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Caros internautas, há pouco recebi um e-mail de um amigo me perguntando como tinha sido a viagem que fiz no feriado de Corpus Christi, navegando de Paranaguà à Angra dos Reis. Comecei escrevendo sem compromisso, como não quer nada, e quando vi já tinha preechido quatro páginas de aventuras. Achei pouco provável que alguém se interessasse por um relato tão longo e resolvi deletar tudo. Mas fiquei com pena, me empolguei tanto no texto que não quis jogá-lo fora. Dei continuidade à minha descrição: “Quem sabe um dia mando para os amigos” pensei. Pois é, assim nasceu esta narrativa. Confesso, fui inspirado por meus queridos amigos cearenses Valmir e Liliana, que moram em Portugal e, em todas sua viagens pela Europa, descrevem suas experiências para os amigos daqui do Brasil. Suas anotações são muito bem humoradas e sempre embarco junto com eles quando as leio. Meu barco é o veleiro Zimbros. Tem 36 pés e foi feito em Porto Alegre nos estaleiros Delta do amigo Ricardo Weber. O projeto é do argentino Nestor Volker, um campeão no que faz. É novo, a melhor marca que existe, e foi para a água no dia 2 de fevereiro de 2001, dia de Iemanjá. Seu porto de parada é o Iate Clube Porto Belo em Santa Catarina. Este ano completei 50 anos, e vou dizer pra vocês, não é uma data qualquer. Quando fiz 40 foi mais leve, mas meio século é muito mais que meio caminho andado. Sou pré-sênior, um gentil eufemismo do caro Hans Voswinckel. Então resolvi que não tinha mais tempo a perder, apesar de me achar um cara que nunca perdeu tempo. Mas a vida é breve e resolvi dar tratos à bola. "Vou me mandar" decidi. Mas não é bem assim, minhas responsabilidades ainda são muitas, e tenho um caminhão de coisas que dependem muito de mim. “Vou me mandar em etapas” foi uma solução mais salomônica, e então nasceu este projeto de partir com o Zimbros em direção ao norte, até onde não sei bem. A primeira etapa comecei no mês de maio indo de Porto Belo até Paranaguá, onde deixei o barco por cerca de 50 dias. A segunda fase da viagem vou descrever agora, procurando mostrar as emoções que passam pela cabeça de quem gosta de aventuras. Um monte de bobagens que poderiam ser ditas num papo de botequim. Mas como nem sempre posso estar sentado com quem quero nos botecos que gosto, achei que escrever seria uma boa idéia. Embora esta seja minha primeira experiência desde que fiz o exame de admissão para o Colégio Militar, há muito tempo. Por favor relevem os erros e as chatices. Por outro lado vocês podem estar testemunhando o nascimento de um novo escritor (Te cuida Hemingway!). Para minha história não ficar monótona resolvi dividi-la em partes. Então vamos lá para a primeira, embarquem comigo, tomem um dramin, respirem fundo e tenham muita paciência.... . . . . . Introdução

Viagem do Zimbros

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Caros internautas, há pouco recebi um e-mail de um amigo me perguntando como tinha sido a viagem que fiz no feriado de Corpus Christi, navegando de Paranaguà à Angra dos Reis. Comecei escrevendo sem compromisso, como não quer nada, e quando vi já tinha preechido quatro páginas de aventuras. Achei pouco provável que alguém se interessasse por um relato tão longo e resolvi deletar tudo. Mas fiquei com pena, me empolguei tanto no texto que não quis jogá-lo fora. Dei continuidade à minha descrição: “Quem sabe um dia mando para os amigos” pensei. Pois é, assim nasceu esta narrativa. Confesso, fui inspirado por meus queridos amigos cearenses Valmir e Liliana, que moram em Portugal e, em todas sua viagens pela Europa, descrevem suas experiências para os amigos daqui do Brasil. Suas anotações são muito bem humoradas e sempre embarco junto com eles quando as leio.

Meu barco é o veleiro Zimbros. Tem 36 pés e foi feito em Porto Alegre nos estaleiros Delta do amigo Ricardo Weber. O projeto é do argentino Nestor Volker, um campeão no que faz. É novo, a melhor marca que existe, e foi para a água no dia 2 de fevereiro de 2001, dia de Iemanjá. Seu porto de parada é o Iate Clube Porto Belo em Santa Catarina.

Este ano completei 50 anos, e vou dizer pra vocês, não é uma data qualquer. Quando fiz 40 foi mais leve, mas meio século é muito mais que meio caminho andado. Sou pré-sênior, um gentil eufemismo do caro Hans Voswinckel. Então resolvi que não tinha mais tempo a perder, apesar de me achar um cara que nunca perdeu tempo. Mas a vida é breve e resolvi dar tratos à bola. "Vou me mandar" decidi. Mas não é bem assim, minhas responsabilidades ainda são muitas, e tenho um caminhão de coisas que dependem muito de mim. “Vou me mandar em etapas” foi uma solução mais salomônica, e então nasceu este projeto de partir com o Zimbros em direção ao norte, até onde não sei bem. A primeira etapa comecei no mês de maio indo de Porto Belo até Paranaguá, onde deixei o barco por cerca de 50 dias.

A segunda fase da viagem vou descrever agora, procurando mostrar as emoções que passam pela cabeça de quem gosta de aventuras. Um monte de bobagens que poderiam ser ditas num papo de botequim. Mas como nem sempre posso estar sentado com quem quero nos botecos que gosto, achei que escrever seria uma boa idéia. Embora esta seja minha primeira experiência desde que fiz o exame de admissão para o Colégio Militar, há muito tempo. Por favor relevem os erros e as chatices. Por outro lado vocês podem estar testemunhando o nascimento de um novo escritor (Te cuida Hemingway!). Para minha história não ficar monótona resolvi dividi-la em partes. Então vamos lá para a primeira, embarquem comigo, tomem um dramin, respirem fundo e tenham muita paciência....

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Introdução

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O Zimbros ao alvorecer

Saímos de Paranaguá quarta feira dia 18 de junho, véspera do feriadão de Corpus Christi. Já era noite, estava frio, não ventava e uma neblina chata deixava o clima molhado. A bordo, Tarcisio, Alfredo e eu estávamos um pouco apreensivos. Eles são bons, entendem bem de vela e de mar, mas sair pela barra de Paranaguá à noite assusta um pouco. O barco tem um aparelho, o chart-plotter, um gps interligado a uma carta náutica que mostra a nossa posição em relação à costa e ao mar, mas não dá para confiar cegamente. Ficamos ligados até chegarmos ao mar aberto, lá pela meia noite. O encontro da maré enchente com as águas da baia causaram uma ondulação meio assustadora. Mas durou pouco, e logo alcançamos uma profundidade mais segura e as vagas ficaram mais regulares. Daí em diante tudo ficou tranqüilo e fui dormir. .

O medo é uma companhia sempre presente para quem navega, principalmente nas longas travessias. Dormimos, comemos e velejamos, muitas vezes sem visibilidade nenhuma. Sempre ouço histórias de containers abandonados ou de baleias dormindo que se chocam contra a embarcação. Se isto acontecer longe da costa, pode virar uma tragédia. Um casco rachado abaixo da linha d’água é um pesadelo para qualquer um que está no mar. É uma possibilidade remota, mas existe sempre um perigo no ar e o medo nos ajuda a ficarmos ligados. Não dá para vacilar com Netuno que ele te engole. Quem diz que não sente nada, ou esta mentindo ou nunca pensou direito nas conseqüências de uma pedra no seu caminho. .

Uma foto de satélite da Baia de Paranaguá

Parte 1

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Navegamos todo o dia e toda a noite seguinte sem ver terra, só mar, nuvens e pássaros. Na madrugada da segunda noite caiu uma chuva de matar. Foi no meu turno, lá pelas três da manhã. Eu estava mal vestido, senti muito frio, encharcado e com sono. Nestas horas a gente sempre se pergunta o que está fazendo ali e sente saudades no velho travesseiro. Mas foi uma breve recaída. Logo acordei Alfredo e passei o turno para ele.

Alfredo Vidal é um amigo do Rio Grande do Sul que mora em Curitiba há mais de 10 anos. Aprendeu a gostar do Atlético, de Santa Felicidade, dessas coisas, mas não esqueceu o chimarrão e o Internacional. É caladão e reservado, mas que fala as coisas certas na hora certa. Quando jovem, foi campeão de monotipos em Porto Alegre, quer dizer, sabe regular uma vela como ninguém. Bebe pouco, não fuma e não gosta de música alta. O coitado nem imaginava a nau de insensatos em que se foi se meter.

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Amanheceu e estávamos próximos da ilha São Sebastião no litoral paulista. Já tínhamos deixado pra trás Santos o interminável trecho da costa norte do Paraná. Resolvemos parar para abastecer mas chegamos ao posto flutuante de Ilha Bela muito cedo, estava fechado. Amarramos o barco junto ao seu costado e fomos dormir. Acordei com uma algaravia de piratas e pensei que estávamos sendo atacados, embora muitos séculos nos separem das visitas que os ingleses faziam por estas bandas. Alarme falso, eram só os frentistas do posto, uma tribo parecida em todo o lugar do mundo. Colocamos diesel, água e nos mandamos.

O café da manhã foi à bordo. Paramos num pequeno cais da prefeitura e Tarcísio desceu até a panificadora e trouxe uns pães quentes que levantaram nossa moral. O dia estava maravilhoso, soprava uma brisa sudeste, ideal para o nosso rumo. Coloquei um blues na vitrola, levantamos a grande, desenrolamos a genôa e miramos a bússola pra ponta da Juatinga, porta de entrada da Baia de Ilha Grande, nosso destino.

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Final da parte 01

O merecido descanso depois da chegada.

Alfredo leva o Zimbros com vento a favor

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Ilha Bela ficou para trás e, com um blues na vitrola, levantamos vela e rumamos para a Ponta da Juatinga, porta de entrada da Baia de Angra dos Reis, nosso destino naquela etapa da viagem. Ainda faltavam umas dez horas de navegação, mas a região é linda demais e decidimos conhecer algumas enseadas. Existem centenas delas por lá. Alfredo não concordou, estava com pressa e preferia chegar logo. Mas Tarcísio só queria velejar. Para mim tudo estava bom, já conhecia aqueles pedaços de paraíso e sabia que valia a pena gastar algumas horas pela região. Criou-se um impasse.

Diferenças a bordo ocorrem sempre, são normais e devem ser resolvidas com bom senso. Entretanto há momentos em que opiniões conflitantes viram uma encrenca sem fim. Não esqueça, você está numa casquinha de noz com outra pessoa te enchendo o saco, sem lugar para onde fugir, e é obrigado a ficar vendo a cara de quem também quer te jogar no mar. Certa vez convidei meu irmão e um amigo que não via há muito tempo para velejarmos em Ilha Grande. Ficamos uma semana naquele paraíso, mas foi um inferno e até hoje não me recuperei direito. O cara era um chato, tudo o que eu dizia ele argumentava ao contrário. Era um tipo "professor de Deus" e queria dar palpites em todos os assuntos. Só não o joguei no mar porquê era maior que eu. Velejar, muitas vezes, é conviver com forças adversas. E as humanas, às vezes, são muito mais difíceis que as naturais.

Em paz decimos ir para a Enseada da Fortaleza, próxima da Baia de Sítio Forte, famosa por suas marinas. Não estava longe, algumas milhas nos separavam do nosso destino. Velejávamos muito lentamente quando observei uma lancha enorme, uns 50 pés creio, vindo rápidamente em nossa direção, por boreste. Tínhamos a preferência por estarmos com vela, mas a aproximação parecia muito perigosa. Seguramente eles nos tinham avistado, apesar de parecer que não. Por via das dúvidas, fiz valer a lei do medo, desliguei o piloto automático e assumi o leme para manobrar se fosse necessário. O barco passou a uns 30 metros de nossa proa, erguendo uma sucessão de ondas que nos balançaram muito desconfortavelmente. Só ai o piloto virou para trás e olhou em nossa direção para ver o estrago que nos tinha feito. Este tipo de exibicionista mal educado infesta os mares de todo o Brasil. Muitos se acham os donos do pedaço, por conta do tamanho de sua conta bancária. O cretino deve ter ganho o dia contando para os amigos a sacanagem que fez conosco. Cada um vive suas emoções de acordo com sua natureza.

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Zimbros em Ilha Bela: pequena parada para comprar pão.

Parte 2

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A brisa ficou fraca, cerca de três nós, andávamos muito devagar e decidi apelar para o vento de porão. É um corte quando se liga o motor, o barulho tira um pouco da poesia, mas precisávamos ganhar terreno. Entramos na enseada da Fortaleza uma praia de ricos, no Município de Ubatuba, longe da Rio-Santos e, portanto, ainda bastante preservada. Nem sempre dinheiro e bom senso andam juntos, mas ali parece que deu certo. Lanchas apareceram com umas sereias tomando sol no convés e bebericando alguns drinques. Gosto de pensar que são elas é quem têm inveja de nós e que adorariam estar velejando conosco. Às vezes sonhar é tão bom.

Desde tempos remotos um perigo que assola todo nosso litoral é a ocupação desordenada dos terrenos costeiros. A ambição dos empresários, a ignorância dos moradores e a incapacidade das autoridades municipais em conter os excessos transformaram uma das costas mais bonitas do mundo em uma verdadeira favela. Quando mais bonito o lugar mais destrutiva é a ocupação. Em Santa Catarina o desmanche segue o rumo sul, a partir de Balneário Camboriú. Itapema, Meia Praia, Porto Belo, Bombas e Bombinhas foram totalmente arruinadas num período inferior à vinte anos. As praias de Quatro Ilhas, Mariscal, Canto Grande e Zimbros parecem ser as bolas da vez. O Caixa D'Aço, um dos lugares mais pitorescos do litoral catarinense, é um dos exemplos mais tristes de poluição. Infelizmente o mau gosto, a ganância e a incompetencia ainda são males comuns das nossas elites.

Prosseguimos em direção à Ilha Anchieta, poucas milhas ao norte. Nunca havia parado lá, é a segunda maior ilha do litoral norte de São Paulo. Por volta do século XVI era habitada pelos índios tupinambás, liderados pelo famoso cacique Cunhambebe. Hans Staden, Manoel da Nóbrega e o próprio José de Anchieta, protagonistas de grandes momentos da nossa história, viveram por ali. No decorrer de alguns séculos nela aportaram portugueses, ingleses, franceses, holandeses, escravos e até virou sede de uma vila em 1885, a “Freguesia do Senhor Bom Jesus da Ilha dos Porcos”. Alguns anos depois passou a chamar-se Ilha Anchieta, em homenagem ao famoso jesuíta. Em 1942, abrigou uma prisão que, dez anos depois, foi palco da mais sangrenta rebelião de nosso país até aquele momento. Muitos morreram e nem mesmo os tubarões que cercavam a ilha foram capazes de deter a fuga dos presos. Vejam vocês que a crise do nosso sistema carcerário não é de hoje. Atualmente o local abriga a administração do Parque Estadual da Ilha Anchieta e a sede do projeto Tamar.

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Fomontagem de um trecho do litoral norte paulista. Notem a quantidade de enseadas e baias.

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Era sábado, o mar estava cheio de navegadores de final de semana. Barcos de todos os tamanhos tomavam conta da paisagem. O engraçado era que ninguém cumprimentava ninguém. Havia um ar meio blasé entre os embarcados, assim do tipo não sei quem você é, portanto não me incomode que também sou importante. Isto não é comum entre os velejadores, nos cumprimentamos sempre e, se possível, trocamos algumas palavras amistosas. Somos uma tribo diferente, mais solidária. Mas as lanchas são maioria, afinal qualquer bobalhão pode ter uma. .

Vistas da Ilha Anchieta

Abri o bar lá pelas onze da manhã. É sempre uma hora muito aguardada pela tripulação. Procuro esperar até o meio dia, mas a ocasião pedia um drinque e seria bom para a moral da tropa, sobretudo a minha própria. Cerveja gelada combina com sábado no mar. Para falar a verdade combina com qualquer dia a bordo. Vi na carta náutica uma anotação feita por mim anos atrás sobre uma enseada muito pequena localizada a alguns minutos da nossa posição. Decido conferir e nos dirigimos para lá. Naquele momento ninguém sabia bem o que queria, nem eu mesmo. Mas valeu a pena, o lugar era realmente lindo: uma pequena praia com uma casinha de pescador e algumas palmeiras, coisa de fotografia. Só cabia um barco lá dentro e já estava ocupada por uma lancha. Resolvi me aproximar. Contudo, chegando mais perto vi que seria um risco pararmos muito próximo da outra embarcação. A correnteza estava forte e poderia nos jogar de encontro às pedras. Ficamos de fora, pouca coisa, uns 50 metros ao largo a não mais que quatro metros de profundidade. Para surpresa de todos joguei âncora e decidi que o almoço ia ser por lá mesmo. E o banho estava liberado.

Num barco existem muitos tipos de limitações. As principais são as de consumo de energia e de água. Os banhos em longas travessias devem ser super-regulados. Nada dessa história de ficar debaixo do chuveiro quente para relaxar. Lavar louça é outro exercício de economia. Deve-se tirar o grosso com água salgada e usar a doce só para enxaguar. O pior mesmo é o banho. O ideal é lavar-se com água do mar e depois, usando uma garrafa de plástico, destas de 1,5 litros, tirar o sal com a água doce. Cada tripulante tem direito a uma garrafada por dia. Com freqüencia dormimos salgados mesmo. As mulheres detestam essa parte. A esposa de um amigo me contou que toma banho escondida, enquanto ele dorme. Isto daria corte marcial sem direito a recurso, iria pra prancha mesmo.

O lugar onde paramos para almoçar era perfeito. "Chegamos Alfredo" disse a ele. Foi engraçado, todos rimos muito e a frase serviu de mote para o resto da viagem. Qualquer coisa boa que acontecia dizíamos: “chegamos Alfredo”. Em poucos minutos estávamos nadando. A água estava fria, mas maravilhosa, super-transparente, de um verde só encontrado naquelas latitudes. Era possível ver todo o costado submerso do barco.

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De repente acordo com uma balburdia dos diabos no convéns. Ouço o barulho da retranca indo e vindo ao sabor dos ventos e a correria da tripulação sobre minha cabeça. A cabine em que estava ficava logo embaixo do cockpit e funcionava com o uma caixa acústica. Qualquer batida ecoava como a bateria do Led Zeppelin sem melodia. Ainda de cuecas subi ao convés e vi um faina de baixa vela, enrola genôa, liga o motor, acelera. Era uma bagunça! Escureceu e o céu estava com uma cor chumbo assustadora, parecia que o mundo iria se acabar em instantes. Não adiantava perguntar nada pois eles nem deram pela minha presença. Mas aparentemente sabiam o que estavam fazendo. Então, decidi rápido, voltei pra cama com a determinação de reencontrar com meus doces sonhos. Nada de especial aconteu! Foram apenas os preparativos para aguardar uma tormenta que acabou não vindo. Umas das piores coisas que podem acontecer enquanto se veleja é ser surpreendido por uma tempestade. Já vivi esta experiência uma vez e, confesso, não gostei. Estava velejando com o Cordonazo, um Call 9.2, quando um vento sudoeste de uns 30 nós me atingiu, sem avisar, pela popa com todas as velas em cima. Perdi uma genôa e quebrei um dedo. Não consegui fazer o enrolador funcionar e a vela ficou batendo com a rajada. Rasgou-se como um trapo qualquer.

Quis segurá-la na mão e lembro-me do meu anular esquerdo fazendo um ângulo de 45º em relação à sua posição normal. Na hora do pânico nem senti a dor. Sem vacilar coloquei-o no lugar, assim como quem desentorta um garfo. Mas o medo, o tal medo que falei antes, é um sentimento maior que os outros, e a dor, simplesmente fica pequena frente à ele. Ainda bem que o barco era muito mais resistente que eu, e pude controlar a situação sem outros prejuízos. Improvisei uma tala para a mão e voltei para casa mais cedo. Ficar engessado por duas semanas foi o pior de tudo.

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Uma bela imagem feita pelo Tarcísio.

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Conferi se estava tudo ok, se o hélice estava no lugar, se o leme estava fixo, etc. Tarcísio mostrou mais um de seus talentos com uma bela macarronada ao molho de tudo que encontrou na cozinha, coisa de alquimista. A cerveja corria solta e a alegria tomou conta da tripulação. Foi um daqueles momentos que ficam para sempre. Mas ainda faltavam 60 milhas pela proa, ou seja aproximadamente dez horas de navegação até a Baia de Angra dos Reis. Era uma e meia da tarde, com muita preguiça decidimos partir. .

"Chegamos Alfredo": O Zimbros navega em águas tranquilas.

Final da parte 02

Já era noite quando voltei para meu turno no cockpit. A ponta da Juatinga demorava-nos à proa, parecia que o tempo não passava e o barco não progredia. Liguei o motor sob protestos do Tarcísio. Se dependesse dele só andaríamos a vela. Mas eu só queria chegar. A previsão era aportarmos em Parati, mas ficou tarde. Entrar à noite em um porto desconhecido com uma tripulação cansada teria muitos riscos. Os acidentes acontecem, na maior parte das vezes, na chegada nunca em mar aberto. Alfredo costuma dizer que adentrar uma barra à noite é como pousar um Jumbo numa pista molhada. Engano dele, é bem pior. Pedras e baixios não demarcados, assim como embarcações sem luzes de navegação, são problemas reais e freqüentes. Tem muito mané por esses mares, principalmente aos sábados. Vinícius estava certo quando afirmou que tudo acontece “por culpa dos sábados”. Veja que até de poesia deve se valer um capitão para estar em segurança. Estávamos cansados então decidimos pernoitar na Ilha da Cotia na Enseada de Parati-mirim. .

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A noite estava um breu, sem estrelas nem lua, quando finalmente vencemos a ponta da Juatinga. Ali as águas da Baia de Angra encontram-se com o mar aberto vindo do litoral paulista e a coisa ferve. Parece um caldeirão, perfeito para fazer neófitos enjoarem e nunca mais quererem entrar num barco. Mas o mar estava tranqüilo, exceto pela correnteza. Aumentei a rotação do motor dando mais força ao Zimbros. Ele reagiu bem e seguimos adiante. Agora tínhamos que navegar com atenção e vencer uma última ponta a bombordo. Parece que é sempre assim: quando temos pressa, as pontas sucedem-se infinitamente e nunca vemos as luzes do nosso porto. Estávamos no convés, Alfredo e eu, conversando fiado. Tarcísio não largava do seu novo brinquedo, o chart-plotter. Após vários minutos enfurnado lá dentro surgiu ele na gaiúta de acesso, cigarro na boca, dizendo que íamos passar a alguns metros de uma laje submersa. “Ok, confio no seu taco, mas se você estiver errado, prepare-se para morrer” respondi sem me mover do banco e sem manifestar qualquer emoção.

Tarcísio: o descanso do proeiro!

Terminamos de almoçar na Ilha Anchieta mas ainda faltavam 60 milhas para Parati, ou seja, aproximadamente umas dez horas de navegação. Recolhemos âncora e tomamos nosso rumo. Aconteceu que a cerveja e a macarronada do Tarcísio fizeram um efeito devastador na minha concentração. Um sono poderoso tomou conta de mim. Confesso que, pela primeira vez na viagem, usei da minha prerrogativa de comandante supremo a bordo e abandonei o cockpit aos cuidados dos marinheiros. Fui dormir sem culpa nenhuma. Esses caras são os tipos de companheiros que me inspiram total segurança. É como cochilar ao lado de um amigo que dirige seu carro numa estrada movimentada. Sono profundo, sonhos doces, que agradável sensação enquanto o barco seguia veloz entre as ondas. Ouvia apenas o barulho da água batendo no costado. É melhor que muito balanço de rede por ai. .

Parte 3

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Aquilo foi demais para o Alfredo. Ele detesta navegação noturna, acostumado a fazer regatas no Guaíba acha que nas profundezas do mar há sempre uma laje esperando por uma proa. “Vou dormir, boa noite a todos” disse com seu sotaque dos pampas e se mandou pra cama. Estranho o Alfredo, um colorado como ele deveria estar mais acostumado a sofrer. Na verdade tudo foi um teatro nosso. Tarcísio sabia o que estava fazendo e eu sabia que ele sabia. Por via das dúvidas dei uma conferida na telinha e vi que estávamos bem safos da pedra. Tudo sob controle. Tarcísio Mattos é uma figura rara de Floripa. Trabalha com fotografia e é o principal responsável por uma editora na cidade. Faz belos trabalhos e recentemente presenteou-me com um livro dele sobre a ponte Hercílio Luz. Nos momentos de lazer veleja seu pequeno barco Calufa pelas águas daquela ilha. Gosta de regatas e para ele vento de três nós é suficiente para velejar. “O que importa é o caminho, não o destino” filosofa citando um mandamento budista. Mas ele não tem nada de místico, tem os pés no chão, ou melhor, na proa de um barco adernado, seu lugar favorito.

Para quem vem do litoral paulista a enseada de Parati-mirim é acessada através de uma pequena passagem entre a Ilha Deserta e o continente. Parece seguro, mas as cartas náuticas trazem poucos detalhes desse trecho, e a eletrônica diz que existem pedras por ali. No momento da pressa não dava pra usar aquele atalho. Deveríamos passar por fora da ilha. Aumentaria nosso caminho muitas milhas. Há pouco o Tarcísio havia comentado que ouviu alguém dizer não sabia de onde, que a velocidade de encalhe para um veleiro poder dar marcha a ré e safar-se é 3,5 nós. Seria verdade? Decidi testar no ato. Jack Kerouak, o escritor beat, uma vez afirmou que só vale o que for vivido. Resolvi pagar pra ver e tocamos bem no meio da passagem a 3,5 nós de velocidade. "Seja o que Deus quiser" pensei. Ainda bem que Ele ajudou e deu certo! Só pra lembrar, Kerouak morreu cedo, vítima de suas próprias experiências com drogas e álcool. No mar o seguro morre de velho mas gosto de dar trabalho ao meu anjo da guarda.

Eram aproximadamente dez da noite quando soltamos âncora frente à Ilha da Cotia. Já conheica o lugar, um dos mais belos da terra. Era noite de lua nova, e mal podíamos distinguir o que nos cercava. Haviam alguns barcos e muitas luzes, aparentemente casas novas colocadas nas encostas da ilha e da baia. “Ocuparam meu paraíso” pensei.

Não existe nada melhor que chegar a um lugar seguro, tomar um Black Label com soda e gelo e relaxar. Bastam duas doses pra você alcançar o nirvana. Alguns amigos dizem que sexo é melhor. Talvez eles nunca tenham vivido a sensação desses momentos.

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A enseada de Parati-mirim é uma pequena baia ainda protegida da invasão imobiliária que atingiu o litoral cortado pela Rio-Santos. Suas águas são limpas e claras, não existe poluição por lá. À noite é possível contemplar um mar de ardentias brilhando na superfície. Ardentias são fosforescências marítimas que brilham à noite. São estrelas submersas num firmamento aquático. Aquele era um momento mágico, pra mim de felicidade atemporal. Acho que sempre vou estar à procura de emoções como aquelas. Cura todos os desconfortos de navegar e faz valer a pena não ter a alma pequena. Não é sempre que se pode testemunhar isso e sexo, vocês sabem, tem pelo menos uma vez por mês. .

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Finalmente amanheceu. Era domingo e acordamos lá pelas dez. O sol estava quente e a temperatura marcava 25º C. Perfeito! E a melhor surpresa estava bem na nossa frente. As luzes que eu imaginara ser de construções recentes eram na verdade a iluminação dos mastros de dezenas de veleiros fundeados na enseada. Contamos 28 barcos de todos os tamanhos, cores e nacionalidades. Poucas vezes eu havia visto tantos veleiros fora de um porto. Estar ali no meio daquele mar de aventureiros me fez parecer um pouco como eles.

Sou de Aquário, um signo do ar. Uma sala fechada para mim é uma prisão e sinto que a rotina é como uma doença que mata homeopaticamente. Nunca consigo ficar parado e sempre quero estar em lugares diferentes daqueles do meu dia a dia. Mas, apesar de tudo, meu cotidiano é comum, minhas idéias são banais e sou uma pessoa que já há muito tempo desistiu de mudar o mundo. Quando estou no mar, entretanto, me sinto diferente. Enfrentar desafios e vencer meus próprios medos, em certos momentos, fazem me sentir quase como um herói.

Depois do café da manhã, lá pelo meio dia, a brisa e o calor aumentaram, e a maioria dos barcos seguiu seu rumo. Nós também. Na saída um problema: o guincho da âncora não funcionava. Tive que puxá-la na mão mesmo. “Droga” resmungo alto sem muito razão. É mais que normal ter algo estragado a bordo. Tomamos as providências e, mais tarde, libertos, estávamos prontos para partir. Fizemos algumas fotos e nos despedimos da Cotia. O rumo era Parati.

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Final da parte 03

Uma das muitas pequenas praias próximas à Ilha da Cotia

Um belo barco ancorado na Enseada de Parati-mirim

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Ilha da Cotia

Ao deixar a Enseada de Parati Mirim, mostrei à tripulação o Saco de Mamanguá. Um braço de mar com cerca de mil metros de largura e que avança para dentro do continente no sentido nordeste-sudoeste por aproximadamente dez quilômetros. Cercado por elevações muito altas com mais de quinhentos metros de altura, é muito parecido com um fiorde norueguês, só que com mata atlântica e clima tropical. Belo e perigoso lugar. Quando sopra o oeste, a ventania encana no vale e desce o morro com força triplicada. Vira um “Deus nos acuda”. Diante de margens muito próximas fica muito fácil dar em terra. Já encalhei por ali anos atrás. “Toc-toc!” - bati na madeira e viramos o barco para fora do canal. O vento, porém estava fraco e Tarcísio queria velejar de qualquer jeito. Infelizmente não dava. Tínhamos ainda algumas horas até Parati e eu queria chegar cedo à marina, pois não conhecia o ancoradouro de lá. Ligamos o motor!

Na partida da baia observamos um barco pesqueiro fazendo arrastão. Estava acompanhado por dezenas de pássaros que se alimentam com a sobra dos peixes que escapam da rede. Uma cena para guardar na memória. Nesse momento entrou em cena a incrível erudição do nosso proeiro de bordo, o ornitólogo e grumete Tarcísio Mattos. “Dentre as aves que lutam por seu almoço, uma se destaca pelo tamanho e pela estratégia, a fragata”, explicou-nos ele. Negra, tem quase dois metros de envergadura e seu rabo parece uma longa tesoura. Durante o acasalamento os machos exibem uma bolsa de pele vermelha embaixo do papo. Segundo Tarcísio, este belo animal, devido à sua envergadura, jamais pousa na água, pois seria impossível para ele alçar vôo de novo. O que faz o sacana para se alimentar? Fácil: rouba o peixe das aves menores ao seu redor. Mas a luta é braba e ninguém entrega sem briga seu pão. Contemplamos um belo espetáculo, como um Discovery Chanell ao vivo e a cores.

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Tarcísio: proeiro, taifeiro, ornitólogo, fotógrafo e também navegador.

Parte 4

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Seguimos adiante, pois ainda tínhamos muito mar pela nossa proa. Deixamos esse belo cenário para trás e colocamos força avante no motor, com 2.500 rpm e sete nós de velocidade. O Zimbros deslizou como nunca por mares tranqüilos. Finalmente chegamos às águas frente à Parati. A vista da cidade para quem vem do mar é fascinante. A primeira impressão que vê o marinheiro é a Igreja Santa Rita cujo desenho barroco se destaca por entre o conjunto colonial da cidade, que foi fundada no século XVI. Por essas águas que navegamos passaram muito do ouro das Minas Gerais que ajudaram a abastecer a riqueza da Europa. Há quem afirme que a fortuna extraída daqueles sertões de cobiça ajudou a fazer a revolução industrial do velho continente. .

A cerveja corria solta há horas, e a nossa alegria transbordava. Descobri com os amigos do bar do Iate Clube Porto Belo, o Mar Criado, uma bebida alemã, maravilhosa e diferente, o jägermeister um destilado feito com ervas naturais. Não sei bem quais ingredientes fazem parte da sua receita, mas existem coisas que é melhor ignorar mesmo. Sirva bem gelado acompanhado de cerveja e aguarde o resultado. Como a curiosidade do nosso taifeiro Tarcísio não tem limites, ele resolveu incrementar o drinque e juntou os dois, jägermeister e cerveja, em um mesmo copo. Ficou uma delícia, com uma cor de cerveja preta e um gosto bastante exótico, meio amargo, meio doce. Infelizmente não posso descrever mais nada sobre o aperitivo porque, a partir de um determinado instante, não consegui me lembrar de mais nada. Seguíamos alegretes, observando e fazendo algumas imagens do belo casario da cidade, cada vez mais próximo. Mas estávamos ligados ao ecobatímetro, o aparelho que mede a nossa profundidade. Estava raso e podíamos encalhar se descuidássemos. Nosso calado, a distância entre a linha d’água e o final da quilha submersa, é de 1,70 metros, e estávamos no limite. Logo Alfredo gritou: “Comandante, estamos a um metro e oitenta... um metro e setenta... um metro e...”. O Zimbros deu uma parada brusca e, porra!, encalhou na lama! “Que merda, não podemos pagar um mico destes na frente de todos os saveiros de turistas que estão nos vendo” - falei nervoso. Eles tinham um calado bem menor que o nosso e estavam em um canal a bombordo de nós. No convés pude ver um bando de turistas dançando pagode. Outros tiravam fotos nossas. “Força à ré. Virar o rumo para trás, cacete!” gritei rápido. Forçamos a máquina acima do seu giro normal para tentar sair da enrascada. Deu certo e, em pouco, estávamos safos. Eu não havia dito que os erros acontecem na chegada?

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Parati: encalhamos com esta vista.

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Giramos 180º a proa e saímos daquele atoleiro. Alfredo nos mostrou os mastros do Paratii II e do Paratii, os dois veleiros de Amyr Klink, parados lado a lado, próximos à marina onde deveríamos ir. Não tinha como não ver o novo barco do nosso maior navegador. Tem quase cem pés, é o maior veleiro construído no Brasil. Seu mastro se destaca frente aos outros que estão na marina. É de fato um belo barco, parece um tanque de guerra com um design futurista. O que mais impressiona são o tamanho do casco e a altura de seus dois mastros Aerorig.

O Paratii parecia uma miniatura ao lado de seu irmão mais novo. Ambos estavam na marina que pertence ao próprio Amyr. Navegávamos ao lado do píer quando alguém me chamou do convés de um outro veleiro ancorado na marina. Não consegui distinguir quem era, mas parecia um caraíba amigo. Aproximamos mais e finalmente reconheci o Betinho do veleiro Odyssea, um brother de Curitiba que soltou suas amarras de Paranaguá e esta morando em Parati já há algum tempo.

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Nada como chegar a uma cidade “estrangeira” e encontrar um conhecido. Betinho que dominava bem o costume dos nativos, nos deu preciosas instruções para ancorarmos em segurança. Resolvemos parar no Recreio Das Caravelas, uma marina a bem ao lado e que pertence ao Aldo, um paulista também “exilado naqueles mares”.

A chegada à marina não foi sem problemas. Ao tentar pegar o cabo da bóia de amarração de proa com o croque, um gancho que pesca o cabo de dentro d’água, Alfredo não conseguiu segurá-lo. O veleiro estava muito veloz. Resultado: o croque partiu-se ao meio e ficou boiando bem na nossa frente. Fiquei furioso com a nossa barbeiragem. E o pior, feita bem na frente de todo mundo que estava no trapiche nos observando, inclusive o Betinho. Mas, no final, não foi nada grave, e alguns palavrões depois já estávamos devidamente presos em segurança no cais. Paramos ao lado do Vagabundo o belo veleiro do saudoso velejador Hélio Setti.

Pra variar, em minutos começamos uma nova festa! Betinho veio a bordo com a Tothi, sua namorada e nós abrimos todas as garrafas que ainda estavam intactas. Foi um grande momento. Nada como estar seguro em um cais e poder relaxar. Um dos maiores prazeres de quem chega do mar é poder tomar um banho de verdade, sem limitações de consumo. Sentir a água quente correr sem economia, usar xampu e sabonete e ficar sobre um chão que não balança. Renova a alma e o espírito! Após o banho vestimo-nos com roupas urbanas e fomos para a cidade, distante quinze reais de táxi. A noite estava apenas começando.

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O Paratii II parece um tanque de guerra.

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Parati hoje revive parte de seu passado glorioso, quando era um dos portos mais importante do país. Quase dois séculos de fartura ajudaram a construir um conjunto colonial que conseguiu sobreviver ao tempo e ao mau gosto. As construções históricas estão muito bem preservadas, mas hoje a fonte de renda é outra. Um turismo sofisticado é a grande vocação do município. Existem centenas de bons restaurantes, hotéis, bares, butiques e ateliês à disposição dos turistas. Mas não é para qualquer um, tem que ter grana, pois tudo é muito caro. Mas o melhor da cidade é sua localização. Entre Rio e São Paulo, atrai o melhor das duas. Os cariocas chatos ficam em Angra e os paulistas babacas em Ubatuba. .

A festa foi boa e fomos dormir tarde. Acordamos cedo, era o último dia do feriadão e a tripulação precisava começar seu longo caminho de volta. Tarcísio e Alfredo conseguiram uma carona até São Paulo com um velejador que estava atracado na mesma marina que nós. Eu ainda fiquei mais dois dias na cidade acompanhando Betinho em seu cotidiano. Impressionei-me com a quantidade de velejadores vivendo a bordo. Muitos são ex-profissionais liberais que deixaram tudo de lado e escolheram outro modo de vida menos estressante. A maioria leva uma vida bem simples, longe de obsessões consumistas próprias das cidades maiores. É uma opção que eu talvez nunca tenha coragem de fazer. Sou um urbanóide feliz, gosto de cinema, de movimento e de futilidades. Mas tenho latente um lado marinheiro diletante. Outra surpresa que tive foi com o número de novas marinas que surgiram na região nos últimos anos. Há uma boa estrutura náutica a disposição daqueles que querem fazer qualquer tipo de reparo a bordo.

De Parati saí só em direção ao Porto Marina Bracuhy, 25 milhas no rumo de Angra dos Reis. Precisava fazer alguns consertos no Zimbros e lá a oferta de serviços é um pouco melhor. Além disso, seria mais fácil chegar ao Rio de Janeiro, de onde eu regressaria para casa. Parti ao amanhecer e não havia vento algum. Mas a sensação de estar sozinho no mar não tem preço. Foram três horas e meia de navegação a motor. Ao chegar à marina, deixei o Zimbros aos cuidados do amigo Ramon, outro “exilado” paranaense que vive lá.

Certa vez um amigo velejador, não recordo quem, disse que existem dois grandes momentos quando se navega: a hora da partida e da chegada. Parti e cheguei. Cansado, mas com a alma em paz, retornei para casa.

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Rua de Parati

Abastecendo a adega do Zimbros.

Final da parte 04

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Voltei à Angra dos Reis um mês depois de ter deixado o Zimbros no Porto Brachy e retomei meu projeto náutico. Fiquei quase todo o tempo na marina arrumando o que precisava ser consertado a bordo, e mal consegui terminar tudo que precisava. Troquei o guincho da âncora, arrumei o piloto automático, costurei velas e mais uma dezena de pequenas coisas que necessitavam de reparo. Labuta dura! É parte da terapia de todo navegador. Depois de tudo “rapidamente” revisado me preparei para partir. Muito em breve viria a me arrepender amargamente desta minha pressa.

Situado na Baia da Ribeira, Enseada Bracuí, o Porto Marina Bracuhy é um condomínio antigo, construído nos anos 70 creio. É o maior cais na área de Angra. O acesso por mar é fácil e sinalizado e seu pessoal é muito atencioso. Os veleiros predominam e protagonizam um belo espetáculo para quem chega ao caís.

Reencontrei o Ramon, um amigo de Curitiba que hoje mora na marina com a esposa Ana, uma gentil espanhola de Palma de Mallorca. Engenheiro mecânico, chutou o balde e há oito anos mora no Maloi, um confortável veleiro de 40 pés. Antes de Angra, trabalhou muito tempo no Iate do Capri. Ramon e Ana têm grandes planos, e talvez ano que vem eles soltem as amarras da nossa costa em direção ao Mediterrâneo. O mundo ficou pequeno para eles. .

Parte 5

Porto Marina Bracuhy

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Além do Porto Bracuhy, há muitas outras marinas em Angra, algumas novas em folha. No Estaleiro Verolme e na Usina Nuclear existem duas muito bem equipadas. Não estive lá, mas soube que são modernas e caras. Paguei um preço honesto no Bracuhy onde as mensalidades são bem razoáveis. Bem ao contrário do que acontece nas marinas do sul. Infelizmente o nosso litoral oferece poucos serviços à sua altura da sua imensa beleza. O Paraná e Santa Catarina ainda devem muito aos navegadores.

Angra dos Reis foi descoberta pelo português André Gonçalves no dia 6 de janeiro de 1502, Dia de Reis, daí o seu nome. Caminho obrigatório dos navegadores que iam para a Capitania de São Vicente, vivia infestada por todo tipo de gente ruim. Eram corsários e aventureiros de todas as nacionalidades. Mas a natureza exuberante soube recebê-los com compaixão. São centenas de ilhas, cerca de quatrocentas, uma para cada dia do ano, segundo os moradores. Nessa região a Serra do Mar aproxima-se da costa e seu incrível relevo serve de moldura para as águas transparentes da baia. Estive ali a primeira vez ainda garoto. Aluno do Colégio Militar, fiquei hospedado na Escola Naval, próximo à cidade. Lembro-me do fascínio que aquelas águas me causaram. Acostumado ao cinza de Guaratuba, foi em Angra que comecei a gostar do mar.

Voltando ao meu desafio, meu próximo passo seria até Vitória no Espírito Santo, com uma parada estratégica em Cabo Frio. Para essa perna da viagem eu teria a companhia do Betinho, o amigo paranaense que reencontrei ancorado em Parati. Navegador experiente, ele me inspirava bastante confiança para vencer o trecho de aproximadamente 350 milhas náuticas que nos esperava. A viagem parecia ser sem surpresas, já que nós dois já conhecíamos essa parte da costa brasileira. O único desafio seria a passagem pelo Cabo de São Tomé. Esperávamos ventos favoráveis. O serviço de meteorologia previa ventos fracos vindos do quadrante norte. “Vai ser um passeio” pensei. Triste engano!

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O Zimbros Saindo do Bracuhy

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Betinho se apresentou no cais de embarque no final da tarde de quarta-feira, dia 23 de julho. Abastecemos e nos dirigimos ao centro da cidade de Angra, rumo ao Pirata’s Mall, um shopping-center relativamente novo, localizado às margens da baia. O local tem uma estrutura interessante, com hotel, marina, heliporto e um cais de desembarque. Na alta temporada há um congestionamento de iates, helicópteros e ricos de todas as classes. A entrada do atracadouro é pequena e não comporta todo o movimento dos turistas que querem matar o vício das compras. Dizem até que saem no braço por uma vaga no píer. No deck do trapiche, mulheres de todos os preços, umas difíceis outras fáceis, saltos altos presos às frestas da madeira e a fragrância de caros perfumes misturados ao cheiro de merda que emana da baía. Um caos!

Porém a noite parecia calma para nós. A marinha estava deserta, não havia nenhum outro barco à vista. Ao desembarcar fomos recepcionados pelo segurança invocado que logo marcou seu território: “Aqui é só para desembarque e para compras rápidas. E tem mais, cuidado, se for deixar o barco aqui que os cara soltam os cabo”. Com todo tato explicamos que íamos ao supermercado e, em menos de uma hora daríamos o fora. Mas ele não pareceu convencido e não parava de falar nos nossos calcanhares. Cheguei a desligar os ouvidos para não me abalar com sua ladainha. Tudo bem, o cara era pago para desconfiar, mas ele podia ser um pouco menos insistente. Por um segundo tive saudades do Mailer, o nosso gerente linha dura lá do Iate Porto Belo. Os navegadores de Floripa, que costumam reclamar dele, deveriam fazer uma escala aqui em Angra para ver o que é tratamento.

Abastecer um barco para uma travessia de vários dias é uma arte que requer experiência. Como disse, uma das limitações em um veleiro é a de energia elétrica. A geladeira deve funcionar apenas com o motor ligado, ou no máximo algumas horas quando parados. Isto quer dizer que nem sempre é possível contar com alimentos que necessitam de refrigeração. Outra dificuldade é o espaço de armazenamento que é muito limitado. Na hora da compra é preciso ser prático para evitar excessos ou faltas. Verduras, legumes, massas, lentilhas e sopas em pacote e em latas são uma dieta legal. Tem-se que saber que, dependendo do tamanho do mar, não é possível cozinhar absolutamente nada. Cereais em barra e frutas são uma boa opção. Sucos também. Outro ponto importante é que os alimentos devem cozinhar rápido, porque o gás também não pode ser desperdiçado. Por garantia fomos a um Bob’s e nos empanturramos com um X-Tudo e muita batata frita antes de encarar a viagem.

Quando voltamos ao barco, às dez da noite, o segurança tinha sumido. Arrumamos tudo no lugar e nos preparamos para sair dali. O plano era jogar âncora num lugar mais calmo, dormir um pouco e partir ao amanhecer. Mas estávamos seguros no píer, assim resolvemos que íamos dormir lá mesmo. O pior que nos poderia acontecer era sermos acordados no meio do sono e obrigados a cair fora antes. Não deu outra, lá pelas tantas da madrugada, outro segurança nos chamou e, um pouco mais educadamente nos disse que não poderíamos amanhecer ali. Negociamos uma trégua e juramos que antes do dia clarear, estaríamos longe. Ganhamos algumas horas a mais de sono e lá pela cinco e meia da matina, soltamos nossas amarras do trapiche. Voltaríamos a pisar em terra somente em Cabo Frio.

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A partida é um momento litúrgico! Ficamos livres, dependentes apenas de nós mesmos e das forças da natureza. É uma hora grandiosa e apreensiva ao mesmo tempo. Escuro ainda, eu ia ao leme sonolento, circulando por entre bóias, barcos e lajes submersas. Mal podia distinguir as luzes de sinalização das outras da cidade e das embarcações ao redor. O cheiro do esgoto que cai na baia ardia nas narinas. Fazia frio e a noite estava estrelada. Sorte que nos agasalhamos. Tenho um gorro que é muito confortável nestas horas, pois protege as orelhas, as primeiras a ficarem geladas. Lentamente as luzes do alvorecer despontaram e o perfil das montanhas começou a aparecer no horizonte. O barulho distante das aves marinhas anunciaram que um novo dia ia raiar. Imaginar que o mundo começava a ferver ao nosso redor e que nós estávamos naquela paz incrível era impagável. Uma xícara de café quente na mão, Tom Jobim na caixa, acelerei o motor e o barco seguiu deliciosamente por entre o amanhecer. .

Final da parte 05

O Capitão Gancho

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Partimos de Angra dos Reis no frio amanhecer de um dia de inverno. O rumo era Vitória no Espírito Santo com uma escala para abastecimento em Cabo Frio. Tudo estava perfeito, mar calmo, temperatura boa e até um vento de noroeste soprava a favor, com rajadas de 15 a 20 nós. Lá pelas oito da manhã içamos vela, desligamos o motor e ficamos largados no cockpit tomando um solzinho de inverno. Nessas horas os assuntos vão aparecendo assim do nada e ficamos horas de papo furado, cada qual contando suas histórias de navegador.

Luis Alberto Macedo é paranaense e veleja há mais de vinte anos. Engenheiro civil, foi outro que não quis agüentar as instabilidades da nossa economia, fechou sua empresa e deu um chega pra lá nas chatices do dia a dia. Içou panos e deu um rumo novo para sua vida. Além da vela tem outras paixões como o vôo livre. Já foi tetra-campeão paranaense, campeão catarinense, sul americano entre outros títulos. Sempre com um sorriso no rosto, seus casos são inacreditáveis. Divirto-me muito com suas experiências e me sinto um amador frente à suas histórias.

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Parte 6

Betinho na chegada ao Cabo Frio

Prosseguíamos tranqüilos com um vento fraco de través. O barco andava lentamente, não tínhamos nenhuma pressa. A previsão de chegada em Cabo Frio seria lá pelas duas da madrugada, portanto, não fazia mal algum atrasarmos um pouco. Além de aventureiro, Betinho é também um excelente cozinheiro, e lá pelo meio dia, preparou um excelente macarrão à bolonhesa com refogado de legumes e vinho branco, perfeito! Pouco depois já conseguíamos visualizar o contorno do Rio de Janeiro. O Pão de Açúcar, o Corcovado e o Morro Dois Irmãos fazem um belo perfil, e sempre imagino o fascínio que causaram nos primeiros portugueses que ali chegaram.

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A região foi descoberta pelo português André Gonçalves, o mesmo de Angra, no dia 1º de janeiro de 1502. Julgando tratar-se da foz de um rio os navegadores deram-lhe o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro. A baia era habitada pelos tamoios que a chamavam Iguaá-mbará (enseada do rio mar) ou Niterói (água que se esconde). Mais tarde os invasores construíram uma casa onde hoje fica a praia do Flamengo que era chamada pelos indígenas de carioca (casa de branco), termo que acabou denominando os futuros moradores daquelas plagas. Os pobres indígenas nunca poderiam imaginar que, cinco séculos no futuro, os descendentes daqueles brancos voltariam a transformar aquele lugar numa terra selvagem.

O vento já havia rondado para leste e finalmente fixou-se em nordeste. No início era fraco, mas com o correr das horas foi ficando um pouco mais forte, algo em torno de 10 nós, nada assustador já que o mar permanecia tranqüilo. Normalmente o nordeste sopra forte até anoitecer, quando some completamente. Nossa previsão era de motorarmos durante uma noite calma e sem vento e, portanto não nos preocupamos muito em ajustar as velas.

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Em Angra mandei fazer alguns reparos na vela grande que teve que ser retirada do mastro. Ao colocá-la de volta, os responsáveis não repuseram os cabos de rizos que servem para diminuir a vela mestra em caso de mau tempo. Eu nunca saio ao mar sem essas precauções porque nunca sei o que Netuno pode aprontar. Rizar as velas é uma operação relativamente simples que pode ser executada por apenas um homem desde que todos os cabos estejam instalados. Mas não foi isto o que aconteceu.

Anoiteceu e nada do nordeste nos dar uma folga. Ao contrário, o vento aumentou para vinte nós, e o mar começou a ficar desencontrado. Fui para a proa liberar um pequeno cabo que poderia ser útil em outro lugar, abaixei a cabeça para retirá-lo e, no mesmo instante, fiquei mareado. Quase “chamei o Hugo”. Não existe sensação pior no mundo. É uma hora em que pode aparecer na sua frente a mais formosa dama querendo servir-lhe de inimagináveis carinhos e você rejeita! Não há Gisele Bünchem no mundo que o faça levantar sequer a pestana do olho esquerdo. É o cão! Deitei imediatamente no banco do cokpit e fiquei lá, nocauteado, a espera de melhorar.

O vento aumentou, o mar piorou, mas, graças a Deus, me senti um pouco melhor. Ainda tinha alguns neurônios funcionando para poder fazer alguma coisa. O barco seguia com muita dificuldade. Todos os elementos conspiravam contra. As ondas eram baixas e curtas, conhecidas como “quebra coco”. Adivinhe por quê? Era uma onda seguida da outra e a cada três ou quatro, o Zimbros batia de chapa na cava entre elas e parecia que iria partir-se ao meio, como um coco. Uma porrada de seis toneladas tem um estrondo assustador. Eu, calado no meu canto, rezava para que o barco agüentasse bem. Torcia para que o casco tivesse sido feito com cuidado, e não laminado numa segunda feira após uma derrota do Grêmio ou do Internacional, aqui entre nós, coisa não muito rara. O que parecia ser um passeio virou uma tortura.

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A melhor saída numa condição daquelas seria rizar as velas e arribar, ou seja, diminuir os panos e seguir em um rumo mais folgado em relação ao vento. Teríam só que mudar a proa para o alto mar e seguir com o vento batendo num ângulo de aproximadamente noventa graus em relação a nós. A pressão sobre as velas dá mais estabilidade ao barco que deixa de bater tanto. Mas cadê os cabos de rizo? Não estavam montados e seria muito perigoso tentar colocá-los no lugar com um mar daqueles. Era preciso ficar em pé no convés que balançava assustadoramente e correr o risco de ser jogado para dentro d’água. São muitas as ameaças para quem está no mar, e um das piores é o chamado mob, man over boat. Se um marinheiro cair na água com mar ruim, acenda uma vela para ele.

Diminuímos a rotação do motor para 1.800 giros. Passamos a andar a três nós, quase a velocidade de uma pessoa caminhando. E ficamos bem quietinhos de um jeito que doesse menos. Foram horas assim. O plano era chegarmos às duas da madrugada em Arraial do Cabo e estávamos ainda muito longe. Naquele momento, um minuto demorava um século. E no mar quando tudo está ruim a tendência é que piore ainda mais. Betinho entrou na cabine e lá de dentro me avisou que o barco estava fazendo água. “Porra, era só o que faltava” pensei. Desci para conferir e vi horrorizado que o porão estava cheio de água mesmo. Provei um pouco e constatei o pior, era água salgada, vinha de baixo. Se fosse água doce, seria bem menos grave. “Cacete, onde está o vazamento?” nos perguntamos em vão. Não era possível saber naquela hora, estava escuro e o barco balançava muito. Como as bombas de porão estavam funcionando, deixamos todos os paineiros - os pisos de madeira sobre as cavernas - abertos para melhor controlar a enchente e voltamos para cima, orando baixinho. “Queres aprender a rezar? Faça-te ao mar” diz um antigo adágio português..

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Aparentemente a água parou de entrar. Ficamos quietos no cockpit, o assunto acabou-se totalmente. Era impossível comer qualquer coisa, ir para dentro com o balanço do barco, seria pedir para enjoar na certa. Com mar ruim, as coisas mais simples viram um tormento. O xixi é um dos dramas. Não dá para descer para o banheiro. Ficar balançando o pirulito na beirada do barco? Pior ainda. A solução é segurar a vontade ou “fazer o serviço” ajoelhado no cockpit com o máximo de pontaria para evitar respingos indesejáveis. Depois basta jogar água em cima para garantir a limpeza. A bordo certas horas não têm glamour algum.

Os primeiros raios da aurora começaram a aparecer às quatro horas, mas o dia chegou somente duas horas depois. O vento continuava forte, de 20 a 25 nós, bem na proa. Já era possível ver a cara do mar, cinza com ondas altas e desencontradas. Por cima delas, uma espuma branca feita pela força do vento fazia uns desenhos abstratos que me lembraram a rebentação do mar lá de Guaratuba. “Socorro!” gritei para dentro. Mas nada havia a fazer, exceto esperar. Consegui ver, na posição de onze horas - cerca de 15º à bombordo na proa - o Boqueirão de Arraial do Cabo. Parecia perto, mas o chart-Plotter nos dizia que ainda faltavam muitas horas até lá. O tempo não passava...

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Nesse trecho do litoral, a costa fluminense corre no sentido leste-oeste. Vindo do mar por oeste, pode-se ver ao longe o farol da Ilha de Cabo Frio. Ele está situado no chamado Focinho do Cabo, uma ponta assustadora que dá de cara para os maus humores do Atlântico. À esquerda existe uma escarpa abrupta, de uns duzentos metros de altura, interrompida por uma estreita passagem, o Boqueirão. Em noites de mau tempo, com baixa visibilidade, muitas embarcações desviadas pela força dos ventos e das correntes, foram a pique batendo de encontro aos paredões da costa. É um lugar sinistro e belo ao mesmo tempo. .

O Farol da Ilha de Cabo Frio e o Foçinho do Cabo ao amanhecer

O Zimbros rumo ao Boqueirão. A melhor hora é a chegada.

À medida que nos aproximamos, protegidos pelo cabo, o mar ficou mais calmo e consegui acelerar um pouco mais o nosso motor. Rapidamente fomos a cinco, seis e até sete nós de velocidade. Parecia mentira! Vários barcos pescavam ao redor e a paisagem ficou familiar. Chegamos! O Boqueirão nos abriu suas portas, o abrigo a segurança. Surgiu um novo mundo, em nada parecido com o de antes. Um sol radiante, praias de areias brancas e uma água transparente e calma surgiram bem na nossa frente. A profundidade passou de cinqüenta metros para dois e trinta e pequenas ondas se quebraram na proa deixando à vista o fundo de areias bem clarinhas. Quanta diferença! Era o paraíso. Estávamos bêbados de cansaço e felizes. O corpo relaxou, e fomos tomados por uma sensação de dever cumprido.

Arraial do Cabo visto do mar parece uma cidade árabe, oriental. “Chegamos a Tanger” brinquei com Betinho, fantasiando com o milenar porto do Marrocos. “Alguém que vi de passagem numa cidade estrangeira, lembrou dos sonhos que eu tinha e esqueci sobre uma mesa...” tocava “Um gosto de sol” de Milton Nascimento. O momento era de poesia, lembrei-me de Ítalo Calvino e sua obra “As Cidades Invisíveis”, uma crônica que descreve as loucas fantasias que todo estrangeiro tem ao cruzar novas fronteiras. Quinhentos anos depois de Américo Vespúcio jogamos âncora na Praia dos Anjos, um nome por si cheio de beleza. Senti-me um herói. Mas ao checar o interior da cabine vi a água sobre o piso e lembrei que nossos problemas não tinham acabado ainda. Num barco eles nunca têm fim.

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Chegamos à Tanger: vista de Arraial do Cabo. Notem o burro e o guarda-mancebo quebrados.

Final da parte 06

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Depois de uma noite de cão vindos de Angra dos Reis, jogamos ferro frente à Praia dos Anjos em Arraial do Cabo. Estávamos cansados e tínhamos vencido as últimas 150 milhas em incríveis 27 horas, ou seja velocidade média abaixo de cinco nós, cerca de oito km/h. Fundeado nas águas calmas da baia e à luz do dia pude ver todos os estragos que o vento contra causou no Zimbros. Além da infiltração de água nos porões, o burro, uma alavanca metálica que segura a retranca, estava quebrado e o cabo de aço do guarda-mancebo soltara-se com os solavancos do mar. Parecia que tínhamos vindo de uma batalha. O bravo Zimbros causava pena com tantas avarias. Mas o pior de tudo era a inundação no porão. Por mais que nos esforçamos não conseguimos descobrir por onde a água entrava. Era um problema grave e de difícil solução.

Dizem que a melhor maneira de você encontrar algo que perdeu é procurar outra coisa. Assim resolvemos deixar para lá o problema e decidimos descansar. Tínhamos dormido pouco, nada mais que três horas durante a noite toda. Era sexta-feira, o dia estava lindo e podíamos ver o povo chegando à praia bem na nossa popa. Limpamos o barco, esgotamos toda a água do porão e Betinho fez um belo e merecido almoço. Ouvindo jazz abrimos umas cervejas, as primeiras em muitas horas, e relaxamos merecidamente. Tínhamos chegado e estávamos ancorados em lugar seguro, protegidos do vento nordeste que ainda soprava forte lá fora.

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Parte 7

Mais uma gracinha do Ramina

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Essa região de Arraial é, junto ao Cabo de São Tomé, o ponto em que o litoral brasileiro faz uma inflexão em direção ao sudoeste. Foi criada há milhões de anos atrás como resultado das correntes marítimas que incidiam sobre a costa. Este fluxo perpétuo e implacável depositou areia nos lugares mais rasos e bloqueou as águas dos rios dando origem às lagoas de hoje. Outra curiosidade importante que só acontece lá é o fenômeno da ressurgência. O encontro de duas grandes correntes marinhas, a Falkland, fria vinda uma do sul, e a Equatoriana, quente do norte, trás consigo grandes quantidades de nutrientes, formando um imenso nascedouro, responsável pela existência de numerosas espécies. Cabo Frio é uma das regiões mais piscosas do litoral brasileiro com uma fauna tanto do sul quanto do norte do país.

Como parte de uma esquadra portuguesa, Américo Vespúcio desembarcou em 1503 na Praia dos Anjos. O cabo tornou-se então um dos pontos mais importantes do sudeste da costa brasileira. Era um dos primeiros pontos a serem avistados pelos marinheiros, e isto fez com que aparecesse em todas as cartas marítimas importantes da América do Sul a partir do século XVI. Vespúcio, vocês conhecem, foi o cara que deu nome ao nosso continente. Sabem por quê? Ele era um falastrão, escrevia todas suas aventuras exagerando e fantasiando muito os fatos. Foi um dos meus precursores.

