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1 Velório à Brasileira Texto de Aziz Bajur Adaptação de Antonio Carlos Brunet Cia. Teatral São Pedro São Francisco de Assis RS 2012

Velório à Brasileira - ieacen.files.wordpress.com · 4 GUIBERTO – E eu dizia: Biga, essa união foi abençoada por Deus. Dizia ou não dizia Biga? ABIGAIL – Dizia sim, meu bem!

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Velório

à

Brasileira Texto de Aziz Bajur

Adaptação de Antonio Carlos Brunet

Cia. Teatral São Pedro

São Francisco de Assis – RS

2012

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PERSONAGENS

ZÉLIA – Viúva de Abreu

EUNICE – Irmã de Abreu

GUIBERTO – Vizinho

ABIGAIL – Mulher de Guiberto

TETEO – Colega de Abreu

PÉ-DE-MESA – Colega de Abreu

EDGARD

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Sala Classe média baixa. Caixão no centro. Dois círios.

Em cena, ZÉLIA, GUIBERTO e ABIGAIL. A luz vai pouco a

pouco se acendendo.

Cena 1

ZÉLIA (Chorando) – Era um homem bom... um homem bom...

GUIBERTO – Um espírito elevado...

ABIGAIL – Ainda ontem eu vi ele, quando ele ia para o

trabalho. Estava tão bem disposto.

GUIBERTO – É o que eu digo sempre: ninguém sabe o dia

de amanhã.

ZÉLIA (Soluça forte) – Era um marido exemplar...

ABIGAIL – É... A morte não manda recado.

GUIBERTO (Acudindo Zélia, que chora mais forte) – Não

fique assim, dona Zélia. Deus sabe o que faz. Seja

forte!

ZÉLIA (Chorando) – Onde vou encontrar forças, seu

Guiberto? Agora estou sozinha...

GUIBERTO – Sozinha, não. Deus está com a senhora!

ZÉLIA – Ele me abandonou.

ABIGAIL – Não diga isso, Zélia! É pecado!

GUIBERTO – Deus não abandona ninguém. Ele sabe o que faz. Escreve certo por linhas tortas.

ABIGAIL – Isso mesmo, Zélia! O Guiba tem razão. Vai ver que foi melhor assim.

ZÉLIA – Mas, melhor, como? Eu amava o meu marido... (Para Abigail.) Ou você não acredita?

ABIGAIL – Acredito, sim. Eu sempre disse para o Guiba: Guiba, casal apaixonado está aí!

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GUIBERTO – E eu dizia: Biga, essa união foi abençoada por Deus. Dizia ou não dizia Biga?

ABIGAIL – Dizia sim, meu bem!

ZÉLIA (Chorando) – Se era uma união abençoada, por que ele foi morrer?

GUIBERTO – Estranhos são os desígnios divinos... Seu marido já havia cumprido sua missão na Terra. Seu carma estava acabado.

Cena 2

ZÉLIA – Seu quem?

GUIBERTO – Carma é o que a gente tem que passar nessa vida. É o pagamento que fazemos pelos pecados da outra encarnação. Qualquer dia eu vou levá-la ao nosso Centro.

ABIGAIL – Quem sabe o espírito do Abreu possa baixar e aí você poderá conversar com ele.

ZÉLIA (Para o Abreu) – Abreu... Abreuzinho, eu não vou agüentar viver sem você.

ABIGAIL – Agora mais do que nunca a senhora precisa ser forte.

GUIBERTO – Não se desespere. Lembre que Deus não

abandona suas ovelhas. A senhora precisa ler o

Evangelho Segundo o Espiritismo (toca a campainha.).

Cena 3

ABIGAIL – Deixe que eu abro. (Vai até a porta. Sai.

Entra Eunice trazendo um buquê de flores nas mãos.)

Meus pêsames!

GUIBERTO (Aproximando-se) – Meus pêsames!

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EUNICE – Obrigada! (Vai até o caixão.) Abreu, meu

irmãozinho! (Vê Zélia. Coloca as flores no caixão.)

Zélia, como aconteceu isso? (Volta Abigail.).

ZÉLIA (Soluçando) – Hoje o Abreu levantou passando mal.

Disse que nem ia trabalhar... Eu pensei que fosse

fígado – fiz até um chá de boldo -... Ele nem quis

almoçar... Comeu só umas bolachinhas... À tarde, disse

que estava se sentindo melhor e que ia fazer a barba.

Entrou no banheiro – eu estava vendo televisão -,

quando ouvi um barulho. Corri ao banheiro, e lá estava

ele, caído, sem mexer um dedo. Comecei a gritar e pouco

depois o senhor Guiberto e a dona Abigail chegaram...

GUIBERTO – Eu estava na minha oficina, consertando uma

geladeira, quando ouvi o grito de dona Zélia. Tive uma

intuição – acho que foi meu guia quem me avisou. Chamei

a Biga e viemos para cá, correndo. Quando chegamos, ele

já estava desencarnado.

ABIGAIL – E só de cuecas...

GUIBERTO (Repreendendo) – Essas particularidades não

interessam Biga!

ABIGAIL – Desculpe.

GUIBERTO – Dona Zélia estava feito louca. Nós que

telefonamos para o médico (tira um papel do bolso.).

Aqui está o que ele cobrou para vir até aqui.

ZÉLIA (Para Guiberto) – Senhor Guiberto, depois eu

acerto com o senhor.

GUIBERTO – Tem tempo, dona Zélia, tem tempo.

EUNICE (Para Guiberto) – Nós agradecemos ao senhor. Eu

não pude vir mais cedo, porque estava trabalhando... E

vocês telefonaram para a Repartição dele?

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GUIBERTO – Eu telefonei. Disseram que virão mais tarde.

(Pausa. Todos sentam.).

Cena 4

EUNICE (Para Guiberto) – Em que cemitério vai ser?

GUIBERTO – No da Vila Kraemer, às 10h da manhã. Mas não

se preocupe que já está tudo providenciado. Inclusive o

caixão já foi pedido. Chegará amanhã para o enterro.

ABIGAIL – É isso mesmo, Eunice. Não precisa se

preocupar... Aqui, ninguém entende mais de velório do

que o Guiba.

EUNICE – Seria bom se colocássemos uma notinha na

rádio... Ele tinha tantos amigos...

GUIBERTO – Eu já tinha pensado nisso, e telefonei para

lá... Fica caríssimo!

ABIGAIL – Nestas horas eles aproveitam para meter a

faca.

EUNICE – Bem, se fica tão caro assim, deixa para lá.

GUIBERTO – Eu fui no Bar do Clóvis, e pedi a ele para

avisar a todos os amigos do Abreu.

ABIGAIL (Para Zélia) – E o Alemão da fruteira me

prometeu que vai avisar todo o mundo. (Zélia chora

muito, agarrando as mãos de Abreu.).

Cena 5

EUNICE (À parte, para Guiberto) – Coitada, ela está

sofrendo muito...

GUIBERTO – É... Eles se amavam de verdade... Eram almas

gêmeas.

ABIGAIL – Pareciam dois pombinhos...

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Cena 6

ZÉLIA – Quem diria... Ele foi embora... na flor da

existência... Foi colhido.

EUNICE – É sempre assim: os bons morrem primeiro...

GUIBERTO – Ninguém morre minha filha... Só

desencarna... Lembre que ele continua vivo no plano

espiritual.

ZÉLIA – Era um santo marido!

EUNICE – Uma criatura nobre!

GUIBERTO – Um espírito elevado! (Toca a campainha.).

ABIGAIL (Gritando) – Pode entrar!... (Para os outros.)

Eu não tranquei a porta, quando Eunice chegou. (Eunice

vai até a porta, e encontra-se com Teteo, que entra,

com uma coroa de flores nas mãos.).

Cena 7

EUNICE – Boa noite!

TETEO (Entregando a coroa, com cara de triste) – Meus

pêsames!

EUNICE (Soluça) – Obrigada!

TETEO – Meu nome é Teotônio Azevedo, mas estou

acostumado a ser chamado de Teteo... Sou colega de

repartição do defunto... Bem... Quero dizer..., do seu

marido.

EUNICE – Meu marido?

TETEO – É (aponta o caixão.). O falecido aí, o Abreu.

EUNICE – Desculpe, mas o Abreu não era o meu marido.

TETEO (Encabulado) – Não? Desculpe-me pelos pêsames!

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EUNICE – Abreu era meu irmão.

TETEO (Mais animado) – Ah, para irmão, pêsames também

vale. Então, meus pêsames, outra vez.

EUNICE – Obrigada!... (Sem saber o quê falar.) O senhor

é muito gentil.

TETEO – O que é isso?... Não faço mais que a minha

obrigação. (Olhando, constrangido.) A viúva, quem é?

EUNICE (Aponta Zélia, que soluça na cabeceira do

caixão) – É aquela... Minha cunhada.

