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Venturas e Desventuras do Capitão Prego e sua família: memórias de um congadeiro da região das Vertentes, Minas Gerais SILVIA MARIA JARDIM BRÜGGER Introdução Essa comunicação é fruto do projeto de pesquisa “Memórias do Cativeiro e da Liberdade entre Congadeiros da Região das Vertentes”. Proponho analisar a forma como o capitão de congado Claudinei Matias do Nascimento, conhecido como Prego, narra sua trajetória de vida e a de sua família. Prego é capitão do Terno de Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia de Tiradentes, Minas Gerais. Tem hoje 44 anos. Em sua fala se apresenta como descendente de escravos e narra a trajetória de sua família. Apresenta a ascendência cativa, os movimentos migratórios, as atividades desenvolvidas pelos membros da família. Mas aqui nos ateremos à cosmovisão expressa em seu modo de narrar e explicar as mudanças na história de sua família e na sua. I. Venturas e Desventuras do Capitão Prego e sua Família A primeira entrevista com o Capitão Prego versou principalmente sobre sua inserção no congado. Sua trajetória de vida e de seus familiares apareceram pontuando aquela narrativa. Em um segundo momento a opção foi por se ater à sua história de vida e à de seus familiares. A primeira pergunta feita nessa segunda entrevista, aparentemente simples, deixou o capitão desconsertado: “... a gente queria conversar um pouco sobre a sua história familiar. Começaria pedindo para você falar um pouco sobre sua família. Quando você nasceu? Quantos irmãos você tem? Se tem irmãos, se não tem?” (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016 ) Ele pediu para que o gravador fosse desligado por duas vezes, antes de começar a responder. A resposta começa a apresentar uma história incômoda para ele: Eu nasci na cidade de Barroso, em 1973, dia 19 de junho. A história é um pouco complicada, mas vamos falar desde o início. A minha mãe de sangue, ela era dona da casa da alegria. Quando eu falo casa da alegria, vamos falar casa da dama da noite. Aonde fazia a alegria do pessoal. E ali, como ela já tinha muitos filhos, um dia, eu Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense, professora associada do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São João del Rei. Agradeço o apoio para participação no evento do Programa de Pós-Graduação em História da UFSJ. Agradeço a Claudinei Matias do Nascimento, o capitão Prego, a possibilidade de produzir esse texto.

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Venturas e Desventuras do Capitão Prego e sua família: memórias de um congadeiro da

região das Vertentes, Minas Gerais

SILVIA MARIA JARDIM BRÜGGER

Introdução

Essa comunicação é fruto do projeto de pesquisa “Memórias do Cativeiro e da Liberdade

entre Congadeiros da Região das Vertentes”. Proponho analisar a forma como o capitão de

congado Claudinei Matias do Nascimento, conhecido como Prego, narra sua trajetória de vida

e a de sua família. Prego é capitão do Terno de Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava

Anastácia de Tiradentes, Minas Gerais. Tem hoje 44 anos. Em sua fala se apresenta como

descendente de escravos e narra a trajetória de sua família. Apresenta a ascendência cativa, os

movimentos migratórios, as atividades desenvolvidas pelos membros da família. Mas aqui nos

ateremos à cosmovisão expressa em seu modo de narrar e explicar as mudanças na história de

sua família e na sua.

I. Venturas e Desventuras do Capitão Prego e sua Família

A primeira entrevista com o Capitão Prego versou principalmente sobre sua inserção no

congado. Sua trajetória de vida e de seus familiares apareceram pontuando aquela narrativa.

Em um segundo momento a opção foi por se ater à sua história de vida e à de seus familiares.

A primeira pergunta feita nessa segunda entrevista, aparentemente simples, deixou o capitão

desconsertado: “... a gente queria conversar um pouco sobre a sua história familiar. Começaria

pedindo para você falar um pouco sobre sua família. Quando você nasceu? Quantos irmãos

você tem? Se tem irmãos, se não tem?” (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia

Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016 ) Ele pediu para que o

gravador fosse desligado por duas vezes, antes de começar a responder. A resposta começa a

apresentar uma história incômoda para ele:

Eu nasci na cidade de Barroso, em 1973, dia 19 de junho. A história é um pouco

complicada, mas vamos falar desde o início. A minha mãe de sangue, ela era dona da

casa da alegria. Quando eu falo casa da alegria, vamos falar casa da dama da noite.