Na época a imprensa tinha acabado de ser inventada e a publicação destes relatos de viagem fazia o maior sucesso na Europa. Eram baratos e contavam aventuras alucinantes de um mundo utópico, povoado por monstros e sereias. Um sucesso editorial consumido avidamente pelo imaginário de um povo assolado pela ignorância, pela fome e pelas doenças. Assim este mundo distante e mítico passou a ser chamado pela plebe e pelos nobres como a terra do Américo Vespúcio. Daí para América foi um pulo. O historiador cearense Capistrano de Abreu disse com acerto que a origem do nosso nome está no exagero e na fanfarronice de um só homem: Vespúcio.

Levantamos âncora lá pelas duas da tarde e nos dirigimos a Cabo Frio, pouca milhas ao norte. Lá existe uma sub-sede do Iate Clube do Rio de Janeiro, excelente para reabastecer e fazer os reparos necessários e, o que era melhor, seguro pra dormir. Em menos de uma hora nos deparamos com a barra da Lagoa de Araruama, em cujo canal localiza-se a marina. Passei um rádio para o clube anunciando nossa chegada e pedindo permissão para atracarmos. Nem todos os navegadores têm este hábito, que considero essencial. Para mim, um principio básico de boas maneiras é pedir licença para entrar na casa dos outros. Apesar de toda etiqueta, ou até mesmo por causa dela, o cara que nos atendeu não captou bem a mensagem e ficou meio confuso. Sobretudo depois que eu perguntei qual seria o melhor bordo para parar e abastecer. Existe no canal uma correnteza muito forte e o vento não tinha acalmando ainda.

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Nessas condições seria muito delicado fazer uma aproximação com segurança. O cara respondeu como quem quer se livrar do abacaxi: “O posto já está fechado, mas vocês podem parar por estibordo”. “Ok, copiado” respondi. Quando subi para o convés, caiu minha ficha: “Que lado é estibordo mesmo Betinho?” perguntei abestalhado. Estibordo é um termo antigo, o mesmo que boreste. Designa o lado direito da embarcação. Foi substituído para que não se confundisse com bombordo. “Eles falam grego por aqui” pensei preocupado.

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Paramos no pequeno, mas confortável cais do iate clube por bombordo e, ao contrário do eu queria, o mesmo funcionário do rádio nos indicou um local longe do posto de abastecimento. Como eu estava em terreno alheio, fiquei quieto, joguei as amarras e, em instantes, o Zimbros estava preso em segurança no cais de madeira. Finalmente pisei em terra e tudo pareceu balançar sob meus pés. Agradeci ao ajudante, apresentei-me e ouvi estupefato: “Se vocês querem abastecer o posto ainda não fechou!” Não entendi nada! Primeiro porque ele nos disse que o posto já estava fechado e depois não nos permitiu parar ao lado da bomba. Deixei para lá, afinal o Rio para mim sempre foi outro país e lá eles realmente falam grego. Abastecemos o barco com as nossas garrafas de plástico, dessas de vinte litros cada, carregando de lá para cá todo o combustível que precisávamos. Cerca de 60 litros. .

Anoitecia rápido e fomos atrás do problema da entrada de água. Tivemos muito trabalho em desmontar todos os paineiros e móveis da cozinha para procurar de onde vinha tanto mar. Após várias horas de exercícios e inacreditáveis contorcionismos achei que tinha encontrado a razão: uma infiltração na saída do esgoto da pia da cozinha, supus. Sequei toda a umidade, limpei a superfície interna da válvula e passei um tubo inteiro de silicone na tubulação. Depois relaxei. Iríamos sair pela noite de Búzios e o melhor era que o vento começava a soprar no quadrante sul, ideal para nosso rumo. Armação de Búzios é um lugar charmoso. Pode-se achar lá todos os tipos de restaurantes, botecos e lojas. Povo bonito, tope da pirâmide! É possível ancorar frente à Praia dos Ossos, perto do centro agitado da cidade. Estive lá anos atrás com o Juca e o Marimba, mas é um local desconfortável, desprotegido do vento nordeste. Optamos por um táxi. Muitas surpresas aguardam um marinheiro carente: boa comida, bebida gelada, belas garotas e música sofisticada. Era tudo o que queríamos naquela hora.

Acordei mais cedo do que desejava. A luz do dia invadia minha cabine. Ouvi os passos do Betinho atabalhoado com as lides da partida. O vento tinha rondado para o quadrante sul. Tudo parecia estar a nosso favor. Abastecidos e reparados soltamos as amarras para Vitória. Disse adeus ao clube e pus força avante no motor..

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O Zimbros parado por bombordo no Iate de Cabo Frio

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Mas aquela ainda não era nossa hora. Já tínhamos vencido um bom pedaço e o barco continuou a fazer muita água. E não era pela saída do esgoto da cozinha como eu pensara. Mergulhei no mar para verificar se não havia nenhuma avaria no casco, mas nada! “O que fazer agora?” confesso que senti um desânimo de matar, uma puta vontade de desistir. Porém, no mar as crises não funcionam assim. A encrenca estava lá e era preciso resolvê-la sem dramas. Voltamos a Cabo Frio e Betinho decidiu: “Temos que achar esta droga de qualquer jeito”. E assim retornamos ao iate. Desmontaríamos o barco se fosse preciso.

Conformado, fui à cidade comprar materiais indispensáveis para quem sai no mar. Braçadeiras, mangueiras, uma bomba d’água sobressalente, impermeabilizantes, câmaras velhas de bicicleta e, importantíssimo, um pequeno espelho para que pudéssemos enxergar dentro das cavernas inacessíveis do barco. Tiro e queda! Betinho achou o vazamento. Era na junta do escapamento com o silencioso. A braçadeira que une os dois tinha se soltado com as pancadas que o barco levara na noite anterior. É por ali que circula a água que refrigera o motor. Como não estava bem presa, vazava com o motor ligado. O reparo foi fácil e em breve demos adeus ao clube pela segunda vez no mesmo dia. Eram duas e meia da tarde e perto de cento e setenta milhas nos separavam de Vitória.

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Final da parte 07

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Partimos de Cabo Frio na tarde de sábado, dia 26 de julho. Destino: Vitória no Espírito Santo. Os elementos estavam a nosso favor, temperatura 21º C, vento dez nós sudoeste e todas os problemas eliminados. Armamos as velas em asa de pombo, rumo 80º no piloto automático e partimos. Vitória estava a 170 milhas e a previsão de chegada era para a noite de domingo, se tudo desse certo.

Prosseguimos sem incidentes por todo o resto da tarde. Ao anoitecer o vento diminuiu e colocamos o motor em uma rotação baixa para ajudar na vela. Não sou o tipo de velejador purista, e não tenho pudores em usar esta artimanha para ganhar terreno. A noite era típica de inverno, sem lua. Com o céu limpo, era possível enxergar todo o firmamento em detalhes. Perfeito para identificar constelações como o Cruzeiro do Sul, as Três Marias e o Escorpião e seu movimento no céu ao transcorrer da noite. O mar também brilhava, a esteira deixada pelo Zimbros na água cintilava com a luz das ardentias.

Ao longe podíamos ver na posição de uma hora, cerca de 15º à boreste na proa, muitas luzes que pareciam ser de uma plataforma de petróleo. Havia alguns navios ao seu redor. Parecia estranho, pois não lembrávamos de ter visto uma construção naquele ponto da costa desde a última vez em que passamos por ali. Além do mais, parecia incomum uma encrenca daquelas estar trabalhando com extração de óleo a profundidades tão rasas. Apesar do mistério, prosseguimos tranqüilamente no rumo ao Cabo de São Tomé.

As nove da noite estávamos a 20 milhas no través de Macaé. À medida que nos aproximávamos das luzes, vimos que algo muito bizarro nos aguardava pela frente. Um dos navios, identificado com dificuldade, era um rebocador enorme e estava em movimento, passando do nosso boreste para bombordo, ou seja, navegava da direita para a esquerda em relação a nossa proa. A superestrutura estava a boreste do Zimbros.

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Parte 8

Diminuímos a marcha e tocamos pela popa do rebocador para passar entre ele e a plataforma, que parecia estacionada. Quando estávamos a algumas centenas de metros de ambos, no nosso rumo, conseguimos finalmente decifrar o enigma. Era uma porra de um rebocador transportando uma super plataforma de petróleo. Havia um cabo de aço monumental unindo as duas embarcações! Seu destino era Macaé. Um frio percorreu minha espinha e meu coração falhou uma batida. Íamos passar bem entre eles e aquele cabo iria cortar o mastro do Zimbros ao meio! Imediatamente mudamos o rumo e nos afastamos daqueles monumentos agourentos da Petrobrás. Foi um susto! .

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Desci imediatamente para dentro da cabine para tentar conferir as mensagens que ouvíamos pelo rádio. Mas nada! Era apenas um papo furado entre as embarcações. Distingui um sujeito que me pareceu ser um oficial. Sotaque carioca, papo malandro, ele procurava saber a hora de chegada a Macaé, para poder ir a terra com a tripulação, só isso. Fiquei furioso com o descaso daquela equipe de rebocadores! Reconheço que nós não estávamos certos. Todas as embarcações estavam iluminadas conforme o regulamento. Mas uma enorme operação de transporte de uma plataforma de petróleo em uma região repleta de pesqueiros sem ninguém da equipe de transporte fiscalizando o tráfego de outros barcos, era um descaso criminoso, para dizer o mínimo. Eles não tinham sequer nos visto e, se isto aconteceu, não tomaram o menor conhecimento da nossa presença. Cheguei a uma importante conclusão: no mar à noite, a menos que seja por alguma emergência, é imperativo manter-se afastado de qualquer luz que brilhe, não importa o tamanho nem o local. .

Excluindo-se este incidente o resto da travessia seguiu sem sustos. Às três horas da manhã cruzamos o Cabo de São Tomé com tempo bom e brisa sul. Uma hora depois, mudei o rumo para 38º direto para Vitória, 110 milhas à frente. Teríamos mais umas 15 horas de viagem. Às cinco da manhã cruzamos o paralelo 22. Fui dormir com os primeiros raios do domingo. Foi difícil pegar no sono, eu não parava de pensar naquele cabo aço partindo ao meio o mastro do Zimbros.

Acordei às oito da manhã, com Campos a vinte e poucas milhas pelo través. É uma parte da costa onde as profundidades são relativamente baixas, de dez a quinze metros. Com ventos fortes é comum a formação de ondas violentas, dificultando muito a navegação. Não era o nosso caso. O dia estava radiante e ventava uma fraca brisa sul. Ao meio dia, longe um grupo de nuvens negras anunciou uma pequena trovoadas com chuvas. Onde há chuva, há vento. Raios também.

Um das grandes preocupações de quem navega são os raios. Ninguém gosta de falar muito, mas imaginar uma descarga destas em cima de um barco é de arrepiar. Há muitas histórias sobre isso. Parece que o mar é um grande para-raio e as chances de sermos atingidos é remota. Dou três batidinhas na madeira e procuro afastar o pensamento para outro assunto.

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En el mar hay que tener los ojos muy abiertos

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Mas não estávamos em Paranaguá e sim em Vitória e o pessoal de terra nos ajudou com muita atenção. Betinho assumiu o controle do leme e dos cabos e estacionou o barco com muita precisão. Aprendi mais lição uma com ele: quando se laça a bóia cuja mão vai prender a proa, deve-se passa-la rapidamente pelo cabo de bordo e jogá-la de volta na água. Só então, de pé e confortavelmente no convés, faz-se o nó com uma laçada bem grande. Prende-se o cabo no cunho e pronto, o barco está seguro pela proa. Eu sempre tirava com muito esforço a bóia de dentro d’água, prendia no cunho da proa e fazia um nó bem próximo a ela. Era um desconforto tanto na hora de chegar como na hora de sair. .

Estacionamos ao lado de um veleiro cujo casco era muito semelhante ao do lendário Spray, do famoso navegador Joshua Slocum o primeiro homem a fazer em solitário a circunavegação do globo. Eram vinte horas e tínhamos percorrido 180 milhas desde Cabo Frio e 340 desde Angra. Estávamos cansados, mas realizados. Acordamos na segunda-feira cedo e começamos a preparar nossa volta para o final da tarde.

Contratei um garoto, funcionário do clube para ficar responsável pelo Zimbros na minha ausência. Barco é igual criança, exige atenção permanente. No almoço, desfrutamos uma deliciosa moqueca capixaba, uma redundância segundo eles, pois a autêntica moqueca só pode ser de lá. Arrumamos as malas e a poucos minutos do Iate, estávamos no Aeroporto. Ansiava voltar logo para casa, abraçar minha mulher e meus filhos. "Mar é morada de saudade" diz a música de Cesária Évora.

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Final da parte 08

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Vitória, madrugada de domingo, dia 17 de agosto. Um céu cinza chumbo que ameaçava cair sobre nós sem piedade e um vento sul forte, eram as nossas companhias no momento de largar amarras do Iate Clube. Aos poucos deixarmos para trás as águas abrigadas da baia e nos preparamos para agüentar o mau tempo que se desenhava sombrio. A bordo, a tripulação ainda não se acostumara a lidar com as velas e com o plotter. Eu tinha que ficar atento às lajes e aos baixios submersos. Foi um pouco tensa a saída, mas o astral estava bom.

O destino era Salvador e, dessa vez, me acompanhavam três novos velejadores: André, um amigão de Fortaleza, José Tadeu, outro amigo, e o Guto meu irmão que mora em Floripa. Era uma tripulação heterogênea – além de não conhecerem entre si, nunca tinham navegado no Zimbros. André e Tadeu são, como eu, arquitetos. Guto é, há anos, professor da Universidade de Santa Catarina. A equipe prometia já que todos estavam tinindo de vontade de se fazerem ao mar. Na véspera, dei algumas instruções básicas de segurança e de organização para que pudéssemos ter, nos próximos oito dias, a melhor convivência possível. Mas eles, naturalmente, nem prestaram atenção.

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Parte 9

André, Tadeu (na úncia vez que lavou louça) & Guto.

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Durante uma trovoada sempre evito por as mãos nas partes metálicas do barco. Alguns nem usam cintos de segurança para não ter que prendê-los nos estais de aço. Um velejador lá de Floripa me contou que foi pego certa vez por um raio numa tempestade de verão. No momento em que foi atingido, disse ele, um estrondo monstruoso o deixou atordoado. Apesar de não perder a consciência, ele não entendeu bem, no momento, o que havia se passado. Aos poucos foi colocando as idéias no lugar e, ao ver que todos os seus instrumentos eletrônicos estavam queimados, concluiu que tinha sido pego por um raio. O prejuízo foi grande, mas o nosso amigo viveu para contar a história. Betinho diz não temer trovoadas, mas por via das dúvidas, deixa sempre seu barco fundeado ao lado do Paratii II, que é equipado com pára-raios.

Aos poucos nos aproximamos da costa e foi possível distinguir novamente os contornos da Serra do Mar, que no Espírito Santo volta a se aproximar do litoral. Deixamos ao lado as enseadas de Guarapari e acertamos o piloto no rumo de Vitória. Ao anoitecer mergulhamos na confusão de luzes de sinalização da entrada do porto, que se confundia com a iluminação da cidade. Como eu fazia a navegação apenas pelo plotter, tive dificuldade em identificar o melhor caminho pela carta. Quando se aumenta a escala do aparelho, fica muito difícil achar detalhes, como as bóias, por exemplo. Quanto maior a escala, menor a área cartografada que aparece. Foi uma confusão navegar quase às cegas no meio de tantos navios e lajes. Aprendi mais uma lição: antes de entrar em algum porto é melhor marcar e nomear, com antecedência, todos os pontos e rotas importantes na carta eletrônica.

Pelo rádio comuniquei nossa chegada ao Iate. Era noite de domingo e o risco de não encontrar ninguém de serviço no clube era grande. Lembrei-me do Iate de Paranaguá aonde cheguei com a com a agravante de estar com a maré vazante muito forte. Foi um desastre. Com ajuda de um único funcionário para colocar o barco entre duas vagas muito estreitas, o Zimbros atravessou na correnteza e foi de encontro aos demais barcos que estavam parados no trapiche. Foi um prejuízo doloroso: o apoio do guarda-mancebo empenado, a borda falsa amassada e um risco enorme no costado, são cicatrizes que o Zimbros trás até hoje. Mas a maior culpa foi minha, que deveria ter abortado a aproximação em uma circunstância tão adversa.

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O Zimbros em Vitória ao lado de uma cópia do Spray.

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Mas foi um mal-estar passageiro e, rapidamente, fiquei bom de novo. Respirei fundo, voltei pra dentro da cabine e coloquei um cover de Ticket To Ride com o Charlie Garcia, a todo volume. Foi uma reviravolta nos ânimos! Em instantes começamos a cantar juntos e música nos passou a energia positiva que precisávamos. São curiosos e fascinantes esses altos e baixos que se vivem a bordo. Em certos momentos sente-se um tédio sem tamanho, no segundo seguinte, tudo muda, vem uma onda para balançar a monotonia e, finalmente, sente-se um prazer incrível por viver em uma montanha russa de emoções. Por essas e por muitas, costumo dizer que navegar é coisa para louco. .

Armamos uma asa de pombo e, quando chegamos ao mar aberto, pudemos ver o que nos esperava. O sul, com mais de vinte nós, roncava forte e as ondas eram enormes e desencontradas. Estávamos com toda a vela grande aberta e não demorou muito para que tivéssemos que rizá-la. Não foi uma operação fácil já que era nossa primeira manobra juntos. E, aqui para nós, falar em cabo do enrolador, escota de boreste, adriça da grande, amantilho do pau, cabo do rizo e querer ser compreendido de cara, não é tarefa fácil. Nem eu me entendo direito algumas vezes; é corda para enforcar todo um batalhão.

Para facilitar nossa operação, tivemos que virar o barco a favor do vento. Isto fez com que balançasse muito, com ondas entrando pela proa. A impressão era que o mar tinha aumentado muito, pois antes íamos com vento de popa, que é um bem mais confortável. De repente, uma onda perdida embarcou pela proa nos pegou em cheio no cockpit. Tive a impressão de ouvir uma risadinha de Netuno. Mas não pude reclamar. Subi rapidamente no convés, fui até o mastro e abaixei a vela grande até o segundo rizo. Que sufoco! E eram só oito e meia da manhã. Como eu estava sem impermeável, fiquei molhado até a raiz dos cabelos. A moral a bordo baixou rapidamente.

Fui para dentro da cabine checar o plotter e as cartas náuticas. Na saída de Vitória, no rumo de Abrolhos, há uma laje submersa bem perigosa e estávamos próximos a ela. Demorei muito para localizá-la na tela e, num instante, acabei enjoado. “Que merda, era só o que me faltava” pensei. Não deu outra: piorei de vez e mal tive tempo de correr para fora e devolver meu café da manhã aos peixes do litoral capixaba. Foi uma sensação horrível. A moral da tropa baixou de vez. Imagine o choque da tripulação ao ver seu capitão botando os bofes pra fora, assim logo de cara numa viagem de uma semana!

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Eram nove da manhã quando cruzamos o paralelo 20. Mais uma surpresa nos aguardava: a pouca distância pudemos ver à bombordo, jatos de água da respiração de uma enorme baleia e de seu filhote. Que belo espetáculo são os malabarismos que estes bichos fazem na superfície! Nunca os tinha visto tão próximos. São um pouco assustadores pelo seu tamanho, mas são dóceis. De julho a novembro esses animais, que podem chegar a 40 toneladas e medir 16 metros, visitam nosso litoral. Eles vêm da Antártica em busca de águas mais quentes para terem seus filhotes. A região de Abrolhos é a principal área de concentração de Jubartes no Atlântico Sul. Estima-se que aproximadamente 1.600 baleias migrem para lá todos os invernos. Foi uma boa surpresa descobrir que a maioria das baleias são baianas. .

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Três da tarde. As velas estavam reguladas e andávamos muito bem. Sete, oito, nove e até dez nós de velocidade! Mas o mar não dava folga, continuava ruim. E o dia? Parecia que o céu ia despencar sobre nossas cabeças, feio mesmo. Todos estavam com fome, mas ninguém tinha coragem para descer até a cozinha, com receio de enjoar. Sobrou para o capitão, o grande responsável pelo conforto da tripulação nas horas difíceis. .

Fui para baixo, aqueci dois estrogonofes de frango (desses prontos da Sadia) e preparei um arroz grudento. Sem sombra de dúvida, o melhor das redondezas pois ninguém reclamou! Todos comeram com prazer aqueles pratos bem quentinhos e revigorantes. “Tadeu, você preferiria estar aqui ou em uma fila de um restaurante lá em Santa Felicidade?” perguntei com bom humor. Os risos, a música e a comida quente fizeram a tripulação, aos poucos, retomar a fé em seu comandante.

Anoiteceu e seguíamos no mesmo ritmo, com vento e mar fortes. Um pouco mais organizados, conseguimos nos revezar em turnos já que a noite ia ser longa. Pude dormir um pouco, mesmo salgado, e me recuperei bem. Nossa idéia era chegar em Abrolhos ao amanhecer. Mas ao conferir o plotter, pude ver que nossa velocidade era maior que a prevista o que significava entrar durante a noite no arquipélago. Era tudo o que eu não queria. O Zimbros tem uma âncora de doze kg com quinze metros de corrente, ideais para as enseadas de Santa Catarina, mas não muito confiáveis nas profundidades baianas. Meu plano era pegar uma das bóias que existem ao norte da Siriba, uma das ilhas do arquipélago. Para isso tínhamos que ter luz do dia. Resolvi então, para diminuir a velocidade, enrolar toda a genoa. No entanto, por incrível que pareça, reduzimos nossa marcham muito pouco, de oito para sete nós, quase nada. Às três da manhã vimos as luzes do farol da Ilha de Santa Bárbara. Mas o tempo piorou, o vento cresceu e o mar ficou mais feio. “Caramba, que tribuzana” pensei com meus botões encharcados. Mas nada havia para se fazer exceto encarar o trem ruim. Aos poucos nos aproximamos do nosso destino. Chegar foi meio complicado, pois nosso plotter não tem uma carta detalhada do local. Amanhecia e o contorno das ilhas estava muito prejudicado pela escuridão. Abaixamos a vela grande, ligamos o motor e seguimos com muito cuidado, navegando entre recifes e baixios. Finalmente pudemos avistar as bóias e nos aproximamos com cautela. Apanhá-las foi outra dificuldade. Eram muito pesadas e não conseguimos tirá-las d’água. Tivemos que laçá-las como caubóis. Ainda bem que deu certo de primeira, pois eu já pensava em jogar âncora no lado norte da ilha principal.

As ondas batiam enfurecidas nos recifes à frente e na popa. Próximos a nós, sobre os rochedos da Siriba, um casco de veleiro naufragado nos mostrava que o lugar não era para brincadeiras. “Uma imagem não muito agradável para boas vindas” comentamos arrepiados. Pedi que descessem o bote e que alguém fosse até a bóia para colocar mais um cabo de amarração. Guto, de cuecas, rapidamente resolveu a situação. Estávamos seguros e já podíamos comemorar. Mas o mar, as ondas e o vento não encorajaram celebrações; estávamos muito cansados e tensos com a chegada.

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Tomamos um merecido banho quente, fizemos um pequeno lanche e nos abrigamos no calor de nossos cobertores. Antes, porém, liguei os alarmes de profundidade e de posição para dormir um pouco mais tranqüilo. Foram 170 milhas desde Vitória, completadas em 24 horas! Não posso afirmar que foi um passeio descontraído. Foi, isso sim, uma batalha ganha com valentia e resistência. A tripulação estava de parabéns!

Acordamos poucas horas mais tarde completamente refeitos da noite anterior. Finalmente chegamos aos Abrolhos e o melhor que podíamos fazer era aproveitar a estadia. Mas o dia não ajudava; estava nublado, úmido e com um vento incômodo. Arrumamos um pouco a baderna de bordo e fizemos uma bela macarronada. André mostrou que também sabe tudo de cozinha e fez uma salada de maionese muito boa, aprovada por todos. Uma ótima dica para se ter no barco são batatas. Cozidas, podem ser usadas em uma infinidade de pratos além de ficar armazenadas por dias sem prejuízo.

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André Grieser é de Fortaleza. Um amigo que conheci quando morei lá no começo dos anos 80. Hoje, apesar de morarmos em lados opostos do país, nunca perdemos contato. Quando soube das minhas aventuras mandou-me um e-mail oferecendo seus serviços. Topei na hora, pois André tem um grande talento em resolver problemas de toda ordem. Ele é um artesão de primeira. Há três anos começou a construir, no quintal de sua casa, um pequeno veleiro de 14 pés, todo em madeira. Além de todas essas qualidades André é um pensador de primeira ordem e sempre tem uma explicação inteligente para tudo. .

André Grieser: arquiteto, construtor de barcos, taifeiro, mecânico e livre pensador.

Depois dos mergulhos e do almoço, reuni o conselho para deliberamos sobre o nosso destino. Decidimos seguir até Santa Cruz de Cabrália, ao norte de Porto Seguro, cerca de cem milhas, dezesseis horas da nossa atual posição. Ao conferir as variações da maré para o dia seguinte, concluímos que deveríamos partir logo. É que a entrada da barra de Santo André, em Cabrália, teria que ser com maré alta, no máximo às dez da manhã. Portanto, não tínhamos muito tempo para usufruir as maravilhas do nosso porto. .

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Abrolhos foi visto pela primeira vez em 1503 pela expedição de Gonçalo Coelho, a mesma que descobriu Angra dos Reis. Junto com ele estava Américo Vespúcio que anotou no seu diário de bordo: "Quando te aproximares da terra, abre os olhos". O navegador queria chamar a atenção para uma área cheia de recifes de origem vulcânica, que chegam a ter quinze quilômetros de extensão por cinco de largura. Localizado à cerca de quarenta milhas da costa baiana, a área virou o primeiro parque nacional marinho do Brasil em 1983. Estive lá, pela primeira vez, poucos anos antes e não consegui esquecer a forte impressão que me causou a beleza do lugar. A transparência das águas chega a ter, nos bons dias, uma visibilidade acima dos dez metros.

São quatro as ilhas: Redonda, Siriba, Guarita e Sueste. É uma beleza inóspita sem árvores de qualquer espécie. Na Sueste existe uma única palmeira, parece que plantada a mão. Éramos três arquitetos à bordo e, naturalmente, tivemos uma discussão intelectual sobre a natureza daquela palmeira solitária... "É uma instalação minimalista à Mies van der Rohe", concluímos. Para quem não sabe, o grande Mies foi um dos inventores da arquitetura moderna e também quem definiu o conceito de que, em arte, menos é mais. Papo furado de arquiteto!

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Mas infelizmente tínhamos de partir. Arrumamos tudo a bordo para mais uma noite infernal. Fizemos algumas imagens e demos um melancólico adeus àquele paraíso. Soprava um sul mais brando que na véspera e o mar estava com uma cara um pouco mais simpática. Apesar de ninguém acreditar muito naquelas facilidades, nossa moral estava boa. Iríamos de encontro à terra avistada por Cabral cinco séculos antes. Muita coisa mudou desde então, mas estávamos felizes em poder navegar pelas águas da Bahia. Lamentavelmente essas emoções iriam durar pouco. .

Abrolhos: O farol da Ilha de Santa Bárbara visto do norte

Final da parte nove

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Los três mosqueteiros: Guto, eu e o André

Deixamos o Arquipélago de Abrolhos às quatro da tarde do dia 18 de agosto, com destino à barra de Santo André, próximo à Santa Cruz de Cabralia. O vento favorável entrava de alheta com dezoito nós de velocidade. O mar estava mais calmo que na véspera, tudo combinava com uma bela e confortável velejada.

O trajeto, aproximadamente 110 milhas, foi vencido com facilidade durante a noite. Nem precisamos dos turnos duplos, apenas um tripulante ficava de guarda para a eventualidade de se fazer alguma correção nas velas ou no leme. O piloto automático, um Autohelm 5000 era o nosso mais precioso tripulante, não incomodava, não enjoava e nem bebia muito.

Mas como não se deve elogiar muito, lá pelas tantas da manhã, no meu turno, o bicho parou de funcionar, perdendo totalmente o rumo e a utilidade. A partir daquele momento, tivemos que pilotar o Zimbros na mão grande mesmo. Navegar sem piloto é uma chatice, sobretudo à noite, quando temos apenas a bússola como referência para orientar nosso rumo. Mesmo com a tripulação completa, ficar duas horas no leme é uma das tarefas mais pesadas e entediantes a bordo.

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Parte 10

A terra nos apareceu com o amanhecer, estávamos ao sul do Arraial da Ajuda e nos esforçamos para ver o Monte Pascoal, a terra avistada pelos europeus quando chegaram aqui pela primeira vez. Mas há controvérsias sobre este assunto, pois é praticamente certo que os portugueses já haviam estado no Brasil antes. Um dos defensores desta tese é meu caro amigo Dalmo Viera Filho. Sua tese é a seguinte: Bartolomeu Dias, que morreu na expedição chefiada por Cabral, chegou ao Cabo da Boa Esperança fazendo o penoso caminho litorâneo, quase à vista da África. Era o percurso de todos os capitães portugueses deste os tempos do Infante, com ventos e correntes desfavoráveis. As viagens lusitanas tinham certa freqüência, mesmo durante reinados menos propensos às aventuras marítimas. Exatamente quando alcançaram o sul da África, abrindo o caminho para as Índias, este ritmo acabou, havendo um hiato de dez anos entre as expedições de Bartolomeu Dias e do grande Vasco da Gama. .

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Por quais rumos seguiu Vasco da Gama? Pelo caminho do mar, muito afastado da costa da África, a ponto de ter visto os mesmos sinais de terra encontrados por Cabral. Camões, o poeta maior da nossa língua, quase não fala de Cabral, mas diz sobre a singradura de Vasco da Gama e esses sinais: a terra do Brasil pressentida... Ele sabia do Brasil! Como? Quando teriam os portugueses aprendido que era mais fácil fugir do litoral africano? Muito provavelmente em expedições anteriores, realizadas logo depois do retorno de Bartolomeu Dias. Um dos comandantes a ter chegado por aqui, pode ter sido Gonçalo Coelho. Outro indício: quando Colombo morreu, depois de quatro viagens ao Caribe, ainda acreditava ter chegado ao oriente. Na carta de Caminha, que o Dalmo tem como livro de cabeceira, no original, os portugueses não levantam a menor suspeita sobre este assunto, sabiam perfeitamente que estavam em um mundo novo: desde quando?

Sem o piloto automático funcionando, equipamento totalmente dispensável no tempo dos descobrimentos, tivemos que por as mãos à obra e trabalhar em turnos. O dia nublado e chuvoso não nos permitiu avistar o Monte Pascoal, mas a navegação ainda era boa, pois o vento soprava à favor e o mar estava camarada. Além disso, faltavam apenas algumas horas para o nosso destino, a tranqüila Barra de Santo André, pouco ao norte de Santa Cruz de Cabrália. Estive ali há uns anos e me apaixonei pelo lugar, fazia tempo que queria retornar. Esperava rever o Jürgen, um velejador alemão que, dizem por lá, chegou em Cabrália junto com a frota de Cabral. Um bom amigo em um porto estrangeiro sempre é de grande ajuda.

A entrada da barra é muito justa, mas nós tínhamos alguns way-points de acesso e eu pensava que já conhecia as pedras do caminho. Por via das dúvidas, telefonei ao Jürgen para nos dar suporte. e para mais um prático de lá, Ninguém atendeu, tentei ainda um outro prático, mas nada! Chamei pelo rádio e não tive resposta. Porra, tínhamos que entrar àquela hora, pois a maré estava alta. Se não conseguíssemos, só dali a 12 horas. Decidi entrar. O mar estava tranqüilo e ao abrigo dos recifes ficou mais calmo ainda. Vagarosamente nos dirigimos para a barra do rio.

O litoral da Bahia é formado por recifes que correm paralelos à praia. Como o relevo é plano, os rios serpenteiam vagarosamente pela costa, desaguando finalmente no mar, entre a praia e o recifes. A demanda dessas barras, muito perigosa e pouco cartografada, requer prática e só deve ser tentada com maré alta e muita sabedoria.

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Estava perfeito para mim, marinheiro de primeira, prático experiente e sabichão do bairro. Mandei ver. E não deu outra: ao passar entre o recife e praia, poucos metros das lajes sobre as quais espumava as ondas, ouvimos aterrorizados um barulho dos infernos. O Zimbros tinha acabado de chocar-se com uma pedra submersa. A primeira pancada foi na quilha. Imediatamente virei o leme para dar meia volta e o barco girou com a quilha por sobre a laje e bateu com o leme, entortando-o. Fiquei controle de direção no meio das pedras! “Que barbeiragem!” pensei em desespero. Como a maré estava vazando, fomos levados para fora das lajes, ajudados também pelo motor. Consegui tirar o barco de cima das pedras, mas ainda sem poder controlar a direção. "Jogar âncora, jogar âncora" gritei branco de susto. Dessa vez meus anjos da guarda não colaboraram. .

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A Bahia é a terra de todos os santos e o meu orixá é Ogum, rei da guerra, da demanda e da luta. Herdei dele o tipo. Adoro o perigo e o movimento. Impaciente, não gosto de esperar e, muitas vezes, tomo decisões precipitadas. Mas tenho o corpo fechado, olho-grande não me pega. Todas as merdas que me acontecem são culpa minha mesmo. E ali estava uma bem grande. Pelo rádio pedi ajuda e fui prontamente atendido por uma escuna de passeio que veio em nossa ajuda. Rebocados, entramos no rio. A mim pareceu estar dentro de cortejo fúnebre. Em completa mudez e dor senti a rendição humilhante de ser rebocado. Foi um dos momentos mais difíceis da minha extensa carreira de glórias, meu currículo estava manchado! A poucas centenas de metros, barra adentro, existem alguns restaurantes em frente aos quais haviam alguns veleiros ancorados. Largamos o ferro por ali e, a mim, só faltou chorar.

Eu tinha um problema bem grande nas mãos, um problemão um leme quebrado! Nunca tinha me acontecido nada parecido. A moral à bordo desceu a profundidades abissais. Lembrei da minha primeira chegada ali em dezembro de 2000. Que diferença de ânimo! Sabe quando você faz uma burrada, daquelas injustificáveis, assim como bater com o carro no portão da garagem? Era dessa forma que eu estava me sentindo. Mais calmos, foram surgindo milhares de alternativas que eu poderia ter adotado: ir dez metros mais a boreste, esperar pelo prático, seguir direto para Salvador... Mas não tinha jeito, o dano estava feito e o negócio era administrar oprejuízo. O que poderia eu fazer naquele fim de mundo sem estrutura nenhuma?

Liguei para Porto Alegre e falei com o Ricardo Weber, o construtor do barco. Quando contei do acidente, ele não acreditou e ficou sem saber que solução me dar. Comecei a ficar preocupado de verdade! Em pouco tempo recebi várias ligações dos amigos de Porto Alegre, todos tentando me ajudar. Germano, Marcio, Alfredo... Pelo menos era um conforto saber da preocupação dos amigos. Foram muitas as sugestões, mas quem resolveu a charada foi mesmo o Ricardo. A solução era encalhar o Zimbros e tentar cortar a parte do leme que estava presa ao casco. Mas como é que eu iria conseguir fazer um barco de seis toneladas ficar em pé sobre sua quilha? Teria que improvisar uns cavaletes de madeira e apoiar seu costado neles para não cair de lado. Seria uma operação de muitos dias, para dizer o mínimo, e nós não tínhamos todo esse tempo disponível.

Depois de muitas idas e vindas sem solução, liguei para o Jürgen, consegui finalmente encontrá-lo em Salvador, e pedi a ele o nome de alguém que pudesse me ajudar nessa operação de resgate do pobre Zimbros. O incrédulo alemão me recomendou que procurasse o Carlindo, um nativo velejador, professor de vela, que morava nas redondezas. Emprestei uma bicicleta de uns guris e saí em busca do tal cara.

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Encontrei-o em casa, poucos minutos de onde estávamos ancorados. Contei-lhe o ocorrido e ele deu a solução no ato: Deveríamos encalhar o barco nas margens do canal durante a maré cheia. Com as adriças, uma em terra e outras n'água, escorar a proa e a popa e esperar a vazante para fazer o serviço. Simples não?E assim foi. Com ajuda do Carlindo, encalhamos o barco na maré cheia, paralelo à margem. Duas âncoras à bombordo seguravam a adriça da grande dentro do canal.

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Outra adriça fixava por boreste o barco em terra. Só nos restava esperar a maré vazante, prevista lá pelas dez da noite. Nesse intervalo fomos à Porto Seguro comprar o material necessário aos reparos. Fomos eu, meu irmão Guto e mais um amigo que apareceu para dar ajuda, o Jens, um velejador lá de Vitória. Mas o relógio corria contra nós, teríamos só até as seis da tarde para fazer todas as compras e já eram quatro, porra. “Rápido tripulação, vamos à luta” determinei esbaforido. .

A equipe funcionou bem e conseguimos tudo o que precisávamos: serras, parafusos, cabos-de-aço, chaves sobressalentes e um montão de tralhas extras. Mas só conseguimos chegar ao barco às dez da noite. Escuro, frio e cansados, aquela não seria uma boa hora para nossa tarefa. Faríamos o ataque na manhã seguinte. Cedo, já estávamos n'água, Guto, André e eu. A missão era cortar o leme ou morrer. Não foi difícil já que ele é feito de fibra e a parte que teve que ser retirada estava próxima ao costado. O pior mesmo foi o frio, mas conseguimos neutralizá-lo com algumas doses de conhaque. Atenção você que é do mar: tenha sempre uma garrafa de conhaque à bordo. É uma bebida relativamente barata, fácil de achar, e que desce bem sem gelo. Algumas doses depois terminamos a operação e só nos restava esperar a maré encher para ver se nosso conserto tinha funcionado. “Pé di pato, mangalô treis veis” pedi aos orixás. Valeram-me as orações, pois o leme voltou a girar normalmente. Passamos um estresse dos diabos, mas a tripulação mostrou seu valor. Tive, tenho e terei sempre que cumprimentar a equipe pela dedicação. Guto e André pela ação e Tadeu pela reflexão, sem eles acho que estaria até hoje naufragado naqueles pântanos de agonia. Finalmente a maré estava quase cheia e estávamos prontos para partir, não podíamos perder mais nem um minuto. Ficamos parados dois longos dias e tínhamos um bom caminho ainda até Salvador. Mas valeu o que aprendi: nunca mais entro em uma barra não sinalizada sem um prático local; e não confio nunca mais em way-points em lugares justos. E tem mais: os dias em Cabrália e em Santo André nos tinham mostrado um lado pouco visível aos passageiros mais apressados: a amizade e a atenção dos amigos e dos moradores locais.

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Final da parte 10

Barra de Santo André: o Zimbros encalhado.

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Foi com um grande alívio que deixamos para trás a Barra de Santo André. Nosso próximo objetivo era Itacaré, 130 milhas ao norte. Com ajuda do Carlindo, passamos de volta no trágico trecho da entrada, ao lado da famosa “baixinha”, a pedra em que batemos, no termo dos nativos. Era bem conhecida e nós, lamentavelmente, não fomos os primeiros nem os últimos a dar de cara com ela. Fui um banquete para aquela cruel ninfa. Na saída tivemos alguns pequenos problemas com a regulagem da roda de leme que ficou invertida, mas não era nada de tão grave. Ancoramos pouco afora dos recifes que cercam a praia, e André e Guto em um instante resolveram o problema. Enquanto esperava, preparei um almoço com lentilhas e paio. Tinha tudo para ficar bom, mas usei uma nova panela de pressão por tempo demais e, o que era para ser uma bela refeição, virou num grude dos demônios. Mas a tripulação comeu sem reclamar. .

Rumo nordeste, vento de través, mar um pouco mexido, lá fomos nós para Itacaré. Em pouco tempo escureceu e ai começou a nossa tortura em levar o barco sem o piloto automático. Como disse, quem está no leme à noite, tem apenas a bússola como referência para seguir o rumo. Deve-se fixar os olhos nela para não fugir muito do curso. É um saco! Organizamos-nos em turnos duplos de três horas. Neste período, os que estavam de plantão alternava-se no leme a cada meia hora. Foi uma solução que deu certo, pois cansava um pouco menos, mas ainda assim era chato demais. A noite escura e úmida me fez sentir em dobro a falta que fazia o meu querido piloto automático!

Parte 11

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O relógio demorava a andar e o tempo piorava. O vento aumentou, o mar engrossou e, como se não bastassem todos os contratempos, começou a chover. Costumo repetir que um barco a vela é a maneira mais cara de se viajar de terceira classe. Na madrugada fria, meu único consolo era quando acabava o meu turno e eu mergulhava direto no afago de meu cobertor quentinho. Mas meus sonhos não demoravam muito. A todo o momento Tadeu me chamava lá de fora para ver alguma coisa que ia errada. Era muito desconfortável levantar e ter que colocar a roupa de mau tempo com todo o quarto balançando. Casaco, calça e botas de borracha que pareciam ter dois números a menos m teórico em tudo, eu já aprendi muita coisa com ele. Inteligente, é capaz de discorrer com conhecimento e clareza sobre parabolóides hiperbólicos ou sobre a densidade dos sólidos por horas sem cansar.

Mas nunca peça a ele para lavar um prato sujo, que é exigir demais da sua capacidade. Como está com alguns quilinhos a mais, fica difícil para ele se manter de pé num convés em movimento. Lá pelas altas da madrugada, caindo de sono, fui verificar um problema com o spinaker que estava solto e batia nos estais. Com o balanço do barco, Zé Tadeu não conseguia equilibrar-se e caía sobre mim a todo o instante. Parecia uma pata choca e gorda! “Porra Natasha sai fora, caralho!” gritei furioso com ele. Ficou deliberado que, voltando para casa, ele vai entrar em uma academia de ginástica e cuidar um pouco mais de seu roliço corpinho.

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Quando amanheceu estávamos ainda a algumas horas da barra de Itacaré, a previsão de chegada seria lá pelas dez da manhã. Cansados e com sono, tivemos que nos conformar, mesmo porque não tinha como sair dali mesmo. Finalmente chegamos ao nosso destino. Tenho à bordo um guia náutico feito pelo Hélio Magalhães que é bem detalhado, mostrando inclusive como acessar aquela barra. Mas o mar estava feio mesmo, com ondas muito grandes, pois era raso com a profundidade menor que cinco metros. Com as recordações de Santo André ainda bem vivas na minha memória, decidi esperar que alguém viesse nos ajudar. Minutos pareceram horas naquele mar. Finalmente avistamos uma pequena embarcação de pescadores vindo em nossa direção. Foi um alívio. Chegou até onde estávamos e nos orientaram para segui-los. Acompanhamos de perto sua popa em direção à barra. As ondas aumentaram e a profundidade aumentou até que finalmente, a cerca de cinqüenta metros do farol, adentramos o abrigo da pequena baia. Parecia outro mundo, sem ondas e sem perigo, uma alegria! Jogamos âncora, próximo a outras embarcações, frente à vila dos pescadores.

Agradeci aos marinheiros que nos ajudaram e dei a eles uma boa recompensa financeira e algumas camisetas que sempre trago comigo para estas horas. Tadeu achou muito, mas lembrei o quanto eu teria que gastar se algo tivesse dado errado na entrada. Prefiro pagar pelo seguro a economizar com o perigo e ter que passar o que passei lá em Cabrália. Além do mais, tenho uma teoria segundo a qual nós turistas somos privilegiados, e devemos, sempre que possível, promover um pouco de distribuição de renda.

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Finalmente o sol apareceu com toda sua força, e pela primeira vez em toda a viagem pudemos relaxar de verdade. Abrimos o bar e mandamos ver os etílicos sem culpa. Arrumamos a baderna causada pela navegação noturna noite, pusemos para secar tudo o que estava molhado e demos um ar um pouco mais decente ao nosso lar. O lugar em que paramos, a Barra do Rio das Contas era magnífico. Do lado oposto da cidade, uma praia quase deserta com areias bem claras servia de campo de futebol, assim pelo menos nos pareceu pelas duas traves colocadas cada qual em um nível diferente da outra. Do lado de cá, centenas de coqueiros servem de abrigo aos antigos casarões da vila. Itacaré é uma cidade pequena.

Tem cerca de oito mil habitantes e cresceu graças à cultura do cacau. Agora o turismo é sua grande vocação. São dezoito praias, algumas desertas, cachoeiras, mangues e muitos sítios fora de série. Só para se ter uma idéia, a Praia do Pontal tem cerca de 20 km de extensão. Uma vastidão de areias brancas, coqueiros e um mar de esmeralda a perder de vista. Há pouco, um povo mais alternativo descobriu a beleza de sua geografia e elegeu esse pedaço da Bahia para passar suas férias e até mesmo para morar. Podem-se encontrar em Itacaré bons restaurantes, pousadas legais e um pessoal bem descolado circulando por suas praias. Vale conhecer, mas é um lugar longe de tudo.

Preparamos-nos para ir a terra comer alguma coisa, pois estávamos famintos. Apesar da pressa, foi uma operação demorada: descer o botinho e o motor, colocar gasolina, arrumar o que levar... Durou mais de uma hora a função toda. Observei ao longe uma canoa, destas feitas com um tronco só, com um preto retinto remando em nossa direção bem vagarosamente. O cara não estava com pressa nenhuma, parecia vir com a maré. Finalmente encostou-se no barco e nos perguntou se precisávamos de algo.

O Guto, sem paciência com os serviços baianos, dispensou-o sem delongas. Mas eu o chamei de volta e perguntei-lhe qualquer coisa, apenas para escutá-lo. O baiano era uma figura fora de série, meio pateta, meio malandro. “Como é seu nome?” Indaguei.“Neblina” respondeu bem sério. “Sou guia turístico, e consigo tudo o que vocês quiserem, até muié” completou. Foi muito engraçado ouvi-lo. Tem coisas que só existem na Bahia mesmo. Contratei o Neblina para cuidar do Zimbros enquanto estivéssemos fora. Mas não pude deixar de pensar na qualidade das mulheres que ele conhecia.

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Neblina: a nossa segurança em Itacaré.

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Em terra nos esbaldamos com água de coco, lagosta, peixe frito, cerveja e cachaça. Os baianos sabem como ninguém tratar bem seus hóspedes. Era sexta-feira e a noite prometia. Mas não conseguimos vencer nosso cansaço e, as oito já estávamos todos dormindo como crianças. No dia seguinte pela manhã voltamos aos botecos da praia, existem dezenas, para aproveitar um pouco mais as delícias do clima tropical. Mas, infelizmente, tínhamos hora para sair daquele paraíso. Deveríamos deixar a barra com maré alta, lá pelas quatro da tarde. Mas eu não queria mais ir embora.

Pouco antes da saída, Neblina nos guiou para dentro do Rio das Contas. Foi outra viagem, entramos em um outro mundo. Navegamos por cerca de uma hora rio adentro no meio de uma vegetação não totalmente preservada, mas pelo menos ocupada com inteligência. A maioria do município está situada numa área de proteção ambiental chamada Itacaré/Serra Grande. Quando voltamos do nosso passeio, mal tivemos tempo para despedidas. Recolhemos o botinho, o motor, preparamos as velas e demos mais um adeus para mais outro belo lugar. Adeus não, demos um até breve. "Vou voltar, sei que ainda vou voltar e ainda hei de ouvir cantar uma sábia" lembrei de Tom Jobim.

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Salvador nos esperava a 80 milhas no rumo norte, uma distância pequena se comparada com as outras que percorremos até chegar lá. Com um vento muito fraco seguimos no motor. A viagem estava bem tranqüila e logo que escureceu pudemos avistar, na proa, as luzes da capital baiana. O tempo passou rápido e logo estávamos na entrada da barra da Bahia de Todos os Santos. É sempre uma alegria chegar em Salvador. Aos poucos começamos a identificar os pontos mais importantes da barra como o farol, as praias e as edificações da orla. Eram três da manhã, estávamos Tadeu e eu no nosso turno e resolvemos acordar a tripulação de um jeito bem adequado. Mandei ver os Novos Baianos a todo volume.

Finalmente passamos pelo través do secular Forte São de Marcelo, ao lado do qual situa-se o Centro Náutico da Bahia, o ponto final desse trecho da nossa viagem. Amarramos o Zimbros facilmente no cais e, sem sono, ficamos até ao amanhecer bebericando algumas cervejas e repassando os melhores momentos da nossa aventura.

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Rio das Contas: uma volta ao passado rio adentro.

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À tarde Tadeu e André partiram para suas casas e eu fiquei com o Guto à procura de alguém que me ajudasse a endireitar todos os desgastes que o Zimbros sofrera nestes últimos dias. No Centro Náutico reencontrei vários amigos velejadores que não via há muito tempo. Muitos seguiam para Pernambuco, participar da regata Recife-Fernando de Noronha prevista para setembro. Passamos bons momentos juntos e, através deles, consegui arranjar um mecânico confiável para reparar as feridas sofridas pelo Zimbros. Teria que tirar seu leme fora para poder conferir todos os danos sofridos em Cabrália. Nada simples nem barato, supus. Manutenção de barcos é sempre cara, e uma das piores horas para os proprietários. Há quem diga que ter um barco é como ter uma amante argentina, a gente nunca para de gastar, e só tem prazer quando está em cima.

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Estes relatos estão disponíveis no seguinte endereço: http://www.iateclubeportobelo.com.br/galeria.htm

Final da parte onze

Tadeu e André no Centro Náutico da Bahia em Salvador.

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Era quase uma da madrugada, o táxi seguia veloz pelo túnel de árvores que emoldura a saída do Aeroporto Internacional de Salvador. Estávamos indo em direção ao centro histórico da capital baiana, Marco e eu. Tínhamos chegado no mesmo avião, vindos do sul. Ele de Porto Alegre e eu de Curitiba. Sempre é bom chegar a Salvador, seja por mar como pelo ar. Abri a janela do automóvel e senti o bafo quente do ar. Nada mau para quem acabara de sair de casa com quase oito graus de temperatura. AS ruas estavam desertas, logo chegamos à Bahia Marina, um moderno complexo náutico recentemente inaugurado na cidade baixa, próximo ao Elevador Lacerda. Ainda havia alguns restaurantes e bares abertos àquela hora, bem adequados à nossa sede.

Antes, porém fomos deixar as nossas malas e acessórios no Zimbros. Ao entrar à bordo pude sentir, de cara, seu balanço e seu cheiro. Que prazer indescritível estar de volta ao meu querido barco! Fazia apenas três semanas que partira de Salvador, mas pareciam meses.

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Parte 12

Os barcos têm personalidade, temperamento como diz meu amigo Vidal lá de Porto, e nós navegadores temos com eles uma relação de afeto, amor e também ódio. É uma convivência bem passional. Encontramos o Jens, um marinheiro profissional que contratarei para me acompanhar na minha próxima aventura náutica: ir de Salvador até Recife, a 400 milhas de distância. Acordamos cedo com a característica gritaria das marinas. Uma leve ressaquinha, aumentava ainda mais a gritaria do funcionários. Parece que todos que trabalham com barcos só sabem falar com alguns decibéis a mais. Era um sábado ensolarado e quente, impossível ficar na cama por muito mais tempo. Logo ouvi a voz do Carlinhos, o baiano que ficara responsável pelos consertos no Zimbros. O barco passou por uma revisão bastante detalhada de todo o seu sistema de leme. Além disto eu deixei uma enorme lista com dezenas de outros pequenos reparos que precisaram ser feitas na minha ausência.

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Para meu desânimo, nem tudo estava em ordem, mas eu não queria perder tempo em Salvador. Recife estava a dois dias de viagem e eu queria entrar na barra do Rio São Francisco, na divisa de Sergipe com Alagoas. Além disto uma pequena flotilha de veleiros partiria dali a algumas horas rumo norte. Eram eles o La Niña do Marcio Lima e o Poison do Castrinho, ambos gaúchos. Determinamos que a hora da largada fosse as duas da tarde e arregaçamos as mangas, afinal ainda tínhamos muito trabalho pela frente: instalar o piloto automático, fazer um acabamento no reforço do piloto, ir ao supermercado, acertar o certificado de medição para poder correr a regata Recife-Noronha, abastecer de água e óleo, pagar as contas, etc, etc.

O tempo voou e mal conseguimos terminar todas nossas tarefas. As duas e quarenta largamos amarras de Salvador e a partir de então, tudo se resumiu ao nosso pequeno mundo flutuante. O dia estava magnífico, a luz do sol brilhava nas águas da Baia de Todos os Santos e os três barcos e suas velas ao vento davam um colorido especial ao sábado. Apesar da correria e da afobação, a partida é sempre um momento muito especial e emocionante. O mar estava calmo e o vento soprava do quadrante sul, cerca de dez nós. Abri umas cervejinhas, preparei uns tira-gostos e coloquei um rock bem alto nas caixas. Perfeito!

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Anoitece muito cedo no Nordeste, lá pelas cinco e meia da tarde, e a primeira luz que aparece no céu nesta época é o Planeta Marte, que está próximo da Terra como nunca esteve nos últimos séculos. É um espetáculo ímpar. Marco, mostrou que também conhece bem das artes culinárias e preparou um arroz com frango super especial.

Jantamos muito bem, em seguida fui dar um cochilo para tentar repor um pouco do meu sono que estava atrasado, afinal fui dormir lá pelas cinco da manhã, uivando para a lua cheia. Nada anormal, eu sempre extrapolo no primeiro dia de viagem. .

La Niña: um Delta 36 igual ao Zimbros em comboio para Recife

Marco Faccini Porto, é um amigão de Porto Alegre. Conhecemos-nos quando o Zimbros estava sendo construído e tive que ir para lá algumas vezes. Os gaúchos são bons de vela, tem muita tradição em regatas e só competem para ganhar. Marco tem apenas 24 anos, mas é um cara muito centrado. Muito responsável com seu trabalho, é uma das pessoas mais divertidas que conheço quando está de folga. Só pensa em vela e mulheres. E, aqui entre nós, não existe nada melhor mesmo, apesar dos dois serem incompatíveis entre si. Digo sempre que misturar prazeres não dá certo, não se aproveita nem um nem outro. .

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O dia também chega mais cedo naquelas longitudes, lá pelas cinco já é claro. Resolvemos nos aproximar mais da costa para poder apreciar as intermináveis e desertas praias do litoral baiano. Aos poucos, com muito cuidado, fomos arribando para o continente até chegar a menos de mil metros do litoral. Pudemos distinguir na praia um pequeno vilarejo com alguns barzinhos na areia. Senti desejo de desembarcar e tomar uma cerveja com um peixinho frito na hora. Mas era apenas um delírio, o litoral baiano é muito plano, cheio de baixios e recifes, sem nenhum abrigo para ancoragens. Tive que nos contentar com uma insossa barra de cereal de frutas.

Já tínhamos andado 120 milhas desde Salvador. Pelas cartas náuticas vi que chegaríamos à divisa da Bahia com Sergipe lá pelas duas da tarde. O que separa os dois estados é Rio Real em cuja barra está localizada Mangue Seco, a famosa vila onde Cacá Diegues filmou em 95, da obra de Jorge Amado, Tieta do Agreste, um dos filmes mais chatos que já vi na vida. Eu já conhecia a vila, estive por lá com o Dalmo e a Silvia, mas chegamos por terra. Jens conhecia um velejador que já tinha entrado no rio com um barco maior que o Zimbros. Era o que eu queria ouvir. Decidi entrar na barra, tomar umas geladas, comer um peixe frito, observar as nativas e dar o fora antes de anoitecer. Não esqueça que velejar é a maneira mais lenta de se ir de um bar a outro.Era o local certo, mas não era a nossa hora. Foi impossível achar qualquer barco que nos guiasse rio adentro. A barra, muito rasa e extensa, não permite erros. Tivemos que desistir da nossa pretensão de desembarque e redirecionamos o rumo para o Rio São Francisco. Contrariado, fui dormir para esquecer.

Anoiteceu e aos poucos as luzes de Aracajú surgiram à bombordo junto as das plataformas de petróleo da costa sergipana. Existem dezenas por ali, muitas não sinalizadas. Com olhos bem abertos e um vento leste-sudeste de nove nós seguimos adiante em grande velocidade. Pelos nossos cálculos, se seguíssemos naquele pique, estaríamos na barra do São Chico antes do amanhecer. Não era uma boa hora. Tínhamos que chegar de dia, portanto, tratamos de diminuir as velas para perder velocidade. Por incrível que pareça, com todos os panos rizados, o barco ainda andava a mais de seis nós. Não conseguíamos fazê-lo ir mais lento! Para mim foi uma experiência bizarra tentar fazer um barco ir mais devagar do que o vento podia levá-lo. O Zimbros é como um cavalo de raça, impossível freia-lo no galope. Fiquei muito orgulhoso da minha nave.

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Bochecha e Jens: a tripulação que me fazia companhia

Bochecha fazendo a navegação.

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Às três da madrugada já era possível ver as primeiras luzes do farol da barra do Chico. Às cinco, finalmente chegamos ao nosso destino: a boca do mítico São Francisco. Uma imensidão de água que corre por cerca de 2.600 quilômetros dentro do coração do Brasil. Nasce nas escarpas de mistério da Serra da Canastra em Minas Gerais. É o maior curso d’água nacional e foi descoberto em 1501 pela famosa expedição de Duarte Coelho e Américo Vespúcio. Os navegadores, os primeiros depois de Cabral a explorarem o desconhecido território, navegavam com o calendário litúrgico nas mãos, batizando os pontos geográficos do litoral de acordo com o santo do dia. Chegaram ao Chico no dia 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, daí seu nome.

Uma praia de areia muito clara à frente, era possível avistar, encoberta por uma floresta de coqueiros, a pequena Cabeço, uma vila de pescadores localizada na margem sul do rio, no Estado de Sergipe. Demarquei na carta náutica um ponto próximo à entrada, onde a profundidade era segura, e nos dirigimos para lá com o Gps de mão. A partir dessa marcação, ficamos navegando em ziguezague, perpendicular a costa, tentando chamar atenção de alguém que nos guiasse para dentro do rio. Ao sul as ondas quebravam longe da costa, era preciso redobrar a atenção. Pelo ecobatímetro eu controlava para que a profundidade nunca ficasse inferior a cinco metros. Mesmo com todos os instrumentos que dispúnhamos, confesso que foi assustador ficar vagando naquelas águas de baixios não demarcados.

Eu estava cansado com muito sono, mas a apreensão não me deixava fechar os olhos. Minutos pareciam horas e nada acontecia, ninguém nos via, tampouco havia qualquer sinal de pescadores vindo para o mar. De repente o Jens avistou dois pequenos barcos de pesca saindo da barra. Mas seu rumo era ao sul da arrebentação que víamos atrás. Para alcançá-los, tínhamos que contornar os baixios e as ondas, muito para fora de onde estávamos. Começamos uma verdadeira caçada no mar atrás das embarcações. Mas não deu certo, a distância que nos separava era muito grande e os barcos se distanciaram de nós cada vez mais em direção ao sul. Voltamos ao nosso way-point marcado no Gps e recomeçamos nossa espera que alguém lá de dentro nos visse. Mas nada, nem pescadores, nem barcos apareceram.

Jens, mais uma vez, localizou alguns pesqueiros fazendo arrastão de camarão ao largo da costa, muito distante de nós, mar afora. Uma trovoada se formava para os lados deles e em instantes começou a chover e a ventar forte. Decidimos ir ao seu encontro no rumo leste. Acho que andamos mais de uma hora até chegarmos próximos aos barcos que buscávamos. Os pescadores, distraídos e olhando em frente, assustaram-se com o veleiro chegando por sua popa, assim do nada. Aproximamo-nos até a distância de sermos ouvidos e indagamos sobre a entrada da barra. O pescador nos confirmou que era funda o suficiente, cinco metros disse, mas que só podíamos demandá-la com um prático, e que não havia nenhum disponível naquele momento. Eles seguiriam para o norte e não podiam nos ajudar.

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Droga, eram nove da manhã e fazia quase cinco horas que estávamos ali, sem sucesso. O jeito foi desistir, infelizmente. “Não deu tripulação, nós tentamos, fizemos tudo o que tinha de ser feito, mas não vai ser desta vez” disse para desconsolo de todos. Só nos restava mudar o rumo, ajustar as velas e dar um até breve para o Rio São Francisco sem olhar para trás. A partir de então, nosso objetivo passou a ser Recife, 160 milhas ao norte. A cerveja e o peixe frito, que eu tanto desejava, teriam que esperar até o dia seguinte. .

