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Evandro Alves Maciel.: VE NENO dE OR NI TORR INCO.: edição do autor 2014.:

Veneno de Ornitorrinco.:

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edição online da Obra lançada em Janeiro de 2016 pela Editora Patuá.

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Page 1: Veneno de Ornitorrinco.:

Evandro Alves Maciel.:

VE NENO dE

OR

NI TORR

INCO.:

edição do autor

2014.:

Page 2: Veneno de Ornitorrinco.:
Page 3: Veneno de Ornitorrinco.:

Entre-Fim.: Como se pendesse, de repente, distraído

sobre o chão imenso, em sonho tornado; vendo mentalmente o símbolo perdido de uma existência um tanto miserável;

rodavam, liquefeitos, os feitos memoráveis e outros que a lembrança não mais alcançava.

Pássaros ferviam suas asas sob o céu revelando, assíduos, um desenho tenebroso; cortavam o ar como se minha pele fosse

enquanto eu dormitava feito pedra, vagaroso; mármore extinto, grande rocha lapidada, mergulhado no silêncio da mesma e velha estrada.

Este quadro, assim, tragicamente apresentado como um rio correndo em círculos

de forte correnteza; - vazio de qualquer matéria organizada

desfazia em suas águas o meu olhar perplexo,

perfazendo eternamente o trabalho ancestral de sugar o que eu não fora, para o mar abissal.

Não houve luta em meu sonho-tornado. Em sua última volta, solo avesso,

entrevi, claramente, num átimo, tal beleza:

o meu de mim, o mais próprio, o singular recolhido para cima e reparado, refluía enfim recompondo-se com o todo que o conserva, entendia:

era meu almejado fim.

Page 4: Veneno de Ornitorrinco.:

Poema Infantil.: Segura minha mão, que estou a cair

ou não a segure, mas não me deixe refluir para dentro do escuro do qual emergi no tempo em que era, ainda, um colibri.

Agora não tenho asas, amor meu rastejo feito cobra, feito rato estou.

O horizonte que presumo é o fio da calçada retumbando os passos daqueles que a ferem.

Eu não sei pra onde vou. Me custa saber, já, e muito, o que hei de comer neste dia cansado e intruso que estou a tecer

com a fome de uma multidão desenganada. Eu não sei nem se vou!

Meu halo de convicção desvaneceu desavergonhadamente omiti o que era meu e fui esmagado exemplarmente sob o peso do nada.

Não sei o que fazer de mim Não sei o que é feito de mim

Não sei o que será feito em mim. Sei apenas que minha fome é tanta que, mal eu engulo a janta

já quero voltar à jaula tornado animal ou criança

à espera de alguma esperança traduzida num prato bem quente

que lembre, do peito, o leite com o qual, outrora, me alimentava. Segura minha mão, que estou a cair...

Page 5: Veneno de Ornitorrinco.:

Tão Longe, tão Perto.: Depois do dia

nascido das trevas do meu olvido, ofendeu-se-me os olhos por ter te oferecido o frio deste meu deserto

a flor deste meu desejo o rasgo de minha carne!

Não era sonho criado do fogo do meu espasmo, ofendeu-se-me a boca por saber malogrado

o morno da tua língua o ruído do teu estio o fel deste teu ardil.

As águas em que me banhei eram lava e lama espessa.

O ar que eu respirei, veneno e fios de sombras.

O corpo que me partiu era cobra de pedra e sal. A angústia que me seguiu,

refugo do esquecimento. Bendito esquecimento! Tão longe, tão perto, te quero.

Tão perto, tão longe, te reclamo! Maldito entorpecimento!

tão longe, tão perto, te excluo. Tão perto, tão longe, te lanço!

Page 6: Veneno de Ornitorrinco.:

Fanopéia.:

"uma obra sobredita por sombras e sobras infinitas".

I a sombra do vale me vela

a sobra de um velho me queima

garganta agrúrio

manto espanto destino:

o ultrapassamento do último passado esquecido no lamento estranho de mais um estranhamento

a sobra me vela no vale

a sombra de um velho me teima

"parte de mim é uma rocha, parte de mim é uma fenda”.

II espero e quero querendo espirro um ai deveras

esquisitíssimo tanto e tão...

que não espero o quanto quero em ti contido

Page 7: Veneno de Ornitorrinco.:

"se amor não der jeito, que há de?”

III meu forte é desaguar

de frente pro mar

sou rio e rio de tanto gostar

em seu amor a morte amansa

"porque sentimos e experimentamos

que somos eternos". (Espinosa)

IV equilíbrio é não se cortar

no fio da navalha é não se ceder

à beira do abismo é só morrer

se assim for preciso

Page 8: Veneno de Ornitorrinco.:

"depois do depois do depois do depois..."

V mundo mundo que vai fundo

em mim infunde seu fole falido

em parte encrespa os pelos

pelo que vou ao mundo e fundo, fundo a pedra fundamental.

em parte encerra o cerro

pelo que serro os ares espalmadas palmas de alturas desiguais.

mundo mundo que vai fundo em mim infunde

seu fole falido

Page 9: Veneno de Ornitorrinco.:

Melopéia.: os dias que passam

as horas que ficam os sonhos que logram, os sonhos que logram.

as noites que deito instantes que deixo

os sonhos que busco, os sonhos que busco.

os dias que, horas as noites que busco? os sonhos são sonhos

são sonhos, os sonhos. instantes que passam

as noites que ficam dos sonhos que sonho dos sonhos que sonho.

as horas que deito os dias que deixo

os sonhos, os sonhos, os sonhos, os sonhos.

instantes que, noite as horas que logram os sonhos sonhados,

os sonhos sonhados...

Page 10: Veneno de Ornitorrinco.:

Logopéia.: Ah tristeza

és inevitável. Pois se alegre estive com paz sobrando

cantava o mar tão até quando! Chegado o dia de ir'me'imbora

embora desejasse espraiar-me na praia eternamente...

Mais não pude tive que voltar.

Quem sabe seja isso mesmo, a vida momentos de extrema intensidade rasgando o véu do comum?

Tornando a saudade um desejo nômade e o desejo, um esperar constante

pelo dia em que, evitável, a tristeza possa eu despedir por justa causa.

Page 11: Veneno de Ornitorrinco.:

Balada Noturna Para Alguém Musicar.: O que fora de mim resplandece

é o que dentro de mim desalinha O que fora de mim amanhece é o que dentro de mim solicita.

O que fora de mim é vestígio é o que dentro de mim irradia

O que fora de mim estremece é o que dentro de mim... se cala.

