68
EDÜSC Edton <to UntonUM» do V5867h Vergerjacques Homens e Saber na Idade Média / Jacques Verger; tradução Carlota Boto.- Bauru, SP: EDUSC, 1999. 284 p.; 21 cm (Educar) ^ ISBN 85-86259-46-2 Tradução de: Lês Gens de Savoir daris l' Europe de Ia fin du MoyenAge , Inclui bibliografia. 1. Idade Média. 2. Civilização Medieval I.Título. II. Série. CDD 940.1 ISBN,2 13 048764 5 (original) Copyright © Press Úniyersitaires de France, 1997 Copyright ©^tradução), EDUSC, 1999 Tradução realizada a partir da 1 a ed. (1997) Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO i Rua Irmã Anhinda, 10*50 CEP 17011-160 -Bauru - SP Fone (14) 3235-7111 - Fax (14) 3235-7219 e-maa: [email protected] S" sumário Apresentação Introdução PRIMEIRA PARTE Os fundamentos da cultura. Capítulo I: Os saberes __™ l .As bases: o latim e Aristóteles ___ 2. Saberes legítimos e saberes marginais. 3.As disciplinas superiores: teologia, medicina e direito --~ T ~~ n _ 4. Utilidade social ou cultura geral?. 5. Cultura erudita, cultura popular„ Capítulo II: Os estudos l .As escolas elementares, 2. A universidade _____ 3.As novas instituições. Capítulo III: Os livros ^ l. O acesso ao livro „_: 2.0 conteúdo das bibliotecas 1 3. Do manuscrito ao impresso , SEGUNDA PARTE O exercício das competências 2. Homens de saber, homens de Igreja. 3. Uma idade de ouro dos legistas?. 4. Conclusão: alguns matizes necessários Capítulo V: Saber e poder r _ , 7,, 13 21 23 23 38 47 56 61 69 72 81 104 111 112 122 128 135 Capítulo IV: Serviço de Deus, serviço do príncipe _, 137 l. Docere aut applicare 139 144 156 165 169

VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

EDÜSCEdton <to UntonUM» do

V5867h VergerjacquesHomens e Saber na Idade Média / Jacques Verger;

tradução Carlota Boto.- Bauru, SP: EDUSC, 1999.284 p.; 21 cm (Educar)

^ ISBN 85-86259-46-2

Tradução de: Lês Gens de Savoir daris l' Europe de Ia findu MoyenAge

, Inclui bibliografia.

1. Idade Média. 2. Civilização Medieval I.Título. II. Série.

CDD 940.1

ISBN,2 13 048764 5 (original)Copyright © Press Úniyersitaires de France, 1997

Copyright ©^tradução), EDUSC, 1999

Tradução realizada a partir da 1a ed. (1997)Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa

para o Brasil adquiridos pelaEDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO

i Rua Irmã Anhinda, 10*50CEP 17011-160 -Bauru - SP

Fone (14) 3235-7111 - Fax (14) 3235-7219e-maa: [email protected]

S"

sumário

Apresentação

Introdução

PRIMEIRA PARTEOs fundamentos da cultura.

Capítulo I: Os saberes __™l .As bases: o latim e Aristóteles ___2. Saberes legítimos e saberes marginais.3.As disciplinas superiores: teologia,medicina e direito --~T~~n_4. Utilidade social ou cultura geral?.5. Cultura erudita, cultura popular„

Capítulo II: Os estudosl .As escolas elementares,2. A universidade _____3.As novas instituições.

Capítulo III: Os livros^ l. O acesso ao livro „ „_:

2.0 conteúdo das bibliotecas1 3. Do manuscrito ao impresso ,

SEGUNDA PARTEO exercício das competências „

2. Homens de saber, homens de Igreja.3. Uma idade de ouro dos legistas?.4. Conclusão: alguns matizes necessários

Capítulo V: Saber e poder r_ ,

7,,

13

21

232338

475661

697281104

111112122

128

135

Capítulo IV: Serviço de Deus, serviço do príncipe _, 137l. Docere aut applicare 139

144156165

169

Page 2: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

1. Saber e ideologia. _2. Do serviço ao conselho3- Espírito de corpo u

Capítulo VI: O mundo da prática1. Cultura erudita e prática privada2. Os intelectuais intermediários __3- O alcance social dos saberes: contestação ouintegração? - -'. - ' -- - -

• r, , - - 'TERCEIRA PARTE •Realidades sociais e imagem de si u__

Capítulo VII: Homens novos ou herdeiros?,1. Questões de fontes e de. método2. A vereda dos estudos „__ ™_3. Reconversão, adaptação, reprodução ,

Capítulo VIII: Ambições e representações1. Clero .., ;,.' - .2. Nobreza L.3. Um "quarto estado".

170179190

195196199

203

221

223223229237

245246249258

Capítulo LX: À guisa de conclusão: dos doutores aoshumanistas - continuidade e inovação . 2671. Dominadores e confiantes em si 2682. Idéias novas, homens novos :...•- , : -. 270

Bibliografia 279

apresentação

Há mais de uma década, Jacques Lê Goff produziu umlivro que modestamente chamou de um "esboço". Os intelec-tuais na Idade Média, obra já clássica, onde este inquieto e bri-lhante medievalista-resgatava o pensamento dos mestres dasescolas de pensamento medievais. Apesar da relutância exopudor de Lê Goff de denominar este trabalho de Introdução auma Sociologia histórica do intelectual ocidental, é exata-mente nisso que esta pequena obra consiste: o estudo dos"humanistas cristãos", suas reflexões e a difusão'de seu pensa-mento, do século XII à Renascença.

yjacques Verger retoma este universo com um outroolhar. Na mesma trilha de uma sociologia histórica, amplia ohorizonte de investigação, para além dos "clérigos intelectuais",para as profissões intelectuais e para os burocratas do Estado,tentando medir o peso que as várias disciplinas - religiosas,literárias e jurídicas - adquirem na formação da consciência de"si-mesmo" do Ocidente europeu.Verger abandona os mestres,os formadores e produtores de idéias, para concentrar-se nosque estudavam, tentando entender o que estudavam e comoestudavam, para depois voltar-se para o seu fazer, para a apli:cação e o exercício do que haviam aprendido.

' •'; jíjj

Page 3: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

O tema, contudo, não é novo, nova é a forma de abor-dagem. A começar pelo título Gens de Savoir, que intenta pre-cisar a real dimensão do saber, da sua produção e á sua circu-lação. Os "homens de saber" não se restringem a uma erudiçãolatina, a uma cultura livresca, ao final da Idade Média. Mas sim,constituem os detentores de valores culturais, que lhes per-mitem o exercício de profissões, a participação no poder e atémesmo a atividade erudita.

Na tentativa de resgatar é entender esses homens, estaobra é dividida em três partes. A primeira é preparatória, dizrespeito à qualidade do saber e suas diferentes formas, ondeVerger investiga os limites e as possibilidades de apreensão" - e,por que não dizer, produção do saber? Para isso, examina ocaráter das disciplinas e o seu relacionamento, entre si e com adoutrina cristã, limite irredutível para toda forma de co-

• nhecimento medieval. A seguir, analisa ps estudos: das simplesescolas de gramática até as Universidades. Somos colocados,então, frente a uma população socialmente conformista,respeitosa à ordem estabelecida, que estuda e se aprofunda emdisciplinas pertencentes a uma ordem legítima dos saberes etm completa sintonia com a ordem social e política dominante.Homens de saber, homens do poder, homens dó livro. Os livroseram a sua marca, a sustentação de seu poder e os fornecedoresda justificativa de seu papel social. Por isto, o autor volta o seuolhar para o instrumental por excelência deste saber: os livros,o acesso a eles e o acervo das bibliotecas, caminhando doincunábulo ao livro impresso. Através de um excelente inven-tário do conteúdo das bibliotecas e o seu significado, demons-tra a persistente unidade da cultura erudita e a sua forte tendên-cia conservadora. E é nessa estrutura cultural de preservação econservação que reside a força dos homens de saber, pois eramos detentores e reprodutores de uma cultura forte e coerenteque, apesar de suas limitações e de seus sintomas de escleroseao final da Idade Média, ainda possuía alento para criar uma'consciência de si neste grupo social.

A segunda parte está dedicada ao exame da sua práticaintelectual, bem como sua prática social, inventariando asfunções que as competências intelectuais permitiam a esseshomens desempenhar na sociedade da época. Homens destina-

dos a servir a Deus ou aos príncipes, constituem um gruponovo que ultrapassa a antiga divisão clérigos-laicos, distancian-do-se os primeiros dos simples sacerdotes e aproximando-se ossegundos - bastante apartados dos burgueses comuns - tantosocialmente 'quanto intelectualmente dessa, camada dos"doutores" da Igreja, formando um segmento nobilitádo pelosaber que se sobrepõe como uma cunha à primitiva clivagemsocial medieval.

A relação deste grupo com o poder, diz respeito a umaproblemática, que Verger desvendará ao longo desta parte,colocando-se questões fundamentais para a sua compreensão.Qual a natureza exata dos 'serviços' prestados pelos homens desaber à Igreja e ao Estado? Eles os serviam, mas não se serviri-am também deles? Haveria uma relação funcional entre a suacompetência intelectual e as tarefas cumpridas? A sua praxissocial era sempre" direcionada ao serviço de Deus - ou doPríncipe? Perguntas que nortearão os próximos capítulos, ondenós não encontraremos os grandes e orgulhosos doutores, maso verdadeiro representante do grupo, o modesto rnagister, osimples mestre em artes, possuidor de conhecimentos rudi-mentares, fundados em uma prática social específica, mas queconstituíam uma bagagem comum socialmente reconhecida.

A relação destes homens com o poder e sua inserção nomesmo, serão objeto de análise. Homens que desenvolveramum sólido espírito corporativo, que irão compor a retaguardado poder real, participando de algim modo de sua majestade eprotegidos por salvaguardas especiais, tirando o máximoproveito de um processo no qual constituíram simultanea-mente os intrumentos e, em larga medida, os atores. E aquiinsere-se a sua prática: as gentes de saber percebiam que a suaafirmação passava pela aceitação de um papel integradorIntegrando o aprendido com as novas regras do jogo social epolítico, estes homens ocupam um território privilegiado nanova sociedade que se afirma, e a :sua prática cotidianafornecerá os meios ao nascente Estado moderno de se fazeraceitar e de se fazer obedecer, ou mesmo de se fazer conhecer.

. Por outro lado, o estudo de Verger não considera esteshomens como abstrações, definidas pela posse de uma deter-minada competência ou por sua ligação a um ofício. Mas sim,

9

k:

Page 4: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

tentai percebê-los, para melhor entender o papel que desem-penhavam na sociedade de seu tempo, como seres de carne esangue, com suas ambições, seus interesses e suas amizades.Homens que criaram novos papéis sociais e lhes deram umaforma através de seu próprio fazer.

, A última parte, que lamentavelmente é a menos desen<volvida e no entanto possui uma riqueza de idéias, algumas ape-nas esboçadas, remete às representações sociais e à imagem desi mesmas que têm as elites- intelectuais ao final da Idade Média.

Aí a problemática se adensa, ao tratar das represen-tações que forjaram para si os homens de saber, e que proje-tavam para a sociedade. Questões como a sua reprodução comogrupo e o deslocamento social, produzido pelo novo enquadra-mento social e político, serão instigantemente tratadas. A novapossibilidade de ascensão social e a nobüitação pelo saber,destes "clérigos-leigos", serão objeto de .reflexão. Os papéiseram noVos, mas os homens também o eram? A emergência doshomens de saber teria possibilitado aos homens oriundos deestratos populares mais modestos se elevarem na hierarquiasocial? Ou será que ocorreu apenas uma reconversão das anti-gas elites sociais, assegurando a continuidade dás hierarquias?,pergunta-se Jacques Verger. E através de uma mensuração e deuma posterior análise do significado destes dados, busca encon-trar as pistas que levam à imagem desses homens, sua maneirade viver, seus hábitos, gestos, maneirismos e valores, que lhes.garantiam uma demarcação social, pela diferença com, que secomportavam, assegurando-lhes um olhar específico por partedo restante da sociedade. E o livro termina mostrando a chega-da destes homens à modernidade, colocando em xeque a idéiade uma ruptura e apontando para a continuidade, para a per-manência junto ao poder desses mediadores e reguladores danova ordem política e social nascente. Personagens essencial-mente urbanos, hpmens 'novos' e nobres, surgem na sociedadepara normatizá-la e para mantê-la, formando unia nova-nobreza,que fornecerá ps meios para a consolidação das emergentesmonarquias feudais em Estados orgânicos e possíveis.

Contribuição relevante para medievalistas e edu-cadores, este livro ultrapassa as frágeis compartimentações doconhecimento, inserindo-se em um contexto mais amplo. Um

10

estudo leve, instigante e não menos profundo, que permite aosleitores uma melhor compreensão do local da ciência e dosaber lato sensu e de seu papel social enquanto agente trans-formador de indivíduos, e mais particularmente de seuspróprios agentes, de suas relações com o poder e a sua realdimensão como poder.

Enfim, uma obra absolutamente atual, pois ao estudareste mundo dos profissionais do saber, remete à própria per- ,plexidade que vivem os profissionais da cultura em um mundoneo-liberal, perplexidades estas que podem encontrar simili-tudes e alguns parâmetros de análise neste rico ensaio, queanalisa antropologicaniente o papel dos homens de saber nosséculos XlV e Xy e as mudanças impostas pela nova realidadeque se inicia: o mundo moderno.

Carlos Roberto F. Nogueira

I I

Page 5: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

introdução

O próprio título deste livro convida a alguns esclarecimen-tos, para definir simultaneamente seus propósitos e limites.

O quadro cronológico e geográfico escolhido não coloca,ao que me parece, maiores dificuldades. I^or "final da IdadeMédia" nós compreendemos essencialmente os séculos XIV e XV,considerando que essa época foi precisamente marcada pelaemergência, ou, dê qualquer modo, pela afirmação do gruposocial que nós desejamos estudar, e ao mesmo tempo pelo surgi-mento de uma documentação que torna possível esse gêneto deestudos. Se os anos 1500 constituem um marco que, à exceçãodo capítulo de conclusão, de modo geral nos abstívemos de trans-por, é menos, na verdade, por eles representarem um momentode mutação decisiva do que pelo fato de que, apesar de havercontinuidades inequívocas antes e depois dessa data, era

^.'necessário, para respeitar o volume concernente a este livro,'•fixar-lhe um termo. Em compensação, não deixamos de remon-

, 'ttf, à medida que o tema exigisse, até o século Xfn, e por vezesHO século XII, já que muitos dos fenômenos observáveis no final

, (b Idade Média encontram aí sua origem e mesmo suas primeiras' manifestações, pelo menos nos países atingidos desde essa época

um grande movimento de renovação social, religiosa, política

13

Page 6: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

e cultural designado, muitas vezes, Sob a denominação global de"Renascimento do século XII".

Quanto ao limite geográfico deste livro, nós desejaríamosestendê-lo ao conjunto da Europa Ocidental ou, se preferir, daCristandade latina desse tempo,' uma vez que essa sua histórianos parece fixada até o fim da Idade Média, apesar da emergên-cia dos primeiros Estados Nacionais, com vigorosos traçosunitários. Infelizmente, o desigual desenvolvimento daspesquisas, os limites de nossas próprias competências históricase lingüísticas e, na própria época em si - cabe dizer .-, os pata-mares variáveis dê avanço na evolução social, política e culturaldos diversos países europeus, não nos permitiram realizar plena-mente nossa ambição inicial. Desejaríamos, contudo, desculpar-mo-nos por haver com freqüência recorrido a exemplos france-ses, mais familiares para nós e, sem dúvida, para a maioria de nos-sos leitores. Procuramos, todavia, sempre recolocar o casofrancês em uma perspectiva mais ampla, tentando mostrar aqui-lo que, segundo as circunstâncias, o aproximava ou separava deseus países vizinhos, estivessem eles também já engajados nocaminho da monarquia nacional (Inglaterra, reinos ibéricos) ouao contrário, ainda presos à multiplicação das cidadés-estados edos principados independentes (Itália, Alemanha). Em contra-partida, é verdade, os exemplos mais distantes (Escócia, Hungria,Boêmia, Polônia, monarquias escandinavas) não serão evocados,nas páginas seguintes, a não ser marginalmente. Contudo, apesardas imperfeições, nosso projeto neste livro reside na descrição,por uma perspectiva comparada, de um fenômeno observávelem escala européia (naturalmente, com múltipla? variantes locaisé deslocamentos cronológicos de um país para outro).

Mas na verdade, o que, em nosso título, coloca mais proble-mas é evidentemente a expressão "gens de savoir". Sem nosfecharmos apriori em uma definição rígida, urge delimitar desdejá o que nós compreendemos por essa idéia e por que conside-ramos que ela correspondia, naquela época, a um grupo humanoespecífico a merecer um estudo histórico.

A expressão "gens de savoir" não pertence à línguamedieval. As palavras utilizadas então - e que nós retomaremosna seqüênciavdeste livro - vir litteratus (em castelhano letrado),ctericus, magister, philosophus - coincidem apenas parcial-

14

mente com o que se entende por "gens de savoir", e nós, por-tanto, optamos por não adotá-las. ~~

A expressão "gens de savoir", há que se admitir, tambémnão é muito corrente no francês moderno. Mas a palavra "in-itelectuais", que poderia ser empregada mais à vontade, compor-tando, por sua origem recente , um quê de anacronismo - anacro-nismo outrorá voluntária e brilhantemente assumido por Jacqueslê Goff no título de um livro clássico e sempre estimulante -,nãoseria suficientemente apropriada para designar ó conjunto dehomens dos quais desejamos falar aqui. Somente o alemão dieGelehrten seria, de fato, correspondente à idéia exposta.

Poderíamos pensar em outras formulações. Algumas como"diplomados" ou, para permanecer ainda mais próximos dovocabulário medieval, "graduados" (graduatí), no sentido de titu-lares de graus universitários (bacharelado, licenciatura oudoutorado), seriam excessivamente restritivas porque, se é ver-dadeiro que todos os graduados pertenciam efetivamente aogrupo que nos interessa e que, mais amplamente, a existência deuma formação de tipo escolar é um dos mais pertinentescritérios de definição desse^grupo, nós veremos, entretanto, queeste último incluía I também muitos antigos estudantes que nãohaviam obtido nenhum grau e muitos outros indivíduos que teri-am feito seus estudos, embora jamais houvessem freqüentadoinstituições habilitadas a emitir diplomas.

"Gens du livre", expressão usada às vezes pelos histori-adores, seria, sem dúvida, mais adequada.A aptidão não somentepara ler e escrever mas também para utilizar livros, fosse paraconservar certos tipos de conhecimentos, fosse para informaresta ou aquela prática social ou política, era, com efeito, uma dascaracterísticas mais importantes dos homens que nós desejáva-mos estudar nesta obra. O inconveniente dessa denominação

1 -A palavra "inteUectuel" só se torna um substantivo ao finaldo séc. XK. Cf. C. Charle,Naissance dês intellectuels (1880-1900). Paris: 1990.2 - J. Lê Goff, Lês intellectuels au Moyen Age, 2aed, Paris,1985.

15

Page 7: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

rseria, no entanto, fazer crer que esses homens tinham o absolutomonopólio do livro, o que não era o caso, e, sobretudo, privilegiaruni aspecto - certamente essencial - de suas atividades, em detri-mento de outros, ligados à oralidade, que não devem ser negli-genciados.

"Gens de savoir" impõe-se, a despeito de sua relativa impre-cisão, como a fórmula mais neutra, aquela que menos prejudicaos resultados da investigação histórica.

Esta fórmula recobre, em nosso espírito, dois elementos:primeiramente, o domínio de um certo tipo e de um certo nívelde conhecimento; em seguida, a reivindicação, geralmente admi-tida pela sociedade circundante, de cercas competências práticasfundadas precisamente sobre os saberes previamente adquiridos.A existência de indivíduos condizentes com esse duplo critérionão é, sem dúvida, uma novidade absoluta no fim da Idade Média,mas, como veremos na seqüência deste livro, acreditamos quesomente nesse momento oS "homens de saber" obtiveramnumérica e qualitativamente um peso social suficiente para quepossamos considerá-los, de uma vez por todas, como um grupoespecífico e como agentes eficazes de evolução, não somente in-telectual, mas religiosa, social e política, das civilizações ociden-tais.

Na Alta Idade Média, efetivamente - talvez generalizando,ou seja, deixando de lado algumas personalidades excepcionais-, o homem erudito era simplesmente o vir litteratits, quer dizer,9 homem que sabia ler e escrever em' latim de maneira mais oumenos correta; aliás, por outro lado, havia nessa época uma iden-tidade praticamente completa entre o grupo dos litterati e aque-le dos clérigos e dos monges, sendo.que podemos dizer que osleigos eram, por definição, percebidos como 'iletrados' (mesmoque, na realidade, sempre existisse, pelo menos na aristocracia,alguns laicos litterati e, ao contrário, inúmeros clérigos e mongesignorantes).

'A partir dos séculos Xlte XHI, esse esquema simplista perdetodo seu valor. Não somente o número de laicos litterati aumen-tara consideravelmente, mas o progresso simultâneo dos saberese das instituições de ensino acarretou, pêlo menos para vumelite- precisamente aquela da qual nos deveremos ocupar neste livro- um aumento geral dó nível dos conhecimentos, o que nos

16

impede de continuar a considerar agora como eruditos aquelesque possuem apenas o nível mínimo representado pela capaci-dade de ler e de escrever. Nós não trataremos, contudo,"aqui, cmprincípio, do problema da alfabetízação na Idade Média nem dascategorias sociais - por exemplo, o baixo clero e os mongescomuns - que, regra geral, possuíam um nível mínimo, o qual nãoultrapassavam. r

Em nossa época, com efeito, tornou-se possívelrpara quema isso se dedicou e contou com recursos intelectuais e finan-ceiros, adquirir os conhecimentos considerados então como denível superior. Na primeira parte deste livro, procuraremos veri-ficar quaís eram os componentes reconhecidos dessa culturaletrada, ou, dito de outro modo, os conhecimentos que constiVtuíam, no final da" Idade Média, a bagagem normalmente requeri-da para um homem culto (capítulol). Buscaremos também veri-ficar concretamente graças a que tipo de escolas (capítulo 2) ede livros (capítulo 3) esses homens eruditos podiam se formar êalcançar aqueles conhecimentos cujo domínio era o elementoessencial de sua definição social.

Se nos limitássemos a Isso, observaríamos apenas urtí aspec-to do temário, concernente talvez a uma certa sociologia do con-hecimento; caberia, por seu turno, a seguinte questão: o que é umintelectual na Idade Média?

v Julgamos, contudo, ser útil completar esse percurso comum outro, que ocupará a segunda e a terceira partes dó presentelivro: nós nos interrogaremos sobre as competências que eramreconhecidas aos eruditos e sobre o lugar que lhes era, definiti-vamente, reservado no seio de uma sociedade, ela própriaenvolvida por um processo de diversificação e de complexidadecada vez mais vigoroso.

A que tipo (capítulo 4) e, mais precisamente, a que nível(capítulos 5 e 6) de funções sociais as competências dos erudi-tos, fundadas sobre o domínio de saberes teóricos e abstratos,lhes dariam acesso? Em seguida, procuraremos passar do exercicio das competências para a realidade sociológica: os eruditos serepartiriam simplesmente no seio de categorias tradicionais(clero, aristocracia, burguesia), exercendo em cada uma delas umcerto papel funcional, ou eles teriam alcançado um nível sufirciente de consciência de si - além de reconhecimento social e

17

Page 8: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

político - para se retirarem (e segundo quais processos?) dasestruturas sociais preexistentes e formarem pelo menos o iníciode uma categoria autônoma (embora, naturalmente, nãomonolítica, pois tinha forçosamente suas hierarquias internas esuas especificidades nacionais ou regionais)? Essas são asquestões que nós abordaremos nos últimos capítulos destelivro, onde nos esforçaremos por -levar em conta simultanea-mente os elementos objetivos de diferenciação social, tais comoa riqueza, as estruturas familiares, os desníveis das uniões, etc.(capítulo T) e as representações pelas quais os próprios con-temporâneos tentavam apreender as mudanças sociais, sendo aprecisão maior ou menor dessas representações, sem dúvida, umdos critérios mais pertinentes do estágio de consciência de sidos próprios grupos em vias de constituição (capítulo 8). Umabreve conclusão (capítulo 9) recordará, enfim, que o fenômenoestudado se prolonga para bem depois da data convencional de1500 e que, nesse domínio como em muitos outros, a oposiçãoentre Idade Média e Renascimento, embora não totalmentedesprovida de significado, não deve ocultar, contudo, poderosascontinuidades.

Um último detalhe deve ser oferecido ao leitor, sob a formade desculpas. Por razões que remontam sobretudo aos limites deminhas próprias competências científicas, eu abordarei neste

- livro apenas os homens eruditos cristãos, ortodoxos em suamaioria, heterodoxos algumas vezes, na medida em que nos foipossível capturar sua existência. Na mesma proporção, eu nãoignoro a existência, no Ocidente desse tempo, de minorias reli-giosas que tiveram, elas também, seus homens letrados. É verdadeque, a partir do século 'Xni, as comunidades muçulmanas daEspanha, da Sicflia e do sul da Itália rapidamente desapareceram,o que, sem dúvida, foi acompanhado, mesmo antes de suadesaparição, pelo deslocamento de suas estruturas sociais e pelodeclínio de suas atividades intelectuais, tão brilhantes em épocaanterior.

Erfl contrapartida, as numerosas comunidades judaicas pre-sentes em quase todos os países do Ocidente medieval conser-varam uma vida intelectual bastante ativa até o final, da IdadeMédia. Pode-se mesmo pensar que seu nível médio de educaçãoe de conhecimento era freqüentemente mais elevado que o das

18

populações cristãs circundantes. Contudo, tratar dos eruditosjudeus do fim da Idade Média requer conhecimentos históricose lingüísticos que eu não possuo. Esta é a principal desculpa poressa lacuna, pois, além do mais, teria sido bastante discutível tirarum tema de uma célula isolada no seio da sociedade maior, si-tuação que certamente foi agravada de forma considerável nosséculos XIV e XV pela escalada quase geral de antijudaísmocristão, o qual, contudo, não chegou a eliminar qualquer conta-to, como têm mostrado trabalhos recentes tanto sobre personal-idades como Gersonide (l 28&1344), filósofo judeu fortementeligado a clérigos e religiosos de seu, tempo, quanto sobre o papeldos médicos judeus, por vezes ouvintes das universidades cristãse, ao mesmo tempo, práticos bastante respeitados pelo conjuntodas populações de todas as confissões religiosas.

3 - Cf. J. Shatzmiller, "Étudlants juifs à k feculté demédecine de MOntpcIUer, dernier quart du XIV' siècle",Jewfsb History, 6 (1992), p, 243-255.

Page 9: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

primeira parte

OS FUNDAMENTOSDA CULTURA

21

'tòM

Page 10: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

O próprio termo "homens de saber", que constitui o títuloda presente obra^ já diz o suficiente. Os homens de que tratamosaqui se distinguiam do restante da sociedade tanto pela posse deum certo tipo de cultura quanto por uma certa idéia acerca danoção mesma de cultura. Trata-se, antes de mais nada, de procu-rar compreender os contornos e o estatuto dessa cultura que eraa deles. '

Sobre o domínio de quais saberes - com exclusão de ou-tros - fundava-se tal cultura? Mediante quais condições ela eraadquirida? Seria ela preciosa herança transmitida de geração emgeração pela palavra dos mestres ou tratar-se-ia de territóriosnovos conquistados pelo espírito, este mesmo estimulado pelasexpectativas da sociedade? Sua bagagem seria exclusivamenteconfiada à mera memória ou os livros também teriam algumpapel na conservação, circulação e mesmo nos eventuaisenriquecimentos desses saberes?

Essas são as principais questões às quais procuraremosresponder nos três capítulos da primeira parte deste livro.

capítulo lt1

OS SABERES

Como já dissemos na introdução, nós .gostaríamos de falarneste livro dos indivíduos qüè têm em comum o domínio, piaisou menos completo, de um certo número de disciplinas intelec-tuais, as quais englobariam tudo o que pudermos conceber comocultura erudita daquele tempo. Sem dúvida, não podemos dar detal cultura uma definição verdadeiramente clara e simples, dadoque, nos últjmos séculos da Idade Média, ela já se revestia, segun-do o momento e o lugar, de aspectos diversos. Podemos, porém,considerar quê ela conservava ainda, através dos principais paí-ses do Ocidente, uma relativa unidade que se apagara progressi-vamente na época moderna.Torna-se, então, possível destacar-lheos grandes traços característicos, com a condição de não seesquecer de assinalar certas particularidades nacionais e certasevoluções, -

• ,': '' ' '•

I. AS BASES: Q LATIM E ARISTÓTELES' • ' • :\ ; . , : . . .

Uma das características fundamentais da cultuía erudita da ~Idade Média,é o lugar essencial que nela possuía à língua latina.Por vezes, dizemos que a civilização medieval é uma civilização!

23

Page 11: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

,'l

tm

bilíngüe, marcada pela coabitação, em todos os países doOcidente, do latim e de uma ou até mais línguas vernáculas,Deve- fse, entretanto, compreender de que sé tratava, de fato, esse bi-lingüismo, ou, se preferirmos, essa "diglossie" medieval. Desde aAlta Idade Média, com efeito, não se filava mais o latim em parte'alguma do Ocidente, uma vez que o latim deixara de ser a línguamaterna, ou mesmo a língua predominante de qualquer gruponumericamente importante. Por todo lado, novas línguasvernáculas se impunham, freqüentemente elas mesmas divididasem vigorosos subgrupos de dialetos. Nos países da Antigüidaderomana, falavam-se diversas línguas: italiano, catalão, castelhano,português, lahgue d'oc e larígue d'oü; em outros lugares, triun-favam as línguas anglo-saxônicas ou germânicas; na Europa cen-tral, havia a reunião de países de língua eslava ou húngara;enquanto que, na direção do Atlântico, as línguas célticas eram jáde alguma forma marginalizadas.

No final da Idade Média, essas línguas vernáculas já haviamalcançado seu período áureo, comportando, inclusive, um longopassado e múltiplos títulos de glória. Socialmente, elas eram fa-ladas tanto pela mais alta aristocracia quanto pelo povo comum;muitos nobres, e até príncipes, não falavam outras línguas e igno-ravam o. jatim/Seu papel cultural era igualmente bem estabeleci-do. Mesmo se algumas (o bretão, o basco...) fossem ainda essen-cialmente línguas orais, a maior parte, desde há muito, dispunhada escrita e se alimentava de uma produção abundante e diversa.Visto que essas línguas vernáculas não eram exclusivamente,aquelas da comunicação usual: eram também línguas literáriasque, na maior parte dos países, haviam já proporcionado - oucomeçavam a íazê-lo - obras-primas em múltiplos gêneros: poe-sia épica, cortesã ou satírica, romances, teatro, história, etc. Enfim,línguas de prática cotidiana, as línguas vernáculas tornavam-se,mais cedo ou mais tarde, em proporções variáveis de acordo como país, línguas de gestão, administração e até governo; elas eramusadas para contabilidade, redigir estatutos ou regulamentos, edi-tar leis ou emitir sentenças, discursar em assembléias ou advogardiante de tribunais.

A despeito de tudo isso, o estatuto da língua vernácula man-tinha-se discutível e sua dignidade contestada. Os gramáticos pre-sumiam ignorar sua existência, pelo menos até o século XV, e ela

não era, para falar _com sinceridade, ensinada como tal e demaneira autônoma1. Relativa pobreza no léxico, pelo menos cmcertos registros, incertezas morfológicas, talvez sintáticas, e insta?bilidade ortográfica eram o vestígio dessa ausência de dimensãoteórica (que, de feto, tinha pelo menos a vantagem de coloca-laao abrigo dos riscos do purismo e do academicismo).

Completamente diferente era o estatuto do latim. Seuprestígio persistente tinha longínquas origens, que remontam aoRenascimento carolíngeo (séculos VIII e IX). Foi, com efeito,nessa época que, não somente as línguas vernáculas (pelo menosas línguas romanas) se haviam definitivamente separado do latim,como também este, restabelecido pela renovação do escrito edas práticas escolares em sua relativa pureza, permanecia confi-nado, de alguma maneira, na posição privilegiada de língua eru-dita e elitista. Posição que se tornava ainda mais privilegiada pelofato de não ter concorrência, dado que as outras línguas antigas-notadamerite o grego e o hebraico - haviam sido quase com-pletamente esquecidas no Ocidente cristão e eram conhecidasexclusivamente; por um pequeno número de indivíduos isolados.

O latim medieval era, antes de tudo, a língua sagrada, aque-la da Escritura, aquela da liturgia, do culto e dos sacramentos; emoutras palavras, era a língua dos padres e monges. No domínioreligioso, a língua vernácula, restringia-se praticamente à pre-gação oral destinada aos leigos. A redação ou a tradução em lín-gua vernácula de obras religiosas, a começar pela própria Bíblia,ainda que não fosse completamente desconhecida ou proibida,

któo era praticada sem muita parcimônia e suscitava facilmente a|, desconfiança da Igreja, sobretudo quando os autores eram, eles| também, laicos.

O latim era, por outro lado, a língua portadora de toda a he-. da Antigüidade. Quer se tratasse de obras latinas originais

l de obras gregas traduzidas em latim desde a Antigüidade ounte a Idade Média (diretamente ou pela mediação de inter-

ios árabes), quase tudo aquilo que o Ocidente possuía nol da Idade Média em matéria de gramática, de filosofia, de ciên-

1 • Cf. S. Lusignan, Parler vulgairemént. Lês íntellectuelstt Ia langúe Jrançafse auxXllf et XIV síècfes, París-Mon-tital, 1986.

