esses processos têm a eficácia a eles atribuída: pode dar-se não sejam os melhores, ou, até, vão contra o objetivo proposto. Não importa, baste-nos constatar as aspirações morais que os sugeriram, e das quais provam a realidade (Durkheim, 1980: 193).

Exige-se cada vez mais o equilíbrio contratual, porque os sentimentos

igualitários ganham força progressivamente. Segundo o autor, conforme os preconceitos do

passado forem se esvaindo, seremos mais sensíveis às dores humanas; e às privações e

sofrimentos daqueles considerados mais nobres não será conferido peso tão maior do que o

conferido aos padecimentos das classes inferiores. Portanto, Durkheim reconhece um

processo social que é condição para a universalização da cidadania. Um processo que não

será curto, nem simples, mas que merece nosso empenho no sentido de encontrarmos a

mais equilibrada proporção, de acordo com o nosso atual senso de justiça 14.

Durkheim pontua alguns elementos nesse processo. Assim, reconhece a

herança como um grande obstáculo, pois introduz desigualdades que não decorrem do

mérito, viciando de início todo o regime contratual. Afinal, enquanto ricos de nascença

podem celebrar contratos em busca do viver melhor, os pobres de nascença podem ser

forçados a aderir a contratos apenas para viver. Instauram-se, na base, condições leoninas.

Mas reforça a convicção de Durkheim o próprio avanço do individualismo, pois, se a

propriedade individual começa e acaba com o indivíduo, a transmissão testamentária é

contrária ao espírito individualista. A família tem mesmo se decomposto ao longo de

gerações, tendendo a tornar-se órgão secundário. O autor vislumbra que as corporações

profissionais poderão se tornar os grupos mais competentes para administrar as riquezas

individuais, pois não se encontram tão distantes do indivíduo como o Estado.

_______________________________________________________________________________ 14 Lembre-se a opinião negativa de Durkheim sobre o princípio majoritário. Desse modo, esse senso de justiça refere-se a algo presente na consciência coletiva, filtrada reflexivamente pelo Estado, com o auxílio das corporações.

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Note-se que o ideal de sociedade de Durkheim não se restringe a um mundo

que só tenha espaço para desigualdades de mérito. O autor reconhece na moral humana

deveres de justiça (distributiva e retributiva) e deveres de caridade. Nos primeiros, exige-se

que o indivíduo não seja obrigado a dar mais do que recebe e não se considera a existência

de desigualdades de origem não social (como a diferença de inteligência). Aceitam as

desigualdades de mérito. Mas os deveres de justiça são insuficientes, haja vista que, se

apagam desigualdades fortuitas como o nascimento, não afastam, no nosso exemplo,

desigualdades de inteligência, que também comportam diferentes sortes individuais. Com o

dever de caridade mesmo as desigualdades de mérito se apagam e prevalecem os sentimentos

de fraternidade humana. Mas a prevalência desse ideal, que poderia conduzir a um

igualitarismo completo, é impossível em seu tempo, adianta Durkheim (1980).

Nonet e Selznick (1978) desenvolvem um quadro analítico-comparativo das

experiências “sócio-legais” da modernidade ocidental. Assim, apontam três configurações.

Uma primeira em que a lei serve a um poder repressivo; outra em que a lei se diferencia

em instituições hábeis a controlar a repressão e proteger a integridade legal; e uma terceira

onde a lei promove maior responsividade às aspirações e demandas sociais. Constituem-se

como concepções abstratas, cujos referenciais empíricos não são facilmente apreensíveis.

Além de distinguir esses três tipos de direito (configurações sócio-legais),

repressivo, autônomo e responsivo, os autores defendem que cada qual constitui um

estágio de evolução do direito face à ordem social e política. Logo, reconhecem uma

pluralidade de experiências legais e fixam como estratégia analítica, uma concepção

evolutiva. O direito contemporâneo contém, portanto, elementos de cada um dos tipos de

direito, o que não afasta a identificação de uma linha evolutiva.

O direito repressivo foi o primeiro, pois lidou com o problema da fundação

da ordem política. A partir desse estágio o direito autônomo pôde se desenvolver no

sentido de controlar o poder repressivo pelo “governo das leis”. E sobre os fundamentos

desse segundo estágio, o direito responsivo emergiu a fim de criar mecanismos de

autocorreção das instituições jurídicas, atendendo às demandas sociais, ainda que em

detrimento do formalismo jurídico (Nonet e Selznick,1978; Eisenberg, 2003).

Essa evolução não significa que, por exemplo, o direito responsivo seja

inerentemente preferível ao direito repressivo, ou ao autônomo, pois o modelo de direito,

para ser funcional, deve ser compatível com os valores e características gerais da

organização sócio-política em que atua. Mas ele será sim preferível numa sociedade que

experimenta um alto grau de modernização e democratização.

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No direito repressivo, é máxima a fragilidade (ou mesmo ausência) de

integridade do direito, pois este se encontra integrado à política. O direito serve como um

instrumento, uma ferramenta flexível ao sabor dos impulsos de conservação do poder das

autoridades, à garantia de privilégios e à vontade dos vencedores. Mas o direito tem uma

capacidade limitada de assegurar a legitimidade do poder, pois se encontra maculado na

base pela subordinação: o poder repressivo é o que de fato atua.

Essa configuração não se torna problemática enquanto é grande a passiva

aquiescência aos ditames do poder. No entanto, quando a estabilidade da ordem social

passa a depender mais do consenso e são ampliadas as demandas por controle do poder,

emerge o direito autônomo para suprir as fragilidades do direito repressivo.

Tem-se a primeira transição: do direito repressivo ao direito autônomo. Este

surge como um recurso para controlar o poder repressivo, satisfazendo aspirações políticas

e legais. Emergem instituições legais especializadas e com relativa autonomia para

vindicar sua supremacia dentro de certas esferas de competência previamente definidas.

O direito autônomo conforma de fato uma estratégia de legitimação. Ao

passo que restringe o exercício do poder, também o protege de revoltas e de críticas

potenciais, visto que fornece fundamentos para aquele exercício e transfere para

instituições especializadas a certificação da legitimidade, assentando-se assim o papel

revisional das Cortes. O direito separa-se da política. O sistema judiciário se torna

independente, estabelecendo-se uma clara demarcação entre as funções judiciais e

legislativas 15. Girando sobre o arcabouço legal, o direito autônomo confere independência

às instituições jurídicas, mas se subordina às políticas inscritas na ordem legal. Se não atua

mais como uma massa amorfa a serviço das autoridades, converge com o direito repressivo

por permanecer firmemente identificado ao Estado. Pode-se concluir que, no direito

autônomo, a integridade do direito é máxima (ou maior), enquanto é muito restrita sua

abertura às demandas sociais, canalizadas para as instituições políticas representativas.

Ocorre que, restringindo a autoridade dos governantes e fixando as

obrigações dos cidadãos, o direito autônomo acaba encorajando posturas críticas que

tendem a minar o “governo da lei”. Uma série de pressões, expectativas e oportunidades

passam a ser vislumbradas, atuando no sentido de quebrar a autonomia e reintegrar o

direito à política e à sociedade. A longo prazo, configura-se uma dinâmica de mudança, dando 15 No direito autônomo os reclames por justiça substantiva não assumem o primeiro plano; justiça e regularidade consubstanciadas no formalismo jurídico merecem a ênfase da ordem jurídica. A obediência à lei firmada pelo direito positivo serve de norte, enquanto as críticas às leis devem afluir para o processo político. “Procedimento é o coração da lei” (Nonet e Selznick, 1978: 54).

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curso a expectativas de que o direito (e a lei) possa responder flexivelmente aos novos

problemas e demandas sociais (maior abertura do direito). O direito responsivo emerge

como possibilidade de abertura institucional e legal hábil a satisfazer de forma mais eficaz

e eficiente os reclames sociais.

Conforme o modelo de direito responsivo, a boa lei, mais do que promover

um procedimento justo, também precisa ser competente para auxiliar na definição do

interesse público e no compromisso a dar lastro à concretização da justiça substantiva. A

contrapartida negativa pode ser a perda de integridade do direito, consubstanciada na

incapacidade da lei em restringir o poder das autoridades e fixar as obrigações e a

obediência dos cidadãos. Esse resultado perverso seria fruto do enfraquecimento das

normas procedimentais e da excessiva problematização das regras em geral. Pode então

instaurar-se um estado onde cada qual faz o quer, com o perigo de um estado de natureza

hobbesiano, ou de regredir-se à repressão desmedida e sem controle.

Como dito, o direito responsivo, mais que preso ao formalismo jurídico,

atém-se aos fins substantivos. “Ele percebe as pressões sociais como recursos de

conhecimento e oportunidade para autocorreção” (Nonet e Selznick, 1978: 77). Esse

centramento promove maior racionalidade ao pensamento jurídico. Contudo, torna-se mais

difícil distinguir a análise legal da análise política, ou a racionalidade legal de outras

formas sistemáticas de construir decisões. Mas isso não deve degenerar para uma confusão

entre política e direito, como no período repressivo. A integridade deve ser mantida.

Para a finalidade ganhar autoridade tanto afirmativa quanto crítica, a lei precisa ser hábil a elaborar, à medida que se generaliza [devido à abertura], os mandatos das instituições legais. Portanto, uma fase crítica do direito responsivo é a definição de missão, isto é, a tradução do fim geral em objetivos específicos (Nonet e Selznick, 1978: 83).

Outro ponto fundamental para os fins substantivos refere-se à existência de

recursos, sem o quê a produção normativa por si só é insuficiente. Aqui se torna ainda mais

patente a necessária combinação entre autoridade legal e vontade política. Os autores

conjugam a eficácia e efetividade do direito responsivo a uma ética da responsabilidade,

além do já referido alto e crescente grau de democratização da sociedade. Pode-se então

afirmar que sem uma cultura cívica espraiada pelo tecido social parece impossível o

sucesso do direito responsivo. Por seu turno, ele promove civilidade. “O direito voltado

para os fins contribui para a civilidade porque ele é informado por uma ética da

responsibilidade, e não por uma ética da convicção” (Nonet e Selznick, 1978: 91).

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Ademais, nos termos do direito responsivo, hábil a fundar a lei só aspirações

mais gerais, o que afasta a observância de normas de conduta específicas (paroquialismo).

E as crises ou desafios à ordem pública fornecem os parâmetros que podem fortalecer a

integração social. Essa sensibilidade o direito responsivo compartilha com o repressivo

(diferentemente do direito autônomo). “Direito repressivo e responsivo estão mais

interessados nos resultados, e, portanto, mais prontos para dispor de recursos políticos”

(Nonet e Selznick, 1978: 93). Mas, enquanto no direito repressivo a ordem legal é conquistada

pela subordinação, no direito responsivo ela é negociada. De fato, com maior

democratização, torna-se possível um maior compartilhamento de obrigações. Aqui se acentua

sua distinção frente ao direito autônomo, centrado nas normas e no modelo burocrático e

concebendo a ordem legal como hierárquica e unitária. Ao contrário, o direito responsivo

conjuga aos fins substantivos uma pluralidade de motivos, ou seja, uma multiplicidade e

ampla difusão de recursos para a produção de direitos. Um efeito do direito plural é o de

multiplicar as oportunidades para participação no processo legal de construção do direito.

Os autores citam o exemplo da advocacia social nos Estados Unidos. Os

advogados invocaram a autoridade e fóruns legais como uma alternativa de participação

política. Levantando questões sociais candentes, buscavam não uma manifestação de

vontade política, mas sim uma proclamação (entitlement) legal dos direitos. Tem-se uma

participação não através dos mecanismos representativos inscritos no Poder Legislativo,

mas via Poder Judiciário, podendo dirigir-se também ao Poder Executivo.

Esse quadro exige instituições competentes, conforme um modelo pós-

burocrático de organização, menos rígido, mais aberto à participação, e que transforme as

demandas em recursos para atingir resultados. Mas há aí novos perigos. A participação

ampliada pode tornar precária e problemática a definição e proteção do interesse público,

na medida em que as instituições tornam-se “(1) mais vulneráveis aos desequilíbrios de

poder na sociedade e (2) mais facilmente recaem num foco estreito de preocupações

específicas” (idem: 102). A abertura pode, mais uma vez, minar a integridade, e a

responsividade transformar-se em oportunismo e/ ou repressão arbitrária.

2.4 - Uma Utopia Pós-Moderna

Para Santos (2001), as sociedades capitalistas são formadas por constelações

políticas, jurídicas e epistemológicas, cada qual dividida em seis modos de produção de

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poder, de direito e de conhecimento 16. Assim, o autor apresenta um mapa de estrutura-ação

dividido em seis espaços: doméstico, de produção, de mercado, da comunidade, da

cidadania e mundial. A distinção e a autonomia estrutural dos seis espaços decorreram de

um longo processo histórico, diferenciado segundo o centro, a periferia e a semiperiferia

do sistema mundial. Esse quadro não afasta a centralidade do poder do Estado, do direito

estatal e da ciência moderna, mas reconhece que eles funcionam em articulação com formas

de poder e de direito não estatais e formas de conhecimento não científico.

O autor sustenta que, embora seja consensual a interpretação de que, ao

reivindicar o controle exclusivo sobre um território, o Estado moderno fundiu os espaços

da cidadania e da comunidade, este último se manteve autônomo como locus de relações

sociais, em especial nas sociedades periféricas. Menciona inclusive que “Nos Estados

islâmicos, organizados segundo a lei islâmica, a Shari’a, pode até afirmar-se que, em

oposição à experiência ocidental, foi o espaço da comunidade que absorveu o espaço da

cidadania” (Santos, 2001: 276).

Enquanto o espaço da cidadania é organizado pela obrigação política

vertical (relação Estado/ cidadão), o espaço da comunidade usualmente observa obrigações

políticas horizontais (relação cidadão/ cidadão, família/ família, clã/ clã), firmadas na

identidade de seus membros. Como a identidade opera segundo o dualismo inclusão x

exclusão, ou seja, envolve o poder de definir o “outro”, compreende-se a existência de

lutas entre definições imperialistas e definições subalternas de identidade. Não raro se dá

uma atribuição de significado determinista a características particulares de grupos sociais,

levando ao racismo e a discriminações diversas (etnocentrismo, xenofobia, sexismo,...).

No espaço da cidadania, a dominação é a forma de poder. Refere-se ao

poder político, nos termos das teorias liberal e marxista. É a forma de poder mais

institucionalizada, mais auto-reflexiva (pois se “vê” como forma de poder) e mais “espalhada”

entre as demais constelações de poder.

Se o autor fala em formas de poder, também distingue formas de direito:

doméstico, da produção, da troca, da comunidade, territorial (estatal), e sistêmico 17. Para

Santos (2001: 171), “o direito estatal, por muito importante e central, foi sempre apenas uma _______________________________________________________________________________________ 16 Confira-se o quadro no Anexo, onde são discriminadas as diferentes formas de direito, de poder e de conhecimento, segundo o modelo analítico de Boaventura de Sousa Santos (2001). 17 Entende-se como direito “um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, considerados justificáveis num dado grupo social, que contribui para a criação e prevenção de litígios, e para a sua resolução através de um discurso argumentativo, articulado com a ameaça da força” (Santos, 2001: 290).

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entre as várias ordens jurídicas integrantes da constelação jurídica da sociedade; embora as

diferentes constelações do sistema mundial variassem muito do centro para a periferia,

combinaram sempre as ordens jurídicas estatal, supra-estatal e infra-estatal”. Mas, dado o

amplo aceite na cultura jurídico-política e no senso comum da associação direito/ Estado,

propor um pluralismo jurídico equivale, nos termos do autor, a des-pensar o direito;

esforço que demanda novos instrumentos analíticos hábeis a superar o dualismo Estado/

sociedade civil.

As diferentes formas de direito se articulam e se hibridizam, assumindo uma

configuração específica em cada ordem jurídica. Assim, por exemplo, na periferia do

sistema mundial, a intervenção jurídica do Estado no agregado doméstico foi mais fraca e

menos diversificada que nos países centrais. Boaventura acrescenta que, atualmente, dada a

crise do Estado regulador, observa-se um relativo enfraquecimento do direito estatal

acompanhado pelo fortalecimento dos demais tipos de direito, especialmente do direito da

produção, com a “desregulamentação” das relações trabalhistas, e do direito doméstico, já

que a redução e a degradação de serviços e prestações sociais levaram a retrair o alcance e

a intensidade da penetração jurídica do Estado no espaço doméstico.

O direito territorial ou estatal é o direito do espaço da cidadania. Central nas

sociedades modernas, seu caráter arbitrário inicial foi-se dissipando ao longo dos últimos

duzentos anos, invadindo o cotidiano dos indivíduos e de diferentes grupos sociais. Seu

valor é estratégico exatamente por ter se disseminado através dos diferentes espaços

estruturais. Vale ainda mencionar o direito sistêmico, a forma de direito do espaço

mundial, constituído pelas regras que organizam a hierarquia centro/ periferia e as relações

entre os Estados-nação no sistema inter-estatal. Nesse sentido, as lutas emancipatórias

transnacionais pelos direitos dos grupos sociais oprimidos de todo o mundo voltaram-se

contra essa forma de direito, que, afinal, regula a troca desigual. Por isso, conclui o autor,

um direito cosmopolita precisa ser um direito anti-sistêmico.

O quadro teórico proposto por Santos (2001) tem implicações políticas.

Dadas as diversas constelações, o autor firma a autonomia de lutas específicas (feminismo,

sindicalismo, minorias,...), mas, em razão da interação entre as diferentes constelações,

apregoa que as lutas emancipatórias devem estruturar-se em rede. Essa é a condição para

viabilizar um projeto de radicalização da democracia.

Reconhecer a existência de constelações de direitos que aprofundam a vulnerabilização de certos grupos sociais é de extrema importância, quer sociológica, quer politicamente, pois assinala a necessidade de a resistência contra exercícios de poder duplamente legitimados dever exercer-se contra

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todas as ordens jurídicas envolvidas. (...) Além disso, o reconhecimento das constelações de direitos equivale a reconhecer que as práticas e as lutas emancipatórias têm também de se articular em rede e de se constelar se quiserem ser bem sucedidas. Caso contrário, uma luta isolada contra uma dada forma de regulação pode, involuntariamente, reforçar outra forma de regulação (Santos, 2001: 303).

Boaventura reconhece que, como forma de poder, a dominação presente nas

sociedades democráticas liberais é a menos despótica, já que sujeita a regras e controles

democráticos, a partir de direitos civis, políticos e sociais assegurados constitucionalmente.

O problema é que, a partir do século XIX, o ímpeto democratizante teve de ceder aos

imperativos do capitalismo, convertido no motor de desenvolvimento das sociedades

modernas. Então, muitas relações sociais não puderam ser reguladas conforme as

demandas democráticas radicais da modernidade. Ao contrário, em certos âmbitos as

relações sociais tornaram-se ainda mais despóticas, como no espaço da produção. O caráter

universal das exigências democráticas não sucumbiu, mas se aplicou apenas a um campo

relativamente restrito de relações sociais: o espaço da cidadania. “Daí que o despotismo

[das outras] formas de direito e de poder tenha permanecido invisível enquanto despotismo

jurídico e político e que, conseqüentemente, não tenha podido ser comparado ou

confrontado com o caráter relativamente democrático do direito e do poder do espaço da

cidadania” (Santos, 2001: 315). Para o autor, as sociedades capitalistas são pouco

democráticas não porque o direito de cidadania seja pouco democrático, mas porque ele

convive com outras formas de direito mais despóticas e essenciais ao funcionamento

dessas sociedades.

Vislumbrando um quadro de transição paradigmática, o autor formula

utopias para reinventar mapas de emancipação social e subjetividades com capacidade e

vontade de usá-los. Nesse contexto, o espaço da cidadania é fundamental para se travar

lutas que garantam experiências emancipatórias. A luta envolve, portanto, uma reinvenção

do Estado, pois exige que este, ao invés de impor formas de sociabilidade, crie condições

para que sociabilidades alternativas sejam experimentadas em cada um dos seis espaços

estruturais. Apresentaremos alguns componentes do horizonte utópico do autor.

No espaço doméstico, há contradição e competição entre o paradigma

dominante da família patriarcal e o emergente das comunidades domésticas cooperativas,

onde a autoridade é partilhada, em termos de sexo e geração, e o direito doméstico é

democratizante. O Estado deve atuar promovendo as últimas.

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No espaço da comunidade, o embate ocorre entre o paradigma de

comunidades-fortaleza e o paradigma das comunidades-amiba. No primeiro caso, têm-se

comunidades exclusivas, agressiva ou defensivamente, ou seja, fechadas ao exterior a

partir de critérios de identidade. Comunidades indígenas servem como exemplo defensivo,

enquanto sociedades colonizadoras de exemplo agressivo. As comunidades-amiba, ao

contrário, são marcadas por uma identidade múltipla e inacabada e um constante processo

de construção e reinvenção. Por isso, são inclusivas e permeáveis a contatos interculturais.

São exemplos movimentos de defesa dos direitos humanos em todo mundo, movimentos

populares latino-americanos, bem como comunidades eclesiais de base. Nesse caso, o

Estado deve atuar para garantir a proliferação de comunidades-amiba, para o que uma

primeira medida de experimentação social pode ser erigir o multiculturalismo como

princípio base de toda a atividade estatal.

A democracia radical caracteriza o paradigma emergente e envolve a

democratização global das relações sociais, observando tanto a obrigação política vertical

cidadão/ Estado, como a obrigação política horizontal entre cidadãos e associações. Nesse

sentido, a democratização do espaço da cidadania só assume contornos emancipatórios se

conjugada à democratização de todos os demais espaços estruturais, e mais: a cidadania só

é sustentável caso transcenda o espaço da cidadania. “O paradigma emergente constitui,

portanto, uma ampla expansão e dispersão do direito democrático, dos direitos humanos e

da cidadania. Por exemplo, os direitos e os deveres consagrados pelo direito do espaço

doméstico não se confundem com os direitos e os deveres consagrados pelo direito estatal

da família, mas o potencial democrático de cada um dos tipos de direitos e deveres resulta

da articulação entre eles” (Santos, 2001: 340).

Ademais, a democracia deve abranger os espaços-tempo local, nacional e

transnacional e tanto no tempo presente como em relação às gerações futuras. Para efetuar

essa transição, ao Estado compete transferir prerrogativas suas a associações e instituições

não-estatais que, por seu compromisso com a democracia e com a participação política,

promovam espaços públicos não-estatais, propícios às formas emergentes de sociabilidade.

No espaço mundial, em lugar do desenvolvimento desigual e da soberania, o

paradigma emergente deve pugnar por soberanias permeáveis e pelo fim da hierarquia

Norte-Sul, com uma globalização contra-hegemônica baseada no cosmopolitismo.

Instâncias parciais de governança transnacionais e governos articulados em rede podem

contribuir para que novas formas de sociabilidade internacional aflorem.

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Frise-se que, à luz das propostas utópicas, a competição entre os paradigmas

moderno e pós-moderno não se afina a rupturas revolucionárias. Ademais,

deve-se ter sempre em mente que a experimentação social não é levada a cabo por vanguardas que representem algo mais para além de si próprias. É antes levada a cabo por grupos sociais inconformados e inconformistas que, por um lado, se recusam a aceitar o que existe só porque existe e, por outro, estão convictos que o que não existe contém um amplíssimo campo de possibilidades. Na transição paradigmática, o inconformismo é, em si mesmo, uma mera semi-legimitidade que se vai completando com a ampliação do círculo do inconformismo (Santos, 2001: 343).

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Capítulo 3: Modernidade Periférica – O caso brasileiro

Após deslindarmos os contornos da modernidade central, cumpre ressaltar

as peculiaridades que marcaram nosso desenvolvimento sócio-histórico. Afinal, serão esses

elementos que explicarão em grande medida o desenvolvimento diverso observado pela

cidadania no Brasil, em comparação aos países centrais.

Inicialmente, vale trazermos à baila Raízes do Brasil, obra originalmente

publicada em 1936, onde Sérgio Buarque de Holanda (2002) destaca a presença de raízes

ibéricas em nossa formação. Cultura da personalidade, ausência de espírito associativo,

falta de hierarquia organizada e de coesão, todos são elementos que se conjugam na

evolução dos povos ibéricos e, por conseqüência, do brasileiro.

Entre espanhóis e portugueses, hierarquias baseadas em privilégios,

sobretudo hereditários, tinham menos valor que o prestígio pessoal. “Nunca [espanhóis e

portugueses] se sentiram muito à vontade em um mundo onde o mérito e a

responsabilidade individuais não encontrassem pleno reconhecimento” (Holanda, 2002:

37). A valorização da pessoa e da autonomia individual conformava uma cultura da

personalidade pouco propícia a formas associativas fundadas em laços solidários ou a

estruturas racionalmente hierarquizadas. Prevalecia a frouxidão organizacional, e o

privatismo anárquico figurava como elemento congênito à nossa formação societal, sendo

inútil buscar ordem na “tradição”. À falta da racionalização da vida gerada pelo

protestantismo, o governo agiu como princípio unificador, forjando uma “organização

política artificialmente mantida por uma força exterior, que, nos tempos modernos,

encontrou uma das suas formas características nas ditaduras militares” (idem: 38).

Para o autor, a solidariedade fundada em relações de interesse promove

ordem. Mas entre os ibéricos a solidariedade advinha da vinculação de sentimentos, o que,

somada à autarquia individual e ao culto da personalidade, minava a eclosão de

compromissos fundados em interesses, os quais têm relação com o esforço humilde e

anônimo característico de uma ética do trabalho. Por isso, a produção de um bem maior

não raro exigia dos ibéricos a renúncia à própria personalidade. Nesse sentido,

mandonismo e obediência são características antitéticas que convivem entre si. “Não existe

(...) outra sorte de disciplina perfeitamente concebível, além da que se funde na excessiva

centralização do poder e na obediência” (Holanda, 2002: 39). Ora, num mundo moderno,

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que demanda crescentemente ações e relações racionalizadas, a obediência “cega” afigura-

se indesejável como princípio de disciplina.