Aonde fazia a alegria do pessoal. E ali, como ela já tinha muitos filhos, um dia, eu

Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense, professora associada do Departamento de Ciências

Sociais da Universidade Federal de São João del Rei. Agradeço o apoio para participação no evento do Programa

de Pós-Graduação em História da UFSJ. Agradeço a Claudinei Matias do Nascimento, o capitão Prego, a

possibilidade de produzir esse texto.

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não sei o que é que deu na cabeça dela que ela enrolou com o próprio cunhado. Desse

rolo que ela teve com o cunhado nasci eu. Mas como na época ninguém podia saber

que eu era filho do cunhado, ela começou tomando esses matos, esses chás de horta,

para eu poder nascer antes da hora. Na verdade, para poder me eliminar dentro da

barriga mesmo. Mas aí tomou muita coisa. Tem coisa que nem tem como falar. Coisa

que minha mãe mesmo, de sangue, me contou agora, pouco tempo antes dela morrer.

Ela me contou tudo que ela fez pra mim não nascer.

Mas de alguma forma, de algum propósito que Deus tinha para mim, e acho

que esse propósito era de eu vir cantar no Congado, então eu nasci. Só que eu nasci

com nove meses certinho, mas não nasci pesando nem 1kg. Para vocês terem uma

noção de como foram os estragos dos remédios, os venenos que ela tomou para me

abortar.” (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de

Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016. )

Fruto de uma relação adulterina, Prego teria nascido por determinação divina e contra a

vontade de sua mãe, para cumprir uma missão: cantar no Congado. Segundo a narrativa, como

a mãe não o desejava e já tinha outros três filhos, tentou dá-lo em adoção a duas famílias, mas

como ele “não evoluía nada”, era sempre devolvido. Até que, quando estava com quatro meses,

um casal de tios resolveu adotá-lo. Foi a partir dos cuidados desse casal que o menino começou

a crescer e ganhar um pouco mais de peso. É a eles que Prego reconhece como seus pais:

“Raimunda Maria do Nascimento que é a mãe. O pai Geraldo Estêvão do Nascimento.” Ele era

irmão da “mãe de sangue” do menino. Ele conta ainda que, quando completou 7 anos, “Tia

Antonia”, sua “mãe de sangue” o queria de volta. Não tendo sucesso, começou a jogar pragas

contra ele, desejando sua morte. No entanto, quem morreu foi o único filho de quem ela gostava,

por ser de pele mais clara. A relação com a “mãe de sangue” sempre foi para Prego

problemática, na infância sentia vergonha por ser filho da “dona da casa da alegria” e mais

ainda pelas atitudes que ele entende como más da parte dela. Apesar disso, os pais que o criaram

o faziam ver que ela era a mãe dele e que ele era por causa dela que ele existia.

Prego se lembra de seus avós pela linha paterna e materna (considerando aqui como

referência os seus pais de criação, posto que o pai era irmão de sua mãe de sangue). O avô

paterno, segundo ele, foi escravo e teria sido vendido ainda muito pequeno da região de

Tiradentes para Piedade do Rio Grande. Chamava-se João Maria do Nascimento. Por ocasião

da abolição teria cerca de 10 anos de idade. Continuou vivendo na região e trabalhando na

agricultura. Se casou em Piedade e teve vários filhos. Um deles foi expulso de casa, quando

tinha 9 anos de idade, e veio trabalhar em Barroso. Foi esse filho que buscou a família para se

mudar com ele para Barroso, ao saber das dificuldades pelas quais o pai passava em Piedade.

Prego assim narra a situação de seu avô:

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(...) meu avô saiu, porque até um ovo, quando meu avô ia colher um ovo no balaio,

às vezes o ovo tremia, quebrava, às vezes tinha cobra dentro do ovo. Então os

macumbeiros atacavam demais o meu avô, aonde ele teve que conseguir fazer contato

com esse filho que ele expulsou de casa, para ver se conseguia um lugar para eles

irem.

Aí eles andavam, iam em alguns benzedores, que falavam “Sr. João Maria,

para as coisas melhorarem, o senhor vai ter que ir embora da cidade. O senhor tem

que sair quietinho, não pode falar nada para ninguém para onde o senhor está indo

ou para onde o senhor deixou de ir. Vai cada cruz, cada encruzilhada que o senhor

passar o senhor vai deixar uma pedra, coloca uma pedra e não olha para trás. Que

aí assim o pessoal vai perder o rumo de onde o senhor foi. Quando eles encontrarem

o senhor já vai ter passado muitos anos, aí não vai ter como eles mexerem com o

senhor. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de Assis,

Samuel Avelar Junior, em 4 de novembro de 2015.)