24 25

Page 12: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

, . • ' * v-V' ' t a j j

saber que ele, entretanto, dominava perfeitamente ^do mais, Oresme havia acompanhado a traducfe) ^

;cs comentários originalmente escritos em línpttl^'ele abria caminho para os primeiros tratados polífl- :;$

como oSonge du vergier do canonista Évrard deybra praticamente contemporânea. , ' , , , ' ' 'yjutros domínios da cultura erudita permanecem p «'•""• exclusivo do latim. E foi igualmente em latim que <

as obras modernas que, nesses domínios, vieram >/icrança antiga. Mesmo as disciplinas mais recentes," "da cultura medieval, tal como o direito canôni-„itica, permaneceram exclusivamente latinas. ' i

f/Jas Escrituras e da cultura erudita, o latim foi tatiK j"*/rla natural, a língua do ensino. Estudar era/antes de

S udar"as letras"(litterae), quer dizer, © latim. Aqueleidado era considerado Úttefatus, o que significava,icnte, que ele sábia latim. v ,

a verdade, trata-se de um tema complexo, onde; jclaro. Seria possível ensinar unicamente em

para crianças pequenas que ignoravam comple- •língua? Existiam, nos séculos XIV e XV, inúmeros .

possuíam um melhor domínio da língua verriacw ', (atim, mesmo np tocante à leitura e à escrita. $eri»:r .tír que tais indivíduos tivessem outrora aprendido a

exclusivamente em latim? Como explicar, ao ,, sua boa prática na língua materna escrita e suaseu esquecimento do latim? Mesmo que nada nos

a existência de escolas puramente vernáculas,hão admitir que ao menos uma parte do ensino

dada em língua vernácula. Mas nosso parco co-,''íesse ensino não nos permite afirmar mais nada.

ji1" {japartida, é verdade que, para os níveis mais elevar ;if -iftntinha o uso universal, em todo o Ocidente. Isso >A (jualquer um que tivesse freqüentado a escola com ^

na Idade, Média, não apenas teria aprendidotal, mas deveria dele se servir também paia >

matérias ensinadas na escola, porque o latim'^a língua de todas as disciplinas eruditas, Ora, 1

eram essencialmente livrescas. Elas repousavam

tf,

27

Page 13: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

cia (ciências naturais, matemática, astronomia, cosmologia, etc.),de direito, de medicina, de história antiga, sem falar nos Padres daIgreja, era tudo ainda em latim. Efetivamente, o legado assimtransmitido era incompleto: toda a obra da cultura antiga hayiasido esquecida no Ocidente, em particular tudo aquilo que, da li-teratura grega, não houvesse sido traduzido para o latim. Mas parao que restara disponível, o latim desfrutava de um quasemonopólio. Até o.final da Idade Média, pouquíssimas obras ori-ginais haviam sido produzidas em língua vernácula nas disci-plinas de cultura erudita. Julgavam-se essenciais as traduções emesmo essas teriam sido tardias, pouco numerosas e freqüente-mente medíocres. Além dos mais, essas traduções não eramexatamente destinadas aos homens de cultura, conhecedores dolatim, mas a um público laico, um pouco difícil de ser delimitado,seni dúvida bastante restrito* provavelmente recrutado, sobretu-do, na alta aristocracia e nos ambientes de corte.

Na França, é no século Xin que aparecem as primeirastraduções de obras latinas antigas, mas será necessário esperarmeados do século XIV e as solicitações explícitas dos reis João U,o Bom (1350-1364) e, sobretudo, de Carlos V (l 364-138Q) paraque os empreendimentos mais sistemáticos e de maior enver-gadura sejam lançados. São então traduzidos para o francês, aomesmo tempo, inúmeros clássicos como Cícero ou Tito Lívio,inúmeras enciclopédias medievais (Barthélemy rAhglais,Thomasde Cantimpré), a Cidade de Deus, de Santo Agostinho, oPolicraticus de Jean de Salisbury; mas a principal peça de talmovimento foram as primeiras traduções de Aristóteles porNicolas Oresme, realizadas entre i 369 e 1377 :& Ética, a Política,a Economia, bem como o Livro do céu e do mundo,

Esses textos, todos destacando a cultura erudita, não eram,de fato, aqueles que seriam correntemente estudados nas eso>Ias. Era esse em particular o caso de Aristóteles, representado ape-nas por um aspecto bem peculiar de sua obra, pouquíssimodifundida na universidade, rnas particularmente suscetível deinteressar diretamente aos homens de poder. Pelo menos, tratava-se, nesse último caso, de traduções cuidadosamente elaboradas,apesar de inúmeras falhas que revelavam a que ponto um letradodo porte de Oresme, doutor em Teologia e antigo grande mestredo colégio de Navarra, tinha dificuldade, para verter para língua

vernácula um saber que ele, entretanto, dominava perfeitamenteem latim. Além do mais, Oresme havia acompanhado a traduçãode importantes comentários originalmente escritos em línguavulgar. Por aí, ele abria caminho pára os primeiros tratados políti-cos em francês, como oSonge du vergier do canonista Évrard deTrémaugon, obra praticamente contemporânea.

Mas os outros domínios da cultura erudita permanecem oapanágio quase exclusivo do latim. E foi igualmente em latim queforam redigidas as obras modernas que, nesses domínios, vieramcompletar a herança antiga. Mesmo as disciplinas mais recentese mais específicas da cultura medieval, tal como o direito canôni-co e a escolástica, permaneceram exclusivamente latinas.

Língua das Escrituras e da cultura erudita, o latim foi tam-bém, como seria natural, a língua do ensino. Estudar era,-antes demais nada, estudar "as letras"(W#era«?),<iUer dizer, o latim.Aqueleque havia estudado era considerado títtefntus, o que significava,fundamentalmente, que ele sábia latim.

Para dizer a verdade, trata-se de um tema complexo, ondenem tudo parece claro. Seria possível ensinar unicamente emlatim, inclusive para crianças pequenas que ignoravam comple-tamente essa língua? Existiam, nos séculos XIV e X\f inúmerosindivíduos que possuíam um melhor domínio da língua vernácu-la do que do latim, mesmo no tocante à leitura e à escrita. Seriapossível admitir que tais indivíduos tivessem outrora aprendido aler e a escrever exclusivamente em latim? Como explicar, aomesmo tempo, sua boa prática na língua materna escrita e suaignorância ou seu esquecimento do latim? Mesmo que nada nospermita afirmar a existência de escolas puramente vernáculas,parece-nos difícil hão admitir que ao menos uma parte do ensinoelementar era dada em língua vernácula. Mas nosso parco co-nhecimento desse ensino não nos permite afirmar mais nada.

Em contrapartida, é verdade que, para os níveis mais eleva-dos, o latim mantinha o uso universal, em todo o Ocidente. Issosignifica que qualquer um que tivesse freqüentado a escola comalguma assiduidade na Idade Média, não apenas teria aprendidoo latim enquanto tal, mas deveria dele se servir também pataestudar as outras matérias ensinadas na escola, porque o latimera, nós já vimos, a língua de todas as disciplinas eruditas. Ora,essas disciplinas eram essencialmente livrescas. Elas repousavam

"*,'

26 27

Page 14: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

sobre as "autoridades" que remontavam à Antigüidade, paga oucristã, e eram redigidas em latim. Não seria possível ter acesso atais autoridades, cujo comentário formava o essencial do ensinomedieval, ignorando-se o latim. E esse mesmo comentário eradado em latim, fosse sob a forma de um ensino oral, fosse sob aforma escrita de "aparatos" e de "leituras", desde então promovi-das ao posto de autoridades secundárias e tornadas, por seuturno, fontes de saber. Era igualmente em latim que eram redigi-dos os instrumentos de trabalho - tabelas, concordâncias,dicionários - que facilitavam o domínio dos textos e dos comen-tários eruditos. . ,

Em resumo, praticamente não seria possível, durante aIdade Média, pertencer ao grupo de pessoas de saber *- que sãoo objeto do presente livro - sem ser latinista.

Isso quer dizer que as pessoas de saber eram as únicas, nofim da Idade Média, a conhecer o latim? Certamente não. De fato,eu já disse, qualquer um que tivesse àquela época um suficientedomínio da leitura e afortiortàa. escrita, havia, sem dúvida, rece-bido, pelo meaos, uma tintura de latim. Evidentemente, era pos-sível que não se guardasse disso grande lembrança, mas esse nãoera, pelo menos, o caso de uma categoria bem precisa, a dos cléri-gos e religiosos, cujas obrigações litúrgicas conduziam a utilizarquase cotidianamente o latim: Nós já explicamos, na introduçãodeste livro, por que utilizamos a expressão homens de saber paradesignar uma categoria de pessoas nos últimos séculos da IdadeMédia. Mas é fato que, naquela época, a maior parte dentre elespossuía um conhecimento ao menos sumário do latim, o qual erarequisitado para a celebração de missas, a distribuição de sacra-mentos, a recitação do ofício. Os bispos desse tempo lamen-tavam-se bem menos que seus predecessores daÂlta Idade Médiasobre a ignorância crassa e os barbarismos escandalosos dospadres. Talvez estes últimos não fossem, de fato, capazes de es-crever ou de falar latim, mas compreendiam praticamente tudo oque diziam os textos das Escrituras e dos ofícios, os rituais sacra-mentais e as prescrições correntes do direito cánônicoretomadas nosjestatutos sinodais.

Se nós retomarmos nossa gente de saber, qual seria anatureza do seu conhecimento do latim? Aqui, conviria recordarque se o latim medieval pode ser considerado como uma língua

28

viva (e, enquanto tal, suscetível de certas particularidades locaise de algumas evoluções), ele era, entretanto, uma língua aprendi-da è que nós podemos conceber como artificial, nesse sentido denão mais corresponder à língua materna de ninguém.

O nível de conhecimento do latim deveria variar ide urnindivíduo para outro. Os mestres da universidade eram teorica-mente capazes de escrever e mesmo de falar com facilidade(visto que os estatutos lhes fizessem interdição de ditar um cursopreviamente redigido); cabe ainda observar que se tratava dolatim escolásticó, quer dizer, de uma língua bem particular, bas-vtante técnica, quase um jargão, com vocabulário estereotipado esintaxe elementar, indiferente a qualquer busca de elegâncialiterária. Mas os simples estudantes estavam, sem dúvida, menosà vontade, apesar da obrigação que lhes era oficialmente cobra-da^ de não falar outra língua que não o latim, pelo menos empúblico e até mesmo no interior dos colégios. Seu latim deveria^assemelhar-se provavelmente à língua pretensiosa e ridícula queRabelais colocará na boca de seu "escolar limousin".

As mesmas diferenças de nível se reencontram na práticaadministrativa. Certas chancelarias, noíadamente a chancelariapontificai, possuíam, entre seus secretários latinistas de grandequalidade, retóricos impecáveis capazes de redigir em longosperíodos ritmados os preâmbulos majestosos das cartas maissolenes. Mas, ao lado disso, os estatutos, os diplomas correntes, asenquetes administrativas, os documentos fiscais, as sentençasjudiciárias, para não falar de simples atos notariais ou descontas,mesmo quando escritos em latim, eram elaborados em uma lín-gua infinitamente 'menos cuidada, "um latim grosseiro, acessí-velaos leigos" (latinum grossum, pró laicis amicum) como dizia,por volta de 1440, um manual de uso dos conselheiros doParlamento de Paris intitulado Style de Ia chambre, áesenquetes, escrito em uma língua bastante próxima da línguavernácula peta estrutura das frases e pela escolha do vocabulário.As desinências latinas nem mesmo procuravam mais, aqui, escoar

2 - Citado à página 335 em EAutrand, Tapparition d'unnouveau groupe social". Hístoire de Ia fpnctionpubliqueén France, dirigida por M. Pinet, t. l,jOes origines au XV*siècle, Paris, 1993, p. 311-443.

29

''fclil

Page 15: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

dei que o latim era apenas uma espécie de máscara que fantasia-va um pensamento cujas verdadeiras categorias eram doravanteaquelas da língua vernácula. Muitos desses atos foram, por outrolado, recopiados em formulários existentes na maior parte daschancelarias, dos cartórios e dos ofícios de tabeliães, o que apenasacentuava seu caráter estereotipado e sua pobreza lingüística.

Não concluamos, entretanto, tão rapidamente sobre ò abas-tardamento do latim no final da Idade Média. A escolha, nos do-cumentos administrativos, dessa língua tão elementar correspon-dia, cohio vimos, ao desejo de ser inteligível para o maior númeropossível, mesmo para os mais medíocres latinistas (pró laiasamicuni), sem renunciar ao prestígio (e às comodidades) do latim.Mas outros redatores de atas - ou mesmo em outras ocasiões - per-

^maneceram perfeitamente capazes de ler tratados latinos ou deescrever em uma língua mais pura. A partir de meados do séculoXIV, o humanismo, nascido a princípio naToscana e depois difun-dido por toda a Itália e para além dos Alpes, especificamente emAvignon no tempo do papa Benedito Xffl e em Paris, de Carlos VI,encontrou no mundo dos escrivães de justiça e dos secretários dechancelaria seus melhores partidários. Mais ainda que os univer-sitários, foram esses profissionais da escrita pública os que bus-caram nas cartas e nos discursos de Cícero os modelos capazes dedar a seus escritos aquela elegância e aquela força de convicçãoque haviam caracterizado os melhores oradores da Antigüidade.Uma carta de Coluccio Salutati (1331-1406), o grande humanistadê Florehça, então em guerra contra Milão, era mais temível - dizia-se - que um esquadrão de cavalaria.

De tato, o sucesso do humanismo não deve diminuir a lentae irresistível progressão das línguas vernáculas em todos os

'. domínios, desde a literatura até aprática política, administrativa ejudiciária. Acima das simples razões de comodidade e de inteligi-bilidade, as línguas vernáculas beneficiaram-se, sobretudo, do

3 - Citado em E. Garin, La Renaissançe. Histoire d'unerévolutlori culturette, trad.fr. Paris: 1970, p.30.

crescimento quase geral dos sentimentos "nacionais quecomeçavam a ver nelas uni dos componentes da identidadenacional ou étnica. Ao universalismo cristão e erudito do latim, -.',elas opunham sua suposta adequação ao próprio gênio dá raça:

Umas vezes com reticência, outras, com determinação -dado que o purismo humanista: começava ridicularizar o latimrude ou incorreto que muitos dentre eles eram incapazes deultrapassar -, Os próprios homens cultos cada vez mais se depa-ravam com o uso da língua vernácula. Alguns chegaram mesmoa tornar-se seus propagandistas, escrevendo, sob o exemplo deDante (De vulgari eloquentia, c. 1305), as primeiras "defesas eilustrações".Temos, como exemplo, o que fez Nicolas Qresme noprefacio da já citada tradução de Aristóteles; por reconhecer asdeficiências de tais traduções, atribuindo-as ao fato de que essamatéria "jamais teria sido tratada e exercida em tal linguagem",ele acrescia, com arrogância, que "traduzir^tais livros em francêse oferecer em francês as artes e as ciências é um trabalho pro-fundamente proveitoso; porque o francês ê em si uma linguagemnobre e comum dirigida a pessoas de grande engenho é boaprudência. E como diz Cícero em seu livro Achademiques, ascoisas de peso e de grande autoridade são do deleite e do agradodas pessoas e da linguagem de cada país." ,

Na prática cotidiana, as pessoas cultas e letradas eram, por-tanto, impulsionadas sem cessar a utilizar prioritariamente a lín-gua vernácula. Por toda a parte, nos séculos XIV e XV, o latimrecuava maciçamente nos arquivos aos nobres ou das cidades. Àpartir de 1380-1400, para além das disciplinas estritamente esco-lares ou universitárias, eram cada vez mais raros os autores,mesmo os oriundos de escolas, que houvessem deixado umaobra exclusivamente latina. Tomemos o grupo dos ditos N

primeiros humanistas franceses: se Nicolas de Çlamanges (c.1363-1437) escreveu exclusivamente em latim, se a obra trance-/sã de laurent> de Premierfait (?-apr. 14Í8) restabelece astraduções (Cícero, Bocage), Jean de Montreqil (1354-1418) pfe-

4 - Malstre Nicole Oresme,£e livre de Etbtque d'Arístote, publisbed from the Text of Ms. 2902, Bibliothèquéroyale de Belgique, editado pela A. D. Metiut, New York,1940, p. 100-101.

II

Page 16: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

receu duas versões - uma latina e uma francesa - de seus princi-pais tratados de propaganda política (primordialmente seu Traitécontre lês anglais), como já havia feito antes Evrard deTrémaugon para o Songe du vergier, e, no caso do chanceler JeanGerson (1363-1429), a obra latina ligada à universidade temcomo contrapartida sua obra em francês onde os sermões dirigi- ,dos à corte juntam-se aos pequenos tratados espirituais destina-dos as "pessoas simples".

Não se pode^entretanto, dizer que ò progresso das línguasvernáculas no final da Idade Média acarretou, sobretudo naselites cultivadas, um verdadeiro recuo do latim. Podemos atémesmo sustentar que o que ocorrei! foi, antes, um reforço dadiglossie medieval, nesse sentido .erft que, deixando de corres-ponder às clivagens sociais simples (erudito - popular; clerical -laico; littemtus --ittiteratus) , esta foi transportada para o própriocoração das disciplinas escolares e de práticas, tanto orais quan-to escritas, da vida política, jurídica e administrativa. A escolha dalíngua, para os indivíduos que dominam cada vez melhor o duploregistro do vernáculo e do latim (para não falar aqui da

, renascença ainda tímida e essencialmente italiana do grego), cri-aria doravante estratégias cada vez mais refinadas: a preocupaçãocom a eficácia política e com a afirmação lingüística do senti-mento nacional continuava a se opor ao apego a um universalis-mo cristão e cultural, cuja garantia era o latim, ao mesmo tempoque a reivindicação de identidade daqueles^cüjos estudos e gos-tos podiam constituir-se como castas profissionais. À medida queperdia sua legitimidade cultural, o latim, sempre corajosamentesustentado pela Igreja e pela escola, terá seu valor acrescidocomo sinal de reconhecimento' social e elemento constitutivo daordem estabelecida. O latim permanecia como a língua damemória.

A formação inicial das pessoas cultas não se limitava, naIdade Média, à aprendizagem do "latim; ela era normalmente com-plementada, por qualquer um que ultrapassasse ô nível elemen-tar, pela jniciação à"fiJosofia".Esse hábito se manteve até o sécu-

5 - Cf.H.G/undmann,J«ffettjíws - iüitteratus. DerWandeleiner Bildungsnorm vom Altertum Zum Mittelalter,^4«;Wz)für Kulturgeschichte, 40 (1958), p. 1-65.

Io XY para designar o Conteúdo, dos ensinamentos de base, comose dizia, à moda antiga, das "sete artes liberais", repartidas entre ótrivium (gramática, retórica, dialética) e quadrlvium (aritmética,música, geometria, astronomia). De fato, essa classificação tradi-cional deixara de ser, desde o século Xni, verdadeiramente^ òpe-ratória. Efetivamente, o ensino do latim correspondia, em certamedida, à gramática, eventualmente coniplementada pela retóri-ca, quando a leitura dos clássicos adquiria uma dada importância.Mas, em seguida, vinha - o que não calhava tão bem rio esquematradicional - a iniciação à dialética, digamos mais simplesmente,à lógica, que completava, em geral, algumas noções emprestadasàs disciplinas do quadrivium (no essencial, um pouco de arit-mética e- de cqsmologia elementar) e, sobretudo, as lições defilosofia natural e moral não previstas no curso original de artes!

Para as matérias científicas, utilizavam-se menos os autoresantigos em si do que pequenos manuais, bastante simples, com-postos na Idade Média, como o De sphaera de Jean deSacrobosco, que data dos primeiros anos do século Xm, emAstronomia.' Mas, no restante, tudo, ou quase tudo, repousavasobre Aristóteles. De Aristóteles, possuíam-se, há tempos, tratadosde lógica, cujo conjunto formava o Organon. A primeira partedeste último, ou Lógica vetus, traduzida desde o final do século

, V por Boécio, sempre fora conhecida e estudada no Ocidente; ostratados seguintes (Lógica nova), traduzidos na primeira metade"do século XII, eram ensinados nas escolas parisienses desde' osanos 1150. No final da Idade Média, esse conjunto havia jáadquirido um uso quase universal: ao texto mesmo de Aristótelesse haviam juntado alguns manuais mais recentes, sendo que o *mais propagado destes eram as Sumrnulae logícates de Pierred'Espagne (c. 1210-1277).

Contudo, para os- ocidentais do final da Idade Média,Aristóteles não era mais somente um mestre de Dialética. A par-tir dos anos 1200, já se tinha à disposição, em tradução latina, aquase totalidade de suas obras filosóficas^ Física, Metafísica,pequenos tratados de ciência natural (Parva naturalia),Tratadoda alma, Livro do céu e^Livro do mundo, Meteorologia, Ética,Política. A princípio, formalmente proibido (1210-1215), o ensi-no da filosofia de Aristóteles foi progressivamente tokrado e,enfim, oficialmente admitido na Universidade de Paris (estatuto'

32 33

Page 17: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

da faculdade dç artes de 1255).A partir de então, ele passou a serassumido pela maior parte das faculdades de artes criadas poste-riormente, ainda que pareça que, em algumas universidadesmeridionais (Bolonha, Montpellier, Toulouse), a gramática e aretórica tenham permanecido como matérias, dominantes e quea filosofia não tenha jamais ocupado mais do que um lugarsecundário. Também não se tem certeza de que nas escolas deníveis mais baixos, o conjunto da obra de Aristóteles fosse estu-dado de maneira sistemática. No entanto, pode-se supor quequalquer pessoa que houvesse recebido na Idade Média uma for-mação de um certo nível, fosse na. Universidade ou em algumaescola pfé-uhiversitária, teria sido, por essa mesma razão, iniciadana lógica de Aristóteles ou, pelo menos, nos aspectos mais co-nhecidos de sua filosofia.

Çssa vasta difusão contrasta evidentemente com o desco-nhecimento praticamente completo que se tinha então dePlatão, cuja principal obra traduzida em latim, o Timeu, pratica-mente cessara de ser estudada no Ocidente desde o século XII.

Isso não significa quê todos os intelectuais medievais hou-vessem aderido ao aristotelismo, tomado como sistema filosóficocoerente. Houve, de foto, na Idade Média os aristotélicos e até,como dizemos às vezes, os "aristotélicos integrais". A faculdadede artes de Paris nos anos 1260-1270, a de Pádua durante os sécu-los XIV e XV haviam sido as principais forças dessa corrente, maisespontaneamente designada pelos contemporâneos sob o epíte-to de^aveiroísta", cujos adeptos eram, com freqüência, expostosà hostilidade de seus colegas teólogos e às condenações pelaIgreja. O aristotelismo "integral" ou !heterodoxo'Vsobretudo com-preendido à luz dos comentários de Averroes (1126-1198), os

1 quais teriam sido traduzidos do árabe para o latim nos anos 1220,voltava-se j por sua vez, para uma exposição de doutrinas dificil-mente conciliáveis com a revelação cristã. Eternidade do mundoe unidade do intelecto (em outras palavras, negação da existên-cia da alma como substância espiritual, individual e imortal) eramas mais visíveis pedras do caminho. Juntemos a isso, a crença aris-

6 - Cf. L. J. Paetow, The Arts Gourse at MedievalUriiversities with Special Reférence to Grammar andRbetóric, Champaign, 1910.

34

totélica no determinismo astral e uma definição puramentehumana da felicidade e da virtude, identificadas cont contem-plação bem aventurada do filósofo desfrutando de seu próprioconhecimento. A despeito dos cuidados, afetados ou sincerosdos "averroístas", a metafísica, bem como a moral cristã, estavamlonge de terminar e compreende-se - sem que, para tanto, ne-cessariamente aprovemos - a desconfiança alimentada pelaIgreja com relação àqueles ensinamentos.

Contudo, ó aristotelismo corrente dos letrados medievaisera, de fato, outra coisa. Tratava-se muito mais de um tipo dekoíné, de maneiras de dizer e de raciocinar, de definiçpes e deconceitos, de conhecimentos diversos, explícitos ou implícitos,inculcados desde a escola e admitidos praticamente por todoscom força de evidência. ; •

O aristotelismo era, antes de tudo - repitamos isso -, umalógica, a arte do silogismo concebida como técnica demonstrati-va por excelência, ó letrado medieval tinha naturalmente tendên-cia a expor seu pensamento sob forma de silogismo e a remeteràs figuras - corretas ou incorretas - do silogismo os argumentosde seus interlocutores ou adversários. Ofereçamos apenas uriiexemplo entre centenas de outros: na França, durante os EstadosGerais de 1357, nós observamos o bispo Robert lê Coq, principalporta-voz dos opositores, e os oficiais do rei posto em acusaçãopor ele se afrontarem com uma rajada de silogismos:

' "O dito bispo utilizava o argumento: É fato notório que o .rei foi mal aconselhado e governado; os abaixo-nomeados[oficiais] o aconselharam mal; Ergo etc. [Isto é, tais oficiaisdevem ser destituídos].Resposta [dos oficiais]: A maior é falsa, ou pelo menos não \tão notória, sendo, pois, obscura e duvidosa; e a menor é \ainda mais falsa, mais obscura e mais,pobre em conheci-mento de cáusa."7^

• •• > . ,• ... ' <Para além da dialética, arte do raciocínio rigoroso e

irrefutável, o aristotelismo era também uma retórica, arte do

7 - Citado à p. 380 no L. Douèt d'Arcq."Arte d'accusatlon 5contre Robert lê Coq", Bibltotbèque de l'École dêsCharles (1840-1841), p.350-388.

35

Page 18: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

provável e do verossímil, fundada sobre a procura dos "lugarescomuns" (em grego topof), aos quais seria possível reduzir assituações concretas a fim de alcançar 'a convicção doauditório. Os princípios dessa matéria eram ensinados nosoito livros dos Tópicos.

Do estudo de Aristóteles, os letrados medievais não re-tinham apenas as técnicas de exposição e de raciocínio. Elesretiravam também esquemas explicativos e hábitos clássifi-catórios aplicáveis a toda espécie de fenômenos. O princípioda não-contradição, a procura por causas (materiais, formais,eficientes; finais), a distinção da matéria e da forma, dasubstância e dos acidentes, da potência e do ato, a identifi-cação dos gêneros e das espécies, eram todos meios racionaisque tanto definiam o objeto do saber quanto pensavam a tran-formação.Disso resultava uma percepção de mundo coerente,que, embora se tenha tornado bem distante para nós, possi-bilitava que todos os homens daquele tempo, providos dosmesmos instrumentos analíticos, pudessem se reconhecersem muita dificuldade.

Essa percepção comum era, em primeiro lugar, ligada aouniverso físico. A teoria dos quatro elementos e uma cos-mogonia geocêntrica que colocavam uma Terra imóvel nocentro de um sistema de esferas celestes constituíam a base.Reteve-se também de Aristóteles, especialmente de seuTratado da Alma, uma fisiqlogia e uma psicologia que davamconta das características maiores dos seres vivos, tanto daflora e da fauna, quanto do próprio homem. Enquanto osmovimentos dos planetas e suas influências sobre o mundosublunar davam uma justificativa científica para a astrologia ebalizavam o sucesso inesgotável das predições e dos horósco-pos, o jogo dos elementos e dos humores determinava a com-pleição de cada indivíduo (sangüíneo, bilioso, ffeumático oumelancólico). Por outro lado, a definição de diversas funçõesda alma - da função vegetativa, a mais primitiva, comum atodos os seres vivos, à função cognitiva e racional própria dohomem T- permitia aproveitar, ao mesmo tempo,' a con-tinuidade e as hierarquias do universo biológico, bem como olaço, em alguma medida, orgânico da alma e do corpo.

O edifício intelectual aristotélico era coroado por suafilosofia moral e política cujos textos maiores (a Ética e aPolítica) foram difundidos em escolas e universidades a partirda segunda metade do século XIII, antes de serem - conuxjávimos anteriormente - traduzidos para o francês por Oresmenos anos 1370. Sem seguir fielmente todas as suas particulari-dades, muitas vezes dificilmente conciliáveis com a revelaçãocristã, os letrados do fim da Idade Média retiveram desse co-nhecimento, pelo menos, a definição de virtude como práticado justo meio, da moderação e da medida e, sobretudo, umcerto número de conceitos políticos que, muitas vezes associ-ados àqueles do direito romano, vieram a constituir uma espé-cie de vulgata aceita^or todos e, aliás, suscetível de utilizaçãodivergente, se não contraditória8. A essa vulgata políticaarístótelica, nós podemos relacionar noções também difundi-das no final da Idade Média acerca das distinções entre a leinatural, a lei divina e a lei humana, do caráter primitivo eorgânico da comunidade política (o homem como "animalsocial"), da tipologia das formas de governo (monarquia, aris-tocracia, democracia) e de sua possível degenerescência e,finalmente, da noção de "bem comum" como finalidade daação política.

Tudo isso - há que se repetir - não constituía um corpode doutrina coerente. Enquanto tal, o aristotelismo foi, nosséculos XIV e XV, alvo de críticas cada vez mais mordazes, porparte de numerosos filósofos, humanistas, juristas e teólogos;algiíns colocavam em causa, em nome da retórica e das belasartes, a tirania do silpgismo; outros valiam-se da liberdade di-vina para contestar uma construção francamente determi-nista, talvez materialista, de modo a privilegiar uma visão maisatomista, senão empírica, do homem e da natureza. Mas aqui,nossa proposta é simplesmente a de sublinhar o peso conser-vado - durante tão longo tempo que ele talvez pudesse sei* jáinconsciente - pelos esquemas e conceitos aristotélicos incul-cados desde a infância. Realizando com sucesso - nas palavras

8 - Ver, por exemplo, a demonstração de Th. Renna,"Aristotle andthe French Monarchy", 1260-1303, Viatort9(1978) .̂309-324.

37

Page 19: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

' h . - X . - '

de Alexandre Koiré - uma espécie de "união entre umametafísica finalista e a experiência do senso comum"9, elesguardaram, por muito tempo, a/orça de evidência que era trazi-da pelos fundamentos desse racionalismo fundamentalmentequalitativo por meio do qual nós podemos, sem' dúvida, melhordefinir a atitude intelectual de todos àqueles que haviam rece-bido um ceftp tipo de formação escolar na Idade Média.

Os homens cultos e os letrados do final da Idade Média nãoeram forçosamente aristótelicos, embora todos eles se situassemem um universo ainda largamente percebido através dasdefinições e das categorias dê Aristóteles.

2. SABERES LEGÍTIMOS E SABERESMARGINAIS

A cultura dos letrados medievais não se limitava, evidente-mente, a tais elementos de base. Estes sé integravam em um con-junto mais amplo cujos'contornos, sob a forma de classificaçõessistemáticas do saber, os teóricos haveriam tentado desenhar.

Tais classificações, inspiradas por modelos antigos ouárabes, teriam particularmente obtido sucesso em autores dosséculos XII e Xffl10. Elas podiam ser mais ou menos complexas,embora, em última análise, se remetessem todas a um esquemagenérico que conhecia apenas as ciências preparatórias(scientiaeprímítivaé) -^articuladas de maneira mais ou menoscomplexa a partir de um sistema, que então já era ultrapassado,das sete artes liberais -; e a ciência sagrada, quer dizer, o estudodo texto revelado (sacra pagina), como finalidade última, deacordo com A doutrina cristã de santo Agostinho, de uma edu-cação cristã.

9 - Citado à página 625 de G. Beaujouan,"La science dans1'Occident medieval chrétien", na Histoire génémle dêssciences, dirigida por R.Taton, 1.1 La science antique et mé-diévale, Paris, 1966, p. 582-652.10 - G. Dahan, "Lês classífícations du savoir aux XIF etXIII' siècles^i L'enseígnement phüosophique, 40/4(1990),p.5-27.

38

Uma tal concepção, da qual a Didascálicon de Hugucs deSaint-Victor dava já por volta de 1130, uma expressão bastantecompleta," justificava plenamente o papel,primordial reservadoao latim e a Aristóteles, apesar de deixar ostensivamente umgrande número de disciplinas à margem dos saberes legítimos.

Algumas razões para esse desprezo, entre os partidários deuma educação ao mesmo tempo "liberal e religiosa", são claras,assim como o são suas origens, tanto antigas quanto cristãs.Trata-se de recusar, por um lado, as "artes mecânicas", quer dizer, osaber-fazer excessivamente técnico, implicando trabalho manuale contato imediato e degradante, senão servil, com a matéria; poroutro lado, a recusa também das "ciências profanas" ou "lucrati-vas\quer dizer, às disciplinas que tinham como finalidade (pelomenos aos olhos dos autores eclesiásticos) satisfazer as ambiçõespuramente mundanas e o gosto pelo lucro de seus detentores.

Outras ausências são mais difíceis de' serem explicadas.-Tratar^se-ia de saberes que não se acreditava prestarem para nadaalém da "mera curiosidade", um gostp gratuito da fantasia in-telectual e dos jogos do espírito que se esquecem das finalidadescristãs do estudo? "Deve-se aprender apenas para a própria edifi-cação ou para ser útil aos outros; o saber pelo saber é apenas umavergonhosa curiosidade", já havia dito são Bernardo em seu ser-mão 36 do Cântico dos cânticos12.

A tais motivações inconscientes, deve-se, sem dúvida,acrescer o peso também bastante forte das tradições escolares edos reflexos corporativos da parte dos especialistas dessa oudaquela disciplina, pouco inclinados a dar lugar ao ensino de seuseventuais concorrentes.

Seja como for, certos domínios rapidamente escaparam dáposição subalterna à qual os teóricos haveriam desejado confiná-los, embora outros, como contrapartida, tenham sofrido dura-mente tais rejeições que, por vezes, os perseguiriam ainda para

11 - Hugues de Saint-Victor, L'art de lire: Didascálicon, in-trodução e tradução ftancesasUe M. Lemoiné, Paris,,.199'Í-12 - Sunt namqüe qui scire volunt eo fine tantum, utscianfcet turpis curtositas est (Sancti Bemardi Ópera, éd.Par. J. Leclerq, C. H-Talbot, H. Rochais, vol. II, Rome, 1958,p.5)

39

Page 20: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

além do período medieval. Não deixaria de haver interesse,mesmo com o risco de algum anacronismo, em buscar reconsti-tuir a lista de tais rejeições e das ignorâncias que se desenhavamcomo limite último da cultura erudita medieval, antes de tecerconsiderações sobre o conteúdo positivo destaaíltima.