E unindo meus dias, o dia que vem do que sobra da noite o que ao dia convém o que cresce liberto e se prende ao incerto

respondendo à tarde nua de tempo, não sei... O que sinto em mim derreter

é o que dentro de mim cristaliza O que sinto em mim soletrar é o que fora de mim realiza.

O que sinto em mim descender é o que dentro de mim egoniza

O que sinto em mim germinar é o que fora de mim poetiza.

E abrindo meus dias ao dia que vem do que demanda a noite o que ao dia faz bem o que livre entardece e se soma ao mar

perguntando ao tempo, deserto de tempo, virá? (descabida noite, noite insone, percorre meu corpo tão absurdo, desalmando o que já está morto inflamando de fogo o fogo que trago; desavisada noite, noite insone, percorre meu corpo preso e lento, desalmando o que já não é dança inflamando de fogo o fogo que me faz dançar).

Page 12: Veneno de Ornitorrinco.:

Mar-ritmo.: I amar o mar tão raro amor amaro ardor

a rebentar. arrebentar

ardor amaro amor tão caro o mar amar.

II algas na água

gozam sua dança algas n’água medem suas tranças.

algo na água parece vivo

lançam seus dados como crianças.

água-vida.

III o sal dissolve meu corpo no céu que intenso arde teu cio ensandece a calma

do sol que meu sul invade.

Page 13: Veneno de Ornitorrinco.:

IV maresia parecia que tu ias

mar azia teu calor não conhecia

mar, ais, ia não sabia que fazias

maresia teu calor me despedia.

V troa trovão!

na treva que traz a

tromba: Tupã.

VI montanha

te miro à distância montes de vales me pensam

montanha te ocupa minha ânsia

montes aquosos demudam –

– sais do tempo : mont’ânsia.

VII ser seara enseja meu desejo;

que dê na enseada imensa do teu beijo.

Page 14: Veneno de Ornitorrinco.:

VIII norte mira noite noite rompe norte

norte estampa a noite ferida deste corte.

IX do leste este feixe

expresso nas vestes azul

esse peixe d’oeste me despe.

X ah, mediterrâneo! medito as terras

que tu animas: mediterrânimo!

XI onda, andas onde

areia ou rua? me oceano ando a buscá-la tal qual Orfeu.

anda onda, ainda é tempo de transformar este ocre ano em apogeu.

XII Iemanjá

o meu manjar trouxe do mar: o sorvi.

Janaína da baía deu-me comida: a bebi.

Page 15: Veneno de Ornitorrinco.:

XIII gesto gerado do vento assalto ao golfo

grito gerido no tempo do garfo ao gozo.

guerra de guelras arfantes golfinhos ao mar gestos gerados do grito

grilhões do amar.

XIV fruo a falta de freio fluo

a febre da flauta danço

deriva a que tendo densa tensão que me acalma.

fluo do freio a falta

fruo da flauta a febre

denso tendo à deriva danço

tensão dos caminhos.

XV luz fria em minha tenda luz fria em meu lagar

recebe meu corpo aquece meu corpo exijo

flor de lis.

Page 16: Veneno de Ornitorrinco.:

XVI teu calor me cola ao teu pescoço

como colar teu cais

me cala em teu colo sou cor.

XVII navio navega na neve dos nãos nave viaja os espaços, sou nau

argonauta do novo de novo, sou neo criando espaços e tempos ao léu.

XVIII perto do porto paro parto no porto: nasço

parto do porto, ido para não mais parar.

XIX flutua no mar um frasco cheio da luz que ofusca

fremente o abro e a brisa assoma da bruma

frescor almado meu rosto incendeia em brasa

frescura aflora cheio de lusco-fusco.

XX o som diz sim

ao sem que são sum.

Page 17: Veneno de Ornitorrinco.:

XXI se respiro é que espero

num espirro vencer o apuro.

XXII saliente silêncio silente cilício.

XXIII valer o que vale um veleiro que se move

vale o mesmo que um valeiro em que se morre sem lutar.

morrer estando farto deste vale que miramos vale tanto quanto vela que se queima sem ninguém para velar.

XXIV no céu eu vi, airosa

dançar essa neblina tão linda

não sei se colina ou nebulosa.

XXV mar marítimo

mar ritmo mar ótimo mar átimo

mar último.

Page 18: Veneno de Ornitorrinco.:

XXVI tempestade o mar varre tem parte com as alturas

tempestarde no céu arde eleva a temperatura.

tempestade o mar varre a mil pés de altura tem parte com a tarde

me rebaixa à sua altura.

XXVII maremoto revolve a terra mar morto a revolver sangra maremoto devolve a vida

não é mais morto o mar, é meta.

XXVIII a viração dos ventos fazem vir a ser o que sou e fui

o vir a ser me faz vir a sim me ergo sum.

XXIX vento venta ventando: avante ventre!

XXX mar:

fluxo e refluxo do meu reflexo.

XXXI ontem caos havia hoje calmaria

amanhã calma e ria.

Page 19: Veneno de Ornitorrinco.:

XXXII redemoinho é desafogo que me desafoga

rodamoinho roda moinho

roda moinho roda

ao invés do afogo o afago.

Page 20: Veneno de Ornitorrinco.:

Oração Pagã.: quisera eu

um tanto de luz, um tanto mais de luz para obter um pouco mais de paz;

quisera nós um muito mais de luz

para conciliar os desiguais. porque igual, igual mesmo

ninguém é de ninguém isso é claro como a diferença entre os dias

mas lutamos, enormes em fazer parecer que um e um são dois quando na verdade

um é um e dois são outros quinhentos.

Page 21: Veneno de Ornitorrinco.:

Pequena Cidade.: Na pequena cidade em que vivo

encolho meus pés sob o sol roçando paredes estranhas movendo as mãos sobre a lama.

Na pequena aldeia em que morro meu uivo não chega ao céu

meu sopro sequer abocanha um palmo à frente da boca.

Mas só porque respiro ainda (re)xisto.

Page 22: Veneno de Ornitorrinco.:

Ao deus inexistente.: deus, deus, deus

três vezes chamo o nome que te deram

a ver se me aparece escultura no vazio e me dê a tanta paz

que a outros tu concedes. Reverbera a minha voz

eco oco ocaso à foz sem trazer tua presença;

reverbera a minha voz oco eco ocaso à foz

sinto só a tua ausência; reverbera a minha voz oco eco oco eco oco eco

sobre este silêncio atroz.

