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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA VERDADE E JUSTIÇA NA OBRA TOTALIDADE E INFINITO DE EMMANUEL LÉVINAS DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Rubens Machado Santa Maria, RS, Brasil 2015

Verdade e Justiça na obra Totalidade e Infinito de ...w3.ufsm.br/ppgf/wp-content/uploads/2011/10/Rubens-Machado.pdf · 2 VERDADE E JUSTIÇA NA OBRA TOTALIDADE E INFINITO DE EMMANUEL

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

    CENTRO DE CINCIAS SOCIAIS E HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    VERDADE E JUSTIA NA OBRA TOTALIDADE E

    INFINITO DE EMMANUEL LVINAS

    DISSERTAO DE MESTRADO

    Rubens Machado

    Santa Maria, RS, Brasil

    2015

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    VERDADE E JUSTIA NA OBRA TOTALIDADE E INFINITO

    DE EMMANUEL LVINAS

    Rubens Machado

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Ps-Graduao

    em Filosofia, rea de Concentrao em Fenomenologia e Compreenso, da

    Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para

    obteno do grau de

    Mestre em Filosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Silvestre Grzibowski

    Santa Maria, RS, Brasil.

    2015

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    Universidade Federal de Santa Maria

    Centro de Cincias Sociais e Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    A Comisso Examinadora, abaixo assinada,

    aprova a Dissertao de Mestrado

    VERDADE E JUSTIA NA OBRA TOTALIDADE E INFINITO DE

    EMMANUEL LVINAS

    elaborada por

    Rubens Machado

    como requisito parcial para obteno do grau de

    Mestre em Filosofia

    COMISSO EXAMINADORA:

    _____________________________________

    Silvestre Grzibowski, Dr. (UFSM)

    (Presidente/Orientador)

    _____________________________________

    Marcelo Fabri, Dr. (UFSM)

    _____________________________________

    Jos Tadeu Batista de Souza, Dr. (UNICAP)

    Santa Maria, 27 de maro 2015.

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    Ao Professor Silvestre Grzibowski, Dona Wilma Peiche Severo e

    minha filha Gabriela de Freitas Machado, em sinal de gratido,

    amizade e amor.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradecemos, em primeiro lugar, a Deus; no sei se ou se no-. Nem

    mesmo sei se apropriado falar de saber que j falar do ser e Deus, segundo

    nosso autor, vem ideia; e vem.

    Agradeo minha me Celina da Silva Machado e a meu pai Rub

    Trindade Machado, in memoriam.

    Ao governo do estado do Rio Grande do Sul, que concedeu licena e

    permitiu o afastamento das atividades do magistrio e deu apoio que permitiu a

    realizao da nossa pesquisa.

    Ao meu orientador e amigo, Silvestre Grzibowski, por estar presente com

    sabedoria e franqueza, por entender os momentos de dificuldade. Devo muito

    vossa inspirao e orientao.

    Aos professores e funcionrios da UFSM, aos mestres do curso de

    Filosofia, em especial aos professores Paulo de Jesus (UFSM), Marcelo Fabri

    (UFSM), Ricardo Timm de Souza (PUCRS), Jos Tadeu Batista de Souza

    (UNICAP). Aos rgos financiadores, CAPES e CNPq.

    Agradeo tambm Rejane Petry Ramos que me incentivou, estimulou e

    que em definitivo foi quem me fez voltar aos estudos. No posso deixar de

    agradecer a Cssia Rejane Peiche Severo que ofereceu suporte material

    importante, afinal imprevistos acontecem; ao Gustavo Martins pela acolhida e

    questionamentos bem como a sua esposa Rosane Schimidt pela generosidade.

    Gostaria de agradecer ao irmo que a vida me presenteou Felipe

    Bragagnolo que me abriu sua casa e seu corao em momento de fraqueza;

    quero agradecer ao Anerson Lemos e Rudimar Barea, Janilce Preseres, Edsel

    Diebe pelas palavras de apoio e incentivo. Sou muito grato tambm ao Gabriel

    Dietrich e Bruno De Pr pelos debates acerca da filsofia de Heidegger e Husserl,

    tanto na sacada do apartamento da Riachuelo como nos intervalos para o

    cafezinho o que comprova que a relao frente a frente fundamental para o

    filosofar. Agradeo ao Cristiano Cerezer por ter conduzido os encontros do

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    Grupo de Estudos de Fenomenologia e pela disponibilidade que sempre

    demonstrou em ajudar.

    A todos e todas minha profunda gratido.

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    O Mesmo e o Outro (Rubens Machado)

    O fruto

    a flor

    o boto

    so apenas momentos

    do mesmo

    na sua totalidade

    na sua totalizao;

    isso para uma

    Razo, um pensamento

    intencional que s

    pensa objetividade

    objetivao.

    Negros, vermelhos e amarelos

    tambm sofreram

    com a rgua, a espada

    o canho

    no processo da totalidade

    da totalizao!

    Incas, Astecas e Maias

    tambm no ficaram

    de fora da totalidade

    da totalizao

    obra da razo imanente

    do idntico

    da identificao.

    O Outro, absolutamente Outro

    o Outro enquanto Outro

    que no cabe na totalidade

    no objeto de objetivao

    no visada da inteno

    tem sua alteridade

    reduzida pela razo

    a um conceito ou representao

    axioma, definio

    violncia da identidade

    da identificao.

    A ideia do infinito

    no ideia, infinio

    Desejo, fome

    que se alimenta da prpria fome

    Desejo do invisvel

    o Outro enquanto Outro

    na sua outredade

    alheio totalidade

    totalizao

    Transcendncia

    infinio.

    A ideia do Infinito

    inadequada, inadequao

    limite da liberdade

    do Mesmo, da razo.

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    RESUMO

    Dissertao de Mestrado

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil

    VERDADE E JUSTIA NA OBRA TOTALIDADE E INFINITO DE

    EMMANUEL LVINAS

    AUTOR: RUBENS MACHADO

    ORIENTADOR: SILVESTRE GRZIBOWSKI

    Data e Local da Defesa: Santa Maria, 27 de maro de 2015.

    O propsito desta dissertao consiste em descrever o modo como Emmanuel Lvinas

    (1906-1995) concebe a noo de verdade (vrit) a partir da obra Totalidade e infinito: ensaio

    sobre a exterioridade, de 1961. Contudo, para que possamos desenvolver tal propsito

    necessrio descrever a sua concepo de justia (justice), que ir acompanhar todo o trabalho,

    e que nos leva diretamente a sua noo de rosto (visage) ou seria o contrrio? Tal itinerrio

    possvel de ser verificado quando estudamos a obra de Lvinas e de autores que estudam a

    sua obra. Podemos, tambm, verificar nos textos desses comentadores a relevncia dada

    ideia de Totalidade (Totalit). No que nosso autor seja um filsofo da totalidade; pelo

    contrrio. A ideia de totalidade funciona como uma imagem da filosofia ocidental, entendida

    como filosofia grega. Tal imagem funciona, tambm, como contraponto j que nosso autor

    introduz a ideia do Infinito que escapa totalidade e a totalizao. Assim, podemos dizer que

    o que interessa realmente a Lvinas fazer-nos ver que existem realidades que escapam ao

    poder totalizante da razo e que escapam mesmo da razo e seu poder constituinte. o caso,

    por exemplo, do rosto do outro homem (alteridade radical). O rosto do outro homem adquire,

    assim, um lugar central no nosso autor e, a nosso ver na prpria obra em exame, pois, o

    lugar mesmo da verdade; verdade esta no mais terica, mas verdade tica, ou metafsica j

    que o rosto no se presta a objetivao, seja do desvelamento seja da adequao. Esta verdade

    tica se torna possvel se tomarmos em considerao que o rosto a expresso da

    singularidade, do indivduo, nico a existir; singularidade esta que se torna possvel se a

    considerarmos como separada da totalidade. Neste sentido, o conceito de separao

    (sparation) a chave para acedermos relao entre entes singulares no englobados em um

    conceito, no formando unidade. Nosso trabalho seguir tentando mostrar que a partir da

    noo de justia noo, j que Lvinas considera que a justia no correlato da

    conscincia entendida como acolhimento de frente no discurso nosso autor abre a filosofia

    para a alteridade (altrit) atravs da exploso da estrutura formal noese-noema que torna

    possvel a tica e esta se apresenta, ento, como filosofia primeira j que as relaes entre os

    seres condio da prpria compreenso desses seres, se que tal compreenso possvel.

    Finalmente nos esforaremos para mostrar que para Lvinas a verdade precisa ser justificada,

    isto , precisa ser tornada justa ou que a verdade a prpria justia feita ao outro homem na

    medida em que acolhida a sua palavra, a sua expresso.

    Palavras-chave: Lvinas. Totalidade. Infinito. Rosto. tica. Alteridade. Justia. Verdade.

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    RSUM

    Thse de matrise

    Programme d'tudes suprieures en philosophie

    Universit Fdrale de Santa Maria, RS, Brazil

    VRIT ET JUSTICE DANS LVRE TOTALIT ET INFINI DE

    EMMANUEL LVINAS

    AUTEUR: RUBENS MACHADO

    CONSEILLER: SILVESTRE GRZIBOWSKI

    Date et lieu de la dfense: Santa Maria, le 27 mars 2015.

    Le but atteindre de cette dissertation consiste dcrire la manire comme Emmanuel

    Lvinas (1906-1995) conoit la notion de vrit partir de son uvre Totalit et Infini:

    essaie sur lextriorit date de1961. Par contre, afin quon pusse dvelopper un tel propos il

    savre ncessaire de dcrire la conception de justice quira accompagner toute son oeuvre, et

    qui nous amne sa notion de visage ou serait il le contraire? Tel cheminement peut tre

    vrifi quand on tudie luvre de Lvinas ainsi que dautres auteurs qui sont interesss dans

    son travail. On peut galement vrifier dans les crits des ces auteurs limportance donne

    lide de la Totalit. Ceci sans obligation que notre auteur soit consider comme um

    philosophe de la totalit, tout au contraire. Lide de Totalit fonctionne comme une image de

    la philosophie occidental, sous entendu comme la philosophie grecque. Une tel image

    fonctionne galement comme un contrepoint rlvant que notre auteur introduit lide du

    Infini quchappe la Totalit et la Totalisation. Ceci dit, on peut constater ce quinteresse

    rellement Lvinas cest de nous faire voir quexistent des ralits quchappent au pouvoir

    totalisateur de la raison ainsi et surtout comme de la raison et de son pouvoir constituant.

    Cest le cas, par exemple, du visage dun autre homme (altrit radical). Le visage de cet

    homme acquiert ainsi une place centrale avec notre auteur et, notre sens aussi dans loeuvre

    em tude, puisque cest lemplacement mme de la vrit, celle-ci nest plus thorique, mais

    une vrit thique ou methaphisique en observant que le visage ne se prte pas

    lobjectivation du dvoilement comme de ladquation. Cette vrit thique est possible si on

    prend en considration que le visage cest lexpression de la singularit, de lindividu, unique

    exister: singularit laquelle est tout fait possible si on la considre separe de la totalit.