TETEO – Então, com licença! (Toma a coroa das mãos de

Eunice e se encaminha para Zélia. Estende a coroa em

sua direção, com pose de orador.).

Cena 8

TETEO (Em tom de discurso) – Eu, Teotônio Azevedo,

Teteo para os amigos (sorri para Eunice.) fui sorteado

pelos colegas da repartição do nosso mui querido, amado

e adorado Abreu... Abreu... (Para Eunice, que está

perto.) Como era mesmo o nome todo dele?

EUNICE – Abreu Villela de Souza.

TETEO (Continuando o discurso) – Do nosso mui querido,

idolatrado e amado Abreu Villela de Souza, para ser o

representante do “Serviço Público Municipal –

Departamento de Água e Esgotos da Cidade de São

Francisco de Assis”, nesta solenidade..., nesta

solenidade... (sem achar a palavra certa.) macabra!...

EUNICE (Cortando, cúmplice) – Fúnebre!

TETEO (Feliz) – Nesta solenidade fúnebre! Em meu nome,

e em nome de todos os que militam nas águas e esgotos

da cidade, passo, nesse exato momento, para as mãos da

senhora, esta singela e feliz homenagem (entrega a

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coroa de flores a Zélia.). Receba; do fundo da nossa

alma, os nossos pêsames, dona Sueli!

Cena 9

ZÉLIA (Recebe a coroa, soluçando) – Meu nome não é

Sueli!

TETEO (Irritado com ele mesmo, toma a coroa das mãos de

Zélia, olha em volta, vê Abigail e vai até ela) – Minha

senhora, aceite as nossas homenagens, e...

GUIBERTO (Que se aproxima) – Desculpe meu senhor, mas

essa aí é a minha mulher.

TETEO (Chateado) – Mas afinal, quem é a viúva desse

velório?

EUNICE (Apontando Zélia) – É ela... Eu já havia dito

para o senhor.

ZÉLIA – A viúva sou eu, senhor. Só houve uma pequena

confusão: o meu nome é Zélia Villela de Souza, e não

Sueli!

TETEO – A senhora tem certeza?

ZÉLIA – Claro... Eu sou a viúva do falecido...

TETEO (Encabulado) – Desculpe dona, mas eu acho que fiz

alguma confusão. A senhora não tem o apelido de Sueli?

ZÉLIA (Intrigada) – Não. Nunca ninguém me chamou por

este nome.

TETEO – E a senhora é casada no civil e no religioso?

ZÉLIA – Claro que sim. Eu sou uma mulher honesta...

Casei de véu e grinalda. (Para Eunice.) Não foi,

Eunice?

EUNICE – Foi sim... Eu fui testemunha.

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TETEO (Para Eunice) – Na senhora eu acredito.

ZÉLIA – Quer dizer que o senhor está duvidando de mim?

TETEO – Não, não... Eu acredito na senhora também, mas

é que... Eu seria capaz de jurar que o nome da viúva

era Sueli.

ABIGAIL (Um pouco maliciosa) – E por que o senhor

achava que o nome da Zélia era Sueli?

TETEO – É que... (De repente, começando a entender.) É

que o Abreu..., isso é... Eu me enganei. Foi só isso.

ABIGAIL (Para Guiberto, baixo) – Se enganou nada... Tem

alguma coisa por trás disto.

ZÉLIA (Que ouviu Abigail, nervosa) – Se o senhor está

escondendo alguma coisa, diga logo!

TETEO (Que já recuperou um pouco o sangue frio) – Não

estou escondendo nada, não. Esqueçam. Olha, não está

mais aqui quem falou!

ZÉLIA – Por acaso o senhor estava querendo insinuar que

havia uma tal Sueli na vida de meu marido? Eu fui a

única mulher na vida dele. Ele casou comigo virgem... E

eu também era virgem.

TETEO – Por favor: desculpem-me, outra vez... Esqueçam

o que eu falei; estes enganos acontecem... Eu fiz

confusão, porque, afinal, ele falava tanto em Sueli,

que (percebe o que está dizendo.)... Isto é, ele não

falava em Sueli, não. (Rápido.) Nunca falou em Sueli

nenhuma!

ZÉLIA – Que vergonha!... O senhor entra em um velório

com a única intenção de sujar a memória de um homem

bom... Um marido exemplar. (O telefone toca. Abigail

vai atender.).

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Cena 10

ABIGAIL (Ao telefone) – Sim... É do velório, sim... Com

quem? Teteo?

TETEO (Para Zélia) – Deve ser da Repartição. Só eles

sabiam que eu vinha aqui. A senhora me dá licença de

atender?

ZÉLIA (Com má vontade) – Está bem. Mas, rápido, hein?

(Vai para junto do caixão.).

ABIGAIL (Que foi também para perto do caixão) – É um

tal de Orlando que quer falar com ele. (Todos prestam

atenção na conversa.).

TETEO (Ao telefone) – Tripé, eu dei um fora!... Imagine

que a Sueli (percebe que estão ouvindo. Para eles.)

É... É outro colega da repartição, o Tripé, isto é, o

Orlando... Ele está mandando sentimentos.

ZÉLIA (Séria) – Agradeça por mim.

TETEO (Ao telefone) – Ela agradece o sentimento que

você mandou... (Para Zélia.) Eu disse que mandou... (Ao

telefone, tentando falar baixo.) Foi chato, passei um

vexame... (Pausa.) O quê? Cartão da mega-sena? O que a

gente jogou? Eu acho que estou com o rascunho aqui no

bolso. (Vai pegar. Olha para os outros. Para Zélia.) Dá

licença, viu dona..., dona viúva. É só mais um

instantinho. (Ao telefone, com o papel na mão.) Está

aqui sim. Confere com o seu: 37... É... É isso... 53

(olha.) está aqui também... 42... (Olha.) Está também.

(Vai ficando eufórico. Os outros se aproximam.) 28...

(quase gritando.) 12, está aqui, e... O último é o 7...

(Grita.) É... (perde as forças, cai em cima de uma

cadeira. O telefone cai da sua mão.).

Cena 11

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GUIBERTO (Segurando-o) – O rapaz está passando mal.

(Para Zélia.) Dona Zélia, por favor, o rapaz está

precisando de um copo de água.

ZÉLIA (Com má vontade) – Está bem, eu vou buscar (entra

na cozinha.).

EUNICE (Vai até ao telefone) – Alô... Alô... Olha, o

seu amigo está passando mal... Teve um troço aqui...

(Pausa.) Vocês fizeram o quê? (Assustada, para os

outros.) Eles acertaram na mega-sena! (Ao telefone.)

Alô!...

ABIGAIL (Gritando para Zélia) – Eles fizeram a mega-

sena, Zélia!... Vão ficar ricos!

ZÉLIA (Entrando e entregando a água para Guiberto. Para

Eunice) – É verdade?

EUNICE – É sim... O amigo dele falou que eles

acertaram! (Ao telefone) – Alô... Moço... Olha..., seu

amigo vai conversar com o senhor (estende o telefone

para Teteo.).

GUIBERTO (Joga a água em Teteo) – Vamos, meu filho,

atenda!

TETEO (Acordando e lembrando. Dá um pulo, abraçando

Zélia, que está mais próxima) – Dona viúva, a mega-

sena... Nós ganhamos na mega-sena!

ZÉLIA (Se afastando) – Menos confiança!

GUIBERTO – Respeite a dor de uma viúva.

EUNICE (Com o telefone na mão) – Seu amigo quer falar

com você.

TETEO (Ao telefone. Todos escutam curiosos) – Tripé?...

É eu tive um troço... Você tem certeza?... Pela

televisão? Você conferiu? O quê? Cartão... Ele não está

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com você?... (Pausa.) Com o Abreu? (Surpresa de todos.)

Está bem... Eu vou perguntar à viúva... (Pausa.) Você

vem para cá... Eu espero (desliga.).

ZÉLIA (Interessada) – O que tem o meu marido a ver com

isso?

TETEO – Dona viúva...

ZÉLIA (Cortando) – Zélia é meu nome.

TETEO (Aflito) – Pois é dona Zélia. O Tripé, o Abreu e

eu fizemos uma vaquinha e jogamos na mega-sena e, (para

todos, apatetado.) acertamos. E já que o Abreu morreu,

o dinheiro é da senhora.

ABIGAIL (Não se contendo) – Viva! Que sorte, Zélia!

GUIBERTO – Biga!

Cena 12

GUIBERTO – Está vendo, minha filha, como Deus não se

esquece de suas ovelhas?

ZÉLIA (Quase alegre) – É verdade!

EUNICE (Abraçando Zélia) – Estou feliz por você,

Zélia... Parabéns!

ZÉLIA – Muito obrigada, Eunice. Você é um anjo!