Final da parte doze

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O vento, o sol e o mar estavam a nosso favor, e o negócio, a partir de então, seria administrar o nosso tempo. A previsão de chegado ao Recife estava prevista para o começo da tarde do dia seguinte. Um dia a bordo nunca é igual ao outro, e sempre há o que se fazer ou o que se contar. No cockpit os assuntos vão aparecendo e um sempre chama outro. Histórias de velejador são muito semelhantes às de pescador, são sempre exageradas. Mas são reais. Só não pode mentir, aumentar pode. Segundo a AMCC Associação Mundial dos Contadores de Casos, até trinta por cento de exagero são aceitáveis em um caso bem contado. Afinal de contas, quase sempre a versão é muito mais colorida do que o fato real, que é em preto e branco.

A música também não parava de tocar, dia e noite. Instalei um CD player, desses de carro, só que preparado para tocar músicas em formato mp3. Cada disco chega a armazenar cerca de 150 músicas ou mais. Isso evita aquele monte de Cds espalhados pela mesa de navegação e também aquele disco que toca durante três horas sem parar. Mas meus discos estão sempre espalhados pela mesa e tocam sucessivamente até cansarem. Gravei vários cds cada qual de um gênero diferente: música brasileira, jazz, rock, blues, fusion, etc. Assim há música para todos os gostos à bordo.

Almoçamos um super strogonof, preparado pelo cheff aqui. Foi um sucesso! Agradeci calado aos elogios da tripulação, omitindo que o prato era uma novidade da Aji-No-Moto. Já vem pronto, basta aquecer e, o que é o melhor, não precisa ficar armazenado na geladeira para se conservar. É perfeito, pois existem vários sabores e podem ficar guardados por muito tempo fora do gelo. O gosto não é ruim e, junto com arroz, engana a fome. Procuro fazer sempre uma quantidade maior para que sobre e seja consumido mais tarde, à noite por exemplo, durante os solitários turnos da madrugada. Quando o tempo está bom comer é um grande passatempo a bordo.

Estávamos no litoral de Alagoas, e já fazia dois dias que deixamos Salvador. Portanto, era dia de banho de água doce. É um grande momento. Final de tarde, o sol quase no horizonte, preparei os apetrechos indispensáveis: toalha, xampu, sabonete e aparelho de barba. O macete é, iniciar o banho com a água do mar, em seguida tira-se o sal com um pouco de água doce, ensaboa-se e, por fim, uma rápida e econômica chuveirada sobre o corpo. Tudo isso equilibrando-se na popa com muito cuidado para não cair n'água. A sensação de limpeza é excepcional, até o humor muda, parecemos outros.

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Eu e o Márcio Lima, a bordo do La Niña.Parte 13

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Depois do banho, roupa limpa e um drinque de final de tarde acompanhado de um d e l i c i o s o t i r a - g o s t o p a r a f e c h a r o d i a c o m c h a v e d e o u r o . Às dezessete horas cruzamos o paralelo dez. Ainda era dia, o vento deu uma aliviada e a velocidade caiu bastante. Marco inventou de colocar o Ginaker, uma vela leve e grande usada na proa, ideal para ventos fracos de popa. Os preparativos levaram um tempo pois foi necessário arrumar os cabos, prender os moitões, passar a vela e checar se tudo isto estava no lugar. Do contrário, na hora de levantá-la, se algum pormenor estiver errado, pode acontecer um pandemônio dos diabos. Finalmente tudo estava pronto: um, dois, três, já... Em um instante a enorme vela colorida subiu e inflou-se com o vento. Era a hora da foto, um espetáculo, o azul e o amarelo do tecido filtrando a luz do sol que se punha. A velocidade aumentou e o barco parecia sorrir. Todas as exclamações foram superlativas. .

Oito da noite, a temperatura estava ótima e as luzes de Maceió sugiram na frente. Colocamos um disco do Djavan para dar um clima: "Só eu sei as esquinas por que passei...". Próximos da costa, estávamos cerca de cinco milhas de distância, era possível pegar o sinal dos celulares. Nós três ligamos para casa, para a família e para os amigos atualizando todos das nossas novidades. Era realmente fantástico estar ali.

Marco levava o Zimbros na mão, para poder controlar melhor suas derivações. Como Ginaker é muito grande, o barco tem uma tendência a entrar no vento. É preciso fazê-lo voltar rápido ao rumo certo. Eu estava deitado no cockpit, olhava para cima e via as velas e as estrelas. A ponta do mastro parecia tocar o firmamento. Marte estava bem acima de nós. O homem sempre sonhou em voar, creio, para poder flutuar livre em todas as direções, para cima, para baixo, para os lados, sem qualquer obstáculo a lhe impedir os movimentos. E velejar, de certa forma, também é como voar, só que em duas dimensões e com um elemento a mais que é a água. O mar abaixo do casco, suas entranhas, suas lendas e seus temores é um universo misterioso que nos enche de respeito e admiração. As velas são asas e a direção é a que desejamos, não existem limites para o rumo. Livres, vamos para onde o vento nos levar. Vivi um momento de felicidade total. Eu tinha, de repente, a resposta para todos os enigmas do universo. A chave estava na minha alma.

Fui para dentro da cabine mudar o disco e pow! escutei um barulho estranho vindo lá de fora. O barco deu uma freada brusca. "A vela foi para mar, arrebentou a adriça" ouvi o Jens gritar. Corri para o cockpit e vi o Ginaker dentro d'água à bombordo. Não perdemos tempo, imediatamente começamos a puxá-lo para cima, apesar do seu peso. Parecia levar com ele metade do oceano. Num instante fiquei ensopado com água salgada. “Adeus meu banho” foi só o que pensei. À custo conseguimos trazê-lo para bordo e colocá-lo no saco. “Droga, a adriça, o cabo que suspende a vela, roçou em algum lugar do mastro e arrebentou. Veio tudo para baixo” foi o diagnóstico. A solução no momento foi voltar a usar a genôa, e nos conformar com o pouco vento. No melhor do vôo, cortaram minha asa!

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O Ginaker: é um espetáculo poder navegar com esta vela de ventos favoráveis.

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Reativamos o piloto automático, ajustamos de novo as velas e nos preparamos para mais uma noite tranqüila. Às cinco da manhã, com os primeiros raios, cruzamos finalmente a fronteira que separa Alagoas de Pernambuco. O vento aumentou e a previsão de chegar ao Recife melhorou, seria lá pela uma da tarde. “Excelente” pensamos, vamos almoçar no clube. Às dez estávamos a 8º20' de latitude sul, no través do Cabo de Santo Agostinho. O cabo passou a ser um dos pontos mais importantes da costa brasileira, a partir do século XV. Todas as embarcações que saiam de Portugal ou da Espanha com destino ao novo continente paravam, respectivamente, na Madeira ou nas Canárias. A seguir tinham pela frente, por semanas ou até meses, o imenso oceano. Na companhia do medo só lhes restava a vontade de chegar logo. Todos os olhos e ouvidos atentos na esperança de ver a costa ou escutar alguém do alto da gávea gritar “terra à vista". E o Cabo de Santo Agostinho foi, durante séculos, esse famoso "terra à vista", o alívio de muitas gerações de destemidos homens do mar. .

Estava quente e o clima era de festa. Demos um rápido mergulho, sem esquecer que aquelas águas estão cheias de tubarões. Abrimos as primeiras cervejas e retomamos nosso estoque de histórias. Quando se faz uma travessia de dias, na companhia de quem quer que seja, pode estar certo que você vai saber toda a vida de quem estiver à bordo. E eles a sua. Aos poucos o contorno dos prédios de Recife e o relevo de Olinda apareceram no horizonte. Aproximamos-nos da praia e pudemos ver coqueiros ao longe e algumas jangadas ao largo. Eu estava emocionado, afinal percorri muitas milhas para chegar e me sentia orgulhoso do meu feito. Eu completava mais uma folha de aventuras. Ao meio-dia, cruzamos as bóias e os molhes e entramos nas águas abrigadas do porto. De cara vimos o impressionante Cisne Branco, o veleiro da Marinha Brasileira ancorado no trapiche do porto com a bandeira brasileira tremulando na popa. .

Verificando no chart-plotter, vi que a maré estava muito baixa, e que talvez não fosse possível entrar na marina. O Cabanga Iate Clube de Recife está localizado depois do porto, no final do canal formado pelos recifes naturais que o protegem. A entrada é muito estreita e rasa, o acesso é impossível nas marés secas. Passei um rádio ao clube avisando da nossa chegada eminente e indagando sobre as condições da maré. O operador recebeu-me com cortesia e, após saber do meu calado, foi categórico: "Vocês não devem entrar no clube agora. Somente às quatro da tarde. A maré neste momento está no seu ponto mais baixo e vocês vão encalhar, não entrem!". .

O Cabo de Santo Agostinho: às dez da manhã o clima era de chegada.

O Cisne Branco: o veleiro da Marinha Brasileira ancorado no porto.

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Droga! Era só o que me faltava, nadar e morrer na praia. Não era nem uma da tarde, estava um calor de rachar, e eu não podia entrar no clube mesmo avistando os mastros de todos os veleiros lá dentro, apenas dezenas de metros na minha frente. Baixou o santo: comigo não, sou do tipo que odeia ficar de fora nos bailes. Acelerei o motor e avisei que todos se segurassem, pois eu ia tentar entrar de qualquer jeito. O pior que poderia acontecer seria ficar encalhado na porta do Cabanga. Acompanhando o ecobatímetro pude ver a profundidade diminuindo drasticamente: dois metros, um metro e oitenta, um metro e setenta... Faltava pouco quando chegamos a um e sessenta, bem ao lado das bóias que sinalizavam a entrada. Senti a quilha do Zimbros raspar no fundo. Acelerei mais, e fui arando um sulco no lodo do fundo por mais ou menos uns dez metros. O barco diminuiu a velocidade, parecia parar mas, finalmente, a profundidade aumentou e, eureca, consegui! Entramos no clube. Viva! Gosto de emoções fortes e não regulo mixaria. .

Nas águas abrigadas e fedorentas da marina, muitos barcos nos tinham antecedido. Encontrar um lugar confortável, onde amarrar o Zimbros, não foi tarefa fácil. Finalmente, com ajuda de um funcionário, paramos à contrabordo de um veleiro cujo proprietário era um simpático uruguaio. Jens entendeu-se rapidamente com ele, afinal ambos eram conterrâneos. Na verdade o clima no clube era de entendimento irrestrito. Lá estavam o Hans e a sua tripulação do Athena e Zalmir com seu veleiro Orage, ambos do Iate Clube Porto Belo. Todos se preparavam para a XV Regata Recife-Fernando de Noronha, a famosa Refeno, e eu não era exceção. Tinha que esperar meus novos tripulantes e arregaçar as mangas, pois havia muito que fazer para deixar o barco apto para a regata. Mas aquele momento era para comemorações, a cerveja e os amigos nos esperavam.

Os dias passados em Recife foram curtos e atribulados. A Refeno é uma regata em mar aberto, a Capitania dos Portos permite a participação de veleiros que não preencham totalmente os requisitos exigidos por ela para esse tipo de navegação. Para tanto, alguns itens tem que ser cumpridos rigorosamente e não podem faltar à bordo. São fogos de sinalização, extintores extras, apitos, bóias, etc. Além das exigências da Capitania, dezenas de outras tarefas tiveram que ser completadas para preparar o Zimbros na sua próxima jornada. Mas o ambiente no clube era de camaradagem, confraternização e reencontros. Uma grande festa.

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O acesso ao Cabanga: fiz um buraco no fundo para poder entrar.

Dentro do clube: finalmente chegamos para a festa.

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Final da parte treze

Na verdade uma festa de piratas, com muitos homens e alguns canhões. A exceção era o Drifter, um veleiro tocado exclusivamente por uma equipe feminina. As garotas eram de Brasília, e fizeram o maior sucesso com a mídia local e com o macharedo de plantão. Todos as trataram com muita consideração, exceto a minha tripulação. Certa tarde fui apresentado a uma delas e estávamos, Alfredo e eu, trocando algumas cordialidades assim do tipo "Parabéns, a presença de vocês aqui só faz engrandecer o nosso esporte, se precisarem de alguma coisa é só pedir e tal". De repente o Marco Porto, com seu indefectível óculos de playboy de shoping center, surgiu do nada e fulminou à queima roupa: "Bah, vocês é que são as perseguidas?" Porra meu! Fiquei com vontade de pular dentro da água suja da marina! "Depende a que você esteja se referindo" respondeu ela, com polidez. Ele ainda tentou consertar o mal estar, mas o pior já estava feito. O filme tinha sido queimado muito antes da largada, nada mais a falar senão um até logo e sair bem de mansinho. “Eu mereço, eu mereço” foi tudo o pude dizer. .

Zalmir, Hans e eu: o reencontro da turma do Iate Clube Porto Belo.

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Os quatro dias no Cabanga Iate Clube de Recife passaram rápido. Tivemos muito trabalho e alguma diversão. Prepararamos o Zimbros para a próxima jornada até Fernando de Noronha. De lá seguiríamos até Natal, no Rio Grande do Norte. Seriam quase 500 milhas em uma semana de viagem, e havia muito a ser feito à bordo para que nada faltasse nessa etapa da aventura. O nosso maior problema era, mais uma vez, o abastecimento de água, combustível e comida, pois em Noronha, o acesso à terra é feito com os pequenos botes de desembarque, ou seja, é sempre difícil transportar tudo. Além disto, tivemos uma inspeção da Marinha para obter a autorização de navegar longe da costa. Apesar dos oficiais da Capitania dos Portos serem bastante camaradas, alguns itens das suas exigências me deram algum trabalho.

A tripulação começou a aparecer aos poucos. Primeiro Alfredo e Tarcísio, que já estiveram no Zimbros de Porto Belo até Angra dos Reis. Depois o Luiz e o Guto, ambos morando em Floripa. Guto, meu irmão, esteve comigo de Vitória a Salvador. E havia também as tripulações dos outros barcos que chegavam a todo instante, e eram sempre motivo de festa e muita conversa.

O ambiente no clube era de camaradagem e confraternização, em cada reencontro havia uma história diferente para contar. Logo de cara tive que pagar minha dívida para com as tripulações do Athena, do La Niña e do Drakon. Apostei um jantar com cada um deles separadamente, para quem chegava primeiro ao Recife. Perdi dos três, e foi com prazer que zerei o meu débito com todos em uma bela churrascaria lá de Boa Viagem.

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Na Refeno, uma grande tripulação: Tarcísio, Alfredo, eu, Luiz e o Guto

Parte 14

Finalmente sábado chegou. No dia da largada a adrenalina estava à flor da pele. Mais de cem barcos inscritos, todos distribuídos em cinco baterias diferentes. A primeira largaria ao meio-dia em ponto e a cada dez minutos, as subseqüentes. Os veleiros mais lentos partiam antes. A largada seria dentro do Rio Capibaribe, entre a medonha escultura fálica criada pelo artista plástico pernambucano Francisco Brennan, posicionada sobre os molhes do porto, à direita, e o barco da Comissão de Regata, ancorado em frente ao marco zero da cidade, uma praça próximo ao cais. Iríamos percorrer, antes de chegar ao mar aberto, um canal de aproximadamente mil metros de extensão, limitado pelos recifes à boreste e a cidade velha à bombordo. Centenas e centenas de pessoas de ambos os lados aguardavam a saída. Havia música, discurssos e fanfarra, ou seja, um legítimo festerê pernambucano. .

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Como o vento soprava de través com cerca de dez nós, decidimos que largaríamos com o genaker, nossa vela colorida, ideal para a situação. A cinco minutos antes do tiro, nos posicionamos a sotavento da raia e aproamos para a linha de largada. Nós e a torcida do Flamengo! Todos os barcos queriam estar na mesma posição, pois de lá qualquer barco teria preferência sobre outro que tentasse ultrapassá-lo da direita para a esquerda. São as regras. A um minuto do tiro, todos os adversários já estavam com suas genoas abertas. Somente nós iríamos largar com o genaker. Bateu a dúvida e, na última hora, o Luiz quis mudar os planos e abrir nossa genoa. "Agora não, porra! Vamos com o Genaker mesmo" gritei, sem saber bem no que ia dar. “Um, dois, três... já. Sobe a vela”. Foi uma gritaria, um esforço brabo, um puxa cabo, caça escota, morde a adriça... e a vela subiu. E valeu a pena, foi um show! O pano colorido inflou-se com o vento e explodiu majestoso nas suas cores azul e amarelo. Todos os espectadores que estavam sobre os arrecifes, bem à nossa direita, começaram a gritar e a aplaudir! "Aí Zimbros, vai lá Zimbros...". Foi uma emoção única, parecíamos ídolos.

O barco começou a ganhar velocidade e fomos lentamente ultrapassando todos os que estavam na nossa frente. Mas não havia espaço, a raia estava congestionada para o nosso lado. O que fazer? O Tarcísio resolveu facilmente. Plantado na proa, muito educadamente, ele pedia aos outros: "Por favor, saiam da frente que vamos passar" E os adversários obedeciam sem chiar! "Muito obrigado, valeu" respondíamos com a maior fleuma. Isso só acontece numa regata como a Refeno mesmo. Para quem nunca viu uma, saiba que, para ter a preferência, vale a lei do grito: quem fala mais alto, ganha.

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Largada da XV Refeno: O Zimbros é o de vela colorida. Aplausos na saída.

Saída de Recife: próxima parada, Estação Noronha, 300 milhas adiante.

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Prosseguimos até a barra do rio, onde uma bóia amarela determinava o final do canal. A dela, viramos 90º para boreste rumo à outra bóia, esta de sinalização do porto, localizada a umas duas milhas no mar aberto. Passada esta segunda sinalização, apontamos direto para Noronha, 300 milhas a nordeste. Baixamos o genaker e abrimos a genoa, pois o vento agora estava mais de proa. Neste momento vimos, para infelicidade geral, que a adriça do genaker estava quase rompida, como acontecera em frente a Maceió, e não poderíamos usá-la mais. Era um erro de projeto, a posição da roldana no tope do mastro fazia com que o cabo se desgastasse em contato com ela. Tínhamos uma adriça sobressalente, mas de nada adiantaria, pois ela estaria sujeita ao mesmo desgaste. Foi um baque!

Perdoem-me se estendendo agora questões técnicas, mas é importante para o desfecho da trama. Ocorre que todos os barcos têm uma medição, que determina um fator, um número de correção. Este número, chamado rating é multiplicado pelo tempo que ele leva para concluir uma regata. Isto permite que barcos de diferentes tamanhos possam competir entre si. Aqueles que têm mais área vélica, ou uma linha d'água maior, pagam ou descontam um tempo para outros menores, entenderam? Um exemplo: por eu ter um genaker, uma vela muito grande, meu tempo real é descontado no final, ou seja, eu tenho que pagar um tempo a mais por usá-lo. Paguei mas não usei. Outro ponto negativo: o Zimbros foi muito mal medido lá em Salvador. Estava pesado demais com os tanques de água e combustíveis cheios, portanto com a linha d’água maior. Outro detalhe infeliz, o pau de spi, uma haste metálica que serve para manter a vela de proa aberta nos ventos de trás, estava maior que a medida exigida nas regras. Mais um prejuízo, pela primeira vez na vida fui penalizado pelo tamanho do meu instrumento.

Existe um problema que todos os anos atinge os participantes da Refeno. São as bóias de marcação das redes de pesca de lagosta. Presentes em quase todo o litoral pernambucano, estão localizadas entre as profundidades de trinta a cem metros. Como íamos a um rumo transversal à costa, um trecho que leva muitas horas para ser percorrido, havia o perigo real do barco ficar preso aos cabos nos quais estão presas as redes. Alguns deles são de aço e, no passado, houve casos de danos graves no leme das embarcações que tiveram a infelicidade de emaranhar-se a esses obstáculos. Ao longo da tarde e do resto da noite, passamos por dezenas dessas linhas, e tivemos que desviá-las com muita dificuldade. Com atenção redobrada, conseguimos nos livrar de todas. A última delas apareceu no meu turno na madrugada, a poucos metros na nossa frente, no escuro. Tive que virar o barco quase 90º para nos safarmos. Foi uma barulheira dos diabos, as velas ficaram folgadas, a grande deu um jaibe, ou seja passou para o outro lado. O barco balançou como em um maremoto, mas nos safamos.

Amanheceu. O vento aumentou e o mar ficou mais mexido. Rizamos a vela grande para o Zimbros ficar mais equilibrado e seguimos na mesma velocidade. Dois navios-patrulha da Marinha acompanhavam a regata, dando apoio em caso de problemas. Às oito e às dezoito horas, diariamente, pelo rádio, todos os participantes eram obrigados a passar sua posição e rumo para controle deles. Dessa forma podíamos saber como e onde estavam nossos adversários. Havia muitos em dificuldades. Alguns perderam o leme, realmente um problemão àquela distância da costa. A Refeno é uma regata relativamente tranqüila, feita com um vento constante e num bordo só. Mas é muito longa, e a grande maioria da flotilha anda no limite. Depois das primeiras 24 horas fica cansativa e o equipamento começa a dar problemas. À bordo, se existir a mínima chance de algo dar errado, dará. Quando se fala do mar, as leis de Murphy são muito otimistas.

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Ao longo do dia os barcos foram distanciando-se entre si, restando poucos ao alcance da vista. Anoiteceu. O vento aliviou e andamos ao máximo, seis, sete e até oito nós de velocidade. Ninguém queria ficar para trás, muito menos eu. Apostei de novo, desta vez com o Hans, cem Euros como chegava antes dele no tempo corrigido. Era quase impossível faturar essa grana, mas eu queria dar um ânimo a mais na tripulação. E, quem sabe, se ainda pudesse botar a mão no bolso do alemão, para mim seria lucro dobrado. Estávamos cansados pois dormíamos pouco, comíamos mal e estávamos sempre atentos. Ajustávamos as velas com muita atenção, pois nessa competição, ganha quem erra menos. A chegada estava prevista para as primeiras luzes do dia seguinte. À três da manhã vimos os primeiros fachos do farol do arquipélago. Apesar do desconforto, ou exatamente por ele, os ânimos a bordo ficaram eufórico, um clima de "já cheguei" tomou conta da tripulação. .

Mas a noite foi dura, cheguei a pensar que o Zimbros não ia agüentar. Não conseguia tirar da cabeça os barcos sem leme, a deriva. Lembrava do conserto feito lá em Salvador, sem minha supervisão. "Será que aquele cara fez o serviço direito?" pensava a todo momento. Na dúvida, quando eu estava no timão, procurava aliviar um pouco o esforço, mas logo em seguida lembrava da minha aposta, e também no João Norberto do Drakon, que vinha colado na minha esteira, e voltava a forçar ao máximo o Zimbros.

Amanhecemos com o contorno de Noronha bem na nossa frente. É deslumbrante ver o arquipélago emergindo de dentro do mar, como querendo lançar-se ao céu para alcançar as nuvens. Parece inacreditável existir uma ilha tão longe da costa. Na verdade todo o arquipélago é a ponta de um gigantesco vulcão, cuja base esta a mais de três mil metros de profundidade. As ilhas são o contorno superior do cone, que tem cerca de 20 quilômetros de diâmetro. A ilha principal tem uma forma alongada com dez quilômetros de comprimento por quatro de largura. Seu relevo é acidentado com muitos morros como o do Pico, uma enorme esfinge de pedra moldada por Deus. Com mais de trezentos metros de altura, ergue-se soberano sobre aquelas águas remotas. Atribuí-se o descobrimento em 1503 a uma das expedições de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio (sempre eles). Mas há registros anteriores que a chamavam Ilha da Quaresma ou São João. O arquipélago foi doado pela coroa portuguesa ao financiador da expedição de Vespúcio, o tal Fernando de Noronha, que nunca esteve por lá. Foi a primeira capitania da Terra de Santa Cruz, mas não deu em nada. Virou uma zona. Invadida por franceses, holandeses e gringos de toda cobiça, chegou a ser uma prisão lá pelo século dezoito. Fernado de Noronha foi o prenuncio do nosso futuro: um paraíso de delícias e misérias.

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Luiz na boéia: no final do segundo dia, o clima já era de chegada.

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Os competidores que haviam sumido da nossa vista, começaram a aparecer no funil da chegada. Na nossa frente, há poucos minutos, o Jasper que havia se distanciado de nós durante a noite. Sua rota era um pouco mais afastada da Ponta da Sapata, a sudoeste da ilha principal, pois ali existe uma grande laje submersa. Não tínhamos a menor chance de alcançá-lo, a menos que cortássemos caminho entre a laje e a ilha, uma manobra arriscada, que eu já conhecia do ano anterior quando fazia parte da tripulação do Athena. Estávamos todos no cockpit, contemplando a beleza da geografia, quando decidi: "Tripulação, vamos passar entre a laje e a ilha". Para desespero de todos, aproamos direto para a Ponta da Sapata, uma pedra monumental moldada pelos martelos de Vulcano, com cerca de cem metros de altura que mergulha poderosa na superfície azul do mar. Quando estávamos apenas a poucos metros de bater, viramos a bombordo e passamos ao lado da enorme parede. Foi hard! Tarcísio, lá de dentro acompanhava nosso rumo pelo chart-ploter e gritava: "mais pra direita, mais pra direita..." Mas ele não podia imaginar que, mais pra direita, estava a pedra. Só pensar nas profundidades abissais abaixo, nos dava um frio na barriga. Mas fazia pouca diferença, com três mil metros ou três metros, o estrago seria o mesmo se naufragássemos. "Passamos" gritou finalmente nosso navegador lá de dentro. Foi um alívio geral. "Para o comandante não basta só chegar. Tem que ser com emoção" desabafou o Guto.

Mas de nada adiantou nossa estratégia. O vento, protegido pelo relevo, ficou sujo, perdeu a direção, e o Jasper manteve sua distância. Alfredo ficou muito furioso ao nos ver ali parados no meio daquelas lajes sem vento algum. "Porra, devíamos ter ido pelo lado de fora" gritou inconformado. Foi a primeira vez que vi o índio perder a fleuma. "Paciência, eu errei" pensei lá com meus botões. Aos poucos o vento voltou a inflar a vela e conseguimos identificar ao longe a Comissão de Regata, ao lado da qual começava a linha de chegada. Faltava pouco, íamos vagarosamente e o tempo não passava. Finalmente cruzamos a linha e recebemos o tiro de chegada. Foi emoção pura! Eram 05h57min da manhã e levamos 41 horas para fazer o percurso. Fomos os terceiros da nossa categoria a chegar, quase meia hora na frente do quarto. Era um ótimo resultado, comemoramos iludidos.

Infelizmente, como expliquei, nossa medição era muito ruim e, no resultado final, ficamos apenas com o nono lugar. Uma classificação de fazer chorar! Fiquei inconformado, mas fazer o quê? Aposto que se tivéssemos ganhado, eu não estaria reclamado nem me explicando tanto. Coisas de competição. Mas estávamos felizes e vitoriosos, havíamos completado mais uma grande aventura. Afinal, o importante não é ganhar e sim competir, já disse algum perdedor.

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Final da parte quatorze

Fernando de Noronha: a chegada foi ao amanhecer.

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Fernando de Noronha e a enseada onde os veleiros se abrigaram

Foi com alívio e alegria que cruzamos a linha de chegada da XV Refeno, a maior competição náutica de percurso do país. Eram quase seis da manhã e o sol já batia forte nas íngremes montanhas do arquipélago. As sombras davam um belo destaque ao relevo acidentado das suas encostas. Recolhemos as velas, abrimos o bimini, o toldo que segura o calor do dia, e nos dirigimos à enseada próxima ao pequeno porto da ilha principal. Já haviam alguns barcos ancorados e não foi difícil encontrar um lugar para jogarmos nossa âncora. Com cinco metros de profundidade era possível enxergar toda a corrente e o nosso ferro preso ao fundo. Chegamos e podíamos finalmente relaxar de verdade.

Aos poucos os outros barcos apareceram no horizonte e, através do rádio, podíamos saber quem eram e qual o tempo que levaram para concluir seu percurso. João Norberto do Drakon cruzou a linha às 06h45min horas. Pelas nossas contas, já estava em vantagem sobre nós, pois seu rating era bem menor e, portanto, tínhamos que pagar muito para ele. Procurei não pensar nisso e abri um champagne reservado especialmente para o momento. "Vamos comemorar nossa façanha, tripulação" disse espocando a rolha que voou por entre a gaiúta de acesso, resvalou nas ferragens do toldo e, finalmente, caiu dentro d'água. Foi nosso primeiro pecado. Já nos tinham avisado em Recife que o Ibama era muito rigoroso e nada poderia ser jogado ao mar em Noronha. Com prazer, coloquei um calção e mergulhei em busca do meu involuntário lixo.

Em pouco tempo chegaram à bordo do Zimbros, João Norberto e sua tripulação, Álvaro, Joaquim e Jens. Nos acompanharam em um merecido café da manhã. Marco, que veio com o La Nina, também apareceu. Começou a festa! Todos falavam ao mesmo tempo e cada um tinha uma versão diferente de um mesmo fato para discutir. A música alta servia para confundir ainda mais aquela excitante interlocução, mas o brilho da manhã iluminava nossas idéias, e todos nos entendíamos. Nossa alegria era comum.

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Parte 15

Após o encontro demos uma ordem no nosso restrito espaço e começamos os preparativos para desembarcar. Ir a terra requeria certo planejamento, já que o pequeno inflável acomodava, com muita boa vontade, somente quatro pessoas. "Quem vai primeiro?" perguntei pragmático. "Eu vou!" disseram todos ao mesmo tempo. "Vai ser difícil decidir, tem que ser no par ou ímpar" pensei. Nem lembro direito, mas tenho a impressão de ter sido o último a desembarcar. Na verdade não estava tão ansioso assim para ir a terra. Teríamos cinco dias ainda pela frente e eu não tinha pressa alguma.

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Minha única preocupação era com o abastecimento de água e gelo. Queria também alugar um Buggy para podermos rodar pela ilha mais livremente, e já sabia que neste período, a demanda seria muito maior que a oferta, portanto, os preços estavam inflacionados. .

O Zimbros ancorado: um mundo flutuante isolado dos loucos, ou quase.Vai-e-vem com nosso pequeno infável

Por setenta pratas a diária conseguimos alugar uma lata velha e suja, mas que foi um grande quebra-galho. Num instante toda a tripulação sumiu e eu, com grande alívio, voltei só para bordo. Que maravilha a sensação de poder relaxar e ver o tempo passar sem preocupação alguma. O escritor americano Charles Bukowski descreveu certa vez, o ridículo dos turistas em busca da última palmeira da praia. Parece próprio da natureza humana querer ver o que está do lado de lá, sem se dar conta, muitas vezes, que o lado de cá é muito mais bonito. A mim, naquele momento, bastava a enseada ensolarada e de águas cristalinas onde o Zimbros estava ancorado em segurança. Desliguei o rádio e o telefone, abri o bar e me isolei do mundo. .

Também é da natureza do homem moderno conferir seu celular para ver se há alguma mensagem na memória do aparelho. Mania pura! No exato momento em que liguei meu aparelho, ele começou a tocar. Era o Joaquim, vi logo na tela e atendi. Ele poderia estar querendo algo importante lá em terra. Sucedeu-se um evento digno de um filme de Almodovar: "Estou aqui no porto com uma garota à procura do Luiz. Ele trouxe de Floripa uma roupa de neoprene, destas de mergulho, que vai ser usada por ela numa cerimônia de casamento hoje à tarde" disse rapidamente, passando o aparelho para a louca. Ela parecia em pânico, atrás de seu enxoval subaquático. Não entendi nada do que me disse. A garota tinha um sotaque bem mané lá da ilha. "Porra meu, tenho que agüentar essa chata e ainda pagar por um interurbano dos bem caros" pensei furioso, imaginando que tipo de traje seria aquele. Teria véu e grinalda? Em poucos minutos ela chegou à bordo e eu lhe entreguei, mal-humorado, sua veste de noiva. Nem dei papo, passei o pacote e voltei para dentro sem dizer sequer uma palavra. E eu que pensava estar a salvo dos lunáticos, em paz no meu pequeno mundo flutuante...

Mas Fernando de Noronha é um lugar para os anjos. Todos que vão para lá estão sintonizados numa mesma freqüência de comunhão com a natureza e com os espíritos superiores. O que mais me impressionou foi a fauna exuberante, nunca vi tantos peixes juntos na minha vida. É possível encontrar nas suas águas claras todos os tipos, de todos os tamanhos e cores. Diversos cardumes, aos montes, nadando próximos à praia. E nem precisa de aparelhos de mergulho muito sofisticados para assistir a estas maravilhas submarinas. Apenas com uma máscara comum, tartarugas, arraias, moréias, golfinhos, estavam ali ao alcance da vista. Os golfinhos rotatores são uma atração à parte.

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Mas, além da natureza, outro ponto alto da nossa estadia na ilha foram as intermináveis festas, na verdade muitos encontros com os amigos velejadores. Logo no primeiro dia fui à bordo do Athena, que ficara em primeiro lugar geral na sua categoria, para saldar minha dívida para com a tripulação pelo seu feito extraordinário. Além deles, reencontrei muitos velejadores que não via há tempos, como a querida Circe, que mora há anos em Recife. Fomos colegas de faculdade e, quando eu morei em Fortaleza, sempre nos encontrávamos. Fiquei sem vê-la por mais de dez anos e foi uma surpresa boa saber que ela já era uma veterana na Refeno. .

Outro amigo, o Crespo, navegador paranaense que competiu à bordo do veleiro Toatoa no Mar, veio uma tarde nos visitar. É sempre bom conversar com ele, o tipo do cara que conta as mais fantásticas aventuras como se fossem as coisas mais banais do mundo, assim como ir à um casamento num sábado. Em 1995 ele deixou as águas brasileiras para uma viagem que duraria quatro anos, a circunavegação do globo à bordo de seu bravo veleiro Anny Way. Um dia ainda chego lá, mas por enquanto ainda viajo com as histórias dele. .

Certa tarde, ao por do sol, estávamos à toa no cockpit e o Alfredo resolveu fazer um chimarrão para nós. Ele havia me trazido direto do Rio Grande, cuia, bomba, térmica e até o mate, tchê! A ocasião era perfeita. Reza a tradição que a primeira rodada é de quem a prepara, para conferir se ficou bom, se não está entupido e se a erva é boa. A água tem sua temperatura exata, nem quente, nem fria. É uma liturgia. Tudo corria bem até que, lá dentro, ouviu-se um grito: "Porra, quem deixou a bomba do mate cheia de sabão, cacete?". Era ele, Alfredo, uma fera. Não acalmou nem quando me declarei responsável pela iniqüidade. Na verdade, pouco antes, ao lavar a louça, passei sabão em tudo para economizar água, e esqueci de enxaguar os apetrechos do chimarrão. Foi um crime inafiançável que quase causou um motim a bordo. Nunca se deve mexer com os dogmas gaudérios. .

Aparecem às centenas com incríveis cambalhotas no ar, dando um show de acrobacia! E as aves? Centenas, de espécimes diferentes, voando próximos à superfície do mar em busca de alimento. O imponente Albatroz, com quase dois metros de envergadura, e oságeis Mergulhões, submergindo como uma fecha, fazem espetáculo que vale a viagem, basta ter olhos para enxergar. .

Renatinho e Roger: calouros em Noronha, ficaram com ouro na competição

Crespo: grande argonauta paranaense

João Norberto fiscaliza o chimarrão do Alfredo.

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O dia-a-dia em um barco, quando se está ancorado em segurança, é perfeito e passa muito rápido. Acorda-se cedo por conta da luz e do calor. Consequentemente dorme-se cedo também. Vive-se em constante atividade, pois sempre há algo para se fazer: cozinhar, limpar, abastecer a geladeira, arrumar as avarias e por aí afora. Nunca se fica parado. Uma das coisas que me incomoda muito é a bagunça na cozinha. Quando se está navegando, a pia é o lugar onde se amontoam todas as tralhas, copos, latas vazias, talheres, guimbas de cigarro, fósforos usados, enfim tudo. Como ela é grande, cabe tudo lá. Eu procuro sempre mantê-la mais ou menos em ordem. Mas ancorados, a história é outra, não tem por que deixá-la suja. Mas minhas lamentações não passavam de súplicas ao vento.

Outro lugar que exige higiene absoluta é o sanitário. Como disse Danuza Leão, ao sair de um banheiro, deixe tudo na mais perfeita ordem, aja como se tivesse cometido um assassinato. É uma verdade que, infelizmente, nem sempre é acatada pelos marujos. Um barco em alto mar está em permanente movimento e acertar o vaso é uma tarefa que exige muita pontaria. Sempre peço que o xixi seja feito sentado, mas para alguns marinheiros é inaceitável agir como as mulheres, mesmo que não tenha ninguém como testemunha. Por isso com dois dias de mar, o banheiro cheira a um mictório público. Quando paramos, normalmente a tarefa de limpeza do sanitário é uma responsabilidade que ninguém quer assumir, e sobra pra mim. É o tal negócio: o melhor barco que existe é sempre o dos amigos.

Cinco dias passam rápido em Fernando de Noronha, e logo chegamos à sexta-feira. Nossa saída estava marcada para a manhã seguinte. Largaríamos em regata para Natal, 200 milhas a oeste. Quando partir é doloroso, significa que a estadia foi boa, do contrário estaríamos ansiosos para ir embora. Minha tripulação estava desfalcada: Alfredo, Guto e Tarcísio já tinham voltado de avião. Ficamos Luiz e eu à bordo. Convidei o Marco para vir conosco e ele topou. Ótimo, três era a tripulação ideal para uma travessia tranqüila como aquela. Na véspera, após o cansativo e interminável vai-e-vem com os garrafões de abastecimento d'água, concluímos os últimos preparativos para a viagem. Ao anoitecer fizemos um belo churrasco para saborear nossos últimos momentos naquele éden atlântico.

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Os morros Fafá de Belém: o difícil foi ir embora.

Final da parte 15

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Acordamos mais cedo que de costume naquele nosso último sábado nas ensolaradas enseadas de Fernando de Noronha. Eram quase seis e já estávamos atrasados para a largada da regata que sairia as nove em ponto com destino à Natal no Rio Grande do Norte. Ainda havia alguns detalhes técnicos que faltavam serem conferidos, além de uma última ida à terra para abastecermos o barco de água e gelo. O trecho que nos esperava nada tinha de complicado, seriam apenas 200 milhas com vento favorável e mar relativamente calmo. "Dá para almoçarmos lá amanhã" previmos otimistas.

Cerca de trinta barcos estavam na raia e, infelizmente, chegamos atrasados ao tiro de largada. Quando chegamos, a maioria já ia longe à nossa frente, e eu tive que usar um artifício completamente ilegal para descontar o prejuízo: acelerei o motor até quase cruzar linha. A regra diz que os motores devem ser desligados cinco minutos antes da saída, sob pena de desclassificação. Mas eu não estava levando muito a sério a competição e passei por cima das leis sem culpa. Ainda bem que ninguém viu.Marco, Luiz e eu éramos os tripulantes nessa perna da viagem. Ambos são bons velejadores e experientes regateiros o que nos ajudou a ganhar terreno no início da peleja. É sempre uma grande emoção a largada de uma regata. Normalmente os barcos ainda estão bem próximos uns dos outros e é preciso usar muita técnica para ultrapassá-los. Aos poucos fomos deixando os mais lentos para trás e nos distanciando do restante da flotilha. João Norberto do Drakon largou muito bem, e estava a uma boa distância na nossa frente. Fomos ao seu encalço.

Nosso rumo era oeste e o vento soprava de sudeste, perfeito! Em alguns minutos, ao saímos da proteção da ilha, uma lufada quente e generosa encheu as velas e a velocidade aumentou. O relevo do arquipélago foi aos poucos ficando para trás e, com alguma tristeza, acenamos para Fernando de Noronha pela última vez. "Até ano que vem" pensei. Acertamos o rumo para ficarmos um pouco a barlavento do nosso destino, afinamos os panos, aumentamos o volume da música e nos preparamos para uma excelente navegada. A segunda melhor coisa que existe na vida é uma velejada. A primeira é uma grande velejada!

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Como a Flavia, minha filha de dez anos, me vê. Parte 16

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O Drakon na nossa proa era uma grande razão para levarmos o Zimbros na ponta dos dedos. Vagarosamente fomos nos aproximando até que finalmente pudemos passá-lo, não sem as costumeiras gozações marinheiras. No cockpit apenas o Joaquim a testemunhar nossa performance. Acho que o João e o Iens se meteram pra dentro da cabine para se pouparem do constrangimento de se verem deixados para trás. .

O Drakon na luta: nosso adversário não entregou os pontos.

À vista, na nossa frente, restava o Gaivota Sete, um 34 pés bem marinheiro, equipado com velas exóticas, um tecido especial que aumenta seu desempenho. Fomos à sua caça, e não demorou para que nossa distância diminuísse visivelmente. Os caras do outro barco ficaram inseguros, resolveram trocar de vela e subiram o Genaker. Para isso mudaram de bordo, mais para o nosso boreste, em um rumo completamente fora de Natal. Foi um erro imperdoável e, para desespero deles, fizemos uma ultrapassagem à altura de um gol de Ronaldinho. Mas eles não estavam a fim de entregar os pontos sem luta. Recolocaram a Genoa, vieram para cima da gente e nos alcançaram. A briga ficou pessoal. Em certo momento ao cambar novamente, eles se puseram em rota de colisão com o Zimbros, mas nós tínhamos a preferência pelas regras. "Água, água" gritamos na linguagem náutica de quem tem a vez. Contrariando a mais básica das leis físicas, dois veleiros no meio do vasto oceano brigavam para estar no mesmo lugar ao mesmo tempo. Era inacreditável, mas verdade. Infelizmente, a outra equipe acordou, conseguiu reparar seus erros, e nos superou seguindo na frente.

Anoiteceu cedo, lá pelas cinco e meia. Recolhi o toldo protetor para ver os astros. Marte foi o primeiro brilho a aparecer no céu. No escuro, um bom jeito de se navegar é através das estrelas. Marca-se o rumo na bússola e a seguir procura-se no horizonte uma estrela mais visível para ir atrás. A nossa era Antares. Estima-se que na Via Láctea existam cerca de 200 bilhões de estrelas. Próximo ao zênite, a oeste, está Escorpião, a constelação que representa bem o animal que lhe deu o nome. Podemos facilmente identificar todas as estrelas que compõem seu corpo, em especial a vermelha Antares, localizada bem no coração do bicho e cujo nome significa "rival de Marte" devido à cor. "Siga Antares" disse o Luiz querendo facilitar a vida do timoneiro. Gostei, achei bonito o "siga Antares" dele, tinha tudo a ver conosco naquela hora.

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Luiz Schaefer é de Florianópolis e eu o conheço há mais de vinte anos. Meu irmão Guto foi casado com a irmã dele. "Você pode ter uma ex-mulher, mas um ex-cunhado nunca" diz ele querendo mostrar que, muitas vezes, o afeto entre amigos está acima das encrencas entre marido e mulher, estas sim bastante comuns. Quando o vi a primeira vez, ainda jovens, tenho a impressão de ter sido dentro de um barco a vela. Ele é tão fanático que possui dois veleiros, um Microtoner de 17 pés na Lagoa da Conceição e outro, oceânico de 31 pés, o Bruxo, uma máquina de ganhar regatas. Luiz e eu voltamos a navegar juntos aqui na Refeno, mas parece que, para quem veleja, o mundo é mesmo redondo e sempre estamos nos encontrando dentro d’água, embora em barcos diferentes.

Milhares de anos atrás pensava-se que a Terra era um disco achatado com o oceano à volta, tendo por cima a abóbada celeste. Gerações, sobretudo de egípcios e babilônios, observavam as estrelas em busca de presságios. Embora seu conhecimento astronômico fosse mais ou menos exato, nunca se duvidou que a Terra fosse plana e o céu uma abóbada. Foi então no século VI a.C. que o grego Pitágoras, observando a sombra arrendodada da Terra sobre a Lua durante um eclipse, afirmou que nosso planeta era esférico, embora julgasse ser ele o centro do Universo. No começo a idéia foi ridicularizada, mas posteriormente passou a ser aceita. Dois séculos mais tarde Aristaco de Samos expôs uma estranha teoria que ficou quase mil anos esquecida. Afirmava que era em volta do Sol que todos os outros planetas giravam. O mundo haveria que passar ainda por muitas trevas e foqueiras para que pudéssemos iluminar nosso conhecimento e descobrirmos que, muitas vezes parecemos mesmo um planeta achatado guiado por 4maus presságios. .

Luiz no timão: no encalço dos barcos a nossa frente

Ao brilho de uma estrela cadente, fiz um pedido secreto, e fui dormir. Acordei de manhã, pois nem o Luiz, nem o Marco quiseram abrir mão de ficarem no convés durante o resto da noite. A luz do sol naquelas latitudes é muito forte, chega a ferir os olhos. Estava quente apesar do vento, e logo descobrimos que tínhamos que reerguer nossa capota protetora. Tínhamos andado muito bem e nossa previsão era de chegarmos a Natal no começo da tarde. Lá pelas nove, o Luiz decretou que haveria de ser dezoito horas em algum lugar do mundo e serviu-se de um scotch on the rocks duplo. Como no mar somos todos solidários, acompanhei meu timoneiro na sua lida etílica, afinal nossa viagem estava quase no fim.

A clara e plana costa potiguar nos surgiu no horizonte aos poucos. Neste trecho do litoral brasileiro, o agreste sertão aproxima-se do mar e as dunas brancas prevalecem na geografia. Dá um belo contraste o verde azulado das águas contra o brilho ofuscante das dunas. Ao longe uma pequena jangada com suas velas maltrapilhas nos mostrava como são bons os marinheiros destes mares. Na verdade são heróis. Em Canoa Quebrada no começo dos anos 80, tive a oportunidade, de navegar em mar aberto a bordo de uma dessas embarcações. Foi uma das piores experiências da minha vida. Passei muito mal, enjoei à beça, parecia que ia morrer. Coloquei os bofes para fora da saída à chegada e mal tive forças para ajudar o pescador a retirar sua jangada d'água. À sombra de um pequeno abrigo deitei e dormi por horas até melhorar. Jurei que nunca mais embarcaria numa fria daquelas. Naturalmente anos depois acabei esquecendo a promessa.

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Ao contrário desses destemidos marinheiros que navegavam quase por intuição, o chart-plotter, as cartas náuticas e as bóias de sinalização nos guiaram em segurança para dentro do Rio Potengi, dentro do qual se situam o Porto e o Iate Clube. Ao passarmos pelos molhes artificiais que protegem a barra, ao lado da belíssima Fortaleza dos Reis Magos, a ondulação do mar cessou por completo e tudo mudou a bordo. "Do alto daquelas muralhas, quatro séculos vos contemplam tripulação" disse eu, querendo imitar Napoleão. Mas sou só um pouco louco, e no fundo me sentia realizado em poder fechar em segurança mais uma etapa da minha história.

O vento, protegido pelo continente acalmou e, vagarosamente, cruzamos a linha, recebendo o tiro de chegada com alegria e alívio. Ajudados pelos funcionários do clube, jogamos âncora um pouco abaixo da sede do Iate Clube de Natal. O lugar era um pouco esquisito, com uma correnteza forte e, pior, longe dos olhos dos seguranças do iate. Mas o momento não era de preocupações, queríamos apenas ir para terra e aproveitar o melhor da culinária do Rio Grande do Norte: agulha frita, carangueijo, queijo coalho, carne de sol, tapioca.... E, óbvio, cerveja gelada!

Quanto ao resultado da regata nem me dei ao trabalho de conferir minha classificação para evitar a contrariedade que senti quando cheguei a Fernando de Noronha. "Venci essa" concluí satisfeito. Naquele momento meu objetivo maior era voltar para casa, mas já pensando qual seria meu próximo destino com o Zimbros: "para o norte ou para o sul?" era a questão.

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O Forte dos Reis Magos constuído pelos holandeses há quatro séculos.

Final da parte 16

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Visto do mar, o relevo em terra era baixo, deixando aparecer apenas uma rala vegetação sobre as dunas. A profundidade diminuía rapidamente e as ondas altas batiam de lado no costado do Zimbros. Faltava pouco para a entrada da barra de um rio cujo nome eu nem sabia direito. De repente um baque seco! A quilha tocou o fundo e o barco parou seu curso. O leme não obedecia mais e perdi o controle sobre o rumo. À medida que as vagas nos açoitavam lateralmente, o barco ia, aos solavancos, cada vez mais para o raso, ficando cada vez mais preso no banco de areia. Ninguém à vista para pedir socorro, e se não pudesse desencalhar em poucos minutos, o veleiro estaria condenado para sempre. Eu gritava como um louco para o vazio, não havia quem ouvisse meus lamentos...

Pulei na cama sobressaltado. Acabara de ter um pesadelo que acompanhava meu sono nos últimos dias: o Zimbros encalhado e perdido numa praia distante do nordeste brasileiro. Eu andava inseguro com relação à próxima etapa da minha viagem, ir de Natal a São Luis do Maranhão, tentando entrar em algumas barras do litoral que separa as duas capitais. Eu nunca havia navegado naqueles mares, apenas sabia que a costa brasileira, depois do Cabo do Calcanhar no Rio Grande do Norte, era cheia de bancos e lajes traiçoeiras. Nas cartas náuticas e nos livros via nomes como Touros, Galinhos, Jeriquaquara, Tutóia, Preguiças e imaginava, cheio de expectativa e medo, se seria seguro parar em tantos portos exóticos e distantes.

Poucos dias depois, no início de dezembro de 2003, cheguei à Natal. Fazia dois meses que estivera lá vindo de Fernando de Noronha e mal podia esperar para rever o Zimbros, torcendo para que tudo estivesse em ordem à bordo. Um barco parado por tanto tempo é uma fonte segura de problemas. Eu havia deixado um responsável para cuidar da sua manutenção básica e da sua segurança, mas não estava muito convicto da competência do cara. Em breve estas minhas desconfianças, infelizmente, viriam a se confirmar.

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Parte 17

A intrépida tripulação do Zimbros: Arnaldo, André e Roberto

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A minha equipe convocada para essa etapa foi aparecendo aos poucos. Roberto, um carioca que mora em Natal há anos, foi o primeiro. Depois Arnaldo, vindo de Curitiba e finalmente André, de Fortaleza. Nenhum deles se conhecia entre si e, em comum, tinham apenas o gosto pela aventura. Roberto Browne é pai de um amigo meu e tínhamos nos falado apenas por telefone. Navegador e mergulhador experiente, já teve seu próprio veleiro e conhece bem o litoral por onde haveríamos de passar. Era o tipo do companheiro que eu precisava para ficar menos inseguro. André Grieser já tinha me acompanhado no trecho entre Vitória e Salvador. Um cara safo e que sabe resolver problemas, largou seus projetos para ousar-se em mais uma etapa dessa minha viagem.

Finalmente, Arnaldo Scherer, um grande amigo de décadas, colega de colégio, amante do mar, que jamais havia navegado num veleiro oceânico, mas que tinha alguma experiência em navegação de monotipos. .

Abastecidos e apresentados, nos fizemos ao mar numa quinta-feira, sob um brilhante sol típico das manhãs potiguares. Um dia perfeito, com vento sudeste soprando de fraco a moderado, mas suficiente para inflar nossas velas no rumo certo. Ainda dentro das águas abrigadas do Rio Potengi, surgiram os primeiros problemas: o piloto automático não quis funcionar e as baterias não estavam segurando a carga. Será que um era conseqüência do outro? A resposta só poderia ser confirmada em Fortaleza. Procurei me conformar, pois parecia ser normal, sempre alguma coisa não funcionava à bordo, por mais que me esforçasse para que tudo estivesse em ordem. Descobri cedo que meu encarregado não andou cumprindo suas obrigações de manutenção conforme o combinado. Suponho que ele tenha usado o guincho da âncora com o motor desligado e isso arriou minhas baterias e minha paciência. Mas naquele momento nada havia a fazer, exceto traçar o rumo e prosseguir .

Ao vencermos a barra, o movimento das ondas agitou o conforto de bordo, mas à medida que nos afastamos da terra, direcionamos nossa proa mais para o norte, e ficamos melhores posicionados com as vagas vindo pela popa. Iríamos passar próximo ao Cabo de São Roque, o ponto da costa brasileira geograficamente mais próximo da África. Localizado vinte milhas acima de Natal, o cabo determina o começo do Canal de São Roque, uma estreita passagem por entre baixios que se prolongam por milhas. Foi uma travessia feita com muito cuidado, mas com segurança, já que Roberto conhecia bem aquelas águas. A costa nesse trecho do litoral é plana com muitas dunas, e a orientação pelo relevo é dificil, pois não se distinguem pontos marcantes na praia, exceto pequenas vilas. Mas Bob, conhecedor de cada palmo daquele litoral, sabia de cor o nome de todas as praias. O balanço do mar me deixou um pouco enjoado, e o melhor que pude fazer foi deitar-me e ficar quieto por uns instantes.

Deixamos o Canal de São Roque para trás e, às quatro da tarde, vencemos finalmente o mítico Cabo do Calcanhar, o lugar onde o Brasil faz a curva. A partir daquele ponto, o nosso litoral se estende no sentido sudeste-noroeste e os ventos alísios sopram constantemente do quadrante leste. A força das correntes marinhas é muito forte e ajuda aos navegadores que seguem para cima, rumo ao norte. Mas é um caminho sem volta, já que para cada dia subindo a costa pelo mar, são necessários pelo menos três para retornar. Essas dificuldades, somadas aos traiçoeiros baixios que se prolongam até o Maranhão, foram uma das causas do atraso na colonização da Região Norte pelos portugueses. Foi somente no século dezessete que os primeiros colonizadores se fixaram por ali.

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O rumo passou a 330º na bússola. Queríamos pernoitar em uma praia conhecida do Bob, São Miguel do Gostoso. Protegida pela Ponta de Santo Cristo, e a única saliência no litoral do Rio Grande do Norte. O cabo forma uma estreita angra onde se localiza a vila. Escurecia rapidamente, e eu não queria entrar na enseada à noite. Liguei o motor para ganharmos um pouco de velocidade e torci para que a noite demorasse a chegar. Com os últimos raios do dia, vencemos as pedras do cabo e nos dirigimos para dentro do porto, muito vagarosamente. A profundidade baixa e as pedras próximas à praia, nos diziam que aquele não era um lugar seguro para se chegar à noite. Jogamos âncora com maré baixa a dois metros de profundidade, longe das luzes da vila. O vento era forte e as ondas, desviadas pela ponta, entravam de lado no nosso abrigo, fazendo o barco balançar muito desconfortavelmente. Mas estávamos confiantes pois tínhamos chegado em segurança. .

Farol do Calcanhar: um dos mais altos do mundo com 62 metros.

Logo ao amanhecer, depois de uma noite terrível com o Zimbros dançando de uma lado para outro, resolvemos mudar nosso ancoradouro. Jogamos ferro frente à vila, que ficara a umas duas milhas à oeste da nossa posição. O vento acalmara e tudo parecia seguro. Fomos, pois fazer o reconhecimento da praia. O nome do lugar não podia ser mais convidativo: Gostoso! Bob já era freguês daquele paraíso há muito tempo, mas nós, turistas de primeira viagem, estávamos excitados. Trata-se de uma cidadezinha de uns oito mil habitantes aonde só recentemente chegaram o asfalto e a luz elétrica. Um cartão postal: dunas, pouca vegetação e uma paisagem quase desértica. Assolada por um vento eterno, suas águas são muito procuradas pelos praticantes do windsulf.

Ao desembarcamos, mais problemas: o motor de popa do nosso botinho não funcionava. Pensei nos cem pilas que dei ao rapaz que cuidou do barco em Natal, para que o levasse ao mecânico. Mas como o mar não é um bom lugar para remorsos, fomos a remo mesmo. Arnaldo nadou até a praia. Em terra firme, a primeira parada, naturalmente, foi em um boteco de um amigo do Bob, chamado Leonardo. Mas eram só dez da manhã, muito cedo ainda para o primeiro trago. Resolvemos tomar um café. O sol já estava forte e o dia ia ser longo. Procuramos saber de alguém que pudesse fazer uma revisão no nosso motorzinho. Em poucos minutos chegava a nós o Pedrinho e seu auxiliar Pedro, ambos mecânicos de moto. Com a mesma rapidez que apareceram, retornaram com o Evinrude funcionando direitinho. Dei vintão para os dois e ainda achei caro. Mal poderia imaginar que a agilidade deles iria me tirar de uma grande enrascada em poucas horas.

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Pedrinho e Pedro: a rapidez dos mecânicos me salvou o barco.

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Gostoso é um lugar de pescadores, convertido em município há pouco tempo. A estrutura urbana é muito precária ainda, e só os viajantes muito descolados sabem chegar lá. Pela manhã os homens do mar vão retornando com o resultado do seu trabalho. Não pudemos resistir, compramos peixes e lagostas, quase vivos ainda, sem nunca terem tocado qualquer tipo de gelo. A esposa de Leonardo encarregou-se do seu preparo. Como ainda era cedo, resolvemos ir até a Ponta de Santo Cristo, a umas boas duas horas de caminhada, ida e volta. O lugar, lindo e deserto, era meio assustador. Durante o trajeto, o vento aumentou muito e era quase impossível caminhar contra ele. Eu estava meio angustiado. Preocupado com o barco resolvi voltar logo. .

Sem comentários

Supõe-se ter sido nessas areias que em agosto de 1501 aportou a primeira frota de exploração do nosso território. Comandada pelo legendário navegador português Gonçalo Coelho, suas três caravelas traziam à bordo o florentino Américo Vespúcio. Lá os tripulantes assistiram horrorizados ao primeiro banquete antropofágico que se tem notícias no Novo Mundo. Segundo descreveu Vespúcio em sua famosa Lettera, uma carta escrita em 1504 a um amigo seu de Florença e que se tornaria famosa, alguns grumetes vieram à praia para negociar com os índios Potiguar, cujos territórios estediam-se desde o atual Ceará até João Pessoa. Um deles foi cercado por várias mulheres que o apalpava e examinava com grande curiosidade. De repente uma índia apareceu por trás e desferiu-lhe um potente golpe de tacape na cabeça, matando-o na hora. Imediatamente as outras o arrastaram pelos pés enquanto os homens, que estavam escondidos, lançaram um feroz ataque contra os demais marinheiros, que fugiram apavorados. A seguir os indígenas esquartejaram, assaram e comeram a pobre vítima ali mesmo na praia, sob a assistência de seus colegas imobilizados nos navios. Este foi o primeiro europeu, ao que parece, a perder a cabeça por uma das nossas nativas.

Ritual antrofágico: o primeiro com um europeu foi em Gostoso.

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Quando voltamos ao boteco, eu estava muito cansado pela caminhada. Mas chegamos a tempo de provar as iguarias preparadas pela nossa amiga cozinheira. Foi impagável a fritada de lagosta servida com postas de peixe frescos acompanhados de cerveja muito gelada! Vi o barco em segurança e naquele momento relaxei de verdade. De repente André disse "Acho que o barco está andando". Mas nada nos pareceu anormal. "Deixa pra lá André, você está vendo coisas" falamos, mais interessados no outro punhado de lagostas que o Leonardo nos servia. "O Zimbros está indo embora, pôrra!" gritou o André novamente, dessa vez pulando da mesa e correndo em direção a praia. E era verdade, meu barco partia sem mim. Fui atrás, seguido do Arnaldo. Rapidamente colocamos nosso botinho n'água, com o motor funcionando graças aos Pedrinhos, e partimos em busca da nossa casa que se afastava rapidamente em direção ao mar aberto. Mas o bote era pequeno demais para três, e o Zimbros continuava a se distanciar a despeito de estarmos com toda potência no pequeno motor. "Arnaldo, você vai ter que pular n'água" disse. Aliviados do seu peso, conseguimos nos aproximar muito lentamente do barco que parecia pilotado por marinheiros fantasmas. Depois de um tempo que pareceu a eternidade finalmente conseguimos subir à bordo e tomar controle sobre nossa embarcação. Imediatamente fui para proa saber o que tinha acontecido com a âncora. Não havia nada lá, ferro, corrente e parte do cabo tinham desaparecido. Liguei o motor, assumi o leme e voltamos para a praia. .