Ao ser pedido para explicar por que os macumbeiros atacavam o avô, Prego prossegue:

Olha, segundo a história que meu pai sempre me contou e meu tio, é porque meu avô

apesar de ser muito ruim para família, para o pessoal de fora ele era igual a um santo

de tão bom. Mas para família ele era muito ruim. Só que o que ele tinha também de

ruindade ele tinha de muito trabalhador. E aí os outros, as pessoas ficavam com muita

invição(sic) dele ser muito trabalhador. Aí as coisas dele não fluíam, nada dava certo,

às vezes a vaca que ele tinha morria, a casa deles como era de pau a pique pegava

fogo. Aí tinha um senhor lá, que chegava e falava “olha Sr. João Maria a vaquinha

do senhor morreu, pode ficar sossegado que eu não vou mais prejudicar o senhor

não. O senhor pode arrumar outras vacas que não vão morrer. A casinha do senhor

também pegou fogo, fui eu que coloquei. O senhor não preocupa não, que não vou

fazer isso mais não”. Foi indo ele foi cansando com aquilo, até chegar ao ponto de ir

embora.

Às vezes ele estava capinando, fazia algum barulho no mato, ele olhava. Ele sempre

diz que uma voz fala assim: “toma cuidado!” Quando era a quarta, quinta enxadada

que ele dava, ele puxava uma cascavel, matava jogava aquilo dentro d’água e a

cascavel sumia. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone

de Assis, Samuel Avelar Junior, em 4 de novembro de 2015.)

Detalhando ainda mais as atitudes contra o avô, explica que elas eram feitas de longe

pelos macumbeiros: “Punha fogo só de longe, não precisava nem ir lá não.” (Entrevista

concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em

16/12/2016.) Seriam, portanto, fruto de ações que classificaríamos como “sobrenaturais”. Para

combate-las, o avô buscou orientação com um benzedor da região, antes de seguir com a família

para Barroso, em companhia do filho que havia expulsado de casa cinco anos antes.

(...) o benzedor pediu para eles não olhar para traz, em cada encruzilhada que

passassem era para cada um jogar um punhadinho de terra ou umas pedras. Em todas

encruzilhadas eles faziam isso. E com isso eles iam chegar até no destino deles, e

ninguém não ia conseguir pegar o rumo deles. Aí foi onde que eles vieram andando,

andou a noite inteira até chegar em Barroso. Aí quando chegou, o pessoal perdeu a

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noção para onde eles tinham ido. Aí levou muito tempo para descobrir para onde eles

tinham vindo. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone

de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)

Para encontrar uma solução para problemas causados por forças “sobrenaturais”,

buscaram ajuda com quem entendia desse universo, curando diversos tipos de “doenças” com

ações também “sobrenaturais”. Foi a partir dessa orientação e acompanhando o filho que havia

expulsado de casa, que o Sr. João Maria do Nascimento se mudou para Barroso, onde se instalou

e passou a trabalhar para os fazendeiros da região. Segundo a fala de seu neto, “ aí já era

tranquilo. Trabalhava para os fazendeiros.” (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia

Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)

Pelo lado da mãe de criação, dona Raimunda Maria do Nascimento, a família veio de

um lugar chamado Água Limpa, entre Ibertioga e Piedade. Era a família Sinhana. Nas palavras

de Prego:

Então a família dos Sinhana era uma família de gente muito macumbeira. Naquela

época, era os mais macumbeiros que tinha era a família dos Sinhana. Então eles

vieram dessa Água Limpa, vieram para Ibertioga. Alguns vieram para Ibertioga. Aí

quando ficou sabendo que Barroso era uma cidade boa de serviço, aí veio primeiro

o meu avô que é o Chico Sinhana. Ele veio para Barroso. Depois veio João Sinhana,

Zé Sinhana, aí veio os outros tios. Então aí veio a família dos Sinhana. Quando

chegou em Barroso, quando procurava em Barroso a família dos Sinhana, era só

procurar a família dos macumbeiros. Então tinha aqueles que era bom e tinha aqueles

que eram ruins. Então era uma família dos macumbeiros muito barra pesada. E na

família os que puxaram mais para o lado ruim foi o João Sinhana e o Zé Sinhana.