TETEO (Para Zélia) – Dona Zélia..., agora que nós

ficamos ricos juntos, eu queria lhe dar os parabéns.

GUIBERTO (Para Teteo) – Eu estava me esquecendo de

cumprimentá-lo. Parabéns ao senhor também! (Todos se

parabenizam, uns aos outros. Por fim, ficam, frente a

frente, Eunice e Teteo).

Cena 13

TETEO – E à senhora, eu desejo saúde, paz e amor!

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EUNICE – Parabéns ao senhor. Muitas felicidades e muito

prazer em conhecê-lo!

TETEO – Agradeço emocionado e transmito o meu amor...

Mas, por favor, não me chame de senhor. Me chame de

Teteo.

Cena 14

ABIGAIL (Cortando) – O senhor é casado?

TETEO (Para Eunice, indiretamente) – Solteirinho...

Estou procurando minha alma gêmea!

ABIGAIL – Eunice também está procurando uma alma gêmea.

EUNICE – Que é isso, Abigail?...

GUIBERTO – Olha seu Teteo, moça boa tá aí.

ABIGAIL – Muito prendada.

ZÉLIA – Eunice dará uma ótima esposa!

ABIGAIL (Sem querer) – E é virgem!

EUNICE (Escandalizada) – O que é isso, Abigail? Quem

lhe disse isso?

ABIGAIL (Sem graça) – Foi o Guiba quem me contou.

ZÉLIA (Assustada, para Guiberto) – O senhor?

GUIBERTO (Encabulado) – Bem... É que outro dia, quando

eu fui ao Bar do Clóvis (rápido.) para ver se tinha

umas velas, tinham uns rapazes lá, e sem querer eu ouvi

a conversa deles.

EUNICE – E o que é que eles estavam dizendo?

GUIBERTO – Comentavam que ninguém havia conseguido nada

com a senhorita... Ah, disseram também, que a senhorita

é a última virgem da cidade.

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EUNICE (Se traindo) – Mas o Nestor estava lá?

GUIBERTO (Pensando) – Eu acho que não... Por quê?

EUNICE (Despistando) – Por nada, não..., por nada.

(Constrangimento geral.).

ABIGAIL – Eu invejo a sua força de vontade: eu não

agüentei espe...

GUIBERTO (Corta rápido) – Biga!

TETEO – Bom, com toda a festa, nós estamos esquecendo o

principal!

ZÉLIA (Lembrando e correndo para perto do caixão) – O

velório!

TETEO – Não, dona Zélia. O cartão!

Cena 15

EUNICE (Que também foi para perto do caixão, meio sem

entender o que está se passando) – Que cartão?

TETEO – O cartão do jogo... Ele ficou com o Abreu.

ZÉLIA – Com o Abreu?

TETEO – É. Esta semana foi o Abreu quem guardou o

cartão.

ZÉLIA – Ele não me mostrou cartão nenhum.

TETEO – Deve estar guardado em algum lugar. (Todos se

interessam.).

EUNICE – Talvez esteja na roupa que ele estava usando

quando morreu.

ABIGAIL – Ele não morreu de roupa... Só estava de

cuecas, e destas bem apertadinhas.

GUIBERTO (Repreendendo) – Biga!

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TETEO (Para Zélia) – E onde está a roupa que ele vestiu

por último?

ZÉLIA – Eu acho que está no quarto, em cima da cadeira.

TETEO – Pois é nela que deve estar o cartão.

ZÉLIA – Eu vou buscá-la e o senhor poderá procurar à

vontade. (Sai. Pausa.).

TETEO (Para Eunice) – A senhorita mora sozinha?

EUNICE – Pode me chamar por você... Eu não moro

sozinha, não. Tenho duas colegas. A Zélia me convidou

para morar aqui, mas, você compreende, queria um

cantinho só para mim.

TETEO – Eu compreendo sim, claro.

ABIGAIL (Aproximando-se) – O apartamento que ela mora é

uma gracinha. O senhor precisava ver... Eu já fui lá

duas vezes. (Para Eunice.) Convida o moço para ir lá,

Eunice!

TETEO – E eu aceito o convite, com muito prazer.

EUNICE – Está bem. Mais tarde eu dou o endereço. Não é

longe daqui, não. (Volta Zélia trazendo uma camisa, uma

calça, um blusão, uma pasta e a carteira. Teteo e

depois Eunice revistam as roupas que Zélia trouxe.

Silêncio. Pausa.).

ABIGAIL (Para Teteo) – E então, senhor Teteo?

TETEO (Revistando a calça) – Até agora, nada. (Para

Zélia.) E a carteira dele, onde está?

ZÉLIA – Olha: os papéis ele guardava nesta pasta, e a

carteira é esta aqui. (Passa tudo para Teteo.).

TETEO (Colocando a pasta em cima de Abreu) – Primeiro

vamos ver a carteira. (Vai tirando os documentos que

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encontra e colocando sobre o defunto) Carteira de

Identidade... CPF... Retrato da viúva... Depósito da

caderneta de poupança... (Abre a pasta, também sobre o

defunto. Vai ficando agitado, na medida em que tira as

coisas de dentro. Após um determinado momento, começa a

jogar as coisas no chão.) Contrato de aluguel... Contas

da AES SUL... Prestação do telefone... Cartões de

Natal... (Desanimado.) Não tem mais nada aqui dentro.

(Vira a pasta e cai um batom em cima de Abreu.) Um

batom!... Deve ser da senhora (entrega para Zélia.).

ZÉLIA (Olhando) – Meu não é. (Para Eunice.) Por acaso é

seu, Eunice?

EUNICE (Olhando) – Não é não.

ABIGAIL – Então deve ser da Sueli!

GUIBERTO (Rápido) – Biga!

TETEO (Nervoso, joga a pasta para um canto, e começa a

andar de um lado para o outro) – Mas este cartão tem

que estar em algum lugar! (Para Zélia.) Dona Zélia, a

senhora tem certeza de que ele não guardava suas coisas

em outro lugar?

ZÉLIA – Tenho certeza sim.

EUNICE (Preocupada) – Vai ver que está no bolso de

outra roupa.

TETEO – É isso mesmo... Deve estar numa outra roupa.

Temos de revistar tudo.

EUNICE – Já sei o que podemos fazer Zélia! Vamos trazer

todas as roupas do Abreu para cá. Assim, todo o mundo

ajuda a procurar.

ZÉLIA – Será que fica bem? Não será um desrespeito à

memória do Abreu?

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GUIBERTO – Não se preocupe com isso, minha filha! Ele

agora é um espírito, e os espíritos não prestam atenção

e não se ofendem com essas coisas.

ZÉLIA – Bem... Se é assim... (Para Eunice.) Você me

ajuda, Eunice?

EUNICE – Claro.

ABIGAIL – Eu também vou ajudar.

GUIBERTO – Você vai ficar aqui me ajudando a velar o

desencarnado!

ABIGAIL (Com má vontade) – Está bem. (Saem Eunice e

Zélia. Pausa.).

TETEO (Para Guiberto) – O senhor acha mesmo que o

espírito dele está aqui, agora?

GUIBERTO – Acho que sim. Ele desencarnou de repente, e

quando é assim, o espírito demora a se afastar do

corpo. Vai saindo pouco a pouco.

ABIGAIL – O Guiberto quer dizer que um pedaço dele pode

estar fora e o outro continua dentro.

GUIBERTO – É mais ou menos assim. (Pausa. Mudando de

assunto.) O Abreu era um ótimo vizinho... Quando a

geladeira dele quebrou, fui eu quem consertou.

ABIGAIL – Foi sim, e ficou novinha. O senhor precisava

ver...: parecia que estava saindo da loja naquela hora.

(Para Guiberto.) Depois você dá o endereço para ele,

Guiba. (Para Teteo.) Quando o senhor tiver alguma coisa

para consertar, já sabe onde levar. E tem mais: o Guiba

é muito honesto, e cobra muito barato. Eu vivo brigando

com ele por causa disso, mas não adianta. Por isso é

que a gente é tão pobre. (Neste momento entram Zélia e

Eunice trazendo um monte de roupas nas mãos.).

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ZÉLIA – Essa é toda a roupa dele. (Não sabem onde

colocar as roupas. jogam ao chão. Cada um pega uma

peça. Começam a procurar. Vão jogando as peças para

todos os lados.)

TETEO – A senhora tem certeza que ele não tinha mais

nada?

ZÉLIA – A roupa dele está toda aí.

TETEO (Olha para os lados e volta a olhar para Abreu.

Tempo. De repente, grita) – Já sei!

ZÉLIA – Onde?

TETEO – No único lugar onde ainda não procuramos... Na

nossa cara...

EUNICE (Olhando para Abreu) – Mas onde?

TETEO – No terno que ele está usando... Foi o único

lugar onde nós não procuramos...