    Dans ce sens, le concept de sparation est la clef pour acceder la relation entre sujets

    singuliers non compris dans un concept, sans former lunit. Notre travail porsuivra avec des

    essais afin de dmontrer quen partent de la notion de justice notion, puisque Lvinas

    considre que la justice nest pas en corrlat avec la conscience sous entendu la rcption

    frontal dans le discours de notre auteur sur la philosophie pour laltrit travers lexplosion

    de le structure formel noese noema qui rend possible lthique et celle- ci ce present alors

    comme philosophie premire en tenant compte que les relations entre les tres cest la

    condition de la propre comprhension de ces tres, en tenant compte de la possibilit de tel

    comprehension. Finalement, on fera des efforts pour dmontrer que pour Lvinas la vrit

    necessite une justification ,cest- - dire , a le besoin de devenir juste ou si on veut la vrit

  • 15 cest la propre justice faite lautre homme dans la mesure o sa parole et sa expression sont

    bien reus.

    Mots clefs: Lvinas. Totalit. Infini. Visage. Altrit. Justic.

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    SUMRIO

    APRESENTAO............................................................................................................ 18

    INTRODUO .................................................................................................................. 26

    CAPTULO I - ROSTO E VERDADE ...................................................................... 30 1.1 Introduo ......................................................................................................................... 30

    1.3 Rosto e enigma .................................................................................................................. 36

    1.4 Rosto e vestgio .................................................................................................................. 41

    1.5 Rosto e Infinito .................................................................................................................. 45

    1.6 Rosto e tica ....................................................................................................................... 48

    CAPTULO II SEPARAO E VERDADE ....................................................... 50 2.1 Introduo ......................................................................................................................... 50

    2.2 Totalidade e totalizao: filosofia e ontologia ................................................................ 50

    2.3 Interioridade e separao ................................................................................................ 56

    CAPTULO III VERDADE E JUSTIA .............................................................. 70 3.1 Introduo ......................................................................................................................... 70

    3.2 Justia ................................................................................................................................ 72

    3.3 Justia e linguagem ........................................................................................................... 78

    3.4 Justia e verdade ............................................................................................................... 85

    CONCLUSO .................................................................................................................... 90

    REFERNCIAS ............................................................................................................... 100

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    APRESENTAO

    Emmanuel Lvinas nasceu em Kovno, Litunia em 1906. Em 1923 vai para a Frana

    estudar Filosofia em Estrasburgo e conhece Maurice Blanchot, que ser seu amigo. Nos anos

    de 1928 e 1929 vai para Friburgo estudar com Husserl. Assiste ao seminrio de Heidegger e

    participa do famoso encontro de Davos entre Heidegger e Cassirer sobre Kant. Em 1930, com

    apenas 24 anos, publica sua tese de doutorado: Thorie de lintuition dans la phnomnologie

    de Husserl. Com este trabalho Lvinas adere Fenomenologia e introduz esta na Frana1. A

    filosofia, desde sua origem supostamente na Grcia recebe de Lvinas uma interpretao

    aguda. Porvezes feroz. A ideia de universalidade em que o formalismo a sua maior

    expresso, combatida por nosso autor porque essa universalidade apagou da cena a

    concretude do ente humano na sua singularidade a insistncia na singularidade rendeu

    filosofia de Lvinas o ttulo de empirismo; porm, ele tambm descreve uma universalidade:

    o rosto do outro homem, que no da ordem emprica ; singularidade esta que pode ser

    verificada no amor e tambm no dio, no nome e no apelido. Afinal, a quem amamos?2 Um

    universal? lamore d accesso allunicit. Lindividuo nico amato (LVINAS;

    RICUR, 1998, p. 78) A quem odiamos? Um universal? A quem estendemos a mo...

    quem nos estende a mo quando estendemos ou quando nos estendida? Numa palavra: um

    conceito universal abstrato? A quem perdoamos quando perdoamos? A quem culpamos

    quando culpamos? este quem (qui) mais do que o qu (quoi) ou o como (comme) Lvinas

    no faz uma filosofia do mtodo, apenas se utiliza de um mtodo para fazer filosofia; mtodo

    este que a fenomenologia que interessa a Lvinas, ainda que a sua filosofia tenha

    encontrado na fenomenologia objeto e mtodo; objeto que se viu depois no se tratar de um

    objeto, porm, o sujeito ou subjetividade. E por isso a sua filosofia chamada de tica; afinal,

    acaso um conceito morre ou mata? Nos comportamos com conceitos quando operamos no

    dito, contudo nos comportamos com pessoas quando operamos no dizer. Se a diferena entre

    ser e ente a diferena ontolgica, a diferena entre dizer e dito a diferena tica, ou a no

    1 Infelizmente no dispomos, ao alcance do pblico brasileiro, as biografias escritas sobre Levinas. Contudo,

    encontramos uma descrio a partir do prprio Levinas acerca da sua infncia e adolescncia na entrevista

    concedidad a Philippe Nemo & Franois Poir e disponvel em Cadernos de Subjetividade, So Paulo, 5 (1); 9-

    38, dezembro, 1997. Nesta verso encontramos relatos que no se encontram na obra tica e infinito (1982). 2 A propsito, a figura feminina a primeira figura (para usar um termo hegeliano) da alteridade para Levinas

    dada a especificidade do feminino, que foi integrada na filosofia da totalidade entendida como sistema. Da,

    tambm, a importncia de noes tais como de fecundidade, morada, filho, paternidade, etc. Portanto, para nosso

    autor a primeira entidade que abala a filosofia da totalidade a mulher. Depois a noo de alteridade vai ser

    ampliada para outros entes inclusive realidades no caracterizadas como entes; o caso, por exemplo, de Deus,

    do tempo, da morte e do rosto do Outro. Trata-se de realidades que escapam verdade do ser (desvelamento) ou

    da verdade lgica (adequao)

  • 19 indiferena a diferena. Por isso o nosso filsofo chamado de filsofo da alteridade. Isso

    porque, segundo Lvinas, a filosofia tem sido na maior parte das vezes uma ontologia, uma

    reduo do Outro ao Mesmo, tambm chamada por ele, tal reduo, de guerra ou totalizao.

    Visivelmente influenciado pelo pensamento de Heidegger3, que havia publicado em

    1927 a obra Ser e tempo e que para Lvinas foi uma das mais importantes de toda a histria da

    filosofia, a sua tese de doutorado apresenta o modo como Husserl concebe o Ser em franca

    oposio ao naturalismo que, para seu mestre, reduzia toda a realidade natureza at mesmo

    os processos conscientes especialmente as operaes lgicas e matemticas. Segundo

    Lvinas, Husserl estabeleceu um novo mbito do ser, o da conscincia. Trata-se de uma obra

    de leitura obrigatria, a nosso juzo, para quem se ocupa da filosofia de Husserl. Por outro

    lado, podemos vislumbrar nesta obra a manifestao de pelo um aspecto da obra de Husserl

    que deixa Lvinas descontente: o que ele chama de o primado do terico, ou ato objetivante.

    A resistncia ao primado do terico como a intuio fundamental da sua filosofia ir, de certa

    forma, marcar a obra posterior de filsofo lituano e quem sabe essa intuio esteja j assinada

    por sua formao judaica. Lvinas morreu em Paris, em 25 de dezembro de 1996 deixando

    uma obra cujo eixo a Alteridade. A tica, para Lvinas, no se apresenta como um ramo da

    filosofia, mas a filosofia primeira. A questo acerca do estatuto de filosofia primeira tema de

    debates no contexto da filosofia. Dada a importncia que a noo de filosofia primeira assume

    no pensamento de Lvinas da maior importncia ver como ele a entende e define.

    A filosofia de Lvinas se caracteriza por um dilogo constante com a tradio4. Porm,

    este dilogo marcado por uma tenso, por uma tentativa de superao de uma filosofia que,

    nas suas palavras, dominada por um clima ontolgico. Este clima expresso na noo de

    saber, conhecimento, tematizao. Talvez Lvinas no tenha defendido seno uma nica tese:

    a necessidade de sair do ser, da ontologia que tambm chamada por ele de guerra. Lvinas

    no quer apenas descrever esta filosofia, ou denunciar seu carter indiferente s diferenas;

    3 Levinas reconhece esta influncia no dilogo com Philippe Nemo, depois publicado na forma de livro

    intitulado tica e infinito, com traduo de Joo Gama; Lisboa, Edies 70, s/d, p.31. Talvez o leitor encontre

    demasiada referncia ao filsofo alemo nesta dissertao, porm inevitvel. No que Levinas seja seguidor de

    Heidegger. Pelo contrrio, pois justamente a filosofia do filsofo alemo que atua como contraponto a sua tese

    fundamental de situar a tica como filosofia primeira. Nesse sentido vale as consideraes presentes no nosso

    trabalho e que questionam a primazia da compreenso do ser como a atitude primeira do filosofar. Embora a

    filosofia no possa prescindir de uma ontologia, nosso autor questiona o seu carter fundamental. 4 A j clssica distino entre ser (saber) e dever ser (tica), pode servir para caracterizar a filosofia de Levinas

    que se constitui mais pela tica do que pelo saber (teoria). No entanto, e o nosso autor o reconhece, a sua

    filosofia a que encontramos em Totalidade e infinito ainda se encontra embebida de elementos ontolgicos.

    Basta dizer que a sua tese fundamental consiste em deixar ser o Outro (laisser tre lautre) o que implica que o

    Mesmo, o Eu, o sujeito levinasiano acolhedor e hospitaleiro deve adotar nova postura frente a alteridade; no

    mais pens-la como outro eu (alter ego) o que equivaleria a reduz-lo ao Mesmo , nem mesmo trat-la a partir

    de um conceito [universal]: o ser. Trata-se, ao contrrio, de le laisser sexprimer partir de lui-mme (CALIN;

    SEBBAH, 2005, p. 43).

  • 20 ele procura super-la a partir dela mesma seguindo as suas regras e algumas vezes superando-

    as, criando novas perspectivas. Nesse sentido, seu objetivo fundamental identificar a sua

    condio, seguindo a orientao kantiana que concebe a filosofia como crtica, ou seja,

    remontar aqum da sua origem. Lvinas no se impe como tarefa erigir uma tica; a tica,

    para ele, a nica via possvel para abordar o que lhe parece essencial: a relao homem a

    homem, relao esta que ele considera metafsica (mtaphisique), ou ainda tica (thique).

    Trata-se, pois, de uma filosofia engajada; engajada com uma utopia- o lugar da relao tica

    (...) crer na paz em estado de guerra (SOUZA, 2004, p. 179) , a utopia de um humanismo do

    outro homem. No por acaso que Lvinas anuncia a sua filosofia comprometida com a

    hospitalidade, com o acolhimento do Outro. Contudo, no se trata de boa vontade. O Outro

    enquanto Outro, expresso consagrada por Lvinas em oposio ao ser enquanto ser ,

    resiste aos poderes de uma filosofia totalizante; no se trata de opo ideolgica ou de

    preferncia pessoal. O que ocorre que Outrem no afeito a uma abordagem terica;

    Outrem no objeto; a presena do Outro sua exigncia tica (SOUZA, 2004, p. 175).

