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"Afim de saber a verdadeira verdade
Por Renato Kress, dezembro de 2004
“Deve-se exigir de mim que procure
a verdade, mas não que a encontre”
Diderot (1713 – 1784),
pensamentos filosóficos.
Escrevendo para a seção de mitologia do revista CONSCIÊNCIA.NET, recebi uma crítica de um
amigo que me lançou a pérola: ‘Por que perder tempo escrevendo essas historinhas? São só
um bando de mentiras’. Provavelmente a palavra ‘mentira’ foi empregada como o conceito de
‘irrealidades’. A palavra mito não significa mentira, nem mesmo tem qualquer relação direta
com a concepção latina (ver abaixo) da ‘verdade’, está relacionada a um aspecto simbólico da
tal ‘verdade’, a um aspecto subjetivo e psicológico. Resolvi então estudar o que possa se
chamar de ‘verdade’ em nossa sociedade e fazer um pequeno exercício.
“Verdade”, este parece ser, de imediato, o mais simples e o mais difícil dos conceitos. Quando
afirmamos que uma proposição é ‘verdadeira’ damo-lhe nosso assentimento, mas baseados
em quê?
Grego, latim ou hebraico?
Nossa idéia de ‘verdade’ foi construída historicamente a partir do amálgama entre três
tradições lingüísticas diferentes, vindas da cultura grega, que formou a base da cultura latina,
que sofreu influência da hebraica.
GREGO
Em grego a palavra para ‘verdade’ é aletheia e significa ‘o não oculto’, ‘não escondido’, ‘não
dissimulado’. O verdadeiro é o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito, a verdade é a
manifestação daquilo que é ou existe tal como é. O verdadeiro, neste sentido, se opõe ao
falso, ‘pseudos’, que é o encoberto, o escondido, o dissimulado, o que parece ser e não é como
parece. Verdadeiro é o evidente, numa acepção quase ‘visual’ da palavra, o ‘verdadeiro’ é
claro, delineado, estruturado, visível.
Assim, a verdade é uma qualidade das próprias coisas e o verdadeiro está nas próprias coisas.
Conhecer é ver e dizer a verdade que está na própria realidade e, portanto, a verdade
depende de que a realidade se manifeste, enquanto a falsidade depende de que ela se
esconda ou se dissimule em aparências.
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LATIM
“Falar a verdade é como escrever bem, e só se consegue pela prática” – Ruskin (1819-1900).
Em latim, verdade se diz ‘veritas’ e se refere à precisão, ao rigor e à exatidão de um relato,
no qual se diz com detalhes, pormenores e fidelidade o que aconteceu. Verdadeiro se refere,
portanto, à linguagem enquanto narrativa de fatos acontecidos, refere-se a enunciados que
dizem fielmente as coisas tais como foram ou aconteceram. Um relato é veraz ou dotado de
veracidade quando a linguagem enuncia os fatos reais.
A verdade depende, de um lado, da veracidade, da memória e da acuidade mental de quem
fala e, de outro, de que o enunciado corresponda aos acontecimentos. A verdade não se
refere às próprias coisas e aos próprios fatos (como acontece com a aletheia), mas ao relato e
ao enunciado, à linguagem. Seu oposto portanto é a mentira ou a falsificação. As coisas e os
fatos ou são reais ou imaginários; os relatos e enunciados sobre eles é que são verdadeiros ou
falsos. Não há nenhum espaço para o perspectivismo, pontos de vista ou liberdade
interpretativa, a ‘verdade’ é em si e não a partir da visão do sujeito.
HEBRAICO
“Não exageres o culto da verdade, não há homem que ao fim de um dia não tenha mentido
com razão muitas vezes” – Jorge Luis Borges (1899), Elogio da Sombra.
Em hebraico ‘verdade’ se diz emunah e significa ‘confiança’. Agora são as pessoas e é Deus
quem são verdadeiros. Um Deus verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que
cumprem o que prometem, são fieis à palavra dada ou a um pacto feito; enfim, não traem a
confiança.
