Veronica Stigger 2035

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    Veronica Stigger

    2035

    Sul

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    onstncia estava dormindo quando os oficiais

    chegaram ao prdio. Eles eram dois e vestiamcalas e coletes cinza-chumbo. Traziam

    consigo dois faces, um p de cabra e um

    civil. Este ltimo devia ter uns trinta e cinco

    anos e puxava um riquix. Tinha as botas surradas, as

    pestanas grossas e o bigode bem aparado. Usava um

    gorro preto e um longo poncho marrom, j bastante pudo

    (embora a primavera estivesse para comear, ainda se

    sentia o vento frio que vinha do sul). s cinco e meia da

    manh, um dos oficiais estacionou o civil e seu riquix

    num canto da calada, bem ao lado de uma antiga lixeira

    de metal, enquanto o outro, com o p de cabra, forava o

    primeiro porto de ao que dava acesso ao ptio de

    entrada do edifcio de Constncia. Eram dois os portesque deveriam ser vencidos. O primeiro permitia a

    passagem para um espao quadrado, parecido com uma

    jaula, limitado pelo segundo porto ao fundo, por uma

    grade do lado direito e, do lado esquerdo, por uma

    guarita h muito desocupada, de cerca de trs metros

    quadrados de rea, coberta por limo e fezes de pssaros.

    Estacionados o civil e seu riquix e aberta a primeirapassagem, os dois oficiais ingressaram na jaula e se

    puseram a forar juntos o grande cadeado do segundo

    porto. Um dos oficiais enfiou o p de cabra no meio do

    cadeado, e os dois juntos, com uma solenidade

    aparentemente incompatvel com a situao, se puseram

    C

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    a girar a ferramenta em sentido anti-horrio. Sem demora,

    o cadeado cedeu, e eles finalmente passaram para ojardim de entrada do edifcio. Com os faces, foram

    abrindo caminho entre a vegetao alta que, em alguns

    pontos, chegava altura do peito. Poucos minutos de

    percurso e estavam diante da porta do prdio: uma porta

    larga, alta, com um gasto friso de cobre que emoldurava

    um vidro totalmente trincado e coberto de fuligem. Um

    dos oficiais chutou o vidro, que se desfez em inmeros

    cacos e numa nuvem de poeira negra. Num dos cantos

    do saguo, um vaso exibia um galho magro, comprido e

    pipocado de pequenos fungos. Pedaos de folhas secas

    se espalhavam sobre um retalho de tecido ocre, desfiado

    e carcomido em suas extremidades, que fora depositado

    sobre o piso rachado. Em outro canto, jaziam uma mesa euma cadeira de madeira de lei, com letras, desenhos e

    traos abstratos riscados em suas superfcies. Ao centro,

    duas portas, tambm de madeira de lei e tambm

    riscadas em suas superfcies, deixavam entrever, por

    portinholas altura dos olhos, os dois elevadores que j

    no funcionavam fazia um bom tempo. Atrs da mesa e

    da cadeira, estava a escada que levava ao dcimo andar,onde moravam Constncia e seus pais.

    s seis em ponto, os oficiais pressionaram a campainha

    do apartamento de Constncia, que no soou. Eles

    pressionaram novamente e nada. Um dos oficiais bateu,

    ento, com o p de cabra na porta do apartamento, o

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    nico do andar. O barulho sbito e inesperado acordou a

    menina. Ainda entre sonhos, Constncia pensou quetalvez fosse a fada dos presentes. Seus pais lhe haviam

    contado que, quando eram crianas, recebiam, nas datas

    de seus aniversrios, o que chamavam de presentes. Na

    imaginao de Constncia, at que fazia sentido a fada

    aparecer para ela justo naquele dia em que completaria

    dez anos. Dez anos eram uma idade cheia, ela j era

    quase uma adolescente, quase uma adulta na verdade, os

    sapatos de sua me j lhe serviam bem, ela no precisava

    mais colocar tantos pedaos de suas roupas velhas nas

    pontas dos sapatos, ela merecia um presente, podia at

    ser um presente pequeno. Enquanto Constncia divagava

    deitada sobre o pano grosso de algodo que cobria o

    colcho velho e fininho, seu pai, assustado, foi atender aporta. Ele no acreditava mais na fada dos presentes e

    no tinha ideia de quem poderia ser. Com o ouvido direito

    encostado grossa porta de madeira, tambm de lei, ele

    perguntou quem era. Os oficiais responderam que eram

    oficiais e que estavam ali para levar Constncia. O pai

    queria saber que tipo de oficiais eles eram e para onde

    levariam Constncia, ao que os oficiais redarguiram queeram oficiais do governo e que tinham ordens para pegar