Na esfera dos negócios, não se podia chegar a uma adequada racionalização.

As preferências se erigiam contra aplicações regulares de normas de justiça e de

prescrições legais. Ainda, os empreendedores não se mostravam capazes de se associarem

livre e duradouramente. É certo que trabalhos coletivos existiam, mas ocorriam em razão

de sentimentos e emoções coletivos, como em festas religiosas, ou em práticas como a do

mutirão, que não se liga à cooperação disciplinada e constante, mas sim à prestância, onde

importa mais o benefício que uma parte faz à outra. Nesse caso, o objetivo material do

trabalho vale menos que o vínculo entre os indivíduos. São vínculos de pessoa à pessoa.

Aqui vale reportar a cordialidade. Influência de padrões de convívio

forjados no meio rural e patriarcal brasileiro, trata-se de uma forma de expressão carregada

de emotividade, manifesta, v.g., na hospitalidade e generosidade que impressionam

estrangeiros. Para o autor, a civilidade contém algo de coercitivo, expresso em sentenças e

mandamentos. Por isso, a polidez serve ao indivíduo como reserva ante o social. Já a

cordialidade tem efeito reverso, pois nela o individualismo aparece “focalizado de outro

ângulo e se manifesta como relutância em face da lei que o contrarie. Ligada a ele, a falta

de capacidade para aplicar-se a um objetivo exterior” (Cândido, 2002: 17).

Para Holanda (2002), a distinção entre Estado e sociedade reside na

circunscrição de um espaço público, onde predominam aspectos coletivos e não interesses

pessoais assentados em laços íntimos ou familiares. Mas foram estes os que marcaram a

evolução de nosso sistema político-administrativo, caracterizado de patrimonial pelo autor,

em oposição ao moderno modelo burocrático weberiano firmado em laços formais e

abstratos. Mesmo quando instituições democráticas, assentadas em princípios neutros e

abstratos, regeram a sociedade, “as relações que se criam na vida doméstica sempre

forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós” (idem: 146).

Esses não são resíduos a-históricos, nem está em pauta um retrato estático.

O autor, em 1936, indicava que o processo de urbanização exigia atitudes que

transcendiam a mentalidade circunscrita ao meio patriarcal. Tendência que aumentava com

a ampliação da influência das cidades, não sem promover desequilíbrios sociais. Em

verdade, Holanda fala de uma sociedade em transição, dados os impactos da modernização

e indaga-se sobre a possibilidade dela lograr o êxito de países centrais.

A transição iniciou-se com a vinda da família real portuguesa em 1808. O

crescente cosmopolitismo do convívio citadino abria novos horizontes e assim firmava-se

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gradualmente a distância entre a parcela culta e a massa da sociedade, fato evidente em

todos os momentos significativos da vida nacional (Holanda, 2002). Aliás, o autor nota que

os movimentos aparentemente reformadores sempre correram de cima para baixo.

Mas a abolição da escravatura, em 1888, foi o verdadeiro marco para a

eclosão da revolução brasileira, pois abriu caminho para o declínio do predomínio agrário e

a ascensão de um novo sistema baseado nos centros urbanos. Trata-se de uma revolução

lenta, ainda em curso em 1936, mas de rumo seguro, apontando para a modernização do

Brasil e a conseqüente mudança de nossa estrutura social. Dessa maneira, o iberismo, que

se confundia com o agrarismo, vê-se gradativamente reduzido, enquanto ascende a

influência americana, que, contudo, ainda não fora capaz de ocupar nossa “alma”.

Para o autor, essa revolução só terá êxito se compatível com a democracia.

Para isso, mais que a dissolução da sociedade agrária, devem ser extirpados os elementos

personalistas e aristocráticos de nossa sociedade. Só quando eliminadas as sobrevivências

arcaicas da velha ordem colonial e patriarcal, colheremos os frutos de nossa revolução,

quais sejam as conseqüências morais, sociais e políticas de uma modernização completa.

Por que eliminar o personalismo? Porque ele afina-se às conveniências

particulares, em detrimento das coletivas; e gera o predomínio do emotivo sobre o racional,

limitando a solidariedade a círculos restritos, compatíveis com uma ordem oligárquica. Nas

modernas sociedades de massa, ao contrário, a solidariedade deve assentar-se no interesse

econômico que une um grande número de indivíduos e permite a formação de partidos. Daí

nunca ter aqui vigido uma democracia efetiva, ao menos até 1936.

Portanto, o autor conjuga uma mudança cultural à reorganização política em

moldes democráticos. Trata-se de deixar aflorar relações de interesse, impessoais e neutras,

associadas à conformação de uma esfera pública livre dos privatismos e personalismos de

um regime oligárquico. Aí pode ter curso uma revolução vertical que, pela democratização

do poder, poderá trazer ao governo os elementos mais vigorosos do povo. Não se trata,

note-se, de adotar princípios exóticos ou teorias alienígenas e promover revoluções

horizontais, ou seja, manobras de cúpula, como freqüente na América Latina. “As formas

superiores da sociedade devem ser como um contorno congênito a ela e dela inseparável:

emergem continuamente das suas necessidades específicas e jamais das escolhas

caprichosas” (Holanda, 2002: 188).

Para o autor, é possível encontrar algumas características de nossa formação

nacional favoráveis à revolução moderna e democrática: a recusa a hierarquias ou

organizações que minem a autonomia individual; a irresistível urbanização, trazendo

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influências cosmopolitas e modernas, usualmente aliadas de idéias democrático-liberais; e

a “relativa inconsistência” de preconceitos de raça e de cor 18. Esses aspectos não afastam a

liquidação das raízes como um imperativo histórico, cujo rumo era traçado pela

“civilização urbana e cosmopolita, expressa pelo Brasil imigrante [e] que há quase três

quartos de século vem modificando as linhas tradicionais” (Cândido, 2002: 20).

Já utilizada por Sérgio Buarque de Holanda (2002), também Raymundo

Faoro recorre à noção weberiana de patrimonialismo para explicar a conformação do

Estado e sociedade brasileiros. Mas se o primeiro autor identificou as raízes ibéricas e um

processo de modernização que as superava gradativamente, o segundo plasmou a idéia de

estamento, o qual se apossou do Estado e se reproduziu como sobrevivência a-histórica,

embora com roupagens diversas conforme o período 19.

Remontando à Revolução de Avis de 1383, o Estado patrimonialista 20 que

então se desenhava exigia um quadro administrativo, já que, além de arrecadar receitas, era

preciso administrar os negócios do Estado (ou melhor, da Coroa), que se incrementavam

ao ritmo do comércio marítimo. A Administração conformou uma corporação de poder,

que se estruturava em uma comunidade: o estamento.

Enquanto a classe, numa explicação de forte matiz weberiano, está

relacionada à agregação de interesses econômicos, segundo a situação de mercado; o

estamento compreende uma distribuição de poder, conforme a estratificação social, que,

para Faoro (2000), embora economicamente condicionada, não resulta na absorção do

poder pela economia. Enquanto os estamentos governam, assemelhando-se a órgãos do

Estado, as classes negociam, fixando-se como categorias sociais (de feição econômica).

A situação estamental consubstancia-se no prestígio e na honra social que

uma camada infunde sobre toda a sociedade. Esta consideração social é correlata a um

modo ou estilo de vida. Para um indivíduo se integrar ao estamento, ele deve possuir certas

qualidades, cunhadas em sua personalidade e que lhe conferem certo perfil. Assim, o

estamento tem na desigualdade social seu lastro, e o seu fechamento de comunidade provoca

_______________________________________________________________________________ 18 Nessa “relativa inconsistência” merece acento o “relativa”.

19 Schwarzman (2003) sustenta que essa visão a-histórica de Faoro o afasta em parte de uma interpretação propriamente weberiana.

20 Faoro esclarece que, na monarquia patrimonial portuguesa, o rei era senhor da riqueza territorial e dono do comércio, conduzindo a economia como empresa sua, elevando-se sobre todos os súditos. Nesse sistema, ao contrário da rigidez dos privilégios e obrigações feudais, os servidores prendem-se numa rede patriarcal, em que representam a extensão da casa do soberano. Os auxiliares formam quase que uma nobreza própria, competindo com a nobreza territorial. Assim, economia e administração conjugam-se na propriedade rural, ansiosa esta de se livrar das teias reais.

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a apropriação de oportunidades econômicas, que pode se extremar no monopólio de

atividades lucrativas e de cargos públicos. Segundo Faoro, o estamento, além de impedir o

mercado de expandir sua virtualidade de negar as distinções pessoais, prima pela

estabilidade, pois transformações técnicas ou sociais podem enfraquecê-lo.

O autor nota que, no sistema colonial português, a burguesia comercial

desenvolveu-se sob o controle e dependência do Estado. A unidade do governo assentava

sobre dois feixes de funções públicas, mantendo a centralização e contendo as forças locais

autonomistas: o funcionário de origem cortesã e o agente local, ambos exercendo suas

atribuições em nome do rei. O cargo atraía todas as classes, pois infundia autoridade e

conferia acesso ao estamento, desiderato também partilhado pela burguesia.

Já independente o Brasil herda o domínio do estamento. Tanto o predomínio

da Coroa, baseado no Poder Moderador, como o voto manipulado, não seriam as teias

constitutivas do sistema político, e sim o estamento, em movimento renovador da tradição

e atropelando as teorias modernizadoras e liberais importadas. Ele, o estamento, se armou

por sobre as classes, mantendo o controle do Estado, burocratizando-se, dentro de um

quadro em que o emprego público conferia poder e glória. Além disso, o patrimonialismo

atuava na confusão entre público e privado que subjazia às leis e medidas administrativas.

À época, configurou-se um paradoxo que ainda nos auxilia a compreender a

cultura política brasileira. Segundo o autor, o Estado imperial firmou-se como entidade

superior e alheia ao povo, transmitindo-lhe a sensação de que o indivíduo nada podia,

enquanto ele, Estado, afigurava-se onipotente. A lógica era inversa ao ideal democrático de

que a soberania deveria fluir de baixo para cima. A camada dominante contrariava tal

ideal, sob o argumento de que a sociedade brasileira seria incapaz de governar a si mesma.

Firmava-se um círculo vicioso: “o povo não tem capacidade para os negócios porque o

sistema lhe impede neles participar” (Faoro, 2000a: 444).

Note-se que o domínio estamental guarda relação com a preponderância do

poder central. No entanto, mesmo na República Velha não houve autonomia local. O

principal era o comando estadual, sólido quando apoiado pelo Presidente da República,

conforme à política dos governadores. O governador tinha domínio das eleições

municipais, pois controlava os meios financeiros dos quais dependiam os municípios. Os

chefes locais, os coronéis, eram obedientes ao governador, o qual, além de intermediar,

quando o caso, favores entre a União e as comunas, valia-se da milícia estadual para

manter a ordem estabelecida. Faoro cita as palavras de João Pinheiro, governador em 1907,

orientando um chefe político: “Diga sempre que é solidário com o governo. Tudo se reduz

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a obedecer. Obedeça e terá politicamente acertado. Do contrário, o senhor sabe, estou eu

aqui com o facão na mão para chamar à ordem aqueles que se insurgirem. A minha missão

principal é essa: manobrar o facão, ou em cima, quando se trata de política federal, ou em

baixo, quando da estadual. O nosso meio de orientação é esse. Portanto, olho no facão, não

esqueça e faça boa viagem” (Faoro, 2000b: 251).

A sucessão presidencial era deliberação exclusiva dos chefes estaduais,

revelando mordaz assimetria no plano mais alto da pirâmide, consubstanciada na

hegemonia dos grandes estados, que, no desenho da política dos governadores, eram os

responsáveis de fato pela escolha do Presidente da República.

Eclode a Revolução de 1930 e depois o Estado Novo. Qual a explicação do

autor para a emergência de um Estado forte sob o comando de um chefe ditatorial? Trata-

se do hiato entre Estado e nação, dirigida esta por um organismo alheio: o estamento. Era o

legado português: a “túnica rígida do passado” (idem: 381), recorrente e sufocante.

As instituições não poderiam obedecer ao moldes da Constituição de 1934.

O novo regime propôs-se modernizar a nação, gerando o desenvolvimento econômico e

agradando industriais, operários e os anseios tenentistas. Ele dispensou a participação

popular, mas não dominou a sociedade. Era autoritário, mas não totalitário. Nele não teriam

predomínio as oligarquias e sufocado seria o coronelismo. Só a burocracia se instalaria

entre o povo e o ditador, unidos estes sob o carisma do líder, gerando o populismo de

cunho autoritário. Vigia um esquema administrativo de vestes tecnocráticas, sem observar

o corporativismo da nova Carta de 1937. A ditadura pessoal era o mote do poder e o meio

de tentar conciliar os grupos em conflito, denunciando a crise que o abateria.

Em Faoro, sempre fica patente a inatividade do povo na ordem política. O

povo aparece como corpo inorgânico, a ser protegido ou temido. Não se conforma também

uma esfera pública onde possam ser contrapostos os desígnios autoritários da camada

dirigente estamental. Esta coopta os interesses presentes na sociedade civil, impedindo que

a justiça social prevaleça, perpetuando a desigualdade. Público e privado se confundem

dentro da máquina estatal, impedindo a formação de um verdadeiro Estado de Direito

liberal-democrático. Carecemos de uma ordem social aberta à organização da sociedade

em classes, onde liberdades econômicas são garantidas pelo Estado de direito, pondo em

xeque a irracionalidade formal característica do patrimonialismo (Silveira, 2006).

Nesse sentido, Campante (2003), ao discutir a noção de patrimonialismo em

Faoro e Weber, entende que ela informa parte dos argumentos que, nos anos 1990,

satanizaram o Estado, pretendendo refundá-lo sobre bases pretensamente modernas.

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Segundo o autor, o liberalismo clássico não continha a democracia como vetor

indispensável. Inicialmente, a liberdade era conferida aos indivíduos proprietários como

proteção frente ao arbítrio do Estado. Foi com a pressão das camadas populares que se deu

a aliança liberalismo/ democracia. Ocorre que, no Brasil, a pressão popular teve menor

intensidade. Enquanto nos países centrais aquela associação deu curso a direitos universais

e garantias fundamentais, aqui ela assumiu o caráter de uma promessa a ser cumprida num

futuro moderno. Seguindo a trilha de Faoro, para Campante (2003) temos um

patrimonialismo disfarçado de modernidade, dada a precariedade do Estado de direito, com

uma tensa e incessante disputa entre normas firmadas em bases universalistas e normas,

por vezes implícitas, da cultura do favor. Deu-se “uma modernização do país, que se opõe

à verdadeira modernidade e a recobre – na primeira, o benefício é auferido apenas pelos

setores dominantes; na segunda é que ocorre, como nos EUA e na Europa Ocidental, uma

revitalização de toda a sociedade, revitalização ausente e/ ou tolhida no Brasil” (idem: 185/

186).

A nosso juízo, o acentuado exagero de Faoro no papel do Estado como

garante da ordem jurídica formal, intervindo menos na esfera econômica, talvez se

justificasse em razão do momento coberto pelo autor. É certeira a necessidade de preservar

as liberdades políticas e concretizar um Estado democrático de direito. Mas as

preocupações do autor acabam projetando um quadro que diminui o papel do Estado como

promotor de desenvolvimento não só econômico, mas também social, ou seja, onde a

cidadania não se limite a liberdades negativas.

Vale também reportar a perspectiva de Schwartzman (1982) sobre o sistema

político brasileiro, outro autor que recorre à categoria “patrimonialismo”. Assim, firma

que, em nossa história 21, as elites regionais do Centro, Nordeste e mesmo do Sul do país se

preocuparam menos com a representação de seus interesses no centro político nacional do

que com seu acesso a posições de poder e prestígio em um regime político centralizado.

Nesse contexto, os esforços de autonomia local são cooptados pelo centro, ou suprimidos

pelas elites locais apoiadas pelo governo central.

O autor esclarece que, se um regime político baseado na centralização de

poder e na cooptação de setores mais ativos tende à excessiva burocratização e à política de

distribuição de recursos entre clientelas eleitorais, uma política de tipo representativo tende

_______________________________________________________________________________ 21 Nossa referência do trabalho Bases do Autoritarismo Brasileiro, de Simon Schwartzman, foi editada em 1982. A análise então desenvolvida tem por termo final o período de abertura democrática (fim do regime militar) na década de 1980.

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a responder de forma mais direta e explícita às demandas de seus constituintes e, por isso, a

ser mais clara na definição de objetivos e políticas governamentais. Schwartzman (1982)

pensa estas categorias como integrantes de um processo em curso no Brasil. Desse modo, a

política cartorial e clientelística deve ser vista como uma resposta de uma administração

centralizada de base patrimonialista a uma demanda crescente de participação por parte de

grupos antes excluídos dos benefícios do poder.

Cabe ainda considerar o papel da administração central frente ao

desenvolvimento sócio-econômico do país. Embora o Estado brasileiro tenha sido,

historicamente, o centro de onde emanam o clientelismo político e a ineficiência, é certo

que a sua estrutura deu curso a alguns objetivos importantes e de longo prazo. Em que

pese, igualmente, o fato de a representação política e a descentralização relacionarem-se

historicamente à política de interesses privatistas, elas têm sido úteis para garantir a

vigência de alguns valores básicos de liberdade e pluralidade e, com isso, aumentar cada

vez mais o leque de beneficiários presentes e futuros do desenvolvimento.

Ante esse quadro, Schwartzman (1982) aponta o duplo trabalho a ser

desenvolvido: (1) transformar as estruturas e atitudes políticas presentes nas divisões

regional e ideológica do país; e (2) desburocratizar a ação estatal, tornando-a menos

autoritária e clientelística.

Um autor ainda hoje centro de ferrenhas polêmicas é Gilberto Freyre. Se

isso já é suficiente para consultá-lo, suas obras trazem reflexões sutis sobre detalhes não

raro despercebidos da vida social brasileira. No presente trabalho, exploraremos a obra

Sobrados e Mucambos, destacando alguns elementos que, a nosso juízo, são relevantes

para compreendermos o processo de modernização de nossa sociedade.

A vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, foi o marco inicial de

nosso processo de modernização. Ali tomou impulso a modificação das antigas

características coloniais, tendo curso uma reestruturação social, econômica e cultural que

ganharia os contornos de uma reeuropeização. Como se trata de um marco, é certo que as

tendências modernizantes já se manifestavam anteriormente, sobretudo desde a descoberta

das minas, e que seus desdobramentos, pode-se dizer, ainda não se esgotaram.

Na narrativa de Freyre (2000), o sobrado e o mucambo são símbolos

opostos da modernidade que tomou conta do século XIX, substituindo a casa grande e a

senzala. Representavam uma mutação nos processos de subordinação e de acomodação

entre as classes, as raças e as culturas. Retratavam o declínio que, a partir do século XVIII,

sofreu o patriarcado rural. Sob a batuta deste prevaleciam os processos de acomodação,

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num regime onde claramente delimitado o topo hierárquico. O filho, a mulher e os

escravos encontravam-se sob a autoridade do senhor rural, que, sem adversários, “reinava”

em seus domínios, protegendo de modo paternal seus subordinados, ao mesmo tempo que

suas ações despóticas não encontravam resistência. Na época da casa grande e da senzala, a

prevalência dos processos de acomodação era a única forma de se manter o equilíbrio do

sistema, evitando que a subordinação se convertesse em rebeldia.

Quando uma série de poderes começou a se intrometer entre o senhor e seus

subordinados, o poder patriarcal, paternal e despótico, iniciou seu declínio. Os

antagonismos se acentuaram. Às atitudes paternais decorrentes do vínculo pessoal entre

senhor e escravos corresponderam então relações impessoalizadas, aflorando de modo

mais cru a exploração do trabalho sem uma correlata atitude de proteção. Nas relações

entre filho e senhor, antes marcadas por uma subordinação incondicional do primeiro,

ganha força um novo fator: a “intrusão” de instituições educacionais. A educação recebida

pelos filhos, sobretudo com a ascensão dos bacharéis, representou um elemento de reforço

do antagonismo entre o senhor rural e o novo bacharel. Este se mostrou uma figura mais

adaptada aos influxos modernizantes e europeus, legando gradativamente ao ostracismo o

rústico senhor. Mas, até que esse processo se complete, ambos se aliam no plano político22.

Instituições e serviços também se interpuseram entre o senhor e sua esposa,

diminuindo o controle totalitário sobre esta. Com os sobrados, a Igreja se fez presente de

forma mais autônoma que a antiga capela construída dentro dos limites da fazenda. Se o

padre passou a cuidar de modo mais exclusivo da vida espiritual da mulher, o médico o fez

de seu corpo. Ademais, toda uma sorte de divertimentos, como teatros, parques e hábitos

ligados à vida urbana, contribuiu para a mulher ter mais contato com a rua, liberando-se do

claustro da casa. Decisiva ainda a influência européia, que, se incentivava o individualismo

dos filhos, alimentava a independência feminina. Esta de caráter relativo, posto comparada

à rígida submissão do tempo colonial.

Ao descrever os elementos emergentes com a modernização, Freyre sempre

releva pontos que considera degradantes. Se era positivo o afrouxamento da subordinação

ao senhor, aumentavam os antagonismos e reduzia-se a proteção paternal. Assim, o domínio

assumia conteúdo mais impessoal, diminuindo o esforço de acomodação e potencializando

os antagonismos. Daí a referência de Freyre ao aumento das revoltas de escravos, onde os

senhores começaram a tratá-los de modo mais impessoal. Longe de ser uma vantagem, o novo _______________________________________________________________________________________ 22 Note-se que a só remissão do autor ao termo aliança já indica a ausência da subordinação, antes obsedante no âmbito familiar, e o antagonismo latente entre as duas figuras.

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quadro exigia que os escravos trabalhassem como máquinas sem os temperos de qualquer

proteção patriarcal.

(...) foi um período de diferenciação profunda – menos patriarcalismo, menos absorção do filho pelo pai, da mulher pelo homem, do indivíduo pela família, da família pelo chefe, do escravo pelo proprietário; e mais individualismo – da mulher, do menino, do negro – ao mesmo tempo que mais prostituição, mais miséria, mais doença. Mais velhice desamparada. Período de transição. O patriarcalismo urbanizou-se (Freyre, 2000: 51).

Houve um declínio dos laços de solidariedade. Nos tempos patriarcais de

colônia, eles recaíram sobre a família e, mais amplamente, sobre o parentesco e a

identidade religiosa. Daí a dificuldade de, nos novos tempos, ampliar seu escopo e formar

associações defensivas de direitos.

Outro ponto importante liga-se às possibilidades de ascensão social

advindas com a ordem urbana. Freyre descreve um processo de diferenciação social, onde

uma gama de objetos e serviços povoa o cenário. A introdução de novas tecnologias e

máquinas alterou a economia e fez-se acompanhar por mudanças na estrutura social. Trabalhos

mecânicos e técnicos demandavam artífices hábeis a desempenhá-los. Os cargos que

surgiam tinham status intermediário. Considerados degradantes pela aristocracia

ruralmente formada, revelaram-se uma possibilidade de ascensão aos negros forros e

mulatos das cidades que se esmeraram em aprender e concorrer com os estrangeiros

pioneiros na introdução das máquinas e técnicas. Assim, a grande distância social entre o senhor

e seus escravos, seus filhos e sua esposa observou uma miríade de papéis que minou o seu

poder autoritário e ofereceu alternativas de ação aos indivíduos. E, ainda, poderes

suprapatriarcais ofereceram resistência aos patriarcas, como a Igreja e o Estado.

Houve uma mudança ética, onde o trabalho começou a se impor. Como

Fernandes (1981) ressaltou, no mercado passaram a residir, cada vez mais, os critérios de

estratificação social. Mas vale a ênfase de Freyre na simbiose entre o antigo e o adventício,

pois, na nova ordem, os agentes emergentes pela via do trabalho e das profissões liberais

esmeravam-se em adquirir os usos patriarcas rurais ainda dominantes.

Freyre distingue a organização patriarcal implantada na colônia brasileira do

sistema feudal europeu pelas flutuações sociais e étnicas que aqui tiveram curso. Na

sociedade brasileira, dois processos se interpenetraram, raramente entrando em choque

violento. Um se refere à integração, amadurecimento e desintegração da forma patriarcal

de organização da família, da economia e da cultura. Embora nunca tenha dominado

inteiramente a realidade social, nunca foi inteiramente ultrapassada. O outro tem relação

com o amálgama de culturas e de raças que nos forjou, atuando como dissolvente de

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limites entre raças, classes e indivíduos. Por isso, o autor fala em processos de acomodação

e subordinação de uma raça à outra, de uma classe à outra, de uma cultura à outra.

Ademais, para Freyre (2000), não é possível compreender os processos de

subordinação presentes na sociedade brasileira se nos remetermos apenas à dominação de

classe. Aqui raça e classe se interpenetraram de tal modo que seriam incompletos critérios

analíticos adotados em paragens européias. Igualmente, descabe falar apenas em domínio

de uma raça sobre a outra. Chave nesta questão é a miscigenação. O elemento mestiço

tornou maleáveis as fronteiras sociais. Na sociedade em urbanização, essa maleabilidade

era potencializada pelos novos canais de ascensão aos indivíduos mestiços, como as carreiras

de militar, de bacharel e as atividades técnicas e industriais. O mestiço, como elemento

intermediário, podia se passar por branco para conquistar a confiança de estratos superiores,

ou por pardo para cativar elementos subordinados na ordem social. “De modo que não era

só de ‘raça parda’ que se passava arbitrariamente á ‘branca’; também da branca se passava

do mesmo modo, à ‘parda’, contanto que o deslocamento correspondesse à conveniência,

para o indivíduo, de interesse político ou social de domínio” (idem: 638).