    A nosso ver, o discurso tico de Lvinas, que tem como seu epicentro o conceito de

    alteridade vai aos poucos minando o discurso ontolgico a ontologia fundamental? com

    proposies do tipo: eu no posso falar de mim e do outro no mesmo sentido; o que estou no

    direito de exigir de mim mesmo no se compara com o que estou no direito de exigir do outro

    experincia moral concreta (LVINAS, 1980, p. 41, grifo nosso); ou ainda, a mais

    lumisosa evidncia, sob a qual repousa a ontologia consiste no fato de que as relaes entre os

    seres que j implica pluralidade, logo singularidades anterior a compreenso desses seres

    mesmos; ou ainda, o rosto significa a partir de si mesmo e no a partir de uma totalidade ou

    de um conjunto de remisses ordenadas a um fim. O discurso tico, ao contrrio do discurso

    ontolgico, no est assentado na ideia de uma totalidade finita e definida o ser do ente e

    sim na assimetria, na impossibilidade de Eu e o Outro constituirmos sistema, totalidade; a

    tica pressupe relaes e essas a existncia de entes singulares, separados. O vigor de tal

    singularidade pode ser atestado pelo conceito de vida interior, ou psiquismo cuja realidade

    inatingvel e, portanto inintegrvel no processo do desvelamento. Essa vida interior, cuja

    expresso o rosto ou a palavra do Outro s pode ser acolhida, recebida; no compete ao Eu

    descrever esta vida interior cujo modo de ser consiste precisamente em no se deixar desvelar:

    a sua verdade o seu ocultamento, seu velamento ao ser descobridor. Este o ponto de

    ruptura com a filosofia do Todo e o ponto problemtico da filosofia de Lvinas que quer ser

    filosofia da pluralidade. O conceito de plural se levado s ltimas consequncias nos conduz

    ideia de Infinito; ou melhor, a ideia de Infinito em ns que nos conduz filosofia plural

  • 21 porque o Outro, na epifania do seu rosto, escapa a todo instante aos poderes objetivantes do

    Mesmo, ao conceito, definio que seria seu fim como Outro.

    Pensamos que a presente dissertao de mestrado se justifica por trazer ao pblico uma

    pesquisa que visa a dar maior acesso ao pensamento do filsofo lituano-francs e por abordar

    uma noo de verdade que poderamos chamar de original, isto , uma concepo que pretende

    apresentar a condio da verdade e que a situa antes mesmo da sua relao ao ser e a sua

    definio como adequao ou desvelamento. Lvinas mesmo afirma que no contra a teoria

    ou o intelectualismo, mas que preciso considerar o que torna possvel a verdade, ou seja, as

    relaes interhumanas que se constituem fundamentalmente como ensino. Neste sentido

    importante mencionar que a concepo levinasiana da verdade nos remete ao que poderamos

    chamar o seu projeto maior que o de situar a tica como filosofia primeira que se expressa em

    noes como alteridade, infinito, rosto, assimetria, justia, frente a frente. Portanto, torna-se

    inevitvel vincular as discusses acerca da verdade com este projeto que, a nosso ver, se

    tornaria incompreensvel.

    Pensamos que a abordagem apresentada por Lvinas faz-nos pensar em situaes

    concretas do viver em sociedade e at mesmo repensar episdios histricos que, a partir dessa

    abordagem, adquirem um novo significado, uma nova interpretao. o caso, por exemplo, da

    chegada do europeu no continente americano e relao que estes estabeleceram com a cultura

    nativa (diferente), ou ainda, o encaminhamento dado s relaes com os povos africanos. Quer

    dizer, h, em Lvinas, uma preocupao com a relao entre as pessoas e o modo como se d

    esta relao. Ao que parece, ele constata que as relaes interhumanas so marcadas por uma

    relao de poder, a possibilidade constante do Mesmo anular o Outro. Parece que, ao pensar

    esta relao, Lvinas prope outros termos. Ele fala em respeito, bondade, justia,

    responsabilidade. Quer-nos parecer adequado realizar esta pesquisa, trazer para o debate

    filosfico cada vez mais as questes levantadas por Lvinas e em especial a questo do

    encontro entre Eu e o Outro o encontro entre duas subjetividades que no deve ser tratada

    apenas como relao de dominao.

    A filosofia de Lvinas, que coloca a tica como prima philosophie ( )

    o que significa situar o Bem aqum e alm do Ser, ou seja, o Ser Obra do Bem e o Bem a

    vocao do Ser, a hospitalidade, acolhimento do Outro e no a perseverana no prprio ser

    e que transforma o amor sabedoria em sabedoria do amor (responsabilidade pelo Outro

    homem), tambm matriz para um pensar responsvel acerca das relaes que o homem

    estabelece com a natureza, com o meio ambiente que compreende o conjunto dos entes vivos e

    no vivos, humanos e no humanos. Coloca a possibilidade de um pensar responsvel acerca do

  • 22 modo como o homem se comporta frente aos recursos naturais renovveis e no renovveis;

    coloca a possibilidade de colocar em questo a racionalidade tecnolgica. Enfim, a orientao

    que segue a filosofia de Lvinas como tica da alteridade e que coloca o Eu como

    responsvel pelo Outro mais do que por si mesmo faz desta filosofia e deste filsofo uma

    referncia para pensar o agir humano, um pensar que coloca em questo a liberdade sem

    limite, a liberdade fundada em si mesma, e prope um outramente que ser, um outro modo de

    se relacionar com o Outro, o diferente.

    Portanto, pensamos que a presente dissertao se justifica tambm por abordar uma

    filosofia que oferece um modo de pensar o presente, o passado e o futuro baseado numa

    inteligibilidade no mais terica, mas tica e que tem como centro o humano do homem. Isto

    porque a filosofia de Lvinas comprometida com as relaes humanas. Se uma filosofia

    prope que pensemos a relao entre cada indivduo no como relao em que eu elimino as

    diferenas para que ela (relao) possa ser, mas como relao onde o diferente possa ser

    diferente, ento ns nos encontramos frente a uma filosofia da paz, da justia (responsabilidade

    para com o prximo). Bem, quem sabe devssemos perguntar se faz sentido falar em

    singularidade ou unicidade do nico o que implica em indagar se nos reconhecemos a partir de

    ns mesmos ou se buscamos o que nos mais prprio fora de ns mesmos o que significaria ao

    final admitir que no sejamos nicos e singulares e sim apenas uma imagem projetada em uma

    totalidade que serviria como a luz que nos ilumina e que empresta para cada um no a sua

    unicidade, mas apenas um exemplar dessa totalidade mesma; tambm deveramos indagar se

    falamos com algum ou se apenas comungamos de um logos que expressaria a totalidade do

    sentido ou do que faz sentido. Sem dvida que o ideal de uma racionalidade que fosse capaz de

    antecipar o pensvel, seja em ato ou em potncia tem sido a idealidade ou o idealismo em suas

    ltimas consequncias, porm no podemos falar de ns mesmos e dos outros no mesmo

    sentido sem incorrer no risco de nos enganarmos redondamente. Os jovens que o digam.

    Sedentes por originalidade desafiam em cada esquina qualquer tentativa de totalizao. Alis,

    Lvinas utiliza o exemplo da guerra como resistncia totalizao. Por paradoxal que possa

    parecer, a mesma guerra que tenta impor a universalizao, ou universalidade, seja poltica,

    seja ideolgica. Onde poderamos encontrar o germe desta mentalidade blica onde a diferena

    sempre tratada em termos da necessidade de reduzi-la? Lvinas no tem dvidas quanto a

    isto: a filosofia da totalidade que se chama ontologia, ou a reduo da alteridade identidade;

    identidade do Mesmo.

    Para que serve escrever uma dissertao? Para figurar no panteo bibliotecrio ou nos

    fazer indivduos melhores? Acreditamos na segunda hiptese e pensamos que a filosofia de

  • 23 Lvinas capaz de despertar este sentimento de hospitalidade e acolhimento do Outro que me

    vem de uma altura e que, portanto no est no mesmo nvel que eu. Assim, pensamos que o

    investimento nessa pesquisa de mestrado est plenamente justificado principalmente se

    considerarmos que a nossa atividade de educador ser enriquecida com a conduo sala de

    aula da noo de alteridade e da proposio segundo a qual o Outro no se presta ao domnio,

    posse e sim responsabilidade. Concomitante noo de alteridade ressalta a necessidade de

    reconhecer a diferena como elemento enriquecedor das relaes interhumanas e a

    possibilidade da paz com o Outro to necessria nas salas de aula e nas escolas sejam

    municipais, estaduais ou federais; a possibilidade de sugerir um pensar que seja capaz de

    acolher o Outro na sua singularidade sem querer reduzi-lo a um universal; reconhecer a

    maravilha do Outro meu Mestre.

    O que fizemos aqui pode-se dizer que no est pronto. E jamais ficar pronto porque a

    ideia que orienta a filosofia da alteridade a de Infinito e no a de Totalidade. Pensamos que

    esta uma boa maneira de interpretar o que Lvinas quer nos dizer quando fala da ideia do

    Infinito em ns, isto , a certeza de que no existem certezas e sim um constante processo de

    construo e reconstruo a partir do construdo sempre desdizendo o dito para redizer sem

    que intervenha aqui nenhuma ideia de determinismo havendo assim espao para a liberdade.

    Quer dizer, devemos nos acostumar, definitivamente, com a ideia de que a atividade do

    pensamento se assemelha s notas musicais que, embora finitas assim como as letras, os

    nmeros , abrem a porta do Infinito, pois, assistimos ao constante surgimento de novas

    msicas, novas melodias que nos levam a adorao da ideia do Infinito. Constatamos, a partir

    da filosofia de Lvinas, que a ideia do Infinito muito mais fecunda e imprime em ns um

    sentimento de humildade j que ela nos vem de uma altura to grande que s pode ser chamada

    de tica.

    O que dizer sobre a importncia da filosofia de Lvinas no contexto da filosofia e da

    cultura?

    Lvinas introduz no pensamento ocidental tambm chamado de filosofia, sabedoria

    das naes a ideia do Bem alm do Ser o Bem como o Outro do Ser, ou o outramente que

    ser e o mais ignuo em assuntos de filosofia capaz de reconhecer a magnitude de tal

    empresa ; outramente que ser ou ser-para-o-outro: bondade.