    Constncia e lev-la para tomar parte nas

    comemoraes. O pai queria saber que comemoraes

    eram essas de que eles falavam, e os oficiais disseram

    simplesmente que se tratava das grandes comemoraes.

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    O pai, sem entender, ficou em silncio. Tirou o ouvido da

    porta e comeou a andar para frente e para trs,enroscando os fios de seu bigode entre o polegar e o

    indicador. Ora ele fazia que ia voltar para o seu quarto,

    ora se dirigia para o cofre, onde a famlia guardava as

    chaves. Os oficiais, por seu turno, deram novas pancadas

    com o p de cabra na madeira de lei e pediram

    energicamente que o pai abrisse a porta seno eles

    teriam de arromb-la. Nisso, apareceu a me de

    Constncia com a chave da porta na mo. Ela se postou

    ao lado do marido, estendeu-lhe a chave e pediu-lhe,

    entre lgrimas, que ele abrisse a porta. O marido

    abraou-a forte, beijou-lhe o rosto e limpou suas

    lgrimas com os dedos, antes de pegar a chave de sua

    mo, fazendo um sinal com a cabea de que ele noqueria abrir a porta. Ele exps-lhe, a baixa voz, sua

    dvida sobre a verdadeira identidade daqueles homens:

    temia que eles no fossem oficiais ou, pior, que fossem

    de fato oficiais do governo. Para a mulher, se eles no

    fossem oficiais ou mesmo se fossem de fato oficiais do

    governo, j no importava mais, o melhor era abrir logo a

    porta. O pai ia argumentar, mas a mulher, com os olhosbrilhando, porque molhados das lgrimas, no lhe deu

    chance: apontou-lhe a porta com uma leve erguida de

    nariz. O marido repetiu o sinal negativo de cabea e

    escondeu a chave atrs das costas, como se pudesse,

    com esse gesto, impedir de uma vez por todas a abertura

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    da porta. A mulher no se mexeu, apenas o olhou e deu

    de ombros. Cruzou os braos e, num movimento lento ereiterado, esfregou a cabea em seu prprio ombro,

    como se quisesse coar a testa, mas, na verdade,

    tentando disfarar o choro que no conseguia conter. Os

    oficiais bateram e gritaram mais uma vez, exigindo a

    abertura da porta. O marido j no escondia mais a chave

    nas costas. Segurava-a na ponta dos dedos, olhando-a

    como se a contemplasse. Num gesto repentino, abriu a

    porta, e o casal, em suas esfarrapadas roupas de dormir,

    se viu subitamente cara a cara com os dois oficiais em

    vestes cinza-chumbo. Estes ltimos imediatamente

    corrigiram a postura e, empertigados, repetiram que

    haviam recebido ordens para conduzir Constncia s

    comemoraes. Um dos oficiais estendeu um papeltimbrado para os pais, que no o leram. O oficial devolveu

    o papel ao bolso e explicou que Constncia seria a

    atrao principal das comemoraes e que eles deveriam

    lev-la o quanto antes, porque, do contrrio, no haveria

    tempo para todos os preparativos, j que a festa

    comearia logo mais, s dez e meia da manh, no horrio

    exato em que Constncia havia nascido. Sem dar tempoaos pais para retrucarem, os oficiais foram logo

    perguntando pela menina. Constncia j estava de p,

    encostada no batente da porta de seu quarto, tentando

    ouvir a conversa que se passava do outro lado do longo

    corredor que separava os quartos da sala de estar e

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    jantar, esta ltima perto de onde se achavam os oficiais e

    seus pais. O pai e a me de Constncia no se moviam.Eles no falavam e, vez ou outra, trocavam olhares entre