ZÉLIA (Desanimada) – Não! É impossível!... Este é o

terno do casamento e ele só usou uma vez... O senhor

pode até ver que está apertado nele!

TETEO – Quem sabe ele guardou aí para dar sorte? Vamos

revistá-lo!

ZÉLIA (Para Guiberto) – O senhor não acha que é

profanação revistar um morto?

GUIBERTO – Eu já disse minha filha: um espírito não se

incomoda com estas coisas.

EUNICE – Deve estar aqui, Zélia!

ZÉLIA – Bem... Se o espírito não se importa, vamos ver.

(Todos avançam.) Mas, com muito respeito, por favor!

(Com muito cuidado começam a revistar Abreu. Pouco a

pouco, vão ficando animados. Sentam o corpo, jogam

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flores para o lado, tiram-lhe os sapatos, as calças,

etc., etc.).

TETEO (Aos gritos) – Tem alguma coisa dentro do bolso!

EUNICE (Para Teteo) – É o cartão?

TETEO (Com uma calcinha rasgada nas mãos) – O que é

isso? (Silêncio. Todos ficam petrificados.).

ZÉLIA (Aproximando-se) – Me dá isso aqui! É minha!

(Toma a calcinha das mãos de Teteo.).

ABIGAIL – Guiba olha: é uma calcinha!

GUIBERTO – Eu sei que é uma calcinha.

TETEO – Mas o que estava a calcinha da senhora fazendo

no bolso do Abreu?

ZÉLIA (Envergonhada) – É que... Eu queria que ele

levasse uma lembrança da nossa lua-de-mel.

ABIGAIL (Tentando ver a calcinha) – Mas a calcinha

ficou desse jeito, Zélia?

ZÉLIA – É que... O Abreu era muito impetuoso..., e...,

bem... Ele gostava de umas coisas esquisitas...

ABIGAIL – A minha não ficou assim, não!

GUIBERTO – Biga!

ZÉLIA – Me ajudem aqui! (Colocando a calcinha novamente

no bolso de Abreu. Todos permanecem em volta do caixão,

suspirando, desanimados. Só Teteo anda agitado, de um

lado para o outro, pisando nas roupas que estão no

chão. Enquanto isso, Abigail examina as roupas, achando

a calça de Abreu.).

ABIGAIL – Olha só, que calça boa! (Coloca-a a frente de

Guiberto.) Eu acho que é o seu número, Guiba. (Para

Zélia.) Eu posso levar de lembrança, Zélia?

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ZÉLIA – Pode sim, Abigail. (Abigail, feliz, dobra a

calça e coloca-a numa sacola. Toca a campainha.).

Cena 16

TETEO – Deve ser o Tripé! Ele vai ficar furioso...

GUIBERTO – Eu não deixarei que ele crie confusão, nesta

última homenagem ao desencarnado. Vou abrir a porta, e

eu mesmo conversarei com ele.

ABIGAIL (Gritando) – Pode entrar!...

TETEO – Pode deixar que eu atendo... (Vai até a porta,

e abre.).

Cena 17

TRIPÉ (Entra eufórico, meio bêbado, garrafa de pinga na

mão. Junto com a garrafa, umas flores já mortas e

despetaladas. Abraça Teteo com força, alegre, falando

alto) – Fala Teteo, o dono do ouro!

TETEO (Desgrudando-se do abraço) – Tripé escute: eu

preciso te contar uma coisa!

TRIPÉ (Expansivo, alegre, dançando em volta de Teteo,

jogando as flores sobre a cabeça dele) – Não vem com

conversa mole, não, xará! Nós agora somos ricos,

estamos com a erva toda, nadando no tutu... Acabou o

esgoto, e que se foda o departamento... De hoje em

diante, sou boy, sou de classe..., gente fina...

Mulher, eu sou vou querer filé e cabacinho...

TETEO (Cortando) – Mas, Tripé...

TRIPÉ (Dando a garrafa para Teteo, obrigando-o a beber)

– Bebe aqui! Não vem com caretice! Vamos festejar!

(Agarra Teteo na marra e dança com ele, cantando um

hino de futebol.).

TETEO – Tripé, o Abreu...

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Cena 18

TRIPÉ (Levando um susto, lembrando) – O Abreu... É

mesmo!... Eu tinha esquecido ele... (Olha para trás,

pela primeira vez. Estão todos encostados num canto.

Para Teteo.) Que vexame que eu dei! (Se recompondo.

Entrega a garrafa para Teteo. Apanha as flores no chão

e vai até o caixão. Quase cai. Olha Abreu.) Abreu...

Abreuzinho... Gremista do peito: meus pêsames!... Olha,

cara, eu vou sentir sua falta, hein?... (Olha para os

outros.) Ói, nós dois era unha e carne! (Para Abreu.)

Unha e carne! (Pausa. Apontando para os outros.) Quem

aí que é a mulher do meu maninho querido? (Todos

apontam Zélia.).

ZÉLIA – Sou eu!

PÉ (Abraça Zélia, que quase cai. Tenta ser o mais digno

possível. É ridículo. Afasta-se um pouco e entrega as

flores) – Sinto muito prazer e muita infelicidade em

conhecê-la nessa hora, dona Sueli!

Cena 19

TETEO (Apavorado) – Não fale isso, Tipé!

TRIPÉ (Sem entender) – O quê? Eu falei algum palavrão?

ABIGAIL (Aproximando-se) – Falou sim senhor! Sueli era

a outra na vida dele!

GUIBERTO – Biga!

TRIPÉ (Perplexo) – Eu não estou entendendo nada!

ZÉLIA – Meu senhor, meu nome é Zélia!

TRIPÉ – Mas então a viúva é outra! (Olhando para

Eunice.) Você é que é a Sueli?

TETEO (Puxando Tripé para um canto. Para os outros) –

Com licença!... (Fica cochichando com Tripé, que de vez

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em quando mexe com a cabeça, como se estivesse

entendendo tudo.).

TRIPÉ (Para Teteo) – Pode deixar comigo, xará! Agora eu

entendi tudo! (Vai para perto do caixão.) Desculpe o

vexame, não está mais aqui quem falou. Eu se fosse a

senhora, mandava a Sueli para a puta que a pariu! (Para

Abreu.) Que papelão, hein cara? Com um pedaço de mulher

desses em casa, (pega Zélia.) e você ia atrás de uma

vagabunda qualquer! Que vergonha, cara! (Zélia chora

forte.) Dona Zélia: não chora, não! Esse cara aí, não

prestava, e nem merece lágrimas! (Para os outros.) Por

isso é que eu nunca fui com a cara dele. (Para Zélia.)

A senhora devia era estar feliz por ele ter morrido!

GUIBERTO – Não fale assim, senhor Tripé! Nós todos

temos nossos defeitos... Ninguém é perfeito!

ABIGAIL (Meio de lado, para Tripé) – Ele falava muito

nessa tal de Sueli?

TRIPÉ (Alto) – Se falava!... Contava cada foda, não é

Teteo?

GUIBERTO – Senhor Tripé: faça o favor de respeitar o

ambiente, nós não estamos num botequim qualquer!

TETEO – É isso mesmo, Tripé! (Puxa-o para um canto.)

Tripé, tem uma coisa que você ainda não sabe.

TRIPÉ – E o que é?

Cena 20

TETEO – O cartão sumiu!

TRIPÉ (Como se tivesse levado um choque, olha para as

roupas espalhadas no chão, olha um por um dos

presentes. Todos estão tristes. Arregala os olhos. A

bebedeira passa. Vai para perto do caixão. Para Zélia)

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– Dona Sueli, com todo o respeito que eu tinha pelo

finado, jura que isto que o Teteo disse não é verdade?

ZÉLIA (Soluçando) – É verdade, sim... Nós procuramos em

todos os lugares. Ele não está em lugar nenhum!

TRIPÉ (Para Eunice, implorando) – E você sabe onde é

que ele está? Fala para mim, fala!

EUNICE – Eu não sei não senhor... Eu nem moro aqui!

TRIPÉ (Para Guiberto) – O senhor, que respeita o

ambiente, não vai mentir, não é?

GUIBERTO – Eu nunca minto meu senhor! E nada sei desse

tal cartão!

TRIPÉ (Para Abigail, desesperado, com as mãos postas) –

Minha tia: fala para mim, fala! Onde ele está?

ABIGAIL – Eu não sei moço... Até ajudei a procurar.

TRIPÉ (Afasta Abigail. Fica olhando para Teteo, imóvel.

De repente, dá um grito. Está possuído.) – Fui traído!

(Todos se encolhem num canto. Vai até eles.) Cambada de

salafrários, vigaristas!... Então é essa que é a de

vocês, não é? Vocês estão a fim de me passar a

perna!... Mas vocês não sabem com quem estão mexendo.