O vento aumentou muito e eu estava arriscado a perder mais uma âncora se quisesse fundear no mesmo local de antes. Aos gritos, avisamos Arnaldo e Bob o que ocorrera e fomos nos abrigar onde havíamos passamos a noite. Apesar do balanço interminável, aquele parecia ser um abrigo mais confiável. Jogamos minha âncora reserva, uma Bruce de 15 Kg, que nada adiantou, pois ela soltou-se e o barco começou a correr para terra. Cara, o vento estava muito forte mesmo. Joguei uma segunda âncora reserva, uma Danfort de alumínio, e começamos a rezar para que desse certo. Mergulhei no mar para verificar se não havia nenhum cabo enrolado na quilha. Como a água estava turva, fui tocando o casco com as mãos. No mesmo instante senti como se estivesse sendo cortado por mil navalhas. A parte submersa do barco estava cheia de cracas e, à medida que eu passava as mãos por ele, minha carne ia sendo rasgada por infinitas pontas cortantes. Mal deu para sentir dor, frente à minha preocupação com a eventualidade de ter alguma amarra presa à quilha. Mas nada havia! Subi a bordo e pude ver ao vivo o estrago nas minha duas mãos e no meu pulso. Dezenas de cortes, alguns bem profundos! O sangue misturado à água salgada corria pelos braços e pingava no chão. Um espetáculo comovente! Mas o momento não era para dores. O barco parecia estar seguro, bem preso às âncoras. Permanecemos a bordo por mais de uma hora para nos certificarmos de que estávamos realmente parados. Estávamos muito cansados e foi um alívio podermos relaxar finalmente daquele estressante exercício. "André, vou a qualquer lugar contigo, cara" desabafei agradecido, enquanto ele nos servia um lapada de conhaque. O que teria acontecido com minha âncora? Como ela pôde soltar-se se estava presa pela corrente a um gancho amarrado no cunho da proa? Porque o guincho não prendeu o cabo? São perguntas que estão sem resposta até hoje. Mas naquela hora o que me preocupava era que havia perdido minha Bruce com corrente e tudo, um prejuízo que me faria muita falta no futuro. Quanto à sujeira no casco, era responsabilidade do meu auxiliar lá de Natal, a limpeza do fundo do barco, já que a poluição no Rio Potengi, onde fiquei ancorado por dois meses, facilitava a formação de moluscos. Mais uma que ele ficou me devendo. .

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Enquanto isso, em terra, Bob já havia convocado seus amigos para tentarem recuperar nosso prejuízo submerso. Escurecia e ficou difícil o mergulho. Combinaram que, aos primeiros raios do dia seguinte, com auxílio de um compressor, eles mergulhariam em busca do meu naufrágio. Roberto dormiria em terra, e pela manhã, nós o resgataríamos com ou sem ferro, e partiríamos adiante.

Ao amanhecer, eu já estava de pé, preocupado com nossa saída. Na véspera, à noite tomamos uns drinques a mais e minha cabeça estava pesando o dobro. A retirada das duas âncoras que estavam n'água, foi uma mão de obra à parte. Mal o Arnaldo acordou, teve que mergulhar para verificar se os cabos não estavam enroscados um no outro. A grande surpresa foi que a Bruce estava completamente solta, enquanto toda nossa segurança ficou por conta da Danfort, na qual eu confiava pouco, por parecer frágil. Voltamos ao porto dos pescadores para resgatar Bob e se possível meu precioso objeto perdido.

O que parecia um simples embarque virou um samba do crioulo doido. Bob nos aguardava no mar, sobre o casco de uma frágil jangada, acompanhado de um pescador. Ao seus pés, nossa âncora e a corrente. A maré estava baixa, e quando quis me aproximar deles, o Zimbros subiu em cima de uma laje e encalhou com um barulho enorme, o eco da batida do aço contra a pedra. Nada muito grave, mas foi assustador ficar imobilizado a dezenas de metros da praia com um vento forte batendo no costado. "Arnaldo, vá buscá-lo com o botinho, aqui tem pedras, e não posso me aproximar mais" disse.

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No meio do caminho, o motorzinho parou de novo, deixando o Arnaldo à deriva, afastando-se rapidamente de nós com a maré e as rajadas. Minha cabeça doía, e eu não podia acreditar que aquilo acontecia comigo naquela hora da manhã. Bob gritava de lá, eu gritava de cá, ninguém se entendia. Finalmente depois de muitas peripécias que pareceram intermináveis, pudemos resgatar nossos valorosos marinheiros e nossos pertences perdidos ao mar. Era hora de partir o quanto antes daquele porto, antes que mais algum drama se abatesse sobre nós.

Contudo, ainda nos restavam alguns contratempos. Subir o botinho e o seu motor, prendê-los em segurança, levantar as velas, traçar a rota, desviar das pedras da entrada da enseada, tudo com muito vento e correnteza forte. Foi uma função tão cansativa, que quando finalmente chegamos em águas profundas e ajustamos o rumo, eu estava esgotado, parecia que não me recuperaria nunca mais. Retirei-me para meu beliche para tentar recuperar um pouco meu ânimo, estava exausto e com uma ressaca das brabas. Nosso destino estava 50 milhas a noroeste, um pequeno porto chamado Galinhos, do qual eu já ouvira falar e queria entrar por ser fácil e bem sinalizado.

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Final da parte 17

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A nossa partida de Gostoso, no litoral do Rio Grande do Norte, foi muito tumultuada. O vento forte nos atrapalhou bastante. Para piorar as coisas, eu estava cansado de uma noite mal-dormida, e com uma ressaca das brabas. Uma vez em mar aberto, tracei o rumo para a barra de Galinhos, localizada 50 milhas a oeste. A chegada estava prevista lá pelas duas da tarde. Era preciso estar muito atento, pois naquelas águas existem muitos bancos de areia longe da costa, e a navegação deveria ser feita próximo ao litoral. Como Roberto já conhecia bem o trecho, pude relaxar e procurei dormir um pouco.

Navegávamos com pouca profundidade, cerca de quatro metros, e o vento soprava pela popa a vinte nós. O mar estava agitado, as ondas grandes, mas favoráveis. Nossas velas estavam armadas em Asa de Pombo, ou seja, cada uma para um lado do barco, a Grande por bombordo e a Genoa, aberta com o Pau de Spi, por boreste. Seria uma navegada maravilhosa, senão fosse pela minha indisposição. Deitado no beliche da sala, ouvia Bob, André e Arnaldo lá fora nos seus intermináveis casos. O Roberto é um cara capaz de falar por dias de suas aventuras sem nunca ser repetitivo. Apesar de pedir segredo, ele é formado em Engenharia Elétrica e chegou a trabalhar um tempo na Eletrobrás, mas é um assunto que prefere esquecer. Numa determinada época da sua vida, deu um adeus para os confortos previsíveis do dia-a-dia e se mandou para o mundo. "Hoje, faço exatamente como o peixe, nada!!!" costuma repetir quando indagamos sobre sua profissão.´ .

André & Bob: grandes companheiros de aventuras.Parte 18

Asa de Pombo: armação ideal para ventos de popa.

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Mas eu não conseguia dormir, apenas cochilava e prestava atenção na conversa da tripulação. De repente ouço um barulho dos infernos e um solavanco assustador no barco. "Puta merda, encalhamos no meio do mar" foi a primeira coisa que pensei. Assustado, pulei da cama e corri para fora e, ao ver a cara dos três, descobri que não era tão grave assim. Tínhamos dado um jaibe: o vento entrou por trás da vela grande, e ela passou como um foguete para o bordo contrário. É uma distração que pode custar caro, afinal a velocidade e o peso da retranca são tão grandes, que pode arrancar a cabeça de um marinheiro distraído. Eu havia preparado lá em Vitória, um cabo com moitão e mordedor para prender a retranca e evitar este tipo de acidente. Mas minha engenhoca nunca funcionou direito e acabei deixando de lado meu invento. A partir de então a solução mais prática foi improvisar um preventer, um cabo solteiro amarrando a retranca à borda do barco. Simples e barato, e como o próprio nome diz, uma solução preventiva. Mas meu remédio chegou um pouco tarde, o jaibe tinha acabado de danificar todo o meu sistema de contra-escota.

As baterias estavam arriadas, o piloto automático não queria trabalhar e agora aquilo! Detesto estar no mar e ver os equipamentos se quebrar com o uso. Abala a moral da tripulação. Como eu estava muito combalido, voltei para o meu abrigo, resmungando para mim mesmo. Faltavam algumas milhas para o nosso destino e eu precisava chegar lá um pouco mais inteiro, pois uma barra nunca é fácil. Levantei-me logo depois, com o alarme do chart-plotter avisando que estávamos próximos da entrada de Galinhos. Fomos orientados em Natal a nos guiar por bóias de sinalização que demarcavam a entrada. Mas cadê elas? Nada no horizonte. E onde estavam os rebocadores que atendem às plataformas da Petrobrás, localizadas próximas à costa? Necas! Apenas mar, céu e muito vento.

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A profundidade diminuía e as ondas aumentavam - o meu pesadelo estava ali na frente. Descemos as velas, ligamos o motor e pelo rádio, consegui contato com as plataformas, localizadas um pouco mais para fora da nossa posição. O operador nos atendeu muito bem e fez uma ponte entre nós e os rebocadores de terra. Soubemos que não haveria nenhum barco naquela hora para nos guiar barra adentro. Mas ele, gentilmente, se apressou em nos passar as posições das bóias de acesso ao porto. Consegui anotar a primeira, mas não pude suportar o mal-estar causado pelo calor e pelo balanço da cabine. Rapidamente fui para fora devolver o café da manhã aos peixes. Bob assumiu meu lugar e obteve as posições necessárias. Mas valeria a pena arriscar? Sem um prático que conhecesse a entrada seria muita perigoso entrar apenas com os way points das bóias. Fazer o quê? Bob resolveu na hora o impasse: "Oxvaldo, exte lugar é uma merda" fulminou com seu sotaque zona sul carioca. Era o que eu precisava para decidir. “Marujos vamos direto para Fortaleza" disse para alívio de todos. .

Bob: o cara conhece todo o litoral norte do Brasil.

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Subimos as velas, traçamos um novo rumo e aproamos o Zimbros para o litoral do Ceará. Apesar de desafogado com a decisão, eu piorara muito.Tinha muita náusea. Normalmente melhoro depois de vomitar, mas não naquela hora. Mal tive forças para verificar se nossa direção estava livre de obstáculos no chart-plotter e voltei a deitar. Mal conseguia trocar algumas palavras com os três e, deitado, passei algumas ordens que imaginava essenciais para nossa segurança. Mas era apenas um ridículo cacoete de comando, pois naquele momento eu não passava de um pobre arremedo de capitão. Felizmente a tripulação sabia muito bem o que fazer, e pudemos prosseguir enquanto a noite nos alcançava pelo leste. .

Com dificuldade consegui organizar o turno da noite, de três horas para cada dupla. Ao chegar a minha vez, junto com o André, juntei o resto de força que me restava e mal consegui cumprir minha parte. A noite estava quente e o vento soprava com força. Íamos à vela e no motor, para ajudar a carregar as baterias. O maior esforço, um sacrifício sem dó, era mesmo ter que ficar no leme tentando manter o rumo apenas com a bússola. A cada meia hora trocávamos de posição, para cansar menos. André estava no leme e eu, deitado no banco, olhava para a proa do barco. Já estávamos em águas cearenses quando, de repente, vi passar bem do nosso lado uma bandeirola, dessas de marcação de rede pesca. "Porra, pegamos uma rede" disse desligando o motor para evitar que a linha enrolasse no hélice. Mas foi inútil, pois a bóia prendeu-se no barco. André sugeriu que cortássemos a linha, mas seria muito perigoso tentar qualquer ação, debruçado na popa com um mar daqueles naquela hora. "Ao amanhecer fazemos isso" disse. Naquele momento o negócio era administrar o problema. "Não faça hoje aquilo que você pode deixar para o dia seguinte. “Amanhã pode ser que não precise mais" é uma das máximas do Bob que resolvi seguir à risca.

Ao terminar o turno voltei para minha cabine e dormi imediatamente. Acordei pouco depois com um barulho inexplicável vindo do casco. Era como se alguém estivesse batendo forte com os pés sobre a fibra. Parecia muito estranho, pois todos estavam quietos lá em cima. Em pouco descobri o segredo: eram as bóias do espinhel que, presos à quilha, batiam na parte inferior do casco. Pus na cabeça que não era nada de grave, afinal essas bóias normalmente são de isopor, e tentei dormir. Mas foi impossível com uma batucada daquelas no ouvido. "Espero que não danifique o leme" rezei baixinho. Ao amanhecer, logo com os primeiros raios do dia, fomos ver o estrago. "Arnaldo pra água". Era a senha para ele mergulhar e ver o quanto de linha estava ainda presa no barco. Foi uma operação complicada, pois tivemos que abaixar as velas e aproar o barco ao vento. Havia o perigo de cabos e linhas submersas prenderem Arnaldo no mergulho, “Deus me livre!” pensei. Mas ele é um atleta, grande nadador, e em minutos estava de volta com uma boa notícia: não havia sinal da rede abaixo do casco, até mesmo o hélice estava livre. "Um problema a menos" respiramos aliviados.

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Já que tudo estava bem, subimos os panos, refizemos o rumo e seguimos adiante. Havíamos perdido muito tempo parados ali no meio do nada. Todos estavam dispostos, exceto eu que não melhorara nem um pouco. Continuava com enjôo, feio na foto mesmo. Voltei para cama, mas só fazia piorar. Havia mais de vinte e quatro horas que eu não parava de vomitar. Para não me desidratar deixava por perto uma garrafa de água mineral que tomava aos poucos. Eu vivia aquele momento, sem dúvida o pior de toda minha viagem, com a velha questão que algum momento se defronta todo marinheiro: "O que é que eu estou fazendo aqui?"

Duvido que haja um velejador que nunca tenha se feito esta famosa pergunta pelo menos uma vez na vida. Mas eu sempre soube que não há nada a ser feito, exceto esperar passar. Haja paciência! Pobre daquele que se imagina em uma viagem de veleiro com aquelas imagens idílicas de garotas ao sol, dry Martini com azeitona, coquetéis de camarão... Nada disso acontece, pelo menos nem sempre.

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Foram muitos os amigos que se candidatam a viajar comigo no Zimbros. Contudo seria um pesadelo para a maioria enfrentar as durezas que, às vezes, somos obrigados a encarar. Vale a pena sofrer tanto? Claro! Faço tudo de novo sempre. Quando estou sofrendo a bordo não vejo a hora de chegar. Uma vez em terra firme, fico impaciente querendo voltar a bordo o mais rápido possível. Navegar é um vício, coisa de maluco mesmo.

Foi somente no meio da tarde que comecei a melhorar. Senti fome e pedi ao Arnaldo que me preparasse algo para comer. "Tudo bem, desde que eu não precise usar o fogão. Não fui com a cara dele, parece um dragão que sempre quer me queimar!" fulminou. Eu já tinha ouvido de tudo no Zimbros, mas essa foi a mais inacreditável de todas as diferenças entre a tripulação e o equipamento de bordo. É certo que alguns itens náuticos precisem de uma ergonomia mais ajustada, mas até então ninguém ainda tinha brigado com o fogão. Procurei não discutir, afinal de contas as origens de muitas diferenças são bastante passionais. "Pode ser banana com aveia" suspirei. A fome é o primeiro indício de melhora quando se está enjoado. Devorei minha papa, e aos poucos fui me recuperando até finalmente ter forças para dividir as conversas no cockpit. A tripulação me recebeu com festa, afinal todos estavam preocupados com meu mal estar e ficaram felizes com minha melhora. Em poucos minutos, Arnaldo esquentou o que restou das lagostas que trouxemos de Gostoso e fez um tira-gosto à altura do momento.

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Arnaldo: mergulhador e cozinheiro.

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Aproximamos-nos de terra para podermos ver melhor a costa. Morro Branco, Iguape, Aquiraz, quantas dunas, quantas praias! Muito sol e cachaça eu já tomei naquelas areias. Estávamos em um sábado radiante, o dia parecia ser de festa. Aliás, como a bordo todo dia é sábado, melhor seria dizer que em terra também era sábado. Cruzamos algumas jangadas que, ao nos ver, mudaram seu rumo em nossa direção. Decerto queriam conferir que diabos um barco estranho fazia em suas águas. Acenaram-nos amigavelmente. Era uma mútua admiração. Quase todos os povoados da costa nordestina devem sua existência ao seu principal equipamento de trabalho: a jangada. Sua origem é tão antiga que se perde no tempo. Gregos e romanos a empregavam. Nosso primeiro cronista Pero Vaz de Caminha confundiu-a com a almadia dos mouros. Esta escrito na Odisséia que Ulisses, meu ancestral colega de aventuras, fugiu da ilha Ogídia numa jangada. É tão identificada com o Ceará que José de Alencar escreveu: "Onde vai a afoita jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela?". O dia estava fantástico e eu navegava em boa companhia!

Certa vez, diz a lenda, um grande navio de bandeira estrangeira avistou em pleno mar uma jangada com dois pescadores. Pelos trajes dos homens e pelo tipo da embarcação pensaram tratar-se de náufragos. Fizeram parar as máquinas e cuidadosamente aproximaram-se da pequena jangada. Da amurada, aos gritos, os marinheiros tentaram estabelecer contato os pobres homens. Mas como falavam uma língua estranha os dois jangadeiros não conseguiam entendê-los de jeito nenhum. Entreolharam-se desconfiados e, após um instante, um disse ao outro “Compadre, eu não sei o que esses gringos estão falando, mas acho que eles estão precisando de ajuda”.

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Jangada: frágil embarcação. Símbolo do litoral nordestino

Fortaleza nos surgiu ao longe. Em poucas horas estaríamos em casa. Vagarosamente nos aproximamos da terra e tudo ficou familiar: a Praia do Futuro e suas areias longilíneas ofuscadas pelo sol da tarde, a Ponta do Mucuripe e o seu farol. Os enormes geradores de energia eólica giravam melancolicamente, pareciam nos acenar e a música de Manassés, o genial guitarrista cearense, era nossa trilha sonora naquele reencontro maravilhoso. Estávamos todos emocionados, eu especialmente, afinal não é sempre que se pode chegar em Fortaleza navegando. Fiquei orgulhoso do bravo Zimbros, que me levara até lá em segurança e sem o qual não poderia nem imaginar a seqüência de aventuras que vivi nos últimos oito meses. .

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Ao dobrarmos a Ponta do Mucuripe surgiram na nossa frente toda a praia de Iracema e os edifícios da sua orla que começavam a iluminar-se. Gosto muito da arquitetura de Fortaleza. Projetos arrojados, belas sacadas, cores, jardins e janelas abertas ao clima. Em Curitiba, o cinza predomina em tudo. Basta um apartamento ter sacadas para que sejam fechadas com vidro e grades. O mal-gosto em nome de um conforto ridículo altera todo um conceito de beleza. Ao ver a beira-mar na minha frente lembrei da minha pobre e mediana cidade, onde os prédios parecem caixotes baratos de alvenaria. .

Mas vamos voltar à beleza da chegada: o pôr-do-sol estava sublime e as luzes da cidade, aos poucos, foram aproximando-se. Nosso destino era o Baia Marina Hotel, que mal distinguíamos no lusco-fusco do entardecer. Safamos o enorme esqueleto abandonado de um antigo cargueiro e aproamos para as bóias verde e vermelha que determinavam a entrada da marina. Ao cruzarmos as pedras do molhe, já totalmente escuro, vislumbramos ao longe o perfil de algumas pessoas sobre o muro do hotel. "Papai, papai" gritou uma criança. Era o Tomaz, filho mais novo do André, nos aguardando cheio de ansiedade.

Aquele som nos pareceu música. Depois de alguns contratempos na atracação quandoninguém se entendeu a bordo, finalmente desembarcamos. Em terra tivemos uma recepção de aquecer o coração. Minha querida Marrom, Márcia, mulher do André e seus filhos Tomaz e Caio nos receberam com uma calorosa boas-vindas. Nada como uma recepção familiar ao chegar a um porto estrangeiro. Estávamos quase em casa, finalmente.

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Final da parte 18

Conferindo na carta a entrada de Fortaleza.

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Os quatro dias passados em Fortaleza foram poucos para matar a saudade de todos meus amigos. Sobretudo pelo enorme trabalho que tive para colocar tudo funcionando a bordo. Troquei todas as três baterias que alimentam o Zimbros de energia e reinstalei o piloto automático que, finalmente, voltou a funcionar. A tripulação foi toda mudada, com exceção do Bob: Arnaldo e André desembarcaram e, de Curitiba, chegaram Joaquim e Dudo, grandes companheiros já familiarizados com as manhas da vela. Nosso novo projeto era chegar até Jericoacoara, passar um dia lá, depois seguir até a barra do Rio Preguiças, limite oriental dos Lençóis Maranhenses. Na marina onde estávamos conhecemos um mestre de saveiro de Belém, que conhecia bem todos os segredos daqueles ermos. Ele nos forneceu cartas e dicas do acesso e garantiu que a entrada do rio era segura, sem pedras nem bancos próximos à praia. .

Na noite que antecedeu nossa saída fomos comemorar em um restaurante muito especial, o Alimenta. Comemos muito bem, mas procuramos segurar as pontas nas bebidas, afinal ainda estavam bem vivos na minha memória os maus momentos que passei no último trecho da viagem, seguramente causados pelo álcool. Duas garrafas de um Chardonay chileno para quatro foram suficientes para alegrar nossa despedida. Pela manhã, abastecidos e completos, nos despedimos da cidade de José de Alencar com uma ponta de dor no coração. A saída foi perfeita, com sol forte, vento favorável e mar tranqüilo.

A navegação naquele trecho da costa nordestina é relativamente segura, pois não existem os terríveis baixios do Rio Grande do Norte, pesadelo de qualquer marinheiro. Jeri estava a 120 milhas na direção noroeste, o que significava que chegaríamos lá ao amanhecer do dia seguinte. O vento soprava de 15 a 20 nós e o nosso rumo era 330º na bússola. A noite foi calma e a lua crescente iluminava nosso caminho. Jantamos um baião de dois feito pela Márcia, mulher do André, especialmente para nós. É um dos meus pratos favoritos, uma mistura de arroz, feijão e queijo temperado com coentro. Tem o gosto do Ceará.

Parte 19

Bob, Joaquim & Dudo: tripulação aflita por aventuras.

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Pouco antes do amanhecer, no meu turno, avistei o farol da ponta de Jeri a aproximadamente 45º a bombordo. Desfiz a armação da vela em Asa de Pombo e, com vento de través, rumei o barco para sua direção. Quando clareou pude identificar o contorno da serra, cujo relevo também dá nome à vila. Os nativos a chamam de Serrote. A profundidade diminuiu sensivelmente e aos poucos estávamos ao abrigo da pequena e rasa enseada. Jogamos âncora com quatro metros de profundidade. Ainda assim longe da praia, cerca de trezentos metros. A maré estava cheia, sua variação era grande e não quis arriscar chegar mais perto. O vento fraco e o mar calmo prometiam um dia radiante.

No cockpit fizemos um delicioso café da manhã e começamos a nos preparar para o desembarque. Tudo estava perfeito, exceto pelo motorzinho que voltou a encrencar e não funcionava de jeito nenhum. "Vou jogar esta porra n'água" disse irritado. Sem motor não havia condição nenhuma de ir a terra. Mas para esse tormento tínhamos a solução perfetia: o Dudo. O cara é capaz de desmontar qualquer mecanismo que lhe caia na mão, desde que tenha as chaves adequadas. Como eu não entendo nada de mecânica, tenho todas as ferramentas e ando com as pessoas certas. "Dudo ao trabalho. Foi por isto que te convidei" disse rindo. .

O Dudo é um amigão de muitos anos, nos conhecemos em provas de enduro que ambos participávamos. O gosto pela aventura fortaleceu nossa amizade. Ele é bem mais novo que eu, tem uns trinta e poucos anos e faz parte da geração coca-cola com vídeo-game. Mas nossa linguagem é comum e nos divertimos muito juntos. Quando garoto, costumava desmontar tudo o que via pela frente, mas nem sempre tinha o mesmo talento para recolocar o que havia tirado do lugar. Muitas vezes acabava com peças sobrando na sua mão. Uma vez foi um relógio de parede que sucumbiu à sua curiosidade. Seu pai demorou em perdoá-lo. Mas a experiência fez dele um bom mecânico. Em pouco tempo nosso motor estava novo, era apenas um minúsculo grão de borracha entupindo o respiro do tanque. Eu nunca teria conseguido achá-lo. Volúvel, voltei a fazer as pazes com meu querido motorzinho, pensando como teria seria injusto se o jogasse no mar, além de soberbo, é claro. Finalmente pudemos desembarcar. Bob ficou a bordo, pois os contratempos lá de Gostoso nos ensinaram a não deixar o barco naquelas águas sem alguém de plantão. O vento e o mar crescem com muita rapidez e eu não confiava mais nas minhas âncoras. Era a quarta vez que eu chegava em Jeri. Na primeira, há mais de vinte anos, a vila era desconhecida para o mundo. Ainda continua bela, apesar da multidão de turistas que visitam suas praias a cada ano. Não sou um saudosista, daqueles que preferem os lugares sempre inalterados. A descoberta de Jeri trouxe bastante benefício para os moradores. Lembro-me que lá não havia luz, água, escolas, postos de saúde e o pior de tudo: nenhum bar. Para chegar era preciso um dia inteiro de viagem. Os pneus do meu carro, na época, furaram dez vezes na ida e na volta. Foi uma odisséia! Mas não me arrependi, recordo-me que comíamos camarão e peixe seco junto com farinha, a única refeição que contratávamos a preço de banana.

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Mas isso foi há muito tempo. Foi só dar no New York Times que Jeri era uma das dez mais belas praias do mundo que, pronto, choveu gringo do globo todo! Os preços agora são os de Paris. Pagamos uma nota preta por uma pequena porção de peixe, ainda por cima congelado. Mas fazer o quê? Pelo menos o dinheiro que circula acaba ajudando um pouco os nativos. Em 1984 aquele incrível cenário de dunas, coqueiros e mar, foi transformado em Área de Proteção Ambiental garantindo, em teoria, sua proteção dos desmandos e do mau-gosto da invasão imobiliária que assola todo nosso litoral.

Ao entardecer o vento refrescou, o mar aumentou, e o barco começou a jogar muito. Permanecer ali seria muito desconfortável, além de perigoso. "É melhor dar o fora e passar a noite no mar, do que ficar aqui ancorados nesse liquidificador" disse o Bob com sabedoria. Eu tinha planos de partir somente no dia seguinte, para poder chegar aos Lençóis ao amanhecer do outro dia. Mas seria insuportável permanecer naquelas condições. "Vamos nessa, tripulação" decidi seguir os conselhos do nosso capitão. Enquanto erguíamos âncora e levantávamos as velas, anoiteceu. Ficou difícil trabalhar no escuro, apesar das luzes da cruzeta estarem ligadas. O breu era total, ouvia-se apenas o barulho do vento e do mar. .

Jericoacoara: a lendária praia cearense foi eleita uma das dez mais do mundo.

Quando conseguimos finalmente sair, desci para traçar o rumo no plotter, pois estava preocupado com os obstáculos próximos à costa. Ao nosso lado havia uma embarcação de pesca ancorada, e era impossível enxergá-la no escuro. Mais um problema para a saída. Repentinamente, lá de dentro, ouvi um estrondo do cão, com o Zimbros adernando forte para boreste. "Batemos no barco" foi a primeira coisa que pensei desesperado. Corri para cima e vi, aliviado, que não: tínhamos dado mais um jaibe, a retranca não estava presa e mudou de bordo numa velocidade mortal. Foi um susto, mas ainda bem que sem maiores consêqüencias. Velas arrumadas, retranca presa, rumo redefinido, vento e mar a favor, tudo voltou ao normal. Decidimos nossos turnos e prosseguimos tranqüilos no meio da noite. Amanhecemos no través de Parnaíba, litoral do Piauí. Aos poucos o clima ficou diferente, nuvens escuras apareceram no céu e choveu forte, a primeira vez desde a Bahia. Estávamos em águas maranhenses. Moral alta, todos bem a bordo, o Zimbros navegava em segurança, o que mais eu podia querer? Mas eu estava apreensivo. Chegaríamos à barra do Rio Preguiças lá pelo meio do dia, o vento aumentaria e o mar ficaria mais agitado. Naquelas condições seria arriscado entrar. Mas guardei segredo dos meus medos, todos estavam felizes, e eu não queria estragar o astral do momento.

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Aos poucos a terra nos surgiu pela proa. O litoral maranhense é plano e a costa só é vista quando se está bem próximo. A profundidade diminuiu, as ondas cresceram e o meu medo aumentou. Lá estava eu de novo tentando entrar em uma barra desconhecida, perigosa e sem ninguém por perto a nos orientar. Nenhum barco de pesca à vista. Seguindo as instruções do mestre lá de Fortaleza, chegamos bem próximo à praia, uns duzentos metros, e seguimos paralelo a ela rumo a oeste. Víamos apenas o farol de Caboré, localizado dentro da baia, mais nada, nem casas, nem gente. Profundidade: cinco metros, velocidade três nós, batimento cardíaco 250 por minuto. Ninguém conversava. "O cara disse que era fácil" pensei. Mas tudo é fácil para quem sabe, até falar grego. Quando a profundidade caiu para três metros decidi: "Não vai dar galera, meia-volta volver". O paraíso ao meu lado e eu sem saber a entrada, do lado de cá do muro. Foi decepcionante, mas um alívio para todos.

Era o meu quarto fracasso da viagem. Contrariado, desistia de entrar em uma barra desconhecida e retomava ao rumo da segurança de um porto sinalizado. Dessa vez para São Luis do Maranhão, localizado cerca de 120 milhas a oeste da nossa posição. Eram duas da tarde e a previsão de chegada era para a manhã do dia seguinte. Conferi no plotter qual seria a maré, pois na Baia de São Marcos só se entra com a enchente. "Ok, positivo, cheia, vai dar na mosca” gritei. Pelo menos não ficaríamos de fora com cara de bobos.

Noite tranqüila, vento bom, mar calmo, lua cheia e muitos barcos de pesca ao largo. Navegamos bem e pouco depois do amanhecer já conseguímos avistar as edificações da capital maranhense. A cor da água ficou marrom, as ondas diminuíram de tamanho, mas a profundidade continuou alta. Muitos navios apareceram, pois o trânsito de acesso ao Porto de Itaquí é enorme, me pareceu maior que o de Paranaguá. Ficamos com um olho neles e outro no plotter. Existem muitos bancos e baixios, mas todos sinalizados na carta. Era domingo, estava nublado, um dia com cara meio triste, mas estávamos a mil, felizes em chegar. Bob ao timão, fomos nos aproximamos procurando a melhor entrada pela carta do plotter. Joaquim, lá de dentro dava as coordenadas e nós, em cima, só palpites. De repente ele foi categórico: "Pessoal, pelo plotter aqui, estamos em cima da areia". Ocorre que a escala da nossa carta era muito pequena e, nesses casos, a precisão fica prejudicada. Não dá para confiar cegamente no aparelho em manobras mais restritas, perto da costa, por exemplo.

Avistamos alguns catamarãs manobrando dentro da baia onde desejávamos entrar. No mesmo instante aproximou-se de nós um pequeno barco a motor, casquinho como eles chamam, com dois marujos que nos orientaram sobre o melhor local de fundeio, ao lado de um veleiro de aço inglês. Era preciso estar muito atento com as incríveis variações de maré do Maranhão, que chegam a quase oito metros em determinadas épocas do ano. Para aquele domingo a oscilação seria de “apenas” quatro metros. Jogamos ferro próximo ao gringo e amarramos nossa popa numa enorme bóia metálica, usada pelas embarcações que fazem o translado até Alcântara. Mais tarde nos arrependeríamos amargamente disso, pois os responsáveis simplesmente nos tocaram dali, cheios de ameaças. .

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Deixamos o Zimbros ancorado na Ponta da Areia, aos cuidados dos nossos amigos e seguimos de carro para os Lençóis Maranhenses, acompanhados do Glauco, um cara que não dispensa uma boa aventura. Nossa primeira parada foi em Atins, uma pequena vila de pescadores próxima à boca do Rio Preguiças, onde havíamos tentado entrar, sem sucesso. Uma embarcação à vela, tradicional do lugar nos levou para o lado de fora daquela barra. Havia ondas por todos os lados, aparentemente sem nenhuma entrada segura. Perguntei ao timoneiro a profundidade, e se era possível a entrada de um barco como o Zimbros, com calado de 1,70 metros. "É tranqüilo, aqui tem mais de três metros" disse-me o pescador, indicando o ponto mais raso do canal. "Vou conferir" disse ao incrédulo homem, que mal conseguiu balbuciar algumas palavras. Tchbum! Fui para água.

Não me surpreendi com o que vi: eu estava com menos de dois metros d'água abaixo de mim, podia ficar de pé na areia e com as mão para fora. Não era para nós termos entrado ali mesmo, foi uma sábia decisão abortar a chegada. Retornei nadando ao barco e subi a bordo. "Moço se eu fosse o senhor, não mergulharia neste mar. Tem muito tubarão aqui" disse o pescador, mostrando uma enorme cicatriz na sua perna, causada por um deles. Senti um frio na espinha, meu pinto encolheu, mas fiquei feliz por não ser saboroso o suficiente para servir de isca de tubarão.

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De volta a São Luis, através do Sérgio, um amigo velejador de lá, consegui um marinheiro para tomar conta do Zimbros pelos próximos meses. Eu estava muito longe de casa e ansioso para voltar. Nas últimas duas semanas havia visto e vivido muitas emoções em mares muito diferentes daqueles a que estava habituado no sul. No norte o clima é previsível, estável e seguro. Eu tinha conseguido vencer mais uma vez meus medos e ansiedades. O desconhecido sempre me desperta curiosidade e temor. O Rio Grande do Norte e o Ceará já eram coisas do passado. E o futuro? Para mim, do lugar onde estava, seria mais rápido chegar ao Caribe do que voltar a Salvador. Caribe eu disse? Pronto, já fiquei ansioso com meu próximo passo. .

Catamarãs de São Luis: os veleiros que melhor se ajustam à maré.

Uma embarcação típica do litoral maranhense O Zimbros: ancorado nas tranquilas águas da Ponta da Areia.

Final da parte 19

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Ao aproximar-se de São Luís, o avião que me levava sobrevoou por quilômetros uma imensidão de várzeas, mangues e rios da Baia de São Marcos. Uma bela paisagem ilustrativa do quanto diferente são as diversas regiões do Brasil. Vivemos num continente, cada Estado é como um país diverso do outro, com sua geografia e sua cultura próprias. Gosto muito de conhecer estes contrastes e poder compará-los. Admiro nossa unidade e me surpreendo de saber que no fundo uma das poucas coisas que temos em comum é a língua portuguesa e a Rede Globo. Estava a cinco mil quilômetros de casa e tudo o que me esperava lá embaixo era novidade.

No aeroporto Glauco aguardava por mim. Fizera questão de vir me buscar e foi um incansável companheiro nos dias seguintes, quando tivemos que preparar o próximo trecho da nossa viagem: São Luís à Trinidad & Tobago, cerca de mil e trezentas milhas de mar distantes entre si. Foram três dias de intermináveis esforços para podermos ficar de acordo com as formalidades legais pedidas pela Capitania dos Portos, Receita Federal, Polícia Federal, Saúde Pública, além das nossas exigências básicas de alimentação e segurança.

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Parte 20

Feio de ver: o Zimbros encalhado no lodo em São Luís.

Adalberto chegou de Santa Catarina dois dias depois. Na correria, mal tivemos tempo de subir a bordo do Zimbros, que se encontrava ancorado na Ponta da Areia, aos humores de uma fantástica variação de maré. Como medida de segurança o barco ficou ancorado, nos últimos dois meses, em um local raso. Sempre que a maré vazava, ele encalhava na lama. Era uma visão assustadora, mas nada grave já que o leme e a quilha enterravam por completo no lodo mole da baia. .

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A maré dificultava muito a nossa entrada a bordo, pois só era possível chegar ao barco durante as cheias. Por esta razão, determinei que nossa saída fosse na quinta-feira, dia quatro de março às cinco da manhã, com a maré alta. Na véspera, as atribulações da partida foram infinitas, complicadas ainda mais pelo problema de acesso ao Zimbros. O medo de não ter esquecido nada me fez lembrar de um poema de Mario Quintana, publicado no seu livro Preparativos de Viagem: "A louca agitação das vésperas de partida! (...) E a gente esquecendo o que devia trazer, trazendo coisas que deviam ficar... Mas é que as coisas também querem partir. As coisas também querem chegar. A qualquer parte! - desde que não seja este eterno mesmo lugar...”.

A partida foi muito tumultuada! Não podíamos perder tempo em nosso ancoradouro, pois sua saída era rasa e em pouco tempo não haveria calado no estreito canal que liga a Ponta de Areia à Baia de São Marcos. Era o primeiro contato dos meus novos tripulantes com o Zimbros. Eu supus que, uma vez passada a saída da barra, poderia jogar âncora em um lugar seguro e calmo onde seria fácil colocar as coisas que não haviam sido guardadas no lugar, além de uma dar uma pequena instrução do funcionamento do barco aos novos embarcados. Mas não houve jeito. O mar, fora da proteção da Ponta da Areia, estava muito agitado e seria muito ruim parar em qualquer lugar da baia de São Marcos.

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Era o primeiro contato dos meus novos tripulantes com o Zimbros. Eu supus que, uma vez passada a saída da barra, poderia jogar âncora em um lugar seguro e calmo onde seria fácil colocar as coisas que não haviam sido guardadas no lugar, além de uma dar uma pequena instrução do funcionamento do barco aos novos embarcados. Mas não houve jeito. O mar, fora da proteção da Ponta da Areia, estava muito agitado e seria muito ruim parar em qualquer lugar da baia de São Marcos. Resolvi prosseguir e arrumar as coisas no caminho. Foi um erro imperdoável, mais tarde iria me arrepender de ter tomado esta decisão.

À medida que deixávamos São Luís para trás, fomos alcançados por nuvens baixas e carregadas que despejaram sobre nós toda água contida em seu ventre. As ondas estavam pequenas e o vento fraco soprava de frente. Nós estávamos em paz com os elementos. A chuva foi bem vinda. Nosso objetivo naquele momento era vencermos a Ponta do Zumbi, um baixio imenso, localizado poucas milhas a noroeste de nós. A partir de lá iríamos costear o litoral maranhense até deixar por boreste o terrível parcéu de Manoel Luís, um afloramento de corais responsável por centenas de naufrágios desde os tempos da nossa colonização. Conta a história que o mais famoso naufrágio a sucumbir nas suasgarras foi da nau capitânea comandada por Aires da Cunha, o primeiro mandatário da capitania do Maranhão.

Passada a chuva matinal, o vento começou a soprar com mais força, de dez a quinze nós vindo de leste-nordeste, ou seja nos alcançava num ângulo bem fechado em relação à proa. A grande maioria dos barcos à vela consegue navegar contra o vento, num ângulo de no mínimo 45º em relação a ele. É quando as velas devem ser ajustadas de modo a ficarem bem retesadas, caçadas como se diz na linguagem náutica. O barco avança quase contra as ondas que, ao baterem contra seu costado, muitas vezes, molham tudo o que encontram pela frente. Quando o mar está agitado, a navegação poder ser muito sofrida e desconfortável, exatamente o nosso caso. As águas da maré vazante ao encontrarem as vagas que vinham do oceano formaram ondas irregulares e desencontradas que a todo o momento, ao bater contra o barco, inundava nosso cokpit com borrifos salgados e desconfortáveis. O passeio começava a perder a graça.

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O entra e sai da cabine para verificar nossa posição, a concentração no ajuste das velas e a preocupação que não me abandonava há dias me deixou completamente enjoado. Acho que minha náusea, causada evidentemente pelo balanço do barco, tem também um fundo psicológico. Ninguém pode imaginar o quanto de ansiedade e aflição trago dentro de mim durante minhas partidas. Atormenta-me, sobretudo a segurança da tripulação e do barco. Muitas vezes pareço distraído, mas nunca me perdoaria se algum acidente ocorresse sob minha responsabilidade. É o peso do comando! A opressão e o desequilíbrio do meu labirinto me fazem perder o prumo, daí o enjôo, suponho. Mas procurei não me entregar, sabia que iria passar e, num esforço pra mim quase sobre humano, tentei deixar a situação a bordo em segurança e fui me deitar. Só assim sofria um pouco menos. Muitas vezes me perguntei como algo que eu amo tanto pode me fazer tanto mal.

Mas existe uma regra que aprendi nestes momentos: "Cuidado, quando tudo vai mal num barco, prepara-te por que vai piorar". E foi o que aconteceu. Um dos bujões de plástico abastecidos com óleo diesel extra que eu armazenara dentro do paiol de velas abriu-se, derramando alguns litros de combustível, pouca coisa, dentro das cavernas do Zimbros. Por gravidade o líquido viscoso e mal cheiroso correu para o fundo do barco onde se misturou com água salgada, esta vinda não sei de onde. Foi uma lambança geral! O diesel e a água liquidificados com o balanço do barco, vazando para cima do piso, já que o barco estava inclinado, fizeram um estrago na nossa moral. Ficou um horror entrar na cabine para qualquer atividade. Cozinhar por exemplo era impossível. "O que é que eu estou fazendo aqui?".

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Eu podia adivinhar o pensamento dos meus companheiros naquele momento. E era apenas o nosso primeiro dia. Calei-me e procurei fazer apenas o indispensável para sobrevivermos da maneira menos dolorida possível.

A nossa noite número um foi um martírio. Ao escurecer organizei os turnos de modo que cada tripulante ficasse duas horas acordado e quatro dormindo. O sono seria suficiente para recompor um pouco nossas energias. Eu estava mal, e a única atividade que me aliviava era ficar deitado. Dormia torto e ao acordar parecia que estava dentro de um pesadelo. O Zimbros jogava loucamente dentro da noite em algum lugar longe de tudo.

Eu não estava em nenhum passeio de final de semana. Amanheceu cinza e molhado. Glauco e Adalberto subestimaram as variações de temperatura tropicais e não trouxeram nenhum abrigo impermeável para a viagem. Estavam úmidos e cansados. Pelo meio da manhã eu, deitado no beliche, tentava diminuir um pouco meu desconforto, quando ouvi lá de fora Glauco gritar "Comandante, pegamos uma linha. Está presa na quilha". Era só o que me faltava. Pulei da cama, corri para fora pensando em como parar o barco para poder mergulhar num mar daqueles e soltar os cabos do fundo. Dei de cara com os dois numa boa risada: "Acabamos de passar pelo Equador. A linha está presa na quilha do Zimbros, ha, ha, ha".

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Foi um bom momento! No meio daquele desacerto tínhamos algo para comemorar, mais uma conquista para nós e para o Zimbros. Reza a tradição que aquele que cruza, navegando pela primeira vez, o equador deve ser batizado no melhor estilo náutico: ovos, farinha, água gelada, vale qualquer sacanagem. Eu já havia sido pego quando cruzei o hemisfério a bordo do Frotasul, um cargueiro que seguia para a França em 1982. Mas naquela hora seria muita tortura para eles terem que suportar mais uma peça dessas. Deixei pra depois e acabei esquecendo, frente às dificuldades que nos aguardavam.

E e.las não tardaram. Adalberto, ao tentar pegar seu boné, que lhe voara da cabeça, esbarrou com força na própria vara de pescar, presa ao guarda-mancebo do bombordo, e enfiou o anzol na mão esquerda. Porra, era o primeiro acidente a bordo desde que saí de casa há dez meses! E longe de tudo e de todos. Não havia como retirar a isca por onde ela tinha entrado sem fazer um estrago enorme em sua mão: anzóis são projetados para entrarem, não para saírem. Por sorte, dias antes comprei em São Luís, por sugestão do próprio Adalberto, um alicate de corte especial para uma emergência como aquela.

Bravamente ele mesmo cortou a parte de trás do anzol, e fez com que ele prosseguisse seu caminho, perfurando sua mão até sair do outro lado, por um novo buraco. Deve ter sido muito dolorido, mas era a única maneira de resolver o problema. Ainda bem, pois eu já estava mentalmente considerando a possibilidade de ter que parar em Belém, na eventualidade de termos que lhe fazer uma pequena cirurgia. Glauco ajudou-o a desinfetar o ferimento e lhe fez um pequeno curativo salvador. Rezamos para que não infeccionasse.

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Gluco & Adalberto: mesmo nas dificuldades, o humor estava alto.

Adalberto Graf, um amigo meu do Iate Porto Belo, é um valoroso self-made-man que passou a existência toda trabalhando duro. Há alguns anos, ao livrar-se de uma grave enfermidade, decidiu mudar de vida. E o mar foi a escolha certa. A pesca e a vela são suas paixões. Contudo, quando candidatou-se a fazer aquele trecho comigo, não imaginava sofrer tanto. Infelizmente minhas promessas de mar tranqüilo, muito peixe e boas refeições não se cumpriram. Mas nossa experiência foi gratificante. "Sofrer juntos, reforça a amizade" eu costumava dizer nas horas mais duras. .

Adalberto: o que ele mais gosta é pescar garoupa.

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No terceiro dia o mal-estar continuava presente. À medida que avançávamos pela costa do Brasil, arribávamos em relação ao vento no rumo 345º. As velas ficaram mais folgadas e adernávamos menos, indo com um pouco mais de conforto menos inclinados.

Ao meio-dia o vento, pela primeira e única vez na viagem, amenizou e o calor aumentou bastante. Decidimos dar um mergulho para diminuir o stress. Foi uma maravilha poder desfrutar daquela água morna, azul e cristalina. É evidente que não cometemos a loucura de irmos os três para o mar ao mesmo tempo. Lembramos da história contada por Amyr Klink, quando a tripulação de um veleiro desapareceu depois de pularem todos n'água, sem baixarem a escada de acesso ao convés. Dias depois o barco foi achado vazio, com seu casco todo arranhado pelas unhas desesperadas dos infelizes tripulantes tentando subir pelo costado! Toc-toc, bati na madeira para afastar esta imagem terrível da minha mente.

Apesar do banho, permanecíamos todos ainda muitos enjoados e mal conseguíamos comer, exceto barras de cereais e frutas. Meus tripulantes, não obstante o bom humor e a camaradagem davam sinais de desgaste. Glauco estava com dores na coluna.

Acostumado a navegar apenas em catamarãs, a inclinação do Zimbros era uma novidade dolorosa, já que não havia uma posição que lhe fosse confortável. E Adalberto não conseguia esquecer os confortos do seu apartamento à beira-mar e do seu veleiro, todo limpinho ancorado na segurança do Iate Clube. Um só falava das maravilhas dos multicascos, e outro da eficiência do seu barco e eu, ali no meio do nada, me sentindo só como um náufrago, a suportar a nostalgia crítica daqueles dois manés sem ter para onde fugir. Como costumo reagir mal a apreciações negativas decretei: "Está proibido a bordo do Zimbros falar das vantagens de outros veleiros. Só quero ouvir elogios ao meu barco, afinal foi ele quem nos trouxe até aqui em segurança e será ele a nos deixar vivos no nosso próximo destino".

No quarto dia, um domingo, o panorama ainda estava terrível, com nuvens baixas, vento forte e mar agitado. Estávamos no través do Amapá, a umas cem milhas da costa, entre nada e coisa nenhuma. Eu no cokpit vestia meu agasalho de mau tempo e botas impermeáveis. As velas estavam rizadas e bem ajustadas e, pela primeira vez desde a partida, me sentia melhor, confiante em mim e no barco. Na verdade, minha grande preocupação no mar é saber se o barco agüenta o rojão, se o mastro não cai, se o leme não parte, se não há um contêiner no meu caminho... Muitos Se que me torturavam o sono.

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O Zimbros já vinha mostrando ser bem marinheiro, resistente e veloz. Chegamos a fazer cento e noventa milhas em vinte e quatro horas, uma espantosa média de quase oito nós! Seu único problema era uma infiltração d'água que não parava de jeito nenhum, e sem que eu sequer suspeitasse de onde vinha. Mas já estávamos no quarto dia de mar, e as coisas foram se acomodando melhor. Pudemos secar o porão, drenar o diesel e deixar a cabine um pouco mais acolhedora. Foi a condição ideal para prepararmos nossa primeira refeição quente desde a partida. Que maravilha a comida fez com nosso humor e nossa disposição. .

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No final da tarde, aproveitando uma trégua dos elementos, ligamos para casa com o Globalstar, um telefone celular via satélite, gentilmente emprestado pelo amigo Hans Voswinckel. Estávamos no través do Cabo Orange, limite setentrional do Brasil, e era inacreditável poder falar de tão longe com tanta clareza. Em poucas horas entraríamos em águas estrangeiras da Guiana Francesa. Seguindo os conselhos de velejadores que já haviam feito esse mesmo percurso, Crespo, Mario e o Sérgio lá de São Luís, traçamos nosso rumo de modo a ficar sempre entre as profundidades de mil a dois mil metros. Eu achava que com todo esse mar abaixo de nós, as ondas seriam mais regulares, mas me enganei. Elas permaneciam desencontradas, curtas e bem molhadas. Dava medo ver. Nossas únicas garantias, caso naufragássemos, eram o telefone do Hans e a balsa salva-vidas, emprestada pelo amigoVinícius Budel, um grande companheiro velejador também do Iate Porto Belo. Na verdade eu estava onde estava, graças a muita gente, não somente àqueles que embarcaram comigo nos últimos meses, mas também aos amigos que ficaram em terra torcendo pelo sucesso da minha aventura. .

Final da parte 20

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Ao sairmos de São Luís, fomos surpreendidos por um mar cuja cara não podia ser descrita como de "bons amigos". Os quatro dias seguintes foram de total desconforto e mal-estar a bordo. O quinto amanheceu feio com ventos fortes e mar agitado. As ondas não eram tão grandes, de três a cinco metros de altura, mas com a distância entre elas curta e irregular. O barco mal saia de uma, e lá vinha outra pegando-nos de surpresa, molhando tudo a bordo. Estávamos bem mais dispostos e à tarde as condições do mar melhoram. Já podíamos almoçar na hora certa e esta rotina foi muito importante para nos manter de alto astral.

Ao entardecer, às seis horas em ponto, Adalberto olhou no horizonte e nos alertou para um pequeno ponto bem na nossa proa. Parecia ser um navio, mas a condição da atmosfera tornava difícil saber do que se tratava. Liguei o rádio e estabeleci contato. Em poucos minutos, num inglês da china, respondeu o operador dizendo que nos tinha avistado. Era um cargueiro indo para São Luís e, exatamente as seis e dez, passou ao nosso lado! O que quero mostrar é que o barco levou exatos dez minutos desde o momento que o avistamos até chegar por nós à bombordo. Eu já tinha lido e ouvido muita coisa a respeito do tempo que uma embarcação leva para alcançar um veleiro quando se cruzam no mar. Cálculos logarítmicos e trigonométricos sobre a velocidade de ambos, a inclinação da terra, a altura do convés, etc., estabeleciam em vinte minutos o intervalo entre enxergar um barco e tê-lo sobre você no meio do oceano. Caro amigo, se você também é velejador já ouviu muito essa baboseira. Pois eu lhe digo, pela minha própria experiência: "Dez minutos é o tempo que um navio oceânico leva para passar por cima do seu barco, se você se distrair". Portanto fique com os olhos bem abertos ao navegar, seja de dia ou de noite! Dez minutos, não esqueça.

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Parte 21

Glauco: olhos abertos no horizonte e gps na mão.

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Exceto por eventuais encontros como esse, nada mais víamos, além de água, céu e nuvens. Havia também uma infinidade de peixes voadores que, assustados com nossa passagem, faziam vôos imensos fora d'água, alguns chegando à centena de metros. Outros, menos afortunados, vinham cair dentro do Zimbros. De cor azul turquesa, eram belíssimos. Durante a noite, quando não podíamos vê-los, muitos morriam no convés. Certa manhã encontramos um pequeno no banheiro. Foi muito azar dele, acertar bem na gaiúta aberta e acabar dentro do vaso sanitário. Passamos também, ao entardecer, por um veleiro francês que seguia para Tobago vindo de Fortaleza. Avançava lento e ao ultrapassá-lo pudemos trocar alguns acenos e mensagens. Para mim foi uma grande novidade encontrar um companheiro naquela imensidão de mar. Conversamos pelo VHF e eles estavam sem pressa nenhuma para chegar na tarde do dia seguinte ao seu destino. Tinham pegado o mesmo mar que nós, portanto éramos solidários no sofrimento.Sexto dia: rumo 305º, vento nordeste constante de quinze a vinte nós, ondas pentelhas como sempre e um sol gostoso no lombo. Já estávamos bem acostumados com a rotina de marinheiros. Aí começou outro drama: o da monotonia! Quis organizar uma competição de pesca entre nós, mas ninguém pegou nada. Era impossível tirar qualquer coisa d'água com o barco na velocidade que estava. A tripulação então foi tomada pelo banzo, cada qual mergulhado na sua própria solidão, sentindo saudades de casa, dos filhos, da mulher, do cachorro, da geladeira... "Navegar é também aprender a dar valor às banalidades domésticas. Faz bem ao casamento! Vocês vão voltar para casa com outros olhos" eu disse para melhorar o humor da turma, que permaneceu tenebroso. Quanto a mim, acho que minhas preocupações não me deixavam sentir nada. Queria chegar logo, parar em um porto seguro, tomar uma cerveja bem gelada, esquecer tudo o que sofri e partir para a próxima. "Montou no burro? Agüenta o trote" diz o ditado. .

Navegar é um esporte masoquista. O melhor mesmo é a cerveja na chegada.

No penúltimo dia antes de Trinidad, o clima era de já cheguei! Adalberto caprichou num arroz a carreteiro e, pela primeira vez desde a partida, tomamos um gole de conhaque para abrir o apetite. O humor estava bom, até ouvíamos música, um luxo raro, pois tive que desligar quase todos os eletrônicos de bordo para economizar energia. Só usava o piloto automático e à noite, a luz do tope do mastro, mais nada, nem luzes de navegação. Ligava o motor duas horas por dia para repor a carga na bateria e procurava poupá-las ao máximo. A água, outro luxo, também era racionada. Tomávamos banho sempre que possível. Usávamos cerca de dois litros por pessoa apenas. Isto seria um terror para as mulheres, mas era o suficiente para uma boa meia sola no nosso corpinho salgado. Quase no final da nossa travessia, finalmente pudemos nos lavar com um pouco menos de economia e nos preparamos felizes para a chegada! .

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The last day: acordei pouco antes de amanhecer e pude distinguir as luzes do farol de Galera Point no extremo oriental da Ilha de Trinidad. À direita, o clarão de Tobago e ao largo, a iluminação de alguns navios e de plataformas de petróleo. Estávamos voltando à civilização! Era dia quando cruzamos a Passagens dos Galeões, o estreito que separa Trinidad de Tobago. Entrávamos finalmente no mar do Caribe. Mas ainda estávamos muito longe do nosso destino. A ilha é muito grande, tem cerca cem quilômetros de cada lado, e nosso porto, Chaquaramas, ficava na extremidade oeste, dentro do Golfo de Pária. Trinidad & Tobago são ilhas de origem vulcânica com o relevo muito acidentado. Elas são a continuação geológica da Cordilheira dos Andes. Todo o Caribe é.

Trinidad foi descoberto por Colombo na sua terceira viagem no final do século XV. Pertenceu à Espanha que, por quase trezentos anos, não manifestou qualquer interesse por suas terras. A sua única novidade eram enormes lagos de um óleo pegajoso, o asfalto, conhecido pelos indígenas apenas para calafetar suas naus, portanto sem qualquer valor econômico para a cobiça do reino de Castela. Em 1797 a Inglaterra assumiu a ilha à força, pensando exclusivamente na exploração do fumo. Para ajudar, importaram escravos negros da África. Enquanto isso, Tobago era tomada pelos franceses que a transformaram numa colônia produtora de açúcar. Pouco depois foi comprada pela Inglaterra. Com a proibição da escravidão, decretada pelos ingleses, começaram as imigrações de trabalhadores vindos de outras colônias, sobretudo da Índia. Hoje sua composição étnica é basicamente constituída pelos descendentes destes dois povos, indianos e negros. É um país rico e estável e sua principal fonte econômica vem da petroquímica e da exploração do gás do petróleo. Ah, se os espanhóis soubessem.Foi somente no meio da tarde que cruzamos a Boca Del Dragon, uma das quatro estreitas passagens que separam o Mar do Caribe do Golfo de Pária. Em poucos minutos navegávamos por entre centenas de barcos de todas as nacionalidades e tamanhos, ancorados frente a Chaquaramas, cuja baia abriga a maioria das marinas de serviço de Trinidad. É uma localidade distante cerca de meia hora da capital, Port Of Spain.

Vagarosamente, com muita cautela, nos aproximamos do cais da Power Boat, em cuja marina eu havia feito uma reserva antes de partir. Havia várias pessoas por ali, mas ninguém ajudava ninguém, nem davam a mínima para nós. Amarramos o barco em uma pequena amurada de tijolos e fomos a terra. Tudo girou em volta, parecíamos bêbados no jeito de andar e na aparência. Troquei algumas palavras com um nativo que me informou, num inglês quase incompreensível, onde era o escritório do lugar. Em pouco tempo estávamos abrigados numa apertada vaga na marina, entre barcos em reformas que nos impediam qualquer vista do entorno. Mas isso não tinha importância alguma, queríamos apenas comemorar nossa chegada.

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A Boca Del Dragon, entrada do Golfo de Pária: finalmente estamos em Trinidad.

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Como Trinidad está fora da zona de furacões é um grande pólo náutico para onde vão, de agosto a novembro, a grande maioria dos barcos da região, fugindo da fúria dos elementos. É um bom local para se fazerem reparos a bordo. Muitos vêm para cá arrumar seus barcos a preços bem mais acessíveis que os do norte. Precisava tirar o Zimbros d'água e teria que ficar naquele porto por cerca de uma semana. Começava ali mais uma temporada de tortura e de espera para o Zimbros e para nós. O sofrimento ainda não acabara.

“Um pé no saco!” Os sete dias parados na marina foram demais para espíritos nômades e aventureiros como os nossos. O Zimbros teve que passar por uma manutenção básica inadiável: trocar óleo, filtros, pintar o fundo, checar os anodos, calafetar as bordas, costurar a genôa, trocar os amantilhos do lazy-jacket, reparar o cabo da esteira da grande, arrumar o suporte de proa da âncora, substituir o vaso sanitário, desentupir o fogão, lavar as roupas, limpar o barco, comprar cartas náuticas... Um sufoco de coisas e mais coisas que nunca acabavam. Ao final de cada dia, sob um calor sufocante, eu tinha a impressão que não havia feito nada. Parece que para cada hora no mar, são necessárias duas para arrumar tudo o que se estraga a bordo. Para complicar mais ainda os árduos dias, a tripulação deixou-se abater por um tédio absoluto. Era preferível agüentar todas as ondas do Atlântico do que aquela monotonia sem fim.

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Minhas funções ainda me distraiam, mas Adalberto e Glauco pouco tinham a fazer dentro daquela enorme oficina de barcos. Foi duro para eles. Suas passagens de volta para o Brasil estavam marcadas apenas para o final de semana, ou seja, nada havia a fazer exceto esperar. Durante nossos dias na marina acabamos conhecendo um casal legal, mas excêntrico: Mary (com y), uma cearense arretada e seu marido Bryan, um canadense que trabalha com plataformas de petróleo. Ela, hospedada no hotel da marina, estava lá por alguns dias apenas para arrumar a vida do cônjuge. O trabalho dele é duro, exige que fique no mar por semanas. Quando está em terra, contudo, não existe bebida no mundo que seja suficiente para saciar sua sede. O cara é boa praça, mas esvazia todas as garrafas que consegue por as mãos. Nem nós conseguimos acompanhá-lo. Por sorte demorou-se pouco em terra e logo partiu. Mary ficou e nos mostrou todos os bares de Chaquaramas. Tenho um fraco por botecos, sobretudo os estrangeiros, chego mesmo a sonhar com eles. Mas uma coisa é certa: os bêbados são iguais no mundo todo.

Zimbros fora d'água: é melhor enfrentar a fúria das ondas do que o tédio das marinas.

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Meus sonhos são heróicos e recorrentes: Estou numa sórdida taverna à beira mar com Ulisses (da Odisséia), Jonas (da baleia), Shacketon (do Endurance), Popeye (o marinheiro), Amyr Klink (esse vocês conhecem) e o Capitão Gancho. Bebemos, jogamos cartas e praguejamos. Súbito a porta se abre com um estrondo e um vento gelado bagunça as cartas sobre a mesa. Era uma mulata de olhos verdes e cabelo desalinhados. Procura por alguém e ao nos ver vem direto à nossa mesa, inquieta. Para bem frente a mim e diz: "Procuro um marinheiro experiente que me leve em segurança através do estreito de Darien. Estou sem dinheiro, mas tenho outros predicados".