Esses eram macumbeiros... (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia

Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)

Uma família de macumbeiros, assim Prego caracteriza o seu ramo materno. Por essa

via, o antepassado escravo teria sido sua bisavó, Sinhana Velha, de quem todos herdam o

apelido que se tornou “sobrenome de família”. Segundo Dona Raimunda, mãe de Prego, sua

avó paterna se chamava Ana Martinha de Jesus, resultando o apelido da contração de Sinhá

com Ana. Virou Sinhana. Os filhos tinham os prenomes acompanhado por Sinhana. Assim, o

pai de Dona Raimunda, avô materno de prego era seu Chico Sinhana. (Entrevista concedida por

Dona Raimunda Maria do Nascimento a Silvia Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar

Junior, em 30/03/2017). Foi em companhia de Sinhana Velha que a família mudou para Barroso

e se empregou na caieira. Nas palavras de Prego:

Então, eles quando eles mudaram para Praia, que é esse bairro de Barroso, quando

eles vieram lá de Ibertioga, eles vieram para Praia. Então ainda tem a casinha que

era da minha bisavó. Ainda está em pé, lá ainda. Modificou um pouquinho, mas ainda

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tem as paredes que foram feitas na época dela, que deve ter mais de 80 anos. Aí ela

veio para Barroso, também trabalhava na caieira. Deles até que eu não tenho muita

coisa para falar não. Quem tem mais coisa para contar deles é minha mãe. Eu só sei

que eles eram uma família de gente muito macumbeira. Isso eu sei.

Eu até queria ter herdado deles. Mas isso eu acho que ainda não consegui

herdar, não. Mas assim, uma coisa boa. Eu não consegui herdar muita coisa não. Só

que assim, era gente muito trabalhador. O meu avô, que era o Chico Sinhana, benzia.

Eu lembro1 que ele benzia, ele tinha um copo d’água, um copo d’água, tinha um

quadrozinho de São Jorge, e tinha uma vela branca, e um cordão de São Francisco.

Ele benzia mais ou menos nessa coisa. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a

Silvia Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)

Nota-se que, para Prego, ser benzedor e ser macumbeiro quase que se equivalem. Ser

benzedor seria ser macumbeiro para coisa boa.

Aqui já se pode começar a pensar nas chaves a partir das quais o capitão de congado

Prego e a memória familiar, que ele apresenta em sua narrativa, entendem o mundo. Proponho

que uma cosmovisão banto se faz presente nesta forma de narrar suas experiências. Os bantos

são o grupo linguístico e cultural, oriundo da África Centro Ocidental, que predominou entre

os escravos da região sudeste no Brasil, em especial no século XIX. Segundo Cramer, Vansina

e Fox (apud KARASCH, 2000), a cosmovisão deste grupo centrava-se no que chamaram de

“complexo ventura-desventura”. Este baseava-se na afirmação do predomínio do bem (ou da

ventura) na ordem natural das coisas (saúde, fecundidade, harmonia, riqueza etc.). O universo

de vivos e mortos estaria povoado por diversos tipos de espíritos e ancestrais com intenções e

ações boas. Haveria, porém, também “forças malévolas”, fora da ordem natural, capazes de

provocar tudo o que é mau, acionadas por “pensamentos e sentimentos malignos e outras

pessoas significativas” (CRAMER apud KARASCH, 2000: 355-356). Esse desequilíbrio da

ordem natural, entendido como “desventura”, manifestava-se em toda ordem de problemas de

saúde, fracasso, empobrecimento, morte, destruição. Portanto, se a “desventura” era provocada

pelo acionar de forças que classificaríamos como “sobrenaturais”, era também nestas instâncias

que deveria ser buscado o restabelecimento do estado de “ventura”, através de orientações

espirituais, amuletos e rituais.

Ora, parece-me clara, nas falas do Capitão Prego, a influência desta cosmovisão banto

no seu modo de narrar sua história familiar e, em especial, nos seus momentos de inflexão, ou

1 Capitão Prego narra essas lembranças de olhos fechados.

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seja de mudança. As perdas econômicas do avô paterno (a casa que pega fogo, as vacas que

morrem, a cobra que aparece em meio a plantação) são explicadas pela ação de “macumbeiros”,

que nada mais seriam do que aqueles capazes de acionar as “forças malévolas” para provocar a

“desventura”. A busca pelo reequilíbrio, pela recuperação do estado de “ventura”, vem com a

mediação de benzedores. Estes orientariam as ações das pessoas afim de escaparem das “forças

malévolas”. Foi um benzedor que orientou a saída da família de Piedade em direção a Barroso,

indicando o ritual a ser seguido no trajeto: em cada encruzilhada que passassem deviam colocar

uma pedra, afim de que o rumo que tomavam fosse ignorado pelos que os perseguiam

espiritualmente. Ora qual o significado da encruzilhada? Robert Slenes, citando Robert