    si. Diante da falta de reao dos pais, os oficiais, num

    tom seco e determinado, mandaram que Constncia

    fosse apresentada a eles naquele exato momento. Do

    contrrio, eles seriam obrigados a tomar certas atitudes. A

    menina, que ouvira falarem seu nome, saiu de mansinho

    de seu quarto e se dirigiu, de ps descalos, para a porta

    de entrada, fazendo o percurso com as costas

    encostadas contra a parede. Ao chegar l, parou em p

    entre seu pai e sua me e lhes deu as mos, olhando de

    soslaio para os oficiais. Estes, no momento em que a

    viram, soltaram um suspiro de alvio. Um dos oficiais

    disse ao companheiro que descesse e trouxesse o civil. Ocompanheiro saiu e o outro oficial ficou parado na porta,

    com os braos cruzados contra o peito, olhando

    especulativamente para Constncia, que lhe devolvia o

    olhar sem piscar. Os pais da menina tambm olhavam

    para o oficial, mas este no parecia interessado neles,

    continuava a admirar Constncia, ora contraindo os olhos,

    ora abaixando-se e aproximando seu rosto do rosto damenina, como se buscasse v-la melhor. O pai soltou a

    mo de Constncia e comeou a acariciar seus cabelos,

    enredando seus dedos nos fios longos e embaraados.

    De sbito, ele a pegou no colo e deu-lhe um beijo

    estalado na bochecha, enquanto Constncia mantinha

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    seus olhos fixos no oficial. A me tomou a filha dos

    braos do marido e a abraou forte, escondendo acabea entre os cabelos da garota. Nisso, chegou o outro

    oficial trazendo o civil. Os dois estavam sem flego,

    porque haviam subido os dez lances de escada correndo.

    Ao ver os dois, o oficial que estava parado defronte

    porta de Constncia descruzou os braos e ordenou ao

    civil que colocasse a menina nas costas para que eles

    pudessem finalmente partir. O civil se aproximou da me

    de Constncia de cabea baixa. Parou sua frente, mas

    no fez meno de pegar a menina. Apenas ergueu os

    olhos, sem levantar a cabea, tentando divisar o rosto da

    mulher. A me, que olhava alternadamente para o marido,

    para o civil e para os oficiais, apertou a filha ainda mais

    contra o peito. Constncia, por sua vez, se desvencilhoudo abrao da me, esticou o brao esquerdo para a

    frente e passou os dedos de leve sobre o bigode do civil,

    que permanecia de cabea baixa. Ela tirou-lhe o gorro,

    liberando seus desgrenhados cachos castanhos, e

    beijou-lhe a testa. Ele ousou olh-la de frente e ela lhe

    estendeu os dois braos. O civil a tomou no colo, e a

    me, que resistiu por um instante antes de entreg-la, securvou para beijar os cabelos da menina, mas desistiu no

    caminho e apenas deixou-se passar as pontas dos dedos

    sobre os fios louros de Constncia.

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    Os dois oficiais estenderam as mos direitas para os pais

    de Constncia, que no corresponderam ao gesto; estesltimos estavam com os olhares voltados para a menina,

    que se afastava no colo do civil. Os oficiais ficaram

    alguns segundos com as mos erguidas, at que, sem

    jeito, colocaram-nas nos bolsos das calas, murmurando

    apenas um obrigado, e saram. Atrs deles, vinham o civil

    e Constncia. Aquele, antes de descer as escadas,

    acomodou a menina nas suas costas. O pai e a me

    ficaram na porta, abraados, observando a partida.

    Constncia abanou para os dois, de longe, antes de sumir

    no corredor de acesso s escadas. Chegando rua, o

    civil colocou a menina no riquix e se preparou para

    pux-la. Um dos oficiais deu a ela um chicote e disse-lhe

    que era para usar no civil. Ela olhou para o oficial, olhoupara o chicote e franziu a testa. O oficial repetiu que era

    preciso usar o chicote no civil. Ela franziu novamente a

    testa e objetou que o machucaria se fizesse aquilo. Os

    dois oficiais insistiram com a menina, dizendo, desta vez,

    na tentativa de persuadi-la, que o civil estava

    acostumado, que ele no iria sentir nada, que ela no

    precisava se preocupar. Mas ela no queria, ela preferiano fazer. Os oficiais insistiam, mas Constncia se