A verdade se relaciona com a presença, com a espera de que aquilo que foi prometido ou
pactuado irá cumprir-se ou acontecer. Emunah é uma palavra de mesma origem que amém,
que significa ‘que assim seja’. A verdade é uma crença fundada na esperança e na confiança,
referidas ao futuro, ao que será ou virá. Sua forma mais elevada é a revelação divina e sua
expressão mais perfeita é a profecia.
“A verdade é tão simples que não deleita: são os erros e ficções que pela sua variedade nos
encantam” – Marquês de Marica (1773 – 1848)
Aletheia se refere ao que as coisas são; veritas aos fatos que foram; emunah se refere às
ações e coisas que serão. A nossa concepção de verdade é uma síntese dessas três fontes e
por isso se refere às coisas presentes, como na aletheia, aos fatos passados e à linguagem,
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como na veritas, e às coisas futuras, como na emunah. Também se refere à própria realidade,
como aletheia, à linguagem, como veritas, e à confiança-esperança, como na emunah.
‘Verdade subjetiva’, ‘verdade perspectiva’, ‘verdade histórica’...
Dentro dessas três tradições, a verdade pode ser considerada como a “concordância entre a
afirmação e a conjuntura real”. O critério supremo seria o de ser ‘objetivo’, uma
impossibilidade humana para assuntos mais complexos do que matizes de cores ou provas
matemáticas. Independente da questão da validade da unidade, que não é apenas interesse
da filosofia, seria interessante analisar a importância da verdade diante do erro ou da mentira,
isto é, de um lado com o que se costuma chamar de vontade da verdade (que se apresenta de
várias formas — desde o sarcasmo ao fanatismo, até a atitude legítima diante da vida, da
verdade) e, de outro lado, com a verdade na fidelidade da memória, que é instável, subjetiva e
perspectiva.
A ‘arte da verdade’
Na arte existe uma forma extrema de realismo denominada verismo na qual o artista
propõe-se a reproduzir com exata veracidade a aparência de seu tema, repudiando a
idealização e toda a interpretação imaginativa. O termo já foi aplicado aos extremos mais
realistas da escultura retratística romana. Mas adentra completamente na discussão do texto
quando se percebe que este mesmo termo é utilizado também para designar uma forma
específica de surrealismo que afirma reproduzir imagens de alucinação e sonho com detalhes
exatos e sem qualquer tipo de seleção ou alteração.
Essa possibilidade — ou presunção? — de não alterar o sonho, de compreendê-lo
visualmente com perfeição e poder materializá-lo em arte sem qualquer forma de alteração,
nos dá a dimensão do quanto o conceito de ‘verdade’ é um complexo envolto em diversos
simulacros de simplicidade com possibilidades dogmáticas.
Verdade: aletheia, veritas ou emunah
Na Grécia clássica a expressão phronésis designava sabedoria. Phronésis estava sempre
associada a outras duas palavras: aletheia (verdade) e eudaimonia (harmonia, felicidade). A
sabedoria, pois, só teria o seu sentido completo quando formasse uma triangulação com a
verdade e a felicidade.
Parece-me impossível ter phronésis sem aletéia. Ao passo que, tendo phronésis e aletéia, a
felicidade, a harmonia são inevitáveis. O triângulo se completa.
Buscar a verdade - aletéia - seria buscar distinguir aquilo que é impressão dos sentidos, o que
está impregnado com o nosso arbítrio, com a nossa instabilidade de humores, tudo, enfim,
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que nos é subjetivamente próprio - do que é produto da razão, onde encontraremos
conhecimentos universais, iguais para toda a humanidade..
Os gregos entendiam a phronesis como a capacidade de lucidez na deliberação, decisão e
ação. No sentido de se decidir levando em conta a existência do acaso, da incerteza, do risco,
do desconhecido e do complexo, phronesis estaria próxima do nosso conceito de prudência.