    Ora, se o Ser se descreve no dito, e se escreve como totalidade o Bem no se descreve

    porque transborda qualquer tentativa de determinao; dado que infinito se acolhe e doa; se

    o Ser habita na linguagem, o Bem se pratica nas relaes entre os homens que Lvinas

    chama de justia, frente a frente, nico a nico. O Bem habita nas aes e a sua primeira

  • 24 manifestao a resposta que dou ao Outro e que me faz, antes de tudo, responsvel e

    como no trazer a alteridade para a reflexo filosfica quando esta mesma alteridade que

    torna possvel a reflexo? responsabilidade que me individua como indivduo e me faz ser

    [responsvel]; logo, pelo Bem que recebo meu ser; ser criado ou tico; ser criado ou em

    dvida para com Outrem.

  • 25

  • 26

    INTRODUO

    Esta dissertao tem como propsito apresentar um tema essencial da filosofia de

    Emmanuel Lvinas (1906-1995). Trata-se da sua noo de verdade (vrit). Para tanto,

    efetivamos uma exposio da sua noo de rosto (visage) tal como concebida na sua

    primeira grande obra Totalit et infini: essai sur lextriorit, de 1961; o rosto como o

    prprio do sujeito como uma tentativa de salvaguardar o prprio como prprio, como

    nico (PETROSINO, 1993, p. 123, grifo do autor)5, o homem na absoluta singularidade de

    seu prprio ser, em seu ser que fixam o nome e o apelido, saiu do mundo que se sabia

    pensvel, saiu do Todo da filosofia (ROSENZWEIG, 1997, p. 50)6; trata-se, ento, de

    enfrentar uma filosofia em que a universalidade do esprito est fortemente consolidada, e a

    singularidade, como convm, tornou-se tanto mais insignificante (HEGEL, 2001, p. 62).

    esta tradio e nomes como o de Hegel cuja dialtica acabou por identificar o identico e o

    no-identico, o Mesmo e o Outro em uma totalidade7 que Lvinas se prope enfrentar na sua

    defesa da singularidade a partir da noo de alteridade ou da ideia de Infinito, pois, eu posso

    substituir a todos, mas ningum pode me substituir. Tal a minha identidade inalienvel de

    sujeito (LVINAS, 1982, p. 93). Tarefa rdua, caminhos tortuosos. Lvinas faz da

    ambiguidade um mtodo, porm esta tarefa pode ficar menos rdua se considerarmos que

    Lvinas quer fazer uma defesa da subjetividade como acolhedora, como hospitalidade onde

    no prevalece o esprito blico que caracteriza a filosofia totalizante.

    Em uma segunda etapa da pesquisa, e que constitui o seu segundo captulo, nos

    propomos, tendo como fio condutor da pesquisa a noo de rosto, apresentar o conceito de

    separao (sparation), pois, sem separao, nos diz Levinas, no teria havido verdade,

    apenas teria havido ser (LVINAS, 1980, p. 48).

    5 A noo de nico recusa do conceito (LVINAS, 1980, p. 103) (j diferente de unidade que remete

    totalidade), central no pensamento de Levinas, tomada da filosofia de Plato mais precisamente do seu dilogo

    Parmnides e de Plotino em Enades V. O Uno se descreve como alheio definio e ao limite, ao lugar e ao

    tempo, identidade consigo e diferena relativamente a si, semelhana e dissemelhana, alheio ao ser e

    conscincia de que, alis, todos esses atributos constituem as categorias. Ele outra coisa que no isso,

    absolutamente outro e no em relao a qualquer termo relativo. Ele o Irrevelado; irrevelado, no porque todo

    conhecimento fosse demasiado limitado ou demasiado pequeno para receber a sua luz, mas irrevelado porque

    Uno (...). O Uno est para l do ser, no por ser dissimulado e oculto. Est dissimulado porque est para l do

    ser, totalmente diferente do ser (LVINAS, s/d, p. 230, grifos do autor). As categorias, aqui apresentadas por

    Levinas, so justamente aquelas que permitem descrever o ser ou permitem saber do ser. Um ente que no se

    submete s categorias do ser ou que no se reduza a estas no pode ser apreendido ou compreendido e nesse

    sentido desafia o pensamento e exige ser escutado, acolhido. 6 El hombre en la absoluta singularidad de su ser prprio, en su ser que fijan el nombre y el apellido, sali del

    mundo que se saba mundo pensabel, sali del Todo de La filosofia. 7 Ao final, tudo se acalma no Mesmo, como em Hegel, verifica-se a identidade do idntico e do no-idntico

    (LVINAS, 2008, p. 117).

  • 27 Finalmente no terceiro captulo, desenvolveremos a considerao que Lvinas

    estabelece entre verdade e justia; justia entendida como acolhimento. Isso se deve ao fato de

    Lvinas estabelecer uma relao entre verdade e justia quando ele afirma que a verdade

    supe a justia. Por outro lado, Lvinas nos faz pensar a noo de justia como acolhimento,

    o que indica uma relao que no se caracteriza como dominao ou posse; relao no

    alrgica com a alteridade.

    A noo de verdade na obra de Lvinas, tratada no conjunto do seu pensamento, e no

    apenas na obra a que iremos nos deter, mereceu um estudo bastante complexo e profundo por

    parte do filsofo-telogo mexicano Francisco Xavier Snches Hernndez8. Trata-se, pois, de

    uma pesquisa cujo foco central a questo da verdade em Lvinas. uma obra, no nosso

    modo de ver, de consulta obrigatria para quem pretende pesquisar esta questo no

    pensamento de Lvinas, mas no somente. O autor faz uma retomada de como autores como

    Edmund Husserl e Martin Heidegger mestres de Lvinas , tratam da questo da verdade

    para melhor situar o modo como Lvinas a constitui. Na nossa dissertao seguiremos

    algumas orientaes importantes sugeridas por Hernndez. importante destacar que a

    publicao da segunda maior obra de Lvinas Autrement qutre ou au-del de lessence

    acabou por atrair a ateno dos pesquisadores da sua filosofia. Assim, se a questo da verdade

    na obra de Lvinas ainda no havia atrado a ateno dos especialistas com a publicao de

    Autrement qutre que, segundo Hernndez (2009, p. 231) uma tournant, uma virage

    em sua filosofia, essa questo abordada a partir desta obra9. No o caso de Hernndez que

    dedica a maior parte da sua obra ao exame da questo no contexto de Totalidade e infinito, o

    que justifica nossas referncias a sua obra especialmente no terceiro captulo desta

    dissertao. Pareceu-nos apropriado citar algumas passagens da obra Der Stern der Erlsung,

    de Franz Rosenzweig10 haja vista que o prprio Lvinas lhe reconhece a importncia quando

    declara que esta obra se encontra demasiadas vezes presentes neste livro para ser citado

    (LVINAS, 1980, p. 15). Contudo, o leitor vai verificar que a dissertao est ancorada em

    muitos outros autores que tem a filosofia de Lvinas como objeto de suas pesquisas e que

    devero dar sustentao as nossas formulaes. Assim, podemos dizer que a metodologia

    seguida a de reviso bibliogrfica lendo as obras de Lvinas, contudo sempre apoiado nos

    comentadores.

    8 HERNNDEZ, Francisco Xavier Snches. Vrit et justice dans la philosophie de Emmanuel Lvinas. Paris:

    LHarmattan, 2009. importante salientar que Snches tem como foco a obra de Levinas enquanto o nosso est

    circunscrito obra Totalidade e infinito no tendo, portanto, a pretenso de abranger o conjunto da obra de

    Levinas. 9 o caso, por exemplo, de Petrosino (1993) em seu texto LIde de vrit dans luvre dEmmanuel Lvinas. 10 Para esta dissertao adotamos a traduo castelhana de Miguel Garca-Bar La estrella de la redencin

    (1997).

  • 28 Consoante s teses de Lvinas nos propomos defender a hiptese de que para nosso autor

    a verdade o Outro na nudez do seu rosto; nudez esta irredutvel a uma forma, nudez que

    resiste posse e que apela acolhimento e hospitalidade.

  • 29

  • 30

    CAPTULO I - ROSTO E VERDADE

    1.1 Introduo

    O que pretendemos neste primeiro captulo, cujo ttulo Rosto e verdade tentar

    mostrar como, para Lvinas, o rosto intervm no real de um modo absolutamente diferente:

    trata-se de um modo que no se descreve pela ontologia, pois o rosto no fenmeno. Ao

    contrrio, trata-se de um outramente que ser, ou bondade, acolhimento a substituio do ser

    pelo Outro. Nesse sentido queremos mostrar que nosso autor se utiliza de termos como

    alteridade, bondade e em especial a ideia do Infinito. a ideia do Infinito em ns que serve

    como fundamento para apor ideia de totalidade uma realidade cuja principal caracterstica

    interpor uma resistncia aos poderes totalizantes da razo terica e que inaugura,

    efetivamente, a tica e deste modo a prpria filosofia; por conseguinte, um outro modo de

    conceber a noo de verdade entendida como verdade tica. Tentaremos, tambm, mostrar

    que Lvinas no se impe a tarefa de constituir uma tica, de construir uma moral; para nosso

    autor trata-se de revelar a relao tica que tem lugar entre os homens e a metafsica contida

    no frente a frente, encontro com outrem ou justia que revela o que ele tem de nico e que

    abertura para o infinito. Para Lvinas, fenomenlogo, o retorno s coisas mesmas envia

    transcendncia da relao frente a frente ou justia o que equivale ao retorno concretudo

    das relaes interhumanas e no s vivncias imanentes da conscincia; trata-se de procurar

    a experincia esquecida da qual vive o pensamento e que envia s relaes sociais.

    1.2 Rosto e fenmeno

    a) Verdade e infinito

    A filosofia de Lvinas um resgate do nico e insubstituvel, resgate de cada homem que

    tem a sua individualidade inscrita no seu rosto que indica uma resistncia; resistncia tica

    que no faz violncia, porm marca um limite. Nesse sentido podemos dizer que a filosofia de

    Lvinas uma defesa da paz; no se trata do amor sabedoria e sim sabedoria do amor:

    Talvez em ltima instncia o ncleo do pensamento de Lvinas seja uma mensagem

    dramtica e angustiada em defesa da sobrevivncia do homem. O nico meio de

    acabar com o rosrio de genocdios devidos a instaurao do reinado da violncia

    sobre a terra descobrir o carter incomparvel, irredutvel e nico de cada homem.

    Cada homem cai irremissivelmente fora de todo sistema, introduz uma desordem em

    toda legalidade generalizadora e esta vai destruindo o sentido da humanidade ao

  • 31 reduzir os homens a peas intercambiveis dentro de uma engrenagem annima

    dominada pelo geral (RAMOS, 1981, p. 177, grifo nosso)11.

    Para Lvinas, o conceito de homem indefinvel pelo fato mesmo da unicidade de

    cada um.

    Na filosofia da totalidade, nos sistemas totalitrios- sistemas que no se propem

    seno marcar todos com o ferro da desesperao e fundir as individualidades em uma massa

    indiferenciada- o rosto desaparece (CHALIER, s/d, p. 82)12.