Vão lá no Bairro João XXIII e perguntem para qualquer

um, quem é o Tripé!... Eu vou mostrar pra vocês quem é

(Começa a baixar as calças. Teteo, de um pulo, consegue

segurá-lo.) Não sou trouxa, não! Vocês estão é a fim de

me tirar da jogada!

TETEO (Tentando contê-lo) – Não é nada disso, Tripé!

TRIPÉ (Empurrando Teteo) – Não vem, não, xará! Eu te

manjo... Você também é da gang. (Zélia soluça forte.

Para Zélia.) Essa aí é que deve ter bolado a coisa

toda. Sua cara não me engana... Bem fez o Abreu em

procurar mulher fora de casa... Sueli, sim, é que é

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mulher de verdade!... Não é à toa que o defunto não

tirava ela da boca, estava embeiçadão... Contava cada

foda!...

GUIBERTO (Forte) – Chega! Isso já é demais! E se o

senhor continuar desrespeitando o ambiente, eu vou ser

obrigado a telefonar para a polícia!

ABIGAIL (Choramingando) – Ai, meu Deus do céu!...

TETEO (Para Tripé, calmo) – Tripé: escuta..., eles

estão falando a verdade, eu também... O cartão não está

com ninguém daqui... O Abreu deve ter deixado em outro

lugar.

Cena 21

ABIGAIL – Espere um pouco, seu Tripé!... Eu não sei

onde ele está, mas sei de uma maneira para descobrir.

TRIPÉ – E que maneira é essa?

ABIGAIL (Apontando Guiberto) – Meu marido ali é médium,

e ele pode fazer descer o espírito do Abreu, e aí, ele

mesmo conta onde guardou o cartão.

ZÉLIA (Para Guiberto) – Isso é possível, seu Guiberto?

TRIPÉ – O senhor é macumbeiro mesmo?

GUIBERTO – Macumbeiro não!... Eu sou Umbandista!

EUNICE (Para Guiberto) – Será que dá para fazer o Abreu

descer?

GUIBERTO – Eu não sei... Ele desencarnou há muito pouco

tempo, talvez ainda esteja em estado de choque, e não

tenha consciência do desencarne.

ABIGAIL – Faz uma forcinha, Guiba!

TRIPÉ (Ameaçador, para Guiberto) – Então, meu chapa...

(Todos insistem com Guiberto. Pausa.).

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GUIBERTO – Está bem... Eu vou tentar... Vamos fazer uma

corrente... (A cena fica iluminada pelas velas.).

Cena 22

GUIBERTO – Agora todo o mundo concentrado... Vamos

fazer uma meia volta em torno do caixão. (Abigail está

numa ponta e Tripé, na outra.) Biga: você pega numa das

mãos dele (aponta para Abreu. Para Tripé.) e o senhor

pega na outra.

ABIGAIL – A mão eu não pego... Se for alguma outra

parte, até posso pegar...!

GUIBERTO – Biga!

EUNICE – Vamos trocar de lugar, dona Abigail. Eu pego!

(Trocam de lugar.).

GUIBERTO – Vamos formar a corrente. Todos concentrem no

desencarnado e, por favor, (para Tripé.) respeitem o

trabalho.

TRIPÉ – Pode deixar meu chapa!... Eu acredito nessas

coisas!

GUIBERTO – Abreu... Abreu... Se o seu espírito estiver

presente, por favor, se manifeste! (Pausa. Silêncio.)

Abreu, você precisa nos dizer onde guardou o cartão

premiado... (Tempo.) Parece que ele não quer dizer.

ZÉLIA – Diga meu amor!

EUNICE – Fala meu maninho!

TETEO – Pela nossa amizade!

TRIPÉ – Olha mano: o tutu é nosso!... Sua mulher vai

receber a parte que era sua... Fala logo, e vê se não

fica fazendo cu doce, não!

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GUIBERTO – Esperem!... Ele está me transmitindo uma

mensagem!... (Silêncio. De vez em quando Guiberto

balbucia.) Sim!... Sei!... Sei!...

TRIPÉ (Nervoso) – Sabe o quê? Diga... Ele está

contando?

GUIBERTO (Em transe) – Ele vai dizer!... (Suspense.

Pausa. Silêncio.).

VOZ DE ABREU (Gravada) – Sueli!!!!!!!!!!!! (Todos

correm gritando, apavorados, para baixo da mesa.

Silêncio absoluto. Pausa longa.).

Cena 23

TRIPÉ (Para Zélia, falando baixinho) – Olha dona Zélia:

o chegado aí em cima falou na Sueli, para a gente poder

pegar o cartão e receber a erva... A senhora vai ganhar

o dinheiro!

TETEO – Mas como?

Cena 24

TRIPÉ (Pensando) – Espera aí! Eu tenho uma idéia!

(Chama Zélia.) Dona, onde está a agenda de endereços do

pres... Do amigo, aí? (Aponta para Abreu.).

ABIGAIL (Eufórica) – Eu vi essa agenda... Ela está no

meio dessas coisas aí. (Mostra as roupas no chão. Todos

procuram. Eunice acha a agenda.).

EUNICE – Olhem: eu acho que é esta aqui!

TRIPÉ (Pegando a agenda) – É agora ou nunca!... Santo

Abreuzinho, dá uma força aqui... (Procurando.) F...

N... R... S! Vamos ver... Sílvia...

ABIGAIL – Ele tinha mais uma?

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EUNICE – Não senhora!... Sílvia era minha mãe, já

falecida.

ABIGAIL – Ah, então, meus pêsames!

TRIPÉ (Feliz) – Está aqui!... Sueli!... Só pode ser a

mesma..., e tem telefone! Vamos telefonar para ela e

convidá-la para vir aqui.

ZÉLIA (Revoltada) – Ah, não! Isso não! Na minha casa

essa piranha não entra!

TETEO – Lembre do dinheiro, dona Zélia!

EUNICE – É isso mesmo! Você tem que passar por cima!

PÉ – E sacudir a poeira.

GUIBERTO – Fique tranqüila, dona Zélia. Sua casa não

será maculada... Uma andorinha só não faz verão!

(Pausa.).

ZÉLIA – Está bem. Eu aceito!

TRIPÉ – Ótimo!... E é a senhora mesma quem vai

telefonar para ela.

ZÉLIA – Eu?

TRIPÉ – É. Tem que ser, senão ela não vem.

ZÉLIA – Mas o que é que eu vou dizer?

TRIPÉ – Eu já bolei tudo. A senhora vai dizer o

seguinte... (Cochicha no ouvido de Zélia, que aos

poucos vai concordando e entendendo o que ele quer.).

ZÉLIA (Para Guiberto) – O senhor acha que eu devo? Isso

não é um desrespeito?

GUIBERTO – Pensando bem, se o desencarnado contou onde

está o cartão é porque deseja que a senhora receba o

dinheiro. (Pausa.).

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ZÉLIA – Está bem! (Vai até o telefone e disca.) Alô!...

É da residência da Sueli?... É ela quem está

falando?... Como? Glorinha... Ah, sei... Sei... Ela

demora?... Não? Ainda bem!... É sim, é muito

importante!... Será que a senhorita poderia dar um

recado para ela?... Ótimo!... Diga que o Abreu... Ah,

conhece ele?... É... É ele mesmo... Três vezes por

semana, é? (Com raiva.) Olha: diga que ele sofreu um

acidente... É, é isto mesmo... Está muito mal... O

médico já desenganou... Sim, eu sei que a Sueli o ama.

Ele também a ama, e é por isso que eu estou

telefonando: ele está moribundo e quer se despedir

dela!... Eu?... Eu sou a esposa dele... Alô!... Alô!...

Senhorita?... Não precisa ficar assustada, não! Ele me

contou tudo, e eu o perdoei... Que é isso?... Que é

isso? Eu não sou uma santa, não, só sou compreensível.

De qualquer forma, obrigada... Será que a Sueli tem o

endereço? Anote aí: Rua Décio Oliveira, 427... É... É

na Vila Nova... Não!... Não!... Demora muito... Fala

para ela tomar um táxi!... Abreu diz o nome dela sem

parar!... Obrigada, foi um prazer!... Boa noite!

(Desliga.).

EUNICE – Quem é ela?

ZÉLIA (Com raiva) – Uma tal de Glorinha! É colega de

apartamento da Sueli e conhecia o (aponta o caixão.)

distinto aí... Só nesta semana ele foi lá três vezes.

Ela saía para deixá-los mais à vontade. (Vai para perto

do caixão.) Comigo era só uma vez por mês. Que raiva!

TRIPÉ (Para Zélia) – Então ela mordeu a isca?

ZÉLIA – Eu acho que sim... Ela disse que a Sueli tinha

saído um instantinho, e que logo que chegasse ela daria

o recado.

TETEO – E agora, o que vamos fazer?

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TRIPÉ – Agora vamos esperar com calma.