Page 23: Veneno de Ornitorrinco.:

Soneto Inconsciente.: eu canto a extrema pobreza

ocaso colidido com fumaça meu nó chamuscado de tristeza fere mais que o comprido da desgraça.

eu saio, ressecado excremento, de um cu com odor de alfazema

na testa um poderoso diadema no peito, um valioso sentimento.

e busco a custo partir, extraditado cumulado de riquezas desprezíveis só tangíveis para os que não têm respostas

ou "sou"! ou "vou"! ou "fui"!, vertentes ao acaso sintomas da perícia dominante

em calar a voz noturna com a voz diurna.

Page 24: Veneno de Ornitorrinco.:

Runas.: depois do depois de minha morte

vão pegar nos meus cadernos como jóias esculpi-los nas paredes dos museus produzir vários estudos sobre o nada

porque, garanto amigo, escrevo sobre o nada. depois de minha morte, nunca antes

vão beijar minhas palavras como chuva decidi-las arte fina e outras runas sacudi-las para jovens indefesos

trovejando: eis um poeta de merda, mas de valor. e eu riria, se pudesse

mas como sabem os mortos não riem

a não ser que estejam certos esses loucos que criam nuvens habitáveis (só pra poucos)

e eu riria, se houvesse outro canto;

mas não há.

Page 25: Veneno de Ornitorrinco.:

Risco.: tudo o que é vivo

cumpre um destino se se quer

ou se resiste, não importa: a vontade é o que nos mata.

tudo o que é vivo lança-se na vida

saibamos ou não não importa: o saber é sempre à parte.

às avessas, somos nobres às escuras, somos luz

incorrigíveis, somos sal tudo o que é vivo

é o que existe se se quer

ou se resiste, a vontade é o que nos mata.

tudo o que é vivo se cumpre em vida

saibamos ou não, o saber é outra parte.

Page 26: Veneno de Ornitorrinco.:

Microssentidos.: I me diz uma palavra qualquer que estrago ela toda

no vão da minha boca

II dá pra mim como esmola a tua fome?

III esquizo eu esquizo tu

esquizo você esquizos nós esquizos vós esquizos vocês

IV no torpor

desta calma vale menos minha alma

que o soar de minha palma

V sou poeta de gabinete (mas nem tenho um gabinete)

gosto de Drummond pois ele era velho e bom e sabia que a vida

embora fosse uma desgraça teve lá a sua graça

VI o acaso causa cor

ao necessário

Page 27: Veneno de Ornitorrinco.:

VII ontem fui rude roí ruínas

me sobrou a sede

VIII minhas mãos se movem ao vento entoando um mantra silencioso e dizem: “meu, meu, meu”

caçando no vazio dos teus olhos um amor imaginado.

IX amo com meus olhos o aviso de felicidade

espalhado enormemente no teu sorriso-almado.

X dormi um tempo sonhando um campo vasto,

com o sol iluminando a grama extrema. nós, deitados, flutuantes, em silêncio, saboreando, juntos, um desejo perdido.

XI a porta bateu sonora

a chuva soou austera o chão tornou-se informe enquanto nos despedíamos.

XII a festa terminada

após rios de risadas afetos turvos, encontros e desencontros... restou o azul de uma alegria concreta,

e o estranho sentimento de um amor perdido.

Page 28: Veneno de Ornitorrinco.:

XIII se se foi, não pode ser já. acabado, impreciso e simples, o desconexo humor -

(embora o espelho o tenha prendido). algum resquício da febre haveria,

mesmo breve, mesmo breve... a alegria é como o despertar de um sonho ruim.

XIV Quando? não soube

Onde? não importa O quê? não se define Por quê? porque sim...

XV Fiz de mim um estranho

que eventualmente me visita. Bebemos cerveja, cantamos canções,

nos alegramos. Mas a estranheza prevalece.

XVI Agora tudo está calmo

e me compete ouvir o som do silêncio. Sou uma criança sorrindo ao vento, dançando uma dança de amor solene.

Cruzei o limite entre a vida e a morte Rompi tantos laços, perfiz um caminho.

Com muitos rumores, venci o destino e tudo está calmo, tudo está calmo.

Page 29: Veneno de Ornitorrinco.:

XVII CUIDADO: pode ser perigo

ou afago. SURPRESA:

pode ser espanto ou certeza.

XVIII No dia em que eu me for, meu amor, cante a minha música preferida,

vista a tua roupa mais bonita porque a festa será eterna.

XIX Seria, seria Não fosse a mais temida hora do dia

Apresentar-se, de repente, Com seu ar irrespirável Causando em meus olhos de flor dormente

A grande dor irresponsável.

XX Desci a montanha que me formou. Sou rocha desprendida e dura. Pode crer. O chão mal me suporta

E enquanto caminho, aliviado de não ser leve Como pluma, como folha, como dente de leão, Eu vejo o rosto dos homens, e cismo.

XXI No tempo em que éramos fortes

Quando o medo era uma cócega morna, Havia nos sonhos, um gosto doce E o amanhã era uma certeza densa.

XXII Ah, sol tardio!

Chegasse antes, encontraria meu rosto ainda alegre, sedento ainda, desejando que esta tarde jamais acabasse.

Page 30: Veneno de Ornitorrinco.:

XXIII hoje te deixo com o rumor

de já ter visto, em algum lugar o rosto que deixo.

XXIV O medo assola a alma - perplexa.

Sem solução de fome nada come - anda.

XXV A vida dança sobre a terra

E eu sou como os braços dela. Cortando os ares com meus dedos - delicadamente; Criando estrelas, luminares - distraidamente.

XXVI A flor descreve no espaço

suas mil voltas resplandecentes sob o fogo que a consome. Rígida e fértil, sem sobras, sem nome.

A flor respira no ar o mesmo ar que eu respiro sob a chuva que a distorce.

Transe informe, moldura líquida.

A flor é.

Page 31: Veneno de Ornitorrinco.:

Foz.: A terra em que sou consumido

Lambe meu tronco rígido Explicitamente.

Deito meu corpo altivo Lançando no ar meus fluídos Ardentemente.

Page 32: Veneno de Ornitorrinco.:

Ao Pai.: Lembro dos teus olhos quando, nos meus olhos

fixo firme a altivez com a qual supomos manter nosso corpo em segurança.

À tua grandiosidade – que digo? À grandiloquência dos teus ombros vertidos, largos, robustos, rendo homenagens.

Um passeio incrível, longo e alto como em viagem estivéssemos:

um país distante? Onde, no silêncio de nossas risadas

comunicássemos, enfim, o amor esperado e tido sob um tropel de estrelas.

Dançando como nós dois, cá embaixo estrelas distraídas de brilhar e vivas, no entanto, como a luz, como o luar.