Mas essa acomodação não era suave, como evidenciavam manifestações de

inquietação e de mal estar de bacharéis mulatos que se sentiam desprezados pela elite

branca e preconceituosa. Freyre atribui a esses sentimentos algumas participações

destacadas desses indivíduos em revoltas. “Mulatos que tendo se bacharelado em Coimbra

ou nas Academias do Império foram indivíduos que nunca se sentiram perfeitamente

ajustados à sociedade da época: aos seus preconceitos de branquidade, mais suaves que

noutros países, porém não de todo inofensivos” (idem: 616).

Destacaremos um último apontamento do autor. Para a compreensão da

sociedade brasileira, além da classe e da raça, deve-se sempre considerar a situação

regional 23 dos indivíduos ou grupos. Destarte, são imprudentes generalizações que

desconsiderem a imbricação destes três elementos – classe, raça e região 24 –, que se combinam

de diversas maneiras. Não que seja impossível firmar generalizações ou a prevalência de

certas características, mas é preciso submetê-las a esses filtros.

23 Note-se que região é aplicada pelo autor em sentido lato. Assim, reconhece diferenças regionais dentro de um mesmo estado, bem como entre regiões do país (Centro-Oeste, Norte, Nordeste, ...).

24 A nosso juízo, essa noção continua válida e seria interessante compreender mais extensamente como ela se configurou de diferentes formas ao longo de nossa história, o que transborda o escopo dessa dissertação. Vale lembrar que um dos elementos que compõem a dupla articulação, apontada por Florestan Fernandes (1981), em nosso processo de modernização dependente, refere-se à diferenciação regional, cujas características são diversas daquelas presentes no período histórico coberto por Gilberto Freyre. De todo modo, firma-se mais uma vez a importância das diferenciações regionais, sem esquecermos que somos uma República Federativa.

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Passemos então à análise do trabalho de Florestan Fernandes (1980), que,

sob prisma diverso, busca explicar a desigualdade social e os parcos termos do Estado

democrático de direito no Brasil. Com efeito, o autor investiga como se concretizou a

Revolução Burguesa brasileira, entendida como o conjunto de transformações econômicas,

tecnológicas, sociais, psicoculturais e políticas que só se realizam plenamente quando o

desenvolvimento capitalista alcança o ápice da evolução industrial, consolidando a

dominação burguesa.

No Brasil, esse processo iniciou-se sob a hegemonia oligárquica imperial.

Não houve uma ruptura com o passado. Aliás, no desenvolvimento capitalista brasileiro

observa-se que os setores dominantes não romperam a associação dependente aos centros

hegemônicos capitalistas; não promoveram a desagregação completa das formas pré-

capitalistas de produção, troca e circulação; nem se empenharam de fato em superar o

relativo subdesenvolvimento evidente na concentração social e regional da riqueza.

Segundo Florestan, a primeira fase do desenvolvimento capitalista brasileiro

correspondeu à eclosão de um mercado capitalista moderno e estendeu-se da abertura dos

portos até meados ou à sexta década do século XIX, com a crise irreversível do regime

escravista. A passagem de uma satelitização colonial para outra, baseada em mercados,

demandava a articulação institucional entre a economia interna e a de nações hegemônicas.

Para tanto, era preciso absorver as estruturas econômicas capitalistas e assim atuou o

mercado capitalista interno, ao emergir sob o influxo modernizador externo. Com isso, a

cidade destacou-se como centro de reaplicação do excedente econômico e de integração do

mercado interno. No entanto, o regime escravista persistiu, dado que o setor agrário não

dispunha de base material para alterá-lo, e os novos grupos econômicos concentraram-se

nas oportunidades que surgiam com o advento do mercado capitalista moderno.

Na segunda fase, deu-se a formação e expansão do capitalismo competitivo.

Entre o fim da fase anterior e a primeira transição industrial significativa, na década de

1950, implantou-se uma nova infra-estrutura e diferenciaram-se e expandiram-se o

comércio, a agricultura e a produção manufatureira. O mercado interno extrapolou os

limites das cidades-chave, interligando gradualmente territórios descontínuos e distantes

entre si, conferindo uma nova função unificadora nacional ao desenvolvimento capitalista.

Note-se que o capitalismo dependente observou transformações semelhantes

às ocorridas nas economias hegemônicas, embora com intensidade e ritmo diversos. Com

efeito, no plano econômico, o mercado atuou como agente de intensificação e

diferenciação da vida econômica. No plano institucional (sociedade, cultura e Estado), o

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mercado engendrou uma formação societária nova, fundada em relações competitivas, e

desagregou a ordem escravista. A estratificação social começou a ter por referência o

mercado, o que então significaria o fim da escravidão e a consolidação do trabalho livre.

Desse modo, “no Brasil a ‘crise do antigo regime’ lança aí suas raízes. Forma-se e difunde-

se, aos poucos, uma nova mentalidade econômica, social e política, que serve de pião à

irrupção do Povo na cena histórica” (Fernandes, 1981: 239).

Mas relatamos o desenvolvimento de uma economia duplamente articulada.

No plano interno, articulavam-se os setores arcaico e moderno. No plano externo, o

complexo agrário-exportador e as economias capitalistas centrais. A dupla articulação

caracterizou a orientação dos empresários. Preocupados em extrair o máximo de

vantagens, aceitaram que o setor arcaico assim se mantivesse, desde que isso favorecesse a

acumulação originária de capital, e vislumbraram a articulação às economias centrais como

alternativa para acelerar a industrialização e o desenvolvimento econômico interno 25.

No desenvolvimento da economia competitiva brasileira, o Estado teve

papel destacado. Como em outros países de economia articulada, desencadeou-se aqui um

intervencionismo econômico, destinado a sustentar e fomentar o desenvolvimento

capitalista. A atuação estatal compartilhou responsabilidades com os agentes privados

nacionais e estrangeiros, os maiores beneficiários do intervencionismo.

Florestan ressalta que o crescimento populacional explosivo, o intenso ritmo

de concentração urbana e as tendências de universalização das relações capitalistas de

mercado atenuaram os efeitos inibidores da articulação interna. Mas o crescimento do

mercado interno e os fluxos com a economia agropecuária não impediram a persistência de

práticas pré-capitalistas. Nenhuma reforma agrária foi seriamente instituída. Por seu turno,

manteve-se a depressão dos salários dos trabalhadores urbanos. Com isso, o mercado

caracterizou-se como socialmente comprimido e seletivo. “Na verdade, continuava a

prevalecer a extrema valorização econômica de diferentes idades coetâneas e de formas de

desenvolvimento desiguais, como expediente de acumulação originária de capital ou de

intensificação da expropriação capitalista do trabalho” (Fernandes, 1981: 246).

Quanto à articulação externa, a economia dependente brasileira continuaria

exposta a pressões muito fortes não controláveis a partir de dentro. A transformação econômica

ocorria sem romper o padrão dependente e limitada a dar saltos a partir de impulsos

atrelados ao dinamismo das economias centrais. _______________________________________________________________________________________ 25 Florestan considera que decorrem da dupla articulação econômica as inconsistências e consequências negativas que comumente são atribuídas ao processo de substituição de importações.

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A terceira fase corresponde à emergência do capitalismo monopolista.

Embora já presentes tendências suas antes dos anos 1950, elas se acentuaram ao final dessa

década, adquirindo caráter estrutural durante a ditadura militar. Sua eclosão exigia índices

relativamente altos de concentração demográfica ao longo de um vasto mundo urbano

comercial e industrial. Demandava: índices consideráveis de renda, ao menos da população

incorporada ao mercado de trabalho e, em especial, dos estratos médios e altos das classes

dominantes; diferenciação e integração em escala nacional; modernização tecnológica; e

estabilidade política, com o controle do Estado pela burguesia nativa, donde os interesses

hegemônicos internos convergirem com as influências externas. Tratava-se de “modernizar

com segurança”, ou seja, logrando estabilidade política via repressão de protestos contra as

iniqüidades econômicas, sociais e políticas. Dessa forma, enquanto nos países centrais

conciliou-se democracia, capitalismo e autodeterminação; aqui, elementos igualitários,

democráticos e cívico-humanitários foram relegados ao segundo plano e entendidos como

obstáculos à transição para o capitalismo monopolista. Para Fernandes (1981: 262),

como sucederia no Brasil, no México e em outros países da América Latina, o estilo de dominação da burguesia reflete muito mais a situação comum das classes possuidoras e privilegiadas, que a presumível ânsia de democratização, de modernização ou de nacionalismo econômico de algum setor burguês mais avançado. Por isso, ele antes reproduz o ‘espírito mandonista oligárquico’ que outras dimensões potenciais da mentalidade burguesa.

Desenvolvimento econômico e desenvolvimento político dissociaram-se.

Teve curso um padrão capitalista racional e modernizador de desenvolvimento econômico,

conjugado a medidas contra-revolucionárias que, ao invés de atrelar o Estado à clássica

democracia burguesa, fomentaram uma versão tecnocrática de democracia restrita,

denominada por Florestan de autocracia burguesa 26.

Nas economias periféricas, o capitalismo monopolista, induzido de fora, se

superpõe às estruturas modernas ou arcaicas pré-existentes, criando um nicho específico

para si, onde pode crescer e então talvez se irradiar para toda economia. Na verdade,

aquelas formas econômicas não raro são funcionais ao padrão capitalista-monopolista

periférico, servindo como fontes de acumulação originária de capital, delas se extraindo

parte do excedente econômico que financiou a modernização econômica,

tecnológica e institucional, além de recursos materiais ou humanos.

Nas economias centrais, antes da fase monopolista, houve extensos períodos

de acumulação de capital, de invenção tecnológica, de expansão do mercado de massas, de

_______________________________________________________________________________ 26 O autor se refere ao período dos governos militares, pós-1964.

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modernização institucional e democratização do poder, de elevação dos níveis de escolaridade

e dos padrões de vida. No Brasil, como a transição foi induzida de fora e sem que esses

fatores estivessem suficientemente desenvolvidos, não só permaneceu a dupla articulação,

como seus efeitos tornaram-se mais perversos.

A dependência se aprofundou e o crescimento acelerado infundiu distorções

estruturais e dinâmicas no processo de acumulação, manifestas em compressões

conjunturais dos salários e no uso de desinflatores e técnicas que ampararam os que tinham

capacidade de poupar. Com isso, um pequeno círculo da população gozou da prosperidade

e teve acesso aos bens duráveis e a artigos de luxo. Mas, se o acesso a tais bens poderia se

estender ao grosso da população, o problema maior consistia no fato de que “a transição

para o capitalismo monopolista impõe tendências de concentração social da riqueza que

não podem ser nem transitórias nem atenuadas com o tempo” (Fernandes, 1980: 273).

Ademais, ele traz consigo um tipo de articulação econômica às nações hegemônicas e ao mercado

mundial hábil a tornar indestrutível a dependência das economias periféricas.

O processo intensificou o fluxo migratório do campo para as grandes

cidades; afinal, não se realizou a reforma agrária, nem se universalizaram as relações de

mercado ao campo. Por outro lado, o desenvolvimento industrial ampliou as oportunidades

de trabalho, donde o crescimento do proletariado urbano e operário. Dessa forma, tanto o

poder burguês se recompôs, como o povo mudou de configuração estrutural e histórica.

Para Florestan, esse fato era central, sinalizando um quadro favorável aos movimentos

operários e hábil a modificar o panorama da sociedade brasileira. O autor identificava uma

tendência de aumento da participação popular, a partir do dinamismo da economia de

consumo em massa e da elevação constante do padrão de vida médio dos assalariados 27.

Florestan também aponta a tendência de irradiação do desenvolvimento

capitalista rumo a pequenas cidades dispersas no mundo rural, de modo que a participação

econômica pode servir de base a maior participação social, cultural e política de setores

urbanos e rurais.

Merece referência igualmente a alteração da origem social dos indivíduos de

classe média. Se antes advinham preponderantemente de famílias tradicionais ou de classes

possuidoras decadentes, a nova configuração social estende as chances de mobilidade a uma

_______________________________________________________________________________ 27 A obra em comento data de 1981. Como se poderá verificar pela exposição de p. 98, as conclusões do autor afinam-se a um quadro de crescente assalariamento formal que se estendeu até o início dos anos 1980. A partir daí, o mercado formal retrocedeu, ampliando-se o desemprego e condições precárias de trabalho, o que minou o “ritmo” de melhora no padrão de vida dos estratos populares e gerou conseqüências perversas sobre a capacidade de ação coletiva dos trabalhadores.

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forte massa de indivíduos pobres.

Florestan conclui que a forma “intramuros” de resolução de conflitos das

classes dominantes tende a se erodir cada vez mais. Tanto as soluções dentro da ordem, como

as revoluções “de cima para baixo” são inviabilizadas pela pressão do meio operário e dos

estratos mais baixos das classes médias. “Isso forçará as classes dominantes e suas elites a

procurarem aliados fora de suas fronteiras e a se colocarem os ‘problemas’ econômicos,

sociais e políticos também à luz dos interesses das classes baixas, pondo-se um fim ao

‘monolitismo’ que tem impedido qualquer evolução efetivamente nacional e democrática

do regime republicano” (Fernandes, 1981: 286). De certo modo, a gama de direitos sociais

reconhecidos pela Constituição Federal de 1988 é desdobramento desses fenômenos. A

tensão que os marcou também serve de evidência, posto que, embora reconhecidos, carecem

em boa medida de efetividade, dada a escassez de meios e recursos a eles destinados 28.

Já Wanderley Guilherme dos Santos (1994) identifica no Brasil dificuldades

governativas, cuja fonte precípua é um híbrido institucional, caracterizado

simultaneamente por uma morfologia poliárquica 29 e por um hobbesianismo social pré-

participatório e estatofóbico.

A poliarquia brasileira é frágil, porque só é efetiva em relação à pequena

parcela da população. A sociedade é plural, dados os múltiplos grupos de interesse, mas as

instituições poliárquicas não mobilizam os supostos interessados. A explicação reside no

hobbesianismo social. O indivíduo típico de nossa sociedade não adere à poliarquia,

vivendo isolado e sem congregar-se em laços de solidariedade. Assim, o refrear dos

conflitos, que, conforme a doutrina poliárquica, seria possibilitado pelo pertencimento a

múltiplas associações, ou não existe, ou é insuficiente para reduzir as hostilidades

intergrupos. E então Santos (1994: 80) conclui: “Por isso a poliarquia brasileira restringe-se a

pequena mancha institucional circunscrita por gigantesca cultura da dissimulação, da

violência difusa e do enclausuramento individual e familiar”. Há uma avalanche regulatória que,

dado o híbrido institucional, é ineficaz. O governo age no vazio, sem controle democrático,

sem expectativas e sem respeito cívico que emanem da sociedade.

Desde a década de 1930, o Brasil se modernizou. O eleitorado se expandiu, 28 Por fim, assinale-se que o período coberto pela análise de Florestan era marcado pela bipolaridade (bloco socialista-soviético versus sistema capitalista) no plano internacional, de modo que os caminhos trilhados pelo embate entre as classes sofriam os influxos dessa dinâmica externa. 29 Poliarquias são regimes onde institucionalizadas uma ampla competição pelo poder (com contestação pública) e uma extensa participação política (inclusividade). A coexistência dessas características é assegurada por direitos, como o de “associação, liberdade de expressão, formação de partidos, igualdade perante a lei e, afinal, controle da agenda pública” (Santos, 1994: 80).

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organizações se multiplicaram, aumentou a competição partidária e há uma correlação

positiva entre educação, renda e participação. Mas, apesar de erguidas as instituições

formais e cumpridos os requisitos apregoados pela teoria de Dahl, o hobbesianismo social

impediu-nos de auferir os benefícios poliárquicos.

Santos (1994) explica que, se não reformados os meios tradicionais pelos

quais se opera a política, o próprio funcionamento de uma poliarquia ameaça os seus fins.

Assim, a inclusividade da competição política pode converter-se em alternativa para a

acumulação de riqueza privada. A maior presença estatal regulatória e os maiores escopo e

impacto das políticas públicas podem incentivar a captura de burocracias por grupos

privados. Enfim, a politização da sociedade pode redundar na multiplicação de focos de

corrupção, em tentativas persistentes de compra de mandatos (então encarecidos), na

manipulação da política em favor de certos segmentos (clientelismo) e no financiamento de

campanhas políticas por “clientes”. Ademais, grupos de interesse pressionam o governo

para angariar benefícios, difundindo os custos pela sociedade.

A manutenção do hobbesianismo social mina o êxito das instituições

poliárquicas, prevalecendo políticas clientelistas e a escassez de racionalidade econômica e

social: “o cenário é o da continuidade do que já vem ocorrendo de maneira crescente na

face poliárquica do sistema brasileiro: abundante e contínua legislação regulatória dando

lugar a todo tipo de ineficiências por via de subsídios, privilégios, credenciamentos, além

da criação de barreiras à entrada” (Santos, 1994: 93).

Embora vivam em contínuo estado de hobbesianismo social, os cidadãos

(não-poliárquicos) negam a existência de conflitos. Trata-se de uma estratégia de

autopreservação, a fim de manter, por meios próprios, um mínimo de dignidade pessoal, o

que revela a descrença na eficácia estatal e as reduzidas taxas de demandas e de

participação dos cidadãos. Tem-se “uma cultura cívica que se estrutura extralimites

institucionais da poliarquia, cuja expectativa quanto à eficácia elementar do Estado é

próxima de zero” (idem: 98/99). Essa evasão face aos mecanismos poliárquicos atinge a

ricos e pobres em todas as regiões do Brasil. E toda a população transita cotidianamente

entre os dois universos: o das instituições poliárquicas e o das não-poliárquicas.

Para o autor, ilustra tal asserção o fato de o mesmo cidadão agir conforme as

regras poliárquicas quando vota e não poliarquicamente por não noticiar à polícia que o

tênis de seu filho foi roubado. Este permanente trânsito característico do híbrido

institucional brasileiro tem repercussões deletérias para a cultura cívica e para a

probabilidade de êxito das políticas governamentais. Ante tal quadro, não há estímulo à

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formação de laços solidários, ao fomento da arena pública, ou à convivência social. Ao

contrário, reina o isolacionismo e a reclusão familiar, único recanto seguro. Com efeito, “o

privado se sobrepõe ao público” (Santos, 1994: 109).

O quadro hobbesiano acentua-se em contextos de transição social, como, no

exemplo do autor, no período de consolidação democrática, quando aplicados sucessivos

planos econômicos. Face à ausência de normas universalmente aceitas, o resultado é a

maior imprevisibilidade do mundo social, proliferando códigos privados compartilhados

por pequenos segmentos dentro da macro-sociedade. Surgem então as subculturas do

crime, da corrupção e das drogas, cada qual com suas normas e linguagens próprias.

Pena aleatória, impunidade e mecanismos descentralizados de extorsão de

renda, todos são exemplos de instituições sociais não-poliárquicas que, como parte de uma

cultura cívica predatória, impelem os indivíduos à desconfiança e ao isolacionismo.

Uma cultura cívica predatória é o que se pode esperar quando a população é composta por indivíduos que se consideram um ao outro: destruidor, acomodado, esperto, mal-educado, irresponsável, preguiçoso, impaciente e desonesto (pesquisa da Soma, Opinião e Mercado, em Isto é/ Senhor, 27/3/91). Em tal selva, é natural que se considere aceitável: deixar alguém guardando lugar na fila para ganhar tempo, chegar atrasado a compromissos, colar nas provas, estacionar em local proibido, parar carro em cima de calçadas e gramados, subornar para conseguir algum serviço (Santos, 1994: 114).

Ante tal quadro, o exercício do poder político assume função primordial.

Dada sua centralidade e visibilidade, ele “pode contribuir para gerar os valores que

restabelecem a solidariedade e confiança sociais” (idem: 110). Esse exercício do poder não

significa repressão 30. Ao contrário, essa pode reforçar os códigos privados, gerando a

sensação de que são os que se impõe, por quaisquer meios, os que sobrevivem 31.

Também Souza (2003a) realiza um interessante esforço interpretativo de nossa

evolução sócio-histórica, tendo por principais marcos teóricos as obras de Bourdieu e Charles

Taylor. Nesta trilha, afirma que as obrigações e os direitos que configuram e organizam nossa

relação com os outros são estipulados por uma ordem moral. Por sua vez, é o ‘imaginário

social’ que nos permite a “pré-compreensão” imediata de práticas cotidianas e possibilita

um senso compartilhado de legitimidade da ordem social. O imaginário social é tanto factual

_______________________________________________________________________________ 30 Segundo o autor, o autoritarismo político do período militar só aumentou a tendência ao isolamento, ao erigir a coação como base da obediência às regras públicas.

31 Seguindo a trilha de Santos (1994), Bogeá-Câmara (2004) firma que, além das precárias bases de confiança assecuratórias de ações coletivas, estas encontram entraves na frágil rede proteção social, dado esta não garantir padrões toleráveis de dignidade nos casos de fracasso. Desta sorte, a ação coletiva, especialmente no caso das classes populares, precisa conviver com a assunção de que o ruim pode piorar. Tem-se aí um dos obstáculos para o exercício da cidadania política entre nós.

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quanto normativo e caracteriza-se como uma pré-compreensão inarticulada abstrata e

geral; um “mapa social” que guia implicitamente nossa conduta.

Seguindo as lições de Weber e Taylor, o autor destaca que, nas sociedades

da modernidade central, as idéias são anteriores às práticas institucionais. Já no caso

brasileiro, as “práticas” modernas são anteriores às “idéias” modernas. Com efeito, durante

o período colonial havia uma cultura material e simbólica rasteira e pouco articulada.

Quando o mercado e o Estado foram paulatinamente importados com a europeização da

primeira metade do século XIX, inexistia o consenso valorativo que acompanhou o mesmo

processo na Europa e na América do Norte. Nessas logrou-se homogeneizar um tipo

humano transclassista; um desiderato perseguido de forma consciente e decidida, não

relegado a uma suposta ação automática do progresso econômico.

Para Souza (2003a), a especificidade de sociedades constituídas como a

brasileira resulta da ação do poder pessoal, aqui liberado da proteção que, em outras

sociedades tradicionais, o costume e a tradição garantiam aos dominados, possibilitando-os

constituir sua auto-estima e ter reconhecimento social por meios independentes da vontade

do senhor.

Havia grande contigüidade entre as visões do escravo 32 e a do dependente

formalmente livre. Ambos formaram a “ralé” dos imprestáveis e inadaptados ao novo

sistema impessoal que chegou de fora para dentro por meio de práticas institucionais não

precedidas pelo arcabouço ideal que, nas sociedades centrais, foi o estímulo último para a

homogeneização do tipo humano contingente e improvável que, atingindo inclusive as

classes subalternas, serve de base à economia emocional burguesa. Só quando este

processo alcança algum êxito pode-se almejar que a lei abstrata, substrato da noção de

cidadania, torne-se realidade efetiva.

Para identificar o quadro geral da pirâmide competitiva no momento posterior

à abolição, o autor recorre a Florestan Fernandes, em seu Integração do negro na sociedade

de classes. Assim, o seu topo era ocupado por antigas famílias proprietárias, constituindo

uma zona de preservação de poder, onde era mínimo o espaço aberto à competição. Logo

_______________________________________________________________________________ 32 Para o autor vigeu uma escravidão muçulmana na sociedade colonial brasileira. Analisando a obra Casa Grande e Senzala, Souza (2003a: 106) afirma que

Em Freyre, a visão sobre a especificidade da escravidão brasileira alterna entre uma ênfase no tema do sadomasoquismo e uma concentração no tema da mestiçagem. O tema do sadomasoquismo está ligado ao tema da “escravidão muçulmana”. A estratégia de domínio, que é a substância do que ele irá chamar de escravidão muçulmana, permite uma expansão e durabilidade da conquista inigualáveis, na medida em que associa o acesso a bens materiais e ideais muito concretos à identificação do dominado com os valores do opressor.

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abaixo, havia uma nova esfera aberta e em expansão, onde prevaleciam ideais

individualistas e liberais. Esse espaço seria ocupado pelo estrangeiro imigrante. Para o

negro preservar a dignidade de homem livre restavam os interstícios e as franjas

marginais do sistema: o mergulho na escória proletária, no ócio dissimulado, ou, ainda, na

vagabundagem sistemática e na criminalidade fortuita ou permanente.

A semente da marginalização continuada de negros e mulatos encontrava-se

nas dificuldades de adaptação à nova ordem competitiva, pois lhes faltava uma pré-

socialização específica. O problema estava nas condições psicossociais da personalidade:

(1) a inadaptação do negro para o trabalho livre; e (2) a sua incapacidade de agir segundo

os modelos de comportamento e personalidade da sociedade competitiva, sendo esta

segunda uma condição de possibilidade da primeira. Para o esclarecimento desses pontos,

um tema central refere-se à ausência de unidade familiar como instância moral e social

básica, característica contígua à política escravocrata brasileira, que sempre procurou

impedir qualquer forma de organização familiar ou comunitária pelos escravos 33.

As precondições sociais explicam a situação de marginalidade. Nesse

quadro, a cor da pele age como uma ferida adicional à auto-estima do sujeito, mas o núcleo

do problema é a combinação de abandono e inadaptação, destinos que atingiam tanto os

negros como os dependentes ou agregados despossuídos, brancos ou de qualquer cor.

