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224 vestido e desfez a trança. Sacudiu o cabelo preto, ele caiu-lhe ondulado até meio das costas e descalçou os sapatos vermelhos. À minha frente eu deixara de ver uma mulher em tons de clássico, para ver a mesma mulher num tom mais ordinário, transformada num movimento mais rápido que o estalar dos dedos. Com os pés na pedra escura da calçada, os sapatos na mão, deixou no chão o casaco e desatou a correr. Como confessei antes, nos meus sonhos tenho comportamentos que não parecem meus. Foi tal e qual; pus- me a correr atrás dela. Afinal, era esse o seu objectivo, levar- me a algum lado. O senhor Francisco olhou para o relógio, um mostrador branco com números romanos a preto e debruado a dourado, algo antiquado, uma peça que poderia muito bem ter herdado de algum familiar falecido. – Não é minha intenção ocupar-vos muito tempo, já passa certamente do vosso horário de trabalho e os senhores terão coisas mais importantes para fazer. – Não se preocupe connosco – sossegou-o o Inspector. – Faz parte do nosso trabalho ouvir os que desapareceram até ao fim, demorem o tempo que demorarem. – Pode parecer que o que vos vou contar não faz parte da história... – Diga senhor Francisco – pediu o Inspector. O senhor Francisco sentou-se mais direito e respirou fundo. Não é hábito seu hesitar tanto. Tudo seria mais fácil se estivesse sozinho com o Inspector e com o Agente da Polícia, à moda antiga, com papel e caneta como únicas testemunhas. Mas as modernices instalaram naquela sala uma câmara, ela filmava a conversa e os seus gestos para depois difundi-los a um conjunto de pessoas preparadas para descodificar-lhes intenções que talvez, até ele, desconheça que existam dentro

vestido e desfez a trança. Sacudiu o cabelo preto, ele caiu-lhe … · 2021. 2. 3. · Sacudiu o cabelo preto, ele caiu-lhe ondulado até meio das costas e descalçou os sapatos

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Page 1: vestido e desfez a trança. Sacudiu o cabelo preto, ele caiu-lhe … · 2021. 2. 3. · Sacudiu o cabelo preto, ele caiu-lhe ondulado até meio das costas e descalçou os sapatos

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vestido e desfez a trança. Sacudiu o cabelo preto, ele caiu-lheondulado até meio das costas e descalçou os sapatosvermelhos. À minha frente eu deixara de ver uma mulher emtons de clássico, para ver a mesma mulher num tom maisordinário, transformada num movimento mais rápido que oestalar dos dedos. Com os pés na pedra escura da calçada, ossapatos na mão, deixou no chão o casaco e desatou a correr.Como confessei antes, nos meus sonhos tenhocomportamentos que não parecem meus. Foi tal e qual; pus-me a correr atrás dela. Afinal, era esse o seu objectivo, levar-me a algum lado.

O senhor Francisco olhou para o relógio, um mostradorbranco com números romanos a preto e debruado a dourado,algo antiquado, uma peça que poderia muito bem ter herdadode algum familiar falecido.

– Não é minha intenção ocupar-vos muito tempo, já passacertamente do vosso horário de trabalho e os senhores terãocoisas mais importantes para fazer.

– Não se preocupe connosco – sossegou-o o Inspector. –Faz parte do nosso trabalho ouvir os que desapareceram atéao fim, demorem o tempo que demorarem.

– Pode parecer que o que vos vou contar não faz parte dahistória...

– Diga senhor Francisco – pediu o Inspector.O senhor Francisco sentou-se mais direito e respirou

fundo. Não é hábito seu hesitar tanto. Tudo seria mais fácil seestivesse sozinho com o Inspector e com o Agente da Polícia, àmoda antiga, com papel e caneta como únicas testemunhas.Mas as modernices instalaram naquela sala uma câmara, elafilmava a conversa e os seus gestos para depois difundi-los aum conjunto de pessoas preparadas para descodificar-lhesintenções que talvez, até ele, desconheça que existam dentro