    No seu processo de totalizao sistema do universal abstrato , tal filosofia apaga

    toda individualidade a tirania do universal abstrato anulando a singularidade dos nomes e as

    singularidades humanas que torna possvel a pluralidade, condio da tica, da justia e da

    prpria linguagem13 e por consequncia da prpria verdade, pois, como poderamos falar de

    verdade se no houvesse relaes entre os indivduos, se no existisse a comunicao, as

    relaes intersubjetivas14. Contudo, Lvinas encontra, no interior mesmo da totalidade, uma

    experincia chamada por ele de irredutvel, isto , irredutvel a uma relao noese-noema,

    teortica, intencional. Trata-se da relao frente a frente, a sociedade e seu significado moral.

    Na relao frente a frente, ou justia, o sujeito se depara com uma realidade transcendente: o

    rosto do outro homem, que no da ordem da viso e que indica o metafsico e a Metafsica.

    11 Quiz en ltima instancia el ncleo del pensamiento de Lvinas sea un mensaje dramtico y angustiado en

    favor de la supervivencia del hombre. El nico mdio para acabar con el rosario de genocdios debidos a la

    instauracin del reino de la violencia sobre la tierra es descobrir el carter incomparable, irreductible y nico de

    cada hombre. Cada sujeto cae irremisiblemente fuera de todo sistema, introduce un desorden en toda legalidad

    generalizadora y esta va destruyendo el sentido de la humanidad al reducir los hombres a piezas intercambiables

    dentro de un engrenaje annimo dominado por lo general. 12 ... en los sistemas totalitarios sistemas que no se proponen sino marcar a todos com el hierro de la

    desesperacin y fundir las individualidades en una masa indiferenciada-, el rosto debe desaparecer. 13 A questo da linguagem na filosofia de Levinas objeto da obra de Etienne Feron De lide de transcendance

    la question du langage: litinraire philosophique de Lvinas, Grenoble; J. Millon, 1992. Trata-se de uma obra

    extensa e complexa e na qual o autor nos adverte do seguinte: Sil est vrai en effet que, comme le suggrent

    dj les premires pages de Totalit et infini, la relation avec autrui est essentiellement langage, si lthique est

    insparable de la parole et si la transcendance saccompli dans le discours, il nest pas arbitraire de penser que la

    question du langage pourrait bien tre le moteur de toute la philosophie de Levinas.

    Cest cette intuition qui a nourri et orient la recherche ici expose et qui sest trouve sans cesse mieux

    confirme par les textes de Levinas mesure quelle progressait. La thse laquelle elle conduit affirmer que

    la relation thique, qui apparat avec vidence comme le motif dominant de luvre de Levinas, nen constitue

    cependant pas la problmatique fondamentale et que celle-ci nest en ralit fournie que par la question du

    langage. Axe central autour duquel la philosophie de Levinas se dploie, la problmatique du langage rgit

    larticulation des diffrents thmes thiques danalyse en mme temps quelle guide tout un cheminement o elle

    devient progressivement conscient delle-mme en tant que question philosophique directrice (FERON, 1992,

    p. 7-8, grifos do autor). A questo da linguagem na filosofia de Levinas, como fica clara pela citao acima,

    central. Contudo, abordar tal questo nos remeteria para alm dos limites desta dissertao. Ao nosso parecer no

    a questo da linguagem que orienta as reflexes de Lvinas mas, antes, a questo tica, ou frente a frente, que

    orienta suas anlises da linguagem, pois a tica, ou justia entendida como frente a frente o ponto de partida da

    filosofia e condio da linguagem e no o contrrio. Assim, entendemos que Feron reduz a filosofia de Levinas a

    uma filosofia da linguagem. bem verdade que o comentador prope uma distino entre problema (problme)

    e questo (question) pretendendo assim situar o tema dominante e o problema fundamental. Segundo sua anlise

    o tema dominante a questo tica, porm a questo fundamental a da linguagem. 14 Levinas utiliza poucas vezes a expresso relaes intersubjetivas. Encontramos com mais frequncia a

    expresso interhumana ou ainda frente a frente.

  • 32 O rosto, para Lvinas, se apresenta como resistncia totalidade; no por uma insuficincia

    da totalidade, da totalizao que provm do Eu (Mesmo), mas pelo surgimento do Infinito de

    Outrem. A ideia de totalidade e a ideia de Infinito, nos diz Lvinas, diferem precisamente

    por isso: a primeira puramente teortica, a outra moral (LVINAS, 1980, p. 70). a

    partir da ideia do Infinito15 entendida como ideia inadequada, isto , como ideia que

    transborda o cogito que Lvinas descreve o rosto e a partir do rosto que Lvinas descreve o

    Outro. Se que podemos falar em descrio em se tratando do rosto j que

    Para Levinas, a descrio do rosto no se contm, pois, nos limites estritos de uma

    fenomenologia, se se entende por tal coisa, com Husserl a quem Levinas tanto

    recorre , um esforo por descrever um fenmeno neste caso, o rosto tal como se

    d a uma conscincia que o pensa e trata de discernir sua essncia valendo-se de

    muitas tentativas de aproximao. Levinas mesmo reconhece, por um lado, que, se

    bem comea com Husserl, o que diz j no est em Husserl (CHALIER, s/d, p.

    83-84)16.

    Nesse sentido, podemos dizer que ao deslocar o problema da verdade ao no objetivvel

    o rosto Lvinas permite confrontar o ideal grego de verdade com uma inteligibilidade

    anterior e condicionante: a do rosto na sua nudez; nudez que nenhuma forma seja plstica

    ou lgica descreve, pois, o rosto se d escapando, se apresenta como ausncia. Neste sentido o

    rosto vestgio. O rosto no pode ser dito; no pode ser descrito nem desvelado porque um

    discurso sempre anterior ao discurso que o quer desvelar. Ele o desejo mais profundo do

    sujeito, sua vocao ltima. Se a filosofia nasceu como uma procura, uma paixo e um amor

    () pela sabedoria Outrem se apresenta como o sbio por excelncia; o sbio que

    escutamos antes de lhe responder. Porm, no h apropriao possvel em minha resposta

    (justia) porque o Outro da ordem da transcendncia, exterioridade sempre irredutvel

    conscincia, fracasso da intencionalidade. A verdade e a justia esto ligadas sem se

    15 La dmarche cartsienne non seulement respecte la libert de lhomme, puisque la problmatique est pose

    par le Cogito lui-mme, dans lempire de sa libert (TI, 91), mais elle sauvegarde aussi la Transcendence de

    lInfini. Le Dieu reconnu par le Cogito, la fin de la troisime Mditation, est un Infini qui ne se donne plus la

    contemplation mais ladoration. Il dborde son ide et Il chappe ainsi limmanence du Cogito, librant en

    mme temps celui-ci du solipsisme: cest la dcouvert dune vritable Altrit, dune vritable Transcendence

    (TI, 187). LInfini dborde la thmatisation, lobjectivation. Cest ici que le formalisme cartsien est approfondi

    par le thme du Bien au-del de ltre, dorigine platonicienne. Parler en ces termes permet dexprimer le

    fondement du sens par une relation entre lhomme et lInfini qui est socit, relation qui garde les termes leur

    place, dans leur caractre absolu, sans les dissoudre dans une totalit (TI, 77). Le Bien ne fait pas systme, Il sait

    entrer en relation sans perdre sa transcendence, et sans concurrence la libert de lhomme. Le savoir critique par

    lequel le Cogito dcouvre son statut de crature nest pas de lordre de la thmatisation mais de lordre de

    lthique (ALVAREZ, 1974, p. 521, grifos do autor). Portanto, nosso autor descreve a alteridade no seio do

    Mesmo, no interior do cogito. 16 Para Levinas, la descripcin del rostro no se contiene, pues, en los lmites estrictos de une fenomenologa, si

    se entiende por tal cosa, com Husserl al que Levinas tanto recurre , un esfuerzo por describir un fenmeno

    en este caso, el rostro- tal como se da a una conciencia que lo mienta y trata de discernir su esencia valindose de

    muchos ensayos de aproximacin. Levinas mismo reconoce, por outra parte, que, si bien empieza en Husserl, lo

    que dice ya no esta em Husserl.

  • 33 encontrarem em p de igualdade, pois, a verdade metafsica; ela se encontra do lado da

    exterioridade do Outro rosto , e est ligada ideia do Infinito que me chama pelo rosto do

    Outro. O Desejo do Outro torna-se o novo nome da filosofia e a justia sua linguagem. A

    tica a filosofia primeira (HERNNDEZ, 2009, p. 158)17.

    Portanto, contra a filosofia da totalidade Lvinas prope a tica, pois, esta s possvel

    mediante a existncia de relaes entre indivduos e a existncia de indivduos que no

    abandonam a sua verdade num Todo em que se desvanece a sua exterioridade (LVINAS,

    1980, p. 13)18; a tica indica, tambm, uma sada do solipsismo: A relao tica nos faz sair

    da solido do ser (LVINAS, 1982, p. 97), pois, a teoria consiste em conduzir toda

    alteridade universalidade do saber. Trata-se, portanto, de uma filosofia que quer no s

    respeitar a unicidade de cada um, mas que concebe nesta a condio mesma da filosofia

    porque condio da prpria linguagem, discurso e no existe filosofia sem linguagem. Nesse

    sentido, a presena de outrem, o seu rosto inaugura a filosofia e esta s pode ser tica.

    Na defesa da tica como filosofia primeira que coloca frente a frente entes que falam

    nosso autor enfrenta toda a tradio filosfica ocidental caracterizada por ele como ontologia,

    ou saber do ser que tudo reduz identidade anulando toda alteridade, toda diferena. Trata-se

    de uma crtica dirigida contra a tradio filosfica dominada pela ideia de uma reunio do ser

    em um todo (FERON, 1992, p. 25). Para Lvinas o rosto no pode ser descrito pelas

    categorias do ser, ou seja, ontologicamente; atravs da noo de rosto Lvinas se esfora para

    revalorizar a alteridade e a diferena. Isso se deve ao fato de que o rosto no se d como

    fenmeno19, ele no aparece, no entra no presente do Mesmo, no sincronizvel e nem

    mesmo obra da conscincia; o rosto vem de fora, trata-se de uma exterioridade radical que

    no englobvel em nenhum sistema de referncia. No entanto, segundo Sebbah o rosto faz

    com que no real, tudo possa aparecer; ele d sentido a tudo o que aparece sem que ele

    prprio aparea do mesmo modo e, talvez, sem aparecer (SEBBAH, 2009, p. 46); o rosto j

    linguagem; a sua linguagem expresso, linguagem antes das palavras, linguagem original

    17 Le dsir de lautre devient le nouveau nom de la philosophie et la justice son langage. Lthique est la

    philosophie premire. 18 Les tres particuliers livrent-ils leur vrit dans un Tout o s'vanouit leur extriorit? (LEVINAS, 1974, p.