Antes de mais nada, como já vimos acima, tudo que dissesserespeito à língua vernácula era imediatamente excluído, qualquerque fosse o domínio. Ainda, com maior força, tudo o que nóschamaríamos hoje em dia as "belas letras", mesmo latinas, não ti-nham seu lugar nas escolas, pelo menos a partir do Renascimentodo século Xn quando a "batalha das sete artes" teria sido final-mente vencida pela dialética às expensas da poesia e da elo-qüência. Utilizavam-se ainda alguns clássicos para ilustrar aslições de gramática ou iniciar os estudantes em determinadosprocedimentos retóricos, mas já não sé procurava oferecer-lhesuma verdadeira cultura literária. Os humanistas dos séculos XV eXVI serão profundamente tributários de autores gregos e latinos,de cujas lições eles apreenderão não somente o estilo, mas aestética e moral. Não aconteceu nada disso com seus predeces-sores medievais. Estes eram efetivamente capazes de citar algu-mas sentenças de Cícero ou algum verso de Virgílio ou Horácio,aprendidos em compêndios escolares de autores, mas não havianeles nem o amor à bela língua clássica, nem a desinteressadacuriosidade pelas civilizações antigas. Quanto ao vernáculo-como já destacamos anteriormente - não se pode dizer, pelomenos^ partir de meados do século Xül, que os homens cultosfossem propriamente incapazes de usá-lo, tanto por escrito quan-to oralmente em diversos registros. Mas a prática que para tantose estabelecia provinha antes de esforços pessoais ou de apren-dizagens puramente profissionais. Não parece possível designar,em seu conjunto, uma verdadeira cultura literária, no sentido quenós hoje utilizamos.

Será que eles tinham uma cultura histórica? O problema ésuficientemente complexo e requer, sem dúvida, uma respostanegativa, embora se, devam admitir nuãnces". O grande século da

13 - Sobre a cultura histórica dos homens da Idade Média,- recomenda-se, de maneira geral, o livro fundamental de B.

Guenée, Histoire et eulture bístoríque dans 1'Occidentmédiéval,2*éd.,P*ns,l99l.

40

historiografia medieval foi incontestavelmente o século XII. Osmosteiros, como Saint-Denis na França ou St.Alban na Inglaterra,e as cortes principescâs eram, naquele tempo, os principais focosde uma produção da qual a maior parte dos autores era consti-tuída por monges ou clérigos. A história não era ensinada nasescolas, mas ela beneficiou-se largamente do lugar de honra con-ferido aos textos antigos, compreendendo-se nestes os textoshistóricos, divulgados pelo Renascimento do século XQ*; e os in-telectuais oriundos do mundo das escolas igualmente fizeramuso de obras de historiadores; como Jean de Salisbury (c. 1115-1180), autor de uma importante Historia pontiftcalis, consagra-da à Jiistória da Igreja e do papado de seu tempo.

, Em compensação, a época seguinte viu alargar-se o fossoque separa a história dos outros domínios da cultura erudita. Nãoapenas a história não encontrou seu lugar nos programas dasnovas universidades, como também o triunfo da filosofia deAristóteles, às custas da gramática e da retórica, privilegiou umtipo de pensamento no qual a dimensão historiográfica era prati-camente ausente. Até mesmo o direito romano e a exegese bíbli-ca, disciplinas históricas aos nossos olhos, eram pouquíssimoabordados nas escolas medievais sob o ângulo da historicidade.Seja como for, a história praticamente não está presente, a não sersob a forma ornamental de alusões e de exemplos, entre osgrandes mestres da teologia escolásticà;ela quase não inspira oscomentadores do Corpus iuris civilis, atentos, sobretudo, a colo-car em posição de destaque a majestade imutável da lex romana,

A produção historiográfica, porém, não deixou de existirpor isso. Se ela de fato não oferece mais construções tão ambi-ciosas quanto as vastas teologias da história que haviam sido ascrônicas universais de um Sígebert de Gembloux (c. 1030-1112)'ou dê um Otton de Freisjng (c. 1111-1158), fornecia emabundância, tanto em latim quanto em língua vernácula, históriasnacionais e regionais, vidas de príncipes e de papas, cronologiasde reinos e relatos de batalhas, sem falar de compilações dehistória antiga, tais como a Histoire ancienne jusqu'$ César, ouLês faits dês Romains, resumos cômodos de história grega eromana compostos no princípio do século XIII e cujo sucessonão foi desmentido até o final da Idade Média.

Page 21: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

Os autores dessas histórias e dessas crônicas, em geral ver-dadeiros historiadores oficiais pagos pelos príncipes ou pelascidades, continuavam a ser recrutados largamente nos meiosmonásticos; mas encontrava-se também, dentre os historiadoresdo final da Idade Média, um crescente número de clérigos secu-lares (como Froissard) e leigos, alguns cortesãos, diplomatas ouconselheiros do rei, outros oficiais ou homens dê chancelaria.Tratava-se, portanto, raramente, para se falar a verdade, de gradu-ados ou mestres de universidade. Esses não poderiam ser consi-derados, então, completamente indiferentes à história. Osnumerosos inventários conservados por bibliotecas de colégiosou por graduados, especialmente juristas, mostram que, se aliteratura cm estrito senso (poesia, teatro, romance), vernácula oumesmo latina, lhes era praticamente ausente, em compensação ahistória ali estava representada de maneira modesta, mas regular.Se 'deixavam para os nobres Lês faits dês Romains, eles dispu-nham normalmente dos Faits et dits memorables de ValèreMaxime, do Speculum historiais de Vincent dê Beauvais, daChronique dês papes et dês empereursãe Martin deTroppau ede algumas outras obras do mesmo gênero, antigas ou medievais,que iam sendo assim universalmente difundidas. Nós podemos,portanto, admitir que, pelo menos sob a forma de referências fac-tuais, a maior parte dos homens cultos do final da Idade Média -sem haver estudado a história enquanto tal na escola ou na uni-versidade - tinha um conhecimento mínimo de história política,militar e eclesiástica dos principais países do Ocidente desde aAntigüidade, sem dúvida combinando com esta algumas nomen-claturas geográficas. E essa cultura histórica, que eles partilhavamcom o ptóprio príncipe e com os nobres de seu círculo, era, paradês, uma importante fonte de argumentos e de exemplos paraapoiar teses jurídicas ou políticas que eles tivessem de defendera serviço de seu mestrç.

A vítima principal da estreiteza dos programas escolares euniversitários da Idade Média, ainda mais do que as belas letras ,ou a história, certamente foi a cultura cientifica ou técnica. As5 dis-ciplinas do quadrivium (aritmética, música, geometria, astrono-mia) dewriam ser ensinadas na faculdade de artes; contudo, naprática, elas deveriam ser limitadas apenas a algumas lições e, deresto, não reapareciam a não ser sob a forma de ensinamentos

Y A

facultativos, reunindo pequenos grupos de estudantes realmenteinteressados por essas matérias. Mas como elas praticamente nãoofereciam perspectivas profissionais asseguradas, mesmo essesúltimos geralmente também se entregavam a estudar uma outra'disciplina - tal como o direito ou a medicina - onde era muito maisviável se fazer carreira. Além do mais, tratava-se de ciências relati-vamente abstratas, repousando, antes de tudo, sobre os números eas figuras e não implicando, portanto, praticamente, nem apare-lhagem, nem contato com a matéria.

Em contrapartida, aquelas que teriam exigido observação^direta da natureza ou, a jõrtíort, a experimentação, não encon-traram jamais seu lugar no ensino e, pode-se mesmo dizer, pratica-mente não existiam rjara os homens de cultura daquele tempo.Suas curiosidades, em matéria de química, zoologia, botânica, mi-neralogia, etc., consideradas freqüentemente vãos passatempos,deviam, pois, se satisfazer pela leitura de Aristóteles, para os maissábios, para outros, de enciclopedistas genéricos, tais como Vincentde Beauvais, Barthélemy l'Anglais ouThomas de Cantimpré, osquais, na maioria das vezes, se limitavam a compilar seus prede-v

cessores antigos, preferindo acumular as interpretações alegóricasa relatar os dados de observações reais.

Quanto ao saber de artesãos e de engenheiros e até dosarquitetos dentre os quais mais eminentes, desde o século XIII, des-frutavam de um real prestígio social -, estes eram saberes a seremessencialmente transmitidos"pela relação de "aprendizagem", depatrão para empregado, de mestre para discípulo, de acordo comprocedimentos empíricos e orais que deixaram apenas ínfimostraços na documentação (nós pensamos evidentemente na cader-neta dos esboços do arquiteto francês Villard de Honnecourt, casotão célebre quanto isolado, que data de meados do século XÜT). Nofinal da Idade Média, os espetaculares progressos de certas técni-cas, tais como a extração mineira, a relojoaria e, sobretudo, a arti-lharia (para não se Mar aqui da tipografia), acarretaram o surgi-mento de verdadeiros especialistas, relativamente considerados ebem pagos e cujo nível de conhecimentos ultrapassava certa-mente aquele dos simples artesãos; mas eles não souberam, entre-tanto, formalizar e difundir seus saberes para além da prática con-creta que era a deles, de modo a transformar aquele saber em umaverdadeira cultura científica e tecnológica.

42 43.«t

Page 22: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

A mais clássica alternativa para a cultura do clero era, entre-tanto, já há muito tempo, não aquela do bomofaber, mas a do ca-valeiro. Nesta, a escrita e, afortíorí, o latim, tinham teoricamente'um lugar bastante diminuto, normalmente abandonado com con-descendência aos bons cuidados de algum capelão. O cavaleiro,dedicava-se, sobretudo, a exercícios físicos e ao treinamento mi-litar, a isto se acrescia a práiica de artes mundanas de salão -canto, música e dança - e a tomar prazer em ouvir recitar, e até aler ele próprio, poemas épicos, romances de amor ou de aven-turas.TUdo isso constituía naturalmente um ideal. É bastante duvi-doso que todos os nobres tenham assimilado, com perfeição, osrefinamentos da cultura cortesã e, em compensação, o cavaleiroque possuía um certo verniz das letras - miles litteratus - nãoera, também assim tão raro; muitos sabiam ler e escrever e até olatim - pelo menos aquele dos diplomas e da Igreja - não lhes eratotalmente desconhecido. De testo, no entanto, a idéia de umacultura completa, que deveria associar os exercícios do corpo >àqueles do espírito, a descoberta dos valores corteses e a ini-ciação à emoção estética ao mesmo tempo que a preparação paraa disputa e para o desenvolvimento da memória, a gratuidade dojogo e a seriedade do estudo, permaneceu suficientemente estra-nha para os homens de saber da Idade Média. Esse ideal, quehavia sido aquele dapaideta antiga, não reencontrou verdadeira-mente seu lugar até a chegada dos pedagogos humanistas, querepreenderão precisamente seus predecessores medievais porseu descuido perante os temas do corpo e, mais ainda, por suafalta de atenção aos aspectos afetivos e morais da educação.Afronta certamente excessiva e que vem se contradizer tambémtanto com escritos de alguns monges pedagogos da Alta IdadeMédia, quanto com as concepções educativas de um RaymondLulk (c. 1232-1315)", de um Pierre Dubois (c. 1250-C.1320)" ou

14 - Ver particularmente sua Doctriné d'epfant, versão fran-cesa editada por A. Llinarès, Paris, 1969, e seu Livre de l'ordre de cbevaterte, ed; V Mihervini.Bari, 197215 - Cí. 'J. Verger, "Adstudíum augmentandum: 1'utopieéducative de Pierre Dubois dans sòn De rvcuperacioneTerre Sancte (v.1306)", Mel. De Ia Bibllothèque de IaSarbonnç, 8(1988),p.l06-122.

44

de um Jean Gerson (1363-1429)16; colocava-se porém o acentosobre o caráter bastante restritivo da própria concepção dossaberes sobre a qual se apoiava a definição medieval de cultura.

A lista das lacunas e das falhas da cultura e do saber nofinal da Idade Média poderia ser indefinidamente prolongada,não sem risco de anacronismos. Nós abordaremos, contudo,antes de terminar, um último ponto que poderíamos chamarde ausência, nas elites intelectuais desse tempo, de uma culturaeconômica; ausência que não se dava sem conseqüência emuma época onde precisamente a aparição do imposto perma-nente e das barreiras alfandegárias, a tutela dos ofícios e a cri-ação das feiras, o desenvolvimento internacional dos bancositalianos e a multiplicação das mutações monetárias restituíapara os príncipes e para as cidades os meios de uma verdadeirapolítica econômica, com efeitos, é verdade, muitas vezes não ,previstos e mal controlados. É certo que os homens de negó-cios do fim da Idade Média, pelo menos em certas regiões pio-neiras, começaram, então, a elaborar uma verdadeira culturamercantil e financeira, ultrapassando, nesse sentido, o simplesnível das tradições orais e das práticas empíricas. Em certascidades daToscana e da Flandres existiam, ao que parece, esco-las destinadas aos filhos de mercadores, onde eram ensinadas aaritmética comercial - o ábaco - e as línguas nacionais. Os"manuais de comércio" (Pratica delia mercatura), os exercí-cios de cálculo e de escrita, os pequenos tratados de contabi-lidade, os glossários bi - ou trilíngües, chegaram até nós, teste-munhando esse" tipo de educação. Se acrescentarmos a isso ofato de os homens de negócios não deixarem de comprarlivros e de dar para seus filhos, pelo menos para os meninos,uma certa instrução gramatical e religiosa e empregar vo-luntariamente para esse fim preceptores particulares, percebe-se que é legítimo falar, para esses meios, de uma cultura viva eoriginal, residindo fundamentalmente no vernáculo, que seelabora nos séculos finais da Idade Média. Alguns não Üesi-

16 - Ver por exemplo seu tratado Deparvulis ad ChistumTrabendis (publicado em J. Gerson, Oeuvres completes, ed.P Glorieux, vol. K, Paris, 1973, p. 669-686).

45

Page 23: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

tavam em debater questões religiosas17 ou a tomar a pluma paraelaborar os "livros da razão", que eram, ao mesmo tempo, esboçosde autobiografia, crônicas familiares, e recplhas de reflexões econselhos morais. Estudando os "comerciantes escritores" deFlorença, Christian^ec destacou bastante bem a qualidade deseus librí eUfamigíia, onde a acuidade da observação concretase alia ao senso agudo das realidades psicológicas e políticas parasustentar um esforço de explicação racional do mundo.18 Deve-se, contudo, abster-se de generalizar o caso toscano. Em outroslugares, por exemplo dentro do universo da Hansa germânica, acultura e a técnica mental dos mercadores parecem ter sidomuito mais simples e arcaicas. Quanto aos mercadores france-ses, o caráter bastante sumário de suas técnicas comerciais esua evidente falta de gosto para com os livros e para com osestudos - não se encontra entre eles nem possuidores de bi-bliotecas e nem fundadores de colégios - n|o permitem queeles sejam considerados, em hipótese alguma, como "gente desaber"; mesmo do mais célebre dentre eles, Jacques Coeur(v. 1395-1456), a cultura praticamente nos escapa por comple-to, se é que havia alguma.19

Em todo caso, um fosso quase intransponível continua aseparar essas formas modernas mas ainda embrionárias de cul-tura econômicV e a cultura erudita, fundamentalmente latina,reconhecida pela Igreja e difundida pelas escolas é universi-dades. Mesmo entre o círculo dos príncipes, as duas aproxi-mavamrse sem se misturar. Se os homens de saber abarcaramcada vez mais - nós veremos na seqüência .deste livro - asfunções da administração e da justiça, os reis se dirigiam a ho-mens de negócios e de finanças, freqüentemente os italianos,

17 - Editando a Disputatío contra ludaeos de InghettoContardo (autor latino da Idade Média), Paris, 1993, G. Da-haii conferiu destaque à notável figura de um mercadorgenovês do século XIJ1, capaz de uma assombrosa erudi-ção exegética, talvez assimilada pela escuta de predicamendicante.18 - Ch. Bec. Lês marcbands écrivairis: affaires ethutnanisme à Florence, 1375-1434, Paris:La Haye, 1967.19 - M. tàollat, Jacques Coeur ou 1'esprit d'entreprise auXV siècle, Paris: 1988.

cuja excepcional competência era reconhecida por todos,quando se tratava de gerir suas finanças e sua moeda.

O Traité dês monnaies de Nicolas Oresme, composto porvolta de 1357 em duas versões, latina e francesa, é, nessa perspec-tiva, uma obra original mas muito isolada e a serviço de con-cepções que, além disso, eram conservadoras e tímidas, para quêpossamos ver nesta o ato de nascimento de uma verdadeira cul-tura econômica entre os homens de saber provenientes das^ esco-las e das universidades20.

3. AS DISCIPLINAS SUPERIORES:TEOLOGIA.MEDICINA E DIREITO

' j: ', !>,*

V 4 1

Passemos, agora, para os saberes realmente valorizados naimagem e na prática que as elites do final da Idade Média possuíamda cultura erudita. Para tento, a lista é curta e identifica-se pratica-mente com aquela das disciplinas efetivamente ensinadas nasescolas, studia e universidades daquele tempo: essas últimasjamais conheceram, além da faculdade preparatória das artes, maisque três faculdades superiores: teologia, medicina e direito. Taiseram, portanto, as disciplinas cujo domínio, com maior ou menorimpulso, caracterizavam verdadeiramente os homens de saber noOcidente do fim da Idade Média.

No mais alto degrau se colocava evidentemente a ciênciasagrada (sacra pagina, sacra doctrtna), que se passou a carac-terizar como "teologia", sobretudo a partir do século XHI. A íeolo-gia ensinada compreendia dois ramos: por um lado, o comentárioda própria Bíblia; por outro lado, t> estudo sistemático do dogmacristão, fundado tanto sobre os ensinamentos dos Pais da Igrejaquanto sobre o raciocínio e os recursos da filosofia, o que não

(ocorria sem risco de heterodoxia. Os quatro livros das Sentehças,compostos, em meados do século XII, por Pedro Lombardo per-

f Jnaneceram até o século XV como o manual de base dos estudos:>lógicos.

20 - Cf. Nicolas Oresme, Traité dês monnaies^et autresécríts monétaires du XIV siècle (Jean Buridan, Bartole deáassoferrato), texto reunidos por Cl. Dupuy, Paris: 1989-

46 47

•'A/íí

Page 24: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

Teoricamente, a teologia permanecia como disciplina mes-tra, aquela que oferecia aos teplogoç uma espécie de direito deolhar sobre todos os outros saberes para controlá-los pela ortx>doxia cristã, sendo que as disciplinas preparatórias da faculdadede artes, especialmente a dialética e a filosofia, eram natural-mente as mais diretamente visadas por tais eventuais censuras.Na prática, porém, ninguém jamais imaginaria que a teologiafosse destinada a ter uma vasta difusão. Não somente impedia-seque os leigos a estudassem, mas, mesmo entre os clérigos, osmonges e os religiosos, apenas uma pequena minoria poderiareceber uma verdadeira formação teológica. Está - verdade sejadita - era concebida segundo critérios particularmente exi-gentes. Na universidade de Paris, requeria-se normalmentequinze anos para percorrer o conjunto do curso teológico até odoutorado. - Até por isso, estava fora de questão impor essegênero de formação ao corpo do clero. Nos países mediterrâ-neos, os membros das ordens mendicantes eram praticamente osúnicos, nos finais da Idade Média, a estudar á teologia.Além disso,uma parte considerável dos estudantes eram clérigos secularesmas, de qualquer maneira, tratava-se fundamentalmente de umapequena elite. Não parece, aliás, que essa elite tenha sido espe-cialmente destinada a ocupar, na Igreja, os postos superiores dahierarquia quê de feto - nós veremos - eram geralmente abarca-dos pelos juristas. Quanto aos teólogos, eles tinham.antes aimagem de especialistas intelectuais altamente qualificados, cujopapel era, por um lado, cultivar e enriquecer uma disciplina cujovalor eminente "não era contestado por ninguém; por outro lado-pelo menos naquilo que concerne aos mendicantes - deviamconsagrar-se a uma prática pastoral bem particular, o sermão,para o qual uma formação teológica superior parecia ser umapreparação adequada.

Menos numerosos ainda que os teólogos eram, nasociedade medieval, os médicos, pelo menos se entendermos pormédicos aqueles que houverem feito estudos completos eadquirido graus universitários, excluídos tanto os cürandeiros, osmagos e outros empíricos, quanto os barbeiros e os cirurgiões,considerados, sobretudo esses últimos, como simples artesãos,fosse pela formação, fosse pela prática.

48

Para dizer a verdade, a medicina teve certa dificuldade paiase fazer reconhecer sua plena dignidade de ciência. Ela ainda nãoconstava das classificações do saber entre os séculos Xff e XIII;havia quem declarasse até que ela não passaria de uma oitava"arte liberal" (em outras palavras, não se sustentando por simesma e preparatória para outra coisa), ou até mesmo urna süiupies "arte mecânica", visto que se voltava para os cuidados docorpo e para a bugea de causas materiais. No entanto, osmestres da escola de Salerno e, depois, de Bolonha,; Pádua,Montpellier e Paris rapidamente admitiram o estatuto científicode sua disciplina. Às críticas, eles contrapuseram não apenas autilidade social evidente da medicina, mas suas bases filosófi-cas. Antes de ser terapêutico, o conhecimento do médico era,primeiramente, um saber teórico fundado sobre o essencial dafilosofia natural de Aristóteles e sua interpretação por Galeno.Ele recolocava o microcosmo do homem no coração do uni-verso criado e lhe aplicava os mesmos princípios de causali-dade e mudança que existem no conjunto do mundo físico.Além disso, adotando uma deontologia exigente e subordinan-do á preocupação com a saúde corporal com a própria saúdeda alma, qs médicos souberam bem se colocar ao abrigo dascríticas do teólogos.

Elite social ao mesmo tempo' que elite intelectual, osmestres de medicina certamente ocuparam um lugar emi-nente .entre os homens de saber da Idade Média. Nós falare-mos mais adiante das belas carreiras políticas ou eclesiásticasque, para alguns deles, sua reputação de ciência permitiurealizarem. O que se deve sublinhar aqui é que certos médicosestiveram entre os espíritos mais livres e de maior abertura in-telectual de seu tempo. Sem dúvida, eles foram os primeiros;mesmo antes dós filósofos parisienses, a ensinar à filosofia deAristóteles, desde o final do século XII. No século XIII, ArnauddeVilleneuve (c. 1240-1311), figura bastante excepcional, pro-fessor em Montpellier,"médico, conselheiro e embaixador deInúmeros papas e de inúmeros reis, era capaz de conciliar uniconhecimento aprofundado de textos filosóficos e; médicos,tanto gregos quanto árabes, com um interesse marcado porquestões de alquimia e de astrologia, más ao mesmo tempopor debates políticos e religiosos. Influenciado pelo joaqui-

49

Page 25: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

nismo, sensível aos temas mllenaristas, próximo da teologiados Franciscanps espirituais, viajante infatigável, esse catajãocosmopolita parece ter sido um curioso de todos os proble-mas de seu tempo.21

Se teólogos e médicos nós aparecem hoje como os espíri-tos mais originais dentre os homens de saber que a Idade Médiaproduziu, é, no entanto, assegurado ter sido o direito, tanto doponto de vista numérico quanto por sua consideração social, adisciplina dominante entre os diversos componentes possíveisda cultura erudita. Os últimos séculos da Idade Média represen-taram uma idade de ouro para os juristas, o que, em inúmerospaíses, prolongou-se até o final do Antigo'Regime e mesmo para

- além dele.Aqui não é lugar para se opor direito civil e direito canôni-

co. De feto, um e outro distinguem-se prontamente quanto a seuconteúdo, mas ambos se constituem quase simultaneamentecomo disciplinas eruditas.

Talvez seja um pouco redundante dizer que b direitoromano foi "redescoberto" na Itália, a partir de velhos ma-nuscritos esquecidos, nos últimos anos do século XI. Desde cercado Ano Mil, alguns juizes do reino da Itália, sempre utilizando ecomentando o direito lombardo, pareciam possuir um dado co-nhecimento da legislação de Justiniano, especialmente doCódigo2', mas foi apenas por volta do ano 1100, em Bolonha e emalgumas cidades vizinhas como Ravena, Modena ou Placência,que se recomeçou a estudar sistematicamente o direito romano.Se nós ignoramos toda a obra do enigmático Pepo, sabemos queIrnerius (morto por volta de 1125) compôs as primeiras glosas esobretudo levou a cabo uma "reedição" em cinco volumes doconjunto do Corpus iuris civilis (Códice, Digesto, Institutos etNovela.) que permanecerá em uso até o fim da Idade Média. Nageração seguinte, a escola dos comentaristas bolonheses tomoupleno impulso, ao mesmo tempo que seus alunos começavam a

21 - Cf. J. A. Paniagua, El maestro Arnau de ViUanavamédico, Valence: 1969.22 - Cf. Ch. M. Radding," The origins of MedievalJurisprudence: Pavia and Bolonha (850-1150), NewHaven-Londres: 1988.

se espraiar por toda^ a Itália e paraalém dos-Alpes, especialmenteem Provença, Languedoc e Catalunha. Foi, igualmente, no segun-do terço do século xn e também em Bolonha, que o direitocanônico tornou-se verdadeiramente uma disciplina acadêmica.Não sabemos infelizmente quase nada de Gratiano que, por voltade 1140, ou talvez um pouco antes, compilou a Concórdia dis-cordàntium canonum (mais conhecida sob o nome deDecreto), coletânea de textos canônicos de diversas origens, deuma amplitude até então desconhecida e, sobretudo, apresenta-da de maneira temática, sendo as aparentes contradições nasfontes resolvidas pelo recurso ao método dialético. O Decretonão era, até então, nada além de uma compilação "privada", em-bora desfrutasse de uma excepcional autoridade. A partir doséculo Xni, ele foi complementado por coleções oficiais de

> decretos pontificais (os cinco livros de Gregório IX, o Sexto, deBonifácio vm, os Clementirias, de Clemente y as Extravagantesde Joãq XXII), que no'conjunto constituíam o Corpus iuriscanonici,btnço eclesiástico do Corpusluris civilis.O parentescoentre os dois Corpus era tão reconhecidamente grande que oscompiladores e os comentaristas do direito canônico fizerammuita referência às noções emprestadas do direito romano.

Em meados do século XIII, os dois Corpus foram providosde sua "glosa ordinária", atribuída em direito romano a FrançoisAceurse, em direito canônico a Jean, oTeutônico. Sintetizando aprodução dos comentaristas bolonheses já há um século, asglosas ordinárias tornaram-se, de qualquer modo, o aparato oficialdo direito erudito, ensinadas com o mesmo título deste e, por-tanto, conhecidas de todos os que estudavam aquelas disciplinas.Isso não terminou naturalmente com a atividade dos comen-taristas, mas estes passaram a se orientar, de agora em diante, cadavez mais, para a redação tanto de questões particulares quanto,ao contrário, de vastos tratados com títulos variados (leitura,summa. etc.). Nessa produção, os italianos - estivessem eles ensi-nando em Bolonha ou em outros lugares - guardaram a parte doleão: o papa Inocêncio IV (c. 1190-1254) e Jean d'André (1270-1348) para o direito canônico, Bartolo (1314-1357) e Baldus(1327-1400) para o direito civil, forneceram, sem dúvida, oscomentários mais difundidos, embora outras escolas jurídicashouvessem aparecido no final do século XEH. A mais fecunda foi

50 51

Page 26: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

dos juristas do Languedoc, provindos das universidades deMontpellier e de Toulouse. Além "dissoi houve alguns autoresimportantes em Paris e em Órleans. Em contrapartida, os outrospaíses da Europa não parecem ter oferecido contribuição,ver-dadeiramente importante para o comentário das matérias dodireito antes do século XV Essas diferentes escolas poderiam pos-suir uma certa coloração específica, mais concreta no Midi daFrança, mais filosófica em Orléans, mas, de modo geral, o ensinode um e de outro direito guardou na Europaj até o final da IdadeMédia, uma notável uniformidade, que vinha ao mesmo tempo dasuperioridade incontestada, por todos reconhecida, 'da lexromana e da forte marca pontificai imposta ao direito da Igrejadepois da reforma gregoriana.

Nós temos, por vezes, a tendência de pensar que o direitoerudito deve, para se desenvolver, lutar cçntra o direito consue-tudinário, de origem bárbara e feudal, preexistente. O sentimen-to de que os direitos romano e romano-canônico seriam direitosestrangeiros, impostos em detrimento de costumes ancestrais,pode ter existido algumas vezes nas populações mas, sem dúvi-da, não era algo partilhado pelos juristas. Para estes, os direitoseruditos eram, para ialar com propriedade, os únicos direitospossíveis, por serem os únicos a quem sua antigüidade e estrutu-ra racional conferia uma autoridade verdadeiramente universalface à diversidade a ao empirismo dos costumes. Eles, entretanto,não desconheciam, por isso, a utilidade destes mesmos costumes.Sua intenção não era à de aboli-los em proveito do direitoromano, mas antes a de render ao direito enquanto tal sua dig-nidade de disciplina douta e, em seguida, impor, em todos osníveis - tanto no que diz respeito aos procedimentos quanto notocante às decisões positivas -, um espírito (mens legis) de tipocientífico, repousando sobre a racionalidade das demonstraçõese a universalidade dos princípios.

f Foi igualmente essa reivindicação de racionalidade quepermitiu aos juristas conseguirem rapidamente eliminar as re-ticências dá Igreja. No século xn, esta fingia ver, no direito, áprópria personificação da ciência ao mesmo tempo lucrativa eenganadora. Pela esperança do lucro, o direito desviaria os me-lhores espíritos da ciência sagrada; permitiria aos hábeisenganarem os simples, à argúcia triunfar sobre a verdade.

52

Conseqüentemente, a Igreja interditava especialmente aos cléri-gos e aos religiosos o estudo do direito romano. Oficialmente, tais^interdições foram mantidas até o século XHI e talvez até depois,dele; em 1219, pela bula Super specuíam, o papa Honório IIIproibiu o ensino do direito civil em Paris, por medo da concor-rência que tal ensino poderia íazer às escolas de teologia23; Essaproibição era particularmente vigorosa eni relação aos membrosdas ordens religiosas, a quem era efetivamente proibido o estudodo direito canônico. Mas se essa interdição foi corretamenterespeitada pelas ordens mendicantes, nós vemos multiplicarem-se, no século XIV; as dispensas autorizando Cirtercienses eCluniacenses a estudar o direito, pela própria demanda dasautoridades de suas respectivas ordens. Quanto aos clérigos se-culares, eles se debruçaram, dali em diante, nas lições de direitoromano. No sçculp XI\Ç 40% dos cardeais de Avignon portadoresde um diploma universitário eram graduados em direito civil?4; aporcentagem era ainda superior (46%) entre os que participaram'da Rota, tribunal supremo da cristandade, na época do Grande;Cisma (1378-1417)25.

Os argumentos que permitiram aos juristas reduzirem umpouco a oposição da Igreja são expostos desde o final do séculoXn em diversos textos, dos quais um dos mais explícitos foi oSerrno de legibus datado de 1186 e atribuído a Placentinus, umcélebre jurista italiano que ensinara também em Montpellier26: odireito, dizia ele, não é unia ciência de oportunismo e de dissi-mulação, ele é construído apenas pela própria razão (ratío

23 - G. Giorctenengo, Réslstances irçtellectuelles autour deIa Décrétale Stiper speculam (1219), em Mélanges offerisà George Duby, volume III,Aix-en-Próvence 1992, p.l4l-155.' ' ' . • ' ' • . ; ' • ' ;

• 24 - P. Guillemain, La cour pontiftcale d'Avignon (f309-,13 76): étude d'une société, 2°edição, Paris: 1966, p. 217.25 - H. Gilles, Lês auditeurs de Rote au temps de CíémcntVII et Bcnoit xni (1378-1417), Mélanges d'arcbeologte et

| d'histoire, publicado pela Éc. Fr, de Rome, 67 (1995),. , p.321-337).

26- Ed.emH.Kantorowicz,Tbepoetícalsêrmonofa me*diaewl 'jurist. Placentinus and his Serfflo de Legibus,Joifmal ófthe Waburg Institute, 2, (1938), p.ll 1-135.

j > •

53

Page 27: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

scríptà); os princípios da lei humana não contradizem nem àque-les da lei da natureza nem aos da lei divina, mesmo se eles fossematualizados em função das circunstâncias; o direito é a instânciareguladora suprema da sociedade; ciência do justo e do injusto,ele se confunde com a eqüidade e dá a cada um aquilo que lhe•pertence. .

Por seu turno, os canonistas souberam mostrar que, longede se opor à teologia, o direito eclesiástico lhe era o comple-mento necessário no seio da Igreja militante; eles tiveram, alémdo mais, a habilidade de associar os teólogos ao seu ensino, con-fiando-lhes o comentário de certos decretos que continham maisdiretamente questões de dogma e de sacramento.

Esses argumentos, como é óbvio, possuíam a dupla van-tagem de legitimar o direito como disciplina erudita ao mesmo,tempo que criavam nos juristas a pretensão de ocupar um lugareminente na sociedade e na Igreja como conselheiros dospríncipes e dos prelados. Em breve, os doutores em direito nãohesitariam em retomar em proveito próprio o versículo de

Daniel 12,3, que São Bernardo havia aplicado aos mestres deteologia; "Os que são esclarecidos resplandecerão, .como oresplendor do firmamento; e os que ensinam a muitos a justiçahão de ser como as estrelas, por toda a eternidade."27

Istp posto, a consideração tanto social quanto intelectual daqual se beneficiaram os direitos romano e romano-canônico naIdade Média não era igualmente intensa em todo o Ocidente. Elaera, por assim dizer, compartilhada nos países mediterrânicos:Itália, França central, Pensínsula Ibérica. Aqui, desde o século XII,multiplicavam-se as escolas de direito e os comentários eruditos.Os diplomas, por seu turno, testemunham a ascensão social dosjuristas (denominados doctores legum, judices, causadici, etc.).A partir do século XIII, nesses países, as faculdades de direitodominam fortemente as universidades, nas quais, ao contrário, as

27 - Quí docti fuerint, fulgebunt quasi splendor ftrma-mentt, et qui ad iustítíam erudiunt muitos, quasi stellasin perpetueis aeternitates (cf. G. Lê Brás, Velut splendorftrmameriti: lê doctcur clans lê droit de 1'Eglise médiévale,dans Mélanges offerts à Etienne Gilson, Toronto-Paris,,1959,p.373:388) '

54

faculdades de artes e de teologia, quando elas existiam, ficavamem uma posição secundária ou marginal, assim como os gradua-dos que delas saíam: Os juristas adortíavam-se aqui, sem mode-ração, com os atributos mais Üsonjeiros: circumspectus,venerabilis, magnificus, sapientissimus, etc. Em síntese, todosos sinais do reconhecimento social e do prestígio político eramacumulados em seu proveito para/atestar o esplendor do direitona cultura meridional.