Page 33: Veneno de Ornitorrinco.:

Modernidade.:

"...estou hoje perplexo como quem pensou e achou

e esqueceu". (Álvaro de Campos)

A modernidade acabou com o sonho

da modernidade. Feriu-se como uma cobra enlouquecida

que enrolasse à própria garganta sua calda venenosa.

Subsiste enfeitiçada com seu próprio rumor e nada faz que não seja chocar-se contra si;

desejando poder desejar ser o mesmo em outro lugar.

Mas não há outro lugar. Há apenas esta boca gigantesca, esses dentes afiados a destilar seu caldo,

a entorpecer seus olhos com o fumo do nada. O deus das cobras (esta cobra infinita)

é o primeiro a debater-se, lastimando: "mas era o plano perfeito, perfeito"! ...

Agora faz um tempo ameno não me entristeço com o calor que me sobra nem me aconchego ao frio que me cobre.

Apenas o possível dentro do improvável: esquecer.

Page 34: Veneno de Ornitorrinco.:

Flui.: Fui o que já não lembro

Embora algo insista. “Deixe-me comigo mesmo, Eu quero a liberdade da vista”!

Page 35: Veneno de Ornitorrinco.:

Derredor.: A noite não passa

nem com a luz do dia. E eu me encolho inteiro

deitado sob a noite fria. Vejo: passa o vento

rumando feito alegria. Indo para longe

Do rosto que o acaricia.

Page 36: Veneno de Ornitorrinco.:

Vida.: A vida queima

A vida teima A vida inteira É vida que cheira

A flor de cacto.

Page 37: Veneno de Ornitorrinco.:

Paixão Bravia.: Paixão bravia barco sem porto

breve, tão breve bem. Boca que espia as fibras do corpo

entorpecida pele a vibrar também. Paixão barata berro sem poder

breve, tão breve paz. A promessa porca, esperança besta

de romper o pobre tempo que lhe apraz. Que símbolo-sopro obstinadamente

procuro abrir, oh, fabuloso Abril? Bastião de pétalas rubras ou bosque de brumas – (...)

paixão bravia! Que obscuro mapa, brilhante lápide

busco possuir oh, absurdo espectro? A febre de um beijo roubado

ou atemporal sepultura? Paixão barata! Bem me basta!

Page 38: Veneno de Ornitorrinco.:

Troféu.: Eis que meu canto se perdeu

não sabia mais quem era eu se verdade alcançada à força, se ilusão cobiçada à parte!

Eis que o meu mundo emudeceu não mais ouvia quem era eu

se inglórias destinadas antes, se amores conquistados tarde...

Mas sei - se é que sei - que fui tarde atada a esta parte partida antes; e que fui força

ficção desgovernada - mas fui e foi-se: a verdade alcançada, foi-se

a cobiçada ilusão, foi-se as inglórias destinadas; foi-se a conquista deste não.

Page 39: Veneno de Ornitorrinco.:

Flor Fóssil Fosse.: Este berro indigesto, guerra de peles

Esta febre tropel. É deserto de neve, mulher, te espero.

Este resto de zeros, pérfido agreste Este afeto tão céu. É floresta que fere, mulher, te espero.

Se espectro incrédulo Dissesse: quero! Num alegre escarcéu.

Se teu sexo lépido Dissesse: quero! Ah, mulher...

Este berro de peles, guerra indigesta Este resto agreste, pérfido zero Este afeto que fere, tropel na neve

Este cedro de ferro, aberta veste Este mérito déspota, cruel oferta Este quero teu sexo, lépido e alegre

Este gozo tão céu... Aí, sim... mulher.

Page 40: Veneno de Ornitorrinco.:

Mutação.: Desfez-se o ar em tempestade

Como sangue em minhas mãos. Desfez-se a terra em mel e bílis

Como seiva entre meus dentes. Desfez-se a água em vendaval

Minha garganta obrando lama. Desfez-se o fogo em rocha e pó

E o meu pulso em pus e bruma. Tornei-me rato em cada célula

Tendo meus pelos como teia Tornei-me porco até meus ossos

O meu suor em gota espessa. Tornei-me rio sem onda ou nervo

Tendo uma pedra entre meus olhos. Tornei-me brisa, folha morta

A minha nuca como chuva. Depois morri sem minha barba Com os meus pés sobre a maré.

Depois morri vendo meus lábios Deitarem campos sem raiz.

Depois morri, a pele aberta Dedos ausentes sobre o peito.

Depois morri, face no ninho, Era colina...

Page 41: Veneno de Ornitorrinco.:

Natureza Naturada.: Sou o nervo exposto,

sol obtuso. Confuso oásis, pântano inerte. Escondida lua sob o véu espesso

deste meu deserto: o meu fígado, estranhamente, vivo.

Sou a tempestade, glorioso galho.

Vendaval assíduo, íris desmentida. Ovo chocado entre fios de cobre deste meu inferno:

a minha garganta, impassível.

Eu fui nevoeiro, ar contaminado. Contraí meus ossos, face recolhida. Cosmos transmutado em floresta cinza,

transpus meu deserto: o meu peito, reconhecidamente, morto.

Eu fui caule seco, ninho destroçado. Flor de ferro, fonte impetuosa.

Anéis de sonho em formação ambígua, venci meu inferno: as minhas mãos,

fendidas. Quando era espaço, água em demasia

– dentes virgens; quando era seiva, raiz nova, maré. Furação intenso mergulhado em chuva,

ainda não sabia o mar...

Page 42: Veneno de Ornitorrinco.:

Quando era lago, puro pulso, ilha – sangue lava; quando era campo, cabelos ralos, vulcão.

Nuvens de sabores, pulmões premiados, minhas pernas, satélites das coisas...

Descobri meu rosto, fruto suculento Minha pele quente e fria, Bosque inexplorado, areia convicta;

Minhas rugas, potencial lonjura. Descobri minha nuca, supernova clara

Minhas coxas, cometas d’alegria; Pasto sem sementes, caverna sem brisa Os meus olhos, cegos como o tempo.

Mas nasci rochedo, ombros de marfim

Fenda entre meus dedos, pés desalojados. Mas cresci montante,

mosca pavorosa Marte em pé-de-guerra, estrela porosa.

Sim, sou pedra. A diligente bruma minha praia acalma.

Sim, sou gruta. O fabuloso orvalho meu trovão assanha.

Sou aranha, Tecendo com seu ouro uma gota nova...

Page 43: Veneno de Ornitorrinco.:

Gris.: Entre o golpe e o grito, o gozo

Entre o encontro e o ocaso, encanto Entre a casa e o campo, a culpa Entre o ganho e o engasgo, o galho.

Entre o cálice e a queda, o canto Entre o gueto e o golfo, a guerra

Entre o grave e o agudo, o gosto Entre o cume e o custo, acácias.