Segundo Souza (2003a), a pauperização, fruto da inadaptação social, e a

anomia, oriunda da organização familiar disfuncional, condicionam-se mutuamente. Ademais,

essa fusão de vida familiar desorganizada e pobreza produz um tipo de individuação ultra-

egoísta e predatória.

Em síntese, a chave explicativa encontra-se no modo como a transição do poder 33 Sem polemizar as colocações de Souza (2003a) sobre a realidade histórica da desagregação de famílias negras, a desarticulação das estruturas familiares parece, de fato, um importante elemento promotor de situações de marginalidade (confira-se menção ao problema por Zaluar (1997)). Queremos, porém, destacar a incompletude do argumento do autor. Incluindo na “ralé” estrutural brasileira os ex-escravos e antigos dependentes (dotados do mesmo tipo psicossocial dos primeiros), localiza na pobreza e na organização disfuncional familiar os motivos principais de sua inadaptação social. Se apresenta um argumento plausível para a destruturação de famílias negras (a política escravocrata), nada menciona sobre a organização familiar dos dependentes. No entanto, não deixa de estender a estes aquelas causas primordias. De todo modo, apresenta um interessante argumento para compreender a desestruturação familiar e psicossocial, mas seria preciso identificar se as causas de hoje são as mesmas do passado, se existe relação de continuidade entre ambas e em que medida. Deveria também apontar se os problemas de desestruturação familiar atuais afetam (e em que medida) famílias carentes e de classe média e quais as causas para tanto. Parece pertinente destacar os renitentes comentários de colegas minhas que lecionam no ensino fundamental em escolas públicas da Baixada Fluminense e de subúrbios cariocas sobre o problema representado para o processo de escolarização a precariedade das estruturas de famílias carentes (material e cultural, digamos).

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pessoal para o impessoal alterou as possibilidades de classificação ou desclassificação

social, tornando imprestáveis os segmentos responsáveis pela manutenção do regime

econômico anterior. Ante esse diagnóstico, o autor interpreta os depoimentos coligidos por

Florestan Fernandes, onde os informantes reiteradamente entendiam por “ser gente” as

pré-condições para a formação de um habitus adequado aos imperativos institucionais da

nova ordem.

Tal quadro impõe o esclarecimento de duas questões: (1) a reconstrução da

hierarquia contingente e historicamente construída que, de forma opaca e inarticulada,

serviu à legitimação da desigualdade nas condições modernas centrais e periféricas; e (2) o

seu modo específico de ancoragem institucional nas condições da modernização periférica.

Para analisar a primeira questão, Souza (2003a) desenvolve um tópico sobre

a “ideologia espontânea” do capitalismo tardio e a construção social da desigualdade.

Recorre ainda ao conceito de habitus, que se refere à incorporação nos sujeitos de

esquemas avaliativos e disposições de comportamento a partir de uma situação

socioeconômica estrutural. Dessa maneira, a mudanças fundamentais nesta estrutura

devem corresponder alterações qualitativas importantes no tipo de habitus para todas as

classes sociais envolvidas de algum modo nesse processo.

A partir das reflexões de Charles Taylor, Souza (2003a) divide o conceito de

habitus, formulado por Bourdieu 34, em: primário, secundário e precário. O primeiro

refere-se à generalização das precondições sociais do sujeito reconhecido como útil,

“digno” e cidadão. O habitus precário seria o limite do habitus primário para baixo,

representando, em uma sociedade moderna e competitiva, um tipo de personalidade e de

disposições que, marcando um indivíduo ou grupo, não atende às demandas objetivas por

produtividade e utilidade, elementos geradores de reconhecimento social. O habitus

secundário parte da homogeneização dos princípios que marcam o habitus primário para

então instituir critérios de distinção social com base no que Bourdieu chama de “gosto”.

Para abordar o segundo ponto, a ancoragem institucional das desigualdades

sociais nas condições modernas centrais e periféricas, Souza (2003) analisa a ideologia do

desempenho, fundada esta na tríade meritocrática: qualificação, posição e salário. O primeiro _________________________________________________________________________________________________ 34 Souza (2003) critica Bourdieu por não ter tematizado adequadamente o processo histórico de aprendizado coletivo, cujo índice reside na “dignidade” compartilhada por classes que lograram homogeneizar, em termos significativos, a economia emocional de todos os seus membros. Dessa “dignidade” comum depende a eficácia social da regra jurídica da igualdade e, portanto, a da cidadania. Em outras palavras, a regra da igualdade só é legalmente eficaz quando internalizada a percepção da igualdade no plano da vida cotidiana, processo que demanda a existência de um consenso valorativo transclassista.

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desses elementos condiciona os demais. Trata-se de uma ideologia, ainda segundo o autor,

porque ela não apenas estimula e premia a capacidade de desempenho objetivo, mas

legitima o acesso diferencial a chances de vida e de apropriação de bens escassos. É pela

combinação daquela tríade que o indivíduo torna-se um “sinalizador” efetivo do “cidadão

completo”. É a tríade, igualmente, que torna compreensível por que só a categoria

“trabalho” pode assegurar identidade, auto-estima e reconhecimento social 35.

De acordo com o poder legitimador da “ideologia do desempenho”, os

sujeitos e grupos sociais carentes dos pressupostos mínimos para uma competição bem-

sucedida serão excluídos de plano e objetivamente da competição e padecerão de não-

reconhecimento social e de ausência de auto-estima. Ela, a ideologia do desempenho,

funciona como uma espécie de legitimação subpolítica incrustada no cotidiano, refletindo a

eficácia de princípios funcionais ancorados em instituições opacas e intransparentes como

mercado e Estado. Intransparentes por aparecerem à consciência cotidiana como efeitos de

princípios universais e neutros, abertos à competição meritocrática.

Um ponto importante na análise de Souza (2003) acerca da diferenciação

entre gente e subgente refere-se à ausência de intencionalidade que a marca. Trata-se de uma

dimensão objetiva, subliminar, implícita e intransparente. É implícita por não demandar

mediação lingüística ou articulação simbólica. Com efeito, existem acordos e consensos

sociais mudos e subliminares, cuja eficácia advém da articulação, por meio de fios invisíveis,

de solidariedades e preconceitos profundos e opacos.

Como ressaltado, o habitus primário refere-se à introjeção da dignidade

do agente racional, configurando-se como um índice de produtividade e de cidadania plena.

35 Consideramos um ponto sensível na análise do autor a referência central (ou a sua não problematização) à categoria trabalho, como elemento assecuratório de identidade, auto-estima e reconhecimento social. Para enriquecer a questão, vale lembrar a distinção operada por Inglehart (2000) entre valores materialistas (modernidade) e pós-materialistas (pós-modernidade). Ambos os valores funcionando como articuladores das ações individuais e coletivas. No quadro tecido por Inglehart, por conseqüência, a referência à categoria trabalho perde, em boa medida, seu poder de agregar e definir identidades. Por seu turno, Burgos (2005) sustenta que, no caso do Rio de Janeiro, a cultura*, mais do que o trabalho, foi um elemento definidor de identidades e um fator de coesão social. Nessa cidade, diferentemente de São Paulo, o industrialismo teria sido um fenômeno culturalmente marginal se comparado a manifestações religiosas, festas (como o carnaval) e mesmo o futebol. Sem concordarmos inteiramente com esses argumentos e sem encerrarmos o debate, resta saber se o habitus ainda se estrutura (ou se um dia se estruturou) por referência à produtividade, dada a suposta centralidade da categoria trabalho.

Vale também a referência a Boaventura de Sousa Santos (2001). Esse autor apresenta um mapa de estrutura-ação das sociedades capitalistas no sistema mundial, dividido entre os espaços doméstico, de produção, de mercado, da comunidade, da cidadania e mundial. Apenas no espaço da produção o trabalho tem papel central, juntamente com o capital. E, para uma defesa da centralidade da categoria trabalho, confira-se Antunes (2002). * Burgos não a define, mas a exemplifica pela mídia, religião, futebol, ...

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Enquanto sua disseminação efetivou-se em sociedades avançadas, relegando à

condição de fenômenos marginais os casos de habitus precário; em sociedades periféricas

como a brasileira, o habitus precário é um fenômeno de massa. Aliás, para o autor, esses

dois tipos de sociedade distinguem-se exatamente pela produção social de uma “ralé

estrutural” nas sociedades periféricas. Esse fato não afasta a existência, nas duas

sociedades, de uma luta pela distinção baseada no habitus secundário.

O autor ressalta que relações pessoais são importantes na definição de

carreiras e chances individuais de ascensão social em ambos os tipos de sociedade. Mas,

se, em ambos, os capitais econômico e cultural são estruturantes, o mesmo não ocorre com

o capital social derivado de relações pessoais. Portanto, mesmo aqueles grupos sociais não

abrangidos pelo impacto modernizador, como os ex-escravos e os dependentes rurais e

urbanos de qualquer cor, foram englobados como desclassificados pela lógica totalizadora

do novo padrão simbólico e institucional instaurado com a modernização da sociedade

brasileira. Desse modo, a versão moderna dessa “ralé” não é mais oprimida por relações de

dominação pessoal. No contexto impessoal moderno, o lugar social dos indivíduos vê-se

determinado por redes invisíveis de crenças sobre o valor relativo de indivíduos e grupos,

as quais são compartilhadas pré-reflexivamente, ancoradas institucionalmente e

reproduzidas de forma rotineira pela ideologia simbólica subpolítica incrustada nas práticas

do dia a dia. Essas redes não eliminam as relações de dependência, mas lhe dão um novo

conteúdo e dinâmica, envolvendo tanto os doadores de favores como os receptores de

proteção em um quadro de referência que ultrapassa a ambos.

A contradição de interesses de classe manifesta-se mais no contraste entre

uma “ralé” de excluídos e todos os estratos incluídos, sejam trabalhadores, técnicos ou

empresários, do que na oposição entre burgueses e operários. A inclusão no mercado, a

percepção dos benefícios do Estado e a entrada com voz autônoma na esfera pública

tornam os setores antes marginais em incluídos privilegiados.

Nesse quadro, cumpre papel específico a noção de homem cordial,

entendido como o brasileiro de todas as classes, que tem sua vertente tanto subjetiva, na

noção de personalismo, quanto uma dimensão institucional, na noção de patrimonialismo.

Para Souza (2003), essa noção compõe uma ideologia explícita que se articula com o

componente implícito da ‘ideologia espontânea’ das práticas institucionais importadas e

operantes na modernidade periférica, construindo um contexto de obscurecimento das

causas da desigualdade, tanto para os privilegiados quanto para as vítimas. Esse o ponto

central da questão da naturalização da desigualdade na sociedade brasileira.

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Por fim, vale reportarmos algumas considerações de Souza e Hoellinger

(2000) sobre modernização e desenvolvimento da cidadania. Segundo os autores, Weber e

Taylor identificam a retirada do mediador do sagrado, a Igreja, como elemento detonador

da sacralização da vida cotidiana e comum 36. Os protestantes rejeitaram as vocações

monásticas fora do mundo cotidiano e, por conseqüência, a hierarquia social a ela

vinculada. A nova concepção de mundo encontrou suporte social nas classes burguesas de

Inglaterra, EUA e França, disseminando-se depois. No âmbito do trabalho, valorizou-se

mais o como se faz e não o quê se faz, e o tipo contratual apresentou-se como vínculo

social mais adequado às relações interpessoais. Confluindo com a análise de Honneth

(2003), os autores ressaltam a perda de lugar da honra pré-moderna, que assentava na

distinção e no privilégio, e a ascensão da dignidade oriunda do reconhecimento universal

entre iguais, consubstanciado, v.g., nos direitos individuais.

Esse é o terreno da cidadania, pois essa visão de mundo consagrou-se sob a

forma de direitos subjetivos, definidos universalmente consoante a tendência igualitária.

“A própria sucessão histórica dos direitos de T.H.Marshall seria incompreensível sem essa

pré-história que mostra porque sua efetivação progressiva, em um contexto crescentemente

democrático, se deu de forma irresistível” (Souza e Hoellinger, 2000: 184).

Nos países centrais, o processo de autonomização e diferenciação interna da

esfera jurídica foi correlato à conquista de dimensões crescentes de cidadania. Ao

subordinar influências políticas e econômicas a critérios próprios, a autonomização do

jurídico permitiu a generalização inclusiva da população no direito. No entanto, essa

autonomia da esfera jurídica não se manifestou em países de modernidade periférica. No

caso brasileiro, verifica-se uma divisão entre sobre-cidadãos e subcidadãos. Como não se

operou uma reciprocidade entre direitos e deveres, aos subcidadãos faltam condições de

exercer a dimensão positiva dos direitos fundamentais, embora sejam obrigados a arcar

com os deveres impostos pelo Estado.

_______________________________________________________________________________ 36 Santos (2000) sustenta que, durante o Brasil-Colônia, os ideais católicos foram funcionalmente substituídos por uma magia primitiva que serviu adaptativamente à realidade (a produção de mercadorias via escravidão). Isso implicou uma quase ausência de caráter reflexivo das “idéias” religiosas presentes na sociedade. O autor levanta a instigante hipótese de que “existe uma relação causal entre a presença de valores e normas culturais que se originam e se desenvolvem no seio de crenças religiosas de tipo mágico e certa orientação heterônoma e intolerante de pensamento” (Santos, 2000: 93), o que seria um complicador para a institucionalização de um princípio de dignidade forjado no reconhecimento universal entre iguais. Mas a análise peca ao tentar identificar traços de pensamento mágico na sociedade brasileira atual sem desnudar o desenvolvimento das instituições e ideais modernos no país. Afinal, a referência mais recente do autor é o século XVII.

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A sua ‘integração’ ao sistema jurídico dá-se como devedor, indiciado, réu, etc. Nesse sentido, a subintegração das massas é apenas a outra face da sobreintegração do sobrecidadão que tem a ‘escolha’ de lançar mão, ou não, do estatuto jurídico para suas finalidades, estando nesse sentido, de certa forma, ‘acima da lei’, sendo a impunidade a forma mais conspícua de sobreintegração (Souza e Hoellinger, 2000: 219).

Portanto, a dimensão da dignidade (reconhecimento universal entre iguais)

não se institucionalizou. Com isso, o direito atua como um mecanismo reprodutor do

padrão valorativo e normativo desigual então vigente. Os autores não deixam de temperar

esse quadro pessimista, citando demandas por dignidade, no sentido de universalização de

direitos, presentes em nossa história recente, como o movimento de Diretas Já e o

movimento pelo impeachment do presidente Fernando Collor. Para os autores, “apenas a

institucionalização do princípio da ‘dignidade’ pode possibilitar o encurtamento do fosso

social e cultural que dilacera nossa sociedade” (idem: 220).

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Capítulo 4: Cidadania no Brasil

Ante o quadro de modernização brasileiro, cumpre-nos firmar as bases

sócio-históricas dos direitos de cidadania em nosso país. Para tanto, deslindaremos o

desenvolvimento dos direitos políticos. Depois, apresentaremos a eclosão dos direitos

sociais, focando as legislações trabalhista e previdenciária. Por fim, levantaremos temas

que diferenciam o escopo da cidadania entre nós do manifesto em países centrais. Nesse

sentido, os problemas da informalidade e das favelas são a materialização dos contornos do

processo de modernização e da conseqüente evolução da cidadania no Brasil.

4.1 - A dimensão política da cidadania

Após séculos de colonização, cujo sentido residiu no empreendimento

comercial da monocultura exportadora, baseada em latifúndios e na mão-de-obra escrava,

fundou-se aqui uma sociedade política independente. Outorgada a Constituição de 1824, a

cidadania hierarquizou os cidadãos, ao invés de atribuir idêntico status pelo

reconhecimento universal de direitos. Mattos (1994) destaca dois elementos fundamentais

nessa hierarquização: a liberdade e a propriedade. De plano, foram excluídos da sociedade

civil os escravos, pois não gozavam de liberdade, eram não-cidadãos. Então, dividiu-se a

sociedade entre os que só possuíam a liberdade e os que a ela acresciam a propriedade de

escravos. Hierarquizavam-se os cidadãos não-ativos, o “povo miúdo”, e os ativos, os

proprietários. A capacidade eleitoral censitária era a materialização legal da hierarquia.

Carvalho (2003) questiona o critério censitário como elemento de restrição

dos direitos políticos, afirmando que ele não excluía de fato a população pobre, dado o

pequeno volume de recursos exigido para ser votante, e lembrando, ainda, que os

analfabetos votavam 37. Essa situação durou até 1881, quando uma reforma eleitoral

restringiu o direito de voto.

O ponto mais importante reside no sentido atribuído aos direitos políticos.

Segundo o autor, a maioria da população não compreendia o significado de um governo _________________________________________________________________________________________________ 37 Segundo Carvalho (2003, 2004), o ponto chave reside nas condições para o exercício do direito político em tela. Com efeito, elas eram marcadas pelo quadro colonial, onde os escravos estavam apartados da sociedade civil e à população livre e pobre faltavam condições para o exercício de direitos. Dependente dos grandes proprietários para morar, trabalhar e defender-se contra o arbítrio do governo e de demais proprietários, essa população carecia ainda de suporte educacional. Ademais, os senhores ignoravam o sentido de cidadania, consubstanciado na igualdade de todos perante a lei, e absorviam, no âmbito local, funções estatais, minando a constituição efetiva de um poder público hábil a garantir direitos eventualmente concedidos pela lei.

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representativo e de escolher alguém como representante político. O voto adquiria o sentido

de uma ação relativa a lutas locais. As eleições eram relevantes nas disputas locais, pois

envolviam prestígio e cargos públicos. Mas entrava em disputa o domínio do poder local e

não o exercício de um direito de cidadania. Vencia a eleição quem mobilizava maior

número de dependentes. Violência e fraudes eram recursos corriqueiros.

Ao analisar o sistema eleitoral e os partidos políticos imperiais, Carvalho

(2004) aponta as três diretrizes da regulamentação eleitoral: (1) a definição de cidadania,

ou seja, de quem pode votar e ser votado; (2) a garantia de representação da minoria, de

forma a evitar a ditadura de um partido ou facção; e (3) a verdade eleitoral, a fim de

eliminar influências espúrias, seja da parte do governo, seja da parte do poder privado.

Em relação à definição de cidadania, houve uma involução, com um

constante movimento de restrição da participação. A manutenção do envolvimento popular

em níveis baixos era justificada pela qualidade do voto e pela lisura nas eleições. Alegava-

se que a participação ampliada, sobretudo a do analfabeto, potencializaria a corrupção

eleitoral, pois os populares careceriam de condições de entendimento e de independência

para exercer a função do voto, resultando daí a manipulação e o falseamento das eleições.

Os proprietários rurais também tinham interesse na redução do eleitorado. Em Congresso

Agrícola de 1878, argumentavam que o “alto” nível de participação onerava o processo

eleitoral, pois se viam obrigados a manter sob sua proteção grande número de votantes que

não lhes interessava como mão-de-obra. Portanto, a restrição à cidadania baseava-se, de

um lado, em preocupações com a lisura do pleito e com a autenticidade da representação e,

de outro, no interesse econômico dos grandes proprietários travestidos de chefes políticos.

Estava em pauta o dilema político imperial: como vincular o governo aos interesses da

classe proprietária rural, mantendo, porém, seu papel de árbitro dos conflitos entre setores

desta mesma classe.

Nas eleições, havia uma lógica de ferro que levava os partidos no poder a

intervir no processo, derrotando em parte os esforços de reforma que eles mesmos

empreendiam. Em Teatro de Sombras, o autor conclui que a causa principal do círculo

vicioso não estava no Poder Moderador, mas nas eleições. Se havia tensão, mas não

crise, era porque o Poder Moderador apoiava-se em razões políticas para agir. De fato, o

próprio Imperador queixava-se da dificuldade de aferir a opinião pública devido à natureza

das eleições, o que o forçava a recorrer a outros indicadores para definir sua ação, como a

imprensa e as lideranças políticas.

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Ademais, a interferência do Poder Moderador funcionava como um

facilitador da representação da minoria, pois tornava temporária a derrota de um dos

partidos, viabilizando o bipartidarismo e um conflito regulado. Sem o Poder Moderador, o

conflito seria extralegal ou suprimido por arranjos de dominação como os da República

Velha, quando criados partidos únicos estaduais. Haveria a perpetuação de um grupo no

poder, entremeada de revoltas e golpes de Estado, como era comum na América Latina

(Carvalho, 2004). Por isso, “a redução do arbítrio do Poder Moderador pelas leis eleitorais

e pelo fortalecimento dos partidos redundou em maior conservadorismo político, em maior

afastamento entre o poder e a nação. A tentativa de transformar em realidade a ficção

parlamentar acabou por transformar em ficção a representatividade dos partidos” (idem:

413). Fenômeno levado a curso com a reforma de 1881, estendeu-se pela República Velha.

Carvalho (2003) nota que, mesmo após a abolição da escravatura, não se

instalou aqui o sentido de igualdade de cidadania. Os valores da escravidão, disseminados

por toda a sociedade, minavam o desenvolvimento de uma consciência de direitos tanto

pelo senhor como pelos escravos.

O senhor não admitia os direitos dos escravos e exigia privilégios para si próprio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima. A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis, mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogância de poucos correspondem o desfavorecimento e a humilhação de muitos (Carvalho, 2003: 53).

Escravidão, grande propriedade e comprometimento entre poder privado e

poder público deixaram marcas, limitando, de forma duradoura, a generalização do

reconhecimento universal de direitos.

Até 1930, houve uma cidadania negativa. Com a participação política

limitada a pequenos grupos, o povo só agia politicamente quando se deparava com atos

que considerava arbítrio das autoridades. Logo, não ingressou no sistema político,

assistindo-o curioso e desconfiado.

Na década de 1930, puderam-se observar ensaios de participação política,

com movimentos políticos de maior amplitude e organização, a exemplo da Aliança

Nacional Libertadora (ANL). A cidadania política avançou com o voto secreto, a justiça

eleitoral, o voto feminino e mesmo com uma tentativa de representação classista. Todavia,

de 37 a 45, o processo foi refreado, instalando-se uma ditadura civil, garantida pelas forças

armadas. Órgãos técnicos substituíram o Congresso, o governo legislava por decreto,

manifestações políticas foram proibidas e tentou-se adotar o corporativismo, forma de

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rejeição do conflito social e de apostar na cooperação entre trabalhadores e patrões, sob

supervisão estatal.

Durante o período varguista (1930/45), os trabalhadores urbanos (sobretudo

a classe operária) foram incorporados à sociedade por leis sociais. E isso não como

resultado de uma ação sindical e política independente. Ao contrário, os direitos sociais

vingavam num momento de restrições civis e políticas. Promoviam ainda a dependência ou

lealdade pessoal aos líderes, sendo vistos como um favor do governo. Afim à cultura

política do povo, sobretudo aos migrantes rurais que seguiram para o meio urbano,

desenvolvia-se uma cidadania passiva e receptora (Carvalho, 2003).

Com o fim da ditadura, houve significativos avanços na cidadania política.

Promulgada uma Constituição em 1946, foram mantidos os direitos sociais e ampliados os

civis e políticos. O percentual e o número absoluto de votantes cresceram. Também se

ampliou a ação política organizada em partidos, sindicatos, ligas camponesas e outras

associações. A urbanização acelerada favorecia eleições mais limpas, ao diminuir a

vulnerabilidade do eleitor ao aliciamento. A contrapartida era o populismo, que, de todo

modo, envolvia certa reciprocidade entre líderes e trabalhadores, além de assumir um

dinamismo responsável pelo fortalecimento dos partidos populares e pelo aumento da

independência e discernimento dos eleitores, frutos de paulatino aprendizado democrático.

Analisando o período 1946/ 64, Schwartzman (1982) identifica os aspectos

de seu sistema eleitoral: a cooptação de líderes políticos; o paternalismo; e o isolamento

político do centro econômico e dos núcleos urbanos. Esse sistema não resistiu à crescente

mobilização e à nacionalização da política, que conferiram a São Paulo peso eleitoral

decisivo nas vitórias de Jânio Quadros e João Goulart, em 1960. Ao final desse período,

para estancar a progressiva mobilização das massas urbanas, tentou-se utilizar a cooptação

política, mas esse intento fracassou por falta de apoio econômico, militar e internacional.

Como alternativa, adotou-se a restrição forçada da participação política, concentrando o

poder no Executivo, insulando-o do processo eleitoral. A participação limitou-se ao

Legislativo, onde formas tradicionais de controle do eleitorado ainda prevaleciam.

De fato, teve início uma ditadura militar que se estendeu de 1964 a 1985.

Como era maior a mobilização e mais desenvolvidos os meios de controle, a repressão

política foi mais extensa e violenta do que a do Estado Novo. No entanto, durante esse

período houve intenso crescimento do eleitorado, levando Carvalho (2003) a questionar-se

sobre o significado do direito político de votar para os milhões de cidadãos que o

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adquiriram justo quando os órgãos de representação, como os partidos e o Congresso, eram

aviltados e serviam como instrumentos do hipertrofiado Poder Executivo.

Durante o período de maior repressão ocorreu o milagre econômico. Dessa

forma, a expansão da economia mantinha a renda familiar, restando despercebida a crescente

desigualdade social. Além disso, às custas do cerceamento de direitos civis e políticos,

ampliaram-se os direitos sociais, a exemplo da unificação e universalização da previdência.

No entanto, na segunda metade da década de 1970, emergiram diversos

movimentos populares reivindicatórios, que apontavam para alterações na cultura política

brasileira, ao abrigar lutas por direitos e cidadania. Nesse sentido, pode-se mencionar o

novo sindicalismo, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a expansão de associações

profissionais de classe média e movimentos sociais urbanos como os de favelados e

associações de moradores de bairros de classe média. O fim do regime militar foi marcado,

inclusive, por grande mobilização popular, cujo auge foi o movimento Diretas Já, em 1984.