Perplexos nos entreolhamos e, antes que qualquer um de nós possa esboçar qualquer resposta, seus olhos pousam-se nos meus. O pouco de desamparo que lhe restava dissipa-se: "Gostei de você, magrelo" diz decidida. Todos ficam imóveis. Tomo uma última lapada de rum, trapaceio com as cartas e bato com as dez. Recolho todo o dinheiro da mesa, ponho dentro do meu matulão, levanto-me e, antes que alguém diga um a, puxo-a pelo braço e saio do boteco, deixando meus parceiros todos com cara de otário. Alguns segundos se passam até eles recobrarem o raciocínio. "Quem é esse cara" pergunta Popeye. "Não temos a menor idéia" respondem os demais.

Acordei com uma ressaca braba, era uma quinta-feira. Finalmente, no dia do Zimbros voltar para a água, chegaram os novos tripulantes da próxima perna da viagem: Tadeu e Joaquim. Eles já haviam participado de outros trechos comigo no Brasil. Joaquim fez de Fortaleza a São Luís e Tadeu, de Vitória à Salvador. Comemoramos o reencontro, mas ainda havia muito que se fazer para a partida no dia seguinte. As horas finais em Trinidad foram muito corridas e cansativas. Nosso projeto era ir de lá até Santa Lúcia, passar por um sem número de belas ilhas no Mar do Caribe. Mas a despedida foi triste. Deixei no cais meus companheiros, que partiriam somente nos dias seguintes. Passamos muito tempo juntos, boas e más horas, e a sensação que tive era que os estava abandonando. Mas, paciência, a vida de marinheiro é feita de encontros e despedidas. Glauco, Adalberto, Mary, Mario e sua mulher soltaram as amarras do Zimbros ao anoitecer de sexta-feira. Uma nova etapa começava naquela hora.

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Final da parte 21

Mary, Tadeu, Joaquim, eu, Adalberto e Glauco: despedida à bordo do Zimbros.

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Parte 22

O mundo é grande mas cabe na palma da mão...

A bordo do Zimbros, Tadeu, Joaquim e eu deixamos a marina Power Boat em Trinidad no final da tarde de sexta-feira do dia 19 de março. Era hora do lusco-fusco e mal conseguíamos distinguir as luzes de terra das dos barcos ancorados na baia de Chaquaramas. O céu estava claro com uma bela lua crescente iluminando o horizonte. Lentamente ficamos a salvo das embarcações e bóias e nos preparamos para levantar a vela grande. A temperatura era amena, não havia vento e o mar estava uma piscina. A noite prometia uma grande travessia. Teríamos que percorrer cerca de 120 milhas até Carriacou a primeira ilha ao norte de Granada. Otimista, calculei que chegaríamos lá pelas onze da manhã seguinte. .

Era sexta-feira, dia que muitos velejadores evitam sair, pois segundo a lenda dá azar. Eu não acredito nesta tolice, mas admito que seja verdade. Por via das dúvidas fiz o sinal da cruz, pedi aos santos que nos protegessem e seguimos em direção ao negro da noite desconhecida. Quando nos aproximarmos da Boca del Dragon, uma das passagens que liga o mar do Caribe ao golfo de Pária, ondas muito grandes vindas do oceano aberto nos pegaram pela proa. O barco começou a balançar muito. Desacelerei o motor e reduzi a velocidade para evitar que alguma daquelas vagas embarcasse no Zimbros. Adiantou pouco, o encontro da vazante do golfo com a água do Caribe criaram uma ondulação assustadora, contra a qual nada havia a ser feito, exceto encará-la. A profundidade era muito alta, mais de cem metros, e a vazão muito forte. Não havia vento, a vela grande não conseguia firmar o barco, e parecíamos uma pequena rolha ao sabor das marés.

Levamos um bom tempo até finalmente alcançarmos uma distância da costa em que o choque das correntes diminuísse. Os recém-embarcados sentiram os desconfortos da saída. Vento zero e mar mexido, prosseguimos a motor até cerca das três da manhã quando a previsão de um nordeste de vinte nós confirmou-se com precisão britânica. Regulamos as velas, o rumo e nos preparamos para a tribuzana. Eu já vira aquele filme. Começava tudo de novo: vento forte, orça fechada, barco adernado e mal estar a bordo. Tadeu e Joaquim começaram a enjoar. Pra piorar, a impermeabilização no convés de proa que eu fizera em Trinidad não deu certo. O barco continuava a fazer água. Mas a hora não era para lamentações. "Velejador não reclama, come o que vem no prato" lembrei-me das palavras do Pirão, sábio instrutor de vela e amigo lá de Floripa.

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Por sorte organizei os turnos na hora da saída, assim pudemos descansar um pouco durante a noite. Mas foi quase nada. Às cinco da manhã, Tadeu me acordou para ajudá-lo na regulagem das velas. Estava frio e chovia. Antes de sair para o convés, vesti meu traje de tempestade, inclusive as botas impermeáveis. Enfim aprendi a encarar o mau tempo adequadamente. "Não foi isto o combinado, capitão." Tadeu referia-se a uma mensagem otimista que mandei poucos dias antes aos candidatos a velejar no Caribe comigo. Na verdade, todos nós temos de lá uma imagem idílica, de praias ensolaradas e calmas, areias brancas e coqueiros sem fim. Mas não é bem assim. Isso só aparece nas fotos e a realidade é um pouco diferente. Velejar pelo mundo não é tão bom quanto parece! Pelo menos não para nós naquele momento. .

Nove da manhã e o vento continuava forte e contra. Recalculei nossa chegada em Carriacou lá pelas quatro da tarde. Para mim, que passara oito dias naquelas mesmas condições, não era muito mas para o resto da tripulação seria um martírio. Achei muito injusto fazê-los sofrer tanto logo no primeiro dia de navegação. Estávamos com Granada a umas dez milhas no través de boreste. Resolvi cambar para lá. Troquei o lado pelo qual a vela recebe o vento, virando cerca de cem graus para direita no rumo da ilha. O barco ficou menos adernado e as ondas nos atingiam em um ângulo melhor, mais confortável. Parecia que estávamos navegando em um outro mar. Aos poucos o relevo foi ficando mais visível e eu já podia ver algumas casas e enseadas ao longo da costa. Orientado pelo nosso guia náutico decidi parar em Halifax Harbour, uma pequena baia abrigada, segura e deserta.

Granada localiza-se na extremidade sul das chamadas lhas de Barlavento. Altas montanhas, uma densa floresta, está quase sempre coberta por nuvens baixas e carregadas. O clima é tropicalcom muita chuva e sol no mesmo dia. Não é grande, tem apenas quinze milhas no seu maior sentido. Foi colônia inglesa até sua independência em 1974. No começo dos anos 80, com a ameaça de um governo favorável às idéias socialistas de Fidel Castro, foi invadida pelos americanos, já naquela época auto proclamados xerifes do planeta. Parece que os gringos foram bem recebidos e não houve nenhuma reação à presença deles no país. É conhecida como Ilha das Especiarias por sua produção de inúmeros tipos de tempero tropicais, principalmente a noz-moscada. Sob o ponto de vista náutico, Granada tem desenvolvido nos últimos anos uma grande estrutura para receber iatistas de todo o Caribe. Existem várias marinas por lá, mas não pudemos ver nenhuma.

Tinha só um veleiro de bandeira inglesa ancorado em Halifax Harbour . Inseguro onde jogar âncora, parei bem ao seu lado. Parece que é sempre assim, todo navegador fica perto de outro na hora de fundear em um lugar desconhecido. A baia era meio estranha. Um navio velho abandonado na praia e fios de alta tensão sobre nós, não parecia exatamente o cartão postal que procurávamos. Mas a água era bem clara e calma. O sol apareceu, botou cor em tudo, e melhorou o humor da tripulação. Demos um mergulho, fizemos um almoço e descansamos um pouco da dura noite. Como aquele não era um lugar dos mais lindos, decidimos continuar a viagem.

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No exato momento em que deliberamos partir, notamos que o Zimbros se afastava muito do nosso vizinho. A âncora garrou, quer dizer que soltou-se do fundo na linguagem náutica. Recolhemos o ferro e apressamos nossa saída. O vento continuava forte e contra. Decidimos seguir motorando até a ponta norte de Granada. Quando ficamos fora do abrigo da ilha o mar cresceu e as rajadas chegaram a vinte e cinco nós, bem na cara. É para estas horas que existe o vento de porão a nosso serviço. Aceleramos o motor de modo que a velocidade do barco ficasse em compasso com o ritmo das ondas e batesse o menos possível. Mas não evitou que, eventualmente, uma onda nos deixasse no ar, fazendo-nos despencar lá de cima com um estrondo terrível. .

Tadeu e Joaquim: uma nova tripulação navegando no Caribe.

Era assustador ouvir o barulho do casco chocando-se contra a água. "Será que o Zimbros agüenta?" me perguntava apavorado. As quinze milhas que separam Granada de Carriacou foram dolorosas para o barco, mas ele reagiu bem. A correnteza é muito forte e pode chegar a mais de dois nós oeste.

Existem algumas pequenas ilhas no percurso, chamadas Isle de Ronde, mas infelizmente nenhuma é habitada e a ancoragem não é muito recomendada. Mas o pior é um vulcão submarino localizado duas milhas a oeste da Isle. Duas erupções recentes, uma em 88 e outra em 89, fizeram com que as autoridades criassem, como medida de precaução, uma zona de exclusão com cerca de um quilômetro e meio em volta do vulcão. Quando a água ferve, o raio é ampliado para cinco quilômetros. Não é obrigatório, é facultativo, depende de você. Para evitar o perigo teríamos que fazer um desvio muito grande e nosso tempo era curto. Tínhamos que chegar em Carriacou ainda dia. Foi fácil decidir: passamos bem por cima da cratera submersa que, para nosso alívio, permaneceu inerte. As emoção costumam ser fortes para quem navega no Zimbros...

Eram quase cinco da tarde quando nos aproximamos de Tyrrel Bay, pacífica enseada a sudoeste de Carriacou. A entrada é segura e havia muitos barcos ancorados. Avistamos ao longe uma bóia livre e nos dirigimos para lá, vagarosamente apreciando a paisagem e os veleiros ao largo. Amarramos o Zimbros em uma poita frente ao Iate Clube de Tyrrel Bay, na verdade uma pequena marina ao sul da baia. O por-do-sol fazia as cores mudarem a cada minuto atrás de nós. Um espetáculo único. "Chegamos ao Caribe tripulação" desabafei. Finalmente, desde que deixara o Brasil, eu estava num lugar que correspondia aos meus sonhos. Ao longe tocava um reggae na vitrola, claro sinal para abrirmos o bar. A temperatura estava amena, tomamos um banho quente e nos preparamos para ir a terra.

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Carriacou: a ilha tem cerca de oito mil habitantes e pertence à Granada.

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Escureceu rápido! Seguíamos os três com muito cuidado sobre o pequeno botinho, que ameaçava afundar a cada onda que vinha de proa. Passamos a chamar Tadeu de Poita-man, uma alusão nada elogiosa ao seu peso excessivo. Ao encostarmos na praia, Joaquim desembarcou com muito cuidado para puxar nosso bote um pouco mais para o raso. Quase na areia Tadeu foi descer, tropeçou em si mesmo, e caiu dentro d'água feito uma mala sem alça. Naufragou por completo, nem um fio de cabelo ficou sem molhar. Foi tão ridículo que nem ousei rir, com pena dele. Por sorte, eu o havia desaconselhado a trazer todo seu equipamento fotográfico para terra, pouco antes de deixarmos o barco. Seria um prejuízo doloroso, bem maior que o da sua roupa ensopada.

Enquanto Poita-man voltava ao Zimbros para trocar-se, nós aproveitamos para conhecer a bucólica enseada. Um lugar parado no tempo, as pessoas em frente suas casas conversam e assistiam tranqüilas ao monótono vai-e-vem das marés e dos raros visitantes. Cumprimentavam-nos curiosas, tentando adivinhar quem eram aqueles carasde maresia, circulando perdidos num lugar tão longe. Era evidente que só podíamos ser velejadores, assim como todos os branquelos que circulavam por ali. Um cronista definiu Carriacou como um lugar onde se encontram centenas de botecos, mas somente um posto de gasolina. De fato, os carros são raros e os bêbados muitos. O lugar era perfeito, afinal os homens amam os bares, e os bons bares merecem ser amados!

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Existem várias pequenas pousadas e parece que em todas há um Internet Café. Conseguimos resistir à tentação de nos conectarmos ao mundo exterior. Jantamos num pequeno restaurante, tomamos umas cervejas, rum e, cedo, voltamos para o Zimbros. As últimas vinte e quatro horas tinham sido muito cansativas.

No dia seguinte, um domingo, pegamos um táxi, demos um passeio relax pela ilha, que pertence a Granada. De cima de uma colina pudemos vislumbrar arquipélagos à perder de vista, veleiros às dezenas. Nós ali integrados naquele mundo, fazíamos também parte da paisagem. Voltamos ao barco, liberamos nossa bóia e partimos para Sandy Island, no outro lado da ponta norte, frente à capital Hillsborough. Um espetáculo! Uma pequena ilha, rasa, toda de areia cercada de corais, com dezenas de barcos, grandes e pequenos ancorados nas proximidades. Todos sintonizados na mesma freqüência de paz com a natureza. Pelicanos e gaivotas eram nossos vizinhos. Um fantástico lugar para mergulhos, fotos e rum. Mas não pudemos ficar muito tempo. Era tarde e precisávamos seguir para Tobago Keys, um arquipélago de corais localizado quinze milhas ao norte. Seu acesso era complicado e não podíamos entrar lá à noite. Com muito pesar, levantamos âncora e nos despedimos daquele Éden.

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Sandy Islands: um dos lugares mais lindos que eu já vi no mar.

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Ao deixar Sandy Islands passamos ao lado do Royal Clipper, um majestoso veleiro de 439 pés, usado para cruzeiros comerciais pelo Caribe. Tentei falar com eles pelo rádio, mas não tive retorno. Foi construído em 2000, inspirado nos tradicionais veleiros de passageiros do começo do século dezenove. Têm cinco mastros, 42 velas e é tocado por uma tripulação de cerca de cem pessoas com capacidade para mais de 220 passageiros. Um dos poucos que ainda fazem este tipo de navegação romântica pelo mundo, me fez pensar no charme das antigas travessias, quando todas as embarcações eram à vela e o tempo, um patrimônio que se consumia em gotas. .

Final da parte 22

O Royal Clipper: 439 pés, 5 mastros e 42 velas.

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Com lamento deixamos Carriacou no meio da tarde de um domingo ensolarado e vibrante. Tínhamos pouco tempo para chegar ainda de dia em Tobago Cays, quinze milhas ao norte. Centenas de veleiros de todos os tamanhos e procedências navegavam num mar cristalino, brilhando com a luz do sol. O vento estava bom, cerca de dez nós, nordeste. Deixamos a ilha à vela, numa orça bem fechada. O motor ligado ajudava a empurrar o Zimbros com mais velocidade. A pouca distância na nossa frente um Benneteau de 38 pés seguia no mesmo rumo com todas as velas enfunadas. Ajudados pelo vento de porão, aos poucos fomos nos aproximando dele. Seus tripulantes, alertas com nossa chegada, passaram a ajustar os panos com mais cuidado. Ninguém gosta de ser ultrapassado no mar. Mas de pouco adiantou seu desespero. Deixamos os gringos para trás ultrapassando-os por boreste. Como a saída do escapamento do Zimbros está localizado na popa à bombordo, foi impossível para o outro barco saber que seguíamos também no motor. Deve ter sido difícil para aqueles branquelos serem ultrapassados porum barco menor. Adoro trapaças!

Seguimos no rumo nordeste, passando entre Union e Palm Island, num estreito canal de águas cristalinas e cheias de arrecifes de coral. Uma navegação segura, pois todos os obstáculos estão bem sinalizados. Veleiros e mais veleiros ao largo. Pequenos aviões chegavam e saiam a cada minuto do aeroporto localizado em Clifton Harbour, ao lado do qual existe uma excelente marina. Aos poucos nos aproximamos da entrada sul de Tobago Cays, ao lado de baixios de corais e de areia. Não é um acesso tranqüilo, mas a água é cristalina e era possível enxergar a olho nu todos os perigos do caminho. Um olho no mar e outro no ecobatímetro, vagarosamente entramos no canal que separa as pequenas ilhas de Petit Rameau e Petit Bateau. Jogamos âncora com uma profundidade de quatro metros, fundo de areia.

Lembrava-me bem do acontecido em Halifax Harbour, quando nossa âncora soltou-se do fundo arrastando o Zimbros para perto das pedras. Com os últimos raios do sol, mergulhei para verificar se o ferro estava bem preso. Além dos quinze metros de corrente, foi preciso liberar muito mais cabo para que a ela ficasse totalmente encostada na superfície submersa de areia. A beleza do lugar engana muito, pois a natureza ali costuma ser implacável durante certos dias, já que quase não existem barreiras para segurar nem o vento nem as correntes que vêm do Atlântico. Mas tudo funcionou de acordo, e o barco ficou bem seguro no seu novo ancoradouro.

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Happy hour nas AntilhasParte 22

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Tobago Cays é um parque nacional, um dos mais belos lugares do Caribe. Um grupo de pequenas e desertas ilhas protegidas do Atlântico por uma barreira de corais. A água tem todas as cores, verde, azul, turquesa e é impossível compará-la a qualquer outra que eu já vira antes. Na tarde púrpura, toda terra do Caribe se coloria e mergulhava no mar eterno e complacente. A paisagem magnífica foi moldura para nosso jantar que preparei com o carinho que a ocasião pedia: macarrão com defumados, vinho tinto, licor e charutos para finalizar. Depois do fausto ágape, dormimos como crianças. Eu tinha pensado em fazer turnos durante a noite para nos proteger de qualquer acidente com nossa âncora, mas mudei de idéia, pois o vento não estava tão terrível que justificasse tanta precaução. .

Nas Granadinas: barcos de todos os tamanhos e categorias.

O dia seguinte foi inesquecível. Acordamos cedo, preparamos um super café e ficamos a manhã toda sem compromisso algum, apenas aproveitando o calor e o brilho das Granadinas. Todos nossos elogios eram superlativos, estávamos em comunhão absoluta com o universo. Saímos de nosso ancoradouro e jogamos ferro bem a sotavento dos arrecifes numa profundidade menor que dois metros. Procurei manter o barco bem afastado de qualquer embarcação. Sempre me preocupo em ficar bem longe de outros iates, sobretudo quando ancoro a seu barlavento, quer dizer acima deles em relação ao vento. Se por qualquer circunstância minha âncora se soltar, há o perigo dos barcos se chocarem, com sérios riscos de prejuízo. Sobretudo pra mim que não tenho seguro contra terceiros. Meu medo era bater num daqueles veleiros caríssimos de algum americano pentelho e levar um processo nas costas. Alguns iatistas, segundo me disseram, criam uma empresa com a única finalidade de registrar seu barco. Caso sejam vítimas de alguma ação milionária, apenas os bens da empresa respondem pelo prejuízo. Uma medida inteligente, quando se sabe o preço das embarcações que circulam pelo Caribe.

Muitas fotos e filmagens depois, chegou finalmente a hora de partimos. Nosso destino era Canouan, localizada cinco milhas a nordeste da nossa posição. Tão perto que era possível vê-la de onde estávamos. Foi um passeio! Em menos de uma hora de uma bela velejada, jogamos âncora em Charlestown Bay, frente ao o Tamarindo Beach Hotel e Yacht Club, mais um lugar belíssimo para o nosso currículo. A sucessão de maravilhas era de tirar o fôlego. Agíamos como caipiras, parados de boca aberta sem saber direito o que falar e o que olhar. Tomamos banho, caprichamos no traje, esquentamos a alma com rum e fomos para terra jantar no restaurante do hotel. O lugar era muito chique, cheio de velejadores como nós, quer dizer sem aquelas afetações comuns da burguesia careta. Voltamos para bordo tarde. Cansados, dormimos como pedras.

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Mapa esquemático das ilhas de Barlavento e de Sotavento no Caribe

Amanheceu, içamos velas e seguimos nossa marcha rumo ao norte das Granadinas. Destino: Bequia, pequena ilha há dezesseis milhas, distância que percorremos em pouco tempo com vento bom, mas contra. Chegamos cedo e vagarosamente entramos em Admiralty Bay, a enseada frente à capital, Port Elizabeth. Cercados de veleiros de todas as categorias, antes mesmo de decidirmos onde jogar nossa âncora, apareceu uma pequena lancha a motor com dois rastafari oferecendo ajuda para encontrarmos uma poita. Aceitamos e nos deixamos levar por eles baia adentro. Os caras nos conseguiram um lugar realmente privilegiado, bem frente ao pequeno trapiche da cidade, lugar onde todos deixavam seus pequenos dingues ao desembarcarem. A moeda local na maioria das ilhas é o East Caribean Dolar, conhecida com EC (pronuncia-se issi). Seu valor é semelhante ao nosso Real, vale cerca de dois e meio para cada dólar americano. Mas tudo por lá é muito caro. Dei a eles o equivalente a cinqüenta reais, o suficiente para nos tornarmos amigos de infância.

Dezenas de pequenas lanchas zanzavam entre os veleiros vendendo todo o tipo de produtos e serviços: lavanderia, combustível, água, gelo... Nossos novos amigos, já íntimos, não perderam tempo e nos ofereceram um cardápio bem diferente: cassinos, mulheres, bebidas e marijuana. "Chegamos no paraíso" alguém falou! Demorou pouco para abrirmos nosso bar-à-bordo e comerçarmos a velha labuta de rum, cerveja, reggae e muita conversa. Eu havia comprado em São Luís uma rede de garimpeiro que nunca usara. Improvisamos um apoio com o pau de spi e a armamos por boreste. Passamos todo o resto da tarde num maravilhoso ócio vagabundo, sem proibições e só não esquecemos de ir a terra porque o Joaquim nos acordou daquela pasmaceira deliciosa. "Vamos conhecer o terreno tripulação" disse ele preparando-se, cheio de expectativas, para descer. E Bequia não nos decepcionou. A noitada foi um espetáculo: tomamos tudo e mais um pouco em todos os bares de todas as esquinas da ilha. Se algum dia você for a Bequia eu recomendo tomar um run punch no Frangipani, um boteco e restaurante bem bacanão, cheio de gente legal e descolada.

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Amanhecemos com uma ressaca das grandes, exceto Tadeu que não bebe, não fuma, e não faz nada. Só come! Um mergulho melhorou nosso humor. Traçamos um novo rumo e pouco depois das onze horas partimos para St. Vincent. O vento estava bom, com cerca de quinze nós soprando de nordeste. Fizemos as oito milhas que separam as duas ilhas em menos de duas horas. Ao chegarmos ao lado da St. Vincent, cujo perfil é composto de montanhas muito altas, o vento protegido pelo relevo, morreu completamente. Estávamos a umas três milhas da costa, as velas ficaram sem função e o barco estancou completamente. .

Bequia: negociando com os ratafari.

Velejando de Bequia para St. Vicent: ressaca à bordo.

O calor aumentou e, como o mar estava parado, resolvi mergulhar para me livrar dos derradeiros eflúvios etílicos da noite anterior. No exato momento que saltei da popa para a água, soprou uma fraca brisa, as velas encheram-se e o barco começou a andar. Ainda tentei nadar para alcançá-lo, sem sucesso. Em questão de segundos o Zimbros afastou-se de mim o que me pareceu ser uma centena de metros. Um homem ao mar fez a tripulação acordar de sua sonolência. Rapidamente Joaquim e Tadeu assumiram o controle, soltaram as velas, cambaram e vieram em minha busca. Mas eu quase sumira de vista. Conseguia vê-los, mas eles mal me enxergavam. Não houve pânico, o perigo passou longe: o mar estava uma piscina, a brisa era leve, fui resgatado facilmente, mas serviu de lição. Numa situação com mais vento e mar, suponho que seja muito difícil resgatar alguém que tenha caído do mar. .

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Energizados com a aventura prosseguimos no motor bem próximos à costa. Chegamos à Chateaubelair Bay no meio da tarde. Ao entrarmos na baia, ao contrário do que acontece em todos os portos que passamos antes, não vimos nenhum veleiro ancorado lá dentro. Era um lugar estranho, feio, com uma sonolenta vila sem charme algum, muita vegetação e uns poucos barcos pesqueiros parados ao fundo. Como ninguém foi com a cara do lugar, ficou fácil decidir: resolvemos ir embora para outra ilha e tentar chegar ainda dia num porto mais charmoso.

Mas estávamos ainda muito longe das costas de Santa Lucia. A passagem entre as duas ilhas, com cerca de 25 milhas de distância, costuma ser muito dura em razão do vento e das correntes que chegam do Atlântico sem qualquer obstáculo. Mas Netuno nos ajudou e fizemos uma bela velejada, com orça fechada e ventos de quinze nós. Apesar de tudo, só chegamos em Soufriere à nove da noite. É uma cidade relativamente grande, muitas luzes e muitos barcos ancorados dificultavam nossa aproximação, apesar da entrada do pequeno porto ser bem sinalizada com bóias iluminadas. Não demorou muito para, no meio do breu do mar, aparecer um pequeno bote com um guia oferecendo para nos levar a uma poita segura. Foi perfeito, em minutos estávamos presos a uma bóia bem ao lado de uma gigantesca parede que se derramava para dentro da água. O paredão rochoso parecia muito assustador naquela hora da noite!

Acordamos cedo, soltamos amarraras e, lentamente fizemos um passeio de reconhecimento ao longo da costa. Estávamos justo ao lado do Petit e do Gros Piton, dois enormes picos com mais de setecentos metros cada um. Estão dentro de uma espécie de parque marinho e são o cartão postal de St. Lucia. É um lugar muito especial e exótico, ideal para alguns dias de exploração. Mas não era o nosso caso. Tínhamos um cronograma a seguir e tão logo fizemos algumas rápidas imagens seguimos para o norte,rumo a Rodney Bay. Foi um belo passeio navegar bem próximos à costa, junto a muitos outros veleiros que faziam o mesmo percurso. Ao meio-dia entrávamos no canal de acesso à Marigot Bay, um dos lugares mais espetaculares de todas as Antilhas.

Trata-se de uma pequena enseada cujo interior é um excelente abrigo contra todos os ventos e correntes. É circundada por altas montanhas cobertas de densa vegetação. O verde da mata tropical e o azul turquesa do mar dão o tom do que se pode definir como paraíso único na terra.

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A entrada sinuosa e o relevo acidentado tornam impossível ver seu interior para quem está no mar. Um lugar ideal para abrigar uma verdadeira frota de veleiros. Antigo porto de piratas foi em Marigot que a armada Britânica, fugindo dos franceses em maior número, escondeu-se disfarçando seus mastros com folhas de palmeiras. Os galegos passaram ao largo sem sequer imaginar que seus inimigos escondiam-se impotentes, justo ao lado.

Ao contrário do que acontece no nosso país, a ocupação das costas em volta da baia é feita preservando-se ao máximo a vegetação e o relevo. As encostas não são destruídas e existe muita integração entre a arquitetura e a natureza. Lugar ideal para nossos executivos da construção civil e administradores municipais aprenderem como aproveitar as belezas do nosso litoral com sabedoria. Ideal improvável, já que está provado não existir vida inteligente em nenhuma das duas categorias. No Brasil, a costa catarinense em geral e o Caixa D'Aço em particular são exemplos lamentáveis da ignorância que assola nossas praias.

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Almoçamos em terra e logo partimos. As distâncias são pequenas e em pouco tempo, às cinco da tarde, chegamos a Rodney Bay, uma enorme baia ao norte em cujo interior localiza-se a maior marina de St. Lucia. Pelo rádio fiz contato com eles e em poucos minutos estávamos parados na vaga determinada pela administração. "Chegamos tripulação". Era nossa senha para tomarmos algumas Carib, a deliciosa cerveja caribenha, embriagados por uma imensa e louca alegria que sempre sentimos quando alcançamos mais uma escala da nossa viagem.

No cais, navegadores de todos as classes e bandeiras, ninguém com pressa. Em pouco tempo a bordo já estávamos com alguns novos amigos, como Maggie, uma divertida nativa que trabalha lavando a roupa das tripulações que chegam do mar. Ficamos mais amigos depois de saber que o negócio dela também era mulher. Nada como sentir o clima e as surpresas de um porto depois de algum tempo no mar. Foram seis dias de Trinidad até lá, mas pareciam meses, tantas as emoções e os lugares vividos.

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Final de parte 23

O Zimbros em Rodney Bay Marina: um exótico barco vendendo frutas e verduras.

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Ficamos em St. Lucia apenas dois dias. Tadeu desembarcou e foi substituído por Thaís, minha mulher e a Vera, mulher do Joaquim. Ambas chegaram à ilha depois de um périplo por vários aeroportos desde Curitiba, passando por São Paulo, Miami e Porto Rico. A nossa estadia foi curta, porém trabalhosa. Tivemos que colocar ordem a bordo para recebermos nossas pequenas com um mínimo de decência. Além de tudo mandei fazer um reparo no lazy-jaquet e na genoa que me custaram um tempão. Outros complicadores foram as formalidades de entrada e saída exigidas pelas autoridades da imigração e da aduana. Papéis, carimbos, passaportes, taxas, que nos tomaram um tempo precioso. Eu estava com pressa, queria ficar o mínimo por lá e sair o quanto antes rumo à Martinica.

St. Lucia é tida como a mais francesa das ilhas inglesas. A língua oficial é o inglês, mas no cotidiano todos falam o patuá, um dialeto incompreensível onde predomina o francês. É uma parada obrigatória para quem navega nas ilhas de barlavento em direção ao sul. Existe lá uma grande estrutura náutica com excelentes marinas. Pode-se encontrar tudo para reparar uma embarcação avariada. Muitas pessoas vivem disso, mas se você precisar de algum serviço local, é melhor que não seja numa sexta-feira à tarde, pois tudo para. Ninguém quer saber de nada no final de semana, nem que seja pra ganhar o dobro. Tive que implorar para fazerem um pequeno reparo na minha vela. "Vai te custar caro" foi logo avisando o cara que me atendeu. Eu era uma presa fácil em suas mãos, mas não tive alternativa e morri com uma pequena fortuna, se comparada com os nossospreços do Brasil.

Na correria da partida uma notícia triste me chegou via e-mail: o falecimento do capitão Dalmo Viera, pai do meu amigo Dalmo. O velho marujo tinha acabado de atravessar o Atlântico em um navio de passageiros e estava em Barcelona quando sofreu um infarte sem chances. Morreu como um grande marinheiro: a bordo. A primeira vez que entrei em um veleiro na vida aconteceu no Diana, um sloop de madeira pertencente a ele. Foi um mestre para mim. Com ele aprendi minhas noções fundamentais de marinharia. Como consolo pensei que eu, ali naqueles mares tão distantes, estava levando adiante um pouco do seu espírito. Sozinho no cais do porto, o mar por testemunha, não contive as lágrimas pela partida do meu amigo.

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O caminho do Zimbros: Caribe e as ilhas de Barlavento e de SotaventoParte 24

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A uma da tarde de sábado, dia 27 de março, nos despedimos da nossa amiga Maggie e soltamos as amarras do Zimbros da Rodney Bay Marine em St. Lucia. Lentamente cruzamos o canal que liga as tranqüilas águas da enseada à baia. Ao ultrapassarmos Pigeon Islands levantamos velas e acertamos nosso rumo para o sul da Martinica, a vinte milhas, tão próximo que era possível vê-la no horizonte. A viagem foi rápida. Às cinco manobrávamos por entre dezenas de barcos ancorados na bela enseada frente à pequena vila de St. Anne. Local e hora certos para um brinde com champagne, vinhos e deliciosos acepipes. .

Maggie: nossa amiga de St. Lucia adorou o presente que lhe demos

Finalmente as Antilhas francesas! Um dos meus sonhos estava se realizando com cores e sabores que eu jamais imaginara. Sem vontade de fazer nada, nem desembarcar, decidimos passar a noite por ali mesmo. Mergulhei na água cristalina para verificar se nossa Bruce estava bem presa ao fundo de areia. Estávamos craques em ancoragens depois de tantas paradas em lugares onde qualquer vacilada terminaria em prejuízo. As garotas nos prepararam um risoto a quatro mãos que ficou fantástico. Acho que foi a primeira grande refeição no Zimbros desde muito tempo. Enquanto comíamos, pela pequena escotilha lateral eu conseguia ver um pedaço daquele sonho, a Martinica com toda sua beleza e sua história.

Café da manhã à bordo: como manda o figurino

No século quinze a divisão do mundo entre Portugal e Espanha pelo Tratado de Tordesilhas causou uma enorme reação da França. "Onde está o testamento de Adão que dividiu o mundo só para portugueses e espanhóis" perguntaram eles. Não conformados, tentaram de todas as maneiras se apossarem também de um pedaço do Novo Mundo. Primeiro no Brasil, com o Rio de Janeiro e São Luís. Deu errado. Assim foram subindo a costa da América do Sul com os alísios, conquistando primeiro a Guiana e depois a Martinica.

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Isto não impediu que fosse tomada pelos ingleses mais tarde. Na verdade toda a colonização do Caribe foi uma feroz luta entre ingleses, franceses, espanhóis e holandeses. A maioria das ilhas já foi colônia de um destas potências ao menos uma vez na sua história. No começo apenas como ponto de abastecimento de suas armadas. Mas no século dezoito o açúcar, o fumo e outras especiarias tornam-se produtos vitais na economia européia. Ocorreu aquilo que já estamos acostumados desde sempre: disputas territoriais frequentemente decididas pelo poder de fogo de cada um.

O dia seguinte amanheceu majestoso, brilhante, colorido - um quadro de Gauguin! Acordamos cedo e ganhamos um super café da manhã preparado com muito carinho. Que diferença nos fazia nossas novas companhias! O Zimbros arrumado, varrido e com o banheiro todo cheiroso estava perfeito. Café da manhã e almoço na hora certa eram uma novidade para nós. No começo da tarde, recolhemos âncora e nos dirigimos para dentro do Cul-de-sac du Marin, a enorme baia de Marin, localizada bem ao nosso lado. É lá que está a melhor estrutura náutica de toda a Martinica. Em menos de uma hora nos acercávamos do cais do Marin Yach Harbor. Desembarcamos, tomamos banho e fomos em busca de um restaurante para almoçar. Antes, porém, alguns probleminhas.

Os negros nativos daquelas terras, embora cristão e supostamente temerosos das leis do Senhor, simplesmente desconhecem o sétimo mandamento. Tanto assim que não podiam ver nossas pequenas sem lhes atiçar seus instintos mais candentes. Quando estávamos Joaquim e eu por perto, até que eram discretos. Mas tão logo nós sumíamos de vista, eles não perdiam tempo em assediar nossas meninas. Um deles até tentou entrar no banheiro onde elas tentavam banhar-se. Gritos e insultos em português bem claro fizeram-no entender que mantivesse distância delas. E o banho teve que ser transferido para bordo. Como os caras eram muitos e maiores, Joaquim e eu apenas mantínhamos um certo controle da situação, aliás não tão grave assim. Nos divertíamos, pois no fundo eles estavam com uma inveja danada de nós e elas, embora negassem, até que gostaram do frisson provocado nos nativos.

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A Martinica, a maior das ilhas chamadas de Barlavento, é território da França. A moeda é o Euro e os preços são os da Champs Elysées. Estávamos ansiosos para jantar num restaurante francês de verdade. Escolhemos o Mango Bay dentro da marina, pois nos pareceu simpático e bucólico. Na recepção o mau humor da garçonete nos lembrou que estávamos na França mesmo! A comida foi banal, mas o pior veio depois: uma conta de virar o estômago e baratas que começaram a sair de todas as frestas do restaurante. Se um dia você visitar a Martinica, lembre-se bem deste nome, Mango Bay, e nunca apareça por lá!

Depois dessas surpresas a ilha começou a perder a graça. O dia seguinte, uma segunda-feira, passamos todos tentando comprar um dingue e um motor de popa novos. Os meus já faziam um tempo que não davam para mais nada. Contudo, nas Antilhas as coisas não andam bem como se pode querer, onde um vendedor sai correndo atrás de quaisquer eventuais candidatos a comprador. Lá, tem que ir atrás e implorar para ser atendido, independente de preço que se esteja disposto a gastar. Quase desisti, mas depois de muito esforço, consegui tudo o que queria. No final da tarde eu só desejava uma coisa: ir embora o mais rápido possível.

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Às dezoito horas, quase escuro, contrariando uma regra básica de navegação partimos da Martinica em direção à Guadaloupe. Andamos durante toda a noite com um mar muito tranqüilo e ventos fracos. Ao amanhecer, no través da Dominica, no turno do Joaquim, fui acordado por ele, confuso. Lá fora um pescador com sua pequena lancha tentava nos falar num idioma incompreensível. Sonolento, apenas entendi que o cara não estava satisfeito conosco ali naquelas águas. Pelo jeito havíamos invadido seu território. Escutei a palavra mooring, bóia em português, e fiz uma rápida associação: ele só podia estar querendo defender sua rede de pesca, localizada bem no nosso rumo. Mudei nossa direção e o pobre homem parece que ficou satisfeito e nos acenou agradecido. "O gado só cresce sob o olhar do dono", pensei.

Sob os primeiros raios de sol, o imenso contorno da Dominica apareceu soberano à leste. A oeste, nuvens baixas refletiam uma branca textura sobre a superfície do mar que parecia formado por azeite. Todos dormiam lá embaixo. Solitário, sentado na proa do Zimbros, observei o alvorecer de mais um dia, banal para a maioria, mas um momento muito especial para mim. "Estou aqui" pensei feliz.

Mais tarde, ao consultar nossa bíblia náutica, o Cruising Guide To The Leeward Islands do Chris Doyle, decidimos parar em Iles des Saints, pequeno arquipélago no sul de Guadaloupe. O nome foi dado por Colombo que esteve aqui logo depois do dia de Todos os Santos. Quatro ilhas muito áridas e com relevo acidentado, foi colonizada por franceses da Bretanha, na sua maioria, que se dedicaram à pesca. Hoje o turismo é seu principal ganha-pão. Por tratar-se de um lugar impossível para a agricultura, escravos nunca foram levados para lá. É muito curioso, pois é um dos poucos lugares no Caribe onde predominam os brancos.

A pequena Bourg des Saintes é a única cidade do arquipélago, localizada em Terre D'en Haut, a maior ilha do grupo. É charmosíssima, parece um presépio com suas construções coloridas, telhados de zinco pintados de vermelho, ruas estreitas. Mas o mais impressionante é o minúsculo aeroporto localizado entre duas colinas que tiveram que ser recortadas para permitir o pouso de pequenas aeronaves. Tem-se a impressão que os aviões vão chocar-se de encontro aos morros durante a aterrisagem.

Em terra, alugamos duas pequenas lambretas e, num par de horas, conhecemos toda a ilha. Jantamos num bistrô muito aconchegante com direito a tudo que nos foi negado na Martinica. Cedo nos recolhemos e cedo pulamos da cama para prosseguirmos nosso cruzeiro. A uma milha frente à Bourg des Saints, jogamos âncora na Île Cabrit que, como diz o nome, só tem cabritos e pedras. Tomamos café ao som destes animais agrestes, demos um belo mergulho e, com cronograma apertado, seguimos adiante.

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No final da tarde, com um belíssimo por do sol, entramos na enseada de Deshais, no noroeste de Guadeloupe. A mesma paisagem e o mesmo encanto na chegada. Mais um belo lugar no nosso currículo. Mas só para deixar claro que o paraíso não existe, à esquerda da baia, pouco afastado da vila, um veleiro jazia inerte entre as pedras, talvez conseqüência de algum furacão dos muitos que passam por ali com terrível freqüência. Um calafrio me passou pela espinha só de ver a cena. Por via das dúvidas, mergulhei para conferir se nossa âncora estava bem presa. .

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Efeito furacão: não existe nada que resista à sua fúria.

Pela manhã a mesma rotina: tomamos café, recolhemos âncora e seguimos pra próxima ilha. No caso, a mítica Antigua, nosso último porto, um ex-território inglês imortalizado por ninguém menos que o Almirante Nelson. Estava excitado em poder conhecer um pouco do lugar onde viveu o famoso navegador. Finalmente iria me encontrar com alguém à minha altura, sem falsa modéstia. De fato, o grande argonauta tinha 1,70 de altura, era magro e adorava dar ordens. Hoje Antigua é o grande centro de vela do Caribe. Em maio acontece a famosa Semana de Vela de Antigua, um dos mais badalados eventos esportivos náuticos do mundo.

Nosso destino era English Harbour, mas como era muito cedo quando nos aproximamos do sul da ilha, resolvi, com ajuda do nosso guia, conhecer Indian Creek, uma pequena e protegida enseada junto a qual fica a mansão de Eric Clapton. Como sou seu fã de carteirinha não resisti a um programinha bem classe-média e fomos ver como vive meu ídolo. A nossa aproximação foi bastante temerosa, pois a entrada é escondida entre duas elevações muito altas. Com um vento forte as ondas ficaram maiores e mal conseguíamos distinguir a boca da enseada. Guiados pelo GPS finalmente nos aproximamos e, vagarosamente, adentramos a baia em forma de S. Altas e áridas escarpas e uma vegetação bem rala davam ao lugar uma aparência assustadora. Sob a colina à frente, ergue-se um conjunto de várias construções feitas com pedras do próprio local: a famosa casa do titio Eric. É uma obra esquisita, desolada, sem jardins nem plantas, mas com uma vista espetacular. Na verdade, não invejei meu ídolo, pois o lugar é muito inóspito e seco. Após uma ligeira soneca levantamos âncora e partimos aliviados para English Harbour.

English Harbour é um capítulo extra para quem viaja pelo Caribe. Principal base naval inglesa nos séculos dezoito e dezenove, é parte importante da história da colonização das Antilhas. Estrategicamente localizada no centro do Caribe, e com características geográficas que a protegem de todos os ventos, inclusive furacões, este legendário porto foi escolhido pela Inglaterra para abrigar sua poderosa armada. Nelson Dockyard é nome da antiga base onde era feita a manutenção da armada inglesa. No final do século dezenove, com a perda da importância do Caribe na política internacional, o porto foi abandonado e assim ficou por muito tempo. Somente nos anos cinqüenta um poderoso movimento surgiu para a restauração daquela importante praça de guerra. Suas ruínas foram restauradas e hoje a área é um monumento nacional que abriga um grande cais de concreto com uma boa estrutura para quem vem do mar.

Entramos lentamente na baia através do estreito canal que, outrora, era fechado com uma corrente para evitar ataques inimigos de surpresa. Lembrou-me o Iate de Caiobá, no litoral paranaense, onde o acesso à marina foi bloqueado com uma cancela para impedir o assalto de abelhudos menos afortunados.

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Mas as semelhanças ficam por aí. English Harbour é coisa de cinema. Ketches, escunas, cutters, slops, barcos de todos os tamanhos e desenhos. Clássicos de madeira com seus cascos e metais brilhando, modernos projetos hight-tec, havia uma imensidão de veleiros por todos os lados. Como a semana de vela começaria dentro de um mês, veleiros de todas as categorias preparavam-se para a famosa competição. Eu já vira algumas daquelas embarcações pelo Caribe, mas todas juntas num só porto foi demais. O Zimbros até desapareceu frente aquelas máquinas de navegar. "Olhe aquele barco, e aquele. Veja este mastro, e o casco, o desenho..." parecíamos bobos com tanta ostentação. Aquelas águas são um grande testemunho do poder da grana do hemisfério norte. Não existe nada parecido abaixo do equador. .

Como detesto complexo de inferioridade passei logo um rádio para a marina e pedi permissão para estacionar lá. Fui autorizado a parar em qualquer lugar, já que havia várias vagas disponíveis. Manobrei o Zimbros bem ao lado de dois monstruosos ketches que o fizeram sumir no meio deles. Fingi que não dei importância às dimensões de meus vizinhos e tampouco aos seus olhares indiscretos sobre nós. Mais tarde descobri que a curiosidade das tripulações era para com nossas gatas. Um ar blasé, fiz de conta que não estava nem aí, abri uma garrafa de vinho e comemoramos nossa chegada. .

Mas tínhamos que partir logo! Dois dias depois retirei o Zimbros do Nelson's Dockyard e o levei à Catamaran Manina em Falmouth Harbour para deixá-lo pelos próximos doismeses. Preferi essa pequena marina por ser menos movimentada e mais segura, embora mais cara. Como estávamos numa sexta-feira, contratei, quase implorando, uma pequena firma para cuidar da manutenção e da segurança do barco enquanto estivesse fora. Minha preocupação era com os cabos de amarração que poderiam romper-se na eventuralidade de algum temporal inesperado. Mas não botei fé na capacidade daqueles nativos de cuidarem do Zimbros com a atenção que eu gostaria. E o pior, na pressa da partida cometi o erro mortal de não combinar o preço de seus serviços. Mais tarde, na volta, iria pagar caro por este imperdoável lapso. .

Final da parte 24

English Harbour: a força do capital presente no hemisfério norte

Nelson's Dockyard: O Zimbros desaparece ao lados dos outros barcos

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Parte 25

Por cerca de cinqüenta dias o Zimbros ficou imóvel, amarrado ao cais da Catamaran Marina em Antigua. Foi muito tempo para meu gosto, senti falta do seu balanço e do trabalho que ele me sempre me dá. Barcos são como filhos, é preciso tê-los sempre por perto. Pouco antes da minha apressada partida, contratei uma pequena firma de manutenção para cuidar da sua segurança e limpeza. No tempo que fiquei ausente, comuniquei-me com eles via e-mail para acertar aquilo que eu não tivera tempo de fazer ao deixar a ilha. Preços, serviços, etc. Apesar de ter deixado um bilhete enorme a bordo com todas as instruções, fiquei inseguro quanto à competência deles para cumprir minhas determinações. Estes temores confirmaram-se na minha chegada.

Ao entrar a bordo vi com desânimo que meu barco continuava exatamente do mesmo jeito que eu o havia deixado, sem qualquer tipo de atenção. Quase nada havia sido feito, mas uma enorme lista de cobranças estava a minha espera. Antigua é um dos principais portos de vela do mundo. Milhares de barcos estacionam lá todos os anos. O turismo náutico seguramente é uma das principais fontes de arrecadação da ilha. E eles sabem explorar direitinho esta fonte. Cobram sem perdão. A marina, o pessoal de manutenção, a aduana, a imigração, todos tinham uma nota para me apresentar. Quando achei que estava quite com todas as taxas, me apareceu um sujeito com uma cobrança de cento e cinqüenta dólares, referentes a um trabalho extra de limpeza que, alegava ele, foi feito pouco antes da minha chegada. De fato, havia pedido o tal serviço por e-mail, mas ele não foi feito. E o cara de pau teve o desplante de vir receber! Não paguei. Juro que não sou pão duro, mas admito que os caras do Caribe são uns exploradores. Não perdem uma oportunidade de tirar algum dinheiro de quem quer que seja. E o pior, raramente cumprem o que combinam.

Fiquei três dias em Antigua. Estavam comigo Bob e Betinho, antigos companheiros velejadores que já tinham me acompanhado no Brasil. Dessa vez nossa aventura seria muito maior: iríamos cruzar juntos o Atlântico Norte, rumo a Portugal. Existem duas maneiras de voltar do Caribe para o Brasil. Uma, mais curta, é pelo rumo sul costeando as Guianas. Contra o vento e contra todas as correntes, é uma tortura. Outra, seguindo os alísios do norte rumo à Europa. Escolhi a segunda opção por ser a menos sacrificada, embora mais longa. Nesse extenso e deserto trecho eu precisava estar cercado de marinheiros que soubessem o que estavam fazendo. Beto e Bob não estavam ali por acaso. Eles são navegadores com muita experiência em quem se pode confiar cegamente.

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Catamaran Marina em Antigua: o começo de uma nova etapa da viagem, a travessia do Atlântico.

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Deixamos Antigua na manhã do dia 27 de junho. Como era quinta-feira de nada adiantaria chegarmos ao nosso destino no dia seguinte, já que o final de semana nas Antilhas começa na sexta à tarde. Resolvemos fazer o percurso mais longo, por St. Kitts e St. Barts para poder conhecê-las, mesmo que rapidamente. Rumo 290º, vento de popa, Nevis na proa a 50 milhas e Tom Jobim na caixa são um resumo das nossas primeiras horas de navegação. Poucos antes das seis da tarde jogamos âncora em Major Bay, pequena enseada deserta ao sul de St. Kitts. O local não era dos melhores. Dois barcos em ruínas nas pedras e alguns bodes nas colinas nos serviram de tristes companhias à noite.

Às cinco da manhã já estávamos de pé. Prosseguimos para o norte com pretensão de parar em Statia, um paraíso segundo nosso guia. Ao chegar, abrigados do vento, frente à Oranje Baai, nada vimos de excepcional que justificasse uma parada, nem mesmo um veleiro ancorado nas redondezas. O vento soprava forte e não havia bóias de amarração para prendermos o barco. Teríamos que jogar nossa âncora e, se desembarcarmos, eu não ficaria tranqüilo em deixar o Zimbros naquele mar. Desistimos da escala. Preferimos seguir direto para St. Barts, poucas milhas ao largo e com vento favorável.

Às quinze horas manobrávamos por entre centenas de barcos parados frente à Gustavia, a capital. Prosseguimos até dentro do porto onde há dezenas de bóias disponíveis aos barcos que chegam. Estávamos os três hipnotizados com tanta beleza. Já ouvira falar que St. Barts era a ilha mais charmosa do Caribe, mas nunca imaginara que fosse tão fantástica. Normandos e bretões chegaram lá em meados do século dezessete, para plantar fumo. Em 1784 a ilha foi vendida para os suecos que a devolveram um século depois alegando que sua manutenção era muito cara. Foram eles que batizaram a capital em homenagem ao rei Gustavo III. Hoje St. Barts faz parte de Guadaloupe, portanto é território francês. Uma curiosidade é que, por ser muito árida e de difícil agricultura, não foram necessários escravos, portanto a população é predominantemente branca, uma raridade no Caribe. O lugar é uma maravilha, um dos mais agradáveis que conheci nas Antilhas. Vale uma visita, mas aviso: prepare seu cartão de crédito porque os preços não são para simples mortais.

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Mas antes eu precisava prepar o Zimbros para minha odisséia. Nossa primeira escala era St. Maarten, cem milhas a noroeste da nossa posição. Lá pretendia instalar alguns equipamentos de segurança necessários à nossa grande viagem: rádio SSB, placas solares, Epirb, etc. Como a ilha é um porto livre, eu esperava encontrar tudo o que precisava a preços mais acessíveis. Tudo vã ilusão: no Caribe não existe nada barato.

Beto & Bob: os caras que sabem tudo.

Baia de Gustavia a capital de St. Barts: um dos lugares mais charmosos do Caribe.

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Dois dias depois largamos amarras em direção à St. Maarten. Antes, porém fizemos uma pequena parada em Île Fourchue, uma ilha deserta e seca situada poucas milhas a noroeste de Gustavia. Não há nada lá, exceto bodes e pedras. Mas é de uma beleza selvagem e agreste. Demos um pequeno mergulho e prosseguimos nosso rumo. Pouco depois das quatorze horas chegamos à St. Maarten, justo em frente ao canal que liga o mar aberto à Simpson Bay Lagoon. A ponte elevadiça, que permite o acesso ao interior, só abriria às dezessete e trinta. Jogamos âncora em Pelican Cay, frente a um enorme resort modernoso. Passei um rádio para a marina onde pretendíamos ficar e em poucos minutos um funcionário veio até nós com um bote inflável. O serviço foi de primeira: nos orientou como seria o acesso à marina e, quando a ponte abriu-se veio nos acompanhar no percurso.

Em poucos minutos estávamos amarrados ao cais do Simpson Bay Yatch Club. Junto conosco chegou um veleiro pouco maior que o Zimbros. Parou bem ao nosso lado. Era americano, chamava-e Heart Of Texas e, abaixo do nome escrito no casco, tinha um coração desenhado com a silhueta do estado do Texas no meio. Eu já conhecia a fama de bairrista dos texanos, mas nunca tinha presenciado nada igual. Por associação apelidamos o dono do barco de Gaúcho. Com o perdão de todos os meus amigos lá do Rio Grande, o cara era muito bobalhão. Seu barco mais parecia o mostruário de uma loja de artigos náuticos: tinha de tudo o que se pode comprar para equipar uma embarcação. A bordo, um casal de meia idade. Ela até que simpática, mas o Gaúcho nem sequer nos deu bom dia. Coisa de americanos!

Alugamos um pequeno carro para fazer um tour de reconhecimento pela ilha. St. Maarteen tem apenas treze quilômetros em ambos os sentidos. É dividido ao meio, o lado norte é francês e o sul, holandês. Esse parcelamento pacífico tem trezentos anos. A fronteira não é demarcada com cercas ou guaritas, apenas algumas placas indicam que você deixou Sint Maarten do lado holandês e entrou em Saint Martin, francês. Conta a lenda que para determinar essas divisas, um francês com uma garrafa de vinho caminhou do litoral norte para sul e um holandês com uma garrafa de gin no sentido oposto. Onde se encontraram passou a ser a fronteira. O francês avançou um pouco mais porque o vinho é mais fraco que o gin. Tudo bobagem! A ilha não tem graça nenhuma, ninguém achou nada de especial lá.Nas Antilhas existem lugares muito mais bonitos e charmosos, sem a mesma fama, contudo.

Para a travessia tínhamos planos de fazer um up-grade total a bordo. Mas mudei de idéia frente às dificuldades que encontrei para equipar meu barco. No Caribe existe um enorme apoio náutico, tanto de serviços como de materiais. Entretanto, o tempo deles é outro, demorado e sem pressa. Para a instalação dos painéis solares chamei um eletricista que apareceu no final do dia. Entregou-me um orçamento vinte e quatro horas depois e só poderia começar a trabalhar dois dias depois, assim mesmo após as dezoito horas. Sem condições de esperar, desistimos. Compramos nós mesmos um painel solar e fizemos a instalação. Bob, engenheiro eletricista, deu as coordenadas técnicas, Beto, engenheiro civil executou e eu, arquiteto, determinei o lugar onde que ficasse mais prático e menos feio. Foi um trabalho de equipe perfeito que nos tomou apenas um par de horas!

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Além das equações técnicas tivemos muito que fazer para enfrentar o Atlântico bem equipados. Desta vez não haveria porto no meio do caminho onde pudéssemos nos abastecer. "Quem vai ao mar, avia-se em terra" diz o ditado. Nada poderia faltar neste trecho da nossa viagem. Minha preocupação maior era com a limitada autonomia de água e combustível do Zimbros. Toda nossa energia que abastece luzes, rádio, piloto automático, geladeira, som, vêm das baterias. Para recarregá-las é preciso ligar o motor pelo menos uma hora por dia. A placa solar não era suficiente para suprir todas nossas necessidades. .

Tivemos que comprar vários tanques de plásticos para enchê-los com água e diesel. Seria uma preciosa reserva caso não encontrássemos vento e nos atrasássemos no mar. Nossa previsão era levarmos aproximadamente duas semanas até os Açores. Precisávamos trabalhar rápido e resolver todos nossos impasses, sem erros, nem esquecimentos.

Havia outro problema: como eu tinha comprado dingue e motor novos na Martinica, precisava me livrar dos velhos, sob pena de ter que carregá-los por todo o Atlântico. Descobrimos que, pela manhã, no canal 14 do VHF, havia um serviço de informações e ajuda aos velejadores. Era possível anunciar de tudo lá. Comuniquei minha intenção de vender meus equipamentos e, em pouco tempo, apareceram três candidatos. Mas nenhum quis fechar o negócio logo de cara, apesar da barganha que eu estava pedindo.

Um problema para mim, que pretendia partir em dois dias. Quando achei que não conseguiria me livrar daquela tralha, um jovem australiano apareceu e bateu o martelo. Meia hora depois surgiu o outro candidato, um americano, que jurava que o tinha reservado para si. Ficou furioso com a notícia de que o barco e o motor já tinham sido vendidos. Brigou comigo. Disse que eu não tinha sido legal com ele, um blablablá dos diabos. "Fuck you man" eu disse encerrando de uma vez por todas aquela conversa fiadanuma linguagem que ele entendia bem.

Acordamos mais cedo que o usual no dia da partida. Ainda faltavam alguns detalhes a serem resolvidos. Sairíamos na abertura da ponte das onze e meia da manhã. Aparentemente todos estávamos calmos, mas no fundo de cada um de nós reinava uma ponta de apreensão. A grande aventura iria começar dali a poucas horas: a travessia do grande mar Oceano, como os antigos denominavam o Atlântico. Na verdade o Atlântico Norte nesta época do ano é como uma imensa avenida com centenas de barcos, europeus sobretudo, voltando para casa fugindo da temporada dos furacões no Caribe.

Não estaríamos sós na nossa aventura. Fiz uma última consulta no site de meteorologia para verificar a força e direção dos ventos e o tamanho do mar. O tempo e as correntes também são bastante previsíveis no verão do hemisfério norte. Iríamos de carona nos alísios, ou trade-winds, ventos que há séculos levava de volta para a Europa as frotas que transportavam a riqueza do novo mundo.

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A diferença de temperatura entre os pólos e o equador faz com que o ar da atmosfera esteja em constante movimento. O ar frio dos pólos move-se em direção ao equador. Este movimento, associado à rotação da Terra, cria no planeta um sistema de ventos constantes chamados alísios. De forma simplificada pode-se dizer que nos mares do sul os ventos predominantes giram no sentido anti-horário e nos do norte no sentido horário. O nosso caminho até o leste acompanharia a ponta deste relógio invisível, mas real.As onze e quinze largamos amarras do cais da Simpson Bay Yatch Club em direção ao enorme mar que nos esperava com todas suas surpresas, armadilhas e mistérios. Em silêncio pedi aos deuses que nos guiassem em segurança: a Netuno com mar tranqüilo, a Eolo com ventos favoráveis e a Castor e Pólux considerados as divindades protetoras dos marinheiros e viajantes.

Foi no oceano infinito que os deuses nasceram. Na Babilônia, no Egito, na Polinésia, em Homero, tudo começou nas águas. Os antigos gregos confiavam a realização de seus desejos aos deuses. Estes, imperfeitos e imprevisíveis, nem sempre correspondiam às preces de seus devotos, frustrando seu fervor e sua fé. Se as entidades mitológicas do passado falhavam com seus asseclas mais empenhados, imagine com um crente de última hora como eu. Nas próximas semanas eu iria pagar o preço da minha infidelidade.

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Final da parte 25

A porta de saída da Simpson Bay: próxima parada o Algarve

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Permanecemos em St Maarten o mínimo necessário para prepararmos o Zimbros a enfrentar sua grande façanha, a travessia do Atlântico. Normalmente, quando se fala em fazer um cruzeiro num pequeno barco a vela, se pensa em aventura e liberdade. Na verdade, não é só isso. É também, o resultado de muito planejamento e trabalho. O mar é algumas vezes muitíssimo duro e não perdoa erros. Se por um lado há muita gente navegando, sobretudo no Atlântico Norte, por outro, há muito que se preparar e aprender para evitar que uma aventura se transforme numa tragédia. São muitos os obstáculos para quem vai para o mar. Mas talvez o mais difícil seja mesmo a decisão de partir.

Finalmente partimos. À medida que o Zimbros deslizava suavemente pelas águas da Sympson Bay Marine, vimos que o vento fora da baia estava forte. Quem nos alertou foi o auxiliar da marina que nos acompanhava com seu bote inflável. Às onze em ponto a ponte sobre o canal que liga a baia ao mar aberto abriu-se e nos oferceu todo o oceano à nossa frente. Dali para diante seria somente conosco, não teríamos qualquer tipo de assistência para qualquer problema que surgisse à bordo nas próximas duas mil milhas. Tão logo ficamos fora do abrigo das montanhas que cercam o lado sul de St. Maarteen, o vento e mar nos pegaram sem piedade. Até um detalhe simples como levantar a vela grande foi feito com muito esforço. Planejamos circundar a ilha pelo leste e a partir de lá, seguir no rumo norte passando próximo de Anguila.

Com vinte nós de um nordeste na cara, navegávamos numa orça bem fechada e desconfortável. "Começamos bem!" pensei com meus botões. "Talvez melhore" disse Betinho querendo um consolo para aquela situação. "Não Beto, não vai mudar, nós é que vamos nos acostumar com esta pauleira" disse eu, já descolado em partir com tempo contra. Fazia sol e estava quente, mas em apenas alguns minutos tudo no cokpit estava molhado. Sobretudo nós que não estávamos protegidos com nossos impermeáveis.

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Parte 26 Por do sol no meio do mar: os dias são cada

vez mais longos no hemisfério norte.