Thompson, indica o significado de um “cosmograma Kongo”, no qual em meio a um traço oval

há uma cruz. A linha horizontal da cruz seria a kalunga, ou seja, o mar, a divisão entre o mundo

dos vivos e dos mortos, e as extremidades dos traços representariam os quatro momentos do

sol: na extremidade mais alta estaria o meio-dia, a força no mundo terreno; na inferior, a meia-

noite e o auge da força no “outro mudo” (mundo dos mortos); nas extremidades horizontais,

não apenas o nascer e o pôr do sol, mas o momento em que ele romperia a barreira da kalunga,

comunicando o mundo dos vivos e dos mortos. A cruz representa, portanto, essa comunicação

e a passagem pelos quatro momentos do universo. (SLENES, 1992: 63) A pedra colocada na

encruzilhada talvez tivesse o sentido de impedir as “forças malévolas” de continuarem a fluir

do mundo dos mortos para o dos vivos, trazendo infortúnio à família.

Pelo lado materno de sua família, Prego afirma não ter muito o que falar. Diz saber

apenas que os Sinhana eram muito macumbeiros, uns pelo lado mau, outros pelo bom. Seu avô

Chico Sinhana benzia recorrendo a um copo d´água, um quadro de São Jorge, uma vela branca

e um cordão de São Francisco. Os elementos de contato entre o mundo dos vivos e dos mortos

novamente se apresentam: a água (representando a kalunga) e a vela que quando acesa, além

do fogo (elemento de purificação) traz a fumaça (outro meio de comunicação entre o mundo

dos vivos e dos mortos). As referências a representações de santos católicos podem ser

entendidas, como sugere Mary Karasch, como a incorporação de novos amuletos, de origem

católica, mas apropriados pela concepção banto (KARASCH, 2000).

Essa cosmovisão banto presente na narrativa sobre seus ascendentes, aparece também

nas palavras de Prego sobre sua própria vida em idade adulta. Prego casou-se, em Barroso, com

Lucimar, no entanto, segundo ele, lá não viviam em harmonia. Prego explica a situação:

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É, então, Barroso para a gente, as condições da gente, apesar que a gente tinha a

nossa casa, mas nossas coisas não fluíam, não ia para frente. Então (...) de 94 até 99,

a nossa vida era só briga, minha e dela. Briga, briga, briga, briga todo dia. Todo dia,

todo dia, todo dia briga. Aí até quando ela ficou grávida, foi em 98. Aí ela ficou

grávida, aí ela tinha muita dor de cabeça, aí ela foi benzer no Sr. Geraldo Carteiro.

Só que como ela já tinha perdido uma criança antes, aí o Sr. Geraldo Carteiro

mandou ela me pedir que era para mim ir lá. Apesar que a minha família sempre foi

muito macumbeira, eu nunca dei muita importância nesse tipo de coisa. Ela falou

comigo que ele pediu para a gente rezar de noite, não lembro o que foi que ele pediu.

Aí ela pega e pediu para mim rezar, enquanto ela estava rezando, eu estava achando

ruim com ela, e tampava e cobria a cabeça, não estava nem aí para a reza. Nisso foi

passando o tempo, aí ela teve o Bruno, nasceu, graças a Deus tudo bem. Foi passando

o tempo e a situação só piorando, só piorando. (...) Até que um dia, eu trabalhava em

Juiz de Fora, antes de eu ir para Juiz de Fora, a gente passou uma situação muito

ruim aqui. Graças a Deus não faltou comida aqui não, mas passou pertinho de faltar

comida. Aí (...) fui para Juiz de Fora, quando eu fui para Juiz de Fora, teve um dia

eu sai de Juiz de Fora, cheguei em casa, dei uma briga com ela, violenta mesmo, que

eu dei um monte de soco nos braços dela, nas costas. Aí o pai mais a mãe ficou, o pai

principalmente, ficou doído com aquilo, achou que estava muito errado demais. Aí

me pegou, me levou para benzer com um senhor, bem na serra ali em Barroso.”

(Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de Assis e

Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)

No entanto, a orientação do benzedor não convenceu Prego, pois, segundo ele, falou

coisas que não correspondiam a suas práticas. A esposa, então, o chamou para ir com ela ao

outro benzedor da região, Sr. Geraldo Carteiro. Prego narra o que ouviu:

Aí falou comigo assim: “olha minha criancinha”, a entidade falando, “eu vou fazer

o seguinte, eu vou ser obrigado a te falar a verdade. Você está indo num lugar levando

o seu dinheirinho suado e dando para os outros e não resolveu nada. [referência à

ida no outro benzedor] Então eu vou te falar a verdade. Você pega os seus parentes

todos, pega os seus parentes todos, escolhe a dedo que você ainda vai escolher

errado, ainda vai escolher errado. Você tira o seu pai e a sua mãe, o resto você vai

escolher errado. Eu vou te ser sincero, eu vou te falar a verdade, se você quiser viver

bem, você vai juntar suas coisas e vai embora daqui. Só que a coisa está tão pesada,

que eu preciso fazer uma coisa, só que eu não faço isso que tem que fazer. Mas a

pessoa que vai fazer ela cobra e é lá em Lafaiete. Você tem que me trazer aqui para

mim depositar na conta dessa pessoa a quantia de acho que era R$160,00. E eu não

tinha, mas a Luci [esposa] tinha esse dinheiro. Ela falou eu tenho, que ela estava

desesperada. Aí ele pegou e falou assim, você tem que trazer esse dinheiro para mim

antes de 6 horas da manhã. E vai fazer barulho na sua casa por volta da meia noite,

você não assusta não. Aí realmente fez barulho, né? (Entrevista concedida pelo

Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em

16/12/2016.)

E ele continua:

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Aí dei o dinheiro a ele. Ele pegou e falou: “Oh! Minha criancinha eu vou te ser

sincero, se vocês quiserem viver bem, vocês vão ter que juntar suas coisas e ir embora.

E eu vou te ser sincero, ela [a esposa de Prego] já estava pronta para sumir. Ela ia

pegar as coisas dela, ela ia sumir e nunca mais você ia ver ela. E a pessoa que você

mais gosta que é o seu pai, ia virar as costas para você. Ela ia sumir com as duas

crianças e nunca mais você ia ver ela. ” Aí fez eu ajoelhar aos pés dela, fez eu pedir

perdão para ela. Aí ajoelhei aos pés dela e pedi perdão do jeito que as entidades tinha

mandado. Aí eles pegaram e falaram com a gente: “vocês vão fazer assim, se vocês

quiserem viver bem”. A mesma coisa que aconteceu com o meu avô aconteceu

comigo. Só que meu pai já tinha me dado uma alerta sobre isso, que achava que isso

ia acontecer. Aí ele falou: “olha você vai juntar suas coisas, não vai falar nada com

ninguém. Vai pegar suas coisas, vai arrumar um carro e vai atravessar a divisa da

cidade. Aonde você for, você vai vender. Você vai buscar no mato e ela vai vender.

Eu não sei se é terra, se é barro, o que é que é., mas você não vai falar nada com

ninguém. Quando você mudar, eles vão perder a noção para onde você está. Eles vão

esquecer de vocês. ” Aí falei com o meu pai que nós íamos mudar. Juntei as coisas e

nós arrumamos um caminhão. Quando o pessoal assustou nós mudamos mesmo. A

gente veio embora para Tiradentes. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a

Silvia Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)

Em Tiradentes, depois de outras experiências de trabalho, hoje, Prego e Lucimar vivem

de artesanato. Cumprindo o que havia dito a entidade em Barroso, Prego busca as cabaças no

mato, limpa e Lucimar produz objetos de decoração, como galinhas, balões, e os vende em sua

casa. Foi depois da mudança para Tiradentes também que Prego iniciou o trabalho com o

Congado, embora sua família já fosse de congadeiros. E o envolvimento com o congado tem

sua origem ligada a uma experiência de cura. Segundo Prego, quando se mudou de Barroso

para Tiradentes, ele já veio doente, sofrendo muito com problema de coluna, em função de

“ataques de parentes”, com inveja dele estar construindo sua casa. Assim como ocorrera com

seu avô paterno, esses ataques seriam de ordem espiritual. Nesta ocasião, Sr. Geraldinho

Carteiro, benzedor de Barroso não estava podendo atender por também estar doente, e indicou

uma benzedeira em Ponto Chique, uma região de Ibertioga. Uma amiga de Tiradentes o levou

a essa benzedeira e lá ela informou à amiga de Prego que a situação dele era muito delicada,

que talvez ele não durasse nem mais uma semana. Desesperada com a situação, a amiga queria

leva-lo a um médico em São João del Rei. Mas Prego se recusou porque, segundo ele, não gosta

de médicos. A amiga conseguiu convencê-lo a ir com ela a um massagista, na cidade de São