    recusava, cruzando os braos e sacudindo a cabea para

    os lados. Um dos oficiais lhe deu ento a justificativa

    derradeira: ela deveria fazer porque era parte das

    comemoraes, era preciso que ela chegasse ao parque,

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    onde seria a abertura e onde se dariam os dez dias de

    festa, aoitando o civil que a transportava no riquix. Masela queria saber o porqu disso, por que ela tinha que o

    aoitar se ela no queria faz-lo, e os oficiais lhe

    disseram que era porque era assim que tinha sido

    determinado pelos organizadores. Mesmo sem estar de

    todo convencida, Constncia pegou o chicote e o

    estalou, muito timidamente, contra as costas do civil. Os

    oficiais aprovaram sua ao com discreto balanar de

    suas cabeas e falaram que era isso mesmo que ela

    deveria fazer e que seria bom se ela o chicoteasse

    regularmente. Assim, eles se encaminharam ao parque.

    Saram da estreita rua onde ficava o prdio de Constncia

    e outros tantos iguais ao dela e dobraram na avenida

    larga. As ruas estavam silenciosas e praticamentedesertas. Eles cruzaram apenas por um grupo de trs

    pessoas, talvez uma famlia como a de Constncia, que

    procurava alguma coisa entre uma srie de sacos cheios

    e fechados que coloriam a calada em frente a um prdio

    largo, parecido com um caixote, que ocupava quase todo

    o quarteiro. Constncia espiou para dentro das portas

    escancaradas do prdio largo, de vidros quebrados, e viuum longo corredor ladeado por espaos menores

    divididos ao modo de baias. No centro deste corredor,

    notou ainda que havia escadas diferentes daquelas

    brancas, de mrmore, de seu prdio. Elas tinham

    ranhuras em seus degraus, e o corrimo parecia ser no

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    de metal dourado, como em seu edifcio, mas de um

    outro material, preto, esquisito. Constncia ia pedir paraentrar ali, para poder tocar naquele corrimo estranho,

    quando sua ateno foi desviada da escada para um

    parque que viu logo adiante. Ela perguntou aos oficiais se

    seria l, naquele parque, que aconteceriam as

    comemoraes. Os oficiais, que conversavam distrados,

    no entenderam imediatamente a que ela se referia, mas

    logo perceberam o engano da menina e, divertidos,

    deram tapinhas carinhosos em sua cabea e lhe disseram

    que lgico que aquele no era o parque das

    comemoraes, aquele era bem menor que o outro, ela

    no teria dvidas quando se aproximasse do parque

    certo. Eles dobraram em outra avenida direita, e

    Constncia pde ter uma viso mais prxima doparquinho. Para quem, como ela, nunca tinha sado rua,

    o parquinho parecia suficientemente imenso. Era bem

    maior que o jardim de entrada de seu prdio, que ela

    costumava ver da janela de seu quarto. A grama ali

    tambm estava muito alta, e as copas das rvores, de to

    cheias, se fundiam umas s outras. Um homem, coberto

    com um poncho semelhante ao do civil, dormia num dosbancos de madeira do parque. Meia dzia de livros

    servia-lhe de apoio para a cabea e, a seus ps, se

    empilhavam uns cinco ou seis sacos cheios e coloridos.

    Uma mulher, que caminhava no sentido contrrio ao

    deles, se aproximou do homem, chegou bem perto de seu

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    rosto, passou a mo em frente a seus olhos fechados e

    esperou um pouco, olhando-o sempre. O homemcontinuou dormindo. Ela, ento, cheirou um por um os

    sacos coloridos e levou o vermelho debaixo de seu brao

    direito. Os oficiais, Constncia e o civil seguiam sempre

    em frente. Os oficiais iam espanando a pontaps as

    folhas e a grossa camada de areia que se acumulava

    sobre a rua. O civil bufava um pouco, do esforo. E

    Constncia estava encantada com os prdios que ficavam

    em torno da avenida: eles eram grandes como o seu, mas

    no to grandes a ponto de terem um jardim. As portas

    de entrada costumavam ser na prpria calada. Mas, ao

    contrrio do seu prdio, as grades ali no se restringiam

    s suas entradas, havia grades tambm em cada uma das

    janelas e em cada uma das sacadas, desde os andaresmais baixos at os mais altos. Em alguns casos, umas