Carvalho (2003) conclui que a intensa participação popular ao final do

regime militar comprova que, em comparação ao Estado Novo, a concessão de direitos

sociais conjugada à restrição de direitos civis e políticos, foi menos perniciosa para efeitos

de mobilização política. Mas outros fatores também criaram condições para a ampla

mobilização e organização sociais, como o aumento dos mercados de consumo e de

emprego e o grande crescimento urbano do período.

Com a redemocratização e a promulgação da Constituição Federal de 1988

(CF/88), uma série de direitos civis foi restabelecida e ampliada. Daí então, suas maiores

deficiências residem no acesso diferencial, já que as populações empobrecidas dos meios

urbano e rural vêem precarizados esses direitos, seja pela deficiência dos serviços públicos

ofertados, seja pelo déficit educacional (que tem relação com os serviços) 38 que lhes mina

o pleno exercício da cidadania.

Com efeito, se os direitos sociais de caráter universal ampliados pela CF/ 88

promoveram melhoria da qualidade de vida, não se evitou a deterioração dos serviços

públicos, especialmente os usufruídos pela população mais pobre. Por sua vez, os direitos

políticos adquiriram amplitude nunca antes observada no país. Não obstante, como

a democracia política frustrou expectativas, ao não resolver graves problemas sociais e

38 Carvalho (2003) enfatiza a relação positiva entre educação e fruição de direitos. Também Bendix (1996: 122) afirma que “dois atributos da educação básica transformaram-na num elemento da cidadania: o governo tem autoridade sobre ela, e os pais de todas as crianças de um certo grupo etário (geralmente dos 6 aos 10 ou 12 anos) são obrigados por lei a providenciar para que os filhos frequentem a escola”. Sobre a relação entre escolaridade e valores propícios às instituições democráticas, confira-se Araújo (2000), a partir de pesquisa empírica realizada no Distrito Federal.

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econômicos, v. g. a desigualdade e o desemprego, não se pode considerá-la estabilizada.

Vianna (2000) levanta a hipótese de que a ineficácia de um sistema de

proteção social pode residir nas distorções presentes na seqüência e forma de incorporação

dos atores ao cenário político. No caso brasileiro, ao invés de se organizarem em partidos

políticos, os grupos mais fortes se fizeram representar dentro do Estado, inviabilizando a

formatação de um referencial (um “nós”) inclusivo (as regras gerais promovem privilégios

para uns e penalidades para outros). Com isso, o Estado pode aparecer como benfeitor, mas

se afigura, de fato, incapaz de exercer as funções de produtor e distribuidor de bens

públicos. Para a autora, sem uma esfera pública inclusiva, onde obrigações e direitos

formais erijam um mínimo de solidariedade social, não é possível que os conflitos

inerentes às sociedades de classe resolvam-se favoravelmente para “os de baixo”.

Para Carvalho (2003), a prevalência conferida aos direitos sociais 39,

surgidos em contexto de restrições civis e políticas, inibe a eficácia da democracia, sendo

efeitos seus: a excessiva valorização do Poder Executivo, resultando numa ação política

voltada mais para o Estado do que para a representação (“Estadania”); efeitos correlatos

são a expectativa de emergência de um messias político e a desvalorização do Legislativo.

Segundo o autor, a cultura política estatista liga-se ainda a uma visão corporativista dos

interesses coletivos, onde cada grupo tenta garantir direitos e privilégios junto ao Estado,

como ocorreu durante a Constituinte de 1987/88. Conclui então que

A ausência de ampla organização autônoma da sociedade faz com que os interesses corporativos consigam prevalecer. A representação política não funciona para resolver os grandes problemas da maior parte da população. O papel dos legisladores reduz-se, para a maior parte dos votantes, ao de intermediários de favores pessoais perante o Executivo. (...) Cria-se uma esquizofrenia política: os eleitores desprezam os políticos, mas continuam votando neles na esperança de benefícios pessoais (idem: 223/224).

4.2 - Direitos sociais e sua interface com o quadro político

Neste tópico deslindaremos como vieram à tona os direitos sociais e qual o

escopo que assumiram até os dias atuais. Para efetuarmos tal análise, fixamos duas partes.

Na primeira, abordaremos a emergência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), à

luz do quadro político e da modernização e industrialização que tomou impulso a partir da

Revolução de 1930. A segunda terá contornos mais amplos, partindo da denominada “cidadania

39 Para averiguar a identificação entre direitos sociais e cidadania, confira-se ‘Lei, Justiça e Cidadania’. Trata-se de pesquisa realizada no Rio de Janeiro pelo CPDOC/ ISER, onde um dos temas inquiridos foi a percepção da população carioca acerca desse tema.

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regulada” (Santos, 1998) até alcançar o tempo presente, onde direitos universais são

acompanhados por uma “americanização perversa” da cidadania (Vianna, 2000).

4.2.1 – A emergência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)

A emergência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) resultou de um

processo desencadeado a partir da Revolução de 1930. Para compreendermos a nova

configuração econômica, política e social que então se desenhou é salutar entendermos o

significado da crise vivida ao final dos anos 1920, que, para Werneck Vianna (1999),

residia em pressões vindas de baixo (das camadas médias urbanas e da classe operária) no

sentido de democratizar o liberalismo excludente em vigor. Movimento interno à

sociedade, não tinha condições de ser comandado pela burguesia agro-exportadora à época

dominante, já que vinculada à dinâmica externa. Era preciso um Estado hábil a satisfazer

os interesses dos vários grupos sociais, através de um projeto universalizador e

modernizante.

Havia que atender-se a atividade agroexportadora, politicamente derrotada, mas vital economicamente para o estabelecimento da nova ordem, diversificá-la, estimular a produção agrícola para consumo interno, consultar as reivindicações dos industriais, elevar o standard de vida das camadas médias urbanas e encaminhar a “questão social” (Vianna, 1999: 170).

O autor firma a tese da revolução pelo alto, onde sobreleva a importância do

setor agrário não exportador. Mas o influxo modernizador conjugou industrialização e

expansão do mercado interno, donde a íntima articulação entre a grande propriedade

agrária e o centro urbano-industrial. Por seu turno, o formato corporativo dos canais de

participação, controlado e manipulado pelo Estado, encobria o caráter excludente do

sistema político, impeditivo da livre movimentação dos grupos na sociedade. Para o autor,

o elemento característico do corporativismo implantado a partir de 30 residia na busca da

“paz social”, não através da pura violência, como antes ocorria, mas sobre um amplo

consenso que obrigasse politicamente os trabalhadores.

Enquanto as camadas médias urbanas eram cooptadas para o exercício de

funções públicas, a força de trabalho era submetida à rígida disciplina inscrita na legislação

trabalhista. Com efeito, durante a Primeira República a hostilidade dos industriais à

implementação de leis sociais encontrava fundamento em sua adesão aos postulados

liberais de tipo fordista. Atraía-lhes nestes a sua face autoritária, em que a hegemonia

projetava-se a partir da fábrica, sem regulação do Estado. Contudo, a nova postura estatal

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de submissão tutelar dos trabalhadores ganharia rapidamente o apoio empresarial,

condicionado à possibilidade de postergação, ou mesmo de retificação, da aplicação de

certas leis sociais.

Diferentemente de Werneck Vianna, para Weffort, embora o setor agrário

não exportador tenha se associado às camadas médias para empreender a Revolução de

1930, depois eclodiu uma circunstância de compromisso, onde nenhum dos grupos sociais

conseguia ter o predomínio político. Como o compromisso não era capaz de legitimar o

Estado, recorreu-se às massas populares urbanas como fonte de legitimação possível.

Atender às aspirações populares era um meio de os revolucionários manterem e mesmo

ampliarem sua liberdade de ação. Assim é que,

Através de Getúlio, o Estado criará uma estrutura sindical que controlará [as massas urbanas] durante todas as décadas posteriores, ‘doará’ uma legislação trabalhista para as cidades (atendendo assim à pressão das massas urbanas, que manipula, sem molestar os interesses do latifúndio), estabelecerá, através dos órgãos oficiais de propaganda, a ideologia do ‘pai dos pobres’. Enfim legalizará a ‘questão social’, ou seja, reconhecerá para as massas o direito de formularem reivindicações (Weffort, 1978: 51).

Se as massas populares não tiveram papel ativo no movimento

revolucionário, depois foram incorporadas politicamente, face à instabilidade de equilíbrio

do novo regime. Dessa forma, para o autor, tanto o movimento de 1930 resultou de uma

alteração de estrutura de poder operada “de cima”, como a posterior participação daquelas

massas no jogo político ocorreria “de cima para baixo”. Essa era a condição histórica do

regime inaugurado e do populismo que teria curso nas décadas seguintes. De todo modo,

Para as massas populares a legislação do trabalho significará a primeira forma através da qual elas verão definida sua cidadania, seus direitos de participação nos assuntos do Estado, e será também um dos elementos centrais para entendermos o tipo de aliança que passarão a estabelecer com os grupos dominantes através dos líderes populistas. (idem: 66).

Em sua análise, Werneck Vianna confere ênfase ao caráter desmobilizador

do sindicalismo corporativo anterior a 1935. O decreto nº 19.433/ 1930 estabelecia o

sindicato único, definido como órgão de colaboração com o poder público. Havia o claro

objetivo de harmonizar o conflito entre capital e trabalho. “Quanto a fins econômicos,

visava-se disciplinar o trabalho como fator de produção; quanto a fins políticos, vedar a

emergência de conflitos classistas, canalizando as reivindicações dos grupos sociais

envolvidos para dentro do aparato estatal” (Vianna, 1999: 184).

O reconhecimento sindical pelo Ministério do Trabalho demandava uma

série de exigências que acabava expurgando os sindicalistas orientados para a defesa dos

interesses classistas dos trabalhadores. Embora facultativa a sindicalização, estimulava-se a

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adesão, limitando aos sindicalizados o direito às férias (Decreto nº 23.768/34) e a

possibilidade de formular reclamações junto às Comissões de Conciliação e Julgamento

(Decreto nº 23.768/34). Ademais, os contratos coletivos obrigavam a todos, já que os

sindicatos eram definidos como órgãos delegados do poder público. O Estado garantia-lhes

o controle de toda categoria e canalizava para o seu interior quaisquer reivindicações

operárias, cujo âmbito era definido pelo próprio Estado. “Desmobilização, despolitização e

desprivatização, eis o tripé que informava a nova sistemática oficial” (Vianna, 1999: 186).

O autor aponta que, de 1935 a 1937, o Estado Novo só aguardava ratificação

constitucional, dado o fechamento de sindicatos autônomos e a prisão de seus líderes. Os

empresários, por seu turno, acabaram se apropriando do corporativismo para aumentar seu

esforço de acumulação, defendendo seus interesses junto ao aparato estatal. Saiu a

ideologia de cooperação entre as classes e vingou um Estado autoritário e modernizante.

Contudo, o plano de controle esbarrava na tendência de esvaziamento da

estrutura sindical pelas massas assalariadas. A lei sindical tentava refrear isso atribuindo

funções assistenciais e colaboracionistas aos sindicatos, mas a tendência persistia entre os

empregados, ao passo que o patronato ampliava o número de suas entidades classistas

oficiais 40. A estrutura sindical centralizada e verticalizada e a conversão dos interesses

econômicos de classe em matéria jurídica, objeto da Justiça do Trabalho, tornavam inócuos

os sindicatos, afastando os trabalhadores. Além de não cumprirem a tarefa de mediadores

entre o Estado e a classe, vazios os sindicatos havia o risco de as classes subalternas

intentarem organizar entidades paralelas. Assim, ao tempo em que o governo lançava

campanha massiva em favor da sindicalização, criava o imposto sindical (Decreto-lei nº

2.377/ 1940), obrigando todos os empregados, independentemente de filiação, a pagarem

ao sindicato o valor de um dia de trabalho por ano. Com isso, instrumentalizavam-se as

entidades sindicais a cumprirem as funções colaboracionistas que lhe atribuíra a lei sindical

de 1939. “A mobilização para os sindicatos se fará em torno da prestação de serviços

diversos, de interesse freqüentemente vital para os assalariados” (Vianna, 1999: 290).

Outra medida que teve curso em 1940 foi a criação da primeira tabela do

salário mínimo. Observou-se a fórmula do mínimo vital ou biológico: “resultante do

somatório das despesas diárias de um trabalhador adulto em alimentação, habitação,

vestuário, higiene e transporte” (idem: 295).

Os valores fixados não elevaram o padrão de vida do operariado industrial, _______________________________________________________________________________________ 40 Vianna (1999) ressalva que o colaboracionismo era facultativo para as classes proprietárias, evidenciando, ainda mais, o desigual tratamento conferido às classes pelo Estado Novo.

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já que obedeceram à remuneração média dos centros urbanos, apesar de ligeiramente

depreciada. Por outro lado, o salário mínimo teve fundamental importância, pois passou a

ser utilizado como norte pela Justiça do Trabalho, nos casos de dissídio coletivo. Proibidas

as greves, era usual as reivindicações salariais escoarem para aquela esfera. Regulado o

salário mínimo a partir do indispensável para a reprodução biológica da força de trabalho,

tê-lo como parâmetro significava aviltar a remuneração do trabalhador qualificado, o que

representava grande vantagem para o esforço acumulativo industrial.

Essa conseqüência foi observada por Francisco de Oliveira (1972), autor

que explica a transição brasileira do modelo agro-exportador para o urbano-industrial,

segundo a lógica de acumulação do capital e tendo a dinâmica interna da economia como

fator preponderante. Também compõe sua análise a dinâmica política, figurando, além do

Estado, as diferentes forças políticas que buscavam hegemonia.

Para o autor, a transição supramencionada significou a mudança de um modelo

onde o processo de acumulação se dava no plano externo, para outro em que ele passou a

ocorrer internamente. Se antes a elite agro-exportadora era a hegemônica, agora a elite

industrial ocupou esta posição. Do mesmo modo, o Estado passou a atender

predominantemente aos seus desígnios. No entanto, a revolução burguesa brasileira não foi

completa, já que não destruiu o modelo agro-exportador e sua elite. Por isso, Oliveira

(1972) fala em unidade de contrários. No Brasil, o novo alimentou-se dialeticamente do

velho, daí a impertinência de teorias dualistas que opõem atrasado versus moderno.

O Estado assumiu importantes papéis, dentre eles merece destaque a

regulamentação dos fatores de produção, com o advento da legislação trabalhista, e,

especialmente, com o estabelecimento do salário mínimo.

O salário mínimo possibilitou que demandas específicas de mão-de-obra

(ocupações que exigiam habilidades determinadas) não ficassem estritamente sujeitas à

oferta de mercado para fixação do preço. Ou seja, ele homogeneizou a força de trabalho, a

depreciando na média, gerando então maior acumulação de capital.

A questão agrária também foi fundamental, contribuindo de três maneiras: o

setor agro-exportador gerou as divisas essenciais à aquisição de bens de capital, matérias-

primas, combustíveis,...; e o setor interno forneceu alimentos baratos, ajudando a não

elevar o custo de reprodução da força de trabalho urbana. A terceira forma consistiu na

liberação de mão-de-obra do campo para a cidade, o que propiciou uma abundância de

mão-de-obra urbana (“exército industrial de reserva”), rebaixando os salários.

A abundância de terras e de mão-de-obra permitiu à agricultura manter-se

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arcaica, promovendo a acumulação pela super-exploração da mão-de-obra. Explica-se,

assim, por que a legislação trabalhista não foi implementada no campo. Esse quadro

reduzia os custos dos alimentos destinados ao setor urbano e mantinha as altas rendas das

elites agro-exportadoras. Em síntese, a “associação” entre campo e cidade foi possível,

porque a manutenção de uma exploração extensiva do campo permitiu manter baixo o

custo de reprodução social da força de trabalho urbana.

Retomando a questão do salário mínimo, Vianna (1999) alerta que,

ressalvado o caso do operariado industrial, ele representou uma melhora efetiva para os

demais assalariados urbanos, fato que atendia os clamores industriais pela ampliação do

mercado interno. O efeito político de tal operação residia na criação da massa popular que,

incorporada parcamente ao mercado, forneceria a base de apoio do populismo.

Depois, em 1943, as normas tutelares do trabalho foram sistematizadas num

todo orgânico e coerente, abarcando a legislação edificada desde a Revolução de 1930. No

dia 1º de maio daquele ano, editava-se o Decreto-lei nº 5.452, a Consolidação das Leis do

Trabalho (CLT). Embora cada uma de suas partes constituísse um subsistema, os sindicatos

eram o núcleo de sua estrutura, cujo conjunto convergia para reduzir a autonomia das classes

subalternas, minando a eclosão de conflitos entre o capital e o trabalho. Por outro lado,

Os direitos elementares do trabalho, encorpados com a legislação do salário mínimo e com os benefícios da previdência social, beneficiando em massa os assalariados, correspondiam à contraprestação ‘outorgada’ pelo Estado à ‘contenção sindical’. Em razão disso, o Estado se revestia da conotação de benefactor, e não à toa que o inspirador dessa política chegou a ser conhecido como o ‘pai dos pobres’ (Vianna, 1999: 300/301)

4.2.2 – Da ‘cidadania regulada’ à ‘americanização perversa’ da cidadania

Santos (1998) analisa como, no Brasil, ocorreu a transição entre uma ordem

liberal, onde o Estado não assegurava qualquer proteção social e entregava ao mercado a

resolução dos desequilíbrios sociais produzidos no processo de acumulação, para outra em

que os direitos sociais seriam conferidos conforme o reconhecimento estatal, através da

regulamentação de profissões.

Durante o século XIX, exceto pelo problema do trabalho escravo, o Brasil

alinhava-se ao liberalismo vigente, adotando o princípio da não-regulamentação das

profissões. Ausente qualquer proteção social, havia somente associações beneficentes

privadas por ofício. Enfim, o autor localiza entre 1888 e 1931 o período de vigência do

laissez-faire brasileiro, ressaltando, porém, (1) o descompasso entre as áreas rural e urbana

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quanto à vigência das leis de mercado, de forma que o laissez-faire restringiu-se à última; e

que (2) a produção de leis sociais, durante a década de 1920, não invalidava o laissez-faire,

mas já indicava a fragilidade dos automatismos de mercado.

Em 1923, criou-se, através do Decreto-lei 4682 (Lei Eloy Chaves), a Caixa

de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários, fixando um esquema contratual, onde

contribuíam os empregadores, o Estado e os empregados. Ao invés de um direito de cidadania

atribuído aos membros de uma comunidade, tratava-se de um compromisso privado e

restrito à dimensão de uma empresa. Mas esse modelo se difundiu amplamente até 1933.

Se as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs) apenas compensavam as

debilidades distributivas do processo de acumulação, este receberia regulação efetiva após

a Revolução de 1930. Vargas ampliou a legislação trabalhista e, sobretudo, implementou

meios para o seu cumprimento, criando o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,

em 1931. A política previdenciária, para o autor ligada à eqüidade, recebeu atenção do

governo em 1933, quando criado o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos,

que cobria esta categoria profissional, diferentemente das CAPs (organizadas por empresas),

e, embora estruturado em colegiado paritário, tinha um presidente nomeado pelo Estado.

A forma estatal dos IAPs expandiu-se por várias categorias que desfrutavam

então de serviços de extensão e qualidade proporcional à “força” do respectivo instituto, o

que, por seu turno, vinculava-se à contribuição da categoria para o esforço acumulativo.

Portanto, unificou-se, sob a jurisdição estatal, os problemas de acumulação e eqüidade. É

nesse sentido que Santos (1998) formulou o conceito de cidadania regulada, como aquela

definida de acordo com um sistema de estratificação ocupacional legalmente estabelecido,

ao invés de respeitar um código de valores políticos. Com efeito, no pós-30, a extensão da

cidadania foi tributária da regulamentação das profissões, preterindo-se a pertença à

comunidade política como valor-base para a expansão de direitos. Assim, os que, apesar de

participarem do esforço acumulativo, tinham ocupações difusas para efeitos legais, como

os trabalhadores rurais, as empregadas domésticas e variada gama de trabalhadores

urbanos, caracterizavam-se como pré-cidadãos.

Os direitos de cidadania derivavam, então, dos direitos profissionais. A

carteira profissional funcionava como uma certidão de nascimento cívico, pois, mais do

que comprovar o vínculo empregatício, representava um “contrato” pelo qual o Estado

garantia a cidadania regulada ao indivíduo. Por outro lado, abria-se um conflito político e

intraburocrático, já que, cabendo ao governo administrar os benefícios sociais, estes

deixavam de ser alvo de demandas específicas (saúde, saneamento, habitação, ...) e

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assumiam caráter difuso, pois as reivindicações gravitavam em torno do reconhecimento

profissional, que, ademais, se transformava em condição prévia para o ingresso na arena

política. Por conseguinte, o Estado definia quem seria cidadão, e os sindicatos

desempenhavam o papel de órgãos de colaboração. Consolidou-se a vinculação entre

acumulação e eqüidade: os benefícios sociais atrelavam-se à contribuição das categorias

profissionais para o crescimento, observado o controle estatal. À estratificação na esfera da

produção correspondia a estratificação dos benefícios previdenciários e da assistência

médica. Além disso, os IAPs mais poderosos eram os das categorias melhor aquinhoadas,

dado o caráter tripartite de contribuição. A burocracia sindical integrou-se otimamente ao

sistema estratificado de cidadania, com as lideranças mantendo-se submissas ao controle

do Ministério do Trabalho a fim de gozar os postos de mando do sistema previdenciário.

Santos (1998) ressalta que durante o limitado período democrático

observado entre o fim do Estado Novo e o movimento militar de 1964, a regulamentação

de profissões continuou sendo o principal critério de expansão da cidadania. Nesse

período, só abalou a cidadania regulada a Lei Orgânica de Previdência Social (LOPS), de

1960. Sem unificar, ela uniformizou os benefícios previdenciários, rompendo o vínculo

entre estes e a capacidade contributiva das respectivas categorias profissionais. Mas os

trabalhadores rurais, as domésticas e os autônomos continuaram sem cobertura.

Durante a década de 1950, com o incremento das taxas de crescimento

econômico, de urbanização e de inflação, aumentou a diferença entre os benefícios

previdenciários reservados às diversas categorias ocupacionais. As disputas internas das

oligarquias sindicais acirraram-se à medida que aumentou o seu poder burocrático. Essas

‘oligarquias’ tiveram uma ação de natureza dúplice: na esfera da acumulação,

pressionavam o Estado em prol de seus representados, cristalizando suas posições; e, na

esfera da eqüidade, opuseram-se às propostas de uniformização e unificação de serviços.

A maior competitividade política, mesmo que restrita, permitiu que novos e

velhos grupos sociais, não reconhecidos para efeito de cidadania regulada, iniciassem

movimentos reivindicativos de direitos, como as ligas camponesas. De modo geral,

aumentaram as ações coletivas vindicando maior participação na riqueza produzida. A

radicalização de demandas e a intolerância política dos atores sociais, associadas à

incapacidade estatal de administrar os conflitos e distribuir os recursos, geraram um quadro

de paralisia governamental, permeada pela ausência de instituições hábeis a conjugar o

processo de acumulação com os parâmetros de eqüidade. “Após pouco menos de 20 anos

de prática de democracia relativa, esta revelou-se incompatível com uma ordem de

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cidadania regulada” (Santos, 1998: 113). Esta a interpretação conferida pelo autor ao

episódio de 1964. Reordenaram-se, por via autoritária, as instituições que davam esteio ao

esforço de acumulação e às políticas compensatórias.

Em 1964, o governo autoritário que tomou o poder aumentou o ritmo de

expansão da cobertura previdenciária. Pelo Decreto nº 76/ 66, criou o Instituto Nacional de

Previdência Social (INPS), unificando administrativamente todos os IAPs, excetuado o

IPASE. Aumentava-se a racionalidade e o controle sobre o sistema, mas o afastamento dos

interesses privados da gestão diminuiu o controle público, gerando o aumento de

corrupção, conjugado à perda de qualidade dos serviços.

O autor enumera várias medidas implementadas até 1974: o FGTS (1966); o

Prorural (1971), que, definindo recursos, foi o primeiro dispositivo previdenciário efetivo

destinado aos trabalhadores rurais; as leis nº 5.859/ 72 e 5.890/73, estendendo a

previdência social às domésticas e aos autônomos; e o Ministério da Previdência e

Assistência Social (MPAS), em 1974. A partir de então, verifica-se, segundo Santos

(1998), a progressiva desproteção social, com o crescimento do mercado informal e a

insuficiente institucionalização de medidas hábeis a administrar os desequilíbrios sociais

oriundos da esfera econômica.

Como complemento a esse diagnóstico, vale nos reportarmos à obra de

Maria Lúcia Werneck Vianna (2000), que investiga a trajetória do sistema de seguridade

social brasileiro, desnudando os fatores de natureza política que impedem a concretização

do modelo universalista inscrito na Constituição Federal de 1988.

Segundo a autora, no Brasil, inexistem os formatos neocorporativos de

organização de interesses que viabilizam o Welfare State nas sociais-democracias

européias. Nossa situação assemelha-se mais à americana, onde interesses fragmentados

competem entre si para influenciar os processos decisórios. Por conseqüência, não se

configuram as bases de apoio e solidariedade propiciadoras de um Estado de Bem-estar de

contornos universalistas. “Assim, como ocorre nos EUA, as políticas sociais brasileiras

acabam sendo políticas para os pobres, estimulando-se os assalariados formais e as

camadas médias à obtenção de seguridade no mercado” (Vianna, 2000: 08). Ou seja,

apesar de formalmente universais, as provisões públicas têm-se limitado progressivamente

aos pobres, enquanto a minoria mais aquinhoada recorre ao mercado para obter planos ou

seguros privados de melhor qualidade.