    XIII) 19 O rosto, para Levinas, uma alteridade privilegiada, pois exterior conscincia e nosso autor utiliza

    expresses como in-finito (in-fini), in-visvel (in-visible), in-dizvel (in-dicible) para se referir a ele. Porm, e aqui

    surge um dos pontos criticados por Derrida, Levinas fala dele, do Outro, do rosto: Com efeito, a necessidade de

    aceder ao sentido do outro (em sua alteridade irredutvel) a partir de seu rosto, isto do fenmeno da sua no-

    fenomenalidade, do tema do no-tematizvel, dito de outro modo, a partir de uma modificao intencional de

    meu ego (...) esta necessidade a qual nenhum discurso escaparia a violncia mesma (DERRIDA, 1967, p. 188,

    grifo do autor). Se Levinas critica a violncia ontolgica, aqui Derrida aponta uma violncia metafsica. Acerca

    do conceito de fenmeno em Levinas bastante elucidativo o texto de Strasser (Cf. bibliografia).

  • 34 (LVINAS, 2009, p. 283)20; o rosto se apresenta a si mesmo sem analogias, sem

    intermedirios. Linguagem que empresta sentido ao discurso. O rosto o nico a poder se

    exprimir por si mesmo porque ele no do domnio da viso, mas da palavra; um rosto

    falante que se exprime para me exigir justia. Nesse sentido, o rosto abertura para o infinito

    e j trs em si uma hermenutica prpria; precisamente a infinitude do infinito, ou tica.

    Lvinas tem reservas quanto a possibilidade de descrio do rosto j que este passividade,

    passagem, vestgio; o rosto um dizer anterior ao dito e que confere sentido ao dito. muito

    difcil, seno impossvel, captar o sentido do discurso fixado no dito j que o rosto, enquanto

    dizer ou como doador de sentido ao dizer , j no se encontra presente.

    Contudo, a primeira consequncia resultante do nosso propsito nos conduz a

    considerao de outra noo indissocivel da de rosto, ou seja, a de Outrem (Autrui), ou

    Alteridade21 (Altrit) e que Lvinas reitera em Quatro leituras Talmdicas, de 1968: a

    relao direta com o verdadeiro excluindo o exame prvio do seu teor, de sua ideia (...) s

    pode ser a relao com uma pessoa, com outrem (LVINAS, 2003, p. 97). Nesse sentido ns

    afirmamos que o rosto sempre de Outrem, ou que Outrem rosto e a relao ao Outro, ou

    relao interhumana (relation inter-humaine) entendida como relao tica (relation

    thique) que se constitui como a respirao do pensamento de Levinas (ROLLAND, 2010,

    p. 7).

    b) Fenomenologia e tica

    Interpretando a fenomenologia como mtodo (LVINAS, s/d, p. 140), Lvinas nos diz

    que esta designa que o acesso ao fenmeno faz parte do ser do fenmeno, ao seu modo de

    existir; as imperfeies de um fenmeno tornam-se constitutivas dele; por exemplo, a

    angstia22. Assim, o retorno s coisas mesmas conduz ao retorno aos atos onde elas se

    revelam, seja na intuio sensvel, seja na intuio categorial. As prprias noes de intuio

    20 Par laccueil du visage je passe du phnomne ltre de double manire. Dabord parce que je laisse le

    monde totalitaire de lapparence o je ne trouve que les tants, pour me tourner vers le seul tre qui peut parler

    par lui-mme: le visage; mais aussi parce quen rpondant son appel, je dcouvre ma ralit dernire, mon vrai

    tre: la responsabilit (...) Cest seulement en rpondant autrui que jassiste moi-mme, tape finale dans la

    constituition du sujet. La responsabilit engendre mon tre, le sujet nat ce moment l, la responsabilit est

    donc ltre du moi dans Totalit et infini (HERNNDEZ, 2009, p. 190, grifo do autor). Levinas criticara esta

    linguagem ontolgica de Totalidade e infinito confere, por exemplo, o prefcio da edio alem desta obra e

    falar de Outrem como o outramente que ser, sem nenhuma relao com o ser ontolgico, o estrangeiro por

    excelncia vindo de um alhures desconhecido, vestgio do Absolutamente Outro metafsico. 21 Segundo Franois-David Sebbah, na sua obra Lvinas, p. 44, possvel ler todo um pensamento da alteridade

    (...) que no seja pensamento de Outrem, ou seja, nem sempre a noo de alteridade esteve vinculada a Outrem;

    o caso, por exemplo, e de acordo com Sebbah, do arrancar-se ao h, a passividade, temporalidade e

    sensibilidade, temas que invocam a alteridade sem referir Outrem. A questo crucial da alteridade surge a partir

    de 1946-47 com a obra Le temps et lautre. 22 A angstia surge ao estudo banal como um movimento afectivo sem causa ou, mais exatamente, como sem

    objeto; ora, precisamente o prprio fato de existir sem objecto que, na anlise heideggeriana, se mostra

    verdadeiramente significativo (LVINAS, 1982, p. 32).

  • 35 sensvel e categorial se devem ao ser aos quais elas visam. Assim, entendemos melhor porque

    Husserl fala de regies de ser, pois, o modo de acesso ao ser de cada regio constitutivo do

    prprio ser da regio. Nesse sentido, possvel distinguir ontologias regionais e mais

    importante, o ser da conscincia e o ser da natureza: o ser da natureza tem carter relativo,

    contingente e dependente enquanto o ser da conscincia absoluto, necessrio e livre, pois,

    no depende de nada, alm de si mesma, para existir. A sntese da percepo sensvel no se

    acaba nunca no por uma deficincia do ser percipiente, mas por uma nota caracterstica do

    ser percebido, pois este, enquanto mundo exterior, relativo e incerto. Podemos dizer,

    tambm, que segundo esta orientao fenomenolgica portanto, metodolgica o acesso ao

    valor constitutivo do seu ser e assim por diante. O que ns podemos reter dessas lies de

    Lvinas diz respeito ao modo como se d a relao do sujeito com o mundo e, mais

    importante, as relaes entre os sujeitos, relao social. Assim importante salientar que

    Lvinas no trata da relao sujeito-objeto, porm das relaes entre os sujeitos, relaes

    interhumanas. Nesse sentido, o modo como Outrem se manifesta ao Mesmo, nas anlises do

    filsofo, transborda todas as determinaes do Mesmo; nesse sentido, portanto, que se

    orienta ao que nos parece, a noo de verdade que tem sua origem na relao frente a frente,

    ou tica. Outrem, como rosto, no se d ao modo de fenmeno: No sei se podemos falar de

    fenomenologia do rosto, j que a fenomenologia descreve o que aparece. Assim, pergunto-me se

    podemos falar de um olhar voltado para o rosto, porque o olhar conhecimento, percepo. Penso

    antes que o acesso ao rosto , num primeiro momento, tico.23

    Fazer fenomenologia do rosto significa descrev-lo descrio que,

    fenomenologicamente, significa desvelamento ou saber em sua totalidade; totalidade finita e

    que se constitui como saber, que envolve posse, compreender. Porm, segundo nosso autor, a

    relao com o rosto no saber por que ele no fenmeno o fenmeno no se mostra a

    partir de si (CALIN; SEBBAH, 2005, p. 26) , no se manifesta; ao contrrio: o rosto

    expresso e o prprio saber supe a expresso do rosto enquanto condio da fenomenalidade

    mesma. Porque o rosto se manifesta a partir de si e no de um contexto ele desafia o

    pensamento porque o excede. Neste sentido o rosto a exterioridade a abertura para o

    Infinito e a nossa relao com ele Desejo, Desejo metafsico porque o desejado invisvel,

    porm, a invisibilidade no indica ausncia de relaes; implica relaes com o que no

    dado (LVINAS, 1980, p. 22); com o que no dado, vale dizer, ao modo do fenmeno.

    O prprio saber no pode prescindir desta relao com o rosto sem a qual ele seria

    ingnuo, pois, o rosto condio da fenomenalidade mesma (CALIN; SEBBAH, 2005, p.

    23 LEVINAS, Emmanuel. tica e infinito. Traduo de Joo Gama. Lisboa: Edies 70, 1982, p. 77. Para esta

    dissertao adotaremos esta edio acompanhada do original francs.

  • 36 26) e condio da fenomenalidade porque ele fala a partir de si; quer dizer, ele fala; o rosto

    a primeira palavra e nesse sentido a abertura do discurso, onde o fenmeno mostrado na sua

    fenomenalidade. Sem a presena do rosto, a sua expresso as noes no admitiriam novos

    sentidos ou significados o que equivale a dizer que a linguagem ficaria engessada e a prpria

    hermenutica seria uma iluso, porque a hermenutica vive do infinito e no da totalidade.

    Lvinas, ao dizer que no pretende constituir uma tica e sim procurar o sentido, parece

    querer dizer que se trata de conduzir o impensado ao pensado e que a tica seria a tica

    mesma para procurar novos sentidos para as noes como sempre possvel compor novas

    msicas com as velhas notas musicais. O saber, enquanto tentativa de aprisionamento do ente

    no ser no logos, inteligncia do ser vive j da experincia original da relao frente a

    frente, ou justia em que Outrem sempre escapa s determinaes epistemolgicas ou

    ontolgicas. Eis o grande ensinamento do rosto: o conhecimento no a ltima relao com a

    transcendncia; esta a tica em que a relao com a alteridade a ideia do Infinito, abertura

    para o Outro, para o de outro modo que ser ou bondade.

    1.3 Rosto e enigma

    A noo de rosto na filosofia de Lvinas aparece aps um perodo de maturao; no

    se trata, portanto, de uma teleologia, que o conduziria a formulao da tica como filosofia

    primeira ou escatologia ou conscincia moral. Dizemos isso porque algumas caractersticas

    que identificamos nessa noo j se apresentam nos seus primeiros textos e at mesmo na sua

    obra Thorie de lintuition dans la phnomnologie de Husserl, de 193024. Como Lvinas

    mesmo nos adverte, no nessa obra o lugar para uma crtica mais sistemtica a algumas

    posies da filosofia de seu mestre. Porm, encontramos indicaes de quando e onde Lvinas

    se afasta de seu mestre e por qu. Nesse sentido, o que mais incomoda Lvinas na obra de

    Husserl o que ele chama intelectualismo:

    Em sua filosofia (e aqui onde nos separamos de sua proposta), o conhecimento e a

    representao no so modos de vida no mesmo grau que os outros; tampouco so

    um modo secundrio. A teoria e a representao jogam um papel preponderante na

    vida; servem de base a toda a vida consciente, so a forma de intencionalidade que

    assegura o fundamento de todas as demais (LVINAS, 2004, p. 81)25.

    24 Para esta dissertao utilizaremos: LEVINAS, Emmanuel. La teora fenomenolgica de la intuicin. Traduo

    Tania Checchi, Salamanca, Ediciones Sgueme, 2004. 25 En su filosofa (y aqui es donde nos separamos de su propuesta), el conocimiento y la representacin no son

    modos de vida en el mismo grado que los otros; tampoco son un modo secundrio. La teoria y la representacin

    juegan un papel preponderante en la vida; sirven de base a toda la vida consciente, son la forma de

    intencionalidad que asegura el fundamento de todas las dems. So palavras de 1930. Porm, Levinas ainda

    voltar a Husserl e abandonar do clima heideggeriano presente nesta obra.