Entre o quero e o queres, recusa Entre a gruta e o garfo, angústia Entre as costas e o encosto, incômodo

Entre o grau e o gole, agrura. Garganta engula devagar o gris agrado

Aqueça meu caule incauto Incólume alegria a divagar, incrédula;

Garganta! Engula, a divagar, o agosto quente Esqueça os críticos cúmulos Incólume alegria a, devagar, descrer-se.

Page 44: Veneno de Ornitorrinco.:

Signo.: Foste mar

A explodir teus sons desiguais Rebentando em fúria heróica Nossas rochas sobrantes de sais.

Foste mais Tantas terras tornadas leões

Lutas injustas e guerras demais Imagens perdidas dos céus.

Foste amor Depois de um inverno tão frio Dormindo o respiro do tempo

Calando e fruindo teu cio. Foste rio

Criando do nada teu fluxo Cuidando do mesmo destino Desde o nascimento do sol.

Foste fel.

O que se perdeu nos vãos da terra Diluído na superfície dos poderes; Deformado sob o véu da hipocrisia;

Destruído pela dadivosa ignorância; Eu guardei no meu chapéu.

Page 45: Veneno de Ornitorrinco.:

Vencido.: Quando venci, não houve festa

Não houve cantos de honra ao mérito Não houve discursos emocionados Não houve fogos de artifício.

Quando venci, não houve abraços Não houve beijos de parabéns

Não houve palmas que me acalmassem Não houve luzes de holofotes.

Quando venci, Éramos eu e minha parede Ambos perplexos em refletir

A mesma vida de sempre. Quando venci,

Era como vivesse, tão somente.

Page 46: Veneno de Ornitorrinco.:

Lucidez.: Nessa hora dura

em que a luz do sol me parece escura tal qual perdição;

e desfaz o feito, e deforma a forma que antes animava o coração.

Nessa hora tola em que o próprio som sói ser tão surdo

quanto deus; e me larga ao largo,

e me marca à margem deste célebre e estúpido apogeu...

...eu me entrego. Me entrego ao sono, me entrego ao sono manso que nada responde,

pois nada pergunta. Esperando do silêncio

apenas mais silêncio, multiplicado no escuro do próprio pensamento com o intento de anular qualquer possibilidade de cura

posto que já tem anulado - mais diretamente - a própria doença.

De resto, A vida é bela.

Page 47: Veneno de Ornitorrinco.:

Febre.: Deixe-me amá-la, assim, à distância

Sem que me perturbe a tua voz contrária Sonhar teu rosto, iludir tua boca Mesclar nossos corpos numa união imaginária.

Deixe-me sorvê-la, então, sem alcançá-la Sem que te ressintas do meu toque doce

Sondar tuas coxas, beber teu pescoço Brincar nossos corpos como se amor fosse.

E que este muro que se ergueu alto seja demolido; já que sou tão baixo pra tanta altura!

e o meu voo faz-se impossível. E que esta porta, ora fechada

seja espedaçada; já que, ao que parece, eu perdi a chave e o meu chamado é menos que nada.

Page 48: Veneno de Ornitorrinco.:

Hoje.: Hoje estamos cansados

Como se nossos olhos permutassem, no sono Uma luz ambígua e de todo incerta, Por uma escuridão maior que nos dotasse

De uma falsa impressão, de uma falsa plenitude. Creio que tudo tenha morrido.

Nossos sonhos, nossos valores, Nossas metas, nossos anseios... Temos o desejo endurecido como uma rocha negra,

Como um diamante potencial ainda em forma de carvão. Hoje, hoje estamos amaldiçoados

Pelo próprio poder do espírito que carregamos. Rápidos e perdidos, caminhamos a esmo Ou estacamos feito sábias mulas.

Sabedoras da profundidade do rio que nos ocorre atravessar,

sem termos aprendido, no entanto, as artes da navegação.

Page 49: Veneno de Ornitorrinco.:

Pérola.: A coragem de tecer uma roupa que nos caiba

A alegria em permanecer tão sóbrio quanto antes A sorte de não morrer a meio passo desta pérola.

Está ali, ali! Bem à frente do nariz Esteve, um dia, mais distante do que deus Estará, ainda, se desistirmos de retê-la?

Sorver o fruto e deliciar os sabores que nela dormem Úmidos de fome, recobrirmos os espaços, dentes agressivos.

Sabendo sem-nome, a pérola que se esconde No oco dos nossos olhos vermelhos de não dormir. Melindrados, vítreos, assegurados pela aparência.

Que a genialidade se dane! Não há tempo para tanto,

Porque a morte vem, certa como o risco Singular como o traço Avesso como o céu!

Mas antes dela, existe o mundo.

Page 50: Veneno de Ornitorrinco.:

Semi-deus.: Toma em tuas mãos essas estrelas

Abissais em seus contornos, e nobres; Fazes delas múltiplas correntes Flua, enfim, tuas marcas heroicas.

Porque a sorte nada mais é do que a força Tão mais constante quanto mais te fias nela

Porque azar é somente o mau momento Em que supões ausente o próprio brilho que adormeces.

Não acreditai, não acreditai, não acreditai... Repetem frenéticas e úmidas, tuas mulheres frias.

Afasta tuas mãos do fio negro que assegura O equilíbrio imaginário perpetuado pela cruz; Isola o teu vento e o teu sopro desta luz

Constante e áspera que renova tua tristeza. Refreia amigo, teu cândido pudor

Herdado de séculos e séculos de depreciação e fugas! “Não habitarás casa alguma... dorme apenas”. O sono que renega a casta planta

Insistente planta que carregas em teu bolso. Toma em tuas mãos o teu grito O deixe ressoar por horas. Melhor.

Agarra-te ao som do teu corpo O deixe eternamente refluir, refluir, refluir...

Até que o silêncio se torne audível Até que possas ouvir o estrondo rouco de uma folha que cai. Até que o silêncio se torne tangível

E que distingas o suspiro das nuvens em contínuo deslocamento no céu.

Page 51: Veneno de Ornitorrinco.:

Toma em tuas mãos, igualmente, o teu destino E o deixe repousar sobre o teu colo. Ou bem Acolha esta criança em teu ventre

E a deixe eternamente sorrir, sorrir, sorrir... Até que tua raiva se torne em paz

Até que possas sentir o instante preciso em que se dê o amor Até que tua raiva se torne foz E tu decidas beber a água do mar variada de sais.

Porque é certo que o momento assim o exige.

Page 52: Veneno de Ornitorrinco.:

Duas Guerras.: Há uma guerra do lado de fora

Os mortos matam os vivos Com seu olhar oco; Seus passos descompassados.