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Por mais que orçássemos, não conseguíamos livrar Scrub Island, localizada no extremo nordeste de Anguila. Decidi que passaríamos entre as duas, em um estreito canal com menos de cem metros de largura. Ao chegarmos perto, ao abrigo do relevo, o mar ficou mais tranqüilo e pudemos ver as costas desertas das duas ilhas. Não havia nenhuma casa ou construção, apenas uma vegetação rala e seca. O chart-plotter nos dava o rumo, e o ecobatímetro, a profundidade. Apesar dos instrumentos mostrarem que a navegação naquele ponto era segura, não pude deixar de sentir certo pavor de passar por aquela pequena passagem. Tão logo a cruzamos, demos um último adeus à terra apreciando a bela e selvagem geografia lunar de Scrub Island. A partir daquele ponto, terra só nos Açores.

Anoiteceu. Às três da manhã, no turno do Beto, o piloto automático parou de funcionar. Não podia haver uma notícia pior naquele momento. Teríamos que levar o Zimbros na mão grande mesmo. Dormi mau, cheio de pressentimentos ruins. Quando amanheceu, o vento e o mar continuavam contra. Tiramos toda a carga do porão de proa, dentro do qual localiza-se o braço do piloto.

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Rapidamente localizamos e reparamos o defeito: um dos fios de alimentação havia se soltado. Mas o pior foi ver que o suporte de fibra que fixa o aparelho na carenagem do barco estava quase se quebrando. Bah, que notícia ruim! Não tínhamos à bordo nada que pudesse ser feito para reparar aquele tipo de avaria. A solução: voltamos ou mudamos nosso rumo para as Bermudas? Nem precisamos discutir muito, decidimos pela parada no famoso arquipélago, algumas centenas de milhas fora da nossa rota original. No primeiro dia havíamos andado cento e cinquenta milhas. Nada mal, com tudo contra. Faltavam mais 750! À noite finalmente o vento diminuiu para quinze nós e tudo ficou mais tranquilo. Na manhã seguinte, aproveitando a paz, resolvi limpar os porões que estavam cheios d'água. É uma tarefa que odeio fazer, mas não tem como evitá-la. "Quem pariu Mateus, que o embale" lembrei das palavras do Glauco. Praguejava ajoelhado embaixo da mesa com um balde e uma esponja drenando as cavernas inundadas. De repente, o Cd tocou Oriente do Gil, aquela música que fala em "ir para o Japão num cargeiro do Lloyds limpando porão..." Nada podia ser mais apropriado naquele momento para ouvir. "Um barco é a maneira mais cara de se viajar de terceira classe", constatei mais uma vez. Mas não dava pra reclamar, tudo aquilo fazia parte de um script que eu sabia de cor.

Dia três, quatro da tarde, cruzamos o Trópico de Capricórnio. No verão, os dias, para quem segue para cima no hemisfério norte, são cada vez mais longos. Aos poucos fomos nos entendendo com os alísios e o mar foi ficando cada vez mais dócil, sem molhadeiras no convés. No domingo, fizemos nossa primeira refeição decente com direito a salada, sobremesa, etc... Estávamos no través de Miami, pouco mais de novecentas milhas à oeste, longe de tudo e de todos. Sentia um isolamento, uma sensação de abandono, medo e prazer, tudo ao mesmo tempo. Cercado por um mar infinito, descobri que o nome do nosso planeta está errado. Deveria chamar-se planeta Água.

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O calor do Caribe ficou para trás. A 29º de latitude norte começou a esfriar. O vento parou. Ligamos o motor, contra a vontade do Beto. Se dependesse dele, iríamos na vela com qualquer brisa. Mas não era o caso. Tínhamos um distância a percorrer e não podíamos nos dar ao luxo de demorar muito na travessia. Estávamos bem e confiantes. Navegávamos em águas bastante previsíveis. O equivalente da nossa latitude no hemisfério sul, era Porto Alegre. E todos sabem o quanto é traiçoeiro o mar do Rio Grande. As correntes do golfo fazem do Atlântico Norte um mar bem tranqüilo no verão. O fato é que quem aprende a navegar no sul do Brasil, com toda a sua instabilidade, consegue encarar a maioria dos mares do mundo sem grandes surpresas.

O nosso capitão: Bob confere no guia, a melhor maneira de se chegar às Bermudas

Motoramos por cerca de trinta horas. Faltava apenas um dia para aportarmos nas Bermudas. O clima à bordo era de já cheguei. Betinho caprichou no almoço. Abri um vinho tinto barato que comprei na Martinica. Foi um dos melhores da minha vida. Calado, ouvindo Miles Davis me senti parte de sua música, feita de silêncio e alma. Um sentimento de solidão e grandeza ao mesmo tempo. Li certa vez, não lembro onde, que Deus presenteia seus escolhidos com a loucura. Concordo, sobretudo por me considerar um pouco fora do modelo que determinamos chamar de lucidez. Alguém com padrões de valores considerados lúcidos, jamais estaria onde estávamos naquele momento. Era minha escolha, estava vivendo uma história que eu assumira por vontade própria. Não queria estar em qualquer outro lugar do mundo. Em terra, adapto-me com dificuldade à rotina. Odeio sinais vermelhos e reuniões de trabalho.

O cheff Betinho: sua culinária mantinha a moral da tripulação em alta.

O amanhecer do último dia foi esplendoroso. Nada de vento, seguíamos no motor. Às dez da manhã não pude resistir ao chamado das sereias e mergulhei no mar cristalino das Bermudas. Bob e Beto, por receio, relutaram em seguir-me. Mas quando viram minhas exclamações, também caíram na água. Estávamos a três mil metros de profundidade. Uma sensação estranha ter uma imensidão infinita e escura abaixo de nós. Um contraste enorme, a poucos metros da superfície, seres de outro planeta vivem onde nenhuma luz jamais chega. .

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Quando se fala nas Bermudas a primeira coisa que a maioria lembra é do famoso triângulo. Ele ficou conhecido na década de 70 em conseqüência de um livro sensacionalista de Charles Berlitz que descrevia a área como amaldiçoada para a barcos e aviões. Li o livro na época. Lembro-me de ter ficado muito impressionado, mas com o oportunismo ridículo dos que inventam demônios para vender aos crentes menos avisados. A região também conhecida como Triângulo do Diabo, é limitada pela Flórida à oeste, pelas Bermudas ao norte e por Porto Rico ao sul. O seu tamanho varia de 500.000 milhas quadradas a três vezes mais, dependendo da imaginação do autor. Alguns chegam a incluir os Açores, o Golfo do México e as Indias Ocidentais no triângulo.

Muitas teorias foram criadas para explicar o mistério dos aviões e navios desaparecidos. Extraterrestres, campos magnéticos, resíduos de cristais da perdida Atlântica, vórtices da quarta dimensão estão entre os favoritos dos inventores de fantasias. Campos magnéticos, gás metano vindo do fundo do oceano são os motivos apontados pelos mais técnicos. Os céticos argumentam que não existe mistério a ser solucionado. O número de naufrágios na zona não é extraordinário, dado o seu tamanho, localização e o tráfego que recebe. No meu entender, tempestades, furacões, ondas, correntes, azar, piratas, navegantes incompetentes e outras causas naturais e humanas são as mais prováveis causas do mito.

Longe destas fábulas, nosso dia continuava maravilhoso. Os instrumentos estimavam nossa chegada às duas da tarde. Mas não conseguíamos ver qualquer sinal de terra no horizonte, apesar de estarmos a apenas trinta milhas do nosso destino.

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Seguindo uma secular tradição náutica, ofereci um quartilho extra de rum ao marujo que primeiro avistasse terra. Betinho, que quase não bebe, foi o felizardo. As Bermudas são um arquipélago vulcânico de baixa altura, sem montanhas. É muito difícil conseguir distinguí-las do mar. Estão isoladas no meio do Atlântico, eqüidistantes novecentas milhas do continente americano e do Caribe.

Aos poucos o contorno da ilha foi ficando mais nítido e podíamos ver suas construções brilhando ao sol. Todo o arquipélago é cercado por uma barreira intransponível de perigosos bancos de areia e recifes de corais. O nosso destino era St. George ao norte. Trata-se de uma pequena baia, que teve seu acesso aberto pelas mãos do homem, o Town Cut Channel, um estreito canal escavado no leito do mar. Sem esta entrada estratégica, seria impossível ocupar um território tão escasso de abrigos naturais. Localizamos as bóias de sinalização e pedimos autorização aos funcionários da alfândega para entrarmos no porto. A boca é muito justa, se algum transatlântico estiver saindo ou entrando, nenhuma outra embarcação consegue passar.

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O Town Cut Channel: a estreita porta de entrada das Bermudas.

Page 122: Viagem do Zimbros

À medida que vagarosamente adentramos na baia, pudemos ver dois imensos navios de passageiros parados no pequeno porto. Ao longo do caminho, dezenas de veleiros de todos os lugares do mundo ancorados. Um pouco diferente do Caribe, pois ali só chegavam os que se aventuravam longe de casa. Pelo VHF, a imigração nos indicou um pequeno cais em Ordnance Island, onde paramos para preencher as formalidades de entrada no país. Tão logo cumprimos com nossa obrigação legal, parti em busca do primeiro boteco atrás de uma cerveja bem gelada. Que prazer indescritível poder consumir de um só gole um delicisoso pint of lager inglês. Na hora de pagar, descobri uma dura realidade da ilha, os preços: cerca de seis dólares americanos por um chopp.

Conseguimos uma vaga numa marina bem ao lado de Ordnance Island. Em pouco tempo, manobrávamos no cais da Captain Smoke Marina. Na chegada, Betinho fez uma aproximação triunfal com o Zimbros entrando de popa por entre outros dois veleiros. Uma correnteza e um vento de través dificultavam nossa manobra. Beto calculou com precisão os vetores resultantes de todas as forças, acelerou o motor à ré e encaixou com precisão o Zimbros na estreita vaga que nos era reservada. Na proa eu me encarreguei de jogar a âncora e Bob, na popa, com rapidez pulou em terra com um cabo para fixá-lo no cunho de amarração. Um trabalho de equipe perfeito! A hora da chegada é muitas vezes a pior de toda a viagem. Pode-se navegar por todos os oceanos e cometer um erro que pode ser fatal na hora da atracação. Cansaço, pressa ou negligência são as principais causas dos acidentes de chegada. .

Ordnance Island: muvuca no cais da imigração.

Captain Smoke Marina: nosso porto seguro nas Bermudas.

Em terra não perdemos tempo. Nos dividimos em equipes e, no final da tarde, o apoio que fixa o braço do piloto automático já estava reparado. Mais uma vez Beto e Bob mostraram seu talento em lidar com fibra de vidro. Aproveitei a parada para subir no mastro e substituí, pela segunda vez, os cabos que fixam o lazy-jacket, uma espécie de bolsa dentro da qual se recolhe a vela grande. Lá de cima pude ter uma visão privilegiada de toda a marina e seus entornos. Captain Smoke é um pequeno cais de concreto e suas instalações são bastante modestas, embora muito charmosas. Havia não mais que meia dúzia de barcos parados lá. Alemães, franceses, ingleses e uns americanos bem babacas eram nossos vizinhos. Já falei antes que não sou racista, mas ultimamente comecei a implicar com a prepotência dos americanos. Os caras são muitos cheios de si e se acham no centro do mundo. Mas o que mais me irrita é o fato deles se levarem muito à sério. É impossível ter uma conversa de igual para igual com caras que não sabem onde fica o Amazonas, por exemplo. .

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Depois das obrigações cumpridas, resolvemos conhecer a terra dos nossos anfitriões. As Bermudas são um arquipélago de origem vulcânica composto por uma ilha principal, cercada de outras cinco menores, todas ligadas entre si por pontes e aterros. O conjunto todo tem a forma de um imenso anzol, com cerca de vinte quilômetros de um extremo ao outro. O relevo é plano e seco. Atingida pela corrente do golfo, as Bermudas gozam de um clima subtropical incomum para sua latitude. É um paraíso fiscal onde estão instaladas mais de três mil seguradoras de todo o mundo. Daí sua riqueza, além do turismo. Um belo lugar, onde todos parecem felizes. Atribui-se o seu descobrimento no começo do século dezesseis, ao espanhol Juan Bermudes, daí o seu nome. Nos anos sessenta algumas beldades menos sujeitas às regras da moda, começaram a usar uma calça mais curta e larga, bem apropriadas ao clima. Nascia a famosa bermuda, um traje hoje universal. .

Algumas belas imagens do famoso arquipélago

Estávamos preparados para nossa saída quando, na véspera, uma instabilidade causada pela passagem de uma zona de baixa pressão nos segurou no porto. A meteorologia previa ventos de quarenta nós fora do abrigo da baia. Durante a noite, registrei no anemômetro de bordo, ventos de até trinta nós. Por sorte estávamos bem protegidos e amarrados. Um vento daqueles em mar aberto seria um sufoco dos diabos. Como não valia a pena correr riscos desnecessários, adiamos a partida para o dia seguinte. A medida que frente deixou a região, o regime de ventos mudou completamente, e os alísios que sempre vêm de oeste, mudaram de direção, passando a soprar de leste, exatamente no rumo que pretendíamos seguir. Tivemos que suspender mais uma vez nossa saída. Na terceira manhã, aos primeiros raios do dia, com um vento ainda contra, mas não tão forte, cruzamos mais uma vez o Town Cut Channel. esta vez na direção da sua saída. Demos um triste adeus aquela bela e hospitaleira ilha e nos preparamos para, agora sim, cruzarmos o Atlântico Norte. .

A pequena Francis:todos parecem felizes nas Bermudas.

Final da parte 26

Page 124: Viagem do Zimbros

Com muito custo deixamos as Bermudas para trás. Como sempre acontecia nas saídas, o vento forte soprava contra. Nosso destino: os Açores, 1.900 milhas à leste, do outro lado do Atlântico. Orçamos o máximo que pudemos no rumo sudeste. Assim passamos o resto do dia, molhados e com frio. Às onze da noite, quando o vento girou para leste, mudamos nossa proa para nordeste. Estávamos inseguros, sem saber exatamente qual direção seguir. Através de um telefone celular via satélite Iridium , aluguado em Miami, ligamos para o Crespo em Curitiba. Queríamos ajuda com a meteorologia. Não demorou a resposta. A previsão era de calmaria por aproximadamente cinco dias! Uma má notícia. Logo nas primeiras horas de uma longa viagem, teríamos que ir à motor. Nossa autonomia de diesel não era suficiente, e arriscávamos ficar sem combustível no meio do mar. .

Golfinhos acompanham o Zimbros: um sinal de boa sorte!

Parte 27

Em seguida o prognóstico confirmou-se. O vento diminuiu e tivemos que ligar o motor. Cruzamos um cargueiro que seguia da América para o Mediterrâneo. Pelo rádio, pedi a previsãodo tempo para os próximos dias. Estávamos bem no meio de uma zona de alta pressão, as Azores High, bastante comuns no Atlântico Norte. Seguíamos no motor, mas a qualquer brisa, abríamos as velas para aproveitá-la melhor. Tínhamos que poupar combustível o máximo possível. Rumamos um pouco mais para norte. Queríamos chegar próximo aos 40º para fugir da latitude dos cavalos, assim chamada pelos antigos navegadores por ser a região onde estes animais eram abatidos. Serviam de lanche à tripulação faminta. Suas lentas naus, movidas só à vela, passavam semanas boiando sem vento no meio do nada Suas despensas rapidamente se esvaziavam, o que os obrigava a apelar para uma dieta mais sangrenta.

Finalmente no amanhecer do quarto dia nossa busca terminou, achamos os alíseos e a Corrente do Golfo. Ambos nos empurraram generosamente em direção aos Açores. Abrimos as velas e desligamos o motor depois de quase vinte horas funcionando. O dia estava tranqüilo e a temperatura, tanto do ar como da água, era de 21º C. Aos poucos as rajadas aumentaram de intensidade e nos obrigaram a tirar a mestra e reduzir a genoa. Em seguida começou uma chuva fina e chata. Ficamos três dias sem sair da cabine! A umidade fez com que a sensação térmica despencasse. No meio da madrugada fria e escura, sem poder ver onde terminava o mar e começava o céu, lua nova e céu tenebroso, eu ouvia só o ronco do vento soprando forte pela popa, e o barulho das ondas espumando por trás. Foi mais um daqueles momentos em que me preguntei que porra era aquela que eu estava fazendo ali.

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Esfriou mais, Bob jurou ter visto um iceberg. Era brincadeira, mas não estava tão fora de propósito. Estávamos pouco abaixo dos 40º N, o limite máximo onde se pode encontrar estes monstros gelados. Em poucos dias passaríamos perto de onde, em 1912, o desfortunado Titanic encontrou seu trágico destino. Os icebergs vêm do norte justamente entre março e julho com a chegada do calor que derrete o gelo no Ártico.

A corrente do Labrador traz estas montanhas flutuantes bem para o meio do Atlântico Norte. O mar mais aquecido do sul se encarrega de derretê-los lentamente e é muito difícil encontrá-los abaixo dos 40º. Estávamos safos, navegávamos nos 36º com os ventos e correntes favoráveis que buscávamos. Minha única preocupação era com os navios na nossa rota. Estávamos no caminho deles, apesar de termos visto poucos até aquele momento. "Oxvaldo, a possibilidade de batermox num navio é a mexma de acertarmox na loteria sozinhox" disse Bob do alto de sua experiência de já ter cruzado o Atlântico três vezes. Por dúvida, e sabendo que o azar e a sorte existem na mesma proporção, pedi que nunca ficássemos mais que quinze minutos sem checar nosso horizonte. Peguei muito no pé do Bob por essa! .

Bob & Beto: enfrentando o frio das altas latitudes.

Uma semana à bordo. Estávamos exatamente no meio do caminho entre as Bermudas e os Açores. Mantínhamos os olhos bem abertos no barômetro, para fugir das altas pressões e antecipar a entrada de alguma frente. Seguíamos as recomendações dos guias e do Crespo que monitorava nossa trajetória. Pelo telefone ele mandava pequenos torpedos direcionando nossa rota em busca dos melhores ventos.

Procurávamos ficar bem no meio dos alíseos e das correntes. Eram o nosso principal combustível, sem eles ficaríamos na estrada. No oitavo dia, o vento rondou para norte. Depois de dois dias sem mexer nas velas, voltamos a levantar a grande e retiramos o pau-de-spi da genoa. Havíamos feito 360 milhas em 48 horas só com a genoa armada em asa de pombo! Uma média sensacional para um barco como o Zimbros.

Adiantei uma hora no relógio de bordo. Explico porque: se dividirmos os 360º da circunferência da terra pelas vinte e quatro horas do dia, teremos o equivalente a uma hora para cada 15º de longitude percorridos. A mais, quando se segue para o leste, ou a menos quando se viaja para o oeste. Como cada grau corresponde, no equador, a 60 milhas, significa que a cada 900 milhas andadas, alteramos uma hora no relógio. Não entenderam? Não tem importância, não muda nada à bordo. É apenas uma maneira de se marcar o poente e o nascente para que os turnos comecem sempre na mesma hora.

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Funciona também nas chegadas, para que o horário do destino esteja um pouco aproximado do de bordo. Serve também para marcarmos a hora da fome. É impressionante como nossos hábitos alimentares se adaptam com facilidade ao meio e à penúria. Para economizar energia elétrica, todos nossos alimentos prescindiam da geladeira. Arroz ou macarrão acompanhados de algum tipo de molho enlatado, era a nossa comida diária. De manhã, pão integral, queijo, alguns cereais e frutas eram nosso desjejum. À noite, uma sopa de pacote tipo Maggi. Durante todo o dia preenchíamos a gula com bobagens como doces, chocolates, bolachas, etc... Apesar de levar uma linha de arrasto na popa, jamais consegui pegar qualquer tipo de peixe durante todo o trajeto. Raramente bebíamos álcool, exceto um copo de vinho quando o tempo estava camarada. Para compensar o regime, passávamos horas sonhando com picanhas mal passadas, sorvetes com muito creme, cerveja gelada e todos os tipos de delícias que não podíamos ter conosco.

No décimo dia faltavam mil milhas para chegar aos Açores. Começamos a contagem regressiva. Fazíamos uma média de 180 milhas por dia! Durante a noite o vento aumentou para 25 nós. Com a grande e a genoa em cima, embora rizadas, surfávamos nas ondas. Na descida das vagas o Zimbros chegava à onze nós de velocidade, um recorde! O piloto automático funcionava esplendidamente, não deixando que o barco perdesse o rumo com o balanço das ondas. Na popa, um fiapo de lua nova se punha no horizonte refletindo um brilho amarelo por sobre a água. Uma velejada perfeita, eu sentia um grande prazer de estar ali no meio do nada vencendo milhas e milhas a cada dia em direção ao meu destino.

Amanheceu e o vento chegou a trinta nós. O mar cresceu perigosamente. Seria imprudência continuarmos com todas as velas abertas. Com muito trabalho, abaixamos a mestra e enrolamos a genoa no tamanho de uma pequena buja. O Zimbros manteve a mesma velocidade, porém com mais estabilidade. Se há algo que aprendi desde que dexei meu porto, muitas milhas atrás é: sempre navegar com menos vela, e ancorar com mais cabo. Permanecemos durante todo o dia dentro da cabine, saindo apenas a cada quinze minutos para checar se não havia outro barco no nosso caminho. Ficar fechado numa condição daquelas era muito desconfortável, não dava para fazer nada, exceto deitar e esperar passar a tribuzana.

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Atlântico Norte: muito vento, pouca vela.

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Beto estava em pé na cozinha, Bob deitado, e eu tentava ligar o telefone. De repente, na descida de uma onda enorme, o piloto automático não respondeu com a rapidez necessária, o Zimbros atravessou, inclinando-se perigosamente para bombordo. O barco diminuiu sua marcha e o vagalhão que vinha atrás arrebentou sobre o cockpit, invadindo tudo pela frente, inclusive a gaiúta de acesso à cabine. Lá dentro tudo pareceu acontecer em câmara lenta: o barco adernou, ouvimos o estrondo da onda e, finalmente, um aguaceiro dos diabos invadiu tudo, indo cair direto sobre o fogão. Beto e eu nos olhamos: "Você viu isto" falei numa calma como se nada tivesse acontecido. No segundo seguinte o piloto retomou rapidamente seu rumo e o Zimbros aprumou-se no caminho correto. Pouco depois aconteceu de novo. Ondas entrando pela cabine, eu nunca tinha visto nada igual antes! Na verdade não corremos nenhum risco por estarmos todos protegidos dentro do barco. Mas seria muito perigoso se alguém estivesse lá fora, sem cinto de segurança. Corria-se o risco de ser jogado para o mar. Em uma situação daquelas, seria uma tragédia. Por via das dúvidas passamos a usar o cinto mesmo quando só colocávamos a cabeça para fora para checar se estávamos sós. No mar a segurança é tudo, o risco tem que ser zero!

Somente na manhã seguinte o tempo acalmou-se. Foram vinte horas de pauleira! Fizemos 190 milhas em um único dia, outro recorde! Acordei com o barco velejando tranqüilamente com todas as velas abertas. O vento rondara para noroeste e estava com dez nós de velocidade, um passeio! Nada como um dia depois do outro para quem está navegando. A temperatura caiu. A brisa vinda do quadrante norte trouxe o frio do Ártico até nós. Aproveitando o bom tempo e, para compensar o sofrimento das últimas horas, tomamos todos um merecido banho quente, sem economia de água.

Chequei os tanques e vi que ainda tínhamos metade deles cheios. O nosso controle tinha funcionado bem, sem desperdícios. É impressionante como esbanjamos água no dia a dia. O Zimbros tem um tanque com capacidade de apenas 300 litros, complementados por mais 60 levados em camburões de plástico. É pouco, mas suficiente para passarmos os três, mais de duas semanas no mar. É só saber poupar.

Faço parte de uma organização chamada Universidade da Água, cujo objetivo, entre outros, é a conscientização sobre o futuro das nossas reservas naturais deste precioso líquido. A Uniágua, concebida e guiada pelo meu incansável e altruísta amigo Roberto Barbosa, luta com dificuldades para mostrar uma verdade que poucos querem ver. O panorama é assustador segundo ele: de toda a água do planeta, somente 3% é doce. Destes, apenas 1% está disponível para consumo. E o pior, esta pequena quantidade está ameaçada pelo crescimento urbano desordenado e a conseqüente ocupação irregular dos mananciais. Prefiro não ser sombrio, mas num futuro bem próximo vamos ter que lutar por água, assim como hoje lutamos pelo petróleo. Água vai valer ouro. Ao entardecer, conversávamos sobre estas previsões sinistras. O capitão Bob, que sempre torce pelo bandido, previu sombriamente que nosso planeta não vai durar mais que trinta anos. Da minha parte, já estou treinando a viver com pouco...

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Quando supunha faltarem apenas dois dias para chegarmos, aconteceu aquilo que todo velejador reza para que não aconteça: o vento ficou contra. Soprava fraco de leste mas o suficiente para nos segurar um dia a mais no mar. Ligamos o motor. No final da tarde, soprava de todos os quadrantes menos de onde precisava. "Vento cocoroeste" definiu Bob. Foi uma das piores horas de toda a viagem para mim. Já estava considerando a possibilidade de tomar um banho quente e comer alguma coisa diferente de arroz ou massa, quando vi que tinha mais um dia ainda até lá.

Aprendi que o mais difícil numa travessia longa é saber lidar com o tempo cronológico, muito mais que com o tempo meteorológico. Passamos a maior parte das horas a sós com os nossos pensamentos e idéias. É preciso arranjar alguma coisa para fazer. Eu gosto muito de pensar. Refletir sobre meus valores e minhas eternas questões existenciais. "Traga-me vinho e a verdade" disse Alceu, um filósofo jônico da antiguidade, resumindo bem o espírito da dúvida que nos persegue desde sempre. Quem sou, de onde vim, pra onde vou? Quando, como e onde vai parar meu coração? Nenhuma conclusão, só que, no cotidiano, usamos nosso tempo como se ele fosse um bem inesgotável, e não é bem assim. Não somos imortais, o tempo é o nosso maior patrimônio. Mas a mesma filosofia que inquieta, também conforta: o que são alguns dias de isolamento frente à solidão da eternidade.

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Duas semanas de mar. As quatro da manhã, além do vento contrário, pegamos a corrente dos Açores que vinha do leste. Desligamos o motor e, com todas as velas em cima, rumamos para sudoeste, que infelizmente não era nosso rumo . As cinco Bob, solitário em seu turno gelado, avistou a Ilha do Pico e seu imenso cume com mais de dois mil metros de altura. Alternávamos vela e motor seguidas vezes sem sucesso. São Miguel, a ilha dos Açores que decidimos parar, demorava-nos à proa. Escureceu sem novidades. As duas e meia da madrugada Betinho avistou a luz do farol de São Miguel. Amanheceu frio e nublado. Bob acordou-me com uma festa. "Terra à vista" gritou ele lá de cima. Sonolento subi para o cockpit e vi, ao longe entre nuvens, o belo relevo vulcânico do nosso esperado destino. Não pude deixar de exultar de felicidade ao ver o maravilhoso contorno de São Miguel. "Até que enfim, graças a Deus". Foi tudo o que pude pensar, um momento heróico para mim. Chegava no lugar cuja história, de certa forma, está também ligada à nossa. Uma terra de santos e silvas como nós. .

Fernando Pessoa: só quem navegou todos os mares, conhece a solidão de si mesmo.

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A aventura marítima portuguesa começou com a exploração das costas da África. As frágeis embarcações navegavam para o sul, sempre à vista da terra, seguindo os alíseos de nordeste. Como estas primitivas naus tinham um ângulo de orça muito grande, no regresso eram obrigadas a afastar-se da costa para pegar o vento. E assim chegavam cada vez mais longe, até avistarem os Açores. Atribui-se sua descoberta em 1427, embora já figurasse em alguns mapas genoveses do século quatorze. A partir de sua ocupação, ordenada pelo Infante Don Henrique, o arquipélago virou ponto estratégico de apoio para as expedições ultramarinhas que regressavam das Índias e do Brasil.

Eram apenas sete da manhã quando aportamos a contrabordo de outros três barcos no cais da imigração portuguesa em Ponta Delgada. Havia dezenas de barcos na mesma situação que nós. Velejadores experientes que vinham de longe, de todos os quadrantes, Caribe, Europa, América. Tantos que não havia mais vaga disponível na marina, exceto a contrabordo uns dos outros. Bob com seu charme carioca, aproveitando-se do cartaz que nós brasileiros estávamos tendo em Portugal graças ao futebol, nos consegui um lugar de honra na marina. Desembarcamos. As primeiras impressões em terra, depois de tanto tempo navegando, são um pouco surrealistas. Parece que não estão acontecendo, tantas são as emoções. Sobretudo depois da primeira cerveja gelada que desce redonda como uma bomba. Um grande banho e um almoço especial nos deixaram em dia com nossos desejos, reprimidos em longos dias afastados dos confortos de terra.

Na manhã seguinte alugamos um pequeno carro e fomos conhecer a ilha. Bob já estivera lá antes e foi nosso cicerone. No meio do Atlântico entre a América do Norte e a Europa, a 800 milhas de Portugal e 2100 dos Estados Unidos, nove ilhas de origem vulcânica, apontada por alguns como os restos da antiga Atlântida, formam o Arquipélago dos Açores. São Miguel, também chamada Ilha Verde, pela cor de seus campos cuidadosamente cultivados, é a maior e mais populosa. Tem 65 Km de comprimento e 14 de largura. É quase do tamanho de Florianópolis. Um dos lugares mais marcantes que já vi! Vistas deslumbrantes, costas com recortes abruptos, rochedos que despencam no mar, montanhas e vales cobertos de exuberante vegetação, hortênsias, azaléias, enormes lagoas inundando crateras de vulcões extintos, gêiseres e nascentes de água quente, dão à ilha uma variedade paisagística de tirar o fôlego. Mas o melhor de tudo é o povo. Chegamos num momento de festa. Os lusos estavam vivendo um momento de euforia rara na sua história. Era pela classificação de Portugal para a final da Eurocopa. O assunto era um só: futebol e o Felipão! Se ele tivesse ganho a competição, sua estátua hoje estaria substituindo a do Marques de Pombal no ancestral centro de Lisboa.

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Quinze dias de mar: terra à vista, a Ilha de São Miguel.

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Mas tudo o que é bom, dura pouco. Cedo chegou a hora da nossa partida. Preenchemos as formalidades legais da imigração, abastecemos o Zimbros e, antes do escurecer de um dia radiante, soltamos as amarras do cais da Marina Pêro de Teive em Ponta Delgada, capital de São Miguel. Na hora da saída um pequeno problema com o pagamento do combustível: eles não podiam aceitar nossos dólares. Quem nos ajudou foi um personagem da marina, um sujeito especial, 30 anos, um destes loucos que tem em toda cidade, mas que nos lugares pequenos são parte da comunidade. Todos gostam deles. Sempre tive muita simpatia por estas criaturas, fazem parte da minha infância de cidade pequena. Nosso amigo, uma figura folclórica, rapidamente nos ajudou a resolver nosso problema, sempre com um sorriso no rosto. Depois de partirmos, ele ficou nos acenando durante muito tempo com simpatia. Foi uma imagem muito bonita e melancólica. Um pequeno veleiro partindo para longe e um amigo no porto desejando-lhe sorte. Um terno gesto que faz parte da vida daquele povo desde sempre. Como também faz da vida do marinheiro, feita de partidas e chegadas...

Fecha o plano, enquadra o por do sol, toca Cesária Évora: "vai nesse caminho longo..." Aguarde a próxima cena de "A Travessia". Capítulo especial de ataque: a chegada a Sagres e o encontro da tripulaçâo do Zimbros com seus heróicos antepassados....

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Final da parte 27

Acesse este capítulo e os demais no seguinteendereço: http://www.iateclubeportobelo.com.br/aventura.htm

Ilha de São Miguel: um paraíso no meio do mar.

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Deixamos os Açores com uma fraca brisa de final de tarde. Nos preparamos para vencer o último trecho da travessia do Atlântico. Seriam pouco mais que oitocentas milhas até Cascais, ao lado de Lisboa, na foz do Rio Tejo. Tão logo os enormes picos da ilha de São Miguel encobriram o pouco que havia de vento, ligamos o motor. Os próximos dois dias foram monótonos, avançamos lentamente, movidos ora por vela ora por motor. Enfim na madrugada do terceiro dia entrou um vento sul de quinze nós que nos ace le rou no rumo espe rado . Logo começou a chover.Um navio vindo do oeste nos alcançou pela popa, passando por bombordo, próximos a nós cerca de uma milha. Tentei contato com o rádio, sem sucesso. Estávamos curiosos com o resultado da partida final da Eurocopa, Portugal versus Grécia. Era a metade do caminho entre os Açores e a Europa. A temperatura durante o dia não passava dos 20ºC. Ao longe podíamos ver nuvens carregadas com redemoinhos formando pequenos ciclones. Uma imagem bela mas assustadora ao mesmo tempo. Por via das dúvidas, mudamos um pouco nosso rumo para nos distanciarmos daqueles centros de mal tempo. Faltavam apenas dois dias para a chegada .

Aviso de tempestade: xô Satanás.

Eu acreditava que este trecho da viagem seria o mais tranqüilo de todos. Nossas coordenadas eram 37ºN e 13ºW. Mas quando nos aproximamos dos 11º o vento rondou de norte para nordeste, aumentando bruscamente a força, chegando a trinta nós nas rajadas. Era tudo o que não queríamos, embora houvesse uma previsão de que pegaríamos tempo muito duro nas costas de Portugal. Rapidamente diminuímos todas as velas, a grande no segundo rizo e a genoa no tamanho de uma pequena buja. Ocorre que a genoa, quando enrolada, perde totalmente o seu desenho aerodinâmico e fica quase impossível navegar contra o vento. O ângulo de orça aumenta muito. Em pouco tempo o mar cresceu e ficou muito difícil manter o rumo para Lisboa. Corremos com o tempo e arribamos para o sul, um pouco mais à favor das ondas e do vento que passou a nos pegar de lado, por bombordo. Pensei que aquela instabilidade não iria durar muito e, em breve, poderíamos voltar nossa proa para o leste. Mas não foi isso o que aconteceu. .

Parte 28

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O mar aumentou. As ondas chegaram a cerca de três metros de altura, algumas até com cinco, arrebentando na crista. Ficou feio de se ver. O Zimbros virou uma frágil casquinha de noz, jogada de um lado para outro ao sabor dos elementos. E nós lá dentro! Mas o barco é muito resistente e seguro. Foi projetado para aguentar todo tipo de esforços. Um veleiro moderno é o resultado de muitos séculos de evolução náutica, e o Zimbros é o resultado disto. Eu sempre soube, mas quando se está sob pressão, sofrendo na prática o que se sabe na teoria, nossos conceitos mudam. Passamos, se não por uma mudança, diria que por uma série de dúvidas atrozes. "Será que o barco aguenta?" era a pergunta mais freqüente que me fazia quando ouvia o estrondo do mar e o ronco das rajadas lá fora.

Escureceu e nada do tempo nos dar uma trégua. Temperatura 16º C, dentro da cabine reinava o caos. Estávamos úmidos e nada parava no lugar. Ficava difícil até mesmo caminhar. Ir no banheiro, por exemplo, nem pensar! Cozinhar então... Mesmo assim, Betinho nos preparou um risoto quente para aquecer um pouco nosso ânimo. O barulho do vento e das ondas se quebrando contra o casco amplificavam-se dentro da pequena cabine. E nós quietos, cada qual no seu canto com seus próprios pensamentos e temores. A cada quinze minutos, preso ao cinto de segurança, um de nós fazia uma rápida visada lá fora, para ver se não havia ninguém na nossa rota. Ao longe, na proa, vimos duas luzes de tope do mastro de dois catamarãs que partiram conosco de São Miguel. Deviam estar sofrendo mais que nós.

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Amanheceu feio! Naquela altura, já tínhamos desistido de seguir até Cascais. O nosso novo rumo era para onde o vento queria nos levar, o Algarve, no sul de Portugal. Nosso esforço se resumia apenas em agüentar o desconforto. As velas estavam bem reguladas e o piloto automático seguia seguro no controle dos solavancos. Eu estava deitado na cabine de proa. De repente, senti um choque no costado e ouvi o estrondo de uma onda. A vaga quebrou-se sobre o cockpit inundando-o. A água levou um minuto para escoar-se toda. Antes porém, pela abertura do auto-falante de popa, jorrou como uma cachoeira para dentro da cabine, exato sobre a cama onde eu estava. Caiu bem em cima da minha bolsa de equipamentos fotográficos que, felizmente, estava fechada, evitando um prejuízo doloroso. Beto estava lá fora e, apesar da surpresa, manteve-se calmo. Rapidamente Bob ajudou-me a secar meus apetrechos eletrônicos. Mas minha cama estava totalmente ensopada. Drenamos o que era possível e, momentos depois, quando tudo parecia sob controle, aconteceu de novo. Uma nova onda inundou o Zimbros e invadiu minha cabine de novo. Parecia que aquela tortura nunca mais iria acabar. Revendo hoje, concluo que aqueles dois últimos dias antes de completar minha travessia, foram os piores de toda minha viagem, desde a saída de Porto Belo um ano atrás. Eu já tinha pego ventos fortes e mar desconfortável, mas não por tanto tempo seguido. Nem mesmo no trajeto São Luiz à Trinidad eu sofri tanto!

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Atlântico Norte: o pau comeu há dois dias da chegada.

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A noite veio e ainda não tínhamos uma trégua do tempo. Dormíamos mal, em intervalos cada vez menores. Fazia frio e estávamos todos molhados. Parecia que nunca chegaríamos. Mas as três da madrugada o vento, com a mesma rapidez que veio, se foi completamente, obrigando-nos a ligar o motor. A medida que avançávamos, avistamos no horizonte a luz do farol do Cabo de São Vicente, o mais poderoso da Europa com um alcance estimado em cinqüenta milhas. Faltava pouco para a chegada, contávamos o tempo minuto a minuto.

Amanheceu e pudemos ver as enormes falésias da costa sul portuguesa. Dezenas de navios apareceram do nada no horizonte, indo e vindo de todas as direções. Muitos deles seguiam para Gibraltar. O tráfego intenso nos obrigava a ficar em vigília permanente. As seis da manhã cruzamos o mítico Cabo de São Vicente, desde séculos um importante ponto de referência para a navegação. Na Idade Média este promontório, varrido pelos ventos, no extremo sudoeste da Europa, era considerado o fim do mundo. Gregos e romanos o chamavam Promontorium Sacrum, mais tarde, Sagres pelos lusos. Ali onde termina a terra e começa o oceâno, nas palavras de Camões, suas falésias de até 60 metros sobre o Atlântico, ainda tem uma beleza trágica e misteriosa.

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Ao abrigo da costa o mar ficou calmo, sem ondas. Chegamos na Enseada de Sagres, a sede da exploração ultramarinha portuguesa a partir do início do século quinze. Um processo expansionista que começou não só por razões econômicas mas também religiosas, a luta entre a Europa cristã e o mundo árabe. A tomada de Ceuta no Marrocos pelos lusos em 1415, um divisor de águas na história portuguesa, marca o começo dessa marcha. A partir dai, o mundo ficou pequeno para Portugal. Instalado no Algarve, ou El-Ghard, a terra do poente em árabe, o infante D. Henrique, filho do rei D. João I, foi o grande arquiteto do imperialismo luso, financiando expedições ao longo da costa da África. Cercado de sábios, cartógrafos, astrônomos e astrólogos fundou a Escola de Sagres, que existiu apenas no sentido figurativo. Ao contrário do que se afirma, nunca houve um espaço físico ou um edifício de estudos na ponta de Sagres. Na verdade, afirmam alguns, o fidalgo alojou-se na vizinha Lagos. A razão é bem simples. Localizada dentro de uma enorme baia, Lagos apresenta melhores condições de abrigo tanto para saídas e chegadas como para a manutenção das pesadas naus lusitanas. .

Terra à vista: o Cabo de São Vicente, extremo sudoeste da Europa

O Cabo de São Vicente: o Promontorium Sacrum dos gregos virou a Sagres dos lusos.

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Com ajuda do guia náutico, decidimos parar na Marina de Lagos. Navegávamos próximos à costa para melhor apreciar suas reentrâncias nuas e pedregosas. Na base, enormes cavernas criadas pela erosão das ondas aumentavam ainda mais seu mistério. Não por acaso, um lugar outrora ocupado por druidas. Celtas e iberos costumavam dizer que ali os deuses faziam seus ágapes noturnos. Semanas no mar, um banquete cheio de virgens me deram o que pensar. Pequenas embarcações de pesca e de turismo seguiam próximos a nós. Cruzamos com um velho pescador e sua rede. "Quem ganhou o jogo" foi nossa única curiosidade. "Os gregos" gritou o homem. "Pelo menos perderam para os parentes mais próximos das divindades olímpicas" concluímos consolados. Após a ponta da Piedade, sobre a qual está localizado um solitário farol neoclássico, de novo os gregos, conseguimos localizar os molhes que marcam o início do canal de acesso à marina. Às dez e meia atracamos no cais de recepção, bem ao lado das modernas instalações do escritório e da imigração.

Desembarcamos! Foi com emoção que pus os pés em terra. Mas eu não era mais o mesmo de antes. Dei um salto na minha carreira de aprendiz de marinheiro, consegui o que poucos conseguem. "Triunfei, venci Possêidon, deus do mar ruim" comemorei em silêncio. Um feito notável para o grande Zimbros, um barco de apenas trinta e seis pés, standard, sem qualquer tipo de equipamento extra, somente os de fábrica. Me senti orgulhoso do meu lado corsário, do Osvaldo o Terrível nas palavras do Uwe Kötter. Embora centenas de navegadores façam esse cruzeiro todos os anos, não é fácil, não é para qualquer um. Eu agora fazia parte do grupo dos caras, homens e mulheres, que conseguiram atravessar o grande Mar Tenebroso. Me, Beto and Bob. "One for the road", mandamos um conhaque para dentro e nos cumprimentamos orgulhosamente, trocando socos, punho contra punho, num viril gesto marinheiro. Não demoramos para preencher as formalidades de entrada. Logo fomos autorizados a entrar na moderna marina de Lagos. Daquelas que não existem similares no Brasil.

Com lojas, restaurantes, hotéis, apartamentos, piscinas, um verdadeiro centro de lazer cinco estrelas. Uma ponte de pedestres abriu-se sobre nós e entramos dentro do cais, onde o Zimbros ficaria pelos próximos dois meses. Havia muito que fazer à bordo para que pudéssemos voltar ao Brasil. Em dois dias, executamos todas nossas tarefas e partimos para Lisboa. Na hora da saída não pude deixar de olhar para trás, já com saudades da minha próxima aventura. Quando estamos no mar, não vemos a hora de chegar em terra. Uma vez desembarcados, contamos nos dedos os minutos que faltam para voltarmos a navegar. É a febre do mar. A cura é homeopática. Primeiro um pouco de brisa, depois vento e finalmente com tempestades! .

Cabo da Piedade: segundo os celtas, a sentinela dos deuses.

Marina de Lagos, Algarve: consegui chegar!

Final da parte 28

Page 135: Viagem do Zimbros

Sevilha, 35º centígrados, dez da manhã. E eu perdido de táxi em busca do Zimbros, ancorado em uma marina cuja direção não sabia bem. Cheguei na cidade durante a madrugada, vindo de Lisboa. Em vão andava pelos ancoradouros o Guadalquivir. Bob e Betinho, na Europa já há uma semana, haviam trazido o barco de Portugal. Combinamos nosso encontro por e-mail, mas eu tinha esquecido, na pressa da partida, o nome da marina em que eles estariam. Já pensava em um hotel, quando o jovem motorista lembrou-se de perguntar a seu pai se existia algum outro porto onde pudessem estacionar barcos de cruzeiros. "Sim, Gélvez", lembrou-lhe o velho. Mas não foi fácil chegar lá. Tudo é confuso para estrangeiros e para taxistas inexperientes. Algumas obras atrapalhavam o trânsito, e o acesso ao condomínio onde se localiza a marina estava cheio de atalhos e derivações. O calor era sufocante, a pé caminhei umtrecho que me pareceu muito mais distante do que realmente era. Logo que consegui, ainda longe, ter uma vista geral da marina, pude ver dentre os demais barcos o Zimbros placidamente estacionado dentro do porto. "Cheguei em casa" respirei aliviado.

Mais um sonho realizado, lá eu estava em Sevilha com o Zimbros, minha pequena casa ambulante. Infelizmente não demoramos na cidade. Recém-chegados, em dois dias preparamos nossa partida. Um calor insuportável, os termômetros chegavam a 45º C. Por sorte, conhecemos Antonio García Gutiérrez, amigo que o Tadeu Smolka apresentara e que nos recebeu com carinho e muita curiosidade, afinal, só loucos chegam à Sevilha de barco, ainda mais em agosto, no auge do verão. Antonio é um sujeito extraordinário, como teríamos a chance de saber nos próximos dias. Foi com ele que descobrimos um pouco dos mistérios da cidade. Saímos dos bairros turísticos que representam uma Sevilha mais aparente e mais exterior e fomos para a Sevilha íntima, que não se oferece facilmente. Caminhamos por bairros populares, descobrindo seus becos, botecos e praças. Monumentos históricos atestam, a cada esquina, o contínuo amor da cidade pelo seu passado. Impossível não lembrar de João Cabral, que morou lá nos anos cinqüenta e cujas ruas fazem parte de seu universo poético: "Só em Sevilha o corpo está com todos os sentidos em riste, sentidos que nem se sabia, antes de andá-la, que existissem".

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O Zimbros flutuando em Puerto Guélvez: finalmente Sevilha.

Parte 29

Page 136: Viagem do Zimbros

Antiga Hispalis, foi centro romano cujos domínios no Mediterrâneo ocidental duraram sete séculos. Seguiu-se uma longa ocupação árabe, que lhe deixaram marcas permanentes, assim como em toda Al-Andalus. Situada às margens do Guadalquivir deteve outrora o fabulosamente rico monopólio das trocas comerciais da Espanha com a América, o que fez dela a maior cidade do país na época e um dos centros mais ricos da Europa. Ao lado do rio Guadalquivir, protegido pela Torre Del Oro, em meio aos armazéns e estaleiros, aos alaridos de gente, lamentos de mães e ao choro das noivas, partiram navegadores em busca da fortuna e da glória. Partiu Fernão de Magalhães, meu herói e mentor, para a maior das aventuras náuticas de todos os tempos, a circunavegação do globo terrestre. Hoje a coisa mudou, só restam aventureiros como eu, em busca de fantasmas e histórias para contar. A influência do rio sobre a cidade diminuiu com seu assoreamento, no século XVII, contudo Sevilha permanece ainda como um dos portos fluviais mais ativos de toda a península ibérica. .

Mal amanheceu largamos as amarras do cais e lentamente saímos em direção ao Guadalquivir. À bordo, Bob, Beto, eu e Antônio que aceitou o convite de nos acompanhar até Gibraltar. De cara entregamos a ele o leme. Marinheiro de primeira viagem, cauteloso, procurou levar o barco o mais eqüidistante possível das margens.

A navegação é fácil, o rio bem sinalizado, sua profundidade média é de quatro a cinco metros. Ele é navegável desde Sevilha até sua foz em Sanlucar de Barrameda, na costa atlântica, 40 milhas ao sul. Ao longo de seu curso, a cada curva, em cada povoado, imagens nos contavam um pouco de seu glorioso passado. O dia quente pedia um mergulho. Mas só eu não resisti, os três preferiram assistir do seco às minhas braçadas. A partir do meio-dia preparamos um super churrasco em homenagem ao nosso ilustre convidado. Armamos uma rede na proa e, em meio aos vinhos de Rioja e muita filosofia, deslizamos placidamente rumo ao mar. Foi um grande momento, um alinhamento único de astros a favor da nossa interação. Ao som de Bebo Valdés e Diego El Cigala, Bob, deitado na rede com uma taça de vinho numa mão e um charuto na outra, disparou a máxima do dia: "Amigos, se algum dia fui pobre não me lembro mais". .

Navegando o Guadalquivir: Antonio assume o leme com Beto de olho nas margens.

Com estilo: Bob descansa na rede. Na descida do rio: Betinho prepara nosso almoço.

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Peixes pulavam para fora d'água, pequenas tainhas, garças voavam pelas margens, cada esquina do rio nos reservava uma surpresa. Foram muitas e inesquecíveis. No meio da tarde, finalmente, Sanlucar da Barrameda nos surgiu à proa, adormecida na tarde modorrenta. Em pouco tempo, vencemos a barra e entramos no Atlântico. O balanço das ondas e vento vindo do leste mudaram nossa pasmaceira à bordo. Era preciso estar atento ao grande movimento de barcos ao longo da costa. Em um par de horas entrávamos por entre os molhes de pedra que limitam o Puerto América em Cadiz. O sol tinha acabado de se por era dia ainda. Foram onze horas desde Sevilha, mas passou como um segundo. O dia tinha sido muito especial, único mesmo, graças sobretudo às nossas perpétuas discussões filosóficas. Antonio é chefe da cadeira de jornalismo da Universidade de Sevilha. Intelectual, pensador, filósofo, já escreveu dezenas livros e prepara mais um. Define-se como um materialista, anti-mentalista e costuma sustentar que nossas emoções não passam de reações químicas neurais.

Segundo ele somos seres conceituais e toda nossas crenças não passam de mitos. "Obaldo, los espacios míticos de nuestro inconsciente nunca estan vacios. Toda deducion racional no passa de um mito..." dizia. Incrível como naquele momento eu entendia e concordava com tudo o que dizia ele! Filosofar em espanhol é o máximo! .

Cadiz, afirmam os historiadores, é a cidade habitada mais antiga da Europa. Fundada há mais de três mil anos, já viveu muitas fases de auge e decadência. Fenícios, cartagineses, romanos e árabes, todos estão presentes na sua história. A primeira impressão que me causou foi de um centro alegre e vivo. Seu desenho urbano é recente, racional, com ruas retas, estreitas. Lá não existem monumentos. Altas fachadas parecem tocar-se acima do passeio que vibra de vida em todas as direções.

Muitos bares e botecos, ah os botecos! Cada esquina convida para uma cerveja acompanhada dos mais variados e deliciosos tapas. Os tapas, uma instituição espanhola, são aperitivos, tira-gostos que acompanham os drinques e são verdadeiros almoços. Dezenas, cada um mais apetitoso que o outro. Impossível provar todos. E as livrarias? Procurava por um guia náutico específico e percorri com Antonio algumas lojas de livros do centro. São impressionantes pelo tamanho e pela quantidade detítulos à disposição. Não achei meu guia, mas não pude deixar de levar alguns livros que me pareceram irresistíveis. Sou um rato de livrarias e quando entro em uma, costumo comprar compulsoriamente. Adoro livros, suas capas, seu volume, seu cheiro. Passo horas manuseando-os, imaginando seu conteúdo, as sabedorias que contém. Mas infelizmente gasto tanto tempo apreciando-os que quase me falta tempo para a leitura. .

Bob, eu e Antonio: navegar é também apreciar bons vinhos.

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Às quatorze horas do dia seguinte deixamos Cadiz em direção à Barbate, 35 milhas à sudeste. Dia tranqüilo, quente, sem vento nem ondas. Algumas horas depois passamos pelo Cabo de Trafalgar ao lado do qual a Espanha, aliada da França contra Napoleão, perdeu toda sua esquadra para a Inglaterra no começo do século XIX. Glória de Nelson, o triunfo de uns, a ruína de outros. A história passando pela nossa amurada e Antonio a querer decifrar meus sonhos: "Usted és un sonhador Obaldo. Vês fantasmas em cada piedra del litoral". Concordei. Estou sempre em busca de heróis, suas causas, glórias e derrotas. São eles que preenchem meus espaços. Sou capaz de inventar um sol a partir de uma simples mancha amarela. Antonio é um cético para quem, tanto a poesia como a filosofia, levam ao suicídio. Aprendi que o materialismo de Hegel influenciou o pensamento de Marx. Ainda assim continuo preferindo a sabedoria heróica de Colombo ao pensamento erudito daqueles ilustres cavalheiros. Conversas sem fim, o tempo passou rápido, logo chegamos à Barbate, nosso destino. Circulamos por entre barcos, gaivotas e pescadores em meio à luz violeta do por do sol. Na marina, enfim o descanso merecido de muitas emoções e descobertas. O dia tinha sido cheio.

Ao amanhecer, deixamos o abrigo do porto e seguimos rumo aos segredos de Gibraltar, as colunas de Hércules do mundo antigo, ou o Djebel al Tariq árabe. Portão para o oceano infinito, o lugar onde o sol encontra sua morte, segundo Homero, limite oeste dos territórios comerciais desde fenícios até romanos. Estávamos apreensivos, pois as notícias que tínhamos sobre a entrada do estreito eram unânimes em dizer que aquele era um trecho terrível para a navegação. As correntes de superfície correm através do estreito no sentido oeste-leste, com o Atlântico recolocando as águas que o ensolarado Mediterrâneo perde por evaporação.

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As marés são fortes e, dependendo da hora, fica quase impossível passar pelo estreito com um barco lento como um veleiro. Além disto, o clima e o regime de ventos é inconstante, e nunca se sabe ao certo qual vai ser o tempo de amanhã. Segundo alguns velejadores, o vento no Mediterrâneo segue duas regras infalíveis: ou inexiste ou é contra. E tem mais, o tráfego maritimo, sempre intenso, exige um sentido de mão e contramão a ser obedecido tanto para quem entra como para quem sai do Mediterrâneo. Mas o dia estava tranqüilo, ensolarado, sem brisa nem mar. Nada parecia atrapalhar nosso confortável cruzeiro.

Para nossa satisfação, soubemos que era aniversário do Antonio. Comemoramos com alegria, como de costume comemorávamos todos os dias. Vinho e brandy com charutos, Betinho caprichou no almoço. Seguíamos próximos à costa, observando atentamente o áspero relevo da costa andaluza. No través de Tarifa, exatamente onde inicia o estreito, começou a soprar um vento leste, bem na nossa cara. A principio fraco, mas a medida que avançávamos, aumentou de força chegando a vinte nós. As ondas mudaram de tamanho. Apesar de baixas ficaram curtas fazendo com que o barco batesse contra elas com violência. Perdemos velocidade, íamos a três nós, devagar quase parando. Não havia portos disponíveis onde pudéssemos nos abrigar.

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Tínhamos duas opções, ou voltávamos ou agüentávamos o tranco seguindo em frente. Fomos adiante esperando que o tempo melhorasse. Mas piorou. Repentinamente, apareceu do nada uma grossa e úmida neblina, acabando com toda a visibilidade. Mal conseguíamos ver a proa do Zimbros. Ouvimos à frente uma buzina que nos pareceu ser de um imenso navio, pronto a se chocar com nossa frágil embarcação. Um suspense, comecei logo com as orações mas, para nosso alívio, era apenas um sinal sonoro de um farol de terra, Punta Canero. Foram muitas emoções em um curto espaço de tempo. Uma terrível neblina, um farol que apitava, tudo novidade para mim, acostumado com o brilho constante dos nossos ares tropicais. Os olhos não se desgrudavam do horizonte, a cada momento parecia que íamos dar de cara com um superpetroleiro vindo para cima da gente. "Esta neblina Gibraltar importa da Inglaterra através de enormes gasodutos" disse Bob para amenizar um pouco o clima de nervos à bordo.

À medida que lentamente nos aproximamos do waypoint da entrada, surgiram por entre a espessa névoa, enormes navios cargueiros ancorados ao largo, aguardando sua vez de atracarem. Era assustador navegar às cegas, estávamos tensos e íamos adiante apenas porque não havia outra opção. Aos poucos, como um milagre, a neblina começou a subir da superfície para o alto, e pudemos ver o contorno dos molhes do porto que cercam Gibraltar. Estávamos apreensivos, surgiu uma discussão sobre qual a melhor conduta para aportamos. Pelo rádio, nos informaram que deveríamos parar em primeiro lugar no cais da imigração para os procedimentos legais de chegada.

Subimos a bandeira amarela à boreste, sinalização obrigatória de quem chega em um porto estrangeiro, e em pouco tempo, sob um sol que queria dar as caras por entre a neblina que teimava em permanecer a meia altura, atracamos no cais da imigração.

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Bob e Antonio no cais da imigração inglesa: ao fundo Gibraltar, The Rock entre brumas.

Nada como ser recebido com a tradicional educação inglesa. Contudo a falta de tempero bretão é o primeiro contraste para quem chega em Gibraltar vindo da apimentada Espanha. Não existe nada mais sem-graça do que aquele enclave ao pé da enorme rocha que dá nome ao lugar. Porto livre, seu comércio parece um Paraguai para europeus. Lá ninguém parece nem inglês nem espanhol. Há pouco houve um enquete para saber a qual país os moradores desejariam pertencer. Deu Inglaterra na cabeça. Eu teria votado Espanha. Antonio defende a emancipação total do território, transformá-lo em um pequeno país independente assim como Mônaco ou Andorra. .

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Mas as barreiras econômicas da comunidade européia inviabilizam a proposta. Assim sendo, desembarcamos dispostos a ver o que a Inglaterra tinha a nos oferecer.Precisava comprar um guia de navegação que me orientasse dentro do Mediterrâneo. Encontrei um de bolso, barato, em uma casa de artigos náuticos. Mas era sábado, a loja estava lotada. Apenas três funcionários atendiam uma multidão de velejadores que, como eu, escolheram justo aquele dia para reformar seus barcos. Fiquei quinze minutos com minha compra no caixa, aguardando que alguém me cobrasse o equivalente a dez reais por ela. Nada! Quanto mais desesperado eu olhava os funcionários, mais distraídos eles se faziam. Pensei em desistir, mas precisava do guia.

Sem ele não poderia prosseguir Mediterrâneo adentro. Decidi friamente. Coloquei o volume dentro da minha mochila e saí calmamente para fora da loja. Mas no íntimo suava frio, pensando que todos os alarmes do mundo soariam nas minhas costas. Nada. Prossegui pela calçada mal disfarçando as batidas do meu coração. Sentia que a cada passo alguém iria me segurar pelo braço dizendo: "Cavalheiro, queira me seguir...". Ser contra a lei é mesmo emocionante! Em poucos minutos estava na segurança do meu aparelho, ou melhor, do meu barco. A primeira coisa que Antonio perguntou-me foi se tinha comprado o tal livro e que preço pagara por ele. Pensei em mentir, por vergonha. Mas abri o jogo: "Custou nada. Roubei" disse-lhe sem rodeios.

Ele pareceu embaraçado, ficou em silêncio por alguns minutos e finalmente concluiu: "Obaldo, usted não agiu mal. Quien roba de ladrón, tiene cien años de pierdón já que los ingleses robaram Gibraltar de nosotros". Foi uma bom julgamento. Fiquei aliviado com a sabedoria do seu parecer! .

Antonio é realmente uma figura muito rara. Não poderíamos ter um guia melhor de viagem. Para provocá-lo indaguei-lhe sobre as divergências que existem entre as diferentes regiões da Espanha, cada qual querendo ser independente uma das outras. "Vocês são espanhóis ou o quê?". "Não soy español, tampoco andaluz. Soy apenas um cara de Jerez, nada más. La España és una invención de los reyes católicos del século XIV". Porra, se ele não está de acordo com uma unificação que já tem mais de seiscentos anos, não seria eu a querer convencê-lo do contrário. Mais tarde pedi a ele que fizesse uma análise crítica dos meus Retratos. Sem piedade. A princípio relutou mas como insisti, acabou concordando. Depois de ler um ou dois capítulos disse-me: "Seu texto é bom, parabéns. MAS...." e deitou o pau conforme meu pedido. Foram bons conselhos que eu tento aplicar agora, sem sucesso. Esta é a razão pela qual estou tão atrasado nestas minhas crônicas. Cada vez que penso em suas orientações me dá um branco abissal e a folha continua vazia. Uma vez alguém descreveu o pânico que um goleiro deve sentir frente à cobrança de um pênalti. Acho que é o mesmo que passa pela cabeça de um escritor amador como eu, frente à uma tela em branco.

Infelizmente nosso convidado teve de partir. Detesto despedidas, prefiro as chegadas. Assim fomos à um pub comemorar. Alguns drinques depois, nos abraçamos fraternalmente e com um até breve, selamos nosso próximo encontro. Será que um dia poderíamos nos rever? Perguntei-me sem acreditar muito na possibilidade, afinal nosso cruzeiro tinha sido tão intenso que muito dificilmente poderíamos vivê-lo de novo.