Embora mais tardiamente e em proveito das elites maisrestritas, os países germâniCçs do Império tiveram igualmenteboa acolhida, ao que parece, dç direito romano e dos juristascapazes de ensiná-lo e praticá-lo. Em contrapartida, no norte daFrança e na Inglaterra, o prestígio atribuído ao direito eruditofoi, sem dúvida, menor ou, de qualquer modo, menos exclusivo.Em Paris e em Oxford, a filosofia e a teologia, sustentadas poruma longa tradição, eram também tidas em alta consideração. Ese, por seu turno, o direito consuetudinário francês não opôsverdadeira resistência organizada ao direito romano - mas delese impregnou, ainda que de bom grado, como se vê já no sécu-lo XIII, mediante o Coutumes de Beauvaisis de Philippe deBeaumanoif -, na Inglaterra, ao contrário, a Cómmon Lau>, unifi-cada e, sistematizada no Tractatus de legibus et consuetu-dinibus regni Angliae de Glanvill (fim do século XII) e nacoleção do mesmo título de Henri de Bracton (c. 1216-1268),não sem alguma contribuição romana de fora, acantonou o di-reito erudito, pèlO menos o Cotpus iurís civilis, no estatutoestimável mas marginal de uma disciplina estrangeira e estrita-mente acadêmica.

NÃO importa. No final da Idade Média, por todo o Ocidente,o homem culto era, com bastante freqüência, um jurista. Um bomlatinista, é certo, leitor de Aristóteles e capaz;de encadear silogis-mos, mas fundamentalmente imbuído de citações do Decretum,do Código e do Digesto: as práticas mnemotécnicas, fortes noprestígio que desfrutavam nas escolas medievais, permitiam-lhe,se nós acreditarmos na ArS et doctrina studenti et docendi docanonista espanhol Juan Afonso de Benavente (1453)28,saber de

28 - Juán Alfonso de Benayeme, Ars et doctrina studendlet docendi, editado por B. Alonso Rodriguez, Salamanca,l972,p.84-86

55

Page 28: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

cor até mil artigos de leis, disponíveis, a todo instante, em seuespirito para reforçar uma argumentação, enriquecer uma dis-sertação ou ornar um discurso.

O peso considerável do direito na cultura e nas mentàli-dades do fim da Idade Média hão parecia ser exagerado. Eleera a própria medida do sucesso social e político dos juristas.

4. UTILÍDADE SOCIAL OU CULTURA GERAL?

Ainda que se restringisse às disciplinas que acabamos deindicar, a cultura erudita do final da Idade Média não escondiasuas finalidades práticas e a sua pretensão de utilidade social.Sem dúvida, seria anacrônico conceber essa noção de utili-dade social mediante a categoria de perspectivas profissionaisprecisas, mas é ftto que se considerava, então,'que os conhe-cimentos sustentados pelos homens cultos conduziam, commuita \naturaliclade, ao exercício de tarefas socialmente legíti-mas, sempre melhor desempenhadas por aqueles que demons-trassem possuir maior competência intelectual. Estudava-se ateologia para pregar, a medicina para cuidar dós doentes, odireito para tornar-se juiz ou advogado. Apenas as artes li-berais poderiam não designar. tão claramente sua funçãosocial (mesmo assim, os mestres em artes podiam, no mínimo,tornar-se mestre-escolas ou secretários) mas isso era precisa-mente porque se tratava, pelo menos em tese, de simples dis-ciplinas preparatórias para o curso superior. A idéia de uma

,. cultura desinteressada, sem outros fins que não o desabrocharda personalidade e da pura fruição do saber por si mesmo, eraestranha para os intelectuais daquele tempo. O sucesso indi-vidual não era para eles matéria de educação e de cultura, masde fé, de submissão a Deus, de prática de virtude e de obraspela esperança de merecer a salvação. Quanto ao prazerestético que poderia ser proporcionado pela arte ou pelosaber, ele parecia suspeito; seria melhor limitá-lo ao domínio,no mínimo, inofensivo ou, no máximo, perigoso, da diversão:as artes mundanas e a literatura vernácula lhes eram absolu-tamente suficientes: A cultura- erudita era, enquanto tal, coisaexcessivamente séria para ser abandonada a si própria: "Para

\ que serve a ciência desinteressada? Sciencia abscondifa et

56

thesaurus invisus^ qtte utilitas in utrisquel Nós não apren-demos apenas para investigar, mas para revelar e fazer", obser-vava Gerson29; dito de outro modo, para que servem os bonsconhecimentos se eles não dão margem a uma atividade con-creta, útil tanto para aquele que a produz quanto para a sociedadeem que ele vive? Como contrapartida, o homem de saber espe-rava que sua utilidade social fosse reconhecida e recompensadaem seu justo valor, ou seja, que fosse aceita sua admissão à elite,talvez até mais precisamente, nós o veremos, sua assimilação,pelo menos a título individual e vitalício, na nobreza.

Esse aspecto utilitarista da cultura erudita nos últimos sécu-los da Idade Média, que lhe fez muitas vezes privilegiar, ppr preo-cupação com a eficácia social, os procedimentos concretos e téc-nicos às expensas da curiosidade dê espírito e da elegância in-,telectual, certamente alimentou mal-entendidos que a opuseram,em breve, aos humanistas da, Renascença. Mesmo que não se par-rtilhe dos preconceitos destes, o historiador moderno mantém-setentado a imputar a essa concepção dos saberes a insuficiênciado senso crítico e a efetiva ausência de espírito de investigação,que aparecem, pelo menos retrospectivamente, como traçosmaiores da cultura erudita dessa época. Trata-se, de fato, de umjulgamento muito genérico ao qual se poderia opor múltiplosindícios de um certo sentido de progresso intelectual, perceptí-vel em diversos autores desde a célebre fórmula do teólogoBernard de Chartres, no início do século XII, sobre "os anãos le-vantados sobre os ombros dos~gigantes" e que, desse modo, viammais longe que esses. Contudo, tais referências, permanecendopouco numerosas, datam, no essencial, dos séculos xn e xni.Depois de 1300, uma concepção conservadora e bloqueada dosaber parecia predominar.

A visão da cultura medieval que nós aqui delineamos, con-fronta-se, entretanto, ao que parece, com uma dupla objeção.

A primeira, a menos pertinente, é a de que a utilidade socialda cultura erudita, ,da qual nós falamos aqui, estava longe de serunanimemente reconhecida. Nenhuma função na sociedade,medieval (salvo talvez algumas formas de exercício da medicina)

29 - Num discurso de J.405 (J. Gerson, Oeuvres completes,ed.P Glorieux, volume VU/1,Paris, 1968,p.1145)

S7

Page 29: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

era estritamente reservada aos titulares dessa ou daquela gradua-ção; tanto quanto a competência intelectual, o nascimento, aantigüidade ou o simples acaso muitas vezes comandavam asnomeações e promoções. A sociedade medieval jamajs deixou .de ser imperfeitamente meritocrática/E os próprios homens desaber praticamente não o ignoravam, sendo que, muitas vezes,eles não desdenhavam de fazer valer a seu favor as circunstânciasda sorte, do nepotismo e do clientelismo para obter mais segura-mente os conhecimentos que pudessem por si mesmos abrir-lhes o acesso. Mas isso não impede - e aqui está o ponto essen-cial, sobre o qual nós retornaremos na seqüência deste livro -que a idéia das competências intelectuais pudesse assumir opapel de fator de regulação social, idéia praticamente desco-nhecida na Alta Idade Média, e que não cessou de progredir a par;tir do século XQ, mesmo que ela jamais tenha podido desem-baraçar-se, por completo, do peso-dos fatores concorrentes.

Mais embaraçoso é o fato de que, tal como elas eram prati-cadas e ensinadas no final da Idade Média, as principais disci-plinas constitutivas da cultura erudita não pareciam mais se cur-var à noção de utilidade social. O que havia de comum entre ateologia escplástica, com suas desagradáveis abstrações e suasintermináveis distinções, e a pregação popular? O que havia 'decomum entre o discurso teórico dos médicos e as necessidadesreais dos doentes? - recordem-se 05 efeitos cômicos que Molièretiraria disso no século XVH, Qual a finalidade, enfim, de os juris-tas, chamados a julgar de acordo com o costume, passarem anosa glosar um direito romano velho já há muitos séculos einaplicável como tal na sociedade medieval?

Na própria época, já existia a sensibilidade para percebertais distorções. É provável que, em suas práticas cotidianas,mestres e sobretudo estudantes, tenham buscado promover for-mas de ensinamentos mais simples e menos formalistas, aligeiran-do os programas tradicionais.introduzindo nas escolas exercíciose textos, até mesmo disciplinas que originalmente não teriamlugar. Tais iniciativas nãoorganizadas, freqüentemente ignoradase até combatidas pelas autoridades vigentes, infelizmentedeixaram poucos rastros na documentação. Alguns projetosreformadores, alguns estatutos de colégios, som -dúvida, lhes fa-ziam eco. Sob uma forma ou outra, nós encontraremos neles as

58

mesmas tendências: revalorização da gramática, abandono de cer-tas disputas, trabalho em pequenos grupos, introdução do uso demanuais simplificados, encurtamento da duração dos estudos,lugar maior dado para a teologia e para os estudos bíblicos, namedicina para os "estágios clínicos, no direito para o direito mo-derno e para os textos dos costumes. Como contrapartida, bempbuco se, arriscava, ao que parece, no tocante à substituição dolatim pela língua vernácula.

Aqui ou lá, à margem das antigas universidades, mas sempresob seu controle, criaram-se novos tipos de escolas. Em Oxford,um conjunto de verdadeiras escolas de gramática, de bom níveldesenvolveram-se ao lado das faculdades de artes. Em Bolonha,foram as escolas do notaríato que apareceram à sombra da uni-versidade jurídica. Em outros lugares ainda surgiram as escolas, decirurgiões, mais ou menos supervisionadas pelas faculdades demedicina. Em Salamanca, já eram distribuídos títulos em música,enquanto a faculdade de direito se punha a ensinar, sem dúvidaem língua vernácula, a legislação real castelhana - Siete Partidase Fuero real - paralelamente ao Cotpus iuris civilis. NaInglaterra, também a Corhmon Z#tt>itornou-se matéria de ensino,mas isso ocorreu completamente fora da universidade; as escolasespeciais, privadas - as Inns ofCourt - apareceram no século XVem Londres onde estudavam os futuros "advogados", associandolições magistrais, proferidas por profissionais da vara, e estágiosno tribunal.

Poderíamos dar outros exemplos. Os ensinamentos, elestambém mal conhecidos, que se desenvolveram, sobretudo, noséculo XV, no próprio seio dos colégios universitários, teste-munham, sem dúvida, a mesma face doente do caráter esclerosa-do e inadaptado do ensino universitário.

Np conjunto, porém, tais inovações não chegariam muitoMonge. É verdade que as autoridades, professores "regulares" dasuniversidades e poderes públicos, associariam geralmente seusesforços para contê-las e impor, com isso, a manutenção do sta-tus quo.Mas há que se dizer que não se tratava também detendências de grande porte cultural. Nós somos até tentados adar razão àqueles que lhes quiseram refrear o desenvolvimento.Resultando menos de uma reflexão global sobre a natureza dossaberes que da pressão dos estudantes e de suas femílias cuida—

59

Page 30: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

dosas em programar melhor o tempo è o custo dos estudos, essesesforços para promover uma aproximação mais prática e menosformal de disciplinas não agravaram algumas das tendências maiscontestáveis da cultura medieval: o primado da autoridade, opavor da heterodoxia, a substituição das fontes originais pelosflorilégios, sinopses e manuais, a hipertrofia da memória.

A defesa das disciplinas e dos métodos tradicionais era, aprincípio, indubitavelmente, o efeito de uma reação corporativapor parte dos mestres em suas cátedrasi, dos doutores convictosde sua ciência e pouco dispostos a colocar em discussão suaautoridade e seu prestígio. Mas ela traduzia também uma certaconsciência dos valores específicos da cultura erudita medieval.Esta, de fato, não era uma cultura livre e desinteressada, domina*da pelo espírito de pesquisa. Mas pelo menos ela tinha a pre-tensão de repousar sobre saberes suficientemente amplos esobre as "autoridades", suficientemente ricas para oferecer àque-les que a praticassem mais do que saberes técnicos. O letradomedieval se reconhecia tanto por sua capacidade de ministrarem seu conjunto um dado campo disciplinar quanto por umacerta maneira de raciocinar, de abordar os problemas, dedescortinar os textos, de conduzir uma discussão, de extrair osprincípios gerais que o tornassem apto, no seio da disciplinaescolhida, e até para além dela, a assumir der fato uma real diver-sidade de funções sociais conexas. Os conteúdos e as atitudesintelectuais eram definidos de maneira rigorosa e até bastanterígida, mas no interior desse quadro os homens de saber dassociedades medievais (tanto mais - repitamos - pelo fato de talcultura ser ainda largamente internacional) podiam se reco-nhecer não somente como capazes de exercer certos ofíciosque eles consideravam social e politicamente úteis, mas tambémcomo formando eles próprios uma comunidade cultural defini-da por um certo número de referências partilhadas.

Isso não quer dizer que não houvesse, no final da IdadeMédia, crise da cultura erudita no Ocidente. Detonada na Itáliadesde meados do século X5V, perceptível na França por volta de1400, essa crise não se fez sentir, de maneira geral, em outroslugares até os últimos decênios do século XV A obsolescência decertos conteúdos e a descoberta de novos textos obrigaram arever a definição e a própria lista àasr disciplinas. As disciplinassuperiores passaram para um'primeiro plano, Platão tornou a

60

fazer concorrência a Aristóteles. Mas foi, sem dúvida, o distancia-mento da perspectiva utilitária anteriormente exposta qUe foi amutação mais importante. A noção de cultura, tão fortemente li-gada na Idade Média, como já bem demonstrou Jacque Lê Goff,.àquela do trabalho, foi progressivamente, e não sem polêmica,derrubada por aquela do lazer e da gratuidade, rejeitando ossaberes profissionais voltados para estrita funcionalidade.30 É evi-

, dente não apenas que a transição ocorre lentamente, mas trataya-•c fundamentalmente da tradução, no domínio propriamente cul-

»; tural, das mudanças sociais e políticas que marcaram a passagem:" das sociedades européias para a idade moderna.

5. CULTURA ERUDITA, CULTURA POPULAR

Uma última questão se coloca. A.cultura erudita da qualamos de tratar, era evidentemente uma cultura elitista. Maisnte, nós voltaremos aos problemas estatísticos, mas é bem> que as pessoas cultas não representaram nada além de umaicna minoria, antes de tudo, masculina, da população. Sua cul-

i era composta por disciplinas, bem precisas, de, difícil acesso,ez pelo indispensável domínio prévio do latim. Longos estu-

i eram quase sempre necessários, bem como a custosa posse: livros. Uma viva consciência dos méritos e do seu valor habita-,, aliás, geralmente os homens cultos, cuja .qualidade dominante

ais parecera ser a modéstia. Numa palavra, todas as condiçõesi estariam reunidas para que eles se constituíssem em umal fechada, definida pela detenção de saberes inacessíveis aoem comum?A resposta a essa questão é, antes de mais nada, social. É ver-

i que uma casta de homens cultos será tão mais facilmenteuída quanto se fizer capaz de formar um grupo endógenoterizado por funções e um modo de vida específicos; pelorio, enquanto os homens de saber permanecem indivíduos

os no seio de famílias que continuam a se entregar a outrass, eles permancecem verdadeiramente mais próximos

30 - J. Lê Goff, Lês intellectueis au tylayen Age, 2*ed., Paris,' 1985, p.187-188. ,

61

Page 31: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

das preocupações e das representações do resto da sociedade.Encontraremos adiante algumas indicações, por vezes bastantematizadas, sobre esse assunto.

Mas a questão também é cultural.-Os homens de saber e oresto da população efetivamente se opunham como dois univer-sos culturais distintos? Certos aspectos, pelo menos, da culturados letrados não seriam já difundidos por camadas mais largas dasociedade? E, inversamente, para além dos sabetes que lhes erampróprios, os letrados não continuavam a partilhar com o conjun-to de seus contemporâneos um certo número de crenças e deconhecimentos, explícitos ou implícitos, que pertenciam àquiloque nós chamaremos -- à feita de algo melhor e sem nos furtar àambigüidade da expressão - cultura popular?

Esses são os pontos difíceis^para se compreender com pre-cisão porque essa cultura "popular" tem deixado, por definição,infinitamente menos traços escritos do que a cultura erudita.

Unia questão fundamental quanto a taxa de alfabetizaçãono seio das sociedades medievais nos escapa totalmente.Naturalmente tal taxa deveria ser bastante baixa, mas suspeita-mos, apesar de tudo, mediante.escassps indícios, de que ela seriatalvez maior, pelo menos a partir dos séculos xn e XIII, do quenós anteriormente imaginávamos. Eni diversas regiões existiram,nas cidades e até mesmo nos campos, redes não desprezíveis depequenas escolas de gramática que podiam atender a um públi-co verdadeiramente popular. Do século XIII ao Xy o número delocalidades inglesas identificadas como locais de abrigo de umaou várias escolas desse tipo progressivamente se elevou de 32para 8531. Outras regiões, é verdade, eram pior aquinhoadas.Mesmo se as crianças que freqüentavam essas escolas não lhesextraíssem nenhuma atitude para além de uma certa compreen-são de textos simples (contas, créditos, atos de locação ou devenda, arbitragens e sentenças, contratos de casamento qu testa-mentos, etc.), isso lhes proporcionava uma certa familiaridade

31 - 32 para o período 1200-1249,48 para 1250-1299,62para 1300-1349,72 para 1350-1399,82 para 1400-1449,85para 1450-1499, de acordo com N. Orme, Ettgtísb Schoolsin tbe MidMeAges, Londres, 1973, p. 294.

62

para com ais práticas administrativas e jurídicas que regulavam aexistência cotidiana. ,

Michael T. Clanchy mostrou bem que, no final da 'IdadeMédia, muitos camponeses ingleses possuíam em seus cofres títu-los de propriedade ou sentenças judiciais, os quais eles não ape-

, nas eram capazes de compreender, como ainda podiam utilizaresses papéis fios litígios com seus senhores ou os oficiais do rei.32

O caso inglês, ilustrado pelos dois trabalhos que acabo decitar, seria em si excepcional? Qualquer um que tenha trabalha-do sobre os registros de notários dos países mediterrânicos, con-frontado com uma massa de transações muitas vezes minúsculasc contratos passados pelas pessoas mais comuns para os casosaparentemente mais fúteis, não se pode impedir de acreditar qúé,cm tais regiões, também a maior parte dos habitantes era capazde compreender a penetração de um ato escrito e que eles ti-nham até a tendência de atribuir ao direito uma confiança pelomenos igual àquela dos próprios juristas. Enfim, é inútil insistir,enquanto algo conhecido, sobre o Caráter extraordinariamentedemandista dos homens desse tempp, que não cessavam desobrecarregar de múltiplos afazeres os tribunais que então exis-tiam e de maneira hábil jogavam freqüentemente com a super-posição e a eventual concorrência das diversas instâncias judi-ciárias.

Tudo isso implica, ao 'que parece, a existência de um hábitode cultura jurídica popular. Os simples indivíduos sujeitos à açãoda justiça não possuíam evidentemente os conhecimentos dosjuristas de profissão, mas partilhavam com esses de uma certaidéia da força do direito e de seus grandes princípios. Os juristasnão teriam podido, nessas sociedades, elevar-se à posição e ao-prestígio que desfrutavam, se não se beneficiassem de uma espé-

, cie de consenso sobre a legitimidade e a eficácia de sua disci-Lplina. Desse consenso, participavam também os príncipes, asBeldades, as ordens religiosas etc., que tinham todos e freqüente-jnénte com grandes despesas, de se cercarem de procuradores eftonselheiros jurídicos .cuja ajuda lhes parecia indispensável

32 - M. T. Clanchy, From, memory to written record.f} England, 1066-1307,2a edição, Oxford, 1993.

63

' - .Vi :' , , l, > .

Page 32: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

defender as liberdades e privilégios sem os quais as instituições,bem como os indivíduos, se sentiriam, na Idade Média, como quedesprovidos de existência legal "e expostos a todas as cobrançase todas as violências'3.

Será difícil fazer a mesma demonstração para os outrosdomínios da cultura erudita (filosofia, teologia, medicina). O fossoaqui era, sem dúvida, maior entre "os saberes das elites e os co-nhecimentos da maior parte da população. O processo de Joanad'Arc, deixando de lado suas implicações políticas, permaneceum exemplo famoso da incompreensão que poderia separar umamulher do povo, embora devota, e os mestres em teologia da uni-versidade.

Seria recíproca essa incompreensão? A cultura popular tor-nava-se, ela mesma, impermeável aos letrados, isoladas na lógicade seus saberes e na certeza de sua superioridade intelectual?

Nós não podemos oferecer a essa questão uma respostasimples.Talvez obtivéssemos tantas respostas quantos fossem oscasos pessoais, sobretudo se recordarmos que, sob a etiqueta dehomens de saber, nós classificamos indivíduos que possuíamdiferentes níveis de conhecimentos e práticas sociais que, apesarde tudo, diferiam entre si.

Havia em todo caso um domínio que, evidentemente, eracomum a todos: aqueíe da fé cristã. Nós estamos Cm uma épocade unanimidade religiosa. Quereria isso dizer que a cultura reli-giosa de todos era a mesma? Deixemos de lado o caso dos teólo-gos. Sua formação era bastante estimulada, mas eles eram, como jádissemos, pouco numerosos. Deixemos também de lado o casodos religiosos, que supostamente sé beneficiavam das conferên-cias (collationes) cotidianas de seu abade. Para os outros, quer,dizer, os leigos e mesmo o simples clero secular, a Igreja medievalnão previa uma forma específica de educação religiosa. Ela reme-tia tal tarefa às famílias, especialmente às mulheres, para incul-carem desdq a infância os rudimentos, em particular as principais

preces; ela mesma não oferecia aos fiéis, sem distinção de idade ede sexo, nada além da mensagem mais ou menos inteligível daliturgia, da iconografia (a decoração das igrejas) e sobretudo dapredica em vernáculo. Os homens de saber tirariam melhoraproveitamento desses ensinamentos que as "pessoas simples"? ÉpossíveLAlguns deles deixaram traços particulares de sua piedadereligiosa. As bibliotecas dos membros do Parlamento de Paris,compreendendo inclusive seus conselheiros leigos, continhamlivros de espiritualidadej ao lado dos indispensáveis livros de direi'to34. Mas o desenvolvimento da devoção laica é um fenômenogeral nç final dá Idade Média que tocava tanto homens e mulheresde meios modestos e de cultura medíocre quanto os letrados. E,por outro lado, existiram pessoas cultas quanto aos conhecimen-tos e à cultura religiosa de quem nós nada sabemos. Uma vez colo-cadas de lado algumas fórmulas introdutórias séniprç feitas derecomendações a Deus, seus escritos, excessivamente técnicos,são praticamente mudos sobre esse ponto, como eles também sãomudçs, mais amplamente, sobre os interesses que eles poderiamdespertar na cultura popular oral, para não dizer folclórica, deseus contemporâneos. Um provérbio proferido a respeito de umafrase, uma reflexão pessoal que aflora aqui ou lá, nós deixam àprópria sorte. Nós geralmente revelamos grande consideraçãopelos exempla (anedotas moralizadoras) com os quais pregado-res, compreendendo-se neles eminentes teólogos, semearam seussermões presumindo que eles poderiam servir de empréstimosfeitos de maneira consciente à cultura popular (e reinterpretadosem uma acepção condigna com a ortodoxia religiosa) para me-lhor reter a atenção dos fiéis". Na realidade, e mesmo que se ne-gligencie o fato de que muitos dos exempla teriam, de fato, umaorigem erudita, esse procedimento pode testemunhar sobre ainformação dos teólogos, mas não forçosamente sua adesão a essacultura popular à qual eles se referiam.

33 - Ver por exemplo A. Rigaüdière.Tessor dês conseillersjuridiques dês villes dans Ia Ftance du bas Moyen Age",Revue historique de droit françaís et étranger, 62(1984), p. 361-390 (reimpressão em A. Rlgaudière,Gouvemèrla ville au Moyen Age, Paris, 1993, p. 215-251).

64

34 - F. Autrand, Culture et mentalité: lês librairies dês gensdu Parlement au temps de Charles VI, Annales ESC, 28(1973), p. 1219-1244.35 - Cf. Cl Bémont, J. Lê Goff, J.-C1. Schmitt, L'exempltimCiypologie dês spurces du Aloyen Age occideiital, 40),Turnhout, 1982. / ,.

65

Page 33: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

Poderíamos também dizer outro tanto dos documentosjudiciais, notadamente da inquisição. Os canonistas e os teólo-gos, que tinham de conhecer as práticas de heresia e defeitiçaria, essas manifestações extremas de uffia.cultura popularem aberta ruptura com a ordem estabelecida, apareciam,' demaneira geral, não somente como pessoas malévolas, mas tam-bém mal informadas. Sua incompreensão se mede pelo caráterparadoxal de sua atitude, que consistia simultaneamente emtratar os heréticos e feiticeiros como "grosseiros ignorantes" èem procurar identificar atrás de tais práticas o ressurgimentode doutrinas errôneas outrora condenadas pelos Pais da Igreja(maniqueísmo, arianismo, sabelianismo, etc.).

• A questão foi particularmente colocada a propósito deprocessos de bruxaria que se multiplicavam por toda a Europano século XV Os juizes que interrogavam e condenavam as feiti-ceiras, participavam, a seu modo e em seu papel (aquele deagentes da repressão), de um movimento geral de medo coleti-vo (que durará até o século XVII)? "Acreditariam eles", comotodo mundo, no sabá e nas cavalgadas noturnas? Ou dever-se-iaantes ver nessa fogueira demonológica Q sinal de uma rupturaentre urna cultura popular há muito tempo tolerada, mas dora-vante reprovada e,uma cultura erudita, aquela dos juristas e doshomens da Igreja, incapaz de compreender e, a fortiori, deaceitar as manifestações que lhe eram completamente estra-nhas?36

Eu não pretendo travar aqui um debate que oponha espe-cialistas. Sustento apenas que, se os aspectos específicos da cul-tura dos homens de saber são relativamente fáceis de sealcançar, em virtude de serem abundantes os textos que lhesprestam testemunho, é muito mais difícil reencontrar aquilo

que, sob a proteção da língua oficial, dos saberes especializa-dos, de pretensões públicas, esses homens de estudo e de ciên-cia guardavam em comum com a massa de seus contemporâ-neos. Isso será obra de análise social e política e, ria medida dopossível, do estudo dos comportamentos, que revelarão aquiloque os interessados, sem dúvida, preferiam, mais ou menosinconscientemente, ocultar. ~ '' .

36 - É essa última explicação que me fã? privilegiar o exce-lente estudo de R Parvy,j "A propôs de Ia gênese médiévaledês chasses aux sorcières: lê traité de Claude Tholosan,juge dauphinois" (c. l436),Mélanges (fé école françaisç de,Rome, MOyen Age, temps ihodernes, 91 (1979), p. 3331

379, que refere-se à "cruzada das pessoas, letradas contraaquelas da tradição sincretista do mundo aldeão" e do "an-tagonismo cultural"; ,

67

Page 34: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

capítulo 2

OS ESTUDOS

Do que dissemos no capítulo anterior, depreende-se clara-mente que a quase totalidade de pessoas cultas, no final da IdadeMédia, havia feito, de maneira geralmente prolongada, estudos dotipo escolar. Não podemos evidentemente excluir a existência deautodidatas. Contudo, nem o contexto social e político, nem ascondições materiais de acesso à cultura lhes favorecia. O auto-di-datismo moderno será filho do livro infpresso.

Para todos os que por ela passavam, a escola, ria Idade Mé-dia como em qualquer outra época, era a princípio o local deaprendizagem de sàberes. Lá eram inculcados, segundo preceitospedagógicos característicos da época, ao mesmo tempo, os co-nhecimentos e os métodos de raciocínio e de trabalho que cons-tituiriam para cada um o essencial da bagagem intelectual de quese disporia até o fim da vida. Mas a escola era bem mais do que -isso, ainda que na Idade Média ela não tenha pretendido tantoquanto cm outros séculos tomar a totalidade da formação social,moral e religiosa dos indivíduos. A escola era um lugar de sócia-bilidade e de descoberta. Aprendia-se ali a se comportar, a afir-mar sua personalidade e a avaliar os outros sempre se curvando

69

Page 35: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

capítulo 2

OS ESTUDOS

Do que dissemps no capítulo anterior, depreende-se clara-mente que a quase totalidade de pessoas cultas, no final da IdadeMédia, havia feito, de maneira geralmente prolongada, estudos dotipo escolar. Não podemos evidentemente excluir a existência deautodidatas. Contudo, nem o contexto social e político, nem ascondições materiais de acesso à cultura lhes favorecia. O auto-di-datismo moderno será filho do livro inlpresso.

Cara todos os que por ela passavam, a escola, ria Idade Mé-dia como em qualquer outra época, era a princípio o local deaprendizagem de sàberes. Lá eram inculcados, segundo preceitospedagógicos característicos da época, ao mesmo tempo, os co-;nhecimentos e os métodos de raciocínio e de trabalho que cons-tituiriam para cada um o essencial da bagagem intelectual de quese disporia até o fim da vida. Mas a escola era bem mais do que .isso, ainda que na Idade Média ela não tenha pretendido tantoquanto em outros séculos tomar a totalidade da formação social,moral e religiosa dos indivíduos. A escola era um lugar de socia-bilidade e de descoberta. Aprendia-se ali a se comportar, a afir-mar sua personalidade e a avaliar os outros sempre se curvando

69

Page 36: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

a uma disciplina coletiva. Nela, travavam-sç relações duráveis deamizade. Passava-se a integrar grupos ou clientelas. Essa experiên-cia existencial, inseparável da aquisição de saberes, contribuíasem dúvida, tanto quanto estes últimos, para traçar o contornocoletivo dos letrados medievais.

s Enfim, a escola era - a par da própria utilidade reconhecidaaos estudos - uma aposta política. Houve certamente formas deeducação e Até de escolas puramente familiares ou privadas. Mas,no conjunto^a Igreja em suas diversas instâncias (ordens religio-sas, bispos, papas), as cidades, os príncipes preocuparam-se emcriar escolas e em controlá-las. Essa aposta política era, antes detudo, de ordem ideológica.Tratava-se de garantir a conservação ea difusão de um certo número de saberes, sempre resguardandoa ortodoxia e se opondo ao desenvolvimento de outros saberesjulgados ilegítimos ou perigosos. Mas tratava-se, ainda mais, dê ga-rantir as condições favoráveis para a formação de gente instruídae competente das quais a Igreja, as cidades ou os príncipes julga-vam ter necessidade, fosse diretamente para seus serviços, fosse,ao menos, para um funcionamento harmonioso da sociedade.

Às redes escolares de que o Ocidente dispunha nos últimosséculos, da Idade Média não eram nem completas nem perfeita-mente coerentes. De acordo com os países, elas possuíam umadesigual densidade, não seguindo as mesmas regras de funciona-mento, não difundindo exatamente a mesma educação. No con-junto, eram, contudo, bem mais homogêneas que na época mo-derna. Pode-se portanto, sem muito exagero, estudá-las de manei-ra global, com a condição de não se negligenciar certas especifi-cidades regionais ou nacionais.

Por toda a parte, podem-se distinguir três .níveis de estabe-lecimentos de ensino, t

Havia inicialmente aquilo que chamarei de um nível ele-mentar, que nós poderemos fazer corresponder, sob o custo dealgum anacronismo, ao nosso ensino primário e, em certa medi-da, secundário da educação. Geralmente abandonado à iniciativaprivada ou pelo menos local, beneficiando-se apenas de uma li-mitada consideração social e política, era o nível mais diversifica-do e o menos coerente. Ele não deixou na documentação nadaalém de traços muito dispersos. Sobretudo^ no atual estado daspesquisas históricas, é, de longe, o menos conhecido. Apenas al-

70

guns casos regionais tornaram-se objetos de monografias sufi-cientemente substanciais, a partir dos quais não se deve apressa-damente generalizar as conclusões.

A peça mestra do sistema educativo medieval, o elementocentral, era constituído, a partir do século XIII, pelas universida-des ou, como se dizia então, pelos studia generalla. Nós estuda-remos mais adiante seu funcionamento em detalhes. limitemo-nos, neste momento, a sublinhar que as universidades eram, delonge, os estabelecimentos de ensino que possuíam a infra-estru-tura institucional e econômica mais sólida (o que explica queelas tenham deixado abundantes arquivos), aqueles que desfruta-vam de maior prestígio social e intelectual - o que foi, diga-se depassagem, por muito tempo incontestado -, aqueles, enfim, quemonopolizavam, ou quase, a atenção, os favores, mas também porvezes os esforços, para colocá-los sob tutela dos poderes públi-cos, tanto eclesiásticos quanto laicos.

As primeiras universidades apareceram por volta de 1200,herdeiras diretas das principais escolas do século XII. Existiam,para o conjunto do Ocidente, quinze universidades no princípiode 1300 e quatro vezes mais, dois séculos mais tarde. Apesardesse rápido crescimento, que diz muito sobre a popularidade dainstituição, parece claro que as universidades medievais, queeram, além do mais, de importância muito variável, acolheramapenas uma pequena elite de estudantes e conferiram diplomasapenas para uma elite ainda mais restrita de graduados. Os hor,mens de saber, dos quais falamos neste livro, não se identificavamcom o grupo de graduados da universidade embora este consti-tuísse para eles o núcleo primeiro, e, em larga medida, a referên-cia e o modelo.

Apesar disso, as universidades e os graduados das universida-des não escaparam, à medida que passavam os anos, a toda espé-cie de crítica. Crítica, aliás, que, em geral, vinha antes implícita dpque abertamente formulada. O resultado disso foi então - e aquiestá o terceiro nível que nós levamos em consideração - a apari-ção de um certo número de estabelecimentos educativos que seapresentavam como alternativas possíveis para a instituição uni-versitária. Em geral, não eram mais do que criações recentes, lo-cais, dispersas, mais ou menos bem-Sucedidas. Muitos desses no-vos estabelecimentos possuíam um nível modesto, enquanto ou-

71

ii»

Page 37: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

tros já faziam abertamente concorrência a certos ensinamentosuniversitários. Em suma, tratava-se do prólogo daquilo que - a par-tir da fórmula do "colégio interno" - se tornará o elemento chaveda educação na Europa da época moderna, a ponto de freqüente-mente relegar as universidades a um segundo plano. Cabe, portan-to, interpretá-los desde sua aparição, ou seja, desde os séculos XEUou XIV, destacando fundamentalmente, o século XV

Nós iremos estudar sucessivamente esses três tipos de insti-tuições de ensino por onde passaram, com maior ou menor inten-sidade,; praticamente todos os homens de saber do Ocidente nósúltimos séculos da Idade Média.