Mas phronesis não se limita a essa idéia latina de prudens, assim como não se confunde com a
epistéme (ciência). Pois, enquanto a epistéme se refere ao conhecimento, à erudição e a
informação, phronesis está ligada aos sentidos - é a sabedoria prática: é o conhecimento que
se adquire através dos sentidos, o saber que se adquire com a prática, com a experiência.
Precisamente por isso, etimologicamente, a palavra saber não advém de saber, mas sim de
sabor. E é muito fácil entender a razão: nenhuma experiência precisa ter o cientista sobre o
que diz, fala ou escreve. O sábio, ao revés, se manifesta sobre o que experimentou. E essa
experiência pode ter se dado de formas diversas, mas nunca de modo breve, superficial: a
sabedoria advém sempre do que experimentamos, vivenciamos - com profundidade. A
sabedoria - como o sabor - é resultado da impressão que nós próprios tivemos ao degustar, ao
comprazer de uma emoção, de uma experiência, de uma vivência. Portanto, sabemos
profundamente do que se trata - porque foi algo que nós mesmos vivenciamos, que nós
mesmos executamos ou estivemos submetidos à experiência. O cientista, com o seu
entendimento abstrato ou o seu pensamento discursivo jamais atingirá a plenitude nem
igualará o brilho da manifestação de um sábio. Se os artigos científicos são algo insípido, as
manifestações dos sábios são saborosas pois o sábio lhes confere sabor ao relatar do que ele
mesmo experimentou, vivenciou, saboreou, degustou. Ele não está reproduzindo o relato de
outrem que pode lhe ter omitido vários detalhes (até por esquecimento) de sua experiência.
Como o sábio fala do que ele próprio vivenciou, suas palavras são profundas, seu relato é rico
em detalhes - porque ele não apenas sabe, mas tem a experiência do próprio ato daquilo que
é sabido.
Mas aqui devemos ter uma maior acuidade, uma maior agudeza de percepção, pois o
verdadeiro é o não-oculto, o não-escondido, o não-dissimulado e se manifesta não apenas aos
olhos do corpo - mas, principalmente, aos olhos do espírito.
Os maiores sábios da humanidade detiveram conhecimento porque viram e disseram a
verdade. E onde foram-na buscar? Na própria realidade, pois é quando a realidade se
manifesta que a verdade se revela, se descortina.
Independente do relato, da memória e da percepção de cada um - a verdade existe e é
imutável.
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Por exemplo: pode-se afirmar que cumpriu-se uma missão, que fomos os vitoriosos numa
guerra, mas se a realidade não o confirmar de nada adiantará a repetição do que não
aconteceu, do que não se verificou. Mesmo que não se aceite ou não se constate a verdade –
ela continua existindo. E quem não a admite é tão-somente um louco.
Veritas, ao revés, se prende ao relato e ao enunciado do fato. É a precisão, a exatidão, o rigor
do relato que conduzirá à veritas. Para esta o verdadeiro está ligado à linguagem, isto é, à
narrativa dos fatos ocorridos, e aos enunciados que, fielmente, dirão como foram ou
aconteceram as coisas. A veracidade dos fatos, pois, dependerá da linguagem usada para
enunciá-los.
Outra visão têm os hebreus sobre a verdade. Para eles ela se traduz na palavra emunah, que
significa confiança. Emunah se aplica às pessoas e a Deus. De sorte que serão verdadeiros,
Deus ou um amigo, se cumprirem o que prometeram. Serão verdadeiros, pois, se cumprirem
com a palavra dada ou com o que foi pactuado, ou seja, se não traírem a confiança neles
depositada. Emunah, cuja origem é a mesma da palavra amém, se dirige ao futuro, pois é a
confiança que se alia à esperança do que virá ou será.
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