GUIBERTO – Podíamos aproveitar a oportunidade para

velar o desencarnado.

TRIPÉ – Está bem, vamos lá... É só esta noite mesmo.

(Todos rodeiam o caixão, permanecendo alguns instantes

contritos, orando.).

ZÉLIA – Eu vou fazer um cafezinho para nós. (Sai,

acompanhada por Eunice.).

Cena 25

TETEO – Tripé: me diga uma coisa: quando a Sueli

chegar, como é que nós vamos fazer para pegar o cartão?

TRIPÉ – Pode deixar por minha conta... Se for piranha,

o papai aqui sabe como controlar.

Cena 26

(Entram Eunice e Zélia trazendo uma bandeja com

xícaras. Servem o café. Eunice serve Teteo, enquanto

Abigail os observa, maliciosamente. Toca a campainha.).

EUNICE – É ela!

ZÉLIA – Só pode ser!

TETEO – Veio rápido, hein?

ABIGAIL – É porque ela amava o Abreu de verdade!

GUIBERTO – Biga!

ZÉLIA – Só quero ver a cara que esta vigarista vai

fazer quando ver o Abreu morto.

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TRIPÉ – É agora ou nunca!... Ou saio da merda de uma

vez, ou vou ter que me aposentar atolado num esgoto!

ABIGAIL – Será que ela vai desmaiar ao ver o Abreu

morto?

TRIPÉ – Tomara! Aí facilita tudo! (Campainha de novo.)

Ela está nervosa... Eu vou abrir. Se ela desmaiar, eu

seguro a danada! (Vai até a porta. Suspense.).

Cena 27

EDGARD (Encoberto pela porta) – Boa noite!

TRIPÉ (Surpreso) – Boa noite!...

EDGARD – É aqui a residência do senhor Abreu Villela?

TRIPÉ – É aqui sim... O senhor era amigo dele?

EDGARD – Era? O que aconteceu?

TRIPÉ – O senhor não sabia que ele morreu?

EDGARD – Morreu? (Entra. Vai até o caixão. Digno,

contido, mas muito emocionado.) Abreu... Abreu...

GUIBERTO – O senhor o conhecia há muito tempo?

EDGARD (Ainda emocionado) – Conhecia sim. (Para os

outros.) Éramos muito amigos!

GUIBERTO (Mostrando Zélia) – E a dona Zélia, o senhor

já conhecia?

EDGARD (Sestroso) – Não...

GUIBERTO – Ela é a viúva do desencarnado.

EDGARD (Encabulado) – Meus sentimentos... e prazer em

conhecê-la!

GUIBERTO (Mostrando Eunice) – Esta é a irmã!

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EDGARD – Meus pêsames e prazer.

ABIGAIL (Adiantando, aponta Guiberto) – Eu sou a mulher

dele. Muito prazer senhor... Senhor...

EDGARD – É um prazer, senhora. Meu nome é Edgard

Carvalho.

GUIBERTO (Aponta Teteo e Tripé, que estão num canto) –

Os dois eram colegas de Repartição.

TETEO (Conversando com Tripé) – Mas quem é esse cara?

PÉ – Sei lá... Mas ele pode estragar tudo!

EDGARD (Para Zélia) – Mas como aconteceu?

ZÉLIA – Enfarte! (Edgard fica surpreso. Zélia percebe

que ele não está entendendo.).

EDGARD – Enfarte?

ABIGAIL – É. Foi tiro e queda!

EDGARD – Mas, se não estou enganado, a Glorinha disse

que ele havia sofrido um acidente. (Surpresa geral.

Tripé se aproxima.).

TRIPÉ – O que foi que o senhor disse?

EDGARD – A Glorinha recebeu um telefonema pedindo que

eu viesse aqui imediatamente e...

ZÉLIA (Cortando) – Desculpe, mas deve estar havendo

algum engano... Nós estávamos esperando uma moça

chamada Sueli!

EDGARD (Compreendendo, encabulado) – Então... A senhora

não sabia... O Abreu não contou?

ZÉLIA – Não sabia o quê?

ABIGAIL (Escandalizada) – Sueli é um viado!

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TODOS – Biga!

EDGARD (Nervoso) – Eu pensei que a senhora já soubesse

de tudo... A Glorinha disse que a senhora havia

compreendido os meus sentimentos, e que perdoou o

Abreu. Disse também que eu deveria vir aqui, pois ele

não parava de me chamar.

ZÉLIA – Isso não é verdade! Não pode ser verdade!

ABIGAIL (Para Zélia, que está arrasada, de cabeça

baixa) – Olha Zélia: o mundo está assim de homens como

ele. O Alemão da Fruteira me falou que até o Augustinho

é! (Para Edgard.) Olha senhor Edgard: desculpe, viu...

É que eu sou uma mulher ignorante..., não entendo

dessas coisas.

TRIPÉ – Está vendo?... Ela não é entendida! Olha:

ninguém aqui tem nada com a sua transa com o Abreu,

não! Vocês curtiam numa boa, não é? Pois então, o resto

que se dane!

EUNICE – Vai lá, Zélia! Vai lá e conversa com ele!

EDGARD (Olha para Zélia, envergonhado. Tenta sair.

Tripé não deixa) – Me deixa ir embora!

TRIPÉ – Você não sai daqui, antes de se entender com a

Zélia!

TETEO (Aproximando-se) – Vai lá e fala alguma coisa

para ela.

ABIGAIL (Aproximando-se também) – Não esqueça que você

roubou o marido dela!

EDGARD (Para Tripé) – Está vendo? Elas não compreendem,

não perdoam... Eu quero sair! (Tripé enfia a mão no

bolso direito do paletó de Edgard. Tira um lenço,

algumas moedas e papéis.)

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TETEO (Indo para perto de Eunice. Para Zélia) – Dona

Zélia, eu quero que a senhora dê o primeiro passo. Ele

diz que foi ofendido!

ZÉLIA – E eu não fui ofendida? Não esqueça que ele...,

ou ela - sei lá -, foi amante do meu marido... Ele que

venha até aqui, se quiser! (Teteo vai para Tripé.).

TETEO – Ela acha que ele deve ir lá.

TRIPÉ – Eu já sei o que fazer... Fique aqui com ele...

(Passa para Teteo o que havia tirado do bolso de

Edgard. Vai para o centro da sala. Alto, para Zélia.)

Dona Zélia... (Para o Edgard.) Edgard... Vocês duas

gostavam da mesma pessoa (aponta Abreu.). Vocês são

viúvas da mesma pessoa, o distinto que está ali. Agora,

o distinto já não é deste mundo, portanto, é bobagem

brigar... Vocês devem é trocar um abraço cordial e bem

forte. Só assim mostrarão que estão unidas pelo mesmo

sentimento de amor..., e de dor!

ABIGAIL (Não se contendo) – Muito bem! (Aplaude com

muita animação.).

EUNICE (Para Zélia) – Zélia: vai lá e dá um abraço

nele.

TETEO (Para Edgard) – Abraça a dona Zélia, vai! (Zélia

e Edgard dão alguns passos e ficam um frente ao

outro.).

EDGARD (Abraçando Zélia) – Meus pêsames!...

ZÉLIA (Para Edgard) – Meus pêsames para você também!

(Todos rodeiam os dois. Teteo vai para um canto,

examinando o que Tripé lhe entregou e faz um sinal

negativo a Pé. Enquanto isso Edgard e Zélia separam-se

um do outro.).

Cena 28

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ZÉLIA (Consigo mesma, nervosa) – Eu não posso permitir

uma coisa dessas... (Alto.) Eu não vou permitir que

um..., um..., uma bicha qualquer entre na minha casa e

negue a machice do meu marido... Ele não era nada

disso, não... (Para todos.) Ele não dormia com homens!

ABIGAIL – A Glorinha disse que ele ia lá três vezes por

semana!

ZÉLIA (Possessa) – Alguma vez vocês viram o Abreu

desmunhecar?

ABIGAIL – O Augustinho também não desmunheca, não!

(Aponta Edgard.) E ele também não!

ZÉLIA (Furiosa, para Edgard) – Por favor, retire-se!

EDGARD (Embaraçado) – Mas..., mas...

ZÉLIA (Nervosa) – Rua!... Rua!...

EDGARD (Digno) – Sinto muito que a minha presença tenha

causado tanto embaraço. A senhora fique sossegada, eu

me retiro... Não fico num lugar onde não sou bem

aceito. (Olha para Abreu.) Adeus, Abreu... (Edgard

encaminha-se para a porta. Zélia passa mal. Eunice

acode.).

EDGARD (Parando à porta, olha para o caixão e para

todos) – Boa noite!

ZÉLIA (Levanta-se, possessa, pega a coroa de flores e

joga em Edgard, gritando) – Rua!... Rua!...

EDGARD (Esquivando-se da coroa, dá um passo à frente.