João. No mesmo lugar onde atendia o massagista, trabalhava também uma esteticista. Ao subir

as escadas do prédio, essa esteticista o observou e, quando ele deixou a sala do colega com a

orientação de que só um médico poderia ajuda-lo, ela se dirigiu à amiga de Prego e avisou: “o

problema do seu colega não é médico não. Traz ele aqui um outro dia que o problema dele não

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é médico não.” (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de Assis e

Samuel Avelar Júnior em 4/11/2015)

Passados, segundo Prego, uns três dias, ele voltou com a amiga ao consultório da

esteticista e ela lhe disse que iriam fazer uma “troca de energias”. A esteticista o chamou para

sua sala, onde começou a conversar com ele com as mãos trançadas sobre a boca. Fez diversas

afirmações sobre a vida de Prego, mas ele estava desconfiado e só se convenceu da seriedade

da conversa quando ela mencionou um fato ocorrido quando ele tinha 5 anos de idade. O seu

avô materno sentou sobre o seu gatinho e o matou, fazendo Prego chorar muito. Em suas

palavras,

Aí nessa hora a desconfiança acabou. Já não tinha necessidade de eu ter tido

desconfiança. Ela falou: “então, vou falar o que está acontecendo. Os seus dois avós,

o seu avô do lado da sua mãe morreu com o sentimento de culpa, porque ele matou

seu gatinho e você chorou muito. E o avô do lado do seu pai porque ele era muito

ruim, muito ruim para família, então ele está tentando te ajudar. Só que eles não têm

força para te ajudar e, nisso que eles não têm força para te ajudar, eles estão te

prejudicando demais. Um tenta ajudar e o outro tenta ajudar. Um para cobrir a

ruindade que ele foi para família, ele tenta te ajudar e não tem força. E o outro porque

morreu com o sentimento de culpa, porque ele matou seu gatinho. Então a gente vai

ter que fazer um tipo de trabalho aqui, para poder melhorar”. Aí (...) a senhora de

Tiradentes [amiga de Prego] foi e arrumou uma pedra, que é até essa pedra que está

aqui comigo, essa pedra que está aqui. Colocou assim no chão, estava chovendo

muito e mandou eu pegar. Aí quando eu abaixei me deu uma fincada muito forte na

ponta do dedo, que eu dei até um grito. Aí nisso que eu dei um grito, aí já levantei

com muita dor nas costas. Aí ela pediu para eu fazer movimentos que eu nunca

conseguia fazer, uma estrelinha para cá, estiquei. Aí ela falou: “olha, você vai ter

que tomar muito cuidado, como você já foi muito danificado você não vai poder

abusar com o peso.” Ela perguntou com quem eu estava falando, se eu sabia com

quem eu estava falando, aí falei que não. Ela falou: “você está falando com a escrava

Anastácia.”. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de

Assis e Samuel Avelar Júnior em 4/11/2015)

Prego detalha:

Aí que teve que fazer alguma coisa que, foi feita com a escrava Anastácia, para ajudar

[os avós] a seguir o caminho deles. E depois disso, graças a Deus, o meu problema

de coluna acabou. E a coisa lá vai fluindo, vai fluindo lentamente. Mas lá vai. Tem

dia que a gente tem dinheiro, outro dia não tem. Mas pelo menos de saúde está boa

para continuar a luta. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger,

Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)

Alguns aspectos chamam a atenção na história de Prego. Primeiro à indicação do

benzedor de Barroso para que ele mudasse de cidade, como já havia ocorrido a seu avô, para se

livrar de ataques de “forças malévolas” que provocavam o estado de “desventura” em que vivia

com sua esposa. Essas forças negativas afetavam também a sua saúde. Em relação a esse

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problema, o que surpreende não é a solução através da ação de um espírito benevolente, como

o da escrava Anastácia (o que se mantém dentro da lógica do “complexo ventura-desventura”),

mas que ele tenha se manifestado através de uma esteticista. Isso parece remeter a um outro

elemento da cosmovisão banto, a plasticidade, a flexibilidade. É claro que muito provavelmente

essa esteticista possuía uma inserção religiosa, era médium, mas não é nessa condição que ela

é apresentada por Prego e nem é em nenhum terreiro ou mesmo num gongá caseiro que ela o

atende. É no local onde atua profissionalmente como esteticista. Mas o atendimento que presta

e chama de “troca de energia” permite compara-la a figura do “nganga nzambi”. Segundo