Há uma guerra do lado de dentro Meu andar arrefece longamente

Eu me vivo, me vivo, me viro E não me encontro, e morro.

O mundo já acabou O deserto é a nova realidade A humanidade se evadiu

Compreendendo o ar dentro de suas camas Inflaram e sumiram, juro.

Mas eu fiquei. Feito escorpião, feito lagarto Roendo o chão quente

No desejo único que sobrou: ir-me.

Page 53: Veneno de Ornitorrinco.:

Deambulante.: Ouve:

Houve um minúsculo tempo - desmedido. Sentido como quem sente o vento remexer sob as unhas. "Que susto".

Voltando à brincadeira, já não pôde contentar as próprias pernas que paravam a cada passo, pensando o que sentiam enquanto eram livres. Mas em seguida, vagueava a terra

determinada em que pisava e ora voava, tocando apenas ar, mais nada.

Ouve. Houve um momento infinitesimal. Infinito? Sentia que sob a

pele, bem debaixo das unhas dos pés, o vento arrebentava; "que susto"... Voltando à brincadeira, demudou em uma postura mais séria, segredando às pernas que corriam livres:

acaso o que seria a liberdade? Em seguida, definhava em terra fixa, determinando que o que girava em torno dos seus pés, era apenas ar, mais nada.

Ouve!

Houve um momento de sonho. Sonhava? E como se as unhas dos pés sentissem um vento intenso e austero, aumentava o atrito enquanto corria. "Que susto". Voltando à brincadeira,

repuxava a poeira balançando no ar os dedos soltos e livres, perguntando: acaso é isso, a liberdade? A terra fria comovia, sem ânimo, seu próprio sentimento, fixando a impressão de

que o ar e seus pés eram isso, e mais nada. Ouve.

Houve um momento estranho. Passado um tempo, sondava o vento frio e corrente que desgastava as unhas dos pés como

areia. "Que susto"! Voltando a si, levitou sobre a terra úmida, espargindo casualmente no ar, seu suor de milênios, longínquo e livre. Era isso? Depois refrescava seu rosto nas

estrelas que brincavam, pasmo por ter descoberto o ar, mais nada.

Page 54: Veneno de Ornitorrinco.:

O Eterno Retorno.: Através das vistas travestidas de sono

Recendendo a lume, véu de grossas névoas, A fina luz, repartida em mil feixes Desenhava no céu formas novas e densas:

O passado cantava atrás de mim (eu mesmo sendo em sopro e tempestade),

um canto de saudade tão logo esquecido assim que sua boca o cantava.

O presente obrava ao lado de mim (eu mesmo revestido num corpo de pedra), monumental obra. Destruída, porém,

assim que o monumento se erguia. O futuro silenciava à minha frente

(eu transmudado no hábito do silêncio), um tal sacrifício de vozes e gritos engolidos pelo mesmo silêncio que os emitia.

Assim fora o sonho vencido pela vida; Assim, a vida vencida pelo sono.

Assim fora o sono superado pela vida; Assim, a vida superada pelo sonho.

Page 55: Veneno de Ornitorrinco.:

Augúrio Oblativo.:

“e por ter perdido o bonde tive que andar mil milhas sangrando os pés em cada esquina”.

Quedam os sonhos sob o auspício dos enganos.

O meu assombro é como a máscara da noite. Cada subúrbio, um universo Cada viela, um horizonte

Quedam os sonhos sob o auspício da noite.

Calam promessas sob o agouro do dia.

Minha fortuna é como o rosto de um deus. Cada resto, uma sobra

Cada sobra, uma reza Calam promessas

sob o agouro de um deus. A minha sorte é ter sono.

Page 56: Veneno de Ornitorrinco.:

A Casa.: Sou livre nas distâncias

Nelas prendo-me com rubor Meu olhar tem curto alcance Mas neles, tenho amor.

Meu olhar tem curto alcance Guarda mal o meu mistério

Sou livre nas distâncias No viajar, me espelho.

Minha casa tristealegre Tem o céu noturno por parede Tem a lua luminando - l'astro lento

Leve fios de ondas curtas e ausentes. Minha casa belafeia

Tem uma rede feita de teias Tem insetos concorrentes Urros ratos réus ruínas.

Tem palavras que ecoam circularmente O meu pedido de socorro

Tem palavras que se riscam, fatalmente Para começar de novo, de novo, de novo...

Page 57: Veneno de Ornitorrinco.:

A Canção do Amor Possível.: Contra o meu despertar

Sou rei que durmo Contra o gozo do amor Sou deus que berça

Contra a espera de ser Sou faz de conta Contra as flores do mal

Sou paciência. Contra a angústia sem fim

Sou paz pra sempre Contra a febre e o labor Sou alegria

Contra a raiva e o rancor Sou chuva intensa Contra o que há de vir

Sou natureza. E bebo o meu sentido

Nas águas que me salgam Na terra que me vale No olhar que me conduz.

Contra o medo atroz Guerreiro antigo

Contra o raso e o menor Às vezes liso Contra o fogo maior

Sou combustível Contra o leão feroz Sou carne fresca.

Contra o gosto do fel Eu pulo o muro

Contra o seco do rio Silêncio escuro Contra este arrepio

Tesão profundo Contra o afã em lhe ter Sou solidão.

Page 58: Veneno de Ornitorrinco.:

E bebo o meu sentido Nas águas que me salgam Na terra que eu posso

Na chama que me teima.

Page 59: Veneno de Ornitorrinco.:

Alguma Coisa Estranha.: Nada me vem...

E como viria? A noite está quente O ar, sufocante.

Nada de vez... Nem mesmo o sono

Equivale dizer Que hoje, sou morto.

Mas, não! Eu vivo, Apesar do desejo contrário

Vivo, apesar do querer destruído! O corpo interroga os céus A mente desnuda a terra.

Nada em vez...

Page 60: Veneno de Ornitorrinco.:

Fome.Saudade.: Ah, esta memória é a viva matéria com a qual me restituo.