Encara Zélia) – Fique aí velando o corpo, mas lembre

que era de mim que ele gostava! (Sai.).

Cena 29

EUNICE – Vamos lá dentro tomar um copo de água com

açúcar!... Eu também estou precisando.

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36

ZÉLIA (Possuída) – Enterrem esta praga sem caixão

mesmo. Atirem aos urubus... Eu não quero vê-lo nunca

mais!

TRIPÉ (De súbito) – Epa! E o cartão?

TETEO (Nervoso) – É mesmo! E agora?

TRIPÉ – Ele precisa voltar.

ZÉLIA (Saindo de cena com Eunice, pára imediatamente) –

Aqui ele não entra mais!

TRIPÉ (Nervoso) – Olha aqui: e nós? Vamos dançar? Só

porque o Abreu gostava de umas transas diferentes eu

vou ter que me aposentar na merda?

TETEO – Desculpe dona Zélia, mas a minha parte eu quero

todinha!

TRIPÉ (Para Zélia) – Se você quer terminar a vida como

uma viúva pé-de-chinelo, o problema é seu. Eu estou

noutra!... Esse cara vai voltar aqui!... A gente

precisa saber onde está o cartão!...

GUIBERTO – Desculpe minha interferência, mas eu acho

minha filha, que você não deve deixar a ira e o orgulho

dominarem o seu coração!

EUNICE – Afinal, ele já morreu mesmo, Zélia! Não

adianta ficar remoendo... Você tem é que perdoá-lo!

TRIPÉ – Então, Zélia?... (Pausa.) Resolva logo, antes

que ele suma! Faço ele voltar? (Todos olham para Zélia.

Pausa. Suspense.).

ZÉLIA (Resignada) – Está bem.

TRIPÉ – Rezem por mim!... Lá vou eu! (Sai atrás de

Edgard.).

Cena 30

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EDGARD (Fora de cena) – Eu não vou entrar, não!... Fui

enxotado daí!

TRIPÉ (Fora de cena, com Edgard) – Eu já disse que ela

está nervosa. Foi ela quem me pediu para vir atrás de

você... Faça uma forcinha! (Puxa Edgard para dentro de

cena.).

EDGARD – Eu estou com vergonha... Me deixe ir embora!

TRIPÉ – Não! Só depois que você conversar com a

Zélia... Você vai ver: ela está arrependida!

TETEO (Aproximando-se) – É verdade. Ela ficou chateada

depois eu o senhor saiu! (Zélia e Edgard, relutantes,

abraçam-se, novamente. Teteo entrega o que tinha nas

mãos para Pé, que coloca novamente tudo de volta no

bolso de Edgard. Em seguida, vai até o outro bolso e

tira uma carteira, entregando-a para Teteo, que

imediatamente procura dentro dela. Faz sinal de

negativo para Pé. Neste ínterim, Edgard e Zélia

desfazem o seu abraço.).

ABIGAIL (Aproximando-se de Teteo) – E então, achou?

EDGARD (Olhando para as mãos de Teteo) – Esta carteira

é minha!

TETEO (Encabulado) – É? Ah, pois: eu estava dizendo

para a dona Abigail que eu achei esta carteira aqui no

chão. Deve ter caído do seu bolso! (Entrega a carteira

para Edgard.).

EDGARD (Pegando, desconfiado) – Obrigado! (Vai para

perto do caixão.).

ABIGAIL (Cruza a cena e vai para onde estão Zélia e

Eunice) – Não estava na carteira.

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EUNICE – E agora? (Vão para perto do caixão. Tripé faz

um sinal para Teteo, e vão os dois para um canto,

disfarçando.).

TETEO (Baixo) – E agora?

TRIPÉ (Baixo) – Só pode estar no bolso de dentro do

paletó, e eu já sei o que fazer!

TETEO – O quê?

TRIPÉ – Deixe por minha conta! (Entra na cozinha. Teteo

vai para perto do caixão, junto com os outros.).

Cena 31

EDGARD (Para Teteo) – Onde está o seu amigo?

TETEO – Acho que foi ao banheiro. (Pausa. Entra Tripé

carregando uma bandeja com cafezinho. Serve um por um.

O último é Edgard. Tripé finge que escorrega, deixando

a xícara com o café cair no paletó de Edgard.).

TRIPÉ – Oh, desculpe!... Eu tropecei e...

EDGARD (Se limpando) – Não se preocupe. Estas coisas

acontecem.

TETEO (Entendendo a jogada) – Por favor, tire o paletó,

que a dona Zélia dá uma limpadinha para o senhor.

EDGARD – Obrigado! (Tira o paletó e vai entregá-lo para

Zélia, mas Tripé o recolhe.).

TRIPÉ (Para Zélia) – Vamos, dona Zélia, eu ajudo a

senhora! (Entram na cozinha. Os outros voltam a olhar o

caixão.).

Cena 32

EDGARD (Olhando para Abreu) – Eu ainda não entendi uma

coisa.

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TETEO (Receoso) – O quê?...

EDGARD – O recado que a Glorinha me deu, foi que o

Abreu estava vivo, e havia sofrido um acidente, e que

não parava de chamar por mim. Ao chegar aqui, vocês me

disseram que o Abreu morreu de enfarte e que isso

aconteceu à tarde.

TETEO (Procurando uma desculpa) – Bem... É que..., nós

não queríamos dar esta notícia por telefone... Ficamos

sem saber como contar que ele já havia morrido.

EUNICE (Salvando a situação) – Minha cunhada não queria

telefonar. Só depois que eu cheguei, à noite, foi que

consegui convencê-la.

ABIGAIL – É isso mesmo, seu Edgard. Eu cansei de falar

com ela, para telefonar, mas ela estava com ciúmes...

Não foi, Guiba?

GUIBERTO (Constrangido) – Foi sim!... Dona Zélia tinha

muitos ciúmes do desencarnado! (Entram Zélia e Tripé.

Estão arrasados.).

Cena 33

ZÉLIA (Com mau-humor) – Aqui está o paletó!

EDGARD (Olhando) – A mancha não saiu.

ZÉLIA – Eu não consegui limpar... Estou muito

nervosa... E o café está muito forte!...

EDGARD – Não tem importância... Eu mando para o

tintureiro. (Todos estão concentrados em Zélia. Fazem

mímicas. Piscam o olho, etc.).

TRIPÉ (Para Teteo, no canto do palco, nervoso) – Nada.

Não tinha porra nenhuma no bolso!

TETEO – Essa não! E agora?

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TRIPÉ – Só tem mais uma chance. Este cartão tem que

estar no apartamento dele.

TETEO – Tripé..., e se ele já está sabendo da mega-

sena? Quem sabe se não é ele quem está nos passando a

perna?

TRIPÉ – Não sabe, não!... Ele não estaria com aquela

cara, se soubesse. (Edgard está triste. Eles observam-

no. Pausa. De repente.) Olha: por que as senhoras não

vão lá para dentro, providenciar alguma coisa para a

gente comer?

EDGARD – Eu posso sair; comprar algumas coisas, e

trazer para vocês.

TRIPÉ – Nem pense nisso!... (Empurra Zélia para a

cozinha.) Vai, dona Zélia! Prepare qualquer coisa para

nós, afinal, estamos dando a maior força aqui no

velório!

ZÉLIA (Não entendendo) – Mas..., mas... (Tripé faz

mímicas para Zélia, que entende que é para sair da

sala.) Está bem. Você me ajuda Eunice?

EUNICE – Ajudo sim!

TRIPÉ (Para Abigail) – Por que a senhora não vai ajudar

também?

GUIBERTO (Entendendo) – Vai, Biga! (Saem Zélia, Eunice

e Abigail.).

Cena 34

TRIPÉ (Para Guiberto) – E o senhor?

GUIBERTO – Eu vou ficar aqui, velando o desencarnado!

EDGARD – Talvez eu também possa ajudar (faz menção de

ir até a cozinha.).

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TRIPÉ – Nem pense nisso! Você vai ficar aqui!

EDGARD (Não entendendo) – Por quê?

TRIPÉ – Por nada!... Bem... É que eu gostaria de ter

com quem conversar, e simpatizei com você... (Puxa

Edgard para um lado. Mostra duas cadeiras, no canto.

Edgard senta, enquanto Tripé vai pegar a garrafa de

pinga. Neste momento faz um sinal para Teteo sair.

Teteo sai.).

Cena 35

TRIPÉ (Estendendo a garrafa para Edgard) – Quer dar uma

bicada? (Edgard bebe e devolve a garrafa. Pausa. Aponta

o caixão.) Você gostava muito dele?

EDGARD – Eu já disse: a gente..., se curtia numa muito

boa!

TRIPÉ – Você sabe que eu até chego a sentir inveja

dele?... É bacana um caso assim! (Passa a garrafa para

Edgard.) Toma aqui. Bebe mais um pouquinho.