I.AS ESCOLAS ELEMENTARES

AS aprendizagens elementares, em primeiro lugar aquelasda leitura e da escrita, podiam ser feitas de diversas formas. Po-deriam ocorrer em casa, fundamentalmente - o que constituíacaso raro - quando a mãe sabia, ela mesma, ler e escrever. Po-deriam ser confiadas a um preceptor. O preceptórado privadocertamente desfrutou de uma real importância no final da Ida-de Média até nas boas famílias do patriciado urbano,'embora adocumentação praticamente não permita identificá-lo paraalém das práticas estabelecidas para com os filhos da mais altanobreza ou das famílias principescas. Ainda nesse último casoconhecemos, sobretudo, o nome do cavaleiro responsável pelaeducação militar e mundana de seu aluno, em sua família e nacorte, enquanto as aprendizagens intelectuais eram abandona-das a qualquer clérigo ou capelão, em geral, anônimo1. Com al-gumas exceções, foi apenas no século XV que se passou a con-siderar que, mesmo para um futuro príncipe du um jovem no-bre destinado ao ofício das armas, urna sólida formação literá-ria podia ser vantajosa, se não indispensável, merecendo, unicuidado particular.

A todos aqueles que, desejando oferecer aos seus filhos cer-ta educação literária, não queriam ou não podiam recorrer aos

l - Cf. N. Otms,Fromcbildbood to chivalry: tbe educatíonof-the englisb kings and arístocracy, 1066-1530, Lon-dres/New-York, 1984, p. 1-80.

72

serviços de um preceptor, restava a solução da escola primária la-tina. ,

Nós somos, a priori, tentados a pensar que os citadinoseram aqui favorecidos, porque não existia praticamente nenhu-ma cidade de alguma importância que não possuísse no final daIdade Média uma ou várias escolas de gramática. Tem-se mesmo.a impressão de que, pelo menos nas .grandes cidades, a oferta deescola era, naquela época, relativamente importante. Para Parisseseus arredores, um documento de 1380 trazia nomes de quaren-ta e um regentes de escolas de gramática, clérigos e leigos, e devinte e uma mestras de escolas para as meninas2; essa lista, semdúvida, hão estava completa porque dela constam apenas aque-les que dependiam do coro da Catedral Notre-Dame, enquantooutras igrejas e abadias parisienses deviam também igualmentepatrocinar algumas escolas. Em Genes, o colégio dos mestres degramática, que parecia haver excluído de uma só vez os regentesdas escolas eclesiásticas e os simples repetidores ou sub-mestresassociados a um mestre da praça, contava com treze membros nofinal do século XHI, vinte e dois em fins do século XV3. Em Lon-dres, o ensino da gramática permanecia ainda nas mãos da Igre-ja, mas, às importantes escolas antigas da Catedral St Paul e dasvelhas paróquias St Martín's lê Grand e St Mary lê Bow, vieram,no final da Idade Média, agregar-se duas ou três outras escolaseclesiásticas, os studia dos Mendicantes, sem dúvida abertos adiscípulos externos, e um número indeterminado de escolas pu-ramente privadas4. As cidades de menor importância não tinhamfreqüentemente mais do que duas ou três escolas, por vezes umasó ligada a um cabido local de cônegos. Mas, como bem mostra-ram tanto Nicholas Orme para o Sudoeste da Inglaterra quantoGiovanna Petti Balbi para a liguria5, não havia praticamente ne1

2 - Cbartulartum Universitatts Parisiensis^ editado por H.Denifle e É. Châtelain, tomo III, Paris, 1894, n° 1446.3 - G. Petti Balbi, L'insegnamento nella Uguria meMévdte:scuoÍe,maestri,tíbrl.Gènes.l979,p.75-76.4 - W. J. Courte,nay,'"rhe London Studia in the FourteenthCentury", Mediaevalia et Humantstica: studies In Medie-val and Renaissance Culture, 13 (1985), p. 127-141.5 - N. Otme,Education in tbe West ofEnglanã, 1066-1548,Exeter: 1976, e G. Petti Baíbí, L'insegnamento nellaLigurie medievale, op.cit.

73

Page 38: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

nhuma cidade, mesmo as menores, que não tivesse sua escola degramática. . ^

Ainda que certamente não fossem tão bem aquinhoados, nazona rural, pelos menos os meninos, não eram irremediavelmen-te condenados à ignorância ou ao analfabetismo. De fato, não ha-via escolas em todos os vilarejos. Longe disso.A coisa não era,>en-'tretanto, assim .tão, excepcional, sem falar do ensino' estritamenteelementar, que deveria ser oferecido por alguns curas- E desdeque nós chegássemos às aldeias de alguma importância, a existên-cia de uma pequena escola tornava-se praticamente normal. Éverdade que, carentes de um financiamento regular, muitas des-sas escolas primárias funcionaram apenas de maneira episódicae seu nível deveria ser bastante modesto.Mas as pequenas crian-ças do campo, ao manifestarem gosto' pelo estudo, poderiam es-tudar na cidade, ,sob condição de encontrarem um alojamento.Certos mosteiros urbanos parecem ter acolhido, até o final daIdade Média, escolares a quem eles asseguravam alimentação eabrigo; o jovem Gerson, filho de camponês e nascido na peque:

na vila ardennais da qual ele traz o nome, havia começado, diga-mos, seus estudos no mosteiro Saint-Remi em Reimç6. Por outrolado, existiam verdadeiros colégios, destinados especificamente aalojar uma parte dos alunos da escola catedral; havia dois em.Reims desde o princípio do século Xffl, oferecendo vinte e qua-tro lugares e, em meados do século XTV* a cidade vizinha deSoissons, embora claramente menor, possuía três colégios capa-zes de albergar uma centena de estudantes7. Enfim, era freqüenteque os mestres de escolas privadas cobrassem pensão de algunsalunos vindos do exterior.

6 - E Glorieux,"£a vic et lês oeuvres de Gerson: essai çhro-nològlqúe", Arch. D'bistoire doctrtnale et littéraire duMoyenAge, 18 (1950-5 í), p. 149-192 (p.150)7 - Ver em Enseignefnent et vie intellectuelle (IX°-XVPstècle) (Actes du 95' congrès nat. dês Soe. savantes - Phi-lologie et bistoire Jusqu'à 1610, t.I), Paris: 1975, os estu-dos de P. Desportes "L" enseignementíà Rcims aux XIII' etXIV* siècles",p. 107-122, e Carohis-Barré,"Ies écòles capi-tulaires et lês collèges de Soissons au Moyen Age at auXVfsiècle", p. 123-226.

No total, é difícil dizer qual era, nos séculos XIV e XV, a den-sidade dessa rede de escolas de gramática. As grande cidades,como vimos, eram geralmente muito bem providas. Em uma esrcala maior, podem ser observadas intensas desigualdades regio-nais. A Inglaterra medieval parecia haver sido relativamente esco-larizada e, mesmo nos seis condados pouquíssimo povoados e ur-banizados no Sudoeste ao país, N. Orme - em seu já citado estu-do - identificou cerca de quarenta e cinco localidades como ten-do abrigado uma escola em um momento ou outro entre os sé-culos Xin e XV (sem falar dos trinta e três mosteiros, igrejas ouconventos que mantinham também uma escola, embora, sem dü-Vida, com uso, sobretudo, interno). Por outro lado, na Champagnemedieval, apenas uma aldeia sobre dez teria possuído uma esco-la8; e, na Liguria de G. Petti Balbijiem as aldeias de pescadores dacosta nem aquelas do interior montanhoso do país pareciam ha-ver atraído mestres de gramática.Tais disparidades são, entretan-to, talvez acentuadas pelo estado atual da documentação ou sim-plesmente por aquele dás pesquisas. Convém, portanto, ser pru-dente.

As pequenas escolas latinas, urbanas e- rurais, caracteriza-vam-se por sistemas institucionais variados. As mais antigas eramescolas eclesiásticas que existiam desde a Alta Idade Média na de-pendência das catedrais, dos mosteiros e de certas abadias de cô-negos regulares. A partir do século XIII, muitos conventos de no-vas ordens mendicantes possuíam um studium onde ensinavamum ou dois leitores. As escolas mendicantes ̂ ram, a princípio,destinadas aos jpvens irmãos, mas, embora seja abusivo qualificaras ordens mendicantes - como anteriormente se fazia - de "or-dens ensinantes", é possível que elas também tenham aberto'seusstudia, ehi uma proporção que nos é infelizmente desconhecida,para discípulos externos.

Face às escolas eclesiásticas, outras escolas eram, ao contrá-rio, puramente privadas, abertas com ou sem licença episcopal

8 - S. GuUbert, "Lês écòles rurales en Champagne au XV*siècle: enseignement et promotíon sociale", em Lês entresdans Ia vie: initíatíons et apprentissages (Xlf congrès deIa Sòc. dês bistoriens médiéyistes de 1'ens.sup. public),Nancy: 1982, p. 127-147.

74 75

Page 39: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

por mestres-escolas com qualificação freqüentemente incerta eque cobravam vencimentos das famílias dos alunos. Esses mes-tres de gramática eram, por vezes, padres pobres, que buscavamno ensino um complemento para as fontes insuficientes de suamagra prebenda ou de uma pequena capelania. Mas tratava-se, namaioria das vezes, de laicos. Eles não pareciam desfrutar de umagrande consideração social. Em sua maioria, eram um pouco ití-nerantes e passavam ao cabo de alguns anos de uma escola paraoutra; certamente não faziam fortuna.

Essa situação parece haver sido um pouco alterada no finalda Idade Média. Quer isso se deva à crise econômica geral ou,'mais provavelmente, ao fato de as classes dirigentes e as elitesmunicipais haverem começado a apresentar um interesse um

- pouco maior pelo ensino elementar, nós verificamos em diversasregiões, a partir de meados do século Xiy multiplicarem-se asfundações públicas ou caritativas de escolas doravante dotadasde um financiamento assegurado (embora praticamente não dis-pusessem de edifícios próprios e adaptados: a escola continuavaa funcionar ria casa do professor).

Na Inglaterra, os piedosos fundadores instituíram, em geral,chantries combinando uma escola e uma capela comemorativada qual o titular era, ao mesmo tempo, mestre-esçola e capelão.Além disso, e "particularmente rios países mediterrânicos, forammuito comuns as municipalidades que se encarregaram tanto derecrutar os mestres quanto de responsabilizar-se, total ou parcial-mente, por sua remuneração e seu alojamento. A Igreja não viasempre com bons olhos tal laicização das escolas e procurava ha-bitualmente, como em Aix-eri-Provence; reservar-se pelo menoso direito de confirmar o magister grammaticus escolhido peloscônsules9. Esse início de municipalização foi talvez a ocasião demodernizar o ensino, instaurando uma certa seleção que era fa-vorável àqueles mestres partidários do humanismo. Porém, antesdo' século XVI, tanto os auditórios dirigidos aos "leitores públi-cos" quanto o esforço financeiro dispendido para retribuí-los per-

9 - Vide J. Pourrière, Lês commencements de 1'écàle degrammaire d'AÍx-en-provence, 1378-1413, d'aprèsdocumenta toáííte.Aix-en-Provence, 1970. '

76

maneciam excessivamente modestos para atrair outros candida-tos além dos regentes principiantes de medíocre envergadura.

Mais do que o sistema institucional, seria útil para nossopropósito conhecer, concomitantemente, os efetivos dessas esco-las, oslnétodos, o contfeúdo e o nível dos ensinamentos que eramoferecidos, os cursos seguidos pelos alunos. Nossa informaçãocontinua infelizmente muito insuficiente sobre todos esses pon-tos.

No que concerne à freqüência das escolas de gramática, osdocumentos apresentam cifras bastante contrastantes. Algumasescolas urbanas de gramática teriam acolhido inúmeras centenasde estudantes com idades e níveis variáveis. Efn 1469, a escola dovelho mosteiro Saint-Gilles de Nuremberg não recebia menos doque 230 alunos10; cifras dessa mesma ordem teriam como prece-dentes certas escolas urbanas italianas. Elas implicam quase ne-cessariamente que o efetivo seja repartido em várias classes ouque o mestre seja auxiliado por repetidores* ou recorra, de acor-do com a fórmula pedagógica que perdurará praticamente até oséculo XK, ao "ensino mútuo", com os alunos mais adiantadosajudando os mais novos. Além disso, como contrapartida, os efe-jtivos reunidos ao redor do grammaticus parecem ter sido pou-cos, dificilmente mais do que dez, o que possibilitava um ensinoquase individual, próximo da aprendizagem. , •/

Em todas essas escolas, a base do ensino é evidentemente agramática, quer dizer, o latim. Aprendizagem, inicialmente passi-va, por vezes associada àquela do canto, e na qual o mestre, semdúvida, não se proibia o recurso à língua vulgar. As criançasaprendiam os textos de cor, particularmente os do saltério e deoutros livros litúrgicos que tinham a vantagem de serem acessí-.veis mesmo nas escolas mais modestas, porque era suficiente em-

10 - J. W. Minei-, "Change and continuity in the schools of" later medieval Nuremberg, The catholic historical review,72 (1987),p. 1-22. \"Traduzimos como repetidor a palavra francesa repetiteurque designa um tipo muito específico de professor parti-cular, sendo, portanto, o mestre que exerce seu ofício emambiente doméstico. (N.T.) , ,

77

Page 40: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

prestá-los à igreja vizinha. Depois, vinha o estudo da gramáticapropriamente dita, que permitia o treino de curtos exercícios detema ou de composição latina. O velho manual do Donato, emcerta medida complementado pelos mais recentes Doctrinated'Alexandre de Ville-Dieu et Grecismus d'Évrard de Béthuhe,er&tn os livros de base desse ensino, ao mesmo tempo que algu-mas seletas de pequenos textos simples, como os Dísticos ditosde Catão, a Églogue deTheodule, nCbartula, as Fábulas de Eso-pó, o Florettís, etc., onde a criança encontrava prWérbios, fábu-las e outros pequenos poemas, catecismo elementar, historietasmoralizantes, maneiras de se comportar à mesa1'/Esse materialpedagógico bastante heterogêneo, que datava tanto da Alfa IdadeMédia, quanto do século XII, não tinha evoluído em nada do sé-culo xni ao XV e nós ojeencontraremos, com uma assombrosauniformidade, em todas as escolas do Ocidente, desde a Inglater-ra até a Itália.

A qualidade do ensino era indubitavelmente função corres-pondente ao nível de qualificação dos mestres. Nesse sentido, es-tes não se pareciam ter sujeitado a um controle mais rigoroso,mesmo lá onde existia uma licença episcopal ou um exame pe-las autoridades municipais. Entre os magistri gmmmatici, erapequena a proporção dos graduados na universidade - sendo es-tes, na maior parte das vezes, mestres em Artes; N.Ormé calculou-os em cerca de 25% para a Inglaterra do final da Idade Média e,na já citada lista parisiense de 1380, não se encontra, apesar daproximidade da mais importante universidade da época, mais doque nove graduados sobre quarenta e um nomes, ou seja 22%12.

De qualquer modo, tanto quanto a qualificação dos mestres- colocando-se à parte a questão do acesso dos jovens estudah-^es aos livros, provavelmente bem reduzido, até mesmo inexisten-te, na maior parte das escolas - deveria ser considerado o tempopassado na escola de gramática e, sobretudo, aquilo que os pró-prios estudantes ou, mais provavelmente, suas famílias espera-vam.

11 - Veja-se em particular N. Oirne, Englisb scbools in tbeÍAiddleAges, Londres: 1973, p. 87-115,12 >• N. Orme,Education in tbe west ofEngland, op.cit.,p. 19 Vide supra n° 2.

78

É fato que aqueles que chegavam à escola primária latinacom oito ou nove anos e não permaneciam nela mais do que doisou três anos não podiam esperar apreender mais do que uma prá-rtica elementar de leitura (talvez escrita) e algumas vagas referên-cias religiosas e morais extraídas do saltério e dos outros livros .que serviam para os exercícios escolares. Em contrapartida, aque-les que estudavam nessas escolas por oito ou dez anos, sem inter-rupção, deveriam alcançar um nível nitidamente superiof e pode-riam se iniciar, se o mestre lhes oferecesse essa oportunidade, eminúmeros outros saberes para além da gramática latina de base.

Ainda falta agora aquilo que era verdadeiramente seu objeti-vo. De maneira significativa, em Genes, onde o grande humanistaEnea Silvio Piccoíomini (o futuro papa Pio H) deplorará a falta degosto dos habitantes pelo estudo ("Hes praticamente não são ávi-dos de saber, eles não estudam a gramática a não ser o que é nelaindispensável e fazem pouco caso de todos os outros gêneros deestudos")13, determinados contratos de aprendizagem exigiamque a criança estudasse a gramática "tanto quanto convém a ummercador" (grammatica ad usum mercatorum Ianue)l*,o quesignifica que a iniciação na gramática derivaria diretamente daarte de redigir contratos e de algumas noções de contabilidade;essa última disciplina era usualmente ensinada por um mestre par-ticular, o "mestre de ábaco", melhor pago, aliás, que o mestre degramática. Isso deveria bastar, pensava-se, para a formação de ummercador,.que não teria necessidade de estudos suplementares.

Contudo, fora o caso excepcional dessas grandes cidadescomerciais, a aprendizagem da gramática prolongava-se mais na-turalmente pelo estudo das disciplinas escolares tradicionais,aquelas repertoriadas nas velhas classificações do saber. Por aí, oensino das escolas de gramática parecia-se com aqueles das uni-versidades (ainda que fosse simplificado) e eventualmente pode-ria mesmo preparar estes últimos. Depois da gramática, vinha,

13 - Scientiéparttm cupidi,grammatícam ad necessita^tem student, cetera studiorum genera parvi pendunt (ci-tado por G. Petti faXa\J!insegnamento neíla Lígttria me-eNevale,op.çit.p.94).14 - G. Petti Balbi, L'insegnatnento nclla Liguria medíevale,op.cit., p. 57.

79

Page 41: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

portanto, a lógica seguida da iniciação aos clássicos (a influênciado humanismo italiano reforçará evidentemente, de maneira con-siderável, essa parte do ensino a partir do século XV); as ciênciasdo quadrlvium não eram mais totalmente negligenciadas e, porvezes até, particularmente nas escolas eclesiásticas fiéis às suastradições pré-universitáriàs, os cursos de teologia ou direito canô-nico eram oferecidos aos alunos, pelo menos aos futuros clérigos;mas, nessas disciplinas, o ensino universitário teria doravante bas-tante aceitação e o que se poderia ensinar fora dele não era maisdo que um pálido reflexo, e com menor valor^ pelo fato de os es-tudos não serem, nesse caso, coroados pela colação de um diplo-ma. Apenas os Mendicantes, nós já salientamos isso,.foram capa-zes de proferir em seus próprios studia os ensinamentos de teo-logia organizados em curso coerente e com nível verdadeiramen-te equivalente àquele das universidades.

Tudo parecia orientar em direção a essas últimas o alunorealmente dotado e desejoso de tornar-se homem de notóriosaber.

Seria, no entanto, injusto não reconhecer nas escolas de gra-mática do final da Idade Média um duplo papel: dar uma vaga tin-tura literária a uma certa parcela da população, preparar os me-lhores ou os mais ambiciosos para o acesso à universidade. Alémdisso, certas escolas, principalmente aquelas situadas nas grandescidades nãouniversitárias mas providas de uma antiga escola ca-tedral e de uma sólida tradição de ensino -nós já citamos exem-plos de Reims ou de Londres -, podiam apresentar um nível bemrazoável (sobretudo comparadas com aquele das universidadessecundárias); é certo que alguns alunos provenientes dessas esco-las de gramática puderam-se tornar, mesmo sem ter passado pelauniversidade, verdadeiros letrados, mas com à Condição de ter deprolongar seus estudos iniciais com a aprendizagem seguida deuma prática profissional que os mantivesse no domínio das ativi-dades intelectuais.

Esse foi particularmente o caso de inúmeros íiotários, de es-crivães, de secretários dê chancelaria.Trata-se - nós retomaremosisso - de ambientes nos quais os verdadeiros graduados na uni-versidade são sempre raros. É provável que a maioria começasseseus estudos secundários em uma escola de gramática, a partirdos quais eles passariam ao serviço de um notório instalado ou

até eram mesmo iniciados como escreventes dos homens de leiem um tribunal qualquer ou escritório de escrita, no qual se for-mariam em contato com o mestre ou os escribas mais antigos-que lhes ensinariam, ao mesmo tempo, o uso de formulários e,mais diretamente ainda, as técnicas da bela escrita que/diga-se o

.que quiser", a escola privilegiadora dos suportes efêmeros dasardósias ou tabuletas de cera não parece ter jamais ensinado demaneira sistemática.

2. A UNIVERSIDADE

No conjunto das instituições educativas medievais, as univer-sidades são, de longe, aquelas que deixaram os arquivos mais ricos(ainda que eles não satisfaçam a todas as nossas curiosidade) eaquelas que se beneficiaram das mais vigorosas pesquisas históri-cas. De uma certa maneira, essa historiografia abundante e declara-damente comemorativa carrega ela mesma o testemunho de umprestígio persistente de uma instituição que tem sido, há tempos*reconhecida como uma das criações mais originais e mais Éecün-das da civilização do Ocidente medieval. Nosso propósito não éaqui o de procurar resumir os múltiplos trabalhos que foram recen-'temente concluídos em uma síntese à qual é suficiente remeter16.Trata-se simplesmente de se tentar identificar em que medida, en-tre os séculos XTTT e XV, a instituição universitária contribuiu paramodelar os contornos, a composição, da consciência de si do gru-po de pessoas de saber que são propriamente o objeto deste livro.

As primeiras universidades apareceram em Bolonha, em Pa-ris, em Montpellier, em Oxford nos primeiros anos do século Xm.Derivadas de escolas preexistentes (mas não necessariamente deescolas catedrais), essas primeiras universidades, para'além da di-

15 - A tese, já exposta em I. Hajnal, Uenseignement de1'écriture aux Universités médiévales, 2" edição, Budapes-te, 1959, de um ensino de çscrita específico das escolas euniversidades medievais, não parece ter mais partiàárioshoje em dia.16 - A history of tbe university in Europe, volume I,Universítíes in tbe MtOdle Ages, editado ppr H. de Ridder-Syínoens, Cambridge, 1992-

80 81

Page 42: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

versidade das instituições, tinham em comum serem organismosautônomos de natureza corporativa. Ser autônomo significa sermestre de seu recrutamento, poder dotar-se de estatuto, poder im-por a seus membros o respeito a uma certa disciplina/ coletiva e aregras de cooperação mútua, ser reconhecido como uma pessoa•moral pelas autoridades exteriores, tanto eclesiásticas quanto lai-cas, poder, enfim, organizar livremente aquilo que era a própria ra-zão de ser da cooperação universitária, quer dizer, o ensino, osprogramas, a duração dos estudos, as modalidades de exames quesancionavam esses estudos e a colação dos graus que coroavam oêxito nos ditos exames. As universidades eram, em alguma medi-da, federações de escolas. Ensinava-se nelas por vezes uma únicadaquelas disciplinas expostas no capítulo precedente, definidasestas como as disciplinas superiores da cujtura erudita da época:o direito em Bolonha, a medicina em Montpellier. Por vezes, aocontrário, uma mesma universidade poderia reunir, repartidas emfaculdades distintas, ás escolas de disciplinas diferentes: tanto emParis quanto em Oxford, encontravam-se, ao mesmo tempo, umafaculdade preparatória de artes (liberais) e as faculdades superio-res de medicina, de direito17 e de teologia. De qualquer maneira,não era certamente possível atingir o nível exigido pelas faculda-des universitárias, mesmo pela faculdade de artes, quando estaexistia, sem haver previamente recebido, de uma maneira ou deDoutra, uma formação inicial, particularmente na gramática. Comocontrapartida, se está era suficiente, ela poderia mesmo permitir -sobretudo em países meridionais onde as faculdades de artes sem-pre foram medíocres - aceder diretamente a uma faculdade "supe-,rior", em particular, uma faculdade de direito18.

Não tendo precedentes históricos, as primeiras universi-dades são constituídas de maneira empírica e de acordo comesquemas bastante diversos. Foi apenas em meados do séculoXin que o papado, que desde o princípio sustentara o desenvol-

17 - Como eu já havia indicado no capítulo precedente, emParis, a partir de 1219, apenas o ensino do direito cãnôni-co foi autorizado, em virtude da bula Super speculam dopapá Honórío III. - N18 - Vide Jacques Verger, "Remarques sur l'enselgnementdês arts dans lês universités du Midi à Ia fin du MoyenAge",Annates du Midi, 91 (1979), p. 355-381, ' , . '

82

vimento dessas novas instituições educativas, unificou-as emum conceito de studium generale, que tinha por efeito princi-pal o de fazer delas instituições da cristandade, conferindo osgraus de validade universal e diretamente protegidas, ao mesmotempo que controladas pela Santa Sé.

Quanto às causas profundas que estão na origem da insti-tuição universitária, as interpretações dos- historiadores diver-gem19. Duas teses essenciais, mais complementares do que ver-dadeiramente opostas, são expressas. Para alguns, seria à pró-pria renovação do saber, engendrada pela redescoberta da filo-sofia de Aristóteles, e o entusiasmo intelectual suscitado pelasnovidades, que teriam estimulado mestres e estudantes a orga-nizarem tais instituições autônomas, as únicas capazes de lhesgarantir a liberdade de expressão e de ensino necessária. As ou-tras, antes, conferem prioridade à pressão social exercida portodos aqueles que aspiravam obter, nas melhores condições, aqualificação e os diplomas que conduziam às carreiras cada vezmais numerosas abertas pela reforma da Igreja e, fundamental-mente, pelo renascimento do Estado. Seja como for, uma coisaé certa: o surgimento das primeiras universidades não foi um fe-nômeno espontâneo, simplesmente uma pura criação de mes-tres e de estudantes. Mesmo que a ação pessoal destes possa tersido indispensável, ela sempre foi sustentada por uma vontadepolítica que permitiu conseguir vencer as resistências (princi-palmente aquelas dos poderes locais, do bispo e de seu chance-ler em Paris, da cidade em Bolonha) e oferecer à nova institui-ção sua legitimidade e seu estatuto jurídico. Essa vontade polí-tica foi, ao mesmo tempo, aquela do príncipe (particularmentevisível na Inglaterra, mais discreta, mas real em Paris) e aquelado papa (especialmente ativo em Paris e em Bolonha).

O apoio dos poderes superiores, eclesiásticos e laicos àsprimeiras universidades não era puramente desinteressado. Es-

19 - Apresentação de conjunto do debate em Jacques Ver-ger, "A propôs de Ia naissance de runiversíté.de Paris: con-texte social, enjeu politique, portée intelectuelle", emScbuteriund Studium im sozialen Wandel dês bolen undspâtçn Mitielcdters, hg. v. J. Fried (Vortràge undForschungen, XXX), Sigmarlngen, 1986, p. 69-96.

83

Page 43: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

perava-se delas uma contribuição para o desenvolvimento dedisciplinas sobre,as quais tais poderes fundavam sua própria le-gitimidade: o direito romano era um instrumento essencialpara o renascimento do Estado; o direito canônico e a teologia,tal como eles eram ensinados na universidade, davam especialatenção para a. plenitude potestatis pontificai e ajudavam o pa-pado a fazer face às resistências das Igrejas locais, à contesta-ção dos heréticos, à vontade de independência dds príncipeslaicos. Além do mais, as universidades formavam, também, ho-mens competentes capazes de se colocar a serviço dos. pode-res e de fazer triunfar tais idéias. A prova crucial produziu-se,ao menos em Paris, enquanto o papado impunha à universida-de o acolhimento em seu seio de escolas de teologia das or-dens mendicantes, dominicíanas e franciscanas. Esses recém-chegados, cujo papel na igreja da época nós conhecemos, eque devotavam fidelidade às finalidades próprias de suas or-dens e a obediência ao papa antes da solidariedade universitá-ria, não foram sempre bem recebidos, embora, ao termo da cri-se que atingia seu paroxismo no anos 1250-1259, a universida-de tivesse que ceder ante a vontade pontificai29.

Esse episódio não compromete, porém, o sucesso danova instituição-Ainda sumária e oscilante no princípio do sé-culo, sua, organização se fixa pouco a pouco; estatutos detalha-dos são redigidos, novos privilégios outorgados pelas autorida-des. Não é possível dar as cifras de freqüência para o séculoXIII, mas praticamente não há dúvida de que os efetivos demestres é estudantes não paravam de crescer, pelo menos atéa primeira metade do século XTV. Novas universidades apare-ciam. Existiam por volta de quinze studia generalia em 1300,e mais de vinte em 1346.

20 - O livro essencial sobre o tema é o de M. M. Dufeil,.Guillaume de Saint-Amaur et Ia polemique universttairepartsienne, 1250-1259. Paris: 1972.

84

Nessa data - cabe notar - o fenômeno universitário eraainda majpritariamente mediterrânicoi1. Os studia generaliameridionais inspiravam-se quase sempre, com maior lou me-nor intensidade, no modelo bolonhês. Isso significa, dó pontode vista institucional, que aqui eram os estudantes que toma-vam para si, na totalidade ou em parte, a organização e a ges-tão da universidade. Mas, sobretudo, do ponto de vista cultu-ral, isso significa que nós temos lá universidades nas quais asdisciplinas predominantes eram o direito civil e o direito ca-nônico. As faculdades de medicina tinham também algum lu-gar (Montpeljier, Pádua, Bolonha). Como contrapartida, o ensKno das artes atraía, nessas universidades, apenas uma minoriade estudantes e tratava-se antes de ensinamentos de gramáti-ca, de nível geralmente modesto, do que de lógica e de filoso-fia. Quanto à teologia, ela permanece ausente dessas universi-dades meridionais até os anos 1360. Em poucas palavras, es-tando tpdas sob a supervisão da Igreja, tais universidades me-ridionais possuíam já, pelo conteúdo de seu ensino e pelo tipode carreiras para as quais elas preparavam, uma forte colora-ção laica.

Muito diferente era evidentemente a situação na metadenorte da Europa. Os studia generalia eram ali pouco numero-sos e o modelo parisiense, ilnitado com bastante fidelidadeem Oxford e em Cambridge22, afirmava-se aqui sem rival. Estemodelo era aquele da "universidade de mestres", quer dizer,uma federação de escolas onde cada professor conservavaplena autoridade sobre seus próprios estudantes e onde todos

21 - De acordo com A history of the universtíy in Eura-pé, volume I, op. cit., p. 62-63, os studia generalia ativosem 1300 eram aqueles de Bolonha, Paris, Oxford, Montpel*lier (medicina e direito), Cambridge, Salamanca, Pádua, Ná-poles, Verceil-, Toujouse, a Cura Pontificai, (studium' çu-riae), Lisboa e Lérida; em 1346, havia de se subtrair dessalista Vercel] e acrescentar Avignon; Roma, (studium urbts),Orléans, Pérouse.Trévise, Cahors, Pisa, Angers, Valladolid etalvez Grenoble.22 - Cambridge nascera por volta de 1209 da secessão deum grupo de mestres e de estudantes de Oxford. .,

85

V,,*

Page 44: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

os órgãos de direção da universidade estavam nas mãos dosmestres eleitos por seus pares. Contudo, o essencial situava-se 'sem dúvida, mais aindarna diferença da orientação intelectual.Nas escolas parisienses e inglesas, com efeito, o ensino do di-reito ocupava apenas um lugar limitado e tratava-se, sobretu-do, do direito canônico. O direito romano, nós o vimos, haviasido proibido em Paris desde 1219 enquanto que na Inglater-ra a existência precoce do direito çonsuetudinário unificado,a Common Laiv, lhe havia retirado uma boa parte de seu pres-tígio e de sua utilidade. Essas universidades guardaram umaforte coloração eclesiástica, centrando-se sobre o estudo dateologia, tendo ela mesma como alicerce aquele das artes libe-rais confiadas a uma faculdade preparatória que sempre reu-niu os mais numerosos efetivos. Desde o primeiros anos do sé-culo XIII, sob efeito da difusão maciça do aristotelismo, a fa-culdade de artes deixou de ter, entretanto, por vocação prin-cipal o ensino de certa forma propedêutico da gramática e dalógica e se elevou ao nível de uma verdadeira faculdade de fi-losofia onde se ensinavam a física, a metafísica, a psicologia ea moral, sobre a base dos textos de Aristóteles e dos comentá-rios de Averróis, aos estudantes que já haviam recebido 'umaformação inicial em pequenas escolas pré-universitárias. Essealargamento"- que, em compensação praticamente não sé va-lia das disciplinas científicas do quadrivium - suscitou mui-to naturalmente, sobretudo em Paris, uma reivindicação de au-tonomia tanto intelectual quanto profissional dos regentes emartes, desejosos de comentar livremente o conjunto de textosfilosóficos que eles conheciam sem ter que sofrer o controle '

. e a eventual censura dos teólogos. Essa tendência.cujos repre-sentantes mais decididos receberam a denominação pejorati-va e, sem dúvida, excessiva de "averroístas", atribuía real im-portância, talvez mesmo majoritária, à faculdade de artes deParis nos anos 1260. Através dela, esboçava-se, inclusive umanova figura social do intelectual profissional que, embora nãofosse ainda anticristão, era, de certo modo, mais laico, definidopor sua diligência desinteressada' de sua vocação de pensadore professor, e apresentando, no próprio exercício desta, a ati-tude superior de uni tipo de felicidade terrestre e de umacerta aptidão natural para a virtude, beneficiando-se, antes de

tudo, de uma certa tolerância, o "averroísnío latino" logo susci-tou reações polêmicas dos teólogos (o Contra Averróistas deTomás deÀquino, em 1270)23. Depois vieram os tempos dascondenações eclesiásticas lançadas pelo bispo de Paras e arce-bispo de Canterbury*4. A corrente averroísta foi, se não des-truída, pelo menoslsastante enfraquecida, embora o problemadas relações entre teologia e filosofia permanecesse posto,bem como, no plano social, o das relações entre mestres dafaculdade de artes e mestres das faculdades superiores (teólo-gos e^canonistas) cuja autoridade não era sempre aceita semresistência pelos, primeiros, enquanto estes últimos, bemcomo seus alunos, não se destinavam forçosamente, na reali^dade, a seguir seus estudos em uma faculdade superior.