James Sweet, no Brasil escravista teriam havido diferentes tipos de “nganga”, que adivinhavam

em rituais de possessão. Para o autor, o “nganga nzambi” era um “sacerdote dos espíritos”,

especializado no tratamento de doenças causadas por vinganças de espíritos mortos que haviam

sido esquecidos. Ainda segundo ele, no Brasil teriam ocorrido também uma prática ritual

centro-africana, o “Tambo”, “que era uma cerimônia fúnebre complexa, destinada a assegurar

uma transição confortável da alma da pessoa morta para o outro mundo.” (SWETT, 2007: 209)

Em Angola, essa prática implicava em vários dias de luto e na preparação do corpo do falecido

com ervas e raízes. Sem isso, acreditavam que a alma do morto regressaria e os faria adoecer.

É claro que na narrativa de Prego não há qualquer menção a esse ritual, nem a uma vingança

por parte do antepassado falecido, mas o retorno da alma buscando compensar falhas terrenas,

aparece como a causa da doença; o que pode ser lido como uma reelaboração daquela

percepção, talvez apropriada com elementos católicos, como o arrependimento pelos males

provocados em vida.

Por fim, é preciso mencionar a referência à escrava Anastácia como a entidade

responsável pela cura de Prego. O mito da escrava centro-africana Anastácia indica que ela teria

tentado resistir, sem sucesso, ao assédio sexual de seu senhor, que teria lhe impingido o uso da

máscara de flandres, impedindo-lhe de se comunicar pela fala, mas não pelos olhos. A devoção

à escrava Anastácia possui grande relação com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e

São Benedito dos Homens Pretos do Rio de Janeiro. A sua igreja abriga o Museu do Negro,

onde uma exposição realizada nos anos de 1970, divulgou imagem da escrava com a máscara

de flandres, reprodução de uma litografia do século XIX (viajante francês Étienne Arago).

Depois disso, uma novela televisiva e o samba-enredo Kisomba, da Escola de Samba Unidos

de Vila Isabel (1988), contribuíram para a divulgação de Anastácia. A popularização da

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devoção à escrava, embora não reconhecida oficialmente pela Igreja, liga-se também ao

contexto de fortalecimento do movimento negro e das lutas pela emancipação feminina, além

das críticas ao regime militar e a suas práticas de censura, contra os quais o símbolo de

Anastácia e sua máscara cabiam perfeitamente. (SOUZA, 2007; ASSIS, 2016)

O reconhecimento de Prego pela atuação da escrava Anastácia em sua cura manifesta-

se na escolha para juntamente com Nossa Senhora do Rosário dar nome ao Terno de Congado

que comanda. Segundo o capitão, a presença da escrava na camisa e na bandeira do grupo causa

impacto e respeito em relação a eles por parte de outros ternos.

Para concluir, retomando a aproximação da forma pela qual o capitão Prego narra sua

história de vida e de sua família e a cosmovisão banto, não é demais lembrar a associação

comumente feita entre a figura da escrava Anastácia e a dos pretos-velhos da umbanda, o que

inclusive contribuiu para sua não aceitação pela ortodoxia católica. (SOUZA, 2007). Nesse

sentido, cabe reforçar a hipótese levantada no clássico trabalho de Karasch quanto à semelhança

entre a religião dos bantos do século XIX e a umbanda do século XX. (KARASCH, 2000). Ao

narrar suas venturas e desventuras, o capitão Prego nos permite pensar nos processos

reelaboração pelos quais a cosmovisão banto pode ter passado, mas também nas permanências

desse universo em nossa sociedade.

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Simone de. Memórias do cativeiro nos cantos de congado: cultura e pertencimento.

Relatório de iniciação científica, UFSJ, 2016.

KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia. das

letras, 2000.

SLENES, Robert. “Malungu ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista da

USP, no. 12, 1992.

SOUZA, Mônica Dias de. “Escrava Anastácia e pretos-velhos: a rebelião silenciosa da memória

popular”. In SILVA, Vagner Gonçalves. Imaginário, Cotidiano e Poder. Memória afro-

brasileira. São Paulo: Editora Selo Negro, 2007. Disponível em

https://books.google.com.br/books?hl=ptBR&lr=&id=msvyJG1orbkC&oi=fnd&pg=PA15&d

q=escrava+anast%C3%A1cia&ots=b_yUP4jWID&sig=ZlNmsRxnNW4STH3Jhtjps9eap2Q#

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SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português

(1441-1770). Lisboa: Edições 70, 2007.