Desta altura meu horizonte desfaz-se num suspiro. Olhar para trás é descobrir-se impreciso. Mas o que me revela é a tua mão acariciando a minha em suavidade de desejo. Sim,

dormir teu acalanto era sobrevoar os céus escuros, era pairar por sobre a rocha, era pousar na pobre casa, mas livre, dizer: que pão gostoso! Comia, na ânsia de uma fome insaciável, o

teu olhar sereno que se espalhava em radiante beleza pelos três cantos da casa, a iluminar os nossos rostos de seda. Não era um laço, o teu abraço? Este fio de ouro, o teu sorriso, tua

canção? Teus cabelos como a trama morna e azul que, urdida em amor e resolução aquecia meu frio inverno e meu chuvoso outono. Minha memória tão gasta! Relembro sabores da

Itália, da Espanha, da Bahia... e era sábado em meu coração quando do bolo de chocolate, do pão caseiro, da geleia com requeijão. Era dia de mais amar! E era a manhã de domingo

quando comíamos cará na manteiga, bebíamos suco de beterraba e, após, almoço com macarrão, nhoque, pizza, lasanha! Sim, a vida era um imenso fim de semana...

Conheço minha respiração na lembrança de tua voz, recebo tua canção nesta viva lembrança do teu sabor. Em verdade,

em verdade vos digo: quem comer desta terra sentirá esta fome para todo o sempre, graças ao deus.

Page 61: Veneno de Ornitorrinco.:

Ressurgimento.:

“Olhava-se na rua escura ‘rastava seu corpo intuído de febres.

Molhava na chuva o rosto envelhecendo Calava o ouvido para sons discursivos”.

Então caí.

Noite me envolvera num rodopiante entardecer. Via um abismo, abismado; Fogos estrelavam circundando a lua imperativa

e o meu sentir confuso... Quando o chão, dores múltiplas em minha pele; sono, muito sono, a terra me acamava em sua umidade.

Fui acordado por pássaros que falavam, anunciando: “a morte não lhe convém, poeta, a morte não é pra si”,

cantavam agudamente, e meus olhos sem asas os acompanhavam.

Arvoreci em meio à rua, a noite esfarelava seu negrume. Toquei o céu,

e a chuva orvalhou-se por sobre meus ramos sedentos.

Page 62: Veneno de Ornitorrinco.:

Infinitivo.: Rompera a casca que o subjugava.

Como uma coisa, assim, tão fina, pode ter tanta força? Como uma coisa, assim, tão delicada, pode ser tão...

...nascer foi como morrer. Ou antes a morte era a condição para a vida... porque via e

ouvia e cheirava. Os cheiros do mundo, a dama da noite? Sim.

Simples, como tudo o que é definitivo! Definitivo? Existe isso? Conhecera, até então, apenas o infinitivo...

Amar Comer

Doer Dormir

Sentir Fazer Conhecer?

Falar... Não, antes, calar...

Tropeçar, levantar, cair, erguer A si? Ao mundo?

Como sói aos desesperados de silêncio Como sal aos que se temperam

Como sou, aos que apenas vivem Como céu, como são, como sim!

Como seu. Como meu.

Como pôde?

Page 63: Veneno de Ornitorrinco.:

Há certas lembranças que se apagam da memória De um modo tão abrupto. É assim um ar que vem não se sabe de onde

Um ar que se vai, não se sabe ao certo. Há um véu que nos cobre de paciência...

Um dia assim tão novo Só pode ser isso: alegria!

Page 64: Veneno de Ornitorrinco.:

Questão.: Se eu transmudasse

toda minha percepção em devaneio, a realidade tornar-se-ia em sonho?

Page 65: Veneno de Ornitorrinco.:

Poema para relógio de bolso.: tempo tempo

passa hora passo eu passa vento

passatempo passa agora passarinho

voa fora! tempo tempo

um minuto uma hora penso eu

pensa vento passa agora passavento

sopra fora!

Page 66: Veneno de Ornitorrinco.:

Balada do amor ordinário.: Postos assim,

chão veloz... Movimento impreciso da inalterável mudez

que os consagrou. Frente a frente,

rosto a rosto. Mãos austeras de um, braços esquivos do outro.

E o mesmo olhar, duplicado e perplexo. O silêncio ressoava,

era o amor que passava e que, passando, ia ficando no não-dito, no calado ardor

de um dia mítico. Vivido e não-vivido na coragem de dizer-se.

Sombra a sombra, gesto a gosto. Unhas cravadas de um,

beijos sofridos no outro. De comum, o intenso-vale que é a alma.

Calavam assim: "...eu não ofertei a ti essa rosa exagerada!

Eu te renego a mim com a força da palavra". "...tu ressoaste em mim como estrondo-tempestade!

Eu silencio a ti, tal qual mar-intensidade". Postos assim,

ambos incompreendiam-se pelo muito amar.

Page 67: Veneno de Ornitorrinco.:

Motor.: Passa dia gira mundo

cai outono vem inverno vem silêncio cala o berro gira mundo passa dia;

gira mundo passa dia fica a dor se vai o resto

pedra dura sem o gesto passa dia gira mundo;

passa mundo gira dia só o sono só o medo e lá fora é sempre cedo

gira dia passa mundo; gira dia passa mundo

se a morte se o fim? mas meu não é como o sim passa mundo gira dia.

Depois que se morre, não tem jeito.

Page 68: Veneno de Ornitorrinco.:

Os tesouros do rei.: Os tesouros do rei

estavam guardados a sete chaves e dois cadeados.

Ele se orgulhava em dizer: “sou tão rico”!

Ficava tão feliz que seus bigodes se eriçavam.

“sou tão bonito”, dizia o rei.

Só que um dia sua rainha ralhou com ele dizendo:

“ó, meu marido e senhor, os teus bigodes me pinicam tanto”!

E o rei se entristeceu de forma tamanha que arrancou os bigodes com a gilete

comprada do mercador que passava toda semana na rua em frente ao castelo gritando:

“giletes! giletes! para barbas mal feitas e bigodes eriçados”!

O rei triste ficou, porque agora

o seu tesouro guardado a sete chaves e dois cadeados,

não mais eriçavam seus bigodes. E dizia:

“sou agora pobre, sou agora feio”.

Page 69: Veneno de Ornitorrinco.:

Estéreo.: A vida vale mais que o vivido?

A morte vale mais que o morto? O pensamento tanto quanto o pensado? E a loucura tanto quanto o louco?

Page 70: Veneno de Ornitorrinco.:

Viés.: O que sou?

Vou dizer o que sou: Sou o vazio da enseada

O próprio vento que se afoga Na maresia do nada.

Meu olhar passeia algures Por entre flores perdidas Numa cidade cansada.

O que eu sou! Vou me dizer o que sou:

Sou inseto milenar Sobrevoando soturno

A dança nobre do mar. Meu olhar passeia algures

Por entre risos calados Pela poesia estelar.

O que sou; Ah, bem sei o que sou:

Sou incógnita perpétua Irresoluto feito pedra Que se afirma na terra.

Meu olhar passeia algures Por entre fios e fios de cabelo

A poesia oculta. E se tentar me dizer,

Que o silêncio recaia sobre mim. Saberei não mais o que fui, Mas o que flui.