Durante muito tempo, a historiografia, retomando por suaconta os agravos acumulados desde o século XVI pelos huma-nistas, opôs o dinamismo criador das universidades do séculoXIII - nas quais os próprios conflitos internos que nós acaba-mos de recordar eram a marca - ao declínio que essas mesmasuniversidades teriam conhecido nos séculos XIV e XV Tal de-clínio teria afetado tanto o conteúdo em si dos ensinamentos(com a dessecação das doutrinas e a esçkrose do método eso>lástico) quanto seu funcionamento institucional: o encerramen-to geográfico è social do recrutamento (regionalização e aristq-cratização), a desorganização dos cursos e a passagem para a tu-tela dos príncipes teriam então ocorrido em virtude do antigouniversalismo cristão, apoiado sobre um alto grau de autono-mia, que consistia na primitiva força da universidade.

Os trabalhos recentes repõem amplamente em questãoessas apreciações.

Antes de tudo, ao que parece, há que se distinguir desdelogo o século XIV, que, em muitos aspectos, especialmente em

23 -Tomás de Aquino, Eunité de Vintellect contre lês aver-roístes, suiví dês .Textes contve Averroês antérieúrs à1270, editado e traduzido por Libera, Cm Paris, 1994.24 10 de dezembro de 1270 e 7 de março de 1277 emOxford (Vide L -Bianchi, II vescovo e f filosofi: Ipcondaima parígina- deí 1277 e Vevoluztynedell'aristotelismo scolastico, Bergatne, 1990.

86 87

Page 45: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

Paris e em Oxford, aparece como um prolongamento do sécu-lo JXIII e parece haver marcado o apogeu da universidade me-dieval, tanto quanto o final da influência intelectual dos efeti-vos, da autonomia e até da autoridade doutrinai, política e mo-ral, e o século XV onde as dificuldades sensivelmente se acumu-lam sobre as instituições derivando das mutações ligadas àemergência do Estado moderno.

A seguir, convém opor ao julgamento negativo dos historia-dores, a imagem explicitamente favorável que, com raríssimas ex-ceções, as universidades guardaram junto aos homens da época.

É verdade que alguns puderam ser sensíveis ao peso doensino escolástico. Um estoque de autoridades tornadas quaseimutáveis, uma pedagogia essencialmente oral e repetitiva, ouso exclusivo do latim, a duração de estudos excessivamentelongos (três ou quatro anos em artes, seis em medicina, oito adoze em direito, até quinze em teologia), o custo cada vez maiselevado dos graus, sobretudo nas faculdades superiores ondeum doutorado em direito ou em medicina terminava por custaruma fortuna, o que, sem dúvida, desencorajava os candidatosaté mais do que as "provas bastante convencionais; tudo issoconstituíam fatores que impulsionavam alguns a abandonar arota, outros a buscar as possibilidades de dispensa ou de frau-de, o que possibilitava chegar mais rapidamente e com meno-res esforços aos cobiçados diplomas. A desorganização dos cur-sos, o absenteísmo dos professores, o lento abandono de deter-minados tipos de exercícios (por exemplo, as disputas) são, so-bretudo no século Xy realidades incontestáveis25.

Porém isso não deve esconder o fato de haver existido,em todo caso, nas grandes universidades, uma real renovarãode doutrinas, pelo menos até o princípio do séculp XV. Não énosso propósito estudar em detalhe essa questão já mencio-nada no capítulo precedente. Será suficiente, portanto, recor-

25 - Vide Jacques Verger,"Prosopographie et curSus unirer-sitaires", cm Medieval lives and the histortan: stueües in.medieval prosopography, publicado por N. Bulst e J. Ph.Genet, Kalamazoo, 1986^p. 313-331.

dar, em filosofia e teologia, o movimento geral de crítica aoaristotelismo e ao tomismo por vezes designado, de uma ma-neira cômoda e algo excessiva, sob a nomeação de "nqmina-lismo". Dinamismo análogo em outras faculdades durantetodo o decorrer do século XIV: em medicina, as obras dosdoutores de Montpellíer e de Pádua, em direito, tanto publi-co quanto privado, àquelas dos comentaristas italianos (Jeand'André,Bartolé, Balde) e de Toulouse conheceram um suces-so considerável é durável; nós os reencontraremos em todasas bibliotecas européias, o que ihostra bem que o ensino uni-versitário estava longe de haver esgotado sua fecundidâde. Éverdade que as universidades adotaram mais tardiamente oprincípio do humanisnío, quer dizer, o retorno aos clássicos,a redescoberta do grego e de Platão, a renovação da retóricae, no domínio religioso, o despertar de um evangelismo fun-dado sobre a recorrência aos textos originais da Bíblia. Al-guns contatos travados aqui^e lá, particularmente nas faculda-des de artes italianas, não podem esconder que, nu curso doséculo XV, começou a ser criado um fosso cada vez mais lar-go entre a tradição da cultura medieval expressa pelas univer-sidades e certas aspirações novas. Mas, há que se notar, seessa evolução suscitou em Francisco Petrarca (1304-1374) eLorenzo Valia (1407-1457) algumas críticas severas contra aescolástica, sempre favorecendo, por todo lado, a aparição dealguns novos tipos de instituições de ensino sobre as quaisnós discorreremos, ela não foi suficientemente bem-sucedi-da, nem antes nem mesmo depois de 1500, para desacreditarseriamente as antigas universidades e tampouco para desva-lorizar os graus que elas conferiam.

Basta, pelo contrário, percorrer a documentação daquelaépoca para constatar que os titulares de graus universitáriosfaziam questão de mencionar estes últimos de maneira sem-pre mais sistemática t precisa em todos os documentos quelhes concerniam. Os indícios são múltiplos do peso social epolítico cada vez mais reconhecido às universidades e àqueles1

1 que eram delas advindos nas sociedades ocidentais do final da;.Idade Média. A primeira e mais evidente é a multiplicação das

89

Page 46: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

fundações universitárias a partir de meados do século XIV: dezentre 1340 e o início do Grande Cisma (1378)26, dez duranteeste último (1378-1-41 T)27, cerca de trinta entre 1417 e 150028.Levando em conta as fundações mais ou menos rapidamentefracassadas (porque os fracassos, alias, sempre significativos nãofaltaram) e aquelas cujo caráter universitário é discutível, pode-seestimar que havia, em 1500, sessenta e três ou sessenta e quatrostudia generalia realmente ativos na Europa, v

O mapa universitário do final do século XV, comparadocom aquele do princípio do século XIV, fez aparecer uma redemuito mais densa. Isto hão significa evidentemente que se tratas-se de uma rede homogênea. Não somente essas diversas univer-sidades apresentavam-se como modelos institucionais e culturaismuito diversos (mais bolonhês ao Sul, mais parisiense ao Norte),como elas possuíam uma importância muito desigual. Não haviapraticamente medida comum entre as mais antigas universida-des, Paris, Oxford, Bolonha, Salamanca, que, apesar de um certorecuo, conservavam o maior prestígio, a mais larga irradiação e osefetivos mais altos (de ordem de alguns milhares de estudantes)e certas fundações recentes' estritamente locais, que vegetavamcom algumas centenas, às vezes algumas dezenas de membros.Houve alguns verdadeiros sucessos entre as universidades novas(Praga, Cracóvia, Louvain, Cologne, Caen), mas muitas, especial-mente na Península Ibérica, permaneceram muito modestas, tan-to no tocante aos efetivps quanto no que diz respeito ao nível deensino. No Império, algumas universidades se resumiam no es^sencial às suas faculdades de artes, e as faculdades superiores fi-cavam nelas freqüentemente esqueléticas.

26 - Pisa, Praga, Florença, Perpignan, Huesca, Pávia, Cracó-via, Orange, Viena, Pécs (de acordo com A history of theuniversity.in Europe,volume I, op. c#.-,p.63)27 - Erfurt, Heidelberg, Cologne, Buda, FerrarejWurzbourg,Turin, Leipzig, Aix-en-Provénce, St-Andrews (JMd. p. 64)28 - Rostock, Dole, Louvain, Poitiers, Caen, Bordeaux, Cata-ne, Barcelona, Glasgow, Valença (França), Trèves, Greifs-wald, Fribourg-en-Brisgau, Bale, Ingolstadt, Nantes, Bour-ges, Pozsony, Veneza, Saragoça, Copenhagem, Mayence.Tü-bingen, Uppsala, Palma de Majorque, Sigüenza, Aberdeen,Alcalá,Valença (Espanha).(Jbid.,ç. 64-65)

90

Apesar de tais reservas, as criações universitárias dos sécu-los XTV e XV tiveram importante influência nas condições deformação das elites letradas européias. Elas generalizaram, por'todo o Ocidente, uma instituição que, no começo (e colocando-se à parte os casos de Paris e Oxford) era essencialmente meri-dional. Houve certamente novos studia generalia estabeleci-dos nos países mediterrânicos (sobretudo na França central ena Espanha), mas os grandes beneficiários da nova vaga de cria:

ções^ram os países germânicos, que haviam até então ignora-do completamente ou até recusado a instituição universitária, enos quais os candidatos aos estudos deveriam empreender lon-gas viagens até a França ou a Itália. Notamos também a emer-gência no mapa universitário de diversos reinos um pouco pe-riféricos (Escócia, Escandinávia, Polônia, Boêmia, Hungria) quemarcavam também, entre outras, a integração mais dinâmica navida cultural do Ocidente. ,

As novas universidades ofereciam geralmente, pelo menosno papel, uma gama praticamente completa de ensinamentos.Algumas universidades antigas haviam sido, aliás, complementa-das na mesma época, pela criação de facilidades novas, notada-mente a de teologia.lssò significa que, nas novas fundações, asfaculdades de medicina permaneciam com freqüência quaseinexistentes, enquanto a teplogia era, mais ou menos, monopo-lizada pelas ordens religiosas. Foram, portanto, as faculdades deartes, pelo menos nos países do Norte da Europa, e as faculda-des de direito, por toda a parte, que se tornaram as mais impor-tantes.A conseqüência foi, ao mesmo tempo, maior difusão des-sa cultura literária e filosófica de base que nós definimos no ca-pítulo precedente - ainda que isso ocorresse em um nível mo-desto, que nada tinha a ver cojn aquele da alma mater parisien-se - e a multiplicação de juristas eruditos, canonistas, ou civilis-tas, mas sempre, de uma certa maneira, imbuídos do direito ro-mano. Foram sobretudo, praticamente por toda parte, os docen-tes de direito, reagrupados em colégios, que assumiram q papelprincipal na direção nas novas universidades.

O predomínio que então era dado ao direito permite quese calcule a dimensão política do movimento. Se nenhuma uni-versidade pôde nascer e se desenvolver na Idade Média semapoio dos poderes externos serão estes que, nos séculos XIV e

91

Page 47: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

XV, muitas vezes tomarão a iniciativa de tal operação. E cabeacrescentar que se tratavam, dali por diante, essencialmente depoderes principescos ou urbanos, nos quais o papado não pos-suía mais tanta interferência como teriam então os poderes lai-cos para confirmar, freqüentemente tarde demais^a nova funda-ção è lhe garantir o estatuto clássico de studiumgenerale. Na-turalmente, e como mostra um certo conjunto de insucessos oude falsas iniciativas, o voluntarisnío político não era^uficiente;era necessário existir também um contexto favorável, o que seexpressa quer por uma tradição escolar preexistente, quer poruma demanda social suficientemente forte.

Não obstante, a idéia que cada vez mais se impõe é de quetodo Estado ou principado moderno deveria possuir sua própriauniversidade, para formar as elites religiosas e sobretudo adminis-trativas das quais eles teriam necessidade, sem que se tivesse derecorrer às universidades estrangeiras. Um texto de Toulouse em1427 proclama:"Todo príncipe deve çossuir uma universidade emseus Estados"29 e o delfim Luís (o futuro rei da França, Luís XI) re-tomará claramente nos textos de fundação da Universidade de Va-lença em Delphiné (1452):"... Nós consideramos inteiramenteconveniente, indispensável e normal fundar e instituir uma univer-sidade nos países e na terra a nós sujeita (...) com efeito, ao passoque existem poucos príncipes em outros territórios que não te-nham fundado uma universidade, não há nenhuma nos nossos"39.Essas universidades principescas eram, em geral, instaladas na pró-pria capital do país ou do principado, ou, pelo menos, em algumacidade que tivesse qualquer ligação particular com o príncipe. Osestatutos que elas receberam desde sua fundação, sempre as ca-racterizando como instituições autônomas, deixam largas possibi-

29 - Princeps debet insuo império habere universitatem(M.Fo\jrniex,Lesstatus et privilèges.des universités fran-çaises depuis leur fondation jusqu'en 1789, tomo III, Pa-ris, 1892, n° 1915, p. 600).30 - ... Valde congruum, necessarium et decens arbitra-mur in pátria nostra seu terra nobis subjecta, unamcreare et instítuere Universitatem (...) cum rari sintpríncipes, in quorum territoriis úniversttas non sitfun-data, in nostris vero nulla (M. Fournler, Lês statuts et pri-vilèges dês uniyersités ftançaises, tomo III, n° 1785, p. 362).

lidades de controle e de intervenção aos poderes externos e seusrepresentantes.A mais óbvia foi freqüentemente que os professo-res (ou pelo menos alguns dentre eles) seriam, dali por diante, pa-gos pelo príncipe que, como rejorno, exerceria o direito de res-ponsabilizar-se por suas nomeações. Na Itália, os magistrados par-ticulares, os Savi ou Reformatori dello Studto, foram em geral ins-tituídos para se ocuparem dos assuntos universitários.

As universidades antigas não escaparam a essa evolução, ain-da que opusessem uma certa resistência. Para nos determos nocaso francês, onde o reforço do poder real foi particularmenteprecoce, nós vemos no século XV as velhas universidades (Paris,Orléans, Toulouse) passarem para a tutela de reis, de seus Parla-mentos e de seus oficiais. As reformas foram autoritariamente im-postas, os tribunais reais assumiram, dali por diante, processos demestres e estudantes, os abusos aos quais os antigos privilégios co-modamente davam lugar foram severamente reprimidos, o pró-prio direito de greve foi rapidamente colocado em questão.31 Essanova responsabilidade não excluía algum favoritismo. Os "verda-deiros estudantes" continuavam a desfrutar de seus privilégios (so-(bretudo fiscais) e o rei da França, desde Charles V (1364-1380), ad-quirira o hábito de chamar a universidade de Paris de sua "filha pri-

- mogênita". Isso significava reconhecer àquela o prestígio e a auto-ridade intelectual, moral e política que ela mesma já reivindicarapela boca do chanceler Gerson em 1405 (discurso Vivat rex de 7de novembro)32, porém com a condição de que essa autoridade seexprimisse doravante nó quadro das instituições nacionais e dalealdade monárquica, e não mais no plano univefsalista no qualhaviam sido colocados os privilégios pontificais primitivos.

A análise estatística e social das populações estudantis confir-V> ma que dificilmente se pode falar em declínio das instituições uni-

versitárias no final da Idade Média, Uma documentação ainda im-perfeita (listas de súplicas universitárias conservadas no Vaticano

i cm registros pontificais, matrículas que infelizmente não eram mui-

31 - Jacques Verger, "Lês universités ftançaises au XVsiè-cle: crise et tentative de reforme'', Cabiers d'bisioire, 21(1976), p. 43-66.32 - Editado em J. Gerson, Oeuvres completes, ed. P. Glo-rieux, volume VWl, Paris, 1968, p. 1137-1185. '

92 93

Page 48: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

tq aplicadas, a não ser para as universidades do Império) permitemantecipar algumas hipóteses pontuais33. No início do século XV,apesar dos diversos fatores de crise que haviam provocado a eva-são, de vários estudantes estrangeiros (a guerra, as pestes, o GrandeCisma), a universidad.e, de Paris devia ainda reunir por volta de qua-tro .mil estudantes, dentre os quais três quartos na faculdade de ar-tes34. As principais universidades provinciais (Angers,Orléans,Tou-Ipuse, Montpellier,Ayignon), que eram, acima de tudo, universida-des jurídicas, deveriam, todas elas, atrair mais ou menos outro tan-to, entre quinhentos ç mil cada uma, de acordo com o caso35. Na In-glaterra, uma vez terminada a Grande Peste jde 1348, a universida-de de Oxford havia rapidamente retomado seus efetivos anterio-res36, e até continuou a crescer, para atender aproximadamente mile setecentos estudantes no decorrer do século XV, enquanto Cam-bridge, superando pouco a pouco seu atraso secular, atendia mil etrezentos estudantes37. Não se dispõe de cifras precisas para os paí-ses mediterrânicos, mas Bolonha devia possuir três mil estudantes,enquanto Pádua, em pleno vigor no século XV, aproximava-se demil38. O único país para o qual poderia ser tentado um esforço glo-

33 - Vide J.Paquet,Zes matricules universtíaires (Typologiedês sources du MoyenAge occidental, 65),1\irnhout, 1992.34 - De acordo com j: Favier.Píwfc au XV siècie; 1380-1500(Nouvelle Histoire de Paris), Paris, 1974, p. 68-73.35 -Jacques Verger,"Les recrutament geographique dês uni-versités françaises au début du XV' siècie d'après lês suppli-ques de 1403", Mel. d'archéologle et d'histaire, publicadopor Ec. Fr. De Rome, 82 (1970), p. 85-902.36 - Vide W J. Courtenay, "Tbe effect ofthe black death on^english higher edúcation", Speculum, 55 (1980), p. 696-

'714.37 - T. H.Aston,"Oxford's Medieval Alumni", Past and Pre-sent, 74 (1977), p. 3-40, e T. H. Aston, G. D. Duncan.T. A. R.Evans, "The medieval alumni ofthe university of Cambrid-gc",Past andpresent, 86(1980), p. 9-86.38 - A. I. Pini, "Disceré turba volens: studenti e vita studen-tesca a Bologna dalle origini alia meta dei Trecento", dansStudentt e uníversità degU studenti dal XII ai XIX secolo,dirigido por G. P. Brizzi et A. I. Pini (Studi e memorie per Iastoria delTUniversità di Bologna, n. s.VII). Bolonha: 1988. p.45-136.

bal é a Alemanha, Os resultados da pesquisa de R. Ç. Schwirigessão impressionantes39. Nesse país, onde a instituição universitá-ria não se implantou antes do final do século XIV, assiste-selogo a seguir, durante mais de cem anos, a um crescimentomais ou menos contínuo, ainda que afetadp por um ritmo cícli*co ele próprio ligado, ao que parece, às flutuações da ativida-de econômica. No total, de 1385 até o início do século XVI,aproximadamente 250.000 estudantes matricularam-sé nasuniversidades imperiais; ao passo que a própria população to-tal, até os anos de 1450, diminuía, depois estagnava para reco-meçar a crescer apenas no século XVI, o número médio de ma-trículas anuais foi decuplícado em pouco menos de um século(de 300 para 3000). Ainda que a grande maioria dos estudantesnão ultrapassasse o estágio da faculdade de artes e que muitosdeles sequer obtivessem os diplomas, houve certamente umamultiplicação dos homens de saber no seio da sociedade ale^ma (ao passo que, ao mesmo tempo, os mais ambiciosos e osmais abastados dos jovens estudantes alemães continuavam afreqüentar as universidades italianas ou, acessoriamente, asfrancesas> .

Dessa forma, mesmo que acontecesse das antigas univer-sidades lastimarem a concorrência das nov,as (Paris denunciaíriacom particular vigor a fundação de universidades excessiva-mente próximas de Caen e de Bourges), é infinitamente prová-vel que o final da Idade Média\tenha conhecido, apesar das di-ficuldades dos tempos e da crise demográfica geral, um forte au-mento global do número de estudantes.Á possível estagnação,em um nível, mesmo assim, elevado, dós mais veneraveis dentreps efetivos dos studia generalia teria sido mais do que com-pensada pela multiplicação das universidades novas, ainda quemuitas destas últimas atraíssem apenas algumas centenas de es-tudantes.

Quanto aos egressos, p número de graduados provenien-tes das universidades, especialmente em artes, e em direito - o

39 - R. C. Schwinges, Deutsche Universitàtsbesucher im14. und 15. Jabrhundert. ètudien zur Sozialgescbíchtedês alten Reiches. Stuttgaít: 1986,

95

Page 49: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

que é ainda mais importante para nosso propósito - crescera ,-em proporções comparáveis, mesmo que se deva admitir que,apesar de uma tendência geral de refluxo dos estudos, estás setornassem fortemente seletivas; nas faculdades de artes germâ-nicas, mais da metade dos estudantes deixavam a universidadesem haver obtido qualquer diploma e nas faculdades superioresde direito ou de medicina, pelo menos no caso da Alemanha eda França central onde o cálculo pôde ser efetuado, as taxas deevasão eram da mesma ordem: um terço dos estudantes chega-vam ao bacharelato, menos de dez por cento à licenciatura e,afortíori, bem menos ainda ao doutorado.

Por estarem globalmente crescendo, as populações uni-versitárias européias teriam visto alterar sua composição duran-te os séculos XIV e XV? Sem autorizar conclusões radicalmentedefinitivas, os resultados obtidos pelas recentes pesquisas con-vidam pelo menos a empregar sérias nuances à dupla .tendên-cia tradicionalmente diagnosticada: regionalização e isolamentosocial.

As universidades recentes geralmente tiveram uma irra-diação sobretudo local ou, no máximo, nacional. Isso significa,por outro lado, que o príncipe interditava aos reinóis que fre-qüentassem qualquer universidade que não fosse aquela deseus Estados (assim procedeu em 1444 o feudo de Veneza,obrigando seus súditos a irem para a Universidade de Páduadepois da união dessa cidade ao domínio do território véne-ziano). Em contrapartida, as antigas universidades, ainda quetalvez houvesse baixado a proporção de estudantes de ori-gens distantes, continuaram a ser expoentes de um&peregri-natio acadêmica ativa. Como no passado, os estudantes commaior mobilidade eram os estudantes alemães (e, em certamedida, os eslavos e escandinavos) enquanto ps principais pó-los de atração permaneciam sendo Paris (completada por Or-léans, em direito civil), outras universidades italianas (Bolo-nha, principalmente, e, cada vez mais, Pádua, Pavia, Siena, Pisa,Perúsia, etc.). Pode-se assegurar que, sobretudo a partir dosanos 1440, o retorno de uma Conjuntura mais favorável páraas viagens e a atração crescente pelo humanismo italiano pro-piciou uma popularidade excepcional à "viagem da Itália"; aosestudantes germânicos, que tradicionalmente freqüentavam a

96

península, se uniriam, dali para a frente, contingentes crescen-tes de franceses, ingleses e ibéricos40.

Isso quer dizer, no que concerne ao nosso propósito, que,se a maioria dos homens de saber, dali por diante formados nassuas localidades e com despesas menores, deveriam possuir ho-rizontes geográficos e uma experiência de contatos humanosbastante limitados, existiram sempre, pelo menos a título da eli-te, indivíduos que haviam adquirido em sua juventude, pela prá-tica de grandes viagens de estudos, uffla abertura de espírito, deconhecimentos e de relações que convidam-nos á falar, desde ofinal da Idade Média, em uma "república das letras", pelo menosembrionária.As correspondências eruditas, as missões diplomá-ticas permitiam a manutenção posterior dos laços assim seladosem escala ocidental. Na França, o meio dos notários e secretáriosdo rei, humanistas da época de Carlos M, em relações constan-tes com seus homólogos florentinos ou napolitanos, na Europacentral os cursos cosmopolitas de um Carlos IV (1346-1378) emPraga, de um Frederico III de Habsbourg (1440-1493) em Viena,de um Mathias Corvin (1458-1490) em Budapeste, de um Casi-miro IV Jagellon (1447-1492) em Cracóvia, onde se encontravamhumanistas italianos e sábios autóctones há pouco formados emBolonha ou em Pádua, são algumas ilustrações da abertura uni-versitária que a rede universitária permitia àqueles que preten-diam conservá-la no curso de suas carreiras41.

Os estudos universitários favoreciam a ascensão social ou,antes, precipitavam a constituição de pessoas cultas em peque-nas castas hereditárias? As fontes não oferecem a esse propósitomais do que informações fragmentárias, que parecem, além domais, indicar que a situação variava de uma universidade para ou-tra. Por exemplo, entremos estudantes alemães que freqüentarama universidade de Bolonha entre 1400 e 1530, a proporção denobres elevara-se por volta de 18%, mas em universidades do

40 -Vide Jacques Verger, "La mobilité étudíante au MoyenAge". ln:ffístoire de 1'éducaHon, 50 (1991), p.65:90.41 -Vide Jacques Verger, "Lês étudiants slaves et hòrigroisdans lês universités occidentales (XüT - XV' siècles)". In:L 'Église et lê peuple chréiien dans tespays de 1'Europe duCentre-Est et du Nord QOV° - XV< siècles). (Coll. deTÉc. fr.de Rome, 128). Roma: 1990. P. 83-10tí.

97

Page 50: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

Midi francês, ela não alcançava 5% por ocasião de 1400. Em com-pensação, os estudante "pobres" (o que, contudo, referia-se semdúvida tanto a estudantes que temporariamente tinham dificul-dades em pagar os custos universitários quanto a estudantes deorigem verdadeiramente popular), que representavam em média15% dos efetivos sobre as matrículas universitárias do país do,Im-pério.com os percentuais chegando a 25% em Colognie, Leipzig,Heidelberg ou Rostqck, parecem ter sido muito raros em paísesmediterrânicos42. \ , '

, De feto, é realmente possível multiplicarem-se os exemplosindividuais, que mostram uma grande variedade de situações. Orecrutamento social das universidades permanecia dessamaneira aberto, mas não se pode fixar para cada grupo uma pro-porção precisa nem dizer se o recrutamento se transformou demaneira significativa em uma longa duração. Certamente, conti-nuava a ser possível, até o final da Idade Média, para as pessoasde origem modesta, especialmente rural, conseguirem pelos es-tudos e pelo diploma galgar uma bela carreira; pensamos eviden-temente em Gerson. Mas é claro também que, em algumas famí-lias, particularmente de médicos e de oficiais,,os estudos torna-vam-se uma prática normal, com os filhos tomando o lugar deseus pais para assegurar a permanência da/vocação familiar. En-fim, também é muito provável que os estudos tenham possibili-tado'a algumas antigas elites, famílias de velha nobreza ou demercadores, por vezes, presas dos acasos* da crise, garantirem aseus rebentos a salvaguarda de sua posição social por uma cer-ta forma de reconversão e integração ao grupo, em pleno vigor,dos homens de saber.

De qualquer modo, é certo que, independentemente desua origem social, a quase totalidade dos estudantes estava embusca de uma situação estável que os colocasse ao abrigo decertos riscos postos pela ingerência, direta ou indireta, dos ór-gãos do poder político. Existiam, efetivamente, entre os estu-dantes, alguns marginais ou desclassificados - pensamos na fi-gura emblemática de VillOn (que aspirava, aliás, ele próprio, pe-

, riodicamente" submeter-se à proteção de algum príncipe) -

42 -Vide J. Paquet,Zes matricules universitaires, op.cit.,p.128-136.

98

mas, no conjunto, os estudantes do final da Idade Média repre-sentavam uma população socialmente conformista, respeitosaem relação à ordem estabelecida e principalmente preocupada'em nela encontrar e conservar seu lugar. Na crônica de Cidadesuniversitárias, os incidentes entre ps estudantes c A populaçãourbana ou entre estudantes e a polícia do rei tendenciàlmcnierarearam no final da Idade Média. Imputadas mais freqüente-mente tanto aos excessos juvenis dos estudantes quanto ao au-mento àqs exigências de ordem pública imposta pelos podercstais incidentes, que terminavam em geral defronte a tribunaispara soluções de compromisso, não colocavam em questâoapertença das universidades à ordem institucional estabelecida1

eles traduziam, quando muito, além de um certo endurecimen-to dessa ordem, a vontade dos universitários em reconhecersuas especificidadés e sua dignidade face aos grupos eventual-mente concorrentes. Em Paris ou em Toulouse, com efeito osconselheiros do Parlamento, intérpretes da vontade real, mastambém defensores de seus interesses de casta (e, aliás, todoseles titulares de graus universitários), buscavam colocar a uni-versidade sob tutela; em Montpellier, as velhas famílias merca-doras se punham a afastar os juristas do consulado, enquanto afidalguia de Barcelona se oporia até 1450 à vontade dos reis de/Aragão para criar uma universidade, por não acreditar que issopudesse favorecer o impulso de grupos de clérigos e de oficiais 'atrelados ao serviço do príncipe e da Igreja, e pouco apegadosàs antigas liberdades urbanas43.

Por essa vontade de integração aos grupos dirigentes dasociedade, a própria prática dos estudos universitários desfruta- -vá certamente .de um papel bastante importante.

- Antes de mais nada, porque, como nós já vimos no capítu-lo precedente, inclusive as disciplinas estudadas nas uniyersida-dês pertenciam todas a uma ordem 'legítima dos saberes, emcompleto acordo com a ordem social e política dominante.

Além disso, pêlo feto do estatuto jurídico dos estudantes e ^dos mestres torná-los, por princípio, privilegiados, o que era uni

"si

43 - Vide Cl. Carrère,"Refus d'une création, únivwsltaire etniveaux de culturc à Barcelone:hypothèses cTexplic^tion"In: Lê Moyen Age, 85 (1979), p. 245-273.

99

.1»

Page 51: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

verdadeiro prêmio naquela sociedade de ordens, cada vez maiscomplexa e rígida, que então se desenhava.Tornar-se estudante:isso significava, no final da Idade Média, independentemente doestatuto anterior de cada um, aceder a uma condição privilegia:da; significava poder furtar-se ao imposto,e às formas mais rigo-rosas da justiça ordinária, significava poder pleitear determina-dos tipos de proventos (proventos dos benefícios eclesiásticossem obrigação de residência), significava tomar assento sob adireta salvaguarda das mais altas autoridades, laicas ou eclesiás-ticas, intervindo indiretamente pelos "conservadores privilé-gios" universitários. Antes mesmo de qualquer obtenção degraus, a mera matrícula universitária era já, de uma certa manei- 'rã, promoção social. ' - •

Aprendizagem do privilégio, a vida universitária era tam-bém aprendizagem da responsabilidade. A universidade efetiva-mente favoreceu p desenvolvimento do individualismo políticono final da Idade Média. A decisão de ir "aos estudos" era fun-damentalmente uma decisão individual (QU, no máximo, fami-liar) cuja ocorrência implicava, ainda que sob a promessa deunia promoção futura, uma etapa inicial de risco è de desorien-tação. Os estudos por si mesmos exigiam, para serem levados acabo, que uma atenção passiva às lições magistrais fosse com-plementada por uma outra parte, de trabalho pessoal em casa ena universidade. As leituras asseguradas por bacharéis e a par-ticipação nas disputas habituavam os estudantes a se exprimire posicionar-se em público, a enfrentar e, se possível, vencer,pela argumentação, os eventuais adversários. Junte-se a isso ofato de, na maior parte das universidades, os estudantes e os jo-vens mestres em artes poderem tomar a palavra na deliberaçãodas diversas assembléias e conselhos, exercer funções eletivas,representar a universidade diante de autoridades exteriores. En-fim, as provas, sempre orais, ps exames, relativamente simplespara o bacharelato, bem mais formalizados e solenes para as li-cenciaturas e o doutorado, eram concebidos um pouco sob omodo de proezas individuais onde cada um deveria, fazer expo^sição de suas qualidades não apenas quanto ao conhecimentocientífico, mas quanto à memória, ao temperamento e ao tema,para não se falar da generosidade que vinha a se exprimir nocontentamento que se seguia 30 exame. Pela importância dadaa todas essas atividades; a universidade certamente contribuiu

100

para a formação de homens de saber, dotando-os, não apenas deuma certa bagagem intelectual, mas de sàber-fazer e de desem-baraço sociate politicamente úteis.

O.individuallsmo não era, entretanto, o que de fundamen-tal existia na experiência humana adquirida na universidade. O"fundamental era antes a experiência da sociabilidade, integra-ção mais poderosa no entrelaçamento das alianças, de amizadee de clientela que estruturavam vigorosamente toda a socieda-de do final da Idade Média. A sociabilidade universitária repou-sava, antes de tudo, sobre o pertencer a uma comunidade descolares, sobre a fruição comum (e, eventualmente, a defesa co-letiva, pela greve ou outros meios) dos mesmos privilégios. Mas,ela se exprimia sem dúvida, mais plenamente; no escalão de al-gumas entidades mais reduzidas. A escola, por vezes, assimiladaa uma societas constituída pelo mestre e seus estudahtes, pode-ria ser uma dessas unidades. A faculdade, que reagrupava os es-tudantes da mesma disciplina, e mais, ainda, a "nação" onde sereuniam os compatriotas e que assegurava não apenas a respon-sabilidade administrativa dos recém-ingressados, mas as distra-ções comuns, o enquadramento religioso e a ajuda caridosa, de-viam desempenhar um-papel ainda mais importante; os maisbrilhantes dos estudantes ou os mais ricos podiam constituirpequenos séquitos de amigos e obrigá-los a lhes permanecerfiéis ao longo de toda sua carreira. << •

Mas o lugar por excelência da sociabilidade universitáriatornou-se, ao final da Idade Média, na maior parte das universi-dades, o colégio.Ainda que os colégios jamais tenham acolhidomais do que uma minoria de estudantes (por volta de 1450,eram", mais ou menos, um para dez em Paris e em Oxford, umpara seis em Cambridge, um para quatro em Toulouse), sua im-portância deve ser considerada. Os primeiros verdadeiros cole* sglos apareceram, em Paris e em Oxford, por volta de iheados doséculo XIII. Eles, em seguida, multiplicaram-se nos séculos XTV

j; e XY fundados, na maioria das vezes, por prelados príncipes oul Oficiais reais de alto escalão. Deixando de lado as casas reUgio-j. ws, podemos avaliar em trinta e sete o número de colégios se-LCulares fundados em Paris no século Xiy contra cinco em Ox-Iford e sete em Cambridge. O movimento se afrouxou no sécu-

T XX antes por causa da saturação do que por conta do declí-'-> da instituição: doze fundações em Paris, três em Oxford, cin-

101

Page 52: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

co em Cambridge. Sem lhes ser desconhecida, a instituição docolégio se implantou menos maciçamente nas novas universi-dades alemãs e da Europa central. Ela obteve igualmente umcerto sucesso nos países mediterrânicos; havia, no final da Ida-de Média, quatorze colégios em Toulouse, três em Montpellier,três em Avignon, três em Bolonha; contavam-se também alguns- promissores de um grande futuro -' na Península Ibérica.