  • 37 Aqui Lvinas apresenta no s os pontos discordantes do seu pensamento com o do

    seu mestre Husserl como tambm aponta o rumo que pretende dar ao seu. Os modos de vida

    que Lvinas vai dar nfase dizem respeito volio, ao sentimento, tica, modos de vida

    que no so conhecimento, ou outro modo de conhecimento. O que nosso autor no aceita em

    Husserl que esses modos de vida tm seu fundamento na intencionalidade terica e na

    representao26. No entanto nosso autor encontra, ainda em Husserl, o que ele chama

    intencionalidade axiolgica, irredutvel ao conhecimento e que pode ser buscada na relao

    com o Outro e que se constitui como que o norte da sua obra, pois o mundo e sua constituio

    no o domnio das meditaes de Lvinas e sim o homem e seu destino e neste sentido que

    podemos dizer que a sua filosofia se constiui como metafsica da alteridade (SOUZA, 2007,

    resumo).

    A obra Totalidade e Infinito27 considerada a primeira grande obra de Lvinas e

    exatamente nesta obra onde o tema do rosto tem um destaque central. Se a verdade mantm

    26 o prprio Levinas quem nos fala da ruptura com a intencionalidade terica quando se refere

    intencionalidade axiolgica e a irredutibilidade da relao ao Outro ao conhecimento. Confere, por exemplo,

    quando ele diz: le caractre de valeur ne sattache pas des tres la suite de la modification dun savoir, mais

    vient dune attitude spcifique de la conscience, dune intentionnalit non thortique, demble irrductible la

    connaissance. Il y a l une possibilit husserlienne qui peut tre dveloppe au-del de ce que Husserl lui-mme

    a dit sur le problme thique et sur la relation avec autrui qui chez lui reste reprsentative (...). La relation avec

    autrui peut tre recherche comme intentionnalit irrductible, mme si lon doit finir par y voir la rupture de

    lintentionnalit (LVINAS, 2012, p. 22-23, grifo do autor). 27 Hernndez (2009, p. 76) defende que h um paralelismo (paralllisme) entre a obra Totalidade e infinito de

    Levinas e a obra Ser e tempo de Martin Heidegger (publicada em 1927) e que seria a analtica existencial

    (lanalytique existentielle). Este seria um paralelismo que no meramente exterior entre as duas obras e que

    poderamos dizer que Levinas assume a famosa diferena ontolgica - de fato ele assume na medida em que ele

    quer falar do ente: O ente como tal (e no como encarnao do ser universal) s pode ser numa relao em que

    o invocamos. O ente o homem, e enquanto prximo que o homem acessvel. Enquanto rosto. (...) A relao

    com o rosto (...) relao com o prprio ente enquanto puro ente (LVINAS, 2009, p. 30), o existente e no a

    existncia que importa para Levinas e a relao entre entes (frente a frente ou relao social). Entre a Totalidade

    (identificada com o ser, o Mesmo, a finitude, a imanncia, o sistema, o Dasein, o formalismo) e o Infinito

    (identificado com o Outro, com Deus, o Perfeito, o Rosto, a Transcendncia, a exterioridade, a heteronomia, a

    informalidade) h uma diferena ontolgica, isto , eles no esto sob o mesmo regime (o Mesmo e o Outro). A

    novidade de Levinas quanto a essa noo o fato de que para ele a diferena ontolgica no pensada em

    termos de no-indiferena quanto a diferena. Levinas leva muito a srio essa diferena. Nesse sentido a

    diferena ontolgica entre o Mesmo e o Outro tratada em termos ticos para que a alteridade (o Outro) no seja

    absorvida na totalidade, ou seja, para que o Outro permanea exterior totalidade lembramos que o

    complemento da obra de Levinas ao seu ttulo ensaio sobre a exterioridade, vale dizer, exterioridade exterior a

    totalidade e onde a noo de separao (esta noo tomada por Levinas da palavra hebraica kadosh o que

    nos informa Jacques Rolland responsvel pelas notas e pelo prefcio e posfcio da obra Dieu, la mort et le temps

    e encontramos essa indicao na nota 1 na pgina 190) ganha em importncia e que ser sujeito da nossa

    pesquisa. A obra Ser e tempo foi publicada em 1927 e Levinas estava com 22 anos. Quando Levinas publicou

    Totalidade e infinito em 1961 ele estava com 55 anos, portanto 33 anos separam as duas obras e 33 anos de

    reflexo do filsofo lituano. No entanto, em 1930, com 24 anos, Levinas publica a sua tese de doutorado

    intitulada Teoria da intuio na fenomenologia de Husserl em que ele mesmo assume a influncia da obra do

    pensador alemo:

    Jusqu Totalit et Infini la philosophie de Lvinas est pense partir de lontologie de Heidegger et grace

    elle, malgr moi, comme Lvinas avait lhabitude de e dire. Le Heidegger de Sein und Zeit, de la diffrence

    ontologique et de la mtaphysique du Dasein. Cest une thique de laltrit qui se dit dans un langage encore

    contamine par ltre. Langage ambigu, critique par Derrida et reconnu par Lvinas lui-mme quelques anns

    plus tard. Lvinas voulait lpoque se sparer de Heidegger, tout en utilisant le mme langage malgr lui. Il

  • 38 algum nexo com o discurso, ento o rosto o lugar mesmo da verdade, pois, para Lvinas, o

    rosto fala, significao. mais: significao sem contexto O rosto significao, e

    significao sem contexto. Ele o que no se pode transformar num contedo, que o nosso

    pensamento abarcaria; o incontvel, leva-nos alm (LVINAS, 1982, p. 78)28; o rosto

    significa a partir de si mesmo a sua significao precede Sinngebung29 (LVINAS, 1980, p.

    240, grifo do autor)30; significao sem signo e, nesse sentido, a condio mesma da

    verdade.

    A noo de rosto em nosso autor no tal que no carea de maiores esclarecimentos.

    Pelo contrrio. Encontramo-nos em apuros aqui. Do que Lvinas quer nos falar atravs dessa

    noo? Uma primeira interpretao indicaria a inteno de constituir sua tica; por outro lado,

    Lvinas mesmo diz, ele busca o sentido: A minha tarefa no consiste em construir a tica;

    procuro apenas encontrar-lhe o sentido (LVINAS, 1982, p. 82). Portanto, a noo de rosto

    entendida como abertura para o Infinito seria o lugar mesmo dessa inteno tica. Porm,

    convm antecipar, no temos a pretenso de resolver essa questo, mas to somente procurar

    elucidar ou quem sabe apontar alguma possibilidade de leitura. O estudioso levinasiano David

    Sebbah considera essa noo como aquela que designa o aspecto mais genuno e a

    intensidade do pensamento levinasiano, o ponto em que se comprime, de forma tensionada,

    toda a extenso do que pensado por ele (SEBBAH, 2009, p. 43). Isso porque, o rosto de

    Outrem trs sempre uma novidade, algo no pensado (ainda). Convm lembrar que o

    desconhecido vem de fora, exterior, estrangeiro e me trs algo que eu no possua. Pode ser

    um ensinamento; precisamente ensinamento de seu rosto. Contudo, devemos atentar para esse

    encontro entre Eu (Mesmo), em minha casa, no meu trabalho e esse Outro (rosto) que toca

    minha campainha. Como poderamos descrever esse encontro? Lvinas o chama frente a

    frente (face--face)31, ou ainda relao tica (LVINAS, 2012, p. 71) que dirige-se ao ser

    faudra attendre le tournant lvinassien dAutrement qutre pour trouver un autre langage. Une nouvelle

    forme dexpression qui essaye de ddire le dire, cest--dire de dire de quelque faon lindicible de

    lexprience mtaphysiqe par excellence: Autrui (HERNNDEZ, 2009, p. 76). Assim, ao que parece, Levinas

    s abandona definitivamente a ontologia a partir da sua segunda grande obra Autrement qutre. Levinas estava

    muito interessado em abandonar o clima da filosofia heideggeriana embora reconhecesse a dificuldade de

    retornar a uma filosofia pr-heideggeriana, porm reconhecia a falta de uma filosofia tica no filsofo alemo.

    Por outro lado, Levinas encontrou na alteridade ou exterioridade do outro o terreno prprio para a constituio

    da sua tica. 28 Le visage est signification, et signification sans contexte. Il est ce qui ne peut devenir un contenu, que votre

    pense embrasserait; Il est lincontenable, Il vous mne au-del (LVINAS, 2012, p. 80-81). 29 Isto , significa antes da doao de sentido pela conscincia. 30 Non pas que le visage reoive une signification par rapport quelque chose. Le visage signifie par lui-mme,

    sa signification prcde la Sinngebung, un comportement sens surgit dj dans sa lumire, il rpand la lumire

    o se voit la lumire (LVINAS, 1974, p. 238-239, grifo do autor). 31 Optamos, nesta dissertao, por traduzir a expresso face--face por frente a frente conforme j se encontra

    como que juramentada pelos tradutores de Levinas para o portugus brasileiro e traduzido por cara a cara nas

    verses em espanhal. Tal expresso tambm foi muito criticada por DERRIDA (1967, p. 224) no seu famoso

  • 39 na sua exterioridade absoluta e cumpre a prpria inteno que anima a caminhada para a

    verdade (...) este dizer a Outrem esta relao com Outrem como interlocutor, esta relao

    com um ente precede toda a ontologia, a relao ltima no ser. A ontologia supe a

    metafsica (LVINAS, 1980, p. 34-35, grifos do autor):

    Para Levinas face a face a linguagem, o primordial, a experincia originria do

    inter-humano, quer dizer, do humano: a posteriori na funo a priori. Experincia

    originria. Esta experincia que Levinas repete, demasiadamente seria a

    proximidade tica com o Outro, de nudez sem mscara. Neste sentido, .32

    Convm, aqui, ressaltar o seguinte: a relao frente a frente se d entre singulares,

    entre entes, pois, Lvinas no faz uma filosofia terica onde o sujeito permanece em si; na

    relao frente a frente, ou justia, h questo e resposta e por isso chamada relao tica.

    verdade que o Mesmo carrega todo o peso da ontologia: O homem inteiro ontologia

    (LVINAS, 2009, p. 22), porm a relao com outrem no ontologia (LVINAS, 2009, p.