Portanto, na ausência de pactos estabilizadores (concerto entre

trabalhadores, empregadores e governos) dos sistemas avançados de Welfare State, no

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Brasil uma “americanização” marcou a expansão das políticas sociais a partir da década de

1960. Utilizando como exemplo (generalizável a outras políticas sociais) o sistema

previdenciário brasileiro, a autora afirma que este,

montado durante o Estado Novo em moldes bastante próximos àquele instituído na Alemanha por Bismarck nos anos 80 do século passado, embora tenha sido reformado à inglesa pela Constituição – no espírito universalista da social security – vem se americanizando a passos largos. Ou seja, as provisões públicas ficam para os pobres (que em geral têm baixa capacidade de expressar o desagrado com a negligência que os prejudica) e o mercado se encarrega da oferta de proteção – a preços e qualidade variáveis de acordo com o bolso do cliente – aos que dispõem de alguma renda para comprá-la (Vianna, 2000: 14).

O impulso universalizador ocorreu durante a ditadura militar, quando a

Previdência alcançou, formalmente, trabalhadores rurais, empregados domésticos e

autônomos. Mas se o sistema não se expandiu seletivamente, hierarquizando a cidadania, a

nivelou num plano inferior. Ademais, obstruiu os canais corporativos de participação que

antes permitiam canalizar, ao menos parcialmente, as demandas dos trabalhadores.

Deve-se atentar também que o regime militar enfeixou uma intensa

modernização econômica. Daí resultou a expansão do parque industrial, a diversificação da

estrutura ocupacional e a eclosão de múltiplos interesses. Esses elementos, associados às

medidas firmadas nos parágrafos precedentes, conduziram à superação do modelo varguista

implantado a partir da década de 1930.

Maria Lúcia ressalta os diferentes métodos de condução das políticas

econômica e social no período em comento. Enquanto as primeiras eram elaboradas e

decididas no âmbito de agências governamentais permeáveis aos interesses empresariais,

ainda que de forma fragmentária; as políticas sociais eram regidas por sistemas

centralizados e tecnocraticamente administrados, sem nenhuma participação dos cidadãos.

Fechamento dos canais de expressão – partidos políticos minimizados, Parlamento enfraquecido, sindicatos controlados, movimentos sociais sob suspeita, etc. – e despolitização das relações sociais foram, por outro lado, ingredientes fundamentais na materialização de mais um aspecto negativo da política social brasileira sob o regime autoritário: sua ‘politização distorcida’. Mantida a aparência constitucional, com a realização de eleições e câmaras legislativas em funcionamento, a política social transformou-se, através das imensas máquinas burocráticas que a operavam, dos cargos disponíveis e dos serviços prestáveis, no reino da política clientelista, eleitoreira e fisiológica (idem: 144/145).

No entanto, o efeito mais profundo foi atrelar o sistema a uma lógica

privatizante, com a adoção irrestrita de critérios de mercado ou de eficiência empresarial

na gestão de programas sociais, e com a terceirização, contratando serviços de particulares

sem expandir os investimentos da rede pública. Essas contratações serviram de base para a

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posterior consolidação de uma rede privada de serviços voltada à parcela da população

com renda suficiente para comprá-los.

Esse processo foi reforçado pela crescente lógica lobbista de organização

dos interesses, o que, segundo a autora, se manifestou claramente durante a Assembléia

Constituinte. No período democrático, os instrumentos e os canais de comunicação entre

segmentos da sociedade, principalmente empresariais, e o Congresso diversificaram-se.

Acompanhou este movimento a fragmentação de interesses.

Maria Lúcia explica que, por terem caráter multifacetário, os lobbies

inviabilizam acordos de maior abrangência, base de robustos sistemas de proteção. Por isso

não houve um concerto hábil a impedir uma perversa complementariedade entre o público

e o privado, conforme uma lógica de universalização excludente: aos cidadãos são

conferidos direitos universais, mas seu exercício é estratificado de acordo com a capacidade

do cidadão-consumidor. A autora ressalta que, pautados por discursos universalistas, os

sindicatos de trabalhadores atuam de forma pulverizada, reforçando esse movimento e

inviabilizando amplos concertos que pudessem fundar um pacto de solidariedade

abrangente, como no Welfare State.

No Brasil, os que não têm acesso a tais formas de ação reivindicativa são muitos milhões que não podem ser descartados do discurso (pelo menos) das centrais sindicais, tanto porque votam nas eleições gerais, como porque representam o ‘lado’ historicamente oprimido cuja defesa as lideranças oriundas do mundo do trabalho sempre encamparam. Daí o paradoxo (aparente) entre a retórica publicista (às vezes bastante radical, como ocorreu durante a trajetória da reforma sanitária) da CUT, por exemplo, e as estratégias particularistas do sindicalismo a ela vinculado (Vianna, 2000: 192).

Daí a conclusão da autora:

Diante de tal quadro, remota é, portanto, a perspectiva de que arranjos social-democratas venham a prevalecer no Brasil. Fragmentação e confronto consistem nas formas dominantes de articulação e relacionamento dos interesses, o que resulta numa base estreitíssima de sustentação para políticas redistributivas (idem: 194).

Além desses aspectos, observamos contemporaneamente novas tendências,

como o estancamento do crescimento em gastos sociais; a gradual inserção de mecanismos

de seletividade, transmutando o eixo das políticas públicas de escopo universal para

programas focalizados onde especificados os públicos-alvo; ou ainda à transferência de

serviços da órbita estatal para entidades privadas, mas geralmente mantendo a regulação e

o financiamento públicos, criando então novos compósitos público-privados.

Vianna (2000) defende a preservação da concepção universalista inscrita na

CF/ 88, embora firme a necessidade de novos arranjos público-privados como estratégia

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para a consecução das políticas sociais. A autora enfatiza, porém, que nessa combinação o

Estado não pode se furtar de seu papel de regulador e deve agir eficazmente de modo a

evitar que tenham curso fenômenos como o da “americanização perversa” da cidadania.

4.3 - A informalidade ontem e hoje

Já destacamos as demandas por autenticidade e por dignidade como desafios

contemporâneos para o acesso e o exercício da cidadania. Entre as primeiras encontram-se

tensões entre universalismo e particularismo, como as dirigidas contra discriminação de

gênero ou de raça, ou ainda movimentos de minorias étnicas ou de imigrantes. Entre as

segundas é chave a capacidade de o Estado promover a integração sócio-política de seus

cidadãos, num quadro onde sua capacidade de regulação vê-se progressivamente erodida.

E é nesse segundo conjunto que se enquadram as reflexões sobre a informalidade no

Brasil, tanto no passado como atualmente.

Nesse contexto, é válida a indagação de Vidal (2000) acerca da aplicabilidade

ao Brasil de categorias como “desfiliação” e “vulnerabilidade em massa”, utilizadas por

Castel (1995) ao analisar o caso francês. De fato, a profunda desigualdade social brasileira

não observou o desenvolvimento de um regime salarial que englobasse a quase totalidade

da população. Já na França, o Estado Providência edificou-se sobre uma sociedade

assalariada, com um contínuo de posições sociais, se não iguais, ao menos comparáveis.

Se há dúvidas quanto à aplicabilidade das categorias de Castel ao caso

brasileiro, não ocorre o mesmo quanto à conclusão de que o novo ciclo de modernização

capitalista, anunciado pela crise do Welfare State e pelo processo de reestruturação

produtiva, deu curso, a partir dos anos 1970, a um progressivo desassalariamento, que se

faz acompanhar por “processos de inclusão-exclusão orientados por classificações sociais

que expressam novos poderes e hierarquias no mundo do trabalho” (Batista, 2003: 197).

No Brasil, aumentou o desemprego ao longo dos anos 1990, dado o fraco

desempenho da economia e a destruição de postos de trabalho promovida pela

reestruturação produtiva, desencadeada, em grande parte, pela abertura comercial iniciada

naquela década. Dalbosco & Kuyumjian (1999) afirmam mesmo que as reformas

neoliberais implantadas durante os governos Collor & FHC geraram um “choque” de

produtividade. Contudo, sua ampliação, garantida pela tecnologia e pelos novos métodos

de gerenciamento, não foi acompanhada pelo nível de emprego. Houve uma rápida

mudança na composição do emprego, com a redução relativa de postos agrícolas e

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industriais e o seu aumento nos serviços, comércio e transportes. Ainda, o incremento do

processo de subcontratação/ terceirização impulsionou a proliferação de micro e pequenas

empresas, trabalhadores autônomos e prestadores de serviços.

A informalidade encontra-se no centro desse debate, onde se entrecruzam

temas como reestruturação produtiva; flexibilização e precarização das relações de

trabalho; mudanças nos conteúdos e na cultura do trabalho; e a configuração de novos

padrões de consumo e de estilos de vida (Chinelli e Paiva, 1999).

Para melhor compreendermos o impacto que a informalização tem produzido

sobre o exercício dos direitos de cidadania, é preciso identificarmos tanto as formas de

inserção dos cidadãos no mercado de trabalho, como as características da economia informal.

Machado da Silva (2003) esclarece que a noção de informalidade surgiu nos

anos 1960 para dar suporte ao debate sobre os problemas de integração de crescentes

contingentes de trabalhadores que, nos países subdesenvolvidos, deslocavam-se do campo

para as cidades. Tratava-se de uma abordagem dual referida ao modelo de quase-pleno

emprego dos países desenvolvidos (Welfare State). Nesta perspectiva, considerava-se a

tendência à universalização do trabalho assalariado, cuja institucionalização asseguraria o

acesso aos direitos de cidadania. Tal enfoque analítico acabava desconsiderando, ou

minimizando, as eventuais continuidades entre os mercados formal e informal de trabalho 41.

Com o declínio do keynesianismo, circunstâncias como a desregulamentação,

a descentralização da produção e a multiplicação de pequenas empresas afloraram,

promovendo maior informalização e alterando as fronteiras e a interação entre os setores

formal e informal. “Ao invés de uma tendencial formalização estaríamos diante de uma

crescente informalização, com infração de leis trabalhistas, formas flexíveis de organização

e processos de produção profundamente enraizados em relações familiares e comunitárias”

(Chinelli e Paiva, 1999: 70). Esses autores destacam a importância da unidade doméstica

para a reprodução social. Nos tempos de capitalismo regulado, ou seja, durante a Era de

Ouro 42, os laços de solidariedade do núcleo familiar diminuíram de importância, dada a

extensa e progressiva proteção social via Estado. Contudo, o descenso do Welfare State

exige a restauração de tais laços, pois o aumento da informalidade demanda uma nova

combinação de relações monetárias e de padrões de reciprocidade, além da articulação e

crescente complementaridade entre o formal e o informal. 41 Sobre o continuum entre os mercados formal e informal de trabalho, confira-se Machado da Silva (1971). E sobre as conseqüentes complicações para as políticas contra o desemprego, confira-se Noronha (2003). 42 A expressão não foi utilizada pelos autores. Tomo-a de empréstimo a Hobsbawm (1997). Este autor utiliza-a para se referir ao período que se estende da década de 1950 até o início dos anos 1970, durante o qual as políticas Keynesianas atingiram seu ápice, conformando o Estado de Bem-Estar (ou Welfare State).

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As transformações profundas que se operaram desde os anos 1970 (e, no

Brasil, sobretudo a partir dos anos 1980, quando explode a crise da dívida externa

(Pochamann, 2000)) erodiram a confiança na possibilidade de pleno emprego e de

universalização da proteção social. Com isso, o modelo dual (formal/ informal) perde

capacidade analítica, já que o setor organizado (formal-assalariado) 43 sofre a disputa das

relações de trabalho informais, transformadas numa espécie de padrão de referência

concorrente, mesmo nos países europeus (Machado da Silva, 2003). “O assalariamento já

não reina sozinho como parâmetro inquestionável de relação salarial, o processo social

deixou de configurar-se segundo um dinamismo central, com hierarquização entre as suas

dimensões constitutivas, cedendo lugar à idéia de fragmentação e de ‘redes’ entrecruzadas”

(Machado da Silva, 2003: 152/153).

Nos anos 1980 e 1990, houve uma progressiva desestruturação do mercado

de trabalho brasileiro, com a redução do assalariamento com carteira e expansão do

desemprego e de ocupações do setor não organizado da economia. De fato, embora o regime

salarial, com registro, nunca tenha aqui se generalizado como nos países europeus,

seguíamos tal curso, passando de 12,1% da PEA, como assalariada registrada, em 1960,

para 49,2%, em 1980. Onze anos depois, retornamos para 36,6% e, em 1995, para 30,9%.

Em relação ao assalariamento (com ou sem registro), temos a seguinte evolução; 42%, em

1940; 62,8%, em 1991; e 58,2%, em 1995. Conclui-se que, sobretudo nos anos 90, houve

“um movimento de desassalariamento, provocado fundamentalmente pela eliminação dos

empregos com registro” (Pochmann, 2000: 75). Além do processo de dessalariamento, dá-

se a perda de qualidade dos empregos gerados. É o que ocorre com a redução do setor

secundário da economia, cujos empregos são muitas vezes substituídos por ocupações no

terciário, em menor quantidade, qualidade e remuneração.

O aumento do desemprego de longa duração e a proliferação de ocupações

atípicas, irregulares e parciais inviabilizam o padrão de integração social baseado no

emprego regular e de boa qualidade. Desenha-se um processo de vulnerabilização de

amplos contingentes populacionais e um distanciamento do patamar de cidadania por

tempos desejado. Por sua vez, as instituições sociais, como partidos, sindicatos e Estados,

mostram-se incapazes de oferecer suporte aos que sucumbem em meio ao processo social,

43 Termo utilizado por Pochamann (2000), recebe duras críticas, como as de Dalbosco & Kuyumjian (1999), que entendem inadequada a divisão entre um setor formal, estruturado e capitalista, e um setor informal, não estruturado e não regulamentado; pois o trabalho informal perpassa inclusive os setores dinâmicos do capitalismo formal. Embora, concordemos com os argumentos críticos, não se pode negar a capacidade analítica do termo utilizado por Pochamann, quando queremos visualizar o processo de informalização.

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cuja marca, conforme os cânones neoliberais, consiste na crescente entrega ao mercado da

responsabilidade pela promoção do desenvolvimento, num momento de emergência de um

novo paradigma tecnológico (Pochmann, 2000; Pochmann, Amorim, Campos e Silva, 2004).

Uma questão-chave na discussão presente é a relação entre o Estado e a

economia informal, que, para Lautier (1997), envolve um problema político. Sua tese é de

que a tolerância estatal ante a ilegalidade de práticas econômicas informa um modo de

dominação política, este a razão principal da expansão da economia informal. Essa atitude

estatal geraria um grave problema de legitimação do Estado, por comportar um

fracionamento da cidadania, colocando mesmo em perigo a democracia.

Para o autor, a tolerância estatal frente à informalidade liga-se mais à

necessidade política que à funcionalidade econômica. A precariedade oriunda da situação

de ilegalidade gera dependência e individualização dos comportamentos, potencializando a

perpetuação de formas clientelistas de poder, como o exemplo de vendedores ambulantes

que precisam renegociar sua presença, seja com a autoridade policial (corrupção), seja

participando da clientela do prefeito. Abre-se, ainda, a possibilidade de manutenção de um

quadro onde a repressão não precisa ser justificada, por se autolegitimar 44.

Lautier atenta que a tradição “marshalliana” assimila uma “cidadania plena”

ao assalariamento, servindo este de garantia de direitos sociais. Ora, a economia informal

tem por marca o caráter parcial dos direitos sociais e de seus níveis de garantia, o que leva

o autor a indagar “se a cidadania na América Latina – assim como nas demais regiões –

deve ser definida por referência a esta ‘cidadania salarial’, muito ligada à história

européia” (Lautier: 1997: 86). Ademais, a fragilidade dos direitos sociais retroage sobre os

direitos políticos, reativando, por exemplo, relações clientelistas com caciques locais.

Assim, um quadro de precarização do trabalho e de vasta informalidade fragiliza não só os

direitos sociais, mas também os direitos políticos. “A informalização das sociedades de

terceiro mundo não é, portanto, apenas um problema de política econômica ou social.

Relaciona-se a uma questão maior que, de maneira um tanto otimista, pode ser denominada

de democratização destas sociedades” (Lautier, 1997: 89). Resta então saber se, para além

do emprego assalariado, há um estatuto social que possa suster a cidadania dos atores da

economia informal (ex: há os que propõem que tal referência poderia ser a propriedade). O

problema é que a existência de referências outras para a cidadania mina seu postulado base:

_______________________________________________________________________________ 44 Mas tal perspectiva parece-me simplificar os problemas afetos ao dinamismo das economias periféricas ou aos problemas recentes atinentes à reestruturação produtiva e à globalização, o que não afasta o acerto, ao menos parcial, da hipótese do autor.

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a sua unidade, fragmentando-a.

Lautier (1997) observa que o “abandono” do modelo de “cidadania salarial”

como meio de integração do conjunto da população põe em pauta a necessidade de

restauração da capacidade de regulação institucional da economia pelo Estado, base para a

emergência de um novo tipo de cidadania hábil a unir, sob um mesmo estatuto, os

“formais” e os “informais”. Para o autor, a questão é saber se o Estado é capaz de

empreender tal projeto de regulação social.

Por fim, cumpre destacar que a progressiva fragmentação e diferenciação,

fruto da desestruturação do assalariamento, aumenta a heterogeneidade da experiência,

dificultando a formação da ação coletiva e tornando o conflito social descentrado. O

trabalho livre, mas protegido, baseava-se em princípios de solidariedade que limitavam e

organizavam os interesses individuais. Atualmente, a cultura do trabalho que servia de

suporte para tal desenvolvimento tem sofrido intenso desgaste, encontrando menos

condições de servir como orientação valorativa e de organizar as identidades e os conflitos

(Machado da Silva, 2003). Ademais, o desenvolvimento da individualidade beneficia-se da

existência de suportes objetivos e de proteções coletivas, de maneira que o processo de

individualização em curso no mundo atual comporta uma perigosa contradição, ameaçando

a sociedade de uma fragmentação, que a tornaria ingovernável, ou de uma polarização entre os que podem associar individualismo e independência, porque sua posição social está assegurada, e os que carregam sua individualidade como uma cruz, porque significa falta de vínculos e ausência de proteções (Castel, 1998: 608/610).

4.4 - A cidadania na cidade

A análise marshalliana firma que o status de cidadania comporta uma espécie

de igualdade humana básica. É a associação entre esse mínimo comum e a participação numa

comunidade que dá curso ao reconhecimento de direitos. Mas o desenvolvimento histórico

das favelas cariocas auxilia-nos a problematizar essa configuração da cidadania no Brasil.

No início do século XX, era a invisibilidade da favela aos setores dominantes

que assegurava sua permanência. Com o seu crescimento, elas substituíram os cortiços no

imaginário social, sendo à época consideradas fonte dos males da cidade e obstáculos à sua

modernização, além de para elas confluir o estigma de abrigarem vagabundos e moradores

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marcados por um deficit moral. Tratava-se então de extingui-las. Nesse contexto, inexistia o

senso de igualdade e qualquer espaço para o reconhecimento jurídico dos favelados como

cidadãos. Eles apareciam como perturbadores da cidade, local dos cidadãos.

A visão da favela como problema não desapareceu, mas, a partir dos anos

1930, teve lugar a preocupação com as condições de vida de seus moradores. À extinção

das favelas deveria conjugar-se uma pedagogia civilizatória. Só após, os “pré-cidadãos”

estariam aptos a integrar a comunidade de iguais. Enquanto isso não acontecia, vigia um

sistema hierárquico reforçado pelo próprio estatuto legal.

Note-se que, na década de 1930, conforme a lógica da cidadania regulada, a

proteção legal aplicava-se à pequena parcela dos trabalhadores. Os direitos sociais

compreendiam ainda a assistência social, em especial a proteção à família brasileira. Se

esses direitos decorriam de leis federais, também diferenciava a cidadania a legislação

municipal de planejamento urbano e de regularização da propriedade fundiária, na cidade

do Rio de Janeiro. Enquanto os excluídos da legislação trabalhista e social perdiam uma

oportunidade ou benefício; no caso do planejamento da cidade e da lei de propriedade, a

perda era mais problemática. Sem a legalidade, os residentes não podiam requerer o acesso

a serviços públicos – água, esgoto, asfalto, ... – bases da cidadania urbana. A ausência de

reconhecimento legal ainda trazia como conseqüências: a insegurança permanente; a

expulsão de casas e de terras há muito cultivadas; a perda de investimentos no longo prazo;

e rupturas na família e na comunidade (Fischer, 2006).

De fato, o Código de Obras (1937) fixou rígidas exigências, inviabilizando a

legalização de favelas e loteamentos populares, sem impedir, porém, o seu vertiginoso

crescimento durante as décadas de 1930 e 1940. Mas as restrições geraram importantes

efeitos simbólicos, de resto os mesmos já produzidos em legislações de obras e sanitária de

1903/ 1904. Ao formalizar o espaço da cidade, marginalizava os direitos culturais e

econômicos dos mais pobres, quando, lastreado por meios autoritários, o mundo moderno

do direito começava a expandir seus domínios pela vida social. “Seus lares eram

concessão, não direitos, mantidos em constante insegurança por um regime legal que

criava um poder aleatório e não sancionava uma ordem pública” (Fischer,. 2006: 358).

Em geral, a luta pela permanência nos tribunais resultava em derrota. E,

“como os trabalhadores sem carteira de trabalho, as famílias sem certidões de nascimento e

os residentes sem o “habite-se”, os favelados cujos direitos eram negados nos tribunais

encontravam-se em um espaço indefinido entre a lei e a realidade social” (idem, 363).

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Como opções restavam: resistir à remoção, fisicamente ou por intermediários como

políticos e grileiros poderosos; ou mudar para um novo espaço igualmente precário.

Com efeito, apesar da ilegalidade ou não formalização das favelas, na maioria

dos casos, elas permaneceram. Laços de dependência política serviam para evitar remoções

e atuavam como canais para o acesso a serviços públicos básicos. Assim, um padrão

mínimo de vida digna não advinha de direitos legalmente reconhecidos entre iguais, mas

de relações hierárquicas que eram o canal para esse mínimo e que, dada a insegurança

jurídica, mantinham sob controle os favelados. A própria situação de insegurança evitava

que os moradores investissem na melhoria de seus lares.

Se as relações pessoais serviam como meio para satisfazer, mesmo que

precariamente, as demandas dos moradores, a própria lei reproduzia as divisões sociais no

seio da modernização urbana, possibilitando a proliferação de relações de dependência

política. Observou-se a falta de um estatuto comum e inclusivo, carência esta que não era

da favela, mas do conjunto da sociedade. Afinal, aquela nunca esteve à margem da

estrutura urbana. Apenas sua inclusão não se deu pelos instrumentos jurídicos. E até hoje esse

debate persiste, servindo como tema exemplar a titulação da propriedade. Como enquadrar

o direito de laje? Quais normas de urbanismo devem reger as construções em favelas?

De todo modo, nas décadas seguintes, as favelas observaram um ritmo de

crescimento superior ao do resto da cidade, exceção feita à década de 1970, cuja

peculiaridade descabe aqui analisar. Em seu “itinerário”, elas sofreram mudanças

profundas, adquirindo características muito diversas das presentes em sua “definição

original”, impedindo que se responda à pergunta “o que é uma favela?” identificando-a

como um lugar de ausência, ou de carência 45. Entretanto, as representações estigmatizantes

ainda são hegemônicas e, para Silva e Barbosa (2005), influenciam sobremaneira a atuação

das forças policiais, além de minar a construção de uma cidade una e plural.

Ademais, o reconhecimento da cidadania é relativizado segundo a cor da

pele, o nível de escolaridade, a faixa salarial e o espaço de moradia. Expressa essa lógica o

grau de tolerância da sociedade quanto às diferentes manifestações de violência, dosado

segundo o alvo da agressão e não por referência ao ato. É diferenciada a postura da mídia e

_______________________________________________________________________________

45 Silva e Barbosa (2005) iniciam suas reflexões a partir da resposta que comumente a população fornece à pergunta: “o que é uma favela?”. Curiosamente, o quadro que encontram não difere muito da visão que se configurou no início dos anos 1960, retratado por Silva (2005). Independentemente das preferências religiosas ou das condições socioeconômicas dos entrevistados, a favela é definida pelo que não teria: infra-estrutura urbana, ordem, lei e moral, além de ser, no geral, miserável. Ignora-se a pluralidade de fato que se esconde sob o termo favela.

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dos órgãos de segurança diante da violência sofrida por um morador de periferia (ou de

favela) ou por integrantes das classes médias. Remetendo-se a um conflito na Rocinha

noticiado pela imprensa, Silva e Barbosa (2005: 59) falam em hierarquia da violência: “um

número expressivo de articulistas e leitores dos principais jornais da cidade reivindicava, com

indignação e rancor, o ‘direito de ir e vir’ dos moradores da ‘cidade’ – espaço urbano no

qual não incluem a favela – e questionava o direito de existência daquela comunidade

[Rocinha], que abriga cerca de oitenta mil pessoas e se constituiu há mais de setenta anos”.