Teoricamente local de abrigo para estudantes pobres; côn-tudo^mais freqüentemente, reservados aos parentes ou compa-triotas do fundador, a longo prazo, os colégios medievais torna-ram-se progressivamente locais de ensino que diretamente fa-ziam concorrência às faculdades; mas issa só acontecerá efeti-vamente no final do século XV. Porém, mesmo sem a presençade lições internas e de um corpo específico de regentes, os co-légios, por reunirem todos os membros da vida comum de uminternato, submetidos a uma disciplina bastante estrita, por se-rem mais ou menos geridos de forma coletiva pelos própriosbolsistas e, enfim, por oferecerem múltiplas ocasiões de trocasamigáveis, intelectuais ou de trabalho comum (inúmeros colé-gios contaram bem cedo com uma biblioteca), fizeram com quênascesse em todos os que tiveram a chance de ser nele admiti-dos (e que nele permaneceriam muitas vezes por inúmerosanos) um forte espírito de corpo. Duradouras solidariedadeseram criadas, e os "veteranos" desse ou daquele colégio pos-suíam, no curso de sua carreira, tendência a favorecer aquelesque eçam provenientes de sua própria "escola".'O exemplomais gritante, que ganhará toda sua importância no século XVI,é aquele dos colégios mayores de Salamanca, Valladolid e Alça*-lá (aos quais podemos associar o colégio São Clemente, ou deEspanha, em Bolonha) quê se tornou local quase exclusivo deformação das elites administrativas da monarquia espanholamoderna. Tendências análogas observam-se em Oxford, Cam-bridge ou Paris. Nessa última universidade, se o colégio da Sor-bonne, viveiro de teólogos seculares de valor, desempenhou so-bretudo um papel de vida intelectual intensa, enriquecido poruma magnífica biblioteca e cioso de se manter um pouco à par-te das vicissitudesípolíticas da época, o colégio de Navarra (fun-dado em 1305 pela rainha da Franca Jearine de Navarra) e aque-le de Dormans-Beuvais (fundado em 1370 por Jean de Dor-mans, cardeal dê Beauvais) mantiveram, estreitas relações com amonarquia e com seus grandes gabinetes administrativos, Chan-

102

celaria e Parlamento; uma boa parte das elites tanto políticasquanto intelectuais do tempo de Carlos VI (especialmente osprimeiros humanistas franceses, como Pierre d'Ailly, Jean deMontreuil, Nicolas de Clamenges e Jean Gerson) saíram deles44.Alguns decênios mais tarde, as quatro grandes "pedagogias" deLouvain começaram a desempenhar um papel comparável aosPaíses Baixos. ' ) >

Mas, se cada vez mais, eles tenderam a atrair g elite das po-pulações universitárias, os colégios, ao mesmo tempo, coloca-

~vam em causa .alguns princípios que haviam originalmenteconstituído o próprio ̂ espírito da pedagogia universitária me-dieval. Eles restringiam a liberdade do estudante, impondo-lhesuma estrita disciplina e um certo controle de seus cursos; opu-nham, ao antigo universalismo da universidade, regras particu-lares que presidiam o funcionamento de cada colégio e verda-deiramente abriam a porta às intervenções dos fundadores, rei-tores, provedores, visitantes, etc.alheios à universidade, mas res-ponsáveis pelo bom andamento da instituição do colégio. Poressas e outras razões, eles assemelhavam-se mais a outros tipo$de estabelecimentos educativos não-universitários que começa-mos a ver florescer no Ocidente em fins da Idade'Média e queeram, pôr sua vez, novos locais de formação de homens de sa-ber desgostosos com o peso ou com as insuficiências dos estu-dos universitários tradicionais.

44-Vide N. Gorochõv,"Le Collège de Navarre de sã fonda-tion (1305) au début du XV sièclé" (14118). In: Histoire deVinstttution, de sã víe-—intelectuelle et de sonrecrutement. Paris: 1997.

103

Page 53: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

3.AS NOVAS INSTITUIÇÕES

Não se trata, aqui de procurar traçar uma lista exaustiva deiniciativas de foto locais e díspares. Simplesmente daremos al-

, guns exemplos dessas fundações novas que tinham em comumpropor, ao lado das universidades e, sem forçosamente rejeitartoda a herança destas últimas, formas de ensino abertas às no-vas disciplinas e métodos pedagógicos supostamente maisadaptados as expectativas e as capacidades dos alunos.

É possível que as ordens mendicantes tenham tido, nessamatéria, um papel pioneiro. Desde os anos 1220-1230 para osDominicanos, um pouco mais tarde para os Franciscanos, no fi-nal do século para os Carmelitas e os Eremitas de Santo Agosti-nho, essas ordens foram efetivamente dotadas de redes coeren-tes de studia conventuais destinados especialmente aos jovens •membros que houvessem manifestado reais aptidões para o es-tudo (ainda que a presença de alguns alunos externos não fos-se excluída). Tais studia formavam em cada província um con-junto hierarquizado no seio do qual os estudantes circulavam àmedida de suas progressões pessoais: eles começavam a fre-qüentar o sudium de gramática, depois eram enviados por seussuperiores para os das artes (para a lógica), de filosofia natural,de Santa Escritura, de teologia. Instalados em cidades universi-tárias como Paris ou Oxford e integrados às faculdades de teo-logia locais, os mais importantes desses studia, qualificados destudia generalia das ordens, tinham a possibilidade de receberestudantes de todas as províncias da ordem de poder e confe-rir a eles não somente o título conventual de "leitor", mas ver-dadeiros diplomas universitários de licenciados e mestres ernteologia. Apesar disso, a rede escolar dos Mendicantes era fun-damentalmente autônoma, distinta daquela das universidades.Gomo contrapartida, o modelo de ensino dispensado nesses ,studia, tanto para a formação inicial na gramática e artes, quan-to, a seguir, em teologia, parece ter sido muito brevemente ali-nhado com o das universidades, tão aprofundados e tão, moder-nos quanto elas.

Teria sido sobre esse modelo que se estruturaram os stu-dia mendicantes? Sempre que vemos aparecer aqui ou ali noOcidente, nos primeiros decênios dó século Xiy tipos de gran-

104

dês colégios nos quais os estudantes eram abrigados erfi inter-nato e oride os ensinamentos, orientados antes de tudo sobre agramática, as artes e a filosofia, que tais colégios tinham por pro-pósito manifesto atenuar, ao mesmo tempo, as insuficiências 'muito freqüentes das escolas de gramática tradicional e o pe-queno número das faculdades universitárias de artes. É assimque, de 1363 a í373, os papas Urbano V e Gregório XI funda-ram em Provence e no Baixo Languedoc, em Trets, Saini-Germain-de-Calberte, Saint-Ronian-de-rAiguille, Gigean, Avig-non e Carpentras, enormes colégios (sendo que alguns podiamacolher até duzentos pensionistas), financiados por uma Gama- ^rã apostólica, para formar em artes e gramática futuros estudan-tes (na verdade, em direito) das universidades de Avignon eMontpellier". Apesar do sucesso inicial incontestável, tais esta-belecimentos, vítimas tanto de seus custos elevados quanto dasepidemias que danificavam os internatos, rapidamente tiverarhque fechar suas portas.

Gom espírito análogo, embora prometido a uma fortunainfinitamente mais duradoura, foi fundado o colégio em Win-chester, em 1382, na Inglaterra, pelo bispo e chanceler do reinoWilliam de Wykeham; esse poderoso personagem, que viria a;instituir em 1379 o maior dos cplégios oxfordianos, da IdadeMédia (New College, com setenta vagas), julgava qye a fundaçãoinstalada em sua cidade episcopal serviria precisamente paragarantir boas condições para a formação preparatória dos futu-ros fellows de seu colégio universitário. Esse ancestral de todasas public schools inglesas ulteriores foi imitado, alguns decê-nios mais tarde, pelo colégio de Eton, estabelecido pelo rei Hen-rique VI, em 144O.

Na feita de criações do mesmo gêneros vimos aparecer eniParis pequenos colégios de gramática não diretamente integra-dos à universidade, embora situados em suas redondezas, e nos

45 - Vide particularmente, L. Stouff,"Une création cTUrbáinV: lê studium papal de Trets (1364-65)". Ia: Provence bis-torique, 16 (1996),p.528-539,e L.H. Labande,"Une fonda:

tion scolaire du pape Grégoife; XI à Carpentras". In: Me-moires de 1'Acad. De Vaucluse,2"s., 15 (1915),p.217-232.

105

Page 54: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

quais crianças (de oito a dezesseis anos) estudavam os rüdimen-tos do latim antes de entrar na faculdade de artes propriamen-te dita; o colégio de Ave Maria fundado desde 1336 por Jean deHubant, presidente da Câmara de Investigação rio Parlamento,é, para tanto^o exemplo melhor documentado46.

Não é, entretanto, aí que se devem buscar os verdadeirosprecursores do colégio "interno" da época mqderna. Este pare-ce possuir uma, dupla origem.

Houve primeiramente, desde os últimos anos dó séculoXIV, as escolas fundadas nos Países Baixos pelos Irmãos da VidaComum e os cônegos de Windesheim. Essas duas congregaçõesreligiosas, estreitamente ligadas, surgiram por volta dos anos1380, reunindo espíritos devotos e enamorados por um misti-cismo simples. Eles eram a expressão dessa corrente religiosacaracterística dá Europa do Norte no final da Idade Média fre-qüentemente qualificada de devotio moderna. Denunciando,de uma só vez, o orgulho dos doutores da universidade e osabusos do xlero responsável por todas as mazelas do tempo(nós estamos em plena crise do Grande Cisma), Irmãos e cône-gos haviam se estabelecido em comunidades que associavamvida ativa e vida contemplativa. A título de vida ativa, eles seatribuíram desde logo como vocação, entre outras, a aberturade escolas, para uso das crianças, nas quais, submetidas a umaestrita disciplina e a um enquadramento religioso atento, estasseriam instruídas nas bases da gramática e da lógica, é simulta-

• neamente formadas para uma vida religiosa mais pessoal, dire-tamente alimentada pela leitura da Bíblia e por práticas de ora-ção. As primeiras grandes escolas dos Irmãos da Vida Comumforam as de Deventer e de Zwolle; em seguida, elas se multipli-caram nos Estados bourguignons, e em cidades universitáriascomo Louvain e até Paris.Encontram-se,entre seus alunos.mui-tas futuras figuras do humanismo setentrional, a começar porErasmo. A despeito do caráter bastante tradicional de seu ensi-no e da austeridade por vçzes excessiva da disciplina imposta

46 - A. L. Gabriel, Student life in Ave Maria College, Me-ãlaeval Pariy History and chartulary of tbe College, No-tre Dame, 1955

106

às crianças, pode-se atribuir como crédito do Irmãos de VidaComum um certo número de inovações pedagógicas das quaisa mais marcante foi a criação de verdadeiras classes graduadas.Doravante, aos antigos cursos essencialmente repetitivos, subs-tituiu-se uma progressão racional, na qual a criança aborda tex-tos cada vez mais difíceis, à medida que avança na idade e do-mina melhor as disciplinas. Essa fórmula se generaliza no sécu-lo XVI.

O outro berço do colégio moderno foi a Itália do Nortehumanista. Foi lá que alguns pedagogos, dos quais o mais co-nhecido é, sem dúvida, Guarino Guarini de Verona (1374-1460),prepararam a fórmula do contubernium humanista. Pensionatonão universitário, pago (e caro, o que garantia um recrutamen-to bastante aristocrático), o contubernium humanista dispensa-va aos alunos um ensino derivado daquele das antigas escolasde gramática, mas enriquecido por contribuições novas: ali, osclássicos eram detidamente estudados por si mesmos, com-preendidos neles os retóricos, os poetas e os historiadores; ogrego, que Guarino dominava perfeitamente (ele havia estuda-do na sua juventude em Constantinopla, não era negligenciado.Por outro lado, dava-se maior ênfase ao desabrochar da perso-nalidade do aluno; bs exercícios físicos altèrnavam-se com osexercícios religiosos, o mestre tomava cuidado pessoal de cadaum e velava por seu equilíbrio físico e moral47. Guarino teve inú-meros concorrentes, em particular Vittorino de Feltre (1378-1446), cuja Casa Gioçosa em Mântua foi um outro belo exem-plo de contubernium humanista.

Um pouco diferentes, ainda que possivelmente compará-veis, foram as escolas novas que apareceram em Veneza no séculoXV A escola do Rialto, aberta pouco depois de 1400, situava-se, deinício, nas vizinhanças da faculdade de artes de Pádua e de seus fi-lósofos "averroístas". Contudo, a partir de 1441, dirigida por Do-ménico Bragadin, descendente de uma das maiores famílias dê Ve-neza, e subvencionada pelo Estado, ela se torna um foco de estu-

47 - A. Grafton, L. Jardlne,"Humanismc ande the School ofGuarino: a problem os evaluatíon". In: Fasf and Present,92 (1982), p. 51-60.

107

Page 55: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

\ : ^ '. -/ , ' '

dos humanistas para o l patriciado veneziano. Simultaneamente(1446), criou-se a escola de São Marcos para formar nas discipli-nas gramaticais e retóricas os jovens que seriam, em seguida, em-pregados na Chancelaria48. Insistência sobre novas disciplinas, ade-quação às expectativas e necessidades culturais do patriciado lo-cal, finalidades cívicas claramente afirmadas, as novas escolas deVeneza inscreviam-se, desse modo, claramente na mesma linhacultural e política dos conturbenia de terra firme.

Naturalmente, o objetivo era bem mais laico, senão mun-dano, nestas instituições italianas do que nas Escolas dos Irmãosda Vida Comum, mas, ao menos, tanto umas quanto outras ti-nham em comum a mesma preocupação de retornar às fontes(lá a Bíblia, aqui ps clássicos) e de levar em consideração as ati-tudes específicas da infância e da juventude.

Os Irmãos da Vida Comum e os humanistas italianos nãoestavam em aberto desacordo com a universidade. Eles chega-vam, pôr vezes, até a se integrar a éla.Jan Standonck de Malines(1453-1504), que foi no final do século XV o principal pedago-go da devotio moderna, reformou, em Paris, o velho colégio deMontaigu antes de vir fundar em Louvain a domus pauperumque depois tomaria seu nome (colégio de Standonck). Na Itália,destacaríamos, por exemplo, o último contubernitíní fundadopor Guarino, em Ferrare, e que acabou por ser, em 1442, assimi-lado à faculdade de artes da universidade há pouco reaberta na-quela cidade, Mas, num e noutro caso, tratava-se menos de fór-mulas pedagógicas novas e que, por esse motivo, pelo nível deseus ensinamentos, bem como pelas ambições sociais que elasanunciavam - formar as futuras elites sociais, insistindo mais so-bre a formação religiosa, nesse primeiro caso; literária, moral ecívica no segundo -, acreditavam também contribuir para aconstituição e renovação do grupo de homens de saber.

Deve-se recordar, enfim, que o final da Idade Média tam-bém viu aparecer, ainda de modo muito disperso, talvez embrio-nário, algum ensino profissional, desprendendo-se diretamente

48 - Vide G. Ortalli,5cwo/é, maestri e istruziane base iraMedioevo e Rtnascimento; ti caso veneziano. Veneza:1993. R 24-29.

108

do sistema tradicional de aprendizagem para se reconciliar, emcerta medida, com as práticas e o nível universitário, do qualainda permanecia muito distante.

Desde a época do genial calculador de Pisa Leonardo Fibo-nàcci (1170-1240), os mestres de ápaco das cidades comerciaisitalianas não se contentavam mais em forçosamente ensinar,com sucesso, aliás, a aritmética comercial aos futuros mercado-res; alguns eram já tidos por sábios de alto nível em aritméticae em álgebra, sem equivalente entre os mestres universitáriosdo quadrtvium.

Também na Itália formaram-se, tias dependências de cer-tas faculdades de medicina, as primeiras e verdadeiras escolasde cirurgia. No mesmo país, foi permitido que verdadeiras esco-las fossem criadas para a formação dos notários (que, na Fran-

' ca, pareciam permanecer, sobretudo, presos ao estilo da apren-dizagem).

Em outro espaço geográfico, houve, entretanto, um poucoda mesma tendência que destaca a emergência, na primeira me-tade do século XV, dos Inns ofCourt ingleses, que nós já assina-lamos no capítulo precedente49. Designamos sob esse nome(pelo fato de elas haverem sido inicialmente instaladas em al-bergues) quatro esc~olas de direito que surgiram não em Oxfordou em Cambridge, mas em Londres, na capital do.reino e naproximidade das principais cortes de justiça reais. Ao lado dosInns ofCourt, existia uma dezena de Inns ofChancery de me-nos importância. Nessas diversas escolas, os futuros juizes e ad-vogados vinham iniciar-se na Common Law (isto é, no direitoconsuetudinário unificado aplicado nos tribunais ingleses) se-guindo as lições dadas pelps praticantes de direito que os acom-panhavam às sessões judiciárias. Na segunda metade do século,os Inns ofCourt londrinos atraíam, ao que parece, até duzentosou trezentos ouvintes e uma boa parte dos juristas reais saíramdeles, tanto ou mais que das próprias faculdades universitáriasonde se professava o direito romano. O ensino, a princípio ex-tremamente informal, era, doravante organizado de modo rigo-

49 - Cf. síipra, p. 41; para uma apresentação de conjunto dosInns ofCourt do século XV e respectiva bibliografia, vide N.Otmc,From childhood to chivalry, op. cit,p,74-79.

109

Page 56: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

roso (para isso praticamente não existiam diplomas concedi-dos) e o público era constituído principalmente por filhos decavaleiros ou de escudeiros da gentry cm busca de formaçãoprofissional ou, pelo menos, de relações úteis nos meios da cor-te e dos ofícios governamentais da capiíal.

Esse poucos exemplos, cuja lista poderia ser; sem dúvida,ampliada, demonstram que no século XV - mesmo que o mode-lo universitário tradicional guardasse ainda por toda a parte umpeso considerável -, as possibilidades de formação oferecidaspara os futuros homens de saber começavam a se diversificarde maneira notável, em virtude da própria importância e até dacomplexidade sempre crescentes desses homens e das funçõessociais que lhes eram designadas.

0

capítulo 3

OS LIVROS

De tudo-o que dissemos nos dois primeiros capítulos destetrabalho, conclui-se que as pessoas cultas, nas sociedades ociden-tais do final da Idade Média, eram homens do livro e, mais ampla-mente, da escrita.

Isso não ocorria de maneira exclusiva. Eles sabiam tambémusar a palavra. Graças a seus conhecimentos gramaticais, eles po-deriam exprimir-se tanto em latim quanto em língua vernácula,Seus estudos de lógica e de retórica lhes teria dado a arte do ra-ciocínio correto e da demonstração convincente. Uma longaaprendizagem da memória lhes permitia convocar, sem se referira notas escritas, múltiplas citações de "autoridades" que funda-mentavam seu saber.

Estudantes, eles haviani aprendido a seguir as lições dosmestres ou a intervir nas discussões sem a ajuda da pluma. Pro-fessores, eles teriam, como supunha seu status universitário, pelomenos em teoria, a obrigação de exercer o ensino sem se conten-tar em ditar um texto redigido previamente. Clérigos, eles pos-suíam o hábito de pregar; advogados, de pleitear. Homens de con-selho, embaixadores ou membros de qualquer assembléia de Es-tados, eles deveriam ser capazes de discursar para o príncipe oupara a multidão, de se fazer entender no tumulto ou de fazer des-lizar pelo ouvido palavras decisivas.

II

\ "O!

Page 57: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

Permanece, contudo, que os homens de saber eram funda-mentalmente, e, sobretudo, aos olhos de seus contemporâneos,homens do livro e da escrita, e essa era inclusive, em relação a to-dos os outros grupos sociais, uma de suas especificidades maismarcantes. Eram, em última instância, os livros que os mantinhampor si sós no poder; pela leitura, ou até pelo manuseio correto, elesobtinham seu saber e, portanto, a própria justificação de seu pa-pel social. Era nos livros e nos arquivos que eles tinham, que elesconsignavam e conservavam suas decisões e suas opiniões. Aspessoas simples sabiam muito bem disso e freqüentemente, emmotins populares e revoltas urbanas, bibliotecas, livros, registros,

" papéis foram os primeiros alvos da vingança popular. ,Dessa forma, é muito importante para nosso propósito

procurar descobrir o lugar que ocupava o livro na vida doshomens de saber. .

I. O ACESSO AO LIVRO

Sem refazer aqui toda a história do livro medieval, convémantes recordar que sua confecção e circulação são sempre cerca-das por múltiplos obstáculos que lhes tornavam difícil o acesso.

O primeiro e principal obstáculo era de ordem econômica.O livro custava caro. Esse custo vinha, antes de mais nada, do pre-ço do suporte. Um livro requeria grande quantidade de pergami-nho (de acordo com o formato do livro, obtinha-se de dez a dezes-seis folhas por pele) e o pergammho era um material oneroso. Adifusão do papel cbiffbn, ocorrida na Espanha desde o século xn,na Tranca no XIH, permitiu baixar o preço. Mas é somente no sé-culo XIV e, sobretudo, no XV que p uso do papel se difundiu lar-gamente no domínio do livro manuscrito. Com igual superfície,calculando-se a partir de documentos franceses, o papel podia tor-nar-se cinco vezes niais barato que o pergaminho no século XTVe até treze vezes mais barato no século XV, graças à melhoria dastécnicas da papelaria e'à multiplicação das oficinas de papel. Masem outros lugares, especialmente na Alemanha, a diferença foi,sem dúvida, menor. ,

De qualquer modo, o ganho sobre o preço total do livrp per-manecia relativamente limitado, na ordem de 10 a 20% somenteem re)ação as obras em pergaminho. A relativa modéstia desse ga-nho permitiu a esse tipo de livro guardar uma posição suficiente-mente sólida, visto que muitos letrados parecem ter tido um pre-conceito desfavorável contra p livro de papel;julgado, ao mesmotempo, menos nobre e menos sólido, sobretudo para os textos im-

112

portantes e para obras pelas quais o dono se apegava, desejandotransmiti-las aos descendentes.

Na realidade, o fator principal do elevado preço dos livrosera o custo da cópia. Os bons copistas eram raros. No final da Ida-de Média, os scríptoria monásticos haviam perdidp.o essencialde sua importância e a maior parte dos escribas seriam, doravan*te, artesãos profissionais que se encontravam principalmente emgrandes cidades, especialmente aquelas que abrigavam umarlientela importante, quer dizer, as capitais da nobreza f as cida-des universitárias/Mesmo deixando de lado o caso dos livros deluxo ornados de miniaturas, verdadeiras obras de arte destinadassobretudo aos prelados, aos grandes senhores e aos reis, a confec-ção de livros tomava tempo. Os bons copistas trabalhavam lenta*mente: por volta de duas folhas e meia por dia, em média. Por ou-tras palavras, em um ano, um bom copista produzia apenas cincolivros de duzentas folhas; ou ainda, se preferirmos, para chegar afornecer mil livros deste tipo em um ano, não se poderia ter me-nos de duzentos copistas trabalhando o tempd inteiro. Nas-cida-des universitárias, onde mestres e estudantes tinham necessidadede muitos livros, mas dispunham de limitados recursos financei-ros, procurou-se reduzir a um mínimo o preço de revenda dps li-vros: pequenos formatos, linhas apertadas, escrita mais cursiva,multiplicação das abreviaturas permitiam economizar o pergami-nho ou o papel, sempre ganhando um pouco de tempo de cópia.A adoção do sistema dapecia, que acelerava a rptação dos exem-plares a serem reproduzidos, permitia igualmente melhorar aprodutividade dos escribas, semprepreservando a qualidade dostextos postos em circulação1.

l - O sistema de pecia, que apareceu em Bolonha e em Pa-ris durante o século XIII, consistia em confiar aos livreirosda universidade exemplares oficialmente controlados dosprincipais livros de estudo; tais exemplares eram feitos decadernos (pecíoé) não ligados, o que permitia serem aloca-dos para inúmeros, copistas ao mesmo tempo; estes po-diam, então, produzir simultaneamente muitas cópias domesmo livro. (Vide La productton du livre universítaireau Moyen Age: exemplar e pecia, editado pôr L. J. Batail-lon,B.G.Guyot,R.H.Rouse,Paris, 1988, que conduzirá paraa abundante literatura anterior até o livro pioneiro de J.Destrez, La pecia dans lês manuscrito universitaires duXUetliuX]VsiècleP

13

Page 58: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

Nessas condições, acredita-se que muitos escolheram umasolução bem menos onerosa - mas que não garantia mais a cor-reção dos textos transcritos -, que "consistia em encomendar aqualquer copista "amador" - um capelão necessitado ou um es-tudante pobre por exemplo - a cópia do livro desejado.

Q problema do preço real dos livros medievais é uma ver-dadeira pedra no caminho 4os pesquisadores. Quando sé dese-ja fazer comparações de um país para outro ou seguir evolu-ções de longa duração, é preciso adotar uma unidade de refe-rência ou converter todos os preços em peso de metal precio-so. É necessário, além disso, que se evite tomar os preços esti-mados dos inventários como preços de venda ou de compraefetivos. Enfim, e sobretudo, há de se ter a estimativa do estadomaterial dos volumes, o que, muito freqüentemente, nos esca-pa, mas quê devia fazer variar os preços em consideráveis pro-porções: pefgaminho ou papel, tipo de escrita, número de fó-lios, formato, presença de ilustrações, encadernação, etc.; doismanuscritos, mesmo sendo de uma única obra, nunca eram per-feitamente semelhantes. ' , \ .

Algumas conclusões relativamente seguras, entretanto,impõem-se (deixo aqui de lado, repito, os livros de luxo das bi-bliotecas principescas).

Inicialmente, os preços dos livros eram extremamente va-riados. Os. mais caros, geralmente as grandes Bíblias -ou os volu-mes glosados do Corpus iurís civttis ou do Corpus iuriscanonicí, custavam uma dezena de libras deTours (para tomaruma unidade de medida francesa). Mas existiam, ao lado disso,inúmeros pequenos volumes, por vezes sob a forma de simplescadernos soltos, nos quais se anexavam "anotações" de cursos,alguns fragmentos de questões disputadas, de sermões, de bre-ves tratados práticos etc. eram vendidos por algumas poucasmoedas.

Em seguida, os preços parecem haver variado praticamen-te do simples ao dobro, conforme se tratassem de livros novosou livros de segunda mão. O mercado do livros de segunda mãoera, com efeito, muito ativo, especialmente nas cidades univer-sitárias, onde e}e era alimentado pfelas obras colocadas à vendapor estudantes em necessidade ou deixando\a universidade,por aqueles que emprestavam sob penhor, pelos colégios se

14

desvencilhando de seus exemplares repetidos, por herdeiros li-quidando a biblioteca de algum tio cura ou cônego, etc.

Pode-se, em tais condições, estabelecer o "preço médio"do livro medieval? Baseando-se numa abundante documenta-ção, proveniente da França do Norte nos séculos XIV e XV, Car-la Bozzolo e Ezío Ornato asseguraram, para essa região, as cifrasde 5 libras 10 sous parisis para o século XIV e duas libras 16sous parisis para o século^XV2, devendo-se essa baixa aos pro-gressos já assinalados do papel e ao marasmo econômico geral.Tratava-se evidentemente de cifras absolutamente fictícias, quenão têm qualquer sentido para além dos indivíduos específicosque tenham adquirido ou possuído um número relativamente Nimportante de volumes. Talvez seja interessante notar que emParis, por volta de 1^00, o "preçomédio" de um Ifvro correspon-dia aproximadamente a sete dias de "salário e pensjio" dê umnotário ou secretário do rei; nessas condições, vê-se que qual-quer personagem (ora, há que se recordar que os nòtários e se-cretários de rei eram em Paris, no final ,da Idade Média, com osconselheiros do Parlamento e ps professores da universidade,os principais donos de bibliotecas privadas) praticamente nãoteria pqdido, mesmo considerando a compra de livros em umquarto de seus proventos - hipótese evidentemente otimista -adquirir mais de duzentos e cinqüenta volumes em vinte anosde carreira. Na realidade, a mais importante das bibliotecas pri-vadas parisienses cuja composição nós conhecemos, aquela doescrivão do parlamento Nicolas de Baye, nessa época, em 1419,permanecia beni abaixo dessa cifra teórica, com 198 volumesdos quais uma parte foi adquirida por doação ou herança.

Pudemos reconstituir, seja pelo exame dos manuscritossubsistentes, seja pela analise dos inventários e dos testamen-tos, um número bastante grande de bibliotecas privadas do finalda Idade Média.

No caso da França, esses estudos, primeiramente, permiti-ram mostrar que, uma vez colocados à parte o rei, os príncipesde sangue e os grandes senhores, os homens de saber são prati-

2 - C. Bozzplò, E* Ornato, Pour une histoire du littre ma-nuscrít au Moyen Age. Trois essais de codicologiequantitative,Parixl98Q,p.25-26.

15

Page 59: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

camente os únicos a possuírem, até o final do século XV, bibliote-cas de alguma importância. Para além delas e, até em meios ondeos indivíduos alfabetizados não deveriam faltar - pequena e mé-dia nobreza, mercadores, baixo clero - os livros eram praticamen-te ausentes; aqui um fragmento de crônica, ali um livro de horase uma vida de santo, acolá ainda uma coleção dos estatutos sino-dais não podem evidentemente ser caracterizados como biblio-tecas.

Entre os próprio» homens de saber, as coleções de livrospossuíam importância variável. A biblioteca de um estudante, ain-da que abastado, não ultrapassava praticamente, em média, umadúzia de volumes; os livros de estudos fundamentais, de um lado,uma ou duas coleções de textos religiosos, de outro, Seus profes-sores, que-tinham necessidade de uma pequena biblioteca pes-soal para preparar seus cursos, eram um pouco melhor aquinhoa-dos e possuíam, para além das "autoridades" de base, um determi-nado número de comentários e de tratados modernos; isso repre-sentava, no mínimo, cerca de trinta livros. Contudo, alguns mes-tres, mais ricos ou de espírito mais curioso, possuíam bibliotecasque alcançavam ou até ultrapassavam uma centena de volumes3.Foi igualmente com essa cifra média de uma centena de volumesque se organizaram as bibliotecas de homens do Parlamento deParis por volta de 1400, às quais eu retornarei adiante.Tais cifrasnão eram Sensivelmente ultrapassadas, a não ser nos casos de ver-dadeiros bibliófilos (como o escrivão Nicolas de Baye, ou, cin-qüenta anos mais tarde, Roger Benoíton, antigo notário e sécçetá-rio do rei, que se tornara cônego de Clermont e que manteria or-gulhosamente o catálogo comentado de 257 livros de sua cole-ção pessoal), ou de personagens que haviam acedido a altas fun-ções, por exemplo, antigos professores de direito ou dignitáriospontificais que se tornaram bispos ou cardeais - tais como Gau-celme de Deux, antigo tesoureiro do papa que se tornara bispode Maguelone, e que possuía, quando de sua morte (1373), nada

3 - Vide, por exemplo, J.Verger, "Lê fívre dans lês uríivér-sités du midi de Ia France à Ia fln de Moyen Age", emPratiques de Ia culture écrtte em France au XV" siècle,editado por M.Ornato e N.Pons,Loüvata-la-Ncuvc, 1995, p.403-420.

16

menos que 435 livros ou o cardeal Piero Corsini, antigo auditorde Rota, que deixaria 320 no ano de 14054. -

A dimensão média das bibliotecas teria aumentado do sécu-lo XTV para o XV? Sem fornecer resultados muito precisos, as pes-quisas recentes parecem, apesar de tudo, indicar uma tendêncianesse sentido. De fato, em estudo já citado, C. Bozzolo e E. Orna-to haviam suposto quê a produção de livros novos tinha diminuí-do sensivelmente na França, entre 1350 e 1450, em virtude da cri-se econômica geral do período, e nós podemos pensárque se tra-tava de uma tendência comum a toda Europa ocidental. Porémas bibliotecas não continham apenas livros novos. A existênciade um ativo mercado de Segunda mão e a cuidadosa conservaçãodos manuscritos*antigos - a esperança de vida dos livros medie-vais, sobretudo os mais úteis e os mais caros/efa certamente bemmais do que secular - permitia às coleções aumentarem pelosimples efeito da acumulação. Entretanto, o crescimento, se é quese pode falar em crescimento, não foi considerável. Em um certonúmero de casos, foi a aparição de belíssimas bibliotecas, cominúmeras centenas de volumes, que parecem ter elevado a ciframédia, mais do que um aumento generalizado.

Os proprietários de bibliotecas consideravam-nas verdadei-ros tesouros e as tratavam com o maior cuidado, O valor de umlivro era, para um homem de saber, simultaneamente simbólico ematerial. Cuidadosamente conservados dentro de um cofre ou ar-mário, os livros proclamavam a ciência de seu proprietário. Fre-qüentemente adquirido junto a livrarias de universidades, por ve-zes despachados com altos custos de Paris ou de Bolonha5, os li-vros eram indissoluvelmente ligados aos estudos e aos diplomas.

4 - Eu retiro tais cifras dos estudos de G. Hasenohr, Téssordês bibliotèques privées aux XIVa e XVa siècle", e de M.H. Jtülien de Pommerol e . Monfrin, " La bibliothèquepontiflcale àAvignon au XIV siècle", erp Histoires de bi- 'bliothèques françaisés, tomo I, Lês bibtíothèques médié-vales du W siècle à 1530, dirigido por A. Vernet, Paris,1989, p. 215-263 e 147-169-5-Ver, por exemplo, S. SteUing-Míchaud,"Lctransport inter-nacional dês manuscrits juridiques bolonais entrç 1265 e1320", em Mélanges d'histoires économique et socialeem hommagejiu pfcofesseurAntony Babel, tomo I, Gene-bra, 1963, p. 95-127.

17

v,.','

Page 60: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

A entrega de um livro ao candidato não era um dos gestos rituaisdas cerimônias de doutorado? Por outro lado, toda biblioteca dealguma importância possuía um alto valor de mercado. Ela repre-sentava uma forma de entesouramento, um capital tanto intelec-tual quanto financeiro que se pretendia legar aos seus herdeiros,se eles empreendessem seus próprios estudos, fosse num colé-gio, fosse em alguma igreja. Os juristas sempre se bateram paraque os livros não fossem computados quando os oficiais do im-posto vinham avaliar seus bens móveis; a seus olhos, esse privilé-gio não era apenas uma apreciável vantagem fiscal - porque nãoera raro que tais livros representassem, em valor, a metade oumais do capital mobiliário 7 mas também o reconhecimento pú-blico da nobreza do seu saber e das atividades que eles exerciama título de sua competência* intelectual. Não mais do que as armasdo cavaleiro; os livros do doutor não deveriam recair nas malhasdo imposto.'