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Como se verá nos próximos capítulos eu estava enganado. Na saída, pedi a ele que escrevesse uma pequena crônica sobre a nossa aventura. Não demorou muito para recebermos um artigo enigmático, bem do jeito dele, descrevendo nosso passeio. Segundo Antonio é um texto aberto, muito mais para ser sentido do que entendido, muito mais provocativo que elucidativo. Convido-o caro leitor a participar da mesma emoção que sentimos, abrindo e lendo o arquivo anexo acima.

Tão logo nosso amigo partiu, preparamos nós mesmos nossa saída rumo ao leste. Tínhamos pressa, o mar Mediterrâneo nos aguardava. Que histórias teria ele para nos contar a partir daquele momento? Não perca no próximo capítulo, o Zimbros pelas belas marinas da costa espanhola. Estepona moderna, Almeria moura e Cartagena púnica onde ví a cara de Aníbal. Semana que vem direto no seu e-mail, se não me acometer nenhuma outra crise intelectual.

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Acesse este capítulo e os demais no seguinte endereço:http://www.iateclubeportobelo.com.br/aventura.htmp

Final da parte 29

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Antonio, o amigo de Jerez, partiu de volta para Sevilha no começo da tarde. Em seguida nós mesmos preparamos nossa saída da Marina Bay em Gibraltar rumo à Puerto Banus, o famoso balneário ao lado de Marbela, a trinta milhas de distância. Apesar do sol duvidoso, tudo indicava que teríamos um belo dia de mar. Largamos as amarras exatamente às três da tarde. A marina está localizada justo ao lado do aeroporto, cuja pista divide a cidade em dois. Navegamos bem próximo ao aterro que marca a cabeceira da pista. Manobramos entre bóias e pequenos barcos, mas com os olhos no céu na esperança de ver o pouso de algum avião. Mas o movimento no terminal é pequeno, são poucas as aeronaves circulando por Gibraltar. Grande parte dos turistas chega lá de carro, vindos da Espanha. Outrora havia enormes congestionamentos, em razão da diferença de preços dos combustíveis entre os dois países. Os motoristas aproveitavam os custos inferiores de Gibraltar para economizar alguns centavos na hora de abastecer seus veículos, mesmo que para isto perdessem todo um dia em filas intermináveis. É curioso como a classe média é a mesma em todo o lugar, até mesmo no primeiro mundo.

Ao dobrarmos o cabo de Gibraltar, surpreendentemente fomos pegos por uma inacreditável neblina que acabou com toda nossa visibilidade em questão de minutos. Parecia até brincadeira, pois estava ensolarado quando deixamos a marina. Trata-se de uma inversão térmica comum na região. A diferença de temperatura entre a atmosfera e a água faz com que a névoa desça sobre a superfície do mar. Quando não há vento nem calor para espalhar a neblina, ela permanece estacionada por horas e até mesmo por dias. "Isto é o fog londrino que Gibraltar importa direto da Inglaterra" fulminou Bob. (Leia no arquivo em anexo o Diário de Bordo, escrito por ele).

Naquela tarde não havia nem vento nem calor, apenas neblina. Traçamos o rumo no chart-plotter e, por alguns way-points previamente marcados na tela, mergulhamos em um mar às cegas. Foi como pular num buraco de olhos fechados. A visibilidade era quase menos que nenhuma, o Zimbros não está equipado com radar, portanto não sabíamos o que acontecia no nosso lado. Por precaução, a cada cinco minutos, eu fazia soar à bordo uma buzina de ar comprimido, procurando avisar a eventuais embarcações nas redondezas que eles não estavam sós. Bob sabe-tudo achou um exagero, mas preferí pecar por excesso do que por falta de segurança. Horas e horas intermináveis e cansativas, doía a vista concentrar-se em uma paisagem turva,silenciosa, sem limites nem pontos perceptíveis no horizonte.

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Joseph Conrad: no mar, somos todos iguais.

Parte 30

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Os olhos bem abertos, tanto à frente como à ré, prosseguimos em meio à neblina, que a cada momento parecia ficar mais forte. Para nos orientar tínhamos um pequeno guia náutico, sem detalhes. Traçamos um rumo que nos afastava da costa, e controlávamos a profundidade para nos certificarmos de que não estávamos próximos demais das fatais pedras do litoral. Por sugestão do Bob, resolvemos encurtar o caminho e mudamos nosso destino para mais perto, poucas milhas antes de Puerto Banus. Estávamos em agosto, no auge do verão europeu. Marinas famosas como aquela e a de Marbella, estão sempre lotadas e seus preços são muito mais salgados na alta temporada. Preferimos estacionar em um lugar menor e menos badalado: Estepona.

Plotamos no GPS a posição do novo porto e lentamente arribamos para terra. Visibilidade zero, a distância da terra e a profundidade diminuindo assustadoramente, Beto assumiu o leme. Eu fui para a proa tentar enxergar algum sinal de terra. Nadinha de nada!. Estávamos quase sobre a coordenada descrita no guia e não víamos um palmo na nossa frente. De repente, do nada, a dezenas de metros na nossa proa, surgiu do fundo da névoa, o molhe que limita o pequeno porto de Estepona. Foi um susto, pois estávamos a não mais que cinquenta metros das pedras. Um senhor e seu filho, perdidos em um pequeno inflável, nos ajudaram a entrar na marina. Em plena tarde de verão mal conseguíamos ver o trapiche, iluminado pela fraca luz de alguns holofotes fantasmagóricos. Amarramos o barco e caminhamos no cais mergulhado em brumas. Parecia um filme de assombração, a cada passo eu tinha a impressão que seria atacado por um corsário sem cabeça. Faltava apenas a música de fundo do filme Tubarão. .

Mediterrâneo: lá o clima costuma variar de ótimo a mortal em minutos.

Estepona é uma antiga vila de pescadores que sofreu grandes mudanças com o turismo de massa. O sul da Espanha, por seu clima ameno e custo de vida baixo em relação ao resto do continente. Por isto vem sendo ocupado por enormes empreendimentos imobiliários cujo mercado é o europeu do norte, sobretudo ingleses e alemães. São enormes resorts, apartamentos e marinas para um público em busca do calor, da economia e dos mistérios da Espanha. A marina onde paramos é uma ampliação do velho porto pesqueiro, que ainda funciona ao lado. Apesar da invasão imobiliária, a escala dos empreendimentos não é monstruosa e não agride tanto a paisagem. É um lugar charmoso, com muitos restaurantes, bares e lojas que criam uma atmosfera bem intimista e elegante na orla. .

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Doce ócio, sentamos em um dos pequenos cafés para observar os turistas de todas nacionalidade em um vai-e-vem interminável pelas calçadas. Visitamos também o porto pesqueiro, organizado e limpo, há poucos minutos de caminhada. Lá existe um restaurante bem simples que atende aos pescadores e seus familiares. Um lugar acolhedor, sem turistas. Não resistimos a umas umas cervejas e ficamos bem à vontade naquele porto típico. Tínhamos planos de alugar um carro e seguir até Porto Banus e Marbella, mas desisitimos, frente à hospitalidade e ao charme da pequena Estepona.

Mas tínhamos um cronograma apertado a cumprir. Às dezoito horas do dia seguinte partimos com destino à Almeria, pouco menos que 150 milhas à leste. Iríamos fazer uma navegação noturna, aproveitando a meteorologia favorável. O sol se punha somente às vinte e uma horas, assim teríamos ainda alguma luz até o anoitecer. A fraca neblina não nos impedia de ver ao longe um pouco da costa. Admiramos o poente frente às cordilheiras de Ronda, uma dramática cadeia de montanhas que se eleva no desolado interior da Andaluzia. Tão logo escureceu, surgiu no horizonte o brilho da lua cheia, embora ofuscada pela neblina. O vento ficou fraco, insuficiente para levar oZimbros a uma velocidade satisfatória. Motoramos pelo resto da noite, nos revezando em turnos de duas horas cada um. Na madrugada, somente o contínuo barulho das ondas contra o costado do barco marcava o compasso da nossa insônia. .

Amanheceu azul, o calor e o brilho da Costra Tropical ofuscaram nossos olhos acostumados às brumas que nos seguiam desde Gibraltar. Um dia perfeito, uma surpresa a cada milha. Mais uma vez Betinho esmerou-se na cozinha tentando adaptar a receita de um livro que comprara em Cadiz. Nota dez para o quesito visual e para os suculentos sabores da sua culinária. Vinho branco de Sanlucar, licor de Jerez e charutos de Havana deram o toque ao belo almoço. Navegar é sofrer e passar bem na mesma proporção. .

Bob & Beto: aproveitando as delícias da Costa Tropical.

Às dezesseis horas chegamos na baia frente à Almeria. Ao longe a cidade apareceu imponente sobre um relevo árido e calcinado. No meio das construções, a monumental muralha da fortaleza de Alcazaba é um testemunho insólito da época de ouro de Almeria, quando foi um porto importante do califado de Córdoba. Percebe-se ainda, mesmo de longe, um ar árabe na sua arquitetura e nas suas calles cobertas por palmeiras. Passei um rádio para a marina e em poucos minutos estávamos atracados no cais do moderno Club de Mar de Almeria. O calor era tão sufocante que o melhor que fizemos foi aguardar o cair da tarde para circular na cidade com mais conforto.

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Na manhã seguinte conhecemos a magnífica fortaleza de Alcazaba. De cima de suas muralhas de mais de mil anos, é possível contemplar a vista magnífica da cidade e da baia. Outrora, daqueles muros, costumava-se soar um gongo quando se avistava algum barco pirata no horizonte. Foi a maior construção feita pelos árabes na Europa, com 25.000 metros quadrados e uma muralha de mais de 400 metros. Após algumas horas cumprindo uma extensa agenda cultural, descemos as íngremes ladeiras do bairro colonial e fomos cuidar do copo, perdão, do corpo. Há no centro um antigo mercado público que é uma maravilha. Pode-se encontrar lá as mais deliciosas iguarias. Não resistimos às azeitonas, azeites, embutidos e vinhos espanhóis. Ao lado da velha construção, um mundo interminável de cheiros, de vida e de negócios ferve no calor da manhã. Em meio à algazarra de feira, alguns bons restaurantes, simples e baratos, atendem a fome da cidade. Sardina en espeto e boqueron vitoriano acompanhados de uma cerveja geladíssima, foram nossa refeição. .

Muralhas de Alcazaba: vinte e cinco séculos de história.

Voltamos ao barco e às dezessete horas deixamos a marina rumo à Cartagena. Não havia ondas, e o vento estava à favor, sudoeste fraco, dez nós de velocidade. Fizemos uma grande velejada no Golfo de Almeria e no final da tarde passamos ao lado do Cabo da Gata cuja beleza dramática encheu nossos olhos. Aos poucos o vento morreu e ligamos o motor. À noite fomos presenteados pela lua e por um mar de almirante. Uma música de João Gilberto estava tocando perfeita, no mesmo ritmo das ondas.

Amanheceu, o Zimbros seguia sob uma luz radiante onde pássaros migratórios e gaivotas famintas procuravam alimento. Às oito da manhã, com um calor de rachar,chegamos ao nosso destino. Enormes molhes de pedras marcam os limites do porto de Cartagena que mais parece ser uma praça de guerra. Casamatas, fortificações e dezenas de navios da marinha confirmam a eterna vocação bélica da baia.

Cartagena, uma cidade com mais de 2.500 anos de existência, ofecere ao viajante em cada uma de seus ângulos, o testemunho monumental de seu passado histórico e das civilizações que arribaram através de seu porto. Cartago e Roma, gregos e fenicios, ibéricos… Cartagena ou Qart-Hadast, porto principal dos grandes impérios mediterraneos e integrador das culturas do mundo antigo. Foi de lá que partiu Aníbal, no século três a.C, para invadir Roma por terra através do norte, talvez uma das empresas bélicas mais ousadas de toda a história. Ao visitante moderno resta a aventura de descobrir vestígios de arquitetura que remetem aos séculos em que Cartago Nova foi uma das principais cidades da Hispania Romana. Sob um sol bárbaro caminhamos entre ruínas de um anfiteatro e restos da antiga muralha púnica. O anfiteatro, descoberto há pouco, estava encoberto por prédios populares que foram construídos servindo-se de suas pedras como fundação. Todo o bairro foi retirado, sua população transferida e o monumento, agora visível, passa por um minucioso trabalho arqueológico de restauração. "Meus fantasmas", lembrei-me de Antonio.

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Apesar de todas as belezas e curiosidades à nossa disposição, zarpamos aos primeiros raios do amanhaecer. O vento era favorável, sudeste de dez nós e o dia esplêndido. Dobramos o cabo de Palos discutindo se o rock morreu ou não. Bob, que algumas vezes parece que parou no tempo, sustenta que sim. Saudosista, para ele a última grande banda foi o Pink Floyd. Ele é daqueles que esperam uma revolução a cada disco novo lançado, coisa que só aconteceu na década de sessenta. Eu acho que a música pode ser também descartável, por que não? Música é passatempo, não doutrina, penso. Ao anoitecer entramos no pequeno porto pesqueiro da Ilha de Tabarca, uma reserva marinha nas costas da província valenciana. Pernoitamos na cais usado pelo ferry-boat que faz o transporte de passageiros entre a ilha e o continente. Uma vila hospitaleira, pequenas casas, poucos restaurantes, nenhum turista, alguns moradores... Lembrei-me de Porto Seguro no passado, quando ainda não havia sido invadido pelas hordas bárbaras que assolam nosso litoral . Queria ficar, mas não era possível, o mar nos chamava... .

Ilha de Tabarca: parada estratégica no cais do pequeno porto pescador.

Pela manhã fizemos algumas imagens aproveitando a luz transparente da alvorada. Em seguida soltamos as amarras e deixamos Tabarca com bom tempo. Mas durou pouco a alegria. Logo que saímos da proteção da ilha pegamos na cara um vento duro. Resolvemos parar em Benidorm, cidade que descobrimos no guia das marinas da Espanha. Próximo ao meio dia, estávamos frente aos enormes prédios à beira mar que marcam o perfil daquele enorme balneário. Ao chegarmos próximos à marina, pelo rádio, ficamos sabendo que não havia vagas. Apesar do vento continuar soprando contra, não nos abatemos e resolvemos seguir até a próxima marina, localizada apenas a algumas milhas ao norte. Um pequeno porto chamado Altea. No litoral mediterrâneo da Espanha existe uma marina a cada vinte milhas, uma facilidade enorme para aqueles que navegam.

Bob teimava em lembrar seus dogmas do século dezenove enquanto seguíamos bem próximos à costa apreciando seu árido relevo. Montanhas íngremes com perfil de esfinges mergulham na água transparente, paredes de falésias com grutas e costões assustadores, não havia uma única enseada onde se abrigar. No meio da encosta monumental, uma vertigem: uma cascata flui mágica de dentro da terra. Aparentemente trata-se do afloramento do lençol freático, uma fonte doce, abundante, cristalina, revogando todos os conceitos que eu supunha ter de hidráulica.

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No meio da tarde, sob um calor sufocante, finalmente entramos na moderna marina de Altea. Fomos atendidos com muita má vontade por um funcionário que agia como se fosse o dono do mundo. Fiz a ele algumas indagações práticas sobre os preços, banheiros, telefones, dúvidas básicas para nós que chegávamos de longe. O sujeito fez uma cara de nojo e disse que eram muitas as perguntas e que minhas questões tinham que ser resolvidas somente na secretaria. Eu já conhecia aquele tipo e não perdi tempo em devaneios: "Tu trabalhas aqui para atender-me hombre. Qual é a dificuldade em responder? Soy brasileño e não um francês, carajo" dei uns gritos com o imbecil e ele icou ainda mais difícil. Os espanhóis, duros e orgulhosos, não se deixam intimidar com qualquer ameaça estrangeira. Comecei a chamá-lo, a partir de então, de Rei da Espanha. No final, ficou hilário, e ele até se tornou nosso amigo. Quando partimos pude distinguí-lo no meio de outros barcos numa singular saudação de respeito náutico.

Estava abafado e ventava forte. Um vento ardente, seco, que enchia a atmosfera de uma poeira úmida e suja. Demoramos a descobrir que aquilo era areia vinda do norte da África trazida pelo vento sudeste. O Zimbros ficou coberto de pó que, misturado ao sereno, transformou-se em um verdadeiro lamaçal. Nada ficava limpo por mais que esfregássemos o convés com escovas e esponjas. Para nossa infelicidade a mangueira de água que tínhamos não se encaixava nas torneiras da marina. Por mais adaptadores que tínhamos, em cada parada eu era obrigado a comprar mais um. Acabei ficando com uma caixa cheia de conexões e, todas as vezes que encontrava um nova torneira, Murphy aparecia, e nada dava certo. .

O mesmo problema tive com o gás. Levei do Brasil três bujões, e o último já estava no final. Não houve jeito de conseguir enchê-los, por mais que o Beto usasse seu talento. Ele trouxe, junto com sua bagagem, uma mangueira especialmente preparada para transferir gás de um bujão ao outro. Mas na Europa as válvulas por segurança não permitem este tipo de operação. Para resumir, tive que comprar um novo bujão com válvula e tudo. Paguei uma fortuna por eles, se comparados com nossos preços. Era impossível fazer a conversão de euros para reais sem ficar de mau-humor.

Altea é um balneário grande, denso, cujos apartamentos e hotéis são quase todos ocupados por europeus do norte que vão para lá em busca do calor. Assim que cumpri as formalidades de chegada, aluguei um carro para chegar à Valencia, cerca de cem quilômetros ao norte. Iria buscar minha família que chegava do Brasil. Minha mulher Thaís, e meus dois filhos, André de 14 anos e a Flavia de 11. Eu estava um pouco apreensivo em ter tanta gente à bordo, inseguro com relação ao nosso conforto. Além disto, teria que enfrentar uma tripulação, digamos assim, um pouco rebelde. Na verdade as minhas experiências anteriores de navegar com a família foram amiúde estressantes. Meus adolescentes, aliás como todos, não tem uma visão muito rígida da disciplina náutica e desconhecem totalmente a regra mais sagrada à bordo que determina que o comandante tem sempre razão. Mas como se verá nos capítulos seguintes, eu fui totalmetne injusto em meus pré-julgamentos.

As cordilheiras de Valencia: uma cachoeira que surje no meio da pedra.

Porto de Almeria: garotos bisbilhotam pela gaiúta do Zimbros.

Final da parte 30

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Minha família: triulação nova à bordo.Parte 31

O Zimbros, com três ilustres novos passageiros: Thaís, minha mulher, André e Flavia, meus filhos, partiu atrasado do balneário de Altea em direção à Ibiza, cerca de setenta milhas à oeste. Dado à hora da largada, meio-dia, chegaríamos, sem esperança, à noite no nosso destino. Mas o dia estava tranqüilo, embora quente, e coberto por uma fina poeira que uma fraca brisa teimava em trazer das costas da África. Seguíamos no rumo leste e, em poucos minutos, cruzamos o meridiano de Greenwich, a linha vertical imaginária que divide o planeta em dois hemisférios e que determina a hora relativa de todos os relógios da terra.

Mal anoiteceu, começou a soprar uma brisa de proa, a princípio fraca, mas que foi aumentando a medida que nos aproximávamos do nosso paradeiro. As onze da noite o vento uivava nos estais. Nos abrigamos na escura enseada de Cala Corral, localizada na parte oeste da ilha. O nosso guia náutico nos indicava uma marina que não conseguimos achar no breu das trevas. O vento aumentou mais, e não tivemos outra escolha senão passar a noite ancorados próximos a umas pedras que mal tínhamos condições de avaliar a que distância estavam. Betinho, sempre precavido, preferiu dormir no cockpit, dentro de um saco de dormir providencial que tenho para estas horas.

Amanheceu com o vento roncando forte. Ouvia-se apenas o pandemônio desafinado das adriças do Zimbros batendo contra o mastro. Não era a música apropriada que eupensava oferecer à minha família, justo no seu primeiro dia à bordo. A marina que buscávamos, chamada Coralmar, na verdade não passava apenas de algumas bóias de atracação para pequenas embarcações, impossíveis de serem notadas mesmo de dia.

Na verdade, naquele lado da ilha, existem apenas algumas enseadas, as grandes marinas estão do outro lado, a uma grande distância de onde jogamos nossa âncora. Surgiu uma dúvida cruel: ou ficávamos parados ao abrigo do vento na parte menos interessante de Ibiza, ou enfrentávamos algumas horas de sofrimento até os modernos abrigos à barlavento. Decidi rápido, mas confesso hoje que não sei se foi a melhor escolha.

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Preparados para o combate, levantamos âncora em busca das luzes e do brilho da capital da badalação e do exibicionismo: Ibiza. Ao dobrarmos o lado sul das pedras, no canal formado por Ibiza e Es Vedranell, o vento encanado acelerou e chegou a trinta nós, felizmente sem ondas. A partir de lá, fomos contornando uma sucessão interminável de promontórios e pontas rochosas e, a cada curva, o vento e o mar pareciam mais duros. Quando pensávamos estar a apenas algumas milhas do nosso porto, no través da Torre des ses Portes, concluímos que a passagem por aquela ponta era muito arriscada dada à força do vento e a algumas pedras de arrepiar, semi-submersas, que enxergávamos bem no meio do nosso caminho. O que fazer? Mais uma pergunta atroz em meio a tribuzana implacável. E o pior, a tripulação recém embarcada já estava demonstrando sinais indisfarçáveis de ódio ao comandante. Nada daquilo fazia parte das idílicas descrições que eu havia feito do nosso cruzeiro no Mediterrâneo.

Decidi voltar, mas quando regulamos as velas para o retorno, vimos ao longe, próximo à Illa des Penjats, um enorme ferry-boat cruzar uma bóia de sinalização entre ambas. Mais uma contra ordem, e resolvi encarar o canal. Uma vez vencida aquela passagem, faltariam menos que cinco milhas até nosso porto salvador. "Uma hora a mais de sofrimento, e estamos à salvo dentro da marina" pensei. Foi uma ilusão vã. O que passou foi que, ao vencermos a bóia, ficamos ao sabor das correntes e ondas que vinham de leste, contra as quais estávamos abrigados pelo relevo de Ibiza. O mar cresceu muito com vagas irregulares e imprevisíveis. O Zimbros, embora navegando com vento de lado, calçado nas velas, parecia um brinquedo de criança dentro de uma máquina de lavar roupas.

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Beto no leme, Bob, André e eu em pé no cockpit, ninguém emitia uma só palavra. Mas lá de dentro o choro das minhas pequenas, assustadas e enjoadas pelo balanço, foi de cortar meu coração. "Que merda que eu fui inventar?" era só o que me passava pela cabeça, cheia de remorsos. O sofrimento durou uma eternidade, até que nos pusemos a salvo nas enormes pedras que marcam a entrada do porto e, em águas plácidas, prendemos nossas amarras no moderno e grandioso cais da marina Ibiza Nueva. Para minha surpresa, tão logo as garotas desembarcaram, pareciam novas em folha, como se nada tivesse acontecido. Em minutos tomaram um banho e estavam prontas, super fashion, bolsinhas na mão, para um passeio de reconhecimento básico do território. Descobri que a curiosidade é um santo remédio para enjôos à bordo.

E Ibiza é um labirinto de novidades e de divertimentos mundanos no Mediterrâneo. Mas é também cidade Patrimônio da Humanidade. Fundada pelos fenícios no século VII aC, se converteu mais tarde em cidade púnica e depois romana. Posteriormente virou a Madina Yabisa islâmica. No século XIII, conquistada pelos catalães, incorporou-se à coroa de Aragão.Terra sobre o mar foi, desde sempre, encruzilhada denavegantes, mercadores e corsários. Destino, pousada e escala de todas as rotas entre o estreito e o oriente. Da baia vê-se o perfil dos seus edifícios contra o céu: a Catedral, o Castelo e as muralhas renascentistas. Dentro do cinturão fortificado amontoam-se as construções da Dalt Vila, a cidade alta. São museus, ateliês, residências, restaurantes e um comércio muito sofisticado. Além dos muros, quase ao nível do mar, ficam os bairros chiques, o porto e as marinas. Uma ilha que merece muito tempo para ser explorada. .

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Mas, dois dias depois, partimos de volta ao continente. Tivemos que cancelar nosso projeto de seguir até Mallorca e Menorca, por conta do forte vento que ainda predominava de leste. Thaís e Flavia, vítimas da travessia impiedosa, foram poupadas do trecho e embarcaram em um veloz ferry-boat que faz o percurso de volta em um par de horas. O mar ainda estava agitado, mas as ondas no sentido em que seguíamos, tornou tudo mais fácil a bordo. Nossa próxima parada era Valencia. Na madrugada o vento morreu e terminamos o resto do trecho com nosso fiel vento de porão.

As seis da manhã entramos nas águas abrigadas do Real Club Náutico de Valencia. Fundado no começo do século passado, é o maior clube náutico da Espanha com mais de 1.200 ancoradouros. Não havia ninguém no cais para nos orientar, tampouco no rádio. Estacionamos à contrabordo do posto de gasolina da marina, vazio àquela hora da manhã. Dormimos um par de horas e, ao acordar, caminhei por centenas de metros através dos enormes trapiches cheios de barcos, cada um mais impressionante que seu vizinho. Não havia ninguém na secretaria náutica. Fui informado que o escritório só abriria depois do almoço do responsável, as nove da manhã. Um almoço àquela hora me pareceu uma coisa fora do comum, mas não quis me aprofundar nos hábitos nativos e voltei ao barco.

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Ibiza: terra sobre o mar.

Ao chegar dei de cara com um baixinho gorducho mal-humorado reclamando que aquele não era lugar de paradas e que deveria providenciar de imediato a retirada do Zimbros.

Sobravam dúvidas e informações contraditórias em um espaço de tempo muito curto. Achei por bem ignorar os desagravos do anão e retirei-me no silêncio da minha cabine. A primeira impressão que tive dos valencianos foi de que eles são um pouco confusos e desorganizados. Quase senti saudades do iate de Paranaguá. Mas me mantive calado. Demorou pouco e sai para percorrer o equivalente a muitos quilômetros quando finalmente consegui uma vaga para nossa estadia. Um lugar especial, pelo menos em relação aos nossos vizinhos. Próximos a nós, do outro lado do canal de acesso à marina, descansava imponente o inconfundível casco do Luna Rossa, o veleiro patrocinado pela Prada, vice-campeão da American's Cup de 2000. Naquela ocasião, os italianos estavam sob as determinações táticas do nosso Torben Grael, e conseguiram desbancar os americanos capitaneados pelo vitorioso skiper Paul Cayard.

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Valencia seria palco, nos próximos dias, de uma série de seletivas que definiriam as equipes desafiantes do atual campeão, o barco suíço Alinghi, o primeiro vencedoreuropeu da história da competição. A American's Cup é a regata mais antiga do planeta. Sua primeira edição, disputada na Inglaterra em 1851, tinha por objetivo principal mostrar a superioridade tecnológica das embarcações britânicas. Havia séculos, o iatismo era o esporte oficial da monarquia, que queria reafirmar sua superioridade naval para o resto do mundo. Mas eles dançaram. Os americanos, considerados uns caipiras já naquela época, levaram o prêmio com o mítico iate América, especialmente construído para a competição. Com isto, a taça entregue ao vencedor menos esperado, adquiriu um status legendário. Desde então, a America’s Cup virou uma questão de orgulho nacional e passou a ser um pretexto para cada país mostrar o que pode ter de tecnologia e dinheiro. .

Nosso centenário abrigo parecia um canteiro de obras, sendo modernizado e acrescido de novos cais à espera das máquinas de última geração e das tripulações que iriam disputar o seu lugar no podium. Cerca de dois meses depois, no auge do evento, um vendaval sem piedade nem rumo, varreu como um tufão aquele pedaço de aristocracia náutica e derrubou, como pedras de dominó, muitos dos barcos estaleirados no pátio ao lado do qual eu estava agora placidamente estacionado.

Ficamos no iate apenas o suficiente para alguns inesquecíveis passeios por Valencia e, aos primeiros minutos de uma quente madrugada, partimos com a maré rumo ao Cabo de Tortosa. Fizemos uma tranqüila navegação noturna, acompanhando a sucessão de luzes que compõe o litoral valenciano. De manhã acabou a festa. Entrou um vento nordeste bem na nossa cara, com vinte nós de velocidade. "Vento no Mediterrâneo é contra ou inexistente" lembrei do aviso de um velejador lá dos Açores. Com uma tribuzana daquelas, mudei o rumo para Peñiscola, onde nosso guia náutico indicava um porto seguro. Mas ainda assim ficou impossível seguir contra os elementos. Faltavam ainda cerca de dez milhas para achegada e mudei de novo o rumo, agora para Las Fuentes, um balneário moderno com marina e todos os confortos, a cerca de cinco milhas à bombordo. A tripulação mais jovem agradeceu.

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Real Club Náutico de Valencia: o casco do vitorioso Luna Rossa.

Pouco antes do meio-dia entramos em Las Fuentes, um moderno complexo imobiliário, que incluía, além da bela marina, uma série de casas, sobrados, apartamentos, e um centro comercial muito charmoso. Era um domingo, a temporada de verão já tinha ficado para trás, e tudo parecia deserto e triste. Só faltou mesmo a voz do Faustão para acabar de vez com nossa alegria. Mas não nos demos por vencidos e preparamos à bordo um churrasco de dar inveja aos poucos gringos que sobraram das férias. Betinho esmerou-se nos grelhados e, como sempre, fez um enorme sucesso com a nova tripulação. .

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A noite foi temerária, com ventos fortes e trovoadas parecendo anunciar que o céu tinha se partido ao meio. Cedo, restava apenas uma brisa fresca e um mar camarada. Soltamos os cabos que nos prendiam ao trapiche e continuamos no rumo interrompido. Resolvemos, mais uma vez, fazer uma pequena parada em Peñiscola, a oito milhas de distância. Voltei para o calor da minha cama e dormi uma boa horinha até Beto me chamar lá de cima, avisando que a entrada do molhe estava quase na nossa proa. Ao tirar a cabeça para fora vi, com surpresa, uma maquete de cinema iluminada pelo sol. Peñiscola é uma pequena vila situada num promontório rochoso, em cima do qual se situa um castelo construído pelos templários no século XIII. A colina fortificada e um longo molhe de pedra mais recente, criam um pequeno porto abrigado aos humores irregulares do clima. Paramos num cais interno de concreto, possivelmente reservado à grandes embarcações de pesca, mas vazio no frescor daquela manhã. Desembarcamos todos, exceto Beto que ficou para cuidar do barco, e Flavia mergulhada nos seus sonhos, alheia aos mil anos de história que a cidade tinha para nos contar. Ao lado da praça-forte, cercada por muros medievais, fica a moderna cidade, vibrando em um fragor ensolarado de vida e de gente. Em meio ao burburinho do ir e vir da segunda-feira, descobrimos uma feira de verduras e legumes ao ar livre onde fizemos algumas compras para abastecer a despensa do Zimbros. .

Depois das compras, sentado em um pequeno café com mesas na calçada, me senti um cidadão comum, apreciando a energia buliçosa da manhã. Foi um bom momento! Estar ali nos diferenciava do turista comum, quase sempre acostumado ao conforto previsível dos hotéis e aos passeios programados dos pacotes de viagem. Fazer compras, barganhar, procurar uma peça que estava faltando, cozinhar, levar a roupas na lavanderia, sempre foi uma boa interação com os lugares onde costumávamos parar. Não éramos turistas apenas contemplativos e sim parte da cidade. O Zimbros é uma casa flutuante, onde estão nossas roupas, livros, discos e onde preparamos nosso almoço como em qualquer cozinha do mundo. Com a vantagem de poder mudá-lo a hora que quiser e encaixá-lo no bairro que escolher. .

Las Fuentes: marina providencial no meio do caminho.

Peñiscola: o promontório, o molhe e o castelo templário.

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Abastecidos e satisfeitos, deixamos Peñiscola ao meio-dia. Me chamou a atenção um solitário pescador, sentado no final do cais de concreto ao lado de seu reluzente Audi. Parecia absorto, à margem do mundo e do tempo mal notou nossa presença. O dia era esplêndido, o vento rondou para sul e o mar virou uma piscina. Ficou quente, todos tomavam sol no convés, apreciando os drinques e tapas que o Beto inventava na hora. Fechei a genoa e joguei um longo cabo pela popa, em cuja ponta fixei a bóia

salva-vidas. Foi a senha para as crianças pularem na água. Divertiam-se em mergulhar do púlpito de proa e alcançar a bóia, flutuando ao lado do barco. Foi assim que eu os ensinei a nadar. Desde muito pequenos, fazia com que mergulhassem do convés e, sem ajuda, procurassem boiar até a escada de popa. Na época foi uma forma de navegarmos mais tranqüilos, sabendo que, se algum deles caísse na água, teriam pelo menos alguns minutos antes de afundar feito pedras.

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O dia permaneceu maravilhoso, só o vento diminuiu o suficiente para ligarmos o motor. Escureceu as nove, pouco depois de avistarmos as encostas calcinadas da Catalunha. Tão logo o céu mergulhou na escuridão total, nos apareceram as luzes que marcavam nosso derradeiro porto no Mediterrâneo: Barcelona. A cada cinco minutos um avião decolava do aeroporto localizado ao sul da cidade, bem na nossa proa. Foi quase impossível dormir com um cenário emocionante daqueles. Contudo, não resisti por muito tempo e desci para uma rápida soneca.

Acordei com os chamados do Bob, pois estávamos quase dentro do porto de Barcelona, um dos maiores e mais modernos da Europa. Pelo canal vimos, com todas as luzes do mundo ligadas, enormes navios mercantes sendo carregados sem interrupção, dia após dia. Levamos cerca de uma hora navegando ao longo do cais, cheios de exclamações de surpresa. Uma ponte ultramoderna faz a ligação entre a parte nova e a antiga do porto. Era impossível estimar se sua altura seria suficiente para os quinze metros do mastro do Zimbros. Pelo rádio, chamei a marina onde pretendíamos parar e, em instantes, fomos informados que sobravam ainda cinco metros até batermos na superestrutura metálica. Ao fundo, logo após a ponte, começaram a aparecer enormes iates, que ofuscavam com suas luzes de cidade a própria luz da marina. Era impossível definir seus tamanhos e preços, um universo que, nem de longe nem de perto, fazia parte da nossa realidade. Com prudência nos aproximamos do cais de recepção.

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Descontração no meio do mar: um mergulho para enfrentar o calor.

O Zimbros em Peñiscola: minha casa flutuante.

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A Marina Port Veil está localizada em um dos pontos mais bonitos de Barcelona, justo ao lado do Museu da História da Catalunha e a poucos minutos das ramblas, do bairro gótico, da Barceloneta, enfim, do centro do mundo. Ao amanhecer indicaram nossa vaga, por entre veleiros monstruosos e iates de reis que nos faziam parecer nada mais que um simples barquinho de brinquedo. Mas sou um velejador e não me impressiono (muito) com monumentos do poder e da grana. Meus ideais de grandeza são menos palpáveis. Naveguei nove mil milhas até Barcelona, sem marinheiros profissionais, só com meus amigos e minha família. Uma conquista para mim, talvez maior do que ter um barco monumental. O bravo Zimbros não devia nada a qualquer uma daquelas jóias flutuantes, e no fundo não o trocaria por nenhum outro. .

Os três dias passados em Barcelona foram eternos e as nossas experiências e descobertas não cabem neste relatório, que é náutico e aquático. Só posso dizer que senti a cidade pelos olhos de meus filhos e nada me deu mais satisfação que ver seus pequenos olhos arregalados frente a tanta novidade e beleza. Tenho certeza que eles nunca mais esquecerão a aventura de terem conhecido comigo, à bordo do Zimbros, mundos novos como aqueles. Isto também é uma forma de perpetuar as minhas próprias aventuras. .

Acesse este capítulo e os demais no seguinte endereço:http://www.iateclubeportobelo.com.br/aventura.htm

Port Veil Marina em Barcelona: mega-iates de todas as precedências.

Final da parte 31

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Barcelona foi nosso derradeiro porto em território europeu. A partir de lá demos início à longa volta para casa. Muita água ainda nos aguardava pela proa até a Bahia. Deixamos a Porto Veil Marina em uma sexta-feira ensolarada e quente. Emoção na saída, afinal não se despede assim, sem mais nem menos, de Barcelona, da Espanha e da Europa. A noite foi tranqüila e o mar calmo. O céu ficou pequeno para tantas estrelas. Amanheceu deslumbrante e seguíamos ora na vela, ora no motor. Às dez da manhã o calor era denso. Aliviava um pouco a fraca brisa que parecia vir de todos os lados. O passatempo era dormir, comer, ler e muita conversa, sobre todos os temas: música, cinema, musas... .

Embarcação fenícia: domínio naval do todo o Mediterrâneo.

Parte 32

Nosso estoque de assuntos sempre foram intermináveis. Como Bob adora filmes, apesar de ele ser do tempo do cinema mudo, quis saber quem eram as suas divas favoritas das telas. Ele não demorou para responder: "Catherine Deneuve, Lauren Bacall e Catherine Hepburn". Boas escolhas, gosto de todas, principalmente da Deneuve. As minhas são Candice Bergen, que sempre amei por seus olhos tristes, Juliete Binoche pelo seu ar de desamparo e Vitória Abril, cujo bocão alimenta minhas fantasias de velejador solitário. Bob aprovou. Betinho, pragmático, não gosta de papo de intelectual, recusou-se a confessar suas preferências.

O calor opressivo me deu vontade de cair na água. Desejo descartado de pronto pelos dois que não são de paradas gratuitas. Lembrei-me que em Las Fuentes, eu havia visto um enorme pôster turístico de umas ilhas chamadas Columbretes. Conferi nas cartas e elas não estavam muito fora da nossa rota. Decidi dar uma pequena parada lá. É um grupo de quatro ilhas vulcânicas localizadas a umas trinta milhas da costa. Um dos melhores lugares do Mediterrâneo para o mergulho e a pesca, parte delas formam uma reserva marinha. A maior, Columbrete Grande, ao norte do arquipélago, é o remanescente de uma cratera com novecentos metros de diâmetro. Abriga um farol e uma pequena guarnição militar. Paramos lá o tempo suficiente para efetuarmos uma limpeza no casco do Zimbros. Zarpamos em seguida.

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Tão logo deixamos o pequeno abrigo da cratera fomos surpreendidos por um vento sul raso, bem na nossa cara. O mar cresceu pouco, mas o suficiente para tornar nosso seguimento desconfortável. Abrimos as velas e arribamos para o continente, navegando em orça fechada, ou seja a quase 45º em relação ao vento. Como é possível um barco velejar contra o vento? Adivinhei sua pergunta? Ele não pode ir diretamente contra, mas pode seguir adiante com ventos de 30º a 45º em relação à proa. A vela funciona como a asa de um avião. O seu formato obriga o fluxo de ar a percorrer um caminho mais longo de um lado do que do outro da vela. Isto produz uma diferença de pressão entre as duas superfícies e o barco na verdade é puxado, e não empurrado, pelo vento. Dependendo do ângulo de incidência da brisa, as velas devem ser folgadas ou cochadas. É uma arte saber regulá-las com precisão. Um talento que não tenho. Meus ajustes são apenas aproximados e eu não levo muito em conta considerações aerodinâmicas.

Navegamos até as onze da noite com um mar ruim, molhado, salgado e frio. Próximos à terra cambamos para bombordo, isto é viramos para a esquerda, direto para o Cabo de la Nao. Com a corrente da maré e a ventania contra, nos pareceu que nunca conseguiríamos vencer aquele promontório. Foi só as seis da manhã, depois de uma noite ruim, que conseguimos deixá-lo por boreste. Logo em seguida o vento como em um passe de mágica acalmou. Parecia até brincadeira de algum deus sacana. O dia que estava meio triste e nublado, ficou azul ensolarado e pudemos ver, a todo instante, velas e iates de passeio cruzando conosco no horizonte. As três da tarde já tínhamos andado 245 milhas, uma excelente média apesar do vento e das correntes contrárias.

As correntes no Mediterrâneo são uma história à parte. Imprevisíveis e irregulares, deixam o mar mexido com ondas curtas e baixas que dificultam muito a navegação. Em outra oportunidade eu já tinha visto, perplexo, duas ondas se chocarem uma contra a outra no meio do mar, levantando um volume respeitável de água para todos os lados. Procuramos seguir bem próximos à costa onde o efeito destas correntes era menor.

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Columbretes na proa: Betinho aproveita o calor mediterraneo.

Ao por do sol estávamos no través do Cabo de Palos, de novo na Andaluzia. A Espanha é um país formado por diversos outros, cada qual com sua língua, história e cultura próprias. Nunca cometa a gafe de confundi-los, que você pode ser hostilizado, como eu fui quando perguntei se em Valencia se falava catalão. No entardecer tomamos um vinho que Antonio nos tinha presenteado de sua adega, um Rioja Gran Reserva 1995. Coisa fina! Esvaziamos seu conteúdo e jogamos a garrafa no mar com uma mensagem de bêbados poliglotas: "You're a lucky guy. The treasure is inside yourself". Tive o cuidado de colocar o lápis junto, para dar um toque mais materialista ao recado. Bob adorou a poesia do ato! .

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Ao anoitecer fui testemunha de um acontecimento insólito. A lua estava quase cheia e o mar tranqüilo. Só, com meus pensamentos deitado no cockpit, olhava a lua bem acima da minha cabeça. Aos poucos, entretanto, notei que o disco prateado foi diminuindo de tamanho, coberto por uma sombra misteriosa. Em poucos minutos, só era possível ver um anel brilhante no céu. Não pude acreditar, mas testemunhava um singular eclipse. Outro presente dos céus para o Zimbros. Mais tarde, com a lua ainda encoberta, ao passar o turno para o Betinho, alertei-o do eclipse e o deixei na companhia de tão inesperado evento.

As nove da manhã do terceiro dia dobramos o Cabo da Gata e aproamos finalmente para oeste, nosso último trecho ao largo da Espanha. Um vento nordeste bom nos pegou pela alheta. Entramos no Golfo de Almeria com vista para a pequena vila salineira de Almadraba. Ao longe, nos pés de uma inóspita cadeia de montanhas, via-se uma igreja secular e seu velho campanário, impassíveis diante da eternidade. O vento rondou para sudeste com dez nós. Ficamos em um través pai d'égua, sem mar, o sonho de qualquer velejador. Mais algumas horas e vimos Almeria e o majestoso perfil das muralhas do Castelo de Alcazaba.

Tínhamos navegado 400 milhas em três dias. No final da tarde fui chamado ao cockpit pela gritaria do Beto. Inacreditável, estávamos sendo comboiados por um cardume de baleias-piloto. Eram muitas, de todos os tamanhos, seguiram por algum tempo em incríveis acrobacias na proa do Zimbros. As baleias-piloto têm um comprimento médio entre cinco e seis metros, pesando cerca de três toneladas. São parecidas com os golfinhos pela forma da sua cabeça e pela barbatana dorsal mais larga e curva. Estes cetáceos alimentam-se essencialmente de lulas, para isso mergulham bastante fundo, pelo menos a 600 metros de profundidade. Elas têm um sistema de eco-localização bem desenvolvido, devido à falta de luz dessas profundidades. Mas naquele momento estavam todas empenhadas em um luminoso espetáculo. Foi inesquecível. Espetáculos assim fazem uma viagem valer a pena.

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Beto e Bob: conversas intermináveis sobre todos os temas.

Show das baleia-piloto: o Zimbros escoltados por um cardume desses cetáceos.

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Na madrugada seguinte, pouco antes de amanhecer, a 30 milhas de Estepona, mudamos novamente o rumo para 230º em direção ao Marrocos. Deixamos para trás, finalmente, o continente europeu. Na fronteira entre dois mundos, o Zimbros avançou na esteira milenar das embarcações que há séculos seguem o rumo do Magreb. Fenícios, romanos, vândalos, visigodos, bizantinos, árabes e ibéricos fizeram uma historia comum ao norte e ao sul do estreito. Atravessamos o Mediterrâneo no seu ponto mais justo para fugir das fortes correntes que vinham do estreito. À bombordo, envolta em eternas brumas, apareceu, por instantes, o imponente monolito de Gibraltar. Navios-patrulha indo e vindo nos mostravam que aquele mar separa duas realidades muito diferentes e que a circulação por ali é rigidamente controlada.

Centenas de imigrantes ilegais, todos os dias tentam desembarcar no litoral mediterrâneo da Europa. Sobretudo na Espanha, pela pouca distância que a separa da África. Eles chegam a pagar o equivalente a três mil dólares cada um para serem transportados ilegalmente até o outro lado do Mediterrâneo. A travessia é feita em barcos muito precários e os acidentes são freqüentes e fatais. Muitos são capturados e devolvidos à sua costa de origem. Outros, com mais sorte, conseguem chegar ao seu incerto destino. Próximos da costa são abandonados em frágeis barcos de borracha e ficam à deriva até alcançarem as praias. Poucos têm conhecimento do mar e nem sequer sabem nadar. Uma vez em terra começa outra luta para sobreviver em um território de angústias. Embora mais civilizado, é muitas vezes mais hostil que sua própria terra.

Um superpetroleiro nos cruzou por boreste vindo do estreito. A sete milhas de distância conseguimos ver a primeira das sete colinas da antiga Septa bizantina. Hoje é Ceuta, um território autônomo espanhol. Um sentimento pulsante de chegada apoderou-se de toda a tripulação. Pouco depois do meio-dia cruzamos os molhes que protegem o ancoradouro da cidade. A África enfim. Foram noventa horas de Barcelona até lá, sem paradas. A marina, junto ao porto, em tudo nos mostrava que não estávamos mais na Europa. Não havia lugares e o cais parecia em desordem. A principio paramos a contrabordo de um troler americano, mas mudamos de lugar por determinação de um funcionário da marina. Mais tarde outro, intitulando-se o chefe do pedaço, nos autorizou a atracar junto a um cais de concreto, que era bem mais confortável.

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De tarde chegou Antonio, vindo de ferry-boat desde Algeciras. Foi um grande reencontro, todos estávamos com saudades. Há dias esperávamos aquele momento. Como havíamos combinado por e-mail, alugamos um carro, ultrapassamos a fronteira que divide Ceuta do Marrocos e fomos até Chefchaouem (pronuncia-se Xaouem), uma pequena cidade a cerca de cem quilômetros África adentro. Foi como viajar para o século onze. Chefchaouem, um lugar que ficou fechado para o ocidente até muito recentemente, ainda guarda muito de seu universo medieval. Ao contrário do restante do país, que eu já conhecia de outra aventura, nossa pequena vila era muito mais hospitaleira e calorosa. No final da tarde, sentados num pequeno café com mesas na rua, tomamos um chá de hortelã. Eu queria decifrar os mistérios e enigmas de um mundo tão distante. "Pero el pueblo se defiende de la observación y devora a quem queira decifrá-lo". Antonio é um grande mestre, e nossas conversas, como sempre, flutuavam entre bobagens hilárias e profundas reflexões sobre a razão de ser de tudo. Seria muito vazio estar num lugar daqueles sem suas brilhantes observações. .

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De volta ao porto, mais uma vez preparamos nossa partida. À bordo, amarrados ao cais de concreto, alheio ao tempo e ao mundo, nossas discussões contínuas foram a síntese de toda a viagem. Antonio queria saber qual era a minha sensação de mal chegar, ter que partir logo em seguida. "És la vida de grumete" respondi. No entanto, todos sabíamos que cada encontro, embora efêmero, nos deixava lições que nos vinculava de um modo inesquecível. "Africa, al fin, queda amarrada al Zimbros y Ceuta tal vez comienza a entender su estatuto insensato: cierre poroso e inútil de la humanidad africana, esto es, de toda humanidad. La tripulación se prepara, entonces, para una fuerte tempestad sobre las subjetividades" Antonio de novo. (Leia o texto anexo que ele escreveu sobre nossa viagem. Veja também o Diário de Bordo feito pelo Bob).

Forte tempestade sobre as subjetividades, eram assim nossas considerações, quase sempre passionais e abstratas. Na prática nos restava apenas levantar velas e encarar Gibraltar, a porta de saída do grande Mare Nostrum. Nos despedimos de Antonio com tristeza sem saber quando poderíamos vê-lo novamente. Chegadas e partidas, cantou o poeta, uma trilha perfeita para uma tripulação nômade como a nossa. Adios Ceuta, destino: Brasil. Antes porém breves escalas nas Canárias e em Cabo Verde. Não percam os próximos capítulos da nossa aventura. .

Final da parte 32

No caminho de Chefchaouem, Marrocos: viagem ao século onze.

Antonio e eu: com o Zimbros amarrado na África:

As sete colinas de Ceuta.

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Parte 33

Ceuta fica no sul do estreito de Gibraltar. É um dos apoios das colunas de Hércules da antiguidade, a garganta do mundo a partir de onde só existiam dragões. Quatorze quilômetros a separam das costas da Europa. A cidade está localizada sobre um istmo que avança para o mar no sentido oeste-leste. Ao sul deste cabo fica o porto e a pequena marina. Depois de uma exótica viagem ao interior do Marrocos, deixamos a cidade em uma sexta-feira ensolarada e quente. Um dia que, segundo as supertições náuticas, não é aconselhável partir. Mas não tínhamos escolha, Antonio tinha voltado à Sevilha e restava apenas nos lançarmos ao mar e encarar, sem resignação, os desafios do grande Atlântico.

Largamos as amarras pouco depois do meio-dia para aproveitar a hora da maré vazante, ideal para quem deixa o Mediterrâneo. Ao lado da polícia marítima notamos uma cena incomum. As autoridades retiravam d'água um enorme embrulho com vários pacotes de haxixe, cuidadosamente embalados para que não molhassem. Foi uma surpresa, pois quando chegamos à Ceuta, havíamos visto um igual àquele boiando próximo ao litoral. Valia uma fortuna no outro lado do estreito. Não pudemos deixar de imaginar, por brincadeira, o dinheiro que poderíamos faturar se tivéssemos embarcado aquela carga ilegal. Ao sair encontramos um vento forte do lado de fora.

Não estávamos esperando um tempo daqueles.Voltamos para dentro do porto e nos prepararmos para agüentar a pauleira. Rizamos as velas, colocamos nossos abrigos impermeáveis e voltamos ao mar aberto. Ao largo, um enorme navio de passageiros esperava o embarque dos turistas que haviam passado o dia em terra. O vento era o famoso poente, soprava de oeste com vinte e sete nós. Tínhamos que seguir em orça fechada para vencer Ponta Leona, um pequeno cabo na saída de Ceuta. Parecia até brincadeira de mau gosto, ter que sair de Gibraltar com vento contra e forte. Nossa entrada, um mês antes fora nas mesmas condições. O estreito mais uma vez confirmava sua má fama.

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Ceuta e o estreito de Gibraltar

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Com dificuldade passamos por Ponta Leona. O mar em alguns pontos parecia ferver. Era o encontro das marés que fluíam pelo estreito com suas correntes indomáveis. O Zimbros seguia lentamente e parecia que nunca conseguiria vencer o trecho. Mais tarde quando nos aproximamos da baia de Tanger, notamos um navio-patrulha manobrando na nossa proa. Mesmo com binóculos não conseguimos distinguir sua nacionalidade, já que não havia em sua popa a bandeira do país de origem, obrigatória em todos os barcos do mundo. No convés alguns marinheiros confusos tentavam desembarcar um pequeno bote de borracha. Ao nos aproximarmos mais, o naviomanobrou de ré tentando chegar próximo a nós vindo de popa. Parecia o samba do crioulo doido. De dentro do bote inflável alguns marinheiros nos acenaram. A encrenca era conosco! Diminuímos a marcha e fomos ao encontro deles. Acercaram-se de nós e um dos marinheiros tentou subir à bordo. Desajeitado, não caiu no mar porque corri em sua ajuda e dei-lhe a mão para puxá-lo ao convés.

Tinha um aspecto horrível, todo molhado, com roupas civis e um ridículo chinelo parecido com nosso rider. Sem identificação alguma que o apresentasse como um oficial da aduana marroquina, entrou à bordo sem desculpas nem licenças, exigindo nossos passaportes. Tirou do bolso um pequeno papel amassado e, com uma caneta nossa, anotou o número dos nossos documentos.

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Nós três estávamos perplexos. Se não fosse o navio-patrulha estacionado lá fora, aquele desconhecido poderia muito bem se passar por um pirata. Ao examinar os documentos do Bob achou ruim o fato dele ter dois passaportes. "É que um deles contém o visto americano" explicamos. Mas o cara não se convenceu e passou a nos olhar como contrabandistas. Resolveu dar uma geral à bordo. Começou por revistar o camarote de proa, depois passou para o resto do barco. Sentou-se todo molhado nas camas e revirou tudo em busca de alguma muamba. Bob argumentou que não levávamos nenhum tipo de drogas, nem contrabando. Ele respondeu que, se não cooperássemos, poderia trazer para bordo um cachorro farejador dos brabos.

Ameaçados nos calamos e aguardamos que o nosso hóspede vasculhasse todos os cantos do barco para enfim se convencer que não éramos traficantes. A única droga à bordo era aquela merda toda! Um interminável tempo depois, da mesma forma que veio, se foi sem explicações, desculpas ou despedidas. Foi um alívio vê-lo pelas costas.

Navio-patrula marroquino: geral à bordo.

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Após essa inoportuna visita seguimos nosso rumo navegando próximo à costa. Com vento e corrente contra, em oito horas tínhamos vencido apenas trinta milhas. Ao escurecer dobramos o Cabo Spartel a partir do qual a costa da África corre no sentido sudoeste. As correntes nos ficaram mais favoráveis e começamos a andar um pouco melhor. A meia-noite afogaram-se no breu as últimas luzes do continente africano. O dia seguinte amanheceu sem vento. Evoluímos lentamente no nosso longo caminho de volta para casa, pouco mais que 130 milhas em 24 horas, uma média medíocre. Mais tarde, para nossa preocupação, descobrimos que nos restava pouco gás de cozinha e que teríamos que economizar o máximo na hora de cozinhar. Mas se navegar é preciso, saber poupar é muito mais.

No dia 26 de setembro, um domingo nublado, finalmente ganhamos um presenteespecial: os alíseos. Desligamos o motor. Esses ventos são, desde tempos imemoráveis, uma benção para os que navegam. Um combustível fiel e barato para velejadores de todas as épocas. Tenho uma teoria segundo a qual nosso continente sul americano foi achado e colonizado por portugueses e espanhóis por conseqüência desses ventos. É claro que nossas riquezas naturais também ajudaram, mas se não fosse a facilidade e a constância dos alíseos, talvez nosso destino tivesse sido outro.

Lá pelo final da tarde, Bob, cheio de pudores e vergonha, nos diz que era seu aniversário. Foi o que bastou para organizarmos uma festa em homenagem aos seus 67 anos. Ele tem uma boa folha corrida de vida, e eu gostaria eu de poder chegar na sua idade com a mesma disposição, lucidez e elegância dele. Parabéns Bob!

Com os alíseos de norte soprando constante e fielmente, seguimos de vento em popa, literalmente. Armamos as velas em asa-de-pombo e pudemos recuperar um pouco do tempo perdido na saída. Quando faltava menos que um dia para chegarmos às Canárias, surgiu uma dúvida quanto ao nosso destino: aportar em Tenerife ou em Gran Canária? Deixamos que o vento decidisse, já que ele estava rondando para noroeste e não queríamos mexer nas velas. À noite andamos muito bem com todas as velas brilhando na lua cheia que, finalmente, resolveu aparecer. Uma faixa prateada sobre a superfície tranqüila do mar deixava a noite clara como o dia.

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Ao amanhecer resolvemos arribar para Las Palmas, aonde chegamos perto do meio-dia, horário local. Foram 700 milhas desde Ceuta. Cinco dias de viagem, camaradagem e comemorações.

Pedimos autorização para entrar no Muelle Deportivo de Las Palmas e fomos informados que só poderíamos ficar lá no máximo por dois dias. Estavam lotados devido a uma regata oceânica que aconteceria no próximo sábado. Além desse evento, dentro de algumas semanas iria rolar a famosa regata ARC 2004, a Atlantic Rally for Cruisers, que todos os anos sai de Las Palmas em novembro rumo à Santa Lúcia no Caribe. Mais um rally do que uma regata, é a mais popular maneira de se cruzar o Atlântico para os que têm o barco na Europa. Dizem ser o mais longo evento náutico do mundo, com um percurso aproximado de 2.700 milhas. Reunem-se todos os veleiros que fogem do inverno europeu em direção ao calor antilhano. Mais de duzentos barcos largam com os tradewind de nordeste, os ventos favoráveis do hemisfério norte usados desde o passado por todos os navegantes em busca do novo Continente.

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Uma vez no cais, tivemos oportunidade de conhecer muitos desses aventureiros que aguardam, ansiosos e cheios de histórias, a hora da partida. O Zimbros virou então um ponto de encontro dos novos amigos. Certa hora estavam à bordo, além de nós, Eli e Julian, um casal espanhol que seguia para o Caribe, John e Ashley, sul-africanos e Francesco, italiano, os três vindos da África do Sul para o Mediterrâneo. Depois de algumas canas, cada um falava seu próprio idioma e todos nos entendíamos como se fôssemos amigos desde sempre. Foi um bom momento que passamos juntos.

Tínhamos em comum além da febre de navegar, a vontade de trocar nossas experiências náuticas. Nos restava pouco tempo, e o fato de todos sabermos de cor que aquela união era fugaz, nos fazia viver intensamente cada momento. Convencemos Eli e Julian a mudarem seu rumo para o Brasil. Como estavam em busca de aventuras mais emocionantes, Bob acertou na mosca: "A Bahia é mil vezes melhor que o Caribe" afirmou convicto. Dei a eles de presente um guia náutico do litoral baiano feito pelo velejador Hélio Magalhães. Sua maior preocupação era com a segurança pois, infelizmente, as únicas notícias do Brasil que chegam até lá são da nossa violência.

Agimos como embaixadores, mostrando ao casal que a violência tão propagada pela mídia existe sim, mas é pontual e passa longe das nossas enseadas. É claro que é preciso ficar sempre de olhos bem abertos, precauções que têm que ser tomadas em qualquer porto do planeta. .

Muelle Deportivo de Las Palmas: parada no meio do Atlântico

Las Palmas e os novos amigos: acima, Julian e Eli; abaixo, entre Betinho e Bob, Ashley e Francesco.

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Nossa escala em Las Palmas durou só o necessário para reequiparmos o Zimbros e, assim que nada mais nos faltava à bordo, soltamos os cabos de amarração do cais. Teríamos pela frente muitas milhas até Cabo Verde. Na hora da partida fomos presenteados com uma calorosa despedida dos amigos que ficaram. Ao longe nas pedras do mole, Francesco e Ashley nos fizeram uma homenagem ao estilo da marinha italiana: ambos perfilados em posição marcial sopraram seus estridentes apitos por três vezes consecutivas em um pungente sinal de adeus. Outro amigo, o gerente do posto de abastecimento e da loja de conveniência da marina, fez soar uma poderosa buzina nos desejando sorte. Julian pelo rádio nos mandou bons fluídos.

Gestos como esses são de encher a alma! Mais uma vez nosso barco partia rumo às incertezas do oceano. Em terra, amigos inesquecíveis nos desejavam bons ventos. Las Palmas tem a forma de um triângulo alongado no sentido norte-sul. Uma enorme montanha central passa dos 2.000 metros de altura. A ilha é escarpada e muda de altura em poucos quilômetros. Gastamos duas horas para deixá-la para trás e, assim que ficamos a salvo de seu enorme relevo, o vento nos apanhou pela popa com 25 nós. Ajudado pela fria Corrente das Canárias, com todas as velas em cima, o Zimbros alcançou com facilidade a velocidade espantosa de 10 nós. A princípio comemoramos nossa média mas, depois durante a madrugada, o vento aumentou muito e nosso barco chegou a alcançar 14 nós na descida das ondas. Apesar do Zimbros seguir com estabilidade e o piloto automático responder com precisão, ficamos inquietos com a possibilidade do barco atravessar numa onda. Atravessar significa perder o controle do rumo pelo desequilíbrio provocado pela força das ondas e das velas. O barco vira de lado na descida da vaga, tomba e é arrastado por ela. Às vezes chega até a encostar o mastro dentro d'água. Quem estiver no cockpit, sem cinto de segurança, é arremessado para fora sem dó. Pode ser fatal, e é um dos piores acidentes que pode acontecer em um veleiro. Tão feio que prefiro nem seguir com esse assunto. Betinho, o mais preocupado, mal conseguiu dormir com os olhos pregados no chart-ploter que mostrava, com todas as luzes a evolução da nossa corrida. Às cinco da madrugada o mar estava um horror, super desconfortável. Não tivemos escolha, com um sufoco dos diabos, no escuro, fechamos a genoa, aproamos o Zimbros no vento e rizamos a vela grande.