Já Valladares (2005) questiona a escolha metodológica que, no momento

atual, compara favela e não-favela segundo o grau de exclusão social (mais acentuado

naquela). Estudos sobre as transformações da segregação social na cidade mostram que

foram os bairros mais ricos que se afastaram da média dos outros, enquanto as favelas

tiveram evolução mais próxima a de bairros populares e “médios”. A autora acrescenta que

a miséria não é mais uma característica geral das favelas, assim como a precariedade dos

equipamentos urbanos deve ser relativizada. Com isso, as categorias “favela” e “favelado”

tornam difícil saber a que especificidade se referem. Ante a diversidade entre as favelas, no

interior das mesmas e entre elas e bairros populares (dificuldade tanto maior nas

periferias), a autora prefere a hipótese de a identidade da favela ligar-se ao contraste com

os bairros de classe média e alta que lhes são próximos ou mesmo vizinhos, e não às suas

supostas características. Tem-se proximidade espacial com distância social.

Enriquece esse debate o trabalho de Perlman (2006), baseado em um survey

longitudinal, em histórias de vida e em observação participante em três comunidades de

baixa renda na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, coletados pela autora em 1968/69

e entre 1999/2003.

Nas últimas três décadas, aumentou o consumo individual de bens

eletrodomésticos e o acesso a serviços públicos. Dessa perspectiva, melhorou a qualidade

de vida dos entrevistados. De fato, água, esgoto e eletricidade são agora quase universais

(para a amostra). Materiais de construção, como tijolo e argamassa, se generalizaram,

enquanto antes mais da metade tinha casas de madeira. Apesar disso, as pessoas sentem

que perderam status e que aumentou o hiato entre eles e o resto da sociedade. Mesmo

possuindo boa parte dos novos bens de consumo, sentem que não ganham suficientemente

para ter uma vida digna. Perlman (2006) explica que eles tiveram sua posição rebaixada

em termos relativos, mesmo ampliando seu estado em termos absolutos.

Ademais, embora os favelados não sejam mais considerados seres

marginais, as favelas, como territórios controlados por traficantes de drogas, são

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percebidas como abrigo de “marginais” (bandidos), do “movimento” (i.e., traficantes de

drogas). Na favela, há a distinção entre “trabalhadores” e o “movimento”, mas fora se

ampliou o senso de que elas são a fonte do problema e não o lugar onde estão as maiores

vítimas, afinal, nelas a taxa de mortes violentas é muito superior à do resto da cidade.

Nesse contexto, faz sentido que, entre os entrevistados, a violência tenha figurado como o

motivo mais citado para o abandono/ saída das favelas. Pela comparação com a situação

em 1968/69, diminuiu a ocupação de espaços públicos, a participação em associações

comunitárias e o contato, por visitas, entre amigos e parentes, especialmente quando há

guerra entre comandos.

Nesse debate, Silva, Leite e Fridman, (2005: 02) lembram que a segurança

pública não é uma questão nacional, mas é um problema urbano que nas últimas décadas

atinge todas as grandes cidades, mesmo tendo especificidades locais. Firmam que, tal

como posto no presente, o problema da segurança pública impede a tematização da justiça

social e da desigualdade.

Os autores sustentam que observamos uma mudança de percepção coletiva,

onde o problema da segurança pública se autonomiza, limitando o debate, gradativamente,

à expansão do crime violento ligado direta ou indiretamente à economia das drogas, com

dois campos opostos: um defende a atuação “energética” do poder repressivo contra os

criminosos; e outro, com menor acolhida pela opinião pública, denuncia o excesso de força

empregado pelos policiais. Nessa arena pública erodida e desertificada, a linguagem

universal dos direitos vê-se fragilizada, e as ações coletivas, despojadas de organicidade.

Como contrapartida do crescente sentimento de insegurança e de medo do

crime violento, essa polarização é acompanhada pela dissolução da confiança, elemento-

chave para qualquer relação de alteridade. Por seu turno, a cognição produzida pelo medo

apóia-se em representações de um antagonismo difuso entre categorias sociais sem

fronteiras identitárias claras. Com isso, as ações coletivas esvaecem.

No Rio de Janeiro, o quadro delineado produz uma articulação indissociável

entre os “problemas” da “segurança pública” e das “favelas”. Se o primeiro estrutura-se

cada vez mais a partir de pressupostos e preconceitos que fomentam o aprofundamento e a

racionalização dos meios de repressão, as políticas sociais passam a ser compreendidas e

formuladas como políticas de segurança destinadas ao controle social dos focos de

pobreza. “Intencionais ou não, essas ações terminam por isolar as favelas do resto da

cidade, reduzindo-as a cidadelas do crime ou regiões liberadas do narcotráfico, agravando

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a violência a que se encontram submetidos os moradores, com enormes danos à expressão

livre dos seus padecimentos e dos seus interesses” (Silva, Leite e Fridman, 2005: 29).

Vale então trazer à baila a discussão de Burgos (2005) sobre a possibilidade

de disseminação de uma cultura cívica orientada para a participação social e política na vida

citadina. O autor explora as fronteiras entre as cidades formal e informal 46, tomando por

referência (caso-limite de informalidade) as favelas do Rio de Janeiro, e sustenta que, mais

do que efeito, a favelização é causa da reprodução e aprofundamento da desigualdade

social nas democracias latino-americanas. A territorialização da cidade (sua divisão em

microcosmos sociais) limita a ação política das camadas populares.

A incorporação da favela à cidade observou um padrão hierarquizado, com

arranjos clientelistas em que intermediários políticos (líderes comunitários) traduziam as

demandas dos moradores por bens públicos proporcionados pela cidade. A autonomia

individual e coletiva dos moradores via-se então fragilizada. Em lugar da afirmação de

direitos e de luta por cidadania, a instrumentação da política: um sistema de troca de favores.

No entanto, esse quadro ruiu. Os arranjos clientelistas que integravam de

forma subordinada os territórios (favelas), promovendo uma hierarquia urbana

estabilizada, cederam espaço a um quadro de atomização territorial, onde, embora

permaneçam vivos os compromissos políticos para o alcance de benefícios tangíveis

(clientelismo), falta a dimensão de controle. Ademais, o maior acesso a serviços urbanos,

sobretudo a partir dos anos 1980, e a assimilação de uma noção de direitos tornaram mais

exigentes e crescentes as demandas sociais, valorizando o voto e o eleitor dos territórios.

_______________________________________________________________________________ 46 A dualidade apontada pelo autor é questionável (vide Marzulo (2006), Fischer (2005), Valladares (2005) ou Perlman (2006)). Ademais, Burgos entende que a categoria “favela”, mais que uma configuração ecológica, envolve um micro-sistema sócio-cultural específico, dotado de autoridades e instituições informais locais, bem como de identidades coletivas territoriais. Esses elementos servem de suporte à negociação política de acesso a bens públicos da cidade. Associado à favela existiria também um tipo de subjetividade: a do “favelado”, socializado em meio à ausência de referenciais da cidade*. No entanto, entendemos que as controvérsias que pesam sobre os pressupostos do autor não afastam o debate travado e que aqui damos curso.

Vale reportar também uma observação feita por Marzulo (2005). Este autor afirma que, ao definir as ‘favelas’, não devemos nos ater à situação jurídica ilegal, informal e/ ou irregular da ocupação e uso do solo, pois, na cidade do Rio de Janeiro, há uma plêiade de situações similarmente ilegais de condomínios verticais e horizontais de classes abastadas, além de existirem espaços periféricos ocupados por pobres que, embora normatizados juridicamente, apresentam condições espaciais e sociais similares à favela.

* Na análise do articulista, a cidade é entendida como o locus dos direitos universais, da igualdade e da liberdade, da cidadania, enfim.

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Exsurge um problema de integração social. Como não existe um código de

conduta universalmente aceito, não se perfaz um espaço público compartilhado, e

prevalece um cenário fragmentado e sintetizado pelo autor na noção de “cidade escassa”.

Esta se refere à “falta de ordem e de lei, fruto da frágil universalização de regras e

valores e da incapacidade do Estado de fazer cumprir os direitos” (Burgos, 2005: 198).

Portanto, o desafio de integração envolveria a superação das fronteiras territórios-cidade,

pela emergência de um novo tipo de solidariedade, calcado na construção da cidadania e na

comunicação entre a participação social e política e a produção normativa.

Mas, como salientado, a criminalidade violenta associada ao tráfico de

drogas reforça o estigma e o isolamento das favelas. Ademais, o crescente sentimento de

insegurança e o medo do crime violento deslocam o conflito social rumo aos controles

institucionais assecuratórios das rotinas cotidianas. Aumenta o privatismo e diminui a

confiança, reduzindo a chance de se assentarem laços de solidariedade com o “outro”. É

nesse contexto que se reivindica a maior eficácia dos meios de repressão, apesar das

renitentes denúncias de sua atuação arbitrária, violando direitos da população das favelas.

Pauta o debate a manutenção da ordem, em detrimento da linguagem dos direitos.

Vale complementar essas reflexões com a análise de Vidal (2003). Esse

autor entende que precárias condições de vida, associadas ao problema de distribuição de

renda, minam uma participação ativa na vida política e favorecem a persistência de uma

representação holista da ordem social às custas da plena aceitação do ideal de igualdade da

democracia moderna. No entanto, em pesquisas empíricas realizadas em comunidades

empobrecidas de Recife e do Rio de Janeiro, o autor nota que os pobres valorizam mais o

sentimento de pertencer à humanidade do que a redução das desigualdades sociais. A

chave discursiva dos pobres contra a injustiça social reside no anseio por respeito, por

serem reconhecidos como membros legítimos da sociedade. Nessa trilha, o autor pretende

mostrar que reivindicações de respeito afinam-se a uma dimensão primordial do sentido de

cidadania democrática nas sociedades contemporâneas.

Há diversas formas de falta de respeito, como palavras carregadas com

sentido implícito, gestos de desconfiança e olhares esquivos, além do velado preconceito

racial. Todos humilham e revelam a inferioridade social de seus receptores.

Enquanto em sociedades tradicionais as hierarquias rígidas fixavam o status

de cada qual, conforme o pertencimento a um grupo social; nas sociedades modernas, a

identidade se constrói mediante um processo de afirmação do indivíduo com relação aos

papéis institucionais, ou seja, não é conferida diretamente pela estrutura social, daí o

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sentimento de inferioridade tornar-se insuportável, convertendo-se em humilhação. A

exigência por respeito é pré-requisito para uma sociedade decente, noção que transcende a

de sociedade justa, baseada apenas no equilíbrio entre liberdade e igualdade.

Em sua análise, Vidal (2000, 2003) não conceptualiza a palavra respeito,

entendendo-a como a preocupação de ver a própria apresentação de si confirmada por

outrem, noção extraída a partir dos pedidos de respeito expressos no meio citadino pobre

brasileiro. A nosso juízo, embora tal uso dificulte o estabelecimento de comparações e o

seu balizamento por uma teoria social, não inviabiliza a análise sociológica. De todo modo,

o autor recupera analiticamente três configurações de respeito inscritas na subjetividade

dos atores. Elas convivem sem que qualquer delas consiga, por ora, eliminar as demais.

Uma primeira exprime a busca por relações hierárquicas, com o sentimento de

pertencimento social dos indivíduos em situação de inferioridade dependendo da proteção

dos dominantes. Trata-se de uma concepção que não tem base na idéia de igualdade. Esta

aparece numa segunda configuração, na qual convivem o reconhecimento de certa

igualdade entre os indivíduos e uma visão hierárquica do social. Este segundo ângulo tem

suporte na afirmação da humanidade comum de todos os membros do corpo social.

Por fim, a exigência de respeito traduz mais do que a humanidade comum, a

similitude das pessoas num sentido tocquevilliano, recusando-se em ato uma sociedade

hierárquica onde cada qual recebe seu lugar conforme as condições de nascimento. Nessa

última concepção repousam as esperanças de ascensão social nos quadros de uma

sociedade com ampla mobilidade. Para Vidal, é esta forma de igualdade que informa a

idéia de cidadania política nos tempos modernos, embora “o pleno reconhecimento social

que o status de cidadão exprime e garante [suponha] o reconhecimento da humanidade

comum de todos os membros do corpo social” (Vidal, 2000: 22).

Referindo-se ao trabalho de Axel Honneth, Vidal (2003) lembra que atitudes

morais e normas estão ligadas a formas de reconhecimento intersubjetivo. Com efeito, há

íntima ligação entre civilidade e cidadania, já que esta pressupõe um profundo sentido de

bem comum e de compromisso entre os cidadãos. Assim, Vidal aventa que a importância

conferida pelos entrevistados ao cumprimento de obrigações morais; vislumbrados como

fonte de dignidade e de reconhecimento, pode servir como base empírica aos textos

daquele autor. Afinal, a luta por reconhecimento se apóia principalmente em uma

gramática moral dos conflitos sociais. No caso dos meios pesquisados, o autor entende que

a referência à moralidade parece (...) antes de tudo um recurso essencial para a construção identitária nos meios populares, mesmo que ela também

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reflita a interiorização das categorias das camadas superiores. Sob esse aspecto, a linguagem do respeito é uma resposta prática dada à dominação social. Essa resposta prática insiste na conformidade social dos que estão em situação de inferioridade, os quais, em nome dessa conformidade, reivindicam o reconhecimento de sua existência pelos dominantes e a melhora de suas condições de vida pelos governantes (Vidal, 2003: 278).

É assim que movimentos reivindicatórios urbanos justificam sua ação em

nome da dignidade e do respeito aos pobres, sentido captado por Burgos (2005: 213) na

frase de um cartaz exposto em manifestação de moradores de várias favelas contra a

violência policial: “Moro onde os meios de comunicação só chegam para contar os

mortos” 47. Carregada de revolta e indignação, ela revela a ausência de respeito e de

tratamento igualitário aos moradores de um território empobrecido: uma favela carioca.

Burgos (2005: 213) entende que esse protesto revela “de forma instantânea o significado

político e existencial de escassez de cidade, na medida em que denuncia a marginalização

do território e reivindica a ampliação da cidade representada no espaço público midiático”.

Nas representações colhidas, por Vidal (2000, 2003), chama a sua atenção a

ausência de qualquer menção à idéia de participação política como elemento de inclusão

social. Quando se referiam a “direitos”, os entrevistados não citavam o voto ou outra forma

de participação política, aludindo quase exclusivamente a direitos sociais (principalmente

ao trabalho) e ao de serem tratados como humanos. A garantia de acesso aos direitos, por

seu turno, decorreria do comportamento como humanos, como “gente”.

Ao realizar comparações com sociedades do Norte, o autor considera tal fato

uma especificidade brasileira. E, referindo-se à França, lembra que lá o direito de voto é

considerado um símbolo de vinculação social (inclusão) 48.

De fato, como já destacamos, na evolução da cidadania no Brasil, os direitos

sociais receberam maior ênfase que os demais. Além disso, eles foram implantados em

períodos de supressão de direitos civis e políticos. O impulso primordial surgiu em meio à

ditadura Vargas, líder político que adquiriu grande popularidade, recebendo, inclusive, a

alcunha de “pai dos pobres”. Por seu turno, o direito ao voto teve sua maior expansão

durante a ditadura militar, quando os órgãos de representação política tiveram

sobremaneira cerceada a sua atuação. Em relação aos direitos civis, base do esquema de

Marshall, continuam sendo de fruição precária para grande parte da população, em especial

_______________________________________________________________________________ 47 A matéria foi publicada em 17/04/2004, no Jornal do Brasil. 48 Essas reflexões confluem com o diagnóstico, exposto anteriormente, de Carvalho (2003) e de Vianna (2000), quando exploram a trajetória histórica dos direitos de cidadania no Brasil.

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para os moradores de favelas. É assim que, com grande argúcia sociológica, Burgos

(2005), no exemplo reproduzido abaixo 49, capta o desrespeito aos mais básicos direitos

civis (inviolabilidade do lar), combinado com o alcance dos direitos sociais, no caso a

educação 50, expressa na camisa do garoto.

Figura 1: Flagrante de desrespeito

Em uma imagem tem-se a marca do desrespeito e do acesso precário aos

direitos de cidadania.

_______________________________________________________________________________ 49 Trata-se de foto publicada, em 07/11/2003, no Jornal do Brasil. Abaixo da foto, consta a legenda: “POLICIAIS se preparam para revistar uma casa no Morro do Querosene e são recebidos por jovem com uniforme escolar”. Burgos nota que a violência expressa na cena foi neutralizada pelos termos da frase, dirigida a leitores de classe média já habituados com esses despautérios. Assim, ‘invadir’ virou ‘revistar’, e um ‘menino’ virou um ‘jovem’. 50 Pela tese de americanização perversa das políticas sociais, os serviços públicos sociais apresentam crescente má qualidade e são relegados aos pobres (Vianna, 2000). Dessa forma, a camisa de uma escola pública completa um quadro de “subcidadania” – direitos civis violados, combinados a direitos sociais precários e direitos políticos relegados ao limbo e desacreditados.

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Considerações Finais

Na concepção de Marshall, embora sem grande ênfase, aparece como base

de expansão dos direitos de cidadania, tanto em termos de conteúdo, como de quantitativo

populacional que a eles tem acesso, a difusão de um sentido de igualdade por todas as

classes sociais. Um consenso transclassista serve de suporte a direitos reconhecidos

universalmente aos cidadãos, considerados iguais perante a lei.

Falamos então de integração social, de sorte que, ao menos na modernidade

dos países centrais, os nexos entre os indivíduos transcendem à necessidade e ao interesse

particular, diferentemente do que afirmava Marx. De fato, se a igualdade abstrata da lei

não apaga as diferenças concretas entre os cidadãos, gerando um exercício diferenciado

dos direitos, não se pode olvidar do pano de fundo comum: o consenso transclassista

fundado na concepção de igual valor dos homens, e que aflorou nos tempos modernos.

Marshall reconhece mesmo que as desigualdades sociais tornam-se cada vez

mais aceitáveis, à medida que um patamar mínimo é garantido a todos, em decorrência da

igualdade de cidadania, assentada sobre a noção de um patrimônio comum – uma

sociedade política onde todos se reconhecem como iguais. Esse foi o resultado de um

moroso processo, onde, por exemplo, a justiça inglesa desenvolveu o instrumento da

imparcialidade, realizando os julgamentos sem ter em conta a classe de origem das partes.

Mas ainda assim Marshall indagava-se sobre as possibilidades de maior igualdade, quando

já desenvolvidos os direitos civis, políticos e sociais.

Impende reconhecer, porém, que, nas democracias modernas, os indivíduos

estão preocupados com seus próprios interesses. Sua autonomia quanto aos semelhantes e

os vários afazeres particulares impedem que as questões públicas componham sua pauta de

preocupações e reflexões. Esse fato, associado ao desejo de segurança, pode levá-los ao

isolamento e a confiarem exclusivamente ao Estado as matérias de ordem pública. No

entanto, o interesse particular não é necessariamente contrário ao civismo. Pelo menos foi

o que Tocqueville extraiu da democracia norte-americana, no início do século XIX. Lá

vigorava a doutrina do interesse bem compreendido, colocando em relevo os pontos de

coincidência entre o interesse particular e o interesse geral, ou seja, com “o público

[internalizando] a praxis do interesse de cada indivíduo” (Vianna, 1997: 98). Presente uma

base moral, o individualismo podia se manifestar sem degenerar. Ademais, as instituições

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políticas e as leis, além de afinadas aos costumes, também agiam no sentido de

salvaguardar as liberdades e a democracia.

Tocqueville encontrou na América elementos que Durkheim julgava

necessários na era moderna. Este autor reconheceu o indivíduo como a realidade moral dos

novos tempos e a vigência de um estado anômico, dada a ausência de uma regulamentação

hábil a garantir a coesão social e a debelar coerções como as manifestas na esfera

econômica, onde valia a lei do mais forte. Nesse contexto, às associações caberia um

importante papel. Servindo como fontes de vida moral e vinculando os indivíduos, elas

poderiam agir como elos intermediários entre estes e o Estado, facilitando ainda a fixação

de uma regulamentação adequada. Ao Estado, ajustado à nova ordem, caberia menos se

preocupar com a guerra, e sim reconhecer e instituir os direitos individuais.

Honneth nos mostrou que a ampliação sucessiva dos direitos individuais

observou um princípio normativo que vinculava as novas atribuições jurídicas do indivíduo

à concepção moral de que os membros da sociedade devem assentir por discernimento

racional à ordem jurídica. Devem, portanto, ter a disposição individual à obediência. Tal

quadro afigura-se inviável se os sujeitos não puderem gozar de um mínimo que lhes

permita adquirir a capacidade abstrata de orientar-se por normas morais.

Em síntese, no direito moderno, inscreve-se um princípio de igualdade. E os

direitos atribuídos às pessoas evoluíram ampliando-se em termos objetivos e em número de

membros da sociedade que deles passaram a desfrutar. Conforme os diversos autores

citados ao longo do trabalho, dentre eles Jessé Souza, as obrigações e direitos que balizam

as relações sociais têm como fundo uma ordem moral.

Para esse último autor, a diferença básica entre sociedades centrais e

periféricas encontra-se no fato de, nas primeiras, as idéias modernas serem anteriores às

práticas 51. Nas últimas, ao contrário, o impulso modernizador não encontrou uma visão de

mundo articulada e hábil a promover um consenso valorativo, como o fez o

protestantismo nas sociedades centrais, ao impedir que a generalização de um tipo

humano transclassista ficasse sob a ação exclusiva do progresso econômico. Foi essa

generalização da dignidade, consubstanciada no reconhecimento universal entre iguais, que

tornou efetiva a igualdade expressa na lei abstrata.

No Brasil, embora instituições modernas (mercado e Estado) regulem a vida

_______________________________________________________________________________ 51 Esse ponto tem íntima relação com o surgimento de uma ralé estrutural em nosso país. Uma vasta camada da população não detém o habitus moderno, sendo então desclassificada socialmente. Já nos países centrais esse é um fenômeno residual.

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social, uma hierarquia opaca e intransparente legitima a desigualdade entre os cidadãos. Na

verdade, formou-se uma “ralé” estrutural sem efetivo acesso aos direitos de cidadania. A

pauperização e a desestruturação familiar são elementos que se conjugaram na formação da

inépcia psicossocial de vastos contingentes populacionais à ordem competitiva moderna.

De outro lado, manifesta-se uma espécie de sobrecidadania, onde os seus detentores ficam

acima do respeito à lei. Em ambos os casos não se efetiva a igualdade da lei abstrata.

Esse quadro se faz presente na esfera política. Nossa evolução histórica

mostra a falta de cultura democrática tanto das elites quanto do povo. As reivindicações

democráticas partiram precipuamente da classe média, como Carvalho (2003) identifica ao

final da República Velha, ou em manifestações como as Diretas Já e o impeachment do

Presidente Fernando Collor, onde ela foi a principal, embora não exclusiva, aderente.

Atente-se que a cidadania política demanda um exercício ativo dos

cidadãos. Mas diversos autores reconhecem que a ordem de concessão dos direitos de

cidadania no Brasil foi um elemento impeditivo da participação política. Com a expansão

dos direitos sociais ocorrendo em ambientes de restrição ao exercício de direitos civis e

políticos, houve uma sobrevalorização daqueles. Não à toa as pesquisas apontam a pouca

atenção conferida à participação política, ao contrário de países centrais, onde, como na

França, o direito ao voto é um símbolo de inclusão na sociedade.

Mas a ordem de concessão dos direitos talvez seja só a manifestação do que

reinava na sociedade. Como mencionamos acima, inexistia entre nós um consenso

valorativo acerca da dignidade comum dos cidadãos: o reconhecimento do outro como um

igual. A escravidão contribuiu decisivamente para isso. Seus efeitos não se esgotaram com

a abolição da escravatura. E foi assim que as instituições modernas grassaram sem apoiar-

se naquele consenso transclassista (Souza, 2003).

Nesse contexto, não é o personalismo que ganha preeminência explicativa.

Para Sérgio Buarque de Holanda, o personalismo seria fruto de nossas raízes ibéricas,

vinculadas ao agrarismo colonial. Personalismo e privatismo comporiam o

patrimonialismo presente na formação do Estado brasileiro, instaurando a confusão entre o

público e o privado e minando a emergência de uma sociedade democrática e inclusiva,

onde viria à proa o respeito a normas abstratas e universais. Também Faoro utilizou a

categoria “patrimonialismo”, mas colocou ênfase no estamento que, encravado no Estado,

comandaria a sociedade, apropriando-se das oportunidades econômicas mais lucrativas,

donde público e privado se imiscuírem, e pugnando pela estabilização da desigualdade, em

prol de seus privilégios. Com isso, tornava-se inviável a vigência efetiva de um Estado

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democrático de direito, posto que este pressupõe um senso de igualdade e a conformação

de uma esfera pública inclusiva, aberta às pressões de vários segmentos sociais.

À época da edição de sua obra (1936), Holanda (2002) sustentava que as

raízes estavam sendo superadas aos poucos com a modernização. A nosso juízo, o autor

enfatizou sobremaneira os resíduos passados do personalismo e da cordialidade como

explicação de nossas mazelas sociais, além de contrastá-los a um tipo idealizado de

modernidade que talvez não tenha ocorrido em lugar algum. Já Faoro produziu uma bela

análise do desenvolvimento histórico de nossa Administração Pública e de nossa

sociedade, mas transformou a categoria estamento num resíduo permenente e a-histórico e

a converteu em explicação última da tibieza de nossas instituições democráticas. De todo

modo, recebendo os devidos temperos, são importantes as contribuições desses autores.

Em Gilberto Freyre, W. G. Santos e Florestan sobreleva a interação entre

características pré-modernas e influxos modernizadores. O mesmo se diga de Souza,

embora este acentue a influência dos últimos na evolução da cidadania no Brasil.