Será que a relativa simplicidade das bibliotecas privadaspoderia ser compensada pelo recurso às bibliotecas públicasou pelo menos - a noção de serviço público sendo evidente-mente anacrônica nessa matéria6 - institucionais? Existiam, naépoca, três tipos de bibliotecas que poderiam merecer tal qua-lificação.

Primeiramente, as bibliotecas principescas. Na altura damorte do rei d» França Carlos V (1380), sua "livraria" do Louvrecontava com pouco menos de 1300 volumes; no século XY oduque de Bourgogne Filipe, o Bom teria uma biblioteca comcerca de 880 livros. Por seu turno, os papas de Avignon enrique-ceram sem cessar suas coleções de livros. Eles possuíam maisde dois mil quando morre Urbano V, de acordo com um inven-tário de 1369, e apesar dos avatares do Grande Cisma, ao mor-rer no exílio em Peniscola, o último papa de Avignon, BenoitXIII (13944423), possuía ainda praticamente a mesma quanti-dade7. As bibliotecas dos príncipes e dos pontífices eram aber-tas ao público? Seu catálogo preciso deixa supor que pelo me-

6 - As primeiras bibliotecas públicas, no sentido modernoda palavta, apareceram no curso do século XV em Floren-ça, em Veneza e em algumas cidades alemãs.7 - Tais dados foram extraídos dos dois estudos já citadossupra,p.9Q,si.2i

18

SCUSSCUSnos osômiliares do soberano, seus visitantes distintos econselhoros poéticos tinham acesso a elas * C

que.exçetuando.epeoalmente enriquecidas^sido extremamente importantes (mais

Média

1450-lumes em Saint-Denis ou em Clair

nece*sariamente

to, tais cas ecessticas eramreligiosos e em livros litúr£s ™tão úteis parase elas ̂ c

As bibliotecas mais "modernas" PM™ A '

e universidades. • ' sobretudo> no cas<> dos colégios

Os principais colégios universitários tinham uma bibliote

,

119

Page 61: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

de 1500'.Os outros colégios possuíam coleções muito mais mo-destas, mas por vezes, preciosas: cerca de 200 livros no colégiod'Autun em Paris (1462), 150 no colégio d'Annecy em Avighon(1435), 78 no colégio de Pélegry em Cahors (l 395), etc. Os co-légios ingleses parecem oferecer cifras da mesma ordem desde•o final do séculoJOV (500 livros em Merton, 150 em Balliol, 100em Oriel) e mais ainda no século XV (369 Hvros na dotação ini-cial de Ali Souls em 1438,800 doados a Magdalen em 1480)10.Uma das mais célebres bibliotecas de colégio foi, no final da Ida-de Média, a do Collegium Amploniarium de Erfurt, que rece-beu em 1433, de seu fundador, o antigo reitor Amplonius Ra-tingk, uma extraordinária coleção de 637 livros, rica em clássi-cos, o que representou uma das vias de ingresso do humanismona Alemanha11. No conjunto, entretantç, as bibliotecas dos colé-gios continham, sobretudo, livros de estudos, destacando-se asdisciplinas tradicionalmente ensinadas nas universidades. Taisbibliotecas eram, então, particularmente bem adaptadas para oshomens de saber. Resta averiguar se eles ainda teriam acesso a , felas após o fim de seus estudos: os estatutos conservados não ^parecem indicar que os visitantes externos tenham sido acolhi-dos com muita facilidade nas bibliotecas de colégios.

O mesmo acontecia com as bibliotecas de universidades,as quais eram, aliás, freqüentemente, muito menos importantese que praticamente não existiam antes do século XV Na França,constatamos entre as primeiras bibliotecas universitárias, cons-tituídas somente por algumas'dezenas de volumes, aquelas de <Orléans (l4ll),deAvignon (1427),de Poitiers (1446) e as facul-

: !

dades de medicina e de direito canônico de Paris (1395 e1475). Foi quase exclusivamente em Caheii que um inventário,tardio, é-verdade (1515), constatou uma coleção mais substan-cial (277 volumes)12. Outras universidades eram melhor provi-das, como Oxford cuja biblioteca, fundada em 1412, se desen-volveu principalmente graças às doações do duque de Glouces-ter (280 livros entre 1439 e 1447)".

No total, é provável que, no exercício cotidiano de suasatividades profissionais ou administrativas, o conjunto dos ho-mens de saber, sobretudo os leigos - fossem eles médicos, advo-gados, procuradores, juizes ou oficiais do rei -, deveria, antes detudo, contar com os recursos de sua pequena livraria pessoal...e de sua memória, eventualmente auxiliada por aqueles peque-nos cadernos e anotações pessoais que .alguns pedagogos osaconselhavam a começar a compor desde o tempo de seus es-tudos, sugerindo ainda que os mantivessem sempre à mão14. Eraapenas a título excepcional e para consultar esta ou aquela obrarara em sua versão original que eles deveriam buscar sua admis-são em uma biblioteca universitária, eclesiástica ou principes-

"ca. Compreende-se, nessas condições, o sucesso que sempredesfrutaram na Idade Média os florilégios, repertórios, dicioná-

• rios, enciclopédias e todo gênero que permitisse restringir, em;, alguma medida, o acesso aos livros.

9 -Tais cifras foram retiradas,bem como as que se seguem,de M.-tí. Julllen de Pommerol, "Livres d'étjadiarits,bibliothèques de collèges et d'université", em Histoire dêsbibliothèques frctnçaises, tomo I, op. cit., p. 93-111.10 - N. Ker, "Oxford College Ubraries befpre 1500", em Lêsuniversités à Ia fln du Moyen Age, editado por J. Paquet eJ.ljsewijn,Louvain, 1978, p. 293-311.11 - Citado à página 175 em H.-J. Martin,"La Révohition del'imprime", em Histoire de 1'édition françaíse, dirigidapor Roger Chartíer e H.-J. Martin, tomo I, Lê livreconquérant' du Moyen Age aü milieu eteXVLP siècle, 2"edição, Paris: 1989, p. 165-185.

12 -Veja-se o estudo de M-H Julllen de Pommerol, supracitado, n.l.

, 13 - Vide M. B. Parkes, "The provision of Books", em Thebistory ofthe University ofOxfoni,volume II,Late medie-val Oxford, editada por J. 1. Catto e R. Evans, Oxford: 1992,p. 407-483. '14 - Cita-se, como exemplo, Juan Alforíso de Benavente emsua Ars et doctrina sMdenti et docendi, editada por B.Àlonso Rodriguez, Salamànca: 1972,p. 90.

120 121

Page 62: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

*2.6 CONTEÚDO DAS BIBLIOTECAS

Os inventários de bibliotecas antigas, apesar de suas im-perfeições, e os manuscritos conservados até nossos dias infor-mam-nos relativamente bem sobre o conteúdo dos livros doshomens de saber em fins da Idade^Iédia. É claro que, de fatp,eram estes que, em todo caso e a título "privado, detinham agrande maioria dos livros existentes. Sabe-se beni que, aindahoje, os manuscritos relevantes das disciplinas da cultura erudi-ta - gramática, lógica, filosofia, direito, teologia - sobreviveramàs centenas, por vezes aos milhares, enquanto outras obras lite-rárias, históricas ou políticas, inclusive algumas daquelas quenos parecem as mais importantes, são conhecidas apenas por*um número reduzido de manuscritos - quantas vezes por umúnico manuscrito - sobretudo quando se trata de textos em lín-gua vernácula.

Através de toda a Europa do final da Idade Média, as "bi-bliotecas do saber", como diziam os especialistas, apresentamum incontestável ar de família, quer se tratasse de bibliotecasuniversitárias ou, em escala mais modesta, fossem bibliotecaspessoais dos homens, de saber que mais diretamente aqui nosinteressam. Havia até uma confirmação suplementar do caráteruniversalista guardado pela cultura erudita até o final da IdadeMédia.

Encontraram-se, a princípio, nessas bibliotecas, os textos debase, as autoridades fundamentais de cada disciplina. Os juristaspossuíam os pesados volumes de dois Corfnís iuris providos desua glosa ordinária; os teólogos possuíam a Bíblia, freqüentemen-te ela também glosada, os comentários exegéticos de São Jerôni-mo e de Santo Agostinho e, entre os modernos, alguns tratadosd' Hugües de Saint-Viçtor, as Sentenças de Pedro Lombafdo euma ou outra Suma de SãaTomás de Aquino; entre os médicos,encontravam-se traduções de Galiano e 05 grandes mestres ára-bes (Avicena, Rhazès); enfim, os mestres em Artes possuíam t>o-nato e Prisciano, mais algumas coleções de auctores para a gra-mática, o Organcm de Aristóteles para a lógica e, menos sistema-ticamente, alguns tratados do mesmo Aristóteles (Da alma, Físi-ca, Metafísica, Ética) para a filosofia natural e moral.

122

A esses textos fundamentais e presentes por toda parte, vi-.'nham juntar-se, em quantidade variável, um certo número -de

\comentarios, tratados e "questões" modernas, além de algunsmanuais è textos diversos de referência. Aqui aparece-mais àpersonalidade - e os meios financeiros - do proprietário. Algu-mas bibliotecas parecem muito tradicionais, outras acolheramrapidamente os novos livros. Algumas parecem bastante neu-tras, outras claramente deixam adivinhar uma orientação /dou-trinai particular. Algumas, enfim, parecem muito escolares, pro-dutos diretor do ensino recebido ou ministrado, enquanto ou-tras contêm Obras completamente alheias ao ensinp e expressa-mente vinculadas a uma prática profissional.

Vem, enfim, a inevitável rubrica "diversos". Ela é por vezes,em algumas bibliotecas austeras, praticamente vazia. Em outras,pelo contrário, pode representar uma porcentagem considerá-vel, ainda que sempre minoritária. Ela traduz então, além dosacasos que podiam presidir o Agrupamento de algumas cole-ções, 05 interesses e os-gostos pessoais do proprietário. Perce-be-se que este hão se limitava forçosamente a seu domínio deatividade profissional nem às disciplinas aprendidas na escola.ou na universidade. A existência de livros religiosos (Bíblias, tra-tados de espiritualidade, vidas de santos, livros de horas) serátida como sinal de piedade e de devoção, talvez sob a influên-cia das ordens mendicantes. Outros marcam seu interesse pelahistória (crônicas universais, história antiga, ou história nacio-nal contemporânea). Naturalmente, a presença dos clássicos -até mesmo de alguns italianos: um Dante, um Petrarca, um Bo-caccio, um pouco mais tarde, os Elegantioe de Lorenzo Valia -mostrará que alguns desses homens de saber, muitas vezes for-mados na pura tradição escolástica, puderam ser bem cedo sen-síveis às novas correntes humanistas; Enfim, um pequeno setorem língua vernácula, infelizmente muitas vezes mal repertoria-do, com uma significativa condescendência, pelos redatores doinventário ("Item,um pequeno livro eiji romance"),ou ainda, al-gumas coleções de "prognósticos" recordam-nos que os ho-mens de cultura essencialmente latina não eram necessaria-mente alheios a toda forma de literatura vernácula, e nem mes-mo à cultura popular.

123

Page 63: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

Alguns exemplos emprestados às recentes pesquisas ilus-trarão essa sumária tipologia. .

Françoise Autrand estudou, em detalhes, as bibliotecas doshomens do Parlamento'5.Tratava-se ali, verdadeiramente, da eli-te dos homens de saber na França em finais da Idade Média. Al-guns cléfigos, outros leigos, mas quase todos licenciados oudoutores, os conselheiros do Parlamento eram os juristas dealto nível, não devendo nada aos melhores professores de direi-to de Paris ou de Orléans. Ricos e geralmente nobres ou pelomenos enobrecidos, eles pertenciam à esfera superior da socie-dade parisiense. Enfim, constituindo a corte soberana da justiçado rei, exercendo, portanto, a função regalista por excelência,eles se situavam no cume da hierarquia dos ofícios e dos encar-gos do Estado.

As "livrarias" de trinta e sete dentre eles nos são conheci-das, graças aos inventários ou aos testamentos, para os anos1389-1419 (mais um de 1362). A homogeneidade do grupo, es-pecialmente sob o plano cultural, é confirmada pelas fortes se-melhanças dessas diversas bibliotecas. Em média, uma centenade'obras, nós já o dissemos, com urna ligeira tendência de cres-cimento à medida que se avança no tempo. Elemento maior docapital mobiliário de cada um,.tais bibliotecas eram, entretanto,primeiramente bibliotecas de trabalho. É o que explica que os•livros de direito lhe ocupassem a parte do leão, oscilando entreum quarto e dois terços do conjunto segundo o caso; apenas obibliófilo, Nicolas de Baye não possuía mais do que 16% de li-vros de direito (32 sobre 198). Bem mais surpreendente é o fatode o direito canônico - não apenas com os diversos volumes do

• Corpus iuris canonici mas com seus numerosos comentáriosrecentes, com freqüência procedentes de autores italianos ouda França central - parecer melhor representado que o direito,civil; é verdade que a metade desses conselheiros eram os clé-rigos e que eles deviam julgar tanto matérias eclesiásticas quan- <to matérias laicas, sendo estas julgadas normalmente segundo ocostume e não segundo o direito romano. Aos textos jurídicos,

pode-se, sem dúvida, somar igualmente como testemunhos depreocupações profissionais alguns tratados políticos, todos fa-voráveis à prerrogativa real (como o Polícraticus de Jean de Sá-lisbury ou o Songe du vergier, ou ainda, menos degustáveís doponto de vista daJgreja,Marsílio de Pádua ou Guilherme de Oc-kham), os livros de/rezas, algumas coletâneas de cartas, os ma-.1miais de retórica.

Se nos reportarmos à parte mais pessoal dessas bibliote-cas, os livros religiosos prevalecem e não apenas entre os con-selheiros clérigos: alguns tratados teológicos, mas, sobretudo asBíblias, os breviários e os livros de devoção e de espiritualida-de. Em contrapartida, nem a história, nem os clássicos ocupa-vam um lugar importante. Junte-se a isso a ausência praticamen-te total da língua vernácula; tais bibliotecas eram, em geral, ex-clusivamente latinas.

A conclusão impõe-se, portanto, ppr si mesma. Em umaépoca onde o humanismo de Petrafca abria uma brecha impor-tante no colégio de Navarra e no meio dos notários^e secretá-rios do rei (o "primeiro humanismo" francês) - onde a bibliote-ca real do Louvre era, por seu.turno, constituída porvuma quan-tidade de 60% de livros em francês -, o meio das pessoas do par-lamento, homogêneo e unido por um forte espírito de corponascido desde os tempos dos estudos pela própria freqüênciaaos colégios, aparecia como o meio culturalmente mais conser-vador, e ainda impregnado de Uma forte tintura religiosa; um"meio de juristas competentes e austeros, onde uma piedade tal-vez marcada pela influência da "devoção moderna" provenien-te dos Países Baixos vinha apenas fazer um contrapeso ao pres-tígio esmagador do direito, percebido, ao mesmo tempo, comodisciplina erudita e vocação política.

As pesquisas mais sumárias igualmente dirigidas aos gru-pos de clérigos cultos - 41 bibliotecas de cônegos dos séculosXIV e XV, 68 bibliotecas de bispos e cardeais franceses do pe-ríodo avignonense - produziram resultados análogos16. Os ptv-meiros praticamente não possuíam, em média, mais do que 25livros;os segundos,70 (o que confirma bem.a contrario,o alto

15 F. A\jtrand, "Culture et mentalité: lês libraMes dêsgens du Parlement üu temps de Charles VJ",Arinales ESC,28 (1973), p. 1219-1244.

124

16- Sugere-se o estudo de G.Hasenohr supra citado ,págí-,na 90,íi.2. > 'c..

125

Page 64: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

nível de cultura dos homens do Parlamento, com suas livrariasde cento'e tantos livros). Entre esses homens freqüentementeprovindos das universidades e encarregados de trabalhos ad-ministrativos, o direito consistia sempre em um peso opressi-vo; entre a metade dos cônegos, ele representava mais do que50%'dos volumes e não ficava nunca abaixo dos 20%, a não serem algumas bibliotecas excepcionalmente importantes e re-presentativas do verdadeiro gosto do letrado e do humanista.Mas no essencial, eram os livros religiosos -breviários e outrasobras Htúrgicas, coletâneas de sermões e tratados teológicos,aliás, mais do que a Bíblia e os textos espirituais - que vinhamcompletar tais bibliotecas, pouquíssimo abertas, também elas,à língua vernácula.

O estudo comparado dessas diversas séries de bibliotecascoloca, assim, em evidência a homogeneidade cultural do mun-do dos homens de saber (fossem estes clérigos ou laicos), e, aomesmo tempo, os limites de uma cultura na qual as novas cor-rentes não costumavam ter seu caminho franqueado.

Coisa ainda mais notável, outros estudos sugerem que ahomogeneidade dessa cultura - jurídica, escolar, latina - verifi-cava-se de fato por toda a cristandade. Em qualquer lugar, eramencontradas as mesmas tendências e praticamente os mesmoslivros.

Tomemos, na extremidade meridional do Ocidente me-dieval, o exemplo da Sicília: velho país de direito romano, defato, mas também zona em alguma medida marginalizada no fi-<

- nal da Idade Média, economicamente dominada por homensde negócios da Itália do Norte, politicamente governada porsoberanos aragoneses que não foram bem sucedidos em im-plantar uma verdadeira administração central, desprovida de ;universidade17 e, portanto, coagida a enviar seus futuros juris-tas e médicos aos studia generalia do continente (sobretudo,Bolonha).

Apoiando-se sobre vasta documentação notarial, HenriBrese recenseou bibliotecas ou,.pelo menos, indicações de li-vros para a Sicília dos séculos XIV e XV18. Em 120 casos, trata-va-se de bibliotecas privadas e individuais. "•'

Dois traços depreendem-se notoriamente de seu estudo/,confirmando, a seu modo, as constatações feitas para a mesmaépoca no caso do reino da França.

Antes de tudo, a posse de livros era aqui praticamente mo-nopolizada pelos homens de saber. Para 2341 volumes, cujoproprietário foi identificado com precisão, somente 1% perten-cia a artistas ou a mercadores, 9,2% ao patriciado urbano ou ànobreza; um clero aparentemente pouco instruído e contentan-do-se com os recursos das bibliotecas das igrejas que detinhamapenas 3,2% dos livros localizados.Todo o resto pertencia aos'homens de saber. Entre esses distinguiam-se os simples mestres-escolas, notários, cirurgiões, boticários, oficiais menores ou, poroutras palavras, aqueles que não haviam passado pela universi-dade e cujas bibliotecas, mais do que modestas, reagrupavamapenas 12,6% dos livros,e os doutores (em medicina e, sobretu-do, em direito) que, mesmo sendo pouco numerosos (27 sobre120 dos proprietários de livros identificados), possuíam 74%dos ditos livros, com belas bibliotecas apresentando, em média,65 volumes. ~

Também-não há surpresa no que concerne à composiçãodessas bibliotecas e, por sua própria autoridade, daquelas dosdoutores. O direito, civil e çanônico, ocupa com facilidade o pri-meiro plano (54% dos volumes), possuindo não somente osdois Cotpus, mas um rico leque de comentários recentes, italia-nos no essencial,' bem como franceses do Midi, que testemu-nham a qualidade daquela cultura jurídica. Seguem-se-lhe as ou-tras disciplinas escolares, em função dos estudos e da especiali-zação do proprietário: á escolástica (filosofia e teologia) repre-senta 12% dos títulos, a medicina 8%; a gramática 5%. As obras

^religiosas constituíam apenas uma limitada seção (9%), aliás,t1 com uma preponderância do mais banal -< pelo menos a nossos

• i i ' •

17 - Pelo menos até 1444, data da fundação da universida-de de Catania, que permaneceria tendo importância se-cundária.

18- H. Bresc, Livre et sòcieté.em Sicile (£299-1499), Pa-lerme: 1971. -

126 127

Page 65: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

olhos -,quer dizer, livros litúrgicos e os Sermonários sobre a Bí-blia"e os autênticos tratados de espiritualidade. Enfim, emboraa Sicília^não tenha sido um dos grandes territórios do'humanis-mo italiano, os clássicos totalizaram, apesar de tudo, 187 exem-plares (8% do total), um percentual notável, essencialmente noséculo XV Em contrapartida, tanto a literatura recente (princi-palmente Dante), com 3% do total, qvjanto as obras técnicas(manuais de comércio), com 1% permaneceram manifestamen-te marginalizadas.

Outros estudos abarcando bibliotecas dá Itália do Norte,principalmente as bibliotecas de médicos, não trouxeram resul-tados fundamentalmente diferentes19. De fato, mais do quealém dos Alpes, observa-se, no século XV, um certo crescimentode coleções e uma pronta penetração dos clássicos e dos tex-tos humanistas; mas o grosso dessas bibliotecas - mais que 75%- permanecia constituído por obras de filosofia natural e de me-dicina; dito de outro modo, hoje como ontem, uma forte colo-ração latina, universitária e profissional continuava sendo, delonge, a característica maior dos livros de que dispunham os

• homens de saber.É inútil multiplicar os exemplos. Com algumas variações

regionais, as mesmas constatações se impunham por toda par-te, testemunhando, ao mesmo tempo, a unidade persistente dá'cultura erudita medieval e suas fortes tendências conservado-

ras.

3. DO MANUSCRITO AQ IMPRESSO

Teria sido abrandado esse conservadorismo, na segundametade do século XV, pela invenção da tipografia? Essa invefl-^cão, que transformou completamente, tanto em rapidez quanto'em quantidade, a circulação da informação escrita no seio daísociedade, foi realmente uma das revoluções técnicas mais im-jportantes da história da humanidade.Teria ela também conseÜ

19 - D. Nebbiai-Dalla Guarda, Liisres, patrimoÇne,professi&n: lês bibliotbèque de quelques médecins en Ita-lie (XIV etXVsiècle); o autor nos permitiu tomar conhe-cimento desse seu estudo ainda inédito.

128

guido fazer com que seus efeitos fossem imediatamente senti-dos no meio dos homens de saber da sociedade medieval?

Recordemos aqui - naturalmente deixando de lado p pro-blema dos antecedentes chineses - que é difícil apontar para ainvenção da tipografia uma data e um autor únicos, o célebre;Háns Gutenberg (c.1400 - c.1468) sendo provavelmente ape*nas o mais conhecido desses artesãos, geralmente: ourives deorigem, os quais, nos países renanos, no segundo terço do sécu-lo XV, conseguiram inaugurar unia nova técnica de impressãopor caracteres moveis gravados, os quais a moda das imagensxilográficas fazia, já há algum tempo, pressentir, quer pela pos-sibilidade material, quer pelo interessç prático.

Aquilo que importa para nosso propósito, é primeiramen-te sublinhar que a difusão da tipografia foi relativamente lenta.Os primeiros livros impressos dos quais foram conservados al-guns exemplares - a "Bíblia em 42 linhas", dita de Gutenberg; ôPsautíer de Mayence - datam dos anos 1450. Tratava-se entãode uma técnica essencialmente germânica, implantada em Ma-yence} Cologne, Estrasburgo, Bale. Além disso, durante uma ge-ração ainda-, através de toda a Europa, os impressores serão nagrande maioria os alemães. Praticamente, foi apenas em 1470que eles começaram a emigrar para além de suas fronteiras.Nessa época, apenas cinco ou seis tipografias funcionavam forada Alemanha, sendo que as únicas que prometiam umrcerto fu-turo eram de Veneza, onde Jean de Spire se estabeleceu em1469, e de Paris, onde Ulrich Gering de Gonstance c dois com-panheiros vieram instalar, em í 470, sua oficina próxima da Sor-bonne (senão no próprio interior do colégio) por solicitação dedois socii dçsta, estando tanto um como outro fortemente im-pregnados pelo humanismo, o Saboiano GuUlaume Rchet e, daBasiléia, Jean Heynlin.

Ò decênio Í471-1480 viu a imprensa se multiplicar na Ale-manha .(em 26 localidades novas, tomando conta também da

i Suíça e dos Países Baixos), mas principalmente na Itália (44 loca-(lidades novas). Em compensação, a França, com sete ̂ implanta-^.ções em Albi, Angers, Caen^Lyon, Poitiers,Toulouse e Viena, a Pé*i nínsula Ibérica (oito implantações) e, de maneira surpreendei!-[lê, a Inglaterra (apenas quatro implantações: Londres,Westmins-

; St Alban's, Oxford) ainda não haviam entrado explicitairtcnte'•K

129

Page 66: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

no movimento; elas farão isso, no caso das duas primeiras, entre1481 e 1500:28 novas implantações na França, 19 na PenínsulaIbérica...mas nenhuma na Inglaterra. A Alemanha (21 novas im-plantações) e Itália (26) conservavam, entretanto, a vanguarda,que aparece ainda mais nitidamente se considerarmos a quanti- >dade de livros produzidos. Avaliados pelos .historiadores em cer-ca de 27000 edições antes de 1500, correspondendo a mais dedez milhões de livros, tal produção provinha, ao menos em qua-tro quintos, da Itália (44%) e da Alemanha (35%); em seguida, vi- -nham 15% dê edições francesas, e os outros países da Europasimplesmente repartiam os 5% restantes. Se, no total, cerca de240 localidades européias haviam visto, em 1500, funcionar umaprensa de imprimir, o mapa da tipografia européia apresentavaainda lacunas espantosas (Bordeaux ou Montpellier na França,Cambridge ha Inglaterra) e, de qualquer modo, era necessário,para ser preciso, distinguir as localidades onde impressores iti-nerantes simplesmente haviam passado, deslocando-se com suaprensam seus caracteres, e cuja modesta atividade não fizera nas-cer uma produção regular, daquelas onde as oficinas de tipogra-fia se instalaram com atraso, dado que estas podiam se beneficiar ,dos capitais e dos clientes com segurança. No segundo caso, oúnico verdadeiramente importante, as grandes cidades alemãsde um lado,Veneza de outro, vinham imediatamente à frente; naFrança, foi Paris que, de longe, venceu, com uma produção trêsvezes maior do que aquela de Lyon20.

Mais ainda que a reprodução do livro impresso, é sua difu-1são que nos interessa aqui. Fjitre uma e outra, havia evidente-mente alguns desníveis. Podia-se importar livros alemães ou ita-lianos na França ou na Inglaterra para diminuir as fraquezas da ';,imprensa local. Ao contrário, a aparição da tipografia não termi-inou de uma vez com as atividades dos copistas de manuscritos; '*mesmo que a produção destes tenha sofrido inflexões por toda ̂parte e mais claramente após 1470, continuou-se a transcrever àlivros manuscritos até o início do século XVI. E, de qualquer mav|neira, os manuscritos mais antigos continuavam a ser utilizados |

^

française,

130

e a circular. Aqueles que possuíam belas coleções - sendo que,dentre eles, destacavam-se precisamente os homens de saber -tinham tendência a conservá-los e não substituí-los, a não serprogressivamente, pelos livros impressos. Estes, de fato, custa-vam menos, mas estamos- mal informados sobre o ritmo peran-te o-qual aconteceu o distanciamento entre manuscritos e1 im-pressos em termos de preços; não se pode esquecer que os pri-meiros livros impressos freqüentemente tiveram modestas tira-gens, por vezes da ordem de cem exemplares, e não eram entãonecessariamente tão bem comercializados e nem muito acessí-veis. -

Os estudos bem precisos fazem-nos pensar que, por voltade 1480, a parte da Impressão nas "bibliotecas do saber" france-sas não passava dos 6% e que foi apenas por volta de 1500 queela passou para mais de 50%. A evolução pareceu ter sido amesma por todo lado, anterior em dez ou quinze anos na Itália,mais lenta ainda na Inglaterra21.

Aliás, teriam sido Os homens de saber os principais clien-tes da nova invenção? Efetivamente, como se tem observado hátempos, os textos impressos do século XV foram, em sua graivde maioria, os textos "medievais" cujo mercado parecia assegu-rado. Mas não eram necessariamente esses os que tinham a pre-ferência das bibliotecas eruditas. Em primeiro lugar, encontram-se livros religiosos, que constituem quase a metade da produ-ção incunábula: tratava-se, de uma parte de Bíblias, por outrolado, livros litúrgicos (missais.breviários, livros de horas), enfim,tratados de espiritualidade, livros de devoção, vidas de santos,etc., em latim ou em língua vulgar. Outra categoria bem provi-da: a gramática; porém tratava-se de obras elementares (o Dona-to, o Doctrinate de Alexandre de Ville-Dieu, os Dísticos de Ca-tão, etc.) que eram dirigidos tanto aos alunos das escolas primá-rias quanto aos estudantes da faculdade de artes; eles puderamservir para a melhoria dos ensinamentos de base, não para a re-novação cultural das elites. Vinha finalmente a literatura profa-na, geralmente em língua vernácula: enciclopédias e florilégios,

21 - Vide C. Bozzolo, E. Ornato, "Lês bibliothèques entre lêmanuscrit et rimprltné", em Histoire dês biliothèquesfrançalses,tomo I, op. cit,p. 333-347.

131

Page 67: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

crônicas, versões mais ou menos modernizadas das canções degesta ou dos romances corteses, para uso, sem dúvida, de umpúblico aristocrático, que se aproximavam com obras decidida-mente populares, do gênero dos almanaques e outros "calendá-rios dos pastores"22.

Em compensação, os textos eruditos, dos quais existiam,sobretudo nas cidades universitárias, centenas de manuscritos,não tiveram a não ser elegantemente e com freqüência tardia- ,mente as honras da impressão. Nem as Sentenças de PedroLombardo, nem os grandes doutores da escolástica, de TomásdeAquino e Alberto, o Grande, até Gerson, foram impressos emParis antes de 1500; aquelas edições que lhes foram oferecidas,depois de 1480, vieram da Alemanha ou da Itália. Poder-se-ia di-zer o mesmo de Aristóteles ou dos Corpusé comentários de di-reito romano e canôniço. Os textos jurídicos, que ocupavamum tal lugar nas bibliotecas eruditas da Idade Média, pratica-mente não representam mais de 10% das edições incunábulas,produzidas principalmente em Lyon ou na Itália. Ou seja» foramos textos propriamente humanistas, quer dizer, os clássicos (la-tinos e, cada vez mais, os gregos) e as obras dê autores italianosrecentes que teriam sido os livros impressos mais procuradospelos letrados, inclusive na França ou na Inglaterra, porquêprecisamente os manuscritos lá eram raros. Os primeiros livroseditados na Sorbonrie, no prelo de Ulrich Gering (que teriasido aconselhado por Fichet e Heynlin) em 1470-1472, assina-lavam quase tudo desta categoria: Gering começou por um ma-nual italiano de arte epistolâr, aquele de Gasparin de Bergame, Âdepois ele editou Salluste, Cícero, Perse, Juvenal, etc., ao mês- 'mo tempo que os modernos (os Elegentiae de Lorenzo Valia ca Rhétorique do próprio Fichet). Mas deve-se recordar que,desde 1472, esse mesmo Gering deixara a Sorbonne e, tendotransferido sua oficina para a Rua Saint-Jacques, ele retornouabs textos universitários mais tradicionais e, sobretudo, àsobras de piedade23.

22 - Vide LFeb\T€,H.J.Martm,Z'«£p«rf«ort du livre,novsLedição, Paris: 1971, p. 351-365.23 - D. Coq, "tes incunables: testes ahciens, textesriouv«aux",emffísto/re de i'édftíonfrançaise,tomo I,op.cit., p. 203-227.

132

Em suma, que sé pode, acredito, concluir que, desde osprimeiros decênios de sua existência, a imprensa alargou consi-deravelmente o público da cultura escrita. Os meios populares,pelo menos urbanos, não se conservariam mais à parte do mun-do do livro; os oficiais subalternos (sargentos, notários, etc.), ossimples vigários tiveram, dali por diante, a possibilidade deconstituir para si próprios um embrião de biblioteca, ainda quefosse com apenas uma dezena de volumes. Vê-se, por todaparte, entre 1480 e 1530,multiplicárem-se essas "bibliotecas mí-nimas", de acordo com a expressão de Pierre Aquilon24. Alémdisso, a tipografia certamente permitiu um efetivo progressocultural nos meios aristocráticos. Vê-se então constituírem-sebelas bibliotecas, principalmente literárias e vernáculas. A isso

' deve-se evidentemente aliar o novo impulso então proporcio-nado às grandes bibliotecas principescas.

Mas, no que concerne aos homens de saber, colocando-seà parte, sem dúvida, uma elite de humanistas geralmente italia-nos estimulados por novas idéias e sempre curiosos de novostextos, não se percebe em que medida, antes de 1500, os pro-gressos do livros impresso modificaram as proporções ou acomposição das bibliotecas. Como sempre injusto e, ao mesmotempo, clarividente, Michelet apreendeu bem essa ambigüidadeinicial da imprensa: "Se nós publicamos a Antigüidade, nós pu-blicamos e republicamos bem de outro modo a Idade Média, so-bretudo, os livros de estudos, os resumos, as.sinopses, todo o en-sinamento de idiotices, os manuais dos confessores e dos casosde consciência; dez Nyder25 contjra uma Ilíada;para um Virgílio,vinte Fichet."26 '

Mais objetivamente, pode-se, sem dúvida, ver ali uma pro-' vá suplementar da força e da coerência da cultura letrada do fi-

24 - E Aquilon, "Petites et moyennes bibliothèques", emHtsMre dês bibliothèques fmnçaises, tomo I, op. cit., p.285-309.25 - Teólogo dominicano alemão (1380-1438), conhecidocomo autor deFornicarizís seu myrmeçia bonórum, queconsagrou longas passagens à bruxaria.26 - J. Michelet, Oeuvres completes, tomo VII, Paris: 1978,p. 85.

•F33

Page 68: VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média, Parte 1

nal da IdadeMédia. Apesar de seus limites e dos sinais bem per-ceptíveis de esclerose, ela seria ainda suficiente para criar aconsciência de si dos homens de saber, o que nos leva agora-ainvestigar a obra da sociedade de seu tempo. ,

segunda parte

O EXERCÍCIO DASCOMPETÊNCIAS

134 135