O vento permaneceu duro até o final da tarde seguinte quando acalmou de vez. À noite fomos obrigados a ligar o motor. Permanecemos assim até o próximo amanhecer em que, para alívio da tripulação, voltaram os alíseos de norte. Tínhamos pegado alguma zona de baixa pressão ao deixarmos as Canárias, o que fez mudar o sistema de isobáricas de toda a região. Estávamos no paralelo 26 norte, o mesmo do Cabo Bojador, o mítico promontório nas costas da África que permaneceu, durante séculos, o limite último do universo português no século XV. Ao contrário do que afirmava a Igreja Católica, a circunferência da terra já era conhecida por todos os navegadores da antigüidade. .

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Pensava-se contudo que a partir do Bojador os mares eram cheios de monstros, e que qualquer embarcação que se aventurasse além do Equador escorregaria sem perdão para baixo do planeta pela força da gravidade. Todas estas supertições foram dissipadas graças a intrepidez de bravos como Gil Eanes, o navegante português que venceu o cabo em 1439. A partir de então rompeu-se uma importante barreira psicológica à navegação. "Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor" escreveu o Pessoa.

Armamos as velas em asa-de-pombo, ou seja, cada uma delas aberta para um lado do barco. A genoa com ajuda do pau de spinaker permanece a barlavento e a mestra, a sotavento, é presa ao convés por um cabo chamado preventer ou contra-escota. Isso evita o jaibe, quando a retranca é violentamente jogada de um lado para outro sobre o convés. Pode ser grave se encontrar no caminho a cabeça de algum grumete distraído. Eric Tabarly morreu disso. Mas, sempre prevenidos, passamos longe dos riscos.

Tocamos o Zimbros com segurança e as milhas iam ficando para trás hora após hora. A cada dia estávamos mais perto do nosso próximo porto. Seguíamos acompanhando a inclinação das costas da África. À noite, só no convés, a mente à deriva nos intermináveis turnos da madrugada, eu escutava na FM de um pequeno rádio de pilha as estações africanas. Sentia uma terrível sensação de isolamento e apenas o rádio me unia ao longínquo litoral que passava ao lado, dentro da noite terrível e para sempre lembrada. Estávamos no través da Mauritânia, no meio do nada. A mim só restava acalmar as tormentas do coração, rezar e pedir para chegar logo e em segurança.

Eu trazia desde o Mediterrâneo uma linha de arrasto para tentar pescar algo. Depois de alguns dias no mar, o gelo acaba e não há como ter comida fresca à bordo. Um peixe sempre é bem vindo. Mas como sou um pescador incompetente e meu equipamento era muito primário, só fiz perder muitas iscas ao longo do caminho. Finalmente, em uma manhã brilhante, senti uma fisgada na linha e, em pouco tempo, embarcamos um pequeno dourado, com cerca de um quilo. Nada de mais, exceto pelo fato de ser o nosso primeiro peixe em muitas milhas. Bob esnobe disse que aquilo não era peixe, e que os bons estavam mesmo em Fernando de Noronha. Um blá, blá, blá sem fundamento. Dei uma bronca nele, pois aquele dourado era o melhor que podíamos ter no momento. "Melhor um peixe ruim na mão do que centenas bons no mar, caralho" disse-lhe no linguajar marinheiro. O tio Bob é uma peça rara, um pentelho que todos amam. Como todo carioca é um sedutor, cheio de charme que adora contar vantagens.Polêmico, gosta de contradizer a tudo e a todos, sobretudo a si mesmo. Gastamos horas e mais horas, eu e ele, discutido todos os temas. Música, livros, idéias, besteiras, tudo era motivo para embates. E nós sempre em lados opostos. Foi um excelente passatempo nas horas sem fim que passamos cercados de água por todos os lados. Uma das suas grandes tiradas foi quando nos contou que seus esportes favoritos eram dois: fazer sexo e caminhar. "Não necessariamente nessa ordem. Às seis da manhã, por exemplo, prefiro caminhar..." fulminou com humor.

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Um pequeno dourado: o único peixe em toda a travessia.

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Permanecemos três dias com vento norte variando de 10 a 20 nós. Uma velejada perfeita, já que por três dias não tocamos nas velas um dedo sequer! Na noite anterior à chegada o vento acalmou e fomos obrigados a ligar o motor. Na manhã seguinte, logo cedo, pudemos distinguir ao longe, o relevo calcinado da ilha de São Vicente. Ao meio-dia entramos na enseada do Porto Grande de Mindelo. Fizemos 860 milhas em seis dias, uma excelente média diária de 150 milhas. Na baia observamos emocionados a pequena cidade com suas construções baixas e seus telhados de zinco. Lembra um pouco nossa arquitetura colonial portuguesa. A vegetação é escassa e com poucas árvores. Uma paisagem lunar, bela e trágica, ao mesmo tempo encanta e assombra. Velhos cargueiros com aparência de abandono e um moderno ferry aguardando seus passageiros, estavam ancorados no porto ao lado. Em frente, na área destinada aos cruzeiristas, alguns poucos veleiros ancorados faziam bonito na paisagem. Barcos do tipo heróico, rodados, daqueles que pelo perfil viam-se que eram de longo alcance e grandes horizontes. Nada de luxo, apenas lobos do mar calejados dando um tempo naquele porto de fim de mundo. Uma incrível sensação de vitória tomou conta da tripulação. Nós também fazíamos parte daquele mundo.

São Vicente é uma das dezenas de ilhas que compõe o arquipélago de Cabo Verde que, aliás, de verde não tem nada. Mas é assim denominado porque... Bem, isso é assunto para o próximo capítulo. Aguarde! .

Ilha de São Vicente em Cabo Verde: parada em Porto Grande de Mindelo.

Final da parte 33

Acesse este capítulo e os demais, no seguinte endereço:http://www.iateclubeportobelo.com.br/aventura.htm

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Ilha de São Vicente em Cabo Verde

Parte 34

Depois de seis dias, finalmente chegamos à ilha de São Vicente, no arquipélago de Cabo Verde. A capital Mindelo é a base da maioria dos veleiros que cruzam o Equador, uma encruzilhada de barcos de todas bandeiras. Antes mesmo de jogarmos âncora, fomos abordados por um marinheiro em um pequeno bote inflável, que nos orientou, em português, o melhor lugar para pararmos. Chamava-se Humberto e queria serviço. Estávamos um pouco desconfiados pois tínhamos lido nos guias náuticos que Cabo Verde não era um lugar muito seguro. Ouvíamos um disco da Cesária Évora e o nosso amigo gostou do som. "É a nossa música" disse com simpatia. Bastou alguns minutos de conversa com ele para disssipar toda nossa desconfiança. Fomos à terra em sua companhia e ele nos ajudou com a interminável burocracia das autoridades locais. Apesar de tudo, fomos bem tratados e os caboverdianos são amáveis, principalmente depois de saberem que éramos brasileiros. O futebol nos abriu muitos sorrisos.

Cabo Verde é pobre, mas descente. Foi durante cinco séculos colônia de Portugal e língua oficial, além do crioulo, é o português. A maioria da população é negra. Muito parecidos conosco, eles têm a nossa familiar mistura luso- africana. São calorosos, simpáticos e muito musicais. O ritmo está em todos os lugares. Seu som parece um carimbó, um tipo de salsa eletrônia bem dançante. O arquipélago é de origem vulcânica, grande parte das ilhas tem relevo escarpado, sem rios permanentes. O clima é árido e as chuvas escassas. Situa-se a umas 350 milhas das costas do Senegal, o país mais ocidental da África. O Senegal é a fronteira entre o árabe e o negro, onde o deserto dá lugar às florestas. No litoral, à oeste, onde o verde encontra o mar, existe um promontório cujo nome traduz bem essas mudanças: chama-se Cabo Verde. Foi este acidente geográfico que batizou as ilhas ao seu lado no Atlântico e que, ironicamente nada têm de verdes.

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Abastecemos o Zimbros com ajuda do nosso novo auxiliar, o Humberto. Mesmo assim foi muito difícil conseguir tudo o que precisávamos. Os mercados são fracos e os alimentos frescos raros. Só encontramos enlatados, a maioria importados, alguns do Brasil. Existem poucas verduras e legumes, assim mesmo muito feios. Carne nem pensar, exceto as de peixe. Fomos ao mercado de pescados mas não tivemos coragem de comprar nada. Os produtos ficam todos expostos ao ar livre, sem refrigeração, cheios de moscas sobre os balcões. Mas o mais difícil foi achar água. A ilha é totalmente seca, sem rios perenes, e o abasteciento é feito por dessalinizadores, aparelhos que transformam a água do mar em potável. Para poupar eneriga essas máquinas não funcionam o tempo todo. A água produzida fica parada dentro das tubulações de ferro, que acabam enferrujando. A água é poluida e não indicada para consumo humano. Tívemos um enorme trabalho para tomar banho, cada gota valia seu peso em ouro. Abastecemos o Zimbros em um velho cais pesqueiro e aproveitamos a mangueira para uma merecida ducha. Não misturamos a água de Cabo Verde com a que tínhamos à bordo, colocada nas Canárias. .

Enseada de Porto Grande em Mindelo: Humberto, nosso boat-boy.

Gastamos toda a tarde e a manhã seguinte com essas funções. À noite, cansados e com calor, sentamos Bob e eu em um simpático boteco de esquina com mesas na calçada. Ficamos observando o movimento de final de expediente e o perfil sensual das mulheres, negras lindas que sempre habitaram o imaginário erótico e solitário de todos os navegadores, desde o primeiro português que desembarcou naquelas paradas. Comemos um delicioso peixe à moda da ilha e tomamos um vinho branco português, bom e barato. Na segunda garrafa começamos a nos achar inteligentes, bonitos e simpáticos. Eu sabia que Cesária Évora morava em Mindelo. A moça que nos atendia informou que sua casa não era longe. Foi o que bastou para irmos lá. Inventamos uma mentira qualquer para contar e, com a maior cara de pau, batemos na casa da cantora. Quem atendeu foi seu criado, um viadinho cheio de trejeitos. Nos disse que Cesária estava em Paris, do contrário seria um prazer para ela nos receber. Porra, que pena! Teria dado uma boa história aquele encontro. Fico devendo essa para você leitor. Talvez em Recife eu veja o Alceu Valença...

Ficamos parados pouco menos que 24 horas em São Vicente. Na manhã seguinte, resolvidos os últimos detalhes, levantamos âncora das águas claras do Porto Grande de Mindelo. Antes porém deixamos uma lembrança no caderno de recordações do Humberto: um texto-cabeça e poético que fiz inspirado nas meta-linguagens do Antonio Garcia. Lentamente deixamos a baia para trás. Humberto nos acenava por entre os barcos fundeados na enseada. Foi uma bela imagem! Era nossa última escala em terras estrangeiras. Próxima parada: Portinho em Fernando de Noronha, 1.300 milhas sudoeste, rumo 210º. Passaríamos ao lado dos Rochedos de São Pedro e São Paulo, a 1.000 milhas de distância.

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Por muitas horas ainda nos acompanhou a vista do pico da ilha de Santo Antão, vizinha de São Vicente. O piloto automático começou a dar problemas e não queria funcionar. Apertamos todos os botões que tínhamos direito e pareceu adiantar. "Deus me livre ficar sem piloto, tão longe de casa" pensei angustiado. O vento fora do porto era leste, variava de 10 a 18 nós e o mar estava bom. Assim seguimos por três dias inteiros, horas e horas imperturbáveis, quase sempre iguais mas nunca enfadonhas. Estávamos todos com o astral muito alto. Nossa conversa era ótima, sempre sobre música, viagens, sonhos e planos para o futuro. Sentia saudades de casa e lá fora o mundo vinha pelas ondas curtas do nosso radinho de pilha: atentados no Egito, eleições na América do Norte, golpe de estado na Guiné Bissau, eram sempre as mesmas más notícias a nos convencer que o nosso pequeno mundo flutuante estava perfeito.

Na madrugada do quinto dia o piloto automático deixou de funcionar definitivamente. Foi uma notícia terrível já que, a partir de então, teríamos que levar o Zimbros na mão. Pela manhã tentamos todas as alternativas possíveis sem sucesso, o defeito parecia ser nos circuitos eletrônicos. Betinho ficou furioso como eu nunca o tinha visto antes. Ele é muito equilibrado e jamais perde as estribeiras. Fiquei preocupado e antes que o desânimo tomasse conta, Bob rapidamente pegou o leme e completou: "Isso não é nada grave, sempre naveguei sem piloto. Pode deixar que eu toco o barco sem problema nenhum". Foi uma boa chamada para nós dois que já estávamos nos entregando. A partir de então nos dividimos em turnos de duas horas cada um no leme. Com o tempo, descobrimos que era possível amarrar o timão a um pequeno cabo e, com as velas bem equilibradas, o barco reagia bem e seguia seu rumo sem derivar muito. Mas era uma gambiarra dos diabos e tínhamos que estar sempre de olho para que o Zimbros não entrasse no vento. Bem humorados, batizamos a invenção com o sugestivo nove de Limitator de Piloto Tabajara.

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O grande timoneiro: Betinho substitui o piloto automático.

A mil milhas de Noronha, no paralelo 10 norte, chegamos na famosa Zona de Interconvergência Tropical e o vento mixou por completo. É uma área de calmarias, a transição entre os alíseos do hemisfério norte e do sul. Varia muito de tamanho e chega a ter, certas épocas do ano, quase 600 milhas de largura. Mas já sabíamos disso e nos preparamos para seguir a motor por três ou quatro dias. Ficou quente e a temperatura da água chegou aos 30º C. Rumo ao sul, os dias eram lentos, mas nunca monótonos. Em algum momento, Beto e Bob viram um cardume de orcas que emergiu rápido por bombordo. No outro dia, a poucos metros de nós, passou um enorme sailfish azul, seguindo pela superfície d'água, impassível para o norte com sua enorme nadadeira dorsal servindo de vela. Uma tarde fisgamos um dourado de uns 5 quilos. O bicho era de briga, pulou fora d'água duas vezes seguidas. Foi quando pudemos ver num flash seu suculento perfil. Mas infelizemnte a linha não aguentou o tranco e o peixe fugiu, levando na boca minha preciosa rapala. Me connvenci muito tarde que deveria dar um upgrade em meus equipamentos de pesca. .

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Faltavam mais de 600 milhas para Noronha, quase a metade do percursso e nada dos ventos. O tempo era estranho com nuvens de tempestades por todos os lados e o mar estava liso, mas com um aspecto sombrio. Chovia e fazia sol várias vezes ao dia. Pegamos algumas tormentas tropicais com muita chuva e vento. Perdemos a adriça da genoa em uma pauleira dessas. Felizmente tínhamos outra de reserva, mas fiquei preocupado em perdê-la novamente, pois teria que subir no mastro para fazer algum eventual reparo. Mas, para meu alívio, não foi preciso. Aproveitamos alguns dos aguaçeiros para tomar refrescantes banhos. Parados no mar, o Zimbros boiando no meio do nada, mergulhamos nas águas quentes tropicais e nos deleitamos com a chuva abundandante que caía de graça do céu. Foi um banho único, uma infantil sensação de prazer nos inundou. Um barco custa muito caro; um cruzeiro pelo mundo também não é barato; mas tomar banho de chuva no meio do Atlântico, não tem preço. .

Sailfish: um bicho desses, cheio de classe nos deixou por boreste.

Zona de Interconvergência Tropical: muitas tempestades, pouco vento.

No paralelo 5 norte, pudemos velejar por algumas horas com o que pensávamos ser os alíseos. Mas foi só ilusão. As chuvas voltaram trazendo consigo a antiga inconstância dos ventos. Um fascinante arco-iris inteiro apareceu depois de uma borrasca. A brisa virou um temporal e passou a soprar de sudeste, muito desigual. Mas suficiente para tornar o mar ruim e desconfortável. Passamos a dormir pouco e mal. O nosso piloto Tabajara era uma piada e funcionava no padrão do Casseta & Planeta, só que semgraça nenhuma. Procuramos levar nosso cotidiano do jeito menos ruim possível. Era impossível cozinhar, e o nosso cardápio se resumia a alguns enlatados que o Betinho melhorava com alguma arte. O resto do tempo cada um ficava o mais imóvel possível, esperando que aquele mal estar durasse pouco. Era impossível ler ou escrever. Pelo menos a música era boa. .

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Gravei antes de partir alguns cds em formato mp3 com todos os estilos de música que gosto. Alguns, que nunca ouvíamos, eram de black music, hip-hop misturados com rhithm and blues, outros de fusion e reggae. Já não aguentava mais os de jazz e música brasileira que se repetiam infinitamente. Resolvi trocar para os novos, mas Bob achou ruim e queria tirá-los do aparelho. Como não deixei, ele pediu ao Betinho que me convencesse a fazê-lo. "Porra Betinho, você quer mesmo mudar esse som tão legal?" perguntei-lhe contrariado. Como o Beto não é de polêmicas, negou. "Então fica esta porra. Aqui no Zimbros vale a democracia" dei meu recado. "A democracia da Guiné Bissau" completou ele bem baixinho, fazendo uma irônica referência ao triste país da costa africana, cujo governo havia sido deposto alguns dias antes. Foi uma gargalhada geral que se escutou no meio do mar. Em homenagem a esse gol de placa, mudei o som e voltaram os Coltrane e os Duke Ellington de sempre.

Aos 2 graus de latidude norte entraram finalmente os alíseos de sudeste. Eram de frente e variavam de 10 a 15 nós. Seguíamos em orça bem fechada. A tendência é que os ventos e as correntes arrastem para oeste, em direção ao Caribe, todos veleiros que sequem para baixo no Atlântico. A partir do Equador, os elementos passam a ser contrários para quem veleja para o sul. Cruzamos com um enorme barco de pesca espanhol que voltava para seu país, vindo da Argentina. Nos confirmou que o tempo para baixo estava feio, com ondas grandes e ventos fortes. O operador do rádio pareceu assustado com o tamanho do nosso barco e com a nossa aventura. A sua apreensão me contaminou um pouco, mas guardei silêncio dos meus temores.

Cruzamos o Equador na altura do meridiano 30. Faltavam pouco menos que dois dias para a chegada, começamos nossa contagem regressiva para Noronha. As sinistras previsões do barco espanhol confirmaram-se e o vento aumentou para 25 nós. O mar também. Deixamos a genoa no tamanho de uma pequena buja. Ficamos mais estáveis mas fugimos do rumo, já que a vela de proa quando enrolada, perde seu desenho e diminui a capacidade de orça do barco. Daquele jeito não íamos alcançar Noronha. As noites eram terríveis, a cada minuto uma onda invadia o cockpit e molhava tudo, principalmente o timoneiro. Era impossível tirar a cara para fora da cabine sem roupa de mau tempo. Recolhemos a genoa e ligamos o motor. Funcionou com o rumo, mas pouco tempo depois o motor pifou. O balanço excessivo do mar fez com que a sujeira do tanque de combustível se misturasse ao diesel, entupindo seu fluxo. Tudo parecia estar na contramão, começei a ficar preocupado. Betinho abriu o compartimento de máquina, meteu metade do corpo lá dentro e se pôs a trabalhar numa situação horrível, já que o barco jogava de um lado para o outro. Abri um pouco a vela para nos dar sustentação e começamos a andar muito devagar. Finalmente, após uns minutos que pareceram eternos, Beto gritou lá de baixo para eu tentar a partida. Girei a chave e, alguns solavancos depois, VRUMMMM, o motor afortunadamente pegou, para alívio de todos. Grande Beto, nos tirou de uma enrascada na hora certa.

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Beto e Bob são dois caras que fazem a diferença à bordo. Mais tarde, quando chegamos ao Brasil, muitos amigos velejadores surpreenderam-se com o fato de termos feito tantas milhas sem quaisquer danos maiores à bordo. Nada importante quebrou no Zimbros durante toda a viagem. A explicação é que fizemos um time perfeito, sabíamos das restrições do barco e sempre encaramos o tempo ruim com muita cautela, nos antecipando aos perigos. Nossa maior preocupação sempre foi com a segurança. O bom entendimento fez com que suportássemos as adversidades com sangue-frio e humor. A experiência do Bob e a competência do Beto foram fundamentais nas horas difíceis, iguais aquelas que estávamos vivendo. Eu próprio tenho minhas limitações e inseguranças. Mas sou consciente dos meus vazios e procuro compensar meus defeitos escolhendo companheiros que tenham as habilidades que me faltam.

Faltava pouco, menos que cem milhas para nosso destino. Decidimos desligar o motor, assim poderíamos poupá-lo para as manobras da chegada. Por tentativa e erro, descobrimos que com a vela mestra no segundo rizo e a genoa toda aberta, conseguíamos orçar bem mais, apesar do mar enorme e da molhadeira à bordo. Aos poucos fomos recuperando a altura perdida e voltamos ao rumo de Noronha. O Zimbros começou a andar muito bem, chegando facilmente aos 8 nós de velocidade. Mas o último dia foi cruel. Ficou muito desconfortável e mal conseguimos nos alimentar. Mas não perdemos a classe. Abrimos um último Rioja e o degustamos com um fantástico Roquefor cremoso que sobrou das Canárias. Hay que sofrer pero sinperder a elegância jamas.

À meia-noite do décimo dia, lenta e cuidadosamente, passamos pelo través da Ilha Rata e jogamos âncora nas águas do Portinho, a enseada protegida pela ponta de Santo Antonio no arquipélago de Fenando de Noronha. Havia sido uma odisséia! Descobri que o pior no mar não é o tamanho das ondas nem a força do vento. É o tempo que passamos sujeitos a eles. Os últimos quatro dias foram muito duros e adversos. Apesar dos ventos não terem ultrapassado os 30 nós e as ondas nunca serem maiores que os 5 metros, o pior de tudo foi o longo tempo que passamos naquela situação. É preciso ser forte e ter muito saco para agüentar a pressão do desconforto. Mas estávamos em casa, enfim fundeados em águas brasileiras. No meio da noite dei um refrescante mergulho para comemorar nosso feito. Fui dormir feliz e aliviado.

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Final da parte 34

Fernando de Noronha: de volta ao Brasil.

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Finalmente chegamos em Fernando de Noronha. Foram 1.300 milhas desde Cabo Verde, vencidadas em pouco menos que dez dias. Estávamos cansados com o mau tempo que pegamos a partir do paralelo cinco, norte. Mas nada importava, o Zimbros estava de volta ao paraíso. Mas o paraíso não existe. Dormimos tal qual pedras e, logo cedo, fomos acordados pela zorra que faziam os barcos das operadoras de mergulho, que se preparavam para mais um dia de trabalho. O Portinho, em certas épocas do ano,é o único lugar protegido da ilha. Os barcos fundeados em um pequeno espaço, ficam muito próximos uns dos outros. Como chegamos à noite, por segurança, jogamos nossa âncora bem afastados da maioria. Ao acordar senti que o Zimbros balançava como se estivesse em alto mar. Sai para o cockpit e vi, com surpresa, um enorme barco passar a não mais que dois metros do nosso costado. Logo em seguida outros imprudentes repetiram o mesmo trajeto. O oceano é tão grande e aqueles ignorantesfaziam questão de passar raspando em nós em uma velocidade de competição, apenas para se mostrarem, deixando claro que o mar pertencia só a eles. Ainda não eram sete da manhã, o dia estava radiante, ensolarado e quente. Bob inquieto queria desembarcar. Seu filho Rodrigo o aguardava em terra. Colocamos nosso pequeno dingue na água e o Bob partiu só. Combinamos não falar que chegávamos da Europa, para evitar transtornos com as autoridades locais. Assim que pôs os pés na praia, ele foi abordado pelo superintendente do porto que já sabia tudo de nós, inclusive que vínhamos do estrangeiro. Solicitava nossa presença em seu escritório para as formalidades de chegada. Formalidade que se resumia no pagamento de uma absurda taxa de fundeio no valor de U$ 75/dia. Um disparate! Apenas para jogar âncora em Fernando de Noronha, o governo de Pernambuco, que administra o território, instituiu uma taxa completamente arbitrária e inconstitucional. Sim, pois qualquer embarcação, independente de hora ou lugar, pode parar de graça em todo o litoral brasileiro. Mais tarde mostrei ao funcionário que a tarifa era absurda e irregulare que, se eu me recusasse a pagá-la, ninguém iria me prender por isso. Ele reconheceu o absurdo da cobrança, mas alegou que era a lei e estava obrigado a cumpri-la.

Educado, o cara quase pediu desculpas pela improcedência da taxa, e nos ofereceu muitos descontos, inclusive dois dias de estadia gratuitos. Assim, para evitar transtornos logo na chegada, concordei em pagar parte do que era exigido. Senti que os turistas não são bem vindos em Fernando de Noronha. "Chegamos ao Brasil" conclui desanimado.

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Fernando de Noronha: a Ilha Dois Irmãos ou os populares Fafá de Belém.

Parte 35

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Rodrigo, filho do Bob: um novo tripulante à bordo.

Reencontramos o Rodrigo, ele iria nos acompanhar até Salvador. Apesar dos contratempos com as autoridades, fomos comemorar nossa chegada com um jantar maravilhoso, regado a um super tinto reserva que havíamos ganhado do Antonio Garcia. Foi uma noite memorável, mas na manhã seguinte Bob acordou sentindo muitas dores no rim. À tarde ele piorou e resolvemos levá-lo, contra sua vontade, para um exame no pequeno hospital da vila. Ele foi muito bem atendido e a médica que o examinou resolveu que seria melhor interná-lo para observação, enquanto aguardava o resultado dos exames. Bob se acha um garoto e ficou inconformado. "Odeio médicos e nunca fui internado na vida" repetia de mal-humor. Mas não houve jeito e ele teve mesmo que passar a noite na enfermaria. Preocupado, cancelei nossa partida marcada para o dia seguinte. Eu também não estava bem, fui atacado por uma diarréia terrível. Achei que tinha comido alguma coisa que me fez mal. Mas eu estava enganado.Os exames foram esclarecedores: Bob estava desidratado e eu também! Era inacreditável, mas verdade. Tínhamos navegado os últimos dez dias em condições muito desfavoráveis e não bebemos água o bastante para compensar nossa perda de líquidos. Simplesmente não sentimos sede durante o percurso e, portanto, bebemos quase nada de água. Alguém que está desidratado, nem sente. Os sintomas não são de sede, manifestam-se em outros órgãos. Ao Bob atacou o rim, razão pela qual ele sentiu tantas dores. Comigo foi o piriri. Sem perceber cheguei a emagrecer alguns quilos. Beto felizmente salvou-se. Mas nossa doença estava diagnosticada. Se não estávamos completamente curados, pelo menos o tratamento não era dolorido, apenastínhamos que tomar muita água durante o dia. Bob, que nunca usa remédios, teve que consumir alguns sedativos para a dor. Mas logo melhorou. Foi sorte nossos sintomas só aparecerem na chegada. Fiquei imaginando como teria sido difícil se Bob sentisse suas dores em alto mar. A médica que nos atendeu, uma respeitável senhora, mãe de família de Recife, adorou nossa irreverência. Disse que gostaria de conhecer o Zimbros. Respondi com mais respeito que juízo: "Doutora, não me leve a mal, mas a senhora não sabe dos riscos que corre ao entrar em uma toca de ursos solitários como aquela". No fundo senti que ela estava disposta a se arriscar. .

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Se na adversidade se conhece o bom amigo, os transtornos nos deram oportunidade de descobrir muitos. Bob é um cara muito popular em Noronha. Costumava fazer charter com seu veleiro Persona, vindo de Natal. Também já foi assíduo mergulhador em suas águas, quando a caça submarina era permitida. Ganhamos uma inestimável assistência dos seus antigos companheiros que nos ajudaram de todas as maneiras para resolvermos nossos problemas. À noitinha, véspera da partida, recebemos a visita de alguns desses camaradas. Marinheiros profissionais que tiram seu sustendo do mar, foram à bordo conhecer o Zimbros e ouvir nossas histórias. Eles pareceram impressionados com nossos relatos, e não pude deixar de me envaidecer ao notar que aqueles lobos do mar nos viam com respeito e admiração.

Ao amanhecer partimos de Fernando de Noronha com destino à Salvador. O Zimbros voltava sobre seus passos e reencontrava sua própria esteira deixada para trás há quase um ano e meio. A partir de lá, todos os caminhos me eram familiares. O mar estava calmo, o vento era sudeste, vinha da proa, e variava de 10 a 15 nós. Velejamos bem por dois dias consecutivos, apesar da orça fechada. Rodrigo, nosso novo tripulante, já conhecia o mar e não estranhou o desconforto. Foi bom tê-lo à bordo, já que mudamos um pouco o rumo das polêmicas e a qualidade do som. Ele é um especialista em música popular brasileira, sambas e choros. Seu programa Samba de Bamba, está no ar há vários anos na Rádio Educativa do Paraná. Pedi que nos trouxesse alguns discos diferentes e ele nos presenteou com algumas novidades muito especiais. Ao anoitecer do segundo dia, o vento rondou para sudoeste, exato no nosso rumo, e instalou a confusão a bordo.

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Recolhemos as velas e ligamos o motor. Mas o problema com o combustível não tinha sido resolvido e a nossa máquina começou a falhar. Estávamos no través de Pernambuco, vento na cara, sem piloto automático e com o motor recusando-se a funcionar. Baixou a moral e a tripulação resolveu arribar para Recife. Eu contava nos dedos a hora de chegar em Salvador mas, contrariado, concordei em fazer uma escala no Cabanga Iate Clube. Lá poderíamos limpar o tanque de combustível e esperar que o vento soprasse, senão à favor, pelo menos não na proa.

O novo dia nasceu feio com uma chuva bem fina e a cara do mar era de poucos amigos. Como mudamos o rumo, pudemos ter o vento pelo través, o que nos deixava mais estáveis em relação às ondas. Aos poucos surgiu no horizonte o perfil concreto da orla de Boa Viagem. Eu estava aborrecido pelo desvio, mas assim que nos aproximamos da costa meu humor mudou e fui tomado por uma sensação de saudades e de alívio por voltar à Recife. Manobramos ao lado dos quebra-ondas que protegem a entrada do porto onde, segundo a modéstia pernambucana, o Beberibe e o Capibaribe se encontram para formar o Oceano Atlântico. Ao meio-dia entramos nas águas do Iate Clube.

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Tão logo desembarcamos fomos envolvidos por uma onda de hospitalidade irreal. Reencontramos velhos amigos, ganhamos novos, os quais, sabendo do nosso feito, queriam conhecer o Zimbros e interar-se das aventuras e desventuras da nossa viagem. Rapidamente conseguimos uma equipe para desmontar e limpar nosso tanque de diesel. O barco passou por um frisson de gente que chegava e partia a cada minuto. "Beto, viramos celebridade" cochichei para ele. Jotapê, Cleidson, Alcoforado, o comodoro, o vice, o diretor de vela, todos queriam saber das nossas histórias. Em um determinado momento, à noite, estavam a bordo umas dez pessoas e muitos outros reuniam-se no cais flutuante ao lado. Era uma enorme confraternização de navegadores. Ah, esqueci de mencionar os três funcionários que trabalhavam na cabine de popa para retirar o tanque de dentro do barco.

A festa continuou pelos próximos dias. A hospitalidade do Cabanga deveria ser exemplo para outras associações náuticas do Brasil afora. Fomos tratados com muita deferência por todos, do mais humilde ao mais graduado funcionário do clube. Em pouco tempo nossos problemas com o combustível foram resolvidos. Mas o melhor de tudo foi que, para minha surpresa, o Cleidson, o popular Torpedo, nos apresentou um técnico em eletrônica que trabalha com aeromodelismo. O moço esteve à bordo e, em menos de uma hora, conseguiu resolver nossa pane com o piloto automático. Era uma invisível oxidação na placa do circuito integrado que ele descobriu e reparou facilmente. Com todas nossas avarias solucionadas, só nos restava partir. Mas o vento lá fora ainda era sudoeste forte e seria muito desgastante seguir contra ele. Esperamos um dia a mais quando finalmente pudemos sair.

Pouco antes do amanhecer, com a maré cheia, nos despedimos do Iate de Recife que nos havia recebido com muito carinho. Rodrigo tinha que voltar para casa, infelizmente desembarcou e não fez a última perna da viagem. O dia começava a nascer quando saímos do clube. Fora da barra o mar estava calmo e o vento soprava de leste com 10 nós. Junto conosco seguiam também para o sul os veleiros Bicho Papão, do meu amigo Orion e o Jamaluce, do Jens, um gringo doidão com sotaque degaúcho. Uma frente fria estava prevista para os próximos dias, tínhamos que nos adiantar se quiséssemos chegar à Salvador a tempo de nos livrarmos dela. Ficamos em contato pelo rádio e, um pouco mais tarde, Orion e Jens decidiram seguir até Maceió para livrarem-se da instabilidade. Nós resolvemos encarar o trem de frente.

Saída de Recife: ao amanhecer a silhueta do Jamaluce.

Salvador: o forte de São Marcelo ao lado do Centro Náutico,

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Mas os dias seguiram-se bons e os ventos favoráveis. A lua estava quase cheia e seu clarão iluminava a nossa noite. Com o piloto automático trabalhando direito, tudo ficou fácil a bordo. Restava-nos apenas observar o horizonte imutável que nos cercava. À medida que alcançamos o litoral baiano o vento acalmou e fomos obrigados a ligar o motor. "Será a frente?" eu me perguntava a cada instante. Mas o tempo permaneceu firme, embora sem ventos. No final da tarde do nosso terceiro dia de navegação, nos aproximamos da costa e pudemos ver o contorno urbano de Salvador. Escureceu quando passamos no través do Rio Vermelho. Pouco depois, dobramos a ponta do Farol da Barra e entramos na Baia de Todos os Santos. A cidade e suas luzes eram magníficas vistas do mar. É sempre emocionante chegar à Salvador. Mais alguns minutos e manobramos nas águas do Centro Náutico da Bahia. Finalmente chegamos! Aquele era o ponto final de uma odisséia que começou no Mediterrâneo quase dois meses atrás.

Na manhã seguinte iniciamos nossos preparativos para desembarcar. Uma faina enorme, limpar o barco, arrumar as malas, prender os cabos, dezenas e dezenas de pequenos detalhes que não podiam ser esquecidos antes da partida. Eu lavava o convés apenas de calção, sem sapatos. Tinha nas mãos um saco de lixo para jogar fora. Não quis lançá-lo para o trapiche com medo dele abrir-se todo. Desfocado, sem prestar muita atenção, tentei pular da popa para o cais. Calculei mal a distância e não venci o pequeno vão que separava o barco do deck. Caí com todo o meu peso apoiado sobre o dedinho do pé esquerdo. Desabei sobre o trapiche e, no mesmo instante, senti uma terrível dor no pé. Ao olhar, descobri que tinha feito um enorme corte. Estava cheio de sangue e era possível até enxergar o osso do dedo. Além da dor e do remorso, senti minhas orelhas crescendo como as de um burro. Que mico eu paguei! Havia vencido duas travessias e fui cair feito uma besta logo na chegada. E com um agravante: bem na frente de todos os velejadores conhecidos que estavam por perto.

Rapidamente fui socorrido pelos amigos. Uma santa mão me fez uma atadura preventiva e, em seguida, me despachei de táxi direto a um pronto-socorro.No hospital ganhei oito pontos no pé e severas orientações para evitar qualquer tipo de esforço. Felizmente não havia fratura, mas o pior de tudo foi a imobilidade que me foi imposta. Seria terrível repousar quando havia muito a fazer para deixar o Zimbros nos próximos dois meses. Aprendi a suportar uma travessia oceânica e os dias imóveis que se arrastam lentos a bordo, descobri como domar meus medos durante uma tempestade, mas para mim é quase impossível ficar imóvel, sem poder andar dependendo de todos para tudo. Era mais uma prova que teria que suportar nas semanas seguintes.

Beto foi o primeiro a ir embora. Nocauteado, eu parti logo em seguida. Bob permaneceu uns dias a mais em Salvador, e me ajudou nos intermináveis afazeres com o Zimbros. O que não pudemos terminar, eu deixaria para resolver quando retornasse à Bahia. Procuramos nos poupar de melancólicas despedidas, embora soubéssemos que um grande capítulo da nossa história encerrava-se naquele porto. "Quando poderei navegar com eles de novo?" me perguntei já com saudades daquela dupla.

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Final da parte 35

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Voltei ao Zimbros um mês e meio depois de tê-lo deixado em Salvador, vindo da Europa. Nesse tempo o barco ficou encostado no cais do Centro Náutico da Bahia. Vinha decidido a levá-lo de volta ao seu porto de origem. Eu não estava totalmenterecuperado do acidente que sofri na chegada. Uma queda no cais me rendeu oito pontos no pé. Apesar do corte estar cicatrizado, eu ainda sentia dores no osso. Para aumentar meu desespero, uma nova tripulação iria me acompanhar a partir de lá até Parati, litoral do Rio de Janeiro. Eram eles Arnaldo, que já navegara comigo até Fortaleza, Renato, amante do mar e do conforto e Roberto, pescador, mergulhador e aventureiro náutico, apaixonado por Abrolhos. Todos eram velhos amigos e se dispunham a largar a segurança de seus lares para uma aventura incerta em mar aberto.

Era uma manhã de sábado e Salvador fervia no calor de suas farras perpétuas. A algazarra de centenas de berimbaus no vizinho Mercado Modelo aquecia nossa alma. A tripulação, contagiada pela doce preguiça baiana, cedo esqueceu a pressa em partir, rendendo-se ao modo de ser dos nativos. A Bahia sabe, como poucos, enfeitiçar seus visitantes, e é mesmo muito difícil ir embora em um final de semana agitado. O fascínio se deve não só às praias, ou ao clima, mas também à sua fauna, principalmente aos mamíferos-fêmea da espécie homo sapiens. Com pesar conseguimos sair do Centro Náutico às duas da tarde. O vento era a favor, soprava de leste com 15 nós. O mar estava calmo, o dia ensolarado.

Navegamos sem surpresas pelos dois dias seguintes. Procurei ficar longe da costa, cerca de 25 milhas, para fugir das redes dos pescadores e também para ter espaço de manobra, caso fosse alcançado por alguma trovoada de leste. Havia muitas tempestades tropicais à volta. Fomos pegos por algumas, mas sem maiores conseqüências.

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Farol da Barra, Salvador.

Parte 36

A moral à bordo era alta, apenas o Renato estava um pouco mareado com o balanço do Zimbros. Chegamos ao arquipélago dos Abrolhos pela manhã do segundo dia de viagem. Nos aproximamos pelo norte, vagarosamente ultrapassei o raso canal entre as ilhas Santa Bárbara e Redonda. Fundeamos ao lado da Siriba, em uma poita usada pelas embarcações de turismo que visitam a ilha, vindas do continente. A maré estava baixa e cheguei a tocar o fundo de areia com a quilha do Zimbros. Centenas de peixes podiam ser vistos mesmo de cima da amurada. .

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Os Abrolhos sempre nos reservam grandes surpresas. Tinha planos de partir logo ao anoitecer, mas mudei de idéia frente ao fascínio do arquipélago sobre a tripulação. Na região entre o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo, a plataforma continental avança por cerca de 200 quilômetros mar adentro. O fundo do oceano eleva-se, muitas vezes bruscamente, de 400 para 50 metros. Os trechos rasos servem de base para numerosos recifes de coral, muito perigosos para a navegação. É aí que situa-se o Arquipélago dos Abrolhos, a cerca de 70 quilômetros da costa, na altura de Caravelas. É um belo ecossistema marino com águas transparentes, visibilidade de até 30 metros e profundidades médias de apenas cinco metros. A temperatura da água varia de 22 a 24 graus. Acima na superfície, as ilhas são habitat de milhares de aves marinhas que escolheram aquele paraíso para se multiplicarem.

A tripulação não queria ir embora de jeito nenhum. Em êxtase, acabaram até esquecendo as mais básicas noções de cuidados à bordo como a limpeza da louça e abastecimento do pequeno motor do dingue. Mas nada como uma réstia de bárbaros impropérios para colocar ordem na casa. Todo comandante tem que dar broncas, uma velha reputação que gosto de sustentar. "Vocês em matéria de mar são uns neófitos" gritei com eles. Arnaldo não gostou muito, visto que eu não estava sendo nada lisonjeiro.

No começo da tarde do dia seguinte deixamos nosso abrigo. O vento era fraco, nordeste, mas suficiente para inflar nossas velas. Fizemos uma navegação tranqüila, sem sustos e chegamos ao Iate Clube de Vitória às 18:00 horas do dia seguinte. Em terra nos esperava o Ronaldo, um velho amigo, também velejador, que iria substituir Arnaldo a partir de lá. Ao manobrar dentro da marina, o Zimbros foi reconhecido por um sócio amante da vela, leitor destas crônicas, que nos saudou com entusiasmo e, muito delicadamente, se pôs à nossa disposição para qualquer emergência. "Fiquei famoso" pensei cheio de vaidade.

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Não demoramos na capital capixaba, a saída de Vitória foi às duas da tarde do dia seguinte. Ficamos pouco menos que 24 horas na cidade. O suficiente apenas para abastecer o barco, trocar de tripulante e, com ajuda do amigo Ben Hur, comprar um equipamento de pesca mais decente. O vento continuava generoso, de 10 a 15 nós, nordeste. Perfeito! Logo de saída o Betão fez valer a nova aquisição e conseguiu fisgar duas belas cavalas de aproximadamente 4 kg cada. A menor virou sushi e a outra foi direto para a panela. A noite estava linda, com lua crescente sem nuvens. .

Chegada em Vitória: o Zimbros manobra dentro do Iate Clube.

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Apesar do mar calmo, Ronaldo passou mal a maior parte do tempo. Mas mesmo mareado, ele conseguiu manter seu bom humor. Na madrugada, com todas as velas em cima, armadas em asa de pombo, fomos surpreendidos por um vento forte que chegou aos 20 nós. O Zimbros alcançou facilmente à velocidade de 11 nós. Não consegui dormir. Fiquei no convés apreensivo, apesar do barco navegar firme nas ondas. Amanheceu ao dobramos o legendário Cabo de São Tomé, o ponto onde a costa do Brasil deflete para sudoeste. O vento apertou, o mar cresceu e fui obrigado a rizar as velas. Demos um jaibe, mudamos o bordo e aproamos o Zimbros direto para a ponta de Cabo Frio. .

Beto e eu: conseguimos embarcar duas cavalas para o almoço. Ronaldo: apesar do mareio, astral alto.

Ao entardecer o vento morreu. Mas logo voltou a soprar do quadrante oeste, bem na nossa cara. À medida que nos aproximamos de Cabo Frio as rajadas aumentaram e as correntes contrárias tornaram nosso percurso mais sofrido. O motor mal conseguia vencer a força do mar. Estava à 2.000 giros e o barco seguia lento, com quatro nós de velocidade. Pensei em parar no Arraial do Cabo, mas aos poucos a correnteza diminuiu e conseguimos vencer a ponta. O vento permaneceu forte a noite toda, e pela manhã passamos no través da Baia da Guanabara. Sintonizei a Rádio Globo. Às 18:00 horas conseguimos chegar no lado de fora da ilha Grande. Fizemos uma pequena parada na ilha Jorge Grego, que eu não conhecia. É um belo lugar! Depois de um rápido mergulho, contornonamos a ponta dos Meros e prosseguimos em direção ao continente. Anoiteceu e uma chuva fina caiu sem piedade sobre nós. Apesar do desconforto a tripulação estava feliz com a chegada. À meia-noite aportamos em Parati.

No trapiche da marina do Amyr Klink, nos aguardavam Betinho, Tarcísio e Paulinho. Mas não tivemos tempo para comemorações, pois, cansados, estávamos muito mais interessados em nossos beliches do que em festas. Em compensação, passamos todo o dia seguinte, um domingo, celebrando nossa chegada. Beto está em Parati há alguns anos. Mora no seu barco, o Odysséa II, um Main 35'. Combinamos um churrasco com todos os velejadores, amigos seus, também fundeados na Baia de Angra dos Reis. É curioso como existem, também no Brasil, centenas de navegadores que vivem em seus barcos. Precisa-se muito desprendimento para largar os confortos urbanos em troca do limitado espaço de um veleiro. Mas vale a pena, pois como diz o Weber, um gaúcho que há anos deixou Porto Alegre pelas praias do mundo: "O apartamento é pequeno, mas a piscina...".

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Na marina fomos visitados por uma equipe da All Tv Sports, um programa de esportes radicais vinculado na Web. Eram um camara-man, um jornalista e uma apresentadora super-tcham. Souberam por lá que eu estava chegando da Europa com o Zimbros e queriam fazer uma matéria comigo. Uau, comecei a me achar o máximo! Os caras foram muito legais e ficaram à bordo por mais de uma hora. Fizeram muitas perguntas e muitas imagens, reviraram o barco pelo avesso, sem deixar passar nenhum detalhe. O programa deles é uma espécie de videoclipe e atinge uma moçada bem jovem, interessada em esportes diferentes do usual. Sua linguagem, moderna e ágil, me fez sentir um garoto vibrante. Quem quiser acessar sua programação basta clicar no

e conferir a produção da moçada. Após tantas atenções, o meu ego mal cabia dentro do barco. Ao nos despedirmos, tomamos um ferrinho saideiro em homenagem ao nosso encontro. Tão logo os garotos desembarcaram, fui cumprir uma tarefa odiosa, mas inadiável: lavar minhas roupas que estavam para lá de imundas desde Vitória. Nada como o banal cotidiano de bordo para desmistificar todo o glamour do iatismo. Voltei ao comum e tive que encarar o horror da vida real.

A tripulação desembarcou toda e foi substituída por novos grumetes: Tarcísio, marinheiro veterano que me acompanhou em outros trechos; o Humberto, um amigo dos tempos de garoto, hoje um grande fotografo subaquático; Paulinho, outro camarada do coração em cujo veleiro, há muitos anos, eu aprendi meus primeiros passos na vela, e André, meu filho de 15 anos. Deixamos Parati às onze da manhã, o dia estava maravilhoso e todos à bordo excitados com a perspectiva de um grande passeio até Porto Belo, Santa Catarina. Mas ao dobrarmos a Ponta da Juatinga, o vento nos surpreendeu de sudoeste com 17 nós. Não poderia haver nada pior para nós naquele momento, já que nosso rumo era exatamente de onde soprava o vento. Arribei um pouco e tentei, sem muito sucesso, seguir na vela junto com o motor.

A princípio o mar não estava tão ruim. Mas pouco antes da alvorada, no meu turno, a força do vento e das ondas recrudesceu. Instalou-se o mal estar à bordo. Paulo, Humberto e André começaram a passar mal. Amanheceu feio. No través de Santos ficamos no rumo da incerteza, indecisos quanto ao nosso destino: primeiro resolvi que seria melhor entrar em Santos, logo em seguida mudei de idéia e voltei o rumo para a ilha de Bom Abrigo. Tinha alguma esperança de poder chegar lá e dar uma trégua ao nosso sofrimento. Andamos muito bem, em orça fechada, apesar da molhadeira à bordo. O Zimbros, firme no contravento, chegou aos oito nós de velocidade. Os que não passavam bem, ficaram deitados no cockpit, que é o melhor lugar para estes casos.

www.alltv.com.br

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Confraternização em Parati: Paulinho, Betão, Weber, eu, Humberto, Renato, André e Tarcísio.

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Retornamos à Santos. Escureceu e nada do tempo melhorar. Ao nos aproximarmos da entrada do porto, pudemos ver que o movimento de navios era intenso. Pelo canal 16 do VHF chamei o pessoal da praticagem para saber das condições da entrada. Fui atendido por alguém que, de cara, me desencorajou a prosseguir. Disse que o movimento era grande, o tempo estava ruim e que o melhor que eu podia fazer era cair fora. Fiquei sem voz, angustiado, querendo saber para onde ir, já que o próximo abrigo que conhecia era em Ilha Bela. Antes que eu começasse a chorar, outro funcionário, aparentemente mais graduado que o primeiro, assumiu o rádio e disse que não havia problema nenhum e que podíamos entrar na barra sim. Só deveria ficar atento ao imenso tráfego de embarcações. Nada mais. "As condições aí fora estão muito ruins, o melhor para vocês é abrigarem-se aqui dentro. Cuidado e boa entrada" nos disse com simpatia. Fiquei pensando na sacanagem que o cara que atendeu o rádio queria nos pregar. Um tipo de sujeito de mal com a vida, desejei-lhe muita luz, era o que mais ele precisava.

À meia-noite chegamos ao Iate Clube de Santos. Cansados, molhados e frustrados, não tivemos disposição de nada exceto dormir profundamente. Pela manhã o tempo continuava ruim, e pouco nos restava senão abandonar nosso projeto de chegar à Porto Belo. O Zimbros ficou em Santos e nós, sem escolha, voltamos para casa. "Não foi dessa vez Paulinho" eu disse, aludindo ao fato dele nunca ter conseguido vencer o paralelo 27 (veja o belo texto anexo produzido pelo Tarcísio sobre o tema). Eu também estava inconformado, sem saber quando poderia retornar. Não seria daquela vez que eu, enfim, terminaria a viagem. As minhas aventuras teriam um capítulo a mais.

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Final da parte 36

Acesse este capítulo e os demais no seguinte endereço:http://www.iateclubeportobelo.com.br/aventura.htm

Mas infelizmente estavam sujeitos a todas as ondas que fatalmente embarcavam pela proa. Para passar o tempo eu fazia palavras cruzadas dentro da cabine.Quando cruzamos pela ilha da Queimada Grande o tempo se fez mais denso. Estávamos de cara com uma frente fria das grandes. E ainda tínhamos quase 12 horas até Bom Abrigo. Seria forçar muito a paciência dos meus tripulantes recém embarcados. Meu filho André a cada minuto me fazia ver o quanto arrependido ele estava por ter aceito o meu convite. Paulinho e Beto mal falavam. Voltei atrás mais uma vez e decidi regressar para Santos, 30 milhas na popa. Há horas dentro de um barco em que é preciso resignar-se e saber desistir. O vento atingiu 30 nós e o mar assombrou-se de vez. Ao virar o rumo para o norte a genoa fez um sutiã terrível, ou seja enrolou-se toda no estai de proa. Não houve jeito de desfazer o engrulho. Com o mar grande, ficou muito perigoso trabalhar lá na frente do barco, apesar de todos os esforços do Tarcísio. Seguimos para o lado protegido da Queimada onde, depois de quase uma hora de sufoco, conseguimos dar um jeito na vela. .

Paulinho e os 27 graus sul: não foi dessa vez.

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Por cerca de um mês o Zimbros ficou parado nas águas do Iate Clube de Santos à minha espera. Eu pretendia trazê-lo o mais rápido possível para Porto Belo, em Santa Catarina. Contudo as frentes frias que me obrigaram a deixá-lo lá ainda estavam presentes no litoral paulista. Era janeiro, pleno verão, mês em que essas instabilidades deveriam ser menos constantes, mas por alguma razão São Pedro estava me sacaneando. As frentes sucediam-se inteminavelmente por toda a Região Sul, impedindo-me de sair de Santos. Em um determinado momento, impaciente, decidi seguir viagem sem me importar com as sombrias previsões. Tive a impressão que se eu fosse esperar alguma janela de nordeste, talvez nunca mais traria o Zimbros de volta para casa. Na companhia do Joaquim resolvi encarar o mau tempo. Ele é um velho amigo, quase irmão, meu parceiro de outros cruzeiros. Estivemos juntos entre Fortaleza e São Luís e no Caribe. Chegamos no Guarujá com a perspectiva de uma grande massa de ar frio avançando pelo sul nos próximos dias. Havia um alerta da defesa civil para o risco de tempestades de vento. As moças responsáveis pela meteorologia do Iate nos desencorajaram a partir. Foram mais que convincentes, principalmente depois de nos lembrar da tragédia ocorrida em dezembro de 2000. Naquela oportunidade dois velejadores experientes, ambos sexagenários, perderam suas vidas no litoral do Paraná ao tentarem vencer uma terrível frente que os apanhou entre Paranaguá e São Francisco do Sul. Mas não foi por falta de aviso. Eles foram aconselhados no próprio iate de Santos do mau tempo que se aproximava, mas consideraram-se aptos suficientes para encará-lo. Infelizmente, por razões desconhecidas, ambos cairam na água frente à Caiobá e foram engolidos pelas ondas. O mar não perdoa erros.

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Parte final

No mar: Joaquim confere na carta náutica o nosso avanço para o sul.

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Convencidos a não partir, permanecemos ociosos no conforto do elegante iate de Santos. A depressão finalmente chegou com uma queda abrupta na pressão atmosférica, chuva abundande e ventos fortes. Mas não era tão poderosa quanto o previsto. Após as primeiras horas o tempo acalmou-se e nada mais nos segurava em terra. Só nos restava partir. Deixamos a marina com as primeiras luzes de uma manhã feia e cinzenta. O vento era fraco e soprava de sudeste, o mar estava calmo. Navegamos à motor até a ilha da Queimada Grande, onde novamente fiz uma escala para verificar uma estranha vibração que aparentemente vinha do hélice. No través do Rio de Janeiro um pedaço de corda jogado no mar enrolou-se no eixo do motor.

Depois de retirá-lo surgiu uma estranha vibração nas baixas rotações. Eu suspeitava que algo havia deslocado o hélice do seu centro. Megulhei para averiguar a razão do tremor, mas foi impossível descobrir qualquer dano. Prejuízo à vista: ao chegar em casa teria que retirar o Zimbros d'água para fazer uma revisão completa sob seu costado. .

Continuamos no motor até o anoitecer quando um vento sudeste de 10 nós firmou-se pelo través. Desligamos a máquina e içamos todas as velas. Estávamos em orça folgada e o Zimbros navegava confortável sobre as vagas. De madrugada cruzamos a fronteira de São Paulo com o Paraná. Começou a cair uma garoa fina e chata que nos ensopou até o pensamento. O novo dia veio com cara de poucos amigos, nublado e com chuviscos que não paravam nunca. À medida que prosseguimos, deixamos para trás todos os pontos geográficos que faziam parte do meu mundo desde meus primeiros passos no mar: a Ilha do Bom Abrigo, a barra de Paranaguá, a baia de São Francisco do Sul, a Ponta da Vigia, o porto de Itajaí. Lembrei-me de como eram longínquos uns dos outros, quase inalcansáveis. Bom Abrigo, o fim do meu universo náutico, estava no limite norte, a partir do qual só haviam imensidões temerárias. .

Carta Náutica: ilha de Bom Abrigo e as baias de Paranaguá e de Guaratuba.

Apesar das chuvas e da umidade, a visibilidade era boa. Nosso rumo nos aproximou da costa e aos poucos pude decifrar alguns pontos em terra. Às 17:00 horas vi na proa o morro de Santa Luzia, no município de Bombinhas, meu velho conhecido. No final dos anos 90 criamos uma associação de moradores, a Amar Zimbros, cujo objetivo maior era lutar pela preservação das suas encostas, ameaçadas, como hoje, por uma sede imobiliária sem escrúpulos. Na posição de onze horas em relação à proa, apareceram o Arvoredo, as Galés e a Ponta de Porto Belo. "Estou em casa! Cheguei, consegui realizar meu sonho, fui e voltei inteiro" pensei triunfante. Apesar de algumas cicatrizes, como as que ganhei no pé lá em Salvador, estarem ainda abertas no meu corpo, me considerei safo. Tinha Navegado 15.000 milhas, aportado em 12 países e três continentes. Atravessei duas vezes o Atlântico. Mas não fui só. Devo demasiado aos 26 companheiros que estiveram comigo nos maus e nos bons momentos durante todas as cruzadas. Estava orgulhoso de mim, dos meus amigos e do Zimbros.

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Depois de tantos mares vistos pelo avesso e pelo direito, aqueles pontos eram para mim apenas a porta de entrada da minha casa. Andei muito nos últimos dois anos. O sol da Bahia, as marés do Maranhão, o mar do Caribe, os ventos de Gibraltar, o Guadalquivir que ainda corre para o mar, Espanha, Africa... Aprendi um bocado, vivi muita coisa. Mas continuo me sentindo apenas um aprendiz, para quem os mistérios do mar têm muito o que ensinar. Se cada gota do mar me mostrou a mais profunda beleza da vida e do ser, as ondas do Atlântico sempre vão despertar em mim um sentimento de respeito e temor. Ninfas, tempestades e tentações vi. Fui em busca dos meus limites e cheguei lá. Ganhei um grande prêmio, maior que a maior loteria, um troféu que nunca vou perder. .

Dia molhado: ávido para chegar.

O clima não era para papo. Joaquim é um cara que não gosta de jogar conversa fora, eu nem tanto. Ficamos calados. À bordo existem momentos em que a conversa fica em segundo plano. Descobri muitas vezes que o silêncio pode ser mais eloquente que um milhão de discursos. Encontrei comigo, sozinho vivi o deserto e me pus à sua prova. Acostumei-me a decifrar os 360º da rosa do ventos, a suportar a monotonia e o terrror do tempo, a encarar a solidão e o medo. No mar os dias podem ser iguais ou diferentes, depende de quanto preparado você está para ver o que acontece à sua volta. Às vezes navegando no meio do nada eu esquecia qual dia da semana estava. E uma incrível sensação de liberdade tomava conta de mim. Noutros momentos não via a hora de chegar em um porto e abandonar tudo o que me ligava ao mar. O barco é o um meio que pode ensinar com clareza a filosofia oriental do Yin e Yang: o paraíso e o inferno se sucedem a toda a hora, ambos são parte da mesma realidade. Um não existe sem o outro, faces da mesma moeda. .

Navegar é Yin & Yang.

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Faltava pouco para terminhar minha grande aventura. Era um alívio realizar o meu grande projeto. Mas também não conseguia disfarçar uma ponta de tristeza: dentro em pouco tudo estaria acabado. "Qual minha próxima aventura?" me perguntava inquieto. Pela minha cabeça passaram, num relance, todos os grandes momentos que vivi nos últimos meses à bordo do Zimbros. E muitas perguntas: Quais foram os melhores lugares? Qual a importância dessa viagem para o bem da humanidade? Valeu a pena? Mas o que vi, senti e conheci nos últimos anos foi coisa demasiada para poder resumir em uma simples resposta. Tudo pareceu tão rápido que minhas emoções se sobrepunham umas às outras. Era como se eu tivesse partido na véspera e toda a minha história se concentrasse em um único segundo. Os primeiros capítulos destas minhas crônicas, que começei a escrever quando deixei Paranaguá, me pareceram tão recentes. Confesso que outra grande viagem que fiz ao longo do caminho, foi através destes textos.

Ao escrever pude reviver várias emoções. Mas também não foi fácil, como no mar eu não podia errar. Enfrentei tempestades existenciais e calmarias criativas nas quais quase naufraguei. Estudei muito, li e reli todos os meus heróis. Comecei a interessar-me, embora com timidez, pela arte da escrita. Aproximei-me e quis conviver com amigos escritores. Descobri Ulisses e João Cabral, revi Fernando Pessoa, Ferreira Gullar e Gabriel Garcia Marques. Aproximei-me dos grandes, fiquei íntimo deles e quis, sem muito sucesso, copiá-los. Se não consegui inteiramente, pelo menos melhorei um pouco minha redação. Acho que subi um degrau na escala evolucionária, mas Hemingway pode descansar em paz que não vou ameaça-lo. Sou apenas seu fiel imitador. Igualmente, ao tentar seguir os passos dos meus ídolos navegadores, acabei me tornando um deles: Amyr Klink, Aleixo Belov, Hélio Seti Jr, João de Deus, Cabinho... Sou meio abestado mas aprendo rápido. Procurei copiar os grandes e espero ter sido um bom aluno. Se você leitor(a) chegou até aqui, significa que tive algum sucesso.

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Às nove da noite o Zimbros passou discreto pelas bóias que demarcam o acesso ao Iate Clube Porto Belo. Em silêncio agradeci aos deuses por chegar à salvo ao meu porto seguro. Estava escuro e ainda chovia. No cais molhado, ao jogar os cabos de amarração, só dois humildes funcionários me aguardavam: o porteiro Zézinho e o vigia Pedro. Desembarquei e fiz questão de apertar a mão de ambos, únicas testemunhas da minha chegada. Fechei o ciclo, a mesma onda que me levou, me trouxe de volta. Na parede da cabine, em uma fotocópia desbotada pela umidade, o texto que Antonio Garcia registrou para sempre era a melhor tradução de toda a viagem: "Así transitó estos mares la tripulación del Zimbros, nomádica, mezcladora de flujos y lugares, de líquida sensibilidad en una bóveda no revelada, cartógrafa de la inmanencia, de ensoñación y ataraxia. ¿Quiénes

fuimos? .

Fim