    29). A relao com outrem enquanto experincia moral concreta o que me permito exigir de

    estudo sobre Levinas. Esta crtica foi orientada pela ideia de que o frente a frente a expresso de um empirismo

    (empirisme), empirismo este que nas palavras de Derrida na jamais commis quune faute: la faute

    philosophique de se prsenter comme une philosophie (DERRIDA, 1964, p. 224). A crtica que se faz ao

    empirismo que reconhece a exterioridade das coisas em relao conscincia que este no alcana o logos,

    ou o sentido que seria genuinamente racional (logos); neste sentido, o logos (razo) s reconhece o logos (razo);

    nada que lhe exterior merece o ttulo de filosofia. A expresso maior desse pensamento o idealismo to

    defendido por Derrida nas figuras de Hegel, Husserl e Heidegger. Porm, Hernndez (2009, p. 294), fazendo a

    crtica da crtica, nos lembra que la phnomnologie elle-mme fut taxe dempirisme ss origines cause de

    limportance accorde lobjet intentionnel, et pourtant, Husserl na pas cess de remarquer la corrlation

    conscience-chose en disant quil fallait un retour aux choses mmes pour pouvoir les constituer grce au travail

    de la rduction. [Convm lembrar, tambm, que Hegel (2001, p.74 e sgs.), em sua Fenomenologia do Esprito

    apresenta como primeira figura do esprito na sua caminhada em direo a si, ou conscincia de si, a certeza

    sensvel entendida como relao com o singular e no mediada pelo conceito, mas to somente como certeza de

    um isto]. Acontece que o Outro no uma coisa entre as coisas: o Outro me fala, me pe em questo; no cabe,

    ento, no logos. Outrem rosto, alteridade irredutvel ao logos. Mais: transborda o logos, infinito. Levinas

    inclusive nos adverte de que o rosto no se presta viso porque j discurso: discurso sem palavras e que apela

    escuta. Assim, no nos parece apropriada a crtica do amigo de Levinas a sua tese do frente a frente j que se

    trata de evento inaugural, merecendo mesmo o ttulo de princpio (principe). Segundo anlises de Petitdemange

    (1993, p. 334): En de de tout cogito, en de de toute ide dtre ou de raison des choses, Lvinas lorigine

    voit une situation, le face--face: Le rapport entre ls tronons separes de ltre est un face--face, relation

    irrdutible et dernire (TI, 1974 p. 271). Que deux regards se croisent ou que deux hommes se parlent, et tout

    lunivers de la perception, de lorganisation conceptuelle, du dynamisme de ltre, subit une sorte de crise qui le

    fait vaciller. Enquanto ponto de partida do filosofar a relao frente a frente, ou justia, tratada por Levinas

    nos seguintes termos: La mtaphysique se joue dans les rapports thiques (...). Cest aux relations interhumaines

    que revient, en mtaphysique, le rle que Kant attribuait lexprience sensible dans le domaine de

    lentendement (LVINAS, 1974, p. 51). Nos parece bastante didtica a relao que nosso autor estabelece entre

    experincia sensvel, em Kant, e frente a frente na sua tica enquanto eventos inaugurais. A relao frente a

    frente, ou justia, a noo mais importante, a nosso ver, na filosofia de Levinas. 32 GRZIBOWSKI, Silvestre. Transcendncia e tica. Um estudo a partir de Emmanuel Levinas. So Leolpoldo:

    Oikos, 2010, p. 56, grifo do autor. Consoante s palavras de Grzibowski encontramos em Kovac (KOVAC,

    1993, p. 185) uma interpretao importante da relao ao rosto de Outrem. Segundo Kovac Levinas encontra no

    rosto de Outrem o prprio comeo (commecement/ arch) da filosofia como tica. A possibilidade de pensar esta

    exterioridade do pensamento pelo encontro do roso de Outrem. A relao frente a frente como evento inaugural

    da filosofia tambm destacado por Petitdemange (1993, p. 338) quando a considera linteligible premier.

  • 40 mim prprio no se compara ao que tenho direito de exigir de Outrem (LVINAS, 1980, p.

    41) uma relao com o rosto, este rosto (singular, que posso querer matar): A relao

    com o rosto, acontecimento da coletividade a palavra- relao com o prprio ente,

    enquanto puro ente. (...) O ente como tal (e no como encarnao do ser universal) o homem

    (...) enquanto rosto (LVINAS, 2009, p. 32).

    A experincia do rosto a nica experincia que permite ao sujeito sair de si mesmo e

    da totalidade, pois o rosto inquietude. a possibilidade para o homem poder ser ensinado,

    de receber um ensinamento do exterior. O rosto remete para uma verdade mais antiga do que

    a ontologia, a um passado que nunca foi presente: O rosto est presente na sua recusa de ser

    contedo. Neste sentido, no poder ser compreendido, isto , englobado. Nem visto, nem

    tocado- porque na sensao visual ou tctil, a identidade do eu implica a alteridade do objeto

    que precisamente se torna contedo (LVINAS, 1980, p. 173)33.

    O rosto, portanto, outro de uma alteridade absoluta no pertencendo comunidade

    do gnero ou das espcies; ele no se presta ao conhecimento o rosto no do mundo ele

    rasga o sensvel (LVINAS, 1980, p. 177)34. O saber enquanto sincronizao de toda

    alteridade num presente (no ser, no ), na presena (passado e futuro so reunidos num

    presente eterno e total e, portanto, finito) esquece a alteridade do rosto enquanto ensino e

    questionamento. Outrem o mestre que fala e a quem escutamos. Nesse sentido, nos diz

    Lvinas: O ensino uma maneira para a verdade se produzir de forma que no seja obra

    minha, que eu no a possa manter a partir da minha interioridade (LVINAS, 1980, p. 275).

    A verdade, nesse sentido, me vem de fora, de Outrem, em dois sentidos: de Outrem, enquanto

    o Mestre e que me trs ensinamento e como tal condio da verdade e de Outrem enquanto

    verdade mesma, como o que excede, ultrapassa e escapa a toda determinao, a toda

    ordenao ordem do ser, daquilo que . A verdade do rosto da ordem da resistncia,

    resistncia tica aos poderes do Mesmo. Tais reflexes, nos diz Souza

    acabam por conduzir possibilidade de uma concepo diferente de verdade. No a

    verdade como adequao do intelecto e da coisa, tambm no no sentido de A-

    ltheia: a verdade em sentido tico a irredutvel inadaequatio rei (a Alteridade do

    Outro) et intellectus (a dinmica da Totalidade). A verdade o desafio tico do

    Olhar do Outro, em originariedade irredutvel, e a tentativa de corresponder a esse

    desafio de maneira justa (SOUZA, 1999, p. 142, grifo do autor).

    Esta nova verdade nova porque no se trata de pensar a noo de verdade a

    partir da perspectiva terica , se deve ao que Lvinas chama assimetria entre o Mesmo e o

    33 Le visage est prsent dans son refus d'tre contenu. Dans ce sens il ne saurait tre compris, c'est--dire

    englob. Ni vu, ni touch car dans la sensation visuelle ou tactile, l'identit du moi enveloppe l'altrit de l'objet

    qui prcisment devient contenu (LEVINAS, 1974, p. 168). 34 le visage qui nest pas du monde () le visage dchire le sensible (LEVINAS, 1974, p. 172).

  • 41 Outrem e impossibilidade de categorizao do Outro pelo Mesmo haja vista que ele prope

    a relao a partir da ideia de Infinito, inadequao por excelncia. E no h o que desvelar

    porque Outrem est nu na expresso do seu rosto restando, ento, a justia, que

    acolhimento de frente no discurso. preciso considerar, tambm, que a verdade se diz a

    algum, o interlocutor neste sentido, um dizer a..., pois no h seno discursos de

    homens entre si35 ou como nos diz Lvinas: Para procurar a verdade, j mantive uma

    relao com um rosto que pode garantir-se a si prprio, cuja epifania tambm , de algum

    modo, uma palavra de honra. Toda a linguagem, como troca de signos verbais, se refere j

    palavra de honra original (LVINAS, 1980, p. 181).36

    A palavra de honra um juramento (juro dizer a verdade), um compromisso, uma

    responsabilidade para com o Outro e esta responsabilidade no da ordem terica. O dizer ou

    o enunciar no implica, necessariamente, um que fala (e escuta) e outro que escuta (e fala)? E

    ser que todo enunciado redutvel ao modo predicativo? Um isto enquanto aquilo, ou isto

    como aquilo? Estas so questes que nos parecem importantes e que se relacionam

    diretamente com a questo a verdade supe a justia.

    O que podemos verificar, fazendo a leitura da obra Totalidade e Infinito, que Lvinas

    trata de uma relao. A relao de que trata Lvinas no pode ser classificada como do tipo

    sujeito/objeto, que caracteriza, por exemplo, a relao de conhecimento. O que Lvinas

    caracteriza como princpio, como o ponto a partir do qual se inaugura a filosofia a

    manifestao de outrem como outro, a epifania do rosto como ele diz, o surgimento a e

    somente a desse que no nunca objeto e, por a mesmo, inaugura um desaranjo

    incontrolvel. Falar de tica, deixar advir esta ruptura que o comeo (PETITDEMANGE,

    1993, p. 334-335)37. A tica, ento, o comeo; a preservao do particular por e para

    outrem.

    1.4 Rosto e vestgio

    Lvinas utiliza algumas imagens quando quer falar do rosto. Uma das imagens

    utilizadas por ele a da caa. O caador procura sua presa pelas marcas (vestgios) deixadas

    35 Il ny a que des discours variables. Et ces discours sont discours dhommes entre eux (PETITDEMANGE,

    1993, p. 338). 36 Pour rechercher la vrit, jai dj entretenu un rapport avec un visage qui peut se garantir soi-mme, dont

    lpiphanie, elle-mme, est, en quelque sorte, une parole dhonneur. Tout langage comme change de signes

    verbaux , se refere dj cette parole dhonneur originalle(LVINAS, 1974, p. 177). 37 Le prncipe chez Lvinas est la manifestation dautrui comme autre, lpiphanie du visage comme Il le dit,

    le surgissement l et l seulement de ce qui nest jamais objet et, par l mme, inaugure un drangement

    incontrlable. Parler dthique, cest laisser advenir cette rupture qui est le commencement

  • 42 pela caa. A caa no est ali, esteve ali. J no est mais. Aquela marca j um passado,

    marca de um passado que no foi presente para mim. O rosto nunca se d numa presena.

    Nesse sentido, ele no fenmeno38. Lvinas reserva a palavra enigma para descrev-lo. E

    essa a sua verdade: Essa porta simultaneamente aberta e fechada a extraordinria

    duplicidade do Enigma (LVINAS, s/d, p. 259); porta aberta que pode significar ensino, o

    Mestre; porta fechada que designa o inabarcvel, no-englobvel e nesse sentido resistncia

    tica e que indica posio do prprio do sujeito, do nico (...); o rosto como ser-a concreto

    do nico39. O nico que no pode ser capturado porque j est ausente. Nesse sentido, o rosto

    jamais entra no registro do ser, sempre fugidio, no se deixa apreender em um presente. O

    rosto uma presena ausente ou uma ausncia presente, um outro modo que ser:

    O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a ideia do Outro em mim,

    chamamo-lo, de fato, rosto. Esta maneira no consiste em figurar como tema sob o

    meu olhar, em expor-se como um conjunto de qualidades que formam uma