Florestan identificou uma dupla articulação em nossa modernização, ou

Revolução Burguesa, como denomina o autor. No plano interno, os setores arcaico e

moderno se combinaram, e, no plano externo, os setores burgueses aqui dominantes

aliaram-se aos das economias capitalistas centrais. Na ausência de uma cultura democrática

e igualitária espraiada pela sociedade, o crescimento econômico foi colocado à proa,

enquanto a democracia e o combate a iniqüidades ficaram para depois, relegados a

epifenômenos da economia. Mas, no início dos anos 1980, o autor vislumbrava vários

indícios de uma evolução nacional e democrática que, potencializando pressões de baixo,

seria um impeditivo da antiga forma intramuros das classes dominantes resolverem seus

conflitos. O autor se referia à urbanização e ao desenvolvimento econômico que se

propagavam, interligando metrópoles, regiões urbanas diversas e áreas rurais; à

diferenciação no mercado de trabalho, com o crescimento das classes operárias; e ao

impulso à mobilidade social, com o aumento das classes médias a partir de indivíduos

extraídos do meio popular. Contudo, esses elementos não impediam um desenvolvimento

interno desigual, onde diferenças regionais e de classe atuavam vigorosamente 52.

W. G. Santos fala do híbrido institucional brasileiro, onde se combinam uma

morfologia poliárquica e um hobbesianismo social. Não se trata de um dualismo entre

antigo e moderno, mas de um híbrido que atinge todas as classes, donde todos os indivíduos _______________________________________________________________________________________ 52 Já no século XIX, Freyre observava que as desigualdades da sociedade brasileira devem ser compreendidas a partir da interação de fatores regionais, de classe e de raça.

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transitarem cotidianamente entre as duas dimensões referidas. O resultado é o isolamento

privatista e a tibieza dos mecanismos e controles democráticos. Na ausência de uma cultura

cívica que permeie o tecido social, as instituições poliárquicas, embora edificadas ao

decorrer de nossa modernização, não lograram efetividade.

Complementa a análise de W. G. Santos a ponderação de Jessé defendendo

que no Brasil as práticas institucionais modernas, “importadas de fora”, antecederam as

idéias 53. Se Santos (1994) remete-se ao híbrido que perpassa todas as classes e indivíduos,

Jessé cita a tríade meritocrática como elemento hierarquizador de teor moderno que atua

em nossa sociedade e impede o reconhecimento de um denominador comum de dignidade

a todos os cidadãos. Assim, o isolamento privatista, que incentiva a formação de micro-

sociedades, e o desrespeito pelo outro se combinam, minando a vigência de direitos

universais e de uma esfera pública inclusiva. Enfim, o Estado democrático de direito não se

consolida de fato.

Constatamos então que, nas análises de todos esses intérpretes da sociedade

brasileira, por vezes valendo-se de categorias bem diversas, sobressai a concentração dos

benefícios da modernização sobre uma pequena minoria.

A forma de conquista dos direitos sociais ratifica essas interpretações de

caráter mais geral. Com efeito, aqui os atores políticos não se organizaram em partidos

políticos fortes e estruturados, e sim formaram grupos que pugnavam pelo reconhecimento

estatal a fim de receber os direitos. O Estado aparecia como benfeitor, mas não se

conformava uma esfera pública inclusiva, onde obrigações e direitos tivessem por lastro

um mínimo de solidariedade social.

A legislação trabalhista aplicou-se a uma pequena gama de trabalhadores

urbanos, limitado que foi a profissões regulamentadas. Trabalhadores rurais, empregadas

domésticas e autônomos diversos ficaram de fora. Mas, do ponto de vista individual, as

normas trabalhistas representaram, de fato, uma proteção e mesmo a definição do status de

cidadania. A Carteira Profissional tornou-se uma certidão de nascimento cívico. Os

benefícios tinham, porém, sua contrapartida. Satisfazendo as reivindicações há tanto tempo

levantadas pelos trabalhadores, o governo cobrava o seu enquadramento sindical. E não

hesitou em reprimir os sindicatos que preferiam seguir livres e independentes, defendendo

os desígnios de seus representados. Sob o discurso de cooperação entre as classes, bandeira

da retórica corporativista, plasmou-se a desmobilização das classes subalternas. 53 Nesse ponto, “importados de fora”, também afina-se, em parte, às análises de Freyre e Florestan.

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A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) veio a lume em 1943,

sistematizando e dando coerência às leis que dispersas podiam ter sua eficácia

comprometida. Ela concentrou os direitos sociais que melhoraram a qualidade de vida de

uma parcela limitada dos trabalhadores brasileiros e, para estes poucos, ela trouxe uma

limitada possibilidade de expressão coletiva de seus clamores e reivindicações.

Hoje, não vige mais a incorporação à moda da cidadania regulada que se

conformava à exposição supra, dado o escopo universalista da Constituição Federal de

1988. No entanto, Maria Lúcia Werneck Vianna (2000) nota que são os lobbies a principal

forma de defesa de interesses junto ao Congresso. Como eles têm caráter multifacetário e

fragmentado, impedem amplos acordos que, de um lado, viabilizassem a efetividade da

universalização de direitos previstos pela CF/ 88 e, de outro, impedissem a perversa

complementariedade que se instaurou entre o público e o privado, estratificando os direitos

conforme a capacidade financeira do cidadão-consumidor.

A perversa distribuição de renda brasileira é a um só tempo um potente

elemento mantenedor desse quadro de pouca participação e um efeito seu. À necessidade

de condições mínimas para as pessoas adquirirem a autonomia necessária à participação,

acrescente-se o alto custo da ação coletiva, onde o ruim pode ficar pior, dada a precária

proteção social brasileira. Nesse contexto, o aumento da informalidade e a precarização do

trabalho dificultam ainda mais o desenvolvimento de uma cultura cívica em nosso país.

No Brasil, a informalidade acompanhou o processo de modernização. Mas

ela é fenômeno recente em países centrais, agora acossados pelo desemprego estrutural

advindo da reestruturação produtiva e dos movimentos da globalização econômica. Esses

processos também atingiram nosso país, refreando e mesmo revertendo a formalização de

trabalhadores, cujo ápice ocorreu no início dos anos 1980 (cerca de 50% da PEA).

Como já destacado, o modelo marshalliano vinculava-se ao Welfare State,

assentado sobre o amplo assalariamento. Mas, em nosso país, a universalização dos

direitos sociais se deu a partir dos governos militares, sendo erigida a texto constitucional

em 1988. Justamente nesse interregno estancou o movimento ascendente de formalização

de vínculos empregatícios. E assim a universalização que observamos desde o regime

militar seguiu uma dicotomia perversa, onde serviços particulares de qualidade restringem-

se aos que podem pagar, e serviços públicos crescentemente precarizados destinam-se ao

resto da população que, no nosso caso, constitui a imensa maioria. Esse quadro se afina a

nossos valores hierárquicos, onde é parcial o ideal de reconhecimento universal de direitos

entre iguais.

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O emprego formal continua ainda abrigando os trabalhadores melhor

remunerados 54, além deles terem uma gama de proteções legais que os informais não têm.

Mas se não há mais a expectativa de absorção completa dos trabalhadores pelo mercado

formal e há os que nunca o serão, dados fatores regionais e de qualificação, qual será o

suporte da igualdade de cidadania? As proteções contra o desemprego pressupunham uma

situação transitória. O que fazer quando ela se torna permanente? Será que políticas focais

serão o recurso para manter um padrão mínimo de dignidade? Ou se converterão num

assistencialismo permanente, mantendo relações de dependência política? Como notou

Castel, acompanha a informalidade a ameaça de fragmentação da sociedade, já que alguns

podem valer-se de suportes e proteções sociais para desenvolver sua individualidade,

enquanto outros, carentes dessa retaguarda, carregam-na como um fardo 55.

No caso das favelas cariocas, mostramos que elas são um exemplo da parca

disseminação do princípio da dignidade no Brasil. Elas se instalaram no início do século

XX, sem trazer preocupações enquanto eram invisíveis aos segmentos dominantes. Depois,

com seu crescimento, surgiram propostas de extingui-las e, logo em seguida, a idéia de aplicar

aos favelados uma pedagogia civilizatória, sem o quê assumiam um status de pré-cidadãos.

A legislação reguladora do espaço urbano, tornando as favelas ilegais, gerou

uma insegurança permanente a seus moradores. Na maioria dos casos, as favelas não foram

removidas graças a laços de dependência política que então se firmavam. Era a evidência

da falta de um estatuto comum e inclusivo, pois uma parcela dos cidadãos usufruía

“direitos” que não provinham de leis, mas de relações clientelistas que os subordinavam,

firmando uma hierarquia que os mantinha sob controle.

Atualmente, uma série de serviços urbanos chegou às favelas. Estas são

muito heterogêneas entre si e internamente e não se pode mais firmar a pobreza ou

precariedade como suas características peculiares. Parece-nos pertinente a colocação de

Valladares (2005) de que políticas de combate à pobreza não devem ter como exemplo as

favelas. Acreditamos que esse caminho pode contribuir para diminuir o estigma que sobre

elas pesa. No entanto, essa perspectiva não elimina a validade heurística da “categoria

favela”. Parece-nos que o estigma é o maior elemento distintivo das favelas, promovido pela

proximidade espacial com distância social. Daí seus moradores sentirem-se rebaixados em sua

dignidade. Afinal, se suas condições de vida melhoraram em termos absolutos, foram depreciadas

54 Malaguti (2000) aponta que são grandes os diferenciais de rendimento entre trabalhadores formais e informais na América Latina, variando de 30% a 80% e chegando, na média, a 60% no Brasil.

55 Durkheim, quando analisa o direito de propriedade no mundo moderno, nota exatamente a criação de uma normatividade destinada a regular uma esfera material necessária ao individualismo.

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em termos relativos.

Ademais, a criminalidade violenta vinculada ao tráfico de drogas reforça o

estigma e o isolamento das favelas. O crescente sentimento de insegurança e o medo do

crime violento deslocam o conflito social rumo aos controles institucionais que garantam

as rotinas cotidianas. Aumenta o privatismo e reduz-se a confiança, erodindo a chance de

se assentarem os laços de solidariedade com o “outro”. Mina-se o senso de igualdade,

e a liberdade pode degenerar em ações invasivas à esfera do outro. Nesse contexto, o

“problema da segurança pública” é cada vez mais atribuído às favelas. E reivindica-se a

maior eficácia dos meios de repressão, em que pese as renitentes denúncias de sua atuação

arbitrária, violando direitos da população das favelas. O debate é regido pela manutenção

da ordem, em detrimento da linguagem dos direitos.

Atualmente, a integração da favela à cidade não segue mais um padrão

hierárquico. Como notou Burgos, arranjos clientelistas, onde os líderes locais agiam como

intermediários, garantiam a manutenção do equilíbrio citadino e possibilitavam um canal

de acesso aos serviços públicos, mesmo que precário. Esse equilíbrio rompeu-se,

emergindo um quadro de fragmentação. Aqueles arranjos ainda são um canal de acesso a

serviços, mas inseridos num ambiente de dispersão horizontal, onde a dimensão de

controle perdeu a eficácia anterior. O autor firma a necessidade de um código

universalmente aceito e que não seja mais de tipo hierárquico, e sim igualitário e de

participação. O caldo de cultura necessário ao estabelecimento deste tipo de configuração

societal ainda está em gestação e não há garantias de que ele vingará, sobretudo se não

houver empenho em implementá-lo.

Muitas variáveis entram em curso nesse processo. Pelos breves apontamentos

dessas considerações, são imperiosas: medidas hábeis a garantir um patamar mínimo de

qualidade de vida, inclusive gerando emprego e renda; melhorias no sistema de proteção

social e nos serviços públicos voltados para as áreas carentes, como as escolas e postos de

saúde; e o respeito aos direitos civis, a partir, por exemplo, de uma atuação mais eficiente

da polícia e mais imparcial do poder judiciário.

Esse processo, mesmo se conscientemente implementado, terá de conviver

com ambigüidades decorrentes da dinâmica social. Assim, no ideário de moradores de

regiões pauperizadas de Recife e da cidade do Rio de Janeiro, Vidal (2000,2003)

identificou diferentes configurações ideais de respeito que convivem e se conjugam. Se há

a noção de que o respeito liga-se à proximidade a pessoas superiores e potencialmente

garantidoras de proteção, nos moldes de uma sociedade holista; também tem lugar a recusa

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a uma sociedade hierárquica onde cada qual teria uma posição de acordo com o nascimento,

enfatizando-se, ao revés, a humanidade comum e a possibilidade de ascensão social numa

sociedade onde haja livre mobilidade, ideário este matriz de um princípio de igualdade que

informa a cidadania política nas democracias modernas.

Serve de exemplo, ainda, o que Burgos (2005) chama de reforma intelectual

e moral promovida pelas igrejas neopentecostais, e cujos pilares são a igualdade, a

mobilidade social e o empreendedorismo. Se Zaluar (1997) ressalta a intolerância que

acompanha tal ideário, Burgos firma que o neopentecostalismo em si não contribui para a

formação de uma cultura política participativa, mas, ao fomentar a autonomia dos

indivíduos, cria condições potencialmente favoráveis para a afirmação de novos sujeitos na

esfera pública.

A literatura política e sociológica concorda que a capacidade de intervenção

estatal erodiu-se com a globalização. Processos econômicos, políticos, sociais e culturais

cortam os países, e os Estados não conseguem controlá-los, vendo minada sua capacidade

de regulação. Esse quadro não dispensa as políticas públicas, mas reforça a necessidade de

diálogo entre sociedade e Estado, cuja efetividade depende da disseminação de uma cultura

cívica democrática. Políticas inclusivas e de melhoria da qualidade de vida dos cidadãos

devem-se conjugar a elementos promotores de um consenso valorativo que assegure o

reconhecimento universal de direitos, ou seja, de uma dignidade comum. Isso envolve

processos de educação e de comunicação que perpassem todos os estratos sociais.

Atualmente, também devem ser consideradas as tensões entre universalismo

e particularismo, de modo que, no processo de disseminação dos valores da dignidade,

deve-se conjugar a possibilidade da autenticidade e do respeito à diferença, complementos

de um código valorativo por todos aceito. Sem o enfrentamento dessas questões não será

possível expandir de fato os direitos de cidadania entre nós.

O escopo da cidadania dependerá ainda dos contornos assumidos pelo direito.

Afinal, o Estado-nação compõe-se de uma infra-estrutura administrativa organizada pelo

direito. E os direitos civis e políticos, oferecendo um espaço livre às ações individuais e

coletivas, representaram garantias formais dos cidadãos ante o Estado. Já os direitos sociais

atenderam a demandas sociais, moderando os conflitos de classe. A efetividade deles

decorria em boa medida do desempenho da economia, erigida como fonte de legitimação

do Estado. Mas o fechamento das instituições às relações e fluxos presentes na sociedade

mostrou a insuficiente capacidade desse modelo satisfazer às demandas sociais, seja pela

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sobrevalorização dos procedimentos, seja pela lógica sistêmica das burocracias e da

economia. Falamos da configuração sócio-legal denominada de direito autônomo 56.

Já no direito responsivo, a boa lei, além de assegurar um procedimento

justo, precisa ser competente, auxiliando a definir o interesse público e o compromisso que

deve lastrear a concretização da justiça substantiva. A contrapartida negativa desse processo

pode ser a perda de integridade do direito, consubstanciada na incapacidade da lei em

restringir o poder das autoridades e fixar as obrigações e obediência dos cidadãos. Esse

resultado perverso seria fruto do enfraquecimento das normas procedimentais e da

excessiva problematização das regras em geral. Com efeito, como o direito responsivo

combina autoridade legal e vontade política, só é eficaz e efetivo quando espraiado certo

grau de cultura cívica numa sociedade amplamente democratizada.

Se Nonet e Selznick enxergam traços desse tipo de direito no mundo atual,

Habermas investe na necessidade de descolonizar o mundo da vida, para o quê é preciso

manter a esfera pública auto-referida, fonte que é de influxos normativos firmados em

relações comunicativas livres de coerção. Nesse desenho há pouco espaço (ou nenhum) para

alterar a conformação dos próprios sistemas (a mudança seria indireta, fruto de influxos

advindos da esfera pública). Um modelo mais rígido, portanto, do que o daqueles autores.

No modelo de direito responsivo, a cidadania teria caráter mais dinâmico e

compatível com as especificidades da sociedade. Seriam necessários fóruns de participação

para além dos mecanismos representativos e instituições competentes, abertas aos influxos

da sociedade e recebendo-os como oportunidades de aprimoramento. Não bastaria enunciar

direitos, mas observar uma ética da responsabilidade, satisfazendo as demandas à

proporção em que existam recursos para todos. Conforma-se uma ordem negociada, com

maior racionalidade e visando à justiça substantiva. Mas aí a questão seria a de

compatibilizar um padrão mínimo de dignidade. Seriam mantidos os direitos civis,

políticos e sociais, conjugados a outras demandas pontuais? Ou as demandas dariam curso

a uma nova pauta de direitos que transcendem a classificação marshalliana? Ademais, foi o

Estado-nação que assegurou os direitos de cidadania, estes um símbolo da igualdade na

esfera nacional. Mas isso não impediu o curso da diferenciação social e da ação de grupos

de interesse. Então, deve-se atender a movimentos particularistas ou a fluxos comunicativos

56 O direito formal marca o que Nonet e Selznick (1978) chamam de direito autônomo. Os direitos sociais, na medida em que preocupados em combater iniqüidades, seriam um primeiro indício da transição ao direito responsivo. Este se preocupa com a justiça material, vetor em ascensão já à época de Weber e Durkheim. Mas se essa tendência representa um flanco no direito formal, não transborda o direito autônomo. Ao contrário, aumenta, v.g., as funções judiciárias e da burocracia, sem conformar as “instituições competentes” (pós-burocráticas) de que falam aqueles autores.

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e/ ou relações de poder globais ? Hoje, ainda não parecem ser compatíveis as instituições

e as pautas normativas, impedindo a conjugação de todos esses fatores.

Em termos amplos, esse debate envolve a própria modernidade. E é dentro

desse quadro que deve ser entendida a obra de Habermas. Este autor apresenta uma teoria

normativa que julga a modernidade segundo o projeto moderno original. Trata-se de

esclarecer as condições sociais que o favorecem ou inviabilizam, trabalhando para que a

teoria seja continuada pela reflexão dos que buscam agir.

Já Boaventura propõe-se elaborar uma teoria crítica pós-moderna, a partir

dos problemas trazidos pelo desenvolvimento da modernidade e recorrendo aos projetos mais

abertos e inacabados do projeto moderno, para esboçar o paradigma emergente. Assim, o

autor aposta no princípio comunitário, defendendo que ele contém duas dimensões que

resistiram à especialização e ao domínio colonizador da razão instrumental: a participação

e a solidariedade. Como, atualmente, local, nacional e global interagem de múltiplas

formas, as relações sociais são crescentemente desterritorializadas. Descabe, então,

confinar a comunidade ao local e ao imediato. Mais que a identidade, de resto cada vez

mais descentrada e fracionada (Hall, 2002; Giddens, 1991), vale fixar a reciprocidade

intersubjetiva como alicerce das comunidades.

Tenha-se claro que nos referimos ao horizonte utópico de Boaventura.

Trata-se de apontar caminhos para a emancipação humana, de modo que o autor acaba

retornando ao projeto moderno original por meios “pós-modernos”, sem apostar numa via

“totalizadora” como o faz Habermas, com a esfera pública e a razão comunicativa. Mas

Boaventura refere-se também às pressões atuais que aumentam as iniqüidades nos planos

local, nacional e global, como a expansão da informalidade e o aumento do desemprego

em países centrais e periféricos, ou ainda como a crescente desigualdade entre o Norte e o

Sul, com a globalização financeira servindo para impor pesadas determinações sobre os

países periféricos, em diretivas que não raro combinam liberalismo econômico e proteção

dos direitos humanos.

Quando pensamos na relação entre democracia e cidadania, é frutífero um

trabalho como o de Boaventura. Mesmo os que não concordem com a noção de pluralismo

jurídico não podem se furtar de suas reflexões sobre a democratização de vastas dimensões

da vida social, como nas relações domésticas, ou interestatais, ou de produção. As

preocupações utópicas do autor dirigem-se ainda contra os automatismos burocráticos e da

economia, os quais, como Habermas apontou, teriam efeitos colonizadores sobre a vida

social. Nesse sentido, a democratização das sociedades políticas, ou a socialização da

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política, como falou Gramsci (Coutinho, 1999), seria insuficiente. A democracia teria de

atingir tanto o que é público e regulado pelo direito positivo, como as relações sociais

privadas e o que está à parte daquele tipo de direito. Não se trata de confusão entre público

e privado, como no patrimonialismo, mas de laços solidários horizontais e verticais isentos

de relações despóticas por todo o tecido social. Daí então seria possível conformar novos

arranjos públicos e privados, segundo objetivos democraticamente firmados. Em verdade,

a utopia do autor conflui com certos traços do direito responsivo, embora perpasse a

sociedade de modo bem mais amplo que o último. Nesse quadro, a cidadania serve como

base às lutas emancipatórias que têm curso nas várias dimensões sociais. E a própria

cidadania só será plenamente democratizada quando a democratização pautar todos os

espaços da sociedade.

Vale ainda nos referirmos ao debate sobre os direitos humanos. Hoje,

pressões advindas do processo de globalização e mudanças no mundo do trabalho

impedem que a solidariedade tenha as mesmas bases do Welfare State. Ademais, questões

como o meio ambiente, migrações, racismo, manipulação genética são pontos que, embora

possam se manifestar localmente, transcendem as fronteiras e envolvem a humanidade.

Teríamos então a prevalência dos direitos humanos sobre a cidadania? Não cremos. A

cidadania foi a manifestação e concretização daqueles direitos no plano nacional. Só se as

soberanias nacionais fossem sobrepujadas por uma autoridade global tal se daria. Mesmo

que está se instaure ou que surjam blocos regionais com grande força e capacidade de

regulação, em nosso horizonte atual os Estados nacionais permanecerão, e a concretização

de direitos deles dependerá e observará as especificidades de cada país. Aliás, o presente

estudo só tem sentido porque a cidadania não teve um desenvolvimento universal e

homogêneo, mas sim peculiar, conforme a cultura política nacional, os padrões de

modernização e a inserção no plano internacional.

Mas hoje é imperioso refletirmos sobre os termos de uma cidadania global.

Seria a constituição de uma esfera pública e de uma opinião pública mundial suficiente

para tanto? Habermas já vê seus contornos, mas reconhece que, no caso mais avançado, o

da União Européia, ainda inexiste uma opinião (esfera) pública propriamente européia, e

sim várias esferas públicas nacionais. No entanto, o mesmo autor firmou “a falta de um

poder executivo que possa proporcionar à Declaração Universal dos Direitos Humanos sua

efetiva observância, inclusive mediante intervenções no poder soberano de Estados

nacionais, se for necessário” (Habermas, 2002: 205). Além disso, no caso da cidadania

nacional, mencionamos várias vezes que ela pressupunha uma ordem moral, o que não se

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configura no plano global. Talvez pudéssemos pensar em camadas (ou graus) de

igualdade? Ou seja, um padrão mínimo de igualdade no plano global, convivendo com

padrões mais específicos no plano nacional.

Enfim, a clássica explicação marshalliana da cidadania não resiste às

pressões que se manifestam ao nível global, nem satisfaz desenvolvimentos específicos que

se manifestaram e ainda se manifestam no plano local, como são exemplos os temas da

informalidade e das cidades no Brasil. Não abriga também reflexões como as de uma

democratização radical (Boaventura) ou sobre novas formas de atribuição de

responsabilidade, onde temas ligados à natureza e às gerações futuras vêm a curso.

Vale lembrar que Marshall propôs um conceito de cidadania de teor

sintético-descritivo. O autor não reconhecia qualquer princípio universal a impor o escopo

dos direitos e obrigações dos cidadãos. E foram as pressões sobre esse escopo que

procuramos apontar. Marshall reconhecia, porém, que as sociedades em geral cultivam

uma concepção ideal de cidadania. E foi nessa esteira que refletimos sobre o pouco que

tivemos e o muito que almejamos; e sobre os problemas que precisamos enfrentar para

renovar um ideal de cidadania que nunca se consolidou, nem pode mais se configurar.

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ANEXO

Mapa de estrutura-ação das sociedades capitalistas no sistema mundial

Espaços Estruturais Dimensões Unidade de

prática social Instituições Dinâmica de desenvolvimento

Forma de poder

Forma de direito Forma epistemológica

Espaço doméstico Diferença sexual e geracional

Casamento, família e parentesco

Maximização da afetividade Patriarcado Direito

doméstico Familismo, cultura

familiar

Espaço da produção

Classe e natureza enquanto “natureza

capitalista”

Fábrica e empresa Maximização do lucro e

maximização da degradação da natureza

Exploração e “natureza

capitalista”

Direito da produção

Produtivismo, tecnologismo,

formação profissional e cultura empresarial

Espaço de mercado Cliente-consumidor Mercado

Maximização da utilidade e maximização da

mercadorização das necessidades

Fetichismo das mercadorias

Direito da troca

Consumismo e cultura de massas

Espaço da comunidade Etnicidade, raça,

nação, povo e religião

Comunidade, vizinhança, região,

organizações populares de base, Igrejas

Maximização da identidade

Diferenciação desigual

Direito da comunidade

Conhecimento local, cultura da comunidade

e tradição

Espaço da cidadania Cidadania Estado Maximização da lealdade Dominação Direito

territorial (estatal)

Nacionalismo educacional e cultural,

cultura cívica

Espaço mundial Estado-Nação

Sistema inter-estatal, organismos e associações

internacionais, tratados internacionais

Maximização da eficácia Troca desigual Direito sistêmico

Ciência, progresso universalístico, cultura

global

Fonte: Santos (2001: 273)

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