Page 71: Veneno de Ornitorrinco.:

O Poeta do Descampado.: Cheguei a um ponto limite

Onde a fraqueza que resiste É a força mesma que insiste; Como um desejo que se abre

Cheguei a um ponto sem vida Onde a surpresa me aniquila

E a rotina me transpassa; Como lança na barriga

Se a minha sorte futurar, perdida Hei de encontrá-la, alegremente, Assim persisto.

Se, por acaso, definhar, ausente Hei de sorvê-la, avidamente,

Assim infindo. E na calma do amor, cultivar desejos inéditos...

Page 72: Veneno de Ornitorrinco.:

Proibição.: Se eu confessar que te amo

Tudo se perderá, prontamente. Diluído no ar insensível De mais um dia quente.

Porque eu amo o amor torto E não estou preparado para tanto.

Eu caibo no suor de mim mesmo Por isso o despertar é um parto!

Quanto fogo cabe numa palavra? Quanta água sustenta uma pergunta? Quanta terra cabe num gesto?

Quanto ar reside em minha busca? Durmo.

Durmo? Durmo!

E, sim, sonho secreto e sedento Sem me ater ao arriscado despertar.

Vou. Vou? Vou!

Voo, variado e veloz e visível Entregando-me ao instante febril.

(...)

E das mãos os fios ornados Em ouro e chumbo reluzente Caíam - espessas serpentes -

Em longos volteios esfumaçados.

Page 73: Veneno de Ornitorrinco.:

Visagem.: (...) e porque meus olhos vagavam

sob a luz amarelada desta noite sem sombra pensei na grande solidão dos homens em suas casas e no grande medo de todos os que se entregam à vida.

mas um sono apossou-se do meu corpo quis morrer sem nenhum suspiro

que me fizesse deixar rastros e marcas e vazios maiores do que aqueles acumulados nos dias de festa!

só que dormir já não adiantava e morrer era uma questão de tempo; os meus olhos vagando sob a luz amarelada

desta noite sem sombra que me valesse sorriram um grande desprezo pela solidão e pelo medo.

Page 74: Veneno de Ornitorrinco.:

Paradoxos.: Sim. E tudo se abre, voluptuosamente

Não. E tudo desanda e se desmancha Talvez. E bambeia o homem na corda bamba.

Sim! E o mais já é menos e vice-versa Não! E o menos é nada, conformemente Talvez! E a esperança reacende seu lume, como fosse o

primeiro. Nunca... e em seguida, vamos nós cometer o intento

Sempre... e logo esquecemos do tempo e seu viço Fora... e o presente denuncia o passado reinante.

Nunca! E o hábito desmente o monge Sempre! E a promessa se perde, fria Fora! E já não podemos passar adiante.

Dentro. E colhemos os frutos de outro paço Fora. E cultivamos o que há de mais secreto

Atrás. E à frente emolduramos o próximo quadro. Dentro! E comemos melhor sob um teto amigo

Fora! E nos perdemos em ancestrais perigos Atrás! E de novo o novo de novo é velho. Assim, nossos instantes pequenos e grandes

Assim, nossa eterna e feliz alegria.

Page 75: Veneno de Ornitorrinco.:

Emergência.: Desci, também eu, ontem, ao Pireu

O dorso estendido sob o céu Vago como as vagas a chocar rochas.

No mesmo instante, percebi, não era eu Como em sonho pudera fruir Do impessoal silêncio, a bramir tochas!

Tornado mar... fui vento soprando instantes de morte Flagrante em mim sol e fogo,

Imemoriais em sua sorte. Vagaroso, ergui-me, torto, cansado

Respirando mal todo este tormento A tarde vinha fatal, inexorável Cheirando a sal e desespero.

Entoei um canto originário Dancei, sorrindo, tão sério e tenso

E, delicado, toquei a terra Fundamental como um nascimento.

Tornado mar... fui vento soprando instantes de vida Flagrante em mim, sol e fogo Lembrados com alegria.

Bem devagar refez-se em mim Algo semelhante à unidade

Que nos convoca, austera e livre A recolher sua voz, potente idade!

E, de nascente, meus olhos viam, Previdentes, A criação de um novo ciclo perpetuar

- o mesmo, o sempre. Tornado eu, fui mar e sou ainda agora

Flagrante em mim Delírio, dor, vitória.

Page 76: Veneno de Ornitorrinco.:

O Poema que não diz.: Sou antes de ter um nome?

Sou antes de inscrever-me? O que sinto é muita fome O que me espanta é esta sede!

Afeito ao meu desejo, suspeito Ter-me encontrado

No ventre dessa palavra, em Seu seio alimentado.

Ainda assim eu me vejo Tão longe mesmo de mim Como dissesse: sim!

Ao ler-me no ocre do espelho. Querendo, no entanto, negar

A sede, o desejo, a fome Forçado a ter de calar O que sou antes do nome.

Page 77: Veneno de Ornitorrinco.:

Vazio.: Vazio

(...)

O limite entre - - Nada e a absorção da luz Nada e a floração do escuro.

Vasto

!? Ilimitado como <>

Tudo e a sensação do mar Tudo e a aniquilação do eu.

Page 78: Veneno de Ornitorrinco.:

Redondezas.: Amar

O mesmo amor Intenso-vale Montanha a-dentro.

Fortifica.

Rumar Um outro rumo Sedento-mar

Sal amiúde. Gostar.

Page 79: Veneno de Ornitorrinco.:

Desistência.: Onde sei que perdi, resisto

Não há vento que demova o que sou Ainda que em vento eu me transforme Serei o mesmo, sempre; e sempre a mesma força.

Onde sei que nasci, insisto E é bem possível que eu morra muitas vezes

Ainda que, contínuo, eu me divirja Serei o mesmo, sempre; e sempre a mesma força.

Delicado, como o som de um trovão inesperado Fascinante como a chuva de uma qualquer segunda-feira Infinito, como um ponto azul no céu, determinado

E finito como o mar tocando a beira... Assim,

Onde sei que perdi, eu vivo.

Page 80: Veneno de Ornitorrinco.:

Passagem.: O salto se deu, enfim

Digo: saltei! A corda rompeu-se, no fim Disse: agora sei.

Page 81: Veneno de Ornitorrinco.:

Evandro Alves Maciel.: poeta, fotógrafo amador e estudante de Filosofia pela

Faculdade de São Bento, de São Paulo.

Blogs.:

Eloarte! http://eloarte.blogspot.com

O Múltiplo Contínuo, fotopoemas.: http://omultiplocontinuo.wordpress.com