    grades se emendavam s outras, como se fossem galhos

    de plantas menores que se enroscam nos troncos das

    rvores maiores. Era bonito de se ver. Tinha janela que

    chegava a ter duas grades, uma por sobre a outra,

    imbricadas, fundidas. Eram grades escuras, grossas,

    algumas enferrujadas, outras, com grandes cadeadosaparentes. De longe, alguns prdios davam a Constncia

    a impresso de que haviam sido vestidos com uma meia

    que sua me tinha, e que fora de sua av, que era toda

    tramada como uma rede. Numa esquina, cruzou por eles

    um rapaz muito parecido com o civil: tambm de bigode

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    bem aparado, tambm de poncho e gorro, e tambm

    levando um riquix. Seu carrinho estava cheio de sacoscoloridos e de pedaos de madeira e papelo. Quando

    avistou o homem dormindo no parquinho, parou seu

    riquix e juntou os sacos coloridos restantes e os somou

    s suas prprias coisas. Os oficiais, Constncia e o civil

    continuavam em frente. Vez por outra, o civil parava para

    tomar flego, e os oficiais obrigavam a menina a

    chicote-lo com mais fora. Quando chegaram a outra

    esquina, desceram por uma rua esquerda. Constncia

    estava cada vez mais maravilhada com aquela sucesso

    de prdios, uns menores, outros maiores, que pareciam

    usar a meia de sua me. De vez em quando, passava por

    eles uma ou outra pessoa carregando um riquix, sempre

    atulhado de sacos, papelo e madeira. Como os quatro,essas pessoas caminhavam pelo meio da rua, deixando a

    calada livre para a poeira, as folhas secas, os galhos

    soltos, os sacos coloridos, os pedaos de papel, as fezes

    de pssaros, de cachorro e de gente. No fim da ladeira,

    eles dobraram mais uma vez e entraram em outra avenida.

    Um dos oficiais avisou que logo adiante era o parque.

    Constncia esticou o pescoo para a frente, mas noconseguiu v-lo. Chicoteou, ento, com fora as costas

    do civil. Chicoteou com tanta vontade que ele chegou a

    cair de joelhos no cho. Ela estalou novamente o chicote

    e, impaciente, disse-lhe para levantar porque ela queria

    ver o parque. O civil tentou apressar o passo, mas caiu

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    novamente de joelhos. Quando conseguia levantar,

    patinava no mesmo lugar. O peso do riquix, que pareciater aumentado ao longo do percurso, no lhe permitia

    fixar as botas no asfalto. Quanto mais a menina lhe

    aoitava as costas, mais ele derrapava. Depois de vrias

    tentativas de se erguer e continuar caminhando, ele

    respirou fundo, concentrou-se no que fazia e conseguiu

    firmar os ps no cho, recomeando a andar, lentamente.

    Alguns passos do civil depois e a menina avistou o

    parque. Tal qual os sacos plsticos que ela vira ao longo

    do trajeto, ele era colorido, vivo, luminoso. Assim que

    entraram na rua contgua, Constncia pde ver que o

    parque era realmente enorme. No se podia abarc-lo em

    sua totalidade num nico golpe de vista. Num de seus

    extremos, justamente por onde os quatro entravam, haviamuita luz e movimento. Tudo ali brilhava. Um carrossel,

    uma pequena montanha-russa, uma roda-gigante, um

    autochoque, um tiro ao alvo e outros brinquedos antigos

    estavam ligados, mas vazios. Ao lado, diante de uma

    srie de casinhas coloridas, com cartazes afixados,

    dezenas de mesas e cadeiras de metal se espalhavam

    pelo parque, tambm vazias. As rvores haviam sidopodadas, a grama estava baixa, e a rua, varrida.

    Constncia no sabia para onde olhar. Ela ria, feliz. Batia

    palmas e dava saltinhos no riquix. Quando eles

    chegaram entrada principal do parque, a menina se

    deslumbrou com a viso das infinitas bandeiras que se

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    agitavam ao longo da esplanada central. Eram bandeiras

    enormes, de vrias cores. Algumas apresentavam figurasreconhecveis em seus centros: quadrados, tringulos,

    crculos, retngulos, cruzes, estrelas, ferramentas etc.