EDGARD (Bebe) – Você vai acompanhar o enterro? (Devolve

a garrafa.).

TRIPÉ – Claro que sim!... Eu era chapa chegado dele...

(cara de triste.) só que eu estou com um galho.

EDGARD – E o que é?

TRIPÉ – Se eu ficar aqui, acordado a noite toda, amanhã

na hora do enterro, eu não vou agüentar ficar de olho

aberto... Não agüento ficar sem dormir uma noite!

EDGARD (Pensando) – Você podia pedir à dona Zélia para

descansar um pouco, no quarto dela.

TRIPÉ – Isso não! Pega mal... O falecido ainda está aí,

fresquinho no cartão... Quero dizer, no caixão... E

depois, a dona Zélia também pode querer descansar um

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pouco... (Passa a garrafa para Edgard, que bebe mais um

gole e devolve a garrafa.) E você vai acompanhar o

enterro?

EDGARD – Sem dúvida... Só que ainda não sei a que horas

vai ser!

TRIPÉ – O Teteo estava me dizendo que vai sair daqui,

às 10h da manhã, para o cemitério da Vila Kraemer.

(Bebe um pouco. Oferece a garrafa para Edgard, que

aceita, bebe um gole e devolve a garrafa.).

EDGARD – Para mim chega! Eu sou muito fraco para

bebidas!

TRIPÉ – Você vai ficar a noite toda aqui?

EDGARD – Não. Daqui a pouco tenho que ir embora.

Preciso descansar para amanhã.

TRIPÉ (Fingindo) – Será que eu podia pedir um favor?

Não querendo abusar...

EDGARD – Peça...

TRIPÉ – Terá algum galho se eu for dormir em sua casa

esta noite? Eu moro muito longe e assim, nós podemos

fazer companhia um ao outro, descansar, e amanhã

viremos juntos para o enterro do nosso prezado aí

(aponta o caixão.).

EDGARD – Mas, e os outros? O que é que eles vão pensar?

Aquela mulher, aquela tal de Abigail, ela é muito

maliciosa!

TRIPÉ (Tentando convencer) – E você deve alguma coisa

para eles?

EDGARD – Não é por mim!... É pelo Abreu... Em respeito

a ele!

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TRIPÉ (Carinhoso) – Ora boneca!... O Abreu está

morto!... Bola para frente!... (Acariciando a perna de

Edgard.) Então, vamos?

EDGARD (Pensa. Pausa) – Está bem, vamos... Ninguém tem

nada a ver com a minha vida!

TRIPÉ – É assim que se fala! Olha: eu vou lá dentro

chamar as mulheres para você se despedir. Vou dizer que

você ficou com dor de cabeça, e que precisa ir embora,

e que eu vou acompanhar você, para nenhum ir sozinho.

Está legal?

EDGARD – Está bem... Eu espero. (Tripé sai. Edgard vai

para perto do caixão.).

Cena 36

GUIBERTO (Para Edgard) – Se o senhor estiver

interessado no endereço do Centro que eu freqüento, eu

posso dar.

EDGARD (Sem entender direito sobre o que se trata) –

Amanhã eu pegarei com o senhor. (Entram todos. Tripé já

colocou todos a par do seu plano.).

Cena 37

ZÉLIA (Para Edgard) – Que pena que o senhor não possa

ficar mais um pouco.

EDGARD – Eu preciso ir, mas estarei aqui amanhã, sem

falta! (Dando a mão à Zélia.) Boa noite!... Foi um

prazer conhecê-la..., e, meus pêsames, novamente.

ZÉLIA – Igualmente.

EDGARD (Para todos) – Boa noite, a todos, e até amanhã!

TRIPÉ (Para todos) – Gente boa, até amanhã! (Edgard vai

mais uma vez até o caixão. Sem que ele veja,

cochichando para todos.) Agüentem firme aí no velório,

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que eu telefono! (Para Edgard.) Vamos Ed. (Saem. Pausa.

Abigail vai até a porta. Olha para fora. Volta.).

Cena 38

ABIGAIL – Já foram.

ZÉLIA – Como é que vai acabar esta estória?

GUIBERTO – O que ele falou para vocês?

TETEO – O negócio é o seguinte: Tripé disse que vai

para o apartamento dele e vai fazer uma revista

completa lá dentro.

EUNICE – Ah, meu Deus! Eu fico tão nervosa com estas

coisas.

TETEO (Carinhoso) – Não fique assim! Eu vou ficar aqui

com você!

ZÉLIA – O que podemos fazer enquanto ele não telefona?

ABIGAIL – Comer!... Vamos buscar os sanduíches, Zélia?

(Saem Zélia e Abigail. Pausa. Elas voltam trazendo uma

bandeja com sanduíches. Em tom de piquenique.) Comida

para todo o mundo!

ZÉLIA – Desculpem, mas eu só tinha um pouquinho de

maionese!... Mas acho que dá para enganar a fome.

(Sentam-se e começam a comer e a falar atabalhoadamente

como se fora uma grande festa de aniversário. A luz

começa a baixar, lentamente. Passagem de tempo. A luz,

aos poucos vai voltando ao normal e eles estão todos

dormindo, jogados por cima das cadeiras, pelo chão,

exaustos e com tudo desarrumado. Guiberto dorme em pé.

Aos poucos vão despertando, um por um.).

Cena 39

ZÉLIA (Acordando, num sobressalto) – Que horas são?

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TETEO (Olha o relógio. Leva um susto) – Epa!... Já são

quase 9h... O Tripé já devia ter telefonado... (Vai ao

telefone.).

ABIGAIL (Maliciosa) – Vai ver que ele atrasou, fazendo

outras coisas com a Sueli!

EUNICE – Mas até agora?

TETEO – Não é possível! Eles saíram daqui à meia-noite!

(Pega a agenda e disca o número de Sueli. Tempo.)

Alô!... Alô!... Quem é que está falando?...

Glorinha?... Estava dormindo?... Desculpa, viu?... Aqui

é do velório do Abreu. Olha: eu queria falar com o

Tripé..., isto é, com o Orlando. É. Ele foi pra aí com

o Edgard, isto é, com a Sueli!... Chama ele para

mim?... (Pausa. Vai ficando branco, na medida em que

ouve o que Glorinha fala.) Sim... Sim... (Todos estão

nervosíssimos.).

ZÉLIA – O que foi?... Fala!...

EUNICE – O que aconteceu?

ABIGAIL – Cadê o cartão?

GUIBERTO – Ele não achou?

TETEO (Deixa o telefone cair das mãos. Está

boquiaberto) – O Tripé...

ZÉLIA (Pela primeira vez, histérica) – Diga!... Onde

está o seu amigo?... Fala, anda!... Eu quero o meu

dinheiro!...

Cena 40

TETEO – Ela contou que eles chegaram lá, e se trancaram

no quarto. Depois, de manhãzinha, saíram felizes e

carregando duas malas com as coisas da bicha!...

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Disseram para a Glorinha que iam viajar para comemorar

alguma coisa..., que ela não sabe o que é que é!

ZÉLIA (Possessa) – Eu sei... Foram gastar o meu

dinheiro! (Vai até o caixão. Para Abreu, pensando em

Tripé, chorando) Ele conseguiu enganar a todos nós...

Todos nós... (Chora convulsivamente. Todos, como que

autômatos, começam a fechar o caixão. Vão se preparando

para o enterro, falando como que em uma ladainha.).

Cena 41

EUNICE – O que será que eles vão fazer com o dinheiro?

ABIGAIL – Vão passear... Conhecer o mundo todo!

TETEO – O Tripé vai fazer cada farra!... (Triste.) Que

puta inveja!

GUIBERTO – Vão viver como gente fina... Gente de

classe!

ZÉLIA – Vão conhecer Paris!... Eu sempre sonhei com

Paris! (Cada um fala para si. Não há mais comunicação

entre eles. A luz vai caindo, pouco a pouco, até o

blecaute final.).

EUNICE – Eu só queria um apartamento meu, usar roupas

boas, e não ter que trabalhar nunca mais!

ABIGAIL – Eu queria viajar de avião!... Pelo menos uma

vez na vida, eu queria viajar de avião!...

GUIBERTO – Eu gostaria de ser respeitado, de poder

entrar em qualquer lugar e ser respeitado!

TETEO – Eu queria tanta coisa!... (Suspira.) Tanta

coisa!

ZÉLIA – Uma vida decente, sem dívidas...

ABIGAIL – Uma televisão HD 42 polegadas...

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EUNICE (Olhando para Teteo, desanimada) – Casar... Ter

filhos...

TETEO – Andar limpo o dia todo. Nunca mais entrar num

esgoto... (Zélia suspira fundo. Vão saindo, em cortejo,

levando o caixão.).

FIM