    Outras traziam desenhos abstratos, sugestivos, difceis de

    decodificar. Grupos de oficiais acordavam homens e

    mulheres que dormiam nos bancos, fazendo-os levantar.

    No centro do parque, meia dzia de prdios construdos

    especialmente para as comemoraes chamavam aateno pela beleza, pela monumentalidade e pela

    transparncia. Eles eram completamente envidraados.

    Atravs deles, se viam as rvores. Eram rvores imensas,

    de tipos variados, com as copas aparadas e cheias de

    flores.

    Ao atingir o centro do parque, um dos oficiais tirouConstncia do riquix e a conduziu pela mo at o maior

    dos prdios envidraados, enquanto o outro amarrava o

    civil e seu veculo numa das rvores. Na porta do prdio,

    o oficial entregou a menina para duas mulheres jovens,

    morenas, com os cabelos presos numa grossa trana e

    vestidas com aventais brancos. Essas mulheres sorriram

    para Constncia e a levaram para uma sala toda branca,com um imenso sof encostado parede. A nica coisa

    colorida naquela sala era a banheira: dourada. As

    mulheres livraram Constncia de sua camisola surrada, de

    senhora, muito maior que ela, deixando-a nua. Duas

    outras mulheres, tambm morenas, tambm com os

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    cabelos presos em grossas tranas e tambm vestidas

    com aventais brancos, entraram na sala trazendo nasmos um balde de metal. Depositaram esse balde a trs

    passos da banheira dourada, longe do sof branco.

    Pegaram a camisola de Constncia e a colocaram dentro

    do balde. Uma das duas mulheres tirou do bolso do

    avental uma garrafinha de vidro e verteu um lquido

    transparente sobre a camisola. A outra pegou uma caixa

    de fsforos de dentro de seu bolso, riscou um e jogou-oacesso dentro do balde, que imediatamente se encheu de

    fogo. As quatro mulheres se aproximaram do fogo e

    ficaram admirando as chamas. Constncia se aproximou

    tambm e ficou olhando, indecisa, do balde para as

    mulheres e vice-versa. O fogo deu um tom dourado e

    quente sala branca. Quando a camisola terminou dearder, as quatro mulheres quebraram o silncio com uma

    salva de palmas. Constncia tambm bateu

    acanhadamente suas pequenas mos. Enquanto duas das

    mulheres saam da sala, as outras duas deram as mos a

    Constncia e a conduziram para perto da banheira. As

    duas primeiras retornaram, trazendo um pente, uma

    tesoura e um banquinho dourado. Elas fizeram Constnciasentar-se no banquinho, e uma delas pegou o pente e a

    tesoura e comeou a cortar os cabelos da menina. As

    outras trs ficaram em p, paradas lado a lado, com os

    braos cruzados atrs das costas, observando.

    Constncia, quando viu seus cabelos caindo no cho,

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    comeou a chorar. A mulher que lhe cortava as madeixas

    a consolou, com uma voz mansa, dizendo que ela noprecisava chorar, porque ela estava fazendo aquilo para o

    cabelo de Constncia ficar mais bonito, mais sedoso, ela

    ia gostar, podia ter certeza disso, agora era s se acalmar

    e ficar quietinha, que quanto mais quietinha ela ficasse

    mais rpido ela acabava com aquilo e mais rpido ela

    poderia ver o resultado. Constncia foi parando de chorar

    e apenas fungava vez ou outra quando a morena passavao pente para tentar tirar os ns que transformavam os fios

    dos cabelos da menina em ninhos. Assim que a morena

    terminou seu trabalho, pediu para que uma das outras trs

    mulheres trouxesse um espelho bem grande, para que

    Constncia pudesse se ver. Uma das trs saiu e voltou

    com o tal espelho, que deps defronte menina.

    Constncia se olhou e quase no se reconheceu. A

    imagem que via era de uma menina loira, de olhos claros,

    com os cabelos bem penteados e cortados na altura dos

    ombros, com uma franjinha que lhe chegava perto dos

    olhos. Ela primeiro sorriu para si mesma, depois abriu

    ainda mais o sorriso, que terminou numa gargalhada.

    Constncia ia se levantar e comear a danar quando amorena a interrompeu e lhe disse, sorrindo, que ela ainda

    no estava pronta. Nisso, duas das morenas, que haviam

    sado da sala sem que Constncia notasse, entraram com

    um outro balde de metal cheio de alguma coisa que

    fumegava. Elas viraram o lquido quente dentro da

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    banheira dourada, onde Constncia foi colocada.

    Constncia no era capaz de descrever a sua felicidadequando sentiu a gua quente em suas pernas. Ela sorria e

    jogava a gua no prprio rosto e mergulhava na banheira,

    divertindo-se. As quatro mulheres se revezavam em

    passar xampu e condicionador nos cabelos da menina e

    em esfregar o sabonete em cada parte de seu corpo.

    Constncia ria feliz, ria das ccegas que sentia, ria com a

    gua quente, ria at com o xampu entrando sem quererem seus olhos. Terminado o banho, as mulheres

    enrolaram a menina numa toalha que a cobria toda.

    Secaram-na, friccionando o tecido felpudo contra as

    pernas, os braos, a cabea e o tronco da menina.

    Secaram tambm seus cabelos com uma mquina que

    expelia vento quente. Vestiram-na com uma tnica

    branca, que lhe cobria os joelhos. Calaram-lhe sapatos

    de seu exato nmero, com figuras de homens e cavalos

    bordados sobre o cetim branco. Puseram-lhe uma coroa

    de flores sobre o cabelo cor de ouro e lhe trouxeram

    novamente o espelho. Constncia gostou muito do que

    viu. Ela ria e danava segurando as laterais da tnica.

    Duas das mulheres deram as mos a Constncia e alevaram em direo porta. As outras duas vinham atrs.

    Na porta daquele edifcio envidraado, as quatro mulheres

    e Constncia reencontraram os oficiais, que as

    esperavam com uma espcie de andor, carregado pelo

    civil, que agora vestia um poncho branco, e por mais trs

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    rapazes parecidos com ele. Um dos oficiais ergueu

    Constncia nos braos e a colocou na cadeira reservadaa ela. Quando os civis levantaram o andor, fogos de

    artifcio coloriram o cu de verde, vermelho e amarelo.

    Aqueles homens e mulheres, que antes dormiam nos

    bancos, chegaram mais perto para ver os fogos. Outros,

    que transportavam seus riquixs pelas ruas transversais,

    pararam por alguns instantes para se informar sobre o

    que acontecia. Uma ou outra pessoa que passava, clere,por ali, diminuiu um pouco o passo, curiosa. Os civis

    desfilaram ao longo do parque com Constncia sentada

    no andor: eles foram at o outro extremo e voltaram. Dez

    grupos de dez crianas cada todas de dez anos e

    tambm vestidas com tnicas brancas danavam em

    volta do andor de Constncia. A menina olhava para tudo

    e para todos, sorrindo. O grupo chegou ao centro do

    gramado do parque e parou ao redor de uma imensa

    almofada azul, sobre a qual os quatro civis depositaram

    Constncia, antes de sarem dali carregando o andor

    vazio. O primeiro civil, aquele que trouxera Constncia em

    seu riquix, virou-se para trs enquanto se afastava e,

    com um sorriso triste, admirou a menina. Quatro oficiaisse aproximaram de Constncia e a seguraram cada um

    por um de seus membros, erguendo-a no ar. Quatro

    outros homens, todos de branco, vestindo calas de

    pernas folgadas e camisas de mangas compridas, se

    aproximaram, a cavalo, dos quatro oficiais. Cada um dos

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    oficiais amarrou uma das pernas ou um dos braos de

    Constncia na sela de cada um dos cavalos. Constnciasentiu o calor do sol no rosto, fechou os olhos e sorriu

    mais uma vez. Os quatro cavaleiros, ao som do primeiro

    disparo de canho, comprimiram simultaneamente suas

    esporas contra as costelas dos cavalos que montavam

    fazendo-os disparar. Cada um correu para um lado,

    levando consigo um dos membros de Constncia e

    deixando um rastro vermelho sobre a grama verde. Otronco da menina pousou novamente sobre a grande

    almofada azul, na qual estavam bordadas, com um fio

    muito claro e vivo, pequenas estrelas brancas.

    Este livreto foi distribudo

    gratuitamente

    na internet

    em 